Paixão Do Mundo - Leonardo Boff
Paixão Do Mundo - Leonardo Boff
Paixão Do Mundo - Leonardo Boff
O filme de Mel Gibson “A Paixão de Cristo” não deve deixar a impressão de que só Jesus
carregou a cruz e foi submetido aos piores tormentos. Sua paixão se inscreve no interior
da paixão dolorosa do mundo e seu sentido mais profundo reside em sua solidariedade
para com todos os crucificados da história. Existe uma misteriosa paixão do mundo,
desafio para qualquer esforço de compreensão. O processo evolutivo especialmente no
âmbito da vida é estigmatizado por inenarrável sofrimento. No nível humano pode chegar
a expressões de barbárie. Em tudo o sofrimento nos acompanha, mesmo quando somos
bem sucedidos. Os antigos nos legaram esta sentença: "a vida não deu nada aos mortais
senão a preço de muito trabalho". Que implica, notoriamente, ponderáveis sacrifícios. Na
verdade, todos carregamos alguma cruz ou nas costas ou no coração. Às vezes a cruz do
coração sangra mais do que aquela das costas. Foi a cruz que Jesus também sentiu
quando, no paroxismo da dor, no alto da cruz, deu o grito desesperado: "Pai, por que me
abandonaste?" São João da Cruz, autor da Noite escura chama a esta cruz de noite do
espírito terrível e medonha. Ela é isso porque ataca a última reserva humana: a
esperança.
Comovemo-nos com a paixão sangrenta de Jesus. Mas não fazemos o mesmo face à
paixão dolorosíssima dos crucificados da história. Há povos crucificados como os negros
e os indígenas que há séculos estão carregando sua cruz talvez com mais estações do
que aquelas do Filho do Homem. Milhões e milhões de trabalhadores continuam sendo
crucificados com salários de fome e em condições higiênicas que produzem a morte de
quarenta milhões deles anualmente. Incontáveis penam sob a cruz da discriminação pelo
fato de serem mulheres, pobres, doentes, homossexuais, portadores de AIDS e ou outras
formas de crucificação social. Advogados corajosos, juizes destemidos, jornalistas
intrépidos são difamados, perseguidos, seqüestrados e têm que carregar pesadas cruzes
sobre si e suas famílias e até são mortos barbaramente por se comprometerem na luta
contra as máfias da corrupção, das drogas, da prostituição infantil, do tráfico de armas.
Esta cruz é digna, e sofrer com ela é honroso.
Jesus, em sua pregação e em sua prática privilegiou, a todos estes chamando-os de bem-
aventurados. Seu projeto religioso e social era de aliviar as cruzes da vida e criar um
mundo onde ninguém precisasse colocar cruzes nas costas dos outros. Entendeu que
esse é o projeto de Deus, chamado por ele de Reino dos céus. Mas conheceu o destino
de tantos outros antes dele: a incompreensão, a difamação e a liquidação física na forma,
a mais cruel do tempo, que era a crucificação. A morte de Jesus é conseqüência de sua
vida e de sua prática. Não é um drama supra-histórico, uma aposta entre Deus e o
demônio, isentando as responsabilidades humanas. Se quisesse ser fiel a si mesmo, ao
Deus cujo reino anuncia e às pessoas em quem suscitara esperanças radicais, Jesus, em
condições de rejeição, não tinha outra alternativa senão ir até o fim e contar com a morte.
As palavras "tinha que morrer" era "necessário que padecesse" são expressão de sua
fidelidade radical.
Há momentos para nós e para Jesus que somente a aceitação da sacrificação da vida faz
justiça à vida. Mais vale a glória de uma morte violenta que o gozo de uma liberdade
maldita.
* Teólogo e escritor.