Entrevista-Marta Scherre
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2008 11
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Maria Marta Pereira Scherre também participou (em 2006) da segunda edição da Encyclo-
pedia of Language & Linguistics (Oxford: Elesevier), com o verbete “Speech Communi-
ty” e, da segunda edição do Sociolinguistic/Soziolinguistik - An International Handbook of
the Science of Language and Society (Berlin/New York: Walter de Gruyter), com o texto
“Brasil/Brasilien”.
12 Abraçado, Jussara. Entrevista Maria Marta Pereira Scherre
2
HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss da língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001.
Cardernos de Letras da UFF – Dossiê: Preconceito lingüístico e cânone literário, no 36, p. 11-26, 1. sem. 2008 13
que algumas pesquisas têm mostrado até agora). A pronúncia do “r” ret-
roflexo não é sujeita a esse tipo de julgamento: não se diz que um falante
que fala o “r” retroflexo está falando errado, mas há uma reação externa
negativa, explícita ou velada, ao uso do “r” retroflexo (e ao falante do “r”
retroflexo). Mas o uso do “r” retroflexo no seio da sua comunidade de ori-
gem é, de forma geral, fator de identidade, embora também possa haver
estigma na própria comunidade que o utiliza. O trabalho de Luciana
Prudente Guitti sobre o tema 3 observou que, embora a variante retroflexa
seja estigmatizada na comunidade, a queda do “r” em posição final (cantá
por cantar), bastante generalizada no português brasileiro, é ainda mais
estigmatizada do que a presença do “r” retroflexo. Até onde já vivenciei
o uso do “r” retroflexo, é possível observar que ele é, por um lado, um
traço forte de identidade; por outro, um traço de estigma, especialmente
fora de sua área geográfica. Há estudiosos que chegaram a dizer que o
“r” retroflexo estava em extinção no Brasil. Ledo engano: pelo que vejo,
ele está em expansão, porque acho que os falantes do “r” retroflexo estão
apagando-o menos fora de suas áreas nativas de uso, especialmente alguns
políticos, médicos e professores, o que pode aumentar o seu uso pelos
falantes anônimos, por se sentirem mais fortalecidos.
É importante observar que o sentimento de superioridade a que me referi
acima não ocorre só nos aspectos relacionados à linguagem. Ele pode
também ser observado nas questões culturais mais amplas. É muito co-
mum ouvir da boca de pessoas as mais diversas que é preciso “levar cul-
tura” às classes menos prestigiadas pelo poder econômico ou que é preciso
“levar cultura” para as pessoas do interior e da área rural. Cultura aqui
se lê como os costumes e as manifestações artísticas e criativas do ser
humano abraçadas pelos grupos de maior prestígio econômico. Pois é.
Eu diria que precisamos aprender a viver em uma sociedade com mais
democracia e com mais trocas. Acho que estamos caminhando para isso.
Outras espécies de preconceito já foram discutidas e hoje são passíveis
de punição. Estou falando de preconceito de raça, etnia, religião, sexo/
3
Guitti, l. p. O estudo da variante retroflexa na comunidade de São José do Rio Preto. São
José do Rio Preto: UNESP, 2002.
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2) Consta que foi o sociólogo Nildo Viana quem primeiro apresentou uma
visão marxista do preconceito lingüístico, relacionando-o à educação es-
colar e à dominação de classe. Para Viana, a língua escrita veiculada pela
escola torna-se a língua padrão, norma geral que todos devem seguir. Uma
vez que o modelo da língua escrita encontra-se nos setores privilegiados e
dominantes da sociedade, a escola torna-se a base do preconceito lingüís-
tico. Você concorda com Viana, para quem o sistema escolar constitui a
fonte da “dominação lingüística”?
meu chapéu para eles. Somos nós, a sociedade, que fazemos tudo acon-
tecer, direta ou indiretamente. A escola somos todos nós. Nós somos os
algozes e os libertadores.
4
FERREIRA, C. C. A variação do pronome sujeito na fala da comunidade Kalunga. Brasília:
UnB, 2003. Dissertação de Mestrado.
5
MUNIZ, L. C. Em busca das origens do vernáculo brasileiro. Grupo de Estudos Lingüísticos
do Nordeste. João Pessoa: UFPB, 2004.
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6) Sírio Possenti, em resenha de sua obra6 Doa-se lindos filhotes de poodle: vari-
ação lingüística, mídia e preconceito, qualificou o título como “pouco feliz”.
De acordo com Possenti, o título pode chamar a atenção de visitantes de
livrarias que estão atrás de outras curiosidades. Aproveitando-me do termo
“curiosidade”, pergunto: como se deu a escolha desse título curioso?
6
POSSENTI, S.http://www.parabolaeditorial.com.br/resenhasiriodoase.htm 21/07/2008.
20 Abraçado, Jussara. Entrevista Maria Marta Pereira Scherre
afirmam que essa construção está errada e que deve ser doam-se lindos fil-
hotes de poodle. Mais do que isso: o uso da construção doa-se lindos filhotes
de poodle, em meu texto, decorreu do fato de eu discutir uma coluna/ma-
téria de uma jornalista do Correio Braziliense (um dos jornais de Brasília),
que humilhava todos os brasileiros por usarem, por exemplo, a construção
vende-se carros em vez de vendem-se carros (a matéria está reproduzida na
p.78 do livro Doa-se). No capítulo 3 do Doa-se, eu discuto amplamente esse
tipo de estrutura e apresento exemplos claros de sua ocorrência também em
jornais de Portugal. No título, preferi usar doa-se lindos filhotes de poodle,
para exemplificar o fato, e não joga-se búzios ou cobre-se botões, ou mesmo
vende-se carros, mais comuns. A construção doa-se lindos filhotes de poodle
é do contexto da classe média. Achei interessante colocar essa estrutura
ao lado de outras que são bem freqüentes, para evidenciar a expansão do
uso da construção em jogo (relembro: a tradição gramatical classifica lindos
filhotes de poodle como sujeito da oração e, por isso, registra que o verbo da
oração tem de vir no plural - a estrutura deveria ser, então, doam-se). Trata-
se de um fato histórico, que não faz parte mais da nossa intuição e da nossa
prática oral de nosso tempo (em grande parte também da prática escrita).
Eu havia ampliado esse título para Variação lingüística, mídia e preconceito:
doa-se lindos filhotes de poodle, com o objetivo de abarcar todo o conteúdo
do livro. A inversão - Doa-se lindos filhotes de poodle: variação lingüística,
mídia e preconceito - foi sugestão da editora, que achou interessante chamar
a atenção, no título, para o uso de uma estrutura da língua portuguesa que
é considerada errada pela maioria dos gramáticos (mas creio que essa inten-
ção foi pouco percebida).
Ampliando um pouco a discussão, o mais importante de tudo isso é que se-
ria bem mais interessante que as gramáticas normativas registrassem clara-
mente a possibilidade de quem fala ou escreve (neste caso trata-se de uma
estrutura essencialmente da escrita) optar por doa-se lindos filhotes de poodle
ou doam-se lindos filhotes de poodle; vende-se carros ou vendem-se carros; joga-
se búzios ou jogam-se búzios; cobre-se botões ou cobrem-se botões, explicitando
que as estruturas mais intuitivas do português brasileiro escrito hoje são
doa-se lindos filhotes de poodle; vende-se carros; joga-se búzios; cobre-se botões.
Eu diria que apenas o texto acadêmico revisado ou o texto jornalístico ten-
dem a apresentar essas estruturas com o verbo com marca de plural.
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7) Fale um pouco sobre a proposta do seu livro Doa-se lindos filhotes de poo-
dle: variação lingüística, mídia e preconceito.
pronome tu, as formas imperativas são traz/vem/vai. Até onde vai meu
conhecimento de mineira de São Domingos das Dores (hoje pequena
cidade, ex-povoado da cidade de Inhapim, da mesorregião do Vale do
Rio Doce e da microrrregião de Caratinga) não existe tu na fala de Minas
Gerais (embora exista te e não sei se existe teu).
Trato de questões gramaticais sutis, mas importantes do ponto de vista do
que fazemos e podemos fazer com as estruturas lingüísticas, além de co-
municar nossos pensamentos, manifestar nossos desejos e emoções ou con-
vencer nosso interlocutor. Usamos a língua para muito mais coisa. Usamos
a língua como mecanismo de afirmação, mas também como mecanismo de
poder e de exclusão do outro, consciente ou inconscientemente; sutilmente
ou rumorosamente. E não adianta achar que é a gramática (ou a escola) que
tem o poder de excluir a pessoa do/no meio social. Somos nós, falantes de
carne e osso, os agentes da afirmação ou da exclusão. A linguagem é apenas
um dos mecanismos de afirmação ou exclusão (talvez o principal deles). A
gramática, repito, é muitas vezes apenas um escudo, uma projeção, para
não assumirmos um dos nossos comportamentos mais perversos: a exclusão
do outro pela linguagem. Usar a língua como um mecanismo de afirma-
ção é natural ao ser humano e nos faz bem: nos sentimos bem no processo
de identificação; precisamos disto para a nossa sobrevivência – faz bem à
nossa auto-estima. Usar a língua como um mecanismo de exclusão já não
me parece um comportamento humano, mas apenas animal e dos mais
perversos, porque é mediado pela razão. Considero esse comportamento
como semelhante ao da destruição da natureza, como muitos outros de que
já temos conhecimento. A variação lingüística é parte integrante de uma
natureza rica. Como tal, deve ser vivenciada, cultivada, venerada (variação
não implica falta de estrutura ou falta de sistematicidade). Discuto essas e
outras idéias em meu livro Doa-se, que acaba de entrar na segunda edição,
de capa nova, mais condizente com o conteúdo do livro (e com bibliografia
sobre trabalhos de concordância atualizada).
Creio que, de certa forma, já respondi a essa questão, mas aproveito aqui
para sair um pouco do plano da linguagem e refletir sobre uma questão
aparentemente natural, em uma situação extremamente triste e desuma-
na, que é o sistema de prisão, que não leva (e nunca levou) a absoluta-
mente nada de construtivo. Não vou discutir essa questão aqui, porque
ela vai além dos objetivos desta entrevista. Só quero registrar a naturali-
dade da situação de uma pessoa com curso superior, quando presa (seja
lá por que razão for), ficar numa cela especial. Já pensou? Só por que
tem curso superior? Se prisão levasse a algum lugar e se o estudo, por si
só, “melhorasse mesmo o homem”, quem estudou deveria então receber
castigo maior. Isso só mostra que tudo que está associado aos grupos de
maior prestígio tende a ser interpretado como “superior”. E nesse meio,
infelizmente, está a linguagem, um dom maior, que se põe em prática in-
dependentemente de qualquer ensino formal. Repetindo, todo e qualquer
ser humano adquire uma língua materna com perfeição e dela é senhor
absoluto. Além disso, é bom relembrar que as línguas (e todas as suas
variedades) mudam incessantemente. Elas sofrem inexoravelmente a ação
do tempo e do uso pelos grupos humanos. A mudança lingüística faz
parte da natureza. Friso que dou a maior valorização ao estudo (herdei
isso dos meus pais), mas o estudo não pode ser usado para aumentar o
fosso entre os grupos sociais. Ele tem de fazer parte da vida de todos os
membros da sociedade e tem de ser canalizado para a formação de uma
sociedade mais justa, menos preconceituosa.
Indo agora diretamente ao ponto da pergunta, não há dúvida de que o
preconceito lingüístico é uma das variações do preconceito social. Todas
as línguas humanas conhecidas, bem como todas as suas variedades, são
estruturalmente complexas, são completas, são constituídas de regras/
princípios recursivos, que permitem ao ser humano o atendimento de
todas as suas necessidades comunicativas, de forma criativa (se isso não
acontece, as razões são de outra natureza). Para exemplificar, vamos no-
vamente ficar no campo da concordância de número e no campo do “r”
retroflexo.
O inglês, falado ou escrito, praticamente não tem mecanismos de con-
cordância de número, quer verbal, quer nominal. O francês tem amplos
mecanismos de concordância verbal e nominal só na escrita. Na fala, o
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