Joana de Avis o Retrato Da Princ Esa Santa e Os Conflitos Entre Realeza e Fé PDF
Joana de Avis o Retrato Da Princ Esa Santa e Os Conflitos Entre Realeza e Fé PDF
Joana de Avis o Retrato Da Princ Esa Santa e Os Conflitos Entre Realeza e Fé PDF
33,
Janeiro/Abril de 2019 - ISSN 1983-2850
/ Joana de Avis: o retrato da Princesa Santa e os conflitos entre realeza e fé, p. 99-126 /
DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhranpuh.v11i33.44004
Resumo: Este artigo reflete sobre a vida e os conflitos de Joana de Avis, demonstrando a
oposição entre a responsabilidade real e a vocação religiosa da princesa Santa, à luz do
papel da mulher nobre no contexto da Idade Média. Para tanto, utilizou, como fontes
principais, a narrativa hagiográfica Memorial da Infanta Santa Joana Filha Del Rei Dom Afonso
V e o Retrato de Santa Joana Princesa. Por meio do manuseio do primeiro, objetivou-se
estabelecer uma relação de composição entre hagiografia e historiografia, de modo a
compreender alguns elementos da vida da Infanta Joana a partir da interpretação da
narrativa; e, do segundo, para buscar, no retrato de Joana, aspectos que possam enquadrá-
la no contexto histórico em que viveu. As conclusões ressaltam a necessária e produtiva
relação intertextual entre a hagiografia e a história, além da multiplicidade de diálogos que
a história permite estabelecer, a exemplo da literatura e da arte do retrato.
Palavras-chave: Joana de Avis, Princesa Santa, hagiografia, historiografia, arte do retrato
Joan of Avis: the portrait of the Holy Princess and the conflicts between
royalty and faith
Abstract: The present work sought to reflect on the life and conflicts of Joan of Avis,
demonstrating the opposition between the royal responsibility and the religious vocation
of the Holy Princess, in light of the role of the noble woman in the context of the Middle
Ages. In order to do so, he used as main sources two documents, namely: the
hagiographic narrative of the Infanta Santa Joana's Daughter of the King Dom Afonso V
and the Portrait of the Santa Joana The Princess. Through the manipulation of the first, it
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1 Introdução
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3 De acordo com Igor S. Teixeira, “os bolandistas foram os grandes responsáveis, a partir do século
XVII, pela compilação de vidas de santo – Acta Sanctorum – e também pela cunhagem do conceito
‘hagiografia’. [...] Os bolandistas – grupo de pesquisadores reunidos por Jean Bolland (1596-1665)
com o objetivo de pesquisar, fazer crítica documental e compilar relatos sobre os santos para cada
dia do ano – publicaram os dois primeiros volumes sobre os santos de janeiro em 1643 e em 1709
chegaram ao décimo nono volume. Segundo René Aigrain, no século XVIII, os bolandistas
conheceram seu apogeu e queda em relação ao prestígio e subvenção de pesquisas. O
reaparecimento do grupo ocorreria no século XIX, especificamente em 1837, quando da fundação
de um novo centro em Bruxelas. O já citado Hippolyte Delehaye ocupou a presidência entre 1912 e
1940, sendo um dos maiores expoentes, para Aigrain, do novo trabalho bolandista” (TEIXEIRA,
2013, p. 198-200).
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4Sobre Hippolyte Delehaye, Igor S. Teixeira faz um importante esclarecimento: “Sobre o tempo de
composição da obra de Delehaye, as formas de se entender as relações entre mito e história estão
permeadas também pelas ideias da história como ciência e do mito enquanto forma de expressão e
entendimento primitivo – não sistemático – do mundo. A história como ciência, no século XIX,
também chamada de positivista, tinha um compromisso com a crítica documental, a objetividade da
verdade, bem como com a ênfase nas documentações o ciais e na entronização dos grandes fatos e
personagens do passado” (TEIXEIRA, 2013, p. 198).
5 Em outro artigo, entretanto, a autora destaca que ainda faltam uma atenção mais específica às
recensões exaustivas do corpus, bem como as edições críticas, pois, estas são instrumentos essenciais
ao hagiólogo, permitindo que sejam feitas “a contextualização funcional dos textos, perspectivados
sociologicamente, culturalmente ou literariamente”, numa função interdisciplinar, ou seja, global.
Mesmo porque, essa capacidade de dialogar com a realidade, oferecendo “modelos de
comportamento” e registrando novas interpretações desses modelos, viabiliza uma evolução social
e cultural (SOBRAL, 2007, p. 2).
6Sobre o maravilhoso cristão, discorre Jacques Le Goff: “O sobrenatural, o miraculoso, que
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da vida dos santos. Por este motivo, ela deve ser compreendida como fonte dos estudos
medievais, pois, para além das narrativas literárias sobre os comportamentos exemplares,
modelos de vida santificada, é possível identificar diversos outros campos, como “o
gênero, os intercâmbios culturais, a leitura, a organização social, a morte, a sexualidade, o
corpo, as rotas de peregrinação e de comércio, as expressões artísticas, em especial no
tocante à pintura, à arquitetura e à escultura, etc.” (SILVA, 2008, p. 7) 7.
Estabelecer, assim, uma relação consistente entre a narrativa literária da vida dos
santos e o discurso histórico, bem como se libertar das concepções clássicas, que
advogavam a tese da oposição entre as duas construções, só fazem crescer as
possibilidades de pesquisas medievais a partir do manuseio de tais documentos como
fontes historiográficas.
encontramos alguns elementos ‘maravilhosos’ nas crenças, nos textos, na hagiografia. Na literatura
encontram-se quase sempre um maravilhoso cujas raízes são pré-cristãs” (LE GOFF, 2010, p. 17).
7 Mesmo porque, conforme a mesma autora, “assim, como consideramos o gênero uma construção
de Aveiro destaca-se por ser “Em este Liůhe scrito e/ se contem ho nacimē/ to pricipio e fundamēto des/te
moesteyro e Casa de Jhū/Nosso Sōr desta villa de aveyro./ qpessoas ho fundarō noshe difficios e Casa. [1467-
1529], 1717-1748, 1773” e constitui-se num “Pergaminho de coloração amarela e papel manual
avergoado de coloração amarela com marca de água. Letra manuscrita gótica a tinta sépia e
vermelha 30,5 x 21,5 cm. Convento de Jesus de Aveiro PT/MA/COD 9. Códice composto por
duas partes. A primeira, em pergaminho, contém a Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus de
Aveiro, o Memorial da Infanta Santa Joana, o Memorial das Religiosas que professaram e faleceram
no Mosteiro de Jesus e o Memorial das servidoras que entraram e faleceram no Mosteiro de Jesus.
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Joana de Portugal, Joana de Avis ou a Infanta Santa Joana era filha do rei Dom
Afonso V e da sua primeira esposa, a Rainha Dona Isabel. Nasceu em Lisboa, a 06 de
fevereiro de 1452, e faleceu em Aveiro em 12 de maio de 1490, local onde foi considerada
sagrada por sua devoção à Ordem dos Dominicanos, fervorosa adepta dos hábitos
cristãos mendicantes, embora não tenha conseguido firmar formalmente os votos
religiosos.
Tanto Joana quanto o irmão João, mais tarde o rei Dom João II, receberam os
nomes pela devoção de sua mãe a São João. Tendo ficado órfãos da mãe muito cedo, ela
logo aos três anos e ele com cerca de um ano, os príncipes viveram em um reino
povoado de intrigas e conluios. Recaíram suspeitas, inclusive, que todos, sua mãe, seu pai,
o rei Dom Afonso V, seu irmão e ela própria tenham sido envenenados. Tais fatos não
eram incomuns neste período da história, tanto a conturbação dos reinos, discórdias e
ambições dos inimigos, decorrentes das entremeadas relações de poder, como, também,
Esta parte, do antigo Cartório do Convento, tem o texto a duas colunas, com iniciais capitais
vermelhas, algumas com filigrana a sépia ou violeta. Tem ainda iniciais a tinta sépia, realçadas a
amarelo, e quase todos os cadernos apresentam reclamos. Este manuscrito foi em grande parte
escrito na mesma data e atribuído a Margarida Pinheira”. Manuscritos do Museu de Aveiro. Dos sécs.
XV/XVI aos sécs. XIX/XX, p. 64. Disponível em:
https://www.drcc.gov.pt/Manuscritos_Museu_de_Aveiro.pdf . Acesso em: 10 jul. 2017.
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as mortes por envenenamento, dado ser o veneno um meio insidioso, camuflado e, não
poucas vezes, cruel.
Três mulheres representaram um papel singular na vida e formação da Infanta
Joana, após a morte da sua mãe: a tia materna, Infanta Dona Filipa, que fora responsável,
por ordem do rei Dom Afonso V, pelos cuidados da sobrinha; a fidalga Dona Brites de
Meneses, mulher culta, que desempenha o papel de cuidadora dos príncipes até 1458
quando da sua entrada para o Mosteiro de São Marcos e, por fim, Dona Beatriz de
Vilhena. Desde os nove anos, Joana de Avis, membra de uma família culta e dada aos
hábitos da leitura, passa a se interessar pelo latim e pelos estudos da gramática e das
letras9.Tal característica a destaca, tendo em vista que, naquele contexto, nem sempre as
mulheres, mesmo as nobres, tinha acesso ou mesmo interesse pelos hábitos intelectuais.
Também desde muito nova, Joana já apresentava sinais de que era bastante
devota à vida religiosa, caridosa e adepta dos hábitos cristãos mendicantes ligados aos
dominicanos. Assim apresenta a narrativa hagiográfica “Memorial da muito excelente princesa e
muito virtuosa Senhora a senhora Infante dona Joana nossa Senhora”, que tinha, como objetivo
central, destacar a vida virtuosa e cristã da Princesa Santa, digna de imitação e louvor:
9 Mayra Rúbia Garcia (2003, p. 25) assim dispõe sobre a natureza intelectual da corte de Afonso V:
“A corte transformara-se em um centro de estudo e de formação intelectual e a Casa Real protegeu
as Letras, as Artes e até a Universidade. Sua esmerada educação já vinha de longa tradição nessa
dinastia: D. Duarte (1433 – 1438), seu avô paterno, foi homem culto, possuidor de uma biblioteca
muito rica para o seu tempo. Assim, não apenas seu avô paterno, como também D. Pedro, seu avô
materno, foi um homem letrado.”
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Mesmo fazendo parte de uma corte intelectual, o que, por si só, já emoldurava a
vida cortesã e repleta de riquezas e farturas, a Infanta não se seduzia e não se interessava
pelos arroubos da realeza, mantendo-se firme na condução da sua vida de fé e devoção
humilde e discreta. Mesmo porque, não raro era o estreito contato entre a Infanta e
religiosos que frequentavam a corte, além daquelas já citadas damas, que foram
responsáveis por sua criação e formação, estarem vinculadas à ordem mendicante
dominicana, conforme explica Mayra Rúbia Garcia:
Por este motivo, a vida de Joana de Avis foi permeada de conflitos, que exigiram
da Infanta uma postura muito marcante no que concerne ao exercício de sua fé frente aos
deveres, que lhe impunham a condição de pertencer à realeza portuguesa, como, por
exemplo, o casamento11.
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igual àquela de que se beneficiavam os ancestrais. Todos os responsáveis pelo destino familiar, isto
é, todos os homens que detém algum direito sobre o patrimônio e’, à frente deles, o mais velho, a
quem aconselham e que fala em nome deles, consideram conseqüentemente (sic) como seu direito
principal casar os jovens e casá-los bens. Ou seja, por um lado ceder as moças, negociar da melhor
maneira possível seu poder de procriação e as vantagens que elas podem legar à sua prole; por
outro, ajudar os rapazes a encontrar esposa. A tomá-la alhures, numa outra casa, a introduzi-la
nessa casa onde ela deixará de depender de seu pai, de seus irmãos, de seus tios, para ser submetida
a seu marido, ainda que condenada a ser para sempre uma estrangeira, um pouco suspeita de traição
furtiva nesse leito em que ela penetrou, onde ela vai preencher sua função primordial: dar filhos ao
grupo de homens que a acolhe, que a domina e que a vigia” (DUBY, 2011, p. 15).
12 Sobre as palavras ditas pela Princesa Joana, não poderia faltar a este estudo uma referência à “Loa
da Princesa”, um dos romances que compõem as “Sextilhas”, de Gonçalves Dias. Sobre esta obra,
destaca Maria Aparecida Ribeiro: “Constituídas por quatro romances compostos em redondilha
maior pela ‘mão’ de Frei Antão de Santa Maria de Neiva, dominicano de existência histórica que
Gonçalves Dias recortou da História de São Domingos de Frei Luís de Sousa, as Sextilhas
contemplam um tempo não propriamente medieval, pois que giram em torno de uma figura
pertencente à Idade Média — Gonçalo Hermigues —e de duas já da Idade Moderna — a Princesa
Santa Joana e o rei D. João II. É, no entanto, medieval o espírito que as informa, como era
medieval o espírito de Afonso V, ‘o Africano’, ‘o Último Cruzado’, pai da Princesa freira e do Rei
Sereníssimo. A ‘Loa da Princesa Santa’ baseia-se no texto de Frei Luís de Sousa e narra a história da
Princesa Joana, desde o momento em que pediu ao pai, Afonso V, que a oferecesse a Deus como
reconhecimento pelas vitórias obtidas em África até ao momento de sua entrada para o Mosteiro de
Jesus em Aveiro. O narrador — Frei Antão de Santa Maria de Neiva, pertencente ao século XV e
que esteve de facto relacionado com a entrada de Santa Joana para as dominicanas de Aveiro, mas
ficcionalizado por Gonçalves Dias como vendo o que se passa no século XVI — lamenta o tempo
presente, confrontando-o com o passado. Relembra, assim, episódios da vida da Princesa narrados
por Frei Luís de Sousa no seu mencionado livro: a maneira airosa e rica com que ela se vestiu para
receber o pai, a recusa aos que pretendiam a sua mão, a pintura que de seu rosto fizeram vários
artistas, as noites passadas a rezar no oratório, os cilícios que usava e as penitências que se impunha,
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mosteiro e seguir a vida religiosa, o que lhe é permitido pelo pai, mesmo diante da sua
notória insatisfação para com a decisão da filha.
Na Idade Média, a função da mulher na sociedade era casar-se, obedecendo às
estratégias de poder das linhagens nobres, procriar e ser submissa ao homem da casa,
quer esse seu marido ou filho mais velho. O amor verdadeiro estava ausente nos
casamentos medievais marcados apenas pelo sentimento de obrigação de manutenção das
linhagens, dos seus valores e de seus patrimônios. Aos casados não era permitido entregar-se
ao verdadeiro amor, que “adquire-se pela experiência psicológica, por um cotidiano de
análise interior, por uma certa madureza, enfim, e uma certa plenitude física e moral, que a
donzela ainda não atingira" (LAPA, 1973, p. 13). Nesse contexto, a opção das donzelas pela
vida religiosa era praticamente a única possível caso não se casasse. As cantigas de amor dos
trovadores medievais portugueses expressam a impossibilidade da plenitude amorosa na coita
do amor, que faz sofrer e morrer o infeliz namorado. A maioria dos trovadores era nobre e
pertencia à baixa aristocracia13.
Embora não fosse um fenômeno estranho às mulheres nobres na Idade Média o
despertar de uma vocação religiosa 14, a compreensão do pai não é partilhada pelo irmão,
o lava-pés que ainda em Lisboa, na corte, costumava fazer a doze mendigas na Quinta-Feira Santa,
a liberdade que deu aos escravos mouros que lhe foram trazidos por seu pai. De todas as falas da
Princesa, no entanto, a mais relevante é aquela que evidencia a comunhão de Santa Joana com o
espírito de cruzada e que se conjuga com igual ponto de vista do próprio narrador, traduzido por
ele numa espécie de refrão em que exalta um tempo anterior: Santa Joana — aliás de acordo com a
própria narrativa de Frei Luís de Sousa—invoca a ‘usança antiga’, o exemplo dos reis que,
vencedores na guerra, buscavam ‘as coisas melhores/que de os seus reinos haviam" e ofertavam-
nas a Deus, ‘fazendo sacrifícios mui subidos’.” (RIBEIRO, 1998, p. 902).
13 A cantiga de amor é o primeiro produto romântico da literatura portuguesa. O amor nestas cantigas
homem, e se ela demonstrasse força e temperança, conforme dispõe Maria Filomena Andrade,
“esta vantagem excepcional parece-lhe provir da bondade da providência, da complacência de Deus
que nela pôs alguns grãos de virilidade. Daqui deduzem os padres que a mulher deve estar
permanentemente sob a tutela masculina. Na Igreja ela dependerá do sacerdote, no mosteiro,
encerrada e separada do mundo, haverá a preocupação de mantê-la sob a estreita vigilância e
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o futuro rei Dom João II, que empreende uma maior oposição ao destino da Infanta que
o próprio Dom Afonso V. Na realidade, a resistência do pai e depois do irmão deve-se ao
papel principal que a mulher exercia no seio da nobreza medieval, em especial a que
pertencia à uma família real, ou seja, a de se destinar ao casamento com outros nobres,
estabelecendo, assim, fortes laços de poder a produzir herdeiros e herança, muitas vezes
servindo de fator para aumentar o território de influência e, portanto, incrementar as
relações de fidelidade, forjadas entre nobres. A intenção de se casar, entretanto, nunca
esteve entre os planos de Joana, já que seus objetivos estavam vinculados à vida religiosa,
dos quais se recusava a abrir mão desde tenra idade:
Joana. Margarida Pinheira (atr.) – Séc. XV-XVI (1513). Museu de Aveiro – Secção de Reservados –
Inv.º 33/CD.
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Portanto, foi também por esta postura firme que a Princesa Santa se destaca na
história medieval portuguesa, pois, afinal, não era comum uma mulher, naquele contexto,
conseguir reagir às determinações pouco maleáveis impostas ao sexo feminino, e, em
especial, a que pertencia a uma família real. Ao gênero feminino na Idade Média quase
não era permitido fazer opções, escolhas, sendo estas determinadas pelos varões16. Não
foi fácil à Infanta Joana fazer valer o seu dom, preferindo impor-lhe martírios e
privações17 a ceder aos anseios de casamento do pai e do irmão.
Desta forma, após recusar várias propostas de união, a Infanta Santa Joana
ingressa no convento dominicano de Jesus, em Aveiro, mesmo que tenha sido obrigada,
em diversas ocasiões, retornar à corte para o exercício das funções da realeza. Muito
embora tenha alcançado a graça de não ser obrigada a um casamento indesejado e que
poderia lhe castrar a vocação religiosa, a vida conflituosa de Joana exigiu, muitas vezes, o
cumprimento dos seus deveres de princesa na corte de Avis.
O comportamento da Infanta, marcado por sua não submissão à imposição do
casamento e por uma vida de privações e caridade, levará à sua beatificação em 1693.
Joana de Avis, assim, passa a integrar o rol de personagens reais femininos que
despertaram o culto cristão no contexto medieval português, sendo uma de suas
principais representantes.
referia era a coroa de espinhos de Cristo. Conforme relatado na hagiografia da Princesa: “Depois
que a forçava ho quebràto e sõpno de sua delicada carne . Contra a manhaã è Ronpèdo há alva
tornava a estar è devotas orações . E desy tornava sse a irmuy passo e làcava sse é sua Cama . que
nõ podessè saber nem étender ho que aviia feyto . Nùca desvestia nè mudava a camisa da lãa que
debaixo acarâ da Carne trazia streyta e apertada . Mas de dia e de nocte á veraão de continuo trazia
ataa que mais a nõ podia sofre. por a multidão dos piolhos que criava co que era cõstrangida a tyrar
e vestir outra a qual lhe lavava e trazia e dava muy secretamente a sobredida sua Covilheyra e
criada. PINHEIRA, Margarida. Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus de Aveiro e Memorial da Princesa
D. Joana. Margarida Pinheira (atr.) – Séc. XV-XVI (1513). Museu de Aveiro – Secção de Reservados
– Inv.º 33/CD.
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18Sobre o Mosteiro de Jesus de Aveiro, as suas primeiras referências dependeram de uma mulher
que vivenciou os eventos e escreveu uma crônica entre 1513 e 1525, Margarida Pinheira, sendo que,
conforme esclarece Gilberto Coralejo Moiteiro, este e “outros códices – de natureza litúrgica e não
litúrgica – que integravam a livraria conventual, assim como o cartório monástico[...] constituem o
quadro documental actualmente disponível ao historiador”. Para o referido autor: “as bases do
projecto estão lançadas. Mas que modo de vida têm estas mulheres em mente? A problemática das
origens da comunidade está envolta numa certa incerteza que decerto encontra explicação no facto
de não ser ainda dotada de uma feição institucional. O silêncio de que se revestem esses tempos,
marcados pela escassez documental, constitui a meu ver um indício da forma de vida que aquelas
mulheres adoptam, não estando excluída a possibilidade de elas próprias se encontrarem dominadas
por alguma hesitação, motivada por uma certa desconfiança social relativamente a modelos de
vivência religiosa femininos considerados demasiado autónomos. Estaremos perante um beatério,
um recolhimento, um oratório ou uma beguinaria...” (sic) (MOITEIRO, 2013, p. 8).
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Ressalta-se que a vida da Infanta no Convento não pode ser separada da vida de
duas outras mulheres, a sua prima Leonor e D. Beatriz Leitoa, a fundadora do Mosteiro
de Jesus de Aveiro, além da figura marcante de Frei Antão de Santa Maria:
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O referido espaço foi fundado numa pequena casa por D. Beatriz Leitoa e D.
Mécia Pereira, entre os anos de 1458 e 1460, e autorizado pela bula "Pia Deo et Ecclesiae
desidere", do Papa Pio II, em 16 de maio de 1461, tendo as obras de sua construção
iniciado logo após. Passa, então, a funcionar como um convento mendicante, vinculado à
Ordem Dominicana feminina de 1465 até 1874, quando falece a última freira, e o local é
entregue à Ordem Terceira Dominicana, passando a funcionar um colégio feminino até
1910. Após este ano, converte-se em Museu, classificado como “monumento nacional”19.
19Sobre o destino do Mosteiro de Jesus de Aveiro, de acordo com o Arquivo Nacional da Torre do
Tombo, “em 1834, no âmbito da ‘Reforma geral eclesiástica’ empreendida pelo Ministro e
Secretário de Estado, Joaquim António de Aguiar, executada pela Comissão da Reforma Geral do
Clero (1833-1837), pelo Decreto de 30 de Maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros,
colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas, ficando as de religiosas,
sujeitas aos respectivos bispos, até à morte da última freira, data do encerramento definitivo. Os
bens foram incorporados nos Próprios da Fazenda Nacional. Em 1874, a 2 de Março, foi extinto
por morte da última religiosa, a prioresa D. Maria Henriqueta de Jesus. História custodial e
arquivística. Em 1912, os documentos, que se encontravam na Biblioteca Nacional, foram enviados
pela Inspecção das Bibliotecas e Arquivos para a Torre do Tombo.
Parte da documentação esteve integrada na designada Colecção Especial. Entre os anos de 1938 e
1990, sempre que possível e considerando a sua proveniência, a documentação foi reintegrada nos
fundos, numa tentativa de reconstituição dos cartórios de origem. Estes documentos foram
ordenados cronologicamente, constituídos maços com cerca de 40 documentos, aos quais foi dada
uma numeração sequencial. No final da década de 1990, foi abandonada a arrumação geográfica
por nome das localidades onde se situavam os conventos ou mosteiros, para adoptar a agregação
dos fundos por ordens religiosas”. (sic) Disponível em:
http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4380642. Acesso em: 10 jul. 2017.
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Joana de Avis foi a mais ilustre benfeitora do Mosteiro, vivendo nele boa parte
da sua curta existência e falecendo entre as freiras em 12 de maio de 1480, em
decorrência de uma doença que lhe acometeu no período da peste, que devastava
Portugal. Tendo chegado a chaga na cidade em 1479, a Infanta foi obrigada a ir para o
Convento de Santa-Clara-de-Coimbra, mas, em seu regresso a Aveiro, caiu gravemente
doente até o seu falecimento na Sala do Lavor, com apenas 38 anos. Encontra-se
sepultada em um belo túmulo localizado no Museu de Aveiro, onde funcionou o antigo
espaço do Mosteiro20.
A Infanta nunca foi canonizada, tendo alcançado, entretanto, a beatificação em
1693, pelo Papa Inocêncio XIII, por meio da Breve Sacrosancti Apostolatus cura, após um
complexo processo iniciado em 1626. Apesar de não ser santificada, Joana é conhecida
em Portugal como a “Princesa Santa Joana”, tendo, inclusive, passado a ser a padroeira da
Diocese de Aveiro, em substituição a Santa Ana, a partir de 1965, por determinação do
Papa Paulo VI. Desde esse ano, a data da sua morte foi decretada como feriado nacional,
ocorrendo procissões de culto à “Santa Joana”.
Portanto, o legado de Joana de Avis, não só para o Mosteiro de Jesus, mas, para
toda a comunidade de Aveiro, pode ser considerado um dos mais notáveis da história
medieval portuguesa, sendo que vários documentos e bens do seu espólio estão entre o
acervo do Museu de Aveiro. Dentre esse espólio, destacam-se:
20“O seu magnífico túmulo desenhado pelo arquitecto João Antunes foi encomendado por Frei
Pedro Monteiro por ordem de D Pedro II. Uma arca paralelepipedal de mármores policromados
embutidos, que assenta num bloco tendo em cada lado uma Fénix esculpida, quatro anjos nos
cantos a suportá-la e é rematada pelas armas reais” (MONTEIRO, 2014, p. 26).
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Para além da Joana, a Princesa Santa, resta, ainda, a Joana da estética, da arte do
Retrato e seus significados. Busca-se, assim, na multiplicidade, na complexidade das
fontes, alcançar os elementos da construção da história.
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preservação, de sua memória, uma vez que a sua própria existência e identidade, de uma
forma específica, só se dão em razão de um estilo ou forma de vida do homem no
passado. José Mattoso (2002, p. 15) define o significado amplo do que seria esse “fazer
história”:
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Tem-se, assim, que a aliança entre a interpretação da arte do retrato e dos seus
criadores - os artistas, com as demais fontes historiográficas, como, no caso em tela, o
discurso hagiográfico, se fazem muito produtiva para a compreensão da história.
Nesse contexto, se insere a intepretação do retrato da Princesa Santa Joana e em
que a observação desta iconografia pode viabilizar o alcance da vida da personagem
retratada, a responder os questionamentos feitos neste estudo.
Historicamente, a referida obra de arte é uma pintura feita a óleo,
provavelmente de autoria do artista português Nuno Gonçalves21, datada do período
21 Nuno Gonçalves Pintor foi um dos artistas portugueses reconhecido como um dos grandes
mestres da pintura do século XV, sendo mesmo considerado um artista universal, apesar do seu
trabalho ter restado perdido durante muito tempo. O mais provável é que tenha pertencido ao meio
cultural abrigado na corte de Afonso V por volta do ano de 1450, daí atribuir a ele o “Retrato da
Princesa Santa Joana”, embora tal autoria ainda não seja completamente confirmada. A obra
principal de Nuno Gonçalves foi “Os Painéis de São Vicente de Fora”, composta por seis painéis e
descobertos em 1882, no Paço Patriarcal de São Vicente de Fora em Lisboa, hoje encontrando-se
exposta no Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa. Em razão de tal obra, o artista foi
considerado, pelo escritor Francisco Hollanda, um dos grandes pintores renascentistas, conforme
esclarece José de Figueiredo: “Que se saiba, foi Francisco de Hollanda o escritor que primeiro se
referiu ao autor dos quadros de São Vicente. Nomeia-o duas vezes, na sua obra Da Pintura Antiqua,
constituída por dois livros e existente na Biblioteca Real de Madrid. É, portanto, o testemunho
quase de um contemporâneo, pois Nuno Gonçalves ainda vivia e trabalhava em 1471 e Hollanda
concluiu estes dois livros, um em 1548, o outro, no começo de 1549. Hollanda, que, de regresso da
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entre 1472 e 1475. O Retrato da Princesa Joana faz parte do acervo do Museu de Aveiro,
local onde funcionou, por mais de quatro séculos, o Mosteiro, palco da vida religiosa da
Infanta Santa22.
Itália, e com uma grande ilustração, mas sem o estofo de um grande artista, chega, sobretudo, com
o espírito cheio de regras e preceitos e não compreende o encanto da nossa escola de pintura de
então, ainda hoje admirável, precisamente pelo seu naturalismo vitalizador e pela consequente
desobediência às formulas que foram a causa da decadência da arte italiana da Renascença, deante
dos quadros de Nuno Gonçalves, teve, apesar d’isso um momento de espanto pela grandeza do seu
valor, e, sem hesitação, ele que tudo condenemna, inclue o seu autor na sua Tavoa dos famosos pintores
modernos a que eles chamam águias. [...] Ahi, n’essa referencia, que vem quasi no fim do livro segundo
Da Pintura Antiquia, não nos dá Hollanda o nome do pintor o altar de S. Vicente de Lisboa. Essa
indicação é, porém, esclarecida com outra, em que Hollanda, na mesma obra, nos diz o nome do
artista portuguez que tanto o enthusiasmou. ‘Quero fazer menção de hum Pintor Portuguez que
merece memoria, pois em tempo meio bárbaro quis imitar n’alguma maneira o cuidado e a discrição
dos antigos Italianos Pintores; e este foi Nuno Gonçalves, Pintor de el-rei D. Affonso, que pintou
na Sé de Lisboa o altar de S. Vicente, e creio que também he da sua mão hum Senhor atado à
coluna, que dous homens não açoutando, em huma capella do mosteiro de Trindade, etc’.” (sic)
(FIGUEIREDO, 1910, p. 71-72).
22 Conforme ficha catalográfica, tem-se as características da obra: “N.º de Inventário:1/A.
Supercategoria: Arte. Categoria: Pintura. Denominação: Retrato de Santa Joana Princesa. Autor:
Nuno Gonçalves (atr.). Local de Execução: Lisboa(?). Centro de Fabrico: Lisboa (?).
Oficina/Fabricante: Lisboa(?). Datação:1472 d.C. - 1475 d.C. - Época Moderna. Matéria: Óleo.
Suporte: Madeira de castanho. Técnica: Pintura. Dimensões (cm): altura: 60; largura: 40; Descrição:
Busto da Princesa Santa Joana, de frente, em traje de corte. Cabelo comprido de cor clara; cabeça
cingida por crespina em ouro, com pedraria e pérolas. Vestido com decote rendado, pronunciado
em bico. Mão direita sobre o colo, parcialmente coberta por uma madeixa de cabelo, apresentando
um anel no dedo indicador. Incorporação: Outro - Extinção das ordens religiosas - Nacionalização
dos bens da Igreja. Origem/Historial: Retrato provavelmente trazido por D. Filipa (filha do Infante
D. Pedro, Duque de Coimbra) para o Convento de Jesus de Aveiro, local onde permanece”.
Disponível em:
http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=95841.
Acesso em: 11 jul. 2017.
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inferior, entre a íris e a pálpebra, e não escondem uma certa apatia, uma tristeza, o mais
provável é que caracterize a vida conflituosa da Princesa.
Pelo que se percebe, Joana se apresenta muito séria, quase soturna,
possivelmente por não aparentar alegria em ser retratada como foi, sem nenhum
ornamento religioso, podendo concluir que a Princesa fora pintada em sua imagem de
realeza, com a pose e a representação deste papel. Sem o rosário ou sem a coroa de
espinhos, Joana de Avis, no Retrato, não parece estar em sua inteireza, na relevância da
sua completitude. Apesar disto, mesmo diante da intenção do artista de apresentá-la
apenas como a “Princesa Joana”, na arte do retrato a sua face santa pode ser
compreendida pela observação da sua expressão, o que demonstra a sutileza das mãos do
pintor.
Importante relatar, ainda, que o Retrato da Princesa é uma obra do século XV e,
portanto, já na esteira do Renascimento, o que pode ter provocado no artista uma estética
não tão intensamente voltada para a religiosidade, como no período medieval,
apresentando aspectos próprios do retrato moderno, cuja estética foi uma das mais
notáveis experiências artísticas renascentistas23. Ressalta-se, porém, que os períodos
históricos são meros marcos temporais, sendo, assim, permeados por permanências e
rupturas, e, no aspecto da arte, embora cada período possa carregar consigo
características específicas, não se pode determinar uma ruptura total, mas, antes, um
estreito contato entre estilos e formas, sobretudo quando se pensa num tempo em
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movimento entre o medievo e o moderno, como foi aquele em que provavelmente Nuno
Gonçalves tenha pintado a obra “O Retrato da Princesa Joana”:
A Infanta, que talvez não tenha refletida na pintura a imagem que tanto desejou
verter em sua vida de humildade, penitência e caridade, encerra em seus olhos profundas
indagações: na estampa do retrato, serás Joana, a Santa, ou Joana de Avis, a Princesa?
Afinal, pelas mãos sutis do artista, não terá ele alcançado, na construção da estética, os
conflitos de uma “Princesa Santa”?
24Conforme explicita Georges Duby: “No entanto, durante esse milênio as coisas não pararam de
se transformar na Europa emergente, e em determinados momentos tão depressa quanto hoje. Ao
afetarem as relações sociais e os diversos componentes da formação cultural, as transformações
modificaram as condições da criação artística. Os núcleos do poder deslocaram-se, e à medida que
o “pensamento selvagem” pouco a pouco refluiu, ao mesmo tempo e que se restringia a influência
dos homens da Igreja, acentuou-se a influência da terceira função da arte. Por isso, no espírito dos
contemporâneos foi se ampliando imperceptivelmente o lugar daquilo que no edifício, no objeto,
na imagem não é funcional “mas proporciona apenas o simples prazer” (DUBY, 2002, p.17).
Talvez por essa imagem do prazer, o poeta português Porfírio Silva, referindo-se ao Retrato da
Princesa Santa Joana, assim inicia a declamação de um poema dedicado a Joana de Avis, constante
da sua obra “Monstros antigos”: “Princesa, cai entre os cabelos como moldura dos seios e dos
ombros, o colo descoberto, quão tentador pode ser o colo de uma mulher a qualquer hora…”.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NXLxNDW58Pc. Acesso em 11 jul. 2017.
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4 Considerações finais
O presente trabalho proporcionou o conhecimento dos principais aspectos da
vida e dos conflitos da Princesa Santa Joana, a intensidade da manifestação da sua fé,
mesmo diante da responsabilidade dos deveres da realeza. Pertencer à corte de Avis, além
de permitir o contato com a vida cultural, desenvolveu na Infanta Joana o senso político,
sem, contudo, chegar a impedi-la de exercer a sua vocação religiosa.
A oposição ao dever do casamento, por exemplo, fez de Joana um exemplo de
resistência feminina num contexto de dominação masculina, tendo em vista a importância
e o simbolismo dos laços matrimoniais na Idade Média. Casar, entre nobres, significava
união de poderes entre “iguais”, uma vez que, no período medieval, não era concebível o
casamento entre membros de estamentos diversos, pois, a mobilidade social era
praticamente inexistente. Desta feita, não casando, Joana de Avis abdicava de seu
principal dever como mulher nobre e, mais do que isto, pertencente à realeza: união de
poderes, ampliação e fortalecimento do domínio real. O múnus do casamento
caracterizava, no âmbito da nobreza, a expressão feminina das relações de fidelidade.
A Princesa Santa, portanto, acabou por exercer importantes papéis na história
medieval portuguesa e, da realeza ao mosteiro, muitas vezes, concebeu sua vida numa
aparente contradição, transitando em meio à importância das vestes de princesa e à
humildade da vocação religiosa. Na demonstração dessa vida dual, tanto no cumprimento
dos deveres religiosos quanto no contexto da realeza, Joana de Avis pautou-se pelos
valores da penitência, da clausura e da caridade, desde o sacrifício moral do exercício da
regência até o sacrifício físico das chagas provocadas pela coroa de espinhos que usou em
diversas ocasiões. Todos estes fatores, aliados à morte prematura da Princesa, com apenas
38 anos, vitimada pela peste, tornaram Joana de Avis um ícone da devoção cristã em
Portugal.
Assim, pela análise tanto da “Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus, de
Aveiro, e Memorial da Infanta Santa Joana Filha Del Rei Dom Afonso V”, quanto do
“Retrato da Santa Joana Princesa”, foi possível alcançar elementos da sua vida, além da
compreensão do contexto da Idade Média portuguesa, servindo tais documentos como
fontes historiográficas de particular relevância para o desenvolvimento do estudo. Se a
observação da iconografia do retrato permitiu a conexão da imagem com a vida da
Princesa e seus conflitos, a interpretação da narrativa hagiográfica viabilizou conhecer a
Infanta em seu contexto e em sua época.
A presente pesquisa possibilitou compreender que a abordagem teórica da
hagiografia deve ultrapassar as discussões que conduzam ao reducionismo de criar
dicotomias na análise do discurso, ou seja, se é historiográfico ou literário. Além disso, é
por meio da iconografia do retrato que se alcança a imagem, torna palpável a vivência e
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