Como As Análises Terminam
Como As Análises Terminam
Como As Análises Terminam
Resumo
A autora apresenta algumas reflexões sobre o final das análises, segundo Freud e Lacan, ilustra-
das por dois casos clínicos.
Palavras-chave
Castração, Real, Fantasia, Gozo, Sintoma.
Todos sabemos como uma análise co- possibilidade de se conduzir uma análise a
meça. Ela começa quando as queixas, tra- tal término. Freud fala, nos capítulos ini-
zidas pelo analisando no começo de uma ciais, nos obstáculos que podem impedir
análise, se transformam em sintoma ana- que se chegue a tal termo: obstáculos da
lítico, isto é, quando o analisando perce- pulsão e de como dominá-la e obstáculos
be que não é uma vítima imbele do desti- do eu. Por fim, no VIII capítulo do texto
no, mas participa ativamente de sua má referido, Freud fala do enfrentamento da
sorte; ou seja, ele se implica no próprio castração, que se dá num final de análise,
sintoma. aquilo que ele chama de rochedo da cas-
Mas o final de uma análise é outra tração. Enfrentar num final de análise a
coisa, pode se perguntar até se existe um rocha da castração é comum aos dois se-
único fim, ou vários fins possíveis. xos, mas a expressão desse conflito, atra-
O final mais fácil e frequente é a saí- vés da transferência, não se dá da mesma
da terapêutica, na qual o sujeito se vê li- maneira para homens e mulheres.
vre de algum ou alguns sintomas e se dá No caso da mulher, o problema cen-
por satisfeito. tral a enfrentar é a inveja do pênis. A in-
Eu me lembro de uma dentista que me veja do pênis na mulher resulta, num fi-
procurou porque queria um noivo. Suas nal de análise, em profunda depressão. Ela
irmãs estavam se casando, suas amigas se desespera porque quer “possuir um ór-
também, ela já tinha mais de trinta anos e gão genital masculino” (FREUD, v. XXIII,
nada, nem um namorado. Permaneceu p. 285), mas não acredita mais, nesse mo-
cerca de um ano, arrumou um namorado, mento, que isto é possível.
marcou casamento e foi embora. Não con- No caso do homem, o problema é a
segui convencê-la de que havia ainda mui- recusa da feminidade que aparece, num
ta coisa a tratar... final de análise, como a recusa em rece-
Claro que este caso passou longe de ber de um analista homem – substituto do
um final de análise. pai – a cura; recusa-se a ser devedor do
Podemos perguntar com Freud, em analista. O resultado é um desafio em re-
seu texto de 1937, Análise Terminável e lação ao analista.
Interminável, se existe algo que se possa Uma análise bem-sucedida ocorreria
chamar término de uma análise e se há então quando esses dois complexos tives-
Reverso • Belo Horizonte • ano 32 • n. 60 • p. 55 - 60 • Set. 2010 55
Maria Heloísa Noronha Barros
sem sido dominados e o paciente masculi- mínimo, seu lado real. Esse real do sinto-
no tivesse um sentimento de igualdade em ma deve ser assumido pelo sujeito como
relação ao seu analista, e a paciente femi- seu e ser criativamente usado de uma ou-
nina aceitasse sem ressentimento seu pa- tra maneira. De uma maneira nova.
pel feminino. Mas o que deve ocorrer numa análi-
Mas enormes resistências aparecem e se, que caminhos seguir, quais são as es-
impedem que a mudança ocorra; não é tratégias necessárias para conduzir um
sem motivo que Freud chama este mo- analisando até este verdadeiro desnuda-
mento de enfrentamento de rocha da cas- mento do ser?
tração. Lacan não nega o rochedo da cas- Jacques-Alain Miller, em O Osso de
tração, mas coloca o final de análise para uma Análise, reinterpreta Lacan, e nos fala
além dele, para uma mudança ou trans- de um duplo franqueamento:
formação essencial que ele chama de pas- O primeiro franqueamento vai do
se e que resultaria de uma última olhada imaginário ao simbólico – nesse momen-
de alguém sobre sua própria análise, olha- to da análise se ultrapassa o eu e seus con-
da que abriria caminho para uma outra flitos com seus duplos, em direção ao su-
maneira de viver a vida. jeito barrado. O segundo franqueamento
Para Lacan, três coisas deveriam ocor- vai do simbólico ao real – é a chamada
rer num final de análise: travessia da fantasia.
1. Algumas identificações devem cair, Como se pode ver, uma análise é uma
algumas vezes até a identificação fálica. travessia, um caminhar que começa no
As identificações são parte do imaginário, sintoma e termina no real, no núcleo do
mas são elas que formam o arcabouço do gozo ou na verdade do desejo, que o gozo
sujeito e sua queda costuma resultar numa tamponava.
perda de referências profundamente pe- Mas como se pode atingir o real atra-
nosa. vés da linguagem, da interpretação, se o
2. A travessia da fantasia. Colocado real é o para além da linguagem, o impos-
diante do rochedo da castração ou, dito sível de dizer, o impossível de interpretar?
de outra forma, diante do impossível da É que o real que tentamos atingir já
relação sexual, é a fantasia que sustenta o está presente desde o início. O sintoma
sujeito face à carência de seu desejo. A contém uma parte que é metafórica, que
travessia da fantasia é a perda desse lugar é interpretável, e uma parcela de gozo que
onde ele se sustentava. Considerando-se é sua parcela de real.
a fórmula da fantasia, segundo Lacan, su- Para operar sobre o sintoma usamos a
jeito barrado punção de a minúsculo, a mediação da fantasia. É preciso decifrar o
travessia da fantasia seria a separação en- sintoma como se fosse um enigma e para
tre o sujeito barrado e o objeto pequeno isto desatamos a fantasia que o sintoma
a, este deslocamento entre sujeito barra- ocultava até que ela domine a cena, num
do e o objeto pequeno a resultar, num fi- dado momento. No momento seguinte é
nal de análise, em profunda depressão ou preciso reduzir a fantasia até que atinja seu
entusiasmo maníaco. ponto mínimo: o fantasma original e de-
3. Identificação com o sintoma. O sin- pois mais ainda até uma frase ou rede de
toma no início de uma análise é aquilo com significantes que representem a vida fan-
que o sujeito não se identifica, do qual ele tasmática do sujeito. O passo seguinte é a
quer se ver livre. O que deve ocorrer com travessia da fantasia – quando se descrê
o sintoma no final? No final o sintoma na fantasia básica. Quanto ao sintoma, é
deve ter sido interpretado e depois esvazi- preciso esvaziá-lo até que reste apenas seu
ado até seu núcleo de gozo, seu núcleo núcleo de gozo – o real do sintoma.
56 Reverso • Belo Horizonte • ano 32 • n. 60 • p. 55 - 60 • Set. 2010
Como as análises terminam
E o vazio que resta do sintoma, o que der suficiente para destruir o rei que o
fazer com ele? obrigava aos trabalhos impossíveis.
Um rearranjo possível de se fazer des- Enéas volta com o dom de prever o
se núcleo do real é sublimá-lo em forma futuro. Um conhecimento.
de arte, ciência ou religião. Trata-se, no
caso da arte, de construir alguma coisa em Dois casos de análise
redor do vazio, bordejando-o, isto é, ele- Os dois casos que pretendo apresen-
var um objeto à dignidade da Coisa – das tar não chegaram ainda a um final e não
Ding – ou elevar um objeto de troca à ca- sei se chegarão, mas são os dois mais anti-
tegoria de objeto de gozo. Isto consiste ain- gos que acompanho, e talvez se possa atra-
da em imputar ao objeto a dimensão do vés deles vislumbrar um final possível.
belo. Ambas as analisantes começaram co-
Atingir o real é apenas um modo de migo há mais de dez anos e permanecem
dizer, o real não é um lugar no qual se per- em análise apesar de algumas interrupções.
maneça, o real é como o não-ser de Par- Trata-se de uma histérica e uma obsessiva,
mênides; não se pode frequentá-lo, mas o que possibilita pensar um final de análise
apenas vislumbrá-lo ou até atingi-lo – por a partir desses dois pontos de vista.
um momento –, mas não fazer aí sua mo- As duas tinham no início quase 30
rada. anos e eram casadas. Gisele (nome fictí-
É como na banda de Moebius, pode- cio) tinha quatro filhos e inúmeras quei-
se passar deslizando, num dado momen- xas do marido, do casamento e do traba-
to, para o real, como um ponto de báscu- lho. Nada a satisfazia, parecia antes uma
la, mas logo se tem que retornar ao sim- infelicidade geral. Apresentava ainda inú-
bólico e ao imaginário. É que somos seres meras dores físicas.
de linguagem e o sem sentido não é um Maria Hilda (também nome fictício)
lugar onde nos sintamos confortáveis. São tinha uma filha pequena e apresentava
apenas momentos de real, mas daí sempre inibições e não propriamente sintomas.
nos saímos melhores. Queria trabalhar e dirigir um carro, mas
Talvez o Mito – que é o lugar onde não conseguia.
dizemos aquilo que não temos como falar As duas tinham o pai como figura cen-
– possa nos ajudar. Há no mito do herói tral em suas vidas. Mas não da mesma
um momento decisivo, é aquele em que o maneira.
herói – só ele chega àquele lugar – realiza Gisele, a histérica, via o pai como se-
uma catábase, isto é, desce ao inferno e dutor, infiel à mãe, usava a filha como
de lá retorna. Não se pode permanecer no cúmplice e confidente.
inferno, nem se alimentar lá, sob pena de Maria Hilda, a obsessiva, via o pai
nunca mais voltar. Quando o herói retor- como forte, considerava-se a filha preferi-
na de uma descida aos infernos, volta da, via o pai como traído pela mãe, que
transformado e de lá traz um objeto mági- tivera uma filha com o cunhado.
co, um objeto que pode transformar sua As duas tiveram uma fase da análi-
vida. se em que dominavam os sonhos e as
Psiquê traz um unguento mágico que fantasias edípicas e chegaram a um ou-
lhe garante beleza e juventude eternas. tro momento de queda da identificação
Orfeu traz Eurídice, sua amada mor- em que perderam a imagem idealizada
ta, mas a perde novamente ao olhar para do pai.
trás. Gisele passou a ver seu pai como um
Hércules traz vivo o cão de três cabe- garotão irresponsável, conquistador e frá-
ças, vigia do inferno. Com ele adquire po- gil, precisando da mãe para sustentá-lo.
Reverso • Belo Horizonte • ano 32 • n. 60 • p. 55 - 60 • Set. 2010 57
Maria Heloísa Noronha Barros
SOBRE O AUTOR