STENGERS, Isabelle - A Invenção Das Ciências Modernas
STENGERS, Isabelle - A Invenção Das Ciências Modernas
STENGERS, Isabelle - A Invenção Das Ciências Modernas
Stengers
A INVENÇÃO DAS
CIÊNCIAS
MODERNAS
editora 34
coleção TRANS
Isabelle Stengers
A INVENÇÃO DAS
CIÊNCIAS MODERNAS
Tradução Max
Altman
editora 34
EDITORA 34
Editora 34 Ltda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000
São Paulo-SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777
[email protected]
1ª Edição - 2002
1.EXPLORANDO
2.As ciências e seus intérpretes............................. ..... 11
3.Ciência e não-ciência................................................. 30
4.A força da história.......................... .......................... 51
II.CONSTRUINDO
4.Ironia ou humor?..... ................................................ 73
5.A ciência sob o signo do acontecimento................... 89
6.Fazer história.........................-.................................. 108
III. PROPONDO
7.Um mundo disponível? ................................ ............
135
8.O sujeito e o objeto. .-.................................. ............ 158
9.Devires...................................................................... 182
EXPLORANDO
AS CIÊNCIAS E SEUS INTÉRPRETES
ESCÂNDALOS
AUTONOMIA
5Idem, p. 72.
O que dizer então da nova "antropologia", ou
"história social" das ciências, que escandaliza os
cientistas? Ela se inscreve explicitamente na esteira
aberta por Kuhn, mas não manifesta o mesmo respeito
que ele pela produtividade científica. Um novo discurso foi
construído, que distingue explicitamente o que interessa
aos cientistas e o que deve interessar àqueles que
estudam os cientistas. Estes últimos, se quiserem ser
reconhecidos como partícipes legítimos do novo campo,
devem se submeter a uma disciplina que tem o nome de
"princípio de simetria". Trata-se de tirar conseqüências do
fato de que nenhuma norma metodológica geral pode
justificar a diferença entre vencedores e vencidos criada
pelo encerramento de uma controvérsia. Kuhn, nesse
ponto, fiava-se numa certa racionalidade dos cientistas,
que avaliam a fecundidade, o poder dos paradigmas
competindo entre si. A diferença, para ele, nada tinha de
arbitrária. O princípio da simetria exige que não nos
fiemos na hipótese desta racionalidade, que conduz o
historiador a tomar emprestado o vocabulário do
vencedor para contar a história de uma controvérsia. É
necessário, ao contrário, tornar explícita a situação de
profunda indecisão, ou seja, também o conjunto dos
fatores eventualmente "não-científicos" que participaram
da criação da relação de força final que herdamos quando
imaginamos que a crise fez, efetivamente, a diferença
entre vencedores e vencidos.
O paradigma garantia a autonomia das comunidades
e se limitava a interpretar de outro modo aquilo que
caracteriza tradicionalmente o ideal de uma "verdadeira"
ciência, o progresso cumulativo, a possibilidade de
consenso, a irreversibilidade da distinção entre o passado
obsoleto e o futuro inédito. O princípio da simetria exige
do pesquisador que ele permaneça atento a tudo que,
também tradicionalmente, é considerado como desvio,
defeito com relação e esse ideal: as relações de força e os
jogos de poder francamente sociais, as diferenças de
recursos e de prestígio entre laboratórios concorrentes, as
possibilidades de aliança com interesses "impuros",
ideológicos, industriais, estatais etc. Enquanto a imagem
das ciências construída por Polanyi correspondia ao
mercado livre ideal, a imagem kuhniana da ciência,
menos centrada no cientista individual, remete à idéia
hegeliana da "astúcia da razão": constrói-se uma história,
por meios "irracionais", que corresponda ponto por ponto,
da melhor maneira possível, ao que se espera de um
trabalho de cunho racional. A nova imagem associada à
sociologia das ciências põe em evidência a nossa incapa-
cidade de julgar desse modo a história de que somos os
herdeiros: na medida em que somos herdeiros dos
vencedores é que recriamos, no que diz respeito ao
passado, um discurso em que os argumentos internos de
uma comunidade científica seriam suficientes para
apontar esses vencedores; visto que esses argumentos
nos convencem como herdeiros é que nós lhes atribuímos
retrospectivamente o poder de ter feito a diferença.
De modo correlato, o tema da "grande divisão", da
diferença entre os "quatro séculos europeus", quando se
erigiu a moderna ciência, e todas as outras civilizações,
perde o caráter de acontecimento que Kuhn e o conjunto
dos historiadores "internalistas" lhe haviam conferido.
Segundo Kuhn, acontece que é aí, e não em qualquer
outra parte, que se concretizou a condição de
possibilidade da ciência, a existência de sociedades que
oferecem às comunidades científicas, sem intervir em
suas discussões, os meios de existir e trabalhar. Porém,
outras inovações singulares marcaram esses quatro
séculos. Indústria, Estado, exército, comércio só
entrariam, na verdade, na história das comunidades
científicas sob duplo título de fontes de financiamento e
beneficiários dos subprodutos úteis? As questões da
história "externa" das ciências ressurgem aqui, mas elas
se tornam bem mais temíveis. Não se trata mais de uma
tese geral sobre a solidariedade entre as práticas
científicas e seu ambiente. O cientista não é mais o
produto de uma história social, técnica, econômica,
política como qualquer ser humano. Ele tira partido ativo
dos recursos desse ambiente para fazer prevalecer suas
teses e ele esconde suas estratégias sob a máscara da
objetividade. Em outros termos, o cientista, de produto de
sua época, tornou- se ator, e, se não se deve confiar,
como havia afirmado Einstein, no que ele diz que faz, mas
observar o que ele faz, isto não é absolutamente porque a
invenção científica excederia as palavras, mas porque as
palavras têm uma função estratégica que é necessário
saber decifrar. O cientista, aqui, em vez de se privar
heroicamente de todo recurso à autoridade política ou ao
público, aparece acompanhado de uma coorte de aliados,
todos aqueles cujo interesse foi capaz de criar uma
diferença nas controvérsias que o opõem aos seus rivais.
2,4 Explorando
capazes de transformar, para melhor ou para pior, a
decepção em problema.
Os cientistas, em contrapartida, não têm essa liberdade.
São eles que descrevemos, é sua atividade que tentamos
caracterizar e, desde que as ciências modernas se
impuseram como referência no cenário de nossas práticas e
de nossos saberes, eles não mais deixaram de ser assim
descritos e caracterizados. Certamente, na maior parte do
tempo, descrição e caracterização constituíram-se para eles
em recursos estratégicos, mas isso não pode ser suficiente
para justificar, como castigo bem merecido, uma descrição
que os escandaliza, parece-lhes negar a verdade de seu
envolvimento e de sua paixão. E as boas intenções daqueles
que esperam "desmitificar" também não são suficientes.
Poderiam assegurar que outros protagonistas não estarão
interessados em tomá-las ao pé da letra, quer dizer, utilizar
suas teses para pôr as ciências ainda um pouco mais a
serviço de seus interesses?
A RESTRIÇÃO LEIBNIZIANA
2,4 Explorando
"vergonhosa declaração" de Leibniz. E, no entanto, é tão fácil
"dizer a verdade" contra os sentimentos estabelecidos, e
depois vangloriar-se dos efeitos de ódio, de ressentimento,
de rigidez aterrorizada suscitados: prova de que o "mal foi
atingido", ainda que ao preço da perseguição, visto que
martírio e verdade casam-se. Leibniz, o diplomata que
procurava desesperadamente criar as condições para uma
paz entre as religiões, sabia bem disso naquela Europa
vergada sob a herança de tantos mártires. Se ele tinha por
objetivo "respeitar" os sentimentos estabelecidos, parece-me
que é como um matemático "respeita" as restrições que
conferem sentido e interesse ao seu problema. E essa
restrição — não ferir, não subverter os sentimentos
estabelecidos — não significa não ferir ninguém, pôr todo o
mundo de acordo. Como poderia Leibniz não ter sabido que o
uso que fazia das referências da tradição ocidental iria
chocar-se contra todos aqueles que se servem dos
"sentimentos estabelecidos" para manter e firmar as
mobilizações cheias de ódio? O problema para o qual aponta
a restrição leibniziana liga verdade e devir, confere ao
enunciado daquilo que se pensa como verdadeiro a respon-
sabilidade de não obstruir o devir: não ferir os sentimentos
estabelecidos a fim de poder tentar abri-los àquilo que sua
identidade estabelecida os obriga a recusar, combater,
desconhecer.
Que não se identifique rápido demais esse projeto com
um otimismo ingênuo. Trata-se antes de um otimismo
técnico, que traduz o saber técnico do diplomata a propósito
dos crimes que o heroísmo da verdade acarreta. Se a
natureza não dá saltos, nada é mais temível, como nota
Samuel Butler, que o ser humano que acredita ter dado um,
o convertido que se volta ferozmente ou devotamente contra
aqueles que permaneceram na ilusão da qual ele acaba de se
afastar11.
Não matamos nem morremos, hoje em dia, para
defender a objetividade científica ou o direito de levá-la ao
tribunal. Mas as palavras que empregamos trazem em si o
poder de ferir, de escandalizar, de suscitar o mal-entendido
raivoso. Eu ousarei, neste livro, associar a razão científica à
razão política. Sei que corro o risco de ofender todos aqueles
2,4 Explorando
para quem nada é mais importante existencialmente, in-
telectualmente, politicamente do que manter uma diferença.
Porém, em nome desse sentimento estabelecido,
eminentemente respeitável, seria preciso conservar
categorias que, diariamente, dão prova de sua
vulnerabilidade? "Em nome da ciência", "em nome da
objetividade científica", vemos serem criadas definições e
redefinições de problemas que implicam a história humana.
Não seria necessário inventar as palavras que permitam
tornar discutível esta referência, na verdade política, à
ciência?
O desafio deste livro é portanto conseguir articular
aquilo que nós entendemos por ciência e o que entendemos
por política, sem ferir, não todos os "sentimentos", mas
aquilo que eu chamarei, a exemplo de Leibniz, os
sentimentos estabelecidos, aqueles que marcam, aqueles
que não se pode ameaçar sem acarretar a rigidez do pânico,
a indignação, o mal-entendido. Tentarei, para tanto, fazer
funcionar o que, de acordo com Bruno Latour, a quem este
livro é dedicado, eu chamarei de um "princípio de irredução".
Este princípio constitui-se ao mesmo tempo numa
advertência e numa exigência, cujo alvo é o conjunto das
teses que se prestam a uma ligeira modificação, e mesmo
implicitamente a reclamam: a passagem de "isto é aquilo" a
"isto só é aquilo", ou "é somente aquilo". Falar de ciência
com um enfoque político, por exemplo, se transformaria em
"a ciência não é mais que política", um projeto cuja aposta é
o poder, protegido por uma ideologia mentirosa, que
consegue impor suas crenças particulares como verdades
universais. Protestar, ao contrário, que a ciência transcende
as divisões políticas seria implicitamente identificar a política
com as correntes arbitrárias, tumultuosas, irracionais das
controvérsias humanas que vêm lamber os pés da fortaleza
científica, e, ocasionalmente, arrastam em direção a
utilizações perversas, nefastas, irresponsáveis, elementos de
saber que surgiram inocentes. Cada tese que anuncia uma
redutibilidade ou nega uma possibilidade de redução em
nome de uma transcendência implica que aquele que fala
sabe do que fala, ou seja, está ele mesmo na posição de juiz.
Sabe, no presente caso, o que é "a ciência", "a política", e
2,4 Explorando
confere ou recusa a um dos termos o poder de explicar o
outro. O princípio da irredução prescreve um recuo frente a
essa pretensão de saber e de julgar. E se o que nós hoje
chamamos "política" estivesse marcado tanto pela tendência
de excluir de si as ciências quanto o que nós chamamos
"ciências" pela tendência de se apresentarem como
"apolíticas" ? O que é feito destas "palavras"', objetividade,
realidade, racionalidade, verdade, progresso, se elas não são
tomadas nem como simulacro, dissimulando um projeto
humano "como outro qualquer", nem como garantias de uma
diferença essencial?
A irredução significa portanto desconfiança em relação
ao conjunto das "palavras" que levam quase
automaticamente à tentação de explicar reduzindo, ou de
estabelecer uma diferença entre dois termos que os reduz a
uma relação de oposição irredutível. Em outros termos, e
sigo aqui de novo a exigência feita por Latour em Jamais
fomos modernos8, trata-se de aprender a utilizar as palavras
que não dão, como por vocação, o poder de revelar (a
verdade por detrás das aparências) ou de denunciar (as
aparências que ocultavam a verdade). O que não significa, é
preciso deixar claro, chegar a um mundo onde todos fossem
belos e gentis. Espero ser detestada, mas gostaria de tentar
não ser execrada por aqueles que não desejo ofender. Ou
seja, o conjunto daqueles que sofrem o poder mobilizador
das palavras que os recrutam em campos antagônicos, sem
apesar disso tomar parte ativa ligada à manutenção desse
antagonismo.
O que está em jogo em uma abordagem das ciências
que respeite a "restrição leibniziana" pode igualmente ser
enunciado sob a forma do riso que, a propósito das ciências,
conviria "reaprender". Houve um tempo, nem tão distante,
em que as ciências eram discutidas nos salões. Naquela
época, Denis Diderot imaginava o matemático d'Alem- bert
em meio às vivas emoções de um sonho em que ele seria
matéria, e o doutor Bordeu conversando com Mlle. de
Lespinasse sobre as "tentativas variadas e sucessivas" de
criar, eventualmente, uma raça de "cabra-montês"
inteligente, incansável e veloz... que daria excelentes
2,4 Explorando
domésticos9. Que filósofo ousaria em nossos dias a ficção de
um matemático conhecido habitado por um sonho delirante,
e quem se atreveria a rir daquilo que juristas, moralistas,
teólogos e médicos discutem e regulamentam no que
chamamos "comissões de ética"? No entanto, não tenho
vontade de ser mobilizada em uma coorte denunciadora
antes de ter aprendido a rir, antes de ter aprendido como não
me deixar redefinir como membro de um grupo com vocação
majoritária que busca, ele também, impor seus "valores",
seus "imperativos", sua "visão de mundo". Eu não quero
sentar-me numa "comissão de ética", ao lado de um teólogo,
de um psicanalista, de um filósofo especialista em
tecnociência e de um médico mandarim douto e moralizador.
Quero tornar-me capaz — e estimular outras pessoas a torna-
rem-se capazes — de intervir nessa história sem ressuscitar
um passado em que outras maiorias morais dominavam.
O rei não está nu: um pouco por toda a parte, os
procedimentos, os experts, as burocracias autorizadas pela
ciência funcionam e não desaparecerão por milagre se nós
reencontrarmos a moda que se cultivava nos salões do século
XVIII, o prazer de nos interessarmos pelas ciências e técnicas,
o que quer dizer também, pois os dois são indissociáveis, a
liberdade de rir delas. No entanto, reaprender a rir nunca é
insignificante. Quanto tempo e energia aqueles e aquelas que
têm razões para lutar despendem hoje em dia, lançando-se
na direção dos panos vermelhos agitados sob o seu nariz e
que levam o nome de "racionalidade científica" ou
"objetividade"? O riso de quem devia estar impressionado
complica sempre a vida do poder. E é sempre o poder que se
dissimula atrás da objetividade ou da racionalidade quando
elas se tornam argumento de autoridade.
2,4 Explorando
das diferenças. Eu gostaria de tornar possível o riso de humor
que compreende, aprecia sem esperar a salvação e pode
recusar sem se deixar aterrorizar. Queria tornar possível um
riso que não se abra às expensas dos cientistas, mas que
possa, idealmente, ser compartilhado com eles.
Eis, sucintamente esboçado, a paisagem problemática
em que este livro se insere. Não pretendo nem demonstrar,
com a ajuda de referências, nem descrever de maneira
objetiva, completa, exaustiva. Procederei amiúde por estudos
de caso, mas os casos têm aqui o estatuto de "caso
ilustrativo", como se diz em matemática: eles não estão aí
para provar e sim para explorar a maneira pela qual
descrevemos as situações. Porque minha intenção é explorar
as possibilidades de utilizar o registro político para descrever
as ciências, sem me excluir deste registro, quer dizer, tendo
consciência de que o "sentimento da verdade" em caso
algum é desculpa para não se levar em conta as conse-
qüências do que nós consideramos verdadeiro.
2,4 Explorando
CIÊNCIA E NÃO-CIÊNCIA
2.
EM NOME DA CIÊNCIA
28 Explorando
que toma as práticas teórico-experimentais por modelo,
Sandra Harding invoca um outro continuum, aquele da
lucidez ética, política e histó- rica exigida dos cientistas pela
ciência que exercitam: "Uma ciência maximamente objetiva,
seja ela natural ou social, será aquela que inclua um exame
consciente e crítico da relação entre a experiência social de
seus criadores e os tipos de estruturas cognitivas
privilegiadas pela sua conduta".2 Nessa perspectiva, as
ciências experimentais não são absolutamente
representativas da totalidade do campo científico. Com
efeito, as "estruturas cognitivas" que nelas são privilegiadas
correspondem a uma "experiência social" bastante
específica, aquela do laboratório, e elas são a tal ponto
solidárias, como veremos adiante, que a inclusão de um
exame "consciente e crítico" de sua relação é aí mais difícil
do que alhures. Por isso Harding pode considerar-se des-
cendente de Copérnico, Galileu e Newton,, recusando-os ao
mesmo tempo como modelos, e afirmar que seus verdadeiros
herdeiros são aqueles e aquelas, feministas e outros
movimentos minoritários, que se recusam a estender "para
fora do laboratório", em nome da ciência, as normas de
objetividade às quais o laboratório confere sentido.
"Hume, Locke, Descartes, Kant" evidentemente nada
explicam por si mesmos. A imagem que eles criam, em
termos filosóficos, de uma conduta científica objetiva
dirigindo-se a um mundo submetido a suas exigências, não
teria qualquer pertinência se ela não tivesse encontrado um
grande número de protagonistas, pouco interessados na
filosofia mas muito interessados nas vantagens da etiqueta
de cientificidade fornecida pela semelhança com essa
imagem. Quer esta se refira a Deus ou à teoria do
conhecimento, à epistemologia ou à filosofia transcendental,
à razão operacional ou às condições constitutivas do pro-
gresso das ciências, é seu desdobramento que conta: o
cientista transforma-se em representante acreditado de uma
conduta em relação à qual toda forma de resistência poderá
ser considerada obscurantista ou irracional.
O interesse dos cientistas no entanto nada explica por si
mesmo, isolado de outros interesses também orientados para
a colocação em disponibilidade do mundo, ou seja, para a
Ciência e não- 31
ciência
desqualificação de tudo o que se aparente com um
2.
30 Explorando
submeter qualquer um ou qualquer coisa a medidas
quantitativas, o próprio sentido da operação já pressupõe
uma definição do que é a ciência: o que ela permite, o que
proíbe, de que forma autoriza a mutilar. Enfim, quando, "em
nome da ciência", um experimentador reproduz as condições
sob as quais os seres humanos obedeceram instruções que
criam os carrascos, demonstra a existência de uma
experiência social na qual, em nome da ciência, podem ser
confundidos os diferentes significados dos termos "obedecer"
ou "ser submetido". "Em nome da ciência", os pacientes de
Milgram obedeceram a instruções que faziam deles
torturadores. "Em nome da ciência", Milgram submeteu-os a
um dispositivo que o instala, a ele próprio, no papel de
Himmler ou Eichmann.
Último caso ilustrativo: aquele em que as estruturas
cognitivas privilegiadas pelos cientistas, longe de serem
pensadas de maneira consciente e crítica, pretendem se
impor a todo mundo, ou seja, em que o público, definido
como "não-científico", é solicitado a fazer causa comum com
os interesses da racionalidade científica. É o caso, por
exemplo, do conflito que contrapõe a medicina oficial, dita
científica, e as medicinas conhecidas como "alternativas" ou
paralelas.
Que a medicina seja um dos setores em que os limites
são mais rigorosos, em que o público é exortado a aderir aos
valores da ciência, não é um acaso. Contrariamente a outras
práticas ditas científicas, presume-se que a medicina persiga
o "mesmo" fim, curar, desde a noite dos tempos, e a questão
de saber quem o tem direito de exercer a medicina é bem
mais antiga que a referência à ciência. O conflito,
indissociável da "experiência social" do médico, entre
médicos diplomados e aqueles que são denunciados como
charlatães, não foi criado "em nome da ciência", mas a
referência à ciência deu-lhe novas feições. O teor dessa
referência, num campo que sempre associou diretamente
praticantes e público, visto que a denúncia de charlatanismo
teve sempre por alvo o "público enganado", é tão mais inte-
ressante que ninguém aqui deveria ser tentado a "relativizar"
a diferença entre os médicos do século XVII, por exemplo, e
aqueles a quem procuramos hoje em dia. A "medicina
Ciência e não- 31
ciência
científica" cavou, de fato, uma diferença cujo sentido
2.
podemos avaliar.
Em que momento a referência à ciência modifica o
conflito entre "médicos" e "charlatães"? Arriscarei aqui a
hipótese de que não é tal ou qual inovação médica que
conferiu à medicina os meios de reivindicar o título de
ciência, mas a maneira pela qual diagnosticou o poder do
charlatão e explicitou as razões para desqualificar esse po-
der. A "medicina científica" começaria, segundo essa
hipótese, no momento em que os médicos "descobrem" que
nem todas as curas são equivalentes. O restabelecimento
como tal nada prova; um simples pó de pirlimpimpim ou uns
tantos fluidos magnéticos11 podem ter um efei- to, embora
não possam ser considerados causa. O charlatão é definido
desde então como aquele que considera esse efeito como
prova.
Essa definição da diferença entre medicina "racional" e
charlatanismo é importante. Ela deu origem ao conjunto das
práticas de teste de medicamentos baseadas numa
comparação com os "efeitos placebo". Entretanto, tem a
particularidade de transformar uma singularidade do corpo
vivo, sua capacidade de curar pelas "más razões", em
obstáculo. O que implica que a prática médica científica,
longe de apresentar, para tentar entendê-la, a singularidade
daquilo de que a medicina tem de cuidar, procura inventar
como um corpo doente poderia, apesar de tudo, diferenciar o
"verdadeiro remédio" do "remédio falso". Ela considera
portanto efeito parasita, importuno, o que distingue um corpo
vivo de um sistema experimental, a singularidade de "tornar
verdadeira", ou seja, eficaz, uma ficção. "Em nome da ciên-
cia", identificada com o modelo experimental, as "estruturas
32 Explorando
cognitivas" privilegiadas pela conduta médica, quer se trate
de pesquisa ou de formação de terapeutas, são portanto
determinadas pela "experiência social" de uma prática que
se define contra os charlatães, isto é, também contra o
poder, que os charlatães atestam, que a ficção parece ter
sobre os corpos.
Quando a medicina científica solicita ao público que
compartilhe de seus valores, pede que resista à tentação de
curar "pelas más razões", e em especial que saiba fazer a
diferença entre restabelecimentos não reproduzíveis, que
dependem das pessoas e das circunstâncias, e
restabelecimentos produzidos pelos meios já comprovados,
que, pelo menos estatisticamente, são ativos e eficazes para
qualquer um. Mas por que um doente, a quem só interessa
sua própria cura, aceitaria esta distinção? Ele não é
"qualquer um", membro anônimo de uma amostragem
estatística. Que lhe importa se o restabelecimento ou a
melhora de que se irá beneficiar eventualmente não se
constituir nem numa prova nem numa ilustração da eficácia
do tratamento a que se submeteu?
O corpo vivo, sensível aos magnetizadores, charlatães e
outros efeitos placebo, cria obstáculo à conduta
experimental, que exige a criação de corpos com o poder de
dar testemunho da diferença entre as "verdadeiras causas" e
as aparências destituídas de interesse. A medicina, que
extrai sua legitimidade do modelo teórico-experimen- tal,
tende a remeter esse obstáculo àquilo que resiste "ainda",
mas que um dia se submeterá. O funcionamento efetivo da
medicina, definido por uma rede de restrições
administrativas, gestionárias, industriais, profissionais,
privilegia sistematicamente o investimento pesado, técnico e
farmacêutico, pretenso vetor do futuro quando o obstáculo
estará dominado. O médico, que não quer se assemelhar a
um charlatão, vive com mal-estar a dimensão taumatúrgica
de sua atividade. O paciente, acusado de irracionalidade,
intimado a se curar pelas "boas" razões, hesita. Onde, nesse
emaranhado de problemas, de interesses, de
constrangimentos, de temores, de imagens, está a
"objetividade"? O argumento "em nome da ciência" se
encontra por toda parte, mas não pára de mudar de sentido.
Ciência e não- 31
ciência
RUPTURA OU DEMARCAÇÃO?
2.
34 Explorando
pensa", "traduz necessidades em conhecimento"13. A ciência
constitui-se portanto sempre "contra" o obstáculo constituído
pela opinião, um obstáculo que Bachelard definiu como um
dado quase antropológico. A luta da ciência contra a opinião
torna-se, nos momentos mais líricos, o confronto entre os
"interesses da vida" (aos quais a opinião está sujeita) e os
"interesses do espírito" (vetores da ciência). Neste sentido,
Bachelard está mais próximo do "grande positivismo"
associado a Augusto Comte do que do positivismo
epistemológico associado ao círculo de Viena. Para os "vie-
nenses", tais como Moritz Schlick, Philip Frank ou Rudolf
Carnap, a distinção entre "ciência" e "não-ciência" não tem o
ar fascinante de uma revolta criadora do espírito contra a
escravização à vida. Ela se parece antes com uma
depuração, com a eliminação de toda proposição desprovida
de conteúdo empírico, ou seja, primeiro e antes de tudo as
proposições "metafísicas", que não podem ser deduzidas dos
fatos por um procedimento lógico legítimo.
Minha "definição" de positivismo recobre portanto
pensamentos não apenas heterogêneos mas explicitamente
opostos quanto aos seus objetivos. Enquanto os teóricos do
círculo de Viena buscavam uma definição da ciência que seja
também uma promessa de unificação das ciências, todas
submetidas a critérios válidos independentemente de seu
campo de aplicação, Gaston Bachelard celebra as mudanças
conceituais associadas a obra de "gênios", ao mesmo tempo
inventores e ilustrações da diferença entre ciência e opinião.
Entretanto, o ponto comum que minha definição explicita, a
desqualificação do que não é reconhecido como científico,
tem por interesse ressaltar não a verdade dos autores, mas
os recursos estratégicos que eles oferecem àqueles para
quem o título de ciência é um alvo. Desse ponto de vista, a
"ruptura", seja ela da ordem da depuração ou da mutação,
cria uma assime- tria radical que retira daquele contra o qual
a "ciência" se constituiu toda possibilidade de contestar-lhe a
legitimidade ou a pertinência14.
Ciência e não- 31
ciência
Esta assimetria, característica do que eu chamo de
2.
36 Explorando
de opinião, seja mais segura, no texto de Bachelard, que a
definição de ciência, tem conseqüências bastante sérias: a
desqualificação da opinião impede que se oponha à definição
que uma ciência dá de seu "objeto" tudo aqui- lo a que o
objeto assim definido não confere sentido ou nega. Pois seria
então a "opinião", interessada naquilo que o objeto nega, que
seria chamada a testemunhar contra a ciência. No limite,
essa negativa pode, em si mesma, "ser prova da ciência":
esta demonstra sua ruptura ousando menosprezar aquilo que
"antes" interessava a todo mundo. Quanto mais o trabalho do
luto com relação ao passado exigido pareça penoso e
mutilador, mais o tema da ruptura se mostra eficaz.
Ciência e não- 31
ciência
nele habita desde A lógica da descoberta científica (1934): é
2.
A QUESTÃO DE POPPER
38 Explorando
na memória com excessiva freqüência a posição
"falsificacionista" de Popper: ao passo que nenhum acúmulo
de fatos, seja qual for, basta para confirmar uma proposição
universal, um único fato basta para refutar (falsear) tal
proposição. É a ambição de fundar uma metodologia das
ciências sobre esta posição que lhe será atribuída pelos seus
adversários. Seu discípulo Imre Lakatos19 propôs de resto
distinguir "três"
Poppers: Popper0, o falsificacionista "dogmático" ou
"naturalista", que teria tido esta ambição porém jamais
escreveu uma linha sequer, Popper1, o falsificacionista
"ingênuo" de 1920, e Popper2, o falsificacionista "sofisticado"
que o verdadeiro Popper de fato jamais foi, mas de quem
Lakatos precisa para chegar à sua própria solução.
O "triplo Popper", oriundo da reconstrução racional de
Lakatos, assinala não a complexidade do pensamento de
Popper, que sempre foi perfeitamente explícito, mas uma
tensão própria a essa posição quanto ao alcance e ao poder
do "critério de demarcação" buscado. Deveria, certamente,
tornar visível uma diferença, mas deveria ele, por causa
disso, garantir a possibilidade de que toda ciência respeite
essa diferença? Se fosse este o caso, a definição da diferença
entre ciência e não-ciência poderia engendrar uma definição
"metodológica" da conduta produtora da ciência. Esta é a
posição atribuída ao Poppero, e ela conduz a uma variante do
positivismo, uma vez que toda conduta que transgride o
critério se encontraria por isso mesmo desqualificada.
Contudo, se não for esse o caso, de que depende a
possibilidade de um campo de pesquisa tornar-se "científico"?
A posição à qual o filósofo poderá almejar em relação às
ciências depende dessa questão: deve ele abandonar
qualquer pretensão de julgar, de produzir normas que lhe
permitam dizer ao cientista "você deveria ter...", para se
19 Ver "Falsification and the Methodology of Research
Programmes", in Imre Lakatos e Alan Musgrave {orgs.), Criticism
and the growth of knowledge, Cambridge, Cambridge University
Press, 1970. Esse livro, não traduzido em francês, pode ser
considerado como o ponto de "acabamento", no duplo sentido do
termo, da tradição demarcacionista. É fruto de um colóquio
realizado em 1965 para confrontar as posições de Popper e de
seus principais discípulos com aquelas de Thomas Kuhn,.
Ciência e não- 31
ciência
assemelhar ao "crítico de arte", que sabe que não tem como
2.
40 Explorando
modificar a nosso talante, Einstein não poderia jamais ter
triunfado contra a interpretação rival de Lorentz, sustentada
por Poincaré. A demarcação resulta desde então na recusa da
liberdade que a lógica deixa ao cientista: só é cientista de
verdade aquele que sabe renunciar à livre redefinição dos
"enunciados de base" (que tornam possível o enunciado da
observação) e aceita expor deliberadamente sua teoria à
prova dos fatos assim estabilizados.
A assimetria entre confirmação e falsificação não dá
origem portanto a nenhuma regra lógica. Para Popper, ela
tem antes o estatuto de oportunidade para uma ética: é
porque ele explora esta assimetria, o que a lógica não o
obriga a fazer mas que ele pode decidir-se a fazer, que o
cientista é cientista. Esta decisão encontra seu sentido na
"finalidade" da ciência: a produção de novidade, novas
experiências, novos argumentos, novas teorias. Aquele que,
como o marxista ou o psicanalista, segundo Popper,
aproveita-se da relação de força que lhe permitirá interpretar
sempre um fato de maneira a deixar a sua teoria intacta,
permanecerá logicamente irrepreensível, mas nunca criará
uma idéia nova. Aquele que, como o Einstein popperiano,
escolhe expor-se à refutação tomará a única via aberta na
busca da verdade, que Popper conjuga portanto com uma
estética de risco e de audácia. Com relação à "finalidade" da
ciência, nossas convicções subjetivas, nossa procura de
certezas são definidas como ídolos venerados, como
obstáculos.
Não há, portanto, em 1934, teoria popperiana da ciência,
mas uma caracterização do cientista que se poderia bem
dizer ética, estéti- ca e etológica. A questão não é "como ser
cientista?", mas "como se reconhece um cientista?". Que
paixões o distinguem? Que compromisso, que ninguém lhe
impôs racionalmente, confere valor à sua busca? Que
expectativas caracterizam a maneira como ele aborda os
fatos? Em suma, qual é a sua "prática", no sentido em que
esse termo une o que Kant pretendia distinguir com a Crítica
da razão pura e aquela da razão prática20? O que faz existir o
cientista popperiano não é uma verdade que seria possível
Ciência e não- 31
ciência
possuir, por meio do respeito a certas regras, e sim a verdade
2.
42 Explorando
definir a atividade do cientista? Permite compreender a
história das ciências que estamos inclinados a reconhecer
como "verdadeiramente científicas"? É a questão que o
principal discípulo de Popper, Imre Lakatos, irá examinar.
O próprio Popper reconheceu bem rapidamente que, se
não houvesse o fato que constitui o "progresso", o fato de
que os cientistas conseguem produzir teorias que resistem
durante um certo tempo à falsificação e substituir teorias
falseadas por teorias "melhores", que prevêem com sucesso
efeitos novos, a prática da falsificação faria da história das
ciências um cemitério de teorias muito pouco divertido.
Estas, como escreveu Popper, teriam tido êxito em provar
seu caráter científico fazendo-se refutar, todavia a tediosa
repetição desta prova não constitui uma perspectiva muito
grandiosa. O heroísmo do cientista que aceita "expor" sua
teoria implica certamente a aceitação de um risco, mas
nunca a resignação à refutação permanente. Para ser um
"verdadeiro" cientista, segundo Popper, é necessário
portanto pertencer a um campo que dá ao cientista razões
para ter esperanças que sua teoria resistirá, um campo em
que a possibilidade de "progresso" seja considerada
estabelecida. Contudo, a análise torna-se então tautológica.
Se a condição que permite aos cientistas conduzirem-se
como tais é apenas o progresso, não se pode explicar pela
conduta dos cientistas o caráter "progressivo" das ciências, a
possibilidade que elas encarnam de aprender e produzir o
novo. Ora, é exatamente isso que se tratava de
compreender.
Como veremos mais adiante, o próprio Popper chegou a
adotar, a propósito das ciências, uma perspectiva que afirma
do modo mais radical essa tautologia e lhe confere um
sentido "cosmológico". A singularidade das ciências em
relação à busca psicológica de certezas e de confirmações
não deve ser explicada por uma psicologia própria do sábio.
Ela deve ser constatada, como surgimento da vida a partir
dos processos materiais, e é ela que explica a diferença
subjetiva entre Einstein e o marxista ou o psicanalista. Em
contrapartida, a escola demarcacionista procurou construir
um "critério melhor", que possa pretender descrever de
maneira normativa as restrições às quais, mesmo na física, a
Ciência e não- 31
ciência
racionalidade científica está subordinada "fora da tautologia".
2.
O CRITÉRIO IMPOSSÍVEL DE ACHAR
44 Explorando
protesta Lakatos, a história das ciências só oferece tais cenas
por reconstrução artificial a posteriori. A "experiência crucial",
na qual o cientista expõe deliberadamente sua teoria à prova
da experiência, é provavelmente a cena mais retórica e
artificial da história: o mais freqüente é que seja apresentada
como crucial após a experiência, quando bem- sucedida; e
ela constitui, na verdade, uma execução pública e altamente
ritualizada de uma hipótese rival.
Em outros termos, não é suficiente dizer que os fatos
estão "impregnados de teoria" e podem portanto ser
reinterpretados à vontade. Essa maneira de apresentar as
coisas tende a transformar em dificuldade, em obstáculo à
"cena primordial", aquela da confrontação entre fato e teoria,
aquilo que, segundo Lakatos, é o objeto mesmo da história
das ciências. Historicamente, um fato observável não é con-
frontado com uma proposição, que ele verifica ou refuta, ele
encontra seu sentido num programa de pesquisa.
A exemplo do "falsificacionismo sofisticado", que implica
que "conjeturas audaciosas" sejam comprovadas, a noção de
programa de pesquisa pressupõe, é preciso ressaltá-lo, o
sucesso das ciências que ela caracteriza. Com efeito, esta
noção traduz uma diferenciação que não teria sentido se uma
teoria se limitasse a "sobreviver" sem criar a convicção de
que ela constitui indubitavelmente uma via privilegiada de
acesso aos fenômenos que lhe dizem respeito: a diferença
entre o "núcleo duro" ao qual este privilégio será remetido e
o "cinto protetor" no qual os significados relativos dos "fatos"
e dos enunciados que remetem ao núcleo duro estão em
perpétua negociação.
Na perspectiva dinâmica instituída pelo programa de
pesquisa, não há portanto confrontação entre um fato e esse
programa de pesquisa como tal, pois o fato não é nunca
capaz, por si mesmo, de pôr em causa o núcleo do programa.
A confrontação só ocorre com as teorias que pertencem ao
"cinto", teorias que podem ser modificadas de múltiplas
formas, ainda assim confirmando a veracidade do núcleo. No
seio de um programa, o modo de negociação enquadra-se
portanto muito naturalmente nos "estratagemas
convencionalistas" que Popper havia denunciado, imunizando
o núcleo contra toda refutação pelos fatos. O cientista não
Ciência e não- 31
ciência
tem de "decidir", segundo critérios dogmáticos, ingênuos ou
2.
46 Explorando
do homem de ciência só podia ter lugar a título retroativo23.
Somos nós que sabemos agora que tal programa se
degenerava. Porém, nesse caso, é a própria história que
concede ao filósofo o poder de julgar, de determinar "em que
momento" era racional abandonar tal programa por tal outro.
E este poder, conferido pela história, é de fato redundante: o
filósofo confirma aos "vencidos" que estes estão
indubitavelmente vencidos, mas não há nenhum recurso
apropriado para avaliar e julgar as razões pelas quais esses
vencidos se mantiveram presos ao seu programa, ele pode
apenas dizer que a história não guardou essas razões.
As concepções de Lakatos deparam-se com outras
dificuldades sobre as quais eu não me deterei. Elas implicam
notadamente que a situação normal em ciência é a
competição entre programas de pes- quisa rivais — o que
permite ao cientista exercer sua capacidade crítica. Aqui, o
estilo histórico de Lakatos e seus discípulos se choca com o
estilo de Kuhn e seus discípulos, que ressaltam a
solidariedade entre a "crise" que um programa atravessa e a
invenção de um programa alternativo. Contudo, o ponto mais
importante, aquele que marca aos meus olhos o fim da
tradição demarcacionista, ainda é a impossibilidade de
formular explicitamente critérios que, informados pelo pas-
sado, valessem para o presente. Em outras palavras, não é a
explicitação da racionalidade operando na ciência, mas a
história que dá ao filósofo das ciências o poder de julgar e
isto na exata medida em que se pode ler essa história, como
na física ou na química, no modo do progresso. A tradição
demarcacionista, longe de explicar o progresso que é a
recompensa da "verdadeira" ciência, acaba por comentar a
maneira pela qual as "verdadeiras ciências" progrediram.
Ciência e não- 31
ciência
qual aquele que se pretende cientista deve aceitar submeter-
2.
48 Explorando
fazer aceitar o que ele propõe como conhecimento "objetivo",
um cientista não pode se ater àquilo que os filósofos
consideram "objetivo". A construção da objetividade não tem
nada de objetivo17: ela envolve uma maneira singular mas
não exemplar de se relacionar com as coisas e com outros,
como a atividade mafiosa. O que não quer dizer que ela se
origine do mesmo tipo de envolvimento que a atividade
mafiosa.
A tese de Feyerabend não é portanto dirigida contra a
prática científica24, mas contra a identificação da objetividade
com o produto de uma conduta objetiva. Malgrado seu
aparente caráter de truísmo, esta identificação é, com efeito,
um temível instrumento de poder. Ela faz da objetividade o
destino comum de nossos conhecimentos, o ideal que estes
devem ter por alvo. Toda prática de conhecimento será ins-
tada a submeter-se à diferenciação daquilo que ela tende a
confundir
Ciência e não- 31
ciência
conjunto do que não é "o sujeito", seus direitos, seus valores,
2.
50 Explorando
competição imparcial e controlada com a ciência, ou então
foi seu desaparecimento o resultado de pressões militares
(políticas, econômicas)?"22 —, é difícil responder de outro
modo, porém, a alternativa não é das mais pertinentes. Seria
o fato de a "ciência ocidental ter contaminado agora o mundo
inteiro como uma doença contagiosa"23, totalmente
determinado pelas relações de força militares, econômicas,
políticas? Nada se deve às próprias ciências? Não seria o
relativista Feyerabend ainda demasiado racionalista quando
apresenta "uma competição imparcial e controlada" como a
única arena onde as ciências poderiam fazer valer o papel
apropriado que desempenharam no triunfo sobre as outras
tradições? Em outras palavras, a tese segundo a qual a
ciência constitui uma tradição histórica entre outras é
vulnerável com relação à sua expressão reducionista: a
ciência é somente uma tradição histórica entre outras, as
únicas "verdadeiras" diferenças dizem respeito a fatores
externos, políticos, militares, econômicos. Estratégia de
revelação e de denúncia.
O primeiro livro assinado pelo Feyerabend "relativista",
Contra o método, era dedicado a Imre Lakatos, "amigo e
irmão no anarquismo": é do malogro de Lakatos em construir
uma demarcação, portanto, também da honestidade lúcida
pela qual Lakatos reconheceu o seu malogro, que Feyerabend
se pretendia herdeiro. A vulnerabilidade de sua tese em
relação a sua variante reducionista é também herdeira da
epistemologia demarcacionista: se a ciência não pode aspirar
a nenhum privilégio epistemológico, ela perde toda
autoridade para afirmar sua diferença do ponto de vista da
epistemologia. Em lugar de dizer "adeus à razão",
Feyerabend teria podido dizer "adeus à epistemologia". É o
que aqui farei, restando dessa investigação a impossibilidade
de compreender a atividade do cientista individual indepen-
dentemente da tradição histórica em que se enraíza seu
compromisso e, talvez, sua singularidade.
12Idem, p. 346.
13Idem, p. 339.
Ciência e não- 31
ciência
A FORÇA DA HISTÓRIA
3.
A força da 52
história
epistemólogos. Esses argumentos que desembocam em
soluções do tipo "é só uma questão de", a mim parecem
mascarar um problema bem mais interessante,
imediatamente vinculado à convicção que é a de tantos
participantes da aventura das ciências modernas: as ciências
não são uma prática social como as outras. Em outros
termos, o problema da história das ciências me irá permitir
uma nova abordagem da singularidade das ciências: como
meio de pôr à prova a prática histórica.
De maneira geral, um historiador sério irá protestar se
suspeitarmos que ele utiliza o recuo no tempo como um
instrumento de poder, que lhe permite julgar uma situação
passada, fazer a triagem entre o que aqueles que ele traz à
cena sabiam, acreditavam, queriam, pensavam. Porém,
habitualmente, esta disciplina que ele se impõe tornou- se
mais fácil pelo recuo no tempo, o que já permitiu
"estabelecer a igualdade" entre aqueles que, no passado,
puderam acreditar-se vencedores ou imaginar-se vencidos.
Todos foram objeto, no futuro a que deram lugar, das
interpretações e das reduções múltiplas que permitem ao
historiador construir sua própria posição: ele é aquele que
recusa essa facilidade e tenta recompor aquilo que foi
decomposto.
Ora, a história das ciências põe em cena atores cuja
singularidade parece ser precisamente a de cuidar que o
recuo do tempo não possa criar a igualdade. Uma maneira de
enunciar o imperativo da objetividade, ao qual, de um modo
ou outro, deve corresponder uma proposição reconhecida
como científica, é: "Que ninguém, no presente, e se possível
no futuro, seja capaz de reduzir o que eu proponho, de dis-
tinguir em minhas proposições o que dependia das minhas
idéias, das minhas ambições e das coisas; que ninguém
possa identificar-me como autor no sentido usual do termo".
Os cientistas inovadores não estão somente subordinados a
uma história que definiria seus graus de liberdade, eles
assumem, ao contrário, o risco de se inscrever numa história
e tentar modificá-la. A história das ciências não tem por
atores seres humanos "a serviço da verdade", se essa
verdade deve se definir segundo critérios que fogem à
história, e sim seres humanos "a serviço da história", que
A força da história 53
têm como problema transformar a história e transformá-la de
3. maneira tal que seus colegas, mas também aqueles que,
após eles, forem escrever a história, sejam obrigados a falar
de sua invenção como de uma "descoberta" que outros
teriam podido fazer. A verdade, portanto, é aquilo que
consegue fazer história sob esta restrição. Na medida em que
o produto de um autor consegue efetivamente fazer história,
essa história, longe de facilitar o trabalho do historiador,
criará uma diferenciação cada vez mais difícil de questionar.
O historiador tem plena liberdade no que concerne aos
"vencidos" e pode até tentar tornar inteligíveis suas
convicções; pode igualmente ressaltar a maneira pela qual os
vencedores eram "apesar de tudo" os filhos de sua época,
mostrando o contraste entre aquilo que acreditavam ter
descoberto e o que a ciência nos diz agora que eles descobri-
ram; porém exatamente esse contraste traduz o poder da
verdade descoberta, porque o historiador, aqui, se define ele
próprio pelo recuo do tempo, pela diferença entre o que a
história das ciências o torna capaz de questionar e o que
essa história definiu como incontestável.
Assim, nos Etudes sur Hélène Metzger28, Bernadette
Bensaude- Vincent mostrou que o estilo "história das idéias e
das doutrinas" adotado pela historiadora das ciências Hélène
Metzger, em um de seus livros, La chimie, era brutalmente
substituído, para a química posterior a 1830, por um relatório
pedagógico das descobertas e das teorias que se sucedem e
se acumulam. Nesta mesma obra, G. Freudenthal ligava o
estilo de narração que Metzger adotou para a química ante-
rior a 1830 com a tradição hermenêutica: trata-se de "fazer
justiça" a um autor, de reabilitá-lo, de torná-lo interessante,
situando-o em sua época, reconstituindo seu horizonte de
pensamento. O estilo da história hermenêutica deixaria então
de convir quando a química torna- se "séria",
"verdadeiramente científica"? Não haveria mais necessidade
de "compreender" o químico? Tornou-se ele "objetivo"? Esca-
pa ele ao espírito do tempo? Tal era a tese de Hans Gadamer,
que excluía as práticas científicas do campo hermenêutico.
A força da 54
história
Mas esta exclusão é em si mesma uma confissão que expõe
o poder de que o historiador habitualmente se beneficia a
propósito de seus atores, poder que o recuo no tempo lhe
confere.
Como observou Judith Schlanger, nos mesmos estudos,
esta situação põe em questão o estilo de Metzger até mesmo
onde ela o pode utilizar. Esse estilo, com efeito, tende, como
ocorre toda vez que os historiadores das ciências se inspiram
nos procedimentos dos historiadores da arte, a superestimar
o surgimento de um novo modo de percepção e a subestimar
as práticas da argumentação. Ele revela portanto que, na
verdade, nós não levamos mais a sério os argumentos troca-
dos pelos atores da época (visto que a história que se segue
tornou-os obsoletos...}. Para Schlanger, não pode haver
conduta historiográfica aplicável igualmente à história da
filosofia, da arte e da ciência, pois cada uma dessas áreas se
define por relações específicas quanto ao seu passado. No
caso presente, podemos concluir que, contrariamente ao que
pensava Gadamer, práticas científicas e práticas
hermenêuticas mantêm uma relação bastante estreita, mas
no sentido de que a primeira pode se definir pelo seu
antagonismo face ao que a segunda exige. Quando o
historiador "consegue" reabilitar um autor situando-o em sua
época, ele exprime a derrota deste autor como cientista,
porquanto mostra que podemos doravante entrar em seu
laboratório como se entra na casa da sogra, aberto a todas
as influências da época29.
Existe portanto no coração da história das ciências,
inspire-se ela na hermenêutica ou na sociologia, uma difícil
relação de força entre o historiador e seus atores. Trata-se de
uma relação tão mais difícil que o próprio historiador tem a
maior dificuldade em não aderir, nem que seja às escondidas,
à idéia de que há incontestavelmente progresso nas ciências.
A assimetria estabelecida na história entre vencedores e ven-
cidos não é apenas um aspecto da situação que o historiador
A força da história 55
deve examinar, é igualmente um aspecto da herança que o
3. constitui.Como, de fato, não haveria ele de pensar, a
exemplo de todos nós, que a Terra gira em torno do Sol, que
os micróbios são transmissores da epidemia e que os
antiatomistas não tinham razão de ver nos átomos uma es-
peculação irracional da qual a química deveria ser depurada?
É fácil para o historiador inserir Cristóvão Colombo na história
porque Cristóvão Colombo, em todo caso, não sabia que ia
"descobrir a América". É difícil para o historiador, ao relatar o
trabalho de Jean Perrin tentando impor o átomo aos seus
contemporâneos mostrando que é possível contá-los, não
repetir as palavras de Perrin, ou seja não ratificar o sucesso
do que se poderia dizer a "vocação" do cientista: obrigar o
historiador a passar pelas suas próprias razões para contar o
seu trabalho.
Pôr à prova não significa levantar obstáculo. A história
das ciências não é obstáculo à história dos historiadores, mas
exige desta última que se conforme efetivamente ao
"princípio da irredução", à recusa de reduzir uma situação
àquilo que o recuo no tempo nos permite dizer hoje a seu
respeito. A grande diferença é que esse princípio não é, aqui,
sinônimo de "decisão metodológica", exigindo do historiador
que ele se abstenha de pôr em ação o poder que lhe conferiu
o recuo no tempo. Ele pode, certamente, como o fez
Feyerabend e como o faz a maior parte dos sociólogos das
ciências, ater-se à parte indeterminada de uma controvérsia
ou aos casos em que uma disputa não tenha sido encerrada
de maneira sólida3, Mas que ele não se espante, então, de
"chocar os sentimentos" daqueles que descreve, que acham,
de seu lado, que a história não deveria demonstrar seu
método no caso em que o adversário é fraco, e sim quando
ele se anuncia como o mais forte (o que tentarei fazer com
Galileu).
OS TRÊS MUNDOS
A força da 56
história
teoria dos "três mundos" desenvolvida a partir de 1968 por
Popper é ao mesmo tempo uma ex-
3
Mencionemos aqui o belíssimo livro de Trevor Pinch,
Confronting natu- re: the sociology of solar-neutrino detection
(Dordrecht, D. Reidel Pub. Comp., 1986), que traça de maneira
totalmente apaixonante a construção por Ray Davis, pioneiro
especialista na detecção dos neutrinos, do objeto "neutrino
solar", no sentido em que esta concretiza um novo encontro
entre disciplinas físicas até aqui separadas. Ocorre que a medida
do fluxo de neutrinos emitidos pelo sol não apresentou os
valores previstos pelos modelos implicando a astrofísica, ciência
das reações nucleares, física do neutrino. Qual estaria em
causa? Há 25 anos a questão está aberta: a medida foi
confirmada, e a anomalia é, portanto, reconhecida. O livro de
Pinch é um belo exemplo de como historiar, mas ele se aproveita
da incerteza dos atores para demonstrar que a ciência é uma
questão de interpretação. O que ele não ressalta, em
contrapartida, é que a atividade interpretativa dos atores teria
sido muito diferente — e a questão, sem dúvida, não teria
restado aberta — se esses atores não tivessem sido convencidos
de que a anomalia pode ser resolvida, ou seja, que poderá ser
produzida uma resposta que torne, após uma ou outra
modificação, o encontro das disciplinas coerente com a medida.
Aquele que levar a cabo este "progresso" receberá,
indubitavelmente, um prêmio Nobel, porém o estudo do mesmo
caso por um futuro sociólogo lhe propiciará menos facilmente o
poder de diferenciar sua posição daquela dos atores:
"Certamente, para os cientistas a natureza surge como um reino
independente, existindo objetivamente. Mas para o sociólogo a
natureza só pode se tornar acessível por processos discursivos"
[op. citpp. 19-20). O cientista poderá replicar: "Certo, mas aqui
novamente ela se tornou 'verdadeiramente' acessível; nem todos
os processos discursivos se equivalem".
pressão radical do problema criado pela força desta história e
uma muito curiosa tentativa de solução que abandona a
epistemologia em favor de uma forma de filosofia
generalizada da evolução.
Tudo começa de maneira aparentemente anódina, com
o que Popper chama "o princípio de transferência". As teorias
psicofilosó- ficas da aquisição individual de conhecimento, as
teorias da racionalidade científica e do crescimento coletivo
do conhecimento, e as teorias biológicas da evolução tentam
todas caracterizar um progresso, a produção de algo novo e
A força da história 57
interessante. Mas como caracterizar o que assim "se
3. produz"? A tentação é evidentemente de buscar um funda-
mento positivo que explicite em quê o novo pode
efetivamente pretender ser "melhor", ou seja, que permita
julgar e autenticar a legitimidade dessa pretensão. É o que a
epistemologia logicista procurou fazer a propósito das
ciências: fundamentar as pretensões à validade das teorias
produzidas e portanto justificar o fato de que umas sejam
mais válidas do que outras. Ora, lembra Popper, a lógica
fracassa porque, se nela confiássemos, nenhuma proposição
geral poderia decorrer dos fatos de maneira válida: o
procedimento de indução, que permite passar de um
conjunto de enunciados particulares a um enunciado geral,
não permite provar esse enunciado, isto é, excluir a pos-
sibilidade de um fato que venha, mais dia menos dia,
falsificá-lo. Ora, o que é verdadeiro em lógica é verdadeiro
alhures, este é o princípio de transferência. Todos os nossos
modos de caracterização do progresso deverão portanto
submeter-se a que nunca uma novidade encontre um
fundamento positivo, que garanta o valor (adaptativo), a
certeza (psicológica) ou a verdade (científica).
Já a descrição do cientista heróico, se ela tivesse sido
adotada como "explicação" do progresso, teria posto a
epistemologia em contato com uma teoria psicológica de
aprendizagem por tentativa e erro e com uma versão
"mutacionista" do darwinismo: a proliferação e a eliminação
dos mutantes. A seleção elimina aqueles de quem nada se
pode dizer a não ser que: "eles não foram capazes de resistir
à seleção". Dos sobreviventes podemos apenas dizer: "eles
não foram ainda eliminados". A inconsistência geral desta
tripla teoria é que ela define tentativas, mutantes e teorias
como provisões indefinidamente renováveis, que nunca estão
em falta4. Porém, no momento em que in- troduziu
explicitamente o princípio da transferência, Popper já aderia
a uma versão não mutacionista da evolução darwiniana: o
sucesso de um ser vivo não é a "sobrevivência", mas uma co-
invenção de um mundo de recursos possíveis e de uma
maneira de se relacionar com esse mundo. Do mesmo modo,
observa Popper em sua obra La quête inachevée, as crianças
de peito aprendem porque estão predispostas desde o
A força da 58
história
nascimento a aprender, o sucesso das predisposições inatas
para aprender implica o mundo humano sem o quê elas não
teriam sentido algum. Do mesmo modo ainda, as teorias
científicas exigem uma caracterização positiva: para que se
aprenda algo com sua refutação, é preciso primeiramente
que elas tenham tido um certo sucesso, que tenham
significado um avanço do conhecimento, a invenção de um
mundo que elas tornam (parcialmente) inteligível. Nos três
casos, a novidade não tem significação independentemente
da situação, devendo o conjunto ser descrito, e não julgado a
partir de critérios mais gerais que essa situação.
Mas como descrever uma situação? Segundo Popper, em
termos de antecipação, que dão sentido ao mundo ao
selecionar e interpretar alguns de seus aspectos, e em
termos dos riscos que essas antecipações acarretam. O
termo primeiro tornou-se o "problema", que cria uma
situação nova (ainda que a novidade do problema, com
freqüência, não possa ser percebida independentemente da
formulação de um novo tipo de solução). O "problema" se
reconhece pela sua capacidade de persistir através das
"tentativas de solução", das "conjeturas" (fisiológicas,
comportamentais ou conscientes) e é esta persistência que
permite compreender a eliminação de soluções "errôneas" e
a eventual criação de novos problemas. De acordo com o
esquema doravante onipresente em Popper, P1 dá origem a
TT (tentative theory, ou seja, "teoria arriscada") que dá
origem a EE (eliminação de erros), que pode dar origem a P2.
Um movimento decisivo ocorreu aqui. O sujeito da
evolução da ciência não é mais o indivíduo, psicológico ou
ético. O cientista define-se pela situação. A partir de então, a
prescrição ética não é mais
A força da história 59
adversário se efetua nesses novos termos: marxista ou
3. psicanalista,ele é aquele que se agarra às suas hipóteses e
rejeita os problemas postos por sua situação no mundo.
Porém esta desqualificação é doravante "ontológica". O
marxista ou o psicanalista estão, como a ameba ou outro ani-
mal, encerrados no "segundo mundo", das crenças, das
convicções, dos desejos e das intenções, enquanto o
"verdadeiro" cientista define-se pela emergência de um
"terceiro mundo", o do conhecimento objetivo. O contraste
fundamental se deslocou, ele se assenta doravante na
diferença entre Einstein e a ameba: esta se identifica com
suas próprias hipóteses e morre junto com elas, enquanto
Einstein deixa suas hipóteses morrerem em seu lugar.
À primeira vista, o leitor poderá considerar a solução de
Popper calamitosa, porque a diferença entre ciência e não-
ciência, um problema que os cientistas parecem, afinal de
contas, não ter muita dificuldade em resolver, implica aqui
uma diferença ontológica entre o segundo mundo, aquele
dos seres vivos com suas convicções, seus temores, seus
desejos, suas intenções, suas crenças, conscientes ou não,
psíquicas ou encarnadas em seus órgãos de percepção e em
seu metabolismo, e o terceiro mundo, do conhecimento
objetivo. Mas equivocar-se-ia ao pensar que, agindo assim,
Popper reata pura e simplesmente com a tradição do "grande
positivismo", pouco parcimonioso em painéis cósmicos que
põem em cena a ascensão do ser humano em direção à ra-
zão. Escapar-lhe-ia então a singularidade do percurso de
Popper, cujo ponto de partida é a incapacidade da lógica em
dar conta do conhecimento científico e a generalização desta
incapacidade pelo "princípio da transferência". Este ponto de
partida tem a singularidade de colocar o problema da "força
das ciências" a partir da questão da pertinência de nossas
antecipações quando as desejamos descrever. Antes de
examinar os resultados de uma situação dada, é necessário
identificar as referências que ela mesma fez surgir. Como a
lógica não pode justificar a ciência, não se deve concluir que
a ciência é ilógica, mas que, com a ciência, veio à tona uma
lógica de situação em relação à qual a lógica não é
pertinente.
A diferença entre o segundo mundo e o primeiro, aquele
A força da 60
história
dos processos materiais, geológicos, físico-químicos,
meteorológicos etc., é exemplar a esse respeito. A partir do
momento em que lidamos com um ser vivo, nós sabemos
que o modo de descrição pertinente deve incluir o "ponto de
vista" do ser vivo sobre seu mundo, quer este ponto de vista
seja indissociável de seu metabolismo, como é o caso da
ameba, quer ele possa ser remetido a uma dimensão
psíquica, como parece ser o caso dos mamíferos. Quer se
trate da ameba, do chimpanzé ou de nós mesmos, nós não
podemos ser descritos sem que seja levado em conta o fato
de que os meios ambientes não são todos equivalentes para
nós. Em outras palavras, a distinção entre o primeiro e o
segundo mundo consagra a emergência de seres que podem
certamente ser analisados em termos de processos
pertencentes ao primeiro mundo, mas que impõem, para
serem compreendidos de maneira pertinente, uma
linguagem nova. É nessa linguagem que se pode hesitar a
justo título entre "causa" e "razão", quer dizer, falar, sem
metáfora nem projeção antropomórfica, de "diferenças que
fazem uma diferença", como teria dito Gregory Bateson. O
segundo mundo é aquele da emergência do sentido.
Há muitas maneiras de distinguir sentido de significado.
Uma dessas maneiras, que aqui adotarei, cria o espaço
exigido pela distinção popperiana entre segundo e terceiro
mundo: contrariamente ao sentido, o significado implica que
aquele para quem ele faz referência não se espante que se
lhe peça para explicitá-lo ou justificá-lo. Essa distinção é
estética, ética e etológica: ela diz respeito a uma maneira de
existir em um modo que implica que se possa, se for o caso,
"ter de prestar contas" da maneira pela qual existimos. O
significado implica a emergência de uma possibilidade de
descrever, de examinar, de discutir que, por vocação, atribui
ao sujeito que fala uma postura anônima e impessoal. Esta
possibilidade corresponde a um problema novo, a uma lógica
de situação nova — e com freqüência à instauração de uma
relação de força nova entre aqueles que reclamam ou
procuram explicações e aqueles que sequer sabiam que as
haviam que prestar: que se pense nos gramáticos e outros
organizadores da linguagem em sua relação com aqueles
que, como o senhor Jourdain, falavam como respiram. Mas
A força da história 61
ela não corresponde em caso algum à garantia de que as
3. explicações prestadas sejam capazes de estabelecer sua
própria adequação, que a explicação seja satisfatória,
coerente ou verídica.
É evidente que, para Popper, tudo que é humano mescla
sentido e significado. Mas, para ele, a singularidade da
ciência reside em fazer emergir, neste "campo" constituído
pelos seres vivos que "procuram prestar contas" e colocam
portanto o problema da verdade, da legitimidade, da certeza,
uma dinâmica que transcende esta preocupação. Para dar
um exemplo, é possível que a demonstração matemática in-
ventada pelos gregos tenha sido no início apenas um modo
de estabelecer a certeza do enunciado, porém o próprio
exercício da definição e da demonstração envolveu toda uma
outra história. Com os "números irracionais", escândalo para
a razão grega, produz-se o exemplo arquetípico da criação de
um habitante do terceiro mundo, capaz de se impor apesar
das intenções e da convicções dos sujeitos do segundo
mundo.
Para Popper, a força da história construída pelos
cientistas está portanto ligada ao fato de que os sujeitos
"psicológicos" não a dominam, mas sofrem a coerção dos
problemas que eles fazem emergir. E paralelamente, esta
história impõe àqueles que a querem descrever levar em
consideração o terceiro mundo e sua autonomia relativa em
relação aos sujeitos dotados de intenções, de convicções, em
busca de certezas. A ciência consagra a transposição de um
umbral a partir do qual é impossível deixar de reconhecer
que o ator central da evolução não é mais o sujeito
pertencente ao segundo mundo, e sim o problema objetivo,
habitante do terceiro mundo. Aqueles que não o reconhecem
tentam buscar o conhecimento científico conforme os crité-
rios de legitimidade, de prova, que correspondem à busca da
certeza dos habitantes do segundo mundo. Sob pena de,
caso fracassem, se tornarem relativistas como Feyerabend
em vez de perguntar se suas questões eram pertinentes.
A articulação entre o segundo e o terceiro mundo
reproduz portanto aquela que prevalece entre o primeiro e o
segundo mundo. Todo problema tem como condição de
emergência a atividade (não intencional relativamente ao
A força da 62
história
evento da emergência) de um sujeito, mas, desde o
momento em que existe, ele persiste e estimula os que
estarão a partir de então a seu serviço, aqueles de quem nós
não mais poderemos descrever as intenções, convicções,
projetos independentemente deste novo tipo de situação5.
s
Popper justifica assim o triunfo da história "interna" sobre
a história "externa". Toda vez que um partidário da história
"externa" quer estabelecer uma correlação entre a posição de
um cientista participante de uma controvérsia e os seus
interesses culturais, sociais e políticos, o historiador interno
pode dizer que a primeira razão de ser da controvérsia prende-
se a um problema objetivo. A maneira pela qual os atores se
dividem em torno desse problema pode certamente estar
vinculada aos seus interesses, porém o conflito depende
primeiro da existência do problema, é este que cria a
possibilidade de que os interesses em con-
É antes a título de desafio que de solução, que acabo de
apresentar a teoria dos "três mundos" de Popper. O desafio é
pertinente. Ele leva à radicalidade máxima a questão do
poder que o recuo no tempo concede ao historiador em
relação aos problemas de seus atores e a seus argumentos, e
coloca a singularidade da história das ciências sob o signo da
confrontação entre dois poderes, o da interpretação, que
identifica em toda parte as crenças, as convicções, as idéias,
e o do problema, cujo imperativo fez existir o cientista6.
Todavia, se este é o desafio, a solução proposta por Popper
está "impregnada" pelas preocupações epistemológicas que
foram seu ponto de partida. Eu ressaltarei aqui três
deficiências maiores, que indicam ao mesmo tempo três
exigências para o equacionamento da solução que proporei
em seguida.
De um lado, a apresentação de Popper é feita de modo a
desembocar numa perspectiva que conserva o ideal de uma
ciência pura e a definição correlata do "meio externo"
enquanto impuro, ameaçando sempre contaminar a pureza
científica, pôr a ciência em perigo. Em outros termos, uma
das vocações do mundo dos problemas popperia- nos é
evidentemente a de esvaziar toda dimensão política, que
Popper identificaria sem hesitação com o segundo mundo.
Seria possível transformar tão radicalmente o uso das
A força da história 63
palavras "política" e "problema científico" que eles não
3. tenham mais por vocação mobilizar argumentos numa
perspectiva de confrontação?
A força da 64
história
pobre demais, calando-se sobre a diferença entre a maneira
pela qual um problema, científico ou não, é capaz de impor
suas condições e a maneira pela qual uma produção
científica se impõe historicamente, e determinista demais,
conferindo ao problema o poder de estabelecer a diferença
entre aqueles que serão seus vetores e todo o resto, que
receberá o título de obstáculos provindos do segundo mundo.
Seria possível evitar conferir ao problema o poder de definir
a ciência, ou seja, transformar sua história em modelo
ontológico-evolucionista?
O que se pode, enfim, conservar de Popper? Que o
historiador das ciências certamente não tem de se sentir
obrigado a contar a história como a contam seus atores, mas
que também não tem de decidir a priori que aquilo que dizem
seus atores, quando prestam testemunho de seu
envolvimento, é mítico, ideológico, mentiroso ou por demais
carregado de epistemologia. Uma situação, na medida em
que provoca os atores que se referem explicitamente às
coerções que ela faz existir, não é redutível ao meio no qual
ela emerge. Assim como a maneira que uma nova espécie
inventa de se relacionar com o mundo não pode ser reduzida
às restrições que, nós o sabemos a priori, deverão ser
satisfeitas: reproduzir-se, encontrar uma alimentação
suficiente, ter uma boa chance de escapar aos predadores
etc. O que não significa, é claro, que a invenção ou a
situação possam ser separadas do meio em que elas se
produzem. É, creio, porque respeitou esta irredu- ção que
Thomas Kuhn foi tão bem compreendido pelos cientistas, ao
passo que escandalizou os epistemólogos, entre eles Karl
Popper.
A força da história 65
O AJUSTE DO PARADIGMA
A força da história 66
claro: é que o paradigma não pode ser interpretado como
uma decisão "puramente humana", seja qual for a teoria da
decisão que se queira invocar. Nenhuma decisão humana,
nenhuma regra, nenhuma doutrinação poderá eliminar a
diferença entre as ciências para as quais "aconteceu" um
paradigma e as outras, para as quais isto não se deu. E isto
porque um paradigma não é uma simples maneira de "ver"
as coisas, de interrogar ou deinterpre- tar resultados. Um
paradigma é, antes de mais nada, da ordem da prática31. O
que se transmite não é uma visão de mundo, mas uma
maneira de fazer, uma maneira não somente de avaliar os
fenômenos, de lhes conferir um significado teórico, mas
também de intervirde submetê-los a situações inéditas, de
explorar a menor das conseqüências ou o menor efeito
implicado pelo paradigma para criar uma nova situação
experimental. É tudo isto que Kuhn denominou "quebra-
cabeças". Este termo significa que, em períodos normais, um
fracasso na solução de um problema deste gênero colocará
em causa a competência do cientista e não a pertinência do
paradigma, exatamente como num jogo de sociedade. Mas a
mentalidade de um "amador de quebra-cabeças" não se
forma nem por doutrinação nem pela rarefação repressiva
das "regras do jogo" rivais. Não é suficiente que, para onde
quer que nos viremos, vejamos por toda parte situações que
se assemelham a um modelo, que confirmam uma teoria, é
necessário que o apetite seja aguçado pelo desafio: não por
um cenário monótono e unânime, em que "reconhecemos"
sempre a mesma coisa, e sim por uma paisagem acidentada,
rica de diferenças sutis a inventar, na qual o termo
"reconhecer" nos remete não à constatação de uma
semelhança, mas ao desafio de atualizá-la.
A força da história 68
ou "programas de pesquisa" não costumam coexistir de tal
sorte que o cientista possa avaliar seus respectivos modos
de desenvolvimento. Uma tal coexistência implica a idéia de
que, de maneira geral, os fatos preexistem e podem
alimentar um ou diversos programas, e ela não faz jus à sua
invenção. A ciência normal explica menos o que preexiste a
ela do que cria aquilo que ela explica.
Em resumo, é precisamente porque um paradigma deve ter o
poder de inventar praticamente, operacionalmente os fatos
que ele mesmo não se inventa, pelo menos não no mesmo
sentido. A inven- ção dos fatos é competente, discutível,
astuciosa, enquanto a "invenção" de um paradigma se impõe,
para Kuhn, à maneira de um acontecimento, criando o seu
antes e o seu depois. Um acontecimento raro, pois ele
consiste na descoberta de um modo de apreender, de dizer e
de fazer que estabelece uma relação de força singular com o
campo fenomênico correspondente. A tradição da
demarcação tropeçou num problema geral, o do poder de
interpretação, poder que toda linguagem possui de sujeitar
os fatos, de negociar os significados. O paradigma de Kuhn
designa um poder-acontecimento: um modo de mobilização
dos fenômenos revelou-se de maneira inesperada, quase es-
candalosamente, fecundo. Bem mais do que uma doutrinação
qualquer, é este escândalo que alimenta a convicção do
cientista: esta mobilização deve encontrar nos fenômenos
uma verdade mais ou menos independente do poder de
interpretação e deve, portanto, poder ser estendida cada vez
mais longe (mentalidade do puzzle solver). O cientista, tra-
balhando sob um paradigma, não pode deixar de ser
"realista".
A força da história 70
se prestam a toda sorte de interpretações discordantes; com
relação a um ambiente social e cultural igualmente
interessado nos fatos, propondo interpretações, questões,
visões de mundo. O cientista, então, deve tentar cultivar as
virtudes da lucidez e do espírito crítico, único modo de fazer a
diferença com relação aos múltiplos outros intérpretes dos
fatos. Após o acontecimento, a diferença com esses múltiplos
outros é criada pela transformação do modo de produção dos
fatos. É do acontecimento que as comunidades se
aproveitam para se fechar em torno de si mesmas e
estabelecer suas condições de reprodução (transmissão do
paradigma). A relação social de força — a comunidade
científica, único juiz das "boas questões" — redobra uma
relação de força irredutível ao social, pelo menos no sentido
de puramente humano. Compreende-se assim por que os
praticantes das ciências paradigmáticas se reconheceram tão
bem na descrição de Kuhn. A dimensão psicossocial não os
preocupou, porque ela traduz33, sanciona e, como veremos
adiante, amplia uma diferença irredutível à análise social.
Porém o problema se renova, pois um dos atributos
essenciais do paradigma, sua raridade, parece ser negada
por um atributo igualmente essencial da ciência enquanto
tradição histórica, a pretensão de se constituir num
empreendimento geral de produção de inteligibilidade. Os
filósofos das ciências, que fracassaram em especificar os
critérios que fundamentam essa pretensão, não a
inventaram. A estrutura acadêmica que divide aquilo com
que deparamos em territórios levando cada um o nome de
uma ciência não é o simples produto de um erro filosófico. A
noção de paradigma pode, então, por seu turno, desembocar
em uma posição de denúncia: todas as ciências que não
provêm de um paradigma não passam de pretensão
ideológica. O que, de resto, não está muito distante da
posição de Kuhn, exceto que ele não denuncia e sim se
apieda das infelizes ciências humanas "pré-paradigmáticas".
Coisa que, por outro lado, os praticantes das ciências teórico-
experimentais estão, o mais das vezes, dispostos a admitir.
A força da história 72
autonomia consistem em alvos estratégicos, se ele
recobrasse sua liberdade frente a cientistas, eles mesmos
mais livres do que dão a entender, que riso estaria ele apren-
dendo, aquele da ironia ou o do humor?
II.
CONSTRUINDO
IRONIA OU HUMOR?
A força da história 74
estabelecidos", torna-se, neste caso, vetor de saber: ela
constitui uma das restrições em que se põe em risco a
pertinência da interpretação.
A fim de consolidar a diferença entre a "abordagem
sociológica", como a define o programa forte da sociologia
das ciências, e a abordagem que procuro praticar, recorrerei
a um contraste entre "sociologia" e "política". Essa
contraposição não aponta para uma diferença estável entre o
que nós chamamos de "sociologia" e de "ciências políticas".
Trata-se antes de "criar" esta diferença a fim de mostrar uma
divergência de interesses. Quero mostrar que não é necessá-
rio negar a singularidade das ciências para torná-la passível
de discussão. Com o fim de fazer dos cientistas atores como
os outros na vida da cidade (preocupação "política"), não é
necessário descrever sua prática como "semelhante" a todas
as outras (preocupação "sociológica). As aspas (que em
seguida deixarei de lado) assinalam que a diferenciação diz
respeito à diferença criada por mim, sem pretensão de
definir o espectro das práticas efetivas36.
Eu partirei de um contraste aparentemente anódino.
Existem muito poucas "teorias" verdadeiras no campo das
ciências políticas, que se voltam hoje preferencialmente para
os estudos históricos ou para um trabalho de comentário
mais ou menos especulativo, porém sempre dependente das
situações e dos motivos criados pela história. Em
contrapartida, a sociologia continua obsedada pelo modelo
das ciências positivas, aquelas que podem reivindicar um
objeto estável em relação à história, autorizando o cientista a
definir a priori as questões que convém colocar para toda
sociedade.
Esse contraste pode ser atenuado. O ideal das ciências
positivas não define toda a sociologia e muitos sociólogos
levam em conta na sua prática o caráter irredutivelmente
histórico e político de toda definição de o que "é" uma
A força da história 76
como obstáculo à sua própria definição de o que é um "ob-
jeto social". Não é fato que o "programa forte" da sociologia
das ciências toma como princípio a assimilação de suas
"provas" e suas "refutações" a simples efeitos de crença?
Deparamo-nos aqui novamente com o poder mobilizador
das palavras que aspiram ao poder de julgar ou de explicar.
A sociologia tal como eu a defini aqui se outorga por ideal
legítimo o poder de julgar, de desvendar "o mesmo", acima
das diferenças que dizem respeito somente às vivências de
vida dos atores. Que importa o que pensa um cientista, que
importam os "mitos" da verdade ou da objetividade que o
habitam? O sociólogo das ciências tem por dever ignorar
essas crenças a fim de revelar aquilo de que o cientista
participa, saiba ele ou não, o tipo de projeto que o
caracteriza, quer se acredite ou não ator "autônomo". Desse
ponto de vista, as diferenças metodológicas, por exemplo
aquelas que opõem os sociólogos que partem dos atores e
aqueles que partem das estruturas, importam bem menos
que a ambição comum: definir o objeto "social" em geral e
utilizar essa definição para selecionar traços comuns para
além das diferenças que serão chamadas então de
"empíricas".
De acordo com a "diferença" entre sociologia e política
por mim proposta, que confesso ser radicalmente
assimétrica, a ausência relativa de teoria em matéria de
ciências políticas assume uma significação positiva. O
especialista em ciências políticas defronta-se com uma
dimensão das sociedades humanas que não é passível de
definição "objetiva", exercida "em nome da ciência", porque
essa dimensão corresponde em si mesma a uma criação de
definições: quem é cidadão? Quais são seus direitos e
deveres? Onde termina o privado? Onde começa o público?
Estas são questões modernas, é claro. Mas o fato de ver
como são enunciados e agenciados em outras sociedades os
problemas que colocamos nesses termos não confere ao
especialista o poder de julgar, mas apenas a possibilidade de
acompanhar a construção das soluções que cada coletividade
traz ao problema37.
37 Note-se o paralelo entre este questionamento do poder
de julgar e a singularidade da ciência dos seres vivos tal como o
A força da história 77
Num determinado sentido, a denúncia por Feyerabend
dos privilégios que as ciências ocidentais reivindicam é, em
si, política, mas no sentido de que, longe de acompanhar a
construção desta reivindicação, contesta-a. Feyerabend não
pratica uma abordagem política das ciências, ele faz política.
A decepção sofrida pelo epistemólogo quanto à
impossibilidade de fundamentar a legitimidade das ciências,
e, certamente, também o espetáculo dos danos provocados
"em nome da ciência" fizeram-no passar do papel de analista
para o de ator. A abordagem "política" que eu gostaria de
tentar tem por alvo não proibir esta mudança de papel, mas
esclarecê-la. O engajamento político é uma escolha, não o
resultado de uma decepção vinculada à descoberta da
dimensão política das práticas que a razão supostamente
regulava.
GRANDES DIVISÕES
A força da história 78
experts do logos que desvia, ordena, cria a opinião, devem
ser condenados. Esta foi a posição de Platão, é a leitura de
Aristóteles que Heidegger propõe, é também o "sentimento
estabelecido" que preside a definição moderna de uma
ciência "fora da política" que só pode apreender o jogo
eventual da política em seu âmago em termos de impureza,
de defeito, de distanciamento do ideal. Mas o que acontece
se questionamos, como Hannah Arendt, a oposição entre
(falsa) verdade dos sofistas, da qual o homem é a medida, e
verdade racional, se se admite como ponto de partida que
A força da história 79
"os homens vivem juntos no modo da palavra"38? Nós nos
descobrimos numa situação de "irredução" em que as
palavras "opinião" e "razão" perdem o poder de se
autodefinir ao oporem-se uma à outra. É preciso então
acompanhar a maneira pela qual opinião e razão se
interdefinem e especialmente o tipo de teste que preside à
sua diferenciação.
Cumpre observar que esta interdefinição diz respeito ao
mesmo tempo à política e ao saber, que se acham não
confundidos e sim associados pelo mesmo tipo de
problematização. A propósito daquele que pretende falar por
mais de um, assim como a propósito da teoria que pretende
representar os fatos, a mesma questão se coloca: "Por que
traço reconhecemos o pretendente legítimo?". Pode-se,
nesse sentido, falar do nascimento, a um só tempo, de uma
política do saber e de uma ciência da política. As soluções
encontradas poderão divergir, escolher critérios
essencialmente distintos; sempre se tratará de "arranjar" e
de repartir, de definir os direitos e de prescrever os deveres.
Que, desde Aristóteles, a política tenha sido tradicionalmente
definida pela preocupação de organizar a vida em comum
dos seres humanos (praxis), enquanto aquilo que se dirige às
coisas (poiesis) diria respeito a uma atividade definida por
fins utilitários, isto faz parte, nessa perspectiva, das soluções
específicas, não do problema. A estabilidade desta solução
depende das pretensões, dos direitos e dos deveres que a
relação com as coisas pode ou não suscitar.
Nessa perspectiva, a dupla definição do político e do
racional oferecida pelos gregos é nova na medida em que
explicita o duplo problema da legitimidade do poder e da
legitimidade do saber. As soluções múltiplas e controversas
propostas para esses problemas não dividem a história
humana entre aqueles que ignoravam a política e a razão e
aqueles que "descobriram" o problema, mas elas sinalizam
uma diferença cujas conseqüências cumpre acompanhar: as
pretensões ao poder e ao saber terão doravante de se
explicar a si mesmas. Para o politólogo, a política não nasce
com a cidade grega, mas a cidade grega obriga o politólogo a
reconhecer que seus atores formulam explicitamente
questões similares às suas.
A força da história 80
Muito curiosamente, um problema análogo se coloca a
propósito da segunda "grande divisão" que obseda nossa
modernidade. Nós nos referimos aos gregos para a definição
de razão que usamos, nós que inventamos as ciências ali
onde todas as outras sociedades humanas se deixavam
definir pela sua tradição. Nós nos referimos às tradições
humanas para a definição da "cultura", nós, humanos, que
somos seres de cultura ali onde todas as outras "sociedades
animais" se deixam definir por códigos específicos aos quais
estão submetidas. Na verdade, as duas questões são, na
visão moderna, apenas uma. Como se a definição de ser
humano em contraposição ao animal encontrasse sua plena
atualização "conosco", os modernos, que nos sabemos, se-
gundo certos autores, "livres", segundo outros, "racionais",
contudo os dois critérios convergem naquilo em que os dois
se opõem, conforme estéticas distintas, às mesmas "ilusões"
de pertinência e de determinação. Ora, a problematização da
"grande divisão" entre opinião e razão que a leitura "política"
de Aristóteles produz encontra seu análogo na
problematização da grande divisão entre o humano e o
animal.
O âmbito privilegiado em que se discute a divisão entre
o homem e o animal é, seguramente, a primatologia. A
primatologia clássica aderia à tese da grande divisão, visto
que se atribuía a missão de identificar as regras às quais
obedecia a organização específica de um grupo de primatas,
chimpanzés ou babuínos, por exemplo. Nesse sentido, a
sociedade primata era o sonho do "sociólogo" tal como eu o
defini: um objeto cuja estabilidade é garantida pela
identidade da espécie, à qual estão subordinados tanto os
indivíduos como suas relações. Ora, certos primatólogos
contemporâneos propõem uma "heresia" bem interessante.
Os babuínos são "superdotados sociais", concluiu Shirley
A força da história 81
Strum, após sua estadia entre eles 39. Os babuínos por ela
observados lhe parecem, em sua atividade, não parar de criar
respostas às questões colocadas a seu respeito pela
primatologia clássica: quais são os aliados, como fazer
aliados, a quem recorrer para ser aceito, de quem desconfiar.
Eles não se cansariam de negociar e renegociar seus papéis,
suas relações mútuas, suas redes de alianças, os testes que
identificam o aliado confiável ou o põem em causa, em suma,
a estrutura de sua sociedade. Em outros termos, o
primatólogo deve abandonar a pesquisa dos invariantes aos
quais os indivíduos obedecem na qualidade de membros de
uma sociedade, para acompanhar a construção de um liame
social na medida em que ele é, para os primatas- atores, um
problema e não um dado.
Notar-se-á que emprego aqui uma estratégia do tipo
"popperia- no ", no sentido de que Popper caracterizava os
três mundos a partir da diferença entre as questões que eles
obrigam a formular. Seguramente, os babuínos não se
dirigiram a Shirley Strum para pedir-lhe que identificasse
neles um comportamento político e não ficaram
escandalizados de ver este pedido recusado pelos
primatólogos clássicos. Voltaremos a essa interessante
diferença que singulariza as relações que os seres humanos
A força da história 82
têm com seus intérpretes, cientistas ou não40. Não obstante,
o relato de Strum apresenta uma busca de pertinência ao
cabo da qual ela deve, uma vez que se define como cientista,
sustentar que seu estudo dos babuínos impõe que declare
suas observações como incompatíveis com a idéia de uma
submissão a regras estabelecidas na espécie.
Se os babuínos "fazem política" no sentido de que não
param de constituir suas sociedades, o que se passa,
podemos perguntar, com as formigas ou os ratos? "Onde
deveríamos localizar com certeza os primeiros passos do
comportamento político? Deveríamos excluir os insetos
sociais sob pretexto de que as negociações maiores têm
A força da história 83
lugar antes da aparição dos fenótipos?"41 A esta questão em
cascata, uma só resposta é sólida, aquela que se relaciona
com o problema das palavras que aquilo com que nos
deparamos nos obriga a empregar. Por ora, foram os
primatas que puderam obrigar seus especialistas a neles
reconhecer explicitamente um comportamento de tipo
político. Em contrapartida, não puderam (ainda?) impor-lhes
palavras que reconheçam neles a presença de uma atividade
"especulativa", de estratégias individuais levando em conta
ativamente uma noção abstrata de sociedade a criar ou a
manter. Neste sentido, o "politólogo" dos primatas pouco se
distingue do "etnometodólogo", para o qual são as relações
entre os atores que constroem ininterruptamente a
sociedade, exceto que não se trata aqui de "metodologia".
Apenas os humanos, por ora, puderam impor aos seus
especialistas um estado de controvérsia permanente quanto
à questão de saber o que vem antes, os atores ou as
estruturas. Porque são eles que impuseram a si mesmos
diferenciações "pesadas" como a que desqualifica
explicitamente certos atores sociais na qualidade de atores
políticos (as mulheres, escravos e estrangeiros entre os
gregos, os trabalhadores imigrantes e os menores de idade,
A força da história 84
entre nós)42.
A força da história 86
no sentido de que se trata de uma exigência que ele volta
contra si mesmo, de um teste que ele se impõe a fim de
tentar escapar aos julgamentos da história da qual é herdei-
ro. Mas não no sentido de que isto lhe conferiria um direito
de julgar, de reconduzir as diferenças a um "mesmo"
compartilhado igualmente por todas as soluções. A
multiplicidade, como multiplicidade de soluções inventadas,
não confere superioridade alguma a quem a desvenda como
tal. Ela antes institui uma relação de proximidade com
aqueles que, por não compartilharem os testes que
inventamos para nós mesmos, nos parecem, a nós
modernos, tão fáceis de ser desqualificados. E aqui cruzamos
o caminho de Jamais fomos modernos, graças ao qual Bruno
Latour pôde, êxito difícil, colocar como perspectiva para os
novos testes que teremos de inventar o fato de que "nós não
estamos tão longe dos pré-modernos".
É por isso, aliás, que a história das ciências constitui-se
no teste por excelência para as práticas históricas. Porquanto
também o historiador está tentado a se acreditar "moderno",
herdeiro da grande divisão política entre prática científica e
opinião. Com o intuito de inserir na história, por exemplo, a
passagem da época em que "nós não sabíamos ainda" que é
a Terra que gira ao redor do Sol para aquela em que "nós
sabemos", ele pode imaginar suficiente uma solução "mo-
desta" que consistiria em complicar o relato habitual,
mostrando-se que a "descoberta" não tem a simplicidade
límpida que nós lhe atribuímos. Mas parar por aí não é
suficiente, pois o historiador não deixa em suspenso as
certezas que ele mesmo compartilha com seus con-
temporâneos: a Terra é indubitavelmente um planeta. O que
aconteceu com as nossas histórias humanas quando o Sol
estabeleceu com elas essa nova relação que nos proíbe,
daqui por diante, de duvidar que é a Terra e não o Sol que
"gira"? E em que medida ele próprio, como historiador, não
seria o herdeiro das transformações sociais, políticas, éticas,
afetivas, estéticas por que todos nós passamos, cientistas ou
não, e que, no frigir dos ovos, permitem dizer: "É preciso ser
louco, dramaticamente ignorante, espírito de porco ou
retardado cultural para pôr em dúvida o movimento da
Terra"?
A força da história 87
Por isso Bruno Latour pode fazer da história social da
construção dos saberes científicos o eixo de sua
argumentação segundo a qual "nós nunca fomos modernos".
O que implica, correspondentemente, que só poderá escrever
esta história o historiador que souber o que significava para
ele "ter sido moderno", sem por isso denunciar o que ele foi,
desvendar as mistificações e ilusões de que foi vítima. Quer
dizer, sem opor às verdades construídas pelas ciências uma
outra verdade de maior poder — mesmo que na forma da
negação a priori de toda verdade que não se reduza a uma
crença "como as outras".
Chamarei de "humor" a capacidade de se reconhecer
como produto da história cuja construção procuramos
acompanhar, e isto num sentido em que o humor se
distingue antes de tudo da ironia.
A força da história 88
Como bem mostrou Steve Woolgar43, a leitura
sociológica das ciências de tipo relativista confere ao seu
especialista uma postura "irônica". Ele é aquele que não se
deixa enganar, que irá desvendar as intenções das ciências.
O especialista sabe que encontrará sempre entre ele e os
cientistas a mesma diferença de ponto de vista, aquela que
garante que ele conquistou, de uma vez por todas, os meios
de os entender sem se deixar impressionar. Certos autores
podem preconizar uma leitura "irônica" de seus próprios
textos visto que estes são também científicos (ironia
dinâmica). Ocorre que a posição de prin- cípio exige do autor
uma referência (estável ou dinâmica) a uma transcendência,
um poder de julgar mais lúcido, mais universal, que garanta
sua diferença com relação aos autores que ele estuda.
O humor, por sua vez, é uma arte da imanência. Nós não
podemos avaliar a diferença entre ciência e não-ciência em
nome de uma transcendência que nos definiria a nós mesmos
como livres em relação a ela, só são livres aqueles que
permaneçam indiferentes a ela. Mas esta dependência em
que nos encontramos em relação a ela em nada diminui
nossos graus de liberdade, nossa escolha quanto à maneira
de acompanharmos os problemas criados pela elaboração
dessa diferença. A situação é a mesma que a do politólogo
que sabe que seu problema não teria nenhum sentido se os
gregos não tivessem inventado uma "arte da política". Ele
mesmo é produto desta invenção, que ele não pode, por
conseguinte, reduzir a nada. Todavia está livre para pôr em
história esta invenção.
Ironia e humor constituem, neste sentido, dois projetos
políticos distintos de discutir as ciências e de provocar o
debate com os cientistas. A ironia contrapõe o poder ao
poder. O humor produz, na medida em que consegue
produzir-se, a possibilidade de uma perplexidade
compartilhada, que estabelece efetivamente uma igualdade
entre aqueles que consegue reunir. A esses dois projetos
correspondem duas versões distintas do princípio de simetria,
instrumento de redução ou vetor de incerteza.
DO ACONTECIMENTO
A força da história 89
Existe um conto talmúdico muito bonito que mostra três
rabinos defrontando-se com a interpretação de uma
A força da história 90
passagem da Lei44. O rabino Eliezer, para fazer prevalecer
seu ponto de vista, recorre aos milagres: uma alfarrobeira é
arrancada da terra, um rio se põe a correr ao contrário, as
paredes da sinagoga se inclinam, mas nenhum desses
argumentos é considerado admissível. O rabino Eliezer faz
então um apelo ao Altíssimo e uma voz celestial confirma sua
autoridade. Contudo, o rabino Josué se levanta e cita o
Deuteronômio: a Torá "não está nos céus". O Altíssimo
entregou o texto aos homens para que eles o discutissem. Ele
não tem mais que intervir na discussão da significação desse
texto.
A escansão, o acontecimento constituído pela doação do
texto divino faz a diferença entre o antes e o depois, mas
qual é essa diferença? Sobre o quê, até onde, como essa
diferença se instala? O acontecimento não o diz e cabe à
tradição judaica dizer-nos que é assim que deve ser. Um
grande número de atores, que foram todos, a um ou outro
título, produzidos pelo texto, tratarão de tirar suas lições. To-
das se localizam no espaço que ele abriu, nenhuma pode
reclamar uma relação de verdade privilegiada com ele.
A noção de acontecimento que acabo de introduzir
permite precisar as posições relativas entre os cientistas e
seus intérpretes. O ponto decisivo, aqui, não é mais o de
negar as diferenças pretendidas pelos cientistas, mas evitar
toda forma de descrevê-las que implique um conhecimento
privilegiado dos cientistas quanto ao que significam essas
diferenças que os singularizam.
O acontecimento abre esta perspectiva se declararmos
que, criador da diferença, o acontecimento nem por isso é
portador de significação. A invenção da "arte da política"
pelos gregos foi um acontecimento, criou uma diferença, mas
a significação que essa diferença vai assumir, as soluções
trazidas ao problema aberto, os comentários e as críticas que
essas soluções suscitarão, fazem parte dos desdobramentos
do acontecimento e não de seus atributos. O acontecimento
não se identifica com os significados que os que o seguirem
elaborarão a seu respeito e nem mesmo determina a priori
aqueles para quem o acontecimento fará uma diferença. Ele
não tem nem representante privilegiado nem alcance
legítimo. O alcance do acontecimento faz parte dos seus
A força da história 91
desdobramentos, do problema posto no futuro que ele cria.
Sua dimensão torna-se objeto de interpretações múltiplas,
mas ela pode também ser auferida pela própria
multiplicidade destas interpretações: todos aqueles que, de
uma maneira ou de outra, se referem a ele inventam um
modo de se servir dele para montar sua própria posição, dão
seqüência ao acontecimento. Em outros termos, toda leitura,
mesmo aquela que denuncia e diz a falsa aparência, situa de
novo aquele que a propõe na qualidade de herdeiro, como
pertencente ao futuro que o acontecimento contribuiu para
criar, e nenhuma pode pretender "provar" que, na verdade,
nada de especial se passou. Somente a indiferença "prova"
os limites do alcance do acontecimento.
Na medida em que o acontecimento não tem em si
mesmo o poder de ditar a maneira como deverá ser narrado,
nem as conseqüências que lhe poderão atribuir, não tem
também o poder de selecionar seus narradores. Figuram
entre estes tanto aqueles que tentarão aumentar ao máximo
o alcance e os direitos que o acontecimento autoriza, quanto
os que procurarão minimizá-los. Quem empreender esse
trabalho terá por única restrição identificar em quê ele é
herdeiro do que aconteceu, em quê o acontecimento o situa,
queira ele ou não (cf. a retorsão à qual o relativista em
matéria de ciências se expõe quando pede um exame de
tomografia ou a prescrição de antibióticos), ou seja, de se
reconhecer como construtor da história que se segue ao
acontecimento, um dentre outros construtores de significado.
Esse caráter indeterminado do acontecimento
estabelece o sentido da diferença, da qual partimos, entre
filósofos e cientistas, face à descrição de Thomas Kuhn. Os
cientistas reconheceram aí o quinhão do acontecimento e se
reconheceram, eles mesmos, como praticantes de uma
ciência normal, "suscitados pelo acontecimento". Os filósofos,
em contrapartida, exigiam mais: exigiam que a história
suscitada pelo acontecimento fosse capaz de estabelecer sua
legitimidade. Encontramos aí o contraste proposto por Gilles
Deleuze entre "fundação" [fondation] e "fundamento"
[fondement]: "A fundação diz respeito ao solo e mostra como
algo se estabelece sobre este solo, ocupa-o e dele toma
posse; mas o fundamento vem antes do céu, vai da cumeeira
A força da história 92
às fundações, mede o solo e o possuidor um pelo outro
A força da história 93
conforme um título de propriedade"45.
O relativista irônico não pára de citar e comemorar o
fracasso dos filósofos do fundamento. Nenhum título de
propriedade mede os direitos dos cientistas de possuir o
"solo" que ocupam. Ele se convence, para sua própria
satisfação, de que nenhum procedimento reconhecido como
científico é capaz, em caso de controvérsia, de determinar a
opção que o "verdadeiro cientista" deveria escolher. Na
perspectiva que eu defendo, o alcance da demonstração é
nulo pois ela supõe que o acontecimento de fundação possa
dar conta de si mesmo. O que sabem os cientistas, que eu
procuro singularizar — excluindo-se portanto os produtores
sistemáticos de artefatos "em nome da ciência" ou "em nome
da objetividade" —, o que sua tradição lhes diz é que a
fundação já ocorreu diversas vezes, que os solos foram
ocupados, ou seja, também que o acontecimento pode ser
repetido. Nenhuma conduta por mais racional que seja,
nenhuma submissão a um critério, seja ele qual for, assegura
essa repetição. Mas esta não acharia o terreno onde se
produzir se os cientistas não agissem com vistas à sua
produção.
A força da história 94
mundo, de procurar o melhor de que somos capazes,
esperando que a concretização desse melhor faça parte da
definição divina do mundo. A idéia do melhor dos mundos
possíveis corresponde aqui à idéia de proposições cujo cará-
ter científico poderia ser decidível. Sem garantia nem
promessa de sucesso. Porém não sem precedente.
Resta, evidentemente, compreender o tipo de
acontecimentos que, para os cientistas, criam um
precedente, e compreendê-los de modo que nos permitam
acompanhar a construção das ciências sem ratificá-la nem
denunciá-la, apreciar o envolvimento e a paixão dos
cientistas sem perder a possibilidade de rir. Com humor ou
ironia, conforme o modo como eles próprios se situam no
interior da tradição científica: conforme inventem os meios
para prolongá-la ou procurem sua chancela para
desqualificar os obstáculos interpostos ao seu
prolongamento.
A força da história 95
A CIÊNCIA SOB O SIGNO DO ACONTECIMENTO
5.
EM BUSCA DE UM RECOMEÇO
0PODER DA FICÇÃO
O PLANO INCLINADO
6.
VERDADE NEGATIVA
117 Construind
o
experimental não teve lugar, sejam quais forem as boas
vontades ou as decisões heróicas, reina o poder da ficção.
Se devemos definir o novo tipo de "verdade", para o qual a
definição matemática do movimento criada por Galileu me
serve de modelo, seria preciso pensar numa verdade negativa
antes que na célebre distinção entre como e por quê: uma
verdade cujo primeiro sentido é de resistir ao teste da
controvérsia, de não poder ser inculpada de ser apenas uma
ficção entre outras. A "autoridade" da ciência experimental, sua
pretensão à objetividade não têm outra fonte além da
negativa-, um enunciado adquiriu — numa dada época, é claro,
e não no absoluto — os meios de demonstrar que ele não é
uma simples ficção, relativa às intenções e às convicções de
seu autor. Mas o enunciado não se diferencia da ficção por
nada além do que seu poder de fazer calar os rivais.
O enunciado experimental é portanto mudo quanto ao seu
alcance positivo. Tanto mais que o rival que ele condena ao
silêncio não é qualquer um. É aquele que aceita uma situação
de controvérsia, quer dizer, o desafio do dispositivo
experimental. O dispositivo de Galileu, por exemplo, é incapaz
de calar aquele que se recuse a considerar que o movimento
dos objetos pesados tem algum interesse, aquele para quem
compreender o movimento, significa em primeiro lugar com-
preender o crescimento das plantas ou o galope de um cavalo.
Este "exclui-se a si mesmo" do laboratório, do local que reúne
os rivais em torno do dispositivo experimental que irão pôr à
prova. Contudo, o processo de seleção-exclusão não se limita a
estabelecer a diferença entre "cientistas" e "não-cientistas". Ele
não tem outros critérios que o da dinâmica mesma dos campos
científicos que se formam ao produzi-lo. É um processo que se
trata de seguir, no sentido de que ele é a um só tempo alvo e
produto, criação da coletividade dos "colegas", cujas objeções,
as críticas, o interesse são reconhecidos como pertinentes57. Os
118 Construindo
outros, que o aceitem ou não, permanecem, como os filósofos e
os historiadores, "fora do laboratório", só podendo nele entrar
6. segundo duas modalidades totalmente distintas: seja
confundindo-o com a casa da sogra, isto é, denunciando nele
uma arbitrariedade que, para os freqüentadores legítimos é só
uma prova da incompetência dos que ficaram de fora; seja
conseguindo que suas objeções e suas contra- proposições
sejam admitidas, ocorrência rara que será saudada como uma
"revolução" ou pelo menos uma inflexão no curso da história.
A invenção de um dispositivo experimental empresta
pertinência ao princípio da irredução de Latour: é um operador
que age ao mesmo tempo sobre as coisas e sobre os seres
humanos. Ele propõe ao mesmo tempo uma encenação das
coisas e uma operação de desqualificação daqueles, entre os
seres humanos, que não aceitam o desafio desta encenação.
Exige, para ser compreendido, que seja descrito de acordo com
uma perspectiva que segue a dos "colegas" que ele qualifica
(perspectiva que, por definição, é adotada pela história e pela
epistemologia dos vencedores), e portanto pode sempre ser
taxado de arbitrário pelos outros. Por isso toda racionalidade
epistemológica que pede a uma norma que justifique a história,
na qual se inventam e se estabilizam os critérios de
legitimidade científica, pode levar diretamente, como vimos no
caso de Feyerabend, ao relativismo: esses critérios reclamam,
como as anamorfoses, a localização da perspectiva (no caso, da
história) em relação à qual eles fazem sentido.
É ainda mais importante sublinhar que o enunciado
experimental não tem o poder de obrigar os protagonistas a
adentrar o laboratório, pelo fato de que esta proposição tem
uma conseqüência simétrica inversa. O enunciado experimental
não dispõe de nenhuma prova positiva que permita estabelecer
e fazer aceitar sua significação fora do laboratório, que permita
identificar, por exemplo, em meio à multiplicidade de
fenômenos distintos que aí proliferam, aqueles para os quais
ele oferece uma via de acesso privilegiada. O enunciado, com
efeito, só tem pertinência se a própria seleção das
características operada pelo dispositivo experimental é
reconhecida como pertinente. Ele propõe avaliar um fenômeno
em termos de ideal, as categorias que correspondem ao
outro modo.
119 Construind
o
dispositivo experimental, em termos de desvio do ideal, os
efeitos parasitas, secundários que complicam a situação e que
é preciso aprender a administrar. Todavia, ele não pode impor
este julgamento. Fora do laboratório, nada impede aqueles a
quem ele gostaria de se dirigir de pretender que, no seu campo
de atuação, o enunciado não passe de uma ficção, isto é, como
dizia Sagredo, "uma definição elaborada e aceita no abstrato".
Foi assim que os "engenhei- ros mecânicos" franceses
protestaram, ao longo de todo o século XVIII, contra a
arrogância dos acadêmicos "matemáticos" que queriam sub-
metê-los às suas "leis", no duplo sentido do termo.
Em outros termos, o acontecimento experimental não
consegue se constituir numa resposta sem colocar um
problema. Ele não cria uma diferença entre aqueles que ele
agrupa e aqueles que permanecem indiferentes, sem colocar a
questão, política, de saber se e como esta indiferença será
rompida, se e como as conseqüências do acontecimento se
propagarão para fora do laboratório. O acontecimento experi-
mental faz uma diferença, porém não diz quem deve levar em
conta essa diferença.
A primeira coisa que cabe dizer daqueles que aceitaram se
juntar em torno do dispositivo experimental e reconhecer sua
eventual pertinência, é que eles aceitaram se deixar interessar.
Reunir todo e qualquer um dentro de um laboratório não é um
direito. Identifica-se naquele que acredita ter esse direito um
"cientista louco": segue em frente sozinho, armado de fatos
que, segundo ele, deveriam logicamente valer- lhe o
assentimento geral, exige que eles sejam levados a sério como
o recomendam os tratados de epistemologia e se indigna, em
nome dos valores da ciência, de que sua proposição não seja
reconhecida como científica. Mas conhecemos também
disciplinas que fracassam em fazer com que se admita que elas
possam produzir algo além de ficções. É o que ocorre com a
parapsicologia que, desde a fundação do laboratório de Joseph
B. Rhine em 1930, dedicou todos os seus esforços a inventar
um conjunto de protocolos experimentais, cada um mais
rigoroso que o outro, mas se choca com os "não"-interlocutores,
dispostos a admitir não importa que hipótese, desde que ela
permita concluir que não há fatos. As regras da controvérsia
científica desabam: os críticos recusam-se a mostrar interesse,
a se reunir no laboratório. Limitam- se a lembrar alguns casos,
120 Construindo
supostamente válidos para todos, em que "todos sabem" que
só há aí artefato, no sentido negativo, ou truque2.
6. Este exemplo, entre muitos outros, mostra que a simples
INTERESSANDO AUTORES
121 Construind
o
up for the Telepathy Test", concluindo que num futuro próximo
talvez a bola esteja com os céticos. Caso a ser acompanhado.
res que são convocados a manifestar-se sobre uma
determinada questão fazem-no sob forma de citações abstratas
de seu contexto. O jogo e o prêmio consiste em colocá-los de
acordo, atendo-se, o mais das vezes, à letra da citação, sem
discutir o sentido que lhe emprestou o autor. Em outros termos,
o autor impõe "autoridade", porém Tomás de Aquino se faz juiz
e trata o autor-autoridade como testemunha convocada a
comparecer: ele deve pressupor que a testemunha disse a
verdade, e o julgamento deverá levar em conta seu
testemunho, mas é Tomás de Aquino quem decide ativamente
a maneira pela qual esse testemunho será levado em conta.
A diferença entre prática escolástica e prática científica
não é portanto tão radical como se poderia pensar. São Tomás
de Aquino reconhece que os "autores" são autoridade, mas ele
se comporta como se tivesse consciência de estar livre para
determinar a maneira pela qual devem ser levados em conta.
Os cientistas reconhecem como única "autoridade" a
"natureza", os fenômenos com os quais eles têm de lidar, mas
sabem que a possibilidade desta "autoridade" de exercer
autoridade não está dada. Cabe a eles fazer da natureza
autoridade.
A grande diferença reside, na verdade, na ligação entre
autoridade e história. Os escolásticos tentam pôr os autores —
filósofos pagãos, doutores cristãos e autor divino da revelação
— de acordo. Sua ambição é de estabilizar, de harmonizar a
história. Em matéria de ciências, obter êxito em fazer da
natureza autoridade e fazer história são sinônimos. O poder de
"fazer a diferença" está do lado do acontecimento, criador de
sentido mas à espera de significados. O laboratório, onde um
novo dispositivo experimental resiste às provas que o farão ser
reconhecido como capaz de atribuir a um fenômeno o poder de
conferir autoridade a seu representante, é mudo quanto aos
campos em que esse representante terá direito a voz. Em
outros termos, o acontecimento coloca o problema da
seqüência, e confere sentido à história, à qual apenas cabe a
resposta.
Pode-se ver nesta ligação singular entre autoridade e
história a principal característica da "política" inventada pelas
ciências: a solidariedade alardeada entre o que Aristóteles
122 Construindo
havia distinguido como práxis, tendo por virtude a phronesis, a
sabedoria prática, e poiesis, tendo por virtude a téchne, o
6. know-how. A distinção aristotélica passava entre a obra de
123 Construind
o
interesse que deve ser criado um imperativo científico sem com
isso ferir um "sentimento estabelecido", aquele que designa o
"consenso desinteressado" dos cientistas como garante de suas
proposições. O interesse é aqui redefinido pela liga-
124 Construindo
aquilo contra o qual se trata de se converter. A singularidade
das ciências tais como eu tento caracterizá-las reside menos
6. em romper com essa noção de interesse na qualidade de
125 Construind
o
"oportunidade" de lhes interessar. Os analistas das
controvérsias científicas têm toda razão em ressaltar a maneira
bastante distinta com que o ônus da prova é suscetível de se
repartir, certas proposições tendo desde o início o benefício da
plausibilidade, enquanto outras, aparentemente comparáveis,
não conseguem sequer vencer o muro da indiferença. Contudo
as proposições não são uns humildes submetidos à justiça, a
reivindicar tão somente que lhes seja atribuído aquilo a que
têm direito. Para os leitores a quem se dirige, um texto
científico está longe de ser "frio", de ser um mero relatório de
experiências e das conclusões às quais elas conduzem
racionalmente. É um dispositivo arriscado que expõe de uma só
vez e indissociavelmente os "fatos" e os leitores, propondo-lhes
papéis — crítico pertinente, autoridade incontestável, aliado,
rival infeliz — que ele procura fazer com que aceitem, numa
história que ele procura fazer passar pela diferença que
pretende ter conseguido criar.
Distinguir acontecimento e história, na verdade, é da
ordem da experiência de pensamento. Um cientista nunca está
só em seu laboratório, como se fosse um sujeito isolável. Seu
laboratório, como seus textos, como suas representações, são
povoados de referências não somente a todos aqueles que
podem questioná-los, mas também a todos aqueles para quem
poderiam fazer uma diferença. Como Pasteur concebe um
micróbio? Como escreveu Bruno Latour, "este novo ser mi-
croscópico é a um só tempo anti-Liebig (os fermentos são seres
vivos) e anti-Pouchet (eles não nascem espontaneamente)59".
Todavia Pasteur já prevê muitos outros significados possíveis,
muitas outras práticas em que seus micróbios poderiam fazer a
diferença. Nós efetivamente multiplicamos os modos de
intervenção dos micróbios em nossos saberes e em nossas
práticas, contudo a identidade científica desses micróbios
continua sendo a soma do que os autores conseguiram fazer
com que eles afirmassem contra outros autores.
FAZER EXISTIR
126 Construindo
"Os micróbios existem, Pasteur os descobriu." Eis o
enunciado para o qual se trata de dar um significado que não
6. infrinja a restrição leibniziana que me impus — não ferir os
127 Construind
o
teriam conseguido inventar os meios de forçar nosso interesse
pela América. É claro, o acontecimento remete então também a
nós. Sabe-se, por exemplo, que no começo do século XV o
imperador chinês Yung-lo enviou uma gigantesca frota a fim de
estabelecer relações diplomáticas com os reinos africanos, e
que, após sua morte, a iniciativa foi pura e simplesmente
abandonada. Para os chineses, senão para o imperador, um
acontecimento análogo ao da "descoberta da América" não
teve lugar. De que modo o "mundo exterior" existia para os
chineses?
Não é, portanto, num sentido absoluto, mas para a Europa
do final do século XV, que a viagem de Colombo pode ser
chamada "descoberta da América". Contudo a "América"
manifesta que ela "existia efetivamente" antes de Colombo pela
multiplicidade de recursos que para nós ela concentra, ou seja,
pela proliferação incontrolável das conseqüências de sua
"descoberta". Teólogos, soberanos, narradores, marinheiros,
mercadores, defensores dos índios, aventureiros, tem li-
teralmente para todo mundo. A América faz com que se aceite
que tenha sido "descoberta" não por uma adequação qualquer
entre as palavras que inventamos para dizê-la e o que
preexistia às nossas palavras, mas peta multiplicidade
transbordante das palavras, dos projetos, das vocações, dos
sonhos e das convicções que ela tem o poder de fazer existir.
Para o melhor e (sobretudo) para o pior, do ponto de vista de
seus habitantes.
Que outra definição pode-se dar da realidade a não ser
esta, de ter o poder de manter junto uma multiplicidade
heterogênea de práticas que, todas e cada uma, testemunham
de um modo diferente a existência daquilo que as mantém
unidas? Práticas humanas, mas também "práticas biológicas":
quem duvidasse da existência do Sol teria contra si não
somente o testemunho dos astrônomos e o de nossa expe-
riência cotidiana, como também o das nossas retinas, criadas
para detectar a luz, e o da clorofila dos vegetais, inventada
para captar-lhe a energia. É-nos, em contrapartida,
perfeitamente possível duvidar da existência do "Big Bang",
pois depõem em seu favor apenas alguns indícios que só têm
sentido para uma classe muito especial e homogênea de
especialistas científicos.
A paixão desses cosmólogos pode ser dita "fazer existir o
128 Construindo
Big Bang", ou seja, também poder falar dele em termos de
descoberta. Por isso, cabe-lhes tentar multiplicar os laços entre
o 6. Big Bang e os cientistas que não pertencem à sua própria
especialidade, como diz Latour, multiplicar os "aliados" do Big
Bang, aqueles para quem ele faz uma diferença, aqueles que
têm necessidade dele para-dar sentido à sua prática. Porque
importa menos o número que o caráter heterogêneo dos
aliados, quando se trata de "fazer existir". O número pode
expressar o efeito de moda, instável e inconstante. Se os
aliados pertencem a uma categoria homogênea, a estabilidade
da referência só depende de um único tipo de teste. A América
sustenta sua preexistência à descoberta de Colombo numa
multiplicidade de provas pelas quais a fizeram passar os que
definiram sua prática por referência a ela. A tarefa do cientista
de laboratório é mais trabalhosa, porque não se descobre a
América no fundo de uma proveta. Cria-se o mais das vezes um
fenômeno inédito. Localiza-se, por vezes, uma nova maneira de
se tratar um fenômeno bem conhecido, já sobrecarregado de
significados e base de práticas múltiplas. É por isso que é
necessário, o mais das vezes60, trabalhar para fazer existir um
ser científico novo, e a "descoberta" científica tem então por
condição uma história muito diferente da explosão quase
instantânea das conseqüências da descoberta da América, uma
história na qual os interesses devem ser mobilizados, isto é, ao
mesmo tempo estimulados e alinhados de tal sorte que esta-
beleçam vínculo entre um ser que eles determinam
unanimemente e a multiplicidade heterogênea dos locais em
que este ser está doravante ativamente implicado.
O paradoxo do modo de existência científico é que o
caráter penoso da construção não contradiz a busca do
"verdadeiramente verdadeiro"61. Com efeito, essa construção
129 Construind
o
é posta sob o signo do risco: os aliados, capazes de depor
em favor, na sua prática, da existência de um "ser
científico", não se deixarão recrutar "em nome da ciência"; é
necessário que a referência criada abra efetivamente sua
prática a novos possíveis. Este paradoxo é análogo àquele, já
ressaltado, do "artefato". É lóg ico, todos os fatos
experimentais são "artefatos", mas é precisamente por isso
que dão sentido aos testes cuja vocação é
130 Construindo
sua existência depende da multiplicação das histórias que têm
por traço comum o fato de remeterem a eles, de defini-los
6. como condição se não suficiente pelo menos necessária à
sua possibilidade.
MEDIADORES
131 Construind
o
a teoria de seu detrator) tem sobre um detector — uma simples
pena de galinha! Ridículo! Hobbes levanta um problema
fundamental de filosofia política e desejam refutar suas teorias
com uma pena no interior de um recipiente de vidro no interior
do castelo de Boyle!"10
A mediação científica difere da "descoberta da América"
no sentido de que ela consiste em um trabalho de
redistribuição e de redefinição que tem por protagonistas
atores submetidos ao princípio da "irredução": aquilo que a
mediação afirma, é preciso que ninguém possa remetê-lo ao
poder da ficção. O que significa, de modo correlato, que o
trabalho é também político, porque se trata de definir que
protagonistas poderiam, em sendo o caso, remeter a mediação
à ficção. "Em torno do trabalho da bomba reorganizam-se um
novo Boyle, uma nova natureza, uma nova teologia dos
milagres, uma nova sociabilidade científica, uma nova
sociedade que incluirá doravante o vácuo, os sábios e o
laboratório."11
A existência do vácuo, portanto, jamais foi "provada" no
sentido em que esta demonstração teria satisfeito os adeptos
do ideal de intersubjetívidade, de acordo entre os sujeitos
racionais capazes de se entender e chegar a um acordo estável
acerca de um problema, de uma situação ou de uma coisa. A
intersubjetívidade faz repousar sobre os sujeitos, sobre sua
"razão comunicativa", como diria Habermas, a possibilidade e o
dever do acordo. A intersubjetívidade implica elevar-se
132 Construindo
de Hobbes, nem ninguém, nos dias que correm, tenta
responder ao argumento kantiano quanto à impossibilidade de
6. tomar o universo por objeto de ciência. "Hobbes" e "Kant"
foram colocados diante de uma escolha drástica: ou bem eles
entram no laboratório — Hobbes descobre um detector
confiável para o seu vento de éter e os kantianos descobrem
uma maneira de contra-interpretar a radiação residual do corpo
negro — ou então eles se calam. A menos que protestem, à
maneira de Heidegger, que "a ciência não pensa".
A existência, no sentido científico do termo, tem muito
pouco a ver com a "intersubjetividade", com a ficção ideal de
protagonistas humanos fitando-se firmemente nos olhos uns
aos outros e conseguindo desentranhar juntos aquilo que os
une, valores, pressupostos, prioridades, acima de suas disputas
desde então secundárias. Os cientistas raramente se olham nos
olhos. De preferência dão-se as costas, cada qual em seu
laboratório, apressando-se em inventar meios para criar um
fato que cale o adversário. Suas discussões dificilmente se
elevam na direção de uma referência mais potente que aquela
que articula sua disputa63, e mergulham antes nos "detalhes"
aparentemente insignificantes, repentinamente reinventados
como capazes de fazer a diferença, capazes de constituir um
novo mediador.
Há entretanto grandes diferenças entre esses dois
mediadores que são o plano inclinado de Galileu e a "bomba a
ar" de Boyle, diferenças que permitem torná-los os dois
dispositivos tutelares da prática teórico-experimental.
O plano inclinado põe em cena um movimento bem
conhecido, aquele dos corpos que caem. Ele não "faz existir"
esse movimento dos corpos, mas o determina em sua nova
singularidade: é o movimento que, doravante, é identificado
como capaz de "dizer" como ele deve ser descrito, capaz de
impor uma articulação entre três conceitos distintos de
velocidade. Em contrapartida, a "bomba a ar", de seu lado, pro-
duz uma baixa da pressão atmosférica, que "faz existir" o
vácuo como ponto-limite, correspondente a uma bomba ideal,
mas não diz como o vácuo deve ser descrito. De resto, o plano
inclinado de Galileu pode fazer variar aquilo que ele define
como as variáveis do movimento, mas está preso ao
133 Construind
o
movimento de queda dos corpos pesados. A bomba a ar, de seu
lado, consiste na invenção de um instrumento científico, dis-
ponível para outras questões. Neste sentido, ela cria uma
prática que é a ancestral do que nós hoje denominamos de
físico-química ou a física fenomenológica. Ela não fornece as
razões do fenômeno que cria, mas pode estar incluída em todas
as situações em que a pressão, que ela institui enquanto
variável, pode intervir. Como variam a temperatura de
ebulição, o calor específico, a velocidade da reação, a relação
entre temperatura e dilatação etc., em função da variação da
pressão?
A esta diferença entre os dois acontecimentos de
mediação correspondem dois "estilos" distintos, que propõem
duas maneiras distintas de "contar" as relações entre os novos
protagonistas que o laboratório reúne e aqueles que, à sua
porta, reclamam justificações e demonstrações. Desse modo, a
história do plano inclinado de Galileu é o mais das vezes
narrada como o triunfo de uma conduta que encontraria sua
verdade numa filosofia mecanicista à Descartes. Na verdade,
Descartes absolutamente não gostara da física galileana1-', e a
"querela das forças vivas", que viria a ocupar a primeira
metade do século XVIII, oporá os herdeiros de Descartes aos de
Galileu, entre os quais Leibniz. O que não obsta a que o estilo
do acontecimento ga- lileano, inventado pelo próprio Galileu64,
encoraje uma leitura filo-
134 Construindo
os matters of fact, os fatos criados em laboratórios, têm de se
impor apesar dos argumentos racionais. Os laboratórios, nesse
6. caso, ao mesmo tempo se fecham, isto é, excluem aqueles
que não aceitam o "veredito dos fatos" e se organizam em
rede, quer dizer, entram numa história em que proliferarão as
utilizações da bomba, ou seja, as mediações entre o "vácuo" e
os fenômenos.
Observemos de passagem que as relações entre esses
dois dispositivos tutelares, o plano inclinado e a bomba, são
também matéria de história, desta vez com referência imediata
não à criação de diferenças entre cientistas e "não-cientistas",
e sim entre os próprios cientistas. Destarte, o acontecimento
"os átomos existem", que marca a física do começo do século,
celebra a diferença entre os físicos que vão "além dos
fenômenos" e aqueles que poderíamos chamar de "descen-
dentes de Boyle", que tiveram o demérito de se prender aos
matters of fact imediatamente observáveis e de recusar os
átomos por serem especulativos. Do mesmo modo que Galileu
coloca sua inovação sob o signo de Platão e Boyle coloca a sua
sob o signo do "fato", os físicos teóricos do século XX colocam a
diferença por eles criada entre física teórica e física
"fenomenológica" sob o signo da liberdade do espírito
alimentado pela fé na inteligibilidade do mundo15. Todavia, nem
Platão, nem o "veredicto dos fatos", nem a fé do físico permite
135 Construind
o
possibilidade para o historiador das idéias de falar em termos
de eterno retorno das "mesmas idéias". Foram antes
"capturados", redefinidos pela operação que os mobiliza a
serviço de uma nova história.
Uma derradeira diferença distingue o plano inclinado da
bomba a ar. O plano inclinado só persiste nos laboratórios
pedagógicos, porquanto seu depoimento está incluído nas
equações de física matemática, na própria definição do objeto
dinâmico. Por isso ninguém pode tratar do plano inclinado de
Galileu sem "voltar a ser Galileu", sem ser posto em presença
do dispositivo que impõe o modo de descrever o movimento
que o plano encena. A bomba a ar, por sua vez, não parou,
desde a época de Boyle, de se transformar. A partir do
momento em que o significado de seu depoimento foi aceito,
essa transformação pôde ser descrita como "aperfeiçoamento".
Falar de um progresso técnico a seu respeito, é dar-se o direito
de chamá-la "bomba a vácuo" e admitir que o vácuo que ela
determina, existe. Ela é doravante um habitante clássico de
todos os laboratórios onde a física e a química têm entrada
garantida, e todos estes laboratórios admitem a existência do
vácuo, pelo menos no sentido em que a bomba a define65.
A bomba a ar, assim que foi reconhecida como bomba a
vácuo, transformou-se no exemplo típico daquilo que Bruno
Latour chamou de "caixa preta"66: um dispositivo que
estabelece entre os dados que entram e os dados que saem
uma relação cuja significação nenhum cientista pensaria em
contestar porque ele deveria, assim agindo, opor- se a uma
multidão heterogênea de usuários satisfeitos e reescrever
capítulos inteiros de múltiplas disciplinas. Podemos nos servir
de uma bomba a vácuo estando na mais perfeita indiferença
tanto ao seu funcionamento quanto à sua pré-história. A maior
parte daqueles que a utilizam só conhecem seu modo de
utilização e se preocupam apenas com seu desempenho. Sua
própria evolução traduz essa vocação: distinção cada vez mais
clara entre o que diz respeito ao construtor, daqui por diante o
industrial, e ao usuário, cuja capacidade está limitada a alguns
manuseios ultra-simples e à leitura de um mostrador. Em
136 Construindo
outros termos, o dispositivo "bomba a vácuo" exprime uma
relação de força que parece, ou pelo menos se afirma,
6. praticamente irreversível. Ele qualifica seus usuários, sejam
QUESTÕES POLÍTICAS
137 Construind
o
,s Ver, Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, Entre le temps et
138 Construindo
"saída" dos laboratórios científicos. Quem quer que abra um
pacote de café e ouça um "pshhht" sabe que está lidando com
uma embalagem "a vácuo" e, queira ou não, depõe contra
Hobbes quanto ao poder da bomba de Boyle. A saída do
laboratório é um trabalho bastante diferente daquele que
produz a aliança ou a hierarquização dos laboratórios. Não se
trata mais de excluir, de selecionar os protagonistas, e sim de
incluir, de fazer existir o acontecimento para um máximo de
interessados, competentes e não competentes.
140 Construindo
econômicos, industriais ou políticos. O cientista que fizesse
valer tais interesses em lugar de um argumento "propriamente
científico", que manifesta a autonomia da ciência, seria acusa-
do. Um cientista que conseguir fazer convergir esses interesses
e os de sua disciplina, e além disso aproveitar plenamente os
recursos que essa convergência lhe confere, será reverenciado.
Com uma expressão como "conseguir fazer convergir",
ingressamos no domínio em que as ciências não podem mais
pretender definir, por si sós, o cenário em que são criadas suas
histórias e em que o cientista pode colocar um problema
político para a sociedade. É nessa perspectiva que deve em
particular ser colocada a questão da hierarquia usual entre os
cientistas, traduzida pelas possibilidades de publicação e de
financiamento, e retomada por Kuhn, que privilegia a "con-
vergência bem-sucedida" em que as categorias de uma
disciplina são aceitas como determinantes "fora de
laboratório"69. Voltaremos a esse assunto. Ressaltemos desde já
que esse problema longe de opor, aproxima a política da
ciência da política em seu sentido habitual: quer se trate da
hierarquia entre as ciências ou da maneira como as ciências
saem dos laboratórios, poderemos sempre nos perguntar se,
até onde se estende sua autoridade, o cientista realmente
pode, e deve encontrar os mais suscetíveis de pôr em perigo as
categorias em cujos termos sugere tratar um determinado
fenômeno. É igualmente desse ponto de vista, que une esses
dois "tipos" de política, que podem ser analisados certos
componentes do discurso sobre as ciências aos quais os
epistemólogos procuraram, em vão, conferir sentido.
Devem, por exemplo, ser tidos por operações políticas, que
visam assegurar um espaço de expansão sem risco, a
totalidade dos discursos metodológicos graças aos quais os
cientistas eliminam os rastros do acontecimento que lhes
credita autoridade. Galileu já havia declarado — discurso
platônico no qual Alexandre Koyré se baseou em demasia —
142 Construindo
Porém, quando se fala de informação genética, e se define o ser
vivo pelo seu "programa", trata-se de teoria.
Falar, como já o fiz, de ciências teórico-experimentais é
subentender que na prática das ciências modernas a produção
teórica é esperada e legítima. Ela não é, no entanto, o apanágio
de todo enunciado: pode ocorrer que uma relação
experimental, reconhecidamente confiável, torne-se um
instrumento de medição sem por isso revestir-se de significação
teórica determinada (caso dos espectros específicos de
absorção e de emissão dos elementos químicos antes de Bohr),
ou mesmo que ela receba seu significado de uma outra teoria
(caso dos "dados" químicos em química quântica)70. De resto,
ocorre com muita freqüência que enunciado e teoria, no sentido
que estou procurando definir, não sejam explicitamente
distintos. Muitos chamariam de teoria aquilo que eu considero
enunciado, outros identificariam no que eu chamo de teoria o
"núcleo duro" de um programa de pesquisa à Lakatos. Outros
ainda, caso se oponham a uma das proposições que eu
denomino teóricas, falarão de pretensões ideológicas
irracionais. O que a definição que eu apresento tem de
interessante é remeter a questão da teoria não a um problema
de estatuto epistemológico, mas às ciências como práticas
coletivas, e evitar toda oposição epistemológica entre uma
"verdadeira" teoria, legítima, e uma pretensão teórica
"ideológica".
Consoante minha definição, identifica-se uma teoria pelas
pretensões de seus representantes: estes pretendem que, em
tal ou qual caso notável, o fenômeno encenado pelo dispositivo
experimental não se limitou a oferecer um testemunho
fidedigno, e sim testemunhou a sua verdade. A bactéria
testemunhou que, enquanto ser vivo, sua verdade era ser
programada geneticamente. É então que o fenômeno deixa de
ser apenas uma testemunha fidedigna, e torna-se objeto no
sentido forte, o que significa que as categorias experimentais
perdem sua referência à demonstração experimental enquanto
prática, para tornarem- se categorias de avaliação, válidas por
princípio, independentemente do laboratório onde elas
poderiam ser postas à prova.
A produção de uma teoria, no sentido em que eu a defini
0PODER EM HISTÓRIAS
144 Construindo
Ressaltei igualmente a diferença entre "paradigma" e
"visão do mundo", orientada pelo reconhecimento das relações
de semelhança. Ora, a história das ciências nos obriga a
constatar, também nesse caso, a possibilidade de uma
transformação do paradigma em "visão do mundo",
caracterizada não pela capacidade de inventar problemas e sim
pela capacidade de desqualificá-los. Desse modo, se o
programa genético é a verdade do ser vivo, tese defendida por
Jacques Monod em Le hasard et la nécessité, o essencial é a
similitude entre uma bactéria, um elefante e um homem, todos
programados geneticamente. O que os distingue pode
certamente ser interessante, contudo deverá ser redefinido a
partir da noção de programa genético. A embriologia, ciência
comprometida com um traço que diferencia o elefante da
bactéria (não existe embrião de bactéria), tinha sido, na
primeira metade do século XX, uma ciência de ponta. Tornou-
se, com o triunfo da biologia molecular, um conjunto de
resultados empíricos, pouco confiáveis, à espera do momento
em que se conseguirá fazer com que os processos
embriológicos dêem testemunho de sua relação essencial com
a informação genética71.
Conferi, por fim, ao meu trabalho a ambição de retomar, a
propósito das ciências, o riso que foi de Diderot, capaz de
gostar de d'Alem- bert e de respeitá-lo sem por isso se deixar
impressionar por ele. O riso trocista de Feyerabend não pode
atingir do mesmo jeito Laplace, quando este anuncia que só
haverá um Newton porque só havia um universo a descobrir, e
Galileu ou Newton "no laboratório", inventando um modo de
questionar os fenômenos e sendo eles próprios inventados na
criação desta nova ligação. O tom profético dos leitores da
tecnociência, ao denunciar a redução da natureza a um
tratamento da informação, não é apropriado à paixão do
informático que deve, para inventar o modo pelo qual uma
situação pode tornar-se "tratável" por um computador, sofrer
um devir que o transforme em mediador, lugar de co-invenção
da situação e da linguagem. A "razão operatória" não tem o
mesmo sentido quando Jean Perrin anuncia "os átomos
existem, eu os posso contar", e quando Jean-Pierre Changeux
146 Construindo
como parasita ou complicação secundária73. Tal outra, por fim,
deve ser denunciada como parasita ou ideológica, ou não
objetiva, porque as questões que ela coloca, os testemunhos
que ela busca, se fossem levados a sério, poriam em causa o
objeto teórico, implicariam que alguns dos fenômenos que per-
tencem ao campo da teoria atestassem uma outra espécie de
verdade. Do ponto de vista de Jacques Monod, a noção de auto-
organização, criada pelos embriologistas, não era mais que uma
sobrevivência irracional de velhas doutrinas românticas.
Toda teoria afirma um poder social, um poder de julgar o
valor das práticas humanas, e nenhuma se impõe sem que, em
algum momento, o poder social, econômico ou político tenha
agido. Mas o fato de ele ter participado não é suficiente para
desqualificar a teoria. O passado que herdamos está saturado
de "boas questões" esquecidas em nome de pretensões
teóricas triunfantes, mas também de pretensões teóricas que,
contra toda expectativa moral, engendraram histórias fecundas.
O "crime" pode compensar no campo das ciências como em
outros campos. A distinção entre enunciado experimental e
teoria não nos transforma então em justiceiros, mas dá o direito
de nos interessarmos pelas estratégias científicas, no passado e
no presente. Uma teoria pode e deve ser avaliada segundo seu
alcance e os efeitos a que visa. Quem são aqueles que ela tem
intenção de reunir de maneira positiva, em nome de uma
convicção? Estão eles já reunidos por um dispositivo
experimental (alcance mínimo) ou encerram participantes de
áreas científicas em que esse dispositivo não produziu até
agora qualquer diferença? Paralelamente, que apelo as
pretensões teóricas fazem a temas gerais — progresso,
objetividade, ir além das aparências —, eles próprios indícios de
um apelo a um poder "social" (o público, aí incluídos os colegas
não implicados, sócios capitalistas etc.) para dobrar os céticos e
73 O fato de que a ciência dos engenheiros tenha sido
redefinida como "ciência aplicada" cujas bases teóricas são a
mecânica galileana, ou seja, tenha aceitado situar seus problemas
"à distância do ideal" que se constituiria num mundo sem atrito
(um mundo em que o engenheiro não teria como trabalhar), passa
por uma história institucional pesada (conflito entre os
"inventores" e a Academia de Ciências de Paris, no século XVIII,
criação da Escola Politécnica que se tornaria, após a Revolução, o
vetor da reorganização do ofício de engenheiro a serviço do
Estado).
148 Construindo
sume e unifica o conjunto dos conhecimentos sobre o mundo,
Quando se trata de fazer o público interessar-se pela mecânica
quântica, é evidentemente pelo gato de Schroedinger de
preferência ao átomo de hidrogênio que os vulgarizadores
passam.
Podemos rir do "gato de Schroedinger", e continuar nos
divertindo com a forma como aquilo que para Schroedinger era
a ilustração de uma insuficiência da teoria quântica (ela não dá
conta das propriedades do mundo observável, de que um gato
deve estar ou morto ou vivo), tornou-se símbolo da capacidade
que a mecânica quântica teria de pôr em causa as evidências
do senso comum. Mas dá para rir quando os médicos afirmam
que aquilo que, de momento, é obstáculo ao progresso da
medicina será um dia ultrapassado? Em nome do que se deve
chamar de uma "crença mobilizadora" — a fé num futuro em
que o corpo dará plena razão aos seus representantes racionais
e lhes permitirá varrer as pretensões dos charlatães a exemplo
da astronomia que permitiu varrer as pretensões dos astrólogos
—, que saberes e que práticas os médicos destroem ou
impedem que se invente? O riso não é suficiente, por certo,
mas é necessário. Sem ele podem articular- se impunemente a
força dos exemplos do passado e o jogo dos poderes que
constroem o futuro, um referindo-se ao outro para conferir a
este futuro a aparência de um destino.
MOBILIZAÇÃO
150 Construindo
cada um dentre eles um modo distinto de intervenção
experimental que faz variar a transmissão. Retroativamente
pode-se, é evidente, dizer que os átomos, as moléculas, a
transmissão genética, são condições dadas de nossa história,
mas eles só "fazem história" no sentido de referentes científicos
ao se tornar também condições para outras histórias,
transformando aquilo que devia ser explicado em um "caso" em
meio a uma variedade de casos.
Ora, a retórica que se apodera do acontecimento consagra
o poder da redução. Os processos físico-químicos podem ser
reduzidos ao jogo dos átomos enumeráveis; a biologia
molecular reduziu a hereditariedade à transmissão de uma
informação codificada nas moléculas de DNA. Esta retórica
modifica o significado da "explicação". Não se trata mais de
"ex"-plicar no sentido de "fazer sair" daquilo a que nos
referimos, mas também aquilo, e ainda aquiloutro — várias
"conseqüências" que testemunham por sua vez a existência do
referente. Trata-se de afirmar que este referente tem o poder
geral de reconduzir a diversidade ao mesmo. Passa assim em
brancas nuvens o fato de que a diversidade "explicada"
normalmente não preexistia à explicação, que ela é menos
conquista do que produto de uma invenção prática que vem se
somar a outras práticas.
O contraste entre a proliferação de novos possíveis que o
acontecimento suscita e que lhe confere seu significado e seu
alcance, de um lado, e a retórica reducionista que nela se
apoia, de outro, não é nem necessário nem insignificante.
Traduz uma encenação que faz da diversidade inventada-
explicada o garante da redutibilidade geral de um campo
fenomênico a investir. Encenação mobilizadora que identifica ao
mesmo tempo o exército conquistador e a paisagem definida
como disponível para sua conquista. Em outros termos, a
encenação não é apenas retórica, mas também não pode ser
identificada com uma conseqüência inelutável da política
constitutiva das ciências. Ela constitui uma forma de
organização política particular, da qual é preciso aprender a rir
para aprender a lhe resistir, se for o caso.
Mobilização quer dizer colocação em disponibilidade da
paisagem cujas características são negadas ou identificadas
exclusivamente do ponto de vista do obstáculo por elas
constituído com relação ao ideal de uma paisagem homogênea
152 Construindo
significados múltiplos, que impede uma adesão sem volta a um
deles, a sensibilidade para o fato de que outros interesses são
dirigidos e dirigem-se sempre àquilo com que lidamos, que "in-
troduz o mundo entre nós e nós".
Pode-se perguntar se esta forma de mobilização não está
em declínio, pelo menos em certas disciplinas. A noção de
ciência normal implica com efeito uma certa lentidão, uma
estabilidade relativa dos juízos, que constitui uma norma para
muitas gerações de cientistas. Ela implica igualmente o
acontecimento, que alinha os interesses, mas cria uma
diferença, incômoda do ponto de vista da mobilização ven-
cedora, entre os campos em que a medida tem um significado
e uma relevância, e aqueles em que ela é uma correlação
empírica disponível para múltiplas interpretações. Com efeito, a
velocidade com a qual são propostos hoje novos instrumentos
técnicos que tornam os anteriores obsoletos cria uma forma de
mobilização que, doravante, não tem mais nem necessidade
nem tempo de forjar um paradigma. Encontrar os meios de
adquirir o instrumento mais recente a fim de permanecer na
corrida, isto é, ter acesso às publicações em que são
obrigatórios os tipos de dados que ele produz, constitui em
muitos laboratórios contemporâneos uma palavra de ordem
suficiente para alinhar os interesses, sem constituí-los porém
em herdeiros do acontecimento, sem que este os suscite,
habitantes de um território balizado por convicções e práticas
que o consagram.
Há uma grande diferença entre a mobilização
paradigmática e a mobilização somente pela velocidade da
inovação técnica. A primeira dispõe do tempo — no duplo
sentido da oportunidade consubstanciada no acontecimento e
da temporalidade própria à invenção de suas conseqüências —
necessário para construir uma representação que podemos
dizer "territorial", pois ela permite fazer a diferença entre o
interior e o exterior, contar a história da fundação e a
constituição dos fundamentos, construir a dinâmica dupla do
saber "puro", autorizado pelo paradigma, e de seus
subprodutos, que testemunham sua fecundidade. A segunda é
vivida por muitos cientistas no modo da insatisfação, da
nostalgia e de uma nova sensibilidade à vulnerabilidade: dados,
correlações altamente sofisticadas se acumulam, mas ninguém
tem verdadeiramente tempo de nelas pensar; a diferença entre
154 Construindo
confrontados com a precariedade deste contra-poder, mas
pode-se compreendê-la sem compartilhar por isso de sua
nostalgia. Pois a construção de disciplinas territoriais
normatizadas por um paradigma é inseparável da imagem de
uma conquista redutora que afirma a disponibilidade de direito
daquilo que se trata de investir. Os grandes relatos
mobilizadores sempre definiram o progresso pelo modo da
assimetria, poder daquele que se adianta em nome da ciência,
desprezo pelas "opiniões" daqueles que ocupam o terreno a ser
dominado. Eles sempre omitiram o fato de que, na maior parte
do tempo, não somente as zonas em que se investiu não eram
virgens, mas os saberes locais, longe de se terem tornado
obsoletos, permitiram guiar a criação de novas pertinências,
retroativamente descritas como deduções autorizadas pelo
paradigma.
Para adotar uma imagem lingüística, o paradigma afirma a
unanimidade dos fenômenos que falam a mesma língua,
contudo esta língua é enriquecida clandestinamente por
coerções locais, que não constam do dicionário oficial, e que é
preciso aprender in loco. Tomando-se uma imagem geográfica,
o paradigma afirma a homogeneidade da paisagem, mas cala-
se quanto à existência de estreitos e fendas pelos caminhos
que ligam as diferentes regiões, e cala-se, no relato de viagem
oficial, a respeito da ajuda local sem a qual o viajante que
chega não teria podido improvisar-inventar um modo de
O OFÍCIO DO CHEFE
156 Construindo
então ser capaz de mobilizar, confederar e representar o
conjunto dos hormônios que testemunham a existência de um
"cérebro úmido" aí onde o "cérebro seco" dos circuitos
neurônicos predomina. Em resumo, nós não sabemos "o que é"
a pandorina e como se contará a história de sua "descoberta", e
é a esse problema que são dedicadas as energias do chefe, que
irá passar a semana a viajar, a negociar, a tomar a palavra, a
prometer, a intrigar.
Há em especial um colega muito promissor, porque ele
desenvolve um aparelho que permite visualizar traços de
pandorina no cérebro de ratos. O aparelho é um protótipo e o
pesquisador precisa da ajuda do chefe para interessar a
indústria, mas se a indústria se interessasse, o aparelho
poderia, rapidamente, tornar-se uma "caixa preta", tanto mais
indispensável nos laboratórios que os referees dos jornais espe-
cializados poderiam exigir que toda pesquisa neuroquímica
digna desse nome coloque o problema da taxa de pandorina
secretada por cada regime de funcionamento cerebral
estudado, e torne portanto possível a multiplicação de seus
atributos. Logo surge também a questão dos comitês de leitura:
a revista Endocrinology não reconheceu ainda a nova
especialidade; "bons" artigos foram rejeitados pelos referees
que nada conhecem do assunto. A Academia Nacional de
Ciências deveria igualmente reconhecer uma sub-seção, sem o
quê os participantes da nova disciplina permanecerão dispersos
entre a fisiologia e a neurologia, E na própria Universidade, um
novo curso deveria atrair jovens brilhantes para essa disciplina
em plena expansão.
O chefe é de origem francesa, e a França, preocupada em
compartilhar do prestígio deste filho expatriado, a quem a
Sorbonne acaba de outorgar um doutorado honoris causa, não
deveria fazer um gesto, abrandar os regulamentos da política
científica para favorecer a criação de um laboratório bem
francês, especializado na pesquisa dos peptídeos do cérebro? Já
nos Estados Unidos o presidente é submetido às pressões dos
representantes dos diabéticos que aguardam o progresso
espetacular anunciado pelo chefe: eles se fazem seus aliados
para exigir que lhe seja concedida a prioridade e que seja
amenizado o "obstáculo" da "papelada" implicada por eventuais
testes clínicos. Outros testes que dizem respeito aos
esquizofrênicos já estão sendo discutidos. E, é claro, o chefe
158 Construindo
dela"79.
O chefe é coagido a se interessar pelo mundo, a
transformá-lo, para que esse mundo faça a sua molécula
existir. Ele faz o que deve fazer se deseja ver a pandorina
existir, e o faz com grande talento. Nossos pesquisadores nem
sempre são coroinhas ingênuos, e aqueles cujos nomes
guardamos deram prova, o mais das vezes, e por razões
evidentes, de tremenda capacidade estratégica. Porém essa
própria capacidade remete às estratificações desse mundo
onde coexistem interlocutores bem distintos. Com uns, as
negociações serão "duras" — os laboratórios industriais, em
particular, não se deixarão dobrar. Com outros, o jornal
Endocrinology, a Academia ou a Universidade, trata-se de or-
ganizar uma atividade de lobbying. Outros ainda, os
representantes dos diabéticos, são utilizados como alavanca: o
sofrimento dos doentes é um argumento temível e quando os
próprios enfermos são recrutados em nome da esperança, as
decisões podem elevar-se "ao nível mais alto", pondo em curto-
circuito as redes usuais em que se negociam as prioridades da
pesquisa. Os jornalistas devem ser mantidos em seu lugar:
devem divulgar a notícia da futura revolução sem no entanto
esquecer que o chefe é um cientista desinteressado, que os
colocou em guarda contra todo sensacionalismo. Enfim, todos
aqueles que, de uma maneira ou outra, estão interessados na
subjetividade humana devem saber que o progresso da ciência
vai varrer as falsas diferenças entre "ciência de laboratório" e
"ciências humanas". A psicanálise é ritualmente levada ao
cadafalso e São João da Cruz anuncia que não é mais somente
a inteligência que será investida, mas também a vida
emocional. As pretensões do chefe não acarretarão, neste
último caso, a necessidade de qualquer teste. Não tem por
objetivo reunir seus colegas em torno de um místico em êxtase
que se tornou testemunha fidedigna da pandorina que nele
age, e sim inquietar, aparecer, como Jean-Pierre Chan- geux e
tantos outros, no papel de representante do laboratório, amea-
çador, escandaloso, cujo avanço reducionista é autenticado
pelos protestos dos representantes de saberes fadados a
desaparecer.
A singularidade do chefe remete menos a uma identidade
da ciência do que à liberdade com a qual ele pode construir o
triplo campo em nome do qual transforma o mundo: a
160 Construindo
outros ainda por crenças, temores e esperanças a serem
alimentados. Paralelamente, os diferentes atributos da
pandorina se constroem segundo diferentes coerções: os que a
ligam aos aliados exigentes serão eventualmente conquistados
ao preço de contínuas remodelações que a farão existir de um
modo que o chefe se sabe incapaz de prever; em contrapartida,
a pandorina saída do laboratório, "nua" mas desde já
interessante graças ao chefe, é em si mesma suficiente para
começar as operações de reorganização disciplinar e para
funcionar como máquina de guerra reducionista, que pretende
reunir em si uma multiplicidade de traços disponíveis pois que
do âmbito de saberes ou práticas que a ciência de laboratório
define como destinados por princípio à redução.
Além disso, os aliados exigentes do chefe têm todo
interesse em participar desta construção assimétrica. A
rentabilidade econômica do futuro detector depende dessa
assimetria, assim como a reputação da nova geração de
medicamentos que, um dia, talvez apareça no mercado. A
exemplo do chefe, esses aliados têm por preocupação primeira
"fazer existir", mas a existência, nesse caso, depende de outros
testes, que incluem as restrições legais, comerciais,
econômicas, e implicam uma instância que, oficialmente, não
intervém nas controvérsias científicas: o público que deve ser
tornado consumidor. Porém é uma diferença que procura ser
elidida. Melhor respeitar e alimentar a tese segundo a qual a
indústria é aqui um simples intermediário que concretiza os
subprodutos benéficos da pesquisa fundamental, visto que, em
nome dessa tese, o chefe captura o interesse do público,
impressiona os médicos que prescrevem, induz a demanda
pelos doentes, em suma, cria o mercado...
A pandorina é uma ficção e toda semelhança com a
maneira pela qual os verdadeiros cientistas, por exemplo
aqueles que trabalham na decodificação do genoma humano,
saem de seus laboratórios, é mera coincidência.
POLÍTICA DE REDES
162 Construindo
transforma o rizoma80 em árvore: cada ramo "se explica" por
sua relação com outro, mais próximo do tronco ou mesmo das
raízes, ou seja, do lugar — ocupado por uma "lógica" senão por
atores — a partir do qual todo o resto pode ser denunciado
como fantoche, agindo além de suas intenções e de seus
projetos. O "chefe", é claro, não sabe o que ele põe em
movimento, como tampouco os pesquisadores que, para
alimentar suas pesquisas, nutrem o público de esperança num
futuro em que as "doenças genéticas" serão curáveis. Porém
ele faz tudo o que pode, dados os graus de liberdade de que
dispõe, e não existe o além a partir do qual o que para ele é
iniciativa poderia tornar-se dedutível.
Entretanto, é difícil pôr, como às vezes Jamais fomos
modernos parece nos convidar a fazer, o "erro dos
epistemólogos" em lugar do poder no papel de grande
responsável por tudo aquilo que não funciona, Certamente,
epistemólogos, filósofos e outros pensadores da política e do
campo social, destacam-se pelo seu desprezo pelos híbridos,
pela assimilação dos mediadores a intermediários que transfere
para a sociedade e/ou a natureza a explicação desses
elementos. Mas o "erro" não deve ser mais denunciado que o
poder. O erro nada explica, exceto como produto da rede,
característico do estilo de rede próprio à nossa época e do
problema político que ele coloca.
Seria culpa do epistemólogo, se a maior parte dos
cientistas fala diversas línguas, a que reservam aos seus
colegas, a que destinam aos seus sócios capitalistas potenciais,
aquela que empregam quando se di- rigem ao "público",
definido como incompetente? Seria culpa do filósofo, se ele
aprendeu nos bancos escolares que a ciência desvendaria "leis"
que caracterizam "objetivamente" os fenômenos e que sua
tarefa, dele filósofo, seria a de tentar refletir sobre esta
situação? Seria culpa do sociólogo ou do politólogo, se as
inovações sócio-técni- cas ou as decisões que eles comentam
são sempre apresentadas sob o signo de uma separabilidade
entre o que é — as coerções que é preciso racionalmente levar
em conta — e o que deve ser — a escolha que resta entre essas
possíveis pré-coerções? É lógico, pode-se reprovar neles uma
certa preguiça, um certo conformismo, um respeito mal dire-
cionado. Mas cabe pensar a rede enquanto ela suscita, em
certos aspectos, a necessidade heróica de não se ser nem
164 Construindo
impotência81.
Éclaro, acontece com freqüência nos "enganarmos".
Aqueles que, por exemplo, desejam ressaltar que os
consumidores não são impotentes, submetidos ao poder da
oferta, podem contar numerosas histórias de produtos
recusados ou desviados de seus fins pelos consumidores, de
estratégias comerciais que precisaram ser redefinidas, de
pedidos imprevistos a serem satisfeitos com urgência. A
questão política, da diferença entre os atores qualificados e os
outros, não implica a onipotência dos primeiros, a passividade
submissa dos segundos. Ela se exprime em palavras que
enunciam esse tipo de situação: o público é imprevisível, suas
reações sempre nos surpreenderão. Essas palavras pertencem
ao repertório que comentaria com igual pertinência os fe-
nômenos meteorológicos. Estabelecem a distinção entre os
que, ativamente, buscam prever, determinar as variáveis
pertinentes, articulá- las segundo as coerções que tornam
decidível o que restará como ficção e o que experimentará as
possibilidades de existir de um lado, e, de outro, aqueles que,
por suas reações, refutarão ou confirmarão os cálculos de que
foram objeto.
O poder não está "para além" da rede, qual uma verdade
que nos pouparia de ter de acompanhar a construção de
ramificações e permitiria deduzi-la. Mas ele qualifica a rede e
estabelece seus limites, ou seja, os pontos onde a noção de
interesse muda de sentido, onde cessamos de nos dirigir aos
protagonistas que se trata de conseguir interessar e onde
começam as estratégias que pressupõem que o interesse possa
"ser comandado", ou, pelo menos, ser tratado como tal, por
conta e risco dos estrategistas. Esses pontos são numerosos e
traçam fronteiras que se sobrepõem, que devem elas próprias
ser mapeadas. Elas não cortam na metade, mas criam
desníveis. Elas são assinaladas sempre que surge, na qualidade
de referentes de uma relação entre duas posições, uma
instância à qual se atribui o poder — salvo dificuldades de
determinar seus próprios efeitos, e um mundo potencialmente
disponível — salvo resistências — ao desdobramento desses
efeitos.
A hierarquia da paisagem dos conhecimentos científicos, o
papel de modelo da conduta teórico-experimental como
também as estratégias de mobilização, que não cessam de
166 Construindo
laboratório", na paisagem das práticas humanas, prevalece a
mesma estratégia mobilizadora que na paisagem dos saberes, a
desqualificação daquilo que é considerado "obstáculo", o
privilégio sistematicamente concedido àquilo que permite
afirmar o poder de uma conduta?
Cabe lembrar aqui, a título emblemático, aquele fim do
século XIII em que Étienne Tempier proclamou, em nome da
onipotência divina, o poder invencível da ficção. Quem falava
pela sua boca? Uma Igreja preocupada em recriar os
instrumentos de sua autoridade face à autoridade rival dos
saberes pagãos, sem dúvida. Mas esses próprios instrumentos,
como compreendê-los? Assim como, segundo Deleuze e
Guattari, a filosofia não era amiga da cidade grega onde
nasceu, assim como a ciência não o é do capitalismo, a Igreja
de Tempier não era amiga dos mercadores que, à época,
aprendiam a definir o mundo não mais por referência a uma
ordem inteligível, mas por referência ao possível: mundo
transformável, campo de manobra e de especulação.
Se a referência à "ciência moderna" nasce, como tentei
mostrar, da invenção dos meios para contornar a proibição de
Tempier, ela o faz não na perspectiva de uma "volta atrás" em
direção a um mundo capaz de impor suas razões, e sim pela
descoberta de que o poder da ficção, a invenção do laboratório,
pode ser voltado contra o arbitrário da ficção. Porém a
proibição contornada pode se achar por isso mesmo reforçada:
pode ser do interesse das ciências remeter ao arbitrário da
ficção tudo o que não é ciência. Cabe portanto pensar em
termos de conivência a definição de um "mundo disponível para
a ficção" que parece reunir as práticas mercantilistas, depois
capitalistas, e as práticas científicas. Não há entre os dois tipos
de prática, uma identidade oculta, que transformaria sua
cumplicidade em destino, mas uma convergência relativa de
interesses que coloca um problema político que pode receber
soluções bem diferentes.
A priori, nada impede de imaginar cientistas conscientes
do fato de que, ao mudar de meio, ao não se dirigir mais a
colegas, ao participar da invenção de inovações
irredutivelmente técnicas e sociais, devem igualmente mudar
de estilo "ético-estético-etológico". Pois tudo muda quando se
sai do laboratório, lugar onde os fenômenos são inventados
como testemunhas fidedignas, capazes de fazer a diferença
168 Construindo
para o qual o risco aponta82. Mas os cientistas que soubessem
que ao sair do laboratório mudam de meio e devem mudar de
prática não esperariam que a lei os obrigasse a não ignorar o
que seus laboratórios eliminam. Saberiam que o estilo que
convém aos riscos do teste, a invenção dos meios para purificar
uma situação de modo a constituí-la em testemunha fidedigna,
muda de sentido quando se trata de escolhas relativas a
situações irremediavelmente concretas, onde as palavras, se
não nos acautelarmos, têm o poder de desqualificar, de fazer
calar, de ratificar os amálgamas e as confusões, ou seja
funcionar como slogans.
Esses cientistas definiriam como "racional" a necessidade
de que, a propósito de um problema "fora de laboratório", todos
os que são suscetíveis de representar e de fazer valer as
dimensões desse problema, que eles próprios não levam em
conta, sejam sistematicamente procurados e reunidos. Eles
avaliariam que é de sua responsabilidade científica, ética e
política afirmar o caráter seletivo de seu saber e exigir que
sejam reunidos todos os que podem contribuir para a invenção
de um modo pertinente de colocar o problema. Saberiam
também que devem, assim agindo, lutar contra as ficções do
poder, contra os juízos que desqualificam certos interesses,
constituem-nos em obstáculos obscurantistas ou em
170 Construindo
procriação artifical84. Daniel Cohen, diretor do programa
Genethon, desqualifica hoje como "irracionais" as preocupações
do mesmo Jacques Testart quanto às conseqüências sociais,
políticas e subjetivas dos métodos de diagnóstico genético e
opõe às questões colocadas pelos pesquisadores em ciências
humanas a distinção entre aqueles que se dedicam a fazer a
doença recuar, a aliviar os sofrimentos e aqueles que
complicam seus esforços em virtude de receios obscurantistas.
172 Propondo
insuficientes, e essa insuficiência se expressa por uma
conseqüência bastante deplorável do ponto de vista político.
Tenho centrado, com efeito, minha descrição nas práticas
teórico-experimentais, como se a definição da singularidade
da ciência, inventar os meios de fazer a diferença entre
ficções, se confundisse com a produção das testemunhas fi-
dedignas criadas pelos laboratórios. A conseqüência
deplorável é a aparente impossibilidade de se dirigir aos
cientistas de outro modo senão do ponto de vista de sua
vulnerabilidade em relação ao poder. Teriam de impor limites
à sua paixão por "fazer existir", e reconhecer suas
responsabilidades na escolha dos aliados que lhes oferecem
os meios para esta paixão.
Nunca é bom definir um grupo por uma contradição
entre seus interesses imediatos e exigências éticas e políticas
às quais deveria se submeter. A cena é excessivamente
dramática e não se presta a risos. Em contrapartida, é
interessante transformar uma contradição aparente em
tensão, já habitando o grupo em questão, suscitando em seu
seio interesses divergentes. Certos aspectos da exigência
ética ou política são então suscetíveis de se tornar questões
internas, vetores de invenção e não motivos de
autolimitação.
Outras conseqüências lamentáveis decorrem ainda da
quase-iden- tidade entre ciência e ciência teórico-
experimental que, na verdade, até aqui aceitei. Poderíamos
ser tentados a utilizá-la para solucionar de uma vez por todas
a questão do alcance das ciências e de sua autoridade.
Diríamos que só existe ciência ali onde se pôde inventar o
dispositivo capaz de calar os rivais, de criar uma situação de
teste em que se põe em jogo o poder de representar. Esta
definição possível da ciência é tanto mais aceitável por
muitos dos praticantes das ciências teórico- experimentais
que ela congela a oposição entre "ciência" e "simples
opinião" que pressupõe a encenação experimental. Para além
174 Propondo
perspectiva por mim proposta, a atividade científica integra
uma forma de polêmica e de rivalidade, promove um
"compromisso" que liga interesse, verdade e história de um
modo que não é nem o dos saberes tradicionais, nem aquele
tradicionalmente vinculado à imagem feminina, toda doçura,
conciliação, respeito pelos sentimentos do outro, confiança
numa intuição frágil mas profunda. Por isso ressaltei o
interesse da proposição de Sandra Harding, que associa a
luta do movimento feminista ao contraste entre a atividade
apaixonada de Newton e Galileu, de um lado, e os discursos
sobre o método e a objetividade, que se apoiam na sua
autoridade, de outro. Se a imagem "antipolêmica" da mulher
devesse ser verídica, ela teria por conseqüência a auto-
exclusão das "verdadeiras mulheres", aquelas que
corresponderiam a essa imagem, do conjunto dos herdeiros
do acontecimento "criação das ciências modernas", que
estaria então associada a uma concepção "viril" da verdade.
Porém, em compensação, minha posição me compromete.
Terei que mostrar que a singularidade que proponho para as
"ciências modernas" separa efetivamente verdade e poder e
não ratifica a tese da "grande divisão" em nome da qual nós
reconhecemos que, infelizmente, os saberes tradicionais
estão condenados, por desequilíbrio de forças, pela simples
existência de saberes modernos.
O desafio a que me proponho, separar ciência e poder,
sem no entanto separar ciência de polêmica, pode se repetir
na linguagem que distingue o sujeito do objeto. A concepção
clássica do sujeito e do objeto é o resultado de uma divisão
polêmica. O sujeito "livre" é aquele que se depurou da
opinião de uma vez por todas. Ele sabe que só lida com
objetos, cujo modo de existência é absolutamente diferente
do seu. Sabe como se relacionar com esses objetos, no
sentido em que essa relação nada tem de comum com a
maneira pela qual se relaciona a um outro sujeito. De uma
forma ou outra, o poder, a iniciativa, o problema estão do
176 Propondo
eliminada88. A questão de saber quem deve se submeter à
prova perma-
178 Propondo
paralelamente, ficar explicitamente vinculado às escolhas de
um autor. Diversos modelos, definidos por distintas
variáveis, podem coexistir sem problemas para um mesmo
fenômeno, cada qual tendo sua zona de validade
privilegiada, ou suas vantagens específicas.
Como compreender, nos termos que nós introduzimos,
a utilização dos modelos? Os modelos dizem
espontaneamente que são ficções, a serem tratadas como
tais. Contudo constituem também uma maneira de pôr à
prova as ficções que não têm por alvo a eliminação dos
rivais, e sim o controle e a explicitação das conseqüências.
Desse modo, Ere- whon de Samuel Butler pode ser
considerado como um modelo. Considere-se a hipótese de
uma inversão de nossas categorias quanto àqueles que
convém ajudar e àqueles que vale a pena condenar. Em que
isto resulta? O que irá variar e o que permanecerá invariante
na sociedade, ou mais precisamente na sociedade vitoriana
como Butler a concebe?
Desde a Idade Média, esse uso regrado, exploratório, da
ficção descobriu nas matemáticas um instrumento
privilegiado. Considere- se a caridade uma grandeza
"uniformemente disforme" (variando de maneira linear em
relação a uma variável extensiva, no caso, o tempo). O que
se pode concluir dessa definição? O que ela permite "salvar",
quer dizer, reproduzir enquanto conseqüência, dentre todos
os enunciados sobre a caridade que possamos defender?
É sem dúvida para se diferenciar desta utilização da
matemática que Galileu se preocupou tanto em salientar que
sua definição matemática do movimento uniformemente
acelerado não era uma ficção devida a um autor. O
fenômeno que ele inventou é capaz de calar as contra-
interpretações, porque ele é praticamente definido em
termos de variáveis que permitem a um só tempo descrevê-
lo e controlá-lo: são as variações pelas quais ele responde às
mudanças de valor dessas variáveis que confirmam a
legitimidade daquele que o representa. Nesse sentido, a
ligação entre representação matemática e representação
experimental é um mistério pouco profundo. Toda vez que se
cria uma "testemunha fidedigna", capaz de definir seu
representante, institui- se igualmente uma representação de
180 Propondo
versátil, capaz de engendrar todas as evoluções possíveis.
As simulações em computador não propõem apenas o
advento do uso ficcional da matemática, elas subvertem
igualmente a hierar- quia entre o fenômeno depurado,
correlato da inteligibilidade ideal inventada pela
representação experimental, e as complicações anedóticas.
De fato, a simulação coloca no mesmo nível aquilo que ela
leva em consideração: as "leis" tornam-se coerções cujos
efeitos não apresentam qualquer interesse
independentemente das circunstâncias que fazem de cada
simulação um novo caso. Além do mais, a definição de "caso"
só guarda da representação matemática a coerção de uma
definição precisa, formalizável, das relações, e não
obrigatoriamente a de uma definição das variáveis que
correspondam à possibilidade de se colocá-la sob controle
experimental. A arte do simulador é a do roteirista: colocar
em cena uma multiplicidade heterogênea90 de elementos,
definir de um modo que é o do "se... então..." temporal,
narrativo, a maneira como esses elementos atuam juntos,
depois acompanhar as histórias que essa matriz narrativa é
capaz de originar. São essas histórias que põem a matriz à
prova, e fazem da simulação uma experimentação sobre
nossos enunciados. Elas os "colocam em prática" sem nos
conceder a oportunidade de intervir, de retificar a narrativa
na direção do que nós desejamos ou consideramos plausível.
Em outros termos, o traço característico da linguagem
matemática, o fato que os enunciados comprometem,
estende-se, aqui, ao conjunto das descrições que nós
imaginamos ser a "explicação" de um processo e as põe à
prova: a explicação, expressa na forma de um programa que
irá desdobrar suas conseqüências, pode revelar que ela
certamente implicava aquilo que tinha por meta, mas talvez
também, em circunstâncias ligeiramente diferentes, um
processo bem distinto, e mesmo, se a "dinâmica" à qual
corresponde for caótica, ser praticamente qualquer coisa.
Se a simulação põe em contato sob um modo novo,
experimental, a descrição, a explicação e a ficção, e isto em
todos os campos em que um autor crê poder propor "razões"
182 Propondo
Bastante significativo, por exemplo, é o surgimento
recente de um campo chamado artificial life. Criar a vida
artificial era o sonho do experimentador, a demonstração do
poder conquistado pelo ser humano sobre suas próprias
condições de engendramento. Ora, esse campo agrupa hoje
uma multidão heterogênea de cientistas, todos aqueles que
conseguem, graças às recentes técnicas (robótica, simulação
em computador), capturar e reproduzir algum traço de ser
vivo. Não mais se trata de reduzir, mas de fazer proliferar, e,
paralelamente, as alianças não passam mais pela "cúpula":
nenhuma disciplina é rainha, terra prometida onde a vida se
tornará objeto de ciência. Os robóticos e simuladores
interessam-se profundamente pelo que os etólogos sabem
sobre tal traço de comportamento, próprio a tal espécie, em
tais condições. O artifício faz existir, e para fazê-lo tem
necessidade de uma descrição perspicaz daquilo que o
desafia, mas ele não procura demonstrar. Ele põe,
entretanto, à prova as ficções simplistas que servem de base
à grande perspectiva de uma vida cujo segredo poderia ser
desvendado, pondo à prova as relações entre explicação e
delegação: "Se de fato 'para se fazer isso, basta...', construa-
me aquilo que, por sua atividade, 'fará' o que você acredita
ter explicado".
OS HERDEIROS DE D AR WIN
1 La vie est belle, Paris, Le Seuil, 1991 [ed. bras.: São Paulo,
91 Quand les poules auront des dents, Paris, Fayard, 1984 [ed.
bras.: Sâo Paulo, Paz e Terra, 1992].
184 Propondo
ciência. Os cria- cionistas americanos não se enganam ao
atacá-la e não mais a astronomia, como fez a Igreja à época
de Galileu. Que "teoria" os darwi- nianos hão de acrescentar
ao seu ativo, que poderia dar crédito a sua capacidade de
julgar, de diferenciar o essencial do anedótico num episódio
da evolução? Os grandes conceitos aparentemente
explicativos — adaptação, sobrevivência dos mais aptos etc.
— não se revelariam vazios de poder explicativo a priori',
simples palavras que comentam uma história depois desta
ter sido reconstituída?
Avaliada a partir das questões tradicionais suscitadas
pela diferença entre os seres vivos e os não-vivos, a resposta
darwiniana também se mostra fraca. Quantos críticos não
retomaram o problema do olho: como um processo acidental
como aquele que Darwin invoca pode produzir um dispositivo
como o olho, quando se sabe que o menor defeito faz esse
órgão perder toda utilidade? O olho representa pór
excelência a concepção "tecno-social" do ser vivo. Exige que
seja definido como instrumento, meio com vistas a um fim. O
olho é feito para ver. Clama por uma concepção do ser vivo
que encarnaria o ideal de uma sociedade regida por uma
divisão harmoniosa do trabalho. Cada órgão, à maneira do
olho, faz o que tem de ser feito pelo bem maior do
organismo, e este confere portanto sua inteligibilidade final
às suas partes. Como não exigir uma forma de poder finalista
para dar conta dessa harmonia?
Existem, entre os herdeiros de Darwin, biólogos que
aceitam o desafio tal qual se apresenta. São os assim
chamados neo-darwinianos, que conferem à seleção
darwiniana um poder tão completo que ela pode assumir o
lugar do grande Arquiteto que teria planejado o organismo
tendo em vista seus interesses bem concebidos. Seja qual for
a característica de qualquer ser vivo, sua razão de ser é a
seleção, agindo no seio da variedade fecunda dos mutantes.
Gould batizou essa forma de darwinismo de "adaptacionismo
panglossianò". "Tudo vai bem no melhor dos mundos",
repetia o doutor Pangloss a Cândido. Toda característica do
ser vivo deve ser ou ter sido útil, porque é sua utilidade que
explica a seleção, dizem os neo-darwinianos92.
92 Ver o arcigo doravante clássico de Stephen J. Gould e
186 Propondo
biólogo perde o poder de julgar e deve aprender a narrar.
Entramos aqui numa problemática própria às ciências de
campo, que as distingue das ciências de laboratório.
Encontra-se, na prática de "campo", nas profundezas do
oceano, nos museus onde são examinados os fósseis
recolhidos, nas florestas onde as amostras são colhidas,
tantos instrumentos sofisticados quanto num laboratório
experimental, a mesma invenção no que concerne ao
significado de uma medida. Porém não se encontram
dispositivos experimentais no sentido galileano, que
conferem ao cientista o poder de pôr em cena sua própria
questão, ou seja, de depurar um fenômeno e de lhe conferir o
poder de depor a esse respeito; os instrumentos do
naturalista, ou do cientista de campo, abrem-lhe a
possibilidade de reunir os indícios que o orientarão na
tentativa de reconstituir uma situação concreta, de identificar
relações, não de representar um fenômeno como uma função
munida de suas variáveis independentes93. É claro, o indício,
tanto quanto o testemunho experimental, não pode ser
definido como neutro, independente do interesse de um
autor e de suas previsões. Contudo o autor, aqui, sabe que
seu campo não fará dele um juiz. Nenhum campo vale por
todos, nenhum pode dar crédito a "fatos" no sentido
experimental do termo. O que um campo permite afirmar,
um outro campo pode contradizer sem que por isso um dos
testemunhos seja falso, ou sem que as duas situações
possam ser julgadas intrinsecamente diferentes. Outras
circunstâncias entraram em jogo. Todos os testemunhos em
favor dos poderes da seleção dar- winiana não podem calar
os outros testemunhos que põem em dúvida a generalidade
de seu poder explicativo. O biólogo evolucionista não sabe
mais a priori nem como a seleção funciona em cada caso,
nem, sobretudo, o que se deve à seleção.
Vida maravilhosa de Stephen J. Gould pode, por mais de
um motivo, ser comparado ao Diálogo de Galileu. O poder
desafiado não é, aqui, Roma, e sim o modelo de ciências
teórico-experimentais. A ciência da evolução aprende a
188 Propondo
do "poder de julgar", o do "biólogo darwinia- no" se inscreve
numa estratégia de desalinhamento e de "desmoralização": a
conduta tem por alvo permitir à realidade pôr à prova de for-
ma ativa nossas ficções, mas ela apenas recebe os meios
para intervir e fazer a diferença num movimento de
"desmoralização" da história.
DESMORALIZAR A HISTÓRIA
190 Propondo
E o problema colocado pela incerteza dos indícios é
reforçado por aquele posto pelo caráter instável, sensível à
menor variação quantitativa, dos modelos de simulação. Tal é
o novo horizonte de risco aberto hoje por esses cientistas que
podemos denominar "os historiadores da Terra" e que
ilustram à perfeição as controvérsias contemporâneas à
propósito do "efeito estufa".
192 Propondo
aqueles que tentam modelizar o "efeito estufa", as
conseqüências do desflorestamento, os efeitos da poluição,
se comprometem e contribuem para desordenar os cálculos
político-econômicos. Contudo os "novos dados" que este
novo "processo contingente" inventa suscitam igualmente
novas situações de controvérsia. Os cientistas, aqui, não são
mais aqueles que trazem "provas", estáveis, e sim
incertezas.
A incerteza irredutível é a marca das ciências de campo.
Ela não diz respeito a uma inferioridade e sim a uma
modificação das relações entre "sujeito" e "objeto", entre
aquele que formula as questões e aquilo que as responde.
Paralelamente, a propósito das ciências de campo, é difícil
falar de "descoberta", e a paixão por "fazer existir" assume
desde logo um outro sentido. Ninguém, com efeito, duvida
que o "campo" existe, preexiste a quem o descreve. Ainda
que possa ser considerado como inventado pelos numerosos
procedimentos que o codificam e o decifram, ele preexiste a
seu deciframento no sentido de que lhe é pressuposta uma
estabilidade que o torna capaz de acolher práticas
interdisciplinares. Ele preexiste na medida em que essas
práticas supõem que seja suscetível "por princípio" de pô-las
de acordo. Mas, por outro lado, esta preexistência veda a
mobilização tal como a havíamos descrito. O caráter
"artificial" do modo de existência experimental permite uma
proliferação de histórias em todos os locais em que as
condições de produção deste modo de existência possam ser
criadas, e se esse processo de criação, como já vimos, torna
as ciências teórico-experimentais vulneráveis ao poder,
confere igualmente à referência experimental uma existência
mais "pesada" que aquela do campo95. O campo, com efeito,
não autoriza os seus representantes a fazê-lo existir fora dos
locais em que já existe. Também não os autoriza a provar
194 Propondo
agora, sem por isso conferir ao cientista o poder
de dominar a variedade dos casos. Esta
variedade como tal constitui então o teste de
nossas ficções. Mas a invenção de práticas que
se dirigem a seres cujo modo de existência é em
si mesmo testemunho do poder da ficção implica,
como veremos adiante, um terceiro tipo de
variação. Desta vez, a variação afeta o próprio
cientista enquanto "moderno", segundo os
termos de Bruno Latour, ou seja, enquanto
procura opor verdade e ficção.
Nós podemos pressupor da Terra, doravante
tema dos nossos roteiros, uma única coisa: ela
faz pouco caso das perguntas que formulamos a
seu respeito. O que dissermos "catástrofe" ela
dirá contingência. Os micróbios, assim como os
insetos, sobreviverão ao movimento que
pudermos desencadear. Em outros termos, é só
porque as transformações ecológicas globais que
podemos provocar são eventualmente capazes
de pôr em risco os regimes terrestres de
existência, dos quais dependemos, que podemos
considerar que a Terra está em jogo em virtude
de nossas histórias. Do ponto de vista da história
longa da própria Terra, isto será um
"acontecimento contingente" a mais em uma
longa série. Esta estética da contingência define
ao mesmo tempo a força e os limites intrínsecos
do estilo de ciência praticada pelos historiadores
da Terra, assim como pelos historiadores das
histórias humanas que se dirigem a estas como
"fazendo parte do passado". Esse estilo tem um
análogo entre os gêneros de ficção: o que é
característico no romance policial clássico, por
exemplo, é que a diferença entre o investigador e
os suspeitos é estável. O crime, se ele ocorreu,
ocor-
196 Propondo
quais se sentem tão responsáveis quanto pais diante de seus
filhos. Os laços criados em nome do saber a ser produzido
vinculam e comprometem os seres humanos com os seres
inéditos que eles fizeram existir.
Quando a questão posta interessa, embora de modo
distinto, tanto a quem a coloca quanto a quem ela é
colocada, o poder da ficção intervém ele próprio duas vezes:
do lado do cientista, que deve inventar uma prática que
ponha à prova suas ficções, e do lado daquilo que já não é
mais exatamente um campo (embora se fale de campo em
ciências sociais),96 pois a questão "o que ele (este cientista)
quer de mim?" é um prodigioso recurso de especulação e de
autoprodução, quer ela possa ser verbalizada, quer ela se
traduza em comportamentos conjecturais ou perplexos. A
noção de testemunha torna-se nesse caso ambígua, pouco
dissociável do artefato (no sentido negativo). Paralelamente,
"fazer existir" e "provar a existência de" deixam de ser
correlatos. É aqui que o cientista encontra, em seus próprios
domínios, o "charlatão", aquele que, por exemplo, considera
uma cura como prova, e é nesse ponto que o próprio
cientista, para não se parecer com um charlatão, pode ser
tentado a desqualificar toda questão que se relacione com a
diferença entre um corpo físíco-químico e um ser vivo (não
passa de placebo...).
Mais uma vez, portanto, a questão da relação entre
"sujeito" e "objeto" se modifica. Aquele que, como Stanley
Milgram, mantém o papel habitual de sujeito, que toma
iniciativa de pôr questões às quais aqueles com os quais ele
lida deverão, de uma maneira ou outra, responder, pode, em
nome da ciência, "fazer existir" os carrascos que ele
acreditava estar apenas "revelando". O novo teste, ao qual o
"sujeito" é submetido, consiste em lidar com seres
suscetíveis de obedecê- lo, de procurar satisfazê-lo, de
aceitar, em nome da ciência, responder a questões sem
198 Propondo
questão?", estas são as interrogações de que não pode fugir
o cientista que sabe que a ligação entre produção de saber e
produção de existência é irredutível.
Mais do que uma questão estritamente ética, trata-se
com efeito da invenção daquilo que Félix Guattari chamou de
"um novo paradigma estético",98 em que estética designa de
preferência uma produção de existência que depende do
poder de sentir: poder ser afetado pelo mundo de um modo
que não é o da interação à qual se submete e sim de uma
dupla criação de sentidos, de si e do mundo99.
Recomeço contingente "com outros dados" ? Se nós nos
lembrarmos do problema, repetido à exaustão a propósito de
Marx, das relações entre "ciência" e "ação engajada"100, como
também da obsessão de Freud de estabelecer uma estrita
distinção entre psicanálise e sugestão, pode-se dizer que o
recomeço já começou. A dificuldade escancarada marca a
pertinência da questão. Uma das maneiras de enunciar o
desafio que nós herdamos seria então: tornarmo-nos
capazes, um dia, de ler Marx ou Freud como os biólogos
podem hoje ler Darwin. Com ternura.
De fato, é profundamente significativo que seja na
etnopsica- nálise, tal como a define Tobie Nathan101, que se
explorem da maneira a mais explícita os riscos de um tal
recomeço: conseguir pensar nos Djinns, nos espíritos dos
ancestrais ou nas divindades as mais exóticas como nem
"verdadeiramente verdadeiros" nem fictícios, mas, como o
inconsciente freudiano, parte constituinte de um dispositivo
psicoterapêutico; e conseguir evitar de pensar o conjunto
aberto desses dispositivos e dos espaços culturais que eles
pressupõem e instituem sob o signo de uma relatividade mais
ou menos irônica (qualquer coisa funciona), para nele
identificar o campo onde se constrói o saber que convém ao
que denominamos "psiquismo". Quer dizer, antes de mais
200 Propondo
9.
DEVIRES
COMO RESISTIR?
12
Em L'invention des formes (Paris, Odile Jacob, 1993), Alain Boutot reúne
essas inovações matemáticas e fisicomatemáticas (catástrofes de Thom,
estruturas dissipativas de Prigogine, fractais de Mandelbrot, caos de Ruelle
e cia.) sob o signo de um "neo-aristotelismo", oposto no caso presente à
"tecnociência dominante" identificada pelo autor a partir de Alexandre Koyré
e de Martin Heidegger. Esta leitura, que associa imediatamente o estilo
científico dos teóricos e o estilo filosófico de suas referências, cria
entretanto uma falsa simetria: como de resto Koyré e Heidegger, Boutot não
leva em conta a dimensão prática (fazer história) da atividade científica.
Vislumbra nessas novas matemáticas "o instrumento que faltava [às ciências
da natureza] para apreender, em sua especificidade, o mundo mutável das
formas, que sua complexidade torna inacessível à análise quantitativa
ordinária" (p. 314). Eíe omite, porém, uma "pequena" diferença. A novidade
do instrumento matemático é clara quando diz respeito a formas que até
aqui não tinham interessado a ninguém: a queda de uma folha, a rachadura
de uma parede, o traçado das costas da Bretanha etc.; em contrapartida,
este "instrumento" não tem por si mesmo o poder de suscitar outras
maneiras de trabalhar em conjunto a propósito de "formas" já abordadas por
outras práticas (cf. as relações polémicas de Thom com os biólogos). De
resto, as apresentações que opõem a hybris da ciência de ontem à nova
apreensão, matemática e pacífica, do mundo em nossa escala
(cuidadosamente despovoado daqueles, sempre igualmente desqualificados,
que já o ocupam), nada têm em si mesmas de pacífico, mas pertencem à
retórica ordinária da mobilização científica.
ciso falar aqui de coerção e não de limite, porque o limite separa dois
possíveis que, sem ele, teriam sido considerados equivalentes. O limite
impõe uma diferença. A coerção implica invenção e risco. Sem coerção
as redes de invenção-discussão irão parar sempre, ou mudarão de
natureza, ali onde o interesse possa ser exigido e não deva mais ser es-
timulado, ali onde a estratificação social e política autorize a denunciar a
resistência como obscurantista, irracional, preguiçosa, e a exigir que o
interlocutor ensine "primeiro" a ciência que convém. Se não são coagidos
a isso, por que os cientistas recusariam a aliança com poderes que lhes
permitam desqualificar aquilo que complica a história que buscam
construir, confirmando-lhes sua própria racionalidade e a inépcia
daqueles que duvidam?
"É a mesma coisa, mas mais complicado" era o slogan da ciência
mobilizada, o que põe a diferença, o "mais complicado", sob o signo do
"não ainda", do futuro em que o "mesmo" terá de fato triunfado como se
propõe208desde já a triunfar de direito. "Que riscos esta situação faz nossos
Propondo
juízos correrem, que devires e que sensibilidades nos impõe?", tal seria a
questão que organiza o Parlamento das coisas115.
PRODUZINDO COMPETÊNCIA
120 Em N OMS n'avons jamais été modernes, op. cit., p. 216, Bruno Latour
anuncia a possibilidade de pensar numa sem esquecer a outra a partir do
conceito de "transcendência sem contrário": "O mundo do sentido e o mundo
do ser são um só e mesmo mundo, o da tradução, da substituição, da
delegação, da passagem "(p. 176). A obra de Gilbert Simondon cria uma
perspectiva análoga a partir do conceito de transdução, sob condição de que
a tarefa "filósofo-tecnóloga" pela qual ele clama não seja (como teme Gilbert
Hottois em sua proveitosa apresentação, Simondon et la philosophie de la
"culture technique", Bruxelas, De Boeck- Université, 1993) uma simples questão
de "pensamento", de eliminar dissociações devidas apenas à insuficiência da
cultura tradicional, e sim a "transposição trans- dutiva" duma mutação
efetiva,
214estética, ética e política, que remete ao desafio do "Parlamento
Propondo das
coisas". No que me diz respeito, essa perspectiva se explicitará um dia em
termos saídos da filosofia de A. N. Whitehead.
humano em que o conjunto das medidas práticas e conceituais que nos
ligam às coisas já não se teria tornado instável, onde o conjunto dos
nossos saberes e de nossas práticas já não teria sido posto sob o signo
da ficção, quer dizer, da opinião, as bolas rolando sobre o plano inclinado
de Galileu teriam sido um gadget interessante, porém sem grande
conseqüência. As "leis da natureza", cujo caráter acessível elas
anunciaram em nosso mundo, significam que as ciências modernas
retomam de um modo novo o antigo projeto de Platão de criar uma
relação com a verdade em cujo nome os sofistas poderiam ser expulsos
da cidade.
"Se os ocidentais não tivessem feito mais que negociar e conquistar,
pilhar e escravizar, eles não se distinguiriam radicalmente de outros
comerciantes e conquistadores. Mas eis que eles inventaram a ciência,
atividade totalmente distinta da conquista e do comércio, da política e da
moral."121 O autor dessas linhas diz duas coisas a um só tempo. De um
lado, ele não acha que a ciência seja "uma atividade totalmente distinta"
e comenta portanto a crença que permite, a nós oci- dentais, nos
imaginar tão diferentes dos outros. Todavia, por outro lado, ele explicita
a arma realmente temível consubstanciada na nossa forma específica de
crença, nossa crença na ciência como "totalmente distinta" a nos
assegurar de direito um acesso inteiramente diferente ao mundo e à
verdade.
É claro, todo povo se crê muito diferente dos outros, mas a nossa
crença nos permite a um só tempo definir os outros como interessantes
— nós inventamos a etnologia — e como condenados antecipadamente
em nome da terrível diferenciação, da qual somos os vetores, entre
aquilo que é da ordem das ciências e o que é da ordem da cultura, entre
objetividade e ficções subjetivas. Nós não cessamos de denunciar os
saqueadores e os comerciantes que exploram e escravizam, mas nós
acreditamos saber que "os outros" deverão, de uma maneira ou outra,
passar pela renúncia às "crenças" culturais que misturam aquilo que nós
separamos.
A perspectiva que este livro tenta descortinar é aquela em que nós
teríamos de nos tornar ainda mais "diferentes", ou seja, em que nós
teríamos de inventar, com nossos próprios termos, um antídoto à crença
que nos torna temíveis, aquela que define verdade e ficção em termos
de oposição, em termos do poder de que uma dispõe para destruir a
outra, crença mais antiga que a invenção das ciências modernas, mas da
qual essa invenção constituiu-se num "recomeço". Essa perspectiva
satisfaz, a meu juízo, à dupla coerção do acontecimento: ele faz uma
diferença entre passado e futuro em relação à qual todo sonho de "volta
atrás" é vetor de monstruosidade; ele não tem o poder de ditar aos seus
herdeiros como levá-la em conta. O acontecimento constituído pela
invenção de um novo sentido do enunciado sofista, "o homem é a
Devires 215.
121 Bruno Latour, Nous n'avons jamais été modernes, op. cit., p. 113.
medida de todas as coisas", não tem o poder de nos constituir em
herdeiros tresloucados desta possibilidade de medida, ele nos define em
termos de exigência e não de destino.
Contrariamente aos hábitos de pensamento que devemos a uma
tradição vagamente hegeliana, eu não busquei numa referência mais
"forte" a possibilidade de "sobrepujar" nossa crença na verdade objetiva.
Não se trata de criar a posição a partir da qual nós poderíamos julgá-la,
mas de inventar os meios de a civilizar, de torná-la capaz de coexistir
com o que não é ela, sem considerar, aberta ou veladamente, que ela
tem — ou teria de direito se não se autolimitasse — o poder de
reconduzir o heterogêneo ao homogêneo. "Um modo de medida a mais"
que se soma às outras e cria novas possibilidades de história, e não o
"modo de medida" que afinal adveio. Para ressaltar a diferença entre a
perspectiva que tento criar e uma perspectiva de autolimitação (vetor
daquilo que nós podemos chamar de "paternalismo", porque uma
diferença radical se abre entre a instância que se autolimita para não
destruir a outra e a outra que sobrevive graças à primeira), tentei colocá-
la sob o signo do humor. O humor que nos permitisse tratar os avatares
de nossa crença na verdade como processos contingentes, abertos a
uma reinvenção com "outros dados", é, parece-me, vital para resistir à
vergonha do presente.
O humor é necessário para nos preservar da superestimaçâo do
heroísmo do desafio: nós não temos de nos inventar radicalmente di-
ferentes daquilo que somos, porque somos já bem diferentes daquilo que
acreditamos ser. Desse modo, nós não temos que nos fixar a tarefa
heróica de estabelecer vínculos entre as duas maneiras de fazer política
que inventamos, aquela que, oficialmente, só diz respeito aos seres
humanos, e aquela que, aparentemente, nada tem a ver com a política.
Esses vínculos sempre existiram, e nossa crença na verdade objetiva
jamais foi obstáculo. Os cientistas sempre souberam dirigir-se aos
políticos, e os políticos rapidamente aprenderam as múltiplas e inte-
ressantes possibilidades de aliança com os cientistas. Não se trata por-
tanto de estabelecer laços, mas de os inventar-tematizar na qualidade
de políticos. Isto não significa, evidentemente, que as escolhas que nos
dias atuais se fazem "em nome das ciência", "em nome da racionali-
dade", poderiam, como por milagre, ser devolvidas àqueles a quem as
escolhas dizem respeito. Isto remete a uma outra história, para a qual
nossa crença na verdade e no progresso pôde servir de álibi, mas que é
preciso ser heideggeriano ou denunciante da "tecnociência" para
assimilar à da submissão do mundo à racionalidade operacional das
ciências e das técnicas.
Mas o humor, arte de uma resistência sem transcendência122, tem
122
216 Ou melhor, segundo Latour, arte duma resistência que não pode se
Propondo
prevalecer de nenhuma transcendência, visto que a transcendência é sem
contrário.
sobretudo uma parte ligada com um segundo sentido do enunciado
sofista, "o homem é a medida de todas as coisas": ele aponta o devir
daquele que se torna capaz de medir, ou seja, também, que se torna
aquilo que dele exige a medida da coisa, aquilo a que esta o obriga. "Ser
medida de todas as coisas" define então o ser humano como paixão,
como capaz de vir a ser "afetado por todas as coisas" de um modo que
não é o da interação contingente, mas da criação de sentido. Aí onde o
enunciado sofista, entendido de um modo relativista, parecia definir um
direito estático da opinião, o triunfo do poder da ficção, nós podemos ler
uma caracterização da aventura humana que liga verdade e ficção,
enraíza as duas na paixão que nos torna capazes tanto de ficção quanto
de pôr à prova nossas ficções.
Não é um "conteúdo" que desqualifica a opinião, mas uma dife-
renciação de tipo político entre dois sentidos do termo "paixão". Paixão
significa submissão quando uma estratégia de diferenciação antecipa,
sugere — e, por isso mesmo, constitui — aqueles que ela qualifica como
submissos. Tampouco é um "conteúdo" que qualifica os enunciados que
nós identificamos como científicos, e sim a invenção de paixões ativas,
que implicam, sugerem e antecipam uma exigência que, até aqui, os
cientistas batizaram de "autonomia": a criação de modos de
controvérsias que pressupõem uma paixão partilhada por seus par-
ticipantes, e portanto um meio específico — o laboratório, o "campo" —
onde não se entra como se na casa da sogra. Não é denunciando- a que
se pode civilizar esta paixão da diferenciação, mas acolhendo-a com
humor, ou seja, pressupondo, antecipando, sugerindo que os cientistas
sejam capazes de perceber que sua paixão muda de sentido quando eles
próprios mudam de meio. O que implica, já o vimos, um problema
político — que os "meios" não inventados pelas ciências não sejam a
priori definidos como disponíveis, isto é, como regidos pela opinião e à
espera da racionalidade, mas ativamente identificados como estando
povoados por distintas maneiras de "medir": de colocar os problemas, de
avaliar as conseqüências, de inventar os significados. O que exige
também que, ao se falar da maneira pela qual as ciências inventam suas
"medidas", nós as relacionemos ao estilo de paixão que define seu meio
específico, problema afetivo de um humor da verdade.
A invenção primeira das ciências modernas, aquela das ciências
experimentais, exigiu um estilo de paixão que fez do autor científico um
híbrido singular, entre juiz e poeta. O cientista-poeta "cria" seu objeto,
"fabrica" uma realidade que não existia tal e qual no mundo, mas que
pertence antes à ordem da ficção, O cientista-juiz deve conseguir que se
admita que a realidade que ele produziu é capaz de prestar um
testemunho fidedigno, isto é, que sua fabricação pode aspirar à condição
de simples depuração, eliminação de parasitas, encenação prática das
categorias
Devires
segundo as quais convém interrogar o objeto. 217.
O artefato deve ser identificado como não podendo ser reduzido a um
artefato. Do poeta-juiz, que participa com paixão de um jogo tido por
muitos como humor astucioso — transformar um detalhe aparentemente
insignificante em diferença que faz o colega rival tropeçar —, ao profeta,
que anuncia o que será ou o que deveria ser, nós sabemos que a
distância é curta, tanto mais que é o "profeta" que é esperado e
antecipado pelo público. O humor dos teóricos e experimentadores não
tem o direito de figurar fora da rede homogênea dos colegas-rivais, este
é um dos preços que eles próprios pagam ao regime de mobilização que
erige sua conduta como modelo.
A paixão dos "narradores darwinianos" não faz deles nem poetas, no
sentido de fabricantes, nem juízes, nem profetas, mas os torna
vulneráveis à ironia, porque a "medida" das histórias da Terra que eles
aprendem a contar exige deles uma "estética da contingência", um
compromisso que os obriga a tratar como "hábitos de pensamento",
fontes de ficções moralizantes, tudo aquilo que nos levaria a superes-
timar a questão dos devires humanos. As histórias darwinianas estão
povoadas de inovações cuja significação se transforma, de circunstâncias
que criam, a partir de pequenas diferenças, sem motivo superior, o
desaparecimento de umas e o sucesso, quem sabe momentâneo, de
outras. O humor do narrador darwiniano prende-se à maneira pela qual
ele pode enunciar simultaneamente a contingência e a exigência não
contingente que o faz existir e o liga à aventura humana.
O humor não tem de ser apenas uma proteção às paixões cientí-
ficas. Ele pode ser condição constitutiva dessas paixões. E será este o
caso se se inventarem exigências segundo as quais os cientistas pode-
riam tornar-se "medida" dos devires que não autorizam a distinção entre
produção de saber e produção de existência. Pois é sem dúvida aqui que
os dois sentidos do enunciado sofista convergem, aquele que conjuga
medida e política, e aquele que conjuga medida e devir. Nos dois casos,
a ficção torna-se vetor de devir, e a diferenciação entre representação
legítima e opinião, o poder atribuído à verdade para vencer a ficção,
torna-se o "hábito de pensamento" que nós temos de aprender a pôr em
risco. Nos dois casos, nossa paixão ocidental pela verdade viria então ela
própria exigir que sejam desvinculados verdade e poder, e entrelaçados
verdades e devires.
ÍNDICE ONOMÁSTICO
218 Propondo
Alembert, Jean le Rond, chamado d', 130-1, 136, 155, 160, 163,
166,168,170,191,198, 203
28, 136 Alliez, Éric, 97 Althusser, Gaulle, Charles de, 63 Gille, Didier,
Louis, 35, 37 Alvarez, Luis, 173-4 35, 105, 179
Alvarez, Walter, 78, 173-4 Arendt, Gilíispie, Charles Coulston, 16
Hannah, 78, 114-5 Aristoteles, 64, Ginzburg, Cario, 170
78, 96, 113, 190 Agostinho, Gould, Stephen jay, 167, 169-70,
(Santo), 88, 196 Bachelard, Gaston, 172,175
35-7 Barnes, Barry, 73 Bateson, Guattari, Félix, 30, 42, 89-90, 138,
Gregory, 59 Bensaude-Vincent, 151,154,179,182,186-7,
Bernadette, 53-4,
195
132, 145, 188 Bernai, John
Habermas, Jürgen, 122 Hacking,
Desmond, 15 Bernard, Jean, 157
lan, 64 Harding, Sandra, 20, 30-1,
Bhaskar, Roy, 75,180 Bloor, David,
160, 162, 181 Hawking, Stephen,
73 Bohr, Niels, 131 Borch-Jacobsen,
100-1 Hayes, Dan, 194 Heidegger,
Mikkel, 162 Boudon, Raymond, 42
Martin, 78, 114, 190,
Boutot, Alain, 190 Boyle, Robert,
196
121-7, 185 Broughton, Richard, 111
Hobbes, Thomas, 121-3, 128, 185
Bukhârin, Nikolai, 15 Butler,
Holton, Gerald, 39
Samuel, 26, 96,163 Caballero,
Hottois, Gilbert, 197
Francis, 156, 194 Callon, Michel,
11, 116 Carnap, Rudolf, 36 Carnot, Hume, David, 30-1
Sadi, 51 Cartwright, Nancy, 125 Jacob, François, 135
Cassin, Barbara, 78 Chalmers, Alan, João da Cruz, (São), 147-8
38, 42, 61 Changeux, Jean-Pierre, Josué, (Rabino), 85
136, 148, 184 Kant, Immanuel, 30-1, 42, 91, 101,
Chertok, Léon, 33, 179 120,123, 161, 204
Cohen, Daniel, 157,184 Collins, Kepler, Johannes, 39, 91
Harry, 73 Colombo, Cristóvão, 54, Koyré, Alexandre, 103,
118-9 Comte, Augusto, 36 114, 124-5,
Copérnico, Nicolau, 30-1, 44 130, 190 Kuhn, Thomas, 12-8, 39,
Darwin, Charles, 56-7,167-9,180, 46-7, 62-8, 73, 87, 90, 97,112,130,
191, 202 Davis, 142, 204 Lacan, Jacques, 196
Ray, 55 Lakatos, Imre, 39, 43-6, 50, 63-4,
Deleuze, Gilles, 25, 30, 87, 89-90, 97,131
138, 151, 154, 182, 186-7 Latour, Bruno, 72,48, 61, 81, 83-4,
Descartes, René, 30-1, 124 107,110, 117, 119,121, 126,
Diderot, Denis, 28 136 Drake, 138,145,147,150,152,161,
Stilman, 103 Du hem, Pierre, 41, 173,176,184-6,192,197-8, 200
95, 97,103 Dutton, Diana B., 156, Leibniz, Gottfried Wilhelm, 25-6.
194 Eco, Umberto, 172 Einstein, 74, 97, 124,138 Lewin, Roger, 172
Albert, 18, 24, 38-41, 43, Lewontin, Richard C., 169 Liebig,
58,62,123, 164 Eldredge, Niles, Justus Von, 144 Locke, John, 30-1
169 Eliezer, (Rabino), 85 Ferry, Mach, Ernst, 38-9,123 Mackenzie,
Luc, 49, 195 Feyerabend, Paul, 48- Donald, 61
50, 55, 60, 63, 73-4, 77, 97, Mandelbrot, Benoît, 189-90
103,110,131-2, 136, 140 Mannoni, Octave, 37 Marx, Karl,
Fleischmann, Martin, 120 Frank, 179-80, 191 Masterman, Margaret,
Philip, 36 Freud, Sigmund, 35, 64 Maturana, Umberto, 68, 120
179-80, 191 Freudenthal, Gad, 53 McCrone, John, III Mesmer, Anton,
Gadamer, Hans-Georg, 53-4 33 Metzger, Hélène, 53, 66
Galileu Milgram, Stanley, 32, 178 Monod,
Devires (Galileo Galilei), 30-1, 48, 219.
55, 90-6, 99-109, 114, 121, 123-7, Jacques, 131, 135, 137 Nathan,
Tobie, 180 Needham, Joseph, 15 Ralet, Olivier, 156, 194 Raup, David
Newton, Isaac, 30-1, 51, 91, 114, M., 173 Regis, Ed, 164 Rhine,
136 Joseph Bank, 111 Rouch, Jean, 74
Pasteur, Louis, 117 Paulo, (São), 88 Roudinesco, Elisabeth, 35 Schaffer,
Perrin, Jean, 54, 136, 140 Pinch, Simon, 121 Schlanger, Judith, 53,
Trevor, 55, 73, 92 Planck, Max, 123 123, 142 Schlick, Moritz, 36
Platão, 78,114-5,196,198 Poincaré, Schroedinger, Erwin, 139 Serres,
Henri, 41 Polanyi, Michael, 15-6, 18 Michel, 160 Shappin, Steven, 121
Pons, Stanley, 120 Popper, Karl, Simondon, Gilbert, 197 Stengers,
38-45, 48, 55-62, 67, 73, 77, 80, 92, Isabelle, 33, 35, 37, 54,
97,102,108, 187,196 Pouchet, 103,105,123,125,127,132, 145,
Georges, 117 Prigogine, Ilya, 156,159, 162, 179,188, 191,194
37,127, 159, 190 Protágoras, 196
Strum, Shirley, 80-1, 197 Taminiaux, Jacques, 78, 114-5 Tempier, Étienne,
96-8, 122, 154-5, 179
1970, p. 131.
11 Ver Galileo at work: his scientific biography, Chicago, The University of
9 Le sourire du flamant rose, Paris, Le Seuil, 1988 [ed. bras.: São Paulo,
222 Propondo