Poeticas Da Criacao UFES 2013 PDF
Poeticas Da Criacao UFES 2013 PDF
Poeticas Da Criacao UFES 2013 PDF
2013 1
Artistas ,
autoria e as
práticas
colaborativas
José Cirillo • Fernanda García Gil • Ângela Grando (ORG.)
2 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Artistas ,
autoria e as
práticas
colaborativas
José Cirillo • Fernanda García Gil • Ângela Grando (org.)
Vitória, E.S.
2013
2 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
C578 Cirillo, José, Org.; Gil, Fernanda García, Org.; Grando, Ângela, Org.
Artistas, autoria e as práticas colaborativas. / Poéticas da Criação, E.S. 2013.
Organização de José Cirillo, Fernanda García Gil e Ângela Grando. – São Paulo:
Intermeios, 2013.
504 p.; il.; 15 x 21 cm
ISBN: 978-85-64586-68-0
CDD 801.959
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 3
Sumário
12 Folhear: algumas considerações a respeito do livro de artista
Adriana Dias
331 Des-escrevendo
Maria Heloisa Angeli
345 Ateliê de artista: processo e criação como documento nas artes visuais
na arte pública no Espírito Santo a partir de um artista capixaba
Mariana Lugon e José Cirillo
Apresentação
O Poéticas da Criação, ES - Seminário Ibero-americano sobre o Processo de Criação -
abarca estudos que têm por base os fenômenos interacionais e culturais que envolvem a
criação artística e a ação criadora nas ciências, mídias, nas artes, na música, na literatu-
ra, na educação, na arquitetura, no design, numa preocupação em congregar pesquisas
realizadas nas universidades e institutos de pesquisa no Brasil e no exterior, em especial
nos países de língua espanhola ou portuguesa.
Esse Seminário é organizado anualmente pelos pesquisadores do LEENA e do
LabArtes, que atuam no Programa de Pós-graduação em Artes da UFES (PPGA), em
parceria com as Pró-reitorias de Extensão e de Pesquisa da Universidade Federal do
Espírito Santo (PROEX e PRPPG). Do mesmo modo, o PPGA/UFES - em parceria
com a Universidade de Buenos Aires, a Universidade de Granada, a Faculdade de
Belas Artes da Universidade de Lisboa e as universidades brasileiras, UNICAMP,
UFSC e a PUC/SP - tem organizado um conjunto de eventos nacionais e internacio-
nais voltados para a ampliação de estudos dos documentos do processo criativo em
arte e para a reflexão sobre a arte e sua história na contemporaneidade. Com isso, o
ppga/ufes consolida seu papel fomentador da ampliação de estudos e do confronto de
ideias sobre os temas da arte contemporânea.
Nesse contexto de reflexões é que apresentamos os trabalhos do Poéticas da Cria-
ção - ES 2013, acolhendo pesquisadores dos dois continentes: a Europa, em especial
Portugal e Espanha, e das Américas. Todos eles dedicam-se ao amplo debate sobre o
processo de criação e suas mediações no contemporâneo contexto da sobremodernida-
de, na busca por compreender o esvaziamento das relações, na superação dos conflitos
entre periferia e centro. Neste ano de 2013, em sua quinta edição, tem como tema
geral: “o artista como autor e as práticas colaborativas na arte contemporânea”. Nesta
edição, nos colocamos frente a frente com diversos ângulos das discussões sobre a
questão da propriedade, e em especial no que tangencia o campo das artes: a noção de
autoria. Vimos nas últimas décadas, principalmente com o advento das “facilidades” e
impossibilidades de controle da Internet, a concretização não da morte do autor, mas
uma dilatação sempre imprevisível de limites e de uma efetiva mudança no estatuto
das próprias noções que têm por base a questão da autoria.
A produção artística, segundo Luiz Sergio Oliveira (UFF), não é mais concebida
como produto de um único sujeito, na plenitude de seus saberes e fazeres que lhe
conferem uma autonomia e hegemonia sobre outros saberes e fazeres que coabitam e
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 11
Adriana Dias
UNICAMP – [email protected]
Los objetivos de este trabajo son el de entender el híbrido campo de los libros
producidos por artistas, apoyándome entre otras referencias en A página vio-
lada: da ternura à injúria na construção do livro de artista, de Paulo Silveira
(2008) y Aberto fechado – Caixa e livro na arte brasileira (2012) y, paralela-
mente, iniciar alguna comprensión sobre la serie Liames, libros por mí produ-
cidos desde 2012.
Palabras clave: libro de artista, dibujo, narrativa, arte contemporáneo.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 13
Figura 1. Caderno A3. Estudos de formas queimadas; projeto para gravura. 1999.
caderno de artista aconteceu no contato com livros de artista. Num princípio, limitavam-
se meus cadernos a um acumular de ideias escritas, entremeadas de poucas imagens que
foram, paulatinamente, ganhando espaço. Começaram a surgir desenhos de anotação e
observação, esboços para pinturas/gravura; autorretratos, paisagens, corpos e objetos
que viriam, talvez, a constituir-se como trabalhos maiores. Os primeiros cadernos foram
suporte para exercícios de desenho; não eram um fim em si mesmo, mas um veículo para
algo que se materializaria fora deles (Figura 1).
Os recentes cadernos deixaram a ordem daquilo que está de permeio, adquiriram
autonomia, indo ao encontro do que aponta Hoffberg (1987), quando afirma que o livro
de artista “deve ser reconhecido como um meio em si mesmo”. A série em que venho
trabalhando, Liames, forma-se por um conjunto de livros, dos quais três serão aqui apre-
sentados. A série é composta pela tecitura [narrativa] de desenhos em sobreposição,
mostram figuras apagando-se e outras emergindo. As formas desvelam-se ou se esvae-
cem no ato de folhear.
Para Weiss (2010), o ir e vir no folhear das páginas do livro evoca aspectos tem-
porais, compara esse movimento a uma metáfora do tempo. Para a autora, a sequen-
cialidade da escrita constrói a narrativa, “ao abrir um livro, o tempo impregnado neste
livro começa a fluir, não o tempo cotidiano, mas, sim, o tempo da leitura: um tempo
paralelo”. No livro de artista a leitura ou visualidade de sua narrativa constrói-se de
maneira particular. Derdyck (2012) aponta que as narrativas no livro de artista nascem
das conjugações entre tempo-espaço, forma e conteúdo, significante e significado; mais
do que um tema ou assunto a ser contado, “o foco poético se fixa justamente no modo de
narrar, que acontece tanto pelas articulações inéditas entre palavra e a imagem quanto
pela sua materialidade, a sequência das páginas, sua estrutura formal.
Nos livros da série Liames um dos elementos da narrativa é o virar das páginas: a
imagem desenhada soma-se à imagem que a antecede e cria uma expectativa em rela-
ção àquela que a sucederá (Figura 2). A transparência das páginas e a sequencialidade
permitem que as imagens perpassem umas às outras; os desenhos imbricam-se, liam-se.
A sequência da leitura nestes livros pode começar por onde o fruidor estabeleça
como início e dar-se em qualquer direção. A transparência do papel somada ao ato de
virar cada página propicia que vejamos uma imagem espelhada em relação àquela que
vimos na página anterior, porém acrescida agora de outro contexto narrativo, que diz
respeito às páginas que se acumulam de um ou outro lado do caderno. Nos livros Liames
1 e Liames 3 (Figura 5), a sequencialidade das páginas constrói uma narrativa visual
mais explícita, mais acessível que no caso de Liames 2, descrito mais adiante.
Figura 5. Liames 3. Neste livro as transparências são intercaladas por folhas opacas. As pá-
ginas são unidas como sanfona, o que permite visionar este caderno como uma imagem
contínua. c. 20 cm. 2012.
Referências
Aberto fechado – Caixa e livro na arte brasileira. Catálogo da exposição de mesmo nome realiza-
da na Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2012.
BORGES, Jorge Luis. Cinco visões pessoais. Brasília: Editora da UNB, 1987.
_____. La biblioteca de Babel, disponível em http://www.fenomec.unam.mx/pablo/probabilidad/
babel.pdf. Acesso em 02/12/2012.
BRETT, Guy. Guia geral do terreno. Aberto fechado – Caixa e livro na arte brasileira. Catálogo da
exposição de mesmo nome realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2012. Pág. 10-55.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain (orgs). Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, cos-
tumes, gestos, formas, figures, cores, números. Tradução de Vera da Costa e Silva (et al). 16.
ed. Rio de janeiro: José Olympio, 2001.
DERDYCK, Edith. A narrativa nos livros de artista: por uma partitura coreográfica nas páginas
de um livro. Pós: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da Escola de Belas Artes da
UFMG. Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 164 – 173, maio. 2012.
ECO, Umberto. O nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de
Andrade. Rio de Janeiro: O globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.
ENDE, Michael. A história sem fim. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
HOFFBERG, Judith A. Plenas de elegância e finura, atemporais mas familiares: artes gráficas
únicas. Único em seu gênero – Livros de artistas plásticos (catálogo de exposição de livros de
artista). 1987, páginas 08-13.
HORVITZ, Suzanne Reese. Introdução. Único em seu gênero – Livros de artistas plásticos (catá-
logo de exposição de livros de artista). S/d, páginas 07-08.
SERNA, Justo, Naturalmente, Umberto Eco. Jornal El País, Espanha, 21 de outubro de 2005.
Arquivo de edição impressa, disponível em: http://elpais.com/diario/2005/10/21/cvalencia-
na/1129922283_850215.html.
SILVEIRA, Paulo. A página violada: Da ternura à injúria na construção do livro de artista. 2ª
edição. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.
WEISS, Luise e AZEVEDO, Suzana. Livros-objeto e Almanaques: marcas e deslocamentos. 19º
encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. “Entre Territórios”. 20
a 25/09/2010. Cachoeira, Bahia. 201
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A aplicação da Xilogravura e da
arte colaborativa, na
busca do desenvolvimento
estético e interação social em
alunos deficientes visuais
Adriano de Almeida Ferraiuoli
IFF-Campos/RJ – [email protected]
This Research was developed in the field of Collaborative Art and Inclusive
Education specifically visual impairment, taking as reference the use of prac-
tical activities in woodcut. In this context, we seek to discover ways that expe-
riences in space may represent Woodcut development of sensory and aesthe-
tic experiences in visually impaired students from pedagogical practices that
also promote social inclusion.
Keywords: Inclusive Education, Training Aesthetics, Visual Impairment, Wod-
cut and Collaborative Art
20 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Introdução
O cenário atual de debates sobre a formação estética de jovens para a inserção cidadã na
vida social e promoção de acesso ao conhecimento científico, às artes e à cultura, prin-
cipalmente por estar amparada e fomentada pelos Princípios e Diretrizes da Educação
Profissional sugere que novos parâmetros se desenhem no cotidiano escolar.
Objetivos
Compreender como a Xilogravura pode contribuir para o desenvolvimento sensorial
e estético, investigando como ocorrem as transformações culturais frente aos desafios
propostos ao longo da pesquisa.
Desenvolvimento Estético
Utilizando o termo estética como área de significação em artes, (Cauquelin, 2005) o
divide em duas categorizações: a primeira empregada como adjetivo, qualifica com-
portamentos e atributos relacionados à atividade artística; Já o substantivo estética, nos
remete a um corpus teórico que definem o domínio específico da arte, propõe estudos de
obras e visões de conjunto de períodos históricos, admitindo teorias a partir de estéticas
próprias de seus autores.
Em nosso estudo optamos pela primeira categorização, entendendo a estética junta-
mente com Baumgarten (apud, CAUQUELIN, 2005) como a essência do pensamento
sensível – “ciência do sensível”. Buscando o despertar e desenvolvimento da sensibili-
dade artística em discentes deficientes visuais, a partir da xilogravura.
As experiências em xilogravura buscaram na pluralidade, um princípio articulador
do conhecimento, implicando meios de trabalhos educativos na diversidade. Segundo
(Vygotsky, 2008), o desenvolvimento humano está intimamente ligado ao aprendizado,
sendo este uma das principais fontes de conceitos e uma poderosa força que direciona o
destino do seu desenvolvimento mental.
Assim, as experiências em xilogravura se comprometeram com o desenvolvimento
estético dos educandos, percebendo as linguagens artísticas como formas sensíveis de
criação e expressão. Esta forma de construção estética caminha no sentido contrário
de uma prática de Ensino praticada na sociedade contemporânea, que ainda prioriza a
linguagem verbal, em detrimento das demais linguagens subjetivas.
Interação Sociocultural:
Os encontros semanais, além da aplicação da xilogravura e demais técnicas artísticas,
buscaram estabelecer uma relação recíproca entre os participantes, por uma conexão
mediadora entre os estudantes e o pesquisador. Assim, o investigador, direcionou as
atividades propostas na construção de significados e apropriação cultural.
Para (Silva, 2010, p.211), o professor que busca desenvolver essas mediações e
apropriações culturais em sua prática pedagógica, deve formular perguntas básicas do
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 21
tipo: “quais práticas operar para favorecer a construção interativa dos saberes nas insti-
tuições educativas? Quais situações propor aos estudantes?”
Segundo o autor, começando sua ação por estas questões, o professor deve ter claro
que está objetivando as interações entre os alunos e que estes “não são copos vazios que os
docentes deveriam encher”. Assim como para (Freire, 2010) que sentencia que “(...) ensinar
não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua construção” (p.22).
De acordo com as questões apresentadas, a interação sociocultural pretendida, atra-
vés das vivências em Xilogravura, buscou a reflexão, a discussão de ideias, a troca de
experiências e opiniões.
Considerações Finais
Na análise dos resultados da pesquisa, encontramos nas experiências estéticas e senso-
riais em xilogravura um espaço transformador, despertando um entrelace das relações
cognitivas. A Xilogravura se revela como uma linguagem estética, que utiliza da ex-
pressão artística e sensorial. Apresentando-se como um recurso didático transformador
para o Ensino da Arte com deficientes visuais, capaz de favorecer significativamente
no desenvolvimento da percepção, estética e interação sociocultural dos participantes.
Referências
CAUQUELIN, Anne. (2005). Teorias da arte. São Paulo: Martins Fontes.
CHIZZOTTI, Antonio. (2003). Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais. São Paulo: Cortez Edi-
tora.
FREIRE, Paulo. (2010). Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa. São
Paulo: Paz e Terra.
LUDKE, Menga & ANDRÉ, Marli E. D. A. (2010). Pesquisa em Educação: Abordagens Qualita-
tivas. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária Ltda.
SILVA, Marco. (2010). Sala de Aula Interativa: educação, comunicação, mídia clássica, internet,
tecnologias digitais, arte, mercado, sociedade e cidadania. São Paulo: Loyola.
VIGOTSKY, L.S. (2008). Pensamento e Linguagem: São Paulo: Martins Fontes.
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A receptividade da
panela de barro capixaba
Aissa A. Guimarães
PPGA/ UFES – [email protected]
The proposed article addresses the receipt of crock pots capixabas by pub-
lic, analyzing the differences between the production of crock’s artisans from
Goiabeiras and crock’s artisans from Guarapari, addressing the influence of
ownership of the territory in which this knowledge is transmitted and continu-
ously produced. The different processes in the production of the crock imply
distinct objects, both in the physical characteristics of the pans, as in cultural
and social contexts.
Keywords: Crock’s artisans from Goiabeiras; crock’s artisans from Guarapari;
intangible cultural heritage; craftwork; market.
24 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
A partir deste registro as paneleiras passaram a ter mais visibilidade e a contar com
algumas políticas públicas como apoio à continuidade de seu trabalho. Algumas mu-
danças aconteceram ao longo do tempo, mas nada que interferisse no modo essencial
desse fazer.
A princípio, as paneleiras produziam para consumo próprio e para a comunidade,
nos quintais de suas casas, mantendo uma tradição indígena por gerações. Conforme
relata o Dossiê do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) 3 –
Ofício das Paneleiras de Goiabeiras (2006, p.15), o processo de produção das panelas de
Goiabeiras conserva todas as características essenciais que a identificam com a prática
dos grupos nativos das Américas, antes da chegada de europeus e africanos. As panelas
são da mesma maneira modeladas manualmente, com argila da mesma procedência, do
Vale do Mulembá e com o auxílio de ferramentas rudimentares. Após secarem ao sol,
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 25
são polidas, queimadas a céu aberto e impermeabilizadas com tintura de tanino, ainda
quentes.
Entretanto, com a maior divulgação e a associação da panela de barro com a torta e
moqueca capixabas, a procura pelas panelas foi crescendo e a produção das paneleiras
também. Atualmente, devido a grande demanda das panelas, as paneleiras já contratam
umas às outras para auxiliarem em algumas etapas da produção das panelas, como o
alisamento logo após a secagem.
Para identificar e distinguir a procedência das panelas de barro de Goiabeiras criou-se
um selo de autenticidade (Figura 1) junto com a Prefeitura de Vitória, consequentemente,
contribuindo para a formação da identidade do grupo e da tradição. Em 2011, as panelas
de Goiabeiras receberam outro selo, o de Indicação Geográfica na categoria Indicação
de Procedência, fornecido pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), para
garantir a proteção e a diferenciação das panelas de Goiabeiras no mercado. (Figura 2).
Figura 3. Mapa das fábricas de panela de barro em Figura 4 e 5. Acima, panela de bar-
Guarapari, ES. ro produzida em Guarapari. Abaixo,
panela de barro produzida em Goia-
beiras. (Fonte: Acervo pessoal).
Como a produção de Guarapari é maior pela agilidade do torno, o preço dos artefatos
é um pouco menor do que o de Goiabeiras, mesmo tendo o custo de produção maior.
Além do processo de produção o barro utilizado e a forma das panelas também são
diferentes. O barro que as paneleiras de Goiabeiras utilizam só é encontrado no Vale do
Mulembá, localizado no mesmo município. O barro utilizado pelas paneleiras é mais
arenoso e profundo, diferentemente do barro utilizado pelos paneleiros de Guarapari.
O barro das paneleiras não serve para ser usado no torno, devido suas características
fisiológicas. O barro de Guarapari é retirado mais da superfície, é mais macio e passa
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 27
por um processamento para se tornar mais fino. Essa mistura se faz necessária devido
as altas temperaturas dos fornos durante a queima das panelas e a modelagem no torno.
As paneleiras de Goiabeiras usam a tintura chamada tanino para impermeabilizar e
tingir de preto as panelas. Em Guarapari não há essa impermeabilização e a cor se dá no
final do processo de queima, pela fumaça, deixando as panelas com uma cor uniforme.
O torno usado em Guarapari resulta em panelas uniformes (Figura 4) e com melhor
encaixe da tampa com a panela. Nas panelas de Goiabeiras (Figura 5) as alças são di-
ferentes das de Guarapari, e possuem algumas variações de acordo com a habilidade
de cada artesã. Na tampa nota-se outra diferença: em Guarapari é um puxador e em
Goiabeiras é uma alça.
Entretanto, em breve pesquisa pela internet percebe-se que as pessoas não conhecem
as diferenças das duas produções, do modo de fazer nem das diferenças físicas, o que
podemos confirmar quando conversamos com alguns capixabas sobre essas panelas.
O fato é que existe mercado para as duas produções de panela de barro. Enquanto
as paneleiras de Goiabeiras que produzem no galpão da Associação das Paneleiras de
Goiabeiras (APG) tem uma média de três mil panelas por mês de produção, as fábricas
de Guarapari juntas produzem cerca de vinte e cinco mil panelas mensais em baixa tem-
porada (de acordo com relato de Ailton, um dos paneleiros).
Guarapari por ser uma cidade turística, facilita a venda das panelas dos paneleiros.
Já as Paneleiras de Goiabeiras tem o ofício registrado, a história da tradição familiar e
regional o que acaba despertando o interesse dos turistas, além do apoio de instituições
governamentais. De acordo com Renato Ortiz (1985, p. 133) “é o grupo que celebra
sua revificação, e o mecanismo de conservação do grupo está estreitamente associado à
preservação da memória.” No entanto, a memória coletiva só pode existir enquanto vi-
vência, enquanto prática que se manifesta no cotidiano das pessoas. Com esse apoio que
as paneleiras recebem, conseguem dar visibilidade a memória dessa tradição e assim
valorizar seu trabalho e vender mais panelas. Constatamos que em Guarapari há uma
grande demanda de revendedores que compram grandes quantidades dos paneleiros e
vendem pelo país, uma vez que esta produção artesanal, em série das fábricas, produz
quantidade suficiente para este mercado.
Conforme Ortiz (1985, p. 40), a construção da identidade nacional (neste caso, re-
gional), necessita de mediadores para descolarem as manifestações culturais de sua es-
fera particular e as articularem a uma totalidade que as transcenda. Esses mediadores
são os intelectuais que interpretam as manifestações e trazem a tona para a sociedade.
Deste modo, Ortiz (1985, p 142) afirma que “a cultura enquanto fenômeno de lingua-
gem é sempre passível de interpretação, mas em última instância são os interesses que
definem os grupos sociais que decidem o sentido da reelaboração simbólica desta ou
daquela manifestação.” Isso nos indicar os motivos pelos quais a tradição das paneleiras
é um bem cultural valorizado, enquanto a produção de panela de Guarapari é vista como
artesanato para comercialização.
28 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Referências
FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (coordenadores). Revisitando o instituto do tomba-
mento. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
IPHAN. Dossiê IPHAN 3 - Ofício das paneleiras de goiabeiras. Brasília: Iphan, 2006.
IPHAN. Cartas patrimoniais. Isabelle Cury (org.). 3 ed. Rio de Janeiro: Iphan, 2004.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 29
Da legibilidade à perplexidade:
convergência de fluxos nos espaços
discursivos das galerias
(Obrist, 2006). A primeira vez que expôs as etapas de preparação do curry em pedestais
- Sen título, galeria Scott Hanson, 1989 - os espectadores não podiam comê-lo. Foi em
sua individual Sem título, de 1992, na galeria 303 em Nova York, que os visitantes foram
convidados a compartilhar da experiência de experimentar e compartilhar o curry. Para
esta ocasião as portas que separavam os ambientes da galeria por funções específicas
foram retiradas, de certa forma unificando os espaços. Segundo o artista, os aposen-
tos geralmente ocultos da galeria foram convertidos em “espaço de encontros sociais”.
(Obrist, 2006) Como resultado da sua proposta artística, Tiravanija evidencia que “o
espaço do escritório da galeria se tornou um ponto de encontro e descanso central para
vários visitantes habituais do SoHo.” (Obrist, 2006)
Mas é justamente pensando nas obras de Tiravanija que Hall Foster define o risco de
se apoiar em algum pedigree teórico para converter conceitos abstratos em espaço literal
de operações, e chega a apontar certa promiscuidade das colaborações quando a instalação
adiquire a condição de formato padrão para a discursividade e a sociabilidade. É neste
ponto que Foster aponta a probabilidade de ilegibilidade, pois a morte do autor não signifi-
cou necessariamente o nascimento do leitor, como especulou Roland Barthes, mas pode-se
estar trabalhando com a exploração da perplexidade do espectador. (Bishop, 2006)
Com a mesma intensidade que Foster apresenta ressalvas às instalações e perfor-
mances como as de Tiravanija, ele também rebate as teorias que as sutentam, como as
de Bourriaud.
Para fundamentar seu ponto de vista sobre as teses de Bourriaud, Foster alega ver no
livro Pós-produção não mais que um breve glossário de trabalhos que utilizam técni-
cas de manipulação de produtos culturais e que engendram efeitos relacionais. De fato,
Bourriaud concentra os aspectos conceituais de sua tese em seu livro anterior, Estética
Relacional, para então apresentar em Pós-produção uma panorâmica das produções que
consideram as técnicas de elaboração de sociabilidade com as quais os artistas traba-
lham os elementos relacionais.
Certas obras indicam claramente que alguns artistas contemporâneos tendem à
“construção de percursos dentro dos fluxos existentes” (Bourriaud, 2009). Neste senti-
do, busco ressaltar como as salas e corredores das galerias são reinseridos na cartografia
dos caminhos urbanos, por vezes como atalhos para os fluxos existentes, ou então como
desvios de retorno para a realidade dos percursos cotidianos. O artista propõe a reo-
rientação de personagens cotidianos realizando ações quaisquer, sem objetos inusitados
ou trajes especiais que denunciem alguma singularidade dos gestos, e captura, assim,
atitudes vinculadas às instâncias cotidianas sem qualquer ruptura com sua orientação
comportamental do participante. O artista, portanto, não propõe a criação de novos flu-
xos, tampouco a revelação de passagens incomuns ou eventos inusitados. Ele promove
a convergência de instâncias, como as do público e do privado, do local e do global, do
individual e do coletivo, do artístico e do comum, do culto e do vulgar, com a manipula-
ção os fluxos de eventos disponíveis para, principalmente, propor certa dessacralização
dos espaços reservados da arte dita elevada. Mas, se a postura de Foster pode parecer
32 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
radical, também não se pode permanecer indiferente ao risco que se apresenta como
certa inversão de polaridade, pois as galerias revelam-se como lugares imantados, com
a capacidade de atrair os fluxos existentes e recarregá-los de significados, sejam eles
políticos, ideológicos, culturais, sociais ou afetivos, de modo a reverter os efeitos de
sacralização para os acontecimentos vulgares.
Muitas ações suscitadas pelas propostas artísticas resultam em intervenções que de-
nunciam a passagem dos personagens, pois suas presenças são tomadas como demar-
cações através de seus gestos, ainda que estes gestos sejam associados aos comporta-
mentos mais costumeiros. Trata-se de alterar a disposição do espaço com gestos muitas
vezes passageiros, de subverter a relação com o lugar pela deliberação da presença do
espectador. Trata-se de interferir diretamente nesses espaços de vivência, intervir na
temporalidade inscrita nas relações, abalar as conexões estabelecidas pela natureza do
lugar. O espaço que a princípio acolheria uma obra de arte é aberto à resignificações, de
tal modo que os eventos ali suscitados assumem a condição de obra pelo deslocamento
dos elementos relacionais envolvidos.
Desvios e convergências
Os caminhos das cidades são tomados como pulsantes ambientes de circulação, e a rua
“passa a ser o lugar em que vivemos mais plenamente, isto é, mais irrefletidamente,
vagando o dia inteiro num permanente e generalizado limiar entre o espaço público e o
espaço privado” (Clark, 2007). Os comentários de T. J. Clark ressaltam que, “para Ben-
jamin, as passagens são a chave dessa história mais geral porque somente nelas a verda-
deira estupidez e sublimidade da nova (velha) sociedade encontravam total expressão”
(Clark, 2007). Por isso sugiro que algumas das propostas de ocupação dos espaços das
galerias na arte contemporânea denunciam certa permanência da centenária estratégia
do readymade, talvez como afirmação do que lhe é essencial: o deslocamento.
Lugares de aparição da arte, as galerias habitualmente funcionam como estações
para pausa ou retenção da corrente diária. Assim, a experiência com a arte despertaria
como imersão em ambientes específicos que margeiam os fluxos da cidade. Mas, com
os desdobramentos das instalações e das performances, os eventos característicos dos
fluxos existentes são desviados de seu itinerário corriqueiro para o interior das galerias.
Umberto Eco cedo demonstrou como a poética de uma obra estaria aberta a resigni-
ficações (Eco, 1968), e boa parte dos artistas da primeira metade do século XX adotaram
a máxima de aproximação da obra de arte com o mundo, mas o que parece manifestar-
se na produção artística das últimas décadas é uma ansiada abertura do mundo tomada
como obra. Nicolas Bourriaud dedica um capítulo de Estética relacional a essa ideia,
intitulando-o A obra de arte como interstício social. Mas, como seu próprio discurso
deixa antever, os artistas parecem fazer despontar os interstícios sociais e tomá-los por
atividades artísticas, pois “a arte sempre foi relacional em diferentes graus, ou seja, fator
de sociabilidade e fundadora de diálogos” (Bourriaud, 2009). A proposição de ações per-
formáticas busca responder à pretendida imersão da arte no espaço-tempo real. Assim,
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 33
ir a uma galeria de arte passou a significar mais que visitar espaços expositivos, pois os
espectadores são levados a penetrar ambientes e manipular objetos, vestir capas e com-
partilhar roupas como exercícios participativos e colaborativos desde que as galerias de
arte passaram a proporcionar incursões por instalações e a audiência de performances.
A consolidação da instalação e da performance no repertório contemporâneo, e conse-
quentemente os desdobramentos dessas categorias artísticas, muitas vezes em associa-
ção, levam a audiência para além da função de testemunhar as ações, pois, seduzidos
ou capturados, os espectadores tornam-se partícipes da ação que é tomada como obra.
A largos passos a obra de arte contemporânea intenta elevar o fator relacional ao enredar
diretamente o outro na disposição das ações, e isso sem necessariamente passar pela
mediação de objetos tidos historicamente como específicos do campo da arte.
Mais que receptor das obras o espectador é solicitado como um elemento de trans-
missão, ressaltando a disposição de um jogo relacional envolvente que aciona aconteci-
mentos coletivos. Com os amontoados de doces na instalação Sem título (USA Today),
de 1990, Felix Gonzales-Torres sugere acontecimentos em aberto francamente subordi-
nados ao espectador, com caramelos que circulam cingindo a presença dos espectadores.
Como oferta, a obra de Gonzales-Torres presentifica, de fato, os modos de produção,
recepção e transmissão envolvidos em suas práticas artísticas que dialogam de maneira
franca e prazerosa com as práticas históricas, com os dados culturais, com os elementos
sociais, na reinserção em circuitos nos quais as pessoas reveem o significado dos singe-
los gestos de preparar, ofertar, receber e compartilhar algo comum.
Referências
BISHOP, Claire (Org.). Participation/Documents of contemporary art. Londres: Whitechapel Ga-
lery and MIT Press, 2006.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins, 2009.
__________ Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Mar-
tins, 2009.
CLARK, T.J.. Modernismos: ensaios sobre política, história e teoria da arte. São Paulo: Cosac
Naify, 2007.
ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Editora Perspectiva, 1968.
FERREIRA, Glória. COTRIM, Cecília (org.). Clemente Greenberg e o debate crítico. Rio de
Janeiro: Funarte Jorge Zahar, 1997.
OBRIST, Hans Ulrich. Arte Agora!. São Paulo: Alameda, 2006.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 35
Alexandre Toledo
Cia da Farsa e Trupe Teatro de Pesquisa – [email protected]
A criação como rede pode ser descrita como um processo contínuo de interconexões instáveis,
gerando nós de interação, cuja variabilidade obedece a alguns princípios direcionadores. Essas
interconexões envolvem a relação do artista com seu espaço e seu tempo, questões relativas à
memória, à percepção, recursos criativos, assim como, os diferentes modos como se organi-
zam as tramas do pensamento em criação. O artista deixa rastros deste percurso nos diferentes
documentos do processo criativo.1
Do mito
A Oréstia ou Orestéia de Ésquilo é a única trilogia do teatro clássico grego que nos
chegou intacta até os dias de hoje. Nos antigos festivais religiosos dos gregos os poetas
Da moldura:
Em nosso trabalho de doutoramento no qual acompanhamos a construção de três espetá-
culos teatrais distintos, propomos que uma das primeiras tarefas assumidas pela direção
fosse o estabelecimento de uma moldura para o desenvolvimento do trabalho dos atores
e demais colaboradores. Em nossa concepção, a moldura constitui-se de um ambiente
propício para fomentar a criação, do estabelecimento de parâmetros sobre os quais o
ator ou o coletivo de atores partiria para a composição de suas personagens. No caso em
questão, a moldura também forneceria, em princípio, o viés para a própria construção
do texto. A moldura não é um ambiente fechado que enquadrando o ator, o coloca sob a
tutela de uma camisa de força. Ela consiste no estabelecimento de parâmetros mínimos
por onde deverá transitar o trabalho de um artista. Nesse sentido, a noção de moldura
muito se aproxima do conceito de princípios direcionadores:
As tendências do percurso podem ser observadas como atratores, que funcionam como uma
espécie de campo gravitacional e que indicam a possibilidade que determinados eventos ocor-
ram. Nesse espaço de tendências vagas está o projeto poético do artista que são princípios
direcionadores, de natureza ética e estética, presentes nas práticas criadoras, relacionados à
produção de uma obra específica e que atam a obra daquele criador, como um todo. São princí-
pios relativos à singularidade do artista. São planos de valores, formas de representar o mundo,
gostos e crenças que regem o seu modo de ação: um projeto pessoal e singular.3
Em Átridas – O Homem morto na Banheira, esse campo gravitacional foi bem am-
plo e contou com a participação de todo o núcleo de atores e não somente da direção.
Nas primeiras reuniões foi estabelecida a premissa de que o grupo contaria toda a histó-
ria do mito no mesmo espetáculo. O espetáculo final não cumpriu tal pretensão ficando
mesmo restrito à trama contida no primeiro texto de Ésquilo (Agamemnon). A direção
propôs então que a primeira parte do espetáculo fosse uma espécie de prólogo onde
3. Vocabulário. Disponível em <http://www.redesdecriacao.org. br.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 39
Interconexões
Nenhuma obra de arte surge do nada. A obra surge de uma série de relações do artista
com o mundo que o cerca, com outras obras, com outros artistas. No processo de criação
teatral tal fato é muito evidente principalmente em um processo que tenha como pres-
suposto básico a criação conjunta, como em nosso caso. Nesse sentido, a existência da
figura do diretor teatral não implica uma verticalização na tomada de decisões. Decisões
são tomadas de acordo com as ideias que vão surgindo e sua viabilidade vai sendo com-
provada ou não ao longo do processo. Ensaiar é sempre a busca da ação mais eficiente.
A escrita teatral é uma confluência de escritas diversas que vão sendo organizadas sob
a batuta da direção e se o acaso é componente importante na criação da obra, ideias tra-
zidas por outros colaboradores podem trazer à luz um sentido que ainda se encontrava
latente ou apontar uma direção diferente da que estava sendo perseguida até então. No
processo de construção de Átridas tivemos desde o primeiro momento uma presença
constante da música. Como já foi dito anteriormente, o estabelecimento da moldura não
ficou a cargo apenas da direção e todos os atores foram instados a trazer contribuições
para enriquecer o espaço de criação. Em todos os primeiros ensaios foram recolhidas su-
gestões de textos, músicas e filmes, mas foi a música que marcou definitivamente o pro-
cesso. Em certo sentido a música foi um dos componentes mais marcantes da moldura.
Decididos a contar toda a história do mito, os atores foram orientados a criar cenas
através da improvisação emulando o encontro das personagens ao longo da trama. Num
primeiro momento não tivemos a preocupação com o texto escrito, mas apenas com a si-
tuação. Como se daria o encontro entre Agamemnon e Clitemnestra depois de tanto tem-
po? E o encontro entre Egisto e Clitemnestra para planejar o assassinato de Agamemnon?
Como haveria de ser o encontro entre Orestes e Electra? Como construir tais encontros
corporalmente? Como transformá-los em imagens. Tais cenas, bem como os monólogos
iniciais de apresentação de cada personagem se constituíram no núcleo dramatúrgico
do espetáculo nos primeiros dois meses de trabalho. Um dia sentimos a necessidade de
ordenar o que havia sido criado. Tínhamos duas músicas já escolhidas: a primeira era a já
citada ária da ópera O Pescador de Pérolas, a segunda era Back to Black que havia sido
sugerida por um dos atores logo no primeiro mês de trabalho. Faltava encontrar algo que
pudesse unificar a pequena estrutura narrativa que havíamos criado até esse ponto, algo
que pudesse alinhavar a proposta dos monólogos iniciais com os esboços de cena cons-
truídos. O fator unificador foi dado pela música. No dia em que resolvemos apresentar
o que havia sido criado até então, a direção propôs que os atores se preparassem para a
exibição dos monólogos enquanto ouviam uma música que havia sido trazida por um dos
atores logo nos primeiros encontros. Tal música tem uma duração de 10 minutos, tempo
em que os atores executavam uma série de ações criadas de antemão e que precederia aos
textos. A proposta provou sua eficácia e foi mantida no espetáculo.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 41
razões de seu rancor e para a cena final do espetáculo foi escolhida uma canção fúnebre
judaica, um kaddish, para ilustrar os sentimentos de luto de Electra e prepará-la para o
discurso final de vingança.
Definições e recomeço
O desenvolvimento do processo criativo demanda ao criador a tomada de decisões que
muitas vezes alteram os rumos do processo. Decisões geralmente são tomadas em mo-
mentos de crise. A certa altura do processo de criação nos deparamos com uma série
de impasses. Havíamos definido inicialmente que trabalharíamos com as seis persona-
gens básicas do mito grego. Entretanto, a dificuldade de encontrar um ator adequado
ao papel de Orestes nos vez abandonar tal ideia após três tentativas. Ao mesmo tempo,
a ausência de um texto mais estruturado parecia não permitir que o trabalho avançasse
provocando na direção uma necessidade de contar com algo mais consistente. Esses
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 43
impasses levaram o coletivo a decidir pelo abandono do projeto de contar todo o mito
desde a chegada de Agamemnon a Argos até o julgamento de Orestes pelo areópago e
se concentrar apenas na primeira parte da história onde se descreve o retorno do rei e o
seu assassinato pela esposa e seu amante. Tal decisão eliminou a personagem de Orestes
e a incômoda tarefa de encontrar um novo ator. Então um dos atores trouxe o texto
Agamenon, versão escrita no século XVIII pelo italiano Vittório Alfieri para o clássico
grego. O texto foi traduzido por um membro da trupe e escolhido para ser o texto básico
da encenação. A versão de Alfieri não conta com a personagem Cassandra que é apenas
mencionada em determinada passagem, o que nos obrigou a eliminar tal personagem,
decisão que se mostrou por fim ser a mais acertada. A escolha por Alfieri, no entanto, não
significou a eliminação de toda estrutura narrativa que já havíamos construído até então,
mas uma união entre ambos. Assim, os monólogos iniciais de Egisto, Clitemnestra e
Agamemnon foram mantidos e o texto inicial de Orestes, uma adaptação de trecho de
Hamlet-Máquina de Heiner Muller, foi assumido por Electra. Também a clássica cena
do tapete retirada do original de Ésquilo foi mantida, bem como parte do diálogo final
entre Egisto para Electra, bem como a última fala de Hamlet-Máquina. O texto final se
revelou enfim coerente com nosso propósito inicial que era fazer uma colagem de vários
escritos sobre o tema.
Mas apesar das idas e vindas no processo, principalmente com relação à definição
do texto final, olhando em retrospecto as anotações que deixamos registradas em nosso
diário de trabalho, é possível constatar que a ideia central do espetáculo, a forma que ele
finalmente tomou após mais de um ano de ensaios, já estava esboçada logo nas primeiras
reuniões do grupo como uma linha de força básica, uma tendência irresistível, como a
revelada no estabelecimento do texto. As ideias principais já estavam lá, definidas du-
rante o processo de construção da moldura de trabalho e foram ganhando substância no
decorrer dos ensaios. Chegamos a um ponto efetivamente satisfatório? Dificilmente. O
trabalho de criação artística, principalmente o teatral, é, por natureza, inacabado.
O processo de escrita teatral do espetáculo Átridas – O Homem morto na banheira
foi marcado por uma multiplicidade de escritas, pela confluência de múltiplas drama-
turgias que ora seguiram o projeto estético da direção, ora dele se desviaram apontando
novos caminhos e preenchendo lacunas existentes no projeto original. Nesse sentido,
o trabalho do diretor teatral se define por uma série de papéis que ele deve assumir ao
longo do processo: indutor de propostas, agente catalisador de ideias e finalmente como
organizador das várias propostas que passam a ganhar sentido. O espaço teatral, cuja
conquista se torna a própria razão de existir do diretor teatral e que condensaria todo
esforço de tradução de uma obra em outra, torna-se assim o ponto nevrálgico para onde
confluem diversas dramaturgias: dos textos, dos atores, da luz, da música, dos cenários
e figurinos. A dramaturgia ganha assim um novo estatuto. Não se trata mais de um tra-
balho de um único escritor, mas da interação das escritas de vários autores que ganham
voz durante o processo de criação.
44 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Referências
GRÉSILLON, Almuth, MERVANT-ROUX, Marie-Madeleine, BUDOR, Dominique (orgs).
Genèses théâtrales. Paris: CNRS Editions, 2010.
SALLES, Cecília Almeida. O Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Anna-
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_______. Redes de criação: construção da obra de arte. São Paulo: Horizonte, 2006.
Site: <http://www.redesdecriacao.org.br>
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 45
Introdução
O presente texto disserta sobre as práticas artísticas de coletivos feministas na América
Latina, mais especificamente no Brasil, Argentina e Bolívia e os respectivos coletivos:
Rede Nami, Mujeres Publicas e Mujeres Creando. Buscamos refletir sobre qual o lugar
dessas práticas na contemporaneidade e em que medida sinalizam novos parâmetros
para a arte contemporânea.
As mulheres que compõem cada um desses grupos têm origem diversa, muitas não
se consideram artistas, outras são donas de casa, indígenas (no caso da Bolívia), ativis-
tas, militantes. Enquanto seu discurso vai do anarco-feminismo (no caso de Mujeres
Creando) ao feminismo da igualdade (Rede Nami), enquanto Mujeres Publicas incorpo-
ra demandas tradicionais do feminismo, como direito ao aborto, à igualdade de oportu-
nidades, ampliando questões referentes à homoafetividade. Neste sentido, nos pergunta-
mos: como conceituar esses coletivos? Serão artistas militantes, ativistas artistas? Como
defini-las? Em que medida essas práticas se diferem de outras?
Figura 3 - Oficina: “Se você não muda, mudo eu”. Favela da Maré em parceria com o Obser-
vatório das Favelas. Centro de referência da Mulher, Maré, Rio de Janeiro.
do lugar específico onde se leva a cabo, culminando com uma perda da objetualidade e
da autoria, em muitos casos. Neste processo, abre-se horizonte para novas tipologias e
caracterizações, que tem emergido nos últimos anos basicamente sob o mesmo esquema
original, ou seja, levando-se em conta desde a estética relacional à arte contextual, da
estética conectiva à dialógica. (LACY, 1995).
A partir dessas constatações, Suzanne Lacy elaborou o conceito de novo gênero de
arte pública, o qual tem sido amplamente empregado na análise das práticas recentes
de arte na esfera pública, em especial aquelas que se articulam de forma mais espessa
com segmentos da sociedade. Este novo gênero utiliza os mais diversos meios para
dialogar e interagir com públicos diversificados, desde a mídia tradicional à não tra-
dicional, sobre assuntos que estejam diretamente conectados com suas vidas, aproxi-
mando-se de idéias formais das vanguardas, ao mesmo tempo que estrutura-se a partir
de uma sensibilidade desenvolvida sobre o público, revelando-se como uma estratégia
social de relação (LACY, 1995).
Parafraseando o termo acunhado por Suzanne Lacy, novo gênero de arte pública,
para referir-se à emergência de novas estratégias de ação artística nas ruas nos anos
1970 nos Estados Unidos, poderíamos arriscar-nos a dizer que as práticas emergentes
dos coletivos supracitados poderiam ser denominadas como uma nova arte pública de
gênero, já que reúnem práticas que se estruturam a partir de coletivos militantes que
utilizam a arte como forma de expressão do político, de ativistas a artistas-performers,
tendo o feminismo como denominador comum e como elemento norteador do discurso
político, a rua como campo de ação e coletivos formados exclusivamente por mulheres
(ou pelo menos em sua maioria).
Poderíamos arriscar-nos a dizer que a exploração das possibilidades espaciais reali-
zadas por esses coletivos está na origem do movimento feminista; basta lembrar as sufra-
gistas que ocuparam as ruas com protestos, manifestações e marchas, na primeira onda
feminista. Assim como na segunda onda, a partir dos anos 1960, quando a consciência de
que a esfera privada, os domínios da vida doméstica e pessoal estão atravessados pelo po-
lítico, também levou muitas artistas a protestar nas ruas, tornando público sua indignação
e descontentamento com a invisibilidade histórica das demandas femininas.
É interessante observar nesses coletivos, características comuns, tais como propostas
de processos colaborativos e a intervenção no espaço público, seja por meio de perfor-
mances nas ruas, da fixação de cartazes, o uso de grafitti, stencil entre outros materiais.
Além disso, em relação à abordagem do discurso feminista, há uma crítica ao feminismo
ocidental, heterossexual, branco e de classe média, o que qualificam esses coletivos com
demandas e questionamentos característicos do pós-feminismo.
Estes são apenas alguns exemplos de um fenômeno relativamente recente na Amé-
rica Latina: a emergência de coletivos de mulheres feministas que buscam intencional-
mente o cruzamento entre práticas artísticas e discurso político como forma de sensibili-
zar a sociedade a respeito das temáticas de gênero. São reverberações do imaginário do
feminismo radical de outrora, porém com nova roupagem, mais adequada aos contextos
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 49
Referências
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CASTILLO, Rosalva Aída Hernández y NAVAZ, Liliana Suárez (coord.). Descolonizar el Femi-
nismo: Teorías y Prácticas desde los Márgenes. España, Cátedra, 1986
LACY, Suzanne. Mapping the Terrain. New Genre Public Art. Chicago: University of Chicago
Press, 1994.
50 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
This research aims to study the process of creating the performer Wagner
Rossi Campos, whose production is driven by dialogue with the performance
and ritual, healing and increased energy, meditation and ancestry. Thus, we
seek to understand these issues in his work, and how, from their entanglemen-
ts arises something we call the inset. In the words of Mario Perniola: “The point
fecund born as a crack in the middle of two edges, where there are depths to
be investigated”.
Keywords: Performance. Ritual. Creative process.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 51
Introdução
Pensar o limiar tênue entre a performance e o ritual na produção contemporânea. O
“estar-entre” que surge da transversalidade existente dessas duas esferas. O híbrido que
saí do plano da transcendência para o plano da imanência, dilatando a experiência da
percepção do espaço e do tempo referentes ao artista e ao público. Foram alguns dos
motivos que nos levaram a analisar e a discutir essas questões a partir do processo de
criação do performer Wagner Rossi Campos.
O artista nasceu em Belo Horizonte, cidade onde vive e trabalha atualmente. Além
de sua produção, ele é o idealizador do PERPENDICULAR, festival internacional de
performance. Criado em 2009, com a finalidade de intervir em espaços urbanos, ati-
vando redes colaborativas de expressão capazes de ampliar as relações entre artistas,
curadores, pesquisadores, estudantes e público em geral.
Dessa forma, o nosso interesse pela obra de Campos tem sido movido por vários
fatores, como os diálogos que realiza com a performance e o ritual, a cura e a intensifi-
cação de energia, a meditação e a ancestralidade. Ele é um artista-pesquisador que in-
vestiga seu corpo na primeira pessoa, como objeto e sujeito da ação. Um corpo sensível
que faz do ato um acontecimento e abertura à experimentação.
Esta pesquisa, que vem sendo desenvolvida no mestrado do Programa de Pós-Gra-
duação em Artes da Universidade Federal do Ceará; possibilita-nos compreender os
meios como se formam as redes de criação na poética desse artista, e como as articu-
lações entre elas nos oferece um panorama no qual está dissolvida a rígida polaridade
entre sagrado e profano.
Tudo isso dá lugar a hibridismos inéditos e surpreendentes. O que implica na exis-
tência de um campo intermédio, autônomo em relação aos extremos. Zona de inventi-
vidade onde Wagner Rossi Campos reconfigura a performance ritualística, imerso num
sistema inacabado sempre em busca de um algo maior que si. No qual, ele, artista,
reinventa-se a cada nova obra.
Figura 1. Video-performance Quero que cuspam leite em mim, Belo Horizonte, 2009. (Acer-
vo do artista).
Figura 2. Nathalie Mba Bikoro e Wagner Ros- Figura 3. Performance TRINDADE realizada
si Campos durante a performance Noniden- no evento EPIPIDERME em Lisboa/Portu-
tity, no SESC Palladium em Belo Horizonte, gal, 2011. Wagner Rossi entre Nathalie Mba
2011. Foto de Fernando Ancil. Bikoro e Johannes Blokvist. Foto de Patrícia
Corrêa.
Considerações
A partir das reflexões de Cecília Almeida Salles, vimos que a criação como rede pode ser
descrita como um processo contínuo de interconexões instáveis, cuja variabilidade obede-
ce a alguns princípios direcionadores. Essas interfaces envolvem a relação do artista com
seu espaço e seu tempo, questões relativas aos recursos criativos, assim como, as matérias-
-primas e os diferentes modos como se organizam as tramas do pensamento em criação.
Baseado no conceito de Salles, buscamos refletir sobre o percurso do artista Wagner
Rossi Campos, com a finalidade de compreender como o ritual e a performance são
trabalhados por ele, e como, por meio de seus entrelaçamentos, surgem o híbrido, o
entremeio, aquilo que não é nem um e nem outro, mas algo novo.
Embora se encontre numa fase bem inicial, os primeiros contatos com o universo
de Campos nos têm fornecido pistas importantes para a construção de um pensamento.
Permitindo-nos sondar possibilidades, levantar hipóteses e formular novas questões.
A imersão em suas nuances, também, tem provocado uma reflexão a respeito da
desterritorialização da performance pelo improviso e da reterritorialização do ritual e
do mito. Além de pensar o corpo em transformação, que não quer mais ser movido
apenas pela representação, mas que parte em busca de reverter à ontologia, de novos
acontecimentos, de rupturas e abalos estruturais, desfazendo construções complexas e
organizadas. Afinal como diz o próprio artista: “[...] o corpo é imanência vaporosa em
constante construção e caos, a ausência aparente de sentidos, a precariedade das forças
lineares de ações previsíveis, constitui elementos capazes de desestabilizar nossa per-
cepção cognitiva linearizante” (Campos, 2009).
Tudo isso muda, radicalmente, a problemática inicial desenvolvida para esta pes-
quisa, apontando outros caminhos que saem dos terrenos da representação para os
da imanência. “Pensar é experimentar, mas a experimentação é sempre o que se está
56 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
fazendo [...] O que se está fazendo não é o que acaba, mas menos ainda o que começa”
(Deleuze; Guattari, 2010).
Referências
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– Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.
FONSECA, T. M.; MARASCHIN, C.; NASCIMENTO, M. L. do. (Org). Pesquisar na diferença:
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GILLES, Deleuze; GUATTARI, Félix. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 2010.
______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 2011.
MAFFESSOLI, Michel. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-moderna. Rio de Janeiro: Re-
cord, 2001.
SALLES, Cecília Almeida. Redes da criação: construção da obra de arte. 2. ed. São Paulo: Ho-
rizonte, 2008.
______. Redes da Criação. Itaú Cultural, São Paulo, 2008. Disponível em: http://www.redesde-
criacao.org.br/. Acesso em: 2 set. 2013.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 57
André Arçari
ICT/ UFES – [email protected]
Ângela Grando
PPGA/UFES – [email protected]
This communication intends to analyze and discuss into the breeder and po-
lemic dimension of the Hélio Oiticica (1937-1980) Brazilian artist’s work, a re-
lation between artist/proposer, oeuvre and spectator. We have traced specific
works realized in distinct moments of his artistic career, and initially, starting
from his firsts researches with the Bólides realized during the 60’s. In a second
moment, the emphasis in given on the importance of the Parangolés, which
conduct the text for an discussion more accurate about his environmental ex-
periences produced during the 70’s.
Keywords: Hélio Oiticica, Anti-art, Proposer, Spectator.
58 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Cada obra de arte, ainda que produzida em conformidade com uma explícita ou implícita
poética da necessidade, é substancialmente aberta a uma série virtualmente infinita de leituras
possíveis, cada uma das quais leva a obra a reviver, segundo uma perspectiva, um gosto, uma
execução pessoal. (ECO, 1976, p. 64)
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 59
Nesse eixo, Oiticica por seu engajamento diante de uma processualidade tanto vi-
sível quanto tátil e sensorial, avança em sua proposta imersiva. Traçamos um gráfico
(Figura 1) que conduz a discussão através do esquema Autor-Propositor.
No esquema, portanto, o Artista como um Autor que cria Obras transfigura-se para
um Propositor que formula Proposições. Os corpos Fruidores se encontram na interces-
são e bifurcam-se entre Espectadores e/ou Co-Autores. É verdade que é exigido a toma-
da de uma nova postura frente às conjecturas que são realizadas no período pelo artista,
e para que este esquema se efetive é exigido a co-autoria, ou seja, o espectador abarcar
estar/dentro (imersão) do processo, fato que pode acabar não se realizando facilmente
devido uma resistência participativa.
Hoje, é possível notabilizar nas retrospectivas
organizadas sobre trabalhos de Oiticica, a fal-
ta de uma participação imersiva por uma par-
cela do público. Deve-se levar em considera-
ção o fato de que nem todos os espectadores
se sentem guiados pela intensidade da obra ao
ponto de ativá-la, em sua completude, através
da experiência com o corpo. Entretanto, é ver-
dade que muitas vezes somos impedidos de
termos a experiência de usufruir fisicamente
das peças. Fato que ocorreu e ainda tem acon-
tecido em determinadas exibições, por exem-
Figura 1. Esquema Autor-Propositor.
plo, com alguns Bólides, expostos com dize-
res que proíbem “o tocar”. Ademais, os trabalhos acabam sendo vigiados por câmeras de
circuito de interno (CCTV’s), além de contarem com a presença física de seguranças que
inibem o manuseio, afim de proteger a matéria física das obras. Nesses casos, a partici-
pação do público acaba sendo meramente intelectual, através do restrito sentido da vi-
são, uma vez que os espaços expositivos isolam os trabalhos do mundo exterior, e o que
está sendo exposto é apenas um registro da obra.
É plausível que devido à fragilidade de alguns trabalhos produzidos e seu desgaste
temporal, museus e galerias tem enclausurado os originais expondo-os sem a possibili-
dade de manuseio. Outrossim, algumas experiências com proposições abertas para o es-
pectador tem ficado restritas apenas a ações como o caminhar pela galeria, o movimento
dos olhos, a utilização da mente, sem possibilitar a experiência imersiva. Retornamos,
nesses casos, ao espectador quase estático pouco desejado pelo artista. Mesmo em re-
trospectivas recentes sobre Oiticica, nas quais trabalhos como os Parangolés são refor-
mulados para interação pública, reproduzindo não apenas a peça de modo palpável mas
possibilitando seu manuseio, nesse novo tempo que vivemos a ação não traz impacto e
carrega o legado da historicidade.
Sabemos que a mera contemplação da arte veio sendo problematizada desde o iní-
cio dos modernismos. As ideias originais de Oiticica articulam esse legado, seguem
60 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
A primeira tarefa do crítico consiste em reconstituir o complexo jogo dos problemas levanta-
dos numa determinada época e em examinar as diversas respostas que lhes são dadas. Muitas
vezes, a crítica contenta-se em inventariar as preocupações do passado apenas para poder
lamentar a ausência de respostas. Ora, a primeira pergunta em relação às novas abordagens
refere-se, evidentemente, à forma material das obras. Como entender essas produções aparen-
temente inapreensíveis quer sejam processuais ou comportamentais – em todo caso, “estilha-
çadas” segundo os padrões tradicionais -, sem se abrigar na história da arte dos anos 1960?
(Bourriaud, 2009, p.9-10)
Em registro datilografado do artista nota-se que até o ano de 1969 foram criados
sessenta e um Bólides (doc. no. 1505 do Arquivo Hélio Oiticica). Vemos que até 1965
são realizados em torno de trinta peças entre Bólides-caixa e Bólides-vidro e, de 1966
em diante, acrescido da experiência das manifestações ambientais e da conceituação
dos termos apropriação e antiarte. A objetualidade dessas proposições passa a se des-
dobrar em diversas outras instâncias, como Bólide-bacia, Bólide-pedra, Bólide-lata,
Bólide-luz, Bólide-plástico. Em idos de 1967 surgem, relacionados com o suprasenso-
rial, o Bólide-saco e o Bólide-cama, tendo às vezes uma dimensão que abriga o corpo
todo, como no Bólide área. Em 1969, define-se o conceito de crelazer e o surgimento
do Bólide-ninhos, que reúne seis células-ninhos na configuração do Éden, parte da
Whitechapel Experience. Já em 1978, Oiticica planeja o Para-bólide e realiza dois
Contra-Bólides. Para o artista, de fato não bastava apenas ver os objetos, mas viven-
ciá-los em todo o âmbito da experiência.
Hoje, analisando essas pesquisas tanto no tempo quanto no espaço de sua feitura, ou
seja, com uma certa distância temporal, temos compreensões distintas para sua análise.
A abertura dos arquivos de Hélio Oiticica pauta-se como justificativa para o crescente
interesse, qualitativo e quantitativo, na produção de textos, livros, análises e obras que
vertem de seus trabalhos. Pela densa pluralidade de seu processo, cria-se possibilidades
de construir redes sobre aquilo que encontrava-se guardado e hoje se reúne digitalizado
tendo a oportunidade de acesso por todos que tenham interesse através de uma base
online. E apenas virtual, para lembrarmos do incêndio ocorrido em 2009 no bairro Jar-
dim Botânico (Rio de Janeiro) dentro da casa de seu irmão, o arquiteto César Oiticica,
que destruiu uma vasta parcela de sua produção. Por uma força referencial, os escritos
do artista transitam entre ficção, poesia, crítica e teoria da arte. O arquivo de Oiticica,
disponibilizado pelo Projeto Hélio Oiticica 1, é fonte direta em pesquisas tanto sobre sua
obra quanto dos artistas que vivenciaram o período. Nota-se a vasta produção desses
escritos através do site do Projeto Hélio Oiticica desenvolvido sob a coordenação de
Lisette Lagnado pelo Programa HO em parceria com o Instituto Itaú Cultural.
A proposta Parangolé, se constrói adjacente a proposta Bólide e exige que o próprio
corpo do espectador incorpore a obra. Entreatos, as propostas vão coexistir – os Bólides
continuam sendo produzidos - contudo o Parangolé “vai inverter a estrutura-Bólide: as
cores não estão mais contidas, mas soltas, envolvendo o corpo que as faz fulgurar no es-
paço por evoluções e dança.” (FAVARETTO, 1992, p. 104) As faixas e capas coloridas
e tendas de pano se articulam com os movimentos do corpo do espectador e o impulso
corporal se faz essencial para a existência da proposição, visto que as peças não existem
fora do corpo e do contexto da dança. Se nos Bólides a materialidade da peça pode ser
guardada em algum acervo preservando sua finalidade de ser exposta e manuseada, nos
Parangolés a estrutura da obra se faz no ato em si. A proposta se ativa quando a pessoa
se dispõe a interagir, vestir, ao ponto de portar algo não como simples veste, mas como
escultura viva “completando a síntese a que visava Oiticica: ‘proposição vivência’.”
1. http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/home/dsp_home.cfm
62 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
A descoberta do que chamo “Parangolé” marca o ponto crucial e define uma posição espe-
cífica no desenvolvimento teórico de toda a minha experiência da estrutura-côr no espaço,
principalmente no que se refere a uma nova definição do que seja, nessa experiência, o “objeto
plástico”, ou seja, a obra. (OITICICA, 1964, p.1)
Figura 2. Mosquito da Mangueira veste Parangolé P10, capa 6, 1965 e Bólide Vidro 5, 1965.
“Homenagem a Mondrian”, Foto do catálogo O q faço é Música.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 63
Referências
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Martins, 2009.
ECO, Umberto. Obra Aberta: Formas e Indeterminação nas Poéticas Contemporâneas. Tradução:
Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 1976.
FAVARETTO, Celso Fernando. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 1992.
LOEB, Angela Varela . Os Bólides do programa ambiental de Hélio Oiticica. In: Revista ARS, Ano
9, n. 17, p. 55-81, 2011.
OITICICA, Hélio. Aspiro ao Grande Labirinto. Introdução Luciano Figueredo e Mário Pedrosa;
compilação Luciano Figueredo, Lygia Pape, Waly Salomão. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
OITICICA, Hélio. Bases fundamentais para uma definição do “Parangolé”, (nov. 1964), Programa
Hélio Oiticica (PHO), doc. nº. 0035/64.
______________.Lista de Bólides. Arquivo Hélio Oiticica (AHO), doc. nº. 1505/sd.
64 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
This research aims at mapping studies and concepts probation, present in the
work of George Orwell, 1984 (1949) and Michael Foucault, Discipline and Pu-
nish: The Birth of the Prison (1975). Nowadays, all our actions are watched by
something or someone unfamiliar. This monitoring is the context of inspiration
for the transformation scenes dancing.
Keywords: composition, dance, liberty, surveillance, George Orwell, Michael
Foucault.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 65
mas também como uma sociedade mais complexa, até caótica; que é precisamente neste
relativo caos que reside as nossas esperanças de emancipação.
Ao compararmos esta afirmação com a evolução tecnológica em termos de
vigilância podemos perceber que os inquéritos através de depoimentos pessoais deixa-
ram de ser unicamente utilizados, ou seja, a comprovação não se faz depender de um
testemunho presencial e sim de fatos registrados por esses equipamentos tecnológicos,
podendo ou não trazer soluções para as investigações mais complexas.
Um dos fatores que motivam a invasão da privacidade é o medo, depois as nossas
fraquezas e inseguranças. Outra característica que contribui com a espionagem eletrôni-
ca atual é a evolução tecnológica de equipamentos que são fixados em vários locais
públicos, passando a integrar o cotidiano de todos.
Vattimo (1989) concorda que a modernidade é a época em que se torna valor deter-
minante o fato de ser moderno, ou seja, o pensamento moderno não se faz somente à
época do modernismo. Sempre se abriu caminho a um culto cada vez mais intenso pelo
novo e um progressivo processo de emancipação em cada época da história humana.
Refletindo sobre esta concordância surge a questão: sempre fomos vigiados? A liberda-
de está sendo vigiada desde agora com os avanços tecnológicos ou sempre foi observada?
Um exemplo bem simples sobre esta questão de sermos ou não sempre vigiados é
sobre a crença. Se acreditarmos em algo divino, estamos sendo vigiados, logo se deve
satisfação e obediência a uma divindade que sistematizou regras e punições. Prontamen-
te Deus vigia, Deus condena. Caso não obedeça as suas leis será punido. Outro exemplo
é o simples trabalho de uma repartição onde há uma escala hierárquica, onde funcioná-
rios como secretários, assistentes, gerentes, diretores e presidentes, em seus respectivos
cargos, têm suas obrigações e deveres a ser cumpridos, caso contrário serão punidos.
No trabalho existem câmeras que registram os passos de empregados e visitantes.
A gravação começa quando se entra no prédio, passa, quase que obrigatoriamente, pelo
momento em que são abertas e fechadas as portas dos elevadores, até na hora em que,
finalmente, o trabalhador senta em sua mesa e começa a executar suas tarefas.
De qualquer forma, o simples fato de se caminhar pelas ruas da cidade não é mais
um ato isolado, visto que milhares de pessoas podem estar acompanhando, vigiando e
espionando outras. O curioso é que quando acontece um crime ou um acidente, na maio-
ria das vezes, ninguém sabe e nem viu. Seria a lei do silêncio?
Santos (2010) explica que, a ampliação do mundo e a dilatação do presente têm de
começar por um procedimento que ele designa por sociologia das ausências. Trata-se
de uma investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade, ativamente
produzido como não existente, isto é, como uma alternativa não-credível ao que existe.
Rousseau (2008) diz que, toda a sociedade exige necessariamente uma acomodação
mútua e uma temperatura; por conseguinte, quanto mais numerosa, tanto mais enfado-
nha será. A coerção é a companheira inseparável de toda a sociedade, que ainda exige
sacrifícios tão mais difíceis quanto mais significativa for a própria individualidade.
68 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Referências
BONILLA, Noel. A composição coreográfica: estratégias de fabulação. http://idanca.net/lang/
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 69
Anexo
ROTEIRO PRELIMINAR DO ESPETÁCULO “LIBERDADE VIGIADA”
Espetáculo coreográfico com elementos cênicos e projeção.
Por André Duarte Paes.
Duração: 30 minutos em quatro cenas.
Estratégias colaborativas de
trabalho em Santiago Sierra
Ângela Grando
PPGA/UFES – [email protected]
Si le hubiera puesto outro título a una obra como Línea de 250 cm tatuada sobre 6 personas re-
muneradas, por ejemplo, las reacciones que provoco habrían sido muy distintas. Si la hubiera
llamado “La línea de la verdad” y no hubiera hecho referencia a cuánto han cobrado o quiénes
eran las personas tatuadas, esta pieza habria sido considerada una obra poética, incluso melan-
cólica. (Sierra, 2009ª:48)
jovens desocupados de Havana foram contratados por U$ 30, para que, consentissem
em ser tatuados” (Sierra, 2003) a obra insiste em afirmar que os jovens de uma determi-
nada nacionalidade foram remunerados com U$ 30, por uma prestação de serviço que
lhes conferiu uma cicatriz e os ocupou por determinado tempo. A literalidade da relação
entre imagem e texto reforça que tal projeto surja por meio da antítese do “politicamente
correto” (no sentido figurativo do exemplar, ou heroico).
Muito do trabalho de Sierra se desenvolve, desde 1998, no contexto do projeto
“estética remunerada”. Em trabalhos como, 465 personas remuneradas (México D.F.,
1999); Persona remunerada durante una jornada de 360 horas continuas (Nueva York,
2000); 10 personas remuneradas para masturbarse (Havana, Cuba, nov. 2000); 11 per-
sonas remuneradas para aprender una frase (Zinacantán – México, 2001) ou 133 perso-
nas remuneradas para teñir su pelo de rubio (Veneza, 2001), as implicações referentes
a esses projetos convergem com as questões de globalização e exploração, latentes na
constituição dos mercados capitalistas. Os espaços intersubjetivos constituído nesses
projetos estabelecem um agudo compromisso com o social (a partir de uma rede de
valores como a dignidade, abuso, censura, provocação, medo) e trazem ainda a rela-
ção com o conceito de fronteira, do binômio inclusão/exclusão. As pessoas contratadas
colaboram com Sierra para que seus projetos possam se materializar, e na maioria dos
casos são procuradas para realizarem trabalhos absurdos e incongruentes como cortar
ou pintar o cabelo, permanecerem fechados em uma sala, masturbar-se. Haverá alguma
situação em que o ultraje exploratório amenize a automarginalização a qual o “participa-
dor” se expõe? Ou, ao contrário, a relação (supostamente) de exploração em Sierra deve
ser vista unicamente como procedimento de maestria crítica frente a uma sociedade
organizada e burocrática?
Já que muito da intervenção de Sierra trata de projetos que lidam com a “estética
remunerada”, em que os indivíduos contratados passam por situações humilhantes, po-
demos ver esses “colaboradores” como objetos de intervenções que produzem “fratu-
ra”, que levam por meio da arte, a um público mais amplo, determinados “buracos” da
sociedade. Provocador, ele reafirma: “Estamos ante un sistema violento. Mi obra no es
una estrafalaria aportación estética”. Em conversa com Paula Achiaga (2011) argumenta
que “son éstas, las actividades y actitudes que hacen posible el funcionamiento del ca-
pitalismo”. Em outra ocasião diz
Hablando de precios, pienso que los precios es la manera de comprar a la gente, es una manera
de decirle a la gente “ahora tenemos buenos relaciones, por lo tanto paz entre tú y yo”. Y esto
también tiene algo perverso [...], es para decirte “calla” (Sierra, Conversation, 2012)
Isto pode explicar de algum modo que as ações (irritantes e polêmicas) de Santiago
Sierra estão sempre relacionadas com problemas sociais e econômicos, e elas condu-
zem, mediante os processos exploratórios da própria ação do projeto, aos meandros da
economia globalizada e da perda das identidades. É o caso, por exemplo, de oferecer
74 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
um salário irrisório como pagamento às pessoas que participam em seu trabalho. É bom
considerar que os valores que recebe na venda dos registros dos trabalhos (os vídeos e
fotografias não são apenas material documental, mas constituem também a própria obra
que é comercializada) e dos processos comissionados de seus projetos, aportam altos
valores, incompatíveis com os oferecidos aos que lhe prestam serviços. Como tal, Sierra
nos desafia a tratar a “exploração” como motor de um projeto de arte, socialmente cola-
borativo, que espelha problemas do esquema do capialismo e o faz, assumindo, explici-
tamente, o papel do “explorador”. De fato, por sua prática ser baseada em colaboração,
Sierra traz em discussão um campo nebuloso, que envolve aparatos do território da arte
e contexto do capitalismo avançado, e ao invés de os submeter à ética, articula-os em
torno da criação e registro de situações as vezes torturantes, e abusivas.
Em Muro de uma galería arrancado, inclinado a 60 grados del suelo y sostenido por
5 personas (Ilustração1 - México D.F., 2000), a ação realizada por um grupo de cinco
pessoas foca a sustentação, a um angulo de 60 graus do solo, de um muro de tapume.
Sabemos que o muro de tapume foi arrancado do solo da galeria onde se passou a inter-
venção, e que durante quatro horas diárias, por cinco dias, cinco pessoas contratadas vão
atuar tanto na sustenção (4 pessoas) quanto na vigília (1 pessoa) de manter o muro a 60
graus de inclinação do piso. Assim, na intervenção, quatro “colaboradores” sustentam o
muro e um quinto, em constante deslocamento, assegura a precisão da inclinação com
um esquadro. Neste cenário, com teor de teatralidade, no qual o público participa de um
espetáculo pertubardor, o mais supreendente, diz o crítico Cuauhtémoc Medina (Medi-
na, 2000), espectador desta ação, era a autodisciplina dos contratados que insistiam em
manter a parede no ângulo de 60 graus determinado no projeto. Em sua ótica, Sierra
Pensaba que iba a provocar una rebelión en directo. Cuando veo que se mantienen 5 dias y que
quieren su salario, realmente pensé que había subvalorado la capacidad de entrega del ser hu-
mano al mundo del trabajo. [...] Es una obra que a mí me ha dejado perplejo (Iraizoz, 2004:09).
Nesse trabalho, como em grande parte de sua obra, Sierra utiliza instrumentos pró-
prios do sistema (social/político, econômico e cultural) como práticas que ele mesmo
manipula na realização de seu projeto para criticar e denunciar o sistema. O envolvi-
mento do público é previsto, e ao término do trabalho um espectador lê, em voz alta, o
escrito de um volante que Sierra imprimiu:
Esta operação supõe a aplicação de uma atividade laboral não necessária, e inclusive alheia
em seus métodos aos usos laborais mais comuns. O emprego de pessoas em um labor que
seria solucionado com algum tipo de contraforte, atenta contra a lógica do menor esforço
laboral como são os critérios de economia empresarial. Do ponto de vista do trabalhador não
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 75
existe diferença entre a utilidade ou inutilidade de seus esforços, enquanto seu tempo seja
remunerado.1
Figura 1. Santiago Sierra, Muro de una galería arrancado, inclinado a 60 grados del suelo y
sostenido por 5 personas. Fonte: SANTIAGO, 2003, p. 47.
Claire Bishop assinala que a crítica mais séria que surgiu em relação à arte social-
mente colaborativa “incitou uma virada ética na crítica da arte”. Essa questão é baseada
no enfoque essencial que passou a ser dado aos mecanismos utilizados no “modo como
a colaboração é empreendida”. Contudo, segundo a autora, tal ênfase em detrimento
do produto (ou seja, meios sobre fins) “é justificada por sua oposição à predileção do
capitalismo pelo contrário”. E diz: “O ultraje indignado direcionado a Santiago Sierra é
exemplo proeminente dessa tendência” (Bishop, 2004).
De fato, vistas sob essa ótica (meios sobre fins) as propostas de Sierra, em geral,
atuam sobre um campo bastante problemático em especial na relação que provocam ao
eleger comunidades ou grupos específicos de pessoas marginalizadas do sistema comer-
cial e do sistema de produção de bens culturais e, pelos seus projetos, os inserir nesses
sistemas. Os critérios discursivos de seu trabalho se fixam em situações arbitrárias e
1. Esta operación supone la aplicación de una atividad laboral no necesaria, e incluso ajena en
sus métodos a los usos laborales más comunes. El empleo de personas en una labor que seria
solucionada con algún tipo de contrafuerte atenta contra la lógica del menor esfuerzo laboral
como hacia los criterios de economia empresarial. [
] Desde el punto de vista del trabajador
no existe la diferencia entre la utilidad o inutilidad de sus esfuerzos mientras su tiempo sea
remunerado. (MEDINA, 2000 b)
76 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Oh, muy poca ciertamente. Trás años de burlas de La prensa y de dejadez en La enseñanza de
las wartes, apenas tenemos credibilidad. Por otra parte somos productores de objetos de lujo
con frecuentes y comprometedoras relaciones con el estado. La denuncia la trae La gente de
casa puesta, en su cabeza. Soy un artista y no un activista [...] (Achiaga, 2011).
Referências
ACHIAGA, Paula. (2011) “Santiago Sierra”, Madrid: El cultural de El Mundo. [Consult.
13/05/2013] disponível em: http://www.elecultural.es/notícias/Buenos_Dias/
AGAMBEN, Giorgio et al. Política – Politics. Crítica do contemporâneo. Fundação Serralves,
2007, p.39-49.
BISHOP, Claire. “A virada do social e seus desgostos”. In: Concinnitas n º 12, vol 01, ano 09,
Julho 2008. Pg. 145-165. Publicado originalmente em Artforum, em fevereiro de 2006.
BISHOP, Claire.. Antagonism and Relational Aesthetics. October 110, Fall 2004, pp. 51-79. ©Oc-
tober Magazine, Ltd. and Massachusetts Institute of Technology.
BOURRIAUD, Nicolas. Esthétique relationnelle. Dijon: les presses du réel, 2004.
BOURRIAUD, Nicolas. Pós-Produção. Como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São
Paulo: Martins Fontes, 2009.
BOURRIAUD, Nicolas. Radicante: por uma estética da globalização. São Paulo: Martins Fontes,
2011a.
IRAIZOZ, A. (2004) Metrópolis – Santiago Sierra. Madrid: RTVE.(Consult. 01/02/2013). Dis-
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 77
Este artigo apresenta uma reflexão sobre uma proposta de colaboração en-
tre artistas e engenheiros. O grupo é formado por estudantes e professores
de duas diferentes unidades acadêmicas de nossa universidade: o Centro de
Engenharias e o Centro de Artes. O atelier na universidade é um espaço co-
letivo. Ao compartilharmos este espaço, criamos um projeto multidisciplinar
que tem como um dos objetivos desenvolver experiências artísticas através
do contato entre os participantes do grupo e do contato entre a universidade
e a comunidade.
Palavras-chave: arte e engenharia, multidisciplinaridade, dispositivos artísti-
cos interativos, re-uso, sustentabilidade.
Introdução
Arte e ciência sempre andaram juntas. A experiência que será descrita aqui trata de uma
relação entre estes dois campos. Por mais que pareçam distantes, o campo da arte está
intimamente ligado ao da ciência. Comentaremos uma proposta de trabalho coletivo que
fica na intersecção entre a arte e a engenharia. As ações acontecem pela interação entre
professores e estudantes dos cursos de Artes Visuais, Engenharia Eletrônica e Engenha-
ria de Controle e Automação de nossa universidade.
O processo de criação dos artefatos desenvolvidos pelo grupo envolve a colaboração
e a cooperação entre artistas e engenheiros. As ideias surgem justamente a partir da con-
vergência entre os diferentes pontos de vista e dos diálogos que acontecem a partir des-
tas interações. A combinação dos conhecimentos e pontos de vista nem sempre seguem
uma ordem lógica, e o repertório trazido por cada um soma-se ao repertório dos demais
para a produção de cada obra. Conceitos como interdisciplinaridade, multidisciplina-
ridade ou transdisciplinaridade estão presentes nos modos de pensar contemporâneos
(NUNES; OLIVEIRA, 2012) e aqui estamos oportunizando experiências que transitam
nestas interseções.
A formação do grupo ocorreu quase que por acaso. A aproximação entre o professor
do Centro de Engenharia e a professora do Centro de Artes ocorreu pela possibilidade
dele utilizar o atelier de gravura do Centro de Artes para gravar as placas de circuito im-
presso das disciplinas de Engenharia Eletrônica e Engenharia de Controle e Automação.
Os cursos de engenharia são relativamente recentes em nossa universidade e a infraes-
trutura do atelier de gravura poderia servir de laboratório para os estudantes e professo-
res do Centro de Engenharias. Eles poderiam utilizar os equipamentos disponíveis no
atelier de gravura para a implementação de placas de circuito impresso: as bancadas,
as bacias, os tanques, o percloreto de ferro, os computadores com programas gráficos
e impressora laser para criação dos layouts dos circuitos (MEHL, s/d). Em ambos os
casos são utilizadas placas de cobre, tanto nas matrizes de gravura em metal como nas
placas de circuito impresso (PCI).
Ultimamente, devido ao alto custo para a aquisição de placas de cobre para a gra-
vura artística, vínhamos utilizando também as placas de fenolite com camada de cobre
para as experiências de gravação e impressão de matrizes nas disciplinas de Gravura
em Metal no curso de Artes Visuais e Design Gráfico do Centro de Artes. Estas placas
de fenolite com camada de cobre foram originalmente fabricadas para uso nos artefatos
eletrônicos. Entretanto, pelo seu baixo custo e pela facilidade de aquisição elas nos pro-
porcionam ótimas opções como matrizes alternativas para a gravura em metal (Fig. 1).
80 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Figura 1: As placas de fenolite e cobre são utilizadas para (a) matrizes de gravura artística e
para (b) placas de circuito impresso para dispositivos eletrônicos (Todas as imagens deste
artigo são de autoria do grupo)
Dito isso, poderíamos pensar que o espaço do atelier de gravura estaria sendo uti-
lizado por professores e estudantes de dois diferentes Centros de nossa universidade,
sem que isso significasse trabalho coletivo ou colaborativo. É usual compartilharmos os
espaços e salas das unidades de ensino das universidades, no sentido de que cada pro-
fessor trabalha em um determinado espaço ou sala a cada vez. É comum o uso das salas
por mais de um professor, mas não é comum que este uso seja simultâneo. E, menos
comum é compartilhar as salas ao mesmo tempo para realizar um trabalho colaborativo
com professores de diferentes unidades de ensino.
A colaboração começa com a vontade de trabalhar junto. A intenção de produzir
algo em conjunto é possível pela boa-vontade de aceitar as diferenças e acomodar as
divergências. Não é uma tarefa fácil. Não se trata de submeter-se às ideias dos outros,
mas de dialogar e promover o encontro. É no encontro que as trocas acontecem. E os
encontros são favorecidos pelo fato de compartilharmos o mesmo espaço. O espaço
do atelier é o lugar onde estas trocas acontecem e é onde o grupo se reúne quase que
diariamente para trabalhar junto.
Um começa um desenho de uma ideia e o outro continua propondo o detalhamento
do que foi inicialmente esboçado. Um começa a escrita de um texto para uma futura
publicação e o outro segue a ideia e complementa o que está sendo escrito com novos
parágrafos e novas ideias ou com sugestões de reescrita do que já havia sido iniciado.
O mesmo acontece com os dispositivos artísticos. As conversas dão origem aos es-
boços que originam os protótipos. Cada um contribui com aquilo que sabe melhor. Du-
rante a execução dos artefatos e dispositivos, vamos aprimorando o modo de realização
a partir das dificuldades ou lacunas que vão surgindo.
necessária entre estes dois campos para o controle das correntes elétricas e demais ins-
trumentos capazes de corroer o metal sem a utilização de ácidos tradicionais usados na
gravura artística. Para a utilização da eletrólise na gravação das matrizes há também o
necessário domínio das técnicas de gravura para a realização das imagens através destes
procedimentos alternativos (Fig. 2).
A ideia de utilizar eletrólise para a gravura em metal está diretamente ligada à ne-
cessidade de se pensar processos alternativos que sejam menos agressivos ao meio am-
biente e à saúde do artista gravador. Os procedimentos e os materiais tradicionais pre-
cisam ser repensados e estamos buscando alternativas sustentáveis para a continuidade
do meio gráfico.
Figura 2 (a,b): Alternativas não-tóxicas para a gravura em metal: uso de eletrólise para a gra-
vação das matrizes de cobre
Neste sentido, buscamos estas alternativas pelo intercâmbio com outros profissionais
e artistas, sejam dos países vizinhos com Chile ou Argentina, ou do continente europeu,
como os da Dinamarca, Espanha e França. Através da ida de alguns membros do grupo
a estes ateliers de outras partes do mundo, ou da vinda de alguns destes profissionais e
artistas estrangeiros até a nossa universidade, pudemos aprender e compartilhar infor-
mações, procedimentos, novidades e modos alternativos de fazer gravura, que afinal é
um dos interesses que nos move a buscar estes outros modos de realização. Através de
cursos de extensão abertos para a comunidade, estamos estendendo estes conhecimentos
a todos os que se interessarem em compartilhar. Um dos cursos oferecidos à comunidade
foi ministrado por uma professora que veio do Chile, da Universidade de Finis Terrae,
e que utiliza matrizes de gravura em metal feitas com caixinhas de leite e embalagens
do tipo tetra-pac. O curso evidenciou a possibilidade de se trabalhar com materiais que
seriam descartados (Fig. 3).
82 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Figura 3 (a,b): Gravura em metal realizada com matrizes alternativas (embalagens de caixas
de leite usadas)
A ideia de re-uso também aparece como uma ideia significativa para o desenvolvi-
mento de nossos projetos. E igualmente a ideia de low-tech, que na maioria das vezes
é usada para se falar de tecnologia e que aqui pode se referir à tecnologia que utiliza
menos os recursos digitais ou que propõe chamar a atenção para uma tecnologia que
está obsoleta.
Um outro projeto do grupo que atende a comunidade está ligado à escola estadual de
ensino fundamental que ficava no meio do caminho entre o Centro de Artes e o Centro
de Engenharias na nossa cidade. O projeto pretende aproximar a escola de ensino fun-
damental e a universidade através de projetos desenvolvidos pelos estudantes de uma
e outra instituição. Ao pensarmos esta relação possível entre a universidade e a socie-
dade, somos desafiados a tentar responder “através do conhecimento, as demandas e as
carências da sociedade [...]” com o intuito de fazer avançar o modelo social, político e
cultural (PANIZZI, 2006, p.7). Neste sentido, os estudandes universitários trabalham em
conjunto com os estudantes da escola. As experiências mútuas são enriquecedoras para
todos. O projeto inlcuiu a criação de uma rádio escolar no estilo tradicional que entrou
em funcionamento na escola, cuja programação está sendo elaborada pelos alunos e pro-
fessores da escola. Os equipamentos foram projetados e executados pelos estudantes de
engenharia e de artes, visando a instalação da rádio na escola. Os estudantes desenharam
os circuitos e gravaram as placas de circuito impresso, fizeram os furos e soldas para os
componentes eletrônicos e instalaram os equipamentos na escola. Através de reuniões
conjuntas entre os estudanets e professores da universidade e os estudantes e professo-
res da escola estamos construindo este espaço que é ao mesmo tempo lazer, diversão,
entretenimento, conhecimento, comunicação, informação e aprendiagem mútua a todos
os que se dedicam ao projeto (Fig. 4).
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 83
Figura 4 (a,b): Criação dos dispositivos elétricos, acústicos e eletrônicos para a rádio na escola
Figura 5: (a) criação do dispositivo para projetar imagens acoplado à bicicleta; (b) participante
da exposição pedalando a bicicleta preparada com dispositivo de projeção de imagens
84 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Conclusão
Neste artigo, procuramos comentar algumas das estratégias utilizadas pelo nosso gru-
po nas interseções que envolvem artistas e engenheiros e estudantes de artes visuais e
estudantes de engenharia eletrônica de nossa universidade. As ações aconteceram pela
vontade em estar junto e em compartilhar ideias, espaços, convicência, e pela disponi-
bilidade em cooperar e colaborar para a produção de obras interativas. Estes trabalhos
são o resultado deste esforço conjunto, e se devem às misturas entre os conhecimentos
provenientes de cada um dos participantes e de suas experiências em ambas as áreas.
Agradecemos o CNPq e a FAPERGS pelo apoio às pesquisas que deram origem a este
texto.
Referências
MEHL, Ewaldo Luiz de Mattos. Projeto de placas de circuito impresso com o software EAGLE.
Apostila da UFPR, s/d.
NUNES, Sandra Conceição; OLIVEIRA, Sandra Regina Ramalho. “Tudo a ver: questões inter-
disciplinares”. In: ANAIS DO 20º ENCONTRO NACIONAL DA ANPAP. Rio de Janeiro, 2011.
PANIZZI, Wrana. Universidade para que? Porto Alegre: Libreta, 2006.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 85
O livro-objeto na poética
de Hilal Sami Hilal:
a construção de um espaço/tempo
Aparecida Ramaldes
FAPES/PPGA/UFES – [email protected]
José Cirillo
CNPQ/FAPES/PPGA-UFES – [email protected]
Introdução
Neste artigo abordamos alguns aspectos significativos do livro-objeto, peça resultante
do campo da arte que explora características do livro convencional. No primeiro capítu-
lo analisamos a forma, a estrutura e a materialidade do livro impresso herdadas de seu
antecessor, o códex manuscrito.
No segundo capítulo refletimos sobre a circularidade da relação espacial e temporal
presentes em cada página. De sua concepção física até a leitura, a ênfase no espaço/
tempo no livro é reforçada pelo leitor. No caso dos livros-objetos é o espectador quem
interage com a obra. Ele pode manuseá-la, observá-la ou mesmo lê-la, criando novas
formas de interação táteis, visuais e legíveis.
No terceiro capítulo aproximamos a escritura da obra Livro Socorro (2011), de Hilal,
aos poemas concretos Tudo está dito (1974), de Augusto de Campos, e Sólida (1968),
de Wladimir Dias Pino.
Para as considerações finais direcionamos as análises sobre a relação tempo/espaço
inerente ao códex manuscrito ou moderno, para os livros-objetos do artista. Pensando em
seu processo criativo e na diversidade material de sua produção, discutimos a construção,
a estruturação e a relação tempo/espaço dos livros praticados por Hilal Sami Hilal.
a organização de suas páginas. Por si só, cada página também representa o espaço e o
tempo, sobre elas o autor/artista vai inserir sua escrita ou suas imagens.
Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades e
velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo
animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produ-
zido pelas operações que o orietam, o circunstanciam, o temporaliza [...] (CERTEAU,
2007, p.202).
Conforme o filósofo, a variável tempo conjugada com os vetores de direção é que
constitui o espaço como um “lugar praticado”. O texto inscrito pelo autor vai construin-
do o espaço/tempo da página. Podemos pensar a escrita como memória externa, seus
registros são acontecimentos passados. E no caso de se registrar na folha alguma impres-
são ou ideia presente ou futura, como num projeto, essas se transformam imediatamente
em registro de memória - possível de ser acessado em outro tempo ou lugar.
Transferindo para o livro-objeto as reflexões sobre espaço e tempo que acabamos de
colocar, somos levados a pensar que ao escolher o livro como objeto de trabalho o artista
traz essa discussão para o campo da arte. Discussões que se fazem presentes em qual-
quer de suas categorias: pintura, fotografia, escultura, etc., apenas chamamos a atenção
para a ênfase que o livro propicia à circularidade do tema.
Do tempo de concepção ao de confecção passa-se ao tempo do leitor/espectador que
a cada virar de página lida com a duração no espaço escrito, aonde se desenrola outro
acontecimento. O leitor é “[...] o agente que atualiza a obra [...]” (PAIVA, 2010, p.93).
Sua relação com o tempo/espaço do livro se dá na gestualidade da leitura, assim como
na legibilidade do texto, que pode ser cronológico ou não. Primeiramente é a sequência
de páginas que marca o ritmo do gesto da leitura, antes mesmo do conteúdo. Numa
ação íntima podemos acelerar ou desacelerar o tempo, repetindo um gesto secular. E o
enfrentamos tátil e visualmente a cada passar de folha. Gestual que nos posiciona meta-
foricamente entre o passado e o futuro. Ao deitarmos a página virada deixamos para trás
um passado construído, enfrentamos o presente e nos lançamos ao futuro. E o ciclo de
duração recomeça na leitura da página seguinte.
das palavras. Às vezes com destaque para determinadas letras ou sílabas. Socorro, Soco,
(So) corro- numa ideia de só corro, como referência verbal à velocidade.
Agora apresentamos para aproximações o poema Tudo está dito (figura 7), de Au-
gusto de Campos e Sólida (figura 8), de Wladimir Dias-Pino. Esclarecemos aqui que,
sem pretensões de fazer análises literárias dos poemas, nosso interesse é apenas a visua-
lidade do texto. No primeiro poema (Figura 1) observamos um fundo preto e as letras
brancas vazadas. Com tipografia em caixa alta as palavras são estruturadas apoiando-se
umas nas outras. O texto é fragmentado, desconstruído, dificultando uma leitura linear.
Abaixo a transcrição parcial do segundo poema Solida (figura 8) construído a partir
da palavra de seu título. Vemos do lado esquerdo a palavra Sólida se tornar Solidão, para
em seguida se decompor em outras palavras: sol, só, lida. As letras parecem se soltar e
cair, solitárias. À direita, a palavra Sólida, novamente se desfaz em pontos. Lembramos
que todo poeta possui licença poética para sua prática e Wladimir a usou quando retirou
a acentuação gráfica das duas palavras. Esclarecemos também que este poema-objeto
não se reduz a esta imagem, a obra completa combina estratégias interativas e matemá-
tica, criadas a partir dos quadrados latinos. Nesta análise recorremos apenas a esta parte
do conjunto para uma analogia com a obra de Hilal.
ao mesmo tempo são: técnica e efeito; experimento e obra. Experiências que a nosso ver
posiciona o artista como um mestre que rege os elementos. Se para Michel de Certeau:
“o espaço é um lugar praticado”, Hilal o pratica regendo o tempo que corrói o cobre
deixando marcas sobre o espaço/página. Do efeito de corrosão com o ácido o artista
inscreve o texto sobre o cobre.
Para o investigador Silveira, alguns artistas optam por estancar o ‘tempo’ em seus
livros e diz que: “Uma das metáforas mais freqüentes é a do livro imobilizado sem
páginas (ou tempos) para virar. Abdica-se do ritmo, da memória do que foi visto, da
expectativa do que está para se ver, da relação no presente entre momentos passado e
futuro [...]”. (2008. p. 79 e 82). No entanto, a escolha do artista em negar a página não
diminui a ênfase na relação espaço/tempo que o livro carrega. O exemplo de Hilal que
trazemos agora é o Livro Esférico, de 2005 (figura 7). Desprovido de páginas, esse
livro-objeto é um novelo. Foi tramado com o fio de uma escritura de cobre obtida pelo
processo de corrosão com o ácido. Especialmente nesse livro a escritura se fez como
uma fileira de letras na vertical (fig. 3), unidas por finíssimas tiras de cobre num longo
fio que o artista enovelou. O livro redondo foi construído de dentro para fora, modelado
pelas dobraduras dessa escrita flexível. Como o desdobrar de nossa Linguagem, que se
faz em camadas de intertextualidades, o artista foi tecendo seu texto sobrepondo letras,
palavras e nomes.
A superfície dessa esfera é áspera, ugosa e como um véu de palavras desdobra sobre
si encobrindo o globo. Através de seus vazados é possível entrever outras camadas de
escrita. O Livro Esférico construído por Hilal é um o globo - um ‘lugar praticado’ pela
trama da escrita que o constitui.
Referências
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2007.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora da Unesp,
1998.
PAIVA, Ana Paula Mathias de. A aventura do livro experimental. Belo Horizonte: Autêntica Edi-
tora/Edusp, 2010.
SILVEIRA, Paulo. A página violada: da ternura à injuria na construção do livro de artista. Porto
Alegre: Editora UFRSG, 2008.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 91
Carla Borba
UFRGS – [email protected]
O presente artigo reflete sobre como diferentes contextos, nos quais algumas
ações performáticas são realizadas alteram a percepção do trabalho. Propõe
uma discussão sobre o tema a partir de relações transdisciplinares entre artes
visuais e teatro, criando conexões entre o ato de performar e o da representa-
ção teatral. Para isso serão analisadas relações em minha produção artística
a partir das ações performáticas Etroc e Vestido de Pedra, que se constituem
em trabalhos que objetivam a criação de imagens que se alteram dependendo
do contexto no qual elas estão inseridas.
Palavras-chave: performance, imagem, corpo, transdisciplinaridade
This article reflect on different contexts in which some actions performed alter
the perception of the work. Proposes a discussion on the topic from transdis-
ciplinary relationships between visual arts and theater, creating connections
between the act and perform in theatrical representation. For it will be analy-
zed relationships in my artistic production from performing actions Etroc and
Vestido de Pedra which constitute work that aim to create images that change
depending on the context in which they are embedded.
Palavras-chave: performance, image, body, transdisciplinarity.
92 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Introdução/Convite
Imagens povoam minha mente: um corpo disforme, um vestido, uma mulher, uma pe-
dreira; pedras transformando um corpo, agindo sobre ele, resistência, peso e leveza,
equilíbrio e desiquilíbrio; desafios. Interessa-me, sobretudo, um corpo que se faz ima-
gem, que indica a produção de imagens e que rege as orquestrações de meu fazer artísti-
co. Corpo e imagem em uma relação que promove o acúmulo de registros de fragmentos
vividos e de diferentes lugares e temporalidades.
O presente artigo apresenta uma reflexão sobre como o processo de criação artístico
se estabelece em minha produção a partir dos espaços e do contexto em que eles são apre-
sentados. Abordarei a relação entre as ações performáticas Etroc, Vestido de Pedra com o
espetáculo teatral Vão. Ambas as propostas tem por objetivo abordar a relação do corpo e
o espaço do feminino no mundo contemporâneo. Minhas ações performáticas se estrutu-
ram com uma profunda influência das imagens que elas geram como composição visual.
O espetáculo teatral Vão teve como proposta um processo colaborativo de criação
envolvendo artistas do teatro, artes visuais e música, entre os anos de 2010 e 2011 em
Porto Alegre/RS. A proposta inicialmente apresentada pela atriz Carina Dias envolvia a
minha participação nos ensaios/laboratórios como espaço de criação das performances.
A possibilidade de fazer do teatro meu atelier promoveu uma relação muito forte entre
minhas proposições artísticas com imaginário da linguagem teatral, como o palco, a
iluminação, os ensaios, a trilha sonora, os objetos cenográficos, as projeções, as atrizes
e a construção coletiva de um trabalho. A partir desta oportunidade, realizei as perfor-
mances Etroc e Vestido de Pedra.
A montagem teatral Vão tinha como concepção a interdisciplinaridade entre linguagens
artísticas, principalmente entre teatro e artes visuais, mais especificamente com a perfor-
mance. A minha participação no espetáculo propunha, inicialmente, a ação performática
Vestido de Pedra, no entanto, ao me deparar com o texto dramático, que seria dado por
uma das atrizes sugeri que ela fizesse a ação performática que inicialmente eu iria realizar
enquanto falava o trecho do texto Quarteto, do dramaturgo alemão Heiner Müller. No texto,
encontrei referências significativas à imagem que tinha do vestido. Uma mulher que faz de
seu corpo um registro da passagem do tempo, a exposição de um corpo vivo que sofre as
intempéries do desamor, da morte e da ação de tesouras e agulhas. Executar a performance
seria agir conforme o texto falado, seria dar voz à performance, pois – até o momento – eu
não havia imaginado realizar uma performance acompanhada de um texto falado.
A partir do momento em que ofereci à atriz a performance, precisei experimentar
outras possibilidades de ações; sendo assim, os ensaios tornaram-se espaço importan-
te para meu processo criativo. Em lugar de me deslocar para o espaço do atelier, os
encontros possibilitaram experimentações no palco e potencializaram o meu processo
de trabalho. Uma das condições mais latentes desta troca foram os diálogos que esta-
belecíamos enquanto grupo de trabalho e pesquisa em arte. Os ensaios tornaram-se um
laboratório de experimentação, onde eu observava minhas propostas performáticas de
forma lúdica. A caixa preta do teatro para mim se transformou no espaço fotográfico,
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 93
lúdica e espontânea, são produzidas imagens fotográficas as quais irão revelar sobrepor
e desdobrar as possibilidades da ação performática.
A partir dessa consciência, decidi tentar encontrar novos contextos no qual a perfor-
mance Vestido de Pedra pudesse ser realizada, retirando o contexto teatral e incluindo
a paisagem como elemento de ativação da proposta. A primeira imagem que tive da
performance se constituía em uma mulher de vestido longo e pesado entrando no mar.
Uma cena bastante comum no imaginário feminino, uma mulher que se suicida entrando
no mar ou no rio com os bolsos cheios de pedras. Encontramos referências em Hamlet
de Shakespeare, em que a personagem Ofélia morre no rio, afogada pelo peso que com-
portava e, ainda na biografia da escritora Virgínia Woolf, que faz sua entrada derradeira
no rio com pedras nos bolsos de seu casaco.
A imagem do vestido foi se constituindo de forma gradativa em minhas anotações e
pesquisas. Como referência importante, utilizei duas ideias de vestido, a partir dos retra-
tos da rainha Elizabeth I e dos vestidos dos orixás da cultura afro-brasileira. No entanto,
após o processo criativo no contexto teatral a imagem se alterou, e a paisagem ideal para
uma fotografia ou para um vídeo passou a ser uma pedreira. A partir da colaboração da
atriz percebi que a ação corporal de carregar pedras precisava ganhar mais sentido, e
para tanto uma pedreira poderia potencializar a ação e a imagem.
Figura 2. Still do vídeo da autora, Vestido de Pedra, duração 10min, Caçapava do Sul/RS,
2012. (Acervo da autora)
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 97
Dessa forma decidi realizar um vídeo que através do lugar conseguisse transmitir o
peso das pedras, dessa forma encontrei em uma mina de cobre abandonada o cenário
ideal para a realização do trabalho. O vídeo produzido na pedreira tem duração de dez
minutos e uni a ação um ambiente repleto de cores, texturas e formas (Figura 2). Tam-
bém acentuou a força da ação de incluir pedras nos bolsos do vestido, demonstrando a
contraposição entre a imponência do lugar e o gesto intimista de guardar para si frag-
mentos daquele espaço grandioso.
As ações realizadas em diferentes espaços e contextos transforaram a minha per-
cepção sobre o trabalho. A consciência da importância do lugar apenas foi percebida
quando toda a aparelhagem teatral se tornou perceptível ao meu olhar. A imagem, em
meu processo criativo se estabelece como geradora das ações performáticas, da mesma
forma como os diferentes contextos em que elas ganham vida. O corpo que deflagra as
imagens a partir da performance está contido em uma paisagem que também fala através
do corpo. Paisagens e espaços artísticos que denotam a mesma performance, inúmeras
possibilidades de criação e percepção. Dessa forma, os pontos de convergência e diver-
gência da ação na pedreira e no palco do teatro podem ser percebidas pela forma em
que o contexto transforma o olhar do observador e de como as diferentes linguagens
artísticas se potencializam.
Referências
ROSSINI, Elcio Gimenez. Tarefas: Uma estratégia para criação de performances. Tese de dou-
torado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação de Artes
Visuais, Instituto de Artes, 2011.
98 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
This article develops the text presented in the VI Fórum Bienal de Pesquisa
em Arte, Corpos entre artes/ Artes entre corpos, Pará, 2013. Handle questions
provoqued by a pratical proposal took part in the Project DeslocamentoFric-
çãoGalpão/Capanema, that won the price Projéteis Funarte de arte contempo-
rânea, 2012, september, among the 19 e 21th, in the playground of do Palácio
Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro. Explain the construction of a work of
art without a final form, built by the desconstruction of its own parts. In this ha-
ppening, the word ASSUNTO is formed with the dismembering of its own other
part, meant by the word COLOCAR.
Key words: Form, space-time, imagination
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 99
Introdução
A oficina/happening começou no pátio do Palácio Gustavo Capanema com a coloca-
ção de pedras no pátio do Palácio. Em seguida aconteceu uma conversa com os parti-
cipantes, um grupo de 14 pessoas. Após as explicações, iniciou-se a ação pretendida.
Ocupou uma área de cerca de aproximadamente 60 metros quadrados e utilizou cerca
de uma tonelada de pedras de diversos tamanhos e formatos. A instalação resultante
ficou até o dia 21 de setembro, sofrendo pequenas participações, alterações e manten-
do sua incompletude.
Foi apresentada aos participantes como tratando da realização de um trabalho sem
uma forma final, no qual uma parte, no caso, formada pela palavra “ASSUNTO”, se
completa com o desmanche de outra parte, constituída pela palavra “COLOCAR”.
O Happening
Essa proposição foi realizada experimentalmente em 1999 (em um sítio em Nova Fri-
burgo), porém não divulgada ou exibida até 2012, quando foi adaptada para o projeto do
Palácio Gustavo Capanema.
Na proposta inicial cavam-se valas, formando a palavra Assunto. Essas valas-letras
são escavadas de forma a conterem as pedras necessárias para escrever Colocar uma
pedra neste. Após tomadas as medidas e as valas escavadas, as pedras são dispostas de
forma a escrever a frase citada, acima das valas que, por sua vez, “escrevem” a palavra
Assunto. Então os interessados são convidados a participar, escolhendo uma (ou mais)
pedra(s) (desfazendo a frase) e colocando na vala (na palavra assunto). Logo o trabalho
não possui uma forma definitiva no tempo-espaço, e só pode se completar na imagina-
ção das pessoas. Imaginação livre, independente, ligada já ao espaço mental e não ao
experimentado, mas provocada após o primeiro instante da ação, a partir do movimento
dos corpos que removem pedras, desfazendo uma frase, preenchendo palavras.
Esse princípio foi mantido na nova montagem do Palácio Gustavo Capanema. Porém
como esse espaço é tombado pelo Patrimônio Histórico, incluindo os jardins, a proposta
foi adaptada. Então a palavra ASSUNTO foi feita contornada por pedras, em lugar de
escavada e a frase escrita originalmente em pedras foi reduzida à palavra COLOCAR,
escrita, como na montagem inicial, em letras completamente preenchida por pedras.
Aconteceu a partir das 10:00 h do dia 19-09-12, no pátio externo do Palácio Gustavo
Capanema. Na data, depois de reunidos, os convidados receberam do proponente a fo-
tocópia de um desenho, uma explanação sobre a ação pretendida e sobre a reflexão que
levou ao desenvolvimento da proposta: um trabalho que apresenta como em constante
transformação no tempo-espaço.
As pedras então foram dispostas formando as palavras da forma proposta. Na pa-
lavra Assunto cada letra tem cerca de 3m de altura e na palavra Colocar, cerca de 1m,
aproveitando a referência dada pelas pedras do piso do pátio, formado por placas qua-
dradas com 1x1m. Cada palavra foi escrita a 1 metro de distância da outra, como se
estivesse sobre linhas, em analogia com a tradição da escrita ocidental.
100 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Figura 1: Fotografia de Beatriz Pimenta: Colocar uma pedra nesse assunto: montagem adap-
tada para projeto da Funarte. Rio de Janeiro 2012
a ser o tema dessa escultura.”. (KRAUSS, 1998). Como a realização é coletiva (de modo
diferente dos exemplos de Heizer ou Smithson), essa relação será uma durante o Happe-
ning e outra depois. E poderá continuar se alterando indefinidamente.
Essa expansão significa que esta proposta é adequada a espaços exteriores à gale-
ria. A esse respeito Michael Heizer afirma que: “Trabalho do lado de fora porque é o
único lugar onde posso deslocar massas.” (HEIZER, apud FERREIRA, G; COTRIM,
C (org.), 2006). Isso leva a outras implicações. Segundo o artista Jose Resende, nesse
tipo de arte, quando realizada na cidade, “... o repertório necessário para sua leitura
permanece enclausurado pelo domínio de um pequeno grupo que detém sua proprie-
dade.” (RESENDE, apud COHN, S (org.) 2006). Penso que a literalidade explícita
dessa proposta permite certa compreensão. Aqui o trabalho se liga com o pensamento
de outro artista: Joseph Beuys. Para ele todo homem é um artista. Em minha inter-
pretação todo homem tem interesse em arte, que pode vir a ser compartilhado. José
Resende comenta ainda que uma obra “Ao romper com sua condição de mercadoria,
ela não só interfere obrigatoriamente na sua veiculação, como estabelece uma reflexão
crítica sobre seu próprio discurso” (RESENDE, apud COHN, S. (org.) 2006). Essa
proposta procura se aproximar dessa ideia, provocando e deixando em aberto possibi-
lidades de reflexões individuais.
Figura 2: Foto de Helio Branco: Colocar uma pedra nesse assunto: Dois dias após a monta-
gem no Palácio Gustavo Capanema. Rio de janeiro, 2012
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 103
Referências
COHN, Sérgio (org.). Ensaios Fundamentais: artes plásticas. Rio de janeiro; Beco do Azou-
gue,2010.
FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (seleção e comentários). Escritos de artistas. [Tradução de
Pedro Süssekind... et al]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
KRAUSS, Rosalind E. Caminhos da Escultura Moderna. Tradução de Julio Fischer. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
104 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
A brief investigation of how the art market operates in Brazil´s largest (and
perhaps only brazilian city) which can boast a “thriving” art market.
Keywords: art market, private galleries, personal interests, academia, criticism.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 105
Desatrelar a arte de suas manifestações materiais foi a única resposta possível que
artistas cansados de ver qualquer “novidade” imediatamente assimilada pelo mercado,
isso ainda na década de 50, puderam dar: ideias no ar ao invés de objetos nas paredes.
Com isso, entretanto, criaram-se também as condições para que muitos dos saberes pro-
duzidos pela arte fossem, ao longo desses anos, sendo jogados em uma vala comum:
ou se tornam apropriações, “commodities” de outras áreas ou se tornam saberes cujo
sentido original, se perdeu. Uma das características dos bens de consumo é tornar-se a
cada dia mais “cultural”. É fato: a habilidade para compreender ou pensar a arte sem sua
prova material é um desafio permanente diante da imensa capacidade que as sociedades
pós-industriais têm para criar objetos, bens de consumo e fantasias a partir destes. Faz-
se necessário pensar a arte não nos termos de sua natureza estética mas sim a partir de
seu funcionamento como comunicação, ato político e como valor econômico.
A arte é uma ideia e não depende da prova material para sobreviver. Há praticamente
um século se colocarmos como ponto de partida DADA, a arte tornou-se independente
de sua prova material. Aceita esta premissa, a arte existe como um passe de mágica.
Nem precisemos falar aqui da arte das cavernas, cujos sentidos atrelados ao ritual a torna
inacessível a nós senão através de elaboradas ficções. Estas afirmações não somente são
capazes de proporcionar revelações importantes mas, também, modificar nossa relação
com a arte. É assim, por exemplo, que Joseph Beuys, ao descascar batatas com sua fa-
mília, declarou-se o único, o último, ou o maior artista vivo e, é assim que ele também
decretou a morte da arte (tal qual a conhecíamos e concebíamos) quando exigiu uma
resposta do próprio Duchamp (resposta esta que nunca veio).
Isto é, a arte contemporânea adquiriu o status de um passe de mágica e não mais
depende do objeto para manifestar e “provar” suas intenções, mas a longa história que
a atrela ao objeto, aos materiais e à habilidade, continua a operar de maneira a manter
o mercado das artes em funcionamento. Isto é, se “pagar” por uma ideia parece uma
contradição, é no âmago desta contradição que o mercado das artes, precisa sobreviver.
Assim, no que diz respeito ao mercado de artes paulista, algumas de suas instituições e
muitos de seus agentes, os objetos de culto continuam a reinar soberanos. Entretanto,
um passe de mágica não somente libera a arte de seus alicerces materiais, como também
adiciona contornos conceituais ao fomentar a participação na experiência como crucial à
sua definição. A armadilha se dá quando tentamos reverter a mágica e recriar os objetos
que desapareceram pela mágica. Assim, realmente parece que é mesmo mais fácil ven-
der “terrenos no céu”, que “arte.”
É bem verdade que passes de mágica não fazem os objetos desaparecerem, fazem
apenas dúvidas aparecer. Foram passes de mágica que fizeram com que bens de con-
sumo e objetos culturais se misturassem de maneira tão intensa que tormou-se difícil
entender o status particular de cada um. No início deste novo século e com tantos novos
desafios acerca do destino, permanência e sobrevivência da humanidade no planeta sen-
do impostos não apenas frente aos excessos criados por nossas sociedades mas também
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 107
pelos limites físicos encontrados, nos parece que grande parte da mágica da arte tornou-
se óbvia ou irrelevante e seus sentidos, desgastados pela repetição.
Fig.1 Joseph Beuys “Hiermit trete Ich aus der Kunst aus” (com isso abandono a arte), 1985.
108 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Outra grande confusão em relação à arte diz respeito à produção cultural que se
inicia com o desenvolvimento das (então novas) tecnologias de reprodução: até hoje se
lamenta a perda da “aura” (Benjamin) apesar desta não mais fazer o sentido que fazia em
outros tempos. Isto é, em uma época (como sugere a nossa) comandada pela reprodução
digital que subverte a função e a característica do original nem mesmo a arte escapa. Por
exemplo, a literatura (como forma de arte) começou a ser desafiada ainda no século XIX
pelo jornalismo. A arquitetura, pela engenharia; o mesmo acontecendo com tantas ou-
tras áreas até chegarmos à própria ideia da arte. Mantidos artificialmente em separado,
os conhecimentos produzidos pelas esferas cultural e econômica estão, entretanto, em
curso de colisão direta já há algum tempo. A arte parece desafiada a sobreviver tentando
lidar ou tentando fugir destes dilemas. Keith Haring, por exemplo, considerava ‘real’
aquele mundo que se encontra longe do mundo das artes, seja ele então aquele represen-
tado pelo mercado, pelo mundo das revistas ou das coisas. Assim, lição aprendida das
páginas da filosofia de Andy Warhol, para falar sobre esta ‘realidade’, é preciso usar a
linguagem por ela criada.
Ainda que uma das características da arte seja sua imensa capacidade para rein-
ventar-se, como linguagem, como discurso e como produto através de metamorfoses
múltiplas, a partir destes enigmas, jogos e, por fim, verdadeiras armadilhas cuja função
primordial está em (constantemente) nos lembrar da aleatoriedade (simbólica) que exis-
te no centro da existência humana, o universo da arte, entretanto, parece ter perdido, ao
longo dos anos, esta batalha para a indústria que não apenas se encarregou de oferecer
produtos culturais de maneira mais eficiente, como também produzir bem estar e conhe-
cimento em escala suficientemente abrangente.
Continuamente desafiada por estes novos campos do conhecimento (que se desen-
volveram muito como conseqüência da escala industrial), mas que produzem resultados
semelhantes (antes exclusivos do saber artístico), a arte se torna apenas mais uma engre-
nagem daquela máquina que produz a “liberdade” necessária para a roda da economia
neo-liberal desenvolver-se em consenso (Chomsky, 1988).
Mesmo que grande parte do valor atribuído à arte seja, essencialmente, simbólico,
ainda assim é preciso levar algo para casa que nos lembre e justifique a transação. A
existência da ideia só é suficiente diante da prova material. Como se a prova material
da existência de uma ideia, este pilar da cultura ocidental, cuja expressão também se
encontra neste texto, no tipo de evento que o faz circular e na sua forma final, em papel
ou eletrônica, simplesmente não pudesse ser relevada. Assim, tanto a arte efêmera quan-
to as performances voláteis cuja materialidade, pressupõem-se, escapa às tecnologias
(fotografia, vídeo) hoje disponíveis e sancionadas para sua “captura” e documentação,
se tornam materialmente menos voláteis e sujeitas aos mesmos mecanismos de outras
tantas obras “menos” radicais.
Isto é, desde que a mágica foi parcialmente revelada, os próprios artistas, críticos e
instituições se encarregaram de criar e de manter em operação um complexo e hermético
sistema de proteção deste segredo: existe uma engrenagem que põe em movimento uma
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 109
tanto pode ser dar porque algumas das pessoas envolvidas estabelecem relações de ami-
zade com outras, como, uma vez que essa máquina tenha sido posta em movimento, pela
“qualidade” de um trabalho. Normalmente qualidade e repercussão não andam juntas
mas sim dependem uma da outra.
O que proponho a seguir é um possível mapa de categorização dos tipos de Galerias
Paulistas deliberadamente simples. Todo tipo de categorização ou mapa tenta estabilizar
algo que não pode ser estabilizado e, ao fim, revela muito mais da própria estrutura ou
das referências de quem o escreve. Há que observar que mais interessantes são os limites
entre as categorias sugeridas, aquele espaço não mapeado, marcado pelo ínterim, do que
a tipologia em si: isto é, o resultado mais interessante se dá ao observarmos o que pode
acontecer no espaço entre o A e o B da classificação proposta que na classificação em
si própria. Os limites entre estas galerias é sempre cinza e, portanto, fluído. O possível
interesse nessa tipologia se dá apenas de modo a tentar organizar algo que se encontra
sempre no limite da emergência e que, portanto, se altera, substancial e rapidamente,
sem qualquer aviso prévio.
Galerias AA
Arte é um negócio de e para ricos. Assim, ter participação ou estar próximo destes,
pode caracterizar este perfil de galeria. Afinal, este é o consumidor que, a rigor, pode
comprar “merda enlatada”. O tipo de arte apresentada, em sua maior parte, é irrelevante.
Obras que em uma outra galeria seriam, decorativas ou meramente ruins, se tornam
sucesso de crítica e são “vistas como relevantes” uma vez que ocupem os espaços de
uma galeria “AA”.
Estas galerias preferem apresentar arte contemporânea ou arte moderna, sempre os
clássicos do cânone artístico ou do cânone em formação. Curiosamente, estas galerias
fazem parte do ciclo que produz o próprio cânone. Por excelência, possuem lastro eco-
nômico próprio ou, por relação, possuem demanda, isto é compradores certos. Sobre-
vivem anos a fio, quase sempre fazendo a primeira página do “caderno de cultura”.
Por pertencerem a este público restrito, ou por suas relações com ele, podem aparentar
sobreviver sem vender muito e serem “experimentais” (nas dimensões, nos materiais),
isto é, gastarem muito na produção de seus artistas. Neste caso, são claros exemplos de
lavagem de dinheiro, uma vez que poucos têm exatamente a ideia dos preços e os leilões
servem meramente para disfarçá-los. A demanda e os contatos fazem com que expo-
nham o que bem quiserem. Aqui tanto faz: apresentam os clássicos ou criam fetiches
visuais, dá no mesmo. Possuem apoios e patrocínios variados, muitos deles conseguidos
através de leis de incentivo fiscal, leia-se contatos próximos com indivíduos cujo poder
em aprovar ou não tais projetos, é real.
Galerias AB
Logicamente, se encontram um pouco abaixo das galerias AA, seja pelo experi-
mentalismo, pela falta dos contatos ($$) mais apropriados no meio, idealismo ou
112 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
inexperiência de seus fundadores e artistas. Estão sempre se movendo. Vez que outra,
acabam ingressando no mercado AA, ou sendo rebaixadas, quando uma crise financeira
as afeta de maneira contínua. É claro, a pressão feita pelo próprio mercado das galerias
AA que, primariamente, teme perder mesmo parte de seu espaço privilegiado, leia-se,
ter seus tolos enganados por outros negociantes, também as afeta. Existe um lastro eco-
nômico que lhes permite funcionar com conforto e esta é sua marca maior. São especia-
listas em criar os tais fetiches visuais caros e bem acabados. Sua importância é relativa
e podem trabalhar às escuras, isto é, permanecer anos em atividade sem aparecer, uma
vez fechadas suas portas para o público.
Galerias BB
Representam “o meio do caminho”. Podem ou não possuir lastro econômico, isto é,
dependerão das vendas para se manterem no jogo.
Vendem arte contemporânea e, ocasionalmente, um que outro clássico do cânone
vai parar em suas mãos. Precisam e se esforçam para subir de categoria, mas lhes falta
os recursos, os contatos e o pessoal adequado, uma vez que não podem pagar por todos
estes. Dependem, primariamente, do conhecimento adquirido através de uma paixão
genuína (?) pelas artes. Leia-se: não podem pagar para ingressar no mundo das galerias
AA, mas apostam alto no seu ingresso no mesmo. Sofrem pressão clara de todos os
lados. Aqui, poderia-se dizer, o jogo se torna quase uma armadilha da paixão e, muitas
vezes, representantes destas galerias caem nas armadilhas preparadas pelos mais antigos
ou mais espertos no jogo. Talvez sejam as galerias mais autênticas ainda possíveis neste
mercado, uma vez que são marcadas também pela ingenuidade. O lastro econômico que
lhes falta é substituído por investimentos em acessorias de imprensa que funcionam
a base de “jabá”. Tanto a falta de demanda quanto de contatos certos, dependendo da
situação do mercado e das vendas, podem não só facilmente rebaixá-las mas fazê-las,
simplesmente, desaparecer. Tornam-se C, isto é, são forçadas a desaparecer por comple-
to e seu catálogo de artistas, que muitas vezes inclui boas surpresas, acaba incorporado
pelas galerias AA. Suas mostras e exposições carecem da estrutura que muitas vezes se
torna a atração principal de uma mostra em galeria AA, AB. Isto é, por falta de recursos,
muitas exposições sequer decolam. Some-se a isso uma mistura de artistas e tendências
e temos aí uma situação limite mas, igualmente, constrangedora.
Galerias BC
São lojas. Ainda que organizadas em torno de obras de arte, não fazem questão de
esconder que estão ali para vender. E nem mesmo se preocupam em não demonstrar
isso deixando claro que suas obras devem ir “para as paredes”, combinar com o sofá.
Seus preços e pagamentos podem ser divididos (aliás não uma característica, mas uma
prática comum entre todas as categorias aqui alinhadas). Exibem edições e têm preços
módicos em formatos adequados às paredes das habitações da cidade. O gosto aqui,
mais que duvidoso, torna-se uma questão de personalidade. Trabalham principalmente
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 113
com arte decorativa. Estas galerias podem incluir alguns artistas importantes mas que
já não mais participam do “circuito” das artes em instituições e museus e viram seus
preços despencar por terem se tornado clichês visuais, saído de moda ou terem perdido
seus afetos no mercado. Sobrevivência aqui é o lema. Morrem e nascem com a mesma
velocidade das outras, mas são condicionadas ao proprietário, muitas vezes ele mesmo
um pequeno “colecionador”.
Galerias CC
É preciso falar? Representam o denominador comum mais baixo em relação à arte e
sua compreensão. Fazem-se valer de clichês e estereótipos culturais de maneira ampla.
Sequer poderiam ser classificadas como galerias e, por isso mesmo, são descaradamente
oportunistas. É raríssimo ver algum artista cuja obra possa se tornar importante começar
por elas. É raríssimo perceber qualquer elemento relevante em suas manifestações. Aqui
incluem-se, portanto em uma classificação guarda-chuva, uma interminável sequência
de “arte” cujo sentido já se desfez ao longo da história.
menos algum de seus aspectos) continuam a suscitar adoração e a comandar altos pre-
ços. Uma das razões para isso é a própria história: estes foram os primeiros movimentos
a materializar certas relações cognitivas que, por assim dizer, dificilmente poderiam ser
expressas de outra maneira. Uma segunda razão pode ser a repetição: a familiaridade
com estas estéticas as torna imensamente palatáveis e populares para um grande número
de pessoas. Assim, grande parte das obras que hoje circulam pelo mercado são apenas
reapropriações de períodos que já se tornaram “historicamente importantes”. Por exem-
plo, os Surrealistas, que incorporaram e tornaram palatável Freud e o inconsciente, rea-
parecem via de regra como base para inúmeras novas obras numa sucessão interminável
de combinações. Enquanto na pintura, traços Impressionistas, Expressionistas ou mes-
mo Cubistas, reaparecem como praga que não se consegue extinguir. Um dos problemas
está justo ao admitirmos que tanto estes conhecimentos, quanto a experiência associada
a eles, diante das novas teorias, conceitos e ciência, pouco ainda tem a dizer ou revelar
sobre o mundo. Isto é, o problema está em manter-se intacta nossa relação com estas
obras para além do patamar histórico através da repetição exaustiva de seus preceitos.
O problema, em minha opinião, acontece quando clichês culturais são preservados de
maneira a negar espaço. Isto é, ao serem assimilados pela cultura, estes movimentos e
suas obras tomam o lugar de outros saberes que estéticas ainda em desenvolvimento não
conseguiram estabilizar nem comunicar (de modo eficaz). Assim, uma dezena de lin-
guagens já assimiladas e popularizadas continuam a circular pelo tecido social tornando,
senão acessível pelo menos mais visível, a repetição de experiências cuja vitalidade,
essencialmente, já cessou de existir. O mercado se alimenta desta situação. Em resumo,
diante do excesso e da repetição, a arte deixa de desempenhar um de seus papéis primor-
diais e sofre uma morte parcial então.
Por fim, apenas posso desejar que, em um futuro próximo, possamos ver obras de
arte de cunho político e público (de outra natureza que a das manifestações que tomaram
conta do país) se tornarem menos uma utopia ou ficção e mais uma presença física em
nosso país. E, assim, revelo meus reais interesses e adesões.
Referências
BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70, 2010.
-----. O Sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2009.
BASKHARAN, Lakshimi. Designs of the times: using key movements and styles for contemporary
design. Mies: Rotovision, 2005.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar. São Paulo: Cia das Letras, 2005.
BORER, Alain. Joseph Beuys. São Paulo: Cosac & Naif, 2001.
CHOMSKY, Noam and Edward S.Herman. (1988) Manufacturing consent: the political economy
of the mass media. New York: Pantheon, 2002.
CRITICAL ART ENSEMBLE. Distúrbio Eletrônico. São Paulo: Conrad Livros, 2001.
DEBORD, Guy. (1967) A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto, 1985.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 115
Site-specificity e autoria em
temporal de Stephan Doitschinoff
Carolina Cuquetto
PPGA/UFES – [email protected]
The proposal of this article is to reflect the specificities of the site in the project
the Stephan Doitschinoff’s project Temporal, conducted between 2005 and
2008 in the communities of Lençóis surroundings, Bahia. Doitschinoff produ-
ced a site-specific work in which he set a dialogue between his previous re-
search on the sacred and profane symbolic universes and the folk heritage of
these communities. Temporal is analyzed under the concept of site-oriented
art defined by Miwon Kwon, and under the notions of functional site and place-
-specific art defined by James Meyer and Lucy Lippard, respectively.
Keywords: contemporary art, site-specificity, Stephan Doitschinoff, Temporal
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 117
Introdução
É possível perceber uma transformação na ideia de apego ao lugar desde as práticas
minimalistas, que propuseram a experimentação do site via “uma coisa após a outra”
(JUDD, 2006), até às propostas que pulverizaram a noção de site como lugar físico e o
articularam de maneira discursiva.
Miown Kwon identifica três paradigmas na arte pública norte-americana a
partir da década de 1960: arte em locais públicos, arte como locais públicos e arte de
interesse público. O primeiro se caracteriza pela inserção de obras nos espaços públicos
que não são necessariamente projetadas para aqueles locais. O segundo define-se por
projetos que se confundem com a arquitetura e o mobiliário urbanos. E o terceiro para-
digma, arte de interesse público se caracteriza por trabalhos que envolvem de alguma
maneira as comunidades locais, como fonte de informação, grupo de conceitualização
ou produção das obras. Neste último caso, as trocas com o outro tornam-se possíveis e
novas formas de identidades locais podem ser reinventadas e colocadas em transforma-
ção. (KWON, 1997)
Temporal
O que distingue uma cultura local de outros quaisquer não são mais sentimentos de clausura,
afastamento ou origem, mas as formas específicas pelas quais uma comunidade se posiciona
nesse contexto de interconexão e estabelece relações como o outro. (ANJOS, 2005)
“(...) a definição operante de site foi transformada de localidade física – enraizada, fixa, real –
em vetor discursivo – desenraizado, fluido, virtual.” (KWON, 1997)
Novos espaços foram tomados por propostas artísticas e o site (como local) se am-
pliou para fora da galeria. Diferente dos sites fenomenológico e crítico-institucional,
em trabalhos site-oriented o site “não é definido como pré-condição, mas é gerado pelo
trabalho (frequentemente como conteúdo”) e então comprovado mediante sua conver-
gência com uma forma discursiva existente.” O espaço autônomo e idealista do mo-
dernismo foi substituído por questionamentos que antes não pertenciam ao universo
de assuntos possíveis nas práticas artísticas. Essa expansão para as questões sociais e
culturais possibilitaram “impacto e significado maiores” que naqueles projetos em que o
público não fazia parte (KWON, 1997). Doistchnoff buscou no folclore e na religiosida-
de de Lençóis, histórias que motivaram e constituíram Temporal. Assim, o artista possi-
bilitou uma reafirmação da identidade local através da inserção da experiência daquela
comunidade em suas obras.
Esse processo “entre sites” é denominado por James Meyer como functional-site.
O site funcional é um processo, no qual o artista articula intertextualmente sites de na-
turezas diferentes, que não são apresentados simultaneamente, mas como fragmentos.
O site funcional está ligado à articulação de processos pelo artista e não é obrigado a
atrelar-se aos sites físicos que movimenta. “É um site informacional, um palimpsesto de
texto, fotografias e gravações de vídeo, lugares físicos, e coisas (...)” (MEYER, 2000).
Além de possibilitar a construção de outros projetos, Temporal é também o título do
120 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Conclusão
Em práticas site-oriented, o valor da obra não está no resultado final como objeto de
arte, mas na construção de uma interação entre o artista e a comunidade. “Essa interação
é considerada como parte integral da obra de arte e igual em significado (e pode até ser
pensada como constituinte da obra)” (KWON, 1997). O artista deve ser “tonar um com
a comunidade”
E esse “tornar-se um”, não importa o quão temporário, é presumido como pré-requisito para
que o artista possa ser capaz de falar com, para e como membro representativo legítimo da co-
munidade. Simultaneamente, a característica dessa “união” funciona como critério para julgar
a autenticidade artística e adequação ética do trabalho de arte. (KWON, 1997)
Ainda, segundo Miwon Kwon, uma vez que a originalidade não está mais na obra
como objeto autônomo, é possível “deslocar” a originalidade para o local no qual a obra
está inserida. Local, obra e artista legitimam-se e conferem autenticidade mutuamente.
Referências
ANJOS, Moacir dos. Local/global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 80p.
DOITSCHINOFF, Stephan. Temporal: The Art of Stephan Doitschinoff (aka Calma). 2008. Dis-
ponível em: http://vimeo.com/2301531. Acesso em: 05 out. 2013.
JUDD, Donald. Objetos específicos. In: FERREIRA, Glória; COLTRIM, Cecília (org.).
Escritos de Artistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. p.96-106
KWON, Miwon. Um lugar após o outro: anotações sobre site-specificity. 1997
LIPPARD, Lucy R.. The lure of the local: senses of place in a multicentered society. 1. ed. New
York: The New Press, 1997. 328p.
MEYER, James. The Functional Site; or, The Transformation of Site Specificity. In: SUDER-
BURG, Erika (ed.). Space, Site, Intervention: situating installation art. Minneapolis: Univer-
sity of Minnesota Press, 2000. p.23-37
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 121
A criação como processo relacional mostra que os elementos aparentemente dispersos estão
interligados; já a ação transformadora envolve o modo como um elemento inferido é atado ao
outro. (...) A inovação da interferência se encontra na singularidade da transformação: algumas
dessas combinações são inusitadas”. (SALLES, 2006).
O artista ao relacionar-se com a obra relaciona o mundo que o impulsiona à sua cria-
ção, e nesta interface transformações significativas são construídas no espaço do inusitado.
Os artistas estão no abismo da criação, podem tanto encontrar estratégias de voo quanto caí-
rem no fim do fim antes de iniciarem o movimento criador. O Caminho traçado, e consequen-
temente o destino [parcialmente] final (a obra entregue ao público) é fruto de questionamentos
diários e da predisposição de dizer sim à obra. (Ferreira, 2009)
Este mover, distribuído em fases, é revelado como uma rede de possibilidades que
é tecida constantemente, a obra necessita de transpiração, mas principalmente de respi-
ração, para que os elementos em contágio sejam transformados em espécie de “coisa”
única, intrinsecamente vinculados: “Nada acontece sem a devida permissão”. Com este
entendimento existe a compreensão que os rasgos, hiatos, vãos e fissuras também são
materiais de criação. Os longos 29 meses de “amadurecimento”/”gestação” foram deser-
to de possibilidades e escolhas de caminhos.
católica, é válido ressaltar que o texto foi escrito em plena inquisição e que Dante Ali-
ghieri foi expulso, por questões políticas, de sua terra natal e levado a viver em exílio até
o fim dos seus dias. Contudo, esperava que com “A Divina Comédia” obtivesse o perdão
dos seus patrícios e voltasse para a terra natal, mas seu objetivo nunca foi alcançado.
Estes dados iniciais deram grande impulsão para a construção do espetáculo (com-
preensão dos espaços e vida e obra de D. Aliguieri). Os artistas apropriaram-se do ela-
borado “sistema dantesco” como ponto e contraponto. No espetáculo há a presença do
inferno, purgatório e paraíso, há o uso da ideia de ascendência nos/dos movimentos para
a configuração da cena e foram construídas cenicamente as personagens: Dante, Virgílio
e Beatriz. Contudo, ao invés do uso dos espaços como caminhos em sucessão, a encena-
ção optou em trabalhar os espaços dantescos em simultaneidade.
A imagem propulsora para a criação, agitada pela simultaneidade dos espaços de
atuação, foi a vida do homem comum, movida por sonhos, medos e custos/preços pelas
escolhas de caminho para a configuração da existência. Ao invés da ideia de verticalida-
de e da vida pós-morte, proposta na obra dantesca, houve a opção de considerar que o
inferno, o paraíso e o purgatório são aqui, no presente, em todos os instantes, a depender
apenas das escolhas feitas no cotidiano da vida. Com este campo de imbricação, foram
construídas as três feras que estraçalham Dante quando perguntam: “Quanto vale um
vale de acesso? Quanto você está disposto a pagar?”
A vida de Dante também foi matéria para a criação: a dramaturgia é tecida por uma
cena de julgamento, na qual estão presentes: A Condessa, A Juíza e O Bobo, estas perso-
nagens transforma-se nas feras, inspiradas nas figuras dantescas da Onça, Leão e Loba,
alegorias para a fraude, bestialidade e incontinência. A corte que julga também é com-
posta pelas personagens A Cortesã e O Poeta que se transformam respectivamente em
Beatriz e Virgílio. Dante é colocado na posição de O Condenado.
Esta metamorfose de personagens é complexa, os atores percorrem todos os espaços
como indivíduos que escolhem portas de acesso. Toda a dramaturgia é tecida na sala de
ensaio através de várias versões; há o uso de textos de Dante (em verso, prosa, português
e italiano), Bíblicos (em latim, português e alemão), colagem de fragmentos de texto de
Rainer-Maria Rilke, trechos colhidos nas improvisações e criações da dramaturga em
colaboração com o elenco.
que aceitam o desafio de andar na corda bamba do processo criativo. E o que são os
processos sem esta incerteza geratriz?
Breve pausa
O estudo sobre criação de dramaturgia e encenação na sala de ensaio, pela Cia de Teatro
Engenharia Cênica, empreendido pelos seus artistas-pesquisadores, ganha novo lócus
de investigação com o espetáculo “O Evanescente Caminho”. As considerações aqui le-
vantadas sobre a natureza deste processo de criação são iniciais. Através da análise mais
apurada dos vestígios do espetáculo – cadernos de bordo, fotografias, vídeos e versões
da dramaturgia – haverá uma ampliação da discussão sobre o fenômeno da criação em
teatro via improvisação, e instalação e desenvolvimento da imagem propulsora. O Gru-
po de Pesquisa LaCrirCe nasce na perspectiva de promover, incitar, discutir, possibilitar,
gerar espetáculos inseridos na proposta de poética brevemente apresentada.
Referências
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução e notas Italo Eugenio Maruo. São Paulo: Edi-
tora 34, 1998.
FERREIRA, C. M. A. Uma morfologia cênica em rastros reverberantes. In: CONGRESSO IN-
TERNACIONAL DA APCG, 9., 2008, Vitória. Processo de Criação e Interações: a crítica
genética em debate nas artes, literatura e ensino. Belo Horizonte : C/Arte, 2008. p. 95-100.
______. Cena e jogo: o imaginário na carne. 2009. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) –
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia.
SALLES, Cecília. Gesto inacabado: processo de criação. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2004.
_______. Redes de criação: construção da obra de arte. São Paulo: Editora Horizonte
2006.
Sites
www.engenhariacenica.com.br
http://dgp.cnpq.br/diretorioc/fontes/detalhegrupo.jsp?grupo=8800803W3D7HOX
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 127
The present paper is about how to aprropiate a old book as point of poetic
discussion and poetic territory. How to look at the old book as culture object
and dream possible poetics in contemporary art. How to realize the visual
elements inside the book as seeds bubbling looking for a way to pullulate and
to create many connections between the old and the new ? The alpharabius
“As applicações da photgraphia. D.G.H. Niewenglovski (1911), is the aim to
formulate possible poetics and to construction a work and a exhibition project.
Keywords: Alpharabius- artistic book – poetic territory
128 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
constituintes do alfarrábio aqui proposto como território poético, geram cada um seu
corpo particular e singular que comporão a exposição.
O inventário de 366 palavras escritas ortograficamente com duplo F(efe) será ma-
nuscrito com pincel e tinta nanquim em um rolo de papel manteiga sem cortes de 1,0 x
20 m de dimensão, o qual, depois de pronto, ficará desenrolado e apresentado no espaço
expositivo disponível para ser manipulado pelos visitantes. As silhuetas das três figuras
humanas serão redimensionadas em escala natural e impressas em vinil adesivo preto,
mantendo o negro da silhueta, e serão transferidas para paredes e piso do espaço exposi-
tivo. Será feita também uma animação a partir das três silhuetas. As ilustrações das má-
quinas e aparatos de captura de imagem contidas no livro serão escaneadas, impressas
em formato 50 x 70 cm em papel fotográfico e encadernadas como um livro-objeto que
estará disponível para a manipulação. Fotografias produzidas a partir do livro-alfarrábio
como referente estarão dispostas em vários formatosm compondo a exposição. A função
da fotografia aqui proposta vai além do registro fotográfico, ela entra como upgrade
de um olhar poético sobre o próprio alfarrábio. “O principal projeto da fotografia dos
artistas não é reproduzir o visível, mas tornar visível alguma coisa do mundo, alguma
coisa que não é, necessariamente, da ordem do visível” (Rouille, 2009). A proposta das
imagens fotográficas é um olhar redimensionado, recortado, ampliado, em que se deseja
tragar o espectador através da fruição e instigar a percepção daquilo que ele olha e como
olha. Todos esses elementos aqui descritos têm por objetivo articular, instaurar, atualizar
e tecer referências, construindo novas significações e produzindo novas formas de pen-
sar e poetizar um objeto obsoleto socialmente, porém atualizado como território poético.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 131
Referências
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MACHADO, Arlindo. Fim do livro? Palestra feita pelo autor em 12 de maio de 1994 no IEA.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010340141994000200013&script=s-
ci_arttext. Acesso em: 28 set. 2013.
NIEWENGLOWSKI, D. Gaston H. As applicações da photographia. Rio de Janeiro: Livraria
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ROUILLÉ, André. A fotografia dos artistas. In: A fotografia – entre documento e arte contemporâ-
nea. São Paulo: Editora Senac, 2009.
SILVEIRA, Paulo. A definição do livro-objeto. In: Edith Derdyk (Org.). Entre ser um e ser mil: o
livro-objeto e suas poéticas. São Paulo: Editora Senac, 2013.
132 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Ciliani Celante
PMV/Vitoria – [email protected]
José Cirillo
CNPQ/FAPES/PPGA-UFES – [email protected]
Introdução
Por monumento, no sentido mais antigo e verdadeiramente original do termo, entende-se uma
obra criada pela mão do homem e edificada com o objetivo preciso de conservar sempre
presente e viva na consciência das gerações futuras a lembrança de um ato ou de um destino
(RIEGL, 1984 p. 35).
Frente a esta configuração de fruição não mais passiva, o monumento público in-
tencional1 que possui como autor a própria sociedade – nos referimos aqui à autoria
da cultura e não do sujeito - normalmente passou a refletir em sua forma e atuação
durante todo século XX as características peculiares da memória coletiva que o gera
e sustenta e que também por sua vez se apropria cada vez mais de sua autonomia em
aniquilar ou promover significados aos monumentos, deslocar e redefinir valores, como
também substituir seu motivo memorialistico original por outro a partir da mesma obra,
re-apropriando-a e re-significando-a. Assim, se o inicio do século XX trazia a projeção
de incompatibilidade a ser sentida no âmbito da experiência funcional entre os possíveis
cursos destinados a escultura e o monumento comemorativo intencional, podemos notar
que há, no final do mesmo período, a possibilidade de nova calibragem entre os eixos
de atuação dessas categorias que acabaram por se cumprimentar novamente a partir da
segunda metade do século XX, pois a constatada tendência comportamental dos monu-
mentos juntamente com a compreensão da escultura em seu atual sentido de percepção
e ampliado campo de possibilidades de fruição, como explanado por Rosaling Krauss,
acaba por colocar novamente a escultura como suporte compatível com as atuais formas
de atuação do monumento público contemporâneo, não sendo este porém como no pas-
sado, o único suporte para a existência do monumento memorialístico.
Consideradas estas questões, nos colocamos em um foco mais específico, ou em um
campo de investigação físico mais delimitado. Partindo de algumas obras existentes na
cidade de Vitória, ES/Brasil, selecionamos uma que em especial contem em si alguns
exemplos de como tem se dado hoje a participação do monumento na cidade do sec.
XXI. Podemos citar a existência do Monumento ao Índio (FIGURA 1), estatuária natu-
ralista em bronze, popularmente conhecida como Araribóia, situado atualmente na ave-
nida Beira-Mar, centro da cidade, que idealizado fisicamente pelo escultor Carlo Crepaz,
na década de 1960; tinha por objetivo representar de forma geral o índio brasileiro,
porém não muito tempo depois foi re-significado quando a sociedade o batizou com o
nome de “Araribóia” em homenagem a um citado índio guerreiro de terras capixaba e
norte-fluminense.
1. MONUMENTO INTENCIONAL: Designação usada por Alois Riegl em O Culto Moderno dos
Monumentos, para se referir a monumentos erigidos com o fim específico e original de come-
morar, relembrar um fato ou acontecimento às gerações futuras. Difere-se de monumento não
intencional referindo-o como sendo aquele em que a sociedade assim o elevou posteriormente
devido a alguma importância adquirida para a sociedade.
136 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Não nos prendendo sobre os pormenores que envolvem a origem deste personagem,
citado por alguns autores como que vindo do Rio de Janeiro e chegado em terras capixabas
por meados de 1500, sobre este mesmo monumento é comum a pergunta: onde o índio está
agora? O motivo se dá por suas conhecidas mudanças de localização geográfica ao longo
dos anos desde sua inauguração, sendo quatro deslocamentos de endereço registradamente
comprovados, porém acompanhados de alguns outros comentados pela população. Na
primeira mudança de local, enquanto guardava-se nos depósitos da prefeitura da cidade
à espera de definição de para onde ser levado, o apelo de recolocação do monumento foi
através de uma marcha carnavalesca intitulada “Bota o índio no lugar”, que dizia:
O monumento foi recolocado após o apelo popular, para sair outras tantas vezes e no-
vamente retornar à Beira-Mar. Porém nem os restauros asseguram a peça uma localização
definitiva: um pouco mais distante ou um pouco mais próximo do mar (como no ultimo
restauro em 2012), o monumento nunca voltou exatamente ao local de onde saíra, somam-
se consideráveis variações dentro do próprio endereço. Atualmente é possível visitá-lo na
mesma avenida Beira-Mar, porém ao lado do clube do Forte São João (Figura 2).
movem paralelas a sua contemporaneidade como, a busca pela livre interatividade, agre-
gação de novos significados junto ao original, releituras e interferências visuais. Em 2009
o 8 salão Bienal do Mar premiou uma obra coletiva intitulada “O Retorno do Araribóia”,
projeto de intervenção urbana itinerante em que uma réplica do monumento circulou por
vários pontos da capital capixaba. O índio então andou mais algumas vezes (Figura 3).
Figura 3- Intervenção para 8a edição do Salão do Mar. Fotos de Michele Cristine Marques e
Giovanna Maria Pereira Faustini
O monumento não depende apenas da investidura do ser e da instauração da arte. Ele depende
em ultima instancia, sempre, da outorga dos humanos.sem essa outorga, sem essa ratificação,
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 139
por mais excelente que a obra seja, essa obra é para ninguém, se ninguém lhe infundir, se
ninguém lhe associar sua carga emotiva ou a sua vivencia intencional (ABREU, 2003 p 11).
Referências
ABREU Jose Guilherme de. A Problemática do Monumento Moderno. In Boletim Interativo da
Associação Portuguesa dos Historiadores da arte, n. 1. Dezembro 2003. Disponível em www.
apha.pt/boletim.
CRARY, Jonathan. A visão que se desprende: Manet e o observador atento no fim do século XIX.
In: Charney e Schwartz. O cinema
e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
KRAUSS. A escultura no campo ampliado. Revista Gávea, Rio de Janeiro, n. 1, dezembro de
1984.
NORA, Pierre. “Entre Memória e História: a problemática dos lugares”, In: Projeto História. São
Paulo: PUC, n. 10, pp. 07-28, dezembro de 1993.
RIEGL, Alois. Le Culte moderne des monuments. Son essence ET as gênese. Tradução Daniel
wieczorek, Paris, Seuiul, 1984.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 141
Pixação, apropriação e
transgressão:
reflexões sobre uma
prática artístico-fotográfica
Cíntia Corona
UFES – [email protected]
Gisele Ribeiro
PPGA/ UFES
This research pretends to discuss the relationship between pixação, the city,
the arts and photography, from the perspective of an investigation based both
in theory and in practice, aiming at the construction of a work of art in photo-
graphy. In constant tension with the city, the possibility of framing the practice
as an artistic activity has shown to be increasingly more complex, since its
institutionalization puts in risk its transgressive and critic character.
Keywords: pixação, city, art, apropriation, photography.
142 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Introdução
A pixação está presente nos muros, na fachada dos prédios, portas de aço, viadutos,
postes, pontes, ruínas, monumentos e tantas outras superfícies urbanas que funcionam
como espaços onde as tensões exercidas pelas relações de poder de uma sociedade de-
terminada são confrontadas.
A intensa presença da pixação nos muros das cidades não passa despercebida, afecta
a todos, tanto autores como transeuntes. Segundo Deleuze e Guattari em O que é a filo-
sofia: “Afecto vem a ser o que conserva em si as sensações de uma obra de arte, ou outro
objeto ou referência” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 216). A prática da pixação,
porém, enfrenta obstáculos relacionados à apropriação e ressignificação dos espaços
da cidade. A reprovação no âmbito jurídico está relacionada à defesa da propriedade
privada e do patrimônio público. Desde a sua emergência a pixação é representada so-
cialmente como sujeira, poluição visual, como contravenção. No entanto, pesquisadores
de diferentes áreas já consideram tal prática uma expressão do campo das artes visuais,
em que o pixador cria uma linguagem para intervir na cidade. Como explora Jean Bau-
drillard, em seu artigo Kool Killer ou a insurreição pelos signos:
Os grafites provêm da categoria do território. Eles territorializam o espaço urbano
decodificado – esta rua, aquele muro, tal quarteirão assume vida através deles, tornando-
se território coletivo. E eles não se circunscrevem ao gueto, eles exportam o gueto para
todas as artérias da cidade, eles invadem a cidade branca e revelam que ela é o verda-
deiro gueto do mundo ocidental. Com eles, é o gueto linguístico que irrompe na cidade,
como se fosse uma revolta de signos (BAUDRILLARD, 1996, p. 319).
Este trabalho justifica-se, dessa forma, por tentar refletir sobre a pixação, bem como
sobre suas relações com a prática fotográfica que a captura e desloca, inserindo-a em
outros sistemas de circulação de imagens.
convidados a expor seu grafite em museus e galerias ao redor do mundo, como por
exemplo, Keith Haring e Jean Basquiat.
Considerando a pluralidade através das quais aparecem as pixações no ambiente
urbano brasileiro, Arthur Lara na dissertação Grafite arte urbana em movimento (1996),
classificou três tipos de pixação encontrados na década de 1970: 1) relacionadas à Di-
tadura Militar: “Abaixo a ditadura”; 2) relacionadas com frases subjetivas e poesias; 3)
pixações semelhantes à publicidade: “Cão fila Km 26”.
Teria sido durante a década de 1990, conforme Sérgio Franco (2005), que a pixação
teria se consolidado nas metrópoles brasileiras, assumindo-se como elemento definidor
na formação de alguns sujeitos, considerados então artistas, possuidores de uma técnica
específica para realizarem suas intervenções.
Mais recentemente, em 2008, a pixação imposta a três instituições – Centro Univer-
sitário Belas Artes de São Paulo, Galeria Choque Cultural e Bienal de São Paulo – le-
vantou um debate recorrente, segundo o qual a pixação poderia ser arte; por outro lado,
levantou também importantes questionamentos sobre uma possível institucionalização
e domesticação do caráter transgressor da pixação.
Apesar dessa possível neutralização, acentuada pelas apropriações fotográficas e
videográficas contemporâneas, do ponto de vista do uso da linguagem e da questão da
autoria, a pixação ainda parece resistir em tensão.
Figura 01 e 02. À esquerda: Cíntia Corona, Fotografia Senna, Vitória ES, 2013. À direita: Cíntia
Corona, Fotografia BSP, Vitória ES, 2013.
Figura 3. Cíntia Corona, Fotografia Kombi, Figura 4. Cíntia Corona, Fotografia Os Gê-
Vitória ES, 2013. meos, Vitória ES, 2013.
Figura 5. Cíntia Corona, Fotografia Ratos, Figura 6. Cíntia Corona, Fotografia Caos, Vi-
Vitória ES, 2013. tória ES, 2013.
Referências
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146 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
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UFRJ, 2008.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 147
No interior da casa:
interpenetração de morada e
trabalho como práxis da produção
autorrepresentacional
Cláudia França
PPGA/UFU – [email protected]
Considerações iniciais
Entre 1967 e 1968, Richard Serra escreveu uma lista com 84 verbos de ação em seu
caderno de notas. A lista chamou a atenção de Rosalind Krauss (1998: 331), que ob-
servou: “Em vez de um inventário de formas, Serra registra uma relação de atitudes
comportamentais”. As formas não podem ser antecipadas em nossa percepção, sequer
imaginadas: são as ações que as determinam. A lista também não no assegura informa-
ções importantes ao pensamento visual de um escultor: escala, peso, quantidade de ma-
terial a ser usado. As múltiplas ações são potencializadas como respostas técnicas, mas
principalmente se imprimem como significantes na visualidade resultante. Há um forte
apelo ao devir, como se as ações inaugurassem um modo de formar, não a partir de uma
matéria específica, mas partindo da ação mesma de trabalhar. Trata-se, antes de tudo, e
mais concretamente, de uma lista de afazeres.
Essa lista foi base para a elaboração de uma similar à do artista, em 1996: registro
simples de ações envolvidas em meus trabalhos tridimensionais realizados até então.
Soldar, pintar, oxidar, trançar, costurar, entortar, enrolar, enfiar, colar, pregar, amarrar,
emparelhar, sobrepor, encostar, relacionar, repetir, esperar, substituir, interagir, socializar
- era um conjunto de 20 verbos heterogêneos entre si, indicando a transitoriedade dos pro-
cessos envolvidos. Naquela lista havia um olhar retrospectivo para a produção tridimen-
sional. Difere da lista de Richard Serra, pois primeiro houve a produção e depois a detec-
ção de ações. Isso permitiu pensá-las não como determinantes formais, mas como temas
importantes no percurso poético: instabilidade, efemeridade, peso, relação dinâmica com
o espaço. As últimas ações elencadas indicavam também o rumo conceitual do trabalho.
Pude detectar também procedimentos que singularizavam o fazer; um modo ain-
da incipiente de pensá-lo a partir de ações sobre materiais e formas. Uma antecipação
do que viria a conhecer depois: a dimensão dos conceitos operatórios como modo de
análise de um trabalho em processo. Segundo Rey (2002: 126), o sentido do trabalho
toma forma por meio de suas operações fundamentais. E as operações, mais do que pro-
cedimentos técnicos, “são operações do espírito, entendido, aqui, num sentido amplo:
viabilização de idéias, concretizações do pensamento”. A autora continua: “Cada pro-
cedimento instaurador da obra implica a operacionalização de um conceito. Por isso,
os nomeamos conceitos operatórios. (...) [Eles] permitem operar, isto é, realizar a obra
tanto no nível prático quanto no teórico”.
Atualmente, a lista pessoal de verbos ressurge, em outro contexto. Trata-se de uma
seleção de 60 verbos, como ações executadas na organização do espaço doméstico. No
entanto, tal lista diferencia-se da anterior porque consubstancia a realização de um traba-
lho instalacional, em que a palavra é utilizada como imagem. Essa lista não é percebida
enquanto puro devir das formas. Diferentemente da lista de Serra, ela não se reporta a
tempos realizados ou a fazer; são ações do presente.
A lista revela também a crescente abertura da poética para outros campos do sa-
ber em que a palavra e seu significado, bem como o ato de inventariar, são práticas
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 149
no século XX, o crescimento populacional urbano é tal que a casa passa a ser vista de
outro modo: espaço de proteção ao olhar do outro.
Luce Giard também está atenta a esse aspecto, escrevendo que o espaço doméstico
é onde alguém “se sente em paz”, fazendo-se o possível para a permanência em seu
interior e resguardando os limites entre o(s) morador (es) e o mundo. Mas é no espaço
doméstico que se faz um amplo espectro de ações que evidenciam o esforço de manu-
tenção da privacidade do indivíduo e ao mesmo tempo revelam o esforço de se construir
a socialização com outros grupos, num jogo de identidades pessoais e a coletividade.
Nesse jogo, a casa torna-se um universo de descobertas e transformações:
Só uma língua morta não sofre modificações, só a ausência de qualquer residente
respeita a ordem imóvel das coisas. A vida entretém e desloca, ela usa, quebra e refaz,
ela cria novas configurações de seres e objetos, através das práticas cotidianas dos vivos,
sempre semelhantes e diferentes. O espaço privado é aquela cidade ideal onde todos os
passantes teriam rostos de amados, onde as ruas são familiares e seguras, onde a arqui-
tetura interna pode ser modificada à vontade. (Giard, 1996: 207)
A casa é um sítio singular com o qual se pode pensar em uma “sociologia” dos ob-
jetos, pois é povoada de coleções; é onde também realizamos diversos gestos e ações,
repetitiva e minuciosamente, vivenciando identidades possíveis. Para Abraham Moles,
nessa “sociologia” percebe-se a submissão dos objetos ao efeito espaço-tempo, deter-
minando sua classificação em bens de consumo e bens duráveis, estes sobremaneira
interessantes, pois neles se percebe a presença do sujeito. Nos objetos de durabilidade
maior, o “tempo aparece aí como uma dimensão suplementar da variância das formas,
introduzindo pelo grau de desgaste, uma memória que os objetos trazem à percepção
do mundo” (Moles, 1981: 26).
O que se coloca aqui é como o universo da casa pode ser abordado por um artista, a
partir de seu fazer artístico. Como pensar sobre produções que têm (n)a casa o seu fun-
damento? Não seria interessante aproximar modos investigativos outros sobre o lugar,
os sujeitos e objetos que ele abriga?
A reflexão sobre o processo de criação faz aproximar o específico do campo prático
da arte a dimensões práticas de outras áreas do conhecimento, de modo a revelar, mesmo
na superfície do processo, a sua complexidade de instauração. E o liame que conecta tais
dimensões inicialmente distantes é um conceito operatório ativado pelo fazer artístico.
O método etnográfico, próprio da antropologia, é um desses pontos de contato. A
etnografia é a interação do pesquisador com sujeitos e situações de outro ambiente, em
que se deseja vivenciar, de perto e por certo tempo, determinados fatos e modos de vida,
distintos daqueles do próprio pesquisador. Nesse convívio, o pesquisador coleta dados
de interesse à sua pesquisa em observação direta das situações, em entrevistas, registros
visuais e sonoros, anotações pessoais.
É possível pensar em um morador da casa fazendo a etnografia de seu próprio habi-
tat? Como o artista realizaria, instado como um etnógrafo amador, o inventário e taxono-
mia de seus pertences? E como ele cambiaria o fazer etnográfico para o fazer artístico?
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 151
Produções caseiras
Considero aqui o recorte temporal de pouco mais de uma década (de 2000 a 2013) para
conectar trabalhos a partir da casa – espaço de interpenetração de morada e atelier.
As produções em exame são objetos e instalações de forte apelo gráfico. Para além da
representação do sujeito por um corpo, alude-se a um lugar para a acomodação dessa
representação, bem como a referência aos seus hábitos e costumes particulares. É nesse
momento que o espaço doméstico adquire outro estatuto, a partir de uma consciência
maior do que a “casa” significa em meu processo de criação.
Há 22 anos vivo em constantes mudanças de/em domicílio. Mudanças de endere-
ço, viagens constantes, hóspede em espaços adaptados, manutenção de duas casas em
regiões diferentes por duas vezes em um longo período de tempo, outros em minha
casa enquanto estou fora, reformas estruturais, anfitriã de viajantes de curtas e longas
temporadas. Considero-me relativamente nômade. Tais movimentações implicam um
sem-número de ações no trato da organização da casa que podem passar despercebidas
pelo(s) outro(s). Isto porque há um grau de invisibilidade dessas ações por conta mesmo
de suas recorrências, em que o “fazer” compete com o “desfazer”; os objetos, as ações e
os sujeitos se entrelaçam em um campo entrópico, ou mesmo atópico.
Percebo que a questão da casa passa a atravessar a produção pessoal, trazendo no-
vos dados e fazendo ressignificar a produção autorrepresentacional pela autorreferência.
Assim, valho-me frequentemente de objetos de uso doméstico: louças, roupas e móveis
constituem modos de alusão a minha singularidade como sujeito. A notável quantifi-
cação dos objetos alude, por sua vez, ao trabalho que se realiza no interior da casa. A
própria casa é usada como suporte físico para a realização de ensaios fotográficos, sendo
ela mesma outro modo de autorreferência, percebida indicialmente como fundo da cena
fotográfica. Posso pensar a casa como 1) lugar desejado, 2) nos objetos domésticos que
participam como matrizes objetuais em objetos e instalações, 3) e por ações próprias da
152 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Considerações finais
A não especialização do espaço de atelier no interior da casa pode ser um traço cultural
de épocas em que se vinculava a condição da mulher ao trabalho doméstico. Embora tal
situação nas sociedades contemporâneas difira bastantemente desse quadro, a vincula-
ção da mulher ao espaço interior doméstico permanece no senso comum. Este aspecto
e a condição biológica da mulher são direcionamentos possíveis para se pensar a ma-
nutenção desta situação pessoal: a de minha fixação à casa pela ausência de um espaço
específico para o atelier. Esse lugar tornou-se espaço cumulativo das funções de morada,
segurança e privacidade, guarda de objetos e atelier, onde repousam trabalhos em latên-
cia ao lado de fragmentos de trabalhos já realizados.
Essa mistura de “territórios”, por sua vez, contaminou o fazer artístico com diversas
operações tipicamente cotidianas feitas com as coisas: empilhar, dobrar, lavar, passar e
outra digna de atenção: colecionar, e suas ações correlatas – classificar e arquivar. De
certo modo, organizamos nossos ambientes domésticos como arquivos, cujo critério
de organização ocorre a partir da especialização de um aposento ou móvel. Também
construímos listas, relações de objetos, produzindo dados, enfim, que se assemelham
relativamente aos procedimentos metodológicos de uma pesquisa etnográfica.
A partir dessas considerações é que percebo um novo modo de produzir, conectando
a casa à palavra escrita, talvez por ser ali também que eu escreva, desenhe, leia e prepare
aulas. O trabalho da lista parece abrir a quarta vertente de percepção da casa, além dos
outros modos (uso de objetos, a construção de uma casa simbólica no espaço expositivo,
a performatividade de ações domésticas). A quarta vertente é a listagem de ações pos-
síveis na organização do espaço doméstico e a apresentação dessa lista como trabalho
autônomo no espaço expositivo.
154 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
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Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 155
A demarcação de territórios
de criação entre
compositor e intérprete
Situação fundiária
A interpretação musical – conjunto de decisões e correlações sobre elementos como
tempo, timbre, dinâmica e articulação em uma performance – constitui no principal sítio
criativo arrendado ao instrumentista reconhecido pela música erudita Ocidental. As ex-
ceções – ocorrências onde o intérprete-instrumentista é também compositor – advém em
sua maioria da interseção com a música popular e experimental. Para que o instrumentis-
ta tenha acesso ao material que, após processamento, resultará no seu produto artístico, é
necessário que haja contato por meio de registro da obra composta. Tradicionalmente, a
música erudita privilegia o acesso mediado pela notação ortocrônica, ou partitura, muito
embora existam outros tipos de notação, ou mesmo o acesso à obra por performances e
seus registros – em áudio ou vídeo. Por outro lado, as influências de diretrizes teóricas
com ênfase na fidelidade não apenas ao texto musical do compositor, mas também ao
seu contexto artístico, ainda se fazem presentes em suas estruturas disciplinares.
Do outro lado da cerca, o compositor anseia pela concretização física de sua obra
em uma performance, mesmo que este empreendimento não seja imprescindível para
a declaração de sua existência. Excetuando os casos onde o próprio compositor atua
como intérprete-instrumentista de sua obra ou quando esta obra é performada por meio
eletrônico, haverá a dependência de uma figura estranha para que haja a sonorização.
Portanto, ao final do processo, após a constituição do material, da forma e de seu regis-
tro escritural por parte do compositor, a interferência do intérprete – por vezes alheio e
despreocupado com o universo sonoro em questão – poderá deturpar a intenção inicial
do outro ao promover e enfatizar elementos não previstos, ou ignorando relações caras
à natureza da obra.
É neste contexto que, ao buscar a delimitação de competências e direitos artísticos,
na demarcação de seus respectivos terrenos “próprios” de criação, que tanto compositor
quanto intérprete-instrumentista conduzirão a prática musical à uma divisão de trabalho
hiper-específica, onde a especialidade e o métier determinarão o horizonte do possível.
Se há casos onde a complementaridade entre competências artísticas resultou em par-
cerias antológicas – como são os casos de Andrés Segovia e Manuel Ponce, e de Julian
Bream e William Walton, no universo violonístico – o desejo pelo estabelecimento de
controle total e emancipação autoral, levou “um” ao extermínio do “outro”.
Das Propriedades
A escritura foi incorporada ao processo composicional como componente representante
da obra em um processo que poderia ser desenhado da função como ferramenta de au-
xílio à memória na sua versão rudimentária dos neumas, passando a registro de obra no
Renascimento, esboço da obra no período Barroco, aproximação com a obra no Classi-
cismo, e, finalmente, a fotografia da própria obra no período Romântico (BUJIC, 1993;
BUTT, 2002). Com os modernistas, o detalhamento escritural se torna necessário para
que não aconteçam desvios interpretativos. Entretanto, o desejo de controle serial do
ataque e da dinâmica não são obtidos com os instrumentistas convencionais e é neste
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 157
citado como pioneiro por Lawson e Stowell (2004), que temos diretrizes metodológicas
que balizariam as abordagens dos intérpretes do dia em relação ao repertório antigo. O
conteúdo destas publicações não está apenas carregado de dados relativos ao contexto
performático de determinada época, mas trazia principalmente a ratificação do intérprete
como meio, como artífice, ferramenta a serviço de uma verdade histórica.
Nas últimas três décadas, o debate em torno do conceito de autenticidade tem ocu-
pado a cena da performance de música antiga e constituiu-se em aspecto definidor da
qualidade do performer – em seu álbum dedicado à obra para alaúde de J. S. Bach,
Sharon Isbin (2003) justifica sua abordagem ao violão como autêntica pelo fato de que
o próprio compositor costumava realizar transcrições para instrumentos diferentes. De
acordo com John Butt (2003), Stephen Davies (2003), o intérprete seria considerado
autêntico não por ser original ou inovador frente ao repertório utilizado, mas por sua
capacidade de emular contextos sonoros e intenções de um outro indivíduo, o composi-
tor. Para que isto seja possível, o intérprete deve se portar como um “arqueólogo” que,
por meio de pesquisas musicológicas, tentaria montar um quebra-cabeça da sonoridade
original. Uma importante contraposição a esta premissa vem de Authenticities, de Peter
Kivy (1995), onde são apresentados três tipos de fidelização ligados ao compositor, e
um tipo que seria próprio do intérprete. Na prática, Kivy parece procurar espaço para le-
gitimação das interpretações não ortodoxas, muitas vezes consideradas “incorretas” por
não se adequarem aos termos colocados por pesquisas musicológicas ou pelas diretrizes
do compositor, admitindo a produção desviante de uma gama de artistas que não encon-
tram resguardo teórico na ideia tradicional de fidelidade. Por outro lado, em resposta
às críticas de que a noção de autenticidade não faria mais parte do universo da prática
musical, Kivy (2007) argumenta que o termo foi substituído por eufemismos como “per-
formance historicamente informada”. Este episódio demonstra não apenas que o desejo
por autenticidade está ainda presente, apesar de camuflado, mas que a ortodoxia musical
não se autodeclara.
É com Richard Taruskin (1995), entretanto, em seu Text and Act, que a adoção do
conceito de autenticidade toma sua mais qualificada crítica, associando-a ao medo por
arriscar um posicionamento crítico, ou realmente “autêntico”. Este desejo de impar-
cialidade leva à criação de leis que diminuirão seus objetos de estudo, o que garantirá
o domínio e a autoridade dos resultados obtidos. O resultado é o artista intérprete-ins-
trumentista escondido atrás de uma racionalização musicológica que será efetivada por
dois aspectos típicos do modernismo: historicismo e autonomia da obra de arte.
Outro sinal do estreitamento do universo de atuação do intérprete-instrumentista pode
ser visualizado nas demandas por habilidades em leitura de partitura e respostas instru-
mentais rápidas – especialmente aos músicos ligados à orquestras – , bem como na grada-
tiva dedicação a apenas um instrumento durante o século XIX, em detrimento da prática
de grupos instrumentais, fenômenos indicados por António Vasconselos (2002). Ambos
seriam demonstrações da profissionalização do ofício instrumental e, em nossa análise,
ao lado do aspecto teórico, resultantes da gênese da Performance como disciplina.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 159
Horizonte pequeno
É incontestável a legitimidade artística da produção resultante de ambos os territórios.
Particularmente do lado do performer, a ideia de interpretação promoveu uma multipli-
cidade de abordagens no repertório novo e antigo, o que permitiu a atomização tanto dos
procedimentos quanto das discussões teóricas. Entretanto, se olharmos por outro viés,
tomando como parâmetro não mais as regras definidas dentro destas práticas, tornadas
agora disciplinas, mas escopos teóricos abrangentes, iremos notar o anacronismo da di-
visão do trabalho artístico, onde o direito à criação é dado apenas ao especialista. Assim,
admitindo a proposição pós-moderna – onde o congelamento das práticas é rejeitado,
em prol das invenções de novos jogos (NASCIMENTO, 2011), da livre utilização de
pressupostos e ferramentas, do uso não linear dos dados históricos, do não compromisso
com a verdade ou com o sabido, em direção à criação selvagem e não preconcebida – é
que vinculamos a tensão autoral entre compositor e intérprete ao que Jacques Ranciére
(2009a, 2009b) chamou de modernitarismo – as práticas modernistas tornadas estáticas
– tutelado por questões normativas e, portanto, sob o regime representativo de arte.
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160 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Um autor-diretor e um lugar:
a questão da autoria no
documentário
Daniela Zanetti
DCS/UFES – [email protected]
Introdução
Este trabalho identifica recorrências estilísticas na obra de um diretor cinematográfico
que, sob a perspectiva do lugar de enunciação e de um campo de produção audiovisual
emergente, vincula-se às periferias urbanas brasileiras. O objetivo é examinar quais as-
pectos dos filmes estudados trazem marcas autorais que de alguma forma se vinculam ao
lugar que é, ao mesmo tempo, tema e cenário das narrativas, e lugar de origem do diretor
e dos personagens retratados. Parte-se do pressuposto de que, desde o início dos anos
2000, houve um processo de formação de novos cineastas responsáveis pela constru-
ção imagética das periferias “por elas mesmas”, resultando numa produção audiovisual
mais heterogênea e talvez mais “emancipada” no que se refere ao desenvolvimento de
concepções autorais de realização audiovisual. Trata-se de uma produção audiovisual
que se vincula às periferias não somente no que se refere aos temas em foco, mas essen-
cialmente à instância da produção, com realizadores (diretores, roteiristas, produtores)
que se declaram como originários das periferias, pertencentes a este contexto social
urbano. Ainda que se possa considerar o chamado “cinemas das periferias” uma espécie
de “marca”, ou uma denominação vaga que talvez pouco informe sobre as obras sob
esta categorização, toma-se como pressuposto o fato de haver realizadores que de algum
modo se reconhecem como sendo das periferias, ao mesmo tempo que toma-se a perife-
ria como elemento aglutinador e, portanto, central na narrativa.
Para tanto, são analisados dois filmes de um mesmo diretor: Rap, o Canto da Cei-
lândia (2005, 15’) e A cidade é uma só? (2011, 52’), de Adirley Queirós, morador de
Ceilândia, cidade-satélite de Brasília. São filmes que ilustram bem a heterogeneidade
de um cinema que, sob a perspectiva temática e de inserção no campo cinematográfico,
dedica-se a uma reflexão sobre indivíduos e a cidade a partir de suas comunidades. São
filmes premiados e que caracterizam uma nova safra de produções brasileiras, exibidas
em festivais e salas de cinema para um público mais amplo e diversificado, alcançando
visibilidade para além dos circuitos restritos dos chamados festivais de “cinema das pe-
riferias”. Ao mesmo, tempo deslocam seu foco para a violência simbólica do espaço ur-
bano, utilizando imagens dos moradores e dos espaços das periferias para narrar episó-
dios do cotidiano e re-contar fatos históricos relativos à própria configuração da cidade.
Autoria no documentário
A questão da autoria em documentários pressupõe a observação de possíveis homo-
geneidades estilísticas, de marcas identificáveis nas obras de um mesmo diretor, bem
como a recorrência de aspectos relativos ao conteúdo e à forma, esta vinculada à lin-
guagem cinematográfica (Serafim, 2009). Mesmo tendo como pressuposto que um filme
é resultado de um trabalho de equipe, de um coletivo, e que também está vinculado
a um campo de produção quase sempre industrial, considera-se que é possível haver
elementos nas obras que remetem à figura do autor, como opções estéticas, modos de
construção retórica, recursos de mise en scène, entre outros, e que podem ser considera-
dos marcas autorais. Não é uma questão apenas de perspectiva, mas também de estilo. O
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 163
documentário, antes der tudo, é definido pela intenção social do autor, que se manifesta
nos elementos de indexação na escrita do filme, e seu ponto de vista tem relação direta
com a voz que emerge da obra.
Segundo Nichols (1991, 2005), como qualquer outro discurso do real, o documen-
tário conserva um vestígio de responsabilidade em descrever e interpretar o mundo da
experiência coletiva. A idéia é alcançar, dominar um argumento em relação ao mundo
histórico. Nesse processo, sons e imagens criam um vínculo com o mundo que todos
nós compartilhamos. É papel do documentário fazer asserções, construir argumentos e
pontos de vista sobre este mundo sócio-histórico e, para tanto, também utiliza cenários
e personagens, ainda que estes pertençam a uma dimensão do mundo concreto. Os per-
sonagens são tratados como atores sociais e, contrariando a crença no predomínio dos
“acasos” em documentários, este gênero normalmente envolve algum tipo de encenação
(Ramos, 2008). O documentário pode ser analisado a partir do ponto de vista do diretor,
do texto e também do espectador. No que se refere ao campo da direção, fala-se da pre-
sença de um sujeito condutor da construção retórica, mas também de autoria. Não é uma
questão apenas de perspectiva, mas também de estilo. O documentário, antes der tudo, é
definido pela intenção social do autor, que se manifesta nos elementos de indexação na
escrita do filme (Ramos, 2008), e seu ponto de vista tem relação direta com a voz que
emerge da obra. O texto é o material fílmico em si, e diz respeito aos modos de repre-
sentação que, em última instância, são formas de organização dos textos em relação a
certas características recorrentes ou convenções. Um modo de representação envolve,
por exemplo, questões de autoridade e de credibilidade do discurso. Segundo Nichols
(1991), elementos de narrativa (como uma forma particular de discurso) e aspectos do
realismo (como um estilo representacional) informam sobre a lógica do documentário
e a economia do texto. Para o estudo dos filmes em foco, são consideradas as seguintes
categorias de análise: i) a construção dos personagens e o lugar que ocupam na nar-
rativa; ii) a fala dos personagens, a composição de seus discursos; e iii) a relação que
estabelecem com a história, a memória, por meio dos registros audiovisuais, os relatos
oficiais e os relatos individuais.
Conclusão
Enquanto em Rap, o canto da Ceilândia o único cenário é a cidade-satélite, de modo
que os personagens ficam circunscritos à Ceilândia, A cidade é uma só? extrapola os
limites da periferia. Espaços do Plano Piloto de Brasília – como suas largas avenidas e
a Esplanada dos Ministérios – são incorporados ao cenário e a relação dos personagens
com a capital dinamiza a narrativa. O primeiro documentário é essencialmente com-
posto por entrevistas com atores sociais, com ênfase na defesa explícita de uma tese.
Por isso, traz um discurso mais caracterizado pela denúncia social, de auto-valorização
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 167
Referências
NICHOLS, Bill. Representing reality. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press,
1991.
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas, SP: Papirus, 2005.
RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... o que é mesmo documentário? São Paulo: Editora Senac
São Paulo, 2008.
SERAFIM, José Francisco. O autor no cinema documentário. In: SERAFIM, José Francisco
(Orgs.) Autor e autoria no cinema e na televisão. Salvador: EDUFBA, 2009.
168 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Tipografias urbanas:
enamoramentos e conflitos entre
a pixação paulista e as instituições
paradigmáticas do universo da arte
Deborah Lopes Pennachin
UFMG – [email protected]
São Paulo, maior centro urbano brasileiro, é uma cidade marcada por um
fenômeno estético único: a pixação, termo utilizado para definir uma lingua-
gem criada espontaneamente nas periferias da metrópole e que acabou por
dominar seu cenário como um todo. Manifestação mais radical do graffiti, a
pixação desafia os limites do espaço físico e as normas que regem os fluxos
semiósicos urbanos. Por meio dela manifestam-se a revolta e a insatisfação
daqueles que vivem à margem das benesses proporcionadas pela sociedade
de consumo. Ao alcançar o topo dos mais altos prédios e inserir-se à força na
paisagem da cidade, a pixação acabou por despertar o interesse do circuito da
arte, com o qual vem mantendo nos últimos anos uma relação de amor e ódio.
Palavras- chave: arte de rua, conflito, circuito oficial da arte
São Paulo, the biggest urban center in Brazil, is a city marked by a unique aes-
thetic phenomenon: pixação, a term used to define a language spontaneously
born in the metropolis guettos and that came to dominate its entire scenery.
Being the most radical manifestation of graffiti, pixação defies both the limits of
the physic space and the norms that regulate semiosic urban flows. Through
pixação people who cannot share the benefits offered by consumption society
expose their revolt and insatisfaction. By reaching the highest spots of the
highest buildings and forcing its presence on the urban landscape, pixação
ended up attracting the interest of those involved in the art circuit, with which it
has developed a love and hate relationship over the last years.
Keywords: street art, conflict, official art circuit
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 169
Traços da invisibilidade
A pixação paulistana surgiu no início da década de 1980, e teve como principais precur-
sores Pessoinha, Bilão e Juneca, os primeiros a realizar inscrições cuja essência era o
nome do pixador, e não frases poéticas ou de conteúdo político. Pode-se afirmar que a
pixação surgiu como uma mescla da atitude questionadora dos estudantes que se arris-
cavam nas ruas durante o período da Ditadura Militar para protestar contra a opressão
do governo e da estratégia de marketing criada pelo dono do canil que vendia cães da
raça fila. Os pixadores perceberam que o espaço urbano poderia ser utilizado como
uma forma de mídia, e começaram a fazer propaganda de si mesmos, processo este que
resultou em uma competição cada vez mais acirrada na qual a busca por visibilidade fez
surgir uma cultura específica, com códigos, valores e critérios de avaliação particulares.
A invisibilidade social é um fator determinante para a existência da pixação em São
Paulo, uma cidade cindida pela desigualdade na distribuição de renda e cercada por
periferias pobres muitas vezes ignoradas por seus moradores mais abastados. O escritor
Ferréz opina:
Pode-se dizer que a cidade é subdividida em duas, e isso é claro, central e periférica, a parte
difícil é dizer quem cerca quem. (...) a São Paulo que te cerca é de concreto e a nossa é de lama,
a sua é: Moema, Morumbi, Jardim Paulista, Pinheiros, Itaim Bibi e Alto de Pinheiros; a nossa
é: Jardim Ângela, Iguatemi, Lajeado, São Rafael, Parelheiros, Marsilac, Cidade Tiradentes,
Capão Redondo. (FERRÉZ: 2000, p.30)
A grande maioria dos pixadores de São Paulo são moradores de bairros periféricos
e de favelas espalhadas no entorno da cidade, muitas vezes na região metropolitana de
São Paulo. Manco faz uma analogia entre a Nova Iorque da década de 1970 e o contexto
de desigualdade social no Brasil:
A pobreza crônica do Brasil é muito pior que a de Nova York nos anos 1970, mas tais condi-
ções alimentaram uma vibrante cultura graffiti em ambos. O estilo de escrita mais notável de
São Paulo (…) é a pichação, uma forma de assinatura que se origina nos bairros mais pobres.
(MANCO: 2005, p.10)
pixadores como artistas convidados, a abertura do evento não ocorreu sem incidentes, e
um dos pixadores tentou escrever a frase “Libertem os urubus” na obra do artista plás-
tico Nuno Ramos, uma instalação que abrangia os três andares do pavilhão da Bienal e
contava com a presença de dois urubus vivos que, depois da ação do pixador, interrom-
pida pela segurança do evento, acabaram sendo retirados dali. O curador chefe da 29ª
Bienal Internacional de Arte de São Paulo, Moacir dos Anjos, ao discorrer sobre este
fato, admite: “Nem tudo que é arte a Bienal é capaz de abrigar ou de entender plenamen-
te. (Folha de S. Paulo, edição do dia 21 de junho de 2010, página E2)
A invasão de pixadores na 28ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, em 2008,
foi acompanhada por uma série de ataques realizados contra instituições representativas
do circuito oficial da arte e a painéis de graffiti, como mencionamos anteriormente.
A primeira dessas ações aconteceu em julho de 2008, por ocasião da apresentação de
projetos de conclusão de curso dos alunos do curso de Artes Visuais da Escola de Be-
las Artes. Um dos formandos, Rafael Guedes Augustaitiz, conhecido na pixação como
PIXOBOMB, convidou um grupo de pixadores para realizar, segundo ele, “uma inter-
venção para discutir os limites da arte e o próprio conceito de arte” (Folha de S. Paulo,
edição do dia 13 de junho de 2008, página C7). A ação consistiu na invasão da Escola e
na pixação de suas áreas interna e externa por um grupo de cerca de quarenta pixadores,
e acarretou também na prisão e expulsão do aluno, como relata Arthur Dantas, redator
da revista +SOMA:
Em junho de 2008, em uma ação de Terrorismo Poético, Rafael Augustaitiz, 24, apresentou
como trabalho de conclusão na Faculdade de Belas Artes em São Paulo uma intervenção nos
arredores e interior da instituição baseado na ação de um grupo de pichadores. (...) A ação
característica da ala mais radical da arte urbana alcançou repercussão nacional e um duplo
prejuízo: para a instituição, que recompôs a fachada do prédio, e para Rafael, expulso da fa-
culdade. (DANTAS in ZIMBRES: 2008, p.28)
Trata-se de fazer com que as pessoas se conscientizem de que o trabalho que se faz em nome
da cultura ou da arte é destinado somente a uma elite. De que o esquema por meio do qual
essa produção entra em contato com as pessoas é o mesmo sobre o qual se apóia o sistema de
dominação. (LE PARC in FERREIRA: 2006, p.200-201)
172 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
A série de ataques provocou uma vívida discussão entre artistas, curadores, críticos
de arte, grafiteiros e pixadores, sem que um consenso em relação aos seus objetivos, à
forma como foram executados e à sua legitimidade fosse alcançado. Idealizados por um
grupo específico de pixadores, mais exatamente por PIXOBOMB e CRIPTA, ambos
residentes na zona oeste da região metropolitana de São Paulo, as invasões e atropela-
mentos instigaram o interesse da mídia, promovendo um aumento da visibilidade das
questões referentes ao universo da pixação e colocando em crise a definição dos limites
do campo da arte.
Referências
Claub, Ingo [ed.] Urban Art. Weserburg. Hatje Cantz. 2009. p. 138
Ferrara, Lucrecia D´Alessio. Olhar periférico. São Paulo. Edusp. 1999. p. 8
Ferreira, Glória (org.) Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro. Fu-
narte. 2006. pp. 200, 201
Ferréz. Capão Pecado. São Paulo. Labortexto Editorial. 2000. p. 30
Franco, Sérgio Miguel. Iconografias da Metrópole: grafiteiros e pixadores representando o con-
temporâneo. São Paulo. USP. 2009. p. 80
Manco, Tristan; Neelon, Caleb. Graffiti Brasil. Londres. Thames & Hudson. 2005. pp. 10, 28
Medeiros, Daniel (org.) Ttsss...a grande arte da pixação em São Paulo, Brasil. São Paulo. Editora
do Bispo. 2006. p. 17
Zimbres, Fábio. Transfer: cultura urbana, arte contemporânea, transferências, transformações.
Porto Alegre. Santander Cultural. 2008. p. 28
174 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Dinah de Oliveira
EBA/UFRJ – [email protected]
O tipo de caderno que este artigo quer privilegiar é aquele que, mesmo sem
intencionalidade, o artista elabora sem finalidade definida e que acaba se
tornando ele mesmo um objeto autônomo do trabalho de arte. Um caderno
como instância que acolhe a criação ainda sem forma e constitui um pequeno
espaço de exposição e de mostragem-montagem particular. Tomaremos os
cadernos de artista como instância construída por condições de possibilidade
que nos remetem à discussão epistemológica de Benjamin ao distinguir ideias
e conceitos em uma relação dialética de suspensões e não de acabamentos.
Para Benjamin, os fenômenos precisam das ideias para sobreviver no univer-
sal e, ao mesmo tempo as ideias ficariam vazias sem os fenômenos.
Palavras-chave: Cadernos de artista, Walter Benjamin, tradução.
This article focuses on the type of notebook that is created with no defined
purpose and that, even without the artist’s intention, ends up becoming an
autonomous object of art in itself. A notebook, like an instance, welcomes crea-
tion while it is still formless and constitutes a small exhibition of a particular
sampling-composition. Here we will hold artists’ notebooks as instances cons-
tructed by the conditions of possibility which refer us to the epistemological
discussion of Benjamin when distinguishing ideas and concepts in a suspen-
ded and unfinished dialectical relationship. For Benjamin, phenomena need
ideas to survive in the universal and, at the same time, ideas would be empty
without phenomena.
Keywords: Artists’ notebooks, Walter Benjamin, translation.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 175
Tradução e sobrevivência
É possível nos aproximarmos dos cadernos de artista como objetos de valor único, além
do aspecto da originalidade, na medida em que são como lugares de encontro íntimo do
artista com seu olhar sobre o mundo, como mundo reflexivo próprio, ou espaço analíti-
co. Os cadernos são como espaços abertos do que acontece no interior do artista, o que
não necessariamente se realiza na obra, já que esta adquire uma série de informações
implícitas de referências culturais. O processo de reflexão no diário-caderno se dá por
ser um espaço explorativo, experimental que congrega os erros e as certezas da mão
semelhante a um arquivo que absorve o mundo à sua volta. Nesta perspectiva, a questão
desenvolvida no presente artigo diz respeito às possíveis apropriações do comum pelos
trabalhos no campo das artes plásticas, mas também tenta pensar como mais especifica-
mente o caderno de artista se conecta a um aspecto ampliado, abarcado pela noção de
ações na arte do presente. Um dos pressupostos que unem o trabalho em cadernos de ar-
tista ao campo ampliado dos trabalhos de arte é a idéia de que os modos de subjetivações
perfazem uma dimensão política relacionada, em grande medida, aos diferentes modos
em que o real se apresenta como forma que sobrevive em traços no trabalho de criação.
Nossas relações com o mundo são relações de potência como salientou Blanchot em A
conversa infinita, o que ainda nos faz voltar a atenção para os cadernos como exibição
de potências do cotidiano.
Nossa hipótese é a de que os modos de subjetivação que alicerçam o trabalho da arte
na contemporaneidade, encontram no caderno de artista formas particulares de materia-
lização em que é possível apreender aspectos do político justamente por serem formas
traduzidas do âmbito do real. Procuraremos estabelecer certas relações entre determina-
dos procedimentos encontrados nos chamados cadernos de artista e a noção de tradução
de Walter Benjamin, expressa no ensaio A tarefa do tradutor. Tal ensaio foi elaborado
como prefácio de sua tradução dos Tableaux parisiens de Baudelaire, publicado em 1923.
A proposição de análise que vê o caderno de artista como objeto autônomo encontra
re-pouso no trabalho-pensamento de Hélio Oiticica. Para começar, já não é tão fácil as-
sim separar ordens na obra de Oiticica em que teoria e prática são tratadas como trabalho
de arte. Seu Programa Ambiental “propõe uma manifestação total, íntegra, do artista
nas suas criações, que poderiam se proposições para a participação do espectador” que
inclui tanto as modalidades de arte conhecidas como outros meios que “se realizam
através da palavra, palavra escrita ou falada” (OITICICA, 2011).
Um dos aspectos privilegiado aqui da recepção da noção de original presente em A
Tarefa do Tradutor é a sua identificação com o inacabamento do signo de arte a partir da
não-completude das obras originais. Uma das noções importantes do artigo se refere ao
fato de que a não-completude do original atesta o que nas obras é intraduzível, só encon-
trando modos de dizer de si por meio das diferenças entre as línguas, o que ficaria acen-
tuado na tradução. Como ressalta Susana Lages a tradução é responsável pela continui-
dade da vida das obras – agente temporal – e delineia-se como espaço de trocas entre as
línguas. Em suas palavras: “Uma tradução é caracterizada por uma certa instabilidade,
176 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
uma vez que se define como mediadora, não apenas entre duas culturas espacialmente
distantes, mas também entre dois momentos históricos diversos” (LAGES, 2002).
O caderno da artista colombiana Natalia Echevarri é exemplo de um modo de regis-
tro de seu processo de criação que implica em uma série de traduções de aspectos visuais
de seu cotidiano. É como um tipo de espaço onde se dão convergências dos trabalhos
já realizados por ela e de projetos ainda por fazer. O fundamento de suas obras é a
investigação de habitações nos espaços alternativos de moradia das cidades, como co-
munidades, ocupações e até mesmo residências flutuantes em pequenos barcos que são
redimensionados em objetos trabalhados, muitas vezes, a partir de materiais originais
das próprias construções. Em suas palavras o caderno “funciona como um diário em que
registra pensamentos, trechos de canções, exercícios reflexivos e até projetos utópicos”
que ultrapassam a forma de registro na medida em que sua construção se dá juntamente
com a experiência.
Um exemplo importante é o registro fotográfico da série Cores que é elaborada a
partir de percursos realizados diariamente pela artista com a intenção de registrar obje-
tos separados pela cor. Um exercício para o olhar procurando espaços que a influenciam
cotidianamente em analogia com lugares de outras dimensões como mar, o deserto e a
savana. O desejo foi o de procurar um pouco desses espaços no interior de uma cidade, ir
à procura do amarelo, do azul, do verde e efetuar os registros de cada cor no caderno. Tal
aspecto funcional do caderno, ou seja, o de servir como um espaço de visualização das
imagens do interior da câmera é transgredido pela formação de um dispositivo em que é
possível dimensionar os objetos colocados em conjunto sob relações de correspondência
e de montagem. A concepção dessa forma expositiva que redimensiona os objetos na
série imprime possibilidades de apreensão pela proximidade de uma semelhança extra-
sensível como no léxico benjaminiano em A Doutrina das Semelhanças.
Figuras 1,2 3. Detalhes da série cores do caderno de Natalia Echeverri, 2013 (acervo da
artista).
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 177
Daqui se compreende que uma imagem só existe em uma combinatória dos tempos,
é sempre uma montagem de tempos diferenciados que a memória reúne problematica-
mente e que estão inseridos em um espaço inadequado para qualquer percepção direta
ou unívoca. Pensando os cadernos de artista como formas de manter o que será esque-
cido com o passar do tempo, podemos inferir-lhes um sentido desacelerador do tempo
cotidiano percebido como causalidade. Como idéia de valor do conhecimento-monta-
gem, depreendemos que este é aberto sem que as múltiplas possibilidades de verdade se
apaguem umas às outras, numa espécie de conhecimento por mostragem na montagem.
Isso se verifica “desde Baudelaire e da sua definição da imaginação da imaginação como
[faculdade científica], em “Warburg e o seu atlas Mnemosyne, Walter Benjamin e o seu
Livre des passages (...), a fecundidade de um tal conhecimento através da montagem
(...) repleto de armadilhas e pejado de tesouros. Ele requer um tato permanente de cada
instante” ( DIDI-HUBERMAN, 2012).
O caderno Pelego do carioca Bruno Pelego é uma obra que tem sido feita ao longo
do tempo. Trata-se de um caderno-livro que mede aproximadamente 28x37 cm e que
está em eterno inacabamento, incluindo ainda alguns empréstimos de seu espaço para
que outras pessoas façam interferências. Os variados desenhos, esquemas, projetos, re-
gistros, colagens e escritos que compõem o caderno são revisitados diversas vezes e
transformados, resultando em uma forma que já nasce provisória destruindo qualquer
imposição cronológica e causal. Tais regiões táteis de re-montagens assomam operações
que materializam o desejo de trabalhar, experimentar com as imagens, o que faz parte de
uma estratégia de desmontar hierarquias inerentes a um projeto de arte-conhecimento. O
que sobrevive de sua alquimia de fórmulas – que repetem figurações do falo ao mesmo
tempo em que insiste em colecionar e arquivar fragmentos de registros do Jogo do Bicho
– promove deslocamentos afetivos de aspectos do cotidiano traduzidos em apropriações
políticas. Os diferentes contextos em que identificamos tais elementos (o falo e o Jogo
do Bicho) atravessam esferas de poder e modos familiares de estar em contato com a
cultura do corpo disciplinado de que nos fala Foucault.
O gesto fundamental desses cadernos parece ser o de conceber as imagens juntamen-
te com sua composição. Um dos efeitos das traduções realizadas diz respeito mesmo aos
desvios e indexações das imagens em relação ao mundo, com os objetos, com o que o
olhar pode captar. Inspecionando a semiótica (Pierce), a noção de mimese, à que toda
imagem está sujeita, não diz respeito a uma relação icônica pura, “a uma semelhança
perceptual entre signo e realidade”. O aspecto de semelhança ao qual a faculdade mimé-
tica se alia é do campo indicial, que nos termos da doutrina de semelhança de Benjamin,
coloca em jogo temporalidades disjuntivas entre o momento de sua captação (momento
particular no tempo) e o presente em que ela esta manifesta. Tal poder alusivo é tradu-
zido como força de presente no já mencionado Mar portátil de Luiza Coimbra, assim
como em Pelego, cujo movimento de referenciação se confunde com questões de gênero
do próprio artista.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 179
Figuras 4 e 5. Mar portátil de Luiza Coimbra, 2013 e Pelego de Bruno Pelego (acervo dos
artistas).
Referências
BENJAMIN, Walter. “A tarefa do tradutor” in A tarefa do tradutor de Walter Benjamin: quatro tra-
duções para o português. Tradução: Susana Kampff Lages, Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2008.
________. “A Doutrina das Semelhanças” in Obras escolhidas vol.1: Magia e técnica, arte e polí-
tica. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984).
________. Origem do Drama Barroco Alemão. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Bra-
siliense, 1984, p.68.
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. São Paulo: Escuta, 2001.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente. Tradução:
________. Devant Le temps. Paris: Les éditions de minuit, 2000.
OITICICA, Hélio. O museu é o mundo. Org. César Oiticica Filho. Rio de Janeiro: Beco do Azou-
gue, 2001.
180 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Introdução
As notas apresentadas nos três “documentos do processo” (SALLES, 2008) da pesquisa
em arte e cultura visual em questão, revelam algumas reflexões, imagens e referências de
uma investigação em desenvolvimento. As notas também revelam pistas do que o investi-
gador tem estudado, produzido e analisado. Essas informações foram dispostas a garantir
que o processo criativo pudesse ser analisado, à medida que a obra se materializasse.
Os três diários propostos por mim, como meios de registro e também de divulgação
dos modos de produzir, serão apresentados mais adiante, porém, antes é necessário ex-
por os referenciais teóricos que suscitaram a criação desses diários.
Toda a carga subjetiva que compõe a obra e que não é exposta ao público, torna-se
subentendida ou mesmo imperceptível. Esses dados remanescentes podem ser exempli-
ficados por analogia a estrutura de um iceberg, como alegoriza Sandra Rey:
Imaginemos que a obra de arte se constitui numa espécie de iceberg, isto é, um
todo composto por uma parte visível na superfície (a obra em sua configuração formal
e material) e por uma grande parte que fica submersa, invisível (o pensamento, ideias
e conceitos veiculados pela obra). Essa parte submersa nem sempre se evidencia expli-
citamente na configuração formal da obra, mas é, sem dúvida, o que a diferencia como
obra de arte dos demais objetos produzidos por uma sociedade. (REY, 2002, p. 125)
E os diários ou cadernos de estudos são os receptáculos que compõem a base desse
iceberg. Diante disso, Sandra Rey propõe que o artista-pesquisador deve possuir um
ponto de vista teórico diferenciado, e sugere “instâncias metodológicas” para o campo
de investigação em poéticas visuais (REY, 1996, p. 86). As instâncias analisadas indi-
cam por um lado, uma metodologia aplicada à prática de ateliê, por outro, uma metodo-
logia de pesquisa teórica. Assim como o dualismo da designação do artista-pesquisador,
prática e teoria tornam-se as duas partes indivisíveis do todo, pois “obra e linguagem
(oral ou escrita) são tão indissociáveis quanto o corpo e a mente, um precisa do outro
para existir.” (REY, 2002, p. 130)
Os procedimentos colocados em prática tanto no ateliê quanto em outros ambientes
de trabalho, como o computacional, por exemplo, demandam sistematizações, inúmeras
experimentações, tomadas de decisões, insights. Assim, nesses espaços “o artista vai
levantando hipóteses e testando-as permanentemente” (SALLES, 2004, p. 26).
Assim sendo, em meu projeto de pesquisa, opto por algumas abordagens metodoló-
gicas, recomendadas por Sandra Rey: criar estratégias de ação (como manter um ou mais
diários de estudos e fichas de anotações sobre as obras); coletar dados (como catálogos,
sites de artistas) e procurar, sempre que possível, as informações nas fontes; conceituali-
zar (fazer um levantamento de ferramentas teóricas que auxiliem nas reflexões); realizar
exercícios de redação como redigir pequenos ensaios e artigos; apresentar os resultados
de modo inventivo, respeitando as normas preestabelecidas pela academia, contudo, con-
siderando que na diagramação e na apresentação formal, leve-se em conta a obra pro-
duzida. Ou seja, é importante jogar o “jogo da Universidade”, mas também subvertê-lo.
182 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Considerações finais
Entre as anotações feitas e depositadas num diário encadernado, num diário que utiliza
a estrutura de uma conta de endereço eletrônico como documento processual e num diá-
rio que tornou-se blogue (lembrando que cada um desses diários contribuiu de alguma
maneira para formação deste projeto e deste investigador), vários foram os registros
desse fazer/formar, que independentemente dos instrumentos metodológicos, me fize-
ram compreender que o primordial é não perder de vista o que está sendo produzido.
Ressalto ainda que em qualquer lugar ou ocasião é possível gerar-se reflexões e ideias
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 185
Referências
REY, Sandra. Da prática à teoria: três instâncias metodológicas sobre a pesquisa em poéticas vi-
suais. In: Porto Arte. Porto Alegre, v. 7, n. 13, pp. 81-95, nov. 1996.
_______. Por uma abordagem metodológica da pesquisa em artes visuais. In: BRITES, Blanca;
TESSLER, Elida (org.) O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em artes plásticas.
Porto Alegre: Universidade/UFRGS, 2002. pp.123-140.
SALLES, Cecília Almeida. Redes da criação: construção da obra de arte. 2 ed. Vinhedo: Hori-
zonte, 2008.
_______. Arquivos de criação: arte e curadoria. Vinhedo: Horizonte, 2010.
186 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Elaine Spagnol
FAPES / PPGA UFES – [email protected]
This research presents a study about the create process of digital prints for a
women’s clothing brand and the approaches among this creative act shows
with the contemporary art photography. The prints creative process, subject
to stamping digital technique, the adequacy of the trends, market and target
audience to the brand are also presented in this report therefore seeks to cover
all the implications and characteristics of this mode of art making current.
Keywords: creative process, digital printing, assemblage, contemporary pho-
tography, fashion.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 187
“Se de fato arte e design compartilham de uma vocação estética, e o sentido da estética está
voltado à arte, pode-se apontar questões que traduzam um olhar sobre aspectos relacionados
ao design em estamparia têxtil visto que este tem como uma de suas características a harmonia
na criação e distribuição dos motivos que o compõe.”
“Considera-se estamparia digital todos os métodos em que as imagens são geradas ou digitali-
zadas em meio eletrônico e que a transferência da arte para o tecido não necessite da interme-
diação de matrizes, nem de separação de cores.” (LASCHUK, 2013. p.65)
apresentadas nas semanas de moda de várias cidades como Paris, Milão, Londres e Nova
York. Estas apresentações são bem variadas e diversificadas. (CRANE, 2011)
As estampas da marca são feitas pelo processo de sublimação, que se inicia com
impressão a jato de tinta com pigmentos sublimáticos sobre papel, que funciona como
elemento de transferência da imagem. Em prensa térmica o papel é colocado em contato
direto com o tecido, que deve ser de fibra de poliéster, a alta temperatura leva o pigmen-
to a vaporizar-se e a pressão o faz migrar para o interior das fibras do tecido.
O design de superfície em estamparia têxtil acompanha a moda como um espelho dos acon-
tecimentos do momento em que vive, foto que provoca, já em seu processo de criação, o
acompanhamento dos sinais de seu tempo e registrando em seu produto final características
inerentes a atualidade. (LEVINBOOK, 2007)
Figura 2. Acima imagens das fotografias apropriadas e abaixo imagens do resultado após as
manipulações.
Para a corrida foi escolhido o motivo floral já que este tipo de estampa possui grande
aceitação pelo público da marca e foi vista em vários desfiles e em outras fontes de pes-
quisa. Na figura 3 etapas da montagem da estampa e ela finalizada.
190 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Figura 3. Duas etapas da montagem da estampa corrida e por último a estampa final.
As cores azul e verde foram utilizadas, pois são as cores de malha das partes de cima
destinadas a formar looks com este corrido. Foram inseridos também alguns efeitos que
imitam renda para compor a estampa, elementos estes, assim como os detalhes das flo-
res, só possíveis de serem reproduzidos com fidelidade de detalhes graças à técnica de
estamparia digital, assim como a variedade de cores presentes nestes desenhos.
Na primeira estampa localizada foram utilizadas na sua criação outras três imagens
de flores, uma imagem de textura, a palavra beautiful, a estampa corrida colorida, em
versão preta e branca e alguns elementos listrados, como pode ser observado na figura 4.
Considerações Finais
Mesmo seguindo as tendências, se demonstrou que é possível desenvolver estampas
criativas e originais, não sendo este um limitador e sim um ponto de partida para o seu
desenvolvimento. Também a apropriação das fotografias durante o processo de criação
gera um resultado totalmente diferente e distinto da imagem inicial, sendo esta uma for-
ma utilizada para que o processo de criação seja mais fácil. Não somente a preocupação
com a estética do motivo, mas também a prática artística fotográfica influência este meio
artístico hibrido que o hoje é o design de estamparia.
Referências
CRANE, Diane; Maria Lucia Bueno (org.) Ensaios sobre moda, arte e globalização cultural.
Tradução de Camila Fialho. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2011.
BOWLES, Melanie. ISSAC, Ceri. Diseño y Estampación Textil Digital. Tradução de Roberto R.
Bravo. Barcelona: Blume, 2009.
LEVINBOOK , Miriam. Design de superfície e arte: processo de criação em estamparia têxtil
como lugar de encontro. Anais do 3º Colóquio de Moda, 2007. ISSN 1982-0941 Acessado
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da_2007/8_05.pdf
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são sobre tecidos. Revista ModaPalavra e-periódico. Vol. XII, 2013. Acessado em 25/09/2013
às 22:50 http://www.ceart.udesc.br/modapalavra/edicao12/modapalavra_12.pdf
LUNENFELD, Peter. Fotografia Digital: a Imagem Dubitativa. Tradução de Silas de Pau-
la. Revista Passagens. vol 2, 2011. (p. 01-15) Acessado em 25/08/2013 às 14:36
http://www.revistapassagens.ufc.br/index.php/revista/article/viewFile/19/18
http://www.vogue.co.uk Acessado em 27/09/2013 às 19:23
192 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Elaine Tedesco
UFRGS – [email protected]
Lurdi Blauth
FEEVALE – [email protected]
The theme of the present article is the instalation Nests and the archive now,
made up of photos, metal engravings and nests, created especially for the
Porto Alegre Town Hall Basement in 2013 by two artists and researchers. It
approaches the cooperation between the artists, and the specificities of its
unfoldings in a joint authorship poetic, focusing the use of archived images,
and the indicial aspects that are present in photography and, also, installation
as a strategy of contact with the place, in which the nest is a metaphor for a
cosy welcoming.
Key-words: archive, contact, place, photography, installation.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 193
Introdução
O processo de criação da instalação que denominamos de “Ninhos e o arquivo agora”
teve como ponto de partida a percepção sobre o espaço expositivo do Porão do Paço
da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, RS, compartilhada em conversas sobre sua
história, seu significado e sua arquitetura e relacionadas a conceitos e procedimentos
que constituem as caminhadas individuais. Assim, foram estabelecidas as convergên-
cias para as escolhas do trabalho: fotografar no lugar, usar imagens de arquivo e dispor
ninhos pelo Porão. Os ninhos, objetos exteriores ao Porão, fazem parte das coleções
individuais e conectam nossas poéticas. As fotografias apresentadas foram obtidas no
local e essa conexão com o lugar, através da obtenção fotográfica, teve como interface
o uso de imagens de arquivos.
A colaboração e as especificidades de seus desdobramentos numa poética de coauto-
ria são provenientes do desenvolvimento de alguns trabalhos em parceria, desde 2010, a
partir da realização paralela (Feevale e UFRGS) da pesquisa “Procedimentos de contato”.
O intuito desta pesquisa é investigar as passagens entre diferentes procedimentos de con-
tato na gravura, fotografia de base química e imagem digital para a produção de imagens
no processo de criação. A instalação “Ninhos e o arquivo agora” é movida por um desejo
de conectar as poéticas, desse modo, propiciando uma maior integração à pesquisa.
A partir da definição de um espaço expositivo, no caso, o Porão do Paço Municipal
da Prefeitura de Porto Alegre, tratou-se o mesmo com as suas especificidades estruturais
e históricas: paredes largas de tijolo aparente e estrutura que sustenta a arquitetura do
prédio formada por arcos. O local contém uma antiga prisão que, no início da história da
cidade, funcionava para manter infratores e, também, já foi um depósito de mantimentos
da municipalidade.
Os ninhos
Por que ninhos agora? Quais associações entre as imagens apresentadas nessa insta-
lação? Iniciamos com uma citação poética: “ninhos brancos, teus pássaros vão florir”
(Ganzo, apud Bachelard, 2008, p. 103). No pensamento bachelardiano, encontramos
algumas reflexões: o ninho tem a função de habitar e é uma imagem que desperta em
nós a representação de uma primitividade. Ao observarmos um ninho, sempre, restamos
encantados com a sua engenhosidade e a perfeição com que o pássaro constrói a sua
pequena morada, deixando a marca de um instinto que se repete. O ninho é também um
esconderijo da vida alada, onde, talvez, possa-se ficar invisível sob o céu.
Ao mesmo tempo em que é um abrigo precário, o ninho também remete ao devaneio
da segurança e ao lugar do refúgio absoluto. Essas imagens nos instigam a pensar sobre
flutuações dialéticas entre o interior e o exterior, entre o escondido e o manifesto, entre
possibilidades e impossibilidades.
194 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Os arquivos
Na série apresentada por Lurdi Blauth, o arquivo agora faz parte de um acervo pessoal
de fotografias digitais e oriundas de locais em situação de clausura, de paredes precá-
rias, de passagens entre interior e exterior, de ninhos abandonados no seu jardim que
foram acolhidos no seu atelier e, ainda, imagens de ninhos gravadas em placas de cobre.
(Figuras 1, 2, 3). Além disso, a arquitetura do porão e os seus detalhes também foram
fotografados, e, em uma das salas ─ a ex-prisão ─ a artista relacionou-a com duas foto-
grafias de seus arquivos que mostram a arquitetura de uma ex-prisão visitada na cidade
de Montevidéu, UY.
Figura 2. Lurdi Blauth, Ninho Habitado IV, Figura 3. Lurdi Blauth, 2013, Fotografia so-
2013, Calcografia, 30x40cm bre canvas, 60x100cm
com objetos reais (os ninhos) e a produção de imagens que remetem a uma visualidade
que se equivale a semelhanças de uma realidade próxima e afastada.
Elaine Tedesco, por sua vez, usou, como um dos materiais para montar a insta-
lação, seus arquivos de películas em preto e branco. Fotografias que estavam guardadas
em sua caixa de negativos, as quais vem experimentando, nos últimos anos, projetar
sobre diferentes contextos, procurando criar imagens que as atualizem. Criar novas fo-
tografias, a partir dos arquivos pessoais, assim como desdobrar um trabalho em outro,
reutilizando partes ou o todo em novas situações de apresentação, é parte de seu método
de trabalho, seja em fotografia, vídeo ou instalação.
As imagens escolhidas são retratos de crianças, obtidos em negativo 35mm,
preto e branco e com uma câmera Leica, no início dos anos 1980, em diferentes locais
da cidade de Porto Alegre, especificamente: no Mercado Público – que fica ao lado da
Prefeitura (onde está situado o porão); na Praça XV, localizada em frente ao Mercado
Público, e no Parque Farroupilha. O processo de trabalho no Porão consistiu em projetar
esses negativos, com um antigo projetor de slides, sobre as paredes do lugar. Essa ação
luminosa criou uma sobreposição entre imagem projetada e arquitetura, implicando uma
fusão entre ambas (Tedesco, 2009), que foi fotografada com uma câmera digital. A so-
breposição é geradora de outra imagem, na qual as superfícies estão aderidas. A textura
da parede misturou-se aos retratos das crianças obtidos 30 anos antes, acrescentando-
lhes novas significações (Figuras 4, 5). Agora, as novas fotografias são matrizes numéri-
cas a espera de uma atualização, encontram-se virtualmente como arquivos de imagens
digitais numa pasta em seu computador.
Figura 4. Elaine Tedesco, 2013, Guri no mercado, fotografia Figura 5. Elaine Tedesco,
90 x 60cm 2013, vista da instalação
Referências
BARTHES, Roland. (1984). A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
COUCHOT, E. (2003) A tecnologia na arte. Porto Alegre, RS: Editora da UFRGS.
FLUSSER, V. (2008) O universo das imagens técnicas. São Paulo, SP: Annablume.
SOULAGES, Françoise.(2005). A Fotograficidade. In: Porto Arte, PPGAV/UFRGS, v. 13, no
22. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/PortoArte/article/view/27900/16507. acesso em
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RANCIÈRE, Jacques.(2011). O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto.
TEDESCO, Elaine Athayde Alves. Um processo fotográfico em sobreposição no espaço urbano.
Tese. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/17034, acesso em 21/09/2013.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 199
sonora estilo blaxploitation), o curta de Salomão acaba por instaurar uma experiência
sensorial de estranhamento e fascínio, numa espécie de objeto “alienígena”, tanto no
campo do cinema quanto no das artes visuais brasileiras, cujos efeitos ainda estão por
ser desvendados.
Referências
BASTOS, Marcus. “A cultura da reciclagem”. In: ALZAMORA, Geane et al (org). Cultura em
fluxo: Novas mediações em rede. Belo Horizonte : PUC-MG, 2004.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
MANOVICH, Lev. “Quem é o autor. Sampleamento/ mixagem / código aberto”. In: ALZAMO-
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-MG, 2004.
QUEIROZ, Elisa. “Depoimento”. In: Objeto obeso. Vitória: GAEU/ Ufes, 1998 (catálogo de ex-
posição).
204 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Fabíola Tasca
Escola Guignard/UEMG – [email protected]
The aim of this paper is to explore the relations between Art and Work that
underlie the very idea of authorship in contemporary art and culture, closely
linked to the split between Conception and Execution as separate instances on
the process of production of the artwork.
Keywords: authorship, contemporary art, trademark
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 205
Jackson Pollock está no umbral da porta. De um lado, uma legião de artistas ansio-
sos, marcados pela insígnia da marginalidade em suas diversas feições, compelidos pela
urgência do fazer, engajados no enfrentamento de matérias, materiais e procedimentos
de trabalho que traçam os respectivos pertencimentos à especificidade de uma ou outra
mídia; de outro lado uma espécie de celebração em torno da inexorável anexação da vida
como obra de arte.
Em 1958 Allan Kaprow exortava os jovens artistas a celebrarem certa generalida-
de operativa no exercício de suas ocupações profissionais. Não mais definidos como
pintores, poetas, dançarinos, músicos... aos artistas bastaria enunciarem sua condição
intransitiva e tudo na vida estaria aberto para eles. “Simplesmente artistas” é como
Kaprow define e resume a não circunscrição disciplinar constitutiva do fazer artístico
contemporâneo, diagramado na passagem do idioma modernista para o não modernista,
a partir da figura emblemática de Pollock (Kaprow, 2006). Nicolas Bourriaud esclare-
ce a diferença fundamental entre o “ofício” do artista e os demais ofícios, salientando
que o diacrítico em questão reside na natureza dos gestos realizados. Se as profissões
ordinárias requerem o aprendizado e o exercício de gestos previamente definidos e co-
dificados, “o artista moderno deve ele próprio inventar a sucessão de posturas e gestos
que lhe permitirão produzir” (Bourriaud, 2011, p. 11). E não só os gestos e posturas,
mas o ritmo e a distribuição dos produtos de seu trabalho. Bourriaud sublinha que “a
obra de arte difere das outras classes de objetos pelo fato de não ser determinada por
um contexto profissional normativo” (Bourriaud, 2011, p. 12). Estamos no território da
liberdade, reduto por excelência da arte e dos artistas, desde que arte se faz sem restrição
metodológica ou de materiais.
Luiz Renato Martins salienta que a Arte Moderna traça o percurso da constituição da
arte como “paradigma simbólico do trabalho emancipado”, na medida em que o artista
torna-se o “maior responsável e detentor primeiro dos frutos do seu trabalho, das obras
que apresenta diretamente ao julgamento público e, eventualmente ao mercado compra-
dor” (Martins, 2003, p. 128).
Trata-se do desenho de um novo contrato social-artístico, em paralelo ao qual as
formas gerais de trabalho e de produção nos primórdios do capitalismo caminham em
sentido contrário.
Nessa perspectiva,
a arte passa a valer, de certo ângulo ético e cognitivo, como um horizonte utópico ou uma
promessa, para o restante da humanidade, que se vê excluída do direito de autodeterminação
no trabalho e, por conseguinte, do direito à consciência cujo desenvolvimento se liga ao tra-
balho.” (Martins, 2003, p. 129)
Giulio Carlo Argan compreende a história da arte como uma história da liberdade,
referindo-se à liberdade do artista poder deliberar sobre materiais, temas, procedimen-
tos, independente de qualquer academia, de qualquer poder da igreja ou independente
do poder real. Se considerarmos este postulado, podemos perceber o artista como o
“modelo” do trabalhador emancipado.
Em que medida tais apontamentos nos auxiliam na tarefa de compreender algumas
mutações em curso nas condições de produção da obra de arte e no papel do artista?
Numa determinada perspectiva, poder-se-ia agir como se a propalada liberdade fosse
um elemento inquestionável, de maneira a colaborar para certa idealização da atividade
artística, o que funcionaria como sustentáculo do estatuto vigente da arte na sociedade,
um estatuto que informa a doxa. Trata-se de um discurso que investe na mistificação
do trabalho artístico apresentado como uma atividade especial o que, num certo sentido,
pode ser compreendido como uma manobra ideológica que termina por encobrir as efe-
tivas condições de produção da obra de arte, colaborando para a perpetuação do papel
conservador da Instituição Arte que se ancora em determinadas premissas:
(1) A arte como manifestação suprema e eterna (leia-se apolítica) da civilização cristã ociden-
tal. (2) A arte como manifestação reservada a alguns poucos eleitos, inteligentes e sensíveis,
e que o são por dom, não por educação e aprendizado social. (3) A arte como espaço mítico,
fechado sobre si mesmo, uma espécie de moderno substituto da religião. (Brito, 2005, p. 54)
Rancière vem nos dizer é que o autor contemporâneo é mais estritamente proprietário
do que jamais o foi qualquer autor.
argumento que gostaria de sugerir neste texto, os gestos de cada visitante não tanto os
alçam à condição de autores (status em relação ao qual se requer bem mais do que um
fazer isolado) mas, antes, os situam como fazedores que insinuam a questão da autoria
como marca. Não por acaso a inicial da palavra Reprodutor estava grafada com o sím-
bolo de Marca Registrada. Seria preciso muito mais espaço e trabalho para investirmos
em deslindar o labirinto das complexas relações contemporâneas entre produção e con-
sumo, obra de arte e produto, concepção e execução, problemas em relação aos quais o
campo do design talvez tenha muito a nos dizer. A potência de Reprodutor, creio, está
na habilidade com a qual manobra certa ambiguidade: o procedimento por meio do qual
cada visitante reproduzia as imagens/marcas dos autores em questão era o trabalho por
meio do qual ele ou ela tanto sinalizava sua subordinação à ideia do autor quanto dela
podia tomar distância.
Referências
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. Tradução Luigi Cabra. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
BOURRIAUD, Nicolas. Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si. Tradução Dorothée de
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Organização de Sueli de Lima. São Paulo: Cosac & Naify, 2005. pp. 53-63.
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Arte em crise. Organização de Aracy Amaral. São Paulo: Perspectiva, 1986. pp..231-236.
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2003. Caderno Mais.
210 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
This article have the role of recovering something called “Magazines of Inven-
tion”, linked to the arts and experimental poetry scene of the 70’s in the major
Brazilian cities such as São Paulo, Rio de Janeiro and Salvador, through the
history of one of them: “Código” (Code), raised from Salvador (Bahia) in 1974,
was mainteined and published independently by Erthos Albino de Souza (born
in Minas Gerais) until 1990, and was one of the most enduring and influential
among them, and it configured as an intense network of collaboration between
an already established generation of Brazilian creators, and the generation
immediately after them.
Keywords: 1. Magazines of Invention; 2. Brazilian Experimental Art; 3. Brazi-
lian Art of the 70’s.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 211
Introdução
A Poesia Concreta Brasileira dos anos 50 é conhecida por ter explorado as possibilidades
sonoras e semânticas do texto impresso, juntamente com as gráfico-visuais: uma postura
designada por seus fundadores (os poetas Augusto de Campos, Haroldo de Campos
e Décio Pignatari) como “verbivocovisual”. Além de criadores artísticos, esses poetas
foram grandes tradutores, ensaístas e professores, tendo sido Décio Pignatari um dos in-
trodutores do pensamento de Charles Sanders Peirce em nosso país - o fundador de uma
Teoria Geral dos Signos que trouxe dentro de si o germe de uma postura intersemiótica e
essencialmente experimental, que se tornou característica da produção artística herdeira
das ideias e práticas concretas no Brasil.
A revista “Noigandres”, publicada por eles em 1952, pode ser compreendida como
descendente de publicações modernistas como “Klaxon” (1922). Nos anos 70, em con-
sonância com esse espírito experimental, outras publicações circularam nas grandes
capitais brasileiras, mormente São Paulo e Rio de Janeiro: as ditas “Revistas de Inven-
ção”, como as definiu o poeta curitibano Paulo Leminski (1982, p.3): independentes, em
alguns casos “marginais”, e relacionadas ao cenário artístico e cultural proveniente do
Concretismo e do Tropicalismo, partiam da vontade de criação de redes de circulação,
colaboração e troca de informações teóricas e artísticas alternativas ao establishment,
sendo que algumas delas ainda permanecem em atividade.
A revista soteropolitana “Código” (1974), editada e publicada pelo mineiro Erthos
Albino de Souza foi uma das mais emblemáticas, além de ter inspirado outras que sur-
giram posteriormente. O presente artigo buscou recuperar algo da trajetória dessa pu-
blicação como uma forma de entender essa intensa rede colaborativa que ligou artistas
visuais, poetas, ensaístas, músicos e compositores no Brasil dos anos 70.
para a circulação de novas ideias e práticas artísticas compartilhadas, sem que com isso se
abdicasse das expressões e pesquisas individuais, pois “como uma tendência de “ismos”,
o modernismo foi uma atmosfera intensificadora de diferenciações estéticas, culturais e
políticas com uma certa psicologia, sociologia e formalismo em comum. Como em todas
as seitas, religiosas ou políticas – e era na base de tais analogias que os movimentos
se formavam e atuavam -, os “ismos” tendiam ao cisma e ao sectarismo. Assim, con-
gregavam adeptos, montavam manifestações, apresentavam-se em público. Portanto, de
grande importância para a sua história são os manifestos que apresentavam e as revistas
que os promoviam ou publicavam” (BRADBURY et al, 1989, p.162-163).
As “Revistas de Invenção” são herdeiras (diretas e indiretas) de uma sequência de
publicações independentes cujo início podemos identificar nas revistas ligadas ao grupo
modernista paulistano, entre elas “Klaxon” (a pioneira, de 1922), a “Revista de Antropo-
fagia” e “Terra Roxa e Outras Terras”. Outro elo ainda mais importante dessa corrente
foi “Noigandres” (1952), publicação juvenil, mas de enorme sofisticação, do nascente
grupo de poetas concretos paulistas (a saber: os irmãos Augusto e Haroldo de Campos
e Décio Pignatari, na época na casa dos seus 20 anos), surgida como uma reação ao
conservadorismo poético da chamada “Geração de 45”. Os futuros poetas concretos rei-
vindicaram para si a herança experimental dos criadores do primeiro modernismo brasi-
leiro, e já em suas primeiras produções anunciaram uma postura criadora que dissolveu
a fronteira tradicional entre linguagens artísticas, abrindo caminho para experimentalis-
mos e processos de criação interpenetrados por sistemas sígnicos diversos.
Assim, no Brasil como em outros países ocidentais onde foram concebidas e pu-
blicadas, as revistas experimentais foram um fenômeno de contestação das práticas
artísticas vigentes, sempre ao redor de um núcleo programático e ideológico comum.
Buscaram a inovação em sua composição gráfica, mantiveram-se independentes no que
concerne aos seus recursos financeiros e acreditaram na possibilidade de circulação al-
ternativa ao circuito comercial das editoras e galerias. Lideradas por figuras agregadoras
e muitas vezes de apelo profético (como é típico das grandes figuras de vanguarda),
eram essencialmente colaborativas e muitas delas reuniram gerações diferentes de cria-
dores (em geral, “mestres” e “discípulos”). Porém, muito embora tivessem a intenção de
fazer circular informação artística atualizada para o maior número possível de pessoas,
elas em geral permaneciam restritas a um círculo não muito mais largo do que aquele
previamente frequentado e ativado pelos seus editores e colaboradores. Dessa maneira,
um dos grandes méritos dessas publicações era, justamente, a instauração de redes de
colaboração entre jovens criadores, e entre esses e a geração anterior, já estabelecida.
O resultado mais imediato dessas redes era um intenso fluxo de material teórico, meta-
linguístico e artístico, que as retroalimentava e criava condições para a renovação das
práticas e aporte teórico dos membros das mesmas.
As revistas setentistas, assim como as suas ancestrais dos anos 20 e 50, comparti-
lham com todas as outras publicações de vanguarda uma outra razão de ser: “tais publi-
cações com um público leitor limitado, mas característico, especializado, geralmente
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 213
Código
Mesmo fora do eixo Rio - São Paulo, a revista “Código” foi uma nobre representante das
publicações de linhagem construtiva, criada, publicada e distribuída (fosse através de
envio postal, fosse através de livrarias especializadas e centros culturais que a aceitavam
em regime de consignação) a partir da cidade de Salvador. Seu primeiro exemplar, como
já dito, é do ano de 1974. É um exemplo paradigmático do funcionamento desse tipo
de publicação a partir das redes que propiciavam a sua criação e desenvolvimento, a re-
troalimentavam e garantiam a sua vida útil e circulação. Além disso, é um caso extraor-
dinário entre as várias “Revistas de Invenção” mencionadas acima por Paulo Leminsky,
214 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
pois durou extraordinários 12 volumes, quando a maioria delas não durava mais do que
2 ou 3. Isso se deveu ao seu editor e principal mecenas, o engenheiro mineiro Erthos Al-
bino de Souza, à época funcionário da Petrobrás, e que investia praticamente tudo o que
ganhava em projetos de animação cultural, agindo como um autêntico mecenas. Exerceu
um papel convergente para os integrantes de uma geração de jovens baianos universi-
tários interessados em arte e literatura de vanguarda, nas experiências tropicalistas e no
legado da poesia concreta paulista (uma vez que Erthos, ao frequentar a programação
cultural da então recente Universidade Federal da Bahia, aproximou-se de personagens
como o antropólogo, poeta, tradutor e ensaísta Antonio Risério e o cantor e compositor
Caetano Veloso, entre outros). Também se tornou amigo, financiador e colaborador dos
poetas concretos paulistas (mantendo vínculo mais intenso, em um primeiro momento,
com Haroldo de Campos, e posteriormente, com Augusto de Campos, documentado
através de vasta correspondência).
No início, Erthos ofereceu principalmente recursos financeiros para que Antonio
Risério (na época com 19 anos) e seus jovens “amigos-prodígio” concebessem, organi-
zassem e publicassem uma revista que abriu as suas páginas para colaboradores diver-
sos (a maior parte deles já envolvidos com “Revistas de Invenção” em outros estados,
convidados a colaborar através de telefonemas e cartas), muitos deles criadores já res-
peitados e consagrados, tais como os já citados poetas concretos paulistas (presença
constante em toda a trajetória de “Código”). Com uma tiragem que nunca ultrapassou
os 1500 exemplares, e lançada em um show de Gal Costa, a publicação não tinha um
nome próprio, mas trazia em sua capa o célebre poema “Código” de Augusto de Campos
(espécie de patrono honorário da revista, e “mentor”, tanto de Erthos quanto Risério). O
poema acabou transformando-se no logotipo da revista, comparecendo na capa de todos
os 12 volumes produzidos até 1990. Mas Erthos só passou a assumir realmente o papel
de editor a partir do terceiro volume da mesma (1978), quando da mudança de Antonio
Risério para São Paulo, para cursar Antropologia na Universidade de São Paulo.
O Legado de Código
“Código” circulou pelo país através do correio, principalmente. Foi enviada para seus
colaboradores no Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba, que a fizeram circular nos meios
especializados. Foi vendida em feirinhas e sob consignação em livrarias e centros cul-
turais, mas jamais conseguiu sequer se pagar. Desta feita, não conseguiu ultrapassar
o mesmo círculo que a criou e manteve viva, mas foi extremamente influente dentro
desse universo, inspirando a criação de outras revistas de mesma natureza, ou até mais
ousadas, como a já citada revista “Artéria”, em São Paulo. Ainda assim, a publicação
ultrapassou as fronteiras nacionais, tendo sido incluída em exposições de livros e publi-
cações de artista na Europa e nos EUA. E talvez ainda estivesse em circulação, não fosse
o fato de que seu editor e mecenas exclusivo, Erthos Albino de Souza, tenha sucumbido
ao Mal de Alzheimer no ano 2000.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 215
Referência
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216 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
O processo criador da
performance existir juntos:
autoria e colaboração
This paper discusses the artistic performance entitled Existir Juntos, designed
for the International Event Arte#OcupaSM, in June 2013, in the railway station
of Santa Maria, Rio Grande do Sul. The proposal consisted of grouping artists
in various propositions that sought to address forms of social existence in con-
temporary art by proposing their actions. The routing has had as prerogative
of creation to base itself on collaborative process recurring in contemporary
art. Collaborative process in Brazil came to prominence in the 90s, before their
sharp discussions. The reflections from practice introduced significant chan-
ges in the hierarchical setting prevailed. The collaborative process prized for
collective designing and conducting.
Keywords: collaborative process, authorship, performance.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 217
Introdução
A performance artística intitulada Existir Juntos foi concebida para o Evento Internacional
Arte#OcupaSM, que aconteceu entre os dias 28 de maio e 1 de junho de 2013, na Estação
Férrea da cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. A proposta do evento consistiu
em agrupar artistas em proposições que procuravam abordar formas de existir junto na
contemporaneidade ao propor que diversas ações artísticas habitassem o local escolhido.
O lugar determinado para o evento é patrimônio histórico da cidade há algum tempo.
O local é caracteristicamente marcado pela passagem esporádica de pessoas e, ainda,
de poucos trens de carga que acabam por romper com o silêncio daquele espaço/tempo
que parece imóvel pelo abandono. O evento acontece pelo terceiro ano consecutivo
procurando reforçar sua autonomia, uma vez que permite dissolver-se e reinventar-se
em materialidades artísticas como será descrito adiante. Sendo assim, o Arte#OcupaSM
procura não inscrever-se em categorias determinadas.
Neste contexto, propositivo e espaço/temporal, insere-se a temática supracitada que
considerou os questionamentos de Roland Barthes sobre o exercício de viver juntos,
buscando conectar-se com as distintas formas de existência que perpassam a contem-
poraneidade. Segundo o autor: “a que distância devo me manter dos meus semelhantes
para construir com os outros uma sociabilidade sem alienação? (ROLAND BARTHES,
Bienal de São Paulo, 2006). A interrogação de Barthes sugere o coabitar com o outro e
o evento acrescentou formas de ocupar e criar lugares/tempos de existência para a arte.
Desta forma, a Estação Férrea, naquele momento, procurava Existir Junto com os
artistas proponentes em suas obras, questionando como, onde e quando é possível fundar
fluxos que se reverberam em mudanças no ser, no pensar e no agir humanos por um perío-
do de existência em arte. Nos dias atuais as dinâmicas da existência são complexas, pois,
coexistem diferentes planos, níveis e dimensões da atuação humana. O Arte#OcupaSM
ampliou possibilidades de vida na arte amalgamando artistas que fazem avançar dispo-
sitivos artísticos de existências coletivos ao propor um fazer consciente do outro e da
existência do outro na arte sediados naquele local em suas diversas formas de ocupação.
A performance criada para estrear durante este evento ainda estabelece duas outras
conexões. A primeira com uma proposta, oriunda de artistas da Universidade Federal
de Brasília (UnB) para desenvolver processos de criação à distância fomentando futu-
ros encontros e apresentações coletivas e/ou simultâneas. A segunda com um projeto
internacional proposto por professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS) que propõe a troca de relatos referentes a processos criadores em artes da cena
para análise sob a perspectiva de outros artistas criadores.
Segundo Swidzinski (apud AGRA, 2011, p. 13), a performance é
como ela é, no momento que nós a fazemos. Isto demonstra que ela pode ser tudo aquilo que
possa acontecer. Pode muito bem ser poesia visual, música, ter uma forma teatral ou coreo-
gráfica, plástica ou outra. Qual? Pouco importa. (...) Já faz bastante tempo, Kaprow afirmou
que naquele momento os artistas não se definiriam: ‘Sou pintor, poeta, bailarino.’ A vida toda
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está aberta, nós a descobrimos através de todos os nossos simples sentidos. O que interessa
aos artistas que praticam a performance é o mundo que se abre sobre nós. É por isso que gosto
tanto da performance.
A lúcida citação do autor acima se faz presente apenas para situar o trabalho no
contexto abrangente da linguagem da performance, sobretudo porque funde elementos
da dança, do teatro e das artes visuais. Assim, partindo do tema do evento e do conteúdo
contido no projeto da Unb, juntaram-se a diretora da performance apresentada e três per-
formers aos quais foi exposta a ideia inicial do trabalho que foi coletivamente discutido
a fim de que se chegasse ao momento em que foi apresentado no evento. Desta forma,
o trabalho de construção da performance contemplou o tema do evento Existir Juntos,
executou as proposições ligadas ao projeto vinculado à Unb de forma coletiva entre
diretora e performers e interage com as proposições da UFRGS.
O projeto advindo da UnB enviou dois materiais específicos a partir dos quais se po-
deria criar livremente de acordo com as pesquisas desenvolvidas pelos grupos envolvidos.
O primeiro foi um conjunto de cartas em forma de baralho, mas contendo dizeres diversos
relativos a modos de encarar a vida: como ser, como estar, como pensar e sentir no mundo
contemporâneo. Foram selecionadas quarenta e oito cartas. O segundo era um conjunto de
cinco músicas das quais foram selecionadas três para este trabalho devido à identificação
apontada pelo grupo entre suas sonoridades e as palavras impressas nas cartas.
As cartas continham uma palavra chave e uma reflexão escrita sobre esta palavra
inscrita. Inicialmente foi proposto aos três performers que criassem individualmente,
em laboratório, um gesto para cada palavra chave presente nas cartas. Durante os en-
saios os performers improvisavam movimentos variados tendo como referência básica o
gesto proveniente da palavra contida na carta. As improvisações consideravam o espaço
em seus planos, níveis e deslocamentos; o tempo em suas variações de velocidades e
pausas, as partes do corpo destacadas em cada gesto na sua relação com as outras, bem
como a fluência dos movimentos. Os performers foram assimilando suas sequências de
movimento, as suas variações possíveis e, ao mesmo tempo, procuraram não cristaliza-
-los em partituras, pois elas seriam jogadas ao acaso como será descrito posteriormente.
Após esta etapa da criação o grupo começou a atribuir relações entre as palavras e
as três músicas selecionadas separando, em seguida, três conjuntos de carta para as três
músicas escolhidas. A separação se deu por afinidade de assuntos atribuídos às cartas e
identificados com as músicas. Neste momento da criação, os gestos foram se enrique-
cendo de sentido para os performers e acabaram compondo ações ao serem repetidos e
explorados de maneiras diversas. Assim, cada um dos três grupos de cartas ficou atrela-
do a cada uma das três músicas e foram, aos poucos, tornando-se vozes de uma fala dos
corpos em movimento e que, por sua vez já necessitavam ser compartilhadas.
Sendo assim, o grupo começou a pensar em como seriam ativadas as palavras chave
selecionadas e a primeira proposta relacionou-se ao jogo de cartas. Pensou-se, então, que
as cartas poderiam ser distribuídas para o público, mas restava definir de que maneira
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se daria esta distribuição e como elas chegariam aos bailarinos. Ao mesmo tempo em
que se buscavam caminhos para resolver os impasses do processo começaram a surgir
reflexões sobre este trabalho que começava a se configurar: eram três bailarinos, três
músicas e três grupos de cartas. Porque não fazer apresentações para públicos de três
pessoas? Assim estabeleceu-se que este público, formado por três pessoas, retiraria uma
carta cada um para ler e escolher um bailarino para quem entregar a carta O bailarino,
por sua vez começaria sua performance.
Mas como seria a execução da música se o público retirasse cartas de grupos mu-
sicais diferentes? Então, foi decidido que cada público de três pessoas que entrasse
escolheria um dos grupos de cartas que correspondia a uma das músicas e, desta forma,
mesmo os bailarinos recebendo cartas com inscrições diferentes elas seriam do mesmo
grupo de cartas e, consequentemente, corresponderiam a mesma música. Cada pessoa
que fosse assistir ao trabalho poderia entrar várias vezes e se depararia com uma obra
diferente e semelhante ao mesmo tempo. Diferente porque as ações de cada performer
eram únicas para cada carta e porque são diversas combinações de músicas e cartas a
serem retiradas e entregues. Semelhante porque o espaço/tempo, os performers e com-
ponentes da proposta se repetem como, por exemplo, o ato de escolher cartas e os outros
elementos da cena.
Estas combinações compõe um universo de quarenta e oito possibilidades de expe-
rimentar ações para cada performer divididas em três músicas e três performers resul-
tando em três grupos de dezesseis cartas para cada música. Considerando que o público
decida acompanhar um performer a cada vez que entrar no ambiente preparado para o
evento ele terá todas estas possibilidades de ver coisas diferentes. Se a opção for obser-
var o conjunto dos três performers, as combinações de cartas serão diferentes, então, o
trabalho também se apresentará diferente. Se considerar-se, ainda, que os movimentos
não são partituras rigidamente coreografadas, mas são ações que se combinam via im-
provisação sobre um tema, as possibilidades se multiplicam ainda mais.
A partir desta configuração estabelecida outros desafios se apresentavam. Qual seria
o espaço da Viação Férrea disponibilizado para o trabalho. Que iluminação o local pos-
sui? Quando o trabalho finalizaria? Estas dúvidas foram se transformando em soluções,
em parte, pelo encaminhamento sugerido pelos organizadores do Arte#OcupaSM. To-
dos os artistas reuniram-se um dia antes do evento para explanar sobre sua obra e colo-
cá-la em discussão no grupo. Neste contexto borbulhante se decidiu que o trabalho seria
apresentado em uma grande tenda escura e seria iluminado por lanternas oferecidas ao
público. Também foi decidido que o trabalho iniciaria ao anoitecer e finalizaria quando
se encerrassem os trabalhos da noite. As propostas assim delineadas na reunião entre
os artistas participantes do evento permaneciam vivas ao serem lançadas ao acaso das
colaborações reflexivas. Três lanternas foram adquiridas para as apresentações e eram
entregues ao público que entrava de três em três e participava das performances que
duravam o tempo da música, cerca de dez minutos a cada entrada. E assim, as formas de
encarar a vida, contidas nas cartas, eram perpassadas pelos corpos dos performers pela
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via das ações experimentadas em forma de improvisação e existiam junto com o públi-
co que participava interagindo na escolha das cartas e, consequentemente, da música,
assim como na iluminação. Outras formas de interação com o público surgiram durante
as performances.
A criação lançou-se a um processo que se ancorou em dois encaminhamentos tidos
como prerrogativas desta criação. O primeiro está baseado nos processos colaborativos
e o segundo no conceito de Work in Progress. No Brasil os processos colaborativos
passaram a destacar-se na década de 90 tendo Antonio Araújo como um de seus precur-
sores, além de ser este artista que cunhou o termo no país (FERNANDES, 2010, p. XI).
Estas práticas, já eram utilizadas antes de suas discussões mais acentuadas e introduzi-
ram transformações significativas na criação hierarquizada que imperava até então nas
artes da cena, com as funções artísticas bastante definidas. Segundo Fernandes (2010,
p. XI) os processos colaborativos prezam pelas criações conjuntas, com concepção e
realização coletivas. Por outro lado, os artistas não desprezaram os seus conhecimentos
advindos de seu processo formativo como se acredita precocemente. Esta performance
envolveu, a princípio, a diretora e os performers na determinação das escolhas processu-
ais, mas, subsequentemente, abarcou as propostas dos três projetos citados e, em última
instância, esteve aberto à interação com o público.
O mundo contemporâneo apresenta alternativas processuais que parecem cada vez
mais permeadas umas pelas outras num movimento de desfronteirização de saberes
bastante rico em possibilidades criativas. No processo colaborativo aqui apresentado
aparece claramente o caráter autoral do atuante, ou seja, o performer enquanto sujeito
instaurador de sua subjetividade na obra efêmera e não apenas executante, as coisas não
são dadas de antemão e sim buscadas, primeiramente em si mesmo transbordando para
um imbricar dos contextos da vida e da obra em processo interativo com os públicos.
Deste modo, a autoria também se estende para além dos artistas envolvidos.
O segundo encaminhamento remete-se ao Work in Progress, pois a performance
configurou-se da maneira descrita para aquele evento em que ela estreou, mas pretende
permanecer dinâmica e flexível às possibilidades em diferentes eventos, situações, cir-
cunstâncias que se apresentarem. Na contemporaneidade, as artes se entrecruzam e são
perpassadas por ouros campos de conhecimento resultando em contextos pluralizados e
multifacetados. Neste contexto artístico as atitudes performativas revelam claramente as
faces deste tempo com suas origens nas vanguardas do início do século XX, mas, com
suas raízes mais profundas fincadas na Arte Total wagneriana. Aqui também se vê incor-
porada a noção de obra aberta de Eco (1969) que na segunda metade do século passado
já propunha sistemas dinâmicos ampliadores das possibilidades de visão e de percepção.
Mas, este conceito está ligado às questões de recepção, ampliando as possibilidades de
leitura, porém, ainda não se contrapõe com a noção de obra concluída. O Work in Pro-
gress adota essa ideia e também a alarga com sua noção de obra inacabada, em percurso
implicando interatividade, permeação, risco. Ao mesmo tempo, o procedimento pode
encaminhar-se para um produto final. Assim, para Cohen (1998) o conceito de obra
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 221
Referências
FERNANDES, Silvia. Teatralidades Contemporâneas. Perspectiva: SP, 2010.
COHEN, Renato. Work in Progress na Cena Contemporânea. Perspectiva: SP, 1998.
ECO, Humberto. Obra Aberta. Perspectiva: SP, 1969.
AGRA, Lúcio. Porque a Performance deve resisttir às definições. In VIS – Revista do Programa
de Pós Graduação em Arte – v.10 n° 1 Brasília: Programa de Pós Graduação em Arte, janeiro/
junho 2011.
222 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Glayson Arcanjo
UNICAMP / UFG – [email protected]
El siguiente texto tiene como punto de partida el relato del proceso de ocupa-
ción de casas a punto de ser demolidas en Belo Horizonte en el año 2007 y en
los años siguientes, entre 2008 y 2012 en las ciudades de Uberlândia y Prata
en Minas Gerais, así como en la ciudad de Goiânia en Goiás. Al describir parte
del proceso de demolición existe la intención de desencadenar discusiones
iniciales sobre la relación entre Espacio y Creación, percibiendo en paralelo,
cómo tres artistas contemporáneos consideran su desplazamiento a esos lu-
gares como condición para desarrollar un proceso de investigación en arte.
Palabras clave: Espacio, Proceso de creación, Dibujo, Casa.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 223
O artista moderno em seu ateliê, elaborando uma gramática abstrata dentro dos limites de seu
“oficio” só leva a uma outra armadilha. Quando as fissuras entre mente e matéria se multipli-
cam em uma infinidade de lacunas, o ateliê começa a desabar [...] sair do confinamento do
ateliê liberta o artista, em certa medida, das armadilhas do oficio e da sujeição da criatividade”
(SMITHSON, 2009, p.191).
É interessante observar como as estratégias foram criadas por Smithson, que tinha
como objetivo percorrer um trajeto, realizando um deslocamento externo aos espaços
institucionalizados.
La metodología que sigue el artista consiste en ir tomando fotografías de los despojos in-
dustriales de la zona, por medio de éstas, Smithson reinterpreta los suburbios de su lugar de
nacimiento, siguiendo la idea de la mirada pintoresca. Teniendo todo ese bagaje presente, Smi-
thson decide un sábado cualquiera, coger un autobús hacia New jersey. Esta vez va solo. En el
camino lee el New York Times y un libo de ciencia ficción de Brian Aldiss. No se ha olvidado
de una cámara para inmortalizar su viaje a Passaic, como si fuera un turista cualquiera, o un
antropólogo que a realizar una investigación. (DEREN, 2012, sp)
Inventar modos de deslocar-se do ateliê para lugares com pouca ou quase nenhuma
presença de pessoas tornou-se um procedimento recorrente também no processo de Ire-
ne Kopelman, artista argentina nascida em Córdoba e que realiza desenhos de observa-
ção in situ através de sua permanência nestes lugares desabitados.
Ao observar seu processo de criação parece fundamental que a artista, inicialmente,
habite a paisagem, por horas e dias, para realizar seus desenhos diretos.
Seu trabalho de desenho frente a uma paisagem é lento, silencioso como sua projeção gráfica,
e resulta de um processo prolongado de observação e quase de comunhão frente à natureza.
Tem realizado registros sensíveis, por assim dizer, de paisagens agrestes e distantes de sua
base de trabalho, seja em Ushuaia, no extremo meridional da América do Sul, seja na Espanha
e no Havaí. Seus desenhos se acompanham, em alguns casos, de verdadeiros diários de viagem
e observação. Sua produção tem algo de um diálogo com a tradição delicada da apreensão da
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Fiz um dos primeiros desenhos na vida para esse tipo de trabalho, e como tinha de ser uma
obra interna, ele se revelou uma espécie de culminância de toda uma série de atitudes e proje-
tos internos que eu queria fazer, uma tentativa de juntar tudo em uma unidade formal de algum
tipo. (MATTA-CLARCK, 2010, 178).
O procedimento de abrir vãos nas paredes irá modificar o modo de relação do espec-
tador com o espaço, já que ele terá a possibilidade de alcançar visualmente os diferentes
cômodos, depois, os distintos andares, até mirar o espaço externo da rua. Sobre outra de
suas produções, “Splitting” de 1974, ele ressalta a dificuldade quando se tenta realizar a
documentação de sua obra:
Após várias observações, é possível ao menos ter uma visão geral, mas ainda assim não tería-
mos nenhuma idéia de sua profundidade e complexidade; portanto, em certo sentido, é quase
impossível na realidade documentar essa obra, o que é uma das coisas que me atrai em todo
processo de documentação (Ibid, 179).
Matta-Clarck, ao modificar a ideia de uma apreciação total da obra para uma pos-
sibilidade de apreciação das múltiplas facetas do espaço e irá levantar outra importante
questão que é justamente a dificuldade de documentação de um trabalho que recorre a
profundidade e complexidade espacial.
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Figura 2: Desenho em demolição. Intervenção realizada pelo artista. (Fonte: acervo do autor,
2007)
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As aberturas surgidas por entre vãos da casa permitiam também a percepção de alguns
vestígios de luz e sombra em meio à destruição - como na abertura nascida com o teto
arrancado, de onde por um buraco podia-se visualizar o céu. A incidência da luz do sol
rebatia em toda estrutura da casa e ampliava as áreas de sombra criando incontáveis níveis
de contraste em seu interior, tanto nas paredes e no chão. A mesma luz criava desenhos
transitórios que se modificavam ou até mesmo se perdiam com a passagem do tempo.
Ao evidenciar a ruína e sua demolição, constata-se que sua estrutura esfacela-se,
estando a casa, naquele momento, muito mais perto das noções de transitoriedade que
de eternidade. Mas o que resta da casa projetada e construída, após a sua demolição?
Diante de tal questão uma outra ocupação realizada em 2009 em uma casa localiza-
da à Rua João Pinheiro, na cidade de Prata, Minas Gerais, aponta para o encontro, na
casa, de objetos pertencentes ao antigo morador, resíduos por algum motivo deixados
ou esquecidos ali como roupas, livros, contas vencidas e a pagar. De todos os objetos
encontrados, os que me mais prendeu a atenção foram cartas escritas à mão pelo mo-
rador e outras recebidas por pessoas queridas dele. Depois de permanecer um período
do no local, passei à identificação dos objetos dediquei-me a desenhar in situ, partes do
texto de uma das cartas nas próprias paredes da casa (Figura 3). O processo foi filmado
e os textos desenhados nas paredes foram fotografados. Alguns dias depois a casa foi
totalmente demolida.
Figura 4: S/Título. Fita e raspagem sobre papel fotográfico. 2010. (Fonte: Acervo do autor)
Digo outro tipo de apagamento, pois nas ocupações realizadas em Belo Horizonte em
2007 e também nas casas demolidas na cidade de Prata em 2009, pude observar a pre-
sença de outros tipos de ferramentas de apagar. A primeira delas trata-se de uma borracha
de dimensões humanas, já que em determinadas situações, a solução para o apagamento
da casa é realizar a demolição com marretas e alavancas (Figura 5). A segunda borracha
tem dimensões muito maiores, já que possui a escala de uma máquina/trator chamada de
Patrola. Esta máquina, ao chegar aos locais da demolição, atua efetivamente como uma
grande borracha e joga ao chão as matérias da construção. O deslocamento da máquina
possibilitou como derivações desse processo, trabalhar com escalas mais gigantescas de
apagamentos ao demolir as estruturas inteiras que ainda se mantinham de pé.
228 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Figura 5: Frames capturados de vídeo e impressos em papel fotográfico. 2010. (Fonte: Acervo
do autor)
Ao habitar tais lugares, caberia pensar a criação por outras vias, na possibilidade
ainda alargada de realizar desenhos in situ, bem como processos envolvendo o registro
e a manipulação fotográfica. Outros desdobramentos possíveis para esta pesquisa se
fazem ao atentar na relação do espaço com essas cavidades surgidas com a demolição,
com os resíduos e restos que são gerados com o desmoronamento das paredes (ao que
denomino de desenhos revirados, desenhos quebrados, desenhos amontoados e empoei-
rados). Assim, materiais precários e instáveis como a poeira, cacos e pedras, restos de
escombros, ou seja, toda a matéria que sobra com a demolição da casar a pode ampliar
as possibilidades para aprofundamentos plásticos e teóricos pretendidos no desenrolar
desta pesquisa.
Referências
8ª BIENAL DO MERCOSUL. Disponível em: <http://www.bienalmercosul.org.br/novo/index.
php?option=com_pessoa&Itemid=12983&task=detalhe&campo=artista&id=5327> Acesso
em: 28 set 2013.
DEREN, Martina. Los Monumentos de Passaic. Disponível em <http://martinaderen.com/arte/los-
monumentos-de-passaic-de-robert-smithson/>. Acesso em: 28 set 2013.
MATTA-CLARCK, Gordon. Gordon Matta-Clarck descreve seu trabalho: Office Baroque. In:
RANGEL, Gabriela, et al. Gordon Matta-Clarck: desfazer o Espaço. Museu de Arte Moderna
de São Paulo: São Paulo. 2010. P. 178-180
SMITHSON, Robert. Discussões com Heizer, Oppenheim, Smithson. In: FERREIRA, Glória;
COTRIM, Cecília (org.). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
p. 275-288
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 229
Iara Cerqueira
PUC/SP – [email protected]
Pode-se obter mais valor da participação voluntária do que jamais foi imaginado, graças ao
aperfeiçoamento de nossa habilidade de nos conectarmos uns aos outros e de nossa imagina-
ção do que será possível a partir dessa participação. Estamos saindo de uma era de cegueira
induzida por teorias, na qual o compartilhamento do pensamento (e a maioria das interações
não mercadológicas) se limitava, de formas mais inerentes do que casuais, a grupos pequenos
e fechados. (SHIRKY, 2011, p. 144)
Numa perspectiva Corpomídia o corpo que atua nas redes se organiza de forma
autônoma e contextualizada reconfigurando-se continuamente em relações que se cons-
tituem por necessidades de representações no trânsito de diversificar informações e na
busca de um exercício efetivo de atuação partilhada. Este conceito parece se situar poli-
ticamente nesse contexto midiático por entender corpo além do simples fato de ser, mas
de estar, de continuar, num exercício sucessivo, responsável de agente e produtor de sen-
tido. Os corpos se organizam continuadamente tecendo relações que se tornam corpos,
pensando nessas ocorrências como ajustes contínuos nesse ambiente. Essa teoria não
constrói atores/autores refratários e herméticos, pois a própria lógica desse pensamento
se realiza produzindo possibilidades, trocas, negociações e produção de conhecimento.
O conceito de Espaço de autonomia proposto por Manuel Castells ( 2013, p.161)
estudioso da sociedade em redes digitais, e a Teoria Corpomídia entendem corpo impli-
cado no ambiente, fora de uma perspectiva dualista de mundo ou distanciado de acon-
tecimentos sem implicações politicas. Ambos refletem corpo com “responsabilidade
de cada um de nós com o que cada um é e com o que o mundo não somente é, mas,
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 231
sobretudo com o que o mundo pode ser” (KATZ & GREINER, 2011, p.6). Autonomia
segundo Castells refere-se à capacidade de um ator social torna-se sujeito ao definir sua
ação em tornos de projetos elaborados independemente das instituições da sociedade,
segundo seus próprios valores e interesses (2012, p.168).
Outro aspecto interessante em relação à Teoria corpomídia e que nos ajuda a refle-
tir em relação a ações partilhadas nos processos criativos virtuais com a definição de
Espaço de autonomia se localiza nos discursos e posicionamentos que habitam esse
ambiente, pressupondo-se a transformação de politica em biopolítica. A transformação
da politica em biopolitica propõe um entendimento em que o corpo tem papel central
nas discussões acerca da vida, por isso o papel democrático que essa teoria se insere atua
diretamente no papel politico de ser/estar no mundo. O termo biopolítica aparece em
1977 quando Foucault vem ao Brasil participar de uma conferencia sobre o nascimento
da medicina social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
A rede virtual rege com implicações políticas e biopolíticas as novas formas do viver
em um ambiente midiático, que faz do corpo um eixo estruturante da sua existência.
Modos de existir atuam e constituem um pensamento democrático de permanecer, uma
relação continuada e colaborativa de pensar outros modos de existir. Nesse ambiente a
visibilidade tem um fator político implicativo no processo criativo enquanto fator cons-
titutivo do fazer e não somente do produzir, pressupondo uma visibilidade ao pensamen-
to como continuidade e permanência que segundo Greiner (2010, p.93):
(...) considero que é a presença do corpo que dá visibilidade ao pensamento e por isso torna-se
cada vez mais valorizada nas experiências de arte contemporânea cujo objetivo tem sido, prio-
ritariamente, expor pensamentos e não produtos ou resultados estéticos a serem rapidamente
consumidos
Segundo Shirk (2011, p.82) “participar é agir como se sua presença importasse,
como se, quando você vê ou ouve algo sua resposta fizesse parte do evento” e “a satis-
fação de sentimentos de participação e compartilhamento pode aumentar nosso desejo
de maior conexão, o que aumenta sua expressão e assim por diante”.
Blogs, e-mails e sites, mecanismos utilizados na internet para a circulação de in-
formação, instiga a reflexão sobre os processos de criar compartilhados estimulando
discursos e sugestões, ampliando caminhos e intersecções na qual articulações geram
novas compreensões dessas relações virtuais. Por outro lado as relações de poder se
constituem cotidianamente nesse ambiente.
Roberto Espósito (2010), em Paradigma da Imunização discorre sobre o poder de
continuidade da vida, de conservar viva a vida, que salva e assegura o organismo de
forma individual ou coletiva, introduzindo no seu interior um fragmento da mesma
substancia patogênica da qual o quer proteger e que, assim, bloqueia e contraria o seu
desenvolvimento natural. Para ser conservada, a vida se utiliza de uma imunidade in-
duzida, artificial, um agente externo que coopera na continuidade da existência, nesse
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A potencialização positiva dos interesses compartilhados dos que atuam em redes digitais pa-
rece unificar os sujeitos por meio de um acordo ou pacto refratando a legitimidade de discursos
que não se encaixem nesse perfil. Nesse entendimento vão enfraquecendo as possibilidades
de outros questionamentos, promovendo positivamente os traços que legitimam os acordos
desses atores/autores que se encontram nesse espaço virtual despotencializando outros saberes
assim como o exercício de partilhar informações de criação em dança. Mudanças gradativas
ocorrem motivada pela participação entre pessoas que longe de se estabilizarem continua a
crescer e a satisfazer desejos de informação e conhecimento fomentados por anseios e interes-
ses pessoais. (ALBUQUERQUE, 2013, p.6)
Conclusão
A experiência nas redes faz pensar como as postagens sobre experiências criativas
evidencia o caráter experimental e visível que faz as redes virtuais se tornarem credíveis,
consequentemente possibilitando construir autonomia e conhecimento. Possivelmente a
ideia de satisfação de participação nos processos de criação nas redes digitais conflua
ao estabelecimento de uma dependência desses pares, assim como uma hierarquização
sutil e móvel, porém com características de controle assim como o poder pastoral, que
segundo Lazaratto (2010) estabelece relações contínuas e complexas entre os homens,
uma dependência do outro, de ver e ser visto.
O interesse mais específico de discorrer sobre os processos do fazer dança num con-
texto complexo de uma rede comunicativa entre corpo e ambiente com mediação do cibe-
respaço se situa nos discursos que são produzidos nesse fazer artístico, nesse lugar que re-
flete pensamentos/posicionamentos singulares e coletivos, muito mais do que um espaço
de diálogo constitui-se num ambiente gerador de conteúdo e produtor de conhecimento.
Partilhar nas redes virtuais os processos artísticos, bem como disseminar os resultados
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 233
dos estudos e práticas facilita e possibilita a organização dos conteúdos discutidos. É uma
comunicação que amplia caminhos, intersecções e articulações que geram novas com-
preensões dessas relações midiáticas. Essas formas outras de conviver apontam para uma
reformulação dos entendimentos sobre os modos de agir online: participar e compartilhar
são verbos que nomeiam ações com implicações sociais diferentes. Nesse sentido o papel
da internet trata-se de um eficiente meio de propagação e uma constante necessidade de
se relacionar e fidelizar os usuários virtuais proporcionando importantes mudanças nos
atuais processos de transformação e desafios do espaço da cidade.
Nesse caminho faz-se pertinente uma rápida abordagem sobre as manifestações de
julho de 2013 no Brasil para refletir sobre a questão de autoria nos processos de criação
em rede digitais.
O papel desempenhado pela internet viabilizou a potencia de agenciamento e indig-
nação de uma população em protesto buscando um espaço na cidade de resistência e
liberdade contra as ações ditatórias exercidas pelo poder publico.
Assim como os manifestantes que foram as ruas sem interesse de serem nomeados,
a possibilidade de criar algo representativo que legitime essa ação em conjunto discorre
pelo mesmo caminho. Ao estar partilhando um procedimento em rede todos são expe-
rimentadores, fazem parte de uma ação processual em que a própria condição de atuar
favorece a criação e aprofundamento de uma politica de cooperação. Viver em rede
implica, em viver em um mundo onde tudo pode ser inventado para ser partilhado com
outros, que também podem ser inventados. O que configura a existência e o ato de postar
– que não precisa corresponder a alguém com vida civil verificável. Ou seja, o compar-
tilhamento proposto em rede pode ter efeitos transformadores em torno do espaço e do
tempo e focaliza reconhecer e ajustar mecanismos para sobreviver, por isso esse lugar
que organiza as pessoas, as coisas, as circulações e as maneiras de fazer, tendo os autores
envolvidos, se tornam agentes e produtores de sentidos coletivos.
Redes são estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada, integrando novos nós
desde que consigam comunicar-se dentro da rede, ou seja, desde que compartilhem os mesmos
códigos de comunicação (por exemplo, valores ou objetivos de desempenho). Uma estrutura
social com base em redes é um sistema aberto altamente dinâmico suscetível de inovação sem
ameaças ao seu equilíbrio (CASTELLS, 1999, p.566)
Bibliografia
ALBUQUERQUE, Iara Cerqueira Linhares de. Anais do 4º. Encontro Nacional de Pesquisadores
em Dança (2013).
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Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 235
Introdução
Uma das características da contemporaneidade é a dissolução de barreiras entre as lin-
guagens artísticas. Na medida em que este pensamento é difundido e proporciona zonas
de passagem e hibridismo, mais ocorre o diálogo entre diversas áreas e isso pode ser
identificado tanto nas criações artísticas como também em projetos educacionais, traba-
lhos acadêmicos, entre outros.
O presente trabalho propõe identificar e analisar elementos característicos da lingua-
gem plástica em experimentos coreográficos e performativos. O corpo dos bailarinos/
performers vistos como objeto plástico, e as interferências do meio nesses sujeitos serão
eixos norteadores nesta pesquisa. Para promover esse diálogo entre Dança Contempo-
rânea e Artes Plásticas utilizaremos a fotografia como ferramenta principal de análise.
Apesar do hibridismo entre as linguagens artísticas ser marcante na contemporanei-
dade é possível perceber a carência de estudos que tratem especificamente de Plastici-
dade na Dança. Além disso, o interesse pela temática é oriundo da formação em Artes
Plásticas da pesquisadora e seus trabalhos autorais fotográficos em diálogo com seus
atuais trabalhos com a Dança Contemporânea.
(...) um corpo agora hiperaparelhado, correndo todos os riscos dos estados que isto pode pro-
vocar. Alterou também o modo de se pensar a organização coreográfica, como uma produção
linear com determinismos concretizados, ao utilizar diversas estratégias, tais como o acaso, e
as observações e análises sobre como se chega a determinado movimento e o universo que este
estado de estar entre, de mediar, possibilita como enriquecimento.
Afirma ainda que o ser humano é por natureza um ser plástico e que ao passar por di-
versas experiências passa por transformações. E que a cada transformação novas formas
expressivas aparecem. Dessa forma, o bailarino sendo obra de arte, representa o material
de sua própria expressão. (ALMEIDA, 2011) Cada indivíduo tem uma “digital”, uma
expressão, resultantes de sua vivência.
238 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
A Fotografia e a Arte
O fenômeno da produção de imagem pela passagem da luz através de um orifício já era
conhecido por volta de 350 a.C.. Em torno de 1525 foi descoberto o escurecimento de
sais de prata e a partir daí, diversas atividades químicas, que mais tarde levariam ao des-
cobrimento da Fotografia, foram experimentadas. Mas foi por volta de 1826 que a primei-
ra fotografia foi reconhecida, quando o inventor francês Joseph Nicéphore Niépce con-
seguiu fixar permanentemente uma imagem. Paralelamente, Daguerre também produzia
efeitos visuais com uma câmara escura e a este espetáculo dava o nome de Diorama.
As descobertas da época, principalmente as de Daguerre anunciadas em 1839, cau-
saram estranhamento e surpresa. Ao mesmo tempo em que conquistaram a atenção de
muitos, também causaram revolta entre artistas que não reconheciam seu caráter estéti-
co. A fidelidade das imagens com o real, a riqueza de detalhes, jamais seriam alcançadas
pelas mãos de um pintor, já que a Fotografia era a transposição direta da realidade.
Durante um tempo a Fotografia foi vista apenas como um instrumento, um auxiliar das
Ciências. Com muita resistência, no ano de 1859, pela primeira vez o Salon Carré do
Louvre, salão francês que expunha obras de vários artistas, abriu um espaço exclusiva-
mente para a fotografia.
Com o passar dos anos as críticas foram diminuindo, aos poucos ascende a visão de
que a Fotografia não precisava ser testemunho, poderia se desprender do real. Muitos
artistas passaram a se utilizar da fotografia para desenvolver suas obras e a partir do
século XX, a relação entre Fotografia e Arte se estreitou ainda mais nas chamadas Artes
Contemporâneas. Para Susan Sontag, a fotografia seria um poderoso instrumento de dis-
tanciamento e de despersonalização de nossa relação com o mundo, na medida em que a
câmera faria com que as coisas “exóticas” parecessem próximas e as “familiares”, estra-
nhas e distantes (2004, apud DOMINGOS, 2008, p. 29). A Fotografia não seria somente
um instrumento de registro documentário, mas também um instrumento de expressão do
imaginário e do Olhar de cada individuo.
O corpo na Fotografia
Como já mencionado anteriormente, a temática “Corpo” sempre foi abordada nas obras
de Arte, tanto como mero assunto a ser reproduzido, como também reprodutor de ideias.
Na Fotografia não foi diferente, na moda e na publicidade, por exemplo, o corpo é peça
fundamental até os dias de hoje. Assim como nas Artes, a Fotografia Contemporânea ex-
plora de maneira criativa as possibilidades que o Corpo pode oferecer. A exemplo disso,
neste trabalho pretende-se captar imagens do Corpo em movimento, suas fragmentações
e os efeitos visuais resultantes da combinação: corpo, movimento, iluminação, figurino
e cenário. Dialogando com a ideia acima, Wilton Garcia (2007 p. 3 e 4) discorre sobre
sua obra:
Em meus trabalhos como artista e pesquisador, por exemplo, utilizo o corpo como tema recor-
rente de criações visuais e investigativas para abarcar o viés da ação crítico criativa exposta na
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 239
Sob um ponto de vista plástico, poderíamos comparar o corpo em cena, a uma pin-
tura. A imagem que vimos numa tela é impregnada de elementos, que juntos formam
uma composição visual. Da mesma forma, se visualizarmos o corpo em performance,
como “Corpo-Obra-de-Arte”1 ou objeto plástico, conseguiríamos identificar os mesmos
elementos visuais, característicos de uma pintura: linha, ponto, movimento, cor, textura,
luz, entre outros. Em um espetáculo de Dança, portanto, a composição visual seria o
corpo e seus elementos, inseridos num espaço também repleto de informações, como
cenário, figurino e iluminação.
A sintaxe visual existe. Há linhas gerais para a criação de composição. Há elementos básicos
que podem ser aprendidos e compreendidos por todos os estudiosos dos meios de comunica-
ção visual, sejam eles artistas ou não, e podem ser usados, em conjunto com técnicas manipu-
lativas, para a criação de mensagens visuais claras.
Linha; Luz;
Forma; Movimento;
Textura; Perspectiva.
Cor;
1. Expressão utilizada por Márcia Almeida na obra Arte Coreográfica: plasticidade corporal e
conhecimento sensível, 2012.
240 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Considerações finais
Os elementos visuais presentes na composição de uma pintura, uma fotografia ou um
vídeo, também podem ser vistos numa composição coreográfica, ou numa performan-
ce. Isso porque, a estrutura corporal apresenta características plásticas de um objeto de
arte, os membros apresentam linhas retas e curvas, na pele é possível enxergar textura,
luminosidade, cor, assim como no cabelo. A posição do corpo em relação ao espaço, por
exemplo, pode sugerir um ponto ou a ideia de perspectiva. O deslocamento e os gestos
dão movimento à cena e os próprios movimentos coreográficos apresentam um pouco de
cada elemento plástico. Por meio da fotografia é possível captar os rastros deixados por
essa movimentação. As cores provenientes da iluminação, do cenário, do figurino e do
corpo em movimento se misturam formando uma massa de tinta na imagem fotográfica.
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Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 241
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242 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Monumentos insurgentes:
utopias concretas em tempo real
Ines Linke
UFSJ – [email protected]
Luis Firmato
UFSJ
Monumentos são erguidos nos espaços públicos para homenagear personagens, ce-
lebrar eventos históricos e ornamentar a paisagem urbana. Eles se destacam tradicio-
nalmente por suas dimensões ou materialidade, como pela capacidade de formar iden-
tidades e consolidar memorias coletivas. Apesar de se tornarem imagens estáticas de
personagens ou ações, os marcadores permanentes de identidade local e/ou nacional
também contribuem para o esquecimento dos eventos. Nesse aspecto, refletindo sobre
um conceito ampliado de monumento, Deleuze e Guattari (1992), associam-no a um
ato de fabulação que remete uma história parcial e excludente. São atos seletivos que
(re)inventam heróis dispostos no espaço urbano como fantasmas (na maioria das vezes
representando homens brancos de meia idade) em pedra e metal.
No século XX, outras iniciativas romperam com as convenções estéticas de bustos,
estátuas de personagens e heróis históricos, etc., propuseram diferentes relações com o
espaço físico e o contexto sociocultural e utilizaram estratégias artísticas para desafiar
a norma hegemônica no espaço público. Nesse contexto, o antimonumento dos anos
1960/1970 se afirmou tanto por tentar romper com o regime estético vigente, como por
questionar a supremacia representada por convenção da categoria artística. O antimo-
numento foi posto em oposição a ideia tradicional do monumento e teve sua forma e
função deslocada. O Memorial Invisível (1993), exemplo radical de arte pública, foi
criado por Jochen Gerz e alunos da Academia de Arte de Saarbrücken. 2146 pedras
de calçamentos foram removidas e gravados em uma das faces nomes de cemitérios
judaicos e reassentadas com a inscrição contra o chão da praça que era sitio do centro da
Gestapo. Assim, o lugar da memória é substituído por uma experiência do espectador e
o público estabelece relações física e simbólica com o lugar.
Dialogando com noções anti-hierárquicas e críticas sociais dos anos 60/70 inerentes
ao antimonumento e o contramonumento, Hirschhorn recusa em seus trabalhos as cara-
terísticas do monumento clássico para repensar a arte pública. Em Monumento a Batai-
lle, uma homenagem escultural temporária concebida pela Documenta 11 de Kassel, o
artista improvisa uma exposição a partir de materiais cotidianos externa dos principais
locais da mostra e cria uma situação relacional com uma comunidade de trabalhadores,
na maior parte imigrantes. Os moradores são convidados e contratadas para colaborar
com o artista em atividades diárias em torno da obra do filósofo francês Georges Batai-
lle. O artista se coloca enquanto proponente e trabalhador responsável pelo funciona-
mento da obra, que tende estimular cooperação e parcerias capazes de revelar as junções
secretas entre as coisas, como a participar na lutar contra injustiças e desigualdades
sociais. As atividades diárias na biblioteca temporária, na venda de Kebab, no estúdio
de TV, nas oficinas, etc., são transmitidas ao vivo na internet.
244 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Figura 1 e 2. À esquerda: Construção do monumento (Todd Heisler, The New York Times,
2013) . À direita: Inauguração do Monumento (Construction pictures, http://gramsci-monu-
ment.com/page121.html, 26.06.2013).
por diferentes pessoas, práticas e discursos. No encontro com o outro, os valores são
negociados para (re)projetar um ambiente a partir dos elementos existentes, unindo o
que habitualmente não pode ser unido, interferindo, deste modo, na realidade imediata.
No caso do Brasil, os monumentos tradicionais apresentavam eventos de uma forma
propagandística importando modelos iconográficos idealizados, herdados da tradição
acadêmica europeia. Todas as cidades têm bustos de “personalidades celebres” e em
vários locais se encontram estatuas de índios, bandeirantes e negros em escala majestosa
numa tentativa de valorizar as raízes brasileiras e expressar as fabulas nacionais. Nos
últimos anos, também surgiram contramonumentos como o Monumento ao Índio (Brasí-
lia, 2000) que rememora a morte do índio Galdino, incendiado em 1997, ao mesmo tem-
po em que perpetua as convenções do monumento tradicional. Outro tipo de mobiliza-
ção, que poderia ser enxergada como escultura social ou monumento público, aconteceu
em 2012 a partir da divulgação de uma carta de índios guaranis caiovás do Mato Grosso
do Sul denunciando violências sofridas pela tribo. Em solidariedade, brasileiros urbanos
adicionaram o sobrenome Guarani – Kaiowa a seus primeiros nomes nas redes sociais.
A afirmação “Sou Guarani Kaiowá” não agrega valor indenitário a partir de sua
enunciação, mas aponta para um significado simbólico construído a partir de um con-
texto especifico. O convite para compor o Monumento a Macunaíma também circulou
na Internet. A partir das propostas uma programação de três dias buscando privilegiar
atividades que desafiariam o caráter monumental da arte pública, ações que apontaram
para crises de “civilização” por meio de intervenções efêmeras e instancias que dialoga-
ram com os monumentos de Hirschhorn antropofagicamente, foram criadas.
Instâncias de troca foram produzidas, diferentes visões confrontadas e estimulada
a ativação recíproca na interação entre o espaço físico e imaginário sugerido pela obra
Macunaíma. Escolheu-se o personagem-título do romance do escritor brasileiro Mario
de Andrade (1928) como falso herói capaz de representar o multiculturalismo brasileiro.
Mas o que se deseja comemorar?
As ações Carregamento do tronco e Moradores: ocupação noturna do grupo Ur-
banidades-Intervenções integrou a programação heterogênea do evento que teve parti-
cipação ativa de mais de quarenta pessoas. Carregamento de Tronco (Figuras 3 e 4) se
baseou inicialmente nas corridas com carregamento de toras de madeira realizados por
tribos brasileiras. Segundo Júlio Cezar Melatti, as corridas com toras estão ligadas á
práticas rituais, porem, apesar de depender diretamente de habilidades físicas humanas,
não podem ser consideradas esportivas já que não apresentam elementos competitivos.
O ritual consiste basicamente em carregar um tronco de madeira ao longo de um trajeto
predefinido. Para a ação do monumento, optou-se carregar uma amarrado de varas de
bambu de seis metros que lembrou um tronco ou mastro de Santo Antônio de uma ma-
terial local pouco presente na imagem da cidade.
246 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Referências
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30.07.2013.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 249
Este texto relata uma pesquisa atual em Desenho, cujos desdobramentos le-
vantam questões sobre o limite entre o acabamento e o inacabamento de um
trabalho artístico. Questionam-se quais seriam os indicativos do desenho de
observação enquanto registro de um “motivo” e quais seriam os indicativos de
um desenho que adquire o status de autônomo. Espera-se que a aproximação
ou distanciamento da materialidade do desenho com relação ao referente, de
certa forma mensure o quão autônomo o trabalho é, em nível de estilização
ou abstração das suas formas. Este processo é mediado conceitualmente por
Pareyson (1984), em questões que tocam a formatividade de uma obra, em
diálogo com Salles (2009).
Palavras-chave: Desenho; processo de criação; formatividade; sombras.
This text reports a current research in Drawing, which unfolding allows rai-
se questions concerning the boundary between the ending and the incom-
pleteness of an artwork. It questions which would be indicative of observa-
tion drawing while registering a “reason” and which would be indicative of a
drawing that acquires the status of autonomous. It is hoped that the approach
or detachement from the drawing materiality in respect to the referent, in a way
to measure how as the work is at the level of abstraction or its forms stylization.
This process is conceptually mediated by Pareyson (1984), on issues that tou-
ch the formativity of an artwork in dialogue to Salles (1998).
Keywords: Drawing, creation process; formativity; shadows.
250 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Considerações iniciais
Desde os primeiros desenhos, durante a graduação em artes visuais, pôde ser observada
a recorrência de um modo específico de ocupação do espaço, em que a forma represen-
tada ocupava uma pequena porção ao centro, deixando grande parte para o pronuncia-
mento do vazio. O contorno era então preenchido com hachuras a grafite, até obter a
variação de alguns pontos na escala de valor, conferindo uma noção básica de volume.
Como fiz tais desenhos pensando-os inicialmente como esboços, estudos preparatórios
no campo da observação e da memória, não vinculei a ocupação espacial da forma a uma
peculiaridade sua, como se ela possuísse um “caráter introspectivo”.
A partir do momento em que essa “introspecção” da forma foi aventada, deu-se início
à parte experimental propriamente dita, tendo como norteadores os seguintes elementos:
a relação de proporção forma-espaço; os graus da escala de valor; a relação claro-escu-
ro e a notação de sombras, como elementos visuais que pudessem alterar ou corroborar
a situação dada naqueles esboços observados. Tais relações de contraste e composição
demandaram, por sua vez, experimentações com outros materiais para além dos grafites.
A parte prática atual consiste na produção de uma série de desenhos de observação
a partir objetos de pequena escala, facilmente disponíveis, mas que ao mesmo tempo,
apresentam uma complexidade em sua forma, sobretudo na riqueza de seus planos. Em
suas sobreposições e/ou justaposições já se percebe o potencial para uma composição
gráfica relativamente impactante em sua visualidade, podendo ser mais explorada, de
acordo com o grau de descentralização da forma no espaço do suporte.
Com base nesse critério, para uma primeira experimentação, foram escolhidos mo-
tivos como papéis levemente amassados em um “exercício tautológico” do desenho,
ou seja, ocorre a representação visual de um papel amassado sobre um plano de papel.
Posteriormente, representei pequenas pedras irregulares de cortes bem definidos. Tais
objetos foram, em diferentes momentos, colocados sobre uma base plana e firme sob
uma luz próxima e relativamente difusa, projetando sombras no próprio modelo (objeto
real) bem como na sua base.
Uma questão importante é respectiva às qualidades matéricas dos elementos ob-
servados: papeis amassados e pedras solicitam um modo específico de traçar. Como os
limites desses elementos com o entorno são bastante definidos, suas sombras próprias e
as projetadas solicitam igualmente procedimentos técnico-formais em consonância com
a dureza de seus contornos. As linhas de contorno das formas contribuem para a per-
cepção de diferentes pesos visuais nos desenhos representados com as pedras e papéis
amassados: a pedra, por ser fisicamente mais pesada deve corresponder no desenho a
um peso visual maior, conseguido com uma linha de contorno mais densa; enquanto no
papel, ela deve permanecer “leve” assim como material referente.
Procedimentos e discussões
Nos estudos iniciais já se fez relevante a variação de texturas nas formas gerais do
desenho, dadas primeiramente com hachuras rápidas e evidentes. No entanto, o estudo
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 251
das sombras merece uma demanda temporal maior. Percebo que a sombra é um indício
importante não somente para conquistas técnicas, mas também para ganhos composicio-
nais e simbólicos. Para tal, utilizei-me de situações de um foco e de dois focos de luz, no
sentido de multiplicar as sombras dos referentes.
Onde havia sombras médias (difusas), este conjunto de linhas deveria acontecer
unidirecionalmente, no sentido dominante (de maior peso) em cada parte. As sombras
projetadas nos objetos deveriam se dar por dois momentos hachurados, em direções
opostas e sobrepostas, como se cruzadas. A sombra de situação, responsável por situar
o desenho em seu espaço, se destacaria por uma segunda técnica gráfica, limitando uma
área de mancha escura e opaca, obtida com têmpera (Figuras 1 e 2).
Esta sombra destacada, além de apoiar visualmente a forma, pretende apontar com um
de seus vértices extremos, para uma grande área de papel branco, mantendo diálogo cons-
tante entre figura e fundo, harmonizando a composição e garantindo sua dinâmica visual.
Há, portanto, uma diferenciação de duas sombras, e com elas, uma necessidade de
representação de diversos instantes no desenho: a representação do objeto; de sua som-
bra natural (difusa); e da sombra de situação; esta, focada e projetada, tanto no objeto
quanto no espaço circundante.
Cada uma dessas partes demanda uma particularidade de tratamento visual em sua
textura e técnica utilizada. A premissa aqui é a de fazer corresponder a materialidade do
desenho à materialidade do referente, aproximando-os. Espera-se que esta aproximação
ou distanciamento do desenho com relação ao modelo, de certa forma mensure o quão
autônomo o trabalho é em nível de estilização ou abstração das suas formas.
Nas primeiras experimentações, notou-se uma disparidade indesejada, fragmentando o
desenho em dois, com prejuízo das formas em grafite. Julgando ser um conflito de ordem
técnica, foi buscada uma aproximação das hachuras entre si, sendo menos evidente em sua
252 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
individualidade, para poder se comportar também como mancha. Com isso, esperava-se
obter mais coerência entre as partes da forma e a unidade do todo. O desenho não estava
finalizado, estava ainda na esfera do esboço preparatório – fato reforçado pela necessidade
de registros fotográficos como documento processual, durante essa etapa.
A questão que se coloca nesse momento é: como as tonalidades de cinza contribuem
para a autonomia do trabalho sem a perda da materialidade original, indicada no referente?
Havia ali, um distanciamento muito grande entre os tons de cinza e o preto. Os cin-
zas se aproximavam mais do branco do suporte do que da mancha escura, demandando
uma revisão desta escala de valores, com tons médios. A ambiguidade técnica conti-
nuava gerando um conflito visual, visto que ambas concorriam entre si pela atenção do
espectador, prejudicando a totalidade do trabalho.
São testadas outras densidades de grafite e espalhamentos da forma em suas manchas,
com a projeção de um foco de luz mais denso em posição diferente da primeira fonte lumi-
nosa. Nesse caso, as sombras secundárias claras também foram feitas com técnica úmida,
como a mancha escura, para se diferenciar em textura com o material observado.
Uma segunda variação seria a de destacar somente a sombra de situação no dese-
nho, reduzindo as demais. Assim, somente a mancha escura divide espaço com o objeto
representado, semelhante às pesquisas plásticas de Regina Silveira (Figura 3), diferen-
ciando-se na composição espacial. Enquanto a artista projeta as sombras em espaços
tridimensionais para obter distorções visuais nas mesmas, este trabalho volta-se para a
percepção bidimensional, procurando a ativação do espaço branco do suporte, a partir
das formas desenhadas.
Figura 3: Regina Silveira. Paradoxo do Santo, 1994. Vinil adesivo, madeira e escultura, 155
m2. Foto: Ding Musa. (Fonte: reginasilveira.com).
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 253
A relação entre forma e conteúdo não pode ser definida, portanto, por uma dico-
tomia. Investigar onde um começa e o outro termina é descobrir a própria natureza da
arte. O poder de expressão do produto que está sendo fabricado está na fusão de forma
e conteúdo – uma espécie de amálgama. (SALLES, 2009: 80).
Este poder de expressão é dado na experiência com a obra entregue ao público; em
outras palavras, sua contemplação estética plena, dentro do que o artista se propôs, e por
vezes se estendendo além. Podemos entender ainda a questão do acabamento e expres-
sividade da forma segundo o conceito de “presença” da obra de arte no pensamento de
Didi-Huberman. Segundo o autor, esta presença teria uma característica aurática, perce-
bida por uma relação dialética entre o objeto artístico e o observador.
Aurático, em consequência, seria o objeto cuja aparição se desdobra, para além de
sua própria visibilidade, o que devemos denominar suas imagens, suas imagens em
constelações ou em nuvens, que se impõem a nós como outras tantas figuras associadas,
que surgem, se aproximam e se afastam para poetizar, trabalhar, abrir tanto seu aspecto,
quanto sua significação, para fazer delas uma obra do inconsciente. (DIDI-HUBER-
MAN, 1998: 149, grifos do autor).
Podemos dizer que somente a obra acabada, no sentido de sua própria realização
enquanto processo e apresentação tem a presença aurática capaz de justificar-se pela
contemplação que proporciona, ao mesmo tempo em que possibilita e permite ao obser-
vador associações complementares diversas para além de sua visualidade. No entanto,
considerando que lido com esboços e estudos e que estes ainda não foram vistos por
outras pessoas, coloco-me como o observador, o outro que observa atentamente o que
o desenhista está a fazer e, assim, perceber os graus de finalização e inacabamento dos
desenhos. Neles, o observador que sou eu, pode percebe o grau de desdobramento das
pedras e papeis em nuvens, que sobrevoam a planaridade do suporte.
Considerações finais
Enquanto esboço, o desenho é geralmente caracterizado por sua redução técnica, ma-
terial e escalar, a fim de uma execução mais ágil. Ou seja, o desenho preliminar apre-
senta-se com caráter imediato de estudo preparatório para outro fim (posterior àquele).
O desenho final também tem essa intenção de sê-lo, desde sua gênese. A diferença com
relação ao esboço está no fato de ele apresentar um nível mais detalhado, no sentido
de adequação de suas formas ao seu conteúdo, tornando-se idealmente pleno no que se
propõe. Torna-se objeto autônomo com relação ao seu próprio processo de construção.
Há graus de autonomia do desenho, esta autonomia sendo definida quanto à sua in-
tencionalidade do proponente, intenção final do artista. Ou seja, se o desenho tem ou não
a pretensão de ser arte finalizada – e isso deve transparecer no trabalho, salvo nos casos
de esta ser apresentada ao público como uma forma artística alternativa. Esta pesquisa
não se esgotando aqui, encontra-se em processo de produção e reflexão. Tais hipóteses
têm de ser constantemente testadas para conclusões mais consistentes.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 255
Referências
DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.
SALLES, C. A. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Annablume/FAPESP,
1998.
PAREYSON, L. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
256 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Uma das estratégias utilizadas para a construção da dramaturgia das personagens foi
que, cada ator criasse uma espécie de carta que identificasse as características de seus
personagens. Cada carta criada pelos atores era nomeada como AVATAR. Personagens
como jogadores de um tabuleiro da vida. Com essas construções, assim cada ator ficou
responsável de construir suas células, levando em consideração as características de
seus avatares. Os atores usaram para a construção dessa carta desenhos, colagens, pintu-
ras para identificar seu jogador. Com esse tipo de estratégia percebo que já íamos crian-
do nossos personagens e eles já iam ficando em nossos corpos mesmo que timidamente.
Até esta etapa do processo os personagens eram Dante, Virgílio, Beatriz, Matilde, Deus,
Diabo, Onça, Loba e Leão. A construção destas cartas possibilitou a primeira construção
do que seriam nossos personagens.
Esta criação levou em consideração os três espaços, como se para cada espaço: in-
ferno, purgatório e paraíso, existissem ou fosse criado um personagem diferente. Com
suas intenções, partituras e desejos. Precisávamos, além de criar as partituras (células),
exercitar os nossos corpos para as mudanças rápidas de espaços. Usando-se dos proce-
dimentos de hipertensão e suspensão íamos saindo de um espaço e entrando em outro.
Então, precisávamos deixar tecidos em nossos corpos referências que nós conduzissem
a cada um daqueles espaços sugeridos por Dante. A diferença é que todos os espaços
seriam usados em simultaneidade. E para a construção das personagens esses fatores
deveriam ser levados em conta.
Semanalmente nos encontrávamos para a realização de trabalhos físicos que en-
volvia voz e corpo. O treinamento conduzido pela encenadora apontava a atenção para
exercícios de dicção, precisão, agilidade, foco, força, jogo e interação entre os envolvi-
dos. As partituras criadas eram pensadas e repensadas. Para esta construção utilizamos
bastante da repetição para desenvolver um treinamento eficiente com/em nossos corpos.
Para que estes chegassem à cena vivos e vigorosos.
Desenvolvemos algumas perguntas, que primeiramente foram feitas a nós mesmos,
como: Qual seu sonho? Qual seu medo? E quanto você está disposto a pagar? Depois
de pensadas essas perguntas e, pelo menos temporariamente, respondidas a nós mes-
mos, resolvemos realizar as perguntas também com a comunidade. Aquelas pessoas
que responderam a tais perguntas sonhavam em ter uma casa, em se formar, em ganhar
na loteria e na maior parte das respostas estavam dispostos a tudo e ao próprio esforço
para conseguir seus objetivos. Alguns desses fragmentos foram inseridos na primeira
versão da dramaturgia. Depois dessas pesquisas sobre o medo o sonho e o preço, a ence-
nadora propôs que nós atores desenvolvêssemos pelo menos 3 personagens-tipo. Ainda
na primeira versão da dramaturgia nós desenvolvemos algumas cenas baseadas nesses
personagens-tipo. Eram figuras comuns da nossa sociedade que resolvemos usar de ins-
piração para a criação, neste caso, t anto da dramaturgia textual quanto à dramaturgia da
personagem. Muitos recortes foram feitos para essa construção de personagens até que
se estabelecesse o que seria levado ao público.
260 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Referências
FERREIRA, Cecília Maria de Araújo. Cena e jogo: o imaginário na carne. 2009. Dissertação
(Mestrado em Artes Cênicas) – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Universidade
Federal da Bahia.
GAYOTTO, Lucia Helena. Voz Partitura da Ação. São Paulo: Summus. 1997.
MARTINS, Marcos Bulhões. Encenação em jogo: experimento de aprendizagem e criação do
teatro. São Paulo: HUCITEC, 2004.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. – 6º Ed. – Petópolis, vozes. Rio de
Janeiro. 1991.
SALLES, Cecília Almeida. Gesto Inacabado: processo de criação artística. 2º Ed – São Paulo –
FAPESP – Annablume, 2004.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 261
Simulacro e jurisprudência –
Sobre o desejo de normose frente
aos subterfúgios da criação
Figura 1: Rio 40º, Cristina Canale, 1987. Figura 2: Com curadoria de Luiz Camillo
Óleo s/ tela, 200 x 300 cm. Coleção Marcan- Osório, Cristina Canale, mostra individual,
tonio Vilaça. Imagem extraída de http://www. Arredores e Rastros MAM - Rio de Janeiro.
nararoesler.com.br/disponiveis/cristina-cana- 21.06.2010. Imagem extraída de http://www.
le em 22 de setembro de 2013. nararoesler.com.br/noticias/cristina-cana-
le-abre-mostra-individual-no-mam-rio-de-ja-
neiro em 22 de setembro de 2013.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 263
Da ficção ao fato
Para investigar os contextos e estratégias onde se insere o desejo de reconhecimento so-
bre ato de criação ambicionado pelo autor, posto que a criação de configurações visuais,
ainda pode ser vista como uma tentativa de comunicação, daí a necessidade de resposta
pública sobre este ato, ou seja, para observarmos o âmbito de validação e reconhecimen-
to da obra de arte, vamos percorrer e definir os conceitos e substâncias que estariam en-
volvidos neste processo que em ultima instância, constitui mais um campo de manobras
onde o autor deve participar, com uma determinada eficiência, para que sua produção
264 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
seja reconhecida ou ignorada. Neste momento vamos chamar a atenção sobre o aspecto
ficcional (Vaihinger, 1925), da obra de arte em seu berço. No seu momento de criação a
obra de arte pode ser admitida como uma ficção livre. Cada configuração visual criada
pode ser uma especulação imaginativa, antes que a mesma, segundo seu êxito dentro do
sistema cultural circundante, ultrapasse sua situação inicial de ficção livre, para atingir
posteriormente a realidade em uma nova condição de coisa durável, ou fato visual. Este
êxito, pode ser obtido através da sedimentação cultural conquistada pelas estratégias
eficazes implementadas no processo de inserção pública da obra. Digamos aqui: o êxito
do desejo de reconhecimento que autor espera da sua produção, a passagem da ficção ao
fato cultural instituído, é diretamente proporcional á eficiência conquistada, na constru-
ção da narrativa contextual da sua imagem. Esta qualidade pode ser visível na própria
obra como presença visual inserida no sistema dominante, ou reconhecível nas atitudes
ou conceituações escritas do artista.
A estratégia da jurisprudência
O uso de recursos históricos como um argumento de jurisprudência, poderia ser com-
preendido como outra possibilidade de validação e reconhecimento, desde que seja con-
cebido dentro de um contexto neo-acadêmico, onde o autor tem, a princípio, uma rela-
ção estreitada com o conhecimento formal e institucional da arte. Lançar mão daquilo
que já está sedimentado na cultura historificada, para que através de correspondências e
relações silogísticas, se consiga introduzir substancialidade nas criações recentes, pode
ser um recurso de eficaz baseado em exemplos e analógicos, uma vez que: aquilo que
foi inicialmente concebido como uma ficção livre passe a condição de substância ativa,
quando atinge a realidade, diga se, caso consiga atingir o sistema cultural, com força
duradoura. A esta possibilidade de romper os limites do Umwelt e atingir a realidade,
chamuscos de eficiência da ficção, ou ficção eficiente, como definiu Vaihinger.
Lembramos que a imagem artística instituída, passa pelo mesmo processo de con-
venção social. Tudo se inicia como um absurdo ficcional, uma mentira, para adquirir,
à medida que comprova sua eficiência, como função essencial para a continuação da
vida, o status de verdade no final deste processo, como aponta Nietzche em Sobre la
verdad y mentira en sentido extramoral. (Nietzche, 2010). A imagem artística é efi-
ciente e durável, quando é importante para a continuação da espécie, quando importa,
em algum sentido, para o sensus comunis (Kant, 1987). Daí, podemos compreender a
dificuldade em definir apriorísticamente, o que é, ou o que pode ser arte, uma vez que,
quem define esta qualidade é um acordo, prolongado no tempo, entre o senso comum
e o poder cultural estabelecido. Quer dizer a estratégia da jurisprudência tem sua efi-
ciência comprovada, quando um juízo positivo construído ao longo do tempo, advém
de uma normose com âmbito do poder da crítica institucionalizada. Considerando isto,
resta ao criador também ser um bom jogador neste campo de sutilezas, para que sua
produção ganhe importância, visibilidade e duração. Neste caso, nos parece que o artista
deve saber interagir, tanto com a crítica institucional quanto com o senso comum. Não
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 265
podemos esquecer que os teóricos, mesmo considerando sua quantidade numérica redu-
zida, também fazem parte e integram-se ao senso comum e também podem nutrir-se de
uma relação intuitiva com ele.
Considerações finais
Na adversidade vivemos, simulamos, interpretamos e narramos imagens, as múltiplas
bifurcações de caminhos e possibilidades que o contexto cultural nos oferece, exige
atualmente que o artista, mais do que saber fazer coisas com as mãos, também saiba
tomar atitude. Para esta permanente condição em que se encontra o autor, um desejo de
normose frentes aos subterfúgios que envolvem o processo de criação da obra de arte, a
principio, nos parece ser até agora, a única atitude possível. A normose sempre vai exigir
estratégias eficazes de dissimulação e de busca de referencias já cristalizadas na cultura.
Porém não podemos esquecer que a normose, em sua própria estrutura conceitual, sofre
inevitavelmente da enfermidade anacrônica em terminar mantendo as coisas onde sem-
pre estiveram, uma vez que corrobora, concordando sempre, com o já instituído. Neste
caso, usar estratégias de normose implica em andar de par com o conservadorismo, uma
atitude estranha à transgressão, gesto tão necessário para reinventar artisticamente as
coisas. Fazer uso deste comportamento, desta inclinação à docilidade (Foucault, 1979),
pode ser uma indicação fácil, o caminho natural que o poder central do sistema de arte
instituído aponta e demanda, mas como podemos observar na própria historia da arte,
o impressionismo, assim como outros movimentos que realizaram profundas mudanças
no conceito de arte, em seus momentos específicos, não tinha nenhuma concordância
com as verdades instituídas pelo sistema vigente. Em vez de atuar segundo as normas
do jogo oficial, os impressionistas, assim como outros possíveis exemplos paralelos,
criavam novos jogos que exigiam a reformulação das normas vigentes, desestruturando
o que se conhecia como arte, até então.
Podemos observar nas pinturas de Jorge Duarte, outro pintor da “Geração 80” (Fig.
3 e 4) como um exemplo de “anormose”. Uma atitude antítese da normose, também
pode relacionar com o sistema mercadológico e educacional da arte, mas sempre de
modo discordante e complexo. Considerando que estas pinturas que apresentamos exis-
tiram, entre um antes e depois, de uma interação com seu professor no Mestrado de
Linguagens Visuais na EBA UFRJ, podemos dizer que este pintor caminha no sentido
contrário a um desejo de normose, tanto em relação ao ensino quanto ao sistema de arte
de um modo geral, fato que não impede em ultima instancia, apesar de certa dificulda-
de relacional, que seus trabalhos sejam reconhecidos ao longo do tempo. De volta ao
exemplo histórico que suscita esta atitude, poderia dizer que: todos criadores envolvidos
com as grandes mudanças no conceito de arte, estavam essencialmente no caminho
contrário, na contramão do fluxo. Em vez de optarem pela docilidade entranhável como
estratégia de penetração e reconhecimento, eles apostaram na “anormose” como meio
de ampliação de seus horizontes experimentais e estéticos. Fica aqui outra possibilidade
de atuação, outro caminho a percorrer dentro do sistema de arte.
266 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Figuras 3 e 4: Sapo sopa e Frog soup, Jorge Duarte, 1999. Vinilica sobre madeira, 30 x 45 cm
cada, Coleção do artista.
Referências
BERGSON, HENRY. Matéria e memória. Martins Fontes, São Paulo, 1999.
DERRIDA, JACQUES. De la Gramatologie. Collection Critique, Paris, 1967.
FOUCAULT, MICHEL. Microfísica do poder. Graal, Rio de janeiro, 1979.
GADAMER. H.G. Verdad y Método. Ediciones Sígame, Salamanca, 1993.
HALL, STUART. A identidade cultural na pós-modernidade. DP&A editora, Rio de Janeiro, 1998.
HEIDEGER, MARTIN. Ser y Tiempo. Editorial Trota, Madrid, 2009.
KANT, INMANUEL. The critic of judgement. Hackett Publishing Company, Indianólopis, 1987.
NIETZCHE FRIEDRICH. Sobre la verdad y mentira en sentido extramoral. Editorial Tecnos,
Madrid, 2010.
UEXKULL, JAKOB VON. Theoretical Biology. Hardcourt, Brace&Company. INC, New York,
1926.
VAIHINGER, HANS. The philosophy of “as if”. Hardcourt, Brace&Company. INC, New York,
1925.
WEIL, PIERRE. A patologia da normalidade. Editora Vozes, Rio de Janeiro, 2011.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 267
Joedy Marins
FAAC/UNESP – [email protected]
The elaboration of the work of art goes through distinct stages, piecemeal, in-
tense, during which it the creations emerge answering vital needs of personal
organization. In the visual arts, the fascination aesthetic is part of the endless
discoveries that result in productions, permeating languages, renewing them.
Watching my creative process, I see that the fascination is the great guideline
to produce from notes in the notebooks, are from words or drawings.
Keywords: process of creation – art contemporary – artistic poetic – crea-
tion’networks – Cecília Almeida Salles
268 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Poética
Durante meu processo criativo, percebo como a sede pela criação acompanha o nas-
cimento da obra em busca de um objeto de estudo. O interesse se concentra em algo
maior do que a materialização daquele momento, integrando-o ao ansiar a fase seguinte.
O registro passa a ser mais uma ferramenta para alcançar um conhecimento específico,
que não se esgota enquanto maior objetivo, do contrário, a obra seria o fim. A busca pelo
objeto de estudo passa a ser um turbilhão que absorve tudo o que for necessário para tra-
zer respostas na forma plástica. Nessa absorção, as linguagens me emprestam subsídios,
características que não me fazem necessariamente fiel a somente uma delas.
Ao “rejeitar”, adequar, selecionar para o momento da criação, vejo como nessas ope-
rações julgo quais técnicas, materiais e linguagens estão aptos para materializar ideias
como estratégias para avançar em um campo a ser conquistado. O objetivo maior se
encontra em conhecer o que se está fazendo e para alcançá-lo é necessário me aproximar
do alvo e avançar novamente. Minha realização (assim como acredito também estarem
as conquistas profundas do ser humano) está no percurso a ser trilhado e dentro dele,
seus trajetos são registrados quando processados no ato da criação. Ao comunicá-la
não saio do percurso, em um continuum. A materialização somente responde a uma
necessidade maior na qual utilizo ferramentas à disposição de uma poética. É ela quem
manipula as linguagens, alterando-as, transformando-as.
Nessa leitura comparo minhas conquistas como criadora a outras tão persistentes
quanto, dentre as quais posso citar o caminhar. Os passos da criança, por exemplo, não
objetivam a vitória em uma maratona, mas sim o domínio para o próximo passo e próxi-
mo, até alcançar um determinado lugar e assim por diante. A comparação também pode
ser feita com a trajetória de um atleta, tendo-se a continuidade, a persistência e a resig-
nação em comum. Assim como, para um atleta, a bola, os tacos, a raquete, dentre outros,
não são o objetivo de sua vitória, mas sim instrumentos, da mesma forma, para mim,
enquanto artista, as técnicas, materiais e suportes são canais para se aproximar mais per-
to do alvo. Nesse sentido, considero relevante abordar a maneira pessoal de se utilizar
cada um desses canais como o grande desafio para o profissional. Tomo a liberdade de
considerar que a maneira específica como o artista o faz constitui o verdadeiro sentido
de ser artista, sua lente específica para ler o mundo. Ele é impelido por um conjunto de
variáveis que inclui a maneira como aprimorou usar a tinta, o papel, a fotografia, o buril,
o lápis. Há uma relação intensa nessas variáveis, que podem ser chamadas de influências
mútuas nas conexões da rede de criação, que o impele a olhar seu objeto de estudo e
a interpretá-lo. Como ele fica diante dessas lentes? Esse é o interstício que cabe a esse
artista, o intervalo onde lerá o mundo e onde a obra de arte nascerá.
Nesse intervalo entre o autor e criação da obra, a forma mais adequada e calculada
para se produzir está nas adaptações à realidade, ou “inadaptações”, “ruídos”, visões
originais que não se enquadram nos paradoxos. Por resultarem da individualidade, da
identidade em leituras absolutamente pessoais da realidade, constituem ideias originais,
que em sua poesia geram estranhamento ao espectador . Quanto mais o artista conhece
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 269
Percurso e fragmentos
Ao estudar a criação em rede, percebo o quanto ela me é familiar, o quanto vem de
encontro à maneira como minhas investigações são organizadas dentro do processo cria-
tivo. Exemplos disso são as formas como estruturei minha tese de doutorado “Legado:
gestações da arte contemporânea - Leituras de imagens e contextualizações do feminino
na cultura e na criação plástica” (BAMONTE, 2004) ao fazer a leitura de minha produ-
ção plástica e a maneira como dou continuidade às criações que compartilham de uma
mesma abordagem. Na trajetória de minha produção procuro a trajetória de um trabalho
específico e encontro marcas impregnadas da identidade que venho construindo. En-
contro um contexto plástico maior do qual minha produção faz parte e outros universos
que se abrem e dialogam entre si. Nesse percurso, delineia-se uma organicidade nas
imagens citadas no corpo do texto, como um jogo de combinações constantes, no qual
os elementos se repetem e se reafirmam. Há uma dinâmica no interesse na e pela própria
criação, pelo processo latente, constante, a sede pelo que o trabalho proporciona e não
exatamente por ele em si.
270 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Diante de minha produção atual, observo que as reflexões presentes na tese foram
continuadas e nessa afirmação encontro argumento para reconhecer nas linhas que se
conectam e nas tramas que foram construídas, o que Cecília Almeida Salles denomina
Figuras 1 a 20:. Imagens que fazem parte de “Diálogos Propostos” (BAMONTE, 2004) -
da direita para a esquerda, de cima para baixo: 1. Sem Título, Joedy Marins, 1995 (Marins,
1990-2003); 2. “Corte”, Edith Derdyk, 2002 (Derdyk, 2002); 3. Representação gráfica da fe-
cundação do óvulo (Demarest, 1971, p.47); 4,7,12,16,20: Retalhos de Legado, Joedy Marins,
2002 (detalhes) (Marins, 2003); 5. Couple III (“Casal III”), Louise Bourgeois, 1997 (Fundação,
1998); 6. Toalha de crochê artesanal; 8. Representação gráfica do trajeto do óvulo fecunda-
do (Persaud, 2000, p.5); 9. Foto de um feto em gestação (Persaud, 2000, p.13); 10. “Traços
Arraigados”, Joedy Marins, 1993 (Marins, 1991-2003); 11. Representação gráficado ciclo fértil
feminino (Demarest, 1971, p.43); 13. Sem Título, Joedy Marins, 2000 (Marins, 2000); 14. Es-
pécie de aranha (Argíope multicolorida) tecendo a teia (Milidge, 1999); 15. Sem Título, Joedy
Marins, 2001 (Marins, 2001); 17. Dote II (em execução), Joedy Marins, 2003 (Marins, 1991-
2003); 18. “Gestação” (13o quadro), Joedy Marins, 1991 (Marins, 1990-2003); 19:Legado,
Joedy Marins, 2002 (Marins, 2003).
Considerações Finais
Escrever sobre o próprio processo criativo exige um afastamento para que o autor se apro-
xime do lugar ocupado pelo espectador. À medida que ocorre um distanciamento do pe-
ríodo em que cada obra ou série foram finalizadas, há uma somatória a outras produções
formando-se um conjunto apto a ser refletido. Ao se fazer essas reflexões, percebe-se que a
272 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
criação como rede é uma constante, que se refaz e não permite rupturas entre as diferentes
fases do artista. Uma obra jamais será totalmente desconectada das outras dentro do con-
junto produzido pelo mesmo criador. Ao propor a aproximação de imagens representativas
de séries e períodos distintos de minha produção plástica, verifico o quanto o ato criativo
é muito mais complexo do que compartimentar séries e fazer organizações lineares. Há
um pulsar constante que liga uma obra à outra, trazendo-as à memória para que juntas
originem novas produções. Considero o presente trabalho somente um exercício do reco-
nhecimento dessas conexões, aberto a muitas outras que, com certeza virão.
Referências
BAMONTE, Joedy L. B. M. Legado – gestações da arte contemporânea: leituras de imagens e
contextualizações do feminino na cultura e na criação plástica – São Paulo: Universidade de
São Paulo, Escola de Comunicações e Artes, 2004. 307 p.
KNELLER, George. Arte e ciência da criatividade. 17 ed. São Paulo: IBRASA, 1978.
MOLES, Abraham. A criação científica. São Paulo: Perspectiva, Edusp, 1971.
SALLES, Cecília Almeida. Redes da criação: a criação como rede. Vinhedo: Horizonte, 2006.
274 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Ângela Grando
PPGA/UFES – [email protected]
Dentro do quadro geral de revisão e estudo da obra da pintora capixaba Re-
gina Chulam, o texto pretende refletir sobre modos de ver uma obra pictórica,
tomando como caso de estudo a análise do quadro E fomos olhar Pássaros
(2012) e buscando, nos esquemas conceituais de Merleau-Ponty, caminhos
para se aprofundar na aproximação da obra.
Palavras-chave: pintura, processo de criação, Regina Chulam.
e transformações, foi possível o surgimento de novas formas. Cada uma das três telas exi-
bem o valor construtivo da forma, da linha e da cor, evidenciando os principais elementos
visuais presentes na poética da pintora e suas potencialidades expressivas.
A memória da artista aciona afetos e recordações que serão transmudados em ima-
gens. Desse mundo de reminiscências, Regina traz as figuras de seu temário: poltronas,
pássaros e agaves; elementos que compõem uma série de obras expostas em sua cons-
tituição definitiva na sua trajetória. Essas figuras, que, persistentemente, constituem o
seu espaço plástico, envolvem uma organização de natureza estritamente pessoal, fazem
parte da constituição subjetiva da autora no decorrer de seu processo de criação. Seu
vocabulário temático, sempre que acessado, é uma linha de força condutora do processo
de construção de suas obras. Sob as inúmeras camadas matéricas de E fomos Olhar
pássaros, encontra-se o cachorro da artista, um grande sinal de afeto. Bapoo, como é
chamado seu fiel companheiro, deitado sobre o tapete, ao receber as pinceladas de ver-
melho, deixando à mostra apenas seu contorno, oferece a estrutura necessária para os
pássaros que mais tarde tomarão seu lugar (figura 2).
Figura 1. E fomos Olhar pássaros, 2012. Acrílica sobre tela, 150 X 240 cm. Foto da artista.
O espaço físico de Aracê é o mundo habitado pela autora. O local, próximo à Pedra
Azul, cercado de montanhas, do verde da natureza e do canto dos pássaros, vem sendo
o recanto onde a artista encontra a sua fonte de inspiração e amadurecimento de ideias.
Ali, desde 2006, vive, totalmente, entregue ao ofício do puro prazer da pintura e, prin-
cipalmente, entregue a si mesma e na criação infinita de imagens. Aracê é o espaço de
sua operação poética, reflexo de seus diálogos com os problemas da pintura, que para
ela, são formulados, exclusivamente, pela própria pintura. A infinita contemplação desse
278 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
espaço resulta em imagens que tanto nas declarações da artista e nos títulos de muitos
quadros, quanto na reivindicação da luz local, é detectável uma maior sensibilidade na
orquestração de tons agudos e graves. Na verdade, não se pode interessar pela questão
da cor sem solicitar a questão da luz e da sua propagação (GRANDO, 2005). Sem dú-
vida, considerando o trabalho das etapas precedentes de Chulam, trata-se de captar pela
cor a qualidade rara da luz e o frescor da atmosfera daquela região, o que se reflete na
sinfonia de verdes e azuis em contraste com o vermelho e o laranja, manchas de gestua-
lidade que dilatam a construção de suas composições.
Figura 2. Na tela central o cachorro da artista vai dando lugar aos pássaros.
O quadro é dividido em três partes. Cada uma delas apresenta os resquícios de ama-
durecimento de um processo pictórico que não abriu mão de relacionar-se, estreitamente,
com o papel específico do desenho. As linhas, que sustentam os elementos figurativos da
composição, permitem a Chulam manipular o espaço e, assim, garantir os novos rumos
de suas ações plásticas. Gênese das coisas, a linha anda no espaço, estende-se na espacia-
lidade ativamente (MERLEAU-PONTY, 2004). Sua pintura trabalha a contínua renova-
ção da linha. É graças a ela que a composição deixa à mostra o caminho de sua constru-
ção. Aqui, à medida que, por intermédio dos traços, o desdobramento e a metamorfose
das poltronas são sugeridos, as camadas mais externas vão deixando visíveis os vestígios
das camadas mais internas, construindo, por consequência, uma trama linear expressiva
que dinamiza e questiona uma figuração tradicional. Em oposição, a textura dos traços
na tela de maior dimensão energiza a pincelada ao ser absorvida pelas manchas de cores.
A maioria das obras da artista está relacionada, estreitamente, às suas vivências, por-
tanto cada traço contém o ar, a luz, o desenho, o objeto das manifestações do visível, res-
tituídas na representação. A pintura, como experiência perceptiva, pela tônica moderna da
linha, dá às coisas uma presença, um ritmo. Como primeiro ato da criação, a linha articula
o espaço, abrindo-o a um campo de possibilidades afetivas com o objeto. Mas é a musicali-
dade emocional das cores que fornece uma abertura mais profunda, ao nos imergir em sua
materialidade. Ao modular a espacialidade, torna mais dinâmico o mundo do artista que
se materializa na superfície. A questão é saber “estar dentro”, o que significa intensificar
o processo de agoridade da percepção que, isenta de toda pretensão à fixação e articulada
sob uma “necessidade interior”, toma o valor central do desdobramento da forma artística
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 279
Figura 3. Poltrona de frente para o espectador. À esquerda, poltrona composta por tons ala-
ranjados. À direita, poltrona ganha pinceladas brancas. A sombra vai se acinzentando e rece-
bendo as tonalidades que compõem o fundo. Na figura 4 podemos observar as modificações
da poltrona.
O assento alaranjado é constituído por riscos mais soltos, indicando uma mão liberta
das exigências formais do desenho. As imagens fotográficas (figura 4) mostram que a
280 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
forma da poltrona não se alterou (a artista diminuiu um pouco as costas do assento), mas
a cor, tanto do objeto quanto do fundo, foi se adaptando às novas investidas da artista
nas outras duas telas. Os registros indicam também que a composição, em que a poltro-
na se faz presente, foi a última parte manipulada por Chulam. A artista desconstruiu a
forte geometrização com largas pinceladas verdes que, na tentativa de encobrir os tons
violáceos e azulados, estes acabaram por se fazer sentir.
Figura 4. Assento laranja. As imagens fotográficas mostram que a forma da poltrona não se
alterou, mas a cor, tanto do objeto quanto do fundo, foi se adaptando às novas investidas da
artista nas outras duas telas.
dinamizar o espaço. Para isso, recorre a uma figuração que se dissolve nas possibilidades
da abstração e uma abstração que, no contraste das manchas de cores, sustenta a figuração.
É interessante notar, também, que, no decorrer da execução de E fomos olhar pássa-
ros, a artista vai mudando as telas de lugar como se fossem peças de um quebra-cabeça.
As peças são manipuladas na intenção de fazer o olhar se adaptar às composições pro-
visórias, possibilitando as correções e os ajustes presentes em todo o processo. Assim
como os traçados e as pinceladas, cada mudança das partes do conjunto é testada, per-
manentemente, na busca de novas soluções formais e ordenações harmônicas. As dife-
rentes possibilidades de variação refletem as diferentes possibilidades de obra. Portanto
“o trabalho criador”, como discute Salles, “mostra-se como um complexo percurso de
transformações múltiplas por meio do qual algo passa a existir” (2004, p. 27).
O olhar de Regina Chulam, assim como de qualquer outro pintor entregue, plena-
mente, a seu ofício, percorre o mundo sempre em busca de novas experiências. O mundo
do pintor é visível, portanto pinta porque viu, porque foi afetado pelas coisas visíveis
(MERLEAU-PONTY, 2004). Quando retorna ao ateliê, reinicia a luta pela organiza-
ção do quadro, alimentado pelas dúvidas, pelas escolhas, equilíbrios e contradições. As
metamorfoses pelas quais a tela passa são sinais de um processo criativo que a partir
das sensações percebidas e vividas, manipula a matéria, regendo as leis da criação. Ao
desfolharmos as camadas da pintura, vão sendo reveladas as fases do percurso da obra,
os encontros e desencontros, “[...] o que a obra deseja e necessita” (SALLES, 2004, p.
132). A sobreposição das figuras e as manchas por baixo dos signos lineares engendram a
intencionalidade pictórica, a relação dinâmica das cores. Eis a pintura!
Referências
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Artes, Vitória, 2005, ano 6, n.6. p. 66-77.
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SALLES, Cecilia. Redes da criação: construção da obra de arte. São Paulo: Editora Horizonte, 2006.
282 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
A natureza da vida:
transcendendo a subjetividade
através da obesidade
Júlia Mello
UFES/FAPES – [email protected]
José Cirillo
CNPQ/FAPES/PPGA-UFES – [email protected]
This present work conducts a reflection on identity, body and power throu-
gh the experiences of Fernanda Magalhães on “The Nature of Life”, project
started in 2000 and still in development. Inviting other artists, she conducts
performances in different contexts and is photographed and filmed in public
areas revealing her obese body. Magalhães confronts current standards and
presents herself as an individual (and part of a collective) that is not satisfied.
Shows that it is possible to transcend the subjective body and give voice to
the collectivity.
Keywords: Art - Obesity – Subjectivity – Collectivity - Identity
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 283
Introdução
Fernanda Magalhães (1962-) é uma artista londrinense que realiza trabalhos com o cor-
po desde os anos de 1990. Sua arte revela sua obesidade. Se traçarmos uma linha do
tempo da sua produção, notamos que se desenvolveu a partir de uma busca pessoal pela
libertação de um corpo excluído e que agora é utilizado para dar voz a uma coletividade.
Na década de 1990, Magalhães saiu de sua cidade natal para estudar fotografia no
Rio de Janeiro. Lá se deparou com corpos à mostra preocupados com a boa forma e
passou a sentir-se desconfortável com sua estrutura física (TVARDOVSKAS; RAGO,
2007). O exagerado culto ao corpo a angustiou e fez questionar a sua corpulência (RI-
BEIRO, 2013). O sentimento de não aceite da sociedade sobre sua obesidade resultou
em uma fase de isolamento e exclusão que pode ser confirmada, entre outros trabalhos,
na série “Auto Retrato no RJ”, de 1993, feita a partir de fotografias – e foi através delas
que Fernanda diz ter construído a sua poética (MAGALHÂES, 2008).
Embora a série citada não seja objeto de estudo central no presente texto, traremos
um trabalho com o intuito de contextualizar o leitor (Figura 1):
Figura 1. Autorretrato (fotografia) de Fernanda Magalhães, Série Auto Retrato no RJ, 1993.
Neste trabalho temos a fotografia de uma mulher obesa nua retirada de uma revista
pornográfica americana (“Buff”) e uma mixagem de excertos textuais com uma foto 3x4
fragmentada de Fernanda Magalhães sobre um fundo escuro (RIBEIRO, 2013). Em um
dos papéis lemos o seguinte texto:
Quero que as mulheres magras e médias encarem a disforia de sua imagem corporal e se deem
conta de que há um mundo de diferença entre suas experiências de mulheres que odeiam seus
corpos e minha experiência de ser gorda. Todos os corpos femininos são odiados em nossa
cultura, e isso não significa que todas as mulheres sejam gordas.
Este trabalho prova a extensão das discussões de Fernanda à questão do corpo femi-
nino instituído e biologicamente imposto. A rejeição deste corpo abordada em “Gorda
13” indica que não só as obesas, mas as magras e médias, precisam se dar conta de seu
aprisionamento como mulher.
Com a série citada a artista passou a explorar melhor aspectos externos à sua corpo-
reidade, mas que não deixam de manter relação com ela. Na produção seguinte, cerne
do nosso artigo, veremos mais claramente a amplitude de questionamentos que passarão
a englobar, mais explicitamente, outros indivíduos.
A Natureza da Vida
Ver com profundidade, ver muito, olhar para o outro e interagir/misturar-se, doar-se, entregar-
se (MAGALHÃES, 2008, p.32).
em seu colo, prostrando-se como uma figura maternal. Seu corpo nu revela uma pele
delicada que se desdobra em contraste à rigidez e aspereza da madeira. A imagem clama
pelo impedimento da destruição do ambiente. É tão clara, que abrange um contexto mais
generalizado de defesa de qualquer natureza. A artista mostra, com este exemplo, que é
possível transcender o corpo subjetivo e dar voz a uma coletividade.
Este trabalho foi realizado durante a ação que foi movida junto ao Grupo Ocupa
Londrina e a ONG MAE Londrina. Foi conseguido o embargue da obra e o local foi
transformado em área de preservação permanente (O CORPO, 2012).
A performance teve um papel fundamental na transformação do processo criativo
de Fernanda e no englobamento de outras questões. No início, intimidada com a hege-
monia da magreza, realizava ações entre quatro paredes, sozinha. Deixou de dançar e
praticar o teatro, artes que compuseram sua formação, devido ao preconceito em relação
a sua forma. Aos poucos, conta, a repressão foi sendo rompida assumindo forma de
performances que passaram a permear seu cotidiano. Foi a partir de então que assumiu,
conscientemente, suas ações.
A performance surgiu como necessidade de expressar pelo corpo, buscando deixar
transbordar minhas faces submersas. Extravasar é assumir esta linguagem como arte e
como vida. As dores transformaram-se pelo trabalho. A performance é uma forma de
voltar a dançar, trazendo as transformações do meu corpo que, liberto de amarras, busca,
no outro e na ação da troca, a sua própria reconstrução (MAGALHÃES, 2008, p.84).
Para a artista, a performance é fundamental para dar significado ao “A Natureza da
Vida”. A partir dela ela pode fazer provocações e evocar emoções que lhe transbordam.
“São sentimentos que quero expressar sobre o corpo, os preconceitos, a invisibilidade, a
aparência, as instituições...” (CULTURA, 2013).
Além disso, o fato de convidar outros artistas a participar traz novos olhares sobre os
discursos que são traduzidos pelo corpo obeso.
Como conclusão deste breve estudo, é importante lembrar que Fernanda Magalhães
passou por diversos processos de aceitação e não aceitação de normas, corpos, iden-
tidades e realidades até adquirir uma postura “blasfêmica” que “[...] nos protege da
maioria moral interna, ao mesmo tempo em que insiste na necessidade da comunidade”
(HARAWAY, 2009, p.35). Intoxicou-se a si mesma antes de se apresentar como uma
artista que, unida a outros, buscou uma potência para agir. Mostrou que “[...] é possível
fundamentar exclusivamente a partir de si valores que valham também para os outros
(FERRY, 1994, p. 32)”. Em uma última palavra, Magalhães precisou sentir na pele para
poder traduzir outras angústias e unir vozes.
Referências
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HARAWAY, Donna. Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do
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MAGALHÃES, Fernanda. Corpo Re-construção Ação Ritual Performance. 2008. Tese apresenta-
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RIBEIRO, Vinicios. Engordurando a arte contemporânea: as imagens de Fernanda Magalhães.
In: Com Ciência. Revista eletrônica de jornalismo científico. 10 fev. 2013. Disponível em: <
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TVARDOVSKAS, Luana; RAGO, Luzia. Fernanda Magalhães: Arte, corpo e obesidade. In: Ca-
derno Espaço Feminino, Revista do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Federal
de Uberlândia, v. 17, nº1, jan./jul. 2007. Disponível em: < http://www.seer.ufu.br/index.php/
neguem/article/view/378>. Acesso em: 24 jul. 2013.
288 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Luciano Vinhosa
UFF – [email protected]
Neste texto descrevo, ao mesmo tempo que reflito sobre, o processo artístico
envolvendo a criação do trabalho fotográfico titulado O pequeno gesto. Ao lon-
go da reflexão, os principais conceitos o implicando vão sendo apresentados
ao leitor. Em linhas gerais, o texto trata da forma como organizo a experiência
comum que vivo em meio urbano, reconsiderando-a a partir de uma motiva-
ção poética que já me persegue há alguns anos.1
Palavras chaves: processo artístico, fotografia, arquivo
In this paper I describe and reflect about the artistic process involving the crea-
tion of photographic work titled The small gesture. Throughout reflection, the
key concepts are being presented to the reader. In general, the text is about
how to organize the common experience that I live in the city, reconsidering the
experience from a poetic motivation.
Keywords: artistic process, photography, archive
1. Este trabalho integra o projeto de pós-doutorado intitulado Museu das coisas: dois ensaios
em torno da experiência ordinária desenvolvido na França sob a supervisão do prof. Dr. Jean-
-Pierre Cometti entre novembro de 2012 a outubro de 2013. Tem apoio financeiro da CAPES
(Coordenação de Pessoal de Nível Superior), agência de fomento do governo brasileiro, a
quem devo meus agradecimentos.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 289
Introdução
O pequeno gesto é uma coleção de intervenções obsessivas empreendidas pelo usuário
urbano em seu cotidiano, observadas e fotografadas por mim em toda parte do mundo
em que tenho perambulado desde 2011. Tais intervenções constituem-se de toda sorte
de objetos ordinários e desprezíveis, como garrafas de água mineral, de cerveja, latas
de refrigerante, guardanapos, caixas de papelão, restos de alimentos entre outros dejetos
que, depois de consumidos, foram abandonados em lugares quaisquer, mas de um modo
preciso. Quer dizer, foram deixados aqui ou ali em cima de uma mureta, espetados em
uma grade, abandonados nos cantos das calçadas, enfiados em frestas de construções,
etc.. No conjunto, objeto e lugar, formam “situações” que refletem o comportamento
mais ou menos padronizado do homem urbano civilizado, constrangido por uma es-
pécie de ordem sub-reptícia. Esses “cacoetes disciplinares” vêem sendo organizados
como um inventário de gestos universais cujas entradas que dão acesso ao arquivo e o
sistematizam foram definidas por mim como categorias a priori a serem fotografadas.
Deste modo, o repertório de “situações gestuais” foi limitado anteriormente de forma
arbitrária, mas em atenção primeiramente à realidade. Elas foram alocadas em 15 entra-
das poéticas, a saber: 1) Acolá; 2) Ali; 3) A oportunidade faz o uso; 4) Aqui; 5) Assim!;
6) Assinaladas; 7) Dádivas; 8) Do lado de cá; 9) Do lado de lá; 10) Enfiadas; 11) Guar-
dadas; 12) Imitação da arte; 13) Lançadas fora; 14) Mallembradas; 15) Parassempre. As
imagens, quando tomadas pela câmera fotográfica, obedecem, por suas estruturas vi-
suais, a uma construção que reenvia aos termos (entradas/ categorias) que as organizam.
Em outras palavras, os termos se referem ao modo como as imagens são metodicamente
construídas no momento em que tais gestos são flagrados pela câmera. Para além da
simples taxionomia, o procedimento adotado reconhece nos objetos/ situações fotogra-
fados um certo estado anímico (uma vida interior) coincidente com o gesto do sujeito
anônimo que lhes engendrou — um modo de intencionalidade intrínseca que a imagem
tenta reforçar no justo ato fotográfico. No discurso que organiza, O pequeno gesto induz
a uma discreta ficção, um mundo relacional íntimo e silencioso em que a imaginação
tem lugar privilegiado.
unidade particular. Estão, por assim dizer, situados no espaço, de algum modo largados
em sítios específicos, por toda parte dispersos na paisagem. Encarando-os face-a-face,
concentrando-me sobre suas qualidades e sobre aquilo que me dizem insistentemente,
observo todo um vasto universo de minúcias se elevar no meu pensamento como poeira
evoluindo no ar, pondo em movimento miríades de partículas brilhantes que se chocam
casualmente com algumas idéias vagas. Em conformidade a esta realidade, começo a
remarcar o tanto de recorrências automáticas e tento agrupá-las em categorias tomando
alguns tipos que exemplificam a singularidade de cada uma delas. Então me vêem os
nomes para acomodá-las em um arquivo que passo a organizar. As categorias, embo-
ra titubeantes e imprecisas de saída, é o ponto de partida para deslanchar o processo.
Munido de algumas entradas a priori [as categorias esboçadas], passo a fotografar as
“situações” encontradas com alguma ordem e me aprofundo na coleção. [A partir desse
ponto são as oportunidades que fazem os encontros.] Na medida em que me deparo com
elas, as fotografo. No vai-e-vem entre o terreno e a revisão das imagens no gabinete, as
“categorias” se consolidam e as novas buscas no terreno passam a atender com maior
critério a demanda interna dos termos que designam as situações encontradas. De retor-
no ao gabinete, entre uma categoria e outra, novas passagens se abrem, deslizamentos
se operam. Quanto mais um gesto penetra e ocupa o lugar de um outro, suas posições se
embaralham no arquivo. Fabulações se entretêm nas possibilidades dos arranjos. Uma
ficção começa a se desenhar nas relações abertas que emergem do diálogo silencioso
entre imagem e categorias — atravessamentos! O trabalho começa a ganhar corpo por
sua inconsistência.
fora; 14) Mallembradas; 15) Parassempre. Escrevendo este texto e refletindo sobre
o trabalho, pude avançar um pouco mais e compreender outros aspectos que estavam
implícitos na organização do arquivo. As categorias iniciais derivaram-se, por sua vez,
de 3 classes mais abrangentes de gestos que as contém, mas que só agora tornaram-se
conscientes para mim, a saber: a) Por associação (A oportunidade faz o uso/ Dádivas/
Imitação da arte/ Mallembradas/ Parassempre); b) Por modo (Assim!/ Assinaladas/En-
fiadas/ Guardadas/ Lançadas fora); c) Por posição (Acolá/ Ali/ Aqui/ Do lado de cá/ Do
lado de lá). Se a enciclopédia de Borges soa mais esdrúxulas aos ouvidos sincopados
à racionalidade é certamente devido ao fato que os termos empregados não designam
nenhuma imagem, permanecendo o plano da linguagem na linguagem. A imagem téc-
nica que emerge com a sociedade moderna não é somente contemporânea, mas também
solidária às ciências. Não é a toa que a fotografia tem no cerne de sua lógica produtiva
o arquivo e a legenda, que em si representam a estrutura que organiza e controla a expe-
riência a partir da classificação e descrição supostamente neutras. Mas no fim das contas
toda estrutura só guarda sentido à sua própria construção intrínseca, na falta da qual a
própria verdade desmoronaria sobre si. A fotografia como arte, por alçar vôo poético,
transcende aos parâmetros da racionalidade ao qual se destinava originalmente, esta-
belecendo uma outra ordem de sentidos que naufraga toda objetividade da descrição.
Fato que a torna crítica à ciência na medida que, caricaturando-a, expõe seus limites,
fragilidades e inconsistências. “O pequeno gesto”, seguindo a lógica da imagem na arte,
é crítico à descrição e à toda pretensão de realidade, mas se equilibra nela.
sorrateiros pelos meandros dos caminhos bem antes de o olhar vigilante da limpeza
urbana os surpreender.
Figura 1 Figura 2
294 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
La práctica artística
de la experiencia.
El espéctador como
elemento participativo de la obra.
Luis Ángel López Diezma
Universidad de Granada – [email protected]
de metáforas sobre lo real que abarca desde lo más próximo y cotidiano, hasta todo aquello
que tan solo intuimos y que nos cuesta asimilar por su complejidad y magnitud. En la situa-
ción actual de hibridación cultural, numerosos artistas se apropian de claves creativas que
transitan por referencias cultas, populares, marginales o masivas, de tal forma que nos inter-
pelan a reinscribirlas en los contextos mutantes de lo cultural y lo social, para mostrar otras
subjetividades y otras posibilidades de narración y puesta en forma (Delgado, I., 2005).
al maravilloso vestido que Disney diseñó a Cenicienta, para afrontar el papel de una
forma personal enmascarado en la figura de la propia princesa, mientras que desarrollo
la cotidianidad en Venecia; una ciudad considerada culturalmente de cuento, donde se
celebra uno de los acontecimientos más representativos del arte contemporáneo actual
(Bienal de Venecia) y es referencia de acontecimientos culturales que pueden hilvanar
con el sentido de esta propuesta (Carnavales).
Figura 1. Luis Ángel López, Liberazione, Figura 2. Luis Ángel López, Fondamenta
2010. Fuente propia. della Misericordia, 2010. Fuente propia.
Hago uso de la masculinidad que me ha tocado asumir para adquirir un rol que sería
imposible encontrar en cualquier cuento de hadas; un varón con vestido y peluca. Con
esta trasformación, adquiero un papel que desmitifico cuando salgo a la calle para rela-
cionarme con el entorno y los habitantes, algunos de ellos frecuentes en la mia giornata
abituale (mi día a día). Con esta experiencia artística conecto con el espectador de a pie
y observo su comportamiento alterado por mi persona: ¡Cenerentola bella! (Preciosa
Cenicienta). ¿È una ragazza o un bello ragazzo? (¿Es una chicha o un chico guapo?)
El acercamiento al mundo infantil me ha permitido remontarme a mis orígenes para
emprender una práctica personal, desde la experiencia. Los resultados artísticos los po-
dríamos considerar metáforas visuales que reflejan esta experiencia personal y subvier-
ten la asimilación de un cuento popular, analizando la doble moral del ser humano y
los valores que la sociedad trata de volcar sobre la iconografía infantil, interpretando y
descontextualizando escenas y personajes rescatados del recuerdo.
Esta aproximación a mi propio trabajo nos ayuda a entender los diferentes soportes
examinados por el arte contemporáneo, cuyo planteamiento va más allá de las instantá-
neas que lo documentan, comprendiendo la experiencia como carácter fundamental en
el trabajo. Conectando con el imaginario popular del espectador de a pie y apropiándo-
me del espacio público como soporte fundamental de la acción que toma sentido cuando
se desarrolla ante un determinado espectador, enmarcado en un contexto concreto y con
unas claves que trasgreden el aura de la obra de arte, ya que se aleja de ese resplandor
sagrado que tradicionalmente enalteció el objeto artístico como elemento de culto (Ben-
jamin, W., 1991). Poniendo en entredicho el carácter exibitivo como consecuencia de la
institucionalización que ha sufrido el arte hasta la actualidad y acreditando la transgre-
sión de las fronteras disciplinares.
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WALLIS, Brian. ARTE DESPUÉS DE LA MODERNIDAD. Nuevos planteamientos en torno a la
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300 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Exposed to the worldly things of the contemporary times, the artist perceives
themselves better integrated in the social field. This new condition of the artist
can mean a way to (re)discover their place in that world, inching nearer the
troubles that afflict us in our daily life. From its diffuse presence in the midst
of the crowd, the artist seems to find a new place, emphasizing that the lost
and the found make up the dialectic process. Anchored in theoretical e criti-
cal foundations, this study aims to point out the conditions that have led the
artist to a dizzying approach to the everyday realities, while reflecting on the
implications of this displacement of the artist to the process of creation of art
in contemporary society.
Keywords: artist; creation; contamination; real
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 301
se tomarmos “vanguarda” sem aspas, devemos chegar a conclusão de que o que geralmente
está indicado no termo começa com Manet e não com Courbet. Implícito – e talvez central
mesmo – para nossa compreensão de vanguardismo é o conceito de alienação – psíquica,
social, ontológica – absolutamente estranho à abordagem de Courbet tanto à arte quanto à
vida”. (NOCHLIN, 1991, p. 12)
Embora faça a ressalva de que Manet nunca foi verdadeiramente um “um homem
alienado – isto é, fechado em si mesmo em conflitos interiores ou distanciado de sua
verdadeira situação social, como eram seus quase contemporâneos Flaubert e Baudelai-
re” (NOCHLIN, 1991, p. 13), e que Manet se surpreendeu com as reações provocadas
por duas de suas obras capitais - Dejeuner sur l´herbe e Olympia: “Manet nunca desejou
protestar. Seria contra sua natureza, a qual não esperava que as pessoas protestassem”.
(NOCHLIN, 1991, p. 12)
Ainda de acordo com Linda Nochlin, “com Manet, [...] pela primeira vez, somos
confrontados com uma obra [oeuvre] que, como o próprio dândi (que foi originalmente
postulado como o equivalente humano a uma obra de arte”, oferece um exemplo con-
tundente do artista em estado de isolamento do restante dos domínios sociais:
A visão de isolamento tem sua apoteose [na pintura] Um bar em Folies-Bergere,
talvez a imagem mais aguda de alienação já pintada, [...] na qual o anônimo porém
concreto aparece aprisionado entre o mundo das coisas tangíveis e aquele dos reflexos
302 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
impalpáveis, existindo apenas como um ponto intermediário entre vida e arte. É justa-
mente sobre tais desconfiança e alienação e as maneiras admiravelmente inventivas,
destrutivas e autodestrutivas de produzir arte a partir delas [desconfiança e alienação]
que a vanguarda moderna tem sido construída desde então. (NOCHLIN, 1991, p. 17)
Poderíamos citar diferentes artistas modernos que buscaram afirmar a independência
e autonomia da arte em termos que nos parecem atualmente inexplicáveis e inaceitáveis,
mas que tiveram potência nos momentos de suas enunciações. É o caso de manifesta-
ções do pintor norte-americano Ad Reinhardt, em textos coligidos pela historiadora da
arte e crítica Barbara Rose: “uma coisa que se pode dizer sobre arte e vida é que arte é
arte, e que vida é vida, que arte não é vida e que vida não é arte”; ou ainda “se o artista
pensa que é menos ridículo quando ele se envolve com política do que quando o político
se envolve com a arte, ele [artista] está enganado”. (ROSE, 1991, p. 54)
Ao longo do século XX, em uma dilatação dos tempos que atinge os anos iniciais
do século XXI, essa percepção de vanguarda tem persistido em práticas que afirmam
invariavelmente a autonomia da arte diante do campo social, instauradas em universos
de distanciamento, descolamento e exclusão, lastreadas em pensadores como Theodor
W. Adorno e Max Horkheimer.
Somente mais recentemente, a partir da publicação de Teoria da vanguarda, in-
fluente estudo de Peter Bürger (1974), tem sido possível empreender um deslocamento
dessa percepção da noção e das práticas de vanguarda para realinhá-las com aquelas
identificadas como “vanguardas históricas”, enfatizando sua rejeição das experiências
de interposição de distâncias entre arte e vida, entre arte e política, entre arte e cotidiano:
Os movimentos europeus de vanguarda podem definir-se como um ataque ao sta-
tus da arte na sociedade burguesa. Não impugnam uma expressão artística precedente
(um estilo), mas a instituição arte na sua separação da práxis vital dos homens. [...] Os
vanguardistas vêem como rasgo dominante da arte na sociedade burguesa sua separa-
ção da práxis vital. Tal juízo foi proporcionado, entre outras coisas, pelo esteticismo,
ao transformar esse momento da instituição arte em conteúdo essencial da arte. [...] A
práxis vital, à qual o esteticismo se refere por exclusão de partes, é a racionalidade dos
fins da vida prática burguesa. Os vanguardistas não tentam em absoluto integrar a arte
nessa práxis vital; pelo contrário, partilham a recusa do mundo ordenado conforme a
racionalidade dos fins que o esteticismo havia formulado. O que os distingue deste é a
tentativa de organizar, a partir da arte, uma nova práxis vital. (BÜRGER, 1991, p. 91)
Para o crítico alemão e professor de Teoria de Literatura da Universidade de Bre-
men, Alemanha, a ideia de vanguarda é indissociável daquela de imbricação e contami-
nação da arte com os domínios sociais ampliados:
Os movimentos históricos de vanguarda negam, em resumo, as características es-
senciais da arte autônoma: a separação da arte em relação à práxis vital, a produção
individual e a consequente recepção também individual. A vanguarda intenta a supera-
ção da arte autônoma no sentido de uma recondução da arte em direção à práxis vital.
(BÜRGER, 1991, p. 96)
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 303
o paradoxo artístico consiste hoje no desejo de produzir o mundo (corpos, movimentos) dife-
rentemente – e de dentro –; um mundo que não admite outro mundo além daquele que de fato
existe. E que sabe que o “lado de fora” a ser construído somente pode ser o outro dentro de
uma absoluta interioridade. (NEGRI, 2011, p. 108)
Parece não ser por outro motivo que as práticas contemporâneas de arte têm invaria-
velmente o domínio público como lócus preferencial de sua instauração, em situações
que somente com grande dificuldade parecem encontrar alguma similitude com os pro-
cessos e procedimentos de criações artísticas consolidadas. Em muitos desses cenários
contemporâneos da arte, o artista parece abandonar a identidade tradicional do artista
para assumir outras funções, algo identificado por Allan Kaprow como changing jobs,
conforme citado por Sven Lütticken:
vemos mais uma vez o ideal da vanguarda de integrar arte e vida – não tornando-se parte
da indústria da cultura (Warhol) ou através de atividades secretas que buscam transformar a
ordem social e criar um novo mundo no qual não mais haveria arte autônoma (Bataille), [...]
mas através da adoção de identidades profissionais diferentes. (LÜTTICKEN, 2002, p. 142)
Ainda de acordo com Lütticken, “para Kaprow, changing jobs implica na possibi-
lidade de adentrar na vida e fazer coisas que poderiam ser apresentadas ou vistas como
arte, mas que assim não tinha que ser”. (LÜTTICKEN, 2002, p. 143)
Na abertura de seu provocativo artigo “The Social Turn: Collaboration and its Dis-
contents”, publicado na Artforum, a crítica inglesa Claire Bishop elenca uma série de
atividades que somente a muito custo são reconhecidas como práticas de arte:
O canal de tevê na internet para idosos envolvidos em um projeto de moradias em
Liverpool (Tenantspin, 1999) do Superflex; Annika Eriksson (Do you want an audien-
ce? 2003); a parada social para mais de 20 organizações sociais em San Sebastián (So-
cial Parade, 2004) de Jeremy Deller; Lincoln Tobier treinando moradores de Auber-
villiers, a nordeste de Paris, para produzir programas de rádio de meia hora (Radio Ld’A,
2002); uma clínica de aborto flutuante, A-Portable, do Ateliê Van Lieshout (2001) [...].
(BISHOP, 2006, p. 178)
A lista iniciada por Claire Bishop poderia ser alongada quase que indefinidamente,
e a ela poderíamos acrescentar exemplos brasileiros e de toda a América Latina para
formar aquilo que a autora define como um “catálogo de projetos [que] é apenas uma
amostra da recente onda de interesse artístico na coletividade, na colaboração e no com-
promisso direto com grupos sociais específicos” (BISHOP, 2006, p. 178), para acres-
centar que esse “panorama de obras socialmente colaborativas forma a princípio o que
temos de vanguarda nos dias de hoje: artistas que usam situações sociais para produzir
304 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Referências
BISHOP, Claire. The Social Turn: Collaboration and its Discontents. Artforum, fev. 2006, p. 178-183.
BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Lisboa: Vega / Universidade, 1993 [1974].
LÜTTICKEN, Sven. Secrecy and Publicity. New Left Review n. 17, set.-out. 2002, p. 129-148.
NEGRI, Antonio. Art & Multitude. Londres: Polity Press, 2011.
NOCHLIN, Linda. The Politics of Vision – Essays on Nineteenth-Century Art and Society. Nova
York: Harper & Row Publishers, 1991.
ROSE, Barbara (ed.). Art as Art: Selected Writings of Ad Reinhardt. Berkeley, California: Univer-
sity of California Press, 1991.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 305
Os espaços, as imagens,
os sons e os processos
de criação do movimento
Maju Martins
UNICAMP – [email protected]
O alcance dos espaços construídos vai então bem além de suas estruturas visíveis e funcionais.
São essencialmente máquinas, máquinas de sentido, de sensação, máquinas abstratas funcio-
nando como o “companheiro” anteriormente evocado, máquinas portadoras de universos in-
corporais que não são, todavia, Universais, mas que podem trabalhar tanto no sentido de um
esmagamento uniformizador quanto no de uma re-singularização liberadora da subjetividade
individual e coletiva (GUATTARI, 1992).
e artista plástico Murray Shafer (1991) nos induz a perceber a paisagem sonora, para que
adentremos no mundo dos sons com maior acuidade auditiva, nos levando a perceber a
“sinfonia do universo”. “Os olhos apontam para fora; os ouvidos para dentro. Eles ab-
sorvem informação” (SHAFER, 1991). Cada participante passa a compor a trilha para
sua improvisação, buscando nos sons do entorno recursos que mobilizam o corpo para
o movimento. Os sons nos afetam constantemente, não temos pálpebras nos ouvidos,
dizia SHAFER (1991). Transformar os sons em estímulos para o movimento percebê-
-los como parte da composição do espaço e dialogar em movimento com as paisagens
sonoras e as paisagens concretas, esta era a proposta para a ocupação do espaço público.
Após esta prática, foram espalhados no chão da sala inúmeros cartões com reproduções
de quadros e esculturas produzidos nos séculos XIX e XX. Os participantes engati-
nhavam pela sala observando estas reproduções. Era pedido que escolhessem uma das
gravuras, apenas com os olhos, e a partir do momento da escolha, eles passavam a se
movimentar como se estivessem dentro daquela imagem. Podemos notar que a imagem
conhecida, o Território existencial cultural partilhado, é devorado pelo olhar e passa a
operar a partir de modulações que o corpo propõe pelo movimento, reverberações da
imagem produzindo movimento, um contínuo entre o gesto do artista plástico dos sécu-
los passados e o gesto do dançarino/performer de hoje. Em outra etapa do trabalho, as
experimentações passaram a ser realizadas em espaço público. Compor com o espaço,
assim como, o pintor compõe com as cores e as formas, alterando a paisagem dos espa-
ços com movimentos que tornam vívida a arte, uma experiência existencial-relacional.
A experiência esta fundada na experimentação da ação do corpo que tem como parceiro
de criação o espaço e seus atributos concretos e abstratos, as texturas, os contornos, as
imagens, os sons, os cheiros, os signos, as memórias, as presenças. Tudo isso mobilizan-
do o corpo, tudo isso ativando os sentidos e as percepções, tudo isso dialogando comigo
e com o meu vir a ser, gerando fissuras no concreto e abrindo os poros da pele para que
a imaginação e a criatividade possam se manifestar. Assim como o espaço, o corpo é
constituído de atributos concretos e abstratos que se relacionam com as concretudes e
abstrações dos espaços circundantes. Uma mão é um dado concreto composto de carne,
ossos, ligamentos, com gestos e funções que são partilhados coletivamente. As mãos
seguram, pegam, apertam, acariciam, escrevem, tecem,... Mas, cada mão carrega em si
memórias únicas, razões próprias, desejos singulares que a mobiliza a segurar, a pegar, a
apertar, a acariciar, a escrever e a tecer. Cada gesto é o resultado de histórias, vontades,
sentidos e significados encarnados em cada corpo. Todo gesto é, antes de tudo, potência,
energia em transformação na relação com o tempo e o espaço.
Temos então que lidar não somente com a discursividade fonológica, gestual, espacial, mu-
sical, etc., que dá suporte à constituição de um Território existencial, mas somos igualmente
confrontados com consistências de conteúdo não-discursivas, as quais são referidas a essas
mesmas semiologias discursivas. (GUATTARI, 1992).
308 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Referências
GUATTARI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1992.
MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2008.
SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Editora da UNESP, 1991.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 309
Mara Porto
PPGA/UFU – [email protected]
Apresentação
Curso de Extensão “Arte Urbana: re-poetizando a cidade”
Minha pesquisa de mestrado, iniciada em 2013, privilegia a busca de lugares no espaço
urbano através do processo do caminhar/deslocar como ação poética e estética para
coleta de materiais, ações ou intervenções artísticas, entre outras. Aliado a isto, dou
preferência aos ambientes de natureza, mesmo no espaço urbano, elejo os espaços que
tenham uma maior concentração de área verde, como parques, praças, áreas preserva-
das, entre outros.
A relação da arte com a cidade tem sido uma inquietação constante da sociedade nos
últimos tempos, por isso pensar a cidade e a natureza através da arte é propor um diálogo
com importantes circunstâncias atuais e temas sociais contemporâneos. A segregação dos
espaços urbanos, a diminuição dos espaços naturais e o individualismo de uma sociedade
pós-moderna, faz com que artistas contestem, através da arte, esse mundo contemporâneo.
O espaço urbano é abordado, tanto em minha Pesquisa, quanto no Curso de Ex-
tensão, ministrado no Centro Universitário de Patos de Minas/UNIPAM, possibilitan-
do pensar a cidade como um campo aberto para experimentações artísticas, através de
ações/intervenções, instigando uma percepção mais atenta dos espaços da cidade e da
natureza ainda presente nestes espaços.
A primeira proposição artística do Curso de Extensão foi mapear os espaços/lugares
para a criação das ações poéticas a serem realizadas em coletivo pelos participantes.
Desta forma, ao invés de utilizar o espaço urbano como lugar de passagem, procu-
ramos vivê-lo de forma ativa e afetiva, potencializando essa experiência em procuras,
capturas, movimentos, tudo isso através do ato de caminhar, pensando cada passo pelas
frestas da intimidade com os espaços percorridos, onde a realidade é percebida de forma
mais implícita do que explícita.
Figuras 1, 2 e 3. À esquerda: as placas feitas de mdf e anexadas aos tocos das árvores que
foram cortadas na praça da Av. Getúlio Vargas. Ao centro detalhe da placa. À direita: um dos
edifícios em construção que foi um dos motivos dos cortes das árvores, para maior visibilidade
da fachada. Fotografia de Mara Porto, Patos de Minas, 2013. (Acervo da Artista)
Os Antigos Casarões
Com a mesma proposta de preservação da identidade e da memória da Avenida Ge-
túlio Vargas, os antigos casarões foram preservados durante décadas, mas o momento
presente os coloca como alvo da especulação imobiliária; hoje só restam alguns destes
casarões preservados, e muitos ainda não foram tombados pelo Patrimônio Histórico,
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 313
o que possibilita a fácil destruição destes imóveis. Um dos casarões da Getúlio Vargas
está à venda por metro quadrado, o que pressupõe que será construído um “lindo prédio
novo” em seu lugar e que mais um dos preciosos casarões estará, em pouco tempo, na
paisagem de uma memória da cidade e da Avenida.
Pensando nesse contexto social e simbólico, os participantes do Curso fizeram um
faixa questionando a relação da cidade com a memória (figura 4 e 5). A faixa que foi
anexada no casarão continha os seguintes dizeres: “E NOSSA MEMÓRIA!? TAMBÉM
ESTÁ A VENDA?”. A faixa foi anexada no sábado, e no dia seguinte foi vista sendo
arrancada pelo dono da Imobiliária responsável pela negociação do imóvel.
Figuras 4 e 5. Faixa de tecido anexada no Casarão da Av. Getúlio Vargas. Fotografia de Mara
Porto, Patos de Minas, 2013. (Acervo da Artista)
Outro casarão que também foi motivo de criação poética foi o Palacete Amadeu Dias
Maciel da família Maciel, fechado há mais de 20 anos e sem utilização nenhuma em seu
interior. Este já foi levado para justiça para tombamento, mas até o presente momento
nada foi determinado. Deste modo, ficou definido que uma obra, em caráter de urgência
seria realizada, para impedir as infiltrações nas pinturas internas, portanto foi colocado
um tapume na cor preta em torno da casa, mas até hoje nenhuma obra foi iniciada.
Para a realização desta intervenção, os participantes do Curso apropriaram de um
dos cartazes do Poro, dupla de artistas de Belo Horizonte/MG – Brígida Campbell e
Marcelo Terça-Nada!, que trabalha também com ações e intervenções no espaço públi-
co e que disponibiliza seus cartazes, folders, panfletos para download, e desta maneira
utilizamos um dos cartazes para questionar a realidade deste casarão.
Vinte cartazes foram colados neste tapume, criando um rastro colorido e distribuído
na cena fria da paisagem; assim, os transeuntes que por ali passavam, revisitavam com o
olhar, o casarão; se deslocando e possibilitando uma outra leitura da realidade cotidiana;
logo, os cartazes levavam as pessoas a re-observar a beleza da arquitetura ali adormeci-
da e esquecida (figura 6 e 7). A intervenção foi realizada no sábado e, no outro dia pela
manhã, os cartazes foram arrancados um a um por um vigia do casarão, os cartazes que
não foram arrancados, pela quantidade de cola, foram pintados com uma demão de tinta
amarela, na tentativa de apagar os questionamentos sobre mais uma das poucas identi-
dades da nossa arquitetura (figura 8 e 9).
314 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
As Criações Multiautorais
As ações poéticas que foram realizadas no espaço urbano foram distribuídas pela cidade
e dissolvidas em múltiplas autorias. Portanto, quando criamos em coletivo podemos
dizer que escrevemos uma narrativa do processo de criação construído no desvio pelo
outro, criando relações de continuidade de pensamentos, de apropriações de reflexões
para amadurecimentos de outras ideias e assim estabelecemos uma relação onde um cria
a partir do outro.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 315
Entre as produções de natureza efêmera, como na arte urbana, entre outras práticas
artísticas no domínio público, é fácil notar que a autoria está em processo de transfor-
mação; assim, os participantes do Curso puderam compreender estes procedimentos da
arte contemporânea os quais atravessam uma etapa de mudança no cenário da criação,
estabelecendo relações transversais em relação à autoria e as multiautorais.
Concluímos, então, que a dificuldade de construção do processo de criação coletivo
entre os participantes é encontrada no interstício das relações que cada indivíduo carrega
a partir de suas crenças, suas analogias sociais, políticas e culturais, a relação afetiva
com a cidade, entre outras; e estas relações diversas, ao mesmo tempo em que dificulta
a amarração do processo de criação, também enriquece a elaboração dos trabalhos. Com
essas convergências de uma diversidade de pessoas com profissões e conhecimentos
distintos, conseguimos criar um fio que conduzisse e que costurasse as reflexões con-
ceituais, estéticas, poéticas e afetivas de todos os participantes e que possibilitou uma
sistematização das ações realizadas.
Assim, concluímos durante o Curso, e posteriormente na divulgação das ações que
foram realizadas, que “as estéticas relacional e interativa como campos de interdepen-
dências em fluxo, possibilitam inovadoras plataformas de intervenções urbanas e práti-
cas contemporâneas”. (Cleomar Rocha, Valzeli Figueira Sampaio e Lilian Amaral. Dis-
ponível em: < http://www.anpap.org.br> Acesso em: 03 de outubro de 2013).
Referências
CAMPEBELL, Brígida, TERÇA-NADA! Marcelo. Intervalo, Respiro, Pequenos Deslocamentos:
Ações Poéticas do Poro. = Interval, Breathing, Small displacements: Poro’s poetical actions [
tradução para o inglês: Bruna Di Gioia, Ines Linke, Nayara Pinheiro Teixeira e Ronan Morais
Pena]. - São Paulo: Radical Livros, 2011.
REY, Sandra. Por uma abordagem metodológica de pesquisa em artes visuais. In: BRITES, B.
O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em artes visuais. Porto Alegre: UFGRS,
2002.
REYES, Paulo. Quando a Rua Vira Corpo [ou a dimensão pública na ordem digital]. São Leopol-
do/RS: Unisinos, 2005.
JACQUES, Paola Berenstein (org.) Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade /
Internacional Situacionista (Tradução Estela dos Santos Abreu) . Rio de Janeiro: Casa da Pa-
lavra, 2003.
Cleomar Rocha, Lilian Amaral e Valzeli Figueira Sampaio, 2013. Disponível em: < http://www.
anpap.org.br>. Acesso em: 03 de outubro de 2013.
316 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
José Cirillo
CNPQ/FAPES/PPGA-UFES
No contexto das reflexões sobre autoria, este texto reflete sobre o processo
de criação de uma obra mural, destinada à cidade. Por sua grande dimensão,
cerca de 168,27 m², a obra contou com uma grande equipe de produção, mas
sem ação efetiva na alteração do projeto autoral de Raphael Samú. O texto se
propõe a apresentar o modo de concepção das obras murais do artista plástico
Raphael Samú, demonstrando sua autonomia quanto à criação artística. Pre-
tendemos analisar também a importância de seu ateliê para o processo criativo
de suas obras como elemento efetivador de uma autoria centrada no artista.
Palavras-chave: Processo de criação, Produção em Ateliês, Autoria Artística.
Introdução
As cidades contêm um repertório artístico o qual o transeunte, muitas vezes, acaba não
dando conta de assimilar, devido ao grande número de informações visuais presentes
nela, como por exemplo, na publicidade excessiva da contemporaneidade que transfor-
mou as cidade em imagens de si mesmas. O lugar reservado às obras de arte vem sendo
questionado e muitos teóricos defendem esta saída dos espaços institucionais, promo-
vendo assim maior aproximação com o público.
Alguns autores debruçaram-se sobre este assunto, mas existem várias perspectivas
que devem ser tidas em conta, um autor que se destaca no estudo da cidade é o arqui-
teto e teórico americano Kevin Lynch. Seu livro A Imagem da Cidade ([1960] 1997)
consiste numa análise de vários aspectos das cidades e dos elementos que a compõem,
fazendo também um estudo que analisa e descreve três cidades americanas: Boston, Los
Angeles e Jersey City.
O texto fala da importância da imagem que cada um faz de sua própria cidade e de
sua singularidade. Cada cidadão tem vastas associações com alguma parte de sua cida-
de, e a imagem de cada um está impregnada de lembranças e significados. Para Lynch
“o design de uma cidade é, assim, uma arte temporal, mas raramente pode usar as seqü-
ências controladas e limitadas de outras artes temporais como, por exemplo, a música.
Em ocasiões diferentes e para pessoas diferentes, as seqüências são invertidas, inter-
rompidas, abandonadas, anuladas. Isso acontece a todo passo” (LYNCH, 1997, p. 01).
Murais, painéis, monumentos, ou mesmo esculturas de grande porte formam uma
arte de escala mais abrangente, na qual o artista mantém uma relação de integração com
um público muito maior, construindo, assim, a imagem da cidade e construindo o ima-
ginário das pessoas que ali habitam.
Neste contexto, o artista Raphael Samú, artista de origem paulistana radicado no
Espírito Santo desde os anos de 1960, encontra-se inserido na discussão da arte para
espaços públicos da cultura capixaba, seus mosaicos murais estão presentes na cidade e
na memória dos habitantes de Vitória.
Antes destas obras “invadirem” o espaço público, existe todo o processo de criação ar-
tístico que se inicia dentro do ateliê do artista. Portanto, a finalidade deste artigo é entender
um pouco o lugar onde Samú exerce sua criatividade artística, o qual reforça o conceito de
autoria centrada na figura do artista. Veremos também como a questão da autoria se aplica
aos trabalhos deste artista. Para subsidiar a observação deste espaço teremos como base o
ensaio intitulado A função do ateliê (1971), do artista francês Daniel Buren.
Sobre o artista
Raphael Samú nasceu em São Paulo, em 1929, sua mãe era romena e seu pai húngaro
e escolheram o Brasil para viver. Em 1948, um amigo de seu pai que já havia estudado
Belas Artes começou a lhe dar aulas de pintura e no ano seguinte, 1949, foi aprovado
para ingressar na Escola de Belas Artes de São Paulo.
318 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Durante sua vida acadêmica, Samú fez alguns cursos, tais como o curso de monitoria
para a II Bienal Internacional de São Paulo; o curso de gravura na Escola de Artesanato
do Museu de Arte de São Paulo, estudou gravura em metal com Mário Gruber; História
da Arte com Wolfgang Pfeiffer e xilogravura com Lívio Abramo. Formou-se em escul-
tura em 1955, na Escola de Belas Artes e em seguida fez um curso de litogravura com
Renina Katz, no Museu de Arte de São Paulo – MASP.
O contato com o mosaico ocorreu durante sua graduação quando ele fez uma via-
gem à Bahia e fez alguns croquis de uma feira local. Um desses croquis, feito a gua-
che, retratava a cena de uma pescaria. De volta a São Paulo, este desenho foi visto
pelo professor Joaquim da Rocha Ferreira, que tinha acabado de voltar de Ravena, na
Itália, que achou interessante executá-lo com a técnica do mosaico. Assim, executou
o seu primeiro mural em mosaico.
Em 1958 Samú foi contratado para trabalhar na divisão de mosaicos da Vidrotil, em-
presa fabricante de pastilhas de vidros (tesselas) fundada em 1947 em São Bernardo dos
Campos - São Paulo, onde ele trabalhou até 1961. O trabalho nessa fábrica foi de suma
importância para o seu aprimoramento nessa técnica. Lá, ele recebia projetos, ampliava
e supervisionava a execução dos mosaicos. Realizou, entre outros, mosaicos de Di Ca-
valcante, Lívio Abramo, Clóvis Graciano e Cândido Portinari. Aqui, nesta fase ainda
sobre a vida do artista podemos verificar que há uma tensão entre a autoria do objeto
plástico e sua produção. Durante esse tempo a serviço da Vidrotil, Samú é um executor
de projetos autorais de artista consagrados da arte moderna brasileira. Ele recebia os
cartões com a imagem da obra a ser executada, devendo realizá-la sem intervir em seu
processo criativo, ou mesmo reclamar sua autoria pela transposição da linguagem do
desenho/pintura no papel (cartão) para a linguagem das tesselas de vidro. Neste contexto
de separação entre a criação da obra e sua execução, entre o saber estético do artista e o
saber técnico do executor, foi sendo formada a concepção de autoria de Raphael Samú.
Porém, depois de longo período na Vidrotil, Samú decide seguir por conta própria e
lança-se em outras missões no campo da arte. Muda-se definitivamente para o Estado
do Espírito Santo com o qual já flertava há alguns anos como mosaicista.
Em 1961, no contexto da federalização, a Universidade Federal do Espírito Santo
precisava contratar professores qualificados, então, Raphael Samú e sua esposa Jerusa,
que também era artista plástica, candidataram-se a esses cargos. Seus currículos foram
aprovados pelo conselho da Escola de Belas Artes e, no ano seguinte, mudaram-se para
o Espírito Santo, onde ele lecionou até 1989.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 319
Figura 1: Mural da UFES (superior), Edifício Cauê (inferior esquerda), Edifício Aldebaran (in-
ferior centro) e Residência em Bento Ferreira (inferior direita). Fotografia de Marcela Belo.
Todo o processo criativo da obra, incluindo a montagem das tesselas, é feito pelo
próprio Samú, diferentemente do processo da Vidrotil, na qual o artista entregava um
cartão com o desenho proposto e a fábrica ficava encarregada da sua montagem. Samú
somente terceiriza a mão-de-obra dos mestres de obras, que aplicam o mosaico pronto
à superfície desejada.
A exceção deste processo criativo dá-se na montagem do mural da Universidade
Federal do Espírito Santo (figura 1 – imagem superior). A disciplina Mosaico ainda não
fazia parte da grade curricular dos cursos presentes no Centro de Artes da UFES, mas
aliada à encomenda que recebeu do então Reitor (Máximo Borgo), de criar um mural na
entrada da Universidade, Samú interessou-se em dividir sua experiência com as demais
pessoas, portanto criou um projeto de extensão onde foi possível ensinar a técnica mu-
siva à diversas pessoas.
O artista criou um ateliê no Centro de Artes da Universidade e passou a trabalhar
neste espaço recebendo a colaboração de diversas pessoas na montagem do mosaico,
sendo estes: amigos, alunos, outros professores, técnicos administrativos e uma auxiliar
oficial, chamada Elisabeth M. Cabral. Curiosamente, este é o único mural, do qual temos
conhecimento, que Samú inclui outra pessoa na assinatura do mural (figura 2). Elisabeth
aparece apenas como auxiliar, ou seja, em momento algum compartilha a autoria da
obra, participa apenas do processo de execução do mosaico.
Raphael Samú afirma que as pessoas que o ajudaram neste processo tinham uma
visão muito fragmentada da obra, colocavam as tesselas sobre o desenho seguindo o
projeto fixado na parede do ateliê, mesmo sem identificar o desenho rapidamente, devi-
do à sua grande escala.
Mesmo recebendo a colaboração de diversas pessoas para a confecção deste mural,
as fotografias tiradas durante este processo (figura 3) demonstram um artista solitário,
tal qual no seu ateliê particular. Ele não possui em seu acervo particular fotografias de
toda equipe de trabalho.
Figura 2: Assinatura do mural Fonte: Fotogra- Figura 3: Ateliê montado no Centro de Ar-
fia de Marcela Belo tes - UFES. Fonte: Fotografias de Walace
Neves. Acervo de Raphael Samú
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 321
O ateliê , diz Buren (2009), é o único lugar onde a obra de arte está realmente em
casa, portanto mais próxima de sua realidade. Para ele o ateliê funciona também como
uma espécie de “boutique” que curadores e revendedores visitam a fim de fazer suas se-
leções. Uma vez que essas seleções foram feitas, o trabalho é transportado para o museu
ou galeria, onde a sua “verdade” e “realidade” são perdidas (p. 112). Porém, vemos que
esta noção de ateliê – “boutique”- não se aplica muito bem no caso dos mosaicos murais
de Samú, pois ele trabalha a partir de encomendas, assim, suas obras são específicas para
cada local aplicado.
O autor define a função do ateliê da seguinte maneira: “1) É o lugar de origem da
obra. 2) É na maioria das vezes um lugar privado , que poderia ser uma torre de marfim.
3) É um lugar fixo onde objetos portáteis são produzidos” (BUREN, 2009, p. 110).
Assim, consideramos o ateliê como um elemento importante nas obras do artista,
enquanto “o lugar da criação”, que nos remete para outros territórios que ultrapassam as
quatro paredes da sua construção, e/ou como seu campo de trabalho.
Esse trabalho, longe de esgotar um assunto ou tema, pretende uma abertura ao uni-
verso do momento de criação da obra artística de Raphael Samú. Representa um esboço
da relação de autoria do artista e uma pequena reflexão sobre a ligação de seu processo
de criação e seu ateliê.
Referências
BUREN, Daniel. The Function of the Studio, In: ALBERRO, Alexander, STIMSON, Blake. Insti-
tutional Critique: an anthology of artists´writings. Cambridge: MIT, 2009.
LYNCH, Kevin. A imagem da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, [1960] 1997
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 323
Paisagens biográficas –
memórias pós-coloniais –
identidades colaborativas
2. Sobre essa ideia de aiesthesis (bio)descolonial ver meu ensaio publicado na Revista Raído
(online: ISSN 1984-4018), do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFGD, semestre
Jul. / Dez. 2013, Número 14, cuja temática é Teoria e Prática do Discurso Crítico na América
Latina) intitulado “Paisagens biográficas descoloniais”.
326 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Wega Nery numa série de pinturas dos anos 1980 toma a paisagem pantaneira da
cidade de Corumbá, na divisa internacional do estado com a Bolívia, para criar obras
que retratam o bios da paisagem do Pantanal sul-mato-grossense. Nery parece retratar
com suas pinturas o “entrevero” político e do poder econômico entre as fronteiras tão
presentes na região. Uma verdadeira batalha cultural é travada naquele lugar. De um
lado da linha imaginária que é traçada pelas águas dos rios ficam os brasileiros com sota-
que boliviano e na outra margem não o é diferente em relação aos bolivianos que falam
com um sotaque português arrastado no espanhol. Artefatos das culturas se misturam
em intensidades quase como se dão os enlaces pessoais; porque o primeiro parece se dar
de maneira maior e incontrolável por qualquer forma de poder ou política. Ainda que
existam os limites pré-estabelecidos como fronteiras. Entre “revoltosos” e “agressivos”
manejos gestuais e cores intensas, aplicadas nas telas que servem como suportes, obras
e paisagens parecem muito próximas da realidade bio(geo)gráfica do lugar. Nas telas da
artista, as cenas de guerras por que passaram aquelas pessoas se presenteficam pelas (re)
voltas da pintura.
Já Spengler tomou em toda sua obra a iconografia kadiwéu que “cicatrizava” na pele
o bios de cada sujeito daquela etnia. Próximo ao ato de circuncisão freudiana que marca
o sujeito para alémvida como uma insígnia particular (Derrida, 2001). A iconografia
étnica kadiwéu na obra de Spengler parece literalmente retratar as peles dos campesinos
que residiram “livremente” no Brasil por um bom tempo na fronteira sul do antigo Mato
Grosso. Lócus geográfico na região Centro-Oeste brasileira que repartido em 1977 deu
origem ao atual estado de Mato Grosso do Sul. As pinturas faciais de desenhos geome-
trizados, adaptados pelo artista com cores das terras da cidade morena, são objetos de
inspiração investigativos antropológicos, críticos e artísticos (como fez o próprio artista
em todo seu percurso poético e processual) faz muitos anos. Corrobora essa afirmativa o
fato de que os mesmos desenhos Kadiwéu largamente utilizados pelo artista terem sido
estudados, ainda que de maneira muito estrutural, pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss
ao afirmar que
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 327
Esta técnica tão característica, que se reencontra na arte da China arcaica, entre os primitivos
da Sibéria e na Nova Zelândia, aparece também na outra extremidade do continente america-
no, entre os índios Kadiwéu. Um desenho que reproduzimos aqui representa um rosto pintado
segundo o uso tradicional das mulheres desta pequena tribo do sul do Brasil, um dos últimos
vestígios da nação outrora florescentes dos Guaikurú. (LÉVI-STRAUSS: 1996, p. 285).
quebrado e aquarelas sobre tela e papel, dedos e pincéis. Jorapimo retratou as identidades
variáveis (Hall, 2006) de lavadeiras, pantaneiros, sul-mato-grossenses, bolivianos, para-
guaios, entre outras, que corroboraram a sua e as obras de outros artistas que têm na pele
a “marca” autoral da exclusão colonial histórica e da pós-colonialidade contemporânea.
Ainda mais representativo disso tudo, desse grosso caldo cultural de biografias co-
laborativas nos processos e poéticas desses artistas, é o “reservatório” cultural, se posso
dizer assim, de onde Ilton Silva diz retirar grande parte, se não tudo para o seu repertório
de processo e poética pictural. Especialmente na “Série Itaúna”, mas na sua obra como
um todo, Ilton Silva pinta ainda hoje se valendo do que ele próprio nominou carinho-
samente de “cumbuca cultural”: uma mistura de tudo que forma, (trans)forma ou cons-
titui a cultura do estado de fronteiras “guardadas” como poética e processo de criação.
Quase magicamente os artistas parecem ter retirado dessa “cumbuca”, e ainda o faz no
caso de Silva, todo o universo (particular) das suas obras pictóricas. Insistindo para não
inscrever esses artistas na ideia de movimentos artísticos históricos que retoma noções
de mortes, datas, anterioridades, antecessores, cópias ou modelos, que sempre tomam a
Europa ou os Estados Unidos como contrapontos, cada um a seu modo, retirou colabo-
rações biográficas e geográficas dessa cumbuca e as “imprimiram” nas telas.
Já que a performance da cumbuca cultura é colaborativa no que tange o seu reperto-
rio de memórias e arquivos culturais; ou seja, nesse “reservatório”, tudo que é da ordem
do bios-geo-gráfico encontra-se armazenado, a espreita de ser (des)arquivado a qualquer
momento, pelo artista que a partir dali queira criar processos e poéticas artísticas. Como
metáfora de uma mala e/ou baú de viagens, dentro estão as memórias anarquivadas
(Derrida, 2001) de cada sujeito que por ali transitou em algum tipo de viagem, passa-
gem, paragem ou passeio. E nesse caso, se tornam repertório inesgotável para as pro-
duções culturais que dali erige e trabalham, como pintura de paisagem e memória, com
repertórios de lembranças e/ou esquecimentos por algum percalço das vidas próprias e
alheias. Diante disso, cada revirada nessa cumbuca cultural da cultura sul-mato-gros-
sense evidencia memórias culturais cada vez mais esquecidas pelo tempo. Logo porque,
esquecer é lembrar, como vaticinou Clarice Lispector em algum momento.
A afirmativa de Ilton Silva, nesse caso, se torna tão importante e adequada para
pensar os processos e poéticas desses quatro artistas, igualmente as suas pinturas todas
(Nery, Spengler, Jorapimo e Ilton Silva), porque todos fizeram presentificar, de algum
modo muito particular, essas memórias e histórias do lócus cultural sul-mato-grossense.
Já afirmei sobre as pinturas de Wega Nery, Henrique Spengler e Jorapimo, cada um re-
tratou suas imagens das fronteiras a partir de suas perspectivas biográficas e geográficas,
e para Ilton Silva a matéria não o é diferente. Na “Série Itaúna”, produzida pelo artista
nos anos 2010, um dos meus objetos de ilustração artística de exploração crítico-cultural
pós-colonial nesta pesquisa, cenas da infância do artista, representações escultóricas da
obra artística materna (filho de Conceição dos Bugres retrata várias das esculturas de
“Bugres” feitos de raiz de mandioca pela mãe), paisagens pantaneiras e imagens vistas
apenas na linha de fronteira entre o Paraguai e o Brasil nas cidades de Ponta Porã (do
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 329
3. “Es que, en cierto sentido, las identidades significan el (auto)reconocimiento que hace una
persona o un grupo de su inscripción en un red imaginaria que lo sostiente (de su pertenencia
a un armazón de sentido). Pero las redes, los armazones, se levatan en diverses niveles: la
región, la ciudad, el barrio, la religión, la familia, el género, la sexualidad, la raza, la ideología,
etc. Por eso, las referencias a la práctica individual o colectiva, los lugares de la memoria, se
sitúan en dimensiones que no pueden ser clausuradas en torno a una sola cuestión y que
constantemente se superponen en varios estratos vacilantes.” (Escobar, 2000)
330 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Também em Mato Grosso do Sul, essa rede imaginária situada nas linhas de frontei-
ras, sustentam os grupos de sujeitos biográficos que estão estampando e são estampados
nessas pinturas. Do mesmo modo a “cumbuca cultural” de Ilton Silva é colaboração
irrestrita de memórias e histórias locais para essas pinturas e artistas. Se de alguma
forma as paisagens naturais contribuíram para as pinturas com o exotismo natural das
regiões fronteiriças e pantaneiras, do mesmo jeito as identidades, memórias e histórias
subalternas são sobrepostas e fazem sobreposições processuais e poéticas, do bem ou
do mal quereres, nas pinturas e paisagens biográficas e E S P A Ç O S para esses
sujeitos/artistas.
Referências
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Claudia de Moraes Rego.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã: diálogo. Trad. André Telles,
revisão técnica Antonio Carlos dos Santos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
ESCOBAR, Ticio. “Identidades en tránsito”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de; RESENDE,
Beatriz. (Orgs.). Artelatina: cultura, globalização e identidades. Rio de Janeiro: Aeroplano,
2000, p. 170-192.
HALL, Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade. Trad. de Tomaz Tadeu da Silva, Guara-
cira Lopes Louro. 10 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de; RESENDE, Beatriz. “Nota dos organizadores”. In: HOLLAN-
DA, Heloisa Buarque de; RESENDE, Beatriz. (Orgs.). Artelatina: cultura, globalização e
identidades. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000, p. 08-10.
JORAPIMO. Imagem Gravura, s/t; Técnica: Acrílica sobre papel; Medidas: 60 x 80 cm. Disponí-
vel em: http://clebermolduras.com.br/?atr=12 - acessado em: 13 de março de 2013.
LÉVI-STRAUSS. Claude. “O desdobramento da representação nas artes da Ásia e da Améri-
ca”. In: _____. Antropologia estrutural. Tradução de Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires.
Revisão etnológica de Júlio Cezar Melatti. 5ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996, p.
279-304.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H.. 7. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
NERY, Wega. Pintura “Paisagem Imaginária”. Técnica: óleo sobre tela - Medidas: 60 x 72 cm.
Assinatura: canto inferior esquerdo e dorso. Data: 1976. Disponível em: http://www.tableau.
com.br/ - acessado em: 15 de março de 2013.
SILVA, Ilton. Pintura da Série Itaúna. Disponível em: www. iltonsilva.com.br – acessado em: 01
de agosto de 2012.
SPENGLER, Henrique. Título: “Unidade Guaicuru d’Cultura”. Autor: Henrique de Melo Spen-
gler. Ano: 1987. Disponível em: http://www.ufgd.edu.br/galeria/exposicao-mitos-na-ufgd/
dsc-1068.jpg/view - acessado em: 15 de março de 2013.
SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. (Humanitas).
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 331
Des-escrevendo
This essay is an analysis focused in the chromatic element of the art work
Des-escrevendo (Un-writing), developed from the appropriation of three from
my old personal diaries. In this analysis, have been considered the art work
technical and conceptual features such as: deletion of the texts by applying
thinner, the method used in this procedure, the implications from the text’s
origin and the text’s deletion, and the blue color’s symbology, predominantly
used in this art work.
Keywords: Contemporary art, drawing, creation process, artist’s book, diary.
332 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Considerações iniciais
Diários são documentos pessoais ligados à intimidade de quem os produz. Na maioria
das vezes são destinados a retratar experiências cotidianas, sonhos e desejos, mas tam-
bém frustrações, medos e angústias. O leitor dos textos escritos em um diário geralmen-
te é apenas o próprio escritor, em raros casos esses textos são compartilhados com um
amigo próximo. Assim sendo, o diário é um suporte que recebe registros que não serão
compartilhados nem veiculados e expressos em outros meios de comunicação e de arte.
Durante o período de 2001 a 2006 desenvolvi sete diários. Eram cadernos de folhas
pautadas, comprados prontos em papelarias, normalmente não maiores que 15x21cm.
O conteúdo dos textos de meus diários envolvia relatos de experiências cotidianas, ano-
tações sobre reflexões e divagações a respeito do estar no mundo. Nessa época escrevia
constantemente, pois objetivava registrar o máximo possível em uma tentativa de vencer
o tempo, permanecendo no texto a pessoa que eu era, por mais que na realidade eu mu-
dasse com o passar do tempo.
Em 2008 deixei de escrever em diários e gradativamente a existência deles virou
um incômodo, pois sentia-me presa ao passado por conservar esses relatos. Somente
em 2010 esses objetos foram retomados com a intenção de destruir o registro dessas
memórias, tornando os textos ilegíveis. Foi uma escolha feita com cautela, pois dentre
as opções viáveis de destruição e de descarte dos diários optei por apropriar-me desses
objetos para transformá-los em suportes e materiais de trabalhos de arte.
Des-escrevendo foi o nome dado ao conjunto de três trabalhos desenvolvidos com
os diários. Seus textos foram tornados ilegíveis a partir da aplicação de tíner, que os
transformou em manchas. A partir desse procedimento técnico a desconstrução tornou-
se o elemento-base desse trabalho, sugerindo alguns questionamentos: Por que apagar
ao invés de rasurar, queimar ou destruir de outra maneira? O que significa proceder
apagando esses registros íntimos? Qual foi o critério de seleção dos três diários dentre
os oito existentes?
A ação de apagar os textos dissolveu a palavra e a escrita. Ora formou áreas de
manchas de cor, ora resquícios de frases e palavras. Esse movimento de apagamento do
texto guiou o desenvolvimento de todos os trabalhos daquele momento e aproximou a
escrita da imagem. Nos diários essas relações de proximidade entre dois campos de ex-
pressão foi explorada considerando que os textos desconstruídos e as palavras diluídas
deram origem a imagens de cor azul. Diante desse azul percebi que Des-escrevendo é
o trabalho no qual a informação cromática é mais significante, de forma que surgiu a
necessidade de investigar a presença da cor nos diários.
Para este ensaio, parte de uma pesquisa em andamento, selecionei da série dos diá-
rios pessoais aqueles que foram escritos com caneta esferográfica azul e preta, pois
este é o material comumente utilizado para escrever à mão e estas são as cores mais
escolhidas para esse fim. A mancha de azul aliada à diluição da escrita e da palavra trou-
xe-me alguns questionamentos, como: que efeito plástico é esse da cor sobre os diários
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 333
e principalmente, que cor é esse azul capaz de evocar sentimentos de prazer e de não
prazer no leitor e mesmo em mim?
O presente texto faz parte de uma parte da pesquisa de mestrado em andamento, cujo
foco é a análise e o desenvolvimento de meus trabalhos de arte, que abordam a proxi-
midade entre escrita e imagem, e vem sendo desenvolvida no programa de mestrado em
artes visuais da UNICAMP desde o segundo semestre de 2012.
As fontes para este ensaio são três diários que fazem parte da série Des-escrevendo
(2010) e o desenvolvimento de um processo da criação que envolveu a técnica da dilui-
ção e teve como resultado a elaboração de um novo trabalho de arte, Diário em Azul,
desenvolvido em 2012 em conjunto com este ensaio. Utilizo como referencial teórico
para análise cromática deste estudo a teoria da cor apresentada por Luciano Guimarães
e os estudos sobre cor e emoção de Eva Heller.
a série final apenas os diários que foram escritos com caneta esferográfica de tinta azul e
preta. A seleção desse material se deve ao fato de que é o mais utilizado na escrita à mão.
A cor azul nos remete à paz e à calma. Segundo Eva Heller, o azul é a cor mais apre-
ciada e é associada ao frio, à confiança, à espiritualidade, à inteligência e ao feminino
(HELLER, 2007, p. 6-7). Mas as sensações proporcionadas pelo azul não provêm exclusi-
vamente de um conteúdo simbólico cultural. Existem razões biológicas para tal fenômeno.
Luciano Guimarães explica que somos capazes de enxergar cores devido à exis-
tência de células chamadas cones no olho humano. Tais células se concentram num
ponto do olho próximo ao nervo ótico denominado fóvea. Os cones possuem proteínas
sensíveis ao estímulo cromático, sendo possível para uma pessoa com a visão saudável
enxergar o espectro de cores com comprimento de onda aproximado entre 380 a 760
nanômetros. A visão das cores ocorre a partir da síntese aditiva: os cones são divididos
segundo o estímulo ao qual são sensíveis: ondas curtas (azuis), ondas médias (verdes) e
ondas longas (vermelhos); a combinação desses estímulos gera a percepção de todas as
outras cores. (GUIMARÃES, 2004, ps. 34-36).
Há variação na quantidade dessas proteínas, sendo que existem as mais sensíveis ao
estímulo dos matizes verdes e as menos sensíveis ao estímulo dos matizes azuis. Assim,
o estímulo da cor azul é brando, enquanto o do amarelo - matiz que, quando saturado,
excita a totalidade tanto dos receptores das ondas longas (vermelhos) quanto dos re-
ceptores das ondas médias (verdes) - é mais intenso e mais agressivo. (GUIMARÃES,
2004, ps. 34-36).
Uma das razões pelas quais o azul é tão utilizado na escrita é que por ser um estí-
mulo suave podemos nos expor a ele por muito tempo sem nos incomodarmos e, sendo
pouco luminoso, esse matiz cria contraste com o papel branco, que é a cor mais lumino-
sa, tornando fácil enxergá-lo.
É devido a esse estímulo suave provocado pela cor azul que ela é associada à paz, à
calma, à inteligência, à espiritualidade e é apreciada por muitas pessoas.
denota medo intenso (HELLER, 2007, p.46). O azul é igualmente associado ao femini-
no e à água. Em diversas línguas existem nomes femininos derivados ou relacionados
à cor azul (Celestina, Celina, Saphira, Iris, etc) enquanto há poucos nomes masculinos
relacionados a essa mesma cor (HELLER, 2007, p.33).
Algumas das associações encontradas por Heller em sua pesquisa são citadas tam-
bém por Jean Chevalier e Alain Gueerbrant:
O azul é a mais profunda das cores: nele, o olhar mergulha sem encontrar qualquer obstáculo,
perdendo-se até o infinito, como diante de uma perpeétua fuga da cor. O azul é a mais imate-
rial das cores: a natureza o apresenta geralmente feito apenas de transparência, i. e., de vazio
acumulado, vazio de ar, vazio de água, vazio do cristal ou do diamante. O vazio é exato, puro e
frio. (...) O temor metafiísico torna-se, assim, um medo azul (fr. Une peurbleue), e passar-se-á
a dizer não vejo senão azul (fr. je n’y vois que dubleu) com o sentido de não vejo nada. Em
alemão, estar azul significa perder a consciência por causa do álcool. O azul, em certas práticas
aberrantes, pode até mesmo significar o cúmulo da passividade e da renúncia. (CHEVALIER;
GUEERBRANT 2012, p.107-109).
Considerações finais
O trabalho de arte Des-escrevendo foi desenvolvido com enfoque na relação entre escri-
ta e imagem. Contudo, foi constatado que sua interpretação vai além das considerações
surgidas em decorrência desse primeiro enfoque.
O presente ensaio demonstra que a técnica da diluição da tinta de caneta esferográ-
fica por meio do solvente tíner é uma técnica válida, que oferece diversas possibilidades
de soluções estéticas. Ela foi escolhida por estar de acordo com a temática da escrita
envolvida no trabalho, resultando numa composição estética harmônica que aborda a
proximidade entre escrita e imagem por suas relações gráficas e conceituais.
A concentração da análise no elemento cromático, a cor azul, como elemento de
construção do trabalho, proporcionou um recorte a partir do qual foi possível considerar
as qualidades estéticas e conceituais do trabalho de forma clara, na medida em que o
azul é um dos elementos centrais de Des-escrevendo.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 337
Finalmente, por meio da exposição das associações à cor azul que mais se destacam,
é possível a partir desse ensaio refletir sobre o uso dessa cor em outros contextos que não
apenas o trabalho Des-escrevendo.
Referências
CHEVALIER, Jean; GUEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 26ª ed.; 2012.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2ª ed., 2009.
GUIMARÃES, Luciano. A cor como informação: a construção biofísica, linguística e cultural da
simbologia das cores. São Paulo: Annablume, 3ªed.; 2004.
HELLER, Eva. Psicología del color: como actúam los colores sobre los sentiientos y la razón.
Barcelona, 2007.
338 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
A perspectiva ético-política
no “programa ambiental”
de Hélio Oiticica
Artista ou Espectador?
Mesmo em correntes que defendem que a arte não tenha uma função específica ou deter-
minada (especialmente social), a potência da arte sempre esteve ligada ao efeito que ela
causa na sociedade, de diferentes formas. Dessa maneira, o espectador em sua relação
com a arte sempre teve um lugar central no debate acerca dessas práticas: diversos artis-
tas, teóricos da arte e filósofos se debruçaram sobre esta questão.
A segunda metade do século XX assistiu a uma mudança da estrutura global, que
culminou na mudança na forma de olhar, de viver e de estar no mundo. Essas mudanças
atingiram diversas balizas das áreas do saber: a história, a linguística, etc. Grande parte
dessa mudança se deve ao pensamento de Nietzsche. Tal pensamento questiona o dis-
curso que visa dirigir, iluminar a humanidade.
As concepções que Nietzsche tenta enfrentar têm como base a filosofia Platônico-
Socrática, a qual se estrutura a partir de oposições fixas. O pensamento de Nietzsche faz
referência a outros olhares, olhares fundamentados em eixos diversos, que repensam
o ser, propondo que este possa ser algo fluido, não-estável. As metas narrativas e suas
totalitárias noções de totalidade começaram a ser questionadas.
Em vista disso, a construção do indivíduo, de sua subjetividade, na sociedade con-
temporânea implica na observação e elucidação dos jogos de poder, das relações de for-
ça, no campo social. Entretanto, pensar práticas e discursos éticos e políticos demandam
uma visão do que seja o campo social e dos espaços-tempos possíveis para que esses
ocorram que extrapolem o senso comum. Ética e política se fazem e são pensados, tam-
bém, por corpos de saber que não apenas a filosofia política.
Das correntes mais recentes que pensam o aspecto ético e político da relação artista
e espectador na arte contemporânea, está aquela que vem a propor a participação do
espectador com a obra. Aqui, iremos pontuar brevemente dois desdobramentos dessa
corrente: o primeiro diz respeito àquelas práticas artísticas que se limitam a propor uma
participação mecânica, com possibilidade pré-definida, do que decorrerá nessa parti-
cipação. Isto é, são práticas que por mais que ofereçam uma experiência estética dife-
renciada, não oferecem a possibilidade de liberdade ao espectador para estabelecer sua
própria relação com aquilo que lhe foi proposto. São práticas que, de certa forma, estão
a arbitrar sobre o que cabe ou não ao espectador: mesmo participante da obra, ele não
tem autonomia para se posicionar diante àquela experiência e muito menos deformá-la
ou definir o que dela lhe cabe, seu papel está limitado ao de receptor.
O segundo desdobramento é aquele que se propõe a buscar um aprofundamento do
que seria esta participação do espectador. Essa participação se faz em algumas práticas
artísticas de maneira radical e autônoma: o espectador passa a ser parte constituinte da
obra. Nesse sentido, o interesse é pelo ser humano em relação a obra, em sentido amplo.
As obras são entendidas como meio para a vivência/experiência singular de cada indi-
víduo: agora, o papel do espectador não está mais limitado e este pode ser até mesmo
um co-autor (o que chamaremos aqui de partípice). Isto, pois, expande as possibilidades
de estabelecimento qualitativo e quantitativo das relações entre artista com o espectador
340 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
e do espectador com a obra. Dito de outra forma, não existe, nessas práticas, a estável
oposição entre artista e espectador ou obra e espectador, pois essas categorias são sem-
pre colocadas em uma zona de tensão e contágio.
No Brasil, alguns artistas foram pioneiros nesse tipo de prática. Aqui, o privilegiado
será Hélio Oiticica e o que ele chamou de Programa Ambiental.
Artista-agenciador
O carioca Hélio Oiticica é um dos mais importantes artistas contemporâneos do mundo.
Nascido em 1937, Hélio possui obras performáticas, pinturas, esculturas, escritos e, por úl-
timo, mas não menos importante, pensador e criador de mundos e possibilidades de existir.
Num primeiro momento, Hélio trabalha questão visual em relação com o tempo
(cor-tempo). Nas palavras do próprio artista, essa relação problematiza a cor-metafísica,
onde “o problema, pois, é o tempo e não o espaço, dependendo um do outro. Se fosse
o espaço, chegaríamos, novamente, ao material, racionalizado. A noção de espaço é
racional por excelência, provém da inteligência e não da intuição” (OITICICA, 1986).
Nesse momento o espaço pictórico é totalmente delimitado e satisfatório: a relação entre
quadro e sujeito se dava apenas pela análise temporal.
Hélio continua suas reflexões dizendo que quem figura algo, figura através de algo.
Isto quer dizer que a expressão linear, que não está baseada nas transformações estrutu-
rais, está sempre calcada numa concepção de suporte passivo, que não busque superar
ou transformar esse caráter estrutural passivo do suporte (OITICICA, 1986). Ele foi um
grande teórico e comentador de seus trabalhos. Desde sempre se mostrou muito cons-
ciente e lúcido sobre o que estava fazendo e o que pretendia com cada aspecto do seu
fazer. Seu intuito era estabelecer uma grandeza-cor, que conseguisse estabelecer o que
ele chama de expressão total.
Para ele, a técnica ou o processo que dava gênese à suas obras correspondia ao que
a arte expressa. Nesse sentido, a mudança que se dá quando ele se propõe a estabelecer
a grandeza cor é “uma mudança na concepção de pintura como tal” (OITICICA, 1986).
Essa grandeza cor, segundo ele, não é a formulação das bases físicas ou psíquicas, mas
a inter-relação dessas duas com o que quer que a cor expresse, aquilo que define cada
parte se ligando à outras em continuidade. Isto é, “o uso de elementos pré-fabricados ou
não que constituem as obras importa somente como detalhe de totalidades significantes”
(OITICICA, 1986).
Em 1965, Hélio passou a frequentar a favela da Mangueira, à época, uma pequena
comunidade da zona Norte do Rio de Janeiro. Ao subir o morro, esse lugar já marginal,
que ele escolheu seu lugar como ser individual e social: ser marginal para ele significava
abandonar as estruturas sociais e buscar seu lugar de homem-total-no-mundo.
Nesse sentido, num segundo momento, ao tentar estabelecer a grandeza-cor,ele fez
um adendo à relação cor-tempo: suas reflexões se voltam para a relação entre a cor e o
espaço (cor-estrutura). A proposta é a de uma prática que justaponha e dialogue horizon-
talmente com o tempo e o espaço, este segundo agora composto pelos espaços pictórico
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 341
e “real” (espaço ambiental, para usar o termo de Oiticica). O duo sujeito-quadro não era
mais suficiente para que essa expressão total da cor se fizesse possível.
As obras de Oiticica, definitivamente, começam a se tornar espaços de vivência, pois
a arte que ele buscava (aquela baseada nas transformações estruturais) está sempre a se
opor ao caráter passivo do suporte. Sendo assim, o suporte é pensado não apenas em
seu caráter físico, mas sob a máxima de que este elemento suporte se faz como supor-
te-expressão, um elemento, segundo ele, intrínseco entre o espaço e a estrutura . Neste
ponto se dá a passagem do suporte-quadro e fosse para o suporte-mundo: na medida
em que se equilibra esses dois elementos (espaço[s]-tempo), a realização e a expressão
se expandem, fazendo, assim, com que a configuração estética cresça: o espaço virtual
recria e incorpora o espaço “real”, construindo um espaço-tempo que se faz virtual e
intermitente. A grandeza-cor, pensada por Hélio é aquela que é composta pelo tripé
visualidade-espaço-tempo.
Esse conflito do espaço pictórico com o espaço real faz emergir o que ele chama de
espaço ambiental. O espaço ambiental pensado por Hélio é onde a Anti-Arte se dá. A
anti-arte é, segundo ele, a compreensão de ser o artista um propositor de experiência(s):
o espectador agora não mais é um mero contemplador, ele é um partípice - parte consti-
tuinte e co-autor- da(s) obra(s).
A noção de mundo ambiental vem sinalizar a posição ética do programa ambien-
tal: um diálogo horizontal com o tempo e com o espaço; um diálogo horizontal com a
expressão e a realização individual e coletiva. Isto porque a experiência estética que se
dá no mundo ambiental está pautada em “relações que se podem chamar de ‘imaginati-
vo-estrutural’, que, por serem pensadas como elementos agenciais contínuos, implicam
possibilidades pluridimensionais que se dão entre a percepção e imaginação produtiva,
e estas duas, por sua vez, se retroalimentam” (OITICICA,1986). É uma interferência
de longo alcance no comportamento do espectador: desde o infinitamente pequeno até
o espaço arquitetônico, por exemplo, as ordens não estão estabelecidas a priori, mas se
criam segundo a necessidade nascente em cada experiência singular.
Isso não pode melhor ser exemplificado com sua obra Parangolé. Esta obra, como
outras, fruto de sua vivência/experiência pessoal no morro da Mangueira, demonstra seu
inconformismo estético, como dito acima. Mas ela se faz, ao mesmo tempo, como uma
escolha existencial ética e política. Isto porque, ao cruzar a fronteira entre o morro e o
asfalto, abandonar as estruturas sociais e buscar seu lugar de homem-total-no-mundo se
tornou imprescindível.
Os parangolés consistem em peças de vestimentas (estandartes, capas, bandeiras,
etc.), geralmente com camadas coloridas, feitas para as pessoas usarem, carregarem,
dançarem. A(s) cor(es) ganha(m) um dinamismo no espaço, um caráter literal de vi-
vência, permitindo o espectador vestir-se nela: em lugar de um mero contemplador, o
espectador se torna partípice (parte integrante da obra) e co-autor da mesma, pois a obra
se dá no exato momento em que espectador e peça se tornam um só em comunhão. Isto,
entretanto, é mais que fazer do corpo suporte da obra. Em seus escritos, Hélio deixa
342 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
bem claro que trata-se da “incorporação do corpo na obra e da obra no corpo”, isto é: a
encarnação da pintura no corpo e vice-versa. Se trata, pois, de descristalizar as distâncias
entre obra-espectador e espectador-criador, bem como extrapolar o próprio conceito de
arte: o espectador agora era atraído a uma opção que não estava cogitada nas suas expe-
riências convencionais cotidianas.
Deste modo, a prática de Hélio se aproxima da ideia de um artista-agenciador:
aquele que age calcado na ideia de construção de afeto e confiança e no otimismo na
“potência do devir revolucionário das pessoas” (DELEUZE, 1992).
Neste ponto, cabe trazermos reflexões que julgamos pertinentes para a análise do
que essa noção de Programa Ambiental e as práticas que a partir dela poderão se dar
fiquem mais claras. Essa aproximação se faz útil no ponto em que questiona o processo
de “coisificação” ou “falência” da experiência humana, coletiva e individual.
Com sua célebre frase “torna-te quem tu és”, Nietzsche, aos mais desatentos, pode
sugerir uma busca por uma essência que estaria dentro de cada um de nós. No entanto,
os jogos e armadilhas são, ao meu ver, um artifício para ensejar um pensamento que se
faça como contra-efetuação. Sendo assim, por exemplo, o conceito de eterno retorno
do mesmo em Nietzsche ganha um outro sentido: a operação de contra-efetuação se dá
na retirada da ideia de “retorno” do plano cosmológico e na colocação deste no plano
ético. Isto é, o que se repete são as escolhas e a diferença. É uma tentativa a todo tempo
de descristalização de práticas, idéias e a prioris, até mesmo em seu próprio discurso.
O tom do discurso nietzscheano é de ironia sóbria e traz consigo um inescapável
fator estetizante. Isto porque ele entende que existe um aspecto da razão que é revelado
pela potência do sensível. Nietzsche está, por assim dizer, pensando a existência como
fenômeno estético. Essa existência vivida como fenômeno estético não se trata em ne-
nhum momento de esconder ou fantasiar – no menor sentido possível do termo – através
de uma apreciação artística que aponte para o além-mundo, metafísico – assim como ele
pensava antes de romper com o pensamento de Schopenhauer e com a arte das obras
de arte de Wagner. Antes, trata-se de sair da posição de criatura e se tornar criador de
sua própria vida. É esse o embelezamento que Nietzsche está propondo, é esse o ponto
que nos interessa aqui: a arte como arte de viver, a vida mesma formulada como arte, a
arte mesma como possibilidade de uma vida satisfatória. Nesse sentido, a vida e a arte
estariam convergindo, não necessariamente para uma existência bela, mas para uma
existência onde a possibilidade de transformação da subjetividade seria o adubo primei-
ro para esse cultivo incessante de si.
Em Foucault, percebemos uma posição semelhante à de Nietzsche. Sendo assim,
Foucault declara: “O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte te-
nha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos ou à vida
(...). Mas a vida de todo indivíduo não poderia ser uma obra de arte? Por que uma mesa
ou uma casa são objetos de arte, mas nossas vidas não?”( FOUCAULT, 1992). Foucault
chama essa postura em relação a si mesmo de “estética da existência”. E, para ele,
essa estetização da existência, essa elaboração de si mesmo, não constitui um exercício
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 343
solitário. Ao contrário, o outro é constituinte do mesmo, pois se trata de uma ação ética.
Ou seja, em Foucault existe uma política da arte de viver, pois esta trata de trabalhar as
relações entre um indivíduo com o outro e com ele mesmo.
Foucault está, por assim dizer, pensando a ética como uma prática refletida da li-
berdade. Ele tenta evidenciar como o sujeito pode se auto-afirmar – e como ele se au-
to-afirmou durante os tempos – dentro de jogos de verdade. A ética, nesse sentido, está
ligada aos jogos de verdade. Não se trata, pois, de uma busca por uma essência humana
que estaria aprisionada por esses jogos, não se trata apenas de ver a ação coercitiva dos
mesmos. Se trata de pensar, conhecer e se munir de um certo número de regras e verda-
des – mesmo que para recusá-las – para se construir como sujeito.
Considerações Finais
A expressão total do Parangolé, a ação, a fruição in ato (seja ela visual, tátil e etc.), é que
propicia a vivência-total-parangolé. Isto é, ao lançar o espectador no mundo ambiental,
Hélio busca vincular a experiência estética à autonomia, permitindo, assim, que uma
percepção criativa singular a cada partípice se dê. Abrir, expandir e fazer surgir uma to-
tal liberdade de criadores e criaturas, ensejar fluxos móveis e agenciamentos diversos: a
vivência plurisensorial da obra radicaliza a experiência estética. É um deslocamento da
experiência do campo intelectual para o da experiência vivencial criativa. Nos diz que
Parangolé não é uma obra, mas um local, um espaço de vivência, onde a experiência
livre e autônoma se funda e se faz política e vital a um só tempo.
O Programa Ambiental de Hélio Oiticica é o otimismo e a crença de que o valor es-
tético não é apenas um trabalho técnico, mas uma ação que se faça diferente em relação
à realidade; aliás, que desnaturalize a própria noção realidade, especialmente aquilo que
castra e impede a imaginação e a criação. É nesse sentido que a prática artística de Oi-
ticica se aproxima dos conceitos supracitados. Trata-se de uma experiência estética que
expurga de si mesma de qualquer tipo de metanarrativa que a autoriza a arbitrar sobre
aquilo que o espectador deva apreender do que lhe é proposto pelo artista.
Ao se colocar como uma espécie de artista-agenciador, Hélio abre mão de qual-
quer posição de superioridade dada ao artista pelo pensamento ocidental e se coloca no
mesmo patamar de seus espectadores; não só reconhece a existência de vários tipos de
inteligências e de maneiras de partilhar o comum, como busca legitimá-las no momento
em que torna o espectador partípice (parte integrante e co-autor) de suas criações.
O Programa Ambiental, se materializa enquanto experiência estética no momento
em que se desmaterializa enquanto arte (tal qual o pensamento ocidental cristalizou):
uma experiência única e intransferível que faz a obra ser a própria ação de fazer a obra
e a vida a própria ação de construção de sentido(s). É a criação da vida com e pela
arte, e vice-versa.
344 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Referências
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DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990), tr. br. de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora
34, 1992.
OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1986.
FOUCAULT, M. Ditos e Escritos III. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. 2ª. ed.
Organização e seleção de textos de Manoel Barros da Mota. Tr. bras. de Inês Autran Dourado
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_______________ . As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 345
José Cirillo
CNPQ/FAPES/PPGA-UFES
Este texto é parte dos estudos que investigam a arte publica no Espírito Santo
a partir da década de 1990, estando norteado pela linha de pesquisa Arte,
Espaço e Pensamento do Programa de Mestrado em Artes da Universidade
Federal do Espírito Santo. O estudo em questão aqui trata de aspectos do
processo de criação do artista capixaba José Carlos Vilar. Investiga-se não
apenas a produção do artista, mas os bastidores da criação em seu espaço
do ateliê do artista - índice de processo de criação nele desenvolvido, foca-se
também no levantamento e inventário de seus outros documentos de processo
(arquivos, rascunhos, matrizes, tintas, maquetes, etc.) que são reveladores de
sua aproximação com o espaço da cidade e na produção de obras públicas.
Palavras chave: processo de criação; artista capixaba, arte pública;
Introdução
Estudar o processo de criação via os documentos e arquivos do processo criador produzidos
pelos artistas plásticos contemporâneos, na Região Metropolitana de Vitória (ES), é uma
tarefa que nos leva a discutir o conceito de documento da criação. Compartilhamos aqui da
hipótese de que o lugar da criação, o espaço do ateliê, do artista pode ser pensado como lócus
de vestígios da criação, o que nos leva a pensá-lo como um arquivo ou um documento do
processo criador, pois permite perceber nuances da criação em ato (Cirillo e Grando 2009).
O objetivo deste estudo é investigar a arte pública no Espírito Santo a partir do
estudo do processo de criação do artista José Carlos Vilar, pretende-se também apro-
ximarmo-nos da investigação do ateliê do artista como índice do processo de criação
nele desenvolvido, buscando identificar nesse espaço características que nos levem a
classificá-los como documentos de processo; para tal e a partir do caso estudado, os
documentos de Vilar são identificados, classificados de modo a e ampliar o Banco de
imagens do processo criador do artista; esperamos assim contribuir para a compreensão
e o estudo sobre a arte pública contemporânea no Espírito Santo;
O trabalho de arte pública, direcionado para os espaços coletivos da cidade, também
tem sua interface com os espaços íntimos dos ateliês dos artistas. O atelier e a prática
artística são a origem de um processo criativo que, muitas vezes, se torna difícil para tra-
duzi-lo em palavras por ser constituído de uma narrativa íntima e, teoricamente, intrans-
missível do gesto criativo, ato esse, origem do objeto. Essa visão iluminista, entretanto,
alimenta a imagem romântica do artista como gênio e esconde que por trás de uma obra,
ou um conjunto delas, existem esforço e trabalho diários – como qualquer outro trabalho
conhecido. Além disto, os espaços de ateliê revelam nuances e índices do processo de
criação, revelando como elementos de próprio espaço de trabalho, ou mesmo de restos
e registros de obras anteriores contaminam os novos processos criativos: uma evidencia
de que existe uma possibilidade de simbiose entre a obra e o espaço onde ela é gestada.
Os ateliês são considerados um elemento importante nas obras da artista, na composição
da obra, mas principalmente enquanto elemento processual, de forte importância metodo-
lógica e estética. É o lugar da criação. O ateliê de criação se coloca como um verdadeiro
arquivo vivo, sendo mais que um fiel depositário dos rascunhos e restos de obras finalizadas:
esse espaço é dinâmico, é memória em ação (Cirillo, 2004). Para Lima (2007, p. 18), o ateliê
surge como metáfora: “O atelier é [...] muito mais que o espaço de trabalho. Muito mais do
que o espaço onde se tira as fotografias, onde se atende telefones, onde se organiza dossiers,
onde se desenha, onde se pensa.” Assim, estudar a arte pública capixaba, a partir desses
espaços de criação, é colocar em cheque o mito da genialidade, além de evidenciar a rotina
que envolve a criação artística e o movimento da mente criadora em busca do objeto da arte.
Neste projeto, procura-se encontrar algumas possibilidades de resposta para a refle-
xão sobre o processo de criação de obras para espaços públicos e intervenções urbanas
no espaço do ateliê, esse entendido como documento de processo, como algo que trás
em si as marcas indiciais do processo de criação dessas obras e revelando parte das de-
cisões tomadas pelo artista.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 347
O estudo aqui proposto está embasado na Crítica Genética, movimento que surgiu na
França, em meados do século XX – tendo chegado ao Brasil na década de 1980 - cuja prin-
cipal característica, segundo Cirillo e Grando (2009), consiste na investigação cientifica dos
documentos e arquivos do processo de criação, marcas indiciais da mente criadora em ação.
O estudo investigou algumas possibilidades de compreensão do processo de criação
como uma atividade dinâmica capaz de evidenciar as nuances da construção da obra. Os
principais arquivos depositários da informação aqui buscada decorreram, portanto, de
como o espaço influência o processo criativo do artista. O trabalho foi desenvolvido em
duas etapas concomitantes: a investigação do espaço pessoal de criação e a investigação do
espaço urbano de criação. Durante a segunda etapa, se iniciou a coleta de dados por meio
dos seguintes procedimentos: Coleta de documentos de processo a serem classificados, ca-
talogados, digitalizados e analisados; Depoimentos do artista (entrevista formal e informal),
que subsidiaram algumas das possíveis conclusões e pesquisa de fontes bibliográficas.
Os procedimentos da coleta, análise e crítica do material tiveram como referência
metodológica os procedimentos da crítica genética (Hay, 1999 e 2007; Grèsillon, 1994,
2007; Salles, 2000, 1998, Cirillo 2002 e 2004).
O artista
Natural do Espírito Santo, o artista José Carlos Vilar (Figura 1) nasceu em Aribiri, Vila
Velha onde morou boa parte de sua vida. Interessou-se inicialmente pela escultura atra-
vés do convívio com um artista popular de nome “professor Cretas”, que atuava nas
obras pavonianas no bairro de Santo Antônio. Dado o interesse pela arte, graduou-se em
Artes Plásticas em 1974, pela Universidade Federal do Espírito Santo. Já formado, in-
gressou na carreira didática e tornou-se professor da Universidade no ano de 1976, onde
permaneceu até 2012. Durante toda sua vida acadêmica, fez experimentações no campo
das artes plásticas, mas a paixão pela escultura sempre falou mais alto e paralelamente
as atividades didáticas seguiu a carreira de escultor que vai até os dias atuais.
Figura 1: “Criador e criatura”. O artista capixaba José Carlos Vilar com uma de suas obras no
espaço público.
348 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Figura 4: Estante com obras/ maquetes no Figura 5: Obras/ maquetes no ateliê do ar-
ateliê do artista. tista.
Passada a etapa de maquete, o artista passa para a execução final da obra (figuras
06 e 07) que nem sempre é realizada em seu ateliê devida as proporções que a obra as-
sume. Essas obras são executadas em galpões metalúrgicos e isso por sua vez nos leva
ao questionamento da relação do artista com seu ateliê e com esses espaços (que será
discutido adiante).
Com base nessa pesquisa de criação no espaço do ateliê, passamos a encarar o pro-
cesso de construção da obra como resultado de um trabalho complexo. É um trabalho
progressivo, que vai atravessando diferentes etapas e que definitivamente não é realiza-
da a partir “do nada”. Ao nos depararmos com o processo criador, “as camadas super-
postas de uma mente em criação vão sendo lentamente reveladas e surpreendentemente
compreendidas” (SALLES, 2000, p. 14).
O ateliê do artista
O registro do ateliê do artista evidencia que se divide o espaço igualitariamente com os
documentos de processo e sua concretização em madeira e metal (materiais escolhidos
pelo artista para esse fim), com os quais estabeleceu uma relação pautada por uma atitu-
de de pesquisa e de diálogo constantes.
350 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
O ateliê do Vilar, mais que um local de trabalho, é onde ele passa 90% do seu dia a
dia e assim, assume diferentes papeis. É o seu ateliê, mas também, é o seu galpão e seu
escritório. Ali está sua cozinha, seu computador portátil, sua sala de reuniões, é onde
ocorre todo seu processo de criação. Dentro desse contexto, faz-se necessário uma postu-
ra investigativa desse espaço do artista, para que haja uma desconstrução da visão idea-
lizadora do espaço, como aponta Marisa Flórido César na revista Arte e Ensaios, 2007:
Se aguardamos o momento excepcional da aparição de uma obra, ela também se mostra ali
em processo, inacabada, misturada na percepção cotidiana, entre os objetos do dia-a-dia, des-
protegida das molduras que a fazem, confundida ao senso comum. E logo percebemos que o
ateliê também encerra as exterioridades mundanas, a trivialidade da vida e dos dias comuns,
o ordinário das horas, a rotina do artista. (...) A natureza do ateliê é ambígua: ele pertence ao
universo artístico, mas é extrínseco à obra de arte. Como a moldura, insere-se nos domínios da
margem, dos apensos à obra de arte
Essa relação do artista com o seu ateliê nos leva ao questionamento do quanto isso
influência no seu processo de criação, uma vez que ele cria, no mesmo local em que
“vive”. As memórias e lembranças estão por toda parte, independente de em qual dimen-
são for e isso deixa o artista imerso nessa atmosfera de criação.
Outra particularidade do ateliê do Vilar é a sua relação com um galpão metalúrgico.
Devido ao metal que é recorrente em suas obras, o ateliê também assume esta função
operaria. E essa relação intima do artista com seu local de trabalho, faz com que ele
assuma também uma relação intima com o galpão metalúrgico que executa a sua obra
final. Passa a ser um local familiar para o Vilar, o galpão metalúrgico – externo ao seu
ateliê. Coloca-se como uma espécie de prótese topológica – uma extensão metafórica de
seu espaço íntimo de criação -, torna-se uma extensão do seu próprio ateliê.
Essa relação umbilical ateliê – galpão metalúrgico é percebida no próprio formato
do espaço do ateliê do artista (projetado pelo próprio Vilar – figura 08), no seu material,
no maquinário existente dentro do ateliê, as ferramentas utilizadas, etc. (figura 09 e 10)
Figura 8: O ateliê do Vilar visto de fora. Figura 9: O ateliê visto de dentro, Exemplifi-
cando as semelhanças com um galpão me-
talúrgico
Figura 10: Galpão metalúrgico onde uma obra do Vilar estava sendo executada
352 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Referências
CESAR, Marisa Flórido. (2007). O Ateliê do artista. In: Arte & Ensaios. Revista do Programa de
Pós graduação em Artes Visuais. Rio de Janeiro: EBA-UFRJ, ano XIV, nº 15;
CIRILLO, José; GRANDO, Ângela (Org). (2009). Arqueologias da Criação: Estudos Sobre o Pro-
cesso de Criação. Belo Horizonte, Com Arte.
CIRILLO, José. (2004). Imagem – Lembrança: Comunicação e Memória no Processo de Criação.
2004. 160f. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Universidade Católica de São
Paulo. São Paulo.
______. (2002). Pela Fresta: memória como matéria no processo de criação de Shirley Paes Leme.
Farol, Vitória: Ufes, ano 3, n.3, p. 61-73.
HAY, Lois. (1996). Pour une sémiotique du mouvemente. Gênesis, n. 10, 1996
______. (1999). A montante da escrita. Tradução de José Renato Câmara. Papéis Avulsos, Rio de
Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, n. 33, p. 5 -19.
______. (2002). O texto não existe: reflexões sobre a crítica genética. In: ZULAR, Roberto (Org).
Criação em processo: ensaios sobre a crítica genética. São Paulo Illuminuras, p 29-44.
LIMA, Francisco Cardoso. (2007). O Atelier Enquanto Lugar de Processo de Criação Artística.
2007. 110f. Dissertação ( Mestrado em Criação Artística Contemporânea) – Departamento de
Comunicação e Arte, Universidade de Aveiro. Aveiro.
SALLES,Cecília Almeida. (2000). Crítica Genética: uma (nova) Introdução. São Paulo: Educ.
______. (1994). Gesto Inacabado: Processo de Criação Artística. São Paulo: Fapesp/ Annablume,
1998. GRÉSILLON, Almuth, Elementos da Crítica Genética, Porto Alegre, UFRGS, tradução
Cristina de Campos Velho Birk.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 353
Na fibra do tecido,
a estampa do corpo nu
Nathália Mello
UERJ – [email protected]
The power of the performative discourse is the key topic explored throughout
this research. I highlight this central concern as a political strategy of construc-
ting a discourse and of specializing its delivery. Presenting my performance
persona, I physically represent images of biological and psychological interpre-
tations for “sex” and also historical and geographical interpretations for “skin”.
The fabric factory is a concrete element situate my discourse in the representa-
tive context; however, the performance constituted is an “act in language” that I
perform by “embodying the norms of power I oppose”. (Butler, 1998)
Keywords: history, fiction, wrinkle, work, image
354 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Um espaço de dobrar
A fábrica de tecidos é um espaço “inteiramente carregado de qualidades” e “povoado
de fantasma”. (Foucault, 1984) A fábrica não compreendia somente o prédio industrial.
A arquitetura do bairro onde cresceram as famílias de operários – contramestres, te-
celões, coloristas – era desenhada a partir do prédio industrial. À frente da Fábrica de
Tecidos Fluminense, estão, ainda hoje, os bangalôs de mestres de tecelagem, casas de
um só nível com muitos quartos para as famílias de quase ou mais de dez filhos. Essas
casas testemunharam a rotina do apito da fábrica. Nas redondezas, próximas ao prédio
principal da fábrica, ainda estão casas de dois níveis, com escadaria central, parede re-
servada para o retrato pintado de seu dono, casas geralmente reservadas para os chefes,
diretores, todas com aparência de jovem ruína. A estratégia da fábrica era manter seus
operários ao alcance do controle sonoro – Você que atende ao apito de uma chaminé de
barro, cantou Noel Rosa – e disciplinar do apito de barro, materialização explícita do
poder. (Focault, 1977)
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 355
E talvez nossa vida ainda seja comandada por um certo número de oposições nas quais não se
pode tocar, as quais a instituição e a prática ainda não ousaram atacar: oposições que admiti-
mos como inteiramente dadas, por exemplo, entre o espaço privado e o público, entre o espaço
da família e o espaço social, entre espaço cultural e o espaço útil, entre o espaço de lazer e o
espaço de trabalho; todos são ainda movidos por uma secreta sacralização. (Foucault, 1984)
Metodologia desdobrada
A fábrica também corresponde ao modelo panóptico em que as subjetividades são di-
recionadas à “urgência do como sobreviver junto”. (Robert, 2006) Por outro lado, a
fábrica é só um conjunto de frases ou estórias e objetos, como fotografias de família no
bairro chamado Barreto. Essas famílias me fazem acessar uma imagem em movimento
coreográfico de um espaço, recortado, heterotópico, que está mais presente que passado,
e, que está dentro e fora da figura fábrica. Na distância, esse espaço está povoado de
rumores infantis, barulhos de maquinaria, pequenas perversões, pequenas traições e ex-
perimentações, passos em pavilhões húmidos, pulos em poças d’água, ficções que surgi-
ram a partir desses corpos e vozes que me contam estórias. Sou movida a contar do que
“permanece desmaterializado” que não poderá nunca engajar com o restritivo sentido da
“materialização governada pelos princípios de inteligibilidade”. (Butler, 1993) É através
da ficção que desdobro uma imagem de uma história brasileira da qual encontro resquí-
cios no meu próprio corpo. Quando afirmo “sou movida” assumo o caráter formativo do
poder e controle, no entanto, busco a sua transfomação através do poder performativo
que responde às restrições, privações e obrigações. (Butler, 1993)
She is outside the terms of the polis, but she is, as it were, an outside without which the polis
could not be […].” (Butler, 1998)
Richard Serra, em seu ensaio sobre o peso, diz que toda matéria-prima da qual pre-
cisa está contida naquela lembrança do trabalho do seu pai, a lembrança mágica do peso
que flutua sobre a água, que se transformou em um “sonho recorrente”. A minha lem-
brança, no entanto, é de algo que não vivi e não vi, mas as estórias que ouvi se transfor-
mam, como “sonhos recorrentes”, em imagens histórico-ficcionais. Atravessei inúmeras
vezes a fachada da Fábrica de Tecidos Fluminense – o ir-e-vir é o terceiro elemento de
criação, qualidade e movimento.
Quando Serra afirma que tem mais a dizer dobre tumbas e enterramentos, compreen-
do também que minha busca artística é um desejo de ocupar o oco dessa imagem que se
dá via sonoridade. “Es una búsqueda de lo propio, en cuyo camino se va desmantelando
todo aquello que lo encubre, lo desodoriza, lo silencia y lo deforma” (Mignolo, 2012), é
uma busca pelo que muitos desses familiares corpos-arquivos que já se foram não dei-
xaram visitados. É uma busca particular, que retorna ao lugar familiar, mas é uma busca
ficcional que “excede o sujeito biográfico”. (Klinger, 2012) Há porém algo incorporado
da contação de histórias, das recitações, dos gestos e dos ritos, práticas que podem de-
saparecer ou se transformar, através da transmissão corporal. A ausência de registro da
poética do trabalhador fluminense é uma provocação.
A busca é uma tentativa de dar voz à uma camada da sociedade que não soube da sua
importância histórica, enquanto base da economia no Rio de Janeiro, uma sociedade su-
cessora de índios e escravos. Mas é uma busca performada através de afetações sonoras.
Klinger estabelece a ambivalência da performance que se dá pela por proximidade e dis-
tanciamento: “na performance (...) o performer está mais presente como pessoa do que
como personagem”. (2012) Klingler refere-se às afirmações de Judith Butler em relação
à “performance” quanto à ausência de originalidade. A impossibilidade de originalidade
em movimentos ou ações já consolida o fato de que tenho um material incorporado que
não é meu. É fabricado. Estar mais presente como pessoa enquanto performer significa
358 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Paola Sarlo
CAPES/ PPGA/ UFES – [email protected]
Technology is a great way to modify people and its relations, or even man´s re-
lation to the world , and more specifically one´s creative expression . For some
artists, it could be either a tool or matter for aesthetic proposals. This stu-
dy proposes a discussion when sound and visual languages are merged in
the work of Paulo Vivacqua (1971-), through analysis of his exhibition and its
mixed “Ambience”. They bring changes in the creation process by suggesting
the viewer to go into “invisible paths” where sounds raise imaginary narratives
and produce thereby a singular aesthetic experience, open to contamination.
Keywords: sound, creation process, imaginary, interaction.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 361
Introdução
Sensacionismo
Podemos contemplar o trabalho de Paulo, tangenciando a teoria do sensacionismo de
Fernando Pessoa (1888-1935) que dizia que “(...) apenas as nossas sensações podem
nos mostrar a realidade, as idéias são sensações de coisas não colocadas no espaço”2.
Para Paulo Vivacqua, música é espaço. É através dela que as idéias alcançam abrigo, e é
assim que ele consegue abolir a distancia entre a obra e o espectador. O sensacionismo
pretende realizar na arte a decomposição da realidade em seus elementos geométricos
psíquicos, através da análise profunda dos estados da alma.
1. Escultura sonora e Arte sonora são termos relativamente novos. Lidos sob a luz de uma
relação estreita com as artes visuais, apontam mais tentativas de renovação da música, reve-
lando estratégias, táticas e ações que fomentam a passagem do plástico para a experiência
sensorial direta – e o fazem através do som.
2. PESSOA, Fernando. Obras em prosa. Sao Paulo: Companhia José Aguilar Editora,1974.
Pg.441
362 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Ninféias
As Ninféias são plantas semi-aquáticas, adaptadas as margens de rios calmos ou lagos.
As Ninféias de Paulo são formadas por uma colônia de caixas de som interconectadas
entre si, e a água do lago é representada pelas camadas de placas de vidro iluminadas
(Fig.1 e 2). O vidro traz a leveza e a transparência da água (Fig.3). Elas estabelecem
um diálogo e usam uma linguagem misteriosa que ecoa semelhante a uma enunciação.
Podemos pensar que a obra de arte resida no material, mas não é possível negar a atração
material do som. “Cada sala tem um som”, afirma Vivacqua, e aí é preciso fazer falar
essas vozes dos objetos, dos lugares, das pessoas. Fazer a passagem do material(que
vibra) para o imaterial subjetivo, como afirmação da vivencia interpessoal.
A obra funciona como um agente ativo: o som confere uma dramaticidade específica
às formas e materiais empregados, como se revelasse algo sobre eles. As caixas de som
são passaportes para um novo lugar, onde imagens interiores e pensamentos materiali-
zam e desmaterializam-se deixando um rastro, como memória ou fantasma.
Fig. 1. Ninféias (Galeria Ar- Fig. 2 e 3. Ninféias (Galeria Artur Fidalgo – Rio), 2006.
tur Fidalgo – Rio), 2006.
Deserto
A obra Deserto foi exposta no Cairo (Egito) ,e é uma instalação composta por uma ce-
nografia completa.Suas caixas de som protagonizam efeitos sonoros frente ao aparato
cenográfico da obra: areia ,luz, fundo( Fig.4). O site-specific dessa obra está localizado
em meio ao deserto, onde areia e vento são componentes essenciais. Verifica-se uma
complexa interacção dialéctica entre a dimensão cultural do local de exposição e as
propriedades dos objectos nesse contexto. O lugar da experiência sonora é onde se faz o
trabalho. As caixas de som, que trabalharam imersas na água( vidro) em Ninféias, agora
brotam da areia do deserto. Mas são apenas artifícios. E, em determinado momento, é
364 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
estabelecida uma situação ritual, estética, de uma instalação que nos permite experimen-
tar esse evento sonoramente.
Conclusão
Existe a possibilidade de vermos o alto-falante como ready-made, ainda como a forma
do som e sua força de mediador. Mas no trabalho de Paulo Vivacqua o alto falante é ao
mesmo tempo matéria, meio e sentido. O próprio meio torna-se um objeto fetichizado,
que serve de gatilho mental para acionar a imaginação sonora e criar uma pura expec-
tativa de ação.
A arte sonora reside, portanto, menos na existência de um texto e mais na existência
de um resultado, na proposição e vivência de uma experiência. O trabalho do artista se
apropria, portanto, de mecanismos, de objetos, ressonâncias, efeitos físicos e visuais
para criar um momento em que nossa sensibilidade auditiva é elevada e retirada da letar-
gia cotidiana. Através de sua atitude criativa Paulo Vivacqua parece reafirmar a máxima
de Schopenhauer: “A música exprime a mais alta filosofia numa linguagem que a razão
não compreende.”
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 365
Referências
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São Paulo: ed. Unesp, 2011.
ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história concisa. Tradução de
Alexandre Krug e Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.
Tradução de Aurora Forsoni Bernadini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior,
Helena Spryndis Nazário, Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Hucitec, 1990.
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ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
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exposição do Museu da Vale.
PESSOA, Fernando. Obras em prosa. Sao Paulo: Companhia José Aguilar Editora,1974.
366 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Patrícia Dourado
PUC-SP – [email protected]
Quando assisti pela primeira vez ao filme Maria Antonieta (2006), lembro que uma
das coisas que mais me chamou atenção foi o visual do filme, os figurinos não com-
pletamente de época, a paleta de cores que desafiava o olhar esperado para o período,
o frescor das imagens. Tudo acompanhado de uma trilha sonora que também fugia do
tradicional, músicas do século XVIII, cravos e violinos, se misturavam ao pop rock dos
anos 70 e 80 e ao rock contemporâneo. E aquilo, apesar de estranho, trazia uma descon-
fortável familiaridade. Pela primeira vez, percebi que a rainha francesa dos livros de his-
tória era apenas uma adolescente quando passou pelos principais momentos de sua vida.
Aos quatorze anos, Maria Antonieta deixou sua casa e seu país para trilhar o cami-
nho escolhido pela mãe Maria Tereza. Mudou de nome, de Maria Antonia para Maria
Antonieta, para casar-se em uma acordo político com o delfim da França, Luís XVI,
ainda mais inábil e inseguro do que ela. Aos dezenove anos, foi coroada rainha da Fran-
ça, mas, para os franceses, seria sempre L’autrichienne. Amargurou durante longos sete
anos o desinteresse sexual de Luís XVI e as queixas do povo francês e da mãe Maria Te-
reza que lhe cobravam a consumação do casamento e um herdeiro que assegurasse sua
posição. (Figura 1). Luís XVI, tão jovem quanto, trazia o peso de não se achar suficiente,
herdou o trono por viradas do destino, depois da morte precoce do pai e de dois irmãos
mais velhos, pulando três casas na linha de sucessão (FRASER, 2006).
Figura 1. Cena do filme Maria Antonieta (2006). Maria Antonieta acaba de ler mais uma das
cartas repreenssívas da mãe, o visual tenta simbolizar o sentimento de Maria Antonieta, que
quase some em meio a padronagem do papel de parede. (DVD do filme, 51-52min)
368 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Sofia Coppola conta que o que primeiro lhe chamou a atenção na história de Maria
Antonieta foi perceber o quão jovens eles realmente eram, ela e Luís XVI, e imaginar
como seria viver e, finalmente, ter que crescer em cirscunstâncias tão extremas. Foi du-
rante um jantar, quando um amigo, que havia lido a biografia escrita por Sefan Zweig,
lhe falou sobre Maria Antonieta, fazendo uma descrição principalmente psicológica do
que foi tudo aquilo, que ela começou a se interessar em saber mais sobre Maria Anto-
nieta e tudo o que ela passou. Até então, ela só conhecia os clichês habituais sobre o seu
estilo de vida decadente. Em busca do ponto de vista da rainha, Sofia leu vários histo-
riadores diferentes, até chegar na biografia de Antonia Fraser, que escolheu para adaptar
o filme (PRESS, 2006).
O filme Maria Antonieta se constrói a partir de um projeto pessoal da roteirista e
diretora Sofia Coppola, cuja filmografia aponta tendência ao filme de autor: “É uma
coisa muito pessoal fazer um filme, e eu preciso de liberdade completa.” (Sofia Coppola
apud O’HAGAN, 2006). No entanto, por ser o cinema uma arte essencialmente coletiva
– raro um projeto, ainda que pessoal, é levado a cabo e realizado por uma pessoa só –,
a equipe que realiza este projeto junto com o autor, ao execer seu trabalho colaborativo,
está também exercendo uma relação de coautoria na obra.
Qualquer teoria coerente da autoria deve levar em conta essas diversas superposi-
ções em termos de circunstâncias materiais e de equipe na autoria cinematográfica (…),
encontramo-nos [no cinema] distantes do domínio da inspiração imaculada e do gênio
desimpedido evocados pelas noções românticas de autoria. (STAM, 2006, p. 110)
Todavia, dentro da organização social, a função autor ajuda a organizar certos dis-
cursos, a perceber recorrências, a integrar desvios (FOUCAULT, 2009, p. 53). Ajudam
crítica e público a se relacionarem com a obra em sua complexidade, a partir do pensa-
mento relacional entre obra e autor, obra e processo, obra e obras. O caráter restritivo, de
que se culpou em outra época a função autor, quando se discutiu questões como a morte
do autor, dá lugar nessa pesquisa ao pensamento relacional que traz a questão da autoria
de volta ao debate. Pensar a obra é também pensar a rede de relações que a acompanham
(SALLES, 2007, p. 152), e o autor não há como ser separado disso.
O autor é aquilo que permite explicar tanto a presença de certos acontecimentos
numa obra como as suas tranformações, as suas deformações, as suas modificações di-
versas (e isto através da biografia do autor, da delimitação da sua perspectiva individual,
da análise da sua origem social ou da sua posição de classe, da revelação do seu projecto
fundamental). (FOUCAULT, 2009, p. 53)
Engenhosamente dividido em equipes (arte, fotografia, música, dramaturgia etc.), o
processo criativo no cinema se dá exatamente da comunicação entre essas equipes. O
autor é quem guia, agrupa, alinha e alimenta esse time em torno de um mesmo projeto
poético, inicialmente pessoal, mas que, a partir do convite das equipes, passa a ser um
projeto coletivo também. Como lembra Rabiger (2007), o conceito do cineasta auteur,
cunhado nos anos 50, durante a nouvelle vague francesa para caracterizar os roteiristas/
diretores (como foi o caso de Sofia Coppola em todos os seus filmes até aqui), não passa
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 369
disso – de um conceito, não de uma realidade (p. 11). A formação de uma boa equipe,
onde o diretor se sinta confortável e confiante, é uma das principais premissas para a
realização do filme. Os agradecimentos sinceros durante os prêmios da Academia feitos
à equipe não são apenas um ritual. Eles reconhecem a verdadeira fonte de criatividade
nessa forma de arte que depende da colaboração (ibidem, p. 12).
Sofia trouxe para a equipe de seus filmes família, amigos e profissionais que admira.
O pai, Francis Ford Coppola1, foi produtor de todos os filmes da filha, desde o primeiro
curta-metragem, Lick the Star2, em 1998. A mãe, Eleanor Coppola3, documentarista,
realizou o making of de Maria Antonieta e produziu a entrevista que acompanha o press
kit do Festival de Cannes (PRESS, 2006). O irmão, Roman Coppola4, diretor de video-
clipes, é o segundo diretor (second director) dos três primeiros filmes da irmã, incluindo
Maria Antonieta, e produtor do dois seguintes, Um lugar qualquer (2010) e The Bling
Ring (2013). O primo, Jason Schwartzman5, é o Rei Luís XVI de Maria Antonieta.
Para a equipe de arte de Maria Antonieta, Sofia contou com KK Barrett6 e
Milena Canonero7, respectivamente diretor de arte8 e figurinista. Sofia já havia traba-
lhado com KK Barrett em Encontros e desencontros, que assinou também a direção
de arte de Quero ser John Malkovich (1999) e Onde vivem os monstros (2009), ambos
Sofia é um pouco como eu, está mais interessada nos sentimentos que um traje pode passar
para o público. Então, alguns dos nossos trabalhos em Maria Antonieta são simbólicos, outros
são estilo, e outros são psicológicos. Há sempre uma razão para uma textura particular ou cor.
(Milena Canonero apud PRODUCTION, 2006)
Para manter a equipe coesa, constrindo junto o visual que se quer dar ao filme, é co-
mum a utilização de imagens de referência, que por vezes se tornam livros de referência
ou, no caso de Sofia Coppola, “moodboards”. As referências visuais são importantes
elementos de comunicação entre colaboradores, todos precisam estar conscientes de
estar fazendo o mesmo filme, de estar seguindo o mesmo caminho. Ainda que o roteiro
seja uma escrita para a tela e, no caso de Sofia Coppola, a roteirista seja também a direto-
ra do filme; do roteiro à tela, cabem diferentes interpretações visuais. As palavras, sejam
na fala do diretor ou no roteiro, sozinhas, não dão conta da incrível complexidade que
é a criação de imagens em equipe, pois a interpretação visual dessas descrições verbais
pode ser diferente em cada um dos criadores. É aí que entram as imagens de referência,
que funcionam desde elementos de inspiração, ao ajudar a equipe a sentir a atmosfera
a ser construída; a elemento de comunicação, ao permitir que a equipe dialogue e se
entenda a partir dessas referências.
No mundo da moda, é super comum a construção de “moodboards” (murais com
referências visuais) para um desfile ou coleção. Sofia diz que pegou da sua experiência
9. Filmografia de Sofia Coppola disponível em http://www.imdb.com/name/nm0001068/ (Aces-
sado em 05.10.2013).
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 371
em moda, estagiária da Chanel aos 15 anos e proprietária de uma linha de moda no Ja-
pão aos 22, o carinho pelos “moodboards” como ferramenta de trabalho (GEVINSON,
2013). O diretor de arte KK Barret conta que a própria paleta de cores para o filme surgiu
de uma imagem dessas referências de Sofia Coppola, onde estavam estampados biscoi-
tinhos Ladurée. As cores dos “macarons” passaram a orientar a paleta de cores do filme
(PRODUCTION, 2006).
A música nos filmes de Coppola, assim como o visual, sempre foram importantes
elementos narrativos e de construção atmosférica. “Essa é uma coisa muito importante
pra mim. Eu preciso ser capaz de criar uma atmosfera e tudo mais decorre disso.” (Sofia
Coppola apud O’HAGAN, 2006). Assim como ela faz “moodboards” para inspirar o
visual do filme, também gosta de escrever os roteiros nos próprios lugares onde a histó-
ria se passa (MURRAY, 2006) e ouvir músicas que tenham a ver com aquela atmosfera
enquanto escreve, boa parte das músicas dos seus filmes são decididas ainda no processo
de escrita do roteiro (PRODUCTION, 2006). Desde o primeiro filme, ela conta com a
parceria do supervisor musical Brian Reitzell10, com quem discute o tom da música en-
quanto escreve, e assim foi com Maria Antonieta (ibidem). Uma das músicas escolhidas
passou a orientar diretamente o próprio conceito visual do filme, como lembra a figu-
rinista Milena Canonero (apud PRODUCTION, 2006): “Muito de nossas composições
estavam no âmbito da canção “I want candy”. Nós escolhemos as cores e texturas que
lembram coisas que você quer comer.” (Figura 2).
Figura 2. Cena do making of de Maria Antonieta. Sofia Coppola, dentro da perspectiva de criar
para o filme imagens que dessem vontade de comer, fala para a figurinista Milena Canonero
que gostaria de repetir o vestido dos morangos, agora por completo. (DVD do filme, vídeo
making of)
Referências
COPPOLA, Sofia. Maria Antonieta. DVD. Sony Pictures, 2006.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Nova Vega, 2009.
FRASER, Antônia. Maria Antonieta: biografia. Rio de Janeiro: Record, 2007.
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2006, disponível em: http://www.guardian.co.uk/film/2006/oct/08/features.review1 (Acesso
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PRESS Kit Marie Antoinette Festival de Cannes. Cannes Archives, 2006. Disponível em: http://
www.festival-cannes.fr/assets/Image/Direct/016496.pdf (Acesso em: 05.10.2013).
PRODUCTION Notes. Marie Antoinette Official Site Sony Pictures, 2006. < http://www.sonypic-
O diálogo como
possibilidade de criação
Rafael Pagatini
DAV/UFES – [email protected]
além das fotografias produzidas a partir do interior do ônibus foram realizados textos
que foram publicados no livro e aproximam do projeto a sensação de percorrer fisica-
mente o espaço.
Como pessoas que passam de um lugar a outro, na publicação o leitor é con-
vidado a iniciar sua leitura e a criar seu próprio itinerário ao longo das páginas do livro.
Elas não foram numeradas justamente para possibilitar múltiplas ordenações e recons-
truções. O deslocamento se estabelece como núcleo da narrativa, materializando-se atra-
vés da consciência das vivencias e das historias colhidas no decorrer dos encontros. As
viagens representam um auxilio do pensamento, torna- se metáfora da nossa própria
existência, ao se estabelecer como processo de conexão com o mundo. A utilização da
primeiro pessoa do singular no presente do indicativo alternando com a terceira pessoa
tem como objetivo proporcionar ao leitor a possibilidade de criar enquanto se lê a pró-
pria sensação de viagem, dando-se ênfase para algumas descrições do espaço e do con-
texto para proporcionar a criação de uma imagem mental da cena descrita. As fotografias
presentes no livro não se comportam como ilustrações dos trechos narrados, algumas
foram propositadamente inseridas próximas a momentos da narrativa correspondentes
a outro cenário, criando assim um estranhamento e uma quebra em um leitura linear da
publicação. (Figura 3)
1.
O presente artigo se coloca como um desafio: o artista/autor que fala do próprio trabalho
não sem o distanciamento crítico, mas que ao mesmo tempo que foge de uma leitura
distanciada do trabalho. Busca, portanto, uma reflexão com o trabalho em processo, com
a execução em andamento, como um bloco de notas, como um diário afetivo e reflexivo.
Para pensar em cadernos como esse espaço de reflexão e invenção do artista/autor
que disserta com a própria poética, é importante partir de uma ideia de processo: o texto,
assim como o fazer artístico encontram-se em andamento e, muito além de uma reflexão
fechada com o tema proposto, se propõe a ser, a cada página, um espaço de experimen-
tação. Por isso acredito ser importante utilizar o termo escrever com o trabalho, e não a
partir de ou sobre, pois estes pressupõem uma escrita anterior/posterior, e sim – como
no caso desse artigo – de uma escrita em conjunto com a poética, que pode ser pensada
como um texto de artista, como obra.
Dessa forma é importante pensar na escrita e na leitura como problemas: os cader-
nos e livros de artista (cuja diferenciação conceitual não será possível nesse texto) se
configuram numa escrita especial, onde não apenas a estrutura linear, de páginas e frases
da esquerda para a direita e de cima para baixo são rompidas, como a própria matéria-su-
porte do livro. Escrever aqui pressupõe um ato expandido, além de sua estrutura original
e tradicional, que transita desde anotações recorrentes a um trabalho até a um caderno
que ganhe condição de objeto: o acúmulo de notas e ideias acaba por si dando aos
cadernos um status de obra autônoma, sem necessariamente serem vistos como comple-
mentares a uma obra ou apenas dos estudos como curiosidade e um entendimento mais
profundo do artista.
Da mesma forma, a leitura de um caderno ou livro de artista exige uma condição
especial do leitor: uma dedicação mais delicada e aberta às possibilidades que o obje-
to traz: exige uma curva, uma leitura de manipulação, de reinício, de exploração das
possibilidades do objeto e, por fim de um escrita conjunta: o leitor que complementa o
trabalho ao manipulá-lo, ao estar no caderno.
Portanto, há uma exigência do corpo como texto: não um texto tradicional mas um
texto especial – da dedicação na escrita e na leitura, e de um corpo que reflete e absorve
essa textualidade.
2.
Parto aqui da ideia do caderno como espaço de invenção: sem vínculos ou comprome-
timentos, o caderno é um espaço de estudo, de surgimento de ideias, de comparações e
análises. De palavras e imagens soltas, desenhos, colagens, notas. A anotação, esse fazer
primeiro, essa escrita livre é o marco inicial de uma produção de artista que se coloca
como “feitor”.
Assim, as anotações, as ideias, os fazeres primeiros possuem em si uma autonomia
em relação aos seus desdobramentos. Seu caráter formal apresenta em si um caráter de
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 381
Do mesmo modo que a obra de arte não é a origem central do desenvolvimento expansivo do
âmbito de criação, tampouco se manifesta como necessidade uma oscilação à preponderância
da objetividade ou da subjetividade. Pelo contrário, a tensão entre elas se mantém e não há
pretensão alguma de dissipá-la pois nela reside a ignição criativa, a criação e a percepção
plásticas. (op. cit.)
Seria possível então pensar toda a obra de arte como anotação? Onde a tensão entre ob-
jetividade e subjetividade, entre os múltiplos fazeres (de projetar e refletir) se atravessam?
Acredito numa horizontalidade entre esses “fazeres” e fronteiras: ao mesmo tempo
que possuem uma autonomia enquanto obra de arte, há cruzamentos e atravessamentos
entre os cadernos e seus desdobramentos, no que Georges Didi-Huberman diferencia
as ideias de table e tableau (Didi-Huberman, 2010), onde a mesa seria esse espaço de
horizontalidades, de influências múltiplas, de encontro de questões, de montagem. E não
apenas a análise de um trabalho em sua unidade, quadro.
382 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Figura 1:Marcel Duchamp: La Boîte Verte, 1943. Figura 2 – Artur Barrio: CadernoLivro,
Fonte ignorada 1978. Fonte: Revista Arte & Ensaios,
PPGAV/UFRJ
Referências
ARTE & ENSAIOS – Revista do PPGAV?UFRJ. Edição 17. Rio de Janeiro, dezembro de 2008.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas: Cómo llevar el mundo a cuestas? Madrid, Reina Sofia, 2010.
DUCHAMP, Marcel. Notas(Introducción de Gloria Moure). Madrid, Editorial Tecnos, 1998.
KAFKA, Franz. O Veredicto/ Na Colônia Penal. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 385
Quando o sentido do
registro se faz presente
Introdução
“Nós nos comunicamos para criar com os outros uma razão para viver”
(Vilém Flusser)
A Memória
A memória é o lugar a onde se encontra o nosso passado recente e o passado distante.
Precisamos deste passado para vivermos e criarmos a estrutura necessária ao nosso re-
dor. Os nossos aprendizados, sentimentos, reconhecimentos e tantas outras coisas estão
armazenadas na memória. Mas como resgatamos o passado? Temos a chance de resgatar
o passado quando somos estímulados. Estes estímulos são percebidos através do olfato,
tato, visão e audição. Estes estímulos quando capturados desencadeiam um processo
de busca das lembranças e registros mentais da experiência vivida. Os nossos registros
armazenados na memória correspondem a diferentes momentos de nossas vidas. Alguns
registros que estão arquivados no acervo de nossa memória podem não estar em uso.
São lembranças que ocupam espaço, que podem ser acessadas, mas sofrem da falta de
sentido. Porém, estes registros não foram descartados e estão vivos em nossa memória.
Talvez, a intuição da importância destas lembranças mantivesse este registro memori-
zado em lugar seguro. No entanto, a intuição não é condição suficiente para encontrar o
sentido destes registros que estão vivos na memória. Talvez, o sentido tenha que vir por
meio de um estímulo externo.
Muitas ideias e projetos interessantes podem estar sendo gestados de maneira si-
lenciosa já que os registros estão armazenados na memória do autor. Embora alguma
construção esteja em curso, esta construção inicia sem direção e sentido.
Esculturas
As esculturas aqui referidas tiveram início muito tempo antes de sua realização. Elas
tiveram início no momento em que as experiências estavam sendo vividas. Estas ex-
periências geraram informações e conhecimentos que foram armazenados na memória.
Porém, produtos e subprodutos, resultados de uma vivência, perdem o sentido ao longo
do tempo ou por falta de sua atualização ou porque são armazenados sem sentido.
Os registros que deram origem às esculturas referidas neste texto nasceram em outro
momento da vida do autor, mas estes registros somente recentemente foram resgatados.
Quando ganharam sentido foram resgatados e motivaram a produção de esculturas. Mas
quando um registro ganha sentido? Não sabemos dizer. Talvez, o sentido do registro
tente se fazer presente e mostrar o quanto ele nos pertence, mas pode não ser simples
percebê-lo.
A figura 1 mostra uma das esculturas produzidas a partir do resgate de registros men-
tais que foram armazenados há muitos anos. Esta escultura deu forma aos registros que
foram resgatados. O material usado é arame de aço galvanizado, parafusos, porcas e arrue-
las. Este material forte e rígido permitiu um resultado inusitado graças à sua flexibilidade.
388 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Conclusão
A colaboração entre duas ou mais pessoas é um fato comum. Os trabalhos que envolvem
a colaboração de um grupo de pessoas também parece ser uma alternativa do tempo em
que vivemos. As pessoas se aproximam por diversas razões e este contato pode poten-
cializar o aprendizado, compreensão, respeito, prazer e criatividade. Porém, uma pessoa
poderia ser capaz de despertar em outra os sentidos que ajudam a facilitar a compreen-
são da sua paisagem interna e externa. Isto talvez possa acontecer quando uma pessoa
entrega para a outra a atenção que ela precisa, ou quando empresta, de forma honesta, o
ouvido. A colaboração faz com que as pessoas se conectem com elas mesmas e resgatem
as lembranças que foram catalogadas lá atrás em outros tempos. A troca de ideias poten-
cializa uma reflexão que traz um sentido para os registros na memória.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 389
Referências
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Paulo: Annablume, 2008.
FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo:
Editora Cosac Naify, 2007.
LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. In: Revista Brasileira de
Educação. Rio de Janeiro, n.19, 2002.
390 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
This paper presents an aspect not yet published, whether in form of exposure
or academic textual analysis, of the author’s work, consisting of a set of auto-
biographical albums made since 1978. Hybrid of diaries - although each unit
be more properly a yearbook - and expW language, history.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 391
Introdução
A escrita do texto deste artigo implica em uma dificuldade e um desafio: derivam ambos
do problema que todo autor enfrenta ao elaborar análise da própria obra. Nestes casos
a necessidade de objetividade se confronta com a impossibilidade de escapar à subje-
tividade, impositiva, obviamente, por definição. Não se trata, no entanto, de tentativa
inédita, muito pelo contrário, já que constitui prática corrente e aceita - ainda que nem
por todos e, por muitos, com restrições - que chega a constituir boa parte da contribuição
dos escritos sobre arte na atualidade. Convém também mencionar que as desvantagens
referentes à evidente dificuldade de distanciamento, oriunda da fusão das posições, au-
tor, artista/teórico, parecem ser plenamente compensadas pela possibilidade de uma fala
que, ao se originar no próprio âmago do processo de criação, responsabiliza-se pela
elaboração de uma análise a partir deste lugar privilegiado, que só o próprio autor, evi-
dentemente, pode ocupar.
No caso de um grupo específico de artistas - grupo este em que me incluo - que de-
vido à especificidade de sua formação em nível de pós-graduação, teve a oportunidade,
que se manifestou na verdade em forma de exigência, de exercitar esta fala específica,
autoanalítica e autorreflexiva, esta tarefa não se apresenta como inédita, à medida que
foi enfrentada ao longo de inúmeras monografias de mestrado e doutorado, resultando
na escrita de dissertações e teses correspondentes, próprias às áreas de Poéticas ou Lin-
guagens Visuais dos programas de pós-graduação em arte, no Brasil e no exterior.
Se, por um lado, o aspecto político do exercício desta oportunidade, tão visceral-
mente avessa ao espírito de divisão de competências moderno, aparentemente não deve
ser negligenciado, por outro, tais análises devem, evidentemente, evitar a todo custo o
perigo de incorrer no equívoco de se manifestar como críticas de cunho laudatório ou
autopromocionais. Em relação a este aspecto, vale referir que não se trata aqui de modo
algum de tentativa de exercício de juízo de valor sobre o objeto analisado - esta sim uma
impossibilidade evidente para o próprio autor.
Finalmente, é preciso mencionar que, no caso específico, devido ao fato do objeto
analisado constituir material de caráter autobiográfico - diários ou anuários em forma
de cadernos - ou álbuns - de artista - de cunho eminentemente privado, todas as difi-
culdades citadas ficam naturalmente ampliadas. No entanto, o desafio desta análise e
apresentação se impôs, aproveitando esta oportunidade de vir a público, porque, dado o
caráter absolutamente excêntrico deste material, avesso por natureza à própria ideia de
exposição, em não se aproveitando brechas como esta para sua apresentação, o curso
natural apontaria, inevitavelmente, para sua recepção pública póstuma. Neste caso, se-
ríamos obrigados a aceitar incondicionalmente o juízo de Duchamp, quando menciona
preferir a posteridade como forma de espectador: “porque o espectador contemporâneo
não tem nenhum valor, na minha opinião” (Duchamp apud Cabanne, 2008, p. 132). O
que talvez não fosse absolutamente estranho à natureza dos álbuns, à medida em que,
muitas vezes parecer ser mesmo com ela - a posteridade - que eles dialogam.
392 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Figura 1: Álbuns da década de 80 (capas): da esquerda para à direita e de baixo para cima:
1984, 1985, 1986, 1987, 1988, 1989.
Figura 2: Álbuns da década de 90 (capas): da esquerda para à direita e de baixo para cima:
1991, 1992, 1993, 1994, 1995, 1996.
Figura 3: Páginas dos álbuns dos anos 2000 (em cima) e 1996 (em baixo)
em andamento inúmeras tentativas iniciais de sua formulação, nos mais diversos cam-
pos, inclusive e, naturalmente - talvez, principalmente - no campo da arte. Um exemplo
corriqueiro e até banal, por extremamente cotidiano, é a utilização de signos programa-
dos oferecidos por softwares de comunicação textual, tais como emoticons e emojis, em
mensagens de textos trocados por usuários da rede mundial de computadores. A prática
de ilustrar ou mesmo apenas sublinhar o que está sendo dito - escrito - por pequenos
signos previamente programados, reflete a necessidade nascente de uma comunicação
por meio de dispositivos imagéticos, numa sociedade cada vez mais dominada pela
produção e consumo de imagens. Parece notável que, anteriormente à criação destes sig-
nos agora disponibilizados por programas, tal necessidade já houvesse se manifestado,
emergindo na forma de improvisações, como a utilização de signos gráficos, parênteses,
aspas, colchetes, dois pontos, disponíveis nos teclados dos computadores pessoais, que,
associados, configuravam os signos desejados, expressões de alegria (smiles) admira-
ção, tristeza, espanto, etc.
Realizados ao longo de um período de trinta e cinco anos, portanto e, já agora, su-
perando mesmo este número, à medida que, com o aumento de imagens fotográficas,
derivado da utilização de câmaras digitais, tornou-se necessário realizar um álbum por
semestre, ao invés dos anuais, este conjunto manifesta concretamente uma verdade hera-
clitiana: uma comparação entre álbuns com intervalos de mais de dez anos - de qualquer
período - vai apresentar diferenças notáveis, tanto no que diz respeito aos conteúdos
fixados, quanto em relação às opções em termos de organização e diagramação. Este
processo de metamorfose contínua parece denotar de forma clara, concreta, que o modo
de ser do ente que somos, para falarmos com Heidegger (2002), é de natureza plástica,
não podendo deixar de sê-lo igualmente seus produtos.
Os primeiros álbuns eram feitos a partir de cadernos de desenho, comprados, com
espirais metálicas. Posteriormente estas foram substituídas por outras mais largas, de
plástico. Atualmente, são encadernadas folhas de papel ofício, com espirais de plástico,
as mais largas possíveis. As capas são cortadas em papel cartão duplex e especialmente
preparadas a cada álbum. As primeiras folhas, assim como as últimas, por abrir e fechar
cada álbum, apresentando o ano que se segue, também se diferenciam das demais, que
se inserem no fluxo de passagem do tempo (figura 4).
Figura 4: Primeiras páginas dos álbuns dos anos de 1985 (em cima) e 2003 (em baixo)
396 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Referências
BAUDRILLARD, Jean. Tela total. Porto Alegre: Sulina, 2002.
CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. São Paulo: Perspectiva,
2008.
FLUSSER, Vilém, Prétextos para a poesia. In: Cadernos RioArte, ano 1, nº 3, 1985.
______________. Texto/ Imagem enquanto dinâmica do Ocidente. In: Cadernos RioArte, ano II,
nº 5, 1996.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2002.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 397
Apropriação e participação
em Mouchette Org:
a profundidade no zerodimensional
Through artistic proposition “Mouchette.org”, (1996) this article deals with the
specific characteristics of net.art focused on sharing and interactivity. Under
the perspective of Bourriaud’s “relational aesthetics”, this text deals with colla-
borative sense of this work. With views over the Flusser’s praise of superficiali-
ty, crossed by the sense of “modern technique”, presented by Martin Heideg-
ger, shows the most extensive relationship between the area of tecnoimagem
and erasing the historical condition.
Keywords: mouchete.org, ownership, participation, net.art
398 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Qual seria a melhor maneira de Mouchette cometer suicídio quando chegar aos treze
anos? A artista que se apresenta em Mouchette.org jamais atinge a idade final, mas, tal-
vez tenha encontrado uma grande transformação quando o nome por detrás do avatar foi
revelado. A página inicial (www.mouchette.org, 1996) da criação de Martine Neddam
apresenta a imagem de moscas a andar sobre uma flor. Tudo aponta para um recorte
improvisado, uma composição amadora e infantil. No canto superior esquerdo da home-
page surge o rosto de uma menina de, talvez, 13 anos. Ao lado da foto há informações
como num questionário: ela é uma artista, seu nome é Mouchette, tem quase 13 anos,
mora em Amsterdã e logo adiante um botão para alterar o “estado de espírito” da suposta
artista. Ao acionar o botão o fundo é trocado por outra imagem de flor e as moscas per-
manecem (mouche). Na medida em que o usuário “explora” os atalhos a partir da home-
page, textos, áudio, imagens e animações surgem como referências pouco consistentes
da vida e da obra da artista adolescente. A hipertextualidade de Mouchette.org parece
servir para que o usuário perca-se na exploração. Cada link faz surgir no ecrã conteúdos
que tanto põem em dúvida a veracidade do que é dito quanto aumentam o envolvimento
do usuário. Por um breve currículo de realizações e imagens de sua residência em Ams-
terdã, até “pinturas” com intervenção digital de extrema inocência, a vida de Mouchette
é apresentada. Muitos dos links parecem sem saída e realmente assim seriam, não fosse
a requisição de contato direcionada ao usuário do website através de formulários de fee-
dback. E-mails personalizados são enviados aos usuários receptivos, isto é, aqueles que
cedem seu e-mail e prestam-se para possíveis diálogos.
Mouchette.org nunca foi retirado do ar e na medida em que conquistava o público
frutificava também polêmicas. Direitos autorais, pedofilia e os limites da liberdade na
internet são pontos discutidos com o “problema” Mouchette.org (SALVAGGIO, 2002).
A referência ao filme de Robert Bresson, Mouchette, a virgem possuída (1967) é uma
das bases estruturais da “personalidade virtual” Mouchette. O filme, por sua vez, foi
inspirado no livro La Nouvelle Histoire de Mouchette (1937), de Georges Bernanos. Tra-
ta-se da história de uma adolescente que sofre dissabores sociais e familiares numa pe-
quena comunidade e comete suicídio após ser violentada. Martine Neddam apropria-se
do título, da narrativa e do peso psicológico dessas referências para conceber a persona
virtual. O linguajar simples, repleto de conotações sexuais e mórbidas, aliado a indica-
ção de uma criança de 12 anos de idade, torna a relação com os usuários aparentemente
inadequada ou eticamente preocupante.
Nos primeiros anos de existência de Mouchette.org a autoria permaneceu encoberta.
O processo de aprimoramento do trabalho levou Neddam à construção de outros “ca-
racteres virtuais” e trouxe respostas do público provavelmente não previstas no projeto
inicial. Websites baseados no desenvolvimento de Mouchette.org surgiram como modo
de apoio ou mesmo crítica e esses novos locais de apresentação de conteúdo foram, em
alguma medida, agregados ao trabalho inicial. Hoje Mouchette.org não mostra o “ca-
ráter virtual” proposto por Martine Neddam em 1996, mas surge como uma plataforma
para discussão dos limites personais da vivência na web.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 399
O mundo está cheio ao ponto de sufocar-se. O homem marcou sua presença em cada pedra.
Cada palavra, cada imagem é arrendada ou hipotecada. [...] Uma imagem é um tecido de ci-
tações saídas dos inumeráveis centros de cultura. Nós podemos apenas imitar um gesto que é
sempre anterior, nunca original. [...] O observador é o espaço onde se inscrevem todas as cita-
ções que compõem uma imagem, sem que nenhuma delas seja perdida. O significado de uma
imagem situa-se não em sua origem, mas em seu destino. (EVANS; LEVINE, 2009, p. 81).
função das relações inter-humanas que figuram, produzem ou criam” (2009a, p.151). O
“critério de coexistência” seria a saída crítica para melhor compreensão das produções
de valor relacional. Diante da proposta de um artista o público poderia perguntar-se
sobre sua própria localização com o que lhe é apresentado. Tal critério considera que o
trabalho de arte “produz um modelo de socialidade, que transpõe o real ou poderia se
traduzir no real” (2009a, p.149). A “coexistência” com o público seria a marca da arte
relacional. Nesse sentido a revolução comportamental ocorrida com a popularização da
internet demonstra um desejo de construção de novos espaços de socialidade que não
apaguem o caráter personal das atividades do quotidiano.
A ideia de “subjetividade polifônica” do psicanalista francês Felix Gattari é cara
ao trabalho de Bourriaud, pois é centrada na indicação de um novo paradigma estéti-
co. À arte estaria resguardado um poder de criar novas qualidades para o mundo, de
promover sentidos através do afeto e da percepção. Nessa explicação pontual Gattari
cita Duchamp: “A arte é um caminho que leva à regiões que o tempo e o espaço não
regem” (1992, p. 129). Na “máquina autopoética” (GATTARI, 1992, p. 135) residiria
essa capacidade da arte e o início de um paradigma estético o qual permite a valorização
de uma subjetividade polifônica, ou plural. A arte relacional presta-se bem como modo
de singularizar situações e assim ressaltar subjetividades que não dispensam a condição
personal do sujeito, mas permitem sua confluência com e sua inserção em situações
coletivas e institucionais.
Nas ideias apresentadas por Bourriaud em Pós-Produção (2009b) o sentido do uso
e do tráfego de informações para as realizações da arte atual surgem com maior ênfa-
se. Tanto a estética relacional como a pós-produção “tomam como ponto de partida o
espaço mental mutante que a internet, instrumento central da era da informação em
que ingressamos, abril para o pensamento” (BOURRIAUD, 2009b, p. 8). Ao inserir
a discussão de uma pós-produção como modo de fazer da arte atual, as propostas não
podem se afirmar como uma criação a partir do zero, mas como reciclagem de produtos
já existentes e pertencentes ao imaginário de uma cultura do fluxo de dados (BOUR-
RIAUD, 2013).
“[...] os artistas atuais não compõem, mas programam formas: em vez de transfigu-
rar um elemento bruto (a tela branca, a argila), eles utilizam o dado.” (BOURRIAUD,
2009b, p. 13). Produtos tornaram-se matéria-prima. Nesse cenário toda a informação
está disponível como dado. O interesse está nas relações criadas ou alimentadas entre a
mixagem e a subjetividade do público. Como aponta Manovich (2001.p. 49), vislumbrar
um sentido amplo de colaboração é inevitável quando se lida com a construção em rede,
embora essa interatividade possua sempre barreiras do próprio meio. Na web a reprodu-
ção é a regra e a cópia uma constante. Trabalhar uma informação na web é tanto repro-
duzi-la de alguma fonte quanto compartilhar a construção do sentido dessa informação
com os demais fios humanos. As propostas de artistas que fazem uso primordialmente
da web, como Neddam, devem ser encaradas sob o critério de coexistência e da recodi-
ficação em rede, mas também sob os limites do meio.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 401
não estaria vinculada a esse processo de “responder e dever” que formaria a base da
thekné e da poiésis gregas. A técnica moderna faz com que coisas apareçam para a
realidade, porém, seu procedimento é a construção de um esqueleto, uma fórmula, ou,
mais propriamente, uma “composição” (gestell) sobre a qual os elementos observados
no mundo são dispostos para se chegar a um resultado. Sob esse prisma, por exemplo, a
ciência não mais estudaria o mundo, mas puramente seus próprios códigos. Os aparelhos
dos quais nos fala Flüsser, somente puderem ser concebidos por essa determinação. É na
programação do aparelho que reside sua condição de reprodutor de processos. As conse-
quências do domínio da técnica moderna através dos aparelhos são as mais extensas e a
fala de Dye é bastante esclarecedora do modo como somos afetados.
Nosso conforto aumenta, nossa esperança de vida também, nós nos alimentamos melhor, dor-
mimos melhor, estamos menos afligidos pelas dores e terrores; em resumo, as nossas necessi-
dades primárias não somente estão sendo suprimidas, mas o estão sendo de uma maneira cada
vez mais agradável. Entretanto, não sabemos como tudo isso se produz. Mais as sociedades
humanas se virtualizam, mais a linguagem, a codificação e a decodificação reais e científicas
do mundo nos escapam. Vivemos hoje num tipo de inconsciente tecnológico [grifo nosso],
onde tudo é possível, tudo é maleável, moldável, transformável ao infinito, onde o tempo e o
espaço estão ao nosso alcance, mas é onde também as modificações profundas permanecem
para nós opacas, ocultas e inacessíveis. (DYE, 2003, p. 268-269).
Referências
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Trad. de Denise Bottmann. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2009a.
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gia, ciência e criatividade. São Paulo: UNESP, 2003, pp. 265-272.
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FLÜSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São
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GUATTARI, Félix. O Novo Paradigma Estético. In: ______. Caosmose: um novo paradigma esté-
tico. Trad. de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Claudia Leão. Revisão Técnica de Suely Rolnik.
Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
HEIDEGGER, Martim. A questão da técnica. In:______. Ensaios e conferências. 5.ed. Petrópolis:
Vozes, Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008, p. 11-38.
MANOVICH, Lev. The Language of New Media. Massachusetts: MIT Press, 2001.p.49.
SALVAGGIO, Eryk. A Critical Analysis of Mouchette.org. eryk at maine.rr.com. Tue Nov 19
09:53:09 CET 2002. Disponível em: <http://tekspost.no/pipermail/syndicate/2002-Novem-
ber/011506.html>. Acesso em: 24 jul. 2013.
404 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
As performances do artista e do
público na intervenção “Conte-me
um segredo”
Rodrigo Souza
UFJF – [email protected]
This paper aims to address the intervention “Tell me a secret”, held in the
center of the city of Juiz de Fora - MG, understanding the performance by the
artist in a dual relationship: not only the space of the street was changed by the
performance, the creation of a space-ephemeral, but the “I” of the performer
is dressed in another “I”. The intervention consisted therefore in a process to
affect and to let be affected to cope with the daily flow, with the unknown.
Keywords: performance, intervention, secrets.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 405
Introdução
O projeto “Conte-me um segredo”, realizado em Juiz de Fora-MG nos meses de maio,
junho e julho de 2013, foi dividido em duas partes. A primeira, uma intervenção em
espaço urbano e, a segunda, uma instalação interativa.
O performer foi para o “Calçadão da Rua Halfeld”, uma das principais vias de circu-
lação de pessoas na cidade, vestido com um colete estilo “compro ouro”, no qual estava
escrito a frase “Conte-me um segredo”. Ele distribuía panfletos para que as pessoas
escrevessem neles seus segredos, que também explicavam do que se tratava aquela in-
tervenção. As pessoas depositavam os papéis com os segredos em uma urna próxima ao
espaço em que o performer estava. (Figuras 1 e 2)
Todo esse processo foi gravado, no intuito de gerar um vídeo cuja função ultrapas-
sasse apenas a de documentação da performance, de modo a funcionar como uma obra
paralela. Além disso, o objetivo do vídeo não era revelar quem estava ali contando os
segredos, mas resguardar a imagem das pessoas: elas eram filmadas apenas abaixo da
linha do pescoço e/ou a imagem estava desfocada.
Os segredos recolhidos, juntamente com o vídeo, foram expostos sob o formato de
uma instalação interativa no mês de julho. Além disso, também foram expostas algumas
fotografias realizadas posteriormente à intervenção, fotografias com enquadramentos
semelhantes às utilizadas em documentos de identificação. Na instalação, os segredos
e as fotografias estavam amarrados com fios de nylon em uma tela de arame, suspensa.
Neste artigo, a proposta é pensar em como as relações entre artista e público – e as
respectivas performances, isto é, as montagens que fazem de si, num jogo de mostrar
e esconder suas “identidades” – podem servir como catalisadoras para processos de
criação de novos modos de vida, desprogramando gestos e pensamentos já habituais.
Figura 1. Distribuição dos panfletos na inter- Figura 2. Pessoa colocando seu segredo na
venção. (Acervo do Artista) caixa durante a intervenção. (Acervo do Ar-
tista)
Intervenções
A intervenção “Conte-me um segredo” foi pensada como um modo de se inserir no fluxo
cotidiano da cidade, em um processo de afetar e de ser afetado, enquanto um modo de
“chegar entre”.
406 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Os movimentos mudam, no nível dos esportes e dos costumes. Por muito tempo viveu-se
baseado numa concepção energética do movimento: há um ponto de apoio, ou então se é
fonte de um movimento. Correr, lançar um peso etc.: é esforço, resistência, com um ponto de
origem, uma alavanca. Ora, hoje se vê que o movimento se define cada vez menos a partir de
um ponto de alavanca. Todos os novos esportes – surfe, windsurfe, asa delta – são do tipo:
inserção numa onda preexistente. Já não é uma origem enquanto ponto de partida, mas uma
maneira de colocação em uma órbita. O fundamental é como se fazer aceitar pelo movimento
de uma grande vaga, de uma coluna de ar ascendente, “chegar entre” em vez de ser origem de
um esforço. (Deleuze, 2010, p.155)
Assim, quando uma intervenção artística explora o espaço urbano como local de sua
realização, ela se insere em um fluxo preexistente, o do cotidiano. Em meio a esse movi-
mento, ela cria um intervalo, uma zona efêmera, um espaço-tempo singular. Essa cena,
diferente da cena do teatro, não pode ser repetida ou recriada, uma vez que o próprio
espaço no qual ela se localiza se transforma a cada instante. Isto é, não apenas a inter-
venção ressignifica o espaço no qual ela se insere, mas também é por ele ressignificada.
Deste modo, a intervenção pode ser entendida como um acontecimento, enquanto
um corte no tempo cronológico, como um ato pelo qual afeta o estado de um corpo. A
experiência que corresponde ao acontecimento é, assim, uma “disjunção associativa”,
“tempo morto não sucede ao que chega, coexiste com o instante ou o tempo do acidente,
mas como a imensidão do tempo vazio em que o vemos ainda por vir e já chegado, na
estranha indiferença de uma intuição intelectual.” (Deleuze, 1992, p.149, apud Zoura-
bichvili, 2004). Sob o termo Aion, o acontecimento insere um tempo flutuante, um fora
no tempo, uma temporalidade para-doxal. Contudo, esse fora não é transcendente, mas
imanente. Não há como conceber o acontecimento fora do tempo, embora ele próprio
não seja temporal. É necessário, então, estabelecer um conceito de multiplicidade, de
modo que a “coisa” não tenha “mais unidade a não ser através de suas variações, e não
em função de um gênero comum que subsumiria suas divisões” (Zourabichvili, 2004).
Chronos, portanto, deriva de Aion. Não há acontecimento fora de uma efetuação no
espaço e no tempo, ainda que o acontecimento não se reduza a isso.
O acontecimento tem lugar entre os corpos, no meio, entre as formas inteligíveis e as
coisas sensíveis, entre o sujeito e o objeto, mas também é a condição deles. É uma rea-
lidade intermediária, nem interior nem exterior, mas as duas coisas a um só tempo, em
que sujeito e objeto se confundem estreitamente, mas que a partir do qual se distinguem,
embora apenas virtualmente.
Afetações
Na intervenção “Conte-me um segredo”, o performer, ao buscar uma experiência que
o aproximasse da vida cotidiana, o fez com o objetivo de se inserir no social, deixando
que o próprio fluxo o afetasse a partir das relações tramadas com o público. O colete
idêntico ao dos homens-placa, ao dos “compro ouro”, foi apropriado de modo que o ar-
tista pudesse se inserir naquele fluxo. Somente um olhar atento reconheceria que aquele
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 407
sujeito tinha em seu colete não um anuncio, mas um pedido: “conte-me um segredo”.
A proposta de afetar o público para uma desconstrução do olhar tão determinado pelo
fluxo do cotidiano, portanto, começava já mesmo com a escolha do figurino.
Os panfletos que eram distribuídos convidavam o espectador a participar da inter-
venção, e também explicavam que todo aquele material seria exposto sob um formato de
instalação interativa, isto é, que os segredos escritos por eles naqueles papéis em algum
momento seriam revelados.
O que interessava na intervenção, sobretudo, não era o conteúdo de cada um dos
segredos, se esses eram verdadeiros ou falsos, mas sim o próprio ato da escrita, de con-
vidar o público a participar daquela trama, a fabular seus segredos em meio ao fluxo da
cidade. Uma reinvenção do espaço urbano e do cotidiano, mas também de si mesmo.
Deste modo, a intervenção “Conte-me um segredo” pode ser entendida também a partir
a partir do conceito de arte relacional, como aborda Bourriaud. Segundo o autor, a arte
relacional tomaria “como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu con-
texto social, mais que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado” (Bour-
riaud, 2009, pp.19-20). Assim, ele analisa a produção dos anos 1990 a partir da ideia das
relações humanas como o lugar da obra de arte, enfatizando o modo como os artistas se
inserem nas relações sociais para extrair formas e dar funções poéticas a essas relações.
Contudo, como aponta o autor, o objetivo do artista não é questionar os limites da arte,
mas utiliza-se da forma-performance para produzir efeitos diferentes.
Um conceito central para Bourriaud é o de “interstício”, que poderia ser conjugado
com o pensamento do “chegar entre” de Deleuze, abordado anteriormente neste artigo.
Ambos conceitos evidenciam possibilidades de inserção em uma rede de relações e de
fluxos, que possibilitam sugerir outras possibilidades de conexões para além das vigen-
tes. É um atentar para a ruptura, a interrupção, o entremeio, o entreato.
Bourriaud, ainda em seu livro “Estética Relacional”, recorre a Guattari, pois, para o
autor, “a única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subje-
tividade que auto-enriqueça continuamente sua relação com o mundo” (Guattari apud
Bourriaud, 2009, p. 145). Bourriaud conclui que essa definição se aplicaria também às
práticas artísticas contemporâneas, uma vez que os artistas produzem trabalhos catali-
sadores de experiências em vez de objetos concretos e fechados. Assim, o público faz
parte da obra.
Atuações
Nos é importante aqui entender a performance enquanto um processo em que “um corpo
se expõe e ao se expor cria a situação na qual se expõe, não sem, no mesmo gesto, criar-
se a si mesmo. Uma forma aparece e ganha forma – não previamente – mas à medida em
que aparece” (Brasil, 2011). No projeto, inicialmente, o artista estaria fantasiado com
máscara, roupas, sapatos, todos brancos pois não se queria associar que a pessoa estaria
contando segredos para uma outra pessoa, mas sim para um personagem fictício, uma
entidade, despersonalizado. Contudo, ao longo do processo, entendemos que aquele que
408 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
pediria os segredos para as pessoas não precisaria de se esconder atrás de uma fanta-
sia: a ficção estaria sendo criada no processo da performance. Na verdade, o que nos
interessava era o poder e a força da criação, tanto do performer, quanto do público, não
importando para distinções entre verdadeiro e falso, real e ficção.
Nesse sentido, é importante perceber a intervenção e a performance como um modo
do artista explorar o estranho em si. O artista tornava-se um personagem atuante através
da interação com o público e com aquele espaço no qual estava inserido, no intuito de
deixar-se afetar também por aquela experiência.
Assim foram com as conversas sempre amigáveis com os outros “compro ouro” e
com comerciantes da região, que iam, por vezes, perguntar o que estava acontecendo ou
mesmo para contar histórias de paixões secretas a um desconhecido no centro da cida-
de. Também afetaram aqueles que passavam, pegaram o papel para escrever o segredo
e voltavam no dia seguinte, com algo escrito – ou os que contavam segredos todos os
dias; ou mesmo todos aqueles que por ali passaram, uma vez que incitavam o artista a
ter que se transformar para se relacionar com cada um com quem ele decidia interagir,
principalmente pelos modo de falar e de agir com cada um dos passantes. (Figura 3)
Conclusões
A relação arte/vida já evidenciada pelos cubistas com suas colagens de jornais e ima-
gens, “pedaços de realidade”, ou mesmo pelas performances e pela body art dos anos 60
e 70, é tema também de artistas contemporâneos, dentre os quais destacam-se os traba-
lhos de Sophie Calle e de Rirkrit Tiravanija. As obras de ambos, por sinal, são tomadas
por Bourriaud como exemplos do que chamou de “estética relacional”, em que define o
artista contemporâneo como produtor de relações.
Seria, também, nesse limiar entre a arte/vida que o projeto “Conte-me um segredo”
buscaria se inserir, através da produção de acontecimentos potencializadores de sen-
sações desestabilizadoras tanto para o artista quanto para o público. Transformar em
processo criativo uma experiência existencial seria, assim, o que importaria de fato para
essa intervenção, apagando quaisquer distinções entre realidade e ficção.
Deste modo, arte e vida se atravessam, se intercessam, se encontram, se vivenciam,
se artificializam. Uma se travestindo da outra, uma se constituindo a partir da outra,
numa relação de criação de novos modos de ser e de existir no mundo. E o sujeito, entre,
como personagem de si mesmo.
Referências
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BRASIL, André. A performance: entre o vivido e o imaginado.In: XX Encontro Anual da Compós,
2011, Porto Alegre. Anais do XX Encontro Anual da Compós, 2011, Porto Alegre
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______________. Cours Vincennes : Intégralité du cours, 1978. Disponível em: http://www.web-
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DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed.34, 1992.
GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992.
ZOURABICHVILLI, François. Le Vocabulaire de Deleuze. Paris: Elipses, 2003. Disponível em:
http://www.ufrgs.br/corpoarteclinica/obra/voca.prn.pdf
410 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
The displacement of the object for the art field investigates the notions of au-
thorship, materiality, fetishization and hybridization of the processes involved
in the conceptions of language appropriation of objects, as well as its character
of claims of quality artwork. Douglas Crimp uses the argument that the appro-
priation becomes an academic category in that the museum uses it to rate or
thematize the order of these objects. Thus the readymade, the objet trouvé, the
assemblage, and other types of appropriationist aspects, in the discourse of
not aesthetics of the arts, as suggested by Harold Rosenberg, presents itself
in the emphasis given to the reality of materials used in primary form, the anti-
form, the unsightly, the denaturalization of the look and art process.
Keywords: Object, art, displacement, appropriation
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 411
1. “(...) O objeto, dentro da nossa civilização, é artificial. Não se falará de uma pedra, de uma
rã ou de uma árvore como um objeto, mas como uma coisa. A pedra só se tornará um objeto
quando promovido a peso de papéis, e quando munida de uma etiqueta: preço..., qualidade...,
inserindo-a no universo de referencia social.”. MOLES, Abrahan. A Teoria dos objetos. Rio de
Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro. 1981 : p. 26.
2. BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2002: p.10.
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5. CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. São Paulo: Perspecti-
va, 2001. (Debates)
6. CABANNE, Pierre. Op Cit.: p.85.
412 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
nossa)7. Por definição o nome readymade “[...] foi dado por Duchamp a um tipo de obra
que inventou, consistindo em um artigo produzido em massa selecionado ao acaso e ex-
posto como obra de arte. [...]” (CIPOLLA. 2001: p.438)8. Estes objetos colocados para
a apreciação artística contestavam um programa rígido de ações estéticas. Escarneciam
da elevação que os circuitos artísticos impunham a si mesmos. O readymade incor-
pora uma proposta de manipulação e recontextualização da própria história do objeto
enquanto pronto, instigando o artista ao não construir, mas a reivindicar através de sua
vontade, o status de obra de arte, explorando o paradoxo de que todo o objeto exposto
por um artista numa galeria se torna arte. Segundo Douglas Crimp (1944-) ficou claro
com os readymades de Duchamp, que a função dos artistas é trabalhar no âmbito de sua
“autoridade discursiva”, e a dos museus de arte é de “[...] declarar, diante de cada um dos
objetos que abriga: ‘Isto é uma obra de arte’. [...]” (2005: p.195)9.
O dadaísmo, ao qual Duchamp, Man Ray (1890-1976) e Francis Picabia, se reuni-
ram a partir de 1916 renega as definições disponíveis até então de arte e o sistema de
avaliação e validação dos objetos artísticos. Nesta vertente, o surrealismo também soube
explorar novos conceitos para o objeto. Os objetos começam a surgir na arte como simu-
lacros da realidade, com forte peso simbólico e evocativo, em esquemas compositivos
formais de matriz cubista à lógica das assemblages. Salvador Dali (1904-1989), por
volta de 1931, em um texto sobre os objetos surrealistas, diz que “[...] Todo o objeto era
considerado um ‘ser’ perturbador e arbitrário e era creditado como tendo uma existência
totalmente independente da atividade do experimentador. [...]” (1996: p. 422-429)10.
Dali ainda identifica seis categorias para os objetos surrealistas: “[...] objetos de fun-
cionamento simbólico (origem automática); objetos transubstanciados (origem afetiva);
objetos a ser projetados (origem onírica); objetos embrulhados (fantasias diurnas); obje-
tos mecânicos (fantasias experimentais) e objetos moldados (origem hipnagógica). [...]”
(BRADLEY. 2001: p. 43). Embora o objeto surrealista tenha sido formalizado por Dali,
é Alberto Giacometti (1901-1966) que ligado ao movimento entre 1930 e 1935, começa
a projetar o desejo sobre os objetos, para solucionar os problemas de sua escultura11. A
obra Bola Suspensa (1930), de Giacometti, é analisada por Dali como pertencente à pri-
meira categoria de objetos com função simbólica, erótica, e que demanda a participação
do espectador. Uma possível metáfora sexual. Outros objetos surrealistas, expostos em
1936, na Galerie Chales Ratton, mais baseados na composição de peças do que na sua
modelagem, incluíam o Telefone-Lagosta (1936) de Dali, e Café-da-manhã envolto em
enquanto ser entreaberto. Bachelard (1884-1962)18 dirá que essa dialética do interior e
exterior na figura do cofre, da proteção da caixa e da fechadura, delimita uma fenome-
nologia das figuras imagéticas ricas de ambiguidade, ligadas ao signo do esconderijo,
do mistério e intimidade. Bachelard destaca que “[...] no cofre estão as coisas inesque-
cíveis, inesquecíveis para nós, mas inesquecíveis para aqueles a quem daremos nossos
tesouros.[...]”. (1978: p. 252). No mundo dos objetos inertes, a caixa esconde e revela,
transporta e protege. O cofre é um cárcere de objetos19. Em outro expressivo momen-
to de discussão a respeito das formas dos objetos, Georges Didi-Huberman (1953)20,
revela as relações tautológicas dos cubos minimalistas, e dá especial atenção a Black
Box (1961), do escultor Tony Smith (1912-1980), obra antológica, que o artista realizou
após o contato com uma pequena caixa preta, um fichário de madeira, exposto sobre a
escrivaninha de um amigo, que o fascinou de tal modo, vindo a influenciar seu trabalho
e o de outros artistas proeminentes21.
Foi Marcel Duchamp quem logo percebeu as peculiaridades das caixas para seus tra-
balhos. Ele produzirá inúmeras obras aos quais dará o nome de museus-portáteis, as Boi-
te-em-Valise. As relações com uma arte de arquivo, através das caixas em que Duchamp
organiza miniaturas, anotações e documentos, se evidenciam em uma abordagem irôni-
ca à fotografia, através da repetição e reprodução de seus documentos de processo. Uma
das suas obras emblemáticas é Tróis Stoppages Étalon, (1913-14). Foi também uma das
primeiras obras encerradas numa caixa produzida por ele. Consiste de três placas de
vidro finas e longas, sobre as quais estão dispostos pedaços de tela que servem de fundo
a três linhas de costura, fechadas em uma caixa de madeira de “croquet”. Duchamp diz
que para realizar a obra, repetiu três vezes a seguinte experiência: soltou um fio de 1 me-
tro de comprimento à altura de 1 metro na horizontal, deixando o fio deformar à vontade.
Ele recolhe os fios e os prende, cada um em uma tira de lona próprio ligado a uma placa
de vidro. Ele definiu este objeto como “acaso em conserva”22. A ideia de acaso, segundo
Duchamp, estava em voga por conta das primeiras manifestações de automatismo. O
acaso interessava-o como meio de contradizer a realidade lógica, o que o leva a repetir
três vezes a experiência de soltar a linha. No seu dizer, colocar qualquer coisa numa tela,
num pedaço de papel, associar a ideia de um fio caindo aleatoriamente ao sistema mé-
trico francês vigente, representava a experimentação e quebra de paradigmas. Segundo
18. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural,
1978.
19. BACHELARD, Gaston. Op cit.: p. 254.
20. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos o que nos olha. Ed. 34, 1998: p. 264.
21. DIDI-HUBERMAN, Georges. Op cit.: p. 90-91.
22. CABANNE, Pierre. Op. Cit.: p.68-69.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 415
23. SHEARER, Rhonda R. Marcel Duchamp’s impossible bed and others “not” readymade
objects: A possible route of influence from art to science/ Part II. Art & Academe (ISSN:1040-
7812), Vol 10, nº 02 1998: pág 76-95. Compyright 1997 Visual Arts Press Ltd. Disponível
em: http://www.marcelduchamp.net/marcelduchamp-Impossible-Bed-2.php - Acessado em
01/10/2013. 18:50h.
24. Shearer é conhecida por suas pesquisas que reproduzem as experiências descritas por
Marcel Duchamp em suas notas. O presente extrato foi retirado da segunda parte de ensaio
publicado originalmente em inglês, em Art & Academe (ISSN:1040-7812), Vol 10, nº 02 1998:
pág 76-95. Compyright 1997. Visual Arts Press Ltd. Disponível em: http://www.marceldu-
champ.net/marcelduchamp-Impossible-Bed-2.php - Acessado em 01/10/2013. 18:50h.
25. O Sistema internacional de unidades foi criado na França, logo após a Revolução Fran-
cesa, em 1799. Disponível em inglês e Francês: http://www1.bipm.org/en/si/history-si/ Acesso
em 01/10/2013; 17:50h
26. ROSEMBERG, Harold. Desestetização. In: BATTCOCK, Gregory (Org.). A Nova Arte Ed.
Perspectiva. 1975. São Paulo: 215-224.
27. BOURRIAUD, Nicolas. O uso dos objetos. In: Pós-produção: Como a arte reprograma o
mundo contemporâneo. Trad. BOTTMANN, Denise. São Paulo. Martins Fontes. 2009.
416 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
A tentativa de tematizar estes objetos quase sempre apresenta uma série de proble-
mas. Como encontrar uma classificação que explique ou justifique sua presença no am-
biente artístico? Uma análise isolada destes objetos demonstra antes uma necessidade
de busca por uma linguagem própria do que a adoção de um movimento. Isto denota a
necessidade de analisar a obra circunstancialmente, ou seja, a partir de características
próprias do seu contexto histórico, e das motivações artísticas que os criaram. Solicitar
a estes objetos que se enquadrem a um movimento, vanguarda ou linguagem artística,
representaria reduzir o alcance de seu diálogo com a arte.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 417
A criação compartilhada na
performance “tratado das
incorpóreas [sub]versões”
Samira Margotto
UNIR/RO – [email protected]
Éder Rodrigues
UNIR/RO – [email protected]
The records that make up the process of creating the performance “Tratado
das incorpóreas [sub]versões” are graded in multidimensional paths involving
effective dialogue between the artistic languages, choosing the body as a spa-
ce of transgressive aesthetic boundaries. This performative work constituted
from a collaborative practice that gathered professionals from the areas of
theater, visual arts, music, literature and dance in an exercise and traffic shifts
between the specific functions of each modality and contemporary processes
of signing collective work.
Keywords: performance, collaborative practice; dialogue interart; creation pro-
cesses.
418 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Figura 1. Performance “Tratado das incorpó- Figura 2. Performance “Tratado das incorpó-
reas [sub]versões”. Performer: Andréa Melo reas [sub]versões. Performer: Andréa Melo
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 421
Figura 3. Performance “Tratado das incorpó- Figura 4. Performance “Tratado das incorpó-
reas [sub]versões. Performer: Andréa Melo reas [sub]versões. Performer: Andréa Melo
Referências
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RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.
422 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Samira Margotto
UNIR/RO – [email protected]
The collective creative processes that spread through the 90s have influenced
diverse areas of artistic production and sprung analyses surrounding the ques-
tion of authorship. However, if in the creative field the vertical relationships are
under stress, the academic study of processes is still commonly directed at the
participation of “others”. Using as reference the “Experimentation workshop:
use of archive images in contemporary film”, which recently took place in Porto
Velho/RO, this paper begins by relating the voices of mediators with the tes-
timony of participants about the collective effort involved in the filmic exercise
with archive images.
Keywords: Process of creation, Collaborative art practices, Cinema and arquive
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 423
Vale destacar que a concepção do dispositivo pedagógico que conduz o estudo das
fotografias adotou como referência principal a obra contínua do filósofo e historiador de
arte Georges Didi-Huberman dedicada à reflexão sobre como ver as imagens e o con-
ceito de montagem como elemento criador de um pensamento conduzido pela imagem,
o gesto de montagem como produtor de conhecimento - la connaissance par les monta-
ges, como afirma o autor. Além disso, a reflexão do teórico e documentarista Jean-Lou-
is Comolli pontuou o posicionamento tomado diante das “imagens do passado”, pois,
como diz o autor, a imagem enquadrada opera uma “ocultação de uma parte do visível”
(Comolli: 2008, p.44).
Trata-se assim de uma metodologia que visa pensar as fotografias extrapolando sua
recepção inicial (e o saber pré-existente sobre aquilo que elas representam) e incita a
reflexão sobre aquilo que elas mostram, mas também o que elas escondem. Na pers-
pectiva de expandir o conhecimento sobre as fotografias, apresenta-se aos participantes
uma “pequena história das fotos de Dana Merrill”- retomando a situação na qual elas
foram fabricadas, a intenção de origem, as diferentes interpretações atribuídas ao longo
do tempo, aquilo que elas representam e revelam no tempo presente, entre outros-, pas-
sando também por diversas narrativas históricas, memórias e problemáticas em torno do
momento histórico ali relembrado. Dessa forma, a percepção de tais imagens adquiriu
aos poucos uma dimensão histórica, antropológica e política, provocando uma expansão
das possibilidades de trabalho com as fotografias.
Após discutir, legendar, catalogar, associar as fotografias, o primeiro gesto de “ela-
boração coletiva de significado” foi o levantamento de ideias de utilização das fotogra-
fias para a concepção do vídeo. Em grupos de quatro, os participantes escreveram uma
“nota de intenção”, na qual explicaram a questão que desejavam abordar e como dar
forma e significação àquelas imagens, explicitando o ponto de vista e regime discursivo
tomado (com ou sem narrador, vinculado a fatos reais ou a elementos ficcionais, por
exemplo), desencadeando, o que um dos participantes definiu como “uma cascata de
histórias e debates com variados e improváveis repertórios.” Dentre as propostas, duas
atraíram mais o interesse dos participantes, a escolha ocorreu por meio de uma votação
que decidiu, por um voto de diferença, a ideia que seria desenvolvida.
A etapa seguinte, extremamente dinâmica e frenética, consistiu em um grande
desafio: fabricar o vídeo no prazo de um dia. Enquanto um grupo desenvolvia a es-
crita da narração, outro selecionava as imagens para compor o filme e dois outros se
ocupavam em filmar as fotografias e preparar a trilha sonora. Ambos os processos de
criação se pautaram nas discussões e anotações das atividades precedentes. Para a
narração, por exemplo, foram retomadas frases oriundas da atividade para legendar as
fotografias. Quanto à seleção das imagens, a catalogação do acervo facilitou bastante
a “navegação” pelas trezentas e quarenta fotografias, já que os participantes estavam
familiarizados com as imagens.
Relativamente confinados em uma sala das 9h às 19h, com pausa apenas para o
almoço, os participantes se investiram intensamente para conseguir finalizar o “filme”
426 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
A distribuição de poder
O desejo dos participantes de dar continuidade e “vida” ao produto audiovisual por eles
criado, assim como a indagação da identificação de tal oficina enquanto prática colabo-
rativa foram os questionamentos propulsores no presente artigo. Ao repensar os meca-
nismos, limites e implicações tanto do processo quanto dos procedimentos dessa oficina
percebe-se que é possível – e preciso - considerar outros aspectos da prática colaborativa
em criações contemporâneas, para além da questão da ameaça à autonomia autoral nas
práticas colaborativas (Claire Bishop) e da reflexão ética na qual é necessário o artista
repensar seu estatuto privilegiado (Kester: 2004).
No campo expandido das práticas atuais, na dilatação de fronteiras entre áreas e
tantas outras questões que estão sendo postas, todas as tentativas de definição cabal, bem
como papéis prescritos, parecem carregar certo ar obsoleto. Neste contexto, as palavras
de uma artista como Tânia Bruguera, ao expor sobre o novo modo “que não seja claro”
de participação na produção atual, ecoam e clamam atenção:
“A confusão é um elemento útil porque ela oferece a possibilidade não-temida de
participação e mudança. Isto é onde muita arte política falhou, em minha opinião, no mo-
mento que reconheceram o lado educacional dos gestos políticos elas se apropriaram de
expressões literais de aprendizagem ao invés de criar novas maneiras de se envolver, ma-
neiras cuja distribuição de poder fosse negociada, onde pessoas tivessem que repensar o
seu lugar, onde a política fosse representada pelos participantes.” (Helguera, 2011, p. 26).
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 427
Referências
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______. Conversation pieces: community and communication in modern art, Berkeley and Los
Angeles: University of California Press, 2004.
428 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Este trabajo tiene como objetivo discutir, en el marco del arte público contem-
poráneo, las relaciones entre las nociones de autoría y práctica colaborativa.
En este sentido, será presentado y analizado dos acontecimientos que abar-
can bienes culturales y artísticos del Estado de Espíritu Santo, de hecho, el
uso de la obra “La Resurrección de Lázaro” del pintor Levino Fanzeres como
barricada durante la ocupación de la Asamblea Legislativa del Espíritu Santo
y la decapitación de la escultura “El niño y el delfín” de los escultores Pedro y
Fernando Gianordoli.
Palabras-clave: arte – cultura - poder
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 429
El espacio público [...] es el espacio social donde, dada la ausencia de fundamentos, el signi-
ficado y la unidad de lo social son negociados: al mismo tiempo que se constituyen se ponen
en riesgo. Lo que se reconoce en el espacio público es la legitimidad del debate sobre qué es
legítimo y qué es ilegítimo (DEUTSCHE, 2008, p.8).
Como la dimensión de ‘lo político’ siempre está presente, nunca puede haber una hegemonía
completa, absoluta, no excluyente. En ese marco, las prácticas artísticas y culturales son abso-
lutamente fundamentales como uno de los niveles en los que se constituyen las identificaciones
430 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
y las formas de identidad. No se puede distinguir entre arte político y arte no político, porque
todas las formas de prácticas artísticas o bien contribuyen a la reproducción del sentido común
dado – y en ese sentido son políticas –, o bien contribuyen a su deconstrucción o su crítica.
Toda las formas artísticas tienen una dimensión política (MOUFFE, 2007, p. 26).
ou propósito, fazendo com que estas ações sejam categorizadas como acidentes, como
irracionalidades. Talvez até pudéssemos aceitar o adjetivo “irracional” se este represen-
tasse algum tipo de antagonismo ao fundamento racionalista do projeto da modernidade.
Porém, o que parece é que a irracionalidade tem sido utilizada nestas práticas como
sinônimo de selvageria, ou seja, de não civilizado, de “não humano”, de não pertencente
ao campo das possibilidades de análise por ser definida como uma ação tautológica e
que possui fim em si mesmo. Discordamos deste consenso imposto e acreditamos no
desprendimento e decantação de significados presentes nestas práticas, casos, episódios.
Tais ações não têm fim em si mesmo, elas têm origem e destino anteriores e posteriores a
elas mesmas, fazem parte de uma estrutura social que constitui a elas e aos trabalhos que
alvejam. Podemos constatar estas estruturas e exterioridades relacionais, por exemplo,
na possibilidade de escrita das palavras e ideias que constituem este texto.
Interpretamos que os manifestantes na Assembleia Legislativa do Estado do Espí-
rito Santo ao usarem uma pintura como barricada expõem as zonas fronteiriças entre
projetos de mundo. Dentre todo o mobiliário presente na sala, a utilização do quadro
como barreira revela a reapropriação e utilização de símbolos e valores contra as es-
truturas que os dão origem. O quadro se tornou uma excelente opção de obstáculo,
não pelas características materiais que apresenta (muito pelo contrário, um chassi de
madeira e pano claramente não cumprem tal função), mas, sim, pela força concreta e
hegemônica que traz em si e representa. Acreditamos que os manifestantes percebe-
ram que os policiais, que pretendiam invadir o recinto, não poderiam atentar contra o
quadro sob pena de estarem atentando contra as premissas e diretrizes que dão origem
a sua própria corporação enquanto braço armado do Estado. Nesta ação colaborativa e
ressignificadora, a autoria torna-se funcional pois junto à Levino Fanzeres tomam parte
neste processo o anonimato dos manifestantes, o anonimato das forças do Estado, as
testemunhas, os fotógrafos, os jornalistas, os leitores deste texto. Todos elencados como
peças fundamentais na transformação da pintura em objeto de arte, de patrimônio, de
História, de política, de embate hegemônico. Da mesma forma, nos parece que, a deca-
pitação da estátua “O menino e o Delfim” (figura 2) traz à tona os ciclos construtivos
e destrutivos históricos da formação dos espaços públicos. A eleição e implementação
de monumentos sempre foi deliberada coincidindo com projetos e orientações ideológi-
cas hegemônicas de um determinado tempo. Em outras palavras, o trabalho dos irmãos
Gianordoli encontra seu tempo no início do século XX e seu espaço em uma capital
de Estado que, como muitas em todo Brasil, estava sendo reconfigurada arquitetoni-
camente sob os paradigmas de uma modernidade latino-americana. O que precisa ser
resgatado dos estratos mais profundos que formam este espaço público é a lembrança
e constante ratificação da presença anterior de outros grupos e comunidades que não
foram somente decapitados, mas, também, soterrados pela História que nos constitui. O
que percebemos é que estas práticas, estas estratégias colaborativas desvelam a intenção
de consensualidade presente na organização social. Ou seja, os casos aqui trabalhados
revelam a presença ontológica do dissenso em nossa sociedade e o esforço constante das
432 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Referências
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São Paulo: Forense Universitária, 2009.
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MOUFFE, Chantal. Prácticas artísticas y democracia agonística. Barcelona: Universitat Autòno-
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RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 433
Relações intermidiáticas no
processo de recriaçao de
“O cavalo de guerra”
The play War Horse, staged at the National Theatre, London, since 2009, was
inspired by a novel published in 2004 and written by the British author Michael
Morpurgo. The text was scripted for stage and the dossier of this intermedia
transposition is composed of a set of documents: on one hand, there are drafts
of dialogues and rubrics seeking their enactment; on the other, photos and
videos of sketches, models, workshops, rehearsals, interviews, diaries, among
others. The scenic representation had its limitations that needed to be overco-
me with the support of an intermedia network, including a variety of languages,
such as photography, video, drawing, painting, music, stage design and pu-
ppetry that dialogues with each other in that creative process.
Key words: War Horse, intermedia, process, drama, puppetry.
434 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
A meta deste artigo é abordar o processo de adaptação do romance War Horse, data-
do de 1982, do ator e escritor inglês Michael Morpurgo, que foi recriado para o palco em
2007. Focalizamos, sobretudo, como as fronteiras entre os diversos sistemas semióticos
se diluem na transposição teatral em questão quando estímulos intermidiáticos entram
em fusão, visando um efeito performático singular; os signos plásticos relacionados à
pintura, ao desenho, à fotografia e ao cinema serão especialmente contemplados na aná-
lise. O romance, ao sair das páginas do livro de Michael Morpurgo, migrou para o palco
do New London Theatre, sendo posteriormente, transposto para o cinema por Spielberg,
em 2011. Até hoje tem sido encenada a peça War Horse, não apenas em Londres, mas
também em outros continentes, chegando aos Estados Unidos e ao Canadá.
O palco onde se desenrola a história é Devon, região rural situada ao sul da Ingla-
terra, e o enredo se situa durante a segunda guerra mundial. A tensão dramática gira
em torno de uma história de amor entre um garoto com o seu cavalo Joey e o fato do
animal acabar se perdendo nos campos de batalha gera toda a trama. O paratexto inclui:
a brochura Staging War Horse (BSWH), ou “Encenando War Horse; esta contém fotos
de maquetes, de ensaios, de oficinas, de protótipos, de desenhos e de storyboards. Tam-
bém o programa da peça, New London Theatre Programme (NLTP), que inclui fotos
de tomadas de palco, closes de cenário, desenhos, galeria de atores e responsáveis pela
criação. A brochura do Making behind-the-scenes (BMWH) contém fotos de desenhos
e protótipos. Além disso, o livro Handspring Puppet Co. (HPC) conta toda a história da
Companhia de marionetes da África do Sul, pertencente a Basil Jones e Adrian Cohler,
responsáveis pela construção e performance das marionetes de War Horse no palco;
esse livro traz desenhos de marionetes sendo construídos e levados ao palco, além de
imagens de protótipos desses bonecos movidos por atores. Finalmente, a edição do livro
de Morpurgo utilizada como referência para este artigo (2007), o site oficial, que contém
registros importantes do processo de criação em análise e o trailer da peça.
O dossiê genético da peça War Horse é constituído por um making of de 48.15mn,
com entrevistas intercaladas por ricos registros genéticos, como filmagens de ensaios,
workshops, sequências de cenas no palco, takes de maquetes, manuscritos, quadros, es-
boços, desenhos, diários de trabalho. São ouvidos: o escritor de War Horse; o diretor do
National Theatre; dois co-diretores da peça; o escritor que adaptou o livro para o teatro;
os criadores das marionetes; o diretor responsável pelo aspecto cinético da encenação,
havendo sempre uma busca de dar uma ilusão de realidade através do movimento das
marionetes no palco; os atores; a desenhista, ilustradora e cenografista; o técnico de
iluminação; e o de som.
Também fazendo parte do conjunto do dossiê genético da montagem da peça, o
making of contém entrevistas extras, que ocupam 70.16mn do vídeo. Novamente, é dada
a palavra ao autor do romance, aos atores, bem como à artista plástica, que teve uma
função relevante dentro da concepção da peça e aos diretores.
Há ainda um arquivo de fotos digitais tiradas pela pesquisadora, que registrou a
Exposição Staging War Horse (Exibição/Exhibition Staging War Horse), categoria de
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 435
Por acaso, comprei um quadro na mão de um comerciante de antiguidades do povoado [...] foi
do quadro que veio a ideia de escrever a história, que ia começar no Foro do povoado, com um
quadro de um cavalo que estava pendurado lá [...] Mas o problema é que o quadro no meu livro
tem o nome Joey, pintado pelo Capitão Nichols em 1914, e é assim que a história começa[...]
Mas o problema é que o quadro que eu comprei não se chamava Joey, mas Topthorn. [...] co-
loquei o nome de Topthorn num amigo de Joey [...] e o herói da história passou a ser Joey.[...]
As pessoas aparecem no povoado [...] procurando pelo quadro de Joey pendurado no Foro do
povoado de Iddlesleigh. E a vizinha [...] diz:” Sinto muito, mas o quadro não está no Foro do
povoado mas em casa [...] e procuram pelo quadro de Joey e o que encontram é o de Topthorn
(MORPURGO, 2OO9) (Tradução nossa).
436 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
O que fica claro, neste segmento, é que a verdade artística tem uma natureza parti-
cular e quando traduzida para uma obra de arte, percebemos que não há um comprome-
timento entre a escritura e os signos do mundo. De modo que o criador é dono de seu
próprio universo ficcional e senhor das leis que ali irão reinar. Também fica claro como
a imagem geradora de uma obra pode pertencer a qualquer sistema semiótico, a qualquer
linguagem, pois, o gatilho da história War Horse pertence a um sistema não verbal, um
ícone capaz de gerar todo o tipo de criações e recriações.
Mas como fazer com que o protagonista que, no romance, contava sua história, o
cavalo Joey, pudesse falar no palco? Como haveria de uma marionete, representando
Joey, emocionar a plateia e tornar-se um signo convincente em um palco tão próximo à
audiência? O que ficou claro, no making of, é que, de acordo com o adaptador Nick Sta-
fford, seria necessário adicionar detalhes e outros personagens para contar uma história
que, no livro, entrariam pela voz do cavalo. Logo, a focalização da história teria de pas-
sar por ajustes, sendo expressa através de outros olhares e mídias (GENETTE, 1972).
Sobretudo, outra mídia veio em nosso auxílio, o desenho, pois a artista plástica Rae
Smith “entra na pele” do Capitão Nichols que, no romance, gostava de desenhar o que
acontecia à sua volta e acrescentar seus próprios storyboards. Agora é Rae Smith quem
desenha e, como em um palimpsesto, vemos a mão do Capitão Nichols, sob a dela. Des-
se modo, através de uma linguagem não verbal, mas forte e carregada de emoção, a au-
diência é capaz de compartilhar sentimentos, conflitos, tensões e sofrimentos do próprio
Joey. Além de desenhar o cenário da história, Devon, ou Joey cavalgando, Rae Smith
faz inúmeros storyboards detalhando todos os personagens, como a seguinte amostra de
Joey em várias posições:
Rae Smith inspira-se também em quadros de outros artistas que admira, como Nash,
para trazer ao palco o tom dramático desejado, muitas vezes através dos cenários, que
vão sendo projetados, especialmente em volta de todo o palco. Os movimentos artísticos
da época são invocados por Rae para expressar o clima da peça, cheio de emoção. Nas
entrevistas do making of sabe-se que:
Durante todo o periodo da Primeira Guerra Mundial, […] investiu-se bastante em
tecnologia […]. Houve também um movimento artístico, como o dos futuristas que
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 437
Tabela 1
Tabela 2
438 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Então Rae teve essa ideia da projeção. No céu tem como se fosse um papel rasgado que é a tela
para as projeções durante todo o espetáculo. Fora disso, tem o piso, o espaço cênico fica no
escuro e se define por meio da luz. Rae e eu conversamos muito sobre como poderíamos usar
pinturas e luz para mostrar onde estávamos e para onde se deslocavam as pessoas rapidamente
de um lugar a outro. Em War Horse, queremos mostrar para a plateia dois lugares distintos.
[...] onde a peça começa é Devon. Ali temos uma comunidade rural. [...] temos ângulos altos
de luz, a luz do sol morno e belo, o tipo de cena das pinturas da época, que faz você pensar em
longos dias de verão [...]. Mas o que acontece em seguida é que vemos Devon [...] no inferno
da Primeira Guerra Mundial (CONSTABLE, 2009). (Tradução nossa) .
Figura 5: Tomada de focos de luz, rasgão onde são projetados vídeos e fotos, making of
Referências
ANNAND, S.; JONES, B. Staging War Horse. National Theatre, 2012.
BICKERSTAFF, D.; GRABSKY, P.; COFFEY, T.; SABEL, S., 2009). Brochura Making War Hor-
se (acompanha o DVD). London: National Theatre Seventh Art Productions, 2009.
GENETTE, G. Figures III. Paris: Seuil, 1972.
GRÉSILLON, A. Elementos de crítica genética. Ler os manuscritos modernos. Porto Alegre: Edi-
tora da UFRGS, 2007.
KRUT, D. Handspring Puppet Company. South Africa: David Krut Publishing, 2009.
MORPURGO, M. War Horse. Illustrated by François Place. London: Kaye and Ward, [1982],
2004.
440 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
DVD
BICKERSTAFF, D.; GRABSKY, P.; COFFEY, T.; SABEL, S. Making War Horse.
Main feature running time: 48.15. DVD extras running time: 70:16. London: National Theatre
Seventh Art Productions, 2009.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 441
Sonia Monego
UNOCHAPECÓ – [email protected]
Márcia Moreno
UNOCHAPECÓ – [email protected]
Through this article we will show the results of urban interventions reali-
sed in Chapecó City, Santa Catarina by teachers and students of the Visual
Arts degree course of Unochapecó having as the subject : Urban Intervention:
provocation, reflection or transformation? This article fits under the theme “Art in
the streets and street art as experiences of multiple authors”, in view of the use of
language as a form of artistic dialogue and reflection between the public and the
works. The goal of the project was to Instigate / provoke the reaction/reflection of
the public on political, economic and social subjects using the urban interferen-
ce language of Chapecó city , thus enabling greater social inclusion of Visual Arts
in everyday subjects which circulates almost daily by spaces in the city reference.
Keywords: Contemporary art, artistic interference, public art.
442 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Tirar obras de instituições culturais, dos circuitos de instituições estabelecidos, dos padrões
convencionais de classificação, e leva-las a um diálogo mais amplo. Não tomar as obras iso-
ladamente, mas como intervenção num espaço mais complexo [...] os trabalhos específicos
do lugar levam para fora do atelier tradicional, substituído pela indústria, mídia e urbanismo,
explicita a relação entre arte e cidade: trata-se de despertar a experiência do mundo de que
toda arte é expressão.
Com a arte urbana podemos envolver os indivíduos, o fluxo urbano coletivo, o trân-
sito, a arquitetura, a paisagem, o clima, a cultura e os demais fenômenos ocorrentes
nesse espaço público onde ocorre a intervenção.
Intervir é interagir, causar reações diretas ou indiretas, em síntese, é tornar uma obra
inter-relacional com o seu meio, por mais complexo que seja, considerando o seu con-
texto histórico, sociopolítico e cultural.
Para Quintella in Cirrilo (2011, p 471) “[...] mais do que apenas uma relação obra/
suporte com os espaços públicos, a obra de arte estaria na essência da criação da própria
esfera de vida pública. A arte quando inserida no espaço público, tende a ser decodifica-
da como um bem pertencente a todos”.
Podemos aqui fazer referência às obras de arte que são realizadas para permanece-
rem nos espaços públicos, realizadas geralmente pelo poder público e as obras efêmeras,
que na maioria das vezes são realizadas por ações individuais ou coletivas, como o caso
das interferências urbanas, que apresentam temas emergentes, tratando de questões lo-
cais, pontuais, momentâneas com força e potência para despertar o interesse das pessoas.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 443
Para Quintella (in Cirillo, 2011, p.470) “[...] os artistas que trabalham com obras
efêmeras acreditam na sua potencia transformadora, apostam no impacto da visualidade
das ruas, na radioatividade desses gestos simbólicos por mais imateriais que sejam”.
Muitos artistas contemporâneos têm usado diferentes formas de manifestações artís-
ticas, sendo o espaço urbano muito ocupado, pois esta é uma forma mais direta de dialo-
gar com o público. O Vinculo entre a arte e o público tendo a cidade como intermediá-
ria, provoca a reflexão, realiza obras de acordo com o discurso da arte contemporânea.
Partindo destes pressupostos apontaremos as Interferências Urbanas realizadas pe-
los professores e alunos do curso de Artes Visuais da Unochapecó (Universidade Comu-
nitária da Região de Chapecó) na cidade de Chapecó, Oeste de Santa Catarina, Brasil.
Estas Interferências Urbanas aparecem como uma alternativa aos circuitos ofi-
ciais, capaz de proporcionar o acesso direto e de promover um corpo-a-corpo da obra
de arte com o público, independente de mercados consumidores ou de complexas e
burocratizantes instituições culturais.
Para Brissac (2011, p.26),
Nas cidades os olhos não veem coisas, mas figuras de coisas que significam outras coisas. Íco-
nes, estátuas, tudo é símbolo. Aqui tudo é linguagem, tudo se presta de imediato a descrição ao
mapeamento. Como é realmente a cidade carregada deste invólucro de símbolos, o que contem
e o que esconde, parece impossível saber.
[...] isso significa que não se pode provocar apenas sua face cognitiva, conscientizando-o de
todas as nuances presentes na obra ou em sua relação com ela; mas acima de tudo, é pre-
ciso promover um contato que deixe canais abertos para sensações, sentidos e sentimentos
444 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
despertados, para a imaginação e a percepção, pois a linguagem da arte também fala por sua
própria língua e é por ela mesmo que se lê. (MARTINS, 2012, p.25).
primeiro encontro seja vivido, no silêncio dos códigos da própria linguagem. Respeitar
este tempo é respeitar a obra, a arte”.
Ao acordar a cidade ficou em alvoroço, ao se depararem com as cenas dos carros ba-
tidos, as pessoas comentavam, questionavam, teria morrido alguém? O que aconteceu?
Por meio da imprensa, que noticiou as interferências realizadas, pudemos constatar que
a população ficou abalada com os supostos acidentes. Ao serem entrevistadas as pessoas
se diziam perplexas; um senhor comentou: “Parece que houve um acidente aqui, e gra-
ve, olha as marcas dos corpos pelo chão [...]”.
Bononi (aput Furtado) diz:
A arte pública não enfeita a cidade nem a transforma num museu ao ar livre. Ela pressupõe
muito mais que isso. Ela se impõe o dever de resgatar a formação do olhar da população e ao
mesmo tempo o de se adequar ao entorno por sua inserção social no urbano (In Cirillo at all,
2011, p.329).
Outra intervenção que comentaremos aqui foi Chicken Parade, realizada em 2012.
Esse projeto teve como referência a Cow Parade que teve seu início no ano de 1998, na
cidade de Zurique, Suíça. O projeto que apresenta como objetivo a propagação e demo-
cratização da cultura, envolveu vários países, cidades e artistas.
A proposta do projeto Chicken Parade – Intervenções Urbanas, na cidade de Chape-
có, teve como objetivo explorar a agroindústria da cidade, tendo em vista que a mesma
se destaca internacionalmente por exportar produtos alimentícios industrializados de
natureza animal.
Neste contexto, a galinha passa a ser o foco nesta intervenção. Nove “galinhas”,
feitas de fibra de vidro, medindo 1,5 m de altura por 2 m de largura, serviram de suporte
para os artistas. Cada artista desenvolveu um projeto, para ser pintado nas galinhas,
tendo como tema a história e memória de Chapecó. A ênfase recaiu sobre a indústria,
colonização e o progresso do município.
Este projeto, que foge dos padrões convencionais, ao expor fora do “cubo branco”,
visa também deselitizar a arte, tornando-a acessíveis a todos. As “Chicken”, que ficaram
expostas 50 dias no calçadão, se transformaram num ponto turístico.
O espectador ao manter contato visual com a intervenção, conectava a relação da
forma (galinha) com a história local, atingindo assim, um dos objetivos do projeto que
era promover essa aproximação com a história/memória local, bem como a inserção/
imersão da Arte num espaço onde as pessoas, querendo ou não visualizavam as grandes
formas de galinhas, detendo assim os seus olhares mais atentos à um espaço urbano
corriqueiro.
Segundo Zaidler (in Cirillo at all,2011, p.132),
Diante o exposto, podemos afirmar que todas as ações realizadas pelo grupo de
professores e alunos no espaço urbano de Chapecó provocaram diferentes olhares para
situações locais, fazendo com que muitas pessoas revissem seus conceitos, uma vez que
instigou a pensar e refletir sobre determinados fatos. A arte Urbana proporcionou as pes-
soas um olhar diferenciado para a cidade, instigando o olhar para situações do cotidiano,
possibilitando outras perspectivas e pontos de vista diferentes.
Referências
CIRILLO, José e et al (orgs). II Seminário Internacional sobre Arte Público en Latinoamérica. Arte
Público Y Espacios Políticos: interacciones y fracturas en las ciudades lationamericas. vol.
I e II: 2011, Vitória, ES.
MAKOWIECKY, Sandra e OLIVEIRA, Sandra R. (orgs.). Ensaios em Torno da Arte. Chapecó:
Argos, 2008.
MARTINS, Mirian Celeste; PICOSQUE, Gisa. Mediação cultural para professores andarilhos na
cultura. 2 ed.São Paulo: Intermeios, 2012.
PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens Urbanas. 3.ed. rev. E ampl.-São Paulo: Editora Senac São
Paulo, 2004.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 447
This essay presents a reflection and some considerations about the sket-
chbooks as an object that contributes to the structuring of visual thinking.
Keywords: sketchbooks, contemporary art, support, drawing, archive, project.
448 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
A pesquisa sobre cadernos de desenho revela-se como uma tarefa árdua por determi-
nar uma complexa rede de relações entre suportes históricos e a necessidade de se esta-
belecer parâmetros que delimitem em si o objeto de estudo na verificação de seus usos e
formatos ao longo de diversos períodos. As raízes dos cadernos de desenho estão ligadas
ao hábito de registrar e arquivar e por consequência conceitual e também material sua
história está ligada a escrita e ao livro.
A ideia geral associada hoje ao caderno de desenho é a de que se trata de um suporte
amovível utilizado de modo sistemático por diversos artistas e que possui um formato
muito próximo ao do livro (encadernação, lombada, folhas costuradas, etc.) sendo ba-
sicamente contentores de projetos para futuras obras, suporte para a memória e para a
guarda de ideias, aforismos, notas etc., enfim, é visto como uma espécie de arquivo para
desenhos e estudos.
Em suas origens é bastante provável que fossem agrupamentos de anotações visuais/
gráficas organizadas, mas não configuradas no formato de encadernações fixas de folhas
costuradas ou coladas. Essa estrutura é bastante recente, por volta do Século XV, quan-
do os livros também adquiriram definitivamente o papel como suporte, afastando-se
do padrão de rolos e desdobráveis e do uso de pergaminho e/ou outros materiais como
elementos constituintes.
Para entender os contextos históricos, primeiramente, é importante pensar no cader-
no como um objeto que pode estabelecer dois tipos de estrutura de análise que refletem
primeiramente sua complexidade funcional e em segundo lugar sua complexidade es-
trutural (ALMOZARA, 2013 apud SANTOS, 2012, p. 69). Por complexidade funcional
podemos entender as qualidades de uso inerentes ao objeto e que no caso do caderno
de desenho são estabelecidas pela sua função como substrato organizacional de infor-
mações visuais, anotações de projetos, enfim, como um arquivo de possibilidades que
se traduzem de modo tradicional pela escrita e pelo desenho. A complexidade estrutural
por sua vez revela as tendências materiais que propiciam ou favorecem o uso e são,
nesse caso, estabelecidas pela matéria com o qual é feito, pelo formato, tamanho, cores
etc. Tanto função, como estrutura são elementos que se completam e se modificam de
acordo com as necessidades poéticas dos artistas. E assim, de certo modo, o “objeto tra-
duz em sua materialidade a intenção do ato preexistente que lhe deu origem, e sua forma
é produto de uma performance imaginada até mesmo antes de sua própria configuração
física”. (DOHMANN, 2010. p. 71).
Levando-se em conta apenas a ideia de suporte mnemônico e ampliando assim as
possibilidades de se observar essa questão ao longo de diversos momentos da História,
o que encontramos - como aproximação ao caderno de desenho - são formatos bastante
inusuais para nossa pré-concebida ideia sobre esse meio.
Tolnay em sua obra fundamental sobre a história do desenho dos antigos mestres,
publicado originalmente em 1943, afirma, por exemplo, que as “ostracas” (Figura 1),
pedaços de pedra calcária (limestone) ou cerâmica eram assim utilizados por artistas e
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 449
escribas do antigo Egito como suportes de desenho e escrita em substituição aos caros
papiros.
O nome “óstraca” vem do termo grego “ostrakon” (όστρακον), “concha” devido a
aparência de tal suporte. Em geral essas peças, encontradas em tumbas reais, corres-
pondiam a grupos de peças de estudos preliminares para pinturas parietais e em outros
grupos de peças, como citados por CRUM (1902), estavam relacionadas a fragmentos
que continham listas relativas às questões de administração. O que nos interessa obser-
var nesses exemplos é que em ambos os casos, mesmo com perdas ocorridas em séculos,
tais desenhos e escritos chegaram até nós em função de terem sido sistematicamente
guardados como registro e arquivos documentais.
Figura 1. Desenho egípcio, “Óstraca”, Ramses IV em sua carruagem (detalhe). Desenho li-
near em preto sobre pedra calcária, tamanho original 32 cm x 41,5 cm. Museu do Cairo. Fonte:
TOLNAY, 1943. p. 161. A reprodução original do livro encontra-se em preto e branco.
Isto possui um grande significado e uma mudança, visto que anteriormente os “exempla”
funcionavam como uma fonte imprescindível de “motivos” para a realização de uma obra. A
partir da percepção da natureza e da noção de expressão individual o desenho assume uma co-
notação de que é da natureza e de sua observação que deve partir a manifestação e a realização
da obra. (TOLNAY, 1943. p.4)
Artistas plásticos, arquitetos, músicos, designers, cineastas, entre outros criadores, cada qual
a seu modo, utilizam-se das suas possibilidades imaginativas para por em prática uma forma
pensada e desejada. E, quase sempre constroem seu universo criativo a partir de anotações ou
apontamentos em seus cadernos. Podemos considerar, nesse sentido, que, como “princípio
criativo,” o traço, o esboço ou croquis são desencadeadores em potenciais processos imagina-
tivos e descritivos, ou seja, a imagem proporciona o caráter mágico para a compreensão das
mensagens. (OKAMOTO, 2009. p.01)
funcional para que seja percebido como “território dialógico” a partir do qual, enfim, os
espaços de produção também são vistos como espaços expositivos e vice-versa.
Considerando essas questões, podemos citar o trabalho do artista mexicano Sebas-
tián Romo, por utilizar seus cadernos de desenhos e de projetos como locais de manobra
entre esses dois territórios, conciliando estruturas expositivas, arquivos, imagens etc. e
deixando o processo totalmente à mostra.
Toda a produção desse artista insere certos objetos e técnicas, que são deliberada-
mente conectados entre si como potentes elementos culturais na formação de redes de
significados que se apresentam na criação de camadas de ideias e conceitos.
Romo em sua participação no componente “Cadernos de Viagem” da 8a Bienal do
Mercosul em 2011, utiliza seu caderno de viagem como arquivo e ateliê portátil para
posteriormente amplificar sua relação com esse suporte para o espaço expositivo, no
qual cria um ambiente que é uma extensão de seus cadernos de viagem (Figura 3).
Nessas breves considerações podemos antever que o caderno pode ser um meio
representativo e significante da ideia de arquivo, que estrutura a “apresentação sinóptica
de diferenças” cujo objetivo é dar a entender os nexos de coisas aparentemente distintas
colocadas lado a lado e que estão baseadas “não no que é similar, mas na conexão secre-
ta entre as diferentes imagens” (DIDI-HUBERMAN, 2010).
Referências
ALMOZARA, P.C.S. “Caderno/território”. IN: CIRILLO, José, Org.; GRANADO, Ângela, Org.
O sabor da sua saliva é sonoro: reflexões sobre o processo de criação. São Paulo: Intermeios,
2013. pp. 74-80.
BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CRUM, W. E. Coptic Ostraca, from the collection of the Egypt Exploration Fund, the Cairo Mu-
seum and Others. London, 1902.
DIDI-HUBERMAN, Georges. “ATLAS ¿Cómo llevar el mundo a cuestas?”, vídeo com entrevis-
ta de Georges Didi-Huberman (curador da exposição). Museu Reina Sophia, Madrid. Vídeo
3’44”. 2010. Disponível em: http://youtu.be/WwVMni3b2Zo. Acessado em: 20/09/2013.
Dohmann, Marcus. O objeto e a experiência material. ARTE & ENSAIOS. Revista do Programa
de Pós-Graduação em Artes Visuais, EBA/UFRJ, no 20, Julho/2010. p. 70-77.
OKAMOTO, Ayao. Os cadernos de apontamentos: percurso e fabulação do desenho através do
universo das sensações. Tese de Doutorado. Área de Conhecimento: Poéticas Visuais. Orien-
tador: Evandro Carlos Frasca Poyares Jardim. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes
- ECA/USP, 2009.
SLIVE, Seymour. Drawings of Rembrandt. New York, Dover, 1986.
TOLNAY, Charles de. History and technique of old master drawings. New York: H. Bittner and
Company, 1943.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 453
Aspectos poéticos,
históricos e culturais
relacionados ao livro de artista
The article proposes some issues relating to the artist’s book regarding the
configuration as a poetic support, the material constitution and the aesthetic
possibilities in order to give an overview of production that area in an historical-
cultural perspective.
Keywords: visual arts; book-object; artist’s book
454 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
A importância do livro como suporte para a arte contemporânea está ligada as dife-
rentes formas de “leituras” - em sentido metafórico - criadas a partir da desconstrução
ou renovação do objeto livro (SILVEIRA, 2001).
No Brasil os primeiros artistas a se dedicarem a uma quebra dos padrões literários
que culminaram em “livros-objetos” ou “livros-obra” foram os poetas Concretistas e
Neoconcretos que no final dos anos cinqüenta e sessenta do século XX integraram a poé-
tica visual em suas experiências formais de modo a romper com as estruturas padrões da
língua (TERSARIOLLI, 2008).
Como potente elemento cultural passível de engendrar complexas situações visuais
e semânticas, o livro foi assim vislumbrado por artistas e movimentos do século XX,
como uma maneira de explorar a circulação da obra, transformando-a em auto-conten-
tor expositivo que permitisse seu transito por diversos meios e espaços de modo a criar
elementos que transgredissem os padrões de mercado, como afirma Panek:
[...] o interesse dos artistas em sair do espaço institucionalizado, leva-os a pensar no espaço
para “além do cubo branco”, ou seja, para um ponto que ultrapassa as paredes tradicionais
dos museus e galerias dedicados à arte moderna, um lugar que pode ser buscado no espaço
público ou no espaço das publicações eventuais ou periódicas. Talvez por isso, nos anos ses-
senta, o livro tenha sido escolhido como forma de romper barreiras e ultrapassar as fronteiras
da modernidade, sendo usado como suporte da arte e dando origem ao livro de artista. O livro
de artista vem substituir as paredes dos museus, dos salões e das galerias e, por ser uma mídia
móvel, passa a ter uma função mais abrangente no que se refere à apresentação pública. (PA-
NEK, 2005 p. 01)
O livro de artista cria nesse sentido relações sígnicas que são reconhecidos no objeto
“livro”, mas que “libertam” ou amplificam as interpretações sobre o próprio objeto,
criando um campo visual experimental (SILVEIRA, 2001), no qual artistas realizam
suas experiências determinadas por um contexto de “pós-produção” (BOURRIAUD,
2009), evidenciando a possibilidade de provocar tensões e distensões sobre as camadas
de significados introjetadas por esse potente objeto historicizado.
Para se ter uma visão mais ampla do livro de artista torna-se necessário enfatizar o
contexto histórico-social do livro, mostrando que seu desenvolvimento como potente
objeto cultural auxilia-nos na compreensão do interesse e da forma como os artistas se
apropriaram do livro para a construção poética visual.
O livro como estrutura formal constituído por “cadernos” que compõe o corpo da
encadernação - conhecido nos primórdios como codex (ou códice) e depois pelos ma-
nuscritos e incunábulos - é uma criação tardia na Europa que veio a substituir os vo-
lumem, rolos de pergaminhos e/ou papiros, usados fortemente até a o século IV d. C.
(MCMURTRIE, 1997).
Com a invenção e aprimoramento das prensas e tipos de impressão o livro se difunde
pelo mundo, voltando-se para todos os tipos de público, de modo a ganhar diversidade
de tamanhos, cores, texturas, etc.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 455
Verdadeiros cultos se formaram em torno do livro. O livro desperta o interesse de todas as ca-
madas sociais, é alheio à cor, raça ou credo. Na sua história, o livro foi o instrumento utilizado
para contestar, declarar amores, sofrimentos, descobertas, etc. Dessa forma, ao analisar a his-
tória e o desenvolvimento da escrita e do conhecimento da humanidade, é possível afirmar que
o livro é o suporte natural da literatura, ou seja, é o portador de todo o nosso conhecimento,
guarda o registro de nosso comportamento e nossos afetos, é o portador das leis e responsável
pela divulgação da fé na mensagem divina (SILVEIRA, 2001, p. 246).
O problema de saber exatamente como “surge” o livro de artista está vinculado tam-
bém a dificuldade de se classificar as obras em si, inclusive no que se refere ao próprio
livro como suporte. Observamos, nesse sentido, que diversas nomenclaturas foram (e
ainda são) usadas para se tratar ou fazer referência ao livro como suporte artístico, como
por exemplo: livro de arte, livro-obra, livro de artista, livro-objeto, livro-poema etc (SIL-
VEIRA, 2001). Isso acontece por uma enorme variação nos formatos e tipos de livros
realizados, que podem ser desde os livros impressos e de formatação padrão até peças
perecíveis feitas de matéria orgânica - como o “Livro de Carne” de Artur Barrio (Figura
1) - o que caracteriza o livro de artista, segundo SILVEIRA (2001) como “categoria”
extremamente mutável.
Assim, a ideia de livro de artista é vista de modo geral como uma construção plástica
que apresenta indícios ou referências ao objeto “livro” - seja pela referência ao formato,
a página, a leitura etc. - mas que trabalha com conceitos que podem perverter, ampliar,
subverter, desconstruir os próprios referenciais utilizados.
Cada artista ou cada livro trabalha com uma linguagem própria, cada um utiliza uma
metodologia diferente de construção do objeto/obra e para entender sua existência como
objeto, em muitos casos é preciso observar o percurso do artista.
Portanto, o livro de artista em si não depende apenas do seu formato acabado ou da
sua aparência final para que possa ser apreendido, mas está dependente de uma rede de
referências culturais que dá sentido a obra (SILVERA, 2001).
Como exemplo das redes e camadas de leituras simbólicas, culturais e até mesmo
sociais, propostas pelos livros de artistas podemos observar como sendo um trabalho
emblemático o “Livro de Carne” de 1978-79 de Artur Barrio (Figuras 1 e 2).
Considerando o contexto social da época de realização dessa obra - em plena di-
tadura militar no Brasil na década de 70 do século XX - a comparação que reside no
poder da palavra e da leitura como o poder de dilacerar e mudar a matéria, oferece uma
potente via de interpretação ligada a metáfora presente na leitura/corte, palavra/carne e
que por sua vez está vinculada ao gesto/sensação da manipulação do livro determinada
por duas ações: a de “leitura” (virar a página) e o movimento da faca de um açougueiro
(que corta a carne crua).
456 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Figura 1: Artur Barrio. Livro de carne, 1979. Figura 2: Artur Barrio, Transcrição: “LIVRO
Dimensões variáveis. Fonte: http://arturbar- DE CARNE A leitura deste livro é feita a par-
rio-trabalhos.blogspot.com/2011/04/livro-de- tir do corte/ação da faca do açougueiro na
carne-1978-1979.html carne com o conseqüente seccionamento
das fibras; fissuras, etc., etc., assim como
as diferentes tonalidades e colorações. Para
terminar é necessário não esquecer das tem-
peraturas, do contato sensorial (dos dedos),
dos problemas sociais etc. e etc. .............
Boa leitura ........A. A. Barrio 3.79”. Dimen-
sões variáveis. Fonte: http://arturbarrio-tra-
balhos.blogspot.com/2011/04/livro-de-car-
ne-1978-1979.html
A relação que certos artistas estabelecem não apenas com a forma, mas com o con-
teúdo apropriado das edições é outro elemento importante nas considerações sobre o
livro de artista. Maria do Carmo Freitas Veneroso (2012. p.84) afirma que:
[...] os livros de artista utilizam frequentemente a fusão entre mídias que pode ocor-
rer nas relações intermidiáticas, quando, por exemplo, palavras e imagem dialogam,
sendo que o elemento visual funde-se conceitual e visualmente com as palavras. (VE-
NEROSO, 2012. p.84)
Exemplificando essa questão, o artista inglês Jonathan Callan embora trabalhe com
a anulação de qualquer possibilidade de se ter acesso ao conteúdo total das edições que
invariavelmente são usadas na construção de suas esculturas, integra a sua obra a poten-
cia textual presente nos livros que utiliza. Ou seja, ele se vale da ideia de negar ao livro
seu “direito” de ser um contentor de informações e histórias para usá-lo como elemento
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 457
construtivo de peças tridimensionais sem afastar totalmente sua origem editorial, obje-
tual e cultural que remete a um determinado autor e/ou título etc.
Em seus trabalhos é possível observar que a apropriação que o artista faz de certas
edições específicas acaba por conferir novo sentido às suas obras. Assim, a palavra, de-
terminada pelo título ou pela indicação de quais volumes foram usados irá implicar na
relação intermidiática de fusão entre conceito/forma e palavra/sentido.
Segundo Antaya (2011) a obra de Callan é muito mais inspirada por escritores, poe-
tas e filósofos do que propriamente por artistas visuais. Em Seven Volumes (Figura 3) de
2009, o artista apresenta um conjunto de sete seções transversais circulares feitas a partir
de um único volume da obra literária “Em Busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust.
Todo o texto foi enrolado e cortado de modo a fazer uma referência às sete partes que
formam a obra do escritor.
Conhecido pelo seu tamanho, essa obra de Proust contém mais de um milhão de palavras e
é uma das mais extensas obras da literatura. Os círculos de Callan aparentemente infinitos e
comprimidos fazem ecoar a natureza épica do texto original, bem como faz referência à forma
como foi escrito: Proust manteve-se acrescentando escritos até a sua morte, o que reforça a
sensação de que o processo de sua geração era potencialmente sem fim, como é o perímetro de
um círculo. (ANTAYA, 2011. p.58 [tradução livre feito pelos autores])
Figura 3: Jonathan Callan. Seven Volumes, 2009. Escultura; material: papel; dimensão total
da obra original 48 x 35 x 21 cm. Fonte: ANTAYA, 2011. p. 59
458 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Referências
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Gestalten, 2011.
ARCHER, Michael. Arte Contemporânea, uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
MCMURTRIE, Douglas C. O livro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
PANEK, Bernardette. O livro de artista e o espaço da arte. In: ANAIS: III Fórum de pesquisa
científica em arte. Curitiba: Escola de Música e Belas Artes do Paraná, 2005.
SILVEIRA, Paulo. A pagina violada, da ternura a injuria na construção do livro do livro de artis-
ta. Porto Alegre: UFRGS, 2001.
TERSARIOLLI, Ariovaldo. O livro como objeto da arte. Monografia apresentada ao Programa
de Pós- graduação em História da Arte. Faculdade de Pós-Graduação em História da Arte –
FAAP. São Paulo, 2008.
VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. Palavras e imagens em livros de artista. Pós: Belo
Horizonte, v.2, n.3, p.82-103. Maio/2012.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 459
Tomaz de Aquino
UFF – [email protected]
Para aquele que veste a máscara, o que acontece? Ele se isola do mundo exterior: a noite que
se impõe permitirá em primeiro lugar que ele rejeite tudo o que o atrapalha e, em seguida, por
um esforço de concentração, atinja o vazio; a partir deste momento, ele poderá reviver e agir,
mas, dramaticamente desta vez.
O que surgia, durante o processo de treinamento do ator, como resultado desse exer-
cício pré-expressivo, era uma dança pessoal, que em diálogo com Burnier (2001, p.141)
podemos compreendê-la como sendo uma dança que é oriunda do
[...] treinamento pessoal. Ele tenta dissolver um sentido mais “mecânico”, de “exercício”, que
pode estar embutido na palavra treinamento, e introduzir uma dimensão mais fluídica, orgâni-
ca, viva através da palavra dança. Já o termo pessoal tenta evocar o sentido de não preestabe-
lecido, não predeterminado, portanto, algo do indivíduo, criado por ele, algo a ser encontrado.
O que é performance? Uma peça teatral, dançarinos dançando? Um concerto musical? O que
você vê na TV? Circo ou carnaval? Uma entrevista coletiva com o presidente da República?
As imagens do papa do modo como ele é retratado pela mídia [...]. performance não é mais um
termo fácil de definir: seu conceito e estrutura se expandiram por toda a parte. Performance é
étnica e intercultural, histórica e atemporal, estética e ritual, sociológica e política. Performan-
ce é um modo de comportamento, um tipo de abordagem à experiência humana; performance
é exercício lúdico, esporte, estética, entretenimento popular, teatro experimental e muito mais.
(SCHECHNER; MCNAMARA, 1982 apud LIGIÉRO, 2012, p. 10).
1. Cohen (2006, p. 17) nos diz que “Literalmente poderíamos traduzir por “trabalho em proces-
so”, procedimento este que tem por matriz a noção de processo, feitura, iteratividade, retro-ali-
mentação, distinguindo-se de outros procedimentos que partem de apreensões apriorísticas,
de variáveis fechadas ou de sistemas não-interativos.”
2. A cidade de Fortaleza é divida por Regionais Administrativas, totalizando 7. Resolvemos
apresentar a performance em 7 espaços: 6 Praças e o Aterro “comercial” da Praia de Iracema
(que não foi possível devido a intervenção da Guarda Municipal, pois iria desestabilizar o fluxo
da região destinada ao comércio e ao turismo etc.).
3. Link da performance (registro editado): http://www.youtube.com/watch?v=dEePRPLG4bw.
Os textos de cada integrante, sobre a história do poste que virou árvore, podem ser encontra-
do no blog: http://umnaolugarnatural.blogspot.com.br.
4. A Teoria da Deriva, de Guy Debord (2009), foi compreendida por nós com um procedimen-
to de estudo psicogeográfico, ou ainda, uma técnica de passagem por ambientes urbanos
variados, esquecendo as preocupações e relações naturais (afetivas, de trabalho, lazer), se
propondo a vivenciar a cidade de modo que impulsione uma percepção-concepção do espaço
urbano enquanto território desconhecido, para ser decifrado e reconhecido de outros pontos
de vista, através da experiência direta, permitindo-se aos encontros que surgem, a recepção
do espaço e o que ele lhe proporciona.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 463
Após esse momento de chegada, os artistas se conectavam entre si por meio de fios
imaginários e, depois, conectavam-se com o público e contavam – cada um para uma
pessoa diferente, presente no ato – a sua versão de como um poste virou árvore. Depois,
faziam um exercício de conexão interna e externa (consigo e com o outro performer
e depois com o transeunte ou espectador) o qual chamei de encontros e despedidas.
Depois desse momento, um ator nasce, em um poste, envolvido num casulo – tecido
acrobático –, como num desabrochar da pétala de uma flor. Os atores que contemplavam
esse momento vão ao público e, com um gesto, convidam-nos para a contemplação e um
abraço coletivo no poste. Aos poucos, os atores vão saindo, um por um, deixando apenas
o público na contemplação daquele poste e retornam ao cotidiano daquele ambiente.
que surgir, vai depender da relação que se estabelece entre cada dupla. No espaço do
entre, no “interstício social”5. (BORRIAUD, 2009, p. 19).
Podemos relacionar o interstício como o lugar do encontro, o espaço de trocas hu-
manas para além do sistema vigente que foge as zonas de comunicação. Nesse hiato
entre duas pessoas, podemos detectar o início de alguma relação que provavelmente
desencadeia um processo emotivo. Mas o que seriam essas trocas e esses olhares? Esses
encontros e despedidas?
O jogo propõe uma reflexão sobre o encontro (social) entre duas pessoas, tal qual
o realizamos cotidianamente: um encontro superficial e de natureza mercantil, sem o
olhar verdadeiro, sem o tempo da respiração entre os dois corpos que se encontram; ou
ainda, reflete que, para haver o encontro, não necessariamente deverá haver um propó-
sito inicial, predeterminado, objetivo e sem porosidade. Queremos propor com o jogo a
seguinte reflexão sobre o encontro: as pessoas não poderiam simplesmente estar abertas
e porosas na relação com o outro?
Comecei a compreender nossas atividades como “(uma arte que toma como horizonte
teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de
um espaço simbólico autônomo e privado)” (BORRIAUD, 2009, p. 19), e mais tarde tive
a percepção que poderíamos estar de acordo com os parametros da arte relacional, que
[...] nasce da observação do presente e de uma reflexão sobre o destino da atividade artística.
Seu postulado básico – a esfera das relações humanas como lugar da obra de arte – não tem
precedentes na história da arte, [...]. O espaço em que se apresentam suas obras é o da inte-
ração (George Bataille diria: “dilacera”) todo e qualquer diálogo. O que elas produzem são
espaços-tempos relacionais, experiências inter-humanas que tentam se libertar das restrições
ideológicas da comunicação de massa; de certa maneira, são lugares onde se elaboram so-
cialidades alternativas. Modelos críticos, momento de convívio construído.” (BOURRIAUD
2009, p. 61-62).
Percebi com a leitura de Bourriaud (2009) que a arte relacional inspira-se em pro-
cessos maleáveis que regem a vida comum e a obra se completa com a participação
efetiva do público. Na performance A incrível história do poste que virou árvore essa
participação é aberta, não é necessária para que a obra aconteça, porém, é interessante
5. O termo interstício foi usado por Karl Marx para designar comunidades de troca que escapa-
vam ao quadro da economia capitalista, pois não obedeciam à lei do lucro: escambo, vendas
com prejuízo, produções autárquicas etc. O interstício é um espaço de relações humanas que,
mesmo inserido de maneira mais ou menos aberta e harmoniosa no sistema global, sugere
outras possibilidades de troca além das vigentes nesse sistema. (BOURRIAUD, 2009, p. 22).
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 465
Referências
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Fontes, 2009.
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CAMP, 2001.
COHEN, Reanato. Work in progess na cena contemporânea: criação, encenação e recepção. São
Paulo: Perspectiva, 2006.
DEBORD, Guy. Internationale Sintuationniste. Madrid, Literatura Gris, 1999.
LIGIÉRO, Zeca. Performance e Antropologia de Richard Schechner. Rio de Janeiro: Mauad, 2012.
SOUM, Corinne. Etienne Decroux e a mímica corporal dramática. Revista On-line de Mímica e
Teatro Físico. São Paulo, v. 1, n. 1, p. 4-30, fev. 2009. Disponível em: < http://www.mimus.
com.br/corinne2.pdf> Acesso em 28 out. 2010.
TAKENOUSHI, Atsushi. O que é jinen? Disponível em: < http://www.jinen-butoh.com/profile_e.
html>. Acesso em: Acesso em 20 jan. 2011.
6. Termo cunhado pelo crítico de arte francês em 1995, no catálogo da exposição Traffic, no
CAPC Contemporany Museum, em Bordeaux. No seu texto, Nicolas discute a variedade da
arte produzida por uma geração de artistas na Europa, no início dos anos 90, questionando
“quais são os verdadeiros interesses da arte contemporânea, suas relações com a sociedade,
a história, a cultura?” (BOURRIAUD, 2009, p. 9). O autor ainda problematiza outra questão:
“será ainda possível gerar relações no mundo, num campo prático [...] tradicionalmente desti-
nado à “representação” delas?” (BOURRIAUD, 2009, p.12).
466 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
The operations of cover-ups, cancellations and adhesions realize that for some
time in my work, hallmark operative terms of latency and activation, as well as
the notion of membrane whenever there are boundaries of spaces. Thinking in
these operations and expanding research poetic and theoretical, I bring as a
case study two series of photographs taken by photo-phone. The first Routes
in 2003 and 2007 held in Porto Alegre walks by, and the second series, Salida
Emergencia of 2011, records the journey undertaken in landscape between the
cities of Malaga and Rhonda, Spain.
Keywords: photography, membrane, surface, contemporaneity.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 467
Figs. 1.2.Vânia Sommermeyer. Série Percursos. Fotografias de caminhadas por Porto Ale-
gre (1) 2003 (2) 2007 [Ruas Osvaldo Aranha/Borges de Medeiros] .Acervo do artista.
“As ruas são a morada do coletivo”, diria (Benjamim, 2007, p. 958), com suas lojas
elegantes formando uma cidade, um mundo em miniatura, onde tudo era possível en-
contrar. “O novo ambiente de vidro transformará completamente o ser humano”, diria
(Benjamin, 2000, p. 267). Imaginamos que ainda continua, pois apesar de sua função
isolante e térmica, o vidro hoje atua como superfície transparente e límpida para mostrar
e, em contra partida na opacidade, esconder e apagar. Ainda encontramos vitrines ele-
gantes em meio a numerosas ilhas de alimentação rápida. Perdemos o glamour, apesar
do alvo ainda ser o coletivo; não mais em espaços abertos, mas em inúmeros corredores,
como se galerias fossem, monitorados por câmeras.
Nas vitrines de Atget vemos seu interior repleto de mercadorias para o consumo,
superpondo-se por paisagens que invadem a superfície reflexiva do vidro, não mais to-
talmente transparente. O exterior invade o pequeno nicho interno decorado, que serve de
pano de fundo para a mercadoria. Visíveis na superfície do vidro, pelo reflexo, também
encontramos frases soltas, que Benjamin explica que são placas de esmalte escurecido
como “reclames publicitários” presos as paredes opostas à vitrine. Das palavras que se
intrometem no vidro das vitrines captadas por Atget, fazemos analogia a série Salida de
Emergência, 2011 [figs. 5 e 6]. Série de fotografias realizadas por foto-fone, de dentro
de um ônibus em movimento, numa viagem no sul da Espanha. Acompanhando o ines-
perado, apesar da visão restrita da janela, passo a captar a paisagem externa pelo vidro
incluindo a frase de advertência, quase como um reclame ou anúncio que se projeta.
daquela frase entendíamos que algo acontecia entre o corpo, o ônibus e o celular portátil
na mão; este mediando e aferindo o exterior pelo vidro da janela. Assim, poderíamos
pensar que frase, à luz da leitura de Lacan, atuaria como sintoma ao expor uma mensa-
gem codificada sobre segredos mais íntimos, desejos ou traumas? Para quem se dirige a
frase? Ela indica uma ação para frente (interatividade) ou uma advertência para recuar
(interpassividade)? Neste sentido, e tentando responder às indagações acima, a fra-
se poderia funcionar como a lamela para Lacan; bem descrita por (Zizek,2006, p.78)
como uma “entidade de pura superfície, sem densidade de uma substância, um objeto
infinitamente plástico que pode mudar incessantemente de forma, até se transportar de
um meio para outro.” Ou ainda, ser uma espécie de órgão/máscara vestivel, preso às
superfícies e atuando como uma prótese excessiva e incoerente. O encaixe e desencaixe
da frase junto à paisagem, enquanto o ônibus segue, além de visível ao final, na imagem
fotográfica, se oculta como enigma atuando no “secreto e oculto, mas que veio à luz”,
inesperadamente, como diria Schelling (Freud,1976, p.281). Neste sentido, ao abordar a
questão do enigma, proponho observar uma obra, das mais estranhas, e por sua vez, das
mais observadas no mundo da arte: O Grande vidro (La Mariée mise à nu par ses céli-
bataires, Même), de Marcel Duchamp. Mesmo que Duchamp negue a obra retininiana,
o Grande Vidro se dá pelo olhar do espectador, onde a soma do que é obra e do que se vê
como obra, associada ao local e a forma de apresentação, atua sobre o trabalho e o traba-
lho sobre o espectador, alterando o que se via inicialmente. Uma parede que não é muro,
um espelho que não reflete uma imagem perfeita, mas mostra o que não está na obra: o
enigma em si mesmo, e o ambiente circundante. Assim, a transparência e a opacidade
estão juntas em um mesmo trabalho. O Grande Vidro pode ser lido como uma parede/
tela transparente - de vidro e de texto. A sua grandiosidade se da a ver pelo grau de in-
compreensão que igualmente silencia e esconde um corpo moderno feito máquina dese-
jante, a qual encobre os fenômenos da realidade e do mundo visível. A obra poderia ser
equivalente a um monumental objeto/parede - como um biombo, que serve para dividir
um ambiente. Esta especulação que faço, de aproximá-lo a um biombo, poderia remeter
ao aspecto extremamente íntimo de sua utilização, pois o biombo serve para resguardar
a intimidade de quem se veste. Todavia, este móvel pode suscitar em quem nada vê, e
assiste a esta operação, uma série de fantasias sempre relacionadas a este móvel, seu uso
e de quem está encoberto por ele. O biombo divide, sutilmente, um ambiente amplo em
dois: um mais recatado, afastado, para esconder algo que não se revela por completo e
outro de uso normal, aberto por onde se circula socialmente. Ao pensar na simplicida-
de que Duchamp impunha a sua vida (pois vivia em transito, praticamente sempre em
quartos alugados) é que esta relação com o biombo se intensifica. (Duarte, 2000.p.31)
define bem o que aventávamos: “(...) a imagem se oferece vestindo-se de proibição. De
ver. É proibido olhar. O trabalho esconde suas tramas, como se estivesse envergonha-
do do retiniano de sua imagem”. Assim, O Grande Vidro nos revela, aos poucos, sua
constituição, como que tentando nos dizer “decifre-me.” Isto nos leva ao conceito de es-
tranhamento que remete à “palavra alemã ‘unheimlich’: estranho, misterioso; sinistro;
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 471
Fig. 7 Joseph Sudek. The window of my stu- Fig. 8 Joseph Sudek. Last Roses, 1956
dio, 1948.
interior” é falsa: é um biombo, uma distância falsa, cuja função, por assim dizer é salvar
as aparências(...) a verdade está, antes de tudo , do lado de fora, naquilo que fazemos.”
Assim a fotografia vai revelando nossa superação de um real existente, onde o impos-
sível pode acontecer, como diria Lacan. E o arquivo, o Espaço da Latência, ao se abrir
propicie a ativação das operações de recuperar, transportar e editar os produtos de nossa
poética para os espaços de apresentação da arte.
Referências
BARTHES, Roland. O Óbvio e o obtuso.Coleção Signos/42. São Paulo: Martins Fontes,
1977
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte Editora UFMG, 2007
_______________ Obras Escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Editora Brasi-
liense, 2000.
BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Cia Das Letras, 2007
CAUQUELIN, Anne.Frequentar os Incorporais. Contribuição a uma Teoria da Arte
Contemporânea.São Paulo. Martins Fontes, 2008.
DELEUZE, Gilles. A Dobra. Leibniz e o Barroco. São Paulo: Papirus, 2007.
Diferença e repetição. São Paulo: Edições Graal. 2006. Conversações. São Paulo: Edi-
tora 34, 1992.
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UFMG, 2011
DUARTE, Claudia. Marcel Duchamp. Olhando o Grande Vidro como interface. Rio de
Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000
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Eudoro A. M. de Souza. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p.281.
FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. São Paulo: Editora Forense Universitária,
1999
GOMBRICH, E.H. O Sentido da Ordem: um estudo sobre a psicologia da arte deco-
rativa.Traduzido por Daniela Pinheiro Machado Kern. Porto Alegre: Bookman, 2012
ZIZEK, Slavoj. Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2010
___________Primeiro como tragédia, depois como farsa.São Paulo: Boitempo, 2011
Jornais:
”Deleuze escreve sobre Witmann”. Caderno Mais! : O pensador da dobra do milênio,
Folha de São Paulo domingo,2 de junho de 1996.p.8.
Filme:
“Em um mundo melhor”, (Hævnen), de Susanne Bier (Dinamarca, 2010)
474 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
De mi propuesta artística
La propuesta de este segmento es de presentar mi proceso de creación práctico-teóricos
en el transcurrir de mis propuestas artísticas.
Considero de gran importancia mencionar que mi formación de 4 años en el campo
del grabado direccionó mi andar y es que gracias a ella descubrí que la técnica se puede
convertir en conocimiento reflexivo, si se quiere llamar teoría, así como los procesos
sistemáticos artísticos con las experiencias o vivencias personales.
El Grabado es un medio de creación que registra y reproduce imágenes por medio
de diversas técnicas. Los conceptos vinculados a este arte giran en torno a ejercicios es-
pecíficos del quehacer de un grabador además de buscar un perfeccionamiento histórico
y técnico. En mis años de estudiante en la Facultad de Arte de la Pontificia Universidad
Católica del Perú los conceptos que me fueron presentados para estructurar la práctica
del grabado son: Matriz, Vehículo, Soporte y Edición, los cuales dirigen u orquestan a
los alumnos a producir obra gráfica y a su vez a reflexionar en torno a ella.
Básicamente, Matriz es toda superficie que contiene trazos y de la cual se obtiene
una copia, vehículo es aquel material que permite la reproducción de la matriz, soporte
es donde la matriz y el vehículo se imprimen y, finalmente la edición hace referencia a
la cantidad de ejemplares reproducidos de una matriz.
476 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Figura 1: Sin Título, 2006. 75 x 5 cm c/u. Impresión serigráfica con barniz transparente en
planchas de ferro y expuestas al medio ambiente. (Colección de la artista)
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 477
Ahora bien, el campo del arte está cada día más “acompañado” por la escena tec-
nológica y desde hace algún tiempo este interrelacionamiento fue cuestionado y actual-
mente lo sigue siendo, debido a temores en cuanto a la pérdida del aura de la obra de
arte. Pero el término técnica proviene del griego techné y significa arte, oficio, destreza
y es esa “interiorización lo que distingue al mero conocimiento informático y técnico,
de la sabiduría (KREBS, Víctor 1997).
En la obra Como un Autorretrato del año 2008 (Figura 2) rescato aquel conocimien-
to humano que se encuentra inmerso en su historia corporal, en sus dimensiones territo-
riales y sobre todo en sus rastros o vestigios de su pasado, de su presente y su eventual
futuro. Para ello escogí la elaboración de papel, cuya historia, técnica y utilidades dentro
y fuera del campo artístico han revelado su indiscutible lazo con la humanidad y su
capacidad de reinventarse.
Para complementar esta parte, doy como ejemplo mi obra “De Velo”, elaborada
para la exposición colectiva “El Vestido. No hay puntada sin hilo” en la que doce artis-
tas fuimos convocados para crear obras en torno a un objeto común, el vestido. Para
resumir el objetivo de la obra compartiré la frase: “las relaciones definen al objeto y no
al contrario” (BATICKOVA, Eva 2010). Esto quiere decir que todo objeto creado está
pensado en su futura correspondencia útil con el cuerpo y es aquella condición quien le
da sentido, por lo tanto la obra de arte puede desarrollar nuevas realidades a partir de
objetos habituales y estas últimas son conocimiento. (Figura 3)
Figura 2: Como si fuera un au- Figura 3: De velo, 2011. Transfer sobre láminas de pa-
torretrato, 2010. Papel hecho a rafina flotando en agua dentro de bandejas de acrílico.
mano, transfer (Colección de la
artista)
478 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Consideraciones finales
Quizá la relación entre materia, cuerpo y obra, sea para muchos, una realidad explorada
ya agotada, pero para mí representa una convivencia además de ineludible, altamente
intrigante y sugerente porque me permite determinar rutas metodológicas que escapan
de las barreras de la investigación tradicional.
Desde que el arte se liberó de su propio tecnicismo o academicismo, el campo de
acción de los artistas se amplió y con ello mucho terreno fue ganado para el repertorio
temático del arte, su papel en la sociedad y sus vínculos con todo tipo de investigación.
Puedo argumentar que el mundo perceptible y el mundo de lo espiritual articulados
en torno a la realidad corpórea de la obra de arte invitan a la reflexión.
Lo expuesto en este artículo es un ejemplo del pensamiento creativo, de las reflexio-
nes en torno al proceso de creación artística -que envuelve al proceso técnico, mental y
emocional- que permiten descubrir a los materiales y medios idóneos, así como también
la construcción de conocimiento y validar a la práctica artística como instancia investi-
gativa y productora de documentos.
Referências
BATICKOVA, Eva. A Época brasileira de Vilém Flusser. Annablume: São Paulo. 2010.
CANTON, Katia. Corpo, Identidade e Erotismo. WMF Marfins Fontes: São Paulo, 2009.
KREBS, Víctor. Del Alma y el Arte. Editorial Arte: Caracas. 1997
MARCHÁN, Simón. Del Arte Objetual al Arte de Concepto. Akal: Madrid. 1994.
SILVA, María Inés; VERA, Alejandro. Proyectos en Artes y Cultura. Universidad Católica de
Chile, 2010
VIVES, Rosa. Pensar el Grabado. Disponível em: <http://diposit.ub.edu/dspace/bits-
tream/2445/17987/1/Pensar%20el%20grabado.%20OMADO.pdf >Acessado em maio de
2012.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 479
Vinicius Gonzalez
PPGA/ UFES – [email protected]
Um breve percurso
Historicamente a cidade sempre foi sinônimo de refúgio, proteção, sobrevivência. Sím-
bolo máximo da libertação do homem diante da natureza. Trazia em suas idealizações
a promessa de continuidade da frágil raça humana, como acreditava os medievais, onde
os homens livres viviam dentro dos muros, enquanto os camponeses ficavam a própria
sorte. Ainda na pólis grega, a cidade propiciava aos homens livres a oportunidade de al-
cançar a imortalidade de pensamento e de ação e deste modo ascender acima da servidão
biológica (TUAN, 1980).
Desde as primeiras civilizações a tentativa de se construir uma cidade ideal habitou
o consciente dos seus habitantes. Forma em detrimento do simbólico. A cidade ideal de
Platão combinava o círculo com o quadrado. No Egito antigo, o planejamento ortogonal
baseado nos princípios cosmológicos figurou entre os complexos arquitetônicos dese-
nhados para servir os mortos. As cidades europeias dos primeiros séculos da era cristã
tinham como característica principal a forma circular, como a Cidade de Deus de Santo
Agostinho (TUAN, 1980). Entre 1150 e 1350 foram construídas inúmeras cidades forti-
ficadas. Mais do que a Idade Média, a Renascença e o Barroco foram períodos em que o
planejamento buscava a cidade ideal, apesar de poucas saírem do papel.
Para a grande maioria, hoje a cidade como ideal parece declinar diante das transfor-
mações a partir da revolução industrial e suas consequências ao meio ambiente físico.
Diante da crescente expansão populacional e a consequente expansão territorial, as ci-
dades crescem de maneira orgânica e muitas vezes descontrolada. O tão sonhado senti-
mento de garantias se desfaz na mesma velocidade que nos distanciamos uns dos outros,
afinal, a cada novo empreendimento imobiliário, a cada novo bairro regulamentado,
privilegia-se a cultura do isolamento como premissa para uma vida segura e “tranqui-
la”. Não seria exagero afirmarmos que cada casa, prédio ou condômino habitacional se
transformou em pequenos feudos medievais, onde o outro é a margem, e o coletivo se
restringe a sua cercania.
Em uma visão interna do problema que se transforma essas megacidades, como
aponta Brissac (2004), a mudança de escala com brutal verticalização, a criação de
grandes complexos dotados de infra-estrutura autônoma e a reconfiguração urbanística
de regiões inteiras são indicativos de uma nova etapa do processo de reestruturação
da espacialidade metropolitana. Em síntese, o território urbano se transforma em um
imenso complexo habitacional, principalmente com o surgimento das metrópoles após
a Segunda Guerra Mundial.
Mas as cidades não são apenas conglomerados de ferros fundidos e concretos ar-
mados. É preciso subverter o caminho apocalíptico apontado pelas estáticas e censos
sócios demográficos. Ficar preso a essa leitura restringiria nosso campo de atuação e
de nada contribuiria para o desenvolvimento do trabalho. Nossa questão aqui é outra.
Aqui, a cidade é muito mais do que um grande barril de pólvora prestes a ir pelos ares.
Ela é possibilidade de novas leituras estéticas. É ambiente carregado de significado
histórico e sentimental.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 481
Por mais que exista um diagnóstico padrão para o futuro dos complexos urbanos,
também é sabido que cada cidade possui particularidades e especificidades que fazem
suas engrenagens serem únicas, que nos possibilitam enxergá-las com olhos mais deli-
cados, ou como em nosso caso, possibilitam realizar uma leitura poética do que o campo
da arte entende sobre o conceito cidade. Nesse sentido a definição de cidade parte de
uma leitura histórica do seu processo de formação como busca de reconhecimento dos
caminhos trilhados até chegar ao ponto da busca pela apropriação de uma realidade
urbana que podemos chamar de nossa. Entendemos que seja fundamental partir de uma
leitura universal para, pelo menos, tentar dar conta do nosso micro cosmo.
Quando se fala em cidade, nós que pertencemos às civilizações urbanas, assumimos
sempre uma postura dupla e contraditória em relação a esta forma de vida associada
(CACCIARI, 2009). De um lado concebemos a cidade como lugar de trocas afetivas,
relações inteligentes e seguras, enfim, um lugar para se morar. Por outro lado, cada
vez mais consideramos e queremos que a cidade seja lugar de negócios, dinâmico, uma
máquina que permite a todos estabelecer sem impedimentos suas relações comerciais.
Estamos falando de reconhecimento, sentir-se parte. Condição fundamental no pro-
cesso de significação do lugar que habitamos. Afinal, habitar é ser-estar no mundo (HEI-
DEGGER, 1951). Com o devido cuidado e sem ter a intenção de aprofundar a discussão,
podemos afirmar que habitar não se trata de um estado de ter residência, morar em uma
construção, mas sim estabelecer um modo onde o homem ao desenvolver possibilidades
de uma relação ser-no-mundo constrói o mundo que o circunda. Resumindo a miúdos,
ao paço que (re)construímos nosso entorno, nossa realidade, entramos em constante
estágio de habitação daquilo que nos faz parte.
Mas por favor, não nos apeguemos à materialidade visível que o verbo construir nos
remete. Aqui, habitar se faz através de uma relação sensível com o mundo (fazer arte).
Habito porque transformo, reconfiguro. Vejo o que ninguém vê. Ou quando vejo o que to-
dos veem meu olhar é atraído por nuanças e detalhes que possivelmente passaram desper-
cebidos pela grande maioria. A cidade para mim é campo fértil de possibilidades infinitas.
O skyline urbano é como a paisagem impressionista explodindo em cores e movimento.
materiais e imateriais. Cidade que se torna nesse momento o grande suporte, meio de
construção e reconstrução de realidades e representações, ativando e (re)configurando
novas paisagens a cada olhar mais atento, por fim, produzindo outra realidade visual.
Em Lynch a paisagem é entendida como um conjunto de elementos dos quais consti-
tuem a fisionomia das cidades, do qual esperamos que nos dê prazer ao contemplá-la, ou
pelo menos que nos de condição de questiona-la, confronta-la. Maderuelo (1994) por sua
vez traz a cidade como fruto do trabalho coletivo, gerando um profundo significado sim-
bólico, ao ponto que podemos considerá-la como uma obra de arte porque representa as
aspirações, ideais, realizações e frustrações de seus habitantes ao longo de toda história.
Entende-se, portanto que a paisagem urbana torna-se um campo onde ocorre a mate-
rialização entre diferentes espaços e tempos, entre diversos suportes e tipos de imagem.
Nesse contexto, acreditamos que a arte pública se coloca como responsável por ativar
novas paisagens, como ocorre quando acontece eventos como o Salão Bienal do Mar.
Sem pretender um efeito comparativo eventos como o “Madri Abierto”, que acontece
anualmente na cidade de Madri, Espanha; e o “Arte Cidade”, que desde 1994 toma as
ruas de São Paulo, não pretendem afirmar a necessidade da arte estar fora dos museus
e galerias, muito pelo contrário, procuram enfatizar novas estratégias espaciais e críti-
cas sobre o uso do espaço urbano (público). Diante desse novo contexto urbano a arte
contemporânea apresenta, e representa, sobretudo, a complexidade do ambiente, suas
diferenças e, principalmente, a consequente capacidade de interpretação de cada um que
de fato ali habita, determinando múltiplas possibilidades de leitura.
Nessas condições os artistas contemporâneos através de suas intervenções/insta-
lações estabelecem mudanças no cenário, estimulam o debate comunitário, interagem
com a arquitetura do entorno e corrobora para um novo olhar sobre o lugar. Quando
observamos na arte contemporânea um campo ampliado de atuação, possibilitado pelo
encurtamento da relação discursiva entre o fazer e o pensar, passamos a enxergar as
práticas artísticas pautadas em espacialidades diversas.
Observemos. Em Dezembro de 2008, na cidade de Vitória/ES, inaugurou a 8ª edição
do Salão do Mar. Diferentemente das edições anteriores, dessa vez (2008) a missão era
de ser Bienal. Buscando sintonizar e recolocar o evento nas tendências mais contempo-
râneas do circuito, a proposta para essa edição era se lançar a cidade, rompendo com
as paredes, com as salas e galpões, ganhando os espaços públicos, expondo-se à obser-
vação ativa dos passantes e transeuntes. Doze projetos de caráter interventivo foram
selecionados para serem executados em uma área delimitada entre a região beira-mar e
o miolo central da ilha.
Dessa vez, renunciasse às definições estilísticas tradicionalmente pré-estabelecidas
nas fichas de inscrição. Ganhar a cidade se revela ambiente fértil que possibilitaria ex-
plorar desde a nítida relação do mar com a cidade como também avançar por sua pai-
sagem, observar sua arquitetura, entender seus fluxos e quem sabe respirar junto com
seus passantes. Assim, o Salão buscou que cada projeto tivesse a direta intenção de se
relacionar com a cidade e suas múltiplas possibilidades.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 483
“Caminho das Águas”, obra selecionada do artista plástico Piatan Lube, tinha como
proposta pintar uma linha azul de 30 centímetros de largura em um azul vivo sobre o
chão da cidade redesenhando seus antigos limites geográficos. Mar e terra. Ou como
aponta o artista, trata-se de uma intervenção artística que consiste em uma linha azul
que será traçada nas áreas limítrofes das antigas formas geográficas do arquipélago de
Vitória, sobrepondo-se à forma territorial contemporânea da cidade (LUBE, 2008).
Quando a obra se transforma em projeto, “Caminho...” é aprovado no Edital 2009 do
IPHAN para desvendar e revelar as memórias entranhadas de outra ilha-capital, Floria-
nópolis/SC. É na ilha que a obra encontra seu caminho (LUBE, 2012). Inúmeras cidades
ao longo do litoral brasileiro com certeza receberam modificações em seus traçados
originais em nome do progresso. O mar compõe nossa genética e as ilhas são como
extensões de nosso farto território. Habitá-las era questão de necessidade e logo cidades
seriam levantadas, moldadas, erguidas para o alto e para frente. Expandir era preciso.
Naturalmente suas margens foram sendo dilatadas e redesenhadas. Pontes e conexões
com o continente não seriam mais suficientes para dar conta do desenvolvimento urbano
estabelecido. Enfim, muitas “ilhas” foram de encontro à terra firme e preservaram ape-
nas o nome de sua formação geológica como lembrança do que um dia foram. Vitória/
ES e Florianópolis/SC resistiram e se tornaram capitais, o que não significa que passa-
ram sem cicatrizes por esse processo.
Assim “Caminho das Águas” ganhou as ruas. Invadiu calçadas, contornou postes,
sobiu em bancos, cruzou praças e avenidas. Desvendou ruelas. Revelou esquinas com
ares de província. Em três dias o que antes era monotonia, ganhou tons de novidade. “O
que essa faixa azul está fazendo aqui?” pergunta o transeunte desavisado. Para aqueles
em que o processo de ir e vir é uma rotina, a paisagem quase não muda. Ou se muda
pouco percebe. Anda, entra, sai, corre. Os dias vão e vem como se todos os sons, cores
e cheiros fossem os mesmos. Se deparar com um elemento que lhe rouba a rotina pode
ser inquietante. De onde vem? Para onde vai? Será vandalismo? No mínimo um tanto
curioso na mente de quem se atenta, nem que seja por pouco minutos.
Ao marcar o antigo limite entre mar e terra, a linha azul reativa e traz a discussão o
processo de mudança social, político e econômico que transformaram a paisagem, con-
tando histórias e revelando cicatrizes de ocupação, desvelando um mar de perspectivas.
A linha simbólica traçada no concreto sugere também um caminho a ser percorrido no
espaço urbano, desloca para o chão e o infinito o olhar do transeunte e o estimula a múl-
tiplas interpretações (LUBE, 2009). Assim como tantas outras obras que se apropriam
do contexto urbano, fala em memória, relações sociais, paisagem, pertencimento, pro-
cesso histórico. Busca a partir desse ponto e através da arte convidar a cidade a pensar
sobre ela mesma, ao mesmo tempo em que através da linha traz a arte à superfície e para
a realidade visual dos seus habitantes.
O que a linha azul de “Caminho das Águas” se propõe é ser parte dessa particula-
ridade, desse algo a mais que difere um lugar do outro. Por mais que o idealizador da
obra não consiga atingir as camadas mais profundas da história singular daquela cidade,
484 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
por mais que exercite a prospecção das variadas camadas existenciais que repousam sob
aquele solo, somente seus transeuntes podem através dela (a arte/obra) ativar as marcas
de constituição da identidade local; desde que se permitam interagir e atingir fundo as
águas submersas em concreto e asfalto. Mas trata-se de uma leitura poética dos fatos
históricos, afinal estamos falando de arte. Não se pode, e o artista tem real noção de suas
possibilidades, pretender dar conta na totalidade de tudo e de todos.
O que está em jogo, muito mais do que seguir as riscas as primeiras cartografias da
ilha, é a necessidade, acima de qualquer outra coisa, de interação com o lugar. Recon-
figurar a paisagem através da linha azul é o que podemos chamar de licença poética.
Pode-se admitir enfim que o pertencimento é uma tendência do projeto poético da obra
de arte inserida na cidade; e dele decorre a noção de coletividade. Pública, então, já
o é a arte na sua concepção uma vez que sua natureza (a da arte) é para o outro e seu
entorno (CIRILLO 2009). Nesse sentido o projeto artístico como um todo se equivalem
independente da relação do artista com a cidade. O foco é a obra e é ela que interage
diretamente com a paisagem urbana. É o elo de pertencimento que une o transeunte
a sua memória, e conseguinte a memória coletiva da cidade. Essa relação é capaz de
ativar/resgatar/buscar no espectador um conteúdo inconsciente facilitador para uma
aproximação afetiva entre ele, a obra, a cidade, seu entorno ou tudo mais que possa
remeter naquele momento de interação; independente de um senso estético de gosto ou
admiração (belo e feio bom e ruim).
Referências
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CIRILLO, Aparecido José. América: 500 anos de devastação e saque (de Washington Santana):
do anti-monumento à arte pública em Vitória, ES. Anais 18º Encontro da Associação Nacional
de Pesquisadores em Artes Plásticas Transversalidades nas Artes Visuais, Salvador, Bahia.
2009
HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. conferência pronunciada por ocasião da “Se-
gunda Reunião de Darmastad”, publicada em Vortäge und Aufsätze, G. Neske, Pfullingen,
1954. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback
LUBE, Piatan. Caminho das Águas, Memorial Descritivo. Acervo pessoal do artista, 2009
____________ Caminho das Águas, Monografia de Graduação. Acervo pessoal do artista, 2012.
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Tradução Jefferson Luiz Camargo. 3ª ed. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2011.
MADERUELO, Javier. Arte público: naturaleza y ciudad. Madrid: Fundacion César Manrique.
1994
PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens Urbanas. 3 ed. São Paulo: Senac, 2004.
TUAN, Yi-fu. Topofilia: Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Edição
brasileira Difel, Tradução Livia de Oliveira. São Paulo/Rio de Janeiro, 1980.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 485
Este artigo intenciona realizar uma aproximação sobre os aspectos que for-
mam o conceito de escuridão no processo criador que usa como estratégia
a dança, e por tanto, estabelecer uma conexão entre algumas configurações
espaciais que participam na construção do conceito de escuridão, com os
seus significados pessimistas, e os espaços da dança e do corpo, submergi-
dos nestes mesmos campos simbólicos. Através das distintas obras artísticas
que são expostas neste artigo, se realiza uma abordagem aos significados
que se entrelaçam com o conceito da escuridão na ciação artística, estabele-
cendo algumas diretrizes que configurem o conceito na medida em que: este
se usa no processo criativo, formando assim, uma conexão entre o corpo, o
movimento e a escuridão.
Palavras chave: Dança, Corpo, Escuridão, Espaço, Arte contemporânea.
This article intends to make an approximation on the aspects that form the
concept of the dark in the creative process that uses dance as strategy, and
thus, establish a connection between some spatial configurations involved in
the construction of darkness, with their meanings pessimists, and the spaces
of dance and body submerged in these same symbolic fields. Through diffe-
rent artistic works that are presented in this article, it performs an approach to
the meanings that intertwine with the concept of darkness in artistic creation,
establishing some guidelines that characterize the concept as it is used in this
creative process, thus forming a connection between the body, movement and
darkness.
Keywords: Dance, Body, Dark, Space, Contemporary art.
486 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Introdução
Para poder estabelecer uma aproximação sobre o conceito de dança e de escuridão como
estratégia no processo de criação do contemporâneo, iniciamos, em primeiro lugar, com
uma abordagem sobre a linguagem da dança para conhecer seu nexo com o corpo. Dan-
ça que, além de ser uma atividade motora que exprime idéias, emoções e sentimentos,
se imbrica ontologicamente com o movimento, conformando assim como isomorfa em
relação ao mesmo.
Após a análise sobre a dança, o corpo e seu nexo com o conceito da escuridão como
âmbito que contem o próprio processo criativo, se estabelece uma relação entre as obras
de artistas que configuram novos espaços para a dança, dando um papel relevante ao
fenômeno da escuridão e a sua interpretação pessimista. Tal noção é formada através dos
aspetos sociais e históricos da nossa cultura, com reminiscências claras ligadas ao curso
da evolução, fornecendo um discurso negativo representado através das fobias ancestrais.
Ao concluirmos se apresentará outro possível entendimento sobre o conceito de es-
paço escuro, de escuridão que configuram simbolicamente o processo criativo do movi-
mento e da dança como um processo catártico (Páez, D. y Blanco, A., 2006) que situa
o corpo no espaço alienado dirigido pelas manifestações dominantes desta conjunção.
Nas palavras de Ana Martín Cañas (Arpal y Mendiola, 2007), o elemento principal
da dança é o corpo; um corpo que nos últimos anos tem sido usado como espaço de
reflexão, como um discurso encarnado que substitui alegações:
Um corpo convertido em um espaço desde onde resistir, um espaço onde alterar as inscrições
discursivas e normalizando o poder que está inscrito, mostrando imagens escondidas, silencia-
das, desconfortável, ou criando outras novas (...). É ao mesmo tempo arma, discurso, suporte,
dispositivo, espaço.
do espaço como uma tela, com a capacidade de absorção dos personagens, más é, um
espaço com conotações pessimistas pela presença da cor negra.
As obras dinâmicas apresentadas neste artigo usam a dança como veículo ritualísti-
co, o corpo e o espaço atuam como contraste para dar forma e compreender a escuridão.
Uma escuridão que precisa ser identificada com respeito ao corpo, e um corpo que usa o
movimento para realizar uma adaptação eficiente como o meio.
Conclusões
O través do movimento, o corpo tem sido gradualmente exposto a espaços construídos
pela escuridão, seja no caso do corpo do espectador como o corpo do artista das obras
apresentadas neste artigo. O interesse principal corresponde-se com a simbologia que os
espaços escuros representavam a través do movimento do corpo nesse mesmo ambiente,
compreendido como pessimista, pelas diversas conotações que têm sido assinaladas no
transcurso da história.
Entender o conceito de escuridão, que configura simbolicamente o processo criativo
do movimento do corpo, de maneira distinta, pode ser entendido a través da dança, como
processo catártico que situa ao corpo no espaço, dirigido pelos impulsos dominantes da
mesma que emergem no ato do desempenho dançante. Considerando “o corpo como
sistema aberto e dinâmico de intercambio, que produz constantemente, modos de sub-
missão e controle, assim como de resistência e devires” (Derrida, 1987), podemos dizer
que: o mesmo além de ser o suporte e motor da forma, é origem de todo um sistema de
significação centrado na imagem dinâmica.
Referências
ADELL CREIXEL, A. “Aproximaciones del arte del terror”. Lápiz. Arte y Horror, nº 258, Di-
ciembre, 2009.
ARPAL, J. e MENDIOLA, I. Estudios sobre cuerpo, tecnologías y cultura. Bilbao: Servicio Edi-
torial Argitalpen Zerbitzua, 2007.
DERRIDA, J. Psyché: Inventions de l’autre. París: Galilée, 1987.
LE BOULCH, J. Vers une science du movement humanin. Introduction à la psychochinétique.
París: Lés Éditions ESF, 1971.
LEPECKI, A. Agotar la danza: performance y política del movimiento. Centro coreográfico Galle-
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NOVALIS. Himnos a la noche. Barcelona: Editorial Icaria, 1985.
WIGMAN, M. El lenguaje de la danza. Barcelona: Ediciones del Aguazul, 2002.
490 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Yiftah Peled
DAV/UFES – [email protected]
The artistic project Super Performance was exhibited in 2012, at the indepen-
dent art space Atelier 397, in Sao Paulo. The artists Yuri Firmeza, Daniela
Mattos, Orlando Maneschy and Vitor César were invited to create multiples
for performance to be freely distributed. As a result of a dialogical process
between the curator, Daniela Mattos and Vitor César, a specific display was
created. The display was projected to alter the form of access to the art work
and to make possible for the visitor to receive a gift through the action of other
visitors in the exhibition, promoting participation and performance of the public.
Keywords: visual arts, performance, curatorship, participation
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 491
Introdução
Quais são as alternativas para o consumo da arte? Como a distribuição de múltiplos
artísticos pode ganhar uma diferenciada complexidade? A visitação pode ser expandida
para um contexto de participação performativa num contexto expositivo? Essas foram
as principais perguntas que nortearam uma discussão entre os artistas participantes do
projeto “Super Performance”1.
A partir de um projeto apoiado por um edital da Funarte, em 2012, os artistas Yuri Fir-
meza, Daniela Mattos, Orlando Maneschy e Vitor César foram convidados pelo curador
e artista Yiftah Peld para criar múltiplos de performance destinados à distribuição no es-
paço expositivo. Foi solicitado aos artistas criar um número suficiente de múltiplos para
distribuição (mas sem restrição curatorial quanto ao seu número, formato ou material).
Durante seis meses de conversas entre os participantes do projeto foram construídas,
conjuntamente, estratégias de distribuição dos múltiplos. Nessas conversas não houve
engajamento de todos os artistas convidados.
1. Esse texto é uma elaboração mais extensa de texto publicado pelo autor, Peled
(2011), no catálogo da Funarte.
492 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
mundo” (MATTOS, 2012, declaração da artista). O ato da leitura é visto por Mattos
como uma forma de participação e como uma ação performativa2.
O múltiplo do artista Yuri Firmeza foi uma mensagem gravada com sua voz expan-
dida através do sistema Bluetooth entre os celulares dos presentes na mostra. O sistema
identifica pessoas presentes num raio de transmissão e permite que eles sejam conec-
tados dividindo informações. A mensagem do artista era composta do seguinte texto:
Essa distância é o que você faz em mim pensamento e nossas confissões em nada deveriam
interessar. Sim, sei de tua presença indelével, dos intervalos, dos prelúdios e das fugas. E por
não ser de todo volátil é que desconfio. Não atravessaremos imunes.
2. John L. Austin (1911-1960) no seu livro “How to do things with words”, de 1962, cunhou o
termo “performativo” para destacar um sentido de ação/afirmação de certas situações da fala.
Essa prática de posturas afirmativas permite repensar a forma de uso de documentos, publi-
cações, depoimentos, discursos, palestras, cursos, aulas e conversas como obras de arte.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 493
Consumo
O jogo de palavras do titulo do evento Super Performance aponta uma relação com o
consumo, partindo do suposto que São Paulo é uma cidade que tem um circuito artístico
comercial fortalecido, porém limitado a uma parcela muito pequena da população. Sob
essa perspectiva, o projeto apoiado financeiramente por um órgão público de incentivo
à cultura reverte diretamente para os visitantes que podem se tornar colecionadores e
realizadores de performances. Trata-se de uma ação política inclusiva, disponibilizando
obras sem a comum cobrança adicional sobre o produto final da cultura, uma vez que se
considera que o papel de um recurso público (no caso o apoio da Funarte) não é diluir-se
no sistema econômico com a produção de arte, mas permanecer num estado de tensão
produtiva. O incentivo financeiro é visto como um fator determinante para promover o
surgimento de alternativas e diferenciações de padrões culturais vigentes, nesse caso
relacionados às dinâmicas nas quais o papel mercadológico (principalmente privado)
tem força moldante sobre a estrutura do acesso à cultura. Assim, a questão do consumo
no projeto se baseou em uma proposta denominada de “Arte em Prol da Transparência
Curatorial (APTC)” que disponibilizou um cronograma de execução do projeto e de
valores destinados aos participantes a partir de uma prática de divisão eqüitativa de
recursos entre os artistas e o curador/organizador alem disso os artistas receberam a
quantia integral do recurso já na fase inicial do projeto.
Visitação/Consumo
A questão do consumo norteou o processo dialógico entre os participantes através do
qual se pretendia diluir categorias fixas dos papeis de artistas, montadores e curadores
ou organizadores numa proposta de montagem conjuntamente elaborada. Para iniciar
esse processo, foram colocados em pauta para discussão alguns contextos históricos que
abordam formas de distribuição de obras de arte.
Como referência central foi discutida a “Exposição não Exposição”, do artista Nel-
son Leirner, realizada na Galeria Rex, em São Paulo, em 1967. A exposição ofereceu ao
público a oportunidade de levar gratuitamente obras de Leirner para casa. Através de um
convite para a exposição publicado em um jornal local, o artista lançou uma proposição
onde se podia ler: “Pare...Olhe...Entre...Pegue...”. Entretanto, na abertura da mostra o
acesso às obras de arte não foi simplificado pelo artista porque a fronteira que separava o
público dos objetos foi intencionalmente dificultada através de uma série de obstáculos3.
3. Obstáculos como obras acorrentadas, blocos de cimentos e até uma piscina. Relato com-
pleto sobre a exposição encontra-se em Lopes (2006).
494 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Oferecimentos
Nas obras produzidas pelos artistas do projeto encontra-se uma postura de distribui-
ção manifesta como performance e como possibilidade de oferecimento dos próprios
participantes.
O trabalho de Yuri Firmeza dependia da ação de distribuição. O artista ganhou um
representante performático (Pedro Esquerra, funcionário do Atelier 397) que iniciou a
emissão do texto via celular, desempenhando um papel performativo na abertura do even-
to, Esquerra colou uma fita em sua camisa onde se lia: “Yuri Firmeza. Bluetooth. Aqui”.
O texto de Firmeza foi transmitido ao público criando um processo de expansão
do texto através do oferecimento. A propagação da mensagem gravada dependia da
continuação da ação distribuidora entre os participantes. O ato do oferecimento de tal
mensagem se destacou como possibilidade performática enquanto pessoas no espaço
dispararam os textos.
Para Orlando Maneschy, sua obra:
abarca tanto a performance do(s) artistas(s), quanto a do público (recriado também enquanto
artistas), que somam-se ao conceito da instalação. Pela inscrição do público, fica claro que o
ambiente/cenário é instalação enquanto espaço performativo: uma apropriação dos estados do
mundo atual4.
Dispositivo curadoria/artistas
Como resultado do processo dialógico promovido entre a curadoria e os artistas Daniela
Mattos e Vitor César, surgiu um atravessamento curatorial/ artístico que consistia no
uso de um dispositivo de distribuição para oferecimento performático dos múltiplos. O
dispositivo consistia de três prateleiras com dobradiças fixadas nas paredes das quais os
visitantes puderam retirar os múltiplos dos dois artistas.
O dispositivo foi projetado para alterar a forma de acesso às obras proporcionado
que os visitantes fossem presenteados por outros visitantes da mostra.
Cada prateleira tinha um fecho e um sistema de cabos (com uma roldana instalada
no teto) que permitia puxar/levantar sua superfície para uma posição horizontal provo-
cando a abertura do mecanismo que travava o acesso ao múltiplo5
Figura 1-3. Oferecimento dos múltiplos de Daniela Mattos. Abertra da Exposição Super perfor-
mance. Atelier 397, São Paulo, jun 2012.
Por outro lado, o ato do consumo proporcionado através do oferecimento dos múl-
tiplos na exposição Super Performance estimulava os visitantes a adotar práticas soli-
dárias e cooperativas, contrastantes com os comportamentos que surgiram na mostra
de Leirner. A ação que fundamentou a “Exposição não Exposição” foi o esvaziamento
6. Antonio Manuel, na obra “Eis o saldo”, de 1968, usou panos pretos e um sistema de cordas
com roldanas através das quais os visitantes poderiam revelar o conteúdo da obra - no caso
imagens de manifestos contra a ditadura brasileira. Desta forma ao levantar os obstáculos/
panos, participantes proporcionavam a vista da imagem para si e para outros presentes.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 497
Referências
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LOPES, F. A Experiência Rex. São Paulo: Editora Alameda, 2009.
MCLUHAN, M. FIORE, Q. AGEL, J. The Medium is the Massage: An Inventory of Effects. New
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PELED, Y. Super Performance: Múltiplo e Gratuito. Rio de Janeiro: Rede Nacional Funarte Artes
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_____. DTEEP Dinâmicas e Trocas Entre Estados de Peformance. In: Anais do 19º Encontro
Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas/ANPAP (Recurso ele-
trônico). Universidade do Estado da Bahia. 21-25 set 2010. Cachoeira, Bahia, 2010.
498 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
Andrea A. D. Valentina
UFES – PMV
The EMPAREDE Art Gallery and the Film Society LIMA Barreto enable any
viewer - passant, enjoy free art, not street, but the street. The feature of this
gallery is to work 24 hours a day. Here, artists and film buffs have a Cineclube
and can watch movies sitting on old theater chairs Gloria. We analyze the
actions of this Gallery and Film Club, showing how contemporary art capixaba
can articulate such proposals.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 499
Realizando exposições desde Maio de 2012, teve suas duas primeiras mostras da
obra da própria artista – Yvana Belchior. Em suas seguintes edições, recebeu a Expo-
sição “ZOO” do artista plástico Orlando da Rosa Faria, representante artístico da mais
pura Arte capixaba. Após esta exposição, registros de Intervalos e posterior exposição
“CHEIRO DE BRASIL” da artista Maruzza Valdetaro e mais Intervalos, atualmente,
temos a exposição FELICIDADES do artista Júlio SCHMIDT. Registramos um número
significativo de visitas a Galeria de Arte, em ambas as mostras, afinal, o desejo maior
da cidade é que a rua seja das pessoas. O desafio é a real apropriação; é entender e agir
com a consciência de que a rua é de todos nós (Saturnino,2012) e nos empenhamos neste
sentido de apropriação do objeto artístico localizado na rua.
encontro com o artista, construindo olhares mais críticos. Para Rogério Ribeiro diretor de
um CEMEI, “Democratizar e ampliar o acesso à arte é o que vem em mente no primeiro
momento quando vemos os trabalhos tão disponíveis aos olhos”. A Galeria também visa
favorecer a circulação e o mercado da arte, valorizando a produção artística e seu consu-
mo saudável e culturalmente acessível. Ansiamos por uma verdadeira sinfonia, este ter-
mo é usado por Amaral quando escreve sobre a sinfonia de São Paulo: a cidade é humana
como vitrine que expõe sua multiplicidade cultural (Amaral, 1994). A Galeria oportuniza
este aprendizado. Seu nome acontece como desejo de exposição da arte: sobre as paredes,
na rua, sob olhares, circulando. EMPAREDE. Seu nome surge como referência à rua, o
externo, o contato, a vida diversificada, o mundo. Arte para ser vista, experimentada.
Considerações
É assunto comum entre artistas plásticos discutir sobre seu acervo pessoal, sua pro-
dução. Mas afinal, uma produção para tê-las amontoadas? Em alguns momentos, é
possível que parte deste acervo se reverta em presentes para os mais próximos, no
entanto, a repetição deste ato não é o que anseia um artista. A EMPAREDE surge
assim, tornando a produção artística exposta a contemplação, a crítica, ao desgaste, à
fadiga pelas intempéries, ao desejo de apresentar-se ao outro, mostrar-se, provocar e
ser provocada. E percebemos que essa fadiga era compartilhada com outros artistas:
502 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013
sem local, apoio, possibilidades de apresentar suas produções. Alguns deles cogita-
vam nem mais produzir suas obras. Não temos dúvidas da contribuição que a Galeria
insere na produção artística contemporânea, a receptividade por parte dos artistas é
significativa, além da presença das escolas nos prestigiando. Nossa maior dificuldade
é a falta de patrocínio. Ansiamos verbas do poder público ou de particulares, afinal, a
manutenção da Galeria passa por tinta, limpeza, conta de luz e principalmente na troca
de exposição, adequando-a para a seguinte. Seguindo nosso trajeto, mesmo diante das
dificuldades ou incertezas, acreditamos que a arte contemporânea que aqui propomos
ocupa um lugar significativo entre os capixabas, estimulando o diálogo e a presença
na galeria, mesmo que esta passagem se dê pelo encontro do acaso, que, para nós se
torna realidade, e que aqui partilhamos com você.
Referências
AMARAL, Aracy. Modernidade e modernismo no Brasil. SP: Mercado das Letras. 1994.
ARDENE, Paul. A cidade “corpopoética”. Vale: Vila Velha, 2012.
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil BRASIL?. São Paulo: Cortez, 2011.
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