A Tentação - Rubem Alves
A Tentação - Rubem Alves
A Tentação - Rubem Alves
(Rubem Alves)
O diabo é psicanalista e poeta, conhece os segredos do coração humano e, por isso, sabe os
segredos da sedução. É isso que faz dele o Tentador...
A tentação se inicia com algo que se deseja. O Diabo mostra o fruto vermelho, aveludado,
perfumado, suculento, pendente da árvore e diz: “Apanhe, coma!” Eu jamais seria tentado a
apanhar e comer um jatobá. Eu não gosto de jatobás. A tentação só acontece no lugar do desejo.
Mas, se fosse uma pitanga, eu sucumbiria à tentação... Por causa de uma pitanga eu menino
cometi um furto. Eu via aquelas frutinhas vermelhas e as desejava. Mas estavam longe, no quintal
do vizinho... Para comê-las eu as roubei. Não me envergonho desse furto porque também Santo
Agostinho, menino, furtava pêras do quintal do vizinho. Se as pitangas estivessem numa árvore do
meu quintal não haveria tentação. Eu simplesmente iria lá e comeria as pitangas. A marca da
tentação é que, para se conseguir o objeto do desejo, há de se praticar um ato proibido. Nitimur in
vetitum – buscamos o proibido! A proibição aparece sempre no lugar onde o desejo é mais forte.
“Não matarás, não furtarás, não adulterarás”: essas proibições só existem porque eu desejo
matar, furtar, adulterar. Se esses desejos não existissem as proibições seriam desnecessárias.
Não é preciso proibir o que não se deseja. Não preciso que ninguém me proíba de comer
jatobás...
E lá estavam Adão e Eva no Paraíso cercados por todos os prazeres imagináveis, mais do
que suficientes para a sua felicidade. E foi então que o Diabo, psicanalista e poeta, percebeu que
havia um desejo, o mais profundo de todos, ainda não satisfeito. E ele sedutoramente o acordou:
“...e sereis como os deuses, conhecendo o bem e o mal...”
Conhecer como os deuses conhecem! Conhecer sem dúvidas! Conhecer com certeza! Ah!
Que coisa maravilhosa é possuir a verdade! E foi assim que, seduzidos pelo desejo da posse da
verdade eles comeram do fruto proibido e o Paraíso se perdeu. Perdeu-se porque não existe.nada
mais letal para as relações entre os homens que as certezas. As certezas, observou Nietzsche,
são inimigos mais perigosos da verdade que as mentiras. Porque aquele que mente sabe que
está mentindo; ele não acredIta naquilo que diz. Por isso para ele há esperança. Mas aqueles que
estão possuídos por certezas pensam e falam como se os seus pensamentos e palavras fossem
iguais aos pensamentos dos deuses. Eles estão presos dentro da gaiola de suas próprias
certezas e, por isso; para eles não há esperança.
Imagine que você está convencido de que seus pensamentos são a verdade. Dentro de você
não há nenhuma dúvida, só certezas. Se você só tem certezas, se você não tem dúvida alguma,
por que você iria perder o seu tempo questionando a verdade que você possui? A verdade não é
para ser questionada ou criticada. É para ser contemplada, repetida, cantada, louvada, ecoada
nas bocas de tantos quantos a ouvem. É o canto Gregoriano, cantochão, uníssono, proibidas as
harmonizações, proibidas as dissonâncias, proibidas as improvisações: todos estão de acordo,
todos cantam a mesma coisa, a mesma letra, a mesma música, a mesma monotonia. Relata-se
sobre um homem que, num país de ortodoxia islâmica, foi levado a um tribunal por haver escrito
um livro. Mesmo sem ter lido o livro o juiz proferiu a sentença: “Sobre o conteúdo desse livro há
apenas duas possibilidades. Primeira possibilidade: este livro repete as verdades que se
encontram no Corão. Nesse caso o livro é desnecessário por não passar de uma repetição do que
já se encontra nos textos sagrados. Deve, portanto ser queimado. Segunda possibilidade: esse
livro diz pensamentos que não são aqueles escritos no Corão. Se não estão escritos no Corão, os
pensamentos desse livro só podem ser mentiras. Deve, portanto, ser queimado...” Isso é apenas
uma estória. Mas é uma estória que revela como funciona não a cabeça de um juiz islâmico mas a
cabeça de todas as pessoas que acreditam ser possuidoras da verdade. Essas pessoas dão a
sentença sem precisar ouvir. Pois é lógico: se estou certo de ter a verdade as suas idéias,
diferentes das minhas, só podem ser mentiras. E porque iria eu perder tempo ouvindo mentiras?
O diálogo – fundamento das relações humanas, fundamento da democracia – só pode existir se
eu duvidar daquilo que penso. Se eu acredito estar de possa da verdade não há razões para que
eu o escute. Mas se eu duvidar de minhas idéias, então eu estarei pronto a ouvi-lo. Faço silêncio.
Coloco meus pensamentos, ainda que provisoriamente, entre parêntesis. Acolho o que você tem a
dizer. Penso sobre o que você diz.
Leszek Kolakowski é um filósofo polonês. Viveu sob o domínio do comunismo soviético. O
comunismo soviético se acreditava possuidor de uma verdade absoluta. Tudo o que não estava de
acordo com seu catecismo de verdades era estigmatizado como “pensamento pequeno-burguês”,
“pensamento reacionário”. Todos os que se julgam possuidores da verdade acreditam, por
exigência lógica, que aqueles que não pensam os seus pensamentos são aliados do “mal”. Eu
estou ao lado de Deus. Os que pensam pensamentos diferentes do meu estão com o Diabo. Não
foi isso que sugeriu o presidente Bush? É nesse ponto que os fanatismos de direita e de esquerda
se encontram. Por isso o regime comunista tratava, sistematicamente, de eliminar as
“dissonâncias”, o pensamento “politicamente incorreto”. Kolakowski conheceu na própria carne a
crueldade dos donos da verdade. E escreveu: “Porque deveria qualquer pessoa, inflexivelmente
convencida da verdade exclusiva dos seus conceitos relativos a qualquer e a todas as questões,
estar pronta a tolerar idéias opostas? Que bem pode ela esperar de uma situação em que cada
um é livre para expressar opiniões que, segundo o seu julgamento, são patentemente falsas e
portanto prejudiciais à sociedade? Por que direito deveria ela se abster de usar quaisquer meios
para atingir o alvo que ela julga correto?” A essas pessoas que acreditam na verdade dos seus
pensamentos e se dedicam a eliminar o pensamento dissidente ele deu o nome de pessoas
“consistentes”: existe “consistência" entre sua crença de estar de posse da verdade e suas ações
para eliminar aqueles que se opõem à sua verdade. E ele conclui: “Consistência total equivale, na
prática, ao fanatismo, enquanto que! a inconsistência é a fonte da tolerância”.
O juiz islâmico da estorieta decretou a queima do livro “religiosamente incorreto”. Por vezes,
entretanto, as idéias não estão escritas em livros. Estão escritas em cabeças. Nesse caso, é
necessário cortar as cabeças.
Foi o que aconteceu com Giordano Bruno: ele tinha idéias cosmológicas e teológicas
diferentes daquelas que a IgreJa Católica afIrmava serem as verdadeiras. Foi o que aconteceu
com Galileu: salvou-se da fogueira cometendo suicídio intelectual: negou o que sabia, negou
aquilo que havia visto com a sua luneta, as fases de Vênus, que provavam que o sol e não a terra
era o centro do universo. Foi o que aconteceu a Miguel Serveto, queimado pela Inquisição
protestante em Genebra. A Inquisição queimou milhares de pessoas. Foram queimadas porque
ousaram pensar suas próprias idéias. Eram hereges. Desafinavam no coro em uníssono do
cantochão eclesiástico. Foi o que aconteceu com os milhões que morreram nos campos de
concentração nazistas e estalinistas, e com os milhares de perseguIdos pelo generalíssimo
Franco, pelo macarthismo nos Estados Unidos e com os milhares de mortos pelas recentes
ditaduras da direita.
Mas porque é que o fanatismo se entrega à eliminação dos que pensam idéias diferentes?
Serão eles pessoas malvadas? De forma alguma. Os fanáticos se sentem inundados pelo
divino.As certezas são sempre divinas: E os seus corações estavam cheios de visões celestiais.
Todos os fanatismos têm visões de verdade e de beleza. A Inquisição contemplava um mundo tão
belo quanto as catedrais góticas. O Nazismo:queria construir um mundo baseado em saúde,
limpeza, beleza. O comunismo sonhava com um mundo justo e fraterno, onde não houvesse
exploradores e explorados. O Diabo não tenta com coisas feias. Ele sabe que o feio não tenta
ninguém porque o homem ama a beleza. Ele tenta com o belo, o bom e o justo.
Onde, então, está o pecado? Os ideais são como estrelas. Na noite escura elas apontam o
caminho. Mas as estrelas são inalcançáveis. Estão longe das nossas mãos. O fanático é aquele
que, vendo a estrela, proclama que ele a pegou com a mão e a tem no bolso. O fanático tem o
monopólio da verdade. Como observou Milan Kundera, a propósito dos regimes comunistas da
Europa Central, “os regimes criminosos não foram feitos por criminosos mas por entusiastas
convencidos de terem descoberto o único caminho para o paraíso...”
O remédio se encontra na recusa à pretensão da verdade. “Nós não conhecemos”, diz
Popper, filósofo da ciência; “nós só podemos dar palpites'”. Mesmo na ciência o ideal da verdade
não passa de uma ilusão. Assim, é preciso dizer com Lessing, no espírito de oração: “Se Deus
tivesse na sua mão direita toda a Verdade, e na sua mão esquerda somente o perpétuo impulso
na direção da verdade, muito embora acrescido do fato de que estou destinado a errar sempre, e
me dissesse: Escolhe! Eu escolheria a sua mão esquerda e diria: Dá, ó Pai! A verdade pura é para
Ti somente.”