CARVALHO - de Vagaggini Ao CVII
CARVALHO - de Vagaggini Ao CVII
CARVALHO - de Vagaggini Ao CVII
O ESPÍRITO DA LITURGIA
DE VAGAGGINI AO CONCÍLIO VATICANO II
O ESPÍRITO DA LITURGIA
DE VAGAGGINI AO CONCÍLIO VATICANO II
CDU 264
Ao sr. José Lopes Ladeira
de quem herdei o sobrenome
e também uma fé cheia de inquietude.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho é uma estrada. Nele caminhei, mas nunca completamente só. Estive
acompanhado. Aos que me emprestaram o (a)braço-companhia convido, no final dessa
jornada, para o meu particular carnaval de gratidão.
Cada um de vocês me ensina algo fundamental.
Vim de Itaperuna-RJ. De lá trago uma história feita mistério de cruz mas também de
aurora. Parte desse mistério herdei da minha família. Meu primeiro Muito obrigado sra.
Nilva e sr. Roberto; gratidão aos meus irmãos, Rafael, Humberto e Aline, Ana Paula e
Flávio, André e Laura e os primos que mais se parecem irmãos, Priscila, Marcelo e
Luciana; aos meus avós, Zenith e José Ladeira; Acyr e Augusta; às minhas tias e tios,
Nelma, Neida, Nélio, incluindo as tias adotadas Teresa Nolasco e Alceny. De maneira
especial sou grato ao meu tio Nilton († 2004), que me ensinou
a ter coração gigante, barba fofinha e olhos cheio d’água.
Sem algumas pessoas não conseguiria ter feito essa viagem acadêmica. Elas acalmam
minha pressa. Quando “olho” pro lado “ouço” Renata Sathler e Alexandre Larcher,
Fernanda Marçola, Rodrigo Prado, Vivian, Lilian, Deka, Renata e Flávia Silvino, José
Manoel, Rafael Basso, Lauína, Cristiano Cordeiro, Marco Antônio Soares, Nilo Ribeiro,
Fabiano Aguilar, Rosana Viveiros, Marília Cotta, Gervásio, Mariano, Aureliano, Izaías
e Márcio. De todos estes, a presença mais significativa tem sido a do Guilherme de
Oliveira. Ele é a mais interessante “(des)palavra” acontecida nesses últimos tempos.
Tenho sido mais humano por causa desse “(des)olhar”. Gratia gratiam parit!
Obrigado CITEP, Centro Loyola, Paróquia São Francisco das Chagas, Colégio Santo
Antônio. Com vocês tenho tido a oportunidade de ser educador e aprendiz.
Mais do que agradecido, me sinto honrado por fazer parte da história da FAJE.
Aqui apreendo um Deus que é Mistério, dynamis, que me faz ir além. Teologia assim só
me foi possível, pelo menos nestes últimos dois anos, porque encontrei Francisco
Taborda, meu professor, amigo e orientador. Muito obrigado Taborda!
Gratidão aos solícitos funcionários, instigantes docentes e educandos.
Deo gratias!
“A maior riqueza do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou — eu não aceito.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.”
MANOEL DE BARROS († 2014)
RESUMO
A Igreja é chamada por Cristo a um reforma perene (cf. UR 6). O Movimento Litúrgico (ML)
(1909), desde seus antecedentes históricos, recuperava esse antigo lema da Igreja.
Recomeçava aí uma aventura ao redor da do lugar em que a Igreja se diz, a liturgia.
Mais do que uma nova Igreja, o ML desvelava um rosto que estava nas sombras da
única e mesma Igreja. Repensou a relação liturgia e teologia. Propunha um abandono do
juridicismo e ritualismo reinantes. Queria reformar a liturgia. Ela era a porta de entrada
para uma reforma mais profunda, a da própria Igreja. O auge de tudo isso é a
Sacrosanctum Concilium (SC). Numa leitura teológica da história, une o Antigo e o
Novo Testamentos. A promessa de salvação feita a nossos pais no Antigo Testamento
se cumpriu em Cristo. Ele é instrumento de nossa salvação, nosso reconciliador e
consumador da obra salvífica de Deus (SC 5). Nascida do lado aberto de Cristo, A
Igreja é mostrada como continuação do plano salvífico de Deus. Esse plano se realiza na
liturgia cristã, razão pela qual Cristo continua agindo (SC 6-7). Por sua característica
terrestre, a liturgia se mostra como antecipação da liturgia celeste (SC 8). Ela é fonte,
cume (SC 10), mas também centro da vida da Igreja, uma vez que ali age o próprio
Cristo. Vagaggini, antes do Concílio Vaticano II, quando ainda nem se pensava nele, na
esteira do ML, mostrará que a liturgia, mais que enfeite dos sacramentos, é a salvação
em ato. Ele apresentará um interessante circuito dialético da história da salvação que
liga Liturgia – Igreja – Cristo. Sua busca em estabelecer cientificamente um conceito de
liturgia, ainda que nos moldes da Escolástica, ajudará no incremento e reforma da
liturgia promovidas pelo Vaticano II, nos moldes acima sintetizados. Recuperaremos a
teologia subjacente à ação litúrgica via conceito, como faz Vagaggini, mas também
ouvindo a própria liturgia em ato. Partindo do adágio latino lex orandi – lex credendi,
analisaremos o formulário doxológico final de algumas anáforas. A liturgia é fonte não
só da vida cristã, mas também da teologia. A atualidade desse nosso estudo tem como
perspectiva o ainda atual desafio de “recepção” do Concílio, mesmo passados meio
século desde a publicação do seu primeiro documento, a SC. Precisamos ainda assimilar
a velha novidade da SC.
L’Église est appelée par Christ à une reforme pérenne (cf. UR 6). Le Mouvement
Liturgique (ML) (1909), depuis ses antécédents historiques, récupérait cette ancienne
devise de l’Église. On y recommençait une aventure autour de la place où l’Eglise se
dit, la liturgie. Plus qu’une nouvelle Église, le ML dévoilait une face qui était dans les
ombres de la seule et même Église. Il a repensé le rapport entre liturgie et théologie. Il
proposait un abandon du juridisme et du ritualisme dominants. Il voulait reformer la
liturgie, qui était la porte d’entrée à une reforme plus profonde, celle de la propre Église.
Le sommet de tout cela c’est la Sacrosanctum Concilium (SC). Dans une lecture
théologique de l’histoire, elle rassemble l’Ancien et le Nouveau Testaments. La
promesse de salut faite à nos parents dans l’Ancien Testament s’est accomplie en
Christ. Il est l’instrument de notre salut, notre réconciliateur et consommateur de
l’œuvre salvifique de Dieu (SC 5). Née du côté ouvert de Christ, l’Église est montrée
comme la continuation du plan salvifique de Dieu. Ce plan se réalise dans la liturgie
chrétienne, raison par laquelle le Christ continue d’agir (SC 6-7). Dans ses
caractéristiques terrestres, la liturgie se montre comme l’anticipation de la liturgie
céleste (SC 8). Elle est source, sommet (SC 10), mais aussi le centre de la vie de
l’Église, étant donné que le propre Christ y agit. Vagaggini, suivant les pas du ML,
avant le Concile Vatican II, à un moment où on n’y pensait même pas, montrera que la
liturgie, plus qu’un ornement des sacrements, c’est le salut en acte. Il présentera un
intéressant circuit dialectique de l’histoire du salut qui lie Liturgie – Église – Christ. Sa
quête d’établir scientifiquement un concept de liturgie, même si dans les modèles de la
Scolastique, aidera dans le développement et la reforme de la liturgie réalisés par le
Vatican II, dans les modèles synthétisés ci-dessus. Nous récupérerons la théologie sous-
jacente à l’action liturgique via le concept, comme fait Vagaggini, mais aussi en
écoutant la propre liturgie en acte. A partir de l’adage latin lex orandi – lex credendi,
nous analyserons le formulaire doxologique final de quelques anaphores. La liturgie est
la source pas seulement de la vie chrétienne, mais aussi de la théologie. L’actualité de
cette étude a comme perspective le défi encore actuel de « réception » du Concile,
même un demi siècle après la publication de son premier document, la SC. Il nous faut
encore assimiler la vieille nouveauté de la SC.
DH Denzinger-Hünermann
LG Lumen Gentium
MD Mediator Dei
UR Unitatis Redintegratio
SC Sacrosanctum Concilium
ML Movimento Litúrgico
l. linha/s
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12
CAPÍTULO PRIMEIRO
PANORAMA LITÚRGICO-ECLESIAL
DO SÉCULO XIX À PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX
Do Movimento Litúrgico à Sacrosanctum Concilium (p.14-42)
CAPÍTULO SEGUNDO
O CONCEITO DE LITURGIA SEGUNDO VAGAGGINI E A
SACROSANCTUM CONCILIUM
A liturgia como princípio teológico fundamental (p.43-70)
CONCLUSÃO ............................................................................................................ 99
ANEXO – Esboço cronológico da reforma litúrgica .................................................. 103
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ............................................................................ 108
INTRODUÇÃO
1
Cf. RATZINGER, Joseph. Introdução ao espírito da liturgia. São Paulo: Loyola, 2013, p.7. / A
primeira vez que utilizarmos determinada obra a referência aparecerá em sua forma essencial
(AUTOR. Título. Cidade: Editora, ano, página). Daí em diante esta obra será referenciada em sua
forma reduzida (AUTOR. Título, página).
2
TABORDA, Francisco. A Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a renovação da liturgia.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.12, n.23, p.9-38, 2013.
3
RUIZ DE GOPEGUI, Juan Antonio. Eukharistia. São Paulo: Loyola, 2008, p.29.
12
Ainda estamos às voltas com a redescoberta do Vaticano II, conforme o legado do
ML. Temos muito “dever de casa” para fazer. Estamos longe daquela almejada reforma
proposta pela SC. Passados 51 anos da publicação da SC, sentimo-nos obrigados a voltar
àquele texto para aprender o modo de Deus operar a salvação, inscrita simbolicamente nos
sinais litúrgicos, na dimensão do “mistério da fé”. Certamente a liturgia não é a única
dimensão na qual podemos perceber o mistério (cf. SC 9). A liturgia é lugar de celebrar o
mistério. Mas este lugar é mal compreendido. Aqui parece residir a atualidade desta nossa
pesquisa.
No primeiro capítulo nos ocuparemos da história (de Beauduin a Vagaggini) e da
pré-história (de Guéranger a Beauduin) do ML, seus limites, avanços, retrocessos, até o
Vaticano II.
O segundo capítulo do nosso trabalho, mais sistemático, tem como base o trabalho
de Vagaggini e como centro o texto da Sacrosanctum Concilium. Nesse documento
tomaremos a tese, já desenvolvida pelo ML, que afirma a liturgia em chave teológica (cf. SC
2)4. Mais que ornamento e enfeite dos sacramentos, como ficará evidenciado na primeira parte
da dissertação, a liturgia “é a presença sacramental da ação salvífica de Deus na história dos
homens, é a oração do Cristo com a sua Igreja.”5. A liturgia redescoberta pelo Vaticano II é
“meta e fonte” (cf. SC 10) da vida cristã. Nesse percurso revisitaremos as fontes patrísticas,
recuperando, sobretudo a ideia subjacente aos conceitos de “sinal”, “sacramento” e
“mistério”.
Por fim, no último capítulo, nos aproximaremos da liturgia em ato. O adágio
latino lex orandi – lex credendi nos ajudará no trabalho de redescoberta da liturgia.
Analisaremos algumas anáforas cristãs, com especial atenção às fórmulas doxológicas finais
destes textos. Nessa análise descobriremos a teologia que subjaz à liturgia. Nela, por Cristo,
no Espírito, somos santificados pelo Pai e prestamos nosso culto de adoração.
4
Via de regra os documentos que constam na lista de abreviaturas serão citados no corpo do texto
entre parênteses.
5
Cf. RUIZ DE GOPEGUI. Eukharistia, p.22.
13
CAPÍTULO PRIMEIRO
PANORAMA LITÚRGICO-ECLESIAL
DO SÉCULO XIX À PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX
Do Movimento Litúrgico à Sacrosanctum Concilium
“Há movimento quando algo se mexe.”1 Foi isso que aconteceu na história do
Movimento Litúrgico (ML) que desembocou na reforma da liturgia e da Igreja. Os fiéis
começaram a tomar consciência eclesial. Uma longa hibernação estava terminando. O ML
apenas reforçava o anseio de mudança eclesial. Sentia-se a necessidade de os batizados
participarem ativamente da vida da Igreja. “Realmente uma das forças do movimento litúrgico
está em haver ele nascido de baixo e da periferia.”2
Por ter sido também um movimento no plano intelectual e da pesquisa histórica,
impulsionou a Igreja a um retorno sério às suas próprias raízes. Tratava-se de ir às fontes da
vida cristã desde onde se poderia fazer um salutar exame de consciência eclesial. O ML
capitaneava o desejo da Igreja de se redescobrir. Esse desejo tinha um ponto de partida, a
liturgia, mormente a celebração da eucaristia, lugar mais alto da experiência cristã. Percebeu-
se que era imprescindível abandonar o rigorismo jurídico e o rubricismo reinantes3.
O ML teve sua pré-história na renovação monástica que começa com Guéranger e
seus estudos sobre a liturgia romana. Seu auge aconteceu no Congresso de Malines com o
discurso de Beauduin. De Malines os ideais do movimento se espalharam pelo orbe, com
1
BOTTE, Bernard. O Movimento Litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1978, p.21.
2
VAGAGGINI, Cipriano. Vista panorâmica sobre a Constituição Litúrgica. In: BARAÚNA,
Guilherme (org.). A Sagrada Liturgia renovada pelo Concílio. Petrópolis: Vozes, 1964. p.125-167
(aqui: p.166).
3
Um exemplo disso pode ser encontrado na obra intitulada Cerimonial Romano de 1884, tradução
lusitana, que conceitua liturgia nos seguintes termos: “Liturgia é o conjunto de objectos, palavras,
acções e cantos na Egreja (sic!), como culto externo” (LE VAVASSEUR, Leoni. Cerimonial Romano.
Lisboa: Typographia do Diário da Manhã, 1884, p.1).
14
disputas ideológicas que atuaram numa crescente redescoberta da liturgia como vital para a
experiência eclesial. A Igreja, celebrada na liturgia, é sinal da salvação. Os ideais do ML
foram confirmados por Pio XII, sobretudo em sua encíclica Mediator Dei (MD).
Neste capítulo percorreremos a história do ML, desde sua “pré-história” na
renovação monástica promovida por Dom Guéranger, passando por seu lento crescimento até
chegar a Pio XII, com a encíclica MD e a reforma da Semana Santa. O Vaticano II será o
coroamento desse processo ao reconhecer a centralidade da liturgia na vida da Igreja.
4
O termo “movimento litúrgico” foi utilizado pela primeira vez por Dom Schott (monge de Beuron)
em sua obra “Vesperal” (edição alemã), publicada em 1894, mas utilizado numa compreensão
totalmente diversa daquela que será a do ML propriamente identificado, a saber, aquele movimento
que tem como núcleo a retomada da liturgia em chave teológica. (NEUNHEUSER, Burkhard, et.al. A
liturgia. São Paulo: Paulinas, 1987, p.21).
5
Para os textos do Concílio Vaticano II utilizaremos o COMPÊNDIO do Vaticano II. 15.ed. VIER,
Frederico. (coord. geral). KLOPPENBURG, Boaventura. (intr. e índice analítico). Petrópolis: Vozes,
1982. Daqui por diante citaremos os documentos conforme abreviaturas.
15
Queremos apreender o modus operandi dialético das coisas mais do que sua sucessão factual.
Isso nos ajudará a compreender as razões que levaram os padres conciliares (Vaticano II) a
reaver a centralidade perdida da experiência litúrgica, não só por sua faceta ritual, mas por ser
ela a via por excelência de acesso ao Mistério da fé, lugar de fundamental importância para o
fazer (práxis) e pensar (sistemática) teológico, donde emanam os temas mais urgentes da
própria Teologia. A liturgia “é a presença sacramental da ação salvífica de Deus na história
[...] oração de Cristo com a sua Igreja.”6
6
RUIZ DE GOPEGUI, Juan Antonio. Eukharistia. São Paulo: Loyola, 2008, p.22.
7
Ver Ibid., p.18ss; NEUNHEUSER, A Liturgia, p.17ss; SILVA, José Ariovaldo da. O movimento
litúrgico no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1983, p.39; ROUSSEAU, Olivier. Histoire du mouvement
liturgique. Paris: Les Editions du CERF, 1945.
8
A Revolução Francesa, “juntamente com os conceitos que visavam a recuperação dos princípios de
igualdade entre os homens, conduziu à destruição dos sinais de culto cristão, entre eles a supressão dos
mosteiros”. (COSTA, Bernardino. O Movimento Litúrgico e a redescoberta da qualidade teológica da
liturgia. Revista Didaskalia, Lisboa, v.40, n.2, p.135-156, 2010 [aqui: p.138]).
16
breviário romanos estavam reintroduzidos em sua forma plena, em quase
todos os lugares.9
9
JUNGMANN, Josef Andreas. Missarum Sollemnia. São Paulo: Paulus, 2009, p.173.
10
NEUNHEUSER, A Liturgia, p.18.
11
O primeiro estudo de Guéranger foi publicado em 1830, com o título “Considérations sur la liturgie
catholique” em Mémorial catholique Lamennais.” (cf. NEUNHEUSER, A Liturgia, p.19). Em
Institutions liturgiques (1840), passa a ficar mais duro e polêmico em relação ao seu primeiro escrito
de 1830 (Considérations...). Seus ideais estão ligados ao círculo filosófico-político do presbítero
francês Lamennais (†1854). Mesmo tendo se distanciado dele, porque ultramontano, depois de sua
condenação (1832) por Gregório XVI (†1846), em Mirari vos (ver DH 2730-2731), continuou linha
dura contra os caminhos próprios do episcopado francês, e nisso se mostrou uníssono à ideologia de
Lamennais. (cf. PIKAZA, Xabier. Lamennais, Hugues Felicité (1782-1854). In: Diccionario de
pensadores cristianos. Navarra (España): Editorial Verbo Divino, 2010, p.536-537; e JUNGMANN,
Missarum Sollemnia, p.173). Seja como for, paira sobre Guéranger uma nebulosa, certamente por ter
sido um verdadeiro ultramontano como Lamennais. Era inimigo feroz de todo e qualquer galicanismo,
apesar dos comentadores reconhecerem que “dele e de sua fundação saíram os impulsos mais
importantes para aquela grandiosa aproximação da liturgia ao povo e para aquele novo ordenamento
de grande alcance do culto cujas testemunhas já somos nós hoje”. (Ibid., p.174).
12
NEUNHEUSER, A Liturgia, p.19. / A “antiga e veneranda tradição galicana” se refere às Gálias e,
se o texto de Neunheuser tivesse sido corretamente traduzido, teria dito “gálica”; “neogalicana” é que
se refere ao galicanismo como movimento que defende a independência das Igrejas nacionais com
relação à Igreja de Roma.
13
Ibid., p.18.
17
Ao redescobrir a liturgia clássica romana como eixo da vida monástica, abriu
perspectivas para, no século XX, se compreender que o centro da experiência dos monges é
também o fulcro teológico-experiencial mais eloquente de todo e qualquer cristão, porque ali
se acha o proprium da Igreja.
14
Ibid., p.20.
15
Cf. ibid., p.20.
16
Forçados pela “Kulturkampf” (“luta pela cultura” – movimento anticlerical alemão, instado em
1872), Solesmes e Beuron foram impulsionados a expandir-se. De Beuron fundaram-se Maredsous
(Bélgica); Emaús-Praga (Tchecoslováquia), Seckau (Áustria) (cf. ibid., p.20-21), “sem falar nos
mosteiros restaurados do Brasil, de certa maneira filhos da Congregação de Beuron.” (ISNARD,
Clemente. Dom Martinho. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1999, p.21). De Beuron virá o arauto do ML
no Brasil, Dom Martinho Michler (ver ibid., p.30-32). Com tudo isso a mentalidade litúrgica
beneditina se viu enormemente beneficiada.
17
Utilizaremos o termo “Movimento Litúrgico” (ML) para designar aquele movimento litúrgico
iniciado no Congresso de Malines no ano de 1909.
18
Cf. NEUNHEUSER, A Liturgia, p.23; RUIZ DE GOPEGUI, Eukharistia, p.20; BASURKO, Xabier
(cap.1-6); GOENAGA, Jose Antonio (cap.7-9). A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua
evolução histórica. In: BOROBIO, Dionisio (org.). A celebração na Igreja. Liturgia e sacramentologia
fundamental. v.1. São Paulo: Loyola, 1990, p.37-160 (aqui: p.126).
18
1.1.3. Pio X: sinais incipientes de renovação
Só a partir de Pio X (†1914)19 começaremos a perceber algum movimento por
parte do magistério da Igreja de mudança no âmbito litúrgico. Em 1903, encontramos o motu
proprio “Tra le sollecitudini”20. Esse documento, destinado ao fomento da música sacra e
restauração do canto gregoriano, escrito nos primeiros meses de seu pontificado, é um
singular, apesar de tímido, indício da necessidade de uma reforma litúrgica, não só no que
concerne aos ritos, mas no modo de compreender a própria liturgia21.
A reforma, pensada e arquitetada pelo Vaticano II, tem seu start, ainda que
bastante incipiente, no contexto acima descrito. Ali se viu a promoção de aperfeiçoamentos
litúrgicos, talvez mais estéticos ou secundários do que teológicos ou nucleares. Este é o caso
do documento de Pio X supracitado.
***
Entre avanços e limites do pré-ML, está a inegável influência do abade de
Solesmes, no contexto da reforma monástica, e do papa Pio X, na promoção de questões, a
mais das vezes, rituais.
Com Guéranger e a vida monástica beneditina, afirma Goenaga, a liturgia romana
é redescoberta como “a oração do Espírito na Igreja, [...] voz do corpo de Cristo, da esposa
orante do Espírito; há na liturgia uma presença privilegiada da graça; nela se encontra a mais
genuína expressão da Igreja e de sua tradição.”22 Apesar disso, e aqui estaria seu limite,
Guéranger considerou apenas a liturgia do rito romano em detrimento daqueles ritos que
pululavam na França de sua época, os neogálicos, para citar apenas os que lhe eram
19
Giuseppe Melchiorre Sarto, então Patriarca de Veneza, foi eleito papa em 04 de agosto de 1903 (cf.
Introdução. In: DOCUMENTOS de Pio X e de Bento XV. São Paulo: Paulus, 2002, p.9).
20
Além de Tra le sollecitudini, Pio X publicou outros documentos de interesse para a reforma
litúrgica: os decretos Sacra tridentina synodus (1905), estimulando a comunhão frequente; Quam
singulari (1910), promovendo a admissão das crianças à comunhão; a Constituição Apostólica Divino
afflanti (1911), que reformava o breviário e revalorizava a liturgia dominical; e Abhinc duos anos
(1913), uma espécie de plano inspirador para a reforma do ano litúrgico do breviário. (cf. BASURKO;
GOENAGA. In: BOROBIO. A celebração na Igreja. v.1, p.132-133; JOUNEL, Pierre. Do concílio de
Trento ao Vaticano II. In: MARTIMORT, Aimé Georges [org.]. A Igreja em oração. Petrópolis:
Vozes, 1988. p.75-90 [aqui: p.82-84]; ).
21
Cf. NEUNHEUSER, A Liturgia, p.23. RUIZ DE GOPEGUI, Eukharistia, p.20.
22
BASURKO; GOENAGA. In: BOROBIO. A celebração na Igreja. v.1, p.127.
19
contemporâneos.23 Sua oposição a toda forma de galicanismo se deve a uma postura defensiva
a favor da cristandade romana em oposição aos ideais de uma escalada dos Estados
modernos.24 Além disso, parece ter confundido a liturgia romana com suas formas medievais
e as do missal de Pio V. Ele “tendeu à uniformização em torno dessa liturgia (romana)”25 e
apesar de redescobrir a liturgia como chão da vida monástica, ao contrário do que parece, não
era favorável à explicação dos textos e atos litúrgicos para o povo; antes, conforme afirma
Jungmann (†1975), a liturgia deveria lhes ficar obscura.26
O papado de Pio X, do que apuramos, coletou os frutos cujas árvores haviam sido
já plantadas, sobretudo pelos mosteiros. O canto gregoriano ganhou forte apoio e encorajou-se
certa participação dos fiéis nos Sagrados Mistérios, bem como na oração pública da Igreja
(1903); com um decreto, resolveu a prática da comunhão frequente e diária (1905), questão
levantada sempre com maior otimismo desde o séc. XIX, embora tenha deixado de lado o
tema da comunhão e seu vínculo com a celebração da missa.27 Goenaga sintetiza assim o
papado de Pio X com relação ao culto litúrgico: “Três linhas claras aparecem no magistério
litúrgico de Pio X: a renovação da música sagrada [...]; a aproximação entre os batizados e a
comunhão eucarística [...]; a reforma do ano litúrgico e do breviário.”28
23
“[...] em seu empenho em descobrir as riquezas da liturgia romana, não foi capaz de ver também
valor em outras tradições litúrgicas, como a veneranda tradição galicana.” (RUIZ DE GOPEGUI,
Eukharistia, p.19).
24
Cf. GRES-GAYER, Jacques, Ultramontanismo. In: LACOSTE, Jean-Yves (dir.). Dicionário crítico
de teologia. São Paulo: Loyola: Paulinas, 2004, p.1795-1798 (aqui: p.1795).
25
BASURKO; GOENAGA. In: BOROBIO. A celebração na Igreja. v.1, p.127.
26
Cf. JUNGMANN, Missarum Sollemnia, p.173.
27
Cf. ibid., p.174-175.
28
BASURKO; GOENAGA. In: BOROBIO. A celebração na Igreja. v.1, p.133-134.
29
“O início do movimento litúrgico remonta, na segunda metade do séc. XIX, a Dom Guéranger [...],
mas recebeu seu impulso mais recente a partir do Congresso de Malines [...], por ocasião da
20
Quando ele [o ML] veio à luz, na Bélgica, naquele dia 23 de setembro de
1909, como um movimento bem definido que alcançava círculos amplos e
que logo se estendeu também para a Alemanha e outros países, ele se
manifestou principalmente através de um novo modo de participação na
celebração da missa.30
apresentação por parte de D. Lambert Beauduin de um relatório sobre a participação dos fiéis no culto
cristão.” (LIBANIO, João Batista. Concílio Vaticano II. São Paulo: Loyola, 2005, p.27).
30
JUNGMANN, Missarum Sollemnia, p.176.
31
Não é sem razão que o primeiro documento do Concílio foi rapidamente aceito e aprovado pelos
padres conciliares. “O texto foi apresentado em outubro de 1962 ao Concílio [...], votado pelos Padres
durante a Segunda Sessão (1963)”, aprovado e “promulgado pelo Santo Padre no dia 4 de dezembro,
dia do encerramento da Segunda Sessão do Concílio.” (KLOPPENBURG, Boaventura [comp.].
Concílio Vaticano II. v.3. Segunda Sessão [set.-dez. 1963], Petrópolis: Vozes, 1963, p.411-412).
32
Cf. GIRAUDO, Cesare. Num só Corpo. São Paulo: Loyola, 2003, p.13; TABORDA, O memorial da
páscoa do Senhor, p.21-29. / Daqui por diante iremos nos referir a esse adágio com o termo “lex
orandi – lex credendi”.
33
MAYER, A. L., Liturgie und Laientum, Wiederbegegnung von Kirche und Kultur in Deutschland.
Festschrift für K. Muth, 1927, 255, apud NEUNHEUSER, A Liturgia, p.22.
34
Cf. BASURKO; GOENAGA. In: BOROBIO. A celebração na Igreja. v.1, p.128.
21
Beauduin não era um simples pesquisador, aliás, não era essa sua melhor
expertise. Foi como propagandista35 que melhor contribuiu para alavancar o ML nascente.
Como presbítero, antes de se tornar monge (1906), atuou em meio a grupos de trabalhadores.
No plano da sistemática incrementou o pensamento de Guéranger, indicando-lhe um novo
rumo, cujo escopo era a pastoral litúrgica paroquial, impostando-lhe um tom mais prático ou
apostólico que teórico ou científico. “Era necessário inspirar a piedade e a vida cristã no culto
da Igreja; para isso, cumpria promover a participação dos batizados na liturgia.”36 A partir
daquele Congresso algumas tarefas se impuseram, como indica Olivier Rousseau (†1984):
a difusão do missal traduzido como o livro do cristão; o aumento do caráter
litúrgico da piedade por meio da participação na missa paroquial – ensinando
a não desvincular a preparação e ação de graças da comunhão das orações da
missa –, nas vésperas e, no lar, por intermédio da recuperação de antigas
tradições litúrgicas [...]; a promoção do canto gregoriano segundo as
orientações de Pio X; a organização de retiros anuais para os responsáveis
pela pastoral litúrgica.37
35
A atuação de Beauduin foi notadamente prática. A partir de 1912 promoveu anualmente Semanas e
Conferências de liturgia. Essas Conferências começaram a ser publicadas a partir de 1913 com o título
Cours et Conférences des Sémaines Liturgiques. (Cf. SILVA, O movimento litúrgico no Brasil, p.39).
36
BASURKO; GOENAGA. In: BOROBIO. A celebração na Igreja. v.1, p.128.
37
ROUSSEAU, Histoire du mouvement liturgique, p. 222. (Tradução nossa).
38
“O mosteiro Mont-César (Bélgica) se transformou num polo de irradiação, com suas publicações
que eram enviadas a todas as partes, difundindo as sementes renovadoras” (LIBANIO, Concílio
Vaticano II, p.27).
39
Outros mosteiros também publicarão revistas de liturgia, como o de Maredsous, que a partir de 1911
edita Revue liturgique et bénédictine. Mosteiros como o de Bruges, a Abadia de Affligem, são outros
centros de irradiação de divulgação litúrgica. (cf. NEUNHEUSER, A Liturgia, p.23-24).
22
inspirará Beauduin a escrever uma síntese do ML que começava a ser atacado em suas ideias,
intitulado La piété de l’Eglise (1914).40
Uma das mais importantes contestações, nesse primeiro momento, aconteceu
entre os anos de 1913-1914. Envolveu Festugière de um lado e o jesuíta Jean J. Navatel,
crítico de certas posturas assumidas pelos pares de seu “adversário”, do outro. A disputa tinha
como núcleo a relação entre liturgia e espiritualidade. Essa contenda será amainada com a
Primeira Guerra Mundial (1914-1918), voltando a se agudizar nos idos de 1929, respigando
no Vaticano II41 e, chegando, de certa forma, até nossos dias.
As relações entre liturgia e espiritualidade dependem das concepções do
culto da Igreja e das atividades espirituais dos membros da mesma Igreja.
Para Navatel e muitos outros, ainda hoje, a liturgia é a face cerimonial e
decorativa da missa, dos sacramentos e sacramentais. Daí porque deva ela
ocupar um segundo e terceiro plano na recepção desses mesmos sacramentos
e entre outras atividades espirituais e ascéticas. Todavia, para Festugière e os
teólogos posteriores da liturgia, o culto da Igreja é a oração do Cristo total e,
a um só tempo, presença privilegiada do mistério salvífico de Deus em
Cristo. Os membros da Igreja devem personificar a liturgia, por meio da
participação nela.42
40
No Brasil este pequeno livro foi traduzido e publicado em 1938 pela editora Lumen Christi, do
Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Ele está prefaciado por Dom Martinho Michler, instaurador
do ML no Brasil (Sobre Dom Michler ver 1.2.2.1. Os primórdios do Movimento Litúrgico no Brasil).
Ref. completa: BEAUDUIN, Lambert. Vida Litúrgica. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1938.
41
Ver SC 9-13.
42
BASURKO; GOENAGA. In: BOROBIO. A celebração na Igreja. v.1, p.129.
43
Cf. ibid. Guéranger, em certo sentido, já havia notado essa questão no séc. XIX (cf. ibid., p.127).
44
Ibid., p.129.
23
1.2.2. Expansão do Movimento: do pós-guerra às vésperas do Concílio
Em 1918, com o cessar-fogo, o ML, tendo os mosteiros beneditinos como “casa-
mãe”, ganha novo impulso, desenvolvendo-se uma verdadeira ciência litúrgica.45 As coleções
Ecclesia Orans, ao lado de Liturgiegeschichtliche Quellen e Liturgiegeschichtliche
Forschungen, lançadas naquele ano, são consideradas uma importante alavanca das “novas”
ideias litúrgicas. Na abadia de Maria Laach, sob a tutela do seu abade, Idelfons Herwegen
(†1946), surgem, no cenário litúrgico, nomes que ainda hoje reverberam no campo litúrgico.
Lá se reuniram Guardini, Casel, entre outros.
Descrito como “renovador culto do pensamento cristão, Guardini prepara o
caminho para o Concílio Vaticano II”46, no qual tomará assento como perito.47 Ele é figura
primordial para compreender o novo jeito de pensar a liturgia a partir daquele Concílio.
Sobretudo desde as disputas promovidas pelo ML, tornou-se autoridade reconhecida e sempre
escutada quando se tratava de liturgia.48
Ele encabeça o grupo daqueles promotores do ML ao ser o primeiro autor
publicado na supracitada coleção Ecclesia Orans, com o ensaio49 “O Espírito da Liturgia”50.
Não só por ser a primeira obra dessa coleção, mas porque seu livro, que não se lê num só
fôlego, apesar de ensaístico, é denso e está prenhe de um pensamento “novo” sobre a liturgia
que passa pela preocupação com as “coisas interiores”, com o intraeclesial, com o cuidado
com o Corpo místico. Para ele a “liturgia é e deve ser a ‘lex orandi’”51. Tudo o que se vê por
fora (hierarquia bem organizada, cultos grandiosos e cheios de beleza, templos monumentais
etc.) é apenas a ponta dum iceberg cuja base substancial está escondida. Cheio de poética,
resgata o simbólico, pinta uma teologia pautada na liturgia como auge, clímax da experiência
cristã.
45
Para conhecer as etapas históricas da liturgia como ciência ou disciplina, consulte: GERHARDS,
Albert; KRANEMANN, Benedikt. Introdução à liturgia. São Paulo: Loyola, 2012, p.34-36.
46
SANTIDRIÁN, Pedro (org.). Guardini, Romano. In: Breve Dicionário de Pensadores Cristãos.
Aparecida: Santuário, 1997, p.256. Ver também: PIKAZA. Guardini, Romano (1885-1968). In:
Diccionario de pensadores cristianos, p.392.
47
Ver “Índice dos nomes...” em KLOPPENBURG, Concílio Vaticano II, v.1, p.148.
48
Ver NEUNHEUSER, A Liturgia, p.31.
49
“Neste ensaio, procurar-se-á justamente estabelecer algumas dessas leis (leis fundamentais da sã
piedade). Um ensaio apenas, pois os seus resultados não pretendem ser, de qualquer modo, definitivos
ou completos”. (GUARDINI, Romano. O Espírito da Liturgia. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1942.
p.27).
50
No Brasil a obra de Guardini foi publicada em 1942, traduzida pela Lumen Christi, como parte da
Coleção “Liturgia”.
51
Ibid., p.27.
24
Vivemos num mundo de símbolos, mas não captamos a realidade que eles
representam. Pensamos palavras, mas não coisas... Palavras, palavras! Eis
por que nosso pensamento está longe da realidade: ele não a capta. Eis por
que nossa linguagem é inexpressiva: não possui nem vida, nem relevo.52
O ML, com sua nova maneira de pensar a liturgia, queria superar o rubricismo
bem como uma compreensão coisificada dos sacramentos. “Salientava-se-lhes a dimensão
simbólica que envolvia o mundo das ideias e das práticas, mas ia muito além, lançando pontes
para o Mistério.”56
No pós-guerra retomaram-se as disputas anteriores a 191457, que se tornaram
ainda mais inflamadas. Além da relação liturgia e espiritualidade, aqui acirrada pelas ideias de
Casel e a noção de mistério revisitada, tema que aparecerá no final da Segunda Guerra (1939-
1945), surge a questão da relação entre liturgia e compromisso cristão.
No recém-fundado Centro de Pastoral Litúrgica de Paris (1943), reuniam-se, de
modo cada vez mais orgânico, especialistas em liturgia. Dessas reuniões surgem os primeiros
incômodos. Com frequência se verificava o “desejo de uma maior acomodação do culto às
52
GUARDINI, Von heiligen Zeichen (...), apud: LIBANIO, João Batista. Eu creio nós cremos. 2.ed.
São Paulo: Loyola, 2004. p.69.
53
Cf. LIBANIO, Concílio Vaticano II, p.27.
54
Cf. CASEL, Odo. O Mistério do culto no cristianismo. São Paulo: Loyola, 2009. p.17.
55
Ibid., p.17-18.
56
LIBANIO, Concílio Vaticano II, p.27.
57
Cf. acima 1.2.1. Primeiros passos...
25
novas situações europeias e dos países de missão. Em consequência, foi vivamente discutido
o problema da língua litúrgica.”58
Para além das querelas, o que se pode notar é que a atividade pastoral-litúrgica,
começando pela Alemanha, tendo como base a abadia de Maria Laach, revigorava a vida da
Igreja em verdadeiro estágio primaveril. Os círculos juvenis serão a terra fértil onde
florescerá, para além da ciência litúrgica, os ideais do ML.59
Na Áustria, desde antes da Primeira Guerra, sob a batuta de Pius Parsch (†1954)60
e companheiros, nasce um verdadeiro apostolado litúrgico-popular, cuja inspiração vinha de
Maria Laach. Queriam aproximar o povo simples do culto da Igreja, propiciando uma
participação mais ativa na liturgia, bem como colocar a Bíblia nas mãos dos fiéis. Jungmann
aparecerá como um grande pesquisador da história da liturgia, colaborando de modo mui
peculiar no processo de renovação litúrgica, inclusive como perito do Vaticano II.
Além disso, em várias partes da Bélgica e Alemanha, começando por Leipzig, o
canto litúrgico foi um dos meios utilizados para promover o acesso ao culto nas comunidades
paroquiais. “Alguns livros de pastoral litúrgica, como Volksliturgie und Seelsorge, Parochia e
outros, [...], no tempo da Segunda Guerra Mundial, para muitos foram o alimento e meio de
sustentar a própria resistência interior.”61
Na França, os primeiros pesquisadores no campo litúrgico, com estudos variados,
foram, entre outros, L. Duchesne (†1922) e P. Battifol (†1929). Antes mesmo da instalação do
ML, F. Cabrol (†1937) e H. Leclercq (†1945) iniciam o Dictionnaire d’archéologie
chrétienne et de liturgie (1907-1953, em 15 volumes).62 Além disso, o já citado Centro de
Pastoral Litúrgica de Paris lançou a revista de liturgia La Maison-Dieu, donde se originou a
58
BASURKO; GOENAGA. In: BOROBIO. A celebração na Igreja. v.1, p.37-160 (aqui: p.130).
59
Dentre estes círculos podemos citar o movimento juvenil “Quickborn”, que contava com Guardini
como mentor; a “Associação juvenil masculina” do Mons. L. Wolter; e a Associação dos
universitários católicos (Katholischer Akademiker-Verband), comandada por F. X. Münch e
Landmesser, que ocupou lugar importante na vida espiritual do catolicismo alemão entre as duas
grandes guerras, oferecendo ao mesmo tempo tanto o ambiente como o fundo em que se podia
desenvolver a espiritualidade litúrgica. (cf. NEUNHEUSER, A Liturgia, p.26).
60
Pius Parsch foi cônego regular de Santo Agostinho, de Klosterneuburg (Áustria), “[...] agiu na
perspectiva fortemente e diretamente pastoral.” (NEUNHEUSER, Burkhard. História da liturgia
através das épocas culturais. São Paulo: Loyola, 2007, p.209). Muitas das obras de Parsch foram
traduzidas para o português. Dentre as que tivemos acesso estão No mistério de Cristo, tradução de
Das Jahr des Heils, publicado pelo Mosteiro de São Bento da Bahia (1941); e Para entender a missa,
da Edições Lumen Christi, do Mosteiro beneditino do Rio de Janeiro (1962).
61
NEUNHEUSER, A Liturgia, p.27.
62
Ver ibid., p.28; e BASURKO; GOENAGA. In: BOROBIO. A celebração na Igreja. v.1, p.131.
26
célebre coleção Lex orandi, bem como ajudou a fundar, em parceria com a abadia de Mont-
César, o Instituto Superior de Liturgia de Paris.
Na Itália o ML foi impulsionado com a publicação da Rivista Liturgica (1914),
elaborada pelo mosteiro beneditino de Finalpia.63 Surge nesse período a obra do Apostolato
Liturgico, bem como os importantes estudos feitos por M. Righetti (†1975)64, dentre tantas
outras iniciativas, como as numerosas “publicações de propaganda e as traduções de livros
litúrgicos”65 que faziam crescer o fervor pela questão litúrgica, tornando-a lugar vital e ativo
da experiência cristã. “Também em muitos outros países europeus o ML já tinha lançado
raízes: na Espanha, em Portugal, Suíça, Holanda, Inglaterra, Tchecoslováquia, Polônia etc.”66
63
É possível acessar alguns artigos desta revista, atualmente publicada bimestralmente, no site
www.rivistaliturgica.it.
64
Cf. NEUNHEUSER, A Liturgia, p.29.
65
Ibid., p.29.
66
SILVA, O Movimento Litúrgico no Brasil, p.40.
67
Ibid, p.33ss. Pelo que nos consta esta obra é de importância ímpar para o estudo do movimento de
renovação litúrgica no Brasil por seu exaustivo trabalho de campo. Até então não tínhamos
conhecimento do itinerário tão bem traçado como o fez o professor José Ariovaldo da Silva.
68
Ibid. Os inícios germinais do Movimento, antes de 1933, estão muito bem sintetizados no capítulo I
(p.33-38) desta obra.
69
Dom Isnard publicou uma biografia muito interessante de Dom Michler que vale a pena para quem
deseja conhecer melhor essa figura ímpar para a história da liturgia no Brasil. Ver ISNARD,
Clemente. Dom Martinho. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1999.
70
SILVA, O Movimento Litúrgico no Brasil, p.40.
27
A novidade trazida pelo novo professor não residia apenas no caráter desbravador
de um curso de liturgia para leigos, mas no modo de ensinar a liturgia. Ela “é mais que
rubricas, mais que mera explicação de objetos e gestos do culto, mais que mero alegorismo,
mas ‘[...] a vida da SS. Trindade, vida do Cristo, vida da Igreja que é o Corpo Místico de
Cristo’. [...] a grande novidade era a Teologia da Liturgia que se descobria.”71
Daí o ML se dilatou. A “Ação Universitária Católica” inaugurou, esponta-
neamente, um “Centro de Liturgia”72, dando um enorme impulso aos novos ideais litúrgicos,
certamente graças ao público juvenil-estudantil.
No caso do Brasil, o movimento litúrgico acoplou-se à Ação Católica, ex-
pressão maior do movimento leigo moderno. Na outra vertente leiga, estava
a Congregação Mariana, que se manteve distanciada, arredia e desconfiada
diante das inovações litúrgicas, especialmente promovidas pela Juventude
Estudantil Católica (JEC) e pela Juventude Universitária Católica (JUC).73
71
Ibid., p.41. (Grifo do autor).
72
“Os trabalhos do Centro de Liturgia se inauguraram com um retiro que Dom Martinho Michler fez
com um grupo de seis rapazes do mesmo Centro, numa fazenda do interior do Estado do Rio, de 10 a
15 de julho de 1933.” (Ibid., p.41). Foi aí que se celebrou a primeira missa versus populum e
dialogada, além de rezarem juntos o Breviário, considerado até então livro de orações exclusivo de
clérigos. (cf. ibid.).
73
Cf. LIBANIO, Concílio Vaticano II, p.28-29. Sobre o movimento laico consulte ibid., p.35-36.
74
SILVA, O Movimento Litúrgico no Brasil, p.43-44.
75
Cf. ibid., p.45.
28
Ao lado de Dom Michler, seguindo a lista de personagens inventariados por
76
Silva , temos o também beneditino alemão Dom Beda Keckeisen (Mosteiro de São Bento de
Salvador), primeiro a traduzir o Missal para a língua portuguesa no Brasil, com o intento de
tirar o povo do estado de extrema passividade durante o culto. Em São Paulo, Dom Polycarpo
Amstalden (Mosteiro de São Bento de São Paulo), outro beneditino, edita o Folheto Litúrgico,
de publicação semanal, a partir do final de 1934, com os textos das missas dominicais. Esses
folhetos tinham a praticidade de facilitar a participação do povo nas missas a um custo
bastante ínfimo, portanto, acessível a todos. Dom Hidelbrando Martins (Mosteiro de São
Bento do Rio de Janeiro), com a Tipografia do mosteiro (Lumen Christi), promoveu “a
publicação de subsídios preciosos, tanto para que os fiéis conhecessem melhor a liturgia e o
espírito do ML, como para que eles participassem ativa e conscientemente no culto da
Igreja.”77
Entre tantos beneditinos, destaca-se um franciscano (Ordem dos Frades Menores,
da Província da Imaculada Conceição), o Frei Henrique Trindade. Seu livrinho Sigamos a
Missa! (1938) teve seu lugar como facilitador de acesso ao culto, de modo simples e prático,
explicando o que é “rezar a missa”. “Trata-se [...] de um livrinho que não é um Missal nem
mesmo um ‘Folheto Litúrgico’ [...] mas de um livrinho-guia que, de modo simples, vai
colocando o fiel por dentro do sentido e do dinamismo espiritual da Celebração
Eucarística.”78
Silva cita ainda dois outros nomes, Dom Mário de Miranda Vilas-Bôas (Bispo de
Garanhuns-PE), que em sua primeira carta pastoral (1938), ao tratar da Ação Católica, de
modo corajoso, assume, como primeiro prelado a fazê-lo, as linhas de ação do ML no Brasil;
e Dom Tomaz Keller, abade do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, que, em 1939,
defende de modo firme a missa dialogada, “preparando uma monografia de 42 páginas,
intitulada Missa Dialogada. A monografia foi distribuída entre os Padres Conciliares (do
Concílio Plenário Brasileiro), obtendo larga repercussão, o que contribuiu sem dúvida para
que não se realizasse o intento dos adversários da Missa dialogada.”79 São estes os pioneiros e
audazes defensores do ML no Brasil.
76
Cf. ibid., p.51-72.
77
Ibid., p.61.
78
Ibid., p.66.
79
Ibid., p.71.
29
Não se pode negar que, como vimos, apesar do inegável esforço [...] de levar
a Liturgia às massas populares mais humildes, o Movimento Litúrgico teve
sua força maior e seu maior desenvolvimento no ambiente das elites nos
inícios. Implantou-se no meio universitário e intelectual, e desenvolveu-se
sobretudo nesse meio. E não faltou mesmo quem chamasse a atenção para o
perigo do ‘exclusivismo, separatismo e aristocratismo errado’: Dom Tomaz
Keller.80
80
Ibid., p.74.
81
Eugênio Maria Giuseppe Giovanni Pacelli, romano, ocupava o cargo de Secretário de Estado no
papado de Pio XI. Quando este faleceu foi eleito papa, após um único dia de escrutínios. Sua eleição
se deu em 1o de março de 1939. (cf. Introdução. In: DOCUMENTOS de Pio XII. São Paulo: Paulus,
1998, p.9).
82
MD é considerada a “carta magna” do Movimento Litúrgico. A partir de Pio XII, juntamente com
Dom Beauduin, insuflador do movimento litúrgico em 1909 (Congresso de Malines), a questão da
participação ativa se torna o principal objeto da pastoral litúrgica. (cf. BASURKO; GOENAGA. In:
BOROBIO. A celebração na Igreja. v.1, p.134).
83
PIO XII, papa. Alocução ao Congresso Internacional de liturgia pastoral em Assis - 22/09/1956. In:
AAS 14 (1956), p.711-725 (aqui: p.712).
84
Veja acima 1.1. Lampejos de renovação e origens do Movimento Litúrgico.
85
JUNGMANN, Missarum Sollemnia, p.180.
30
Em 1951 essa reforma se mostrará previsível com a renovação da Vigília Pascal.
O que se verá, a partir disso, é um natural desenvolvimento litúrgico, que incluiu a elaboração
de novos prefácios para as orações eucarísticas, depois de quase um milênio, bem como a
permissão da missa vespertina (1953 e 1957), a reforma da liturgia da Semana Santa (1955) e
a reformulação do mandamento do jejum eucarístico (1953 e 1957), entre outras iniciativas
que incluíam também uma série de simplificações das rubricas.86
O papado de Pio XII se mostrou, para a questão litúrgica, como derradeiro estágio
de abertura da Igreja, cujo auge estava para ser verificado com as reformas promovidas, ou ao
menos agendadas de modo positivo, pelo Vaticano II. Goenaga destaca três pontos
fundamentais nos temas tratados por Pio XII:
(a) A teologia da liturgia como culto público integral do corpo místico de
Cristo, da cabeça e dos membros, e como presença privilegiada da mediação
sacerdotal de Cristo-cabeça. (b) A espiritualidade litúrgica, a dimensão
interior e profunda do culto da Igreja [...]; (c) o equilíbrio teológico, não
oportunista, entre: panliturgismo e subestimação do culto; piedade objetiva e
subjetiva; comunitarismo e individualismo; celebração e culto da eucaristia;
progressismo e conservadorismo.87
A questão mais urgente que chegará ao Vaticano II foi, sem dúvida, aquela ligada
ao debate acerca da relação liturgia e piedade individual. O ML, desde seu início, defendia a
tese de que a liturgia não podia ser apenas o rosto cerimonial dos sacramentos (rubricismo),
como queriam seus contestadores, mas lugar da Revelação. É notório no documento conciliar,
em seu texto final, a presença de um esquema que concilia doutrina e normas práticas.
O entrelaçamento de princípios e práxis corresponde ao binômio teologia-
celebração, isto é, a essência da teologia litúrgica. Se, na celebração, a
teologia é marginalizada, cai-se no rubricismo ou na invenção arbitrária. E
se, na teologia sobre o culto, se marginaliza a celebração, o pensamento é
esterilizado, perdendo-se em si mesmo.88
86
Cf. ibid.
87
BASURKO; GOENAGA. In: BOROBIO. A celebração na Igreja. v.1, p.134-135.
88
Ibid., p.137.
89
NEUNHEUSER, História da liturgia através das épocas culturais, p.213.
31
Numa palavra: o movimento litúrgico condensava uma série de
reivindicações: vivência e participação subjetiva pessoal e comunitária,
compreensão e acessibilidade do significado dos ritos, simplificação de ritos
e superação do rubricismo, variedade e pluralidade da liturgia da Palavra e
orações eucarísticas, profundidade de penetração do mistério celebrado,
dimensão pascal e salvífica da liturgia, nova concepção do Mistério, antes
como sedução do que como limite da inteligência.90
90
LIBANIO, Concílio Vaticano II, p.28.
91
Prefeito da Sagrada Congregação dos Ritos e Presidente da Comissão litúrgica pré-conciliar. (cf.
KLOPPENBURG, Concílio Vaticano II, v.1, p.192).
92
“Trata os princípios gerais para uma renovação, a Santa Missa, os Sacramentos e os Sacramentais, o
Ofício Divino, o Ano Litúrgico, as alfaias sacras, a música sacra, a arte sacra.” (Ibid., p.192). Este
esquema começou a ser apresentado à Congregação Geral em sua quarta reunião, em 22.10.1962 (cf.
KLOPPENBURG, Boaventura [comp.]. Concílio Vaticano II. v.2. Primeira Sessão [set.-dez. 1962],
Petrópolis: Vozes, 1964, p.87ss.).
93
“Tal questão tinha atormentado o movimento litúrgico sob os ataques dos que afirmavam que só nas
práticas de piedade se podia experimentar a verdadeira devoção, pois, segundo estes, a liturgia com
sua ritualidade constitui mais uma distração da mente.” (BARGELLINI, Emanuele. Cipriano
Vagaggini. Revista de Liturgia, Cabreúva, v.38, n.223, p.4-8, jan/fev. 2011, p.4-8 [aqui: p.6]).
94
KLOPPENBURG, Concílio Vaticano II, v.1, p.192.
95
Libanio lista uma série de inversões eclesiológicas antitéticas, utilizadas por ele como recurso
didático, que em síntese recupera a imagem carismática da Igreja e um forte desejo de abandonar
aquele modelo mais jurídico, institucional, curial, eclesiocêntrico etc. “De uma Igreja-instituição para
uma Igreja-Sacramento. Da Igreja-voltada-para-si para uma Igreja-voltada-para-o-mundo. [...] Da
instituição, do juridicismo para o carisma, a autenticidade.” (LIBANIO, Concílio Vaticano II,
p.145ss.).
32
a de ser mistério, cuja realização se dá na história ao visibilizar a salvação dos seres
humanos96, conforme nos mostrará Vagaggini.
33
dito: “aquele santo homem”, referindo-se a João XXIII, “não se dá conta de
que está se metendo num vespeiro.”104
Apesar de tudo concorrer para que o novo Concílio fosse apenas a manutenção de
uma Igreja curial, vigente à época de sua convocação, sem contar que João XXIII “tinha tudo
para conduzir um concílio de maneira conservadora: idade, origem rural, formação teológica
tradicional, [...]”105, o que se viu foi exatamente o contrário. Isto fica evidente no seu discurso
de abertura da Primeira Sessão do Concílio (11.10.1962). Essa sua fala é testemunha de uma
nova linha de conduta eclesial106 que consistia mais no reestabelecimento de uma Igreja do
Evangelho, cujo escopo é a misericórdia, do que na insistência em uma Igreja inquisidora ou
punidora, meramente burocrata, feita de anatematismos.
“O punctum saliens deste Concílio não é a discussão de um ou outro artigo
da doutrina fundamental da Igreja [...]. Para isto não haveria necessidade de
um Concílio. Mas da renovada, serena e tranquila adesão a todo o ensino da
Igreja, na sua integridade e exatidão [...]. Sempre a Igreja se opôs aos erros;
muitas vezes até os condenou com a maior severidade. Nos nossos dias,
porém, a Esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia que o
da severidade [...]. A Igreja Católica, levantando um facho da verdade
religiosa, deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia
de misericórdia e bondade com os filhos dela separados.”107
104
LIBANIO, Concílio Vaticano II, p.59. Cf. ZIZOLA, A utopia do papa João, p.289.
105
LIBANIO, Concílio Vaticano II, p.61.
106
“Recuperando alguns fatos anteriores ao Concílio, percebe-se como neles o papa ia traçando uma
nova linha de conduta, na expressão de G. Zizola: ‘a preferência pela misericórdia ao bastão da
punição’.” (Ibid.).
107
JOÃO XXIII apud COMPÊNDIO do Vaticano II, p.8. Este discurso é considerado por Libanio “o
grande divisor de águas do Concílio [...], a grande virada para a esperança.” (Concílio Vaticano II,
p.65-66). “O Papa Paulo VI, no discurso de abertura da Segunda Sessão (29.09.1963), fez questão de
reafirmar a finalidade pastoral do Concílio com as mesmas palavras de seu predecessor.”
(KLOPPENBURG, Boaventura. Introdução Geral aos Documentos do Concílio. In: Ibid. p.9).
108
LIBANIO, Concílio Vaticano II, p.67.
109
Ibid., p.69.
34
sensibilidade linguística, num projeto futuro.”110 Um Concílio do diálogo, por ter deslocado
“o olhar dos Padres conciliares para fora de si próprios, [tornando-os] mais atentos a
comunicar os ensinamentos em linguagem acessível do que a defini-los com rigor
acadêmico.”111 Por fim, do aggiornamento “que não traduziu uma simples modernização
externa das instituições eclesiásticas, mas uma profunda reformulação da compreensão da
Igreja a partir do embate com o mundo moderno.”112
A “eclesiologia é uma chave principal para ler o concílio.”113 Isso se verifica
desde o primeiro documento conciliar, a SC, que afinal, ao tratar da liturgia o que intenta é a
reforma da própria Igreja.
A partir do Concílio, a Igreja “fez autocrítica, revendo todo o seu ‘ser’ [...].
Definiu-se como mistério (sacramento) [...]. Aprofundou a fonte de sua mensagem (Dei
Verbum), sua vida cúltica (liturgia), os ministérios, a vida de seus membros.”114
Um personagem ímpar para a questão litúrgica foi o camaldulense Cipriano
Vagaggini e seu estudo, à maneira de tratado, intitulado “O sentido teológico da liturgia”.
Ao concluir um trabalho de pesquisa e de ensino durante 25 anos, em 1957,
quando ainda ninguém imaginava o Concílio preanunciado pelo Bem-
aventurado papa João XXIII no mês de janeiro de 1959, Dom Cipriano
publicava “O sentido teológico da liturgia”. Nesta obra ele apresenta a
fundamentação teológica mais orgânica da liturgia, totalmente enraizada na
tradição da Igreja e aberta a possível desenvolvimento. Verdadeiro anel de
conjunção (sic!) entre o movimento litúrgico anterior, a encíclica Mediator
Dei do papa Pio XII (1947) e a Sacrosanctum Concilium (1963), apareceu
como “novidade”, após séculos de esquecimento da dimensão teológica da
liturgia que deu lugar a uma abordagem devocional da vida espiritual. O
movimento litúrgico tinha aberto a estrada com um trabalho de quase um
século, mas faltava uma proposta orgânica. Este foi o mérito primeiro de
Vagaggini que antecipou as linhas fundamentais do Concílio.115
110
Ibid., p.71. “A hermenêutica não é uma rejeição da dogmática, da objetividade das verdades, mas
da perspectiva dogmatista. [...] O Concílio buscou uma síntese entre o que João XXIII chamou de
‘fidelidade à doutrina autêntica’, de um lado, e as ‘indagação e formulação literária do pensamento
moderno’, de outro.” (Ibid., p.77).
111
Ibid., p.72.
112
Ibid., p.73.
113
Ibid., p.101.
114
Ibid., p.104.
115
BARGELLINI, Cipriano Vagaggini, p.5. / Não fica muito claro o que Bargellini quis dizer com
“anel de conjunção”. Teria mais sentido que se dissesse “elo de ligação”. / “Vagaggini construiu uma
síntese doutrinal que exerceu preciosa função como preparação para o Concílio Vaticano II e nas
primeiras décadas posteriores ao concílio (cf. O primeiro capítulo da Sacrosanctum concilium).”
(FLORES, Juan Javier. Introdução à teologia litúrgica. São Paulo: Paulinas, 2006, p.237).
35
2.2. Cipriano Vagaggini na antessala do Concílio Vaticano II116
O deslocamento conceitual de liturgia, sugerido por Vagaggini e tantos outros, é
de suma importância para o estado da questão litúrgica. Este monge, de modo sistemático,
promoveu, em seu estudo, um reordenamento do lugar sem igual da liturgia para a Igreja.
Na época [do Concílio Vaticano II] os especialistas em liturgia não eram
muitos, mas constituíam um grupo compacto de pioneiros que tinham
movimentado os decênios antecedentes ao Concílio Vaticano II e o estavam
animando internamente com convicção e visão teológica antecipatória. Eram
conscientes de que com a prospectada reforma litúrgica não estava em jogo
simplesmente uma reformulação dos ritos litúrgicos, segundo o duplo
critério de uma melhor correspondência às suas origens históricas e de
maiores e mais fáceis compreensão e participação ativa por parte dos fiéis.
Estava em jogo algo mais fundamental. Tratava-se de ir às raízes do mistério
da Igreja, realidade divina e humana, nascida do costado ferido do
Crucificado (cf. Jo 19,34).117
116
Importante salientar que a obra que estamos utilizando é uma edição revista e ampliada pelo
próprio Vagaggini, que inclui referências à SC. Consultando uma edição anterior ao Vaticano II
(segunda edição de 1958) é possível perceber que as ideias fundamentais estão preservadas na sexta
edição (1999). A inserção dos textos ou referências à SC não constituiu uma mudança teórica radical.
O que se nota é que ele utiliza a SC apenas para corroborar e, diríamos, atestar suas teses. Percorremos
o cap. I da sexta e da segunda edição, colocando em paralelo os dois textos. Procuramos, a partir da
sexta, as referências que Vagaggini faz à SC. Nesta edição (tradução brasileira) a SC ou o Concílio
Vaticano II é citado nas p.32 (Vagaggini inseriu uma nota [6] fazendo referência ao Concílio: “Não
sem motivo, durante a celebração do Concílio Vaticano II foi pedido repetidamente que a perspectiva
da história sagrada ou história da salvação readquirisse o relevo merecido na teologia para que esta
reencontrasse o equilíbrio que hoje todos desejamos. [...]”); e na p.38 (aqui também, como nota de
rodapé [17], indica, como referência, os n. 5-8 e 16 da SC. No corpo do texto ele diz, no final do
parágrafo: “Não sem motivo o Concílio Vaticano II explica a natureza da liturgia precisamente nessa
visão”). Ao tomar a segunda edição (texto em espanhol: El sentido teológico de la liturgia. Madrid: La
Editorial Católica, 1958) as referidas páginas da edição brasileira correspondem, consecutivamente, às
p.18 (o texto é o mesmo em ambas edições, o único acréscimo na sexta edição é a nota supracitada); e
p.25 (nesta edição Vagaggini substituiu a última frase, do último parágrafo, pela frase da sexta, cf.
acima. Nesta edição (segunda) a frase que desapareceu é a seguinte: “A liturgia, com efeito, não é
nada mais que o modo próprio, o caminho essencial e primário, pelo qual desde Pentecostes até a
parusia se realiza a história sagrada, mistério, mistério de Cristo, mistério da Igreja.” (Tradução
nossa). No conjunto textual, a supressão da frase na sexta edição não alterou o sentido já dado pela
segunda edição. Na verdade esta frase supressa parecia já redundante na segunda.
117
BARGELLINI, Introdução à 6.ed. In: VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia, p.19. / Além
de Vagaggini, foram nomeados para colaborar nas discussões pré-conciliares sobre a liturgia, teólogos
como o famoso R. Guardini, o jesuíta J. A. Jungmann e M. Riguetti, para citar apenas os mais
conhecidos. (KLOPPENBURG, Concílio Vaticano II, v.1, p.141-154).
36
primavera para a vida da Igreja se anunciava.118 Era necessário revisitar as fontes para avançar
com mais firmeza, tanto em termos dogmáticos ou doutrinais (fides quæ) como em sua práxis
ou atos de fé (fides qua). Uma verdadeira atualização só poderia ser feita num mergulho nas
fontes da Escritura e da Tradição da Igreja.119
Deixando menos evidentes tantos outros nomes de célebre memória para a
renovação da liturgia universal, Vagaggini nos interessa primeiro porque sua obra é uma
verdadeira ode à vida da Igreja quando a “canta” desde seu lugar mais alto, a liturgia. Ele se
encarrega de estudar, em minúcias, o conceito de liturgia (parte I); suas leis gerais (parte II);
bem como temas mais específicos, postos em relação com a liturgia, dissertados nas três
últimas partes, a saber: Liturgia e Bíblia; Liturgia, fé e teologia; e Liturgia e vida. Em segundo
lugar, suas ideias estão “coladas” nas do Concílio em matéria litúrgica e, em alguma medida,
antevistas nesta obra monumental. Por fim, Vagaggini tomou parte no Concílio na qualidade
de perito da Comissão preparatória de liturgia.120 “Chamado a fazer parte da Comissão
preparatória ao Concílio, Dom Vagaggini contribuiu na preparação da parte inicial do
documento que tratava do ‘mistério da liturgia e da sua relação com a vida da Igreja’.”121
Dom Cipriano Vagaggini, OSB Cam (1909-1999), pertence à fileira das
preciosas testemunhas da fé, suscitadas pelo Espírito na igreja do nosso
tempo, tão simples na postura, e ao mesmo tempo, tão profundas no
pensamento e na autenticidade da experiência do Senhor. Se alguém o
tivesse encontrado sem conhecê-lo, poderia identificá-lo com um bom
camponês das colinas da Itália central, tamanha a sua simplicidade de
monge, sua postura nas relações e sua comunicação acolhedora. Mas se o
mesmo tivesse escutado uma aula sua na faculdade teológica ou lido um dos
seus numerosos ensaios e artigos, poderia afirmar ter encontrado um dos
antigos sábios cuja memória não vai perecer.122
Precisamos agora traçar uma rota para nossa incursão em Vagaggini. Estamos
diante de uma enorme “floresta” chamada “O sentido teológico da liturgia” e não nos toca,
conforme o limite desta pesquisa, visitar todos os recônditos da teologia vagagginiana.
118
João XXIII, em Superno Dei nutu (motu proprio de 05.06.1960) pela qual constituía as Comissões
pré-conciliares, se expressou assim: “Consideramos inspiração do Altíssimo a ideia de convocar um
Concílio Ecumênico, que desde o início do nosso Pontificado se apresentou à nossa mente como flor
de inesperada primavera.” (JOÃO XXIII, apud KLOPPENBURG, Concílio Vaticano II, v.1, p.14).
119
Cf. LIBANIO, Concílio Vaticano II, p.75. Ver ainda: BUYST, Ione. O segredo dos ritos. São
Paulo: Paulinas, 2011, p.179.
120
Veja “Índice dos nomes...” em KLOPPENBURG, Concílio Vaticano II, v.1, p.143-154.
121
BARGELLINI, Cipriano Vagaggini, p. 6.
122
Ibid., p.4.
37
Tomaremos apenas o que nos interessa em vista de uma leitura do “conceito” teológico de
liturgia da SC, da qual esse autor é um dos mais importantes colaboradores.
A primeira parte de sua obra é a que mais nos interessa e será lá que ancoraremos
nosso estudo em paralelo ao discurso conciliar de reforma litúrgica. Antes, porém, precisamos
reconhecer o chão do pensamento teológico-litúrgico de Vagaggini.
Não é demais, no que concerne ao ML, afirmar, com Vagaggini, que a liturgia em
seu conjunto é a salvação em ato. Ele sabe que essa realidade é ponto de partida para a
experiência de fé da Igreja, sujeito imediato da ação litúrgica, sem a qual perderia seu sentido.
Os movimentos bíblico, patrístico e litúrgico, tinham progressivamente
redescoberto esta visão da fé da Igreja. Dom Cipriano Vagaggini com sua
visão genial, sustentada pela experiência monástica e por coerente
argumentação teológica e histórica, a conduziu à unidade orgânica
elaborando os fundamentos teológicos da liturgia no seu conjunto, como a
salvação em ato, no hoje da história.123
Para ele a liturgia é uma fase da história da salvação, que se compõe a partir das
Escrituras, mas não se reduz ao tempo do Antigo e Novo Testamentos, senão que se estende à
vida da Igreja e à própria história da humanidade. A história da salvação124 está, ainda hoje,
sendo vivida. Na verdade estas três realidades históricas são uma e mesma história do amor de
Deus para conosco. Ela é proclamada nas Escrituras, celebrada na Igreja (liturgia) e verificada
na vida fraterna.
Para adentrar no mundo da liturgia é necessário adentrar no mundo da
revelação e considerar as coisas na visão geral própria da revelação,
especialmente na Escritura. A liturgia não é senão certa fase e certo modo no
qual o sentido da revelação age entre nós. Por isso, é indispensável
considerar sempre a liturgia no horizonte geral da história sagrada, pois a
história sagrada é precisamente a visão geral apropriada de a revelação
considerar cada coisa.125
Vagaggini considera que a revelação cristã, a começar pelas Escrituras, é mais que
uma metafísica (sem deixar de sê-lo). Ela se nos apresentaria como uma espécie de metafísica
123
BARGELLINI, Cipriano Vagaggini, p.5-6. “A porta de entrada do sujeito moderno na Igreja foram
os diversos movimentos que vinham surgindo em seu interior havia mais de um século.” (LIBANIO,
Concílio Vaticano II, p.21). Libanio, na obra citada, apresenta sete movimentos, entre eles o bíblico e
o litúrgico. (cf. ibid., p.21-48).
124
Vagaggini utiliza constantemente o termo “história sagrada” o que equivale para ouvidos hodiernos
a “história da salvação”. Daqui por diante utilizaremos história sagrada e história da salvação como
sinônimas.
125
VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia, p.25.
38
revelada. Daí se conclui que, para Vagaggini, uma explicação de tipo de metafísica não é de
interesse primário para a revelação, apesar de estar cônscio de que toda história tem um fundo
entitativo.
Também não é prioridade da revelação o estabelecimento de um conjunto de
regras ou de uma moral de vida, apesar de uma moral brotar daí. “O fato de na revelação
cristã a norma moral de vida ser fortemente explicitada provém da própria natureza da história
que narra.”126
Pois bem, a revelação cristã se apresenta principalmente como grandeza
ordenada aos acontecimentos históricos: a história da irrupção, sempre em
ato, de uma pessoa concreta, Deus, no espaço e no tempo, para realizar sua
aproximação a pessoas concretas, a homens por ele mesmo criados e
mantidos no ser, mas dos quais deseja a livre dedicação em vista da
realização de seu desígnio de reino cósmico. É este o quadro primário da
revelação cristã.127
126
Ibid., p.27.
127
Ibid.
128
Ibid., p.30.
129
Ver ibid., p.31ss.
39
QUADRO 1: RESUMO DO CIRCUITO DA HISTÓRIA SAGRADA130
130
Esse quadro foi esquematizado a partir do texto de Vagaggini (cf. ibid., p.31-32).
131
Ver ibid., p.33. “Um leitor minimamente cuidadoso da Escritura, especialmente de São Paulo e do
Apocalipse, reconhecerá facilmente no quadro acima [ver nesta dissertação “Quadro 1”] uma simples
esquematização das ideias subjacentes a todo livro sagrado [...] e operantes de modo muito eficaz no
Apocalipse.” (Ibid.).
132
Ibid., p.33.
40
escatológico, de desenvolvimento dramático, vivida por protagonistas livres (Deus, anjos e
humanos).133 (b) “Essa história, enquanto história sagrada – no significado que possui aos
olhos de Deus, significado que somente ele por natureza conhece, mas que agora, nos ‘últimos
tempos’, revelou aos cristãos, em grau máximo na pessoa de Cristo –, São Paulo chama de ‘o
mistério’.”134 O único acesso ao mistério é o próprio Mistério, Cristo. Aqui Vagaggini
parece seguir a intuição geral de Casel. Ele se coloca reticente apenas no que tange à gênese
pagã da concepção caseliana de mistério cristão.135 “A liturgia, na verdade, não é senão certo
modo pelo qual Cristo, no tempo presente, que acontece entre Pentecostes e a parusia, nesse
tempo escatológico já em ato, comunica a plenitude da sua vida divina às almas singulares,
nelas produzindo o seu mistério, atraindo-as para o seu mistério.”136 (c) Por fim, em
decorrência do que foi dito na característica anterior, a Igreja é também mistério. Ela
assume as mesmas qualidades de Cristo, porque é o corpo dele, unida a Ele que é sua cabeça.
Ela, como Cristo, é humano-divina.
Este tempo intermediário do Pentecostes até a parusia, tempo no qual tudo já
está substancialmente e radicalmente realizado e se espera somente que se
complete o número dos irmãos (cf. Ap 6,11) aos quais deve ser comunicada
a realidade divina trazida por Cristo, é o tempo especificamente eclesial, o
tempo da Igreja. [...] A Igreja é, exatamente, o quadro de vida humana e
divina, visível e invisível, espiritual e no entanto socialmente estruturada,
querida por Cristo e por ele sempre sustentada e vivificada por meio do
Espírito que lhe comunica.137
133
Cf. ibid., p.33-34.
134
Ibid., p.34.
135
Para Vagaggini, relendo a questão mistérica a partir dos escritos paulinos, não é possível
compreendê-la em dívida com os mistérios do culto pagão, como fez Casel. Sua leitura (a partir dos
escritos paulinos) é fruto de um desenvolvimento, em perspectiva cristã, do conceito de mistério
extraído do AT (p.ex.: Dn 2,20-30). (Cf. ibid.). “Mostra, ao discutir o contexto de mistério, a distância
em relação a Casel e a aproximação ao método metafísico tradicional. Oferece, portanto, um enfoque
fundamentalmente teológico, em relação com o modelo de Casel.” (FLORES, Introdução à teologia
litúrgica, p.236).
136
VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia, p.36.
137
Ibid.
41
sagrada, mistério, mistério de Cristo, mistério da Igreja. Não sem motivo o
Concílio Vaticano II explica a natureza da liturgia nessa visão.138
138
Ibid., p.38.
42
CAPÍTULO SEGUNDO
O CONCEITO DE LITURGIA SEGUNDO
VAGAGGINI E A SACROSANCTUM CONCILIUM
A liturgia como princípio teológico fundamental1
1
A questão que se poderia levantar e que está por detrás desse nosso subtítulo, na perspectiva
vagagginiana, tem que ver com a seguinte questão: O que a liturgia oferece à teologia? “Uma primeira
resposta está no fato de que o verdadeiro valor da liturgia é seu valor teológico. Vagaggini diz na
conclusão da aula inaugural do Pontifício Instituto de Liturgia [09.12.1961] que a liturgia dá à teologia
algo que as outras fontes da revelação, de seu, não lhe podem dar. O que é esse algo? É a realização
concreta nos ritos sagrados, num marco dramático real e atual, no qual cada um participa das
realidades ensinadas pelo magistério da Igreja e proclamadas pela Bíblia e pelos Padres. Então o pleno
valor dessas realidades não pode ser integralmente percebido sem a referência a esses ritos, mais
ainda, sem sua celebração vital.” (FLORES, Juan Javier. Introdução à teologia litúrgica. São Paulo:
Paulinas, 2006, p.233).
2
LUKKEN, Gerard. Na liturgia a fé sucede de maneira insubstituível. Concilium. Petrópolis, v.82, n.2,
p.145-158, fev.1973 (aqui: p.157).
43
Poderíamos tomar como ponto de partida, a etimologia do termo “liturgia”3. O
problema é que um conceito assim elaborado, por si só, se mostraria incipiente e acrescentaria
bem pouco à definição de liturgia cristã que encontramos em Vagaggini.
3
“O termo ‘liturgia’, derivado do grego clássico leitourgía, desginava originalmente a obra assumida
por um particular ou em família em favor da coletividade (érgon = obra; leiton, adj. derivado de laós =
povo). Depois passou a indicar qualquer serviço feito ao povo, ou a uma divindade, ou mesmo a um
particular. Na tradução grega dos LXX (Septuaginta), leitourgía se refere ao serviço religioso dos
levitas. No Novo Testamento, com exceção de Atos 13,2, nunca designa o culto cristão. [...] No
Oriente ‘liturgia’ designa a celebração da Eucaristia. Com esse sentido aparece já na Didaché.” (RUIZ
DE GOPEGUI, Juan. Eukharistia. São Paulo: Loyola, 2008, p.27). Ver também: VAGAGGINI,
Cipriano. O sentido teológico da liturgia. São Paulo: Loyola, 2009, nota 1, p.39.
4
VAGAGGINI, Cipriano. Vista panorâmica sobre a Constituição Litúrgica. In: BARAÚNA,
Guilherme (org.). A Sagrada Liturgia renovada pelo Concílio. Petrópolis: Vozes, 1964. p.125-167
(aqui: p.166).
5
RUIZ DE GOPEGUI, Eukharistia, p.11.
6
Ibid.
7
Ver cap.1, 1.2.2.2. Os ideais do Movimento Litúrgico assumidos pelo magistério
8
RUIZ DE GOPEGUI, Eukharistia, p.12.
9
A Escolástica frequentou a filosofia aristotélica e aprendeu dela o hilemorfismo (do gr. hylé: matéria;
morphé: forma), aplicando-o aos sacramentos. “Hilemorfismo ou Hilomorfismo: [...] Doutrina que
explica os seres, segundo a concepção de Aristóteles e dos Escolásticos, pelo jogo da matéria e da
forma.” (HILEMORFISMO ou HILOMORFISMO. In: LALANDE, André [org.]. Vocabulário técnico
e crítico da filosofia. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.464).
10
“Se alguém disser que os ritos recebidos e aprovados pela Igreja Católica [...] [podem] ser mudados
em outros novos por qualquer pastor da Igreja: seja anátema.” (DH 1613).
44
em capítulo intitulado “Da missa rezada”. Ele enumera uma série de obrigações rituais,
prescrevendo posições específicas do corpo, das mãos, dos pés, modos de recitar as preces
etc.11 Mais adiante chega a listar todas as faltas imagináveis, chamadas pelo autor de
“defeitos”, na celebração da missa, desde a sua preparação até o final da missa, que
obviamente incluía a retirada dos paramentos na sacristia.12 Certo é que a preocupação
ritualística dizia respeito ao mínimo necessário para a validade do sacramento. É a
preocupação que está no cerne da reforma litúrgica de Pio V, que proporcionou, no Ocidente,
uma uniformidade ritual rígida.13
O Vaticano II foi prova de que a Igreja não sobrevive apenas da obrigação
sacramental. “Verdadeiro milagre, após séculos de imobilismo em matéria de direito
litúrgico.”14 Havíamos barateado a experiência simbólica. Desconsideramos a “lei da oração”,
da liturgia como espaço de aprendizado cristão e de construção de uma Igreja-corpo.
Tomamos a liturgia apenas como meio e esquecemos que ela tem um sentido em si.15
Liturgia e sacramento são indissociáveis. A liturgia é lugar teológico
insubstituível onde a Revelação cristã se faz atual. Ali somos convidados a experimentar a
salvação que nos chega por meio de sinais.
O Mistério cristão é celebrado e presencializado na liturgia de forma
sacramental. Com isto não se afirma apenas que os sete sacramentos são o
centro da vida litúrgica, mas também que toda liturgia é uma realidade
sacramental.16
11
Cf. LE VAVASSEUR, Leoni. Cerimonial Romano. Lisboa: Typographia do Diário da Manhã, 1884,
p.132ss.
12
Cf. Idib., p.174-177. / Scavini em seu volumoso manual de teologia moral, de 1910, adverte o dever
de se observar cuidadosamente os ritos. “O espírito e determinação da Egreja (sic!) foi sempre que se
observassem com exactidão os ritos sagrados, já pela sua significação mystica, já em veneração das
instituições dos antepassados e para que insensivelmente se não introduzissem novidades
prejudiciais”. (SCAVINI, Pedro. Theologia moral universal. 2.ed. Porto (Portugal): Livraria da
Província, 1910. v.6., p.7).
13
Cf. VISENTIN, Pelágio. Eucaristia. In: SARTORE, Domenico; TRIACA, Achille Maria (orgs.).
Dicionário de Liturgia. São Paulo: Paulinas, 1992. p.395-415 (aqui: p.401).
14
RUIZ DE GOPEGUI, Eukharistia, p.24.
15
Guardini já estava convencido disso nos começos do Movimento Litúrgico: “A liturgia não é um
degrau para um fim situado fora dela, mas um mundo de vida que repousa em si mesmo. [...] Com
efeito, a liturgia não pode ter ‘finalidade’ alguma, pois sua razão de ser é não o homem, mas Deus; seu
olhar está voltado para Ele.” (GUARDINI, Romano. O Espírito da Liturgia. Rio de Janeiro: Lumen
Christi, 1942, p.79).
16
RUIZ DE GOPEGUI, Eukharistia, p.29.
45
Na liturgia se pode ouvir-sentir, em gestos simbólicos, o perene desejo de
autocomunicação de Deus.17 O sacramento, incluindo a própria liturgia, é sinal de algo muito
maior. Por não conseguirmos apreender o mistério de Deus somos convidados a participar
dele e só podemos fazê-lo por meio da celebração, aqui assumida como chamamento a um
mergulho em Deus que nos assume. Somos seduzidos, atraídos, convidados a tomar parte no
corpo do Salvador que, em última instância, nos salva porque nos incorpora.
A SC não quis ser nem elaborar um tratado teológico sobre liturgia. Ela forneceu,
isto sim, elementos para que pensássemos uma catequese litúrgica.18
A teologia subjacente à Constituição litúrgica está destinada a permanecer
para sempre como um farol a iluminar a vida da Igreja, ainda depois que a
reforma estiver encerrada e a participação ativa do povo for conseguida. [...]
É por isso que a Constituição, sem querer propor, nem resumidamente, um
tratado completo de teologia litúrgica, faz questão de relembrar os princípios
fundamentais em vista da finalidade pastoral e de reforma.19
17
O termo “autocomunicação” foi cunhado por Karl Rahner (†1984). Ele assim o conceitua: “Ao
falarmos de ‘autocomunicação’ de Deus, que não se entenda esta palavra no sentido de que Deus, em
sua revelação, falasse algo sobre si mesmo. O termo ‘autocomunicação’ visa propriamente a significar
que Deus se torna ele mesmo em sua realidade mais própria como que um constitutivo interno do
homem.” (RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé. 2.ed. São Paulo: Paulus, 1989, p.145).
18
Cf. RUIZ DE GOPEGUI, Eukharistia, p.27.
19
VAGAGGINI, Cipriano. Vista panorâmica sobre a Constituição Litúrgica, p.128-129).
20
TABORDA, Francisco. A Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a renovação da liturgia.
Avanços e perspectivas. Horizonte Teológico. Belo Horizonte, v.12, n.23, p.9-38, 2013 (aqui: p.13).
46
Considerando-se atentamente a maneira como a Constituição concebe a
relação dos dois objetivos citados [fomento e reforma da liturgia], vê-se que
a reforma se apresenta em função do fomento da estima da vida litúrgica na
Igreja. Tal princípio é relevado nos artigos 14 e 21 do primeiro capítulo a
modo de máxima geral, sendo depois afirmado de novo, explícita ou
implicitamente, no início de cada um dos capítulos seguintes (n. 49; 62; 87;
105; 112; 122).21
A definição do que seja a liturgia cristã não parece ser problema para o
magistério. Ela está posta nos documento da Igreja como uma questão aberta, pelo menos é o
que se vê delinear a partir de Pio XII.
A Mediator Dei (MD), no contexto de renovação litúrgica, fala da liturgia com o
intuito de explicitar que o culto prestado a Deus, em Igreja, é o culto de todo corpo místico de
Cristo, cabeça e membros (cf. Cl 1,18).
A sagrada Liturgia constitui, portanto, o culto público que nosso Redentor
como Cabeça da Igreja rende ao Pai e que a comunidade dos fiéis rende ao
seu Fundador e, por ele, ao eterno Pai; ou, para dizê-lo em poucas palavras,
21
VAGAGGINI, Vista panorâmica sobre a Constituição Litúrgica, p.128. / Vagaggini ressalta os
números 14 e 21 como aplicação dos objetivos de fomento e reforma da liturgia. Estes números se
referem à participação plena e ativa dos fiéis nas celebrações litúrgicas bem como a formação litúrgica
do clero; (fomento) e a reforma das partes mutáveis dos ritos litúrgicos para uma melhor compreensão
dos fiéis.
22
VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia, p.40. / Comparamos esta versão brasileira, pós-
conciliar, com a edição espanhola de 1958. Aliás já fizemos uma comparação do texto do cap. I da
obra de Vagaggini (ver nota 116 do cap.1 desta dissertação). Comparando as edições é possível
perceber que as novas inserções de textos do Concílio Vaticano II não modificam o pensamento de
Vagaggini, antes, corroboram sua tese. Neste caso específico (p.40 da edição brasileira) fica claro que
se trata apenas de um acréscimo. Desde o começo do capítulo desta edição, contamos dois parágrafos,
que também estão na edição de 1958. Depois disso Vagaggini acrescentou cinco novos parágrafos,
somando ao que já tinha dito sobre a MD. O texto da edição de 1958 reaparece, na nova edição pós-
conciliar, logo depois disso, com seu início reorganizado, mas praticamente idêntico. (Ver o texto em
espanhol: El sentido teológico de la liturgia. Madrid: La Editorial Católica, 1958, p.26ss).
47
ela constitui o culto público integral do místico Corpo de Jesus Cristo, isto é,
da Cabeça e dos seus membros. (DH 3841).
23
VAGAGGINI, Vista panorâmica sobre a Constituição Litúrgica, p.155.
24
Antes da MD o que encontramos são apenas prescrições rubricísticas e jurídicas e não documentos
magisteriais sobre a liturgia (cf. ibid. p.155).
25
BECKHÄUSER, Alberto. Apresentação. In: SACROSANCTUM CONCILIUM: Constituição do
Concílio Vaticano II sobre a Sagrada Liturgia. Petrópolis: Vozes, 2013, p.11.
26
RUIZ DE GOPEGUI, Eukharistia, p.24.
48
A partir da agenda do ML, Vagaggini chegará a um conceito de liturgia cristã, não
por puro deleite teórico, mas para que fosse viável uma ciência litúrgica, cujas regras diferem
daquelas de um documento eclesiástico, como é o caso da SC. Vagaggini constrói sua teoria
conceitual de liturgia que será a base para a noção de liturgia da própria SC, mesmo que neste
documento não seja possível encontrar um conceito propriamente científico. Veremos como
isso foi possível.
Escolhemos seguir o caminho da definição rigorosa de liturgia oferecida por
Vagaggini em “O sentido teológico da liturgia”27 cientes que esta obra é situada. Ela é fruto
do rigor da Escolástica. Aí encontraremos traços típicos de um modo peculiar de fazer
teologia, marcado por certos cânones racionalistas e linguagem tipicamente manualística.28
Aliás, vivia-se nesse tempo um clima de anatematismos, com proibições de toda
sorte, por parte do magistério, sempre pronto a calar a boca de quem contrariasse as
expectativas doutrinais em vigor. De qualquer maneira nosso autor é figura ímpar e tem seu
valor porque está na fronteira entre o modelo explicativo da Escolástica (matéria e forma) e a
nova linguagem, mais narrativa, de certa forma antecipada e preparada por ele e inaugurada
pelo Vaticano II. Apesar de alguns entraves, porque precisa justificar para um leitor imbuído
de Escolástica a novidade haurida das fontes e que desabrocharia plenamente no Vaticano II,
Vagaggini será importante para demonstrarmos o engenhoso exercício de preparação para a
virada conciliar em matéria litúrgica. Percorreremos “O sentido teológico da liturgia” em
paralelo à SC. Isso nos ajudará a matizar a definição vagagginiana de liturgia.
27
Vagaggini nesta obra se mostra verdadeiro escolástico no estilo. “O sentido teológico da liturgia” é
extremamente redundante e trata os temas com excessiva exaustividade. Trata-se do estigma de uma
época que precisa constantemente justificar que a novidade que propugna não vai contra a Escolástica
vigente. O sabor de sua escrita muda quando lemos o Vagaggini do pós-concílio. É o caso do texto
“Vista panorâmica sobre a Constituição Litúrgica”. Mais leve e objetivo. Vai ao ponto sem muita
especulação à Escolástica.
28
Um exemplo desse tipo de abordagem teológica encontramos em “[...] Adolphe-Alfred Tanquerey
(†1932), que às vésperas do Concílio Vaticano II podia orgulhar-se de um sucesso editorial invejável.
Aí a eucaristia é tratada numa chave de leitura dividida em cinco pontos: (I) A existência do
sacramento; (II) a essência do sacramento; (III) os efeitos do sacramento; (IV) o ministro do
sacramento; (V) o sujeito do sacramentos.” (GIRAUDO, Cesare. Num só Corpo. São Paulo: Loyola,
2003, p.3). Fato é que encontraremos em Vagaggini toda a linguagem escolástica, apesar de suas
ideias estarem mais afinadas com as do ML. Ele se sente obrigado, cada vez que se refere à eucaristia,
a distinguir dos demais sacramentos, acrescentando a qualificação de sacrifício, para que não haja
dúvida que não vai contra a afirmação tridentina da eucaristia como sacrifício (ver ibid., p.1-7).
49
2. O conceito de liturgia em Vagaggini
É no quadro da Revelação como história sagrada29 que se inscreve o culto cristão.
Disso depende a correta concepção de liturgia. Retrospectivamente esse conceito passa pela
compreensão do elo Liturgia – Igreja – Cristo30, tendo como horizonte a história da
salvação.31 A partir desse circuito a liturgia reaparecerá, sem muito esforço, como lugar
teológico fontal32, ou como indica Lukken, como ‘teologia primeira’, porque “a liturgia é a
primeira fonte e norma para a doutrina. [...] A reflexão teológica e a formulação da doutrina
encontrarão, portanto, seu terreno fertilizante na expressão total da fé na liturgia.” 33
Vagaggini anuncia, logo no início do capítulo II de “O sentido teológico da
liturgia”, uma via que, em suma, leva em conta a verdade expressa pelo axioma lex orandi -
lex credendi34. A recuperação deste antigo adágio, elaborado por Próspero de Aquitânia (†
depois de 455), recoloca a questão da liturgia como núcleo da dogmática. “Graças à retomada
do adágio lex orandi - lex credendi, a condição de lugar teológico voltou a ser atribuída à
liturgia, como já o haviam feito Agostinho e Próspero de Aquitânia.”35
A autoridade da liturgia para os Padres é tal que impõe a obrigação da
observância dos ritos, palavras e usos dos quais se compõe e da adesão
fiducial a eles implicada. Os Padres apelam à liturgia quando creem
oportuno inculcar tal obrigação.36
A verdade desse axioma nos indica que, para chegarmos à definição rigorosa de
liturgia, coração desta pesquisa, será necessário partir do seu lugar vital, da liturgia em ato. Só
29
Ver cap.1, 2.2. Cipriano Vagaggini na antessala do Concílio Vaticano II.
30
“Vagaggini [...] chama nossa atenção para a íntima e indissociável conexão, na ordem atual da
salvação, entre Cristo, Igreja e liturgia [...]. Esta conexão íntima não é somente de causalidade (Cristo
age na Igreja e através dela, a Igreja age principalmente na liturgia e através dela), mas também de
estrutura, estrutura de sacramentum, de mysterium.” (BUYST, Ione. O segredo dos ritos. São Paulo:
Paulinas, 2011, p181-182).
31
Ver VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia, p.38.
32
Esta é a conclusão do Concílio no n.10 da SC: “[...] a Liturgia é cume para o qual tende a ação da
Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte donde emana toda a sua força.”
33
LUKKEN, Na liturgia a fé sucede de maneira insubstituível, p.157. / Ao discutir rito e teologia
(cap.8, p.145ss.), Buyst afirma: “...a teologia litúrgica já está presente [no rito], como ‘embrião’, como
‘teologia em ato’, como ‘teologia primeira’, na própria execução e experiência da ação ritual. [...]
Partindo dessa ‘teologia primeira’, devemos elaborar uma ‘teologia segunda’, sistemática, racional,
[...]. Portanto, a teologia litúrgica não é algo que se realiza de fora para dentro da liturgia, mas de
dentro para fora. Brota de dentro dela como de uma fonte.” (BUYST, O segredo dos ritos, p.146). Esta
perspectiva de Buyst será o tema do último capítulo desta dissertação.
34
Ver cap.1, 1.2. O alvorecer do Movimento Litúrgico.
35
TABORDA, Francisco. O memorial da Páscoa do Senhor. São Paulo: Loyola, 2009, p.32.
36
VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia, p.525.
50
ali acharemos os elementos peculiares para uma correta definição. Esse esforço corrobora
uma maior consciência do lugar fundamental da liturgia para a sistemática. A própria liturgia
só pode ser definida tecnicamente a partir do ato litúrgico. Correr-se-ia o risco de elaborarmos
uma definição que não passaria de uma simples descrição.37
A liturgia, concretamente, é constituída dos sete sacramentos – com a
eucaristia como sacrifício e sacramento ao mesmo tempo –, dos
sacramentais, das orações e das cerimônias com as quais a Igreja reveste, por
assim dizer, a celebração do sacrifício, dos sacramentos e dos sacramentais e
do ofício divino das horas canônicas. Não será isso um conjunto
heterogêneo? Qual o elemento que o aproxima no conceito de liturgia?
Entra-se assim na questão da definição real da liturgia e da explicação dos
elementos que a compõem.38
37
Muitas das definições de liturgia, porque não seguem algumas regras essenciais para se chegar a
uma definição propriamente dita, “são, no melhor dos casos, descrições mais ou menos felizes, mas
não definições rigorosas, porque não se preocupam em discernir, entre as notas relevadas, aquela que é
a raiz de todas as outras, e eliminar, consequentemente, aquelas que são somente secundárias e
derivadas.” (Ibid., p.46). Vagaggini exemplifica: “a noção de liturgia simplesmente como ‘exercício
do sacerdócio de Jesus Cristo’ não pode ser tida como definição rigorosa porque, entre outras coisas,
determina a liturgia por uma nota não primária mas derivada” (Ibid.). Algumas ditas definições pecam
por desconsiderar a regra da coextensividade. É o caso de considerar a liturgia como culto público e
integral do corpo místico de Jesus Cristo. “Esta noção deixa de fora tudo o que na liturgia é
diretamente e em primeiro lugar santificação do homem, isto é, a essência mesma dos sacramentos e
de muitos sacramentais.” (Ibid.).
38
Ibid., p.39. / Ao escrever isso Vagaggini se mostra de certo modo refém da compreensão rubricista e
dogmática de liturgia/sacramento, pois supõe que “sacramento” seja unicamente o que a Escolástica
considerava como matéria e forma. O resto são “cerimônias com as quais a Igreja reveste [...] a
celebração do sacrifício e dos sacramentos.” Também a necessidade de dizer que a eucaristia é
sacrifício e sacramento mostra a mesma situação de refém da Contrarreforma e da Escolástica daí
decorrente.
39
Ibid., p.41.
51
Toda busca conceitual, segundo Vagaggini, base para o início e razão de ser de
uma empreitada científica, exige três momentos ou passos estratégicos. O primeiro a se
considerar é a integralidade. Trata-se de analisar o objeto sem tirá-lo do seu ambiente vital.
“Isso porque a definição técnica de um objeto deve ser coextensiva ao objeto mesmo [...].”40
Essa premissa é capital no trabalho de definição. Isso quer dizer que, aplicado à liturgia, o
primeiro olhar do pesquisador se direcionará aos elementos que pertencem à celebração. São
eles os detentores dessa concreta integralidade que, em síntese, distinguirá e determinará o
objeto a ser pesquisado.41
Ter consciência científica de um objeto significa, em última análise,
justamente conhecer essa relação entre o seu primeiro princípio de
inteligibilidade e todo o resto que da coisa se pode dizer. Vê-se, assim, o
quanto da justa definição técnica da liturgia depende toda a ciência
litúrgica.42
Vale acentuar que, na busca por uma objetivação da liturgia, Vagaggini não abre
mão de reconhecer-lhe seu lugar vital, ou seja, a prática litúrgica, a Igreja em oração. O
caminho que ele propõe não se faz desprezando a liturgia em ato, mas tomando consciência
de que ela tem uma dinâmica que só pode ser vislumbrada lá onde ela acontece. É o perigo
aventado por Taborda como corolário do axioma de Próspero.
O primeiro sentido do axioma, que é também o mais usual, a lex orandi
como critério da lex credendi, traz consigo um perigo, contra o qual se deve
advertir: é o de passar por cima do caráter próprio da liturgia que não é
racional, discursiva, mas simbólica, existencial, celebração do mistério. Se,
porém, é preciso manter a diferença de linguagem dos dois âmbitos distintos,
a celebração e a doutrina, levanta-se o problema de como relacionar liturgia
e teologia.43
40
Ibid.
41
Cf. ibid.
42
Ibid.
43
TABORDA, O memorial da páscoa do Senhor, p.31-32.
44
VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia, p.41.
52
dos quais o resto se explica. Nesse passo decisivo excluímos, das notas levantadas, aquelas
tidas como pressupostas ou derivadas de outras. Ficarão apenas os elementos singularíssimos.
45
Escutar “essencial” nos faz perceber, mais uma vez, o estilo escolástico de Vagaggini. É a gramática
ou linguagem de seu tempo.
46
Hoje diríamos “rituais”, “ritos” ou “celebrações”. Também não se utiliza mais o termo “ofício
divino”, mas “liturgia das horas”.
47
Ibid., p.42.
48
Ibid.
49
Não nos custa relembrar os pontos centrais do sentido da história sagrada para Vagaggini: “1. [...] o
sentido da história sagrada não é senão comunicar a vida divina aos homens; 2. [...] esse sentido se
realiza concentrando-se todo no mistério de Cristo, mistério que consiste no fato de que Deus,
colocando em Cristo a plenitude da vida divina, une os homens a si em Cristo, isto é, enquanto Cristo
lhes comunica a vida divina da qual é pleno; 3. que, finalmente, o sentido da história sagrada e do
mistério de Cristo, do tempo de Pentecostes à parusia, se realiza no mistério da Igreja como ser
humano-divino, instituída único porto de salvação, na qual e por meio da qual se realiza a comunhão
de vida divina que Cristo transmite aos homens, dando-lhes o Espírito e unindo-os, assim, consigo e
com o Pai.” (Ibid., p.44).
50
Ibid., p.43.
53
Sob o aspecto da santificação é importante salientar que Deus só santifica a Igreja
por, em e para Cristo, Deus e homem. Não há graça e santificação que não nos venha de
Cristo. Esta graça e santificação é “devedora” do merecimento dele, “operante em união real
com ele e, a partir da encarnação acontecida, causada pela própria humanidade de Cristo
como instrumento unido à sua divindade.”51
Esse matiz também é válido para o culto que a Igreja presta a Deus, que só pode
acontecer em união com Cristo e através de Cristo, que é a cabeça da Igreja. “O culto da
Igreja não é senão sua participação no culto que Cristo cabeça presta a Deus. [...] Na liturgia,
a santificação que Deus dá à Igreja e o culto que a Igreja presta a Deus acontecem ‘in
Christo’.”52
Sendo in Christo, é in Spiritu. Não é possível uma união a Cristo senão na
presença e em posse do Espírito. Nesse sentido é que dizemos acertadamente que o culto da
Igreja é espiritual (cf. Fl 3,3). “Dos cristãos se deve dizer, com a fórmula paulina continente e
manifestante, exatamente, da natureza do culto que exercem: ‘por meio de Cristo têm acesso
ao Pai no Espírito Santo’ (cf. Ef 2,18).”53
Dessas notas sumárias da liturgia esquematizamos, no quadro abaixo, o que
averiguamos até aqui, partindo dos elementos da própria liturgia.
51
Ibid.
52
Ibid.
53
Ibid., p.43-44.
54
Cf. ibid., p.44.
54
ourives que, tomando a pedra bruta, no trabalho de burilador, vai retirando as arestas com o
intento de lhe dar uma forma mais perfeita, fazendo surgir sua preciosidade.
Na primeira parte da afirmação Vagaggini elimina as palavras: “de coisas
sagradas, espirituais e invisíveis instituídos por Cristo ou pela Igreja”. “Com efeito, essas
coisas sagradas, espirituais e invisíveis a que se referem os sinais da liturgia são
concretamente: a graça santificante, mais ou menos imediatamente significada nos diversos
sinais litúrgicos, assim como o autor dessa graça, Cristo, e o seu fim, a glória futura.”55
Também o culto interno prestado a Deus pela Igreja é igualmente significado nos diversos
sinais. Tudo isso se mostra acessório. Ainda, é igualmente desnecessário enunciar que aqueles
sinais foram instituídos por Cristo ou pela Igreja. “Se se diz que se trata de sinais eficazes da
santificação e do culto público, está incluído ipso facto que foram instituídos por Cristo ou
pela Igreja.”56 Aliás, só podem ser eficazes porque são coisas próprias de Cristo ou da Igreja e
portanto instituídos por um ou outro, em última análise por Cristo, já que a Igreja é seu corpo.
Afirmar que estes sinais sensíveis são instituídos por Cristo ou pela Igreja entram na regra dos
derivados e por isso elimináveis.
Do segundo bloco o autor suprime a sentença: “cada um a seu modo, naquilo
que significam”, “porque a eficácia do sinal, como sinal, é necessariamente relativa àquilo
que significa e, tratando-se de um complexo de sinais, é óbvio que sua eficácia é diversa de
acordo com os diversos sinais.”57 Esta eficácia está diretamente ligada ao que será dito logo
adiante ao afirmar-se o efeito, ligado ao tema da eficácia, que é a santificação e o culto.
Está implícito que, para uma definição geral de liturgia, a santificação tem sua
origem no Pai, mediada por Cristo, na presença do Espírito Santo. Esse mesmo raciocínio se
aplica ao culto na Igreja, que só presta culto a Deus porque santificada por Ele. Nisso está o
princípio básico da teologia geral. Os sinais são por si eficazes, dada sua origem e finalidade,
que são sempre do Pai ao Pai, de Deus a Deus.
Nesse ex Deo et ad Deum o esquema é sempre necessariamente do Pai, por
Cristo, o Filho encarnado, na posse do Espírito Santo, ao Pai. Quem
exprime, portanto, que a liturgia é o complexo dos sinais da santificação que
Deus faz na Igreja e do culto que a Igreja presta a Deus, já exprimiu o
bastante.58
55
Ibid.
56
Ibid., p.44-45.
57
Ibid., p.45.
58
Ibid. / Do ponto de vista da língua latina, segundo observação do nosso orientador, Prof. Francisco
Taborda, a expressão usada por Vagaggini “ex Deo et ad Deum” incorre em erro. “Ex Deo”
55
Portanto não é preciso enunciar, no exercício de definição teórica da liturgia, a
origem da santificação. Ele já está contido no conceito de santificação, que sintetiza o
parágrafo. Suprime-se com isso a seguinte sentença em destaque, porque redundante,
deixando o que está sublinhado: “e pelos quais Deus [...], por meio de Cristo, cabeça e
sacerdote, e na presença do Espírito Santo, santifica a Igreja”.
O mesmo procedimento de corte deve ser aplicado à sentença em negrito da
quarta coluna do quadro acima, com relação ao culto, porque faz o caminho inverso da
anteriormente eliminada: “e a Igreja na presença do Espírito Santo, unindo-se a Cristo,
sua cabeça e sacerdote, por meio dele, como corpo, presta seu culto a Deus [...]”. Se no
caso anterior bastava o conceito de santificação, aqui basta o conceito de culto, que por si já
fala de um movimento de retorno, segundo o raciocínio do a Deo ad Deum.
A afirmação do “por meio dele” também é desnecessária, uma vez que está
implícito que o exercício litúrgico só pode ser exercido por meio de Cristo.
Por fim, nesta última parte, não é necessário dizer que o culto prestado pela Igreja
a Deus é feito “como corpo” e tampouco “a Deus”. Neste último caso elimina-se a afirmação
tendo em conta o mecanismo básico do a Deo ad Deum. No outro porque a Igreja, entendida
formalmente como Igreja, implica necessariamente um corpo, aliás um corpo formal e
público.
“Assim, entre todas as propriedades essenciais que constituem o complexo
litúrgico, se chega àquela que é a raiz de todas as outras e, como tal, as
compreende, constitui a essência da liturgia e, portanto, a definição por
gênero próximo e diferença específica. A liturgia é o complexo dos sinais
sensíveis, eficazes, da santificação e do culto da Igreja [ou invertendo os
termos,] a liturgia é a santificação e o culto da Igreja, realizados por sinais
sensíveis e eficazes.”59
O gênero próximo da liturgia são seus sinais sensíveis, enquanto sua diferença
específica, aquilo que distingue os sinais litúrgicos, se verifica naquilo que significam e
operam eficazmente a santificação da Igreja e o culto que a Igreja presta a Deus.
Essa definição compreende todos os elementos da liturgia e se aplica
somente a eles. De fato, ela inclui não somente o que na liturgia é ação da
Igreja em relação a Deus, ou seja, o culto, mas também o que nela é obra
significaria que se extrai de Deus como um pedaço ou parte; o correto em latim seria “a Deo”, que
indica origem sem outra conotação.
59
Ibid., p.45.
56
mais propriamente de Deus em relação à Igreja, ou seja, a santificação que
Deus faz na Igreja.60
60
Ibid., p.45-46.
61
“Hoje o sinal não é somente valorizado, em contraposição a atitudes críticas dos últimos séculos,
mas é muito estudado, porque constitui um dos caminhos que melhor abrem à compreensão da religião
em geral e de cada uma das expressões e formas religiosas em particular”. (MARSILI, Salvatore.
Sacramento. In: SARTORE; TRIACA (orgs.). Dicionário de Liturgia, 1992, p.1058-1069 (aqui:
p.1058).
62
VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia, p.47 (grifos do autor). / Tomás, na verdade, segue a
linha de S. Agostinho, que já entendia o sacramento, antes de qualquer coisa, como um sinal. Assim
Tomás usa no Sed contra do a.1 da q.60 da III parte da Suma uma afirmação de Agostinho “‘O
sacrifício visível é sacramento do sacrifício invisível’ isto é, seu sinal sagrado”. No artigo seguinte em
que propriamente define sacramento, não segue o caminho de Pedro Lombardo, qualificando o
sacramento a partir da categoria de causa, mas de sinal. Ele escreve: “Os sinais existem para os
homens, que se caracterizam pelo fato de chegarem ao que não conhecem através daquilo que
conhecem. Por isso, diz-se propriamente sacramento o sinal de uma realidade sagrada que diz respeito
aos homens, de forma que, em sentido próprio, o sacramento de que falamos aqui, é o sinal de uma
realidade sagrada enquanto santifica os homens.” (STh III, q.60, a.2).
57
ritos litúrgicos em geral, possuem de próprio e específico nossos sete
maiores ritos, que hoje chamamos de sacramentos.63
É nesse sentido mais amplo que o termo “sinal” é utilizado na definição estrita de
liturgia em Vagaggini. Ele aponta para o ambiente sacramental que é de per se mais amplo
63
VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia, p.48.
64
“É o grego mysterion, traduzido nas Bíblias latinas por seu decalque latino mysterium ou por sacra-
mentum (p.ex., Ef 5,32), que está na origem do nosso termo sacramento. [...] Todos (padres gregos e
latinos) leem os grandes momentos da gesta divina contada pelas Escrituras (criação, dilúvio,
sacrifício de Abraão...) como ‘mistérios’ ou ‘sacramentos’; e todos o fazem na esteira de 1Cor 6,11
(sic!) [a citação correta é 1Cor 10,6], que funciona como princípio fundamental de uma hermenêutica
cristã: tudo isso era ‘figura’ da realização por vir em Cristo. [...] Foi Tertuliano que deu ao latim
sacramentum suas cartas de nobreza cristãs como tradução do grego mysterion”. (CHAUVET, Louis-
Marie., Sacramento. In: LACOSTE, Jean-Yves (dir.). Dicionário crítico de teologia. São Paulo:
Loyola : Paulinas, 2004, p.1575). Consulte ainda: MARSILI, Salvatore. Sacramento. In: SARTORE,
Domenico; TRIACA, Achille M. (org.). Dicionário de Liturgia. São Paulo: Paulinas, 1992. p.1058-
1069, especificamente p.1059.
65
Cf. VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia, p.54.
66
VAGAGGINI, Vista panorâmica sobre a Constituição Litúrgica, p.134.
58
que a simples designação dos sete sacramentos. A liturgia é sacramento, salvaguardada a
especificidade dos ritos contidos na lista dos sete sacramentos.
Assim se entrevê que toda a liturgia não é senão aquele ponto no qual o
fluxo sacramental da vida divina proveniente de Cristo, na Igreja, chega a
nós. E se começa a suspeitar que exatamente nela esteja o coração mesmo da
Igreja, a sua mais perfeita expressão, a sua epifania por excelência. O ponto
no qual ela melhor aparece como o puro instrumento também sensível do
qual a vida divina se serve para manifestar-se e transmitir-se aos homens
bem dispostos.67
O Vaticano II, na Constituição sobre a Igreja (LG 1), assegura: “[...] a Igreja é em
Cristo como que o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da
unidade de todo o gênero humano [...]”. Tudo o que a Igreja faz, em última análise, depende
positiva e exclusivamente da vontade de Deus, em Cristo, no Espírito. Esse é o critério de
verificação do verdadeiro sinal em Igreja.
Um homem ou mesmo muitos não possuem a título privado autoridade para
determinar o ser e o significado dos sinais litúrgicos, não somente quando se
trata do sacrifício e dos sete sacramentos na sua substância, caso em que o
único competente é Deus, porque os sete sacramentos são antes de tudo
instrumentos de Deus, e tampouco no caso dos sacramentais, em que a única
competente é a Igreja, e não por delegação de homens, mas por autoridade
recebida de Deus, na sua estrutura hierárquica. [...] Para o indivíduo prestar o
verdadeiro e pessoal culto a Deus em Cristo na liturgia, deve
necessariamente fazer seus aqueles sinais da Igreja e aquelas realidades que
a Igreja exprime através daqueles sinais, sintonizar-se com aqueles sinais e
com aquelas realidades, ainda que lhes possam ser estranhos.68
67
VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia, p.49.
68
Ibid., p.60-61.
69
Vagaggini qualifica os sinais em dois tipos maiores: sinais naturais (onde há fumaça é natural que
haja fogo) e sinais livres. Estes se destinam a “significar as coisas que significam pela livre e positiva
vontade de Deus ou da Igreja. A realidade invisível da qual os sinais são expressões sensíveis na
liturgia são as realidades sobrenaturais da vida divina que Deus comunica à Igreja e do culto
sobrenatural que a Igreja presta a Deus como participação no culto que Cristo mesmo lhe rende”.
(Ibid. p.60). Não entraremos no mérito dessa distinção, mesmo porque ela ainda é mais complexa do
que a adjetivação em termos de natural e livre. Para aprofundar isso consulte ibid., p.51-53.
70
Ibid., p.63.
59
expressão corpórea da palavra. Eles estão intimamente conectados ao sinal palavra, e
propiciam um mútuo equilíbrio. Somam-se a estes os elementos naturais. Eles constituem,
“na liturgia, instrumentos e sinais em função das realidades sagradas da santificação e do
culto. Assim, o pão, vinho, óleos sagrados, incenso, sal, luz, escuridão, tempo.”71
A arte72 na liturgia assumirá o papel de facilitadora. Ela tem uma função de
recobrimento dos demais sinais. “Revestindo os sinais de forma artística, a liturgia potencia
sua força, elevando-os, enquanto sinais, àquele nível de virtude expressiva e impressiva a que
somente a arte, entre os meios humanos de expressão e de comunicação, pode chegar.”73
Por fim, as próprias pessoas são sinais na celebração litúrgica. “Toda assembleia
cristã como tal [...] possui valor de sinal na liturgia enquanto convocação de Deus em Cristo
Jesus, a reunião ‘no nome’ de Cristo, congregação do ‘populus Dei’ e, como tal, realiza em si
a ekklesia de Deus do Antigo Testamento.”74
Disso se conclui que o “encontro entre Deus e os homens, a atuação em cada
mistério de Cristo, a transmissão a cada um da vida de Cristo devem realizar-se em regime de
símbolos, sob seu véu e através, por assim dizer, de sua mediação.”75
Para proveito do caminho que estamos trilhando de uma definição técnica e
rigorosa de liturgia, a SC, sem conceituar a liturgia, indica-nos um rumo. Interessam-nos aqui,
da Constituição, sobremaneira, os n.5-8 (A natureza da liturgia).
[O Concílio] ao explanar o conceito de Liturgia [na SC], começa por
explicar a estrutura divino-humana da pessoa de Cristo e de sua obra (n.5);
daqui se passa à estrutura e à obra da Igreja, que prolonga em certo modo a
Cristo (n.6); finalmente se conclui para a estrutura e eficácia da Liturgia, na
qual se concentra, mais do que em outras coisas, o modo de ser e a eficácia
da Igreja (n.7-8).76
71
Ibid., p.65.
72
“Nem toda arte religiosa é arte litúrgica. Por isso é necessário que a obra seja bela e a fruição que
suscita seja endereçada à atitude religiosa em geral, mas também que sirva para exercitar aquele tipo
particular de religiosidade que está incluída na liturgia. [...] Entre outras coisas, a liturgia é
essencialmente uma ação; ação comunitária de toda assembleia presente hierarquicamente estruturada
na qual cada um tem sua própria parte ativa, sem nivelamento e sem confusão; é uma ação comunitária
centrada no sacrifício da missa e nos sacramentos, em que o conjunto do dogma é vivido na visão
predominante do mistério de Cristo, história sagrada sempre em ato com um modo próprio de propor
os dogmas em certa hierarquia e um modo próprio de estimular no homem as diversas faculdades. [...]
De tudo isso se vê que se o artista, além de autêntico artista, não estiver penetrado não somente de
religiosidade em geral, mas desse mundo litúrgico especialmente, não poderá jamais produzir obras de
autêntica arte litúrgica.” (Ibid., p.71-72).
73
Ibid., p.66.
74
Ibid., p.73.
75
Ibid., p.75.
76
VAGAGGINI, Vista panorâmica sobre a Constituição Litúrgica, p.134.
60
A noção de liturgia está esboçada nos n.5 e 6, na perspectiva do esquema
vagagginiano da história da salvação: Cristo – Igreja – Liturgia. Nestes números a liturgia
aparece indissociável da Igreja, que por sua vez está ligada a Cristo. A Igreja ali fica
subsumida no termo “sacramento”. “O final do artigo 5 e o artigo 6 desenvolvem o conceito
de Igreja como sacramentum derivado do sacramentum primordial que é Cristo.”77 Diz o n.5
da SC: “Pois do lado de Cristo dormindo na cruz nasceu o admirável sacramento de toda
Igreja”. O final do n.5 funciona como dobradiça com o n.6, que tratará da obra de Cristo
continuada pela Igreja, cujo ápice é a liturgia. Vejamos literalmente o início do n.6:
Portanto, assim como Cristo foi enviado pelo Pai, assim também Ele enviou
os Apóstolos, cheios do Espírito Santo, não só para pregarem o Evangelho a
toda criatura, anunciarem que o Filho de Deus, pela Sua morte e
ressurreição, nos libertou para o reino do Pai, mas ainda para levarem a
efeito o que anunciavam: a obra da salvação através do Sacrifício e dos
Sacramentos, sobre os quais gira toda a vida litúrgica.
Explica Vagaggini:
O sentido geral deste passo é o seguinte: Cristo, a pique de deixar o mundo,
instituiu a Igreja, na qual e pela qual, mercê da sua invisível presença e por
obra do Espírito Santo, fosse aplicada a cada homem a obra da salvação por
Ele consumada. O objetivo era que a humanidade reconciliada com Deus e
de certo modo divinizada pudesse glorificar a Deus com culto perfeito, à sua
própria semelhança, em participação e conjuntamente a Ele. Diz-se que
Cristo instituiu a Igreja à sua semelhança, isto é, com a mesma estrutura, à
imagem da Encarnação, de modo que fosse humana e divina e que nela se
cumprisse a salvação dos fiéis bem dispostos por obra da ação invisível do
Espírito Santo, servindo-se de meios humanos e visíveis: a hierarquia, a
Escritura, a pregação e especialmente os Sacramentos. Estes não devem
cindir-se do conjunto da Liturgia, da qual constituem o núcleo central.78
Ao esclarecer o conceito de sinal, cujo escopo está escorado no uso dos termos
sacramentum e mysterium pela Patrística79 e também na prática litúrgica mais antiga da
Igreja, fica mais fácil compreender o porquê desse complexo de sinais na liturgia serem tidos
77
Ibid., p.135.
78
Ibid., p.135-136.
79
“É importante notar a relação que existe entre as palavras ‘mistério’ e ‘sacramento’ nos primórdios
do cristianismo. No texto latino-africano da Bíblia, a palavra mysterion vem habitualmente traduzida
por sacramentum. A tradução da Vulgata prefere a palavra latina mysterium, uma forma latinizada da
palavra grega. No entanto, as Cartas aos Efésios e Colossenses usam indistintamente os dois termos.
Ou seja, o sentido originário da palavra ‘sacramento’ é ...o mistério de Deus, revelado em Jesus Cristo.
É este o mistério celebrado na liturgia, através de sinais sagrados, sensíveis e eficazes, para dele
podermos participar.” (BUYST, O segredo dos ritos, p.181).
61
obviamente como sensíveis (não há sinal que não o seja) e já, de algum modo, deduzir o
porquê de sua eficácia, que se verificará em santificação e culto da Igreja.
Sobre a eficácia, por sua ligação com o conceito de sinal, obviamente sensível,
nos bastam, por enquanto, as seguintes notas de Vagaggini:
O sinal, formalmente, não pode ter sua causalidade eficiente. A causalidade
própria está na ordem da representação. Enquanto sinal e como sinal
somente faz conhecer. [...] No entanto, os teólogos dizem justamente que os
sete sacramentos não só significam a graça, mas também causam a graça que
significam. Mais ainda, neles existe estreita relação entre significar a graça e
causar a graça: significando causant. É no mesmo sentido – guardada a
diferença entre sacramentos e sacramentais – que na definição de liturgia se
afirma que nela os sinais são eficientes na santificação da Igreja.80
Deveremos ainda nos aproximar dos termos “santificação” e “culto”. Eles são o
resultado visível dos sinais sensíveis e eficazes de que fala a definição que ora estamos
estabelecendo. “Não sem motivo o Concílio Vaticano II, com insistência, chama a atenção
para que onde quer que aconteça a obra de Cristo é a própria liturgia que a continua sobre a
terra, no seu duplo e incindível aspecto de santificação e de culto.”82
80
VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia, p.105. Hoje afirmamos algo mais sobre o aspecto
causal dos sacramentos. Taborda nos ajuda nessa compreensão. “No mundo pessoal [...] não é pela
coação física (que tem um efeito mecânico) que se causa adequadamente o efeito desejado em uma
pessoa, mas pela persuasão. [...] Causar, no mundo pessoal, é ‘provocar’ intersubjetivamente, é
chamar à liberdade. Causa-se uma transformação no sujeito que é pessoa, quando se provoca a que
modifique em liberdade sua orientação profunda, suas opções, atitudes e atos. Nesse sentido os
sacramentos causam algo no sujeito. Causam o relacionamento com Deus, exatamente enquanto
expressam a gratuidade da práxis, recordando a memória viva de Jesus. Essa memória, expressa na
visibilidade de gestos simbólicos e na alegria da festa, provoca a nível profundo, tanto intelectual
como afetivo e emocional, a que se assuma a atitude correspondente”. (TABORDA, Francisco.
Sacramentos, práxis e festa. Petrópolis: Vozes, 1987, p.169).
81
VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia, p.106.
82
Ibid., p.47. / Vagaggini, comparando as edições de 1958 e a brasileira, de 1999, pós-conciliar, mais
uma vez, apenas incrementa o texto da nova edição com a SC. O texto foi reeditado, mas a ideia da
62
Antes, porém, precisamos nos aproximar mui brevemente dos termos, ex opere
operato e ex opere operantis Ecclesiæ, que elucidam o que está por detrás do conceito de
eficácia dos sinais sensíveis da afirmação teórica vagagginiana de liturgia.
santificação e do culto, tidos como incindível, permanece inalterada. (Ver o texto em espanhol: El
sentido teológico de la liturgia. Madrid: La Editorial Católica, 1958, p.33).
83
Decidimos não entrar no mérito da questão da eficácia porque é demasiadamente complexa e não
primordial para a nossa pesquisa (ver VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia. p.120ss).
84
A distinção já havia sido elaborada por Tomás de Aquino. “Ver Summa III, q.82 a. 6c.: nas partes da
liturgia que são de instituição divina (a substância dos sacramentos e do sacrifício) o ministro age in
persona Christi. Naqueles que são de instituição eclesiástica, age in persona Ecclesiæ. Sob um e outro
aspecto a ação obtém o seu efeito também se o ministro for indigno.” (Ibid., nota 18, p.119). / A
insistência de Vagaggini em separar ou distinguir é uma escolha arriscada. Vagaggini chega a afirmar
que um dos defeitos da SC estaria exatamente em não ter distinguido a eficácia da liturgia nos moldes
da Escolástica. “Em outro caso [...] os ‘escolásticos’ tiveram um êxito menos feliz e, quero crer, não
sem detrimento para a clareza e a profundidade da doutrina conciliar. Um dos grandes progressos da
Mediator Dei no campo da teologia da Liturgia é a codificação oficial, no que concerne à eficácia
própria da Liturgia, da distinção entre opus operatum, opus operantis Ecclesiae, e a eficácia
proveniente antes de tudo das disposições pessoais do ministro ou de quem recebe os sacramentos ou
sacramentais.” (VAGAGGINI, Vista panorâmica sobre a Constituição Litúrgica, p.164). O Vaticano II
escolheu a perspectiva mais unitária. É sempre Cristo quem age, sobretudo quando a questão está
ligada aos dois termos latinos supracitados. Essa concepção mecanicista que leva a distinguir o que é
essencial nos sacramentos do que não o é, resulta ser devedora de um método extremamente
especulativo, próprio da teologia do segundo milênio. Giraudo compara o teólogo desse milênio com
um relojoeiro atrapalhado. “A fim de compreender melhor a dinâmica do mistério eucarístico, os
teólogos latinos [...] comportaram-se como um relojoeiro desajeitado que, com a finalidade de
apossar-se dos segredos de um relógio em perfeito funcionamento, apressa-se em desmontá-lo.
Contudo, enquanto leva adiante em sua mesa de trabalho a acurada medição de cada componente, não
se dá conta de que o relógio já não existe, desde o momento em que toda a dinâmica precedente se
enrijeceu na paralisação das peças que tem em mãos.” (Num só corpo, p.5).
63
considera ainda a atividade própria da imaculada esposa de Jesus Cristo com
a qual orna de orações e de sacras cerimônias o sacrifício eucarístico e os
sacramentos, ou, se se trata dos sacramentais e dos outros ritos instituídos
pela hierarquia eclesiástica, então a eficácia deriva principalmente da ação
da Igreja (ex opere operantis Ecclesiæ), enquanto esta é santa e opera
sempre em íntima união com a sua cabeça. (MD 24).
85
VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia, p.107.
86
Ibid.
87
“Ex opere operato (latim: desde a obra realizada): Expressão teológica consagrada pelo Concílio de
Trento que garante que os sacramentos da nova aliança conferem a graça de modo eficaz por causa da
obra realizada por Cristo e que, portanto, não dependem dos méritos nem sequer da fé dos ministros, A
graça oferecida nos sacramentos atua sempre em quem ao recebê-los não põe obstáculos.” (EX
OPERE OPERATO. In: DOTRO, Ricardo Pascual; HELDER, Gerardo García [orgs.]. Dicionário de
Liturgia. São Paulo: Loyola, 2006, p.67).
88
VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia, p.109.
64
Sua eficácia, em termos de ex opere operato, só pode ser dimensionada em razão da vontade
primordial de Deus e seu desejo de salvar-recriar.
Sabe-se que todo ministro, como um mandatário de Cristo, devidamente
qualificado pela Igreja, age não por si, mas in persona Christi, o que resolve de todo a questão
da dignidade do celebrante. Não é fulano quem batiza, é Cristo mesmo quem o faz. O sujeito
da ação litúrgico-sacramental é sempre e em última análise Cristo mesmo, no Espírito Santo.
Não se trata nunca aqui da dignidade ou indignidade do ministro.
Outro aspecto da opus operatum diz respeito à medição de sua eficácia. Ela não
pode ser sopesada pura e simplesmente pela sintonia moral ou psicológica do sujeito que
recebe a graça. Deus se oferece revelando-se. Na liturgia isso se dá in sacramento. A sintonia
que se vê requerida é da ordem do encontro, da sedução, ou ainda, do convite à participação
no mistério divino. Trata-se sempre de um encontro que faz atuar a liberdade humana, que se
vê requerida pela força dinâmica do próprio encontro com aquele que é liberdade, mais que só
um mero libertador.
O opus operatum não tem nada a ver com ação mágica. Todavia, não se
pode negar que ele, ainda mais no modo comum de explicar a necessidade
da sintonia moral do sujeito no opus operatum como somente condição
prévia à concessão da graça por parte de Deus, mostra a liturgia católica
como imensamente elevada, acima do simples moralismo e psicologismo
protestante, para o qual o rito litúrgico não transcende nunca o valor de uma
exortação e de uma prédica. Se na liturgia católica o fiel, mesmo sem poder
nunca se sentir dispensado do compromisso moral e da sintonia moral da
vida, sabe que o seu encontro com Deus acontece sobre uma rocha bem mais
firme do que a areia movediça e insegura do próprio subjetivismo e dos
pobres esforços morais, isso é devido, sobretudo, ao opus operatum.89
Para o que nos interessa sob o aspecto da eficácia primeira dos sinais na liturgia,
Vagaggini explica-o de maneira lapidar, demonstrando em que medida, na liturgia, o sujeito
Igreja só pode vir-a-ser quando incorporado a Cristo (aspecto da kênose cristã – cf. Fl 2).
Na ação litúrgica, é Deus que atua e faz acontecer nas almas o mistério de
Cristo, mistério da Igreja e da história. Ele o dá ao homem, dele o faz
participar, para ele o atrai. A salvação do homem, antes de tudo, está em não
obstaculizar a obra de Deus; depois em responder à sua ação, sintonizar-se
com o objeto que ele, Deus, concretamente lhe apresenta, o mistério de
Cristo; deixar-se dominar por sua majestade, deixar-se atrair por ela. Não
que, não é inútil repeti-lo de todos os modos, o homem possa reduzir-se a
um heterodoxo quietismo. Mas é inegável que na liturgia, sobretudo na dos
sacramentos, por causa do opus operatum, realmente e psicologicamente
triunfa em primeiro plano a majestade do objeto: o mistério de Cristo
89
Ibid., p.109.
65
concedido por Deus e não pela virtude do homem, sob o véu dos sinais, e a
majestade de Deus que opera tudo em todos. Desse modo, a liturgia, o
encontro entre o homem e Deus não será organizado com um procedimento
em que predomine a introversão e a análise psicológica. De fato, na liturgia,
não se trata de o homem concentrar-se sobre si mesmo para analisar-se e
escutar as reações psicológicas do próprio eu diante do mistério de Cristo e
sim de olhar e escutar fora de si, sair de si e colocar-se no objeto presente até
esquecer, se possível, a si mesmo nele. Interioridade, e muita interioridade,
requer a liturgia como toda via para ir a Deus; o ideal, ao qual tende e para o
qual caminha, é uma interioridade de tal forma fascinada pelo objeto – Deus
e o mistério de Cristo acontecendo sob o véu dos sinais – que tende a
ignorar-se, tão forte é a marca do opus operatum na estrutura da liturgia.90
Decidimos não entrar no mérito da questão, nem no que tange à divisão minuciosa
(ver ibid., p.120ss), tipicamente escolástica, que faz Vagaggini, nem na dos graus da eficácia
em termos de opus operantis (ver ibid., p.125ss). São demasiado extensos e não primordiais
para o intento de nossa pesquisa. Contentamo-nos com o que expusemos acima.
90
Ibid., p.110.
91
Cf. ibid., p.108.
92
Ibid., p.119-120.
66
de fato, imprescindível, tanto para o cristão, enquanto ali a Revelação se faz história da
salvação, como para a teologia sistemática, enquanto a própria liturgia é teologia primeira.
Aqui nos resta apenas pontuar algumas observações inerentes às duas finalidades
principais específicas da liturgia, santificação e culto, mesmo porque ao largo de todo este
capítulo elas foram sendo mencionadas. Escolhemos destacar essa dupla finalidade sob a
forma de binômio, ou seja, como duas faces de uma mesma moeda.
Cada recepção da ação santificadora de Deus implica [...] no adulto um ato
de culto. E vice-versa, um ato qualquer de culto cristão a Deus, que seja uma
obra sobrenatural e meritória, é impossível ao homem sem uma profunda
ação santificadora de Deus no homem que dê, mantenha ou aumente o
estado de graça e anteceda e acompanhe o ato de culto.93
***
93
VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia, p.129-130.
94
Ibid., p.129.
95
Ibid., p.131.
67
Parece-nos satisfatória, por ora, a explanação teórica conduzida pela leitura de
Vagaggini. Interromperemos nossa aventura vagagginiana exatamente aqui onde ele nos
aponta a eucaristia como excelente porto para definição de liturgia. Nela enxergamos, de trás
para diante, a partir do culto e da santificação, o modo eficaz, via sinais sensíveis de o evento
histórico-salvífico atuar.
Para a nossa empresa, cujo escopo é sistemático, podemos dizer que os termos
“sensível”, “eficaz”, “santificação” e “culto”, na busca por uma conceituação de liturgia,
conforme o entendimento de Vagaggini, se condensam ao redor do termo “sinal”.
O “sinal” (mistério, sacramento, símbolo...), sensível e eficaz, é verificado no
duplo movimento da liturgia, de santificação e, concomitantemente, de latria, ou seja, no culto
da Igreja a Deus.
Nesse circuito, a santificação e o culto se mostraram necessárias para uma
definição de liturgia. Eles são a finalidade específica da liturgia.
Trata-se da finalidade próxima específica da liturgia, a comum e remota
sendo sempre e unicamente, como para toda outra coisa, a glória de Deus.
Essa finalidade, da parte de Deus, é a nossa santificação que, enquanto se
realiza no seio da Igreja e como membro da Igreja, é justamente a
santificação da Igreja e, de nossa parte, é o culto público e oficial a Deus.
Assim, a liturgia aparece imediatamente como lugar de encontro privilegiado
entre o homem e Deus; sob o véu dos sinais, Deus desce ao homem e o
homem sobe a Deus.96
68
ideias que desemboca na noção de Liturgia. Destarte a “sacramentalidade”
de toda a Liturgia vem salientada com grande ênfase.
2. Por isto mesmo se empresta grande relevo à realidade do sinal sensível.
Pode-se dizer que a Liturgia é reassumida neste conceito. Ela é um complexo
de sinais sensíveis através dos quais Cristo exerce seu sacerdócio, santi-
ficando os homens e assumindo-os ao culto prestado a Deus.
3. Este complexo de sinais não se refere somente ao culto, mas
conjuntamente à santificação e ao culto. O duplo movimento da Liturgia, isto
é, Deus descendo ao homem e este subindo a Deus, vem assinalado com
muito maior precisão para o conceito de Liturgia [...].97
97
VAGAGGINI, Vista panorâmica sobre a Constituição Litúrgica, p.136-137.
98
FLORES, Introdução à teologia litúrgica, p.233.
99
MARSILI, Salvatore. Liturgia e teologia. Rivista Liturgica. Padova (Itália), v.59, n.4, p.455-473,
1972 (aqui: p.463).
100
FLORES, Introdução à teologia litúrgica, p.239.
101
Ver, neste capítulo, 2.1. O método vagagginiano para definir liturgia.
69
sentido teológico da liturgia se diga a partir da própria liturgia. Para essa empresa escolhemos
como matéria prima alguns textos eucológios, analisando-os primeiro em sua grande estrutura
literária e depois focando nas fórmulas doxológicas. Essas fórmulas são lugar fundamental
para compreendermos que a liturgia é teologia. Isso nos permitirá aproximar o conceito de
liturgia (um complexo de sinais sensíveis, eficazes, da santificação e do culto da Igreja),
conforme nos demonstrou Vagaggini, da liturgia de fato, como verdade simbólico-ritual,
história da salvação sendo vivida, teologia primeira.
70
CAPÍTULO TERCEIRO
LITURGIA E VIDA CRISTÃ
Do conceito à mistagogia1
1
“O termo ‘mistagogia’ não é unívoco entre os Padres da Igreja. Podem-se distinguir três principais: a
própria celebração dos sacramentos de iniciação (assim Crisóstomo); a catequese que explica
teoricamente a experiência dos sacramentos recebidos (acepção usada por Cirilo [ou João] de
Jerusalém); o desenvolvimento de uma teologia dos sacramentos e da liturgia sem separá-la da
experiência (sentido tomado por Dionísio Pseudo-Areopagita, tradicional na Ortodoxia).”
(TABORDA, Francisco. O memorial da páscoa do Senhor. São Paulo: Loyola, 2009, p.38). Ainda:
“‘Mistagogia’ é composta de duas partes: mist + agogia. Mist está relacionado com mysterion
‘mistério’, agogia vem de ago, que tem a ver com ‘conduzir’, ‘guiar’. Podemos traduzir: guiar,
conduzir para dentro do mistério, [...] conduzir através do mistério.” (BUYST, Ione. O segredo dos
ritos. São Paulo: Paulinas, 2011, p.115). Estamos propensos, nesta dissertação, à utilização feita pelo
Pseudo-Areopagita e conforme explica etimologicamente a liturgista Buyst. / Este capítulo da nossa
dissertação é fruto de uma pesquisa publicada na Pensar – Revista eletrônica da FAJE, v.1 e 2, n.1,
2010, intitulado “Doxologia eucarística. Análise literário-formal, segundo a metodologia da ‘lex
orandi, lex credendi’.”
2
RUIZ DE GOPEGUI, Juan Antonio. Eukharistia. São Paulo: Loyola, 2008, p.36.
71
excelência que é o Cristo, ao fazer a memória da vida, morte e ressurreição
do Senhor.3
Este capítulo quer ser uma resposta, que não pode se contentar com a
conceituação vagagginiana, a um problema que foi sendo alinhavado ao longo da dissertação.
De que maneira podemos afirmar que a liturgia é lugar teológico? A teologia como tal é
momento segundo, racional, discursivo, produto da intelecção. A liturgia por sua vez é
“simbólica, existencial, celebração do mistério.”4 De que maneira conciliamos o discurso
simbólico, existencial com o racional? Como relacionar liturgia e teologia? “Perguntar pela
relação entre liturgia e teologia é perguntar pela liturgia como ‘lugar teológico’, lugar da
expressão da fé, em que a revelação se torna acessível a nós.”5 O que se nos impõe aqui é uma
espécie de não contentamento com uma definição simplesmente técnica ou rigorosa, como fez
muito bem Vagaggini. É preciso deixar que a liturgia “fale”.
É comum o uso de fontes litúrgicas na teologia, mas quando se fala da
liturgia como ‘lugar teológico’ ou como ‘lugar simbólico’ se afirma mais.
Não se trata somente de citar textos litúrgicos, mas de levar em consideração
a liturgia em ato [...]. Entretanto, é importante não confundir os distintos
planos. [...] A liturgia expressa a fé de modo evocativo, poético, simbólico,
existencial e assim nos põe em contato com o evento fundador. Sua
finalidade primeira não é expressar a fé racionalmente, mas celebrá-la
existencialmente e transportar-nos sacramentalmente ao evento-base de
nossa fé.6
3
Ibid., p.41.
4
TABORDA, O memorial da páscoa do Senhor, p.31.
5
Ibid.
6
Ibid., p.33.
72
A fonte da teologia é a fé da Igreja; não só a fé explicitada em dogmas e
outras verbalizações, mas também a fé vivida concretamente em obras e
celebrada nos símbolos e nos ritos. As expressões da fé citadas por último
(prática e celebração cristãs) constituem a teologia primeira; o que fazem os
teólogos e o magistério é teologia segunda. A primeira não é menos
importante que a segunda. Pelo contrário, sem a primeira, a segunda perde o
contato vivencial com o mistério, sua fonte originária, sai do caminho
seguro, corre o risco de tornar-se árida e estranha à revelação. Dando
atenção à teologia primeira, o teólogo mantém a modéstia e a atitude
doxológica, glorificando a Deus que age na vida da Igreja.7
Veremos como a armação literária dos textos anafóricos revelam uma teologia
propriamente dita. Existe nestes textos um movimento dialógico que nos fará penetrar no
“esquema” da economia salvífica. Não somos nós que o significamos. Ele é autossignificante.
“Não fostes vós que me escolhestes, mas eu que vos escolhi.” (Jo 15,16a).
7
Ibid., p.31-32.
8
Tomaremos a mistagogia como proposta de acesso ao mistério da fé. Não pretendemos aqui segui-la
como método. Para isso teríamos que percorrer seus cinco passos, conforme inventariou Mazza (ver
MAZZA, Enrico. La mistagogia. Roma: CLV - Edizioni Liturgiche, 1996, p.194-198) sintetizados por
Taborda (ver TABORDA, O memorial da páscoa do Senhor, p.38-39). Se seguimos o método
mistagógico o fazemos sobretudo no quarto passo, que nos impõe um imperativo que se constitui
numa volta ao rito. Interessa-nos aqui a mistagogia conforme indica Taborda. Ele diz: “A abordagem
mistagógica responde assim aos desafios pós-modernos sem a eles submeter-se, mas superando-os:
parte do concreto (“pequena narrativa”), mas conflui na “grande narrativa” da história da salvação;
valoriza o sagrado, mas não o põe no supermercado, senão que o faz fluir no grande rio da tradição
eclesial; não cede à secularização, mas crê no Transcendente pessoal, no Mistério que se revela a nós e
nos acolhe e escolhe. Não somos nós que o escolhemos como consumidores num supermercado.”
(Ibid., p.45).
9
Ver cap.2, 1.2.1. Primeiros passos: de 1909 até a Primeira Guerra Mundial (1914).
10
TABORDA, O memorial da páscoa do Senhor, p.55.
73
Escolhemos fazer uma leitura analítica das orações eucarísticas a partir de seu
elemento derradeiro, a doxologia11 final. Do prefácio à doxologia final, na prece eucarística,
contamos nove elementos12, dispostos diversamente13 de acordo com cada família litúrgica.14
A partir da doxologia final veremos que esse último louvor corrobora para sintetizar, como
uma espécie de epílogo, o todo do discurso oracional. Ele será a porta de entrada para a
realidade que chamamos salvação. Estas fórmulas doxológicas nos ajudarão a captar a
teologia “escondida” por detrás do rito. Elas se colocam, na ordem da prece eucarística, como
o máximo da expressão de louvor que somos chamados a dar a Deus, expressão do último
termo do conceito de liturgia traçado por Vagaggini, o culto.
A formulação de toda doxologia tem clara inspiração nas formas judaicas de
oração. “No Apocalipse (1,5-8; 4,8-11; 5,9-14; 7,10-12; 19,1-8) encontramos muitas fórmulas
doxológicas que pelo estilo, pelo ritmo hínico e pela forma responsorial mostram claramente a
influência de formas hebraicas.”15
Uma das características da doxologia cristã é sua estrutura trinitária. A Tradição
conhece variadas doxologias. As mais comuns são: o Gloria in excelsis, dos Ritos de entrada
da Missa, denominada “doxologia maior”; a aclamação, nos Ritos de comunhão, “Teu é o
reino...”, que se ajunta ao Pai-nosso. Também o Gloria Patri é uma formulação doxológica,
conhecida como “doxologia menor”. Mas a mais importante é, sem dúvida alguma, a fórmula
doxológica que conclui toda e qualquer oração eucarística.16
A eucaristia17, entendida como louvor de Deus, é o lugar por excelência da
manifestação da sua glória, lugar de doxologia em sentido lato. A única “palavra boa”, aceita
e agradável a Deus é Deus mesmo (trata-se do a Deo ad Deum que encontramos em
11
O termo doxologia é a junção de duas expressões gregas: “doxa” (glória) e “logos” (palavra).
Trata-se de uma “glorificação de Deus pela obra da salvação realizada em Cristo” (RUIZ DE
GOPEGUI, Eukharistia, p.44).
12
Logo abaixo elencamos os nove elementos das anáforas (1. As anáforas em sua “grande estrutura”,
ver “QUADRO 3”)
13
A estrutura siro-oriental, representada pela anáfora de Addai e Mari, uma das mais antigas de que se
tem conhecimento é, por exemplo, uma exceção. Esta prece não possui as “palavras da instituição” de
forma narrativa (ver GIRAUDO, Cesare. Num só Corpo. São Paulo: Loyola, 2003, p.341-343). Em
outras preces, como a da Tradição Apostólica, no texto que chegou até nós, não consta o “sanctus”
<2> nem as “intercessões” <8>. Ver ibid., p.282-283.
14
“Designação que se dá às diversas formas de celebrar a liturgia provenientes de tradições muito
antigas.” (FAMÍLIAS LITÚRGICAS. In: DOTRO, Ricardo Pascual; HELDER, Gerardo García
[orgs.]. Dicionário de Liturgia. São Paulo: Loyola, 2006, p.69).
15
RUIZ DE GOPEGUI, Eukharistia, p.44.
16
Cf. ALDAZÁBAL, José (org.). Vocabulário básico de liturgia. São Paulo: Paulinas, 2002. p.124.
17
“Eu” (bom) e “charis, jaris” (graça). (Cf. ibid., p.137).
74
Vagaggini18), o Filho Unigênito, consubstancial ao Pai. Ele é, per se, a melhor ação de graças.
É por Ele [Cristo], n’Ele e para Ele que se eleva todo ser humano, em louvor, ao Pai. É
exatamente isso que faz toda fórmula doxológica.
Veremos como a dinâmica oracional, tomando os textos anafóricos de todas as
épocas, a partir de um recorte específico (doxologia final), visibiliza o sentido último da
liturgia eucarística e da própria teologia.
Analisaremos na primeira parte as orações eucarísticas em sua macroestrutura,
segundo sua dinâmica, anamnética ou epiclética. Isso nos ajudará a entender o discurso
oracional em seu conjunto. A seguir tomaremos apenas as fórmulas doxológicas, também
distinguindo-as em anamnética ou epiclética.
75
nove elementos dispostos no quadro abaixo facilitarão a leitura que queremos propor das
fórmulas doxológicas, para não corrermos o risco de perder o conjunto da obra anafórica.
21
A formatação / disposição dos elementos de cada secção varia de acordo com cada uma das três
estruturas de dinâmica epiclética (siro-ocidental, alexandrina e romana). Optamos por apresentar aqui
a estrutura das novas orações eucarísticas romanas.
76
1.1. As anáforas de dinâmica anamnética
As anáforas de dinâmica anamnética pertencem, exclusivamente, à estrutura Siro-
ocidental. Como não é possível perceber o encadeamento apenas na disposição gráfica dos
componentes da oração eucarística (vide quadro acima), selecionamos, como representante
desse tipo de prece, para análise, a anáfora da “Tradição Apostólica”, que, em princípio,
servir-nos-á como base para o que pretendemos demonstrar, haja vista que não queremos,
partindo já da doxologia final, perder o ritmo interno vital da prece.
22
Transcrição da tradução de estudo de Giraudo. (Num só corpo, p.271). O texto que Giraudo usa é a
versão editada por B. Botte (La Tradition Apostolique de Saint Hippolyte. Essai de reconstitution). O
fato complicador diz respeito à autoria deste texto atribuído a Hipólito de Roma. Numerosos escritos
se perderam ou foram atribuídos a outros autores. O texto que está aqui transcrito é a recomposição de
uma possível versão original feita a partir de variadas compilações parciais e múltiplas edições em
línguas diversas. (Cf. GIBIN, Maucyr. Introdução. In: TRADIÇÃO APOSTÓLICA de Hipólito de
Roma. Petrópolis: Vozes, 1981, p.7-16; Ver RUIZ DE GOPEGUI, Eukharistia, p.77).
23
O diálogo invitatório é um elemento pré-anafórico para toda prece eucarística. Ele é “[...] atestado
no mais antigo testemunho manuscrito de um texto anafórico, o palimpsesto de Verona, no qual estava
consignada a versão latina de nossa anáfora realizada sobre o original grego hoje perdido”
(GIRAUDO, Num só corpo, p.272). Sua função é expressamente relacional, ou se quisermos, de
aclimação (acostumar-se ao “clima” de diálogo que será iniciado com o prefácio). Isso é interessante
porque poderia parecer que uma prece só seria dialógica com a presença de “aclamações populares”. O
diálogo invitatório dá o tom do que está para ser realizado, ou seja, um colóquio, em ação de graças,
entre o Deus e o ser humano e vice-versa. Ele é composto de três elementos: (a) saudação, (b) convite
a orientar o coração, e (c) convite à ação de graças. (cf. Ibid., p.272-280).
77
tomando o pão [e] dando-te graças, disse:
20 “Tomai, comei: isto é meu corpo
que por vós está prestes a ser partido.”
Do mesmo modo, [tomou] também o cálice, dizendo:
“Este é meu sangue que está prestes a ser derramado por vós.
Quando fazeis isto, fazeis meu memorial!.”
25 <5> Celebrando, pois, o memorial de sua morte e ressurreição,
[nós] te oferecemos o pão e o cálice,
dando-te graças porque nos tornaste dignos
de estar diante de ti e de te servir.
** <6> E te pedimos que envies teu Espírito Santo
30 sobre a oblação da santa Igreja,
<7> [para que], congregando-a em um só [corpo],
dês a todos os que participam dos santos [mistérios],
serem repletos do Espírito Santo,
para confirmação da fé na verdade,
35 <9> para que te louvemos e glorifiquemos
por teu servo Jesus Cristo,
por quem a ti [é] a glória e a honra
([a ti] Pai, e ao Filho com o Espírito Santo)
na tua santa Igreja,
40 agora e pelos séculos dos séculos.
Amém!
Toda a prece é presidida por uma temática mui específica. Em todas as anáforas o
elemento prefacial preponderante é, incontestavelmente, o “gratias agere” (dar graças,
agradecer...). Trata-se do leitmotiv fulcral de toda anáfora. Podemos verificar isto, na prece
em questão, logo na primeira linha, com a expressão “Damos-te graças”.
24
Ibid., p.283.
25
Na linha 2 devemos reconhecer na preposição latina per + acusativo um valor propriamente causal e
não um valor de simples mediação.
78
A exposição temática retoma a história da salvação de modo magistral, porque
breve, sem perder-se em minúcias.
A ausência26 do Sanctus <2> não prejudica a concatenação sugerida pela temática
entre os elementos que foram ajuntados (prefácio + pós-sanctus <1+3>). A ligação entre esses
dois primeiros elementos <1+3> pode ser reconhecida pela unidade literária das l.11-18. Veja-
se como o “estender as mãos” (l.13) está em paralelo com o “fixar o limite” (l.18), produzindo
uma síntese da história da salvação (vétero e neotestamentária) inigualável. Trata-se do jugo
que Adão tinha imposto à humanidade por ter estendido por primeiro a mão ao fruto proibido.
Jugo vencido, porque a morte-ressurreição de Cristo pôs um “limite” ao domínio da morte e
do diabo27
Há, além de tudo o que foi explicitado acima, uma inclusão redacional que
corrobora a leitura unitária da secção. A linha 27 (“dando-te graças...”) reitera a mesma
expressão da linha 1 (“Damos-te graças...”), e ainda transpõe a ideia do “servo”, aplicada a
Jesus (“por teu amado servo Jesus Cristo” – l.2), ao orante (“de estar diante de ti e de te
servir.” – l.28).
26
Giraudo acena a que, muito possivelmente, o Sanctus ausente (assim como as intercessões <8>) na
Tradição Apostólica, não estivesse ausente em uma hipotética anáfora primitiva (cf. GIRAUDO, Num
só corpo, p.283). Mas também afirma que essas ausências espelhariam “[...] o modelo estrutural
particularmente ágil que é a Bênção após a refeição [um dos elementos do ritual da ceia pascal
judaica] (cf. ibid., p.119-123), enquanto a tradição constante das anáforas que têm o Sanctus e as
intercessões (cf. ibid., p.214-225) remete imediatamente ao modelo da oração sinagogal” (Ibid.,
p.283).
27
Cf. ibid.
28
Cf. ibid., p.284. “Tornar digno” significa “considerar alguém digno de alguma coisa” e “pedir”, no
sentido que estabelece a oração, quer dizer “considerar algo digno de ser pedido”. Existe aí um jogo de
sentidos que une as duas secções por meio dessa terminologia (cf. ibid., p.268).
29
As intercessões são apenas um prolongamento e ampliação da epiclese para a transformação
escatológica dos comungantes.
79
Nesta anáfora se optou pela sobriedade, deixando de fora esse elemento que, como
prolongamento da parte precedente, pode ser supresso sem prejuízo da anáfora.
O primeiro pedido (epiclese para a transformação das oblatas <6>) encontra seu
par natural e de sentido no segundo pedido, na epiclese para a transformação dos
comungantes <7>. Isto pode ser observado na redação desses dois pedidos, que se sucedem
sem interrupção, o segundo originando-se do primeiro. “E te pedimos que envies teu Espírito
Santo sobre a oblação da santa Igreja (l.29-30) [para que], congregando-a em um só
[corpo]...” (l.31).
Interessante notar como a prece se resolve, num continuum, firme e decidido, que
une as duas epicleses à doxologia final. As linhas 35-40 são um excelente exemplo de
doxologia epiclética por estarem ligadas íntima e sintaticamente aos pedidos precedentes.30
30
Cf. ibid., p.285.
31
Cf. ibid., p.339.
32
Todas as orações eucarísticas romanas são desse grupo anafórico.
33
Além da questão do uso hodierno, outra razão importante para escolha dessa prece se deve ao fato
de que a Oração Eucarística II tem clara inspiração temática na prece precedente, a Tradição
Apostólica. (Cf. ibid., p.392).
34
Transcrição da tradução de estudo de Giraudo. (Ibid., p.391-392).
80
5 que nos enviaste [como] salvador e redentor
encarnado por obra do Espírito Santo e nascido da Virgem.
Ele, cumprindo tua vontade
e adquirindo-te um povo santo,
estendeu as mãos, quando sofria,
10 para dissipar a morte e manifestar a ressurreição.
Por isso, com os Anjos e todos os santos,
proclamamos tua glória, dizendo a uma só voz:
<2> Santo, santo, santo é o Senhor, Deus dos Exércitos;
os céus e a terra estão plenos de tua glória. Hosana nos lugares excelsos!
15 Bendito o que vem em nome do Senhor. Hosana nos lugares excelsos!
<3> Verdadeiramente santo és [tu], Senhor,
fonte de toda santidade.
** <4> Por isso te pedimos: santifica estes dons
com o orvalho de teu Espírito,
20 para que se tornem para nós o corpo e o sangue
de nosso Senhor Jesus Cristo.
<5> Ele, quando se entregava voluntariamente à paixão,
tomou o pão e, pronunciando-a-ação-de-graças, [o] partiu
e [o] deu a seus discípulos, dizendo:
25 “Tomai e comei dele todos, pois isto é meu corpo,
que por vós está prestes a ser entregue.”
Do mesmo modo, depois de ter ceado, tomando também o cálice,
de novo pronunciando-a-ação-de-graças,
[o] deu a seus discípulos, dizendo:
30 “Tomai e bebei dele todos, pois este é o cálice do meu sangue
da nova e eterna aliança
que por vós e pelas multidões está prestes a ser derramado
para remissão dos pecados.
Fazei isto em meu memorial.”
35 <6> Portanto, celebrando-o-memorial de sua morte e ressurreição,
[nós] te oferecemos, Senhor, o pão da vida e o cálice da salvação,
dando[-te] graças porque nos consideraste dignos
de estar-presentes diante de ti e te servir.
<7> E suplicantes [te] pedimos
40 que, participando do corpo e do sangue de Cristo,
sejamos congregados pelo Espírito Santo num só [corpo].
<8> Lembra-te, Senhor, de tua Igreja difundida por todo o orbe,
para a tornares perfeita na caridade,
juntamente com nosso Papa N. e nosso bispo N.
45 e todo o clero.
Lembra-te também de nossos irmãos [N. e N.],
que adormeceram na esperança da ressurreição,
e de todos os que morreram em tua compaixão,
e admite-os à luz de teu rosto.
50 De todos nós – pedimos-te – tem misericórdia,
para que mereçamos participar na vida eterna
com a bem-aventurada Mãe de Deus e Virgem Maria,
81
com os bem-aventurados apóstolos e todos os santos que, desde sempre, te foram agradáveis,
de modo que te louvemos e glorifiquemos
55 por teu Filho Jesus Cristo.
<9> Por meio dele, com ele e nele,
é a ti, Deus Pai onipotente,
na unidade do Espírito Santo,
toda honra e glória
60 por todos os séculos dos séculos. / Amém!
35
“À pergunta sobre se a oração eucarística II pode ser saudada como a anáfora da Tradição
Apostólica rediviva, respondemos apelando à noção de estrutura. [...] Negando, portanto, a identidade
de estrutura, não nos resta senão verificar na nova composição abundantes reminiscências temáticas do
modelo antigo.” (Ibid., p.393).
36
cf. Ibid., p.392.
37
A tradução iguala os dois, traduzindo “Por isso...”, embora o original não empregue as mesmas
palavras.
82
epiclese sobre os comungantes <7>. Esta se ajusta ao seu precedente com o aditivo “e...”
(l.39). A esta epiclese seguem-se as intercessões <8> como seu prolongamento natural.
A “pedra de tropeço” do texto está no desfecho. Tudo vai bem até as intercessões
<8>. Texto sucinto, corrente, formalmente bem alinhado, até que a prece se esfacela abrupta e
repentinamente. “Pouco feliz foi a decisão de impor a todas as novas orações eucarísticas a
doxologia do cânon romano.”38 Introduziu-se um elemento textual (l.54-55) que quebrou a
fluidez da prece. A doxologia <9> perde sua força epiclética, fica isolada, desconectada.
No conjunto, esse texto eucarístico é fluido e, como num crescendo musical, faz
deslizar os elementos, pari passu. É certo que a utilização reiterada da conjunção consecutiva
“por isso / portanto” é a responsável primeira pela concatenação dos elementos. Ela se repete
ao longo de todo o discurso, em lugares-chave (l.11 “et ideo”; 18 “ergo”; e 35 “igitun”), tanto
na parte anamnético-celebrativa, quanto na epiclética. O uso de partículas consecutivas
permite um salutar ajuntamento dos elementos, ao mesmo tempo que introduz o início de um
novo estágio textual.
O elemento temático que conecta o movimento epiclético à secção anterior pode
ser observado no encadeamento verbal “santo-santidade-santifica” (l.17-18).
38
Ibid., p.393.
39
As doxologias foram sempre abundantes na tradição grega, “que costumava fechar com uma
doxologia não somente a grande “eucaristia” da missa, mas qualquer oração litúrgica, segundo
frequentíssimo uso judaico. [...] A tradição romana latina não seguiu o uso de terminar toda oração
litúrgica com a doxologia, mas reteve o uso universal de encerrar com ela o Cânon da missa.”
(VAGAGGINI, Cipriano. O sentido teológico da liturgia. São Paulo: Loyola, 2009, p.206).
40
Tomaremos, das de dinâmica anamnética, quatro das mais antigas, incluindo a já analisada em seu
conjunto (Tradição Apostólica) e uma das mais novas, a anáfora VI da Igreja ambrosiana. Das de
dinâmica epiclética, recolheremos um exemplar da estrutura Siro-oriental (Addai e Mari); duas das
83
coerente, porque atestada pela Tradição, de compor e concatenar essas fórmulas de desfecho
do discurso eucarístico.
Levaremos em conta o aspecto teológico-formal, estrutural e temático. Deter-nos-
emos na articulação dessas fórmulas com seu elemento imediatamente anterior (restrito) e
com o todo da prece (amplo), sem nos esquecermos da infraestrutura temática peculiar da
doxologia eucarística.
Alexandrinas (Serapião e São Marcos); e das Romanas, o Cânon, as novas orações, lidas em conjunto
(II, III, IV e para diversas circunstâncias) e uma da Igreja congolesa.
41
VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia, p.205.
42
Deus, Deus e nosso Pai: Rm 11,36; Gl 1,5; Fl 4,20; 1Tm 1,17; 6,16; 1Pd 5,11; Ap 4,9-11; 7,12.
(Ibid.).
43
Rm 16,27; 1Pd 4,11; Jd 25. (Ibid.).
44
2Tm 4,18; Hb 13,21; 2Pd 3,18; Ap 1,6. (Ibid.). Rm 9,5, muito provavelmente (Ibid., p.206).
45
A maior parte das doxologias finais são binárias (nomeiam Pai-Deus-Senhor; Cristo-Filho) ou
ternárias (Pai; Cristo-Filho; Espírito Santo). (cf. ibid., p.205-206).
46
Cf. ibid., p.205-215.
84
2.2. Doxologias finais nas anáforas de dinâmica anamnética47
2.2.1. Constituições Apostólicas
Invocamos-te ainda pelos que estão ausentes por legítima causa;
para que, conservando-nos todos na piedade,
[nos] reúnas inabalável, irrepreensíveis, imaculados,
no reino de teu Cristo,
ó Deus de toda natureza inteligente e sensível, nosso rei, 48
<9> pois a ti, por meio dele,
toda glória, veneração e ação de graças;
e, por causa de ti e depois de ti,
a ele honra e adoração no Espírito Santo,
e agora e sempre e nos infinitos e sempiternos séculos dos séculos. Amém!
47
Transcrevemos (em itálico) aqui e na análise das doxologias das anáforas de dinâmica epiclética,
algumas linhas do texto que precede a doxologia final (normalmente as intercessões), com o fito de
demonstrar a ligação desta com aquele. Todas os textos doxológicos são de GIRAUDO (Num só
corpo, p. 255ss.).
48
Trecho final da longa série de intercessões. Daqui por diante, as linhas em itálico são a retomada do
último elemento antes da doxologia final.
49
Epiclese sobre os comungantes.
85
A Tradição Apostólica é das poucas anáforas em que estão ausentes as
intercessões, fazendo com que o pedido de transformação dos comungantes se configure
como o elemento que precede a doxologia. Estes dois elementos estão ligados de modo
sintático pela conjunção final “para que” (primeira linha da doxologia), indicando uma
relação de subordinação ao texto precedente.
A prece tem seu desfecho com a fluidez esperada. Aqui, como na prece das
“Constituições Apostólicas”, o texto doxológico retoma a temática inaugurada no prefácio
(“Damos-te graça, ó Deus” – linha 1).
As intercessões, nessa prece de riqueza estrutural, está composta por seis pedidos
(pela Igreja universal; pela Igreja hierárquica; pela Igreja no mundo; pelos oferentes; pela
Igreja triunfante e padecente; e pelos presentes). Cada uma das intercessões, bastante
delineadas, estão atadas entre si por força gradativa (in crescendo) bastante peculiar,
corroborando para trazer à tona, como expressão máxima dessa gradação, a doxologia
derradeira.
A última intercessão, que tem por objeto os “peregrinos cá em baixo”, auge da
tensão escatológica da anáfora, faz a prece desembocar na doxologia. É o clímax da prece,
que produz uma inclusão textual, sem corte literário. “A transição da última intercessão à
doxologia epiclética [...] é tão fluente que é difícil de estabelecer a cesura.”51
50
Intercessão pelos presentes.
51
GIRAUDO, Num só corpo, p.317.
86
2.2.4. Anáfora de São João Crisóstomo
Lembra-te, Senhor, dos que produzem fruto52
e dos que fazem o bem em tuas santas Igrejas e se recordam dos pobres,
e sobre todos nós envia tuas misericórdias.
<9> E concede a nós, como uma só boca e um só coração,
glorificar e celebrar teu Nome venerável e magnífico,
de ti, Pai e Filho e Espírito Santo,
agora [e sempre e nos séculos dos séculos].
Amém!
Esta prece é de composição bem mais recente que as precedentes. Faz parte do
atual Missal ambrosiano. Junto com a V Anáfora ambrosiana, configura-se como prece
específica do ritual dessa Igreja.55
52
Último trecho das intercessões.
53
Ver, abaixo, oração eucarística da Igreja congolesa.
54
Trecho final das intercessões.
87
Do ponto de vista do conteúdo e da forma, a doxologia obedece às regras de toda
formulação doxológica. Quando esta anáfora foi vertida do italiano, o revisor latino optou por
permanecer com o ponto final. “Se em vez do ponto final [...] tivesse sido posta uma vírgula,
ter-se-ia obtido uma melhor articulação estrutural entre intercessões e doxologia, exatamente
segundo o modelo das anáforas orientais.”56 O orante fica com a impressão de que a prece
está finalizada antes que ela de fato esteja. O “na comunhão de Cristo nosso Senhor”, do
modo como está, soa como um final prematuro.
55
Cf. GIRAUDO, Num só corpo, p.329.
56
Ibid., p.333.
57
Epiclese sobre os comungantes.
88
doxologia, remonta ao contexto do elemento precedente (epiclese sobre os comungantes),
totalmente conformado à parte anamnético-celebrativa, formando um bloco conciso e limpo,
e conferindo à doxologia o elemento que recapitula, em louvor, toda a prece.
58
Parte final das intercessões.
59
Parte final da epiclese para transformação das oblatas.
89
Como as intercessões estão deslocadas do seu costumeiro lugar (foram
antecipadas para dentro do prefácio), a prece ganhou agilidade e fluidez textual. Basta-nos
observar o modo como se introduziu a epiclese sobre os comungantes. A locução
conjuncional “a fim de que”, no início desta parte, está sintaticamente ligada à epiclese sobre
as oblatas. O pedido para que se envie o Espírito Santo sobre as oferendas do pão e do vinho
não pode ser lido sem o pedido que o sucede. Este se refere àquele, que, por sua vez, flui, sem
alongamentos (como faz a Anáfora de Serapião), para a doxologia epiclética. “Também aqui é
admirável a continuidade literária no tocante ao elemento anafórico precedente. Mais.
Analogamente ao que acontece na anáfora da Tradição Apostólica, a ausência de intercessões
evidencia ainda mais a configuração epiclética da doxologia final.”60
Do ponto de vista literário, os elementos anafóricos, desde a primeira epiclese, se
autoimplicam, apresentando-se em sadia dependência. Esquematicamente teríamos: epiclese
sobre as oblatas: “manda teu Espírito Santo sobre os dons... > epiclese sobre os
comungantes: ...para que sejamos transformados > doxologia epiclética: ...e assim sejas
glorificado por nós nos séculos dos séculos”.61
60
GIRAUDO, Num só corpo, p.369.
61
Cf. ibid.. (Grifos do autor).
62
Parte final das intercessões.
90
O cânon romano é, de todas, a anáfora mais complexa, que tocou em sorte àquela
Igreja que, entre todas, se revelou a menos aberta aos recursos da teologia global e dinâmica.
Até o Concílio Vaticano II esta era a única anáfora que o cristão comum na Igreja latina
conhecia.63
Seguindo a lógica de Giraudo, dispusemos o “Por meio do qual...” em posição
gráfica recuada. Vários indícios levam a crer que esse parágrafo é uma fórmula conclusiva de
uma “bênção dos frutos da natureza”64 que, no costume antigo, se situava neste ponto. “Para o
esclarecimento do sentido mais nítido das palavras é sobretudo importante que, neste
momento, foram abençoadas naturálias (sic!), em várias ocasiões, nos primeiros tempos do
cânon romano e até a Baixa Idade Média e para além dela.”65
Essa “bênção” parece um tanto postiça, artificial, porque interrompe o fluxo
escatológico advindo das intercessões, sobre o qual se constrói a maioria das doxologias
finais. Em todo caso, está esclarecida a origem desse texto furtivo. Esse preâmbulo
doxológico só encontra sentido na história.
A doxologia final do cânon romano é, sem dúvidas, “um monumento de
solenidade literária [...]. Se, contudo, a cotejamos com as doxologias das outras anáforas,
notamos que ela apresenta o grave inconveniente de esfacelar, justamente em seu ponto
culminante, o movimento do discurso oracional com uma proposição sintaticamente
autônoma.”66 Seja como for, no cânon romano, encontramos explicação suficiente para
aceitar a presença do texto que designamos “postiço”, por força da história; contudo, mesmo
omitindo o inciso “Por meio do qual”, a doxologia final perde um pouco do seu viço.67
63
Cf. RUIZ DE GOPEGUI, Eukharistia, p.175.
64
São fórmulas litúrgicas “que devem ter tido uma vida independente; pois, inicialmente, fala-se
destas bênçãos somente depois da missa. No entanto, é também possível que, desde sempre, tenham
sido realizadas depois da missa. Em todo caso, na missa egípcia foram transferidas para dentro do
cânon. Pelo menos nesse caso aconteceu o mesmo processo que observamos por toda parte nas
intercessões que tinham seu lugar antes da liturgia eucarística e que depois foram transferidas para
dentro de seu círculo mais estreito: também as bênçãos que seguiam depois da liturgia eucarística
foram transferidas finalmente para dentro do cânon da missa. Ao que parece, o mesmo aconteceu no
caso da missa romana. [...] Portanto, a evolução deve efetivamente ter acontecido de tal modo que
primeiro foi inserida a bênção das naturálias (sic!) antes do fim do cânon e que, somente depois,
surgiu o nosso Per quem. [...] agora, as oferendas eucarísticas estão incluídas – semper bona creas.”
(JUNGMANN, Josef Andréas. Missarum sollemnia. São Paulo: Paulus, 2009, p.715-716).
65
Ibid., p.714.
66
GIRAUDO, Num só corpo, p.384.
67
Na tradução que adotamos não fica tão patente o esfacelamento provocado pelo início da doxologia
em relação à última intercessão. A tradução para o Brasil (e Itália) deixa isso mais evidente.
Vertemos, em nosso Missal (brasileiro), o “Por meio dele, com ele e nele” em “Por Cristo, com Cristo
91
2.3.5.Novas orações romanas (III, IV, e Para diversas circunstâncias)
e.1. Oração eucarística III
para que juntamente com eles [os irmãos defuntos] sejamos perenemente saciados de tua glória, 68
por Cristo nosso Senhor,
por meio do qual dás ao mundo todo bem.
<9> Por meio dele, com ele e nele,
e a ti, Deus Pai onipotente,
na unidade do Espírito Santo,
toda honra e glória
por todos os séculos dos séculos.
Amém!
e em Cristo”, provocando uma espécie de cacofonia que não se ajusta ao “por Cristo nosso Senhor” da
última linha das intercessões, até porque, devido ao acréscimo de uma aclamação depois do “por
Cristo nosso Senhor”, a relação do início da doxologia com o “por Cristo nosso Senhor” fica
duplamente truncada: pela aclamação e pelo per quem. Interessante notar que a Oração Eucarística V,
tipicamente brasileira, tem o inconveniente de adotar a mesma tradução da doxologia final do cânon
romano. Essa foi uma opção infeliz. Simplesmente adotava essa tradução nas anáforas nascidas depois
do Vaticano II. A única exceção é a congolesa (ver próxima anáfora), que apresenta uma doxologia
alternativa. (cf. TABORDA, O memorial da páscoa do Senhor, p.243).
68
Parte final das intercessões.
69
Parte final das intercessões.
70
Parte final das intercessões.
92
inclusiva da doxologia no conjunto da obra anafórica. Afinal, toda doxologia deveria ajuntar o
todo da prece eucarística, sintetizando e arrematando o louvor inicial.
Nas três preces acima, incluindo a II, a disposição literária da doxologia final
ficou desajustada. Sua redação, exageradamente autônoma, rompe bruscamente o fluir das
linhas precedentes.
As preces II72 e para diversas circunstâncias têm a vantagem de estar livres do
acessório excessivo (“por meio do qual...”), inspirado no cânon romano, mas, ainda assim,
não conseguem produzir um texto coerente com o todo anafórico. A doxologia final, ainda
assim, ficou do lado de fora do corpo textual, como uma nota de rodapé que, em princípio,
não precisaria ser lida, é um acréscimo.
Seja como for, vale a beleza literária da formulação doxológica, que nomeia, em
louvor, a Trindade, a partir de preposições muito bem empregadas, o que não é mérito dessa
prece, uma vez que se trata de uma cópia, por sinal, injustificada.
71
GIRAUDO, Num só corpo, p.393.
72
Ver acima 1.2.1. A Oração Eucarística II
73
O nome dessa anáfora fazia referência ao Zaire. Com a sua independência em 1997, aquele país
passou a ser conhecido como República Democrática do Congo, o que nos faz atualizar o antigo nome
dessa prece eucarística. (cf. ibid., p.406ss.).
74
Parte final das intercessões.
93
amanhã,
R/: Amém!,
nos séculos dos séculos.
R/: Amém!
Estamos diante de uma sadia adaptação do Ordo Missae romano para o assim
chamado Missal Romano para as Dioceses do Zaire (Congo). Essa anáfora foi aprovada pela
Sé Apostólica no ano de 1988.75
À primeira vista pode causar espanto a quantidade de “Amém”, como aclamações,
que aparecem não só na doxologia final76. O susto é superado na leitura em conjunto da prece.
Ela está construída sobre a teologia subjacente do Amém77, numa dinâmica da “escuta
ativa”.78 “A doxologia epiclética [...] ritmada por nada menos que dez Amém da assembleia,
representa uma ótima tentativa de reformulação de um elemento que na tradição do cânon
romano apresenta uma ruptura excessiva com relação às intercessões.”79
Outra vantagem desse modelo de doxologia é que, como nas anáforas orientais, na
utilização, por duas vezes, da forma optativa “possamos glorificar teu nome”, a doxologia se
configura como última intercessão, ligando-se de modo decisivo às intercessões propriamente
ditas.
A forma de se dirigir à Trindade, como na anáfora de Crisóstomo80, é bastante
peculiar. A doxologia encontrou uma maneira de nomear a Trindade sem o uso costumeiro
das preposições (ao / do; por / com / em; no / com), deixando em destaque a igualdade de
75
Cf. GIRAUDO, Num só corpo, p.407.
76
O longo prefácio está demarcado por aclamações, que visam fazer com que o orante acompanhe o
trajeto anamnético-celebrativo, que: (a) recorda Jesus Cristo como único mediador do Pai: Amém. Ele
é o único mediador!; (b) prolongando a anamnese da criação “por meio de Cristo”: Amém. Por meio
dele criaste tudo!; (c + d) daí passa-se à anamnese da cristologia: Amém. Nós o cremos!; (e) Amém.
Ele ressuscitou. Venceu a morte!
77
“Sabemos que a palavra hebraica Amém está construída a partir da raiz ’amán, que conota as noções
de ‘estabilidade, verdade, firmeza’. [...] na tradição grega, atestada por Justino, a expressão equivale
ao auspício, no sentido de ‘possa realizar-se tudo o que o presidente disse, o pedido que fez em nosso
nome!’. Contudo é preciso reconhecer que o significado primitivo do hebraico Amém está mais
próximo da afirmação, no sentido das expressões ‘É assim!’, ‘É verdade tudo o que o presidente
disse!’, ‘Foi nossa voz!’ (Ibid., p.386-387).
78
“É importante catequizar a assembleia sobre a diversidade qualitativa entre a escuta receptiva que é
chamada a dispensar durante a proclamação das leituras pelos leitores, e a escuta ativa que realiza
durante a proclamação da oração eucarística pelo presbítero: lá escuta, compreende e memoriza [é
Deus quem fala]; aqui fala a Deus que, naquele momento, é seu interlocutor.” (Ibid., p.412).
79
Ibid., p.411.
80
Ver neste capítulo 2.2.4. Anáfora de São João Crisóstomo.
94
pessoas e a unidade de natureza. Aqui o nome de Deus é Pai – Filho – Espírito Santo, para os
quais o texto usa a palavra “Senhor”81 (ver Fl 2,9-11).
Giraudo vê nessa doxologia uma ótima tentativa de reformulação de um elemento
que no cânon romano apresenta uma ruptura excessiva com relação às últimas intercessões.82
81
A prece está dirigida ao Pai, cujo nome é Senhor e Deus (l.1-3 do prefácio: “Verdadeiramente,
Senhor, está bem que te damos graças, que te glorifiquemos, [pois] és nosso Deus, és nosso Pai, tu, o
onipotente”, conforme a nomeação utilizada no Antigo Testamento). A doxologia final, ao aplicar o
nome “Senhor”, utilizado ao longo da prece como sinônimo de “Deus”, o Pai, corre o risco de
desvincular a aplicação geral do nome (Senhor / Deus) utilizado para a primeira pessoa da Trindade.
Mas entendemos que o espírito da sobreposição do nome “Deus / Senhor” (aliás, esse último mais
utilizado na prece) às outras pessoas da Trindade bebe da lógica de Fl 2,6-11, onde o Pai é quem dá
seu próprio nome ao Filho, para que “toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor.”
82
Ver GIRAUDO, Num só corpo, p.411.
83
Ibid., p.384.
95
O caráter inclusivo da doxologia final está dado por seu conteúdo, eminentemente
cristológico-trinitário84, construído a partir das preposições ad85, per86, in87. De uma maneira
ou de outra, mais ou menos explícita, as formulações seguem esta regra. Vale destacar a
particularidade das anáforas de São João Crisóstomo e das Igrejas do Zaire (atual República
Democrática do Congo) que, abrindo mão das preposições costumeiras para a liturgia permite
vislumbrarmos as relações Trinitárias e não tanto o dinamismo das missões extratrinitárias,
como fazem a maior parte das fórmulas doxológicas.
A análise literário-formal das preces eucarísticas nos ensinou que uma anáfora
saudável é feita de “vasos comunicantes”, onde os elementos anafóricos estão superpostos,
como telhas que precisam estar encaixadas umas nas outras para formar um telhado. Mais.
Por serem um conjunto, os nove elementos da prece são redutíveis à fundamental bipartição
estrutural (secção anamnético-celebrativa e secção epiclética).88 Quando olho para o telhado,
mais do que telhas, dou conta de saber que ali há um verdadeiro telhado. Quando uma dessas
telhas se quebra a prece fica esburacada, deixando o interior da casa desprotegido.
***
84
“O culto do Deus uno não existe na liturgia” (VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia, p.198).
A liturgia é sempre trinitária, ternária, em alguns casos, binária (cf. ibid.).
85
“ad, prep. com acusativo: para, a; junto de, ao lado de; em casa de; contra, até; quase cerca de;
quanto a, conforme, em comparação de; além de.” (AD; PER; IN. In: SILVA, Amós Coêlho da (org.);
MONTAGNER, Airto Ceolin. Dicionário latino-português. Petrópolis: Vozes, 2009, p.18).
86
“per, prep. com acusativo: por, através de; entre; em; durante; por meio de; em nome; por causa de,
por; (distribuição) por, em” (Ibid., p.341).
87
“in, prep. com acusativo ou ablativo. 1. com acusativo: para, a; em – figurado; em direção a, para –
tempo; em direção a, a, com, para com, contra; em – divisão; para, a – fim; de, em, segundo, conforme
– modo e condição; 2. com ablativo: em, sobre, entre, entre, diante de – lugar; em, a, durante – tempo;
em, no meio de – estados e circunstâncias; em – pertence; entre; em, com respeito a, tratando-se de,
com.” (Ibid., p.213).
88
Essa bipartição se verifica nestas duas secções. Giraudo as conceitua assim: “Com a expressão
secção anamnético-celebrativa [...] entendemos a primeira parte do formulário. Nela a comunidade
orante, por boca de quem a preside, celebra a Deus (‘confessa-o’ e louva-o) fazendo anamnese cultual
de uma dupla história. Esta é ao mesmo tempo história da fidelidade de Deus e história da nossa
infidelidade [...]. [Esta secção] põe as premissas teológicas que permitem passar a secção do pedido.
[...]. Com a expressão secção epiclética [...] entendemos segunda parte do formulário, a secção de
pedido. [Nesta secção] a comunidade [...] se sente, com efeito, impelida a constituir-se em assembleia
cultual para dirigir ao parceiro divino uma interpelação de natureza forense [no caso da todá, base
para essa explicação].” (GIRAUDO, Num só corpo, p.192) (grifos do autor).
96
A partir da leitura analítica dos textos eucarísticos, de modo específico dos
formulários doxológicos, auscultamos o modo como a fé da Igreja se estabeleceu.89 Mas não
só a fé, também e simultaneamente a vida cristã (cf. Cl 3,17). Orar, crer e agir (liturgia – fé –
ética / lex orandi – lex credendi – lex agendi) estão imbricados.90 “Se não se leva em
consideração a interdependência dos três momentos, não se esclarecem as relações entre
quaisquer dos outros dois componentes da tríade.”91
“A oração cristã é sempre constituída por três momentos: ouvir a Palavra de Deus,
fazer o que se escutou e responder na ação de graças ou no pedido de perdão.”92 A vida
genuinamente cristã deve estar embebida numa fé que, por sua eclesialidade (eu creio – nós
cremos93), encontra sua fonte94 na oração da / na / em Igreja, na liturgia. Inequivocamente
podemos dizer que a teologia encontra na liturgia sua fonte. Bem antes do Concílio, na
Inauguração do Pontifício Instituto Litúrgico (1961), Vagaggini assim discursou:
Por isso a contribuição da liturgia para o pensamento teológico recente pode
ser resumida na afirmação da seguinte regra metodológica geral: de nenhum
dogma tem-se consideração integral se esta não inclui também a perspectiva
de sua verificação na liturgia. Suponhamos que essa persuasão torne-se geral
e transforme-se em hábito mental comum dos teólogos. [...] Nesse dia se
realizará, no terreno da liturgia, não separado nunca da Bíblia, um notável
progresso para aquela profunda unidade entre teologia especulativa, Bíblia,
Padres, vida espiritual e pastoral que todos desejamos.95
89
A seleção dos textos levou em conta os critérios de universalidade, antiguidade e consenso unânime
(quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est – o que foi crido em toda parte, sempre e
por todos), formulado por Vicente de Lérins (†450). (cf. ibid., p.17).
90
O Documento de Aparecida (n.251), ao falar da eucaristia como “o lugar privilegiado do encontro
do discípulo com Jesus Cristo”, assinala a existência de um “estrito vínculo entre as três dimensões da
vocação cristã: crer, celebrar e viver o mistério de Jesus Cristo, de maneira tal que a existência cristã
adquire verdadeira forma eucarística.”
91
TABORDA, O memorial da páscoa do Senhor, p.34.
92
Ibid., p.35.
93
Cf. LIBANIO, João Batista. Eu creio nós cremos. São Paulo: Loyola, 2004, p.21.
94
“[...] a Liturgia é simultaneamente a meta para a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de
onde promana toda a sua força.” (SC 10). “Pela participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e
centro de toda vida cristã, oferecemos a Deus a vítima divina e a nós mesmos juntamente com ela.”
(LG 11).
95
VAGAGGINI, Cipriano. Liturgia e pensiero teologico recente. Prolusione inaugurale di Dom
Cirpriano Vagaggini. In: PONTIFICIO ATENEO ANSELMIANO. Liturgia e pensiero teologico
recente. Roma: Pontificio Ateneo Anselmiano, 1961, p.21-76 (aqui: p.76) (tradução nossa).
97
modo operativo da salvação se realizar – por Cristo, com Cristo, em Cristo, ao Pai, pelo
Espírito Santo. Mas também quando expressa isso no âmago mesmo da Trindade (Deus em
si), sem o uso das preposições (cf. anáforas de Crisóstomo – Pai e Filho e Espírito Santo; e da
Igreja congolesa – Pai, Filho, Espírito Santo).
Intra ou extratrinitariamente é evidente o caráter e função epilogal da doxologia
derradeira. Ela é, in crescendo, ligada às intercessões, o ápice do louvor de Deus. Nela
saboreamos o todo96 da dinâmica eucarística. A doxologia final não é um mero apêndice97 da
anáfora, mas um desfecho que aponta para a glória de Deus.
Palavras, gestos e silêncios, são ingredientes indispensáveis para saborear a
liturgia eucarística. A vida cristã precisa ser transubstanciada pela glória do ressuscitado,
celebrado em sacramento na liturgia. O cristão deverá, acompanhando o discurso teológico-
litúrgico, fazer da sua própria existência um grande louvor de Deus, uma doxologia.
96
“Os fiéis – sobretudo os sacerdotes – devem habituar-se a considerar a oração eucarística, não como
um campo de ossos áridos (cf. Ez 37), mas como uma unidade literária densa de tensão teológica, que
se desenvolve entre o diálogo invitatório e o ‘Amém’ final.”. (GIRAUDO, Num só corpo, p.548)
(grifos do autor).
97
Neste sentido é desaconselhável o eventual canto da doxologia para não privilegiá-la em detrimento
do resto da oração eucarística e para não secundar a convicção errônea de que ela não faz parte da
oração eucarística (cf. ibid., p.549; 551).
98
CONCLUSÃO
1
TABORDA, Francisco. O memorial da páscoa do Senhor. São Paulo: Loyola, 2009, p.62-63.
2
Cf. TABORDA, Francisco. A Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a renovação da liturgia.
Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.12, n.23, p.9-38, 2013. (aqui: p.15).
99
A palavra “mistério” nos acompanhou ao longo desta pesquisa3. Ela nos foi
sugerida pelo ML. O primeiro a repensá-la foi O. Casel, em sua obra “O mistério do culto no
cristianismo”. Vagaggini nos ajudou a compreender que esse mistério, que em última análise
é Cristo mesmo, é o grande tesouro da Igreja. Verificamos isso no modo como ele
compreende a história da salvação, ao considerar uma espécie de circuito triádico que vai da
liturgia, passando pela Igreja, até Cristo (vice-versa). A partir daí, com uma metodologia
peculiar, Vagaggini definiu a liturgia como “complexo dos sinais sensíveis, eficazes, da
santificação e do culto da Igreja”. Esta definição tem como núcleo o termo “sinal”, que é
sinônimo de “mistério” e “sacramento”, conforme usualmente se vê na patrística e na própria
liturgia.4 Tudo isso chegou ao Concílio e foi por ele expresso em vista de incrementar e
reformar a liturgia, felizmente não só em sua exterioridade. O que se propunha era uma
renovação da própria Igreja. Afinal, a liturgia é mais alta manifestação da Igreja (cf. SC 10).
Lamentável, mas não sem esperança, é o fato de que Vaticano II ainda esteja em
vias de recepção. A liturgia concebida pelo Concílio de fato colocava um ponto final nas
disputas teológicas promovidas pelo ML em matéria litúrgica. Elas podem ser ilustradas por
dicotomias como liturgia x espiritualidade individual, liturgia x compromisso social.
Colocando de lado estas e outras questões pontuais exemplificadas acima na forma de
dicotomias e, ao mesmo tempo, considerando o verdadeiro intuito da reforma litúrgica
promovida pela SC, o que realmente precisamos viver e compreender é a teologia da liturgia,
não só no plano da sistemática, mas no da prática. Entre outras coisas, o que deve ser tido
como primordial é a reforma da mentalidade litúrgica. Somente assim sairemos do joguete
que ainda persiste de um malsão rubricismo, quer seja nos termos de uma ainda servil
observância das rubricas, quer num saudosismo de rituais reeditados, quer acrescentando
novos ritos inventados pela subjetividade de quem preside.5
Concebendo a liturgia teologicamente e não como conjunto de rubricas,
realizou-se a mais radical reforma litúrgica da história da Igreja. Entretanto,
faltava à maioria do clero e do povo cristão o horizonte teológico para
compreender em profundidade o que estava acontecendo. Resultado:
executou-se a reforma litúrgica com o velho espírito rubricista.6
3
Utilizamos o termo “mistério”, sem contar seus sinônimos, quase 90 vezes ao longo dessa pesquisa.
4
Cf. VAGAGGINI, Cipriano. Vista panorâmica sobre a Constituição Litúrgica. In: BARAÚNA,
Guilherme (org.). A Sagrada Liturgia renovada pelo Concílio. Petrópolis: Vozes, 1964. p.125-167
(aqui: p.133ss.). / GIRAUDO, Cesare. Num só Corpo. São Paulo: Loyola, 2003, p.509ss.
5
Cf. TABORDA, A Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a renovação da liturgia, p.11
6
Ibid., p.11.
100
Urge, na liturgia, revalorizarmos o simbólico como linguagem para aceder ao
mistério da fé, nossa páscoa conformada à Páscoa de Cristo. Expurgar a tentação de explicar
tudo na ação litúrgica. A liturgia é um convite à memória, conforme nos propõe o “fazei isto
em minha memória” rezado na liturgia eucarística. Memória que deve esquecer-se de si para
lembrar-se do único necessário, Deus. Um esquecimento que não é apagamento do ser, mas
um vir-a-ser em Cristo.
Ainda não compreendemos a força das ideias vindas do ML por maior
participação dos fiéis, amplamente assumido pela SC com termos variados, sendo comumente
adjetivado pela Constituição com o termo “ativa”. Tal proposição ainda precisa ser
considerada com mais profundidade. Já avançamos, mas ainda nos falta descer ao cerne da
questão. Não raro compreendemos participação ativa dos fiéis com “fazer coisas”,
exterioridades, quando a participação ativa se insere no esquema de uma Igreja-corpo, cuja
cabeça é Cristo. O cristão só participará do mistério de sua fé em Cristo. Ele deve estar em
constante estado de assunção à dinâmica do Cristo total, do qual ele é membro ativo porque
ativado pelo Cristo-cabeça. Participação realmente ativa se revelará na medida da atuação do
único e verdadeiro sujeito da liturgia, Cristo, ou melhor, o Cristo total, que move seu corpo,
organismo vivo e vivificador, por obra do Espírito, cuja ação tem como meta o louvor e a
obediência ao Pai.
Nesta perspectiva vislumbramos o cerne da liturgia, explicitado no esquema do
duplo movimento celebrativo: descendente e ascendente, catabático e anabático, santificação
e culto. O destaque aqui se refere à compreensão da liturgia como exercício do múnus
sacerdotal de Cristo. É Cristo quem vem ao encontro do ser humano e não o contrário. “A
ação do culto não é, portanto, um ato do ser humano dirigido a Deus, mas primeiramente de
Deus ao ser humano, ato através do qual algo acontece no ser humano.”7 Essa estrutura da
liturgia, chamada dialógica, corrobora para eliminar a distinção que se fazia entre liturgia e
sacramento. Desse movimento surge a Igreja. A partir daí podemos afirmar que a ação
litúrgica está para a Igreja assim como a semente está para a árvore e vice-versa. A ação
litúrgica provém da Igreja não por força de lei hierárquica ou mesmo por tradição, mas porque
lhe é conatural.
O Mistério de Cristo, visibilizado pela Igreja em sua liturgia (culto) não é mero
rito externo. É, antes, o modo mais excelente de Cristo atuar a salvação, apesar de não ser o
7
Ibid., p.32.
101
único (cf. SC 9; LG 16). Essa salvação, que é o próprio Salvador, nos vem do Espírito em
vista da glorificação do Pai. No culto que a Igreja dirige ao Pai, em Cristo, no Espírito, ela se
revela, também, como mistério, sacramento. Do aspecto eclesial chegamos ao teológico e
vice-versa.
O conceito vagagginiano de liturgia corroborou para nos aproximarmos do valor
teológico da liturgia ao considerá-la como continuação da história da salvação. A partir da SC
podemos dizer que uma teologia que não considera a liturgia como fonte não poderá ser
verdadeira teologia. A teologia deve se alimentar da liturgia.
Na parte final do nosso estudo tomamos alguns textos anafóricos para demonstrar
que podemos apreender a verdade da revelação cristã a partir da escuta atenta da oração da
Igreja, da própria celebração, feita de gestos, palavras e silêncios. Isso quer dizer que a
qualquer cristão é dada a possibilidade de ascender ao mistério da fé, a Cristo. O método
mistagógico tem se mostrado um importante recurso para esse propósito. Uma teologia que
tem como nascedouro a liturgia em ato é verdadeira epifania da Igreja, que, por sua vez, é
manifestação do Cristo total.
O caminho está aberto e a direção está indicada. A obra da salvação, prenunciada
por Deus, realizada em Cristo, é continuada na Igreja em sua liturgia (cf. SC 5-8). Eis a nossa
tarefa: apropriarmo-nos da SC. É imprescindível sorver desse documento a sua maneira
peculiar de explicar o espírito da liturgia.
102
ANEXO
ESBOÇO CRONOLÓGICO DA REFORMA LITÚRGICA
Do pré-Movimento Litúrgico a Paulo VI
1830 – Guéranger escreve “Considérations sur la liturgie catholique”, sua obra mais famosa, na qual
resgata a liturgia romana como centro da vida monástica.
1833 – Refundação do Mosteiro de Solesmes. “Depois de mais de quarenta anos de ausência, devido
à fratura da Revolução, Dom Prosper Guéranger, com alguns companheiros, recomeçou a vida
monástica em Solesmes, em 1833. Alguns anos mais tarde, em 1837, o Mosteiro foi erigido em
Abadia e sede de Congregação, constituída ela própria herdeira das antigas Congregações beneditinas
anteriores à Revolução: Cluny, S. Mauro e Stos Vanne e Hidulfo”. In: http://www.aimintl.org/index.php?
option=com_content&view=article&id=463&Itemid=516&lang=pt) Consultado em 05.11.2014.
1840 – Guéranger: “Institutions liturgiques”. G. começa a publicar uma série, onde adota um ar cada
vez mais duro e polêmico. Ele era um “ultramontano” e não admitia os galicanismos e/ou
neogaliscanismos. Esta obra tem como objetivo iniciar os mais jovens dos seus irmãos no estudo dos
mistérios do culto divino e da oração.
1894 – Dom Schott, A. (monge de Beuron), utiliza pela primeira vez o termo “movimento litúrgico”
em sua obra Vesperal. Não nos iludimos de que concebia o termo em outra acepção, diversa daquela
empregada mais tarde para designar o dito ML moderno.
1903-1914 – papado de Pio X. Um papa que sempre se mostrou interessado pela liturgia, mesmo
antes de ser eleito papa. (cf. BOROBIO, A celebração na Igreja, v.1. p.133).
1903 – Motu proprio Tra le sollecitudini (Pio X). Destinado a renovar a música religiosa e restaurar o
canto gregoriano. Começo de um progressivo movimento reformador litúrgico, a partir dos
documentos papais.
103
1905 – Sacra tridentina synodus. (Pio X). Decreto exortando a comunhão frequente.
1909 – Congrès National des Oeuvres Catholiques, em Malines. (Figuras exponenciais: Dom
Beauduin e o leigo Godefroid Kurth). Nasce desde esse congresso, promovido por Beauduin, as
famosas “Semanas e Conferências litúrgicas” em Mont-César (mosteiro). A primeira semana
aconteceu em 1912.
1910 – Quam singular (Pio X). Destinado a admitir crianças em tenra idade à comunhão.
1911 – Constituição Apostólica Divino afflanti (Pio X). Sobre o novo saltério do Breviário Romano
(hoje conhecido como Liturgia das Horas) e a revalorização da liturgia dominical.
1912 – O eco dos mosteiros belgas chega à Alemanha, inicialmente no mosteiro beneditino de Beuron.
Ali o laicato começa a se organizar junto aos monges, inicialmente em um grupo pequeno.
1913 – Motu proprio Abhinc duos anos (Pio X), que inspirou um novo plano de reforma do Ano
Litúrgico e do Breviário.
1913-1914 – Organizam-se verdadeiras jornadas litúrgicas, por ocasião da semana santa, na abadia
de Maria Laach, fruto dos encontros de 1912.
1918 – Maria Laach, com nomes importantes do cenário litúrgico nascente (o abade Herwegen e seus
monges K. Mohlberg e O. Casel e o ainda jovem e promissor presbítero ítalo-alemão R. Guardini
bem como os professores Fr. J. Dölger e A. Baumstark.), lançam três coleções: “Ecclesia Orans”,
“Liturgiegeschichtliche Quellen” e “Liturgiegeschichtliche Forschungen”.
1921 – Aparece o primeiro volume de “Jahrbuch für Liturgiewissenschaft”, fruto do grupo de Laach.
1930 – Dom Martinho Michler, iniciador do ML no Brasil, chega ao Rio de Janeiro (Mosteiro de São
Bento), onde residirá até sua morte (1988), tendo sido um de seus abades (1948-1969).
1943 – Mystici corporis (Pio XII). Sobre o Corpo Místico de Cristo e nossa união nele com Cristo.
1947 – Mediator Dei (Pio XII) “...embora não respondendo a todas as aspirações do movimento
litúrgico, (...) seu mérito está em ter sido o primeiro documento pontifício a reconhecer oficialmente
os valores desse movimento em sua catolicidade” (NEUHEUSER, A liturgia. p.32). Temas mais
relevantes: (a)“Teologia da liturgia como público integral do Corpo Místico, da Cabeça e dos
membros, e presença privilegiada na liturgia da mediação de Cristo Cabeça; (b) Espiritualidade da
liturgia, dimensão interior do culto da Igreja; (c) Equilíbrio entre a piedade subjetiva e a objetiva,
fugindo tanto do ‘panliturgismo’ como da ‘minusvalorização’ do culto.” (GOPEGUI, Eukharistia.
p.24).
1953 e 1957 – Introdução das missas vespertinas e novas normas para o jejum eucarístico (Pio XII).
1955 – Reforma da liturgia da Semana Santa / Publicação do novo rito da Semana Santa (Pio XII).
1955 – Musicæ sacræ disciplinæ (Pio XII). Instrução sobre a música sagrada e a liturgia.
1956 – I Congresso Litúrgico-pastoral de Assis. Passo definitivo para a ulterior reforma da liturgia
(SC) no Vaticano II e auge do ML, coroado com uma audiência papal em Roma com Pio XII.
1
Daqui em diante listamos apenas aqueles documentos mais importantes para a promoção da liturgia,
conforme estabeleceu a SC. A ordem em que aparecem é cronológica. Para a maior parte das
informações utilizamos a “Cronologia da reforma litúrgica” elaborada por AUGÉ, M. e MARSILI, S.
105
1964 – Sacram Liturgiam (Paulo VI). Motu-proprio sobre a entrada em vigor de algumas prescrições
da SC.
1966 – Cum, mostra ætate. Decreto da Sagrada Congregação dos Ritos (SCR) sobre a edição dos
livros litúrgicos.
1967 – Tres abhinc annos. Segunda instrução da SCR para a devida aplicação da SC.
1968 – Prece eucharistica. Decreto da SCR sobre as novas orações eucarísticas e os novos prefácios
do missal romano.
1968 – Pontificalis Romani (Paulo VI) – Constituição apostólica com a qual se aprovam os novos
ritos para ordenação do diácono, do presbítero e do bispo.
1969 – Mysterii paschalis (Paulo VI) – Carta apostólica, dada motu proprio, para aprovar as normas
gerais do ano litúrgico e do novo calendário romano.
1969 – Ordo celebrandi matrimonium – Decreto da SCR, promulgador do Ritual para a celebração do
Matrimônio.
1969 – Anni liturgici – Decreto da SCR, regulamentando o ano litúrgico e o calendário geral romano.
1969 – Promulgação do novo Missal Romano (Paulo VI) – Constituição Apostólica na qual se
promulga o missal romano, atualizado de acordo com as diretrizes do Concílio Vaticano II.
1969 – Ordinem Baptismi parvulorum – Decreto da SCCD, promulgador do Ritual para o Batismo das
crianças.
1969 – Ordinem lectionum – Decreto da SCCD, promulgador do Lecionário da Escritura para a missa.
1970 – Celebrationis eucharisticæ – Decreto da SCCD, com o qual se promulga e se declara típica a
nova edição do missal romano.
1970 – Sacramentali Communione – Instrução da SCCD a respeito de uma mais ampla faculdade de
administrar a comunhão sob as duas espécies.
1970 – Liturgicæ instaurationes – Terceira instrução da SCCD sobre a devida aplicação da SC.
1970 – Ordine lectionum Missæ – Decreto da SCCD, com o qual se publica e se declara típica a edição
latina do Lecionário do missal romano.
In: NEUNHEUSER, Burkhard. et al. A liturgia. São Paulo: Paulinas, 1987, p.255-265. O limite desta
lista é papado de Paulo VI. É a cargo dele que ficaram as principais aplicações do Concílio.
106
1970 – Laudis canticum – Nova Liturgia das Horas (Paulo VI). Constituição apostólica com a qual se
promulga a nova Liturgia das Horas, antigo Breviário.
1971 – Horarum Liturgia – Decreto da SCCD, com o qual se publica e se declara típica a edição latina
do livro da Liturgia das Horas.
1971 – Divinæ consortium naturæ (Paulo VI). Constituição apostólica sobre o sacramento da
Confirmação.
1972 – Ordinis Baptismi adultorum – Decreto da SCCD que promulga o novo rito da iniciação cristã
dos adultos.
1972 – Ad pascendum – Carta apostólica (Paulo VI) dada motu proprio, com a qual se estabelecem
algumas normas relativas à Ordem do diaconado.
1972 – Sacram Unctionem Infirmorum (Paulo VI) – Constituição apostólica com que se aprova o
novo rito da Unção dos Enfermos.
1974 – Ordo Pænitentiæ – Decreto da SCCD que promulga o novo rito do sacramento da
reconciliação.
107
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
Obras e artigos
FLORES, Juan Javier. Introdução à teologia litúrgica. São Paulo: Paulinas, 2006
.(Liturgia fundamental).
108
GIRAUDO, Cesare. Num só Corpo. Tratado mistagógico sobre a eucaristia. São Paulo:
Loyola, 2003. (Theologica, 10).
ISNARD, Clemente. Dom Martinho. Vida e obra do grande abade do Mosteiro de São
Bento do Rio de Janeiro e iniciador do movimento litúrgico no Brasil. Rio de Janeiro:
Lumen Christi, 1999.
LIBANIO, João Batista. Concílio Vaticano II. Em busca de uma primeira compreensão.
São Paulo: Loyola, 2005. (Theologica, 14).
____________. Eu creio nós cremos. Tratado da fé. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2004.
(Theologica, 1).
MAZZA, Enrico. La mistagogia. Le catechesi liturgiche della fine del quarto secolo e il
loro método. 2.ed. Roma: CLV - Edizioni Liturgiche, 1996, p.194-198
____________. História da liturgia através das épocas culturais. São Paulo: Loyola,
2007.
109
____________. Lamennais, Hugues Felicité (1782-1854). In: Diccionario de pensadores
cristianos. Navarra (España): Editorial Verbo Divino, 2010, p.536-537.
TOMÁS, de Aquino, Santo. Suma Teológica. Os Sacramentos. III parte, questões 60-
90. São Paulo: Loyola, 2006, v.IX.
110
____________. O sentido teológico da liturgia. São Paulo: Loyola, 2009.
ZIZOLA, Giancarlo. A utopia do papa João. 2.ed. São Paulo: Loyola, 1983.
Dicionários e vocabulários
AD; PER; IN. In: SILVA, Amós Coêlho da (org.); MONTAGNER, Airto Ceolin.
Dicionário latino-português. Petrópolis: Vozes, 2009, p.18; 341; 213
ALDAZÁBAL, José (org.). Vocabulário básico de liturgia. São Paulo: Paulinas, 2002.
(Coleção fonte viva).
111
VISENTIN, Pelágio. Eucaristia. In: SARTORE, Domenico; TRIACA, Achille M.
(orgs.). Dicionário de Liturgia. São Paulo: Paulinas, 1992. p.395-415.
Documentos da Igreja
____________ (comp.). Concílio Vaticano II. v.2. Primeira Sessão (set.-dez. 1962),
Petrópolis: Vozes, 1964.
____________ (comp.). Concílio Vaticano II. v.3. Segunda Sessão (set.-dez. 1963),
Petrópolis: Vozes, 1963.
112