Antropologia Sociocultural
Antropologia Sociocultural
Antropologia Sociocultural
2015
Gestão 2015/2019
Equipe EdUFGD/2012 Universidade Federal da Grande Dourados
Coordenação editorial: Edvaldo Cesar Moretti Reitora: Liane Maria Calarge
Administração: Givaldo Ramos da Silva Filho Vice-Reitor: Marcio Eduardo de Barros
Revisão e normalização bibliográfica:
Raquel Correia de Oliveira Equipe EdUFGD
Programação visual: Marise Massen Frainer Coordenação editorial:
Rodrigo Garófallo Garcia
CONSELHO EDITORIAL Administração: Givaldo Ramos da Silva Filho
Edvaldo Cesar Moretti - Presidente Revisão e normalização bibliográfica:
Célia Regina Delácio Fernandes Cynara Almeida Amaral, Raquel
Luiza Mello Vasconcelos Correia de Oliveira, Tiago Gouveia
Marcelo Fossa da Paz Faria e Wanessa Gonçalves Silva
Paulo Roberto Cimó Queiroz Programação visual: Marise Massen Frainer
Rozanna Marques Muzzi e-mail: [email protected]
Wedson Desidério Fernandes
CONSELHO EDITORIAL
A presente obra foi aprovada de acordo Rodrigo Garófallo Garcia - Presidente
com o Edital 04/2012/EdUFGD. Marcio Eduardo de Barros
Os dados acima referem-se ao ano de 2012. Thaise da Silva
Marco Antonio Previdelli Orrico Junior
Editora filiada à
Gicelma da Fonseca Chacarosqui Torchi
Rogério Pereira Silva
Luiza Mello Vasconcelos
ISBN: 978-85-8147-108-2
Possui referências
II - ENTENDENDO A HUMANIDADE........................................ 17
Cultura, o objeto de estudo da Antropologia...................... 17
O homem e o ambiente............................................... 23
O homem através de seu passado................................... 28
V - A PESQUISA ANTROPOLÓGICA......................................... 53
Entre o inefável, o inescrutável e o ininteligível.................. 53
O que é uma pesquisa para as ciências sociais?................... 57
Como proceder no trabalho de campo?............................. 60
De posse dos dados de campo........................................ 65
BIBLIOGRAFIA................................................................ 77
I
A ANTROPOLOGIA:
UMA APRESENTAÇÃO NECESSÁRIA
6
um todo e em “caráter global comparativo”, enquanto outras disciplinas,
como a história ou a psicologia, estudam aspectos específicos da huma-
nidade. Claro que é impossível existir um cientista com conhecimento
suficiente para estudar a humanidade como um todo. Foi necessário en-
tão estabelecer divisões para facilitar o trabalho antropológico. No Brasil,
inicialmente, tinha-se por base uma antropologia essencialmente social,
focada no entendimento de como as sociedades se organizam. Contudo,
nos últimos anos, vem se estabelecendo com força um modelo de antro-
pologia mais holístico, pensado a partir de quatro campos. Este modelo,
de origem norte-americana, mostrou-se também eficaz para entender a
grande diversidade cultural de um país como o Brasil:
7
-históricos para averiguar como um indivíduo viveu e morreu no passado
remoto (paleopatologias).
8
Etnologia – primeiro passo em direção à síntese. Os dados levanta-
dos em trabalhos de campo são analisados e cruzados, buscando formar
um conhecimento mais abrangente sobre uma determinada sociedade.
No Brasil o termo “etnologia” é associado ao estudo das etnias indígenas.
Contudo, em alguns países, a etnologia é voltada ao registro dos saberes e
fazeres tradicionais, em uma estreita relação com o folclore.
9
área. Ver o país, sem levar em conta a perspectiva da antropologia, passou
a ser entendido como uma discrepância, o que resultou na inserção de
conteúdos antropológicos em outros campos do saber situados além das
ciências humanas puras, como o jornalismo, a administração, o direito e
a medicina. A força associativa dos antropólogos também gerou mudan-
ças nas políticas públicas, o que desencadeou a necessidade de relatórios
antropológicos antes da implantação de qualquer empreendimento que
afetasse diretamente sociedades tradicionais.
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Antes, não havia no Brasil cursos de graduação em antropologia.
Os antropólogos eram formados especialmente a partir de cursos stricto
sensu, ou seja, a formação se dava nos níveis de mestrado e doutorado.
Isso gerava um problema: retardava consideravelmente o ingresso do pro-
fissional no mercado de trabalho, o que num país em franco crescimento
se traduziu em grave carência de mão de obra. Os profissionais altamente
especializados acabavam por se incorporar ao corpo docente das uni-
versidades, gerando um grande vazio nas outras frentes de trabalho. De
certa forma, os cursos de graduação em ciências sociais, com o modelo
de formação em três campos (antropologia, sociologia e ciência política)
passaram a ser a principal fonte de formação de antropólogos. Mesmo
assim, a formação em nível de pós-graduação continuava a ser necessária
para se atingir o nível de conhecimento e excelência esperados de um
antropólogo.
Associação Brasileira de Antropologia (ABA) foi determinante
para o sucesso da área no país. Os congressos bianuais da ABA chegam
a receber mais de dois mil participantes, demonstrando quão coesa é a
comunidade antropológica brasileira. As políticas de ensino de antropo-
logia são amplamente discutidas pela ABA, que emite orientações às uni-
versidades quanto à constituição de cursos Brasil afora, sejam esses de
graduação ou de pós-graduação. E especialmente nas últimas décadas a
ABA passou a lidar com um problema central: a demanda por antropólo-
gos no mercado de trabalho brasileiro é eminente, e a oferta de formação
está muito aquém da necessidade.
Mas por que há tão poucos cursos de graduação no Brasil? A res-
posta é simples: a criação de cursos de pós-graduação stricto sensu (mes-
trado e doutorado) no Brasil foi interpretada por muito tempo como o
caminho mais apropriado para a formação de antropólogos. O primeiro
programa de pós-graduação em antropologia criado no Brasil foi o da
Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional em 1968 e, ape-
sar de relativamente recente, detém abrangência e prestígio internacio-
11
nais. Mas o crescimento na oferta de cursos de pós-graduação em antro-
pologia foi pequeno se comparado com outras áreas acadêmicas.
Quanto às estruturas curriculares dos cursos de Antropologia stric-
to sensu no Brasil, existe um modelo que parece ter sido a fonte de inspi-
ração para a formulação da maioria dos cursos. Guillermo Sanabria, em
sua dissertação de mestrado intitulada O ensino de antropologia no Brasil:
um estudo sobre as formas institucionalizadas de transmissão da cultura argumen-
ta que este modelo estrutural parte das disciplinas teóricas básicas que
aproximam os alunos de uma tradição antropológica, seguido de um rol
de optativas que irá conduzir a formação por meio de escolha do campo
de atuação por parte do discente. Não é de se estranhar que os cursos
repitam modelos consagrados por escolas antropológicas mais “tradicio-
nais”, pois as comissões que avaliam o credenciamento dos novos cursos
são justamente compostas por professores destacados de programas em
operação. Ou seja, existe uma tendência em reproduzir os modelos an-
teriores e, não raramente, as novas propostas que fugiam a este sistema
clássico eram negadas ou devolvidas com pedidos de ajustes. Felizmente
essa realidade vem mudando, abrindo espaço para propostas mais ousa-
das e diversificadas.
Por fim, não havia mais como segurar uma demanda tão reprimi-
da. A nova realidade econômica brasileira e a crescente necessidade de
antropólogos acabaram desencadeando, ainda que tardiamente, a criação
de cursos de graduação em Antropologia. A última década foi marcada
pela implantação de cursos de graduação em várias instituições, e a antro-
pologia passou a ser representada em praticamente todas as mesorregiões
brasileiras. Os cursos de antropologia normalmente são concebidos de
forma combinada, como antropologia social e arqueologia ou, ainda, an-
tropologia e patrimônio cultural. A tendência é que a oferta de cursos de
Antropologia continue crescendo.
12
Quadro de instituições credenciadas pelo Ministério da Educação que possuem
cursos de graduação em atividade nas áreas de antropologia e arqueologia.
UFF Antropologia
UFMG Antropologia
Sudeste
UFSCar Ciências Sociais/Antropologia
UNICAMP Ciências Sociais/Antropologia
UFSC Antropologia
UFPel Antropologia Social/Cultural/Arqueologia
Sul
UNILA Antropologia/Diversidade Cultural
FURG Arqueologia
13
O cientista social é também um antropólogo?
14
Acadêmicas desenvolvendo trabalho de campo em usina de álcool, estado do Acre.
II
ENTENDENDO A HUMANIDADE
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Contracapa do Volume 7 de Americae, de Theodor De Bry (1592). Indígenas
americanos retratados em duas das representações que mais povoaram o imaginário
europeu: em postura de idolatria, em que o mbaraká é evidentemente associado
aos espectros do inframundo; e, mais abaixo, em prática antropofágica. Acervo da
Biblioteca Histórica da Universidade de Salamanca. Reprodução digital autorizada.
19
Foi assim que entre os séculos XVIII e XIX ocorreu uma acirra-
da discussão entre duas escolas, a francesa e a alemã, discussão essa que
influenciou significativamente o campo da Antropologia. De um lado, a
escola racionalista francesa reivindicava uma busca pela “civilização”
mundial científica e progressista, a única forma de a humanidade atingir
seu máximo estágio intelectual. Em oposição, aparece a escola idealista
alemã, que vê no ideal de cultura uma forma de defender a tradição na-
cional em face a civilização cosmopolita. Assim estava montado o cenário
da luta intelectual: a escola alemã, apoiada no conceito de Kultur, contra a
escola francesa; alicerçada no conceito de civilization.
Da escola francesa, decorre um modelo de pesquisa mais volta-
do para os aspectos da organização social, fornecendo subsídios para a
constituição de uma posterior antropologia social. Já a escola alemã, ao se
propor investigar como se dava o amoldamento das culturas particulares,
teceu sua colaboração para a formação de uma antropologia cultural.
Em um dado momento da história, as duas correntes convergiram
para uma forma mais uníssona de antropologia, diminuindo as divergên-
cias entre a antropologia cultural e a antropologia social. Em comum,
ambas passaram a se ocupar do estudo da cultura humana, mas para
tanto era necessário aperfeiçoar o conceito de cultura. Na tentativa de
estabelecer uma revisão histórica desse conceito, Alfred Kroeber e Cly-
de Kluckhohn chegaram a 164 definições de cultura. Hoje temos vários
conceitos instrumentais, mas a antropologia ainda se debate em busca de
um conceito apropriado.
Em suma, sabemos que cultura se refere ao conjunto de pautas
aprendidas e transmitidas, sobre as quais toda sociedade está alicerça-
da e fundamenta sua vivência social. A cultura pode ser transmitida de
geração em geração, quando os mais velhos se encarregam de incitar os
mais jovens a seguir padrões de comportamento, num processo que vem
desde o nascimento e que na antropologia denominamos endoculturação. A
cultura também pode ser ampliada ou modificada por meio de aspectos
20
incorporados de outras sociedades e esse processo de transmissão de pau-
tas culturais de uma sociedade para outra recebe o nome de difusão cultural.
Dessa forma, organizamos todos os conhecimentos herdados de
nossos ancestrais e adquiridos ao longo de nossa vida. Mas a cultura é
dinâmica em sua essência e em razão disso não se pode esperar que as
sociedades humanas permaneçam inalteradas. Isso garante que a rendeira
tradicional utilize métodos seculares para compor seus bordados, mas
que não abra mão da internet para divulgar o artesanato de suas comu-
nidades. A identidade de um povo é formada por elementos culturais,
materiais e imateriais, que garantem a coesão social e permitem que o
universo dos atores sociais se equilibre dentro de bases ideológicas e re-
presentações acerca do passado e do futuro. Os elementos culturais her-
dados de nossos ancestrais são classificados como patrimônio cultural.
E na qualidade de patrimônio, além de herdado será também legado às
gerações futuras, cabendo a nós, que vivenciamos o presente, estabelecer
uma correta gestão de nossos bens culturais.
Toda nossa identidade é moldada com base em um substrato cul-
tural. Esta cultura pode se manifestar por duas vias: a cultura material
e a cultura imaterial. A primeira é composta de elementos físicos, pal-
páveis, como objetos e artefatos, cujos empregos são arranjados e rear-
ranjados no interior da sociedade. Já o patrimônio imaterial é formado
por toda gama de saberes e fazeres moldados no campo do simbólico, do
abstrato e do não palpável. Nesta ampla categoria estariam incluídos os
cantos, a religião, as lendas, as danças e todas as outras manifestações do
intelecto humano. Sendo assim, estabelecemos elos contínuos com nosso
patrimônio cultural a fim de auferir este sentido de mundo. Quando o
patrimônio cultural é degradado por influências externas e indesejadas,
decorre um processo de instabilidade social pela perda da memória e pelo
não reconhecimento de um passado e presente compartilhados, substra-
tos vitais para dotar nosso mundo de sentido.
21
Estatueta de escriba egípcio, exemplo de cultura material –
acervo do Museu do Louvre em Paris, França.
22
Durante muito tempo se acreditou que as sociedades tradicio-
nais — comunidades que vivem de economia de pequena escala, manten-
do as tradições de seus saberes e fazeres, diferentemente das sociedades
ocidentais industrializadas — não resistiriam ante a ação implacável da
globalização. Contudo, estes grupos humanos se levantaram para reivin-
dicar o reconhecimento de suas diversidades, demandando da sociedade
dominante políticas de tolerância e valorização dos modos tradicionais
de vida.
Há uma enorme dificuldade em pensarmos a diferença. O dife-
rente é o estranho, causa medo e se tende a repelir. Os grupos humanos
normalmente possuem uma visão de mundo onde sua própria sociedade
é tomada como centro, pensando os ‘outros’ a partir de seus próprios va-
lores e modelos. Chamamos etnocentrismo essa tendência que uma sociedade
ou etnia tem de achar que suas condutas são as melhores e mais belas,
devendo assim ser seguidas por todos os outros povos. Em certa medida,
todas as sociedades do mundo são etnocêntricas, seja em maior ou me-
nor grau. Trata-se de um pensamento básico de oposição: de um lado o
grupo do ‘eu’, que compartilha gostos e conceitos; de outro o ‘diferente’,
o ‘estranho’.
Mas o estranhamento é fundamental, pois ao constituir a imagem
do outro por sua vez estamos facilitando o aparecimento da autoimagem.
Surge a alteridade, conceito fundamental na antropologia. Para fugir do
etnocentrismo a antropologia faz uso do relativismo cultural. Relativi-
zar é aceitar e entender o outro como uma alternativa viável, livrando-se
dos preconceitos. Não há sociedade melhor ou pior, há apenas socieda-
des diferentes, cada qual vivendo de acordo com sua cultura.
O homem e o ambiente
23
manutenção: o vegetal aproveita a energia do sol por meio da fotossíntese;
o homem, por sua vez, está transformado o vegetal em calorias para so-
breviver. O fogo, utilizado para aquecer as lareiras das casas, é mais um
exemplo de como os galhos de uma árvore são transformados em outra
fonte de energia, o calor. São elos de uma cadeia: o sol alimenta o pasto,
o pasto alimenta a cabra e a cabra alimenta o homem.
Produção, então, é o resultado da aplicação da tecnologia e do tra-
balho humano nos recursos naturais. Dessa forma, a produção de energia
constitui a maneira de viver de um povo. Cada sociedade cria um enorme
conteúdo cultural que vai ditar as normas a serem respeitadas na satisfa-
ção das necessidades mais básicas. Esta gama de saberes populares que
moldam a relação homem-ambiente se converte em rico material de estu-
do para as ciências sociais.
Os quatro modos básicos de produção são: caça e coleta, agricul-
tura de corte e queimada, agricultura de irrigação e pastoreio nômade.
É com base nestes sistemas produtivos que as sociedades que vivem de
forma tradicional garantem seu sustento.
A caça e coleta é o modelo mais elementar de produção, em que
o homem extrai o necessário para sua subsistência por meio da caça de
animais e coleta de plantas, frutas e raízes disponíveis no entorno. Este
tipo de economia só pode manter pequenos grupos, de 20 a 30 pessoas.
Este modelo foi o primeiro a ser empregado pelo homem em tempos
pré-históricos, acompanhando a humanidade ao longo de sua existência.
Hoje, poucos grupos isolados, como os que vivem em florestas tropicais
ou nas savanas africanas, empregam este modo econômico.
A agricultura de corte e queimada é um modelo de produção
que permanece em uso entre muitas comunidades de pequena escala.
Neste sistema, a vegetação em uma área a ser destinada para o plantio
é cortada e em seguida é ateado fogo. O objetivo é limpar a área para o
plantio e o carvão resultante da queima, em um primeiro momento, serve
de nutriente. Contudo, neste sistema o solo se esgota rapidamente, sendo
a comunidade obrigada a abandonar as terras cultivadas em um prazo
24
médio de cinco anos. Este sistema depende da participação das famílias e
é capaz de manter comunidades com até cerca de 200 pessoas.
Já a agricultura de irrigação parece ter superado as dificuldades
que se apresentam no modo de corte e queimada. Ao irrigar as terras o
agricultor aumenta seu potencial produtivo. Associando a irrigação com
um sistema de rotação de culturas, as comunidades passaram a usufruir
seus territórios de plantio por tempo indeterminado. Os plantadores de
arroz dos campos da China são um exemplo desse tipo de economia, que
lá data de milhares de anos. Com uma grande quantidade de excedentes,
tem-se início um intenso comércio e aparece a especialização da mão de
obra. Ou seja, se nas outras comunidades todos os seus membros pos-
suem as mesmas obrigações, com este novo sistema econômico as pes-
soas passam a se dedicar a atividades específicas: surgem os agricultores,
os artesãos, os comerciantes. As grandes civilizações, que surgiram às
margens do Tigre e Eufrates há mais de 5 mil anos, passaram por esse
processo de especialização da mão de obra.
O pastoreio nômade é normalmente empregado por grupos hu-
manos que vivem em regiões inóspitas, como nos desertos do Saara ou
da Mongólia. Diante de um clima hostil ao homem, essas comunidades
aprenderam a sobreviver conduzindo suas cabras e camelos de oásis em
oásis, estabelecendo trocas comerciais com outros grupos.
Diante desses modelos econômicos está a questão familiar mais
básica: os pais enfrentando a natureza para dar sustento a seus filhos. A
isso denominamos economia de status, na qual os bens são produzidos
e distribuídos não por compra e venda, mas por força dos direitos e obri-
gações tradicionais. Em suma, um pai ou uma mãe não fornecem uma
refeição aos filhos porque estes a compraram, mas sim porque o sustento
da prole faz parte da obrigação tradicional destes pais.
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Os estudos antropológicos direcionados para a relação entre ho-
mem e ambiente atualmente compõem o campo de estudo denominado
antropologia ecológica. A maneira como o homem se utiliza dos recur-
sos disponíveis e os transforma, agregando significado cultural aos ele-
mentos da natureza, constitui o principal foco de estudo do antropólogo.
Plantas, animais, elementos da natureza passam a integrar uma série de
estruturas simbólicas e cosmológicas a fim de moldar o universo social
e conferir sentido de vida para os homens e mulheres que vivem de eco-
nomia tradicional.
Comunidades de pescadores artesanais, ou ainda sociedades agro-
pastoris de pequena escala são alguns exemplos de grupos humanos que
compõem o objeto de estudo da antropologia ecológica. Praticam mo-
dos produtivos centrados em conhecimentos tradicionais passados de pai
para filho ao longo de muitas gerações. Alguns desses conhecimentos são
milenares.
Entre os pescadores artesanais da ilha de Santa Catarina, a vida
social obedece a uma clara ordem cosmológica. Os elementos naturais,
como mar ou o clima, são interpretados de modo a orientar as ações co-
letivas. Muitas vezes, seres sobrenaturais, como as bruxas, são evocados
26
para justificar o insucesso de empreendimentos ou os males que assolam a
comunidade. Os pescadores artesanais hoje vivem um conflito contra os
pesqueiros industriais, a quem responsabilizam pela redução dos estoques
pesqueiros. Esse problema econômico gerou instabilidade social e tensão,
levando os mais jovens ao abandono das tradições, dilema que se repete
em muitas outras comunidades tradicionais do Brasil e no mundo afora.
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Num dado momento, descobriu-se que as sociedades distribuíam
de forma diferente a organização do trabalho. Elas foram então classifi-
cadas dentro de dois graus distintos de integração dos indivíduos: a so-
lidariedade mecânica e a solidariedade orgânica. Na solidariedade me-
cânica as atividades de subsistência são desenvolvidas sem observar uma
rigorosa divisão do trabalho, podendo a mesma tarefa ser desenvolvida
por membros de categorias sociais distintas. Já na solidariedade orgâni-
ca, a sociedade está formada por unidades díspares ou por grupos espe-
cializados envolvidos de forma estrita em suas funções.
28
do passado humano através dos restos materiais; onde o conceito de pas-
sado assume uma dimensão bem mais flexível, podendo ser um passado
remoto ou recente.
Mas, para fazer arqueologia, independentemente da escala de tem-
po trabalhada, o mais importante é a capacidade do arqueólogo em pro-
por interpretações sobre o estilo de vida das populações do passado. A
partir das evidências materiais o arqueólogo organiza informações que
dão suporte para criar uma série de interpretações de como algo poderia
ter sido ou ocorrido no passado.
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dade passou a entender melhor sua origem, reconhecendo a importância
de estudar os povos do passado. A arqueologia, assim, constituiu-se como
disciplina científica, passando a incorporar técnicas e métodos que foram
gradativamente aprimorados.
Hoje, a arqueologia conta com a colaboração de diversas outras
áreas do conhecimento para interpretar as evidências do passado. Com
sua essência multidisciplinar, busca suporte nos campos da física, da quí-
mica, da geografia, da geologia, da biologia, da medicina, entre outros. As
datações são o resultado da análise de processos físico-químicos. Com o
avanço da medicina, muitas técnicas de diagnóstico são empregadas tam-
bém em evidências do passado, como o uso de tomografia computadori-
zada para o estudo de múmias do Egito. Pesquisando ossadas humanas
provenientes de sítios arqueológicos, a biologia nos ajuda a entender as
doenças que acometeram os indivíduos do passado.
O estudo arqueológico tradicional está embasado na escavação.
Um sítio arqueológico é o local onde ocorrem evidências materiais da
presença humana no passado, como uma cidade antiga ou um assenta-
mento de caçadores e coletores. O sítio a ser escavado é recoberto por
uma malha quadriculada, com quadrículas de 1x1m ou 2x2m. Cada qua-
drícula é escavada individualmente obedecendo a uma progressão artifi-
cial de dez em dez centímetros. Cada dez centímetros de terra removida
corresponde a um nível arqueológico, e cada nível deve ser exaustivamen-
te registrado com fichas de campo, fotografias e todo recurso adicional
possível. Por fim, o material é removido e levado ao laboratório, onde
será minuciosamente analisado.
30
Acadêmicos da UFGD em aula prática de arqueologia.
31
No Brasil, a arqueologia é praticada por profissionais qualificados
e muito bem avaliados no cenário mundial. O Brasil tem sido palco de
importantes descobertas arqueológicas que alteraram completamente a
percepção que se tinha da pré-história no país. A primeira grande per-
gunta que paira nos anais da ciência é “quando o homem chegou à Amé-
rica?”. Sabemos que o homem surgiu na África e após vários processos
evolutivos a espécie chamada Homo erectus migrou para a Europa e Ásia.
Por fim, chegamos à nossa espécie, Homo sapies, que se tornou hegemô-
nica. O Homo sapiens surgiu por volta de 500 mil anos e há 120 mil anos
teve origem a subespécie à qual pertencemos na atualidade, o Homo sapiens
sapiens.
Durante a última glaciação, hordas de caçadores teriam cruzado o
Estreito de Bering seguindo o deslocamento de animais da Megafauna.
Até então se pensava ser esta a única forma de acesso do homem ao con-
tinente americano e que esta passagem teria ocorrido há cerca de doze mil
anos, modelo proposto pela arqueóloga norte-americana Betty Meggers
na década de 1950. Contudo, novos achados forçaram uma revisão dos
modelos estabelecidos. Em Monte Verde, no Chile, datações atestam a
presença do homem há pelo menos 15 mil anos. No Piauí, a equipe do
Museu do Homem Americano obteve uma data de 30 mil anos para a
ocupação humana na região da Serra da Capivara. Dessa forma, como
poderia o homem estar na América do Sul antes do período da formação
da ponte de gelo no mar da Beríngia?
32
Estreito de Bering
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Mas o enigma também se estendia para o campo da antropologia
biológica. A migração que cruzou o Estreito de Bering há 12 mil anos
teria sido de matriz mongólica, dando origem a todos os povos indígenas
conhecidos no continente americano. Contudo, em Lagoa Santa, estado
de Minas Gerais, arqueólogos descobriram a ossada de uma mulher com
cerca de 11 mil anos com características negroides, muito similar aos atu-
ais aborígenes australianos. Nos Estados Unidos, no Lago Kennewick em
Washington, cientistas descobriram os restos de um esqueleto de caracte-
rísticas indo-europeias com idade de nove mil anos. Se não passaram por
Bering há 12 mil anos, como teriam então chegado à América?
Uma das hipóteses seria a de que o homem teria aprendido a na-
vegar muito antes do que se imagina. Mas a ideia não é tão recente. Na
década de 1950, o escandinavo Torben Heyerdahl montou uma expedição
chamada Kon-tiki, cujo objetivo seria provar que o homem poderia ter
navegado à América pelo Pacífico. Para tanto, Heyerdahl montou uma
embarcação rudimentar de junco, estabelecendo uma rota pelas ilhas do
Pacífico. O relativo êxito da expedição Kon-tiki e os achados de 50 mil
anos na Austrália vieram reforçar a hipótese de navegação transoceânica
na pré-história.
Diante de ocupações tão antigas no Brasil, é importante saber que
o clima daquela época era diferente do que temos hoje. O pleistoceno
corresponde, em nosso caso, ao último período da glaciação, que vai de
18 a 12 mil anos atrás. A partir de 12 mil anos se processou o fim da gla-
ciação e teve início um período pós-glacial chamado holoceno. Durante
esse período, entre pleistoceno e holoceno, o clima ainda era mais seco
e frio que o atual, o que influenciava na paisagem. Predominavam as
grandes savanas, o pantanal ainda não existia e a floresta amazônica era
uma grande savana. A isso chamamos paleoclima. A estabilização cli-
mática, chegando às características de clima e vegetação que temos hoje,
aconteceu a partir do ótimo climático, período entre 8 e 6 mil anos atrás.
Com o ótimo climático aumentou a umidade e a as áreas de florestas se
expandiram.
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Se a presença do homem no Brasil data de 30 mil anos, no Centro-
-Oeste os primeiros vestígios humanos estão situados por volta de 12 mil
anos. Em ambos os casos, como vimos, estamos falando de um clima e
uma vegetação bem diferentes. Ainda perambulavam pelo nosso conti-
nente espécies de megafauna pleistocênica, como o tigre-dentes-de-sa-
bre e a preguiça-gigante. Ou seja, é incontestável que homem e espécies
da megafauna pleistocênica compartilharam espaços geográficos. Con-
tudo, ainda é difícil afirmar, pelo menos no Centro-Oeste, se os animais
da megafauna teriam sido caçados pelo homem, pois até o momento não
foram encontrados vestígios dessa atividade – como ossos de animais
pleistocênicos com marcas de corte feitas pelo homem.
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suem. Os arqueólogos Emilia Kashimoto e Gilson Rodolfo Martins, em
pesquisas desenvolvidas no Rio Paraná, ao longo de seu curso pelo estado
de Mato Grosso do Sul, estabeleceram a data de 6 mil AP (antes do pre-
sente) como o período mais antigo de ocupação das suas margens. Este
novo momento de ocupação, em outras partes do Centro-Oeste, foi clas-
sificado como Tradição Serranópolis.
36
res, montadas em áreas abertas próximas às margens de rios. A cerâmica
Aratu-Sapucaí possui forma e dimensão variadas, predominando as va-
silhas periformes, esféricas ou elipsóides grandes, que podem chegar a
comportar centenas de litros.
Outro grupo ceramista de grande dispersão pelo território sul-ma-
to-grossense é o Tupiguarani. A tradição arqueológica Tupiguarani carac-
teriza-se pela produção de recipientes de grande dimensão com decora-
ções que vão de pintada à plástica (corrugada). Estima-se que o início da
ocupação do território que hoje corresponde a Mato Grosso do Sul por
ceramistas Tupiguarani tenha ocorrido há 1.300 A.P.
37
pinturas e as gravuras rupestres. Em mato Grosso do Sul, a maior área de
ocorrência de grafismos rupestres está na ampla faixa de transição entre
as terras altas do complexo serrano sul-mato-grossense e a planície pan-
taneira. Diante do atual estado de conhecimento, sabe-se da existência
de sítios rupestres nos seguintes municípios: Aquidauana, Corumbá, La-
dário, Coxim, Alcinópolis, Costa Rica, Sonora, Chapadão do Sul, Pedro
Gomes, Paranaíba, Rio Negro, Rio Verde, Corguinho, Jaraguari, Porto
Murtinho, Maracaju, Santa Rita do Rio Pardo, Bataguaçú, Antônio João e
Jardim. Contudo, o número de localidades em Mato Grosso do Sul onde
se registram sítios de arte rupestre tende a crescer com o aumento das
pesquisas arqueológicas.
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O primeiro passo no estudo da arte rupestre é o registro sistemá-
tico dos sítios arqueológicos desta natureza, estabelecendo a análise e o
ordenamento dos elementos representados por categorias. Este ordena-
mento leva em consideração determinadas variáveis, como estilo, técnica
de elaboração e de representação. Por fim, os elementos identificados
são dispostos em tabelas tipológicas de acordo com a similaridade dos
motivos. Isso permite ao pesquisador identificar as regras que compõem
o código pela repetição ordenada de motivos.
39
40
III
ORIGEM DOS MÉTODOS DA
ANTROPOLOGIA CULTURAL
42
veio a ser desenvolvida posteriormente por suas alunas, Ruth Benedict e
Margaret Mead.
Entre 1935 e 1938, o antropólogo belga radicado na França,
Claude Lévi-Strauss veio ao Brasil para dar aulas na recém-criada Univer-
sidade de São Paulo (USP). Na ocasião, empreendeu estudos etnográficos
entre os Bororo e os Nambiquara e o material serviu para dar sustenta-
ção à sua proposta metodológica, o Estruturalismo. Tomando conceitos
emprestados da linguística, Lévi-Strauss estabeleceu uma nova forma de
análise das sociedades, de caráter sincrônico e que objetivava evidenciar
as estruturas ocultas que operam em pares de oposição. Sua obra fala de
um pensamento selvagem, que, longe de ter um caráter evolucionista, expunha
uma forma de pensar natural que sempre atuou nas sociedades humanas.
Esta forma de pensar seria do tipo bricolagem, na qual as pessoas, sem
um plano ou roteiro, vão incorporando retalhos e fragmentos de outras
produções. Foi também com Levi-Strauss que o estudo do parentesco,
iniciado por Malinowski, ganhou profundidade. Para o estruturalista, os
sistemas de parentesco tinham a função de regular o intercâmbio de mu-
lheres entre os grupos, mecanismo pelo qual se asseguravam as alianças.
Na década de 1960 a antropologia recebeu outra grande contribui-
ção metodológica com os trabalhos de Clifford Geertz, pesquisador nor-
te-americano que estudou as brigas de galo em Bali. Também interessado
na contribuição da linguística e da literatura, Geertz estabeleceu a Her-
menêutica como método de análise antropológica, modelo que também
ficou conhecido como Antropologia Interpretativa. O princípio do
método de Geertz seria estabelecer uma descrição densa dos fenômenos
estudados. No trabalho de campo o antropólogo analisa as dimensões
simbólicas da ação social desde múltiplas óticas e constrói suas interpreta-
ções. Sendo assim, o homem encontra o sentido de sua vida nos padrões
culturais, que seriam amontoados ordenados de símbolos. Nas palavras
de Geertz, “o homem é um animal amarrado a teias de significado que ele
mesmo teceu” e a cultura, por sua vez, seria o mecanismo que dá forma a
estas teias. Os indivíduos sentem, percebem, raciocinam, julgam e agem
43
sob a direção destes símbolos. Cabe ao antropólogo compreender estes
meios semióticos (ou seja, fenômenos culturais como sistemas de símbolos)
através dos quais as pessoas se definem em sua cultura.
Na antropologia interpretativa se propõe analogias da vida social : vida
como jogo, vida como drama, vida como texto. A vida como drama não
é uma farsa, mas sim uma representação da hierarquia, um teatro do status.
Uma pessoa é tida como representante de um tipo genérico e não como
criatura única com destino específico e, sendo assim, o que importa é o
drama e não o ator social. Para Geertz, a análise da vida social não deve
ser elaborada como uma ciência experimental em busca de leis, mas como
uma ciência interpretativa em busca de significados.
Nos dias atuais vivemos uma fase de reflexão. Os antigos conceitos
da ciência não foram tão eficazes quanto se esperava na tarefa de resolver
os problemas do mundo. Nasceu assim um movimento pós-moderno
que também influenciou a prática antropológica. A formalidade dos mé-
todos clássicos foi colocada em segundo plano e surgiu um modelo de
etnografia polifônica. O texto etnográfico passou a ser questionado, des-
tacando que muitas das monografias clássicas teriam sido elaboradas den-
tro de uma autoridade etnográfica (mais detalhes no Capítulo V). Um dos
principais críticos ao formato do texto etnográfico foi o norte-americano
James Clifford. O texto etnográfico passou a ser tido como uma represen-
tação da realidade, que assume múltiplos sentidos (cultura como processo
polissêmico) tanto no discurso dos nativos como no do antropólogo. O
caminho seria conceder voz a todos os atores do cenário etnográfico, dei-
xando suas narrativas transparecerem sobremaneira no texto etnográfico
(composição polifônica).
No Brasil, um dos grandes expoentes da antropologia foi Roberto
Cardoso de Oliveira. Em sua publicação O trabalho do antropólogo (2006),
Cardoso de Oliveira retratou que existe um processo de elaboração do
quadro etnográfico que transita entre o ver, o ouvir e o escrever, facul-
dades treinadas que o antropólogo aplica em campo. Explicações forne-
cidas pelos próprios membros da sociedade estudada (o modelo nativo),
44
passíveis de levantamento pela entrevista, seriam a matéria-prima para o
entendimento antropológico. Mas, para tanto, o pesquisador deve estabe-
lecer uma relação dialógica. Ou seja, na entrevista, sem se ater a rotei-
ros ou perguntas fixas, o antropólogo deve primar por um diálogo entre
iguais, sem receio de estar contaminando o discurso do nativo. Mesmo
porque, como dizia o próprio Cardoso de Oliveira (2006), “acreditar ser
possível a neutralidade idealizada pelos defensores da objetividade abso-
luta é apenas viver em doce ilusão”.
45
IV
CATEGORIAS ANALÍTICAS E CONCEITOS
INSTRUMENTAIS EM ANTROPOLOGIA
48
Cosmologia: conjunto de modelos explicativos que as socieda-
des acessam para interpretar o mundo que as cerca. Através da cosmo-
logia se busca explicar a vida, a morte, as contradições humanas, e para
isso se faz uso de religião, magia, mitos, ciência e outros mecanismos
provenientes do universo imaterial. A cosmologia se manifesta através
de uma série de contornos simbólicos que compõem um repertório ela-
borado para conferir um sentido de mundo.
49
estar diante de algo extraordinário, misterioso, divino. Por sua vez, o
profano define os limites do mundo ordinário, separando tudo aquilo
que não está conectado com o sagrado.
50
variáveis influencia todo o conjunto. A estrutura social é a forma de
organização e de relação entre as suas partes (grupos de parentes, indi-
víduos, clãs, comunidades). A estrutura social é uma rede estável de re-
lações entre grupos sociais com diferentes tipos de acesso aos recursos.
51
V
A PESQUISA ANTROPOLÓGICA
54
diálogos que apareceram com outros campos do saber: antropologia da
educação, antropologia psicanalítica, antropologia empresarial, antropo-
logia política, antropologia jurídica, isso só para citar uma ínfima parte
destes diálogos possíveis. Ou seja, enquanto a academia ainda discutia in-
terdisciplinaridade, a antropologia já ensaiava práticas transdisciplinares.
Este complexo esteio constitutivo tornou a discussão do método
um verdadeiro drama nas bancadas universitárias. Num primeiro momen-
to o método é o inefável, pois exerce um efeito de sedução ainda que seja
difícil de ser definido com palavras. Na medida em que as aulas teóricas
evoluíram, seguindo o modelo diacrônico de construção das escolas antro-
pológicas, o método passou a ser o inescrutável, no qual por mais que se
escrutine os textos clássicos, mais instransponível parece a barreira que se-
para o aluno do domínio instrumental dos conceitos formativos. Por fim,
quando o acadêmico parte para a elaboração de sua pesquisa de campo,
os métodos passam a ser aquele corpo teórico ininteligível, um fenômeno
quase transcendental que só pode ser compreendido com plenitude pelos
“geniais” antropólogos que transpuseram o limiar do raciocínio humano
ordinário. O tiro de misericórdia vem com os enunciados epistemológicos
mais elaborados, como o clássico “cultura como processo polissêmico e
etnografia como representação polifônica da polissemia cultural”.
A principal barreira é o descompasso entre a rápida evolução da
crítica conceitual que rege a antropologia enquanto disciplina e o grau de
reflexão que as universidades nacionais são capazes de promover em sala
de aula nos cursos de graduação. Não podemos esquecer que construção
filosófica é artigo de luxo em nossa educação de base. Segue-se a isso
o fato de que as escolhas dos cursos superiores são influenciadas pelo
aspecto mercadológico, o que acarreta certo desprezo pelos campos das
humanidades. O resultado é frustrante, pois formamos uma classe de des-
crentes que veem com pesar e até certo grau de desdém sua própria área
de atuação. O amadurecimento dos acadêmicos acerca da antropologia
ocorre somente após o ingresso na formação stricto sensu, ou seja, no mes-
trado e no doutorado. Ali o aluno tem de correr atrás do tempo perdido,
mas a pesquisa antropológica parece manter seu caráter inescrutável.
55
Como superar essas limitações? O aluno passa a ter somente os
dois anos do mestrado para desvendar o enigma da esfinge, temendo ser
devorado por conta de suas inabilidades conceituais. Expressar o inefável,
transpor o inescrutável, compreender o ininteligível! Esse seria o desafio.
Sobre o docente acaba recaindo o papel de messias, responsável por guiar
os acadêmicos à terra prometida em meio ao areal movediço. Diante dis-
so, a formação acaba prejudicada. Uma maneira que de contornar tais
limites foi a constituição de uma escolástica ao revés, na qual a razão é
superada pela fé nos líderes messiânicos. As aulas de teoria antropológica
passaram, assim, a ser o espaço onde se aprende os “mantras” a serem
reproduzidos, resultando na formação de inflexíveis escolas nacionais.
Institui-se um paradoxo: ao mesmo tempo em que a antropologia adqui-
riu tanta riqueza teórica pela autocrítica, em termos de formação prevale-
cem os modelos ligados a determinados messias e protagonizados por um
pequeno círculo de famosos programas de pós-graduação. Qualquer pro-
posta de reflexão que fuja a este sistema tem sido duramente censurada.
O primeiro passo para aperfeiçoar a formação dos antropólogos
seria romper com esses modelos nacionais limitantes. Depois, iniciar o
estudo metodológico pelo principal dogma da antropologia: o texto et-
nográfico. O texto é o espelho da alma antropológica, o que transforma
em paradigma o saber formatado a partir dos olhos do “outro”. Evitar a
autoridade etnográfica, aplicar o viés hermenêutico e a polifonia, são os
mecanismos para se levar o entendimento da pesquisa antropológica aos
estudantes universitários. Ainda que pese a dificuldade de se conduzir os
acadêmicos por esse campo movediço, é sim possível guiá-los por um rico
referencial teórico-metodológico desde os cursos de graduação. Basta fazer
com que eles percebam que sua própria vida obedece aos mesmos fenôme-
nos que tentamos observar em sociedades tão díspares em relação à nossa.
Assim tem início um exercício que, conforme assevera Roberto Da Mata,
consistiria em “exotizar o familiar e familiarizar o exótico”. É preciso que
o aluno tenha claro que as explicações fornecidas pelos próprios membros
da sociedade estudada (o modelo nativo), passíveis de levantamento pela
entrevista, são a matéria-prima para o entendimento antropológico.
56
Na sequência, serão discutidos procedimentos metodológicos
para estabelecer as conexões necessárias com as correntes teórico-
metodológicas.
57
modelo diacrônico os fenômenos sociais são explicados por uma suces-
são de acontecimentos, ou seja, considera a trajetória histórica em que os
fenômenos estudados estão inseridos. Na antropologia encontramos as
duas possibilidades de análise. Por exemplo: temos na arqueologia uma
área de pesquisa mais voltada ao diacronismo; nos modelos estruturalis-
tas de antropologia social nos deparamos com preocupações voltadas aos
fenômenos sincrônicos.
Mas antes de tudo, você precisa recortar seu objeto de estudo e
definir uma hipótese de trabalho. A pesquisa em ciências sociais serve
para entender os pressupostos sociais, culturais, políticos ou mesmo indi-
viduais que se escondem sob a esmagadora aparência dos fatos. Mas o que
exatamente estamos querendo evidenciar com nosso estudo? É aí que tem
início o recorte temático. Primeiro, temos que definir para que estamos
fazendo pesquisa:
58
cer os limites para a pesquisa, o que muitos chamam de recorte temático.
Quanto mais abrangente for o objeto de estudo, mais probabilidade há de
não se conseguir chegar a um resultado. Por exemplo:
59
Como proceder no trabalho de campo?
60
vés da etnografia é o caminho mais profícuo para o êxito da pesquisa
antropológica.
A etnografia é, acima de tudo, o veículo pelo qual o antropólogo
estuda a vida social de um determinado grupo. Compreende, em um
primeiro momento, o trabalho de campo, o que pressupõe um contato
direto e prolongado do antropólogo com as comunidades estudadas.
Trata-se da imersão do pesquisador na vida social de uma determinada
cultura, estado que se atinge por meio da observação participante. Segun-
do Roque de Barros Laraia, quando o antropólogo se propõe a fazer uma
observação participante, não é para tentar ser um nativo ou deixar-se
atribuir um papel social (como muitos pensam), mas sim para partici-
par ativamente da vida dos membros daquela sociedade, caminho para se
atingir o conhecimento antropológico.
A grande diferença da etnografia para outros métodos é que esta
permite investigar “por dentro” a vida social do grupo. O saber, neste
primeiro momento do trabalho de campo, é gerado a partir do ponto de
vista do outro. Na etapa de campo, são registradas as categorias emic, onde
o discurso nativo é o principal foco. A atenção está voltada para a forma
como o nativo constrói o seu mundo social: que modelos cosmológicos
utiliza, como são as relações entre as classes, de que forma se dá a relação
do homem com o meio, e assim o pesquisador pode começar a construir
um quadro geral baseando-se nas categorias analíticas e nos conceitos
instrumentais:
61
- Territorialidade: o espaço geográfico; seus marcos e fronteiras,
tanto físicas como simbólicas; a espacialização.
- Aspectos linguísticos; particularidades e gírias; a etnobotânica;
a etnoecologia.
62
Casa de adobe e fogão à lenha, cultura material que
integra o patrimônio cultural tradicional.
63
A partir do átomo do parentesco, pode-se notar como se proces-
sa o complexo de Édipo nas sociedades, onde a relação de afastamento
do pai representa o controle social e de aproximação da mãe os fundos
pulsionais regulados pelo incesto – em alguns casos há uma aproxima-
ção com o tio materno como figura substituta do pai. Contudo, perce-
beu-se que em algumas sociedades o triângulo edípico estava invertido,
como na sociedade trobriandesa, na qual há uma aproximação do pai
e um afastamento do tio materno. Conforme nos alerta o antropólogo
espanhol estruturalista Angel Espina Barrio, o complexo de Édipo não é
necessariamente uniforme, mas detém um caráter universal, que está nas
fontes das pulsões e no controle social. A partir daí se dão as relações de
intercâmbio que regem as alianças por meio do matrimônio e que são o
foco de interesse para os que trabalham com genealogia.
64
Modelo básico de diagrama de parentesco, no qual aparecem
pais, irmãos, esposa, filhos e neto de ego.
65
Uma interessante abordagem é a de cadeias hermenêuticas. O an-
tropólogo foca sua atenção em um determinado fenômeno ou em uma
instituição social e descreve densamente. A partir daí começa a estabele-
cer relações desse fenômeno com outros elementos ou instituições sociais,
revelando como esta sociedade está organizada. Tal abordagem pertence
à antropologia interpretativa e Geertz usou tanto para a briga de galos em
Bali como para definir as categorias sociais do “eu” em Marrocos. Quan-
do centramos nossa atenção em um nativo que integra um fenômeno por
nós escolhido como ponto focal, percebemos que este indivíduo estabe-
lece relações sociais com outros segmentos da sua sociedade a partir des-
te ponto, tanto por meio de sua interação pessoal com outros membros
do grupo, como pela inter-relação entre tema focal e demais fenômenos
sociais. O processo se assemelha muito a uma pedra atirada em um rio,
quando ondas são projetadas a partir do epicentro do impacto.
Cardoso de Oliveira assegura que é um equívoco imaginar que,
primeiro, chegamos a conclusões relativas aos dados de campo para, de-
pois, transcrever essas conclusões. Entende-se que o autor do texto etno-
gráfico não tem de imediato todas as respostas e, sendo assim, o processo
de elaboração e de produção de conhecimento ocorrem simultaneamente.
O texto precisa ser escrito e reescrito não só pela melhora da redação
formal, mas também para aprofundamento da análise e consolidação de
argumentos.
A antropologia pós-moderna traz a questão do texto etnográfico
como tema de reflexão sistemática. Talvez a característica mais singular
do texto etnográfico seja a articulação que se busca entre o trabalho de
campo e a construção do texto. Mesmo assim, a etnografia poderia ser
definida como ‘a representação do trabalho de campo em textos’. Não
buscamos uma verdade absoluta, pois tal coisa não existe para as humani-
dades, mas o que fazemos é registrar as diferentes representações acerca
de uma sociedade, tanto a tecida pelo antropólogo, como a expressa pelos
nativos, e isso é polifonia. Mesmo que um nativo fizesse uma etnografia
de sua própria cultura, estaria transcrevendo uma representação, ainda
que distinta daquela elaborada por um não nativo.
A crítica ao texto etnográfico tem sido um dos focos da antro-
pologia pós-moderna. Em seu famoso artigo On Ethnographic Authority,
James Clifford demonstra como os antropólogos podem transformar o
cenário etnográfico quando da elaboração do texto. Muitos se esforçam
por provar que estiveram lá, outros tentam passar uma sensação de iso-
lamento, na qual há apenas o antropólogo perante o nativo, omitindo
aspectos importantes deste cenário etnográfico. Ditas reflexões levaram
a um artigo posterior, escrito a quatro mãos com o colega George Marcus
e intitulado “The making of ethnographic text”. O texto etnográfico,
segundo estes autores, deve ser lido e interpretado, pois a narrativa pode
refletir elementos da autoridade do antropólogo, que escreve influencia-
do por sua situação histórico-social.
Já vimos que a construção de um texto etnográfico polifônico é
uma alternativa para os problemas levantados por James Clifford e Ge-
orge Marcus. Não se trata de calar o antropólogo, mesmo porque a in-
terpretação faz parte da prática antropológica. A polifonia consiste em
permitir que as múltiplas vozes dos atores sociais ecoem pelo texto final,
possibilitando diferentes leituras do escrito etnográfico.
Mas Antropologia não é feita só de etnografia e observação par-
ticipante, ainda que tais elementos estejam presentes na maioria dos
trabalhos antropológicos. Há outras maneiras de se fazer antropologia,
seja analisando notícias publicadas pelos jornais, navegando pelo cyber-
-espaço ou aplicando questionários para medir variáveis. Não obstante,
todo antropólogo que optar pela etnografia deve possuir habilidade de
se relacionar com pessoas e uma aguçada capacidade de observação. O
dado etnográfico não é só o que é dito pelos nativos, mas também o que
é silenciado.
VI
TEMAS ATUAIS EM ANTROPOLOGIA
Antropologia empresarial
69
administração, abriu espaço para novas reflexões. Como professor, atuei
muitos anos em uma faculdade de administração e pude elaborar refle-
xões sobre como se dão as relações humanas no ambiente laboral. As pes-
soas vêm de uma cultura que lhes foi transmitida por seus pais, ampliam
essa cultura com outros espaços relacionais – como igreja ou colégio – e
levam toda essa carga cultural também para o espaço laboral. Cria-se um
fluxo de inter-relacionamentos, numa espécie de arquitetura cultural:
70
diferentes origens culturais, canalizando-os para os interesses corpora-
tivos. No cenário empresarial, surgem novos espaços de socialização e
inter-relacionamento. Não podemos esquecer que normalmente existem
diferentes setores dentro de uma empresa e as relações entre os membros
desses setores podem ser amistosas ou conflitivas. Nestes espaços rela-
cionais, as pessoas agem e pensam fortemente influenciadas pela cultura
que trazem de outras esferas de vivência. Por fim, ao mesmo tempo em
que um empregado traz parte de sua cultura de origem para dentro da
empresa, também leva parte da cultura empresarial para casa e para os
outros espaços da vida social.
Mas aonde queremos chegar com tudo isso? Entender este proces-
so de interfluxo é fundamental para se atingir uma compreensão de pro-
blemas vivenciados dentro das empresas. Esses problemas podem acarre-
tar importantes perdas, sejam materiais ou simbólicas, por isso o interesse
dos gestores no campo da antropologia. Não se trata de submeter o traba-
lhador às opressões do capitalismo, muito pelo contrário, deve-se pensar
sobre quais contribuições a antropologia pode trazer para a humanização
do espaço laboral, permitindo um funcionamento otimizado, mas ético,
da empresa. Dessa forma, é possível idealizar modelos de pesquisa, como
etnografia na fábrica.
O antropólogo espanhol Angel Aguirre Bastán percebeu que exis-
te uma ritualística no espaço empresarial que é de grande importância
para o equilíbrio das organizações. As pessoas passam por rituais de
acesso, rituais de comunicação de hierarquia, rituais festivos e rituais de
desligamento. Uns têm por função garantir a manutenção das escalas de
poder e prestígio, outros de diluir as tensões entre grupos, e há aqueles
que atuam como indicadores de passagem.
O campo do marketing e dos fenômenos de consumo também são
alvo da antropologia empresarial. As escolhas de consumo são orientadas
pela cultura. Pensando num modelo tradicional de pesquisa mercadoló-
gica, pessoas são colocadas dentro de um ambiente de experimentação e
submetidas ao produto que se quer testar. Segundo os pesquisadores da
71
Universidade Federal do Rio e Janeiro, Everardo Rocha e Carla Barros, as
pesquisas mercadológicas tradicionais reúnem os consumidores em torno
de classes econômicas por critérios de posse, consumo e renda. E o erro,
reiteram estes pesquisadores, estaria em reduzir a complexidade simbólica
do consumo a elementos tão superficiais.
Como alternativa, a observação etnográfica se mostrou uma fer-
ramenta extremamente eficaz. Na etnografia, as pessoas são observadas
em seus ambientes sociais, permitindo o acesso às variáveis simbólicas
relacionadas ao consumo. O consumo é praticado em vários ambientes,
desde o espaço doméstico, passando por escolas, trabalho, clubes, enfim,
os espaços relacionais envolvidos no consumo são muitos.
A antropologia interpreta as estruturas simbólicas para compre-
ender a vivência social. E é justamente por isso que tem se mostrado tão
eficaz no campo empresarial.
Antropologia da saúde
72
país que se dedica às contribuições da antropologia para a área da saúde,
mas ainda faltam recursos humanos na área.
A diversidade étnica também é tema central na antropologia da
saúde. O atendimento a etnias indígenas e comunidades tradicionais deve
se dar de forma diferenciada e exige um prévio conhecimento. São uni-
versos radicalmente opostos e conflitivos: de um lado a medicina oficial
e de outro as práticas tradicionais. O médico que não levar isso em conta
estará assumindo uma postura irresponsável e suas práticas fracassarão.
A cultura influencia muito a forma como atuamos diante dos qua-
dros clínicos de enfermidades. Existe resposta cultural para toda situação
de instabilidade. A maneira como as sociedades lidam com as doenças
pode ser um fator de êxito no tratamento ou de propagação de epidemias.
A epidemia do ebola na África foi um exemplo disso: na cultura nativa
havia a prática de ‘chorar os mortos’, ocasião em que os vivos se debru-
çavam sobre os entes falecidos. Este contato físico, que naquela situação
implicava contaminação pelos fluídos emanados por um indivíduo aco-
metido de ebola, contribuiu para a propagação da epidemia. Dessa forma,
a observação destas pautas culturais foi crucial para a contenção do surto
epidêmico.
Antropologia da Educação
73
Esta reflexão crítica leva a um novo conceito de escola e de ensino,
pensado como um processo de trocas de experiências e não como um
exercício da verticalidade do saber.
A escola, vista como espaço de interação, nutre relação com o en-
torno social: casa, rua, ou seja, todos os espaços de vivência dos atores
sociais se influenciam mutuamente.
Para desenvolver um estudo acerca do ambiente escolar, a escola
pode ser interpretada como cenário etnográfico, onde alunos e professo-
res seriam os ‘nativos’. A observação etnográfica do espaço educacional
pode identificar problemas fundamentais para a prática pedagógica. O
próprio exercício etnográfico pode ser estimulado entre os alunos, per-
mitindo que eles pensem antropologicamente, ou seja, que percebam a
construção do saber pelos olhos do “outro”.
Segundo o antropólogo Antônio Hilário Aguilera Urquiza, a es-
cola deve trazer para discussão as práticas e concepções de cada povo. O
espaço escolar passa então a ser o condutor das relações interculturais. Os
sistemas de ensino-aprendizagem necessitam ser adaptados às realidades
dos alunos, levando em conta a vivência social dos mesmos. Trazer a
diversidade para a sala de aula, propiciando uma reflexão crítica entre as
relações sociais, seria uma proposta interessante para se atingir um am-
biente escolar mais profícuo.
Os laudos antropológicos
74
Os conflitos por território são o grande drama que acompanha
a história americana, desencadeados desde os primeiros contatos entre
europeus e ameríndios. Contudo, os problemas foram se agravando na
medida em que as terras interioranas passaram a figurar nos projetos de
expansão dos governos centrais, primeiro o colonial e depois o republica-
no. No início do século XX, vários projetos de colonização das zonas do
interior do Brasil foram conduzidos, o que acarretou em acirrados confli-
tos entre os indígenas que ocupavam tradicionalmente estes territórios e
os representantes das frentes de expansão econômica. Os conflitos entre
indígenas e não indígenas na região que hoje compreende o estado de
Mato Grosso do Sul se intensificaram no final do século XIX com a atua-
ção da Companhia Matte Laranjeira. Contudo, foi com o grande projeto
de povoamento protagonizado nas terras do então Mato Grosso, chama-
do “Marcha a Oeste”, que os territórios indígenas passaram a ser tomados
em grande proporção para a concessão a colonos agricultores. O “Marcha
a Oeste” foi implantado no governo do presidente Getúlio Vargas e teve
no estabelecimento da Colônia Agrícola Nacional de Dourados, em 1941,
um de seus momentos mais significativos.
A expulsão dos indígenas dos seus territórios tradicionais forçou
a formação de reservas e o fluxo de migrantes autóctones por entre cor-
redores de terras disponíveis. Nas últimas décadas os indígenas de diver-
sas etnias passaram a levantar demandas judiciais para a recuperação de
muitos destes territórios tradicionais, o que vem agravando a situação de
tensão e conflitos entre indígenas e fazendeiros.
Em parte, uma prática equivocada do poder público contribuiu
para o aumento da tensão entre indígenas e fazendeiros. Houve momen-
tos em que o Governo do Estado emitiu títulos em favor de colonos
sobre terras reconhecidamente indígenas. Um exemplo disso ocorreu na
década de 1980, na região da Serra da Bodoquena, onde a partir de uma
divergência entre Governo do Estado e Governo Federal acerca da real
extensão de terras da reserva indígena Kadiwéu se desencadearam vários
conflitos armados. O Governo do Estado sustentava uma extensão de
75
reserva indígena bem menor que a apontada pelo Governo Federal e por
conta própria emitiu títulos das áreas contestadas em favor de colonos.
Após longa disputa foi reconhecida judicialmente a extensão original, de-
fendida pelo Governo Federal, e os colonos tiveram que abandonar as
terras ocupadas.
Situações similares se repetem em outros pontos do estado. In-
dígenas que no passado foram expulsos de suas terras agora levantam
demandas judiciais para retomada dos territórios tradicionais. Para dar
sustentação a essas demandas, é necessária a elaboração do laudo antro-
pológico. Jorge Eremites de Oliveira e Levi Marques Pereira, antropólo-
gos da Universidade Federal da Grande Dourados que atuaram frente a
vários casos de demandas de terras indígenas e quilombolas, em um dos
capítulos da obra “Arqueologia, Etnologia e Etno-história em Iberoamé-
rica” esclarecem que os laudos são estudos voltados para a formulação de
respostas a quesitos apresentados por um juiz e pelos assistentes técnicos
das partes envolvidas em litígios ligados à disputa pela posse da terra.
Para a elaboração de respostas aos quesitos demandados pelo juiz,
o antropólogo faz uso das mesmas técnicas abordadas em um estudo
etnográfico tradicional, baseado na observação direta e na observação
participante. Mas, acima de tudo, o que o antropólogo faz nesse caso é di-
recionar o foco da pesquisa a fim de buscar argumentos e evidências que
deem sustentação ao laudo. Os processos de territorialidade são evocados
a partir da memória do grupo, pois são determinantes para delimitar a
extensão de um território. É reconhecida uma ancestralidade na sua rela-
ção estreita com o território reivindicado, indicando os laços que unem
a comunidade àquele espaço físico. Dessa forma, o laudo deve ser pro-
duzido por profissionais com experiência em antropologia jurídica. Caso
contrário, há o risco de se gerar peças jurídicas incapazes de dar conta de
forma apropriada dos quesitos demandados pela justiça, o que incorre em
grave prejuízo para as sociedades tradicionais envolvidas.
76
BIBLIOGRAFIA
78
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