Poeticas Da Criacao UFES 2013 PDF

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Poéticas da Criação – Vitória, E.S.

2013 1

Artistas ,
autoria e as

práticas
colaborativas
José Cirillo • Fernanda García Gil • Ângela Grando (ORG.)
2 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

José Cirillo • Fern


Âng
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 1

Artistas ,
autoria e as

práticas
colaborativas
José Cirillo • Fernanda García Gil • Ângela Grando (org.)

Vitória, E.S.
2013
2 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Editora Intermeios Conselho Editorial


Rua Luís Murat, 40 – Vila Madalena Alexandre Emerik; Almerinda Lopes;
São Paulo, SP – Brasil Aissa Guimarães; Ângela Grando
CEP 05436-050 Bezerra; Aparecido José Cirillo; Cecília
Fone: 2338-8851 Almeida Salles; Cesar Floriano dos
Santos; Diana Ribas; Gisele Ribeiro;
Editoração e projeto gráfico Isabel Sabino; Nuno Sacramento; João
Thaís André Imbroisi Queiroz; Luís Jorge Gonçalves; Marta
Strambi; Mauricius Farina; Luiz Sérigo
Obra da Capa Oliveira, José Luiz Kinceler, Pilar M.
Detalhe de documento de processo de Soto Solier;Teresa Fernanda García
Piatan Lube para a obra Caminho das Gil; Maria de Fátima Morethy Couto;
Águas (2009-2013) Ricardo Maurício Gonzaga; Silvia
Anastácio Guerra; Waldir Barreto.
Organizadores
José Cirillo, Fernanda García Gil Editor
e Ângela Grando José Cirillo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP

C578 Cirillo, José, Org.; Gil, Fernanda García, Org.; Grando, Ângela, Org.
Artistas, autoria e as práticas colaborativas. / Poéticas da Criação, E.S. 2013.
Organização de José Cirillo, Fernanda García Gil e Ângela Grando. – São Paulo:
Intermeios, 2013.
504 p.; il.; 15 x 21 cm

Seminário Íbero-Americano sobre o Processo de Criação 4 a 7 de dezembro de 2013, Vitória


- Espírito Santo

ISBN: 978-85-64586-68-0

1. Crítica Textual. 2. Arte. 3. Crítica Genética. 4. Criação Artística.


5. Criação Literária. 6. Criatividade. 6. Processo de Produção. 7. Produção Literária. 8. Proces-
so de Criação. I. Título. II. Poéticas da criação. III. o artista como autor e as práticas colabo-
rativas na arte contemporânea. IV. Seminário Íbero-Americano sobre o Processo de Criação.
V. Cirillo, José, Organi­zador. VI. Grando, Ângela, Organizadora. VII. Gil, Fernanda García.
VIII. Intermeios - Casa de Livros e Artes.

CDD 801.959
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 3

Sumário
12 Folhear: algumas considerações a respeito do livro de artista
Adriana Dias

17 A aplicação da Xilogravura e da arte colaborativa, na busca do


desenvolvimento estético e interação social em alunos deficientes
visuais
Adriano de Almeida Ferraiuoli

23 A receptividade da panela de barro capixaba


Aissa A. Guimarães e Geyza Dalmásio Muniz

29 Da legibilidade à perplexidade: convergência de fluxos nos espaços


discursivos das galerias
Alexandre Emerick Neves

35 Arquivos de direção: O processo de escrita em Átridas – O Homem


Morto na Banheira
Alexandre Toledo

45 Nova Arte Pública de Gênero:práticas de arte e feminismos da


América Latina
Aline Paula de Oliveira Leite

50 As redes de criação na performance de Wagner Rossi Campos


Ana Cecília Araújo Soares de Souza

57 Hélio Oiticica e a transfiguração do Autor como Propositor


André Arçari e Ângela Grando

64 Liberdade Vigiada: um estudo sobre o processo criativo em dança


contemporânea à luz da literatura distópica
André Duarte Paes
4 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

71 Estratégias colaborativas de trabalho em Santiago Sierra


Ângela Grando

78 Dispositivos artísticos interativos: uma experiência multidisciplinar


com arte e engenharia
Angela Raffin Pohlmann e Reginaldo da Nóbrega Tavares

85 O livro-objeto na poética de Hilal Sami Hilal: a construção de um


espaço/tempo
Aparecida Ramaldes e José Cirilo

91 Contextos e imagens: estruturação de uma poética performática


Carla Borba

98 Colocar uma pedra nesse assunto


Carlos Eduardo D. Borges

104 Satisfeitos com seus desempenhos: arte, ficção e interesses pessoais


no mercado de artes Paulista
Carlos Guilherme Hunninghausen

116 Site-specificity e autoria em temporal de Stephan Doitschinoff


Carolina Cuquetto

121 O Evanescente Caminho: o tecer colaborativo de dramaturgia e


encenação por várias mãos
Cecília Maria de Araújo Ferreira e Cecília Raiffer

127 Alfarrábio como território poético


Christiane Cavalvante Frauzino

132 Função e fruição – novas interfaces do monumento


público contemporâneo
Ciliani Celante e José Cirillo

141 Pixação, apropriação e transgressão: reflexões sobre uma prática


artístico-fotográfica
Cíntia Corona e Gisele Ribeiro
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 5

147 No interior da casa: interpenetração de morada e trabalho como


práxis da produção autorrepresentacional
Cláudia França

155 A demarcação de territórios de criação entre compositor e intérprete


Cristiano Sousa dos Santos

161 Um autor-diretor e um lugar: a questão da autoria no documentário


Daniela Zanetti

168 Tipografias urbanas: enamoramentos e conflitos entre a pixação


paulista e as instituições paradigmáticas do universo da arte
Deborah Lopes Pennachin

174 Cadernos de artista – uma particular tradução do real


Dinah de Oliveira

180 Notas de uma pesquisa em poéticas visuais: o diário-invólucro, o


diário-mensageiro, o diário- interligante
Eduardo Araújo de Ávila

186 Estampas digitais: relato de um processo artístico para a moda


Elaine Spagnol

192 Ninhos e o arquivo agora


Elaine Tedesco e Lurdi Blauth

199 Estéticas da co-autoria: Mashup, sampleamento e remixagem no


vídeo brasileiro contemporâneo
Erly Vieira Jr.

204 Autoria: marca registrada?


Fabíola Tasca

210 Revistas de invenção como redes colaborativas no brasil dos anos 70


Felipe Martins Paros

216 O processo criador da performance existir juntos: autoria e colaboração


Gisela Reis Biancalana
6 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

222 Espaços habitados: o artista e a casa como ateliê transitório


Glayson Arcanjo

229 Autoria e politicidade nos processos criativos em


dança nas redes digitais
Iara Cerqueira

235 Aspectos da linguagem plástica na dança contemporânea


Inara Novaes Macedo

242 Monumentos insurgentes: utopias concretas em tempo real


Ines Linke e Luis Firmato

249 Zonas de sombra, indeterminação e incompletude: notas sobre a


dinâmica processual de um desenho
Jamerson Sérgio Passos Rezende e Cláudia Maria França da Silva

256 Uma dramaturgia tecida por muitas mãos


Jéssica Lorenna Lima Gonçalves

261 Simulacro e jurisprudência – Sobre o desejo de normose frente aos


subterfúgios da criação
João Wesley de Souza

267 A obra como fragmento do percurso do artista: um estudo sobre a


própria poética
Joedy Marins

274 “E fomos olhar pássaros”: sonoridade pictórica


Jorge Luiz Mies e Ângela Grando

282 A natureza da vida: transcendendo a subjetividade


através da obesidade
Júlia Mello e José Cirillo

288 O pequeno gesto: um ensaio em torno da experiência ordinária


Luciano Vinhosa
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 7

294 La práctica artística de la experiencia. El espéctador como elemento


participativo de la obra.
Luis Ángel López Diezma

300 A “queda dos anjos”: o artista no mundo


Luiz Sérgio de Oliveira

305 Os espaços, as imagens, os sons e os processos de criação do


movimento.
Maju Martins

309 Cartografando espaços urbanos para criações multiautorais


Mara Porto

316 Tesselas de uma cidade: reflexões sobre autoria na arte pública a


partir da obra de Raphael Samú
Marcela Belo e José Cirillo

323 Paisagens biográficas – memórias pós-coloniais – identidades


colaborativas
Marcos Antônio Bessa-Oliveira

331 Des-escrevendo
Maria Heloisa Angeli

338 A perspectiva ético-política no “programa ambiental” de Hélio Oiticica


Mariana Gomes Ribeiro

345 Ateliê de artista: processo e criação como documento nas artes visuais
na arte pública no Espírito Santo a partir de um artista capixaba
Mariana Lugon e José Cirillo

353 Na fibra do tecido, a estampa do corpo nu


Nathália Mello

360 A sonoridade poética da matéria: percursos imaginários na obra de


Paulo Vivacqua
Paola Sarlo
8 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

366 Entre autoria e colaboração, a direção de arte em Maria Antonieta


de Sofia Coppola
Patrícia Dourado

374 O diálogo como possibilidade de criação


Rafael Pagatini

379 Entre a escrita e a leitura: cadernos como espaço de criação


Raphael de Andrade Couto

385 Quando o sentido do registro se faz presente


Reginaldo da Nóbrega Tavares e Angela Raffin Pohlmann

390 Linha da vida: registros autobiográficos de artista


Ricardo Maurício Gonzaga

397 Apropriação e participação em Mouchette Org: a profundidade no


zerodimensional
Rodrigo Hipólito dos Santos

404 As performances do artista e do público na intervenção


“Conte-me um segredo”
Rodrigo Souza

410 O deslocamento do objeto pela apropriação artística


Sabrina Vieira Littig

417 A criação compartilhada na performance “tratado das incorpóreas


[sub]versões”
Samira Margotto, Éder Rodrigues e Cristiano Sousa dos Santos

422 A utilização de fundos de arquivo: o ensaio poético e as polifônias


Samira Margotto e Naara Fontinele dos Santos

428 Poéticas da destruição: narrativas entre arte, cultura e poder


Silfarlem Junior de Oliveira e Diego Kern Lopes
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 9

433 Relações intermidiáticas no processo de recriaçao


de “O cavalo de guerra”
Sílvia Maria Guerra Anastácio

441 Intervenção urbana: provocação, reflexão ou transformação?


Sonia Monego e Márcia Moreno

447 Breves considerações sobre os Cadernos de desenho como


estruturadores do pensamento visual
Thaís Rodrigues Risk e Paula Cristina Somenzari Almozara

453 Aspectos poéticos, históricos e culturais relacionados ao livro de artista


Tiago Emanuel de Oliveira e Paula Cristina Somenzari Almozara

459 A incrível história do poste que virou árvore e a


arte relacional: um encontro
Tomaz de Aquino

466 Membranas: camadas entre o que vemos e o que não vemos


Vânia Elisabeth Selzlein Sommermeyer

474 El proceso de creación artística como campo de conocimiento


Veronica del Pilar Noriega Esquives

479 A cidade como obra. O artista como Transformador


Vinicius Gonzalez

485 A dança e a escuridão como linguagem e conceito no processo de


criação contemporànea
Visitación Ortega Centella

490 Super Performance: Práticas colaborativas entre artista,


curador e visitante
Yiftah Peled

498 De frente para a emparede galeria de arte e por dentro do Cineclube


Lima Barreto: propostas para a arte contemporânea
Yvana Gonçalves Belchior e Andrea A. D. Valentina
10 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Apresentação
O Poéticas da Criação, ES - Seminário Ibero-americano sobre o Processo de Criação -
abarca estudos que têm por base os fenômenos interacionais e culturais que envolvem a
criação artística e a ação criadora nas ciências, mídias, nas artes, na música, na literatu-
ra, na educação, na arquitetura, no design, numa preocupação em congregar pesquisas
realizadas nas universidades e institutos de pesquisa no Brasil e no exterior, em especial
nos países de língua espanhola ou portuguesa.
Esse Seminário é organizado anualmente pelos pesquisadores do LEENA e do
LabArtes, que atuam no Programa de Pós-graduação em Artes da UFES (PPGA), em
parceria com as Pró-reitorias de Extensão e de Pesquisa da Universidade Federal do
Espírito Santo (PROEX e PRPPG). Do mesmo modo, o PPGA/UFES - em parceria
com a Universidade de Buenos Aires, a Universidade de Granada, a Faculdade de
Belas Artes da Universidade de Lisboa e as universidades brasileiras, UNICAMP,
UFSC e a PUC/SP - tem organizado um conjunto de eventos nacionais e internacio-
nais voltados para a ampliação de estudos dos documentos do processo criativo em
arte e para a reflexão sobre a arte e sua história na contemporaneidade. Com isso, o
ppga/ufes consolida seu papel fomentador da ampliação de estudos e do confronto de
ideias sobre os temas da arte contemporânea.
Nesse contexto de reflexões é que apresentamos os trabalhos do Poéticas da Cria-
ção - ES 2013, acolhendo pesquisadores dos dois continentes: a Europa, em especial
Portugal e Espanha, e das Américas. Todos eles dedicam-se ao amplo debate sobre o
processo de criação e suas mediações no contemporâneo contexto da sobremodernida-
de, na busca por compreender o esvaziamento das relações, na superação dos conflitos
entre periferia e centro. Neste ano de 2013, em sua quinta edição, tem como tema
geral: “o artista como autor e as práticas colaborativas na arte contemporânea”. Nesta
edição, nos colocamos frente a frente com diversos ângulos das discussões sobre a
questão da propriedade, e em especial no que tangencia o campo das artes: a noção de
autoria. Vimos nas últimas décadas, principalmente com o advento das “facilidades” e
impossibilidades de controle da Internet, a concretização não da morte do autor, mas
uma dilatação sempre imprevisível de limites e de uma efetiva mudança no estatuto
das próprias noções que têm por base a questão da autoria.
A produção artística, segundo Luiz Sergio Oliveira (UFF), não é mais concebida
como produto de um único sujeito, na plenitude de seus saberes e fazeres que lhe
conferem uma autonomia e hegemonia sobre outros saberes e fazeres que coabitam e
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 11

estruturam a criação estética em direção a uma obra, ou melhor dizendo, um possível


tolerável que finaliza, ao menos, uma etapa do processo criador. Atualmente, o con-
ceito de autores externos cada vez mais se mistura ao próprio conceito de autoria, e
são poucos os fazeres contemporâneos que se efetivam de modo não compartilhado
ou inter-relacionado com outros agentes no processo de gestação e efetivação das
práticas artísticas. Tomando essas reflexões, podemos considerar que para além do
fazer e da produção autoral tradicional atribuída ao artista como autônomo em seu
labor plástico, o conceito de autoria revigora-se na contemporaneidade e aponta para
reflexões que se estruturam a partir do espalhamento de diferentes tipos de práticas
artísticas no domínio público que se põem como um fenômeno significativo na pro-
dução de arte recente e que estão a clamar pela intensificação e pelo adensamento de
estudos e debates.
Essas práticas diferenciadas de arte no domínio público têm acarretado o desloca-
mento do artista de suas posições tradicionais, ao mesmo tempo em que introduzem uma
dinâmica incomum às práticas artísticas ao substituir procedimentos centralizados no
artista pelo exercício de negociações sob a pressão de interesses múltiplos, obrigando o
artista a assumir a posição lateral da mediação. Nesse cenário contemporâneo da arte, o
papel e o lugar do artista são deslocados, deixando de ser assenhoreado como o criador
único da obra de arte, passando a definir-se como aquele que media o processo de identi-
ficação e realização simbólica dos desejos difusos que permeiam nossos cotidianos. Para
Oliveira, o campo alargado das colaborações na arte contemporânea, em suas relações
com as instituições e com os públicos de arte, com a crítica e com as instâncias de poder
público, com o mercado diante do deslocamento do artista e das práticas desmateriali-
zantes, apresenta-se extremamente fértil para reflexões e debates críticos em torno da
presença, dos compromissos e potencialidades da arte e dos artistas nas sociedades con-
temporâneas, instaurando-se como ponto de confluência de saberes atraídos para uma
investigação transversal da natureza da arte.
Assim, a visão geral é a da alteridade, o que propicia a oportunidade de chamamos
para repensar novas abordagens sobre esse campo ampliado do conceito de autoria, para
colaborações que nos permitam avançar na percepção sensível do termo e, consequente-
mente, contribuirmos para as reflexões teóricas e práticas que coabitam o mundo de hoje.

Vitória, Verão de 2013


12 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Folhear: algumas considerações a


respeito do livro de artista

Adriana Dias
UNICAMP – [email protected]

O objetivo deste trabalho é entender o híbrido campo dos livros produzido-


por artistas apoiando-me, entre outras referências, em A página violada: da
ternura à injúria na construção do livro de artista, de Paulo Silveira (2008) e
Aberto fechado – Caixa e livro na arte brasileira (2012). Paralelamente, tem o
objetivo de iniciar alguma compreensão sobre a série Liames, livros por mim
produzidos desde 2012.
Palavras chave: livro de artista, desenho, narrativa, arte contemporânea.

Los objetivos de este trabajo son el de entender el híbrido campo de los libros
producidos por artistas, apoyándome entre otras referencias en A página vio-
lada: da ternura à injúria na construção do livro de artista, de Paulo Silveira
(2008) y Aberto fechado – Caixa e livro na arte brasileira (2012) y, paralela-
mente, iniciar alguna comprensión sobre la serie Liames, libros por mí produ-
cidos desde 2012.
Palabras clave: libro de artista, dibujo, narrativa, arte contemporáneo.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 13

Folhear – Diário-Caderno-Livro: um princípio afetivo


Na arte, literatura, filosofia, são inúmeras as referências aos afetos despertados pelo li-
vro. Há diversos escritos que abordam o afeto pelo livro enquanto volume ou por aquilo
que neles se encerra e que vem a tona quando abertos. Há livros cujo tema é livros; há
ficções sobre livros mágicos como o juvenil A história sem fim, de Michael Ende (1993).
Ou sobre livros proibidos, como O nome da Rosa, de Umberto Eco (2003). No título
juvenil o personagem Bastian ultrapassa a fronteira das páginas e adentra a história que
lê. No livro de Eco o personagem Jorge de Burgos, descrito como a própria memória de
uma biblioteca, faz um livro adentrar em si: devora as páginas que deveriam ser secretas.
Para Chevalier e Gheerbrant, em seu Dicionário de Símbolos (2001), “Fechado, o livro
conserva seu segredo. Aberto, o conteúdo é tomado por quem o investiga”. Movidos por
paixão, Bastian abre o livro ao inserir-se nele, adentra-o como quem mergulha em si;
Jorge de Burgos fecha-o, em suas vísceras. Jorge de Burgos, cego, erudito, guardião de
uma biblioteca labiríntica é uma pequena homenagem feita por Eco a Jorge Luis Borges,
erudito, cego, criador de A biblioteca de Babel, infinita, labiríntica (Serna, 2005). Bor-
ges, autor de diversos textos ambientados em bibliotecas descreve sua relação com os
livros numa passagem em que imagina não ser cego, pois segue comprando e ganhando
livros. Borges dizia sentir desprender dos livros uma “gravitação amistosa” (1987).
Minha trajetória com os livros deu-se também pelo caminho do afeto, chegando a
eles pelo viés da literatura. Para Borges, um livro [ou uma literatura] está sempre em
transformação e indaga (idem), “Que é um livro, se não o abrimos? É, simplesmente, um
cubo de papel e couro, com folhas. Mas, se o lemos, acontece uma coisa rara: creio que
ele muda a cada instante”. O livro aberto convida que o conheçamos. Estabelece-se uma
relação; o livro nunca será o mesmo, pois a cada vez somos outro. O livro é irresistível
para muitos, objeto para ser visto/tocado e atmosfera a ser experienciada; é de natureza
material e imaterial, palpável e impalpável. Silveira (2008) compara os dualismos do li-
vro aos dualismos do homem: “nos duplos par e ímpar, frente e verso, capa e contracapa,
letra e imagem, o abrir e o fechar”. Teria o livro tantas ressonâncias na natureza humana
que incitariam o artista a criar livros à sua maneira? O que são livros criados por artistas?

Livro de artista: (in)definições


Voltando os olhos para a história da arte, é possível encontrar cadernos, diários, livros fei-
tos por artistas desde épocas remotas. Blake, Dürer, Matisse, Frida Kahlo, registraram em
cadernos/livros seu modo de estar no mundo. Explica Silveira (2008) que a nomenclatura
“livro de artista” é usada no sentido lato para designar um grande campo artístico. Porém,
é usado também em sentido estrito, para designar um “produto específico gerado a partir
de experiências conceituais dos anos 60”. O autor aponta que embora cadernos como de
Blake sejam claros livros de artista, assim como Caixa Verde (1934) de Duchamp, é no
final do século XX que é dada autonomia a este objeto, que passa a ser legitimado.
O conceito de livro de artista é controverso entre pesquisadores. Em sua pesquisa,
Silveira considera uma ampla gama de possibilidades para o livro de artista: em forma
14 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

de rolo, sanfona, códices, incluindo as formas matérico-escultóricas [ou objetuais]


do livro-objeto e, mesmo, qualquer variante de anulação, negação e destruição do
livro. Ao contrário, Phillpot e Moeglin-Delcroix guardam ressalvas ao livro-objeto
(apud Silveira, 2008). Para Moeglin-Delcroix, curadora de livros de artistas no Cabi-
net d’Estampes na Biblioteca Nacional de Paris, o livro-objeto pertence aos limites da
escultura e não do livro que, como afirma, só pode ser compreendido pela leitura, pois
é preciso tempo para penetrá-lo.
Outro aspecto que divide pesquisadores é a tiragem ou edição. Para Moeglin-Del-
croix o volume único ou de tiragem muito restrita seria um manuscrito não um livro.
Ao contrário, Hoffberg (1995) considera o livro único parte importante das produções
de livros de artista, como no caso da apropriação de livros encontrados ou dos álbuns
ou caixas. No caso da arte brasileira os desdobramentos do livro de artista foram tantos
que, como aponta Guy Brett, há construções tanto do formato caixa, como do livro: “De-
senvolvimentos radicais na natureza do livro, tanto como conceito quanto como objeto
físico, muito se aproximam ao da caixa, sendo que às vezes as duas categorias parecem
andar lado a lado” (2012). Para Horvitz (1995) o livro de artista torna mais tênue as
linhas que separavam a arte e a literatura, o artesanato e a arte e, tornam mais fluidos os
contornos que distinguiam as ‘artes elevadas’ da cultura popular. Para Brett (idem), os
campos das artes visuais, da poesia e da arquitetura misturam-se para abordar o tema
espaço (para desdobrar-se) e como este é vivenciado pelo “corpo-mente”.
Que conformaria, então, um livro de artista, os seus aspectos formais ou os concei-
tuais? Arte-livro, livro-obra, objeto-livro? Parece haver para este objeto artístico tantos
formatos e conceitos quanto maneiras de chamá-lo.

Figura 1. Caderno A3. Estudos de formas queimadas; projeto para gravura. 1999.

Meus livros: produção antiga e a série Liames


Foi na literatura que descobri os textos em primeira pessoa, as cartas, as narrativas e
comecei a escrever os meus diários: registrar em palavras meu mundo interno e as rela-
ções que estabelecia com o que estava fora. A transição do formato ‘diário’, para o de
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 15

caderno de artista aconteceu no contato com livros de artista. Num princípio, limitavam-
se meus cadernos a um acumular de ideias escritas, entremeadas de poucas imagens que
foram, paulatinamente, ganhando espaço. Começaram a surgir desenhos de anotação e
observação, esboços para pinturas/gravura; autorretratos, paisagens, corpos e objetos
que viriam, talvez, a constituir-se como trabalhos maiores. Os primeiros cadernos foram
suporte para exercícios de desenho; não eram um fim em si mesmo, mas um veículo para
algo que se materializaria fora deles (Figura 1).
Os recentes cadernos deixaram a ordem daquilo que está de permeio, adquiriram
autonomia, indo ao encontro do que aponta Hoffberg (1987), quando afirma que o livro
de artista “deve ser reconhecido como um meio em si mesmo”. A série em que venho
trabalhando, Liames, forma-se por um conjunto de livros, dos quais três serão aqui apre-
sentados. A série é composta pela tecitura [narrativa] de desenhos em sobreposição,
mostram figuras apagando-se e outras emergindo. As formas desvelam-se ou se esvae-
cem no ato de folhear.
Para Weiss (2010), o ir e vir no folhear das páginas do livro evoca aspectos tem-
porais, compara esse movimento a uma metáfora do tempo. Para a autora, a sequen-
cialidade da escrita constrói a narrativa, “ao abrir um livro, o tempo impregnado neste
livro começa a fluir, não o tempo cotidiano, mas, sim, o tempo da leitura: um tempo
paralelo”. No livro de artista a leitura ou visualidade de sua narrativa constrói-se de
maneira particular. Derdyck (2012) aponta que as narrativas no livro de artista nascem
das conjugações entre tempo-espaço, forma e conteúdo, significante e significado; mais
do que um tema ou assunto a ser contado, “o foco poético se fixa justamente no modo de
narrar, que acontece tanto pelas articulações inéditas entre palavra e a imagem quanto
pela sua materialidade, a sequência das páginas, sua estrutura formal.
Nos livros da série Liames um dos elementos da narrativa é o virar das páginas: a
imagem desenhada soma-se à imagem que a antecede e cria uma expectativa em rela-
ção àquela que a sucederá (Figura 2). A transparência das páginas e a sequencialidade
permitem que as imagens perpassem umas às outras; os desenhos imbricam-se, liam-se.

Figura 2. Liames 1. c. 20 cm. 2012.

Em dados momentos da construção de Liames 1, retomei páginas produzidas an-


teriormente para dar-lhes a ideia de conjunto. Realizei na feitura o mesmo movimento
experienciado por quem se disponha a visionar o trabalho. Nas transparências as formas
justapõem-se e sobrepõem-se. A justaposição constrói uma imagem com variações de
16 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

densidades e graus de evanescência. Já a sobreposição dos desenhos, ora soma-se a


forma anterior, completando-a ou transformando-a, ora causa total anulação da imagem
precedente. A sequencialidade nestes cadernos também mostra a resistência da imagem
em desaparecer. A cada folhear a imagem de camadas mais profundas dissipa-se aos
poucos, mas resiste ao apagamento (Figuras 3 e 4).

Figura 3. Liames 1. Nesta sequência a mancha de cor vermelha reluta ao apagamento.

Figura 4. Liames 1. Na sequência a imagem das luminárias reluta em desaparecer. Apaga-se


no último quadro, por sobreposição.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 17

A sequência da leitura nestes livros pode começar por onde o fruidor estabeleça
como início e dar-se em qualquer direção. A transparência do papel somada ao ato de
virar cada página propicia que vejamos uma imagem espelhada em relação àquela que
vimos na página anterior, porém acrescida agora de outro contexto narrativo, que diz
respeito às páginas que se acumulam de um ou outro lado do caderno. Nos livros Liames
1 e Liames 3 (Figura 5), a sequencialidade das páginas constrói uma narrativa visual
mais explícita, mais acessível que no caso de Liames 2, descrito mais adiante.

Figura 5. Liames 3. Neste livro as transparências são intercaladas por folhas opacas. As pá-
ginas são unidas como sanfona, o que permite visionar este caderno como uma imagem
contínua. c. 20 cm. 2012.

Em Liames 2 (Figura 6), pequenas sequências acontecem em seu interior. As páginas


destas são parcialmente unidas por uma fita adesiva, formando grupos narrativos. Desta
maneira, o volume é composto por trechos narrativos, dispostos em séries.

Figura 6. Liames 2. c. 20 cm. 2012

Algumas considerações e o porvir


Este breve ensaio foi o primeiro passo no caminho para entender o campo do livro de
artista. Paulo Silveira (2008) faz uma colocação em que aponta que uma das funções
do livro mais sujeitas à experimentação é ser o livro um arquivo de memórias, sejam
memórias reais ou imaginadas. Quando Silveira tece a comparação entre os dualismos
do livro e os dualismos do homem, sobre a frente e o verso, o abrir e o fechar, a letra
e a imagem, me vêm, de maneira inevitável, a justaposição das naturezas material e
espiritual, do homem e do livro. Acredito que ao trabalhar na natureza de superfície do
18 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

livro articulamos, de forma indissociável, a natureza etérea e a atmosfera que compõe o


volume construído.
Sobre a série Liames, há questões a serem aprofundadas: o desenho, a transparência
[e a linha, que inicialmente é o liame que une esta série], além da questão da narrativa
que é por mim pesquisada atualmente no mestrado. Assim, o estudo aqui apresentado é
apenas o início da reflexão sobre minha série de livros e sobre o campo do livro de artista.

Referências
Aberto fechado – Caixa e livro na arte brasileira. Catálogo da exposição de mesmo nome realiza-
da na Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2012.
BORGES, Jorge Luis. Cinco visões pessoais. Brasília: Editora da UNB, 1987.
_____. La biblioteca de Babel, disponível em http://www.fenomec.unam.mx/pablo/probabilidad/
babel.pdf. Acesso em 02/12/2012.
BRETT, Guy. Guia geral do terreno. Aberto fechado – Caixa e livro na arte brasileira. Catálogo da
exposição de mesmo nome realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2012. Pág. 10-55.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain (orgs). Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, cos-
tumes, gestos, formas, figures, cores, números. Tradução de Vera da Costa e Silva (et al). 16.
ed. Rio de janeiro: José Olympio, 2001.
DERDYCK, Edith. A narrativa nos livros de artista: por uma partitura coreográfica nas páginas
de um livro. Pós: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da Escola de Belas Artes da
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ECO, Umberto. O nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de
Andrade. Rio de Janeiro: O globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.
ENDE, Michael. A história sem fim. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
HOFFBERG, Judith A. Plenas de elegância e finura, atemporais mas familiares: artes gráficas
únicas. Único em seu gênero – Livros de artistas plásticos (catálogo de exposição de livros de
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HORVITZ, Suzanne Reese. Introdução. Único em seu gênero – Livros de artistas plásticos (catá-
logo de exposição de livros de artista). S/d, páginas 07-08.
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Arquivo de edição impressa, disponível em: http://elpais.com/diario/2005/10/21/cvalencia-
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SILVEIRA, Paulo. A página violada: Da ternura à injúria na construção do livro de artista. 2ª
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WEISS, Luise e AZEVEDO, Suzana. Livros-objeto e Almanaques: marcas e deslocamentos. 19º
encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. “Entre Territórios”. 20
a 25/09/2010. Cachoeira, Bahia. 201
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 19

A aplicação da Xilogravura e da
arte colaborativa, na
busca do desenvolvimento
estético e interação social em
alunos deficientes visuais
Adriano de Almeida Ferraiuoli
IFF-Campos/RJ – [email protected]

O presente Trabalho de Pesquisa desenvolveu-se em âmbito escolar, no


campo da Arte Colaborativa e Educação Inclusiva especificamente deficiên-
cia visual, tendo como referencial a utilização de atividades práticas em Xi-
logravura. Neste contexto, buscamos descobrir de que formas vivências em
Xilogravura podem representar espaço de desenvolvimento de experiências
sensoriais e estéticas, em discentes deficientes visuais, a partir de práticas
pedagógicas que favoreçam também a inclusão social.
Palavras chaves: Educação Inclusiva, Formação Estética, Deficiência Visual,
Xilogravura e Arte Colaborativa

This Research was developed in the field of Collaborative Art and Inclusive
Education specifically visual impairment, taking as reference the use of prac-
tical activities in woodcut. In this context, we seek to discover ways that expe-
riences in space may represent Woodcut development of sensory and aesthe-
tic experiences in visually impaired students from pedagogical practices that
also promote social inclusion.
Keywords: Inclusive Education, Training Aesthetics, Visual Impairment, Wod-
cut and Collaborative Art
20 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Introdução
O cenário atual de debates sobre a formação estética de jovens para a inserção cidadã na
vida social e promoção de acesso ao conhecimento científico, às artes e à cultura, prin-
cipalmente por estar amparada e fomentada pelos Princípios e Diretrizes da Educação
Profissional sugere que novos parâmetros se desenhem no cotidiano escolar.

Objetivos
Compreender como a Xilogravura pode contribuir para o desenvolvimento sensorial
e estético, investigando como ocorrem as transformações culturais frente aos desafios
propostos ao longo da pesquisa.

Desenvolvimento Estético
Utilizando o termo estética como área de significação em artes, (Cauquelin, 2005) o
divide em duas categorizações: a primeira empregada como adjetivo, qualifica com-
portamentos e atributos relacionados à atividade artística; Já o substantivo estética, nos
remete a um corpus teórico que definem o domínio específico da arte, propõe estudos de
obras e visões de conjunto de períodos históricos, admitindo teorias a partir de estéticas
próprias de seus autores.
Em nosso estudo optamos pela primeira categorização, entendendo a estética junta-
mente com Baumgarten (apud, CAUQUELIN, 2005) como a essência do pensamento
sensível – “ciência do sensível”. Buscando o despertar e desenvolvimento da sensibili-
dade artística em discentes deficientes visuais, a partir da xilogravura.
As experiências em xilogravura buscaram na pluralidade, um princípio articulador
do conhecimento, implicando meios de trabalhos educativos na diversidade. Segundo
(Vygotsky, 2008), o desenvolvimento humano está intimamente ligado ao aprendizado,
sendo este uma das principais fontes de conceitos e uma poderosa força que direciona o
destino do seu desenvolvimento mental.
Assim, as experiências em xilogravura se comprometeram com o desenvolvimento
estético dos educandos, percebendo as linguagens artísticas como formas sensíveis de
criação e expressão. Esta forma de construção estética caminha no sentido contrário
de uma prática de Ensino praticada na sociedade contemporânea, que ainda prioriza a
linguagem verbal, em detrimento das demais linguagens subjetivas.

Interação Sociocultural:
Os encontros semanais, além da aplicação da xilogravura e demais técnicas artísticas,
buscaram estabelecer uma relação recíproca entre os participantes, por uma conexão
mediadora entre os estudantes e o pesquisador. Assim, o investigador, direcionou as
atividades propostas na construção de significados e apropriação cultural.
Para (Silva, 2010, p.211), o professor que busca desenvolver essas mediações e
apropriações culturais em sua prática pedagógica, deve formular perguntas básicas do
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 21

tipo: “quais práticas operar para favorecer a construção interativa dos saberes nas insti-
tuições educativas? Quais situações propor aos estudantes?”
Segundo o autor, começando sua ação por estas questões, o professor deve ter claro
que está objetivando as interações entre os alunos e que estes “não são copos vazios que os
docentes deveriam encher”. Assim como para (Freire, 2010) que sentencia que “(...) ensinar
não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua construção” (p.22).
De acordo com as questões apresentadas, a interação sociocultural pretendida, atra-
vés das vivências em Xilogravura, buscou a reflexão, a discussão de ideias, a troca de
experiências e opiniões.

Experiências Estéticas e Sensoriais em Xilogravura


Nesta parte específica do artigo, descrevemos resumidamente o desenvolvimento, as
observações as análises dos dados coletados e dos fatos vivenciados durante a pesquisa,
pretendendo relatar parte da produção realizada, durante os 20 encontros presenciais,
cada um com 02 horas de duração aproximadamente, para 15 alunos deficientes visuais
pertencentes ao Ensino Médio e Técnico do IFF Instituto Federal Fluminense - campus
Campos Centro, nos meses de outubro e dezembro de 2012.
A Xilogravura é uma técnica que exige destreza manual. Assim, como forma de in-
trodução, foram criados outros suportes e técnicas adaptadas que possibilitaram a livre
expressão e percepção em relevo da produção artística realizada pelos participantes.
Foram reproduzidas obras artísticas famosas, constatando que todos tinham alguma
noção visual das mesmas por intermédio de depoimentos alheios. Nosso objetivo foi con-
textualizar as obras, permitindo uma noção própria da estética de cada desenho apresenta-
do. A partir deste entendimento, os participantes começaram a tentar reproduzir uma inter-
pretação própria dos desenhos percebidos e desenvolver suas próprias obras originais em
desenhos texturizados em relevo. Sempre optando por uma abordagem colaborativa com
espaço aberto para interação assíncrona com debates e discussões entre os participantes.
Como novo desafio, foi entregue a cada um deles uma matriz de madeira e a ferramen-
ta goiva, num primeiro contato com a produção de uma xilogravura. Todos tiveram grande
dificuldade e resistência para “sulcar” a madeira. Apesar de alguns conseguirem realizar
as matrizes. Pela dificuldade inicial, foi substituído o material original por isopor e palitos.
Onde o isopor substituiu a madeira e o palito, a goiva. Facilitando o processo de produção.

Plano de Coleta e Análise dos Dados


Na busca da compreensão global dos fenômenos, assumimos uma conduta participante
na procura de compreensão e significação social no ambiente, espaço e tempo vivido no
desenvolvimento das vivências em Xilogravura, partilhando experiências culturais com
os participantes (Chizzotti, 2003, p.82).
Criamos, então, uma relação recíproca entre o nós, enquanto pesquisador e os sujei-
tos da pesquisa, que não foi desfeita em nenhum momento durante o início e término da
22 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

pesquisa. Tal simbiose, segundo o autor, “é indispensável para se apreender os vínculos


entre pessoas e os objetos, e os significados que são construídos pelos sujeitos” (p.84).
Após o encerramento da coleta de dados, iniciamos a fase mais formal da análise. Ba-
seadas em um conjunto de categorias teóricas descritivas, amparadas no referencial teórico
do estudo, foi feita a primeira classificação dos dados, de acordo com a teoria da codifica-
ção de (Lüdke e André, 2010). Isto possibilitou a divisão do material em seus elementos
componentes, sem, contudo, perder de vista a ligação desses elementos com os demais.

Análise das Categorias de Pesquisa


Categoria 01 - O desenvolvimento e uso da Percepção nas vivências em xilogravura
foram observados através: da observação contínua do pesquisador durante as atividades
propostas; do uso de técnicas e materiais que possibilitaram a percepção de relevos
indicativos de formas; do uso da sensibilidade e da expressão, através de diferentes
linguagens artísticas; da confecção das matrizes.
Categoria 02 - Aspectos na Formação Estética foram investigados a partir: da consta-
tação das relações estabelecidas direta e indiretamente com o ato de criação a partir da
ludicidade; do uso da expressão corporal; do comportamento; na interação e identifica-
ção dos participantes com as atividades.
Categoria 03 - A Interação Social foi analisada através: da observância das trocas de
experiências durante o processo criativo; dos diálogos entre os participantes; das ativi-
dades em grupo; do intercâmbio cultural entre os participantes; da intervenção criativa.

Considerações Finais
Na análise dos resultados da pesquisa, encontramos nas experiências estéticas e senso-
riais em xilogravura um espaço transformador, despertando um entrelace das relações
cognitivas. A Xilogravura se revela como uma linguagem estética, que utiliza da ex-
pressão artística e sensorial. Apresentando-se como um recurso didático transformador
para o Ensino da Arte com deficientes visuais, capaz de favorecer significativamente
no desenvolvimento da percepção, estética e interação sociocultural dos participantes.

Referências
CAUQUELIN, Anne. (2005). Teorias da arte. São Paulo: Martins Fontes.
CHIZZOTTI, Antonio. (2003). Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais. São Paulo: Cortez Edi-
tora.
FREIRE, Paulo. (2010). Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa. São
Paulo: Paz e Terra.
LUDKE, Menga & ANDRÉ, Marli E. D. A. (2010). Pesquisa em Educação: Abordagens Qualita-
tivas. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária Ltda.
SILVA, Marco. (2010). Sala de Aula Interativa: educação, comunicação, mídia clássica, internet,
tecnologias digitais, arte, mercado, sociedade e cidadania. São Paulo: Loyola.
VIGOTSKY, L.S. (2008). Pensamento e Linguagem: São Paulo: Martins Fontes.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 23

A receptividade da
panela de barro capixaba

Aissa A. Guimarães
PPGA/ UFES – [email protected]

Geyza Dalmásio Muniz


Mestranda PPGA/ UFES – [email protected]

O artigo proposto aborda a recepção das panelas de barro capixabas pelo


público, analisando as diferenças entre a produção das paneleiras de Goiabei-
ras e dos paneleiros de Guarapari, tangenciando a influência da apropriação
do território no qual esse saber é transmitido e continuamente produzido. Os
diferentes processos na produção da panela de barro implicam em objetos
distintos, tanto nas características físicas das panelas, como nos contextos
cultural e social.
Palavras-chave: Paneleiras de Goiabeiras; paneleiros de Guarapari; patrimô-
nio cultural imaterial; artesanato; mercado.

The proposed article addresses the receipt of crock pots capixabas by pub-
lic, analyzing the differences between the production of crock’s artisans from
Goiabeiras and crock’s artisans from Guarapari, addressing the influence of
ownership of the territory in which this knowledge is transmitted and continu-
ously produced. The different processes in the production of the crock imply
distinct objects, both in the physical characteristics of the pans, as in cultural
and social contexts.
Keywords: Crock’s artisans from Goiabeiras; crock’s artisans from Guarapari;
intangible cultural heritage; craftwork; market.
24 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Panelas de barro capixabas


Este artigo resulta da pesquisa em desenvolvimento que compreende a análise da
relação entre patrimônio cultural imaterial, artesanato e mercado, tendo por base o
estudo comparativo entre as Paneleiras de Goiabeiras (patrimônio) e os Paneleiros de
Guarapari (artesanato).
A metodologia utilizada consiste na história oral dos atores sociais entrevistados
durante a pesquisa de campo (além de registros fotográficos e de vídeo), pesquisa biblio-
gráfica e documental. Deste modo, busca-se conhecer esses dois grupos, identificá-los e
fazer um mapeamento do fazer panela de barro capixaba.
Neste artigo apresentam-se os dois grupos pesquisados, seus modos de fazer a pane-
la de barro, considerada um ícone da cultura capixaba, suas diferenças e semelhanças,
assim como a receptividade do público a esse objeto cultural.
As paneleiras de Goiabeiras sempre produziram panela de barro na comunidade
onde moram, no bairro de Goiabeiras, em Vitória. Este saber é transmitido de mãe pra
filha por várias gerações. Em 2002, o Ofício das Paneleiras de Goiabeiras foi registrado
como Patrimônio Cultural do Brasil, inaugurando o Livro de Registro dos Saberes.
O patrimônio cultural imaterial é definido, conforme a Unesco, no artigo 2 elaborado
a partir da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial aprovada em
Outubro de 2003, como

as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumen-


tos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em
alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte de seu patrimônio cultural. Este patrimô-
nio cultural imaterial, que se transmite de geração a geração, é constantemente recriado pelas
comunidades e grupos em função de seu meio ambiente, de sua interação com a natureza e
de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para
promover o respeito pela diversidade cultural e criatividade humana. (IPHAN, 2004, p. 373).

A partir deste registro as paneleiras passaram a ter mais visibilidade e a contar com
algumas políticas públicas como apoio à continuidade de seu trabalho. Algumas mu-
danças aconteceram ao longo do tempo, mas nada que interferisse no modo essencial
desse fazer.
A princípio, as paneleiras produziam para consumo próprio e para a comunidade,
nos quintais de suas casas, mantendo uma tradição indígena por gerações. Conforme
relata o Dossiê do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) 3 –
Ofício das Paneleiras de Goiabeiras (2006, p.15), o processo de produção das panelas de
Goiabeiras conserva todas as características essenciais que a identificam com a prática
dos grupos nativos das Américas, antes da chegada de europeus e africanos. As panelas
são da mesma maneira modeladas manualmente, com argila da mesma procedência, do
Vale do Mulembá e com o auxílio de ferramentas rudimentares. Após secarem ao sol,
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 25

são polidas, queimadas a céu aberto e impermeabilizadas com tintura de tanino, ainda
quentes.
Entretanto, com a maior divulgação e a associação da panela de barro com a torta e
moqueca capixabas, a procura pelas panelas foi crescendo e a produção das paneleiras
também. Atualmente, devido a grande demanda das panelas, as paneleiras já contratam
umas às outras para auxiliarem em algumas etapas da produção das panelas, como o
alisamento logo após a secagem.
Para identificar e distinguir a procedência das panelas de barro de Goiabeiras criou-se
um selo de autenticidade (Figura 1) junto com a Prefeitura de Vitória, consequentemente,
contribuindo para a formação da identidade do grupo e da tradição. Em 2011, as panelas
de Goiabeiras receberam outro selo, o de Indicação Geográfica na categoria Indicação
de Procedência, fornecido pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), para
garantir a proteção e a diferenciação das panelas de Goiabeiras no mercado. (Figura 2).

Figuras 1 e 2. À esquerda, selo de autenticidade das paneleiras de Goiabeiras criado pela


Associação das Paneleiras de Goiabeiras e a Prefeitura Municipal de Vitória. À direita, selo
de Indicação de Procedência Goiabeiras, concedido pelo INPI. (Fonte: Figura 1: site Correio
Gourmand. Figura 2: site Inovar Ufes).

Seguindo a Rodovia do Sol, em Guarapari, encontram-se diversas fábricas de panela


de barro, assim como em outras regiões do município (Figura 3). Na presente pesqui-
sa entrevistamos vários artesãos dessas fábricas. Ao todo, existem quinze fábricas em
Guarapari. Dessas, treze são de pernambucanos, uma de carioca e uma de capixaba.
Os artesãos vieram aos poucos da região de Caruaru (a grande maioria), em Pernam-
buco, em busca de uma melhor condição de vida. O primeiro deles, o mestre Pixilô, como
é conhecido, já sabia fazer panela desde Pernambuco, porém não panela preta. Outros
aprenderam aqui no estado, no entanto, a maioria desses artesãos imigrantes já trabalhava
com o barro em sua terra de origem. Eles são parentes ou se conhecem já de Caruaru.
26 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

O processo de produção dos dois grupos é diferente. As panelas de Guarapari são


moldadas no torno pelos oleiros e cortadas com um fio de nylon para a retirada da panela
do torno. As alças são moldadas à mão e adicionadas posteriormente. Também utilizam
a pedra de rio para o acabamento, para dar brilho. Depois da secagem, colocam nos
fornos feitos de tijolos à temperatura de aproximadamente 700ºC onde ficam por no
mínimo doze horas. A cor preta das panelas é conferida em seguida da queima, ainda no
forno, completamente fechado e sem ar, quando a madeira que se transforma em carvão
e a fumaça tinge as panelas. Em Guarapari são os homens que produzem as panelas, as
mulheres fazem o acabamento com a pedra de rio e outros artesanatos pequenos, como
as galinhas de angola.

Figura 3. Mapa das fábricas de panela de barro em Figura 4 e 5. Acima, panela de bar-
Guarapari, ES. ro produzida em Guarapari. Abaixo,
panela de barro produzida em Goia-
beiras. (Fonte: Acervo pessoal).

Como a produção de Guarapari é maior pela agilidade do torno, o preço dos artefatos
é um pouco menor do que o de Goiabeiras, mesmo tendo o custo de produção maior.
Além do processo de produção o barro utilizado e a forma das panelas também são
diferentes. O barro que as paneleiras de Goiabeiras utilizam só é encontrado no Vale do
Mulembá, localizado no mesmo município. O barro utilizado pelas paneleiras é mais
arenoso e profundo, diferentemente do barro utilizado pelos paneleiros de Guarapari.
O barro das paneleiras não serve para ser usado no torno, devido suas características
fisiológicas. O barro de Guarapari é retirado mais da superfície, é mais macio e passa
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 27

por um processamento para se tornar mais fino. Essa mistura se faz necessária devido
as altas temperaturas dos fornos durante a queima das panelas e a modelagem no torno.
As paneleiras de Goiabeiras usam a tintura chamada tanino para impermeabilizar e
tingir de preto as panelas. Em Guarapari não há essa impermeabilização e a cor se dá no
final do processo de queima, pela fumaça, deixando as panelas com uma cor uniforme.
O torno usado em Guarapari resulta em panelas uniformes (Figura 4) e com melhor
encaixe da tampa com a panela. Nas panelas de Goiabeiras (Figura 5) as alças são di-
ferentes das de Guarapari, e possuem algumas variações de acordo com a habilidade
de cada artesã. Na tampa nota-se outra diferença: em Guarapari é um puxador e em
Goiabeiras é uma alça.
Entretanto, em breve pesquisa pela internet percebe-se que as pessoas não conhecem
as diferenças das duas produções, do modo de fazer nem das diferenças físicas, o que
podemos confirmar quando conversamos com alguns capixabas sobre essas panelas.
O fato é que existe mercado para as duas produções de panela de barro. Enquanto
as paneleiras de Goiabeiras que produzem no galpão da Associação das Paneleiras de
Goiabeiras (APG) tem uma média de três mil panelas por mês de produção, as fábricas
de Guarapari juntas produzem cerca de vinte e cinco mil panelas mensais em baixa tem-
porada (de acordo com relato de Ailton, um dos paneleiros).
Guarapari por ser uma cidade turística, facilita a venda das panelas dos paneleiros.
Já as Paneleiras de Goiabeiras tem o ofício registrado, a história da tradição familiar e
regional o que acaba despertando o interesse dos turistas, além do apoio de instituições
governamentais. De acordo com Renato Ortiz (1985, p. 133) “é o grupo que celebra
sua revificação, e o mecanismo de conservação do grupo está estreitamente associado à
preservação da memória.” No entanto, a memória coletiva só pode existir enquanto vi-
vência, enquanto prática que se manifesta no cotidiano das pessoas. Com esse apoio que
as paneleiras recebem, conseguem dar visibilidade a memória dessa tradição e assim
valorizar seu trabalho e vender mais panelas. Constatamos que em Guarapari há uma
grande demanda de revendedores que compram grandes quantidades dos paneleiros e
vendem pelo país, uma vez que esta produção artesanal, em série das fábricas, produz
quantidade suficiente para este mercado.
Conforme Ortiz (1985, p. 40), a construção da identidade nacional (neste caso, re-
gional), necessita de mediadores para descolarem as manifestações culturais de sua es-
fera particular e as articularem a uma totalidade que as transcenda. Esses mediadores
são os intelectuais que interpretam as manifestações e trazem a tona para a sociedade.
Deste modo, Ortiz (1985, p 142) afirma que “a cultura enquanto fenômeno de lingua-
gem é sempre passível de interpretação, mas em última instância são os interesses que
definem os grupos sociais que decidem o sentido da reelaboração simbólica desta ou
daquela manifestação.” Isso nos indicar os motivos pelos quais a tradição das paneleiras
é um bem cultural valorizado, enquanto a produção de panela de Guarapari é vista como
artesanato para comercialização.
28 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

A imagem da panela de barro foi apropriada pelas instituições governamentais como


o ícone da identidade capixaba, o que gera diversas questões ao redor deste artefato. Uma
preocupação relevante refere-se ao consumo cultural inspirado por uma “racionalidade mer-
cadológica”; o que faz com que as demandas de consumo cultural estejam mais diretamente
associadas à relação entre patrimônio e economia, entre cultura e turismo. Como colocado
por Fernandes e Alfosin (2010, p. 85), “a cidade se obriga a atualizar ou se adequar para ser
e ter produtos na vitrine dos negócios, incluídas as representações de seu patrimônio imate-
rial”. As panelas de Goiabeiras acabam servindo de chamariz para o turismo da cidade, ao
mesmo tempo em que pode sofrer mudanças para sustentar esse turismo.
Essa pressão mercadológica acaba impondo a potencialização econômica dos bens
culturais, trazendo como consequência sua precarização, ou até mesmo sua elitização,
podendo envolver a transformação da tradição, dos saberes e fazeres, das manifestações
folclóricas em espetáculo para alimentar a agenda do mercado, o qual segue alheio à
essência dos espaços (FERNANDES e ALFOSIN, 2010, p. 85).
A transmissão de conhecimento de geração em geração presente em Goiabeiras tam-
bém está presente em Guarapari, pois os artesãos aprenderam o ofício de ceramista com
seus pais. Aqui aprenderam apenas a fazer o objeto panela, que, segundo o Índio, como
é conhecido um dos artesãos entrevistados, é um dos itens mais fáceis de fazer em ce-
râmica (no torno).
Observa-se que as diferenças entre as produções de Guarapari e Goiabeiras estão
tanto na questão econômica e social como na maneira de se fazer a panela. Em Guarapa-
ri a preocupação maior é produzir mais para ter um retorno melhor e garantir o sustento
da família. Já em Goiabeiras, as paneleiras fazem esse artesanato para seu sustento sim,
mas também porque é o que aprenderam a fazer e desejam manter o ofício de suas mães,
a tradição cultural do seu ofício.
Portanto, mesmo havendo diferenças no fazer, na valorização dos artesãos pro-
dutores desse objeto, paneleiras e paneleiros sobrevivem do fazer panelas de barro, e
contribuem para a manutenção e divulgação desse bem, ícone da identidade capixaba.
Enquanto as paneleiras de Goiabeiras mantém sua tradição do fazer como seus antepas-
sados faziam, os paneleiros de Guarapari mantém a tradição de suas famílias no ofício
de ceramistas e contribuem para suprir a demanda de uma parcela do mercado, que se
interessa em vender um produto que é valorizado por ser representativo da cultura capi-
xaba, independente da história envolvida no fazer do objeto.

Referências
FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (coordenadores). Revisitando o instituto do tomba-
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Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 29

Da legibilidade à perplexidade:
convergência de fluxos nos espaços
discursivos das galerias

Alexandre Emerick Neves


PPGA/UFES – [email protected]

Ao rever a tradição do readymade de Duchamp a Damien Hirst, Hal Foster


aponta as estratégias de participação elaboradas por os nomes de Hélio Oiti-
cica e Lygia Clark como precedentes de certas propostas contemporâneas, o
que neste trabalho procuro aproximar aos desdobramentos das práticas co-
laborativas.
Palavras chaves: arte contemporânea, debate crítico, propostas colaborativas

In reviewing the tradition of Duchamp’s readymade Damien Hirst, Hal Foster


points participation strategies developed by the names of Hélio Oiticica and
Lygia Clark as precedents for certain contemporary proposals, which try to
bring this work to the unfolding collaborative practices and hence the questions
of authorship.
Keywords: contemporary art, critical debate, collaborative proposals
30 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Fluxos, espaços e percursos


O característico barulhinho do plástico colorido anuncia o adocicado sabor que logo se
quer compartilhar. Outra lembrança pode trazer de volta o calor do vapor das panelas, os
aromas, as cores, os sabores, e mesmo o burburinho do preparo que culmina com a exó-
tica degustação de temperos inusitados. Certamente estamos falando de momentos espe-
ciais, prazerosos, mas, sem as esclarecedoras minuncias, não necessariamente artísticos.
Acontece que instalações, performances, intervenções e acontecimentos fora do
espaço institucional da arte garantem certa proximidade e familiaridade do gesto do
artista com o gesto de qualquer um, e mantém em aberto o convite para a participação
em algo accessível, mesmo que o participante não esteja convicto de estar interagindo
diretamente com uma obra de arte ou com uma atividade artística, o que pode converter
o convite em tocaia. Por outro lado, as práticas colaborativas direcionadas para dentro
do lugar da arte, do espaço instituído especificamente para dar lugar aos acontecimentos
artísticos, os espectadores tem a noção de participar de algo que, ainda que lhe pareça
obtuso, tem grande possibilidade de ser arte.
Com o diagnóstico de algumas obras contemporâneas associadas ao espaço-tempo
da cidade, aos fluxos de acomtecimentos vulgares do cotidiano, sugiro, mais que um
apontamento, uma avaliação de como se tornaram recorrentes as manifestações artís-
ticas como derivações dos percursos urbanos, perpassando o interior e o exterior das
galerias de arte por meio de gestos que podem se desdobrar em ações, intervenções e
demarcaçãoes. Procuro uma pequena pausa reflexiva sobre esse aspecto da arte contem-
porânea, sua relação com o espaço-tempo do convívio urbano, com a variedade de obras
advindas da negociação com os caminhos da cidade, produto de experiências advindas
da convergência de lugares e de fluxos artísticos e não-artísticos.

Dissenso, legibilidade e perplexidade


Não é preciso ressaltar a importância dos escritos de artista para os estudos da arte
contemporânea, mas o caso que retomo neste ponto da discussão traz um acréscimo a
pauta, pois Rirkrit Tiravanija adota a postura de um critico ao falar da sua obra na tercie-
ra pessoa. Ao escrever sobre seu próprio trabalho, Tiravanija caracteriza sua operação
como uma retirada do mictório de Duchanp de seu pedestal, fazendo-o retornar a seu uso
original, para então urinar nele. (Bishop, 2006) O artista transfere para a galeria panelas
e demais utensílios, assim como os ingredientes necessários para o preparo e o consumo
de uma comida típica de sua cultura, o curry. O evento promovido por Tiravanija deslo-
ca para o ambiente artístico a identidade funcional e o potencial relacional inerente aos
objetos às coisas que trazem cosigo toda a sua demanda cultural de receitas, temperos,
sabores, apresentação, oferecimento e consumo.
Deve-se ainda acrescentar a crescente recorrência à palavra do artista por meio de
entrevistas que tem auxiliado na apreensão e na discussão das obras. Por isso, em sua
série de entrevistas, Hans Ulrich Obrist lembra que, para Tiravanija, o mais importante
não está no que as pessoas vêem em suas mostras, mas “o que acontece entre as pessoas”
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 31

(Obrist, 2006). A primeira vez que expôs as etapas de preparação do curry em pedestais
- Sen título, galeria Scott Hanson, 1989 - os espectadores não podiam comê-lo. Foi em
sua individual Sem título, de 1992, na galeria 303 em Nova York, que os visitantes foram
convidados a compartilhar da experiência de experimentar e compartilhar o curry. Para
esta ocasião as portas que separavam os ambientes da galeria por funções específicas
foram retiradas, de certa forma unificando os espaços. Segundo o artista, os aposen-
tos geralmente ocultos da galeria foram convertidos em “espaço de encontros sociais”.
(Obrist, 2006) Como resultado da sua proposta artística, Tiravanija evidencia que “o
espaço do escritório da galeria se tornou um ponto de encontro e descanso central para
vários visitantes habituais do SoHo.” (Obrist, 2006)
Mas é justamente pensando nas obras de Tiravanija que Hall Foster define o risco de
se apoiar em algum pedigree teórico para converter conceitos abstratos em espaço literal
de operações, e chega a apontar certa promiscuidade das colaborações quando a instalação
adiquire a condição de formato padrão para a discursividade e a sociabilidade. É neste
ponto que Foster aponta a probabilidade de ilegibilidade, pois a morte do autor não signifi-
cou necessariamente o nascimento do leitor, como especulou Roland Barthes, mas pode-se
estar trabalhando com a exploração da perplexidade do espectador. (Bishop, 2006)
Com a mesma intensidade que Foster apresenta ressalvas às instalações e perfor-
mances como as de Tiravanija, ele também rebate as teorias que as sutentam, como as
de Bourriaud.
Para fundamentar seu ponto de vista sobre as teses de Bourriaud, Foster alega ver no
livro Pós-produção não mais que um breve glossário de trabalhos que utilizam técni-
cas de manipulação de produtos culturais e que engendram efeitos relacionais. De fato,
Bourriaud concentra os aspectos conceituais de sua tese em seu livro anterior, Estética
Relacional, para então apresentar em Pós-produção uma panorâmica das produções que
consideram as técnicas de elaboração de sociabilidade com as quais os artistas traba-
lham os elementos relacionais.
Certas obras indicam claramente que alguns artistas contemporâneos tendem à
“construção de percursos dentro dos fluxos existentes” (Bourriaud, 2009). Neste senti-
do, busco ressaltar como as salas e corredores das galerias são reinseridos na cartografia
dos caminhos urbanos, por vezes como atalhos para os fluxos existentes, ou então como
desvios de retorno para a realidade dos percursos cotidianos. O artista propõe a reo-
rientação de personagens cotidianos realizando ações quaisquer, sem objetos inusitados
ou trajes especiais que denunciem alguma singularidade dos gestos, e captura, assim,
atitudes vinculadas às instâncias cotidianas sem qualquer ruptura com sua orientação
comportamental do participante. O artista, portanto, não propõe a criação de novos flu-
xos, tampouco a revelação de passagens incomuns ou eventos inusitados. Ele promove
a convergência de instâncias, como as do público e do privado, do local e do global, do
individual e do coletivo, do artístico e do comum, do culto e do vulgar, com a manipula-
ção os fluxos de eventos disponíveis para, principalmente, propor certa dessacralização
dos espaços reservados da arte dita elevada. Mas, se a postura de Foster pode parecer
32 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

radical, também não se pode permanecer indiferente ao risco que se apresenta como
certa inversão de polaridade, pois as galerias revelam-se como lugares imantados, com
a capacidade de atrair os fluxos existentes e recarregá-los de significados, sejam eles
políticos, ideológicos, culturais, sociais ou afetivos, de modo a reverter os efeitos de
sacralização para os acontecimentos vulgares.
Muitas ações suscitadas pelas propostas artísticas resultam em intervenções que de-
nunciam a passagem dos personagens, pois suas presenças são tomadas como demar-
cações através de seus gestos, ainda que estes gestos sejam associados aos comporta-
mentos mais costumeiros. Trata-se de alterar a disposição do espaço com gestos muitas
vezes passageiros, de subverter a relação com o lugar pela deliberação da presença do
espectador. Trata-se de interferir diretamente nesses espaços de vivência, intervir na
temporalidade inscrita nas relações, abalar as conexões estabelecidas pela natureza do
lugar. O espaço que a princípio acolheria uma obra de arte é aberto à resignificações, de
tal modo que os eventos ali suscitados assumem a condição de obra pelo deslocamento
dos elementos relacionais envolvidos.

Desvios e convergências
Os caminhos das cidades são tomados como pulsantes ambientes de circulação, e a rua
“passa a ser o lugar em que vivemos mais plenamente, isto é, mais irrefletidamente,
vagando o dia inteiro num permanente e generalizado limiar entre o espaço público e o
espaço privado” (Clark, 2007). Os comentários de T. J. Clark ressaltam que, “para Ben-
jamin, as passagens são a chave dessa história mais geral porque somente nelas a verda-
deira estupidez e sublimidade da nova (velha) sociedade encontravam total expressão”
(Clark, 2007). Por isso sugiro que algumas das propostas de ocupação dos espaços das
galerias na arte contemporânea denunciam certa permanência da centenária estratégia
do readymade, talvez como afirmação do que lhe é essencial: o deslocamento.
Lugares de aparição da arte, as galerias habitualmente funcionam como estações
para pausa ou retenção da corrente diária. Assim, a experiência com a arte despertaria
como imersão em ambientes específicos que margeiam os fluxos da cidade. Mas, com
os desdobramentos das instalações e das performances, os eventos característicos dos
fluxos existentes são desviados de seu itinerário corriqueiro para o interior das galerias.
Umberto Eco cedo demonstrou como a poética de uma obra estaria aberta a resigni-
ficações (Eco, 1968), e boa parte dos artistas da primeira metade do século XX adotaram
a máxima de aproximação da obra de arte com o mundo, mas o que parece manifestar-
se na produção artística das últimas décadas é uma ansiada abertura do mundo tomada
como obra. Nicolas Bourriaud dedica um capítulo de Estética relacional a essa ideia,
intitulando-o A obra de arte como interstício social. Mas, como seu próprio discurso
deixa antever, os artistas parecem fazer despontar os interstícios sociais e tomá-los por
atividades artísticas, pois “a arte sempre foi relacional em diferentes graus, ou seja, fator
de sociabilidade e fundadora de diálogos” (Bourriaud, 2009). A proposição de ações per-
formáticas busca responder à pretendida imersão da arte no espaço-tempo real. Assim,
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 33

ir a uma galeria de arte passou a significar mais que visitar espaços expositivos, pois os
espectadores são levados a penetrar ambientes e manipular objetos, vestir capas e com-
partilhar roupas como exercícios participativos e colaborativos desde que as galerias de
arte passaram a proporcionar incursões por instalações e a audiência de performances.
A consolidação da instalação e da performance no repertório contemporâneo, e conse-
quentemente os desdobramentos dessas categorias artísticas, muitas vezes em associa-
ção, levam a audiência para além da função de testemunhar as ações, pois, seduzidos
ou capturados, os espectadores tornam-se partícipes da ação que é tomada como obra.
A largos passos a obra de arte contemporânea intenta elevar o fator relacional ao enredar
diretamente o outro na disposição das ações, e isso sem necessariamente passar pela
mediação de objetos tidos historicamente como específicos do campo da arte.
Mais que receptor das obras o espectador é solicitado como um elemento de trans-
missão, ressaltando a disposição de um jogo relacional envolvente que aciona aconteci-
mentos coletivos. Com os amontoados de doces na instalação Sem título (USA Today),
de 1990, Felix Gonzales-Torres sugere acontecimentos em aberto francamente subordi-
nados ao espectador, com caramelos que circulam cingindo a presença dos espectadores.
Como oferta, a obra de Gonzales-Torres presentifica, de fato, os modos de produção,
recepção e transmissão envolvidos em suas práticas artísticas que dialogam de maneira
franca e prazerosa com as práticas históricas, com os dados culturais, com os elementos
sociais, na reinserção em circuitos nos quais as pessoas reveem o significado dos singe-
los gestos de preparar, ofertar, receber e compartilhar algo comum.

Entre consenso e diversidade


Diante da necessidade de adequação do extenso assunto proposto para este debate às
restrições desta reflexão em poucas linhas, parece oportuno lembrar que a concepção
da ideia de pluralismo na arte contemporânea, atribuída principalmente a Foster, mos-
trou-se fecunda desde o princípio, e de certa forma confirmou-se justamente com as
possibilidades de troca de papéis, assimilações de gestos, intercessões de espaços e con-
vergência de fluxos suscitados pelas instalações e performances propostas por artistas
como Tiravanija.
A crítica de Foster serve para alertar para o risco de um maneirismo às avessas, a
partir da adoção e sustentação de um modo recorrente de não se ter padrões determi-
nados. O que não se pode perder de vista é a abertura e expansão proporcionada pela
arte contemporânea, particularmente pelas instalações e performances, assim como sua
sustentação por comentários como os do próprio Foster. E o perigo de ilegibilidade
deve-se em parte ao risco assumido pela abertura e expansão do campo da arte na con-
temporaneidade, e isso em estreita contraposição à destinação da arte de vanguarda a
uma “elite da elite” pretendida por Clement Greenberg (Ferreira, 1997). Portanto, a falta
de especificidade na forma, nos processos de elaboração e nas narrativas demonstram de
forma paradoxal é o que pode haver de consensual na arte contemporânea.
34 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Aquele que se permite excursionar pelas práticas colaborativas da arte contempo-


rânea, ainda que pelo sinuoso percurso que perpassa a legibilidade e a perplexidade, é
levado a explorar a riqueza da diversidade de fluxos nos desvios e convergências de
gestos e vozes.

Referências
BISHOP, Claire (Org.). Participation/Documents of contemporary art. Londres: Whitechapel Ga-
lery and MIT Press, 2006.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins, 2009.
__________ Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Mar-
tins, 2009.
CLARK, T.J.. Modernismos: ensaios sobre política, história e teoria da arte. São Paulo: Cosac
Naify, 2007.
ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Editora Perspectiva, 1968.
FERREIRA, Glória. COTRIM, Cecília (org.). Clemente Greenberg e o debate crítico. Rio de
Janeiro: Funarte Jorge Zahar, 1997.
OBRIST, Hans Ulrich. Arte Agora!. São Paulo: Alameda, 2006.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 35

Arquivos de direção: O processo


de escrita em Átridas – O Homem
Morto na Banheira

Alexandre Toledo
Cia da Farsa e Trupe Teatro de Pesquisa – [email protected]

Em Genèses Théâtrales, Almuth Grésillon pergunta se é possível a aplica-


ção do método genético, tão afeito ao contexto literário, ao teatro, uma vez
que a obra teatral é um conjunto heterogênio de dados textuais e cênicos
que constituem uma entidade efêmera e fugidia. Acompanhar o nascimento e
desenvolvimento de um conto, uma novela ou romance, tendo a própria obra
literária como objeto para comparação é radicalmente diferente do debruçar-
se sobre os rascunhos de cenas e anotações deixados pelo diretor de um
espetáculo teatral.
36 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Em Genèses Théâtrales, Almuth Grésillon pergunta se é possível a aplicação do mé-


todo genético, tão afeito ao contexto literário, ao teatro, uma vez que a obra teatral é um
conjunto heterogênio de dados textuais e cênicos que constituem uma entidade efêmera
e fugidia. Acompanhar o nascimento e desenvolvimento de um conto, uma novela ou
romance, tendo a própria obra literária como objeto para comparação é radicalmente
diferente do debruçar-se sobre os rascunhos de cenas e anotações deixados pelo diretor
de um espetáculo teatral. Se, conforme nos alerta Salles (2006), os esboços funcionam
como índices da presença do artista em ação, de seu pensamento criativo em movimen-
to, a busca de tais índices, no caso do teatro é tão fugidia como o próprio espetáculo
teatral. A obra nunca está fisicamente presente para a comparação. Ela se encontra em
um registro diverso, na memória do geneticista que a viu uma, duas ou mais vezes, mas
que nunca assistiu ao mesmo espetáculo dada sua natureza efêmera e transitória.
Por outro lado, como pesquisadores interessados em descortinar o universo de uma
semiótica do espetáculo teatral, poderíamos perguntar: como chegar ao âmago do signo
teatral? Como nos libertar de uma análise que elege o texto do dramaturgo como seu
núcleo central? Ora, o texto do dramaturgo não é teatro. O fato de ser apresentado de
uma forma diferente com mais diálogos que narração e de ser pontuado com inúmeras
indicações de cena, as didascálias, não o tornam menos literatura ou mais teatro. O texto
dramático só se torna efetivamente teatro quando traduzido para o palco, tarefa que im-
plica na costura de muitos outros textos (tomando aqui a definição de texto que nos dá
Roland Barthes). A obra teatral final, o espetáculo em si, é um conjunto de escritas que se
superpõem. Nela estão presentes o texto do autor, os diversos textos que compõe o fazer
do diretor (notadamente a transposição do texto teatral para o espaço tridimensional a ser
ocupado pelo espetáculo), a interpretação dos atores (expressa em ações físicas, vocais e
no entendimento intelectual da obra original), no trabalho do cenógrafo, do figurinista, do
iluminador, no compositor ou selecionador da trilha musical, para citar os mais evidentes.
Nada disso é novidade já que a tarefa do geneticista que pretende se debruçar so-
bre o teatro é a de perseguir a produção dos diversos signos que compõe essa imensa
colcha de retalhos que é o espetáculo teatral. O que pretendemos com esse artigo,
no entanto, não é o trabalho de um geneticista ao se debruçar sobre uma obra teatral
objeto de sua pesquisa. Dando continuidade ao trabalho que desenvolvemos em nosso
doutoramento, apresentamos aqui um depoimento de artista. Na verdade de um cole-
tivo de criadores. A exemplo de muitos artistas que escreveram sobre seus métodos
de trabalho, procuramos trazer aqui um esboço do percurso de criação do espetáculo
teatral Átridas – O Homem Morto na Banheira, pontuado por algumas reflexões con-
cernentes ao processo de criação. Trazendo as contribuições dos diversos artistas que
construíram o espetáculo, ele próprio uma interação de diversas linguagens (teatro,
dança, música e vídeo). Esperamos estar contribuindo assim para a ampliação do en-
tendimento de uma semiótica do espetáculo teatral.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 37

A criação como rede pode ser descrita como um processo contínuo de interconexões instáveis,
gerando nós de interação, cuja variabilidade obedece a alguns princípios direcionadores. Essas
interconexões envolvem a relação do artista com seu espaço e seu tempo, questões relativas à
memória, à percepção, recursos criativos, assim como, os diferentes modos como se organi-
zam as tramas do pensamento em criação. O artista deixa rastros deste percurso nos diferentes
documentos do processo criativo.1

Revendo nosso diário de trabalho, esses rastros do percurso, sentimos a necessidade


imediata de estabelecer o seu início, o marco zero de sua fundação, tarefa nem sempre
bem sucedida em se tratando do pensamento artístico já que uma obra de arte sempre
remete a outras obras, da mesma forma que um pensamento remete a outro pensamento
e um signo a outro signo. Também não devemos nos esquecer de que a criação artística
é um processo contínuo presidido pela lógica da incerteza e aberto a intervenções do
acaso e de novas ideias, o que torna a tarefa de determinar seu começo e seu final algo
muito difícil. Apesar de toda essa dificuldade, pensamos ser possível dizer onde começa
uma obra de arte. Ela tem início não como obra em si, mas como desejo do artista de
expressar algo que o toca, que o questiona, que o move, algo que reclama transformar-
se em objeto, em plasmar-se em algum tipo de suporte que lhe garanta ser visto, ouvido
ou sentido. Isso é válido particularmente para o teatro. Nosso trabalho teve início com o
convite feito pelo diretor da Trupe Teatro e Pesquisa para dirigir seu retorno aos palcos
através da montagem de um clássico grego: Agamemnon, de Ésquilo. O grupo já havia
trabalhado com o universo da tragédia grega em outras duas oportunidades. A primeira
em meados dos anos 90 com a montagem de Ifigênia e a segunda em Espécie:Oedipus
Rex, na década passada. Ifigênia, espetáculo dirigido por Ítalo Mudado, era um trabalho
mais convencional, já a versão de Édipo Rei apontava para a escolha de outros caminhos
que refletiam a trajetória do grupo. O trabalho de montagem do espetáculo teve início
no princípio de agosto de 2011 e desde as primeiras reuniões, o proponente do projeto
declarou seu desejo de não nos restringirmos ao texto de Ésquilo, mas de procurar uma
interação de vários textos que nos últimos dois mil anos trataram de forma direta ou in-
direta do mito dos Átridas.2 A solução encontrada pelo grupo foi então manter o núcleo
de personagens da tragédia clássica: Agamemnon, Clitemnestra, Egisto, Electra e Cas-
sandra, incluindo-se aí a personagem de Orestes (que não faz parte da primeira peça da
trilogia de Ésquilo) e reconstruir a história do mito dos Átridas através de ações físicas
que revelassem essa interação de vários textos.

Do mito
A Oréstia ou Orestéia de Ésquilo é a única trilogia do teatro clássico grego que nos
chegou intacta até os dias de hoje. Nos antigos festivais religiosos dos gregos os poetas

1. Vocabulário. Disponível em <http://www.redesdecriacao.org. br.


2. Além da trilogia de Ésquilo foram utilizados os textos Agamemnon, de, Macbeth, de Shakes-
peare, o poema dramático Clitemnestra ou o crime, de Marguerite Yourcenar, Agamemnon de
Vittório Alfieri, Electra Enlutada, de Eugene O’Neil e Hamlet-Máquina, de Heiner Muller.
38 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

apresentavam uma trilogia completa e um drama satírico que, no caso da Oréstia, se


perdeu. A obra é composta pelas seguintes peças: Agamemnon, onde é narrada a volta
do rei de Argos, vencedor da Guerra de Tróia e seu assassinato pela rainha Clitemnes-
tra e seu amante Egisto; As Coéforas, onde é contada a história do retorno secreto de
Orestes, filho de Agamemnon que se encontrava exilado na Fócida, seu encontro com
a irmã Electra que o incita a vingar a morte do pai levando-o a aniquilar os assassinos
do rei e As Eumênides que trata do julgamento de Orestes pelo tribunal do Areópago e
sua absolvição pela intervenção de Palas Atena. Uma vez abandonada a ideia inicial de
montarmos o texto Agamemnon de Ésquilo, foi proposta então a criação de um texto
coletivo que pudesse abarcar todo o mito fixando-se nos principais acontecimentos da
trilogia. A pretensão do grupo era dar conta de toda a Oréstia em apenas um espetáculo.

Da moldura:
Em nosso trabalho de doutoramento no qual acompanhamos a construção de três espetá-
culos teatrais distintos, propomos que uma das primeiras tarefas assumidas pela direção
fosse o estabelecimento de uma moldura para o desenvolvimento do trabalho dos atores
e demais colaboradores. Em nossa concepção, a moldura constitui-se de um ambiente
propício para fomentar a criação, do estabelecimento de parâmetros sobre os quais o
ator ou o coletivo de atores partiria para a composição de suas personagens. No caso em
questão, a moldura também forneceria, em princípio, o viés para a própria construção
do texto. A moldura não é um ambiente fechado que enquadrando o ator, o coloca sob a
tutela de uma camisa de força. Ela consiste no estabelecimento de parâmetros mínimos
por onde deverá transitar o trabalho de um artista. Nesse sentido, a noção de moldura
muito se aproxima do conceito de princípios direcionadores:

As tendências do percurso podem ser observadas como atratores, que funcionam como uma
espécie de campo gravitacional e que indicam a possibilidade que determinados eventos ocor-
ram. Nesse espaço de tendências vagas está o projeto poético do artista que são princípios
direcionadores, de natureza ética e estética, presentes nas práticas criadoras, relacionados à
produção de uma obra específica e que atam a obra daquele criador, como um todo. São princí-
pios relativos à singularidade do artista. São planos de valores, formas de representar o mundo,
gostos e crenças que regem o seu modo de ação: um projeto pessoal e singular.3

Em Átridas – O Homem morto na Banheira, esse campo gravitacional foi bem am-
plo e contou com a participação de todo o núcleo de atores e não somente da direção.
Nas primeiras reuniões foi estabelecida a premissa de que o grupo contaria toda a histó-
ria do mito no mesmo espetáculo. O espetáculo final não cumpriu tal pretensão ficando
mesmo restrito à trama contida no primeiro texto de Ésquilo (Agamemnon). A direção
propôs então que a primeira parte do espetáculo fosse uma espécie de prólogo onde
3. Vocabulário. Disponível em <http://www.redesdecriacao.org. br.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 39

cada personagem se apresentasse através de um monólogo escolhida pelo próprio ator.


Como a moldura é um espaço delimitado pela direção para nortear o trabalho do ator, a
busca da moldura ideal para o que se tinha em mente foi também uma das tarefas iniciais
buscadas pelo coletivo. A partir da premissa básica, contar o mito de Agamemnon, di-
reção e atores trouxeram textos, músicas, filmes, objetos e propostas de exercícios com
o intuito de contaminar o ambiente de trabalho. Os papéis também foram definidos logo
nos primeiros encontros. Inicialmente mantivemos as personagens Cassandra e Orestes.
Como Cassandra seria assassinada junto com Agamemnon por Clitemnestra e Egisto,
optamos em dar tal papel à mesma atriz que faria Electra. Já Orestes era um caso à parte.
Nos primeiros ensaios, o ator e proponente do projeto, Yuri Simon, colocou seu desejo
de cantar uma ária da ópera O Pescador de Pérolas, de Félix Pearlman na versão do
músico e cantor David Gilmour. Faltava casar esse desejo com o desenvolvimento do
espetáculo, escolher a cena ideal onde a música dialogaria com o texto. A certa altura
do trabalho de estabelecimento do texto o grupo se deparou com a seguinte dificuldade:
como tratar a história de Ifigênia? Na mitologia grega, Ifigênia, filha de Agamemnon e
Clitemnestra, teria sido sacrificada para aplacar a ira da deusa Ártemis que havia parali-
sado os ventos, impedindo assim a partida da frota grega para Tróia. O sacrifício fora au-
torizado por Agamemnon contrariando a oposição de Clitemnestra que, a partir de então,
passou a ter motivos suficientes para dele se vingar no futuro. Inicialmente pensou-se
em fazer apenas uma breve menção ao fato, mas a decisão de incluir a ária de Pearlman
no espetáculo, ária que seria cantada pelo ator que encarnaria Agamemnon, acabou por
implicar na entrada definitiva da história não mais como simples menção, mas parte
efetiva do enredo funcionando como uma das molas propulsoras da ação vingativa de
Clitemnestra, o que por sua vez determinou a busca de textos onde tal discurso estivesse
explícito, bem como a justificativa para um traço de melancolia contida na personagem
Agamêmnon, elemento trazido pelo trabalho de pesquisa do ator.
No espetáculo anterior da Trupe Teatro e Pesquisa, Poema do Concreto Armado,
foram utilizados recursos diversos de som e vídeo. Uma das personagens centrais do
enredo era inteiramente virtual e sua imagem juntamente com outras era reproduzida
em diversos televisores dispostos pelo espaço e em um telão. Logo nos primeiros en-
saios de Átridas decidimos dar continuidade a tal pesquisa. Um dos componentes mais
importantes do teatro grego clássico é o coro que funcionava como um contraponto ao
protagonista interpelando-o e comentando a situação. Muitos estudiosos atribuíram ao
coro a função de representar a própria polis, ser sua voz na tragédia. Nossa intenção
inicial era a de transformar o coro clássico da tragédia em um coro virtual aproveitando
o acervo que já havia na trupe. A ideia era a de utilizar os próprios atores do grupo nas
filmagens, gravando apenas seus rostos ou partes do rosto e suas vozes em situações
distintas e em relação com o que acontecia em cena. Tal proposta, no entanto, não foi
adiante sendo retomada posteriormente com relação à personagem Cassandra. Como ela
seria desempenhada pela mesma atriz que encarnaria Electra, pensamos em economizar
tempo transformando-a em uma personagem virtual. Mas as decisões tomadas ao longo
40 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

do processo acabaram por nos levar a eliminar a própria personagem da narrativa e


abandonar tal ideia definitivamente.

Interconexões
Nenhuma obra de arte surge do nada. A obra surge de uma série de relações do artista
com o mundo que o cerca, com outras obras, com outros artistas. No processo de criação
teatral tal fato é muito evidente principalmente em um processo que tenha como pres-
suposto básico a criação conjunta, como em nosso caso. Nesse sentido, a existência da
figura do diretor teatral não implica uma verticalização na tomada de decisões. Decisões
são tomadas de acordo com as ideias que vão surgindo e sua viabilidade vai sendo com-
provada ou não ao longo do processo. Ensaiar é sempre a busca da ação mais eficiente.
A escrita teatral é uma confluência de escritas diversas que vão sendo organizadas sob
a batuta da direção e se o acaso é componente importante na criação da obra, ideias tra-
zidas por outros colaboradores podem trazer à luz um sentido que ainda se encontrava
latente ou apontar uma direção diferente da que estava sendo perseguida até então. No
processo de construção de Átridas tivemos desde o primeiro momento uma presença
constante da música. Como já foi dito anteriormente, o estabelecimento da moldura não
ficou a cargo apenas da direção e todos os atores foram instados a trazer contribuições
para enriquecer o espaço de criação. Em todos os primeiros ensaios foram recolhidas su-
gestões de textos, músicas e filmes, mas foi a música que marcou definitivamente o pro-
cesso. Em certo sentido a música foi um dos componentes mais marcantes da moldura.
Decididos a contar toda a história do mito, os atores foram orientados a criar cenas
através da improvisação emulando o encontro das personagens ao longo da trama. Num
primeiro momento não tivemos a preocupação com o texto escrito, mas apenas com a si-
tuação. Como se daria o encontro entre Agamemnon e Clitemnestra depois de tanto tem-
po? E o encontro entre Egisto e Clitemnestra para planejar o assassinato de Agamemnon?
Como haveria de ser o encontro entre Orestes e Electra? Como construir tais encontros
corporalmente? Como transformá-los em imagens. Tais cenas, bem como os monólogos
iniciais de apresentação de cada personagem se constituíram no núcleo dramatúrgico
do espetáculo nos primeiros dois meses de trabalho. Um dia sentimos a necessidade de
ordenar o que havia sido criado. Tínhamos duas músicas já escolhidas: a primeira era a já
citada ária da ópera O Pescador de Pérolas, a segunda era Back to Black que havia sido
sugerida por um dos atores logo no primeiro mês de trabalho. Faltava encontrar algo que
pudesse unificar a pequena estrutura narrativa que havíamos criado até esse ponto, algo
que pudesse alinhavar a proposta dos monólogos iniciais com os esboços de cena cons-
truídos. O fator unificador foi dado pela música. No dia em que resolvemos apresentar
o que havia sido criado até então, a direção propôs que os atores se preparassem para a
exibição dos monólogos enquanto ouviam uma música que havia sido trazida por um dos
atores logo nos primeiros encontros. Tal música tem uma duração de 10 minutos, tempo
em que os atores executavam uma série de ações criadas de antemão e que precederia aos
textos. A proposta provou sua eficácia e foi mantida no espetáculo.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 41

Um exemplo de acaso que mudou os rumos do espetáculo aconteceu no ensaio em


que se trabalhou o encontro entre Agamemnon e Egisto. A essa altura o texto já havia
sido estabelecido, mas a cena não fluía. A direção primeiro propôs que os atores execu-
tassem algum tipo de dança, um tango que poderia insinuar tanto uma possível questão
erótica latente entre os dois, quanto um aspecto de violência física, mas tal proposta
não se mostrou eficiente. Então, aproveitando alguns bastões de madeira que jaziam
em um canto do estúdio (existem vários exercícios de preparação e aquecimento que os
atores executam utilizando bastões desse tipo), os atores improvisaram uma cena de luta
utilizando os bastões como espadas, o que se mostrou eficiente e resolveu a cena. Tal
resolução descortinou a necessidade de uma coreografia específica para a luta e, o fato
de estarmos utilizando bastões de madeira, desaguou na ideia de utilizarmos as espadas
de madeira utilizadas na arte marcial Ki-Aikidô, o que por sua vez nos levou a buscar
a própria arte marcial como referência para a coreografia. A influência de tais decisões
acabou por influenciar também na composição do figurino, totalmente calcado na indu-
mentária japonesa clássica.
Como um processo aberto e em permanente alteração e que, mais que em qualquer
outra arte, prima pelo inacabamento, a interação das novas propostas trazidas pelo co-
letivo de criadores foram atribuindo outros sentidos para o que havia sido construído. A
proposta do figurino japonês e o tipo de material utilizado para confeccioná-lo alterou a
composição imagética das cenas e afetou o trabalho corporal dos atores que tiveram que
adaptá-lo à nova realidade. Em um ensaio, a atriz que interpretava Clitemnestra trouxe
para o aquecimento um exercício baseado na técnica do teatro kathakali. O movimento
desenvolvido nesse exercício acabou por ser incorporado pela atriz como uma ação pró-
pria de sua personagem. A certa altura do trabalho, com uma estrutura narrativa mais ou
menos delineada, a direção sentiu falta da célebre cena em que Agamemnon é desafiado
por sua esposa Clitemnestra a andar sob um tapete púrpura, cena contida no texto ori-
ginal de Ésquilo e que representaria a falha trágica de Agamemnon, o momento em que
ele cede à vaidade provocando assim a ira dos deuses e sua consequente queda. A cena
foi então trazida para a estrutura já existente. Inicialmente a música Back to Black havia
sido pensada para ser cantada por Clitemnestra. Passou-se em seguida a convicção de
que deveria ser executada por todos os atores em coro. A tarefa, no entanto, coube final-
mente a Egisto. Os outros atores atuariam apenas no refrão. Com dois atores cantando,
em um elenco de quatro, resolvemos então descobrir canções que pudessem ser exe-
cutadas pelos outros membros do grupo. Em todos os casos, a canção funcionou como
elemento dramatúrgico. A ária de O Pescador de Pérolas para ilustrar o sentimento de
Agamemnon com relação à perda da filha Ifigênia dada em sacrifício, Back to Black
para completar o sentimento de abandono de Egisto com o retorno do legítimo rei. O
responsável pela preparação vocal dos atores propôs uma colagem dos sambas Nunca
e Vingança, ambos de Lupícinio Rodrigues para a cena em que Clitemnestra expõe as
42 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

razões de seu rancor e para a cena final do espetáculo foi escolhida uma canção fúnebre
judaica, um kaddish, para ilustrar os sentimentos de luto de Electra e prepará-la para o
discurso final de vingança.

O desejo do grupo em conjugar os recursos de outras mídias ao trabalho teatral,


como já foi dito, plasmou-se na proposta de um coro virtual, mas com uma mudança
substancial. A utilização dos atores para interpretar o coro foi descartada e o respon-
sável pelo vídeo trouxe a proposta de uma colagem de imagens diversas mesclando
filmes antigos e modernos, animações, imagens surrealistas, documentários e mesmo
cenas ao vivo, ressaltando o caráter de comentário e ilustração de situações pelo coro e
empregando técnicas visuais que, conjugadas com o que se via em cena, nos remetiam
às ideias de montagem cinematográfica propostas por Eisentein. A cenografia se encar-
regou de assegurar um espaço privilegiado para a exibição das imagens, constituindo-se
de um suporte para uma tela branca articulada a dois televisores frontais à plateia e dei-
xando todo o resto do palco livre para a atuação dos atores. Os únicos elementos cênicos
presentes consistiam em um trono de metal manipulado por quase todos os atores como
se fosse uma peça de xadrez e a banheira onde Agamemnon seria assassinado, misto de
leito de morte e oceano. Sob a banheira, disposta em local fora do palco, estava instalada
uma câmera para captar imagens que seriam mescladas às já existentes.

Definições e recomeço
O desenvolvimento do processo criativo demanda ao criador a tomada de decisões que
muitas vezes alteram os rumos do processo. Decisões geralmente são tomadas em mo-
mentos de crise. A certa altura do processo de criação nos deparamos com uma série
de impasses. Havíamos definido inicialmente que trabalharíamos com as seis persona-
gens básicas do mito grego. Entretanto, a dificuldade de encontrar um ator adequado
ao papel de Orestes nos vez abandonar tal ideia após três tentativas. Ao mesmo tempo,
a ausência de um texto mais estruturado parecia não permitir que o trabalho avançasse
provocando na direção uma necessidade de contar com algo mais consistente. Esses
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 43

impasses levaram o coletivo a decidir pelo abandono do projeto de contar todo o mito
desde a chegada de Agamemnon a Argos até o julgamento de Orestes pelo areópago e
se concentrar apenas na primeira parte da história onde se descreve o retorno do rei e o
seu assassinato pela esposa e seu amante. Tal decisão eliminou a personagem de Orestes
e a incômoda tarefa de encontrar um novo ator. Então um dos atores trouxe o texto
Agamenon, versão escrita no século XVIII pelo italiano Vittório Alfieri para o clássico
grego. O texto foi traduzido por um membro da trupe e escolhido para ser o texto básico
da encenação. A versão de Alfieri não conta com a personagem Cassandra que é apenas
mencionada em determinada passagem, o que nos obrigou a eliminar tal personagem,
decisão que se mostrou por fim ser a mais acertada. A escolha por Alfieri, no entanto, não
significou a eliminação de toda estrutura narrativa que já havíamos construído até então,
mas uma união entre ambos. Assim, os monólogos iniciais de Egisto, Clitemnestra e
Agamemnon foram mantidos e o texto inicial de Orestes, uma adaptação de trecho de
Hamlet-Máquina de Heiner Muller, foi assumido por Electra. Também a clássica cena
do tapete retirada do original de Ésquilo foi mantida, bem como parte do diálogo final
entre Egisto para Electra, bem como a última fala de Hamlet-Máquina. O texto final se
revelou enfim coerente com nosso propósito inicial que era fazer uma colagem de vários
escritos sobre o tema.
Mas apesar das idas e vindas no processo, principalmente com relação à definição
do texto final, olhando em retrospecto as anotações que deixamos registradas em nosso
diário de trabalho, é possível constatar que a ideia central do espetáculo, a forma que ele
finalmente tomou após mais de um ano de ensaios, já estava esboçada logo nas primeiras
reuniões do grupo como uma linha de força básica, uma tendência irresistível, como a
revelada no estabelecimento do texto. As ideias principais já estavam lá, definidas du-
rante o processo de construção da moldura de trabalho e foram ganhando substância no
decorrer dos ensaios. Chegamos a um ponto efetivamente satisfatório? Dificilmente. O
trabalho de criação artística, principalmente o teatral, é, por natureza, inacabado.
O processo de escrita teatral do espetáculo Átridas – O Homem morto na banheira
foi marcado por uma multiplicidade de escritas, pela confluência de múltiplas drama-
turgias que ora seguiram o projeto estético da direção, ora dele se desviaram apontando
novos caminhos e preenchendo lacunas existentes no projeto original. Nesse sentido,
o trabalho do diretor teatral se define por uma série de papéis que ele deve assumir ao
longo do processo: indutor de propostas, agente catalisador de ideias e finalmente como
organizador das várias propostas que passam a ganhar sentido. O espaço teatral, cuja
conquista se torna a própria razão de existir do diretor teatral e que condensaria todo
esforço de tradução de uma obra em outra, torna-se assim o ponto nevrálgico para onde
confluem diversas dramaturgias: dos textos, dos atores, da luz, da música, dos cenários
e figurinos. A dramaturgia ganha assim um novo estatuto. Não se trata mais de um tra-
balho de um único escritor, mas da interação das escritas de vários autores que ganham
voz durante o processo de criação.
44 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Referências
GRÉSILLON, Almuth, MERVANT-ROUX, Marie-Madeleine, BUDOR, Dominique (orgs).
Genèses théâtrales. Paris: CNRS Editions, 2010.
SALLES, Cecília Almeida. O Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Anna-
bluem, 2004.
_______. Redes de criação: construção da obra de arte. São Paulo: Horizonte, 2006.
Site: <http://www.redesdecriacao.org.br>
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 45

Nova Arte Pública de Gênero:


práticas de arte e feminismos
da América Latina

Aline Paula de Oliveira Leite


PPGECA/UFF – [email protected]

Essa pesquisa tem como objetivo analisar e conceitualizar práticas artísticas


na América Latina na contemporaneidade recorrendo aos trabalhos desenvol-
vidos pelos coletivos feministas e artistas: Mujeres Publicas (Argentina), Mu-
jeres Creando (Bolivia) e Rede Nami (Rio de Janeiro). A partir do conceito de
Novo Gênero de Arte Pública elaborado por Suzanne Lacy aqui reinventado
como Nova Arte Pública de Gênero, buscaremos identificar nessas práticas
novas possibilidades de articulação entre a arte e a política e de novos parâ-
metros da arte colaborativa.
Palavras chaves: Arte pública de novo gênero, arte pública de gênero, arte
colaborativa.

This research aims to analyze and conceptualize artistic practices in Latin


America in contemporary drawing on work done by feminists artist collectives:
Mujeres Publicas (Argentina), Mujeres Creando (Bolivia) and Rede Nami (Rio
de Janeiro). From the concept of New Genre Public Art created by Suzanne
Lacy, elaborated here reinvented as New Public Art of Genre, these practices
seek to identify new possibilities of interaction between art and politics and new
parameters of collaborative art.
Keywords: New genre public art, New Public Art of Genre, collaborative art.
46 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Introdução
O presente texto disserta sobre as práticas artísticas de coletivos feministas na América
Latina, mais especificamente no Brasil, Argentina e Bolívia e os respectivos coletivos:
Rede Nami, Mujeres Publicas e Mujeres Creando. Buscamos refletir sobre qual o lugar
dessas práticas na contemporaneidade e em que medida sinalizam novos parâmetros
para a arte contemporânea.
As mulheres que compõem cada um desses grupos têm origem diversa, muitas não
se consideram artistas, outras são donas de casa, indígenas (no caso da Bolívia), ativis-
tas, militantes. Enquanto seu discurso vai do anarco-feminismo (no caso de Mujeres
Creando) ao feminismo da igualdade (Rede Nami), enquanto Mujeres Publicas incorpo-
ra demandas tradicionais do feminismo, como direito ao aborto, à igualdade de oportu-
nidades, ampliando questões referentes à homoafetividade. Neste sentido, nos pergunta-
mos: como conceituar esses coletivos? Serão artistas militantes, ativistas artistas? Como
defini-las? Em que medida essas práticas se diferem de outras?

Coletivos e suas práticas públicas


O coletivo ativista feminista Mujeres Publicas, atuante desde 2003 em Bueno Aires,
surge a partir de questionamentos com a militância política e da constatação de que as
reivindicações feministas são colocadas em segundo plano dentro do debate político, se
comparadas a outros temas que parecem ser mais relevantes para a sociedade. Esse des-
contentamento com a agenda política levou quatro mulheres militantes e artistas visuais
a se unirem buscando uma alternativa à militância de grupos feministas, os quais acabam
repetindo os mesmos esquemas tradicionais de expressão política. Mujeres Publicas pro-
duz uma série de cartazes (Fig.1) que são espalhados pelos muros da cidade de Buenos
Aires, pretendendo suscitar o questionamento junto aos transeuntes a respeito da femini-
lidade, da homoafetividade, do aborto, entre outros temas. Buscando instaurar ações que
têm a ironia como forte elemento, o grupo se define como um coletivo artístico e político
que trabalha o feminismo desde uma perspectiva ampla utilizando o espaço público como
campo de ação mesclando ativismo, criatividade e humor (BULLENTINI, Ailín. Entre-
vista com Mujeres Publicas. Disponível em: <http://www.mujerespublicas.ar>).

Figura 1 - Fotomontagem: Exemplos de car- Figura 2 - Grafites produzidos por mujeres


tazes produzidos pelo coletivo Mujeres Pu- Creando. Cidade de La Paz, Bolívia.
blicas.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 47

Figura 3 - Oficina: “Se você não muda, mudo eu”. Favela da Maré em parceria com o Obser-
vatório das Favelas. Centro de referência da Mulher, Maré, Rio de Janeiro.

Na capital da Bolívia o coletivo feminista anarquista, Mujeres Creando há mais de


15 anos ocupa as ruas da cidade com perfomances, grafites (Fig. 2) e manifestações
diversas. Essas mulheres não se consideram artistas, mas antes agitadoras callejeras.
Finalmente no Brasil, mais precisamente no Rio de Janeiro, está a rede feminista de
arte urbana, a Rede Nami, que reúne mulheres de diferentes classes sociais em torno à
arte urbana como meio de divulgação sobre os direitos das mulheres. Periodicamente
se reúnem para realizarem oficinas de formação em grafite onde são debatidos temas
referentes aos direitos reprodutivos, à violência doméstica e também realizam um mural
coletivo a partir das temáticas suscitadas (Fig. 3).

Nova Arte Pública de Gênero:


parafraseando o conceito Arte Pública de Novo Gênero
A partir dos anos 1970, a artista Suzanne Lacy observa o surgimento de um novo tipo
de estratégia artística, ou melhor, de coletivos e de artistas inspirados em experiências
mais focadas na relação com o público e com o mundo, onde se estabelecem vínculos
efêmeros, onde o artista abre mão da sua “aura” de artista e se transforma num provoca-
dor. Para Lacy, o interesse cada vez maior dos artistas pelo espaço público, levou a uma
redefinição da arte pública, um giro que para além da transposição da arte dos espacos
fechados das galerias e museus para os espacos abertos e públicos como ruas, parques e
praças, a transforma num “novo gênero de arte público”, no qual por um lado a ênfase
recai sobre os processos de sociabilidade estabelecidos através das relações que esse
novo gênero possibilita, considerando-se os, por outro, os problemas político-sociais
48 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

do lugar específico onde se leva a cabo, culminando com uma perda da objetualidade e
da autoria, em muitos casos. Neste processo, abre-se horizonte para novas tipologias e
caracterizações, que tem emergido nos últimos anos basicamente sob o mesmo esquema
original, ou seja, levando-se em conta desde a estética relacional à arte contextual, da
estética conectiva à dialógica. (LACY, 1995).
A partir dessas constatações, Suzanne Lacy elaborou o conceito de novo gênero de
arte pública, o qual tem sido amplamente empregado na análise das práticas recentes
de arte na esfera pública, em especial aquelas que se articulam de forma mais espessa
com segmentos da sociedade. Este novo gênero utiliza os mais diversos meios para
dialogar e interagir com públicos diversificados, desde a mídia tradicional à não tra-
dicional, sobre assuntos que estejam diretamente conectados com suas vidas, aproxi-
mando-se de idéias formais das vanguardas, ao mesmo tempo que estrutura-se a partir
de uma sensibilidade desenvolvida sobre o público, revelando-se como uma estratégia
social de relação (LACY, 1995).
Parafraseando o termo acunhado por Suzanne Lacy, novo gênero de arte pública,
para referir-se à emergência de novas estratégias de ação artística nas ruas nos anos
1970 nos Estados Unidos, poderíamos arriscar-nos a dizer que as práticas emergentes
dos coletivos supracitados poderiam ser denominadas como uma nova arte pública de
gênero, já que reúnem práticas que se estruturam a partir de coletivos militantes que
utilizam a arte como forma de expressão do político, de ativistas a artistas-performers,
tendo o feminismo como denominador comum e como elemento norteador do discurso
político, a rua como campo de ação e coletivos formados exclusivamente por mulheres
(ou pelo menos em sua maioria).
Poderíamos arriscar-nos a dizer que a exploração das possibilidades espaciais reali-
zadas por esses coletivos está na origem do movimento feminista; basta lembrar as sufra-
gistas que ocuparam as ruas com protestos, manifestações e marchas, na primeira onda
feminista. Assim como na segunda onda, a partir dos anos 1960, quando a consciência de
que a esfera privada, os domínios da vida doméstica e pessoal estão atravessados pelo po-
lítico, também levou muitas artistas a protestar nas ruas, tornando público sua indignação
e descontentamento com a invisibilidade histórica das demandas femininas.
É interessante observar nesses coletivos, características comuns, tais como propostas
de processos colaborativos e a intervenção no espaço público, seja por meio de perfor-
mances nas ruas, da fixação de cartazes, o uso de grafitti, stencil entre outros materiais.
Além disso, em relação à abordagem do discurso feminista, há uma crítica ao feminismo
ocidental, heterossexual, branco e de classe média, o que qualificam esses coletivos com
demandas e questionamentos característicos do pós-feminismo.
Estes são apenas alguns exemplos de um fenômeno relativamente recente na Amé-
rica Latina: a emergência de coletivos de mulheres feministas que buscam intencional-
mente o cruzamento entre práticas artísticas e discurso político como forma de sensibili-
zar a sociedade a respeito das temáticas de gênero. São reverberações do imaginário do
feminismo radical de outrora, porém com nova roupagem, mais adequada aos contextos
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 49

da atualidade. Esses coletivos se apropriam do discurso feminista ocidental, adaptan-


do-o às suas realidades urbanas ou campesinas, étnicas etc.. A partir de seus territórios
de luta, compartilham a consciência da assimetria no tratamento da sociedade em rela-
ção às mulheres. Apropriam-se das ruas, dos muros das cidades, fazem performances,
questionam as tradições, as políticas identitárias e a construção do modelo idealizado
de mulher em suas respectivas culturas, rompendo assim as fronteiras entre o público e
o privado, mostrando a cara de um “outro” feminismo descolonizado, crítico a qualquer
tendência universalista e essencialista.

Referências
AMORÓS, Celia. Teoría feminista. De la Ilustración a la globalización. Madrid: Ed. Minerva.
2005. (3 vols.)
BRENSON, Michel. Perspectivas da arte pública. Seminários Arte Pública SESC. São Paulo:
SESC,1998.
CASTILLO, Rosalva Aída Hernández y NAVAZ, Liliana Suárez (coord.). Descolonizar el Femi-
nismo: Teorías y Prácticas desde los Márgenes. España, Cátedra, 1986
LACY, Suzanne. Mapping the Terrain. New Genre Public Art. Chicago: University of Chicago
Press, 1994.
50 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

As redes de criação na performance


de Wagner Rossi Campos

Ana Cecília Araújo Soares de Souza


UFC – [email protected]

Esta pesquisa tem por objetivo estudar o processo de criação do performer


Wagner Rossi Campos, cuja produção é movida por diálogos com a perfor-
mance e o ritual, a cura e a intensificação de energia, a meditação e a an-
cestralidade. Assim, buscamos compreender essas questões em sua obra,
e como, a partir de seus entrelaçamentos surge o algo que denominamos de
“entremeio”. Nas palavras de Mario Perniola: “O ponto fecundo nascido como
uma fissura no meio de duas bordas, onde existem profundidades a serem
investigadas”.
Palavras-chave: Performance. Ritual. Processo criativo. Corpo.

This research aims to study the process of creating the performer Wagner
Rossi Campos, whose production is driven by dialogue with the performance
and ritual, healing and increased energy, meditation and ancestry. Thus, we
seek to understand these issues in his work, and how, from their entanglemen-
ts arises something we call the inset. In the words of Mario Perniola: “The point
fecund born as a crack in the middle of two edges, where there are depths to
be investigated”.
Keywords: Performance. Ritual. Creative process.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 51

Introdução
Pensar o limiar tênue entre a performance e o ritual na produção contemporânea. O
“estar-entre” que surge da transversalidade existente dessas duas esferas. O híbrido que
saí do plano da transcendência para o plano da imanência, dilatando a experiência da
percepção do espaço e do tempo referentes ao artista e ao público. Foram alguns dos
motivos que nos levaram a analisar e a discutir essas questões a partir do processo de
criação do performer Wagner Rossi Campos.
O artista nasceu em Belo Horizonte, cidade onde vive e trabalha atualmente. Além
de sua produção, ele é o idealizador do PERPENDICULAR, festival internacional de
performance. Criado em 2009, com a finalidade de intervir em espaços urbanos, ati-
vando redes colaborativas de expressão capazes de ampliar as relações entre artistas,
curadores, pesquisadores, estudantes e público em geral.
Dessa forma, o nosso interesse pela obra de Campos tem sido movido por vários
fatores, como os diálogos que realiza com a performance e o ritual, a cura e a intensifi-
cação de energia, a meditação e a ancestralidade. Ele é um artista-pesquisador que in-
vestiga seu corpo na primeira pessoa, como objeto e sujeito da ação. Um corpo sensível
que faz do ato um acontecimento e abertura à experimentação.
Esta pesquisa, que vem sendo desenvolvida no mestrado do Programa de Pós-Gra-
duação em Artes da Universidade Federal do Ceará; possibilita-nos compreender os
meios como se formam as redes de criação na poética desse artista, e como as articu-
lações entre elas nos oferece um panorama no qual está dissolvida a rígida polaridade
entre sagrado e profano.
Tudo isso dá lugar a hibridismos inéditos e surpreendentes. O que implica na exis-
tência de um campo intermédio, autônomo em relação aos extremos. Zona de inventi-
vidade onde Wagner Rossi Campos reconfigura a performance ritualística, imerso num
sistema inacabado sempre em busca de um algo maior que si. No qual, ele, artista,
reinventa-se a cada nova obra.

Imersão no Processo Criativo


Debruçar-se sobre uma obra pronta para esmiuçar-lhe a construção e os mecanismos de
sentidos e, consequentemente emitir juízos de valor, foi, por muito tempo, o principal
caminho para se chegar ao universo de um artista. Contudo, essa concepção vem pas-
sando por intensas transformações. Partindo-se do fato que o trabalho artístico, exposto
ao público, não é considerado sua última etapa, apenas uma das possibilidades de um
processo que não se conclui, mas que pode ser interrompido.
O conceito de “crítica de processos”, elaborado pela pesquisadora Cecília Almeida
Salles, traz à tona essas questões. Tendo como princípio norteador a necessidade de
perceber a criação como uma rede de conexões, cuja densidade está ligada à multiplici-
dade das relações que a mantém. É mais que abrir os baús e as gavetas dos artistas para
conhecer os registros das histórias dos trabalhos.
52 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

O processo de criação é um corpo dinâmico que se altera pela eficácia do tempo.


Caracterizado pela mobilidade e pela flexibilidade, pela presença do acaso, dos esque-
cimentos, dos silêncios e, ainda, pelo contato com o outro. Acreditamos que para este
estudo é importante um pensamento processual como o apontado por Salles. Uma vez
que imergir no processo de construção de uma poética é conhecer quais são os aspectos
direcionadores, de natureza ética e estética, presentes nas práticas criadoras. Um recurso
para se aproximar da singularidade do artista, perceber os planos de valores, os gostos e
as crenças que regem seu modo de ação.
Portanto, a partir da crítica de processos, temos traçado um paralelo reflexivo sobre
o percurso do performer mineiro Wagner Rossi Campos, a fim de compreender a (s)
forma (s) que o ritual e a performance são trabalhados por ele, e como, através dos en-
trelaçamentos dessas duas esferas, surgem o híbrido, o entremeio, tão essencial quanto
a diferença e a repetição. O ponto fecundo nascido como uma fissura no meio de duas
bordas, onde existem profundidades a serem investigadas.

Figura 1. Video-performance Quero que cuspam leite em mim, Belo Horizonte, 2009. (Acer-
vo do artista).

Observamos o processo poético deste artista como um fazer singular em que se


anunciam territórios flutuantes e questionadores da estabilidade das certezas e dos há-
bitos. Como uma espécie de rizoma (Deleuze; Guattari, 2011), que nos ajuda a pensar
as multiplicidades que constituem seu próprio trabalho. Não apenas uma representação
– mesmo que possa ser isso também – mas a própria experiência.
A proximidade com o universo de Campos tem sido estruturada a partir de aspectos
específicos, apontados por Salles, como direcionadores na compreensão dos acopla-
mentos que constituem a criação artística. Dessa maneira, consideramos questões alu-
sivas aos espaços e tempos de criação, ao contexto cultural, as redes em construção, a
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 53

matéria-prima, aos recursos criativos e a transformação. Vejamos, portanto, a partir de


um contato, ainda, primário, travado com o processo dele, como insurgem alguns desses
subsídios citados pela referida autora.
Os espaços de criação abrangem os ambientes geográficos e sociais por quais se
deslocam o artista. Além dos limites físicos, envolve a memória e o imaginário do cria-
dor, assim como seu corpo gravado com toda sua trajetória e suas procuras. O tempo da
invenção, por sua vez, é mais amplo, está estreitamente relacionado à configuração do
projeto poético. “Discutir o tempo da criação é, antes de mais nada, tratá-lo no plural
[...] É no entrecruzamento de todas as veredas que conseguimos compreender os tempos
envolvidos nos percursos de construções de obras” (Salles, 2008).
Wagner parece ampliar a percepção espacial e temporal ao insistir em experimentar
os limites físicos e psicológicos de seu corpo. Aspirando a troca entre o que recebe e o
que devolve ao meio, onde realiza a performance, e ao espectador. Ele cria mecanismos
de contato consigo mesmo e com aquilo que o cerca, estendendo suas experiências. Ou
seja, intensificando a transformação do ambiente, da relação com o tempo/espaço, do
encontro, da ação, da íntima consciência de si.
Quanto à matéria-prima utilizada por ele, não temos dúvidas de que, a mais importan-
te, seja seu próprio corpo. O artista o vê como fonte, veículo e matéria de expressão, pro-
porcionando canais confluentes entre vivências místicas/ míticas e artísticas. Um portal
em conexões intensas. Objeto e sujeito da ação que tende a se ramificar por intermédio de
relações múltiplas e interdisciplinares, agregando um emaranhado narrativo e conceitual.
Tal aspecto, nos abre uma brecha para pensar a germinação do “estar-entre” perfor-
mance/ritual, por meio dos adensamentos, do potencial psicofísico e da exacerbação dos
deslocamentos do corpo na obra. Emergindo novas dúvidas: O que o motiva? O que o
sensibiliza? Como essa materialidade viva e pulsante se desterritorializa pelo improviso
e o acaso? Em que se reterritorializa? Que linhas de fuga são criadas durante a experi-
mentação com a sua corporeidade?
Dessa consciência, pensar o corpo, sentir o corpo, experimentar com o corpo, ser o
corpo exigem um constante olhar para si. Nessa materialidade em constante devir, nessa
indistinção entre o ser e o lugar que o sustenta, agride ou acolhe, o corpo é inseparável
do que lhe é externo. Nesse lugar, trocas acontecem, determinado fluxos de afetação
recíproca, favorecendo ou não às potencias de ação (CAMPOS, 2009, p.23).
Notamos, a presença de alguns recursos ou procedimentos criativos detectados no
processo de Campos. Conforme Cecília Almeida Salles, no site Redes da Criação, há
uma potencialidade de exploração dada pelas propriedades das matérias-primas e, ao
mesmo tempo, existem limites ou restrições sobre as quais se podem adequar ou burlar,
dependendo do que se pretende da obra. Toda ação sobre as materialidades (suportes)
gera seleções e tomadas de decisões.
54 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Figura 2. Nathalie Mba Bikoro e Wagner Ros- Figura 3. Performance TRINDADE realizada
si Campos durante a performance Noniden- no evento EPIPIDERME em Lisboa/Portu-
tity, no SESC Palladium em Belo Horizonte, gal, 2011. Wagner Rossi entre Nathalie Mba
2011. Foto de Fernando Ancil. Bikoro e Johannes Blokvist. Foto de Patrícia
Corrêa.

Em conversas com o artista, percebemos a errância como ferramenta importante


para sua criação. O que nos parece instaurar uma relação mais flexível entre ele e a
realidade que vive. Acreditamos que o estar em trânsito é essencial para a construção
de agenciamentos, que o conduz na direção da renúncia ao já sabido. Numa profunda
entrega ao desconhecido. Partindo da urgência de afetar e de ser afetado pelo outro.
Para Wagner, ser errante condiz com uma valorização do caminho e da caminhada,
de ser aprendiz enquanto se pratica, absorvendo qualidades e dificuldades como es-
truturas definidoras de novas formas de seguir em frente, evitando um exercício cego,
centrado somente no resultado como tarefa e lugar de chegada.
Questão que nos motiva a incitar outras: Como se reflete o caminhar em seu traba-
lho? Que relações mantêm com os lugares por onde passa? Há algum especial? De que
maneiras, o artista apreende esse “mundo” de coisas e sensações que lhe chega? Mais
que um recurso, a andança pode ser vista como um ritual dentro de sua performance?
Como essa ação nos aproxima da construção do “estar-entre”?
O nomadismo, assim, é uma espécie de ascese. É um exercício de ser melhor, de
estar bem. O que o aproxima do hedonismo, que é preciso não entender, claro, em seu
sentido do trivial, como a busca de um gozo vulgar e egoísta, mas como aquilo que
permite um ampliamento de si para qualquer coisa de maior, englobando a terra e seus
frutos, os outros, o mundo em sua globalidade, quer dizer, o divino que está em nós, que
está em todas as coisas (MAFFESOLI, 2001, p.162).
Outro ponto interessante consiste no fato de algumas de suas performances serem
elaboradas em conjunto com outros artistas, a exemplo de: Quero que cuspam leite em
mim (2009), Nonidentity (2011) e TRINDADE (2011). Obras cujas imagens podem ser
encontradas ao longo deste artigo.
A impressão é a de que a presença de outras pessoas parte de uma necessidade
de Campos de criar possibilidades diversas de ser sujeito, desbancando regimes
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 55

cristalizados de subjetividades. Talvez, uma vontade de tomar o corpo de terceiros como


seu e vice-versa. Transformando-se em algo só.
Ou ainda, uma recorrência as celebrações ritualísticas que, em boa parte, acontecem
no/pelo coletivo. Intensificando forças e criando uma nova dimensão corporal. As cone-
xões fazem funcionar a potência do comum. “[...] o comum sendo definido a partir de
seu caráter não dado e não disponível, o que aponta para um estar-em-comum e não para
um ser-comum” (Escóssia, 2012). De uma maneira geral, tomando seu processo como
um todo, o ritual, aparece em sua obra como uma possibilidade de fazer do presente um
acontecimento. O acontecimento, mesmo sendo algo mítico e invisível, torna-se visível
na ativação de simbologias diversas. Os símbolos são como aberturas para uma relação
direta com outras dimensões de “universos”. Tais universos ganham força e presença
por meio de sua performance, que se torna uma espécie de ferramenta de toque. Para
tocar o invisível e o múltiplo. Tocar as ancestralidades vivas no DNA das células. Tocar
o intocável. Tocar a vida na vida

Considerações
A partir das reflexões de Cecília Almeida Salles, vimos que a criação como rede pode ser
descrita como um processo contínuo de interconexões instáveis, cuja variabilidade obede-
ce a alguns princípios direcionadores. Essas interfaces envolvem a relação do artista com
seu espaço e seu tempo, questões relativas aos recursos criativos, assim como, as matérias-
-primas e os diferentes modos como se organizam as tramas do pensamento em criação.
Baseado no conceito de Salles, buscamos refletir sobre o percurso do artista Wagner
Rossi Campos, com a finalidade de compreender como o ritual e a performance são
trabalhados por ele, e como, por meio de seus entrelaçamentos, surgem o híbrido, o
entremeio, aquilo que não é nem um e nem outro, mas algo novo.
Embora se encontre numa fase bem inicial, os primeiros contatos com o universo
de Campos nos têm fornecido pistas importantes para a construção de um pensamento.
Permitindo-nos sondar possibilidades, levantar hipóteses e formular novas questões.
A imersão em suas nuances, também, tem provocado uma reflexão a respeito da
desterritorialização da performance pelo improviso e da reterritorialização do ritual e
do mito. Além de pensar o corpo em transformação, que não quer mais ser movido
apenas pela representação, mas que parte em busca de reverter à ontologia, de novos
acontecimentos, de rupturas e abalos estruturais, desfazendo construções complexas e
organizadas. Afinal como diz o próprio artista: “[...] o corpo é imanência vaporosa em
constante construção e caos, a ausência aparente de sentidos, a precariedade das forças
lineares de ações previsíveis, constitui elementos capazes de desestabilizar nossa per-
cepção cognitiva linearizante” (Campos, 2009).
Tudo isso muda, radicalmente, a problemática inicial desenvolvida para esta pes-
quisa, apontando outros caminhos que saem dos terrenos da representação para os
da imanência. “Pensar é experimentar, mas a experimentação é sempre o que se está
56 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

fazendo [...] O que se está fazendo não é o que acaba, mas menos ainda o que começa”
(Deleuze; Guattari, 2010).

Referências
CAMPOS, Wagner Rossi. Meu corpo é um acontecimento. 2009. Dissertação (Mestrado em Artes)
– Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.
FONSECA, T. M.; MARASCHIN, C.; NASCIMENTO, M. L. do. (Org). Pesquisar na diferença:
um abecedário. In: ESCÓSSIA, Liliana da. Coletivizar. Porto Alegre: Sulina, 2012. p. 54.
GILLES, Deleuze; GUATTARI, Félix. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 2010.
______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 2011.
MAFFESSOLI, Michel. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-moderna. Rio de Janeiro: Re-
cord, 2001.
SALLES, Cecília Almeida. Redes da criação: construção da obra de arte. 2. ed. São Paulo: Ho-
rizonte, 2008.
______. Redes da Criação. Itaú Cultural, São Paulo, 2008. Disponível em: http://www.redesde-
criacao.org.br/. Acesso em: 2 set. 2013.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 57

Hélio Oiticica e a transfiguração


do Autor como Propositor

André Arçari
ICT/ UFES – [email protected]

Ângela Grando
PPGA/UFES – [email protected]

Esta comunicação visa analisar e discutir na dimensão criadora e polêmica da


obra do artista brasileiro Hélio Oiticica (1937-1980) a relação entre artista/pro-
positor, obra e espectador. Traçamos um recorte sobre trabalhos específicos
realizados em momentos distintos da trajetória deste artista e, inicialmente,
a partir das suas primeiras pesquisas com os Bólides, realizadas durante a
década de 1960. Em um segundo momento, a ênfase é dada na importân-
cia dos Parangolés, o que conduz o texto para uma discussão mais precisa
acerca das experiências ambientais produzidas por Oiticica no decorrer dos
anos 1970.
Palavras-chave: Hélio Oiticica, Antiarte, Propositor, Espectador.

This communication intends to analyze and discuss into the breeder and po-
lemic dimension of the Hélio Oiticica (1937-1980) Brazilian artist’s work, a re-
lation between artist/proposer, oeuvre and spectator. We have traced specific
works realized in distinct moments of his artistic career, and initially, starting
from his firsts researches with the Bólides realized during the 60’s. In a second
moment, the emphasis in given on the importance of the Parangolés, which
conduct the text for an discussion more accurate about his environmental ex-
periences produced during the 70’s.
Keywords: Hélio Oiticica, Anti-art, Proposer, Spectator.
58 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

As possibilidades projetadas pela arte contemporânea delinearam um conceito de


espectador distinto daquele modelo de contemplação vigente na prática modern(ist)a.
O espectador adquiriu, na iminência das questões que caracterizam o pós-moderno, sua
identificação como figura de participador da obra, parte essencial ao surgimento de pro-
postas que se originam pela reestruturação e pela abordagem antes privilegiada dos três
sujeitos constituintes do sistema da arte: artista, obra, espectador. Aqui, examinamos
algumas formulações de Hélio Oiticica e através delas analisamos como a convergência
entre artista e/ou propositor, fato recorrente em seus trabalhos, projeta o espectador em
experiências de caráter imersivo. Em sua produção, na transição da feitura do traba-
lho como obra fechada em si para algo aberto, não apenas em sentido metafórico mas
palpável e existente no mundo físico, se refletem mudanças que agregam descobertas
de múltiplos valores e significados que são oferecidas por meio do processo criativo
do artista ao espectador. Nesta relação de troca, portanto humana e essencial, torna-se
determinante quando Oiticica oferece ao outro a possibilidade de intervir em seu traba-
lho, convocando consequentemente o espectador a se distanciar do modo meramente
contemplativo. Esta negação do espectador/contemplador, abarca que o espectador/
participador se coloque em meio ao aberto de possibilidades tanto por ações de caráter
físico através da atuação corpórea, quanto via intelecto, na reflexão ativa de fruição com
a obra. Para Oiticica, ambas as situações devem agir simultaneamente durante a ação de
experienciar suas propostas.
É importante ressaltar que isto só se torna possível devido ao determinismo inten-
cional do próprio artista ao aceitar a incompletude dos trabalhos durante seu processo
de criação. A abertura da obra é posta como meta viva em meio aos dispositivos que a
regem, os quais fazem parte o sistema da arte. Igualmente, é através da sensibilidade do
público que, quase como uma diretriz essencial ou mesmo um esquema transcendental,
os trabalhos se completam durante sua ativação. Sem dúvida, essa questão converge
para o processo de alargamento das propostas brasileiras presentes entre os anos 1960-
70 e além, como também do suporte teórico fundamental de pensadores, dentre os quais
a admirável contribuição da Obra Aberta de Umberto Eco. Sabemos que para este autor,
a obra aberta não é uma categoria crítica, mas dela decorre um modelo teórico na tenta-
tiva de interagir com a arte contemporânea. E nessa poética, a intencionalidade do artista
deve ser considerada como um pressuposto que abre ao espectador possibilidades de
escolhas combinatórias que estão previstas pela estrutura da obra que se propõe aberta,
pois deste modo:

Cada obra de arte, ainda que produzida em conformidade com uma explícita ou implícita
poética da necessidade, é substancialmente aberta a uma série virtualmente infinita de leituras
possíveis, cada uma das quais leva a obra a reviver, segundo uma perspectiva, um gosto, uma
execução pessoal. (ECO, 1976, p. 64)
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 59

Nesse eixo, Oiticica por seu engajamento diante de uma processualidade tanto vi-
sível quanto tátil e sensorial, avança em sua proposta imersiva. Traçamos um gráfico
(Figura 1) que conduz a discussão através do esquema Autor-Propositor.
No esquema, portanto, o Artista como um Autor que cria Obras transfigura-se para
um Propositor que formula Proposições. Os corpos Fruidores se encontram na interces-
são e bifurcam-se entre Espectadores e/ou Co-Autores. É verdade que é exigido a toma-
da de uma nova postura frente às conjecturas que são realizadas no período pelo artista,
e para que este esquema se efetive é exigido a co-autoria, ou seja, o espectador abarcar
estar/dentro (imersão) do processo, fato que pode acabar não se realizando facilmente
devido uma resistência participativa.
Hoje, é possível notabilizar nas retrospectivas
organizadas sobre trabalhos de Oiticica, a fal-
ta de uma participação imersiva por uma par-
cela do público. Deve-se levar em considera-
ção o fato de que nem todos os espectadores
se sentem guiados pela intensidade da obra ao
ponto de ativá-la, em sua completude, através
da experiência com o corpo. Entretanto, é ver-
dade que muitas vezes somos impedidos de
termos a experiência de usufruir fisicamente
das peças. Fato que ocorreu e ainda tem acon-
tecido em determinadas exibições, por exem-
Figura 1. Esquema Autor-Propositor.
plo, com alguns Bólides, expostos com dize-
res que proíbem “o tocar”. Ademais, os trabalhos acabam sendo vigiados por câmeras de
circuito de interno (CCTV’s), além de contarem com a presença física de seguranças que
inibem o manuseio, afim de proteger a matéria física das obras. Nesses casos, a partici-
pação do público acaba sendo meramente intelectual, através do restrito sentido da vi-
são, uma vez que os espaços expositivos isolam os trabalhos do mundo exterior, e o que
está sendo exposto é apenas um registro da obra.
É plausível que devido à fragilidade de alguns trabalhos produzidos e seu desgaste
temporal, museus e galerias tem enclausurado os originais expondo-os sem a possibili-
dade de manuseio. Outrossim, algumas experiências com proposições abertas para o es-
pectador tem ficado restritas apenas a ações como o caminhar pela galeria, o movimento
dos olhos, a utilização da mente, sem possibilitar a experiência imersiva. Retornamos,
nesses casos, ao espectador quase estático pouco desejado pelo artista. Mesmo em re-
trospectivas recentes sobre Oiticica, nas quais trabalhos como os Parangolés são refor-
mulados para interação pública, reproduzindo não apenas a peça de modo palpável mas
possibilitando seu manuseio, nesse novo tempo que vivemos a ação não traz impacto e
carrega o legado da historicidade.
Sabemos que a mera contemplação da arte veio sendo problematizada desde o iní-
cio dos modernismos. As ideias originais de Oiticica articulam esse legado, seguem
60 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

pelo acontecimento neoconcreto e sequenciais, se tornam essenciais para o campo da


arte e pulsam nas produções contemporâneas. A força de seu legado teórico, dentre o
qual a formulação de antiarte e de apropriação, marca uma postura engajada do artis-
ta tanto ética quanto política. Na atualidade, propostas da obra relacional de Nicolas
Bourriaud, enfatizam essa problemática e entre outras questões discutem a tendência
contemporânea sobre o modo diferenciado da inserção do espectador no contexto da
obra. Este autor argumenta que:

A primeira tarefa do crítico consiste em reconstituir o complexo jogo dos problemas levanta-
dos numa determinada época e em examinar as diversas respostas que lhes são dadas. Muitas
vezes, a crítica contenta-se em inventariar as preocupações do passado apenas para poder
lamentar a ausência de respostas. Ora, a primeira pergunta em relação às novas abordagens
refere-se, evidentemente, à forma material das obras. Como entender essas produções aparen-
temente inapreensíveis quer sejam processuais ou comportamentais – em todo caso, “estilha-
çadas” segundo os padrões tradicionais -, sem se abrigar na história da arte dos anos 1960?
(Bourriaud, 2009, p.9-10)

Contudo, o trabalho de Bourriaud desconhece ou se abstraiu de discutir a contribui-


ção essencial de artistas brasileiros, entre os quais Hélio Oiticica e Lygia Clark. De todos
os modos os significados múltiplos que se interligaram na construção artística moderna
e pós-moderna provocam se perguntar se toda obra de arte não seria relacional, pois
independente de sua proposta de participação, a obra entregue ao público, como previa
Duchamp, “estaria incompleta sem a participação do público”. Contudo, e retomando
Bourriaud, a década de 1960 é fértil na incorporação de obras que exigem o participante.
É o caso das obras mutáveis e com múltiplas configurações se tornando objetos relacio-
nais, a exemplo os Bólides de Hélio Oiticica.
Os Bólides,denominados pelo próprio Oiticica como obras-objetos, fazem parte do
programa ambiental desenvolvido pelo artista desde o início da década de 1960 até o
final de sua vida. Os objetos Bólides compõem um complexo de proposições que tomam
diferentes aspectos e vai nos conduzir a construir uma possível relação com a ideia
contida na essência dos Parangolés. Nas particularidades desse processo são abertas
possibilidades rumo a um comportamento criativo descondicionado. Instaura-se com
os Bólides uma nova significação para a pesquisa da cor, que é disposta não mais reco-
brindo um objeto, mas em seu próprio valor objetivo, uma vez que elementos naturais
compõem o problema tonal dos trabalhos. A necessidade de vivenciar, tocar, sentir o
trabalho e por consequência, interagir física e mentalmente é solicitada também através
dos escritos do artista. Nota-se isto mais claramente nas cartas trocadas entre Oiticica
e Lygia Clark durante os anos de 1964 até 1974. Assim como a interação do especta-
dor, por vezes analisada como co-autor, a pesquisa objetual dos Bólides problematiza o
elemento constituinte cor como gerador de experiência, já que a imersão ambiental nos
Bólides exige que o participador mergulhe as mãos na cor. A premissa de que não se
deve tocar em obras de museus é dessacralizada, cai por terra.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 61

Em registro datilografado do artista nota-se que até o ano de 1969 foram criados
sessenta e um Bólides (doc. no. 1505 do Arquivo Hélio Oiticica). Vemos que até 1965
são realizados em torno de trinta peças entre Bólides-caixa e Bólides-vidro e, de 1966
em diante, acrescido da experiência das manifestações ambientais e da conceituação
dos termos apropriação e antiarte. A objetualidade dessas proposições passa a se des-
dobrar em diversas outras instâncias, como Bólide-bacia, Bólide-pedra, Bólide-lata,
Bólide-luz, Bólide-plástico. Em idos de 1967 surgem, relacionados com o suprasenso-
rial, o Bólide-saco e o Bólide-cama, tendo às vezes uma dimensão que abriga o corpo
todo, como no Bólide área. Em 1969, define-se o conceito de crelazer e o surgimento
do Bólide-ninhos, que reúne seis células-ninhos na configuração do Éden, parte da
Whitechapel Experience. Já em 1978, Oiticica planeja o Para-bólide e realiza dois
Contra-Bólides. Para o artista, de fato não bastava apenas ver os objetos, mas viven-
ciá-los em todo o âmbito da experiência.
Hoje, analisando essas pesquisas tanto no tempo quanto no espaço de sua feitura, ou
seja, com uma certa distância temporal, temos compreensões distintas para sua análise.
A abertura dos arquivos de Hélio Oiticica pauta-se como justificativa para o crescente
interesse, qualitativo e quantitativo, na produção de textos, livros, análises e obras que
vertem de seus trabalhos. Pela densa pluralidade de seu processo, cria-se possibilidades
de construir redes sobre aquilo que encontrava-se guardado e hoje se reúne digitalizado
tendo a oportunidade de acesso por todos que tenham interesse através de uma base
online. E apenas virtual, para lembrarmos do incêndio ocorrido em 2009 no bairro Jar-
dim Botânico (Rio de Janeiro) dentro da casa de seu irmão, o arquiteto César Oiticica,
que destruiu uma vasta parcela de sua produção. Por uma força referencial, os escritos
do artista transitam entre ficção, poesia, crítica e teoria da arte. O arquivo de Oiticica,
disponibilizado pelo Projeto Hélio Oiticica 1, é fonte direta em pesquisas tanto sobre sua
obra quanto dos artistas que vivenciaram o período. Nota-se a vasta produção desses
escritos através do site do Projeto Hélio Oiticica desenvolvido sob a coordenação de
Lisette Lagnado pelo Programa HO em parceria com o Instituto Itaú Cultural.
A proposta Parangolé, se constrói adjacente a proposta Bólide e exige que o próprio
corpo do espectador incorpore a obra. Entreatos, as propostas vão coexistir – os Bólides
continuam sendo produzidos - contudo o Parangolé “vai inverter a estrutura-Bólide: as
cores não estão mais contidas, mas soltas, envolvendo o corpo que as faz fulgurar no es-
paço por evoluções e dança.” (FAVARETTO, 1992, p. 104) As faixas e capas coloridas
e tendas de pano se articulam com os movimentos do corpo do espectador e o impulso
corporal se faz essencial para a existência da proposição, visto que as peças não existem
fora do corpo e do contexto da dança. Se nos Bólides a materialidade da peça pode ser
guardada em algum acervo preservando sua finalidade de ser exposta e manuseada, nos
Parangolés a estrutura da obra se faz no ato em si. A proposta se ativa quando a pessoa
se dispõe a interagir, vestir, ao ponto de portar algo não como simples veste, mas como
escultura viva “completando a síntese a que visava Oiticica: ‘proposição vivência’.”
1. http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/home/dsp_home.cfm
62 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

(FAVARETTO, 1992, p. 104) Sendo assim, a descoberta expandia os espaços negando


as categorias formalistas juntamente com as delimitações impostas pela institucionali-
zação da arte do período. Em suma, no início dos anos 1960, Oiticica deixa exposto o
rompimento de um limite real-virtual de trabalho, e aponta:

A descoberta do que chamo “Parangolé” marca o ponto crucial e define uma posição espe-
cífica no desenvolvimento teórico de toda a minha experiência da estrutura-côr no espaço,
principalmente no que se refere a uma nova definição do que seja, nessa experiência, o “objeto
plástico”, ou seja, a obra. (OITICICA, 1964, p.1)

Os Parangolés não são objetos, apesar de sua materialidade. Embora assemelham-


se aos Bólides em termos de idéia, não problematizam a questão da apropriação, mas
uma totalidade ambiental. “O Parangolé passará a designar um programa no qual toda
a produção daquele período se insere; ele passará a ser sinônimo de Programa Ambien-
tal.” (VARELA, 2011, p.63) São simultâneas as experiências com as vestes. Funcionam
de modos distintos para aqueles que dançam vestindo-as e para os que assistem aqueles
que estão dançando. O corpo não é suporte, mas a incorpora ao mesmo tempo em que é
incorporado pela experiência única e intransferível a cada um. Oiticica chamou isto de
in-corporação em uma entrevista dada a Ivan Cardoso.

Figura 2. Mosquito da Mangueira veste Parangolé P10, capa 6, 1965 e Bólide Vidro 5, 1965.
“Homenagem a Mondrian”, Foto do catálogo O q faço é Música.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 63

Na vivência de Hélio Oiticica com o morro da Mangueira e com a dança, em 1964,


é aguçada sua relação direta com a vida, fato que exibe para o próprio artista uma trans-
mutação. O reflexo dessa “invenção da arte como invenção da vida tem na Mangueira
régua e compasso” (FAVARETTO, 1992, p. 114), e novas formulações que são culmi-
nadas nos Bólides. A relação Bólide e Parangolé coexistem em tempo e espaço (Figura
2), pois são produzidos paralelamente durante um extenso período da carreira do artista.
Segundo Hélio Oiticica do seu “[...] interesse pela dança, pelo ritmo, no meu caso par-
ticular o samba, me veio de uma necessidade vital de desintelectualização [...]”(OITI-
CICA 1986, p.73) , questão que nos guiaria para outras vias de reflexões sobre sua obra,
sobretudo no passo dado pelo artista/propositor na interação com a retomada do mito,
“espaço de vivências mágicas proporcionadas por estruturas terrenas”.

Referências
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Martins, 2009.
ECO, Umberto. Obra Aberta: Formas e Indeterminação nas Poéticas Contemporâneas. Tradução:
Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 1976.
FAVARETTO, Celso Fernando. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 1992.
LOEB, Angela Varela . Os Bólides do programa ambiental de Hélio Oiticica. In: Revista ARS, Ano
9, n. 17, p. 55-81, 2011.
OITICICA, Hélio. Aspiro ao Grande Labirinto. Introdução Luciano Figueredo e Mário Pedrosa;
compilação Luciano Figueredo, Lygia Pape, Waly Salomão. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
OITICICA, Hélio. Bases fundamentais para uma definição do “Parangolé”, (nov. 1964), Programa
Hélio Oiticica (PHO), doc. nº. 0035/64.
______________.Lista de Bólides. Arquivo Hélio Oiticica (AHO), doc. nº. 1505/sd.
64 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Liberdade Vigiada: um estudo sobre


o processo criativo em
dança contemporânea à luz da
literatura distópica
André Duarte Paes
(PPGLA-UEA) – [email protected]

Esta pesquisa pretende mapear estudos e conceitos de liberdade vigiada,


presentes na obra de George Orwell, 1984(1949) e Michael Foucault, Vigiar e
Punir: o nascimento da prisão (1975). Nos dias atuais, todas as nossas ações
são vigiadas por algo ou alguém pouco conhecido. Esse monitoramento é o
contexto de inspiração para a transformação em cenas dançantes.
Palavras-chave: composição, dança, liberdade, vigilância, George Orwell, Mi-
chael Foucault.

This research aims at mapping studies and concepts probation, present in the
work of George Orwell, 1984 (1949) and Michael Foucault, Discipline and Pu-
nish: The Birth of the Prison (1975). Nowadays, all our actions are watched by
something or someone unfamiliar. This monitoring is the context of inspiration
for the transformation scenes dancing.
Keywords: composition, dance, liberty, surveillance, George Orwell, Michael
Foucault.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 65

Inúmeros são os elementos que podem influenciar um coreógrafo em seu processo


criativo. Deste modo, a dinâmica da composição pode alterar de acordo com os artefatos
e propriedades que o criador determina como alicerce para sua obra. Segundo Bonilla
(2007), na coreografia contemporânea, o esqueleto da obra está baseado no sentido da cir-
culação de energias, aquelas que os dançarinos canalizam, orquestradas pela coreografia.
As questões de composição podem inspirar a criação a partir das noções vindas da
arquitetura, pintura, histórias, acontecimentos, ficção, objetos e frases, ou em qualquer
outra circunstância que o faça criar movimentos e sequências em atos ou cenas para a
elaboração de um espetáculo.
O crescente interesse pelo comportamento humano desperta veemência sobre o tema
da liberdade vigiada, assunto ao qual se propõe abordar de forma sistemática. Em pers-
pectiva crítica o argumento torna-se subjetivo e complexo, cujas provocações causam
perplexidade na busca por respostas, tanto para justificá-las quanto para refutar suas
posições. Esse exercício se inseriu exatamente na probabilidade de dialogar e tentar
codificar as ideias sobre este tema.
Vattimo (1989) pensa que o encontro com a obra de arte é uma forma de fazer a
experiência na imaginação de outras formas de existência, de outros modos de vida
diferentes daquele em que de fato nos encontramos no cotidiano. A experiência estética
faz-lhe viver em outros mundos possíveis, e mostra-lhe assim também a contingência, a
relatividade, o caráter não definitivo do mundo real no qual se encerra.
Assim, esta pesquisa apresenta como proposta a criação de um espetáculo de dança
a partir de um estudo inspirado no desenvolvimento dos conceitos de liberdade e liber-
dade vigiada, presentes nas obras de George Orwell, 1984 (1949) e Michael Foucault,
Vigiar e punir: o nascimento da prisão (1975), onde há uma relevância sobre os meca-
nismos que motivaram grandes mudanças no que se referia à vigilância.
A liberdade é um requisito indispensável para a obtenção de muitas coisas, as quais
partem de impulsos, desejos e crenças daqueles que desfrutam dessa condição. Há mui-
tas vertentes na formação do ser sobre a terra, segundo Rosseau (2008). Os Esquimós,
por exemplo, podem dispensar o Governo, a educação obrigatória, o código das estra-
das, e até as complicações incríveis do código comercial. A sua vida, portanto, goza de
um alto grau de liberdade; contudo, poucos homens civilizados prefeririam viver assim
a viver no seio de uma comunidade mais organizada.
Atualmente o período de transformações conscientemente ou não, nos faz discernir
a vida, nossas preferências, nossos valores e, inclusive o que nos reserva de nossa priva-
cidade. Jamais o verbo “espionar” esteve tão presente no dia-a-dia das pessoas, sem, em
muitos casos, entender o verdadeiro significado dessa invasão.
Mil Novecentos e Oitenta e Quatro ou 1984 é um romance distópico clássico do
autor inglês Eric Arthur Blair, mais conhecido pelo pseudônimo de George Orwell, e
retrata o cotidiano de um regime político totalitário e repressivo no ano referido. No
livro, Orwell mostra como uma sociedade oligárquica coletivista é capaz de reprimir
qualquer um que se opuser a ela.
66 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

O romance se tornou famoso por seu retrato da difusa fiscalização e controle de um


determinado governo na vida dos cidadãos, além da crescente invasão sobre os direitos
do indivíduo. Desde a sua publicação, muitos de seus termos e conceitos, como “Big Bro-
ther”, “duplipensar” e “Novilíngua” entraram no vernáculo popular. O termo “Orwellia-
no” surgiu para se referir a qualquer reminiscência do regime ficcional do livro.
Sobre a questão da quebra de privacidade a obra do escritor George Orwell tam-
bém é profética, o avanço tecnológico permite um amplo monitoramento que vai dos
satélites às microcâmeras, entretanto, Orwell não pôde antever o gosto atual pelo exi-
bicionismo/voyeurismo. Atualmente o anonimato tem tornado-se detestado, portanto,
explorar o privado transformou-se em uma forma de participação pública. Na obra de
Orwell, é o governo quem observa tudo através de câmeras abordando o autoritarismo
e não de voyeurismo, mas o autor faz questão de enfatizar que existe um nexo indisso-
lúvel entre voyeurismo e totalitarismo.
Questões sobre como e porque a vigilância ocorre são freqüentes na atualidade, e
respostas tais como estar assegurados, controlados, promovidos e punidos através des-
ses monitoramentos permeiam a sociedade. No livro, é evidente o prazer em investigar a
vida dos outros, este fato torna-se a chave para o sucesso dos regimes autoritários. Mui-
tos ditadores já se utilizaram destes métodos para coletar informações sobre os cidadãos.
Esta atitude nos últimos tempos fortaleceu o fenômeno do reality show. No Brasil,
faz sucesso há alguns anos programas onde o telespectador interfere no destino dos
participantes.
Para Michel Foucault (2012) na obra Vigiar e Punir: o nascimento da prisão, a vigi-
lância e a punição são poderes destinados a educar as pessoas para que estas cumpram
normas, leis e exercícios de acordo com a vontade de quem detêm o poder.
A vigilância é uma forma de se observar as pessoas, se estas realmente cumprem
seus deveres. É um poder que atinge os corpos, gestos, discursos, atividades, aprendi-
zagem e vida cotidiana. A vigilância busca regulamentar a vida das pessoas para evitar
que algo contrário ao poder aconteça. Já a punição torna-se o meio para tentar corrigir
as pessoas que infligem as regras ditadas pelo poder, ela impede que as pessoas come-
tam condutas puníveis.
A vigilância e a punição são utilizadas em várias entidades estatais, como hospitais,
prisões e escolas. A relação entre vigiar e punir está no fato de que com ela seria possível
“adestrar” as pessoas para que estas exercessem suas tarefas como bons cidadãos, evitar
o máximo que as pessoas infringissem as normas estabelecidas pelo poder.
Segundo Foucault (2012) para a economia do poder seria mais rentável e eficaz
vigiar do que punir. É mais barato vigiarmos as pessoas para que estas não infrinjam as
leis, do que posteriormente puni-las, pois na punição terá que ser gasto mais dinheiro
para que a pessoa seja ressocializada.
Vattimo (1989) afirma que, com o advento dos meios de comunicação de massa a
sociedade pode se caracterizar mais transparente, mais consciente de si, mais iluminada,
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 67

mas também como uma sociedade mais complexa, até caótica; que é precisamente neste
relativo caos que reside as nossas esperanças de emancipação.
Ao compararmos esta afirmação com a evolução tecnológica em termos de
vigilância podemos perceber que os inquéritos através de depoimentos pessoais deixa-
ram de ser unicamente utilizados, ou seja, a comprovação não se faz depender de um
testemunho presencial e sim de fatos registrados por esses equipamentos tecnológicos,
podendo ou não trazer soluções para as investigações mais complexas.
Um dos fatores que motivam a invasão da privacidade é o medo, depois as nossas
fraquezas e inseguranças. Outra característica que contribui com a espionagem eletrôni-
ca atual é a evolução tecnológica de equipamentos que são fixados em vários locais
públicos, passando a integrar o cotidiano de todos.
Vattimo (1989) concorda que a modernidade é a época em que se torna valor deter-
minante o fato de ser moderno, ou seja, o pensamento moderno não se faz somente à
época do modernismo. Sempre se abriu caminho a um culto cada vez mais intenso pelo
novo e um progressivo processo de emancipação em cada época da história humana.
Refletindo sobre esta concordância surge a questão: sempre fomos vigiados? A liberda-
de está sendo vigiada desde agora com os avanços tecnológicos ou sempre foi observada?
Um exemplo bem simples sobre esta questão de sermos ou não sempre vigiados é
sobre a crença. Se acreditarmos em algo divino, estamos sendo vigiados, logo se deve
satisfação e obediência a uma divindade que sistematizou regras e punições. Prontamen-
te Deus vigia, Deus condena. Caso não obedeça as suas leis será punido. Outro exemplo
é o simples trabalho de uma repartição onde há uma escala hierárquica, onde funcioná-
rios como secretários, assistentes, gerentes, diretores e presidentes, em seus respectivos
cargos, têm suas obrigações e deveres a ser cumpridos, caso contrário serão punidos.
No trabalho existem câmeras que registram os passos de empregados e visitantes.
A gravação começa quando se entra no prédio, passa, quase que obrigatoriamente, pelo
momento em que são abertas e fechadas as portas dos elevadores, até na hora em que,
finalmente, o trabalhador senta em sua mesa e começa a executar suas tarefas.
De qualquer forma, o simples fato de se caminhar pelas ruas da cidade não é mais
um ato isolado, visto que milhares de pessoas podem estar acompanhando, vigiando e
espionando outras. O curioso é que quando acontece um crime ou um acidente, na maio-
ria das vezes, ninguém sabe e nem viu. Seria a lei do silêncio?
Santos (2010) explica que, a ampliação do mundo e a dilatação do presente têm de
começar por um procedimento que ele designa por sociologia das ausências. Trata-se
de uma investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade, ativamente
produzido como não existente, isto é, como uma alternativa não-credível ao que existe.
Rousseau (2008) diz que, toda a sociedade exige necessariamente uma acomodação
mútua e uma temperatura; por conseguinte, quanto mais numerosa, tanto mais enfado-
nha será. A coerção é a companheira inseparável de toda a sociedade, que ainda exige
sacrifícios tão mais difíceis quanto mais significativa for a própria individualidade.
68 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Rousseau (2008) complementa que o indivíduo é, indiscutivelmente, reflexo de seu


meio. A luta contra a estagnação do meio, do tempo em que se vive, é a luta contra a
estagnação da Arte. O tempo sempre carece de esperanças e perspectivas. Qual é, então,
o sentido supremo de toda atividade e esforço? A resposta ecoa em busca de uma saída,
uma forma de escapar, de interromper o marasmo, de fazer o tempo correr. Abre-se mão
da individualidade para criar uma obra que possa acrescentar e que proporcionaria à Arte
o inevitável rompimento com as velhas formas e o desejo de encontrar caminhos novos.
Contudo, a vigilância ainda está longe de terminar, visto que os softwares de moni-
toramento dos computadores pessoais começam a executar suas tarefas, com o objetivo
de vasculhar os sites da internet que estão sendo acessados e se aquilo, realmente, trará
proveito ao desempenho do trabalho e, ainda, se está de acordo com as normas da empresa.
Por mais que se evite o constrangimento, a verdade é que a nossa privacidade está inva-
dida, fazendo com que todos se tornem participantes de verdadeiros shows da vida moderna.
A pós-modernidade, de acordo com Santos (2010) passou a designar um novo pa-
radigma social e político. Assim para uma melhor compreensão deste fenômeno, esta
investigação tem como objetivo pesquisar novos aspectos para compor o universo da
criação em dança. É uma variável importante para o desenvolvimento das tendências
estéticas contemporâneas, onde o estudo de características de temas como este podem
tornar-se possibilidades para novas criações, possibilitando novos conceitos no meio
contemporâneo da dança.
Como resultado da investigação desta pesquisa, propõe-se a criação de um rotei-
ro para um espetáculo em dança contemporânea. Acredita-se que o estudo trará novas
configurações estéticas para processos criativos, podendo caracterizar-se como novos
padrões de criação e de pesquisa em âmbito acadêmico e profissional.
A princípio pretende-se criar laboratórios de movimentos que retratem a liberdade
em vigilância buscando contextualizar este fenômeno de forma expressiva, associando
elementos cênicos que possam contribuir e complementar a leitura do tema proposto.
A pesquisa musical vai de trilha sonora a interferências eletrônicas que remetam certo
cotidiano urbano. Também se fará ausência de som buscando uma leitura corporal cor-
respondente a proposta cênica. O corpo dançante será selecionado entre pessoas do sexo
masculino e feminino que possuam vivências dentro da área da dança e/ou teatro. Na
quantidade de seis a oito intérpretes entre jogos que vão a solos, duos, trios e conjuntos,
buscando a melhor composição para a cena a ser montada. Utilizará recursos tecnológi-
cos que possam ilustrar ou agregar a obra. O figurino será extraído do cotidiano habitual
permitindo aos intérpretes possibilidades de desempenho corporal.
Pretende-se com esta pesquisa buscar reflexões sobre o tema a fim de levantar pres-
supostos para dialogar sobre várias questões e expor certas evidências sobre a liberdade
vigiada. Segue em anexo o roteiro preliminar sobre o espetáculo “Liberdade Vigiada”.

Referências
BONILLA, Noel. A composição coreográfica: estratégias de fabulação. http://idanca.net/lang/
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 69

pt-br/2007/03/23/a-composicao-coreografica-estrategias-de-fabulacao/4085 acessado em:


01/10/2013.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete, 40.
Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
ORWELL, George. 1984. 29ª ed. São Paulo: Ed. Companhia Editora Nacional, 2005.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. 3°Ed. – Campinas, SP: Editora
da Unicamp, 2008.
SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo: para uma nova política – Ed. Cortez, 3°
Ed. São Paulo, 2010.
VATTIMO, Gianni. A sociedade Transparente. Editora Antropos, Lisboa, 1989.

Anexo
ROTEIRO PRELIMINAR DO ESPETÁCULO “LIBERDADE VIGIADA”
Espetáculo coreográfico com elementos cênicos e projeção.
Por André Duarte Paes.
Duração: 30 minutos em quatro cenas.

Cena 1 – “Livre Arbítrio”.


Trata-se de uma interação de três solos divididos em três pontos no espaço. Um ao fun-
do e dois divididos na lateral direita e esquerda do ambiente encenado. Ao fundo uma
projeção na tela de um olho fixo. O intérprete do meio será amarrado por uma corda
na cintura, terá uma distância considerada e limitada para a sua movimentação. O de-
sempenho corporal do intérprete central sofrerá uma dinâmica de movimento explosiva
em locomoção pelo espaço levando em conta um determinado limite. O intérprete da
lateral direita se movimentará sobre calçados em plataforma em tempo desacelerado. O
terceiro intérprete, localizado à esquerda, fará uso de movimento em tempo moderado
com energias variadas em locomoções mais livres pelo espaço. A proposta é ajustar a
composição com a trilha sonora já existente, com intervenção eletrônica e inserir o pú-
blico nesse universo monitorado. Iluminação básica e sombria. O figurino com aspecto
urbano possibilitando a movimentação dos intérpretes.

Cena 2 - “Monitoramento Urbano”.


Esta cena retrata o meio urbano no dia-a-dia. Várias simulações de situações vivencia-
das no cotidiano das pessoas, abordando encenações de conflitos e interações. Combina-
ções sucessivas de movimentos explorados nos seguintes aspectos: duplas com contatos
e apoios em pegadas contínuas alternadas em diferentes bases de apoio com a manipu-
lação de um elemento cênico que registra, ou seja, uma câmera. Diferentes jogos entre
indivíduos ordenados de forma diferente. Uso de um vaso sanitário protegido por placas
a se fazer uma interação sem uso real no qual será monitorado e projetado em tela. Um
jogo cênico com entradas e saídas de vários intérpretes em corpo grupal causando apro-
ximações e afastamento entre indivíduos. Manipulação pelos intérpretes de refletores
70 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

iluminados em ambiente limitado focando as situações e ocorrências simultâneas. Cinco


intérpretes, projeções, música. Iluminação básica detalhada.

Cena 3 – “Meios de comunicação – o universo interno”.


A movimentação basicamente abrange locomoções em base baixas em situações de re-
colhimento das partes e segmentos do corpo, com mudanças de planos em sentidos
opostos. Manipulação por um intérprete de um televisor e seguida em deslocamento
pelos demais integrantes assim causando diversas locomoções pelo espaço com torções,
eixos, planos e com mudança de rotação. Luz diversa e música.

Cena 4 – “Estão flagrando...”.


Diferentes tipos de refletores serão necessários para cena de modo que possibilite a ilu-
minação no chão e nos objetos, luz por baixo etc. Coreograficamente vem retratar situa-
ções utilizando todo o elenco trazendo à tona toda uma reflexão e questionamento sobre
o tema proposto. Resgatamos situações com simulações de bem estar, de aproximação,
flagrantes, sentimentos, honestidade, generosidade, ajuda, dentre outros aspectos sociais
“esquecidos”. Projeção, música e interação do público.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 71

Estratégias colaborativas de
trabalho em Santiago Sierra

Ângela Grando
PPGA/UFES – [email protected]

Propomos discutir, através da análise conceitual de trabalhos do artista San-


tiago Sierra (1966 -), como formas de imposição ou agenciamentos em arte
podem convergir para situações onde o ato de colaborar problematiza os li-
mites e paradoxos do sistema capitalista. Temos aporte teórico a partir de
propostas recentes de Nicolas Bourriaud e através de A virada do Social, de
Claire Bishop.
Palavras-chave: arte colaborativa. Santiago Sierra. arte contemporânea.

We propose to discuss, from the conceptual analysis of the artist Santiago


Sierra (1966), as how forms of imposition or assemblages in art can converge
to situations which the act of collaboration discusses the limits and paradoxes
of the capitalist system. We have theoretical support from recent proposals
from Nicolas Bourriaud and through the  A virada do Social, from Claire Bishop.
Keywords: collaborative art. Santiago Sierra. contemporary art.
72 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Nosso estudo valoriza na produção contemporânea da arte o interesse por intervir e


agir em contextos urbanos, nessa medida o artista enquanto agente propositor de ações,
e discute questões inerentes à noção de prática colaborativa na arte contemporânea. As-
sim, questionamos as relações estabelecidas nos confrontos gerados pela construção da
obra e pela obra em si, e tais questões são geradas aqui pelo trabalho do artista espanhol
Santiago Sierra, em sua habilidade de instaurar o incômodo e desafiar códigos percepti-
vos, a partir da década de 1990. Nele, buscamos discutir a dinâmica do trabalho remu-
nerado (especificidade que rege o comportamento participativo) e refletir sobre o termo
colaboração, ou seja, sobre a maneira como formas de imposição ou agenciamentos em
arte podem convergir para situações em que práticas colaborativas são percebidas como
atuação de gesto político.
Nos títulos aparentemente descritivos e nomeativos inscritos no trabalho de Sierra,
há um elemento de desvio decisivo que aporta “armadilhas” e esconde as circunstâncias
do processo, oculta dados, e sob esta questão ele diz: “Com respecto a mis títulos, es
verdad, ahí meto una trampa en la que se cae facilmente” (SIERRA, in REGINA 51).
E, se os escritos e as fotos englobando o seu trabalho dão claro exemplo de como tem
baseado suas atividades lançando mão da colaboração participativa, do emprego remu-
nerado e/ou da “exploração” de indivíduos, por outro lado, contextualizar a separação
entre esses elementos se faz dificilmente, numa fina linha quase impercepitível. Cons-
ta-se que a construção de situações que se reverberam inconsistentes e/ou abusivas, se
ancoram, em sua base, nos regimes de trabalho ou leis impostas no sistema capitalista.
Ainda, segundo a fala do artista, o procedimento de mencionar o custo da remuneração
e elaborar títulos que procuram evadir-se a conotações simbólicas é um dos elementos
responsáveis pelo repúdio do público. É neste sentido que afirma

Si le hubiera puesto outro título a una obra como Línea de 250 cm tatuada sobre 6 personas re-
muneradas, por ejemplo, las reacciones que provoco habrían sido muy distintas. Si la hubiera
llamado “La línea de la verdad” y no hubiera hecho referencia a cuánto han cobrado o quiénes
eran las personas tatuadas, esta pieza habria sido considerada una obra poética, incluso melan-
cólica. (Sierra, 2009ª:48)

Para o trabalho Línea de 250 cm tatuada sobre 6 personas remuneradas (Havana,


Cuba, dez. 1999) foram selecionados participantes de determinados segmentos sociais,
como imigrantes ilegais, prostitutas, viciados, enfim, alguns grupos que poderiam ser
descritos como despossuídos ou marginais. Sem dúvida, as ações se fortalecem pela
literalidade. São ações desprovidas de ambiguidade: os participantes são remunerados
para executarem tarefas subjugantes e repetitivas. Desvelar a estratégia de instauração
do incômodo é evidenciado pela habilidade de Sierra ao modo de esclarecer como a
“colaboração” é empreendiada. Em outras palavras: ao entregar ao público e confrontar,
como nesse trabalho, a fotografia de seis homens posicionados de costas - com uma
linha contínua sendo tatuada sobre as costas - com o material verbal que informa “Seis
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 73

jovens desocupados de Havana foram contratados por U$ 30, para que, consentissem
em ser tatuados” (Sierra, 2003) a obra insiste em afirmar que os jovens de uma determi-
nada nacionalidade foram remunerados com U$ 30, por uma prestação de serviço que
lhes conferiu uma cicatriz e os ocupou por determinado tempo. A literalidade da relação
entre imagem e texto reforça que tal projeto surja por meio da antítese do “politicamente
correto” (no sentido figurativo do exemplar, ou heroico).
Muito do trabalho de Sierra se desenvolve, desde 1998, no contexto do projeto
“estética remunerada”. Em trabalhos como, 465 personas remuneradas (México D.F.,
1999); Persona remunerada durante una jornada de 360 horas continuas (Nueva York,
2000); 10 personas remuneradas para masturbarse (Havana, Cuba, nov. 2000); 11 per-
sonas remuneradas para aprender una frase (Zinacantán – México, 2001) ou 133 perso-
nas remuneradas para teñir su pelo de rubio (Veneza, 2001), as implicações referentes
a esses projetos convergem com as questões de globalização e exploração, latentes na
constituição dos mercados capitalistas. Os espaços intersubjetivos constituído nesses
projetos estabelecem um agudo compromisso com o social (a partir de uma rede de
valores como a dignidade, abuso, censura, provocação, medo) e trazem ainda a rela-
ção com o conceito de fronteira, do binômio inclusão/exclusão. As pessoas contratadas
colaboram com Sierra para que seus projetos possam se materializar, e na maioria dos
casos são procuradas para realizarem trabalhos absurdos e incongruentes como cortar
ou pintar o cabelo, permanecerem fechados em uma sala, masturbar-se. Haverá alguma
situação em que o ultraje exploratório amenize a automarginalização a qual o “participa-
dor” se expõe? Ou, ao contrário, a relação (supostamente) de exploração em Sierra deve
ser vista unicamente como procedimento de maestria crítica frente a uma sociedade
organizada e burocrática?
Já que muito da intervenção de Sierra trata de projetos que lidam com a “estética
remunerada”, em que os indivíduos contratados passam por situações humilhantes, po-
demos ver esses “colaboradores” como objetos de intervenções que produzem “fratu-
ra”, que levam por meio da arte, a um público mais amplo, determinados “buracos” da
sociedade. Provocador, ele reafirma: “Estamos ante un sistema violento. Mi obra no es
una estrafalaria aportación estética”. Em conversa com Paula Achiaga (2011) argumenta
que “son éstas, las actividades y actitudes que hacen posible el funcionamiento del ca-
pitalismo”. Em outra ocasião diz

Hablando de precios, pienso que los precios es la manera de comprar a la gente, es una manera
de decirle a la gente “ahora tenemos buenos relaciones, por lo tanto paz entre tú y yo”. Y esto
también tiene algo perverso [...], es para decirte “calla” (Sierra, Conversation, 2012)

Isto pode explicar de algum modo que as ações (irritantes e polêmicas) de Santiago
Sierra estão sempre relacionadas com problemas sociais e econômicos, e elas condu-
zem, mediante os processos exploratórios da própria ação do projeto, aos meandros da
economia globalizada e da perda das identidades. É o caso, por exemplo, de oferecer
74 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

um salário irrisório como pagamento às pessoas que participam em seu trabalho. É bom
considerar que os valores que recebe na venda dos registros dos trabalhos (os vídeos e
fotografias não são apenas material documental, mas constituem também a própria obra
que é comercializada) e dos processos comissionados de seus projetos, aportam altos
valores, incompatíveis com os oferecidos aos que lhe prestam serviços. Como tal, Sierra
nos desafia a tratar a “exploração” como motor de um projeto de arte, socialmente cola-
borativo, que espelha problemas do esquema do capialismo e o faz, assumindo, explici-
tamente, o papel do “explorador”. De fato, por sua prática ser baseada em colaboração,
Sierra traz em discussão um campo nebuloso, que envolve aparatos do território da arte
e contexto do capitalismo avançado, e ao invés de os submeter à ética, articula-os em
torno da criação e registro de situações as vezes torturantes, e abusivas.
Em Muro de uma galería arrancado, inclinado a 60 grados del suelo y sostenido por
5 personas (Ilustração1 - México D.F., 2000), a ação realizada por um grupo de cinco
pessoas foca a sustentação, a um angulo de 60 graus do solo, de um muro de tapume.
Sabemos que o muro de tapume foi arrancado do solo da galeria onde se passou a inter-
venção, e que durante quatro horas diárias, por cinco dias, cinco pessoas contratadas vão
atuar tanto na sustenção (4 pessoas) quanto na vigília (1 pessoa) de manter o muro a 60
graus de inclinação do piso. Assim, na intervenção, quatro “colaboradores” sustentam o
muro e um quinto, em constante deslocamento, assegura a precisão da inclinação com
um esquadro. Neste cenário, com teor de teatralidade, no qual o público participa de um
espetáculo pertubardor, o mais supreendente, diz o crítico Cuauhtémoc Medina (Medi-
na, 2000), espectador desta ação, era a autodisciplina dos contratados que insistiam em
manter a parede no ângulo de 60 graus determinado no projeto. Em sua ótica, Sierra

Pensaba que iba a provocar una rebelión en directo. Cuando veo que se mantienen 5 dias y que
quieren su salario, realmente pensé que había subvalorado la capacidad de entrega del ser hu-
mano al mundo del trabajo. [...] Es una obra que a mí me ha dejado perplejo (Iraizoz, 2004:09).

Nesse trabalho, como em grande parte de sua obra, Sierra utiliza instrumentos pró-
prios do sistema (social/político, econômico e cultural) como práticas que ele mesmo
manipula na realização de seu projeto para criticar e denunciar o sistema. O envolvi-
mento do público é previsto, e ao término do trabalho um espectador lê, em voz alta, o
escrito de um volante que Sierra imprimiu:

Esta operação supõe a aplicação de uma atividade laboral não necessária, e inclusive alheia
em seus métodos aos usos laborais mais comuns. O emprego de pessoas em um labor que
seria solucionado com algum tipo de contraforte, atenta contra a lógica do menor esforço
laboral como são os critérios de economia empresarial. Do ponto de vista do trabalhador não
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 75

existe diferença entre a utilidade ou inutilidade de seus esforços, enquanto seu tempo seja
remunerado.1

Figura 1. Santiago Sierra, Muro de una galería arrancado, inclinado a 60 grados del suelo y
sostenido por 5 personas. Fonte: SANTIAGO, 2003, p. 47.

Claire Bishop assinala que a crítica mais séria que surgiu em relação à arte social-
mente colaborativa “incitou uma virada ética na crítica da arte”. Essa questão é baseada
no enfoque essencial que passou a ser dado aos mecanismos utilizados no “modo como
a colaboração é empreendida”. Contudo, segundo a autora, tal ênfase em detrimento
do produto (ou seja, meios sobre fins) “é justificada por sua oposição à predileção do
capitalismo pelo contrário”. E diz: “O ultraje indignado direcionado a Santiago Sierra é
exemplo proeminente dessa tendência” (Bishop, 2004).
De fato, vistas sob essa ótica (meios sobre fins) as propostas de Sierra, em geral,
atuam sobre um campo bastante problemático em especial na relação que provocam ao
eleger comunidades ou grupos específicos de pessoas marginalizadas do sistema comer-
cial e do sistema de produção de bens culturais e, pelos seus projetos, os inserir nesses
sistemas. Os critérios discursivos de seu trabalho se fixam em situações arbitrárias e
1. Esta operación supone la aplicación de una atividad laboral no necesaria, e incluso ajena en
sus métodos a los usos laborales más comunes. El empleo de personas en una labor que seria
solucionada con algún tipo de contrafuerte atenta contra la lógica del menor esfuerzo laboral
como hacia los criterios de economia empresarial. […] Desde el punto de vista del trabajador
no existe la diferencia entre la utilidad o inutilidad de sus esfuerzos mientras su tiempo sea
remunerado”. (MEDINA, 2000 b)
76 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

nos empurram a confrontar considerações as mais obscuras sobre a condição de alguma


falha social alí enfatizada. Em sua obra está subjacente o abuso do poder, o maltrato,
a imigração ilegal, o racismo. Contudo ao ser questionado sobre a capacidade real de
denúncia que a arte contemporânea comporta, Sierra responde:

Oh, muy poca ciertamente. Trás años de burlas de La prensa y de dejadez en La enseñanza de
las wartes, apenas tenemos credibilidad. Por otra parte somos productores de objetos de lujo
con frecuentes y comprometedoras relaciones con el estado. La denuncia la trae La gente de
casa puesta, en su cabeza. Soy un artista y no un activista [...] (Achiaga, 2011).

Se Nicolas Bourriaud argumenta que o grande fracasso da modernidade é o fato de


a maioria das relações humanas se darem no estatuto do cliente e, também, de usarmos
o espaço em que vivemos exclusivamente a partir das relações de contrato, o trabalho
operado por Sierra problematiza essa questão. Ou seja, joga o holofote sobre os proble-
mas que levam estes indivíduos a aceitarem essas atividades, se a ambição ou a neces-
sidade, se a fome ou o vício, Sierra aponta para uma questão um tanto quanto delicada,
o pertencimento destes indivíduos a uma sociedade qualquer, ou a fragilidade deste
pertencimento globalizada.
Sabemos que uma empreinte fundamental no processo de interagir de Santiago
Sierra é sinalizar um engajamento expandido da arte para com a cultura, e estar mais
próximo da cultura “é necessariamente uma interferência política”. Enfim, sob esta pers-
pectiva o filósofo italiano Giorgio Agamben afirma : “[...] A arte é em si própria cons-
titutivamente política, por ser uma operação que torna inoperativo e que contempla os
sentidos e os gestos habituais dos homens e que, desta forma, os abre a um novo possível
uso (Agamben et al. 2007:49).

Referências
ACHIAGA, Paula. (2011) “Santiago Sierra”, Madrid: El cultural de El Mundo. [Consult.
13/05/2013] disponível em: http://www.elecultural.es/notícias/Buenos_Dias/
AGAMBEN, Giorgio et al. Política – Politics. Crítica do contemporâneo. Fundação Serralves,
2007, p.39-49.
BISHOP, Claire. “A virada do social e seus desgostos”. In: Concinnitas n º 12, vol 01, ano 09,
Julho 2008. Pg. 145-165. Publicado originalmente em Artforum, em fevereiro de 2006.
BISHOP, Claire.. Antagonism and Relational Aesthetics. October 110, Fall 2004, pp. 51-79. ©Oc-
tober Magazine, Ltd. and Massachusetts Institute of Technology.
BOURRIAUD, Nicolas. Esthétique relationnelle. Dijon: les presses du réel, 2004.
BOURRIAUD, Nicolas. Pós-Produção. Como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São
Paulo: Martins Fontes, 2009.
BOURRIAUD, Nicolas. Radicante: por uma estética da globalização. São Paulo: Martins Fontes,
2011a.
IRAIZOZ, A. (2004) Metrópolis – Santiago Sierra. Madrid: RTVE.(Consult. 01/02/2013). Dis-
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 77

ponível em: http://www.rtve.es/alacarta/videos/metropolis/metrpolis-santiago-sierra/945193/


MEDINA, Cuauhtémoc. “Formas políticas recientes: búsquedas radicales em México - Santiago
Sierra, Francis Alys, Minerva Cuevas”. Revista TRANS>arts. cultures.media, 8, New York,
2000, v. 8, p. 146-163, 2000 a.
MEDINA, Cuauhtémoc. “Crónica del sudor ajeno: una acción de Santiago Sierra”. Curare, Méxi-
co D.F., n. 16, julio-deciembre, 2000 b.
SIERRA, Santiago. Ministerio de Asuntos Exteriores. Dirección General de Relaciones Culturares
y Científicas: Turner, 2003. 271 p. Catálogo de exposição. 15 jun. – 2 nov. 2003, Pabellón de
España. 50ª Bienal de Venecia, Venecia.
SIERRA, Santiago. 7 trabajos/ 7 works. London: Lisson Gallery, 2007. 272 p.
SIERRA, Santiago. México és como una ciudad tumor. El País, 05 fev. 2005 b. < http://www.
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consult. 09/11/2012.
Site oficial de Santiago Sierra. Disponível em: <http://www.santiago-sierra.com
SIERRA, Santiago. Ministerio de Asuntos Exteriores. Dirección General de Relaciones Culturares
y Científicas: Turner, 2003. 271 p. Catálogo de exposição. 15 jun. – 2 nov. 2003, Pabellón de
España. 50ª Bienal de Venecia, Venecia.
VV.AA. ( 2012) Santiago Sierra “In conversation”. Londres: LissonGallery. (Consult. 05/2013).Dis-
ponível: http://www.youtube.com/watch?v=5OvqnQrv9Xg&feature=share&fb_source=message
78 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Dispositivos artísticos interativos:


uma experiência multidisciplinar
com arte e engenharia

Angela Raffin Pohlmann


UFPel – [email protected]

Reginaldo da Nóbrega Tavares


UFPel – [email protected]

Este artigo apresenta uma reflexão sobre uma proposta de colaboração en-
tre artistas e engenheiros. O grupo é formado por estudantes e professores
de duas diferentes unidades acadêmicas de nossa universidade: o Centro de
Engenharias e o Centro de Artes. O atelier na universidade é um espaço co-
letivo. Ao compartilharmos este espaço, criamos um projeto multidisciplinar
que tem como um dos objetivos desenvolver experiências artísticas através
do contato entre os participantes do grupo e do contato entre a universidade
e a comunidade.
Palavras-chave: arte e engenharia, multidisciplinaridade, dispositivos artísti-
cos interativos, re-uso, sustentabilidade.

Este artículo apresenta una reflexión sobre una propuesta de colaboración


entre artistas y ingenieros. El grupo está compuesto por estudiantes y pro-
fesores de dos diferentes unidades académicas de nuestra universidad: el
Centro de Ingeniería y el Centro de Artes. El taller de la universidad es un
espacio colectivo. Al compartir este espacio, hemos creado un proyecto multi-
disciplinar que tiene como objetivo desarrollar experiencias artísticas através
del contacto entre los participantes del grupo y el contacto entre la universidad
y la comunidad.
Palabras clave: arte y ingeniería, multidisciplinaridad, dispositivos artísticos
interactivos, re-uso, sostenibilidad.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 79

Introdução
Arte e ciência sempre andaram juntas. A experiência que será descrita aqui trata de uma
relação entre estes dois campos. Por mais que pareçam distantes, o campo da arte está
intimamente ligado ao da ciência. Comentaremos uma proposta de trabalho coletivo que
fica na intersecção entre a arte e a engenharia. As ações acontecem pela interação entre
professores e estudantes dos cursos de Artes Visuais, Engenharia Eletrônica e Engenha-
ria de Controle e Automação de nossa universidade.
O processo de criação dos artefatos desenvolvidos pelo grupo envolve a colaboração
e a cooperação entre artistas e engenheiros. As ideias surgem justamente a partir da con-
vergência entre os diferentes pontos de vista e dos diálogos que acontecem a partir des-
tas interações. A combinação dos conhecimentos e pontos de vista nem sempre seguem
uma ordem lógica, e o repertório trazido por cada um soma-se ao repertório dos demais
para a produção de cada obra. Conceitos como interdisciplinaridade, multidisciplina-
ridade ou transdisciplinaridade estão presentes nos modos de pensar contemporâneos
(NUNES; OLIVEIRA, 2012) e aqui estamos oportunizando experiências que transitam
nestas interseções.
A formação do grupo ocorreu quase que por acaso. A aproximação entre o professor
do Centro de Engenharia e a professora do Centro de Artes ocorreu pela possibilidade
dele utilizar o atelier de gravura do Centro de Artes para gravar as placas de circuito im-
presso das disciplinas de Engenharia Eletrônica e Engenharia de Controle e Automação.
Os cursos de engenharia são relativamente recentes em nossa universidade e a infraes-
trutura do atelier de gravura poderia servir de laboratório para os estudantes e professo-
res do Centro de Engenharias. Eles poderiam utilizar os equipamentos disponíveis no
atelier de gravura para a implementação de placas de circuito impresso: as bancadas,
as bacias, os tanques, o percloreto de ferro, os computadores com programas gráficos
e impressora laser para criação dos layouts dos circuitos (MEHL, s/d). Em ambos os
casos são utilizadas placas de cobre, tanto nas matrizes de gravura em metal como nas
placas de circuito impresso (PCI).
Ultimamente, devido ao alto custo para a aquisição de placas de cobre para a gra-
vura artística, vínhamos utilizando também as placas de fenolite com camada de cobre
para as experiências de gravação e impressão de matrizes nas disciplinas de Gravura
em Metal no curso de Artes Visuais e Design Gráfico do Centro de Artes. Estas placas
de fenolite com camada de cobre foram originalmente fabricadas para uso nos artefatos
eletrônicos. Entretanto, pelo seu baixo custo e pela facilidade de aquisição elas nos pro-
porcionam ótimas opções como matrizes alternativas para a gravura em metal (Fig. 1).
80 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Figura 1: As placas de fenolite e cobre são utilizadas para (a) matrizes de gravura artística e
para (b) placas de circuito impresso para dispositivos eletrônicos (Todas as imagens deste
artigo são de autoria do grupo)

Dito isso, poderíamos pensar que o espaço do atelier de gravura estaria sendo uti-
lizado por professores e estudantes de dois diferentes Centros de nossa universidade,
sem que isso significasse trabalho coletivo ou colaborativo. É usual compartilharmos os
espaços e salas das unidades de ensino das universidades, no sentido de que cada pro-
fessor trabalha em um determinado espaço ou sala a cada vez. É comum o uso das salas
por mais de um professor, mas não é comum que este uso seja simultâneo. E, menos
comum é compartilhar as salas ao mesmo tempo para realizar um trabalho colaborativo
com professores de diferentes unidades de ensino.
A colaboração começa com a vontade de trabalhar junto. A intenção de produzir
algo em conjunto é possível pela boa-vontade de aceitar as diferenças e acomodar as
divergências. Não é uma tarefa fácil. Não se trata de submeter-se às ideias dos outros,
mas de dialogar e promover o encontro. É no encontro que as trocas acontecem. E os
encontros são favorecidos pelo fato de compartilharmos o mesmo espaço. O espaço
do atelier é o lugar onde estas trocas acontecem e é onde o grupo se reúne quase que
diariamente para trabalhar junto.
Um começa um desenho de uma ideia e o outro continua propondo o detalhamento
do que foi inicialmente esboçado. Um começa a escrita de um texto para uma futura
publicação e o outro segue a ideia e complementa o que está sendo escrito com novos
parágrafos e novas ideias ou com sugestões de reescrita do que já havia sido iniciado.
O mesmo acontece com os dispositivos artísticos. As conversas dão origem aos es-
boços que originam os protótipos. Cada um contribui com aquilo que sabe melhor. Du-
rante a execução dos artefatos e dispositivos, vamos aprimorando o modo de realização
a partir das dificuldades ou lacunas que vão surgindo.

Dispositivos artísticos e a multidisciplinaridade


O grupo está se dedicando à construção de alguns dispositivos artísticos que envolvem
a colaboração entre artistas e engenheiros. Entre os experimentos realizados pelo gru-
po está a gravação de matrizes de gravura em metal através de eletrólise. A eletrólise
pressupõe o conhecimento de eletrônica e conhecimentos de arte. Há uma intersecção
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 81

necessária entre estes dois campos para o controle das correntes elétricas e demais ins-
trumentos capazes de corroer o metal sem a utilização de ácidos tradicionais usados na
gravura artística. Para a utilização da eletrólise na gravação das matrizes há também o
necessário domínio das técnicas de gravura para a realização das imagens através destes
procedimentos alternativos (Fig. 2).
A ideia de utilizar eletrólise para a gravura em metal está diretamente ligada à ne-
cessidade de se pensar processos alternativos que sejam menos agressivos ao meio am-
biente e à saúde do artista gravador. Os procedimentos e os materiais tradicionais pre-
cisam ser repensados e estamos buscando alternativas sustentáveis para a continuidade
do meio gráfico.

Figura 2 (a,b): Alternativas não-tóxicas para a gravura em metal: uso de eletrólise para a gra-
vação das matrizes de cobre

Neste sentido, buscamos estas alternativas pelo intercâmbio com outros profissionais
e artistas, sejam dos países vizinhos com Chile ou Argentina, ou do continente europeu,
como os da Dinamarca, Espanha e França. Através da ida de alguns membros do grupo
a estes ateliers de outras partes do mundo, ou da vinda de alguns destes profissionais e
artistas estrangeiros até a nossa universidade, pudemos aprender e compartilhar infor-
mações, procedimentos, novidades e modos alternativos de fazer gravura, que afinal é
um dos interesses que nos move a buscar estes outros modos de realização. Através de
cursos de extensão abertos para a comunidade, estamos estendendo estes conhecimentos
a todos os que se interessarem em compartilhar. Um dos cursos oferecidos à comunidade
foi ministrado por uma professora que veio do Chile, da Universidade de Finis Terrae,
e que utiliza matrizes de gravura em metal feitas com caixinhas de leite e embalagens
do tipo tetra-pac. O curso evidenciou a possibilidade de se trabalhar com materiais que
seriam descartados (Fig. 3).
82 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Figura 3 (a,b): Gravura em metal realizada com matrizes alternativas (embalagens de caixas
de leite usadas)

A ideia de re-uso também aparece como uma ideia significativa para o desenvolvi-
mento de nossos projetos. E igualmente a ideia de low-tech, que na maioria das vezes
é usada para se falar de tecnologia e que aqui pode se referir à tecnologia que utiliza
menos os recursos digitais ou que propõe chamar a atenção para uma tecnologia que
está obsoleta.
Um outro projeto do grupo que atende a comunidade está ligado à escola estadual de
ensino fundamental que ficava no meio do caminho entre o Centro de Artes e o Centro
de Engenharias na nossa cidade. O projeto pretende aproximar a escola de ensino fun-
damental e a universidade através de projetos desenvolvidos pelos estudantes de uma
e outra instituição. Ao pensarmos esta relação possível entre a universidade e a socie-
dade, somos desafiados a tentar responder “através do conhecimento, as demandas e as
carências da sociedade [...]” com o intuito de fazer avançar o modelo social, político e
cultural (PANIZZI, 2006, p.7). Neste sentido, os estudandes universitários trabalham em
conjunto com os estudantes da escola. As experiências mútuas são enriquecedoras para
todos. O projeto inlcuiu a criação de uma rádio escolar no estilo tradicional que entrou
em funcionamento na escola, cuja programação está sendo elaborada pelos alunos e pro-
fessores da escola. Os equipamentos foram projetados e executados pelos estudantes de
engenharia e de artes, visando a instalação da rádio na escola. Os estudantes desenharam
os circuitos e gravaram as placas de circuito impresso, fizeram os furos e soldas para os
componentes eletrônicos e instalaram os equipamentos na escola. Através de reuniões
conjuntas entre os estudanets e professores da universidade e os estudantes e professo-
res da escola estamos construindo este espaço que é ao mesmo tempo lazer, diversão,
entretenimento, conhecimento, comunicação, informação e aprendiagem mútua a todos
os que se dedicam ao projeto (Fig. 4).
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 83

Figura 4 (a,b): Criação dos dispositivos elétricos, acústicos e eletrônicos para a rádio na escola

Para a instalação da rádio na escola, os estudantes da graduação elaboraram os cir-


cuitos e demais componentes para o funcionamento de amplificadores de áudio, insta-
laram as caixas de som, microfones e mesa de som na escola. A operação dos equipa-
mentos está sendo compartilhada entre os estudantes, de modo que em breve os alunos
da escola de ensino fundamental possam manipula-los com autonomia. A carcaça de um
estabilizador descartado está sendo utilizada como caixa para proteger o amplificador
de áudio construído pelos estudantes que fazem parte do projeto. As placas de circuito
impresso do amplificador foram implementadas com as técnicas de gravura artística.
No ano passado foi criado um dispositivo de projeção de imagens que estava acopla-
do em uma bicicleta. O artefato funcionava com as pedaladas de alguém que se dispu-
sesse a realizar esta força mecânica (Fig. 5).
Com as pedaladas, um dínamo era acionado de modo que a corrente elétrica produzi-
da pela energia cinética das pedaladas fazia ligar uma luz (led) que projetava a imagem.
O ciclista, apesar de não sair do lugar, poderia ver a imagem de um ciclista andando de
bicicleta projetada na parede graças à sua boa-vontade em participar do experimento
artístico. A performance era inusitada. A imagem do ciclista pedalando uma bicicleta
aparecia simultaneamente ao sorriso no rosto do paticipante.

Figura 5: (a) criação do dispositivo para projetar imagens acoplado à bicicleta; (b) participante
da exposição pedalando a bicicleta preparada com dispositivo de projeção de imagens
84 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Conclusão
Neste artigo, procuramos comentar algumas das estratégias utilizadas pelo nosso gru-
po nas interseções que envolvem artistas e engenheiros e estudantes de artes visuais e
estudantes de engenharia eletrônica de nossa universidade. As ações aconteceram pela
vontade em estar junto e em compartilhar ideias, espaços, convicência, e pela disponi-
bilidade em cooperar e colaborar para a produção de obras interativas. Estes trabalhos
são o resultado deste esforço conjunto, e se devem às misturas entre os conhecimentos
provenientes de cada um dos participantes e de suas experiências em ambas as áreas.
Agradecemos o CNPq e a FAPERGS pelo apoio às pesquisas que deram origem a este
texto.

Referências
MEHL, Ewaldo Luiz de Mattos. Projeto de placas de circuito impresso com o software EAGLE.
Apostila da UFPR, s/d.
NUNES, Sandra Conceição; OLIVEIRA, Sandra Regina Ramalho. “Tudo a ver: questões inter-
disciplinares”. In: ANAIS DO 20º ENCONTRO NACIONAL DA ANPAP. Rio de Janeiro, 2011.
PANIZZI, Wrana. Universidade para que? Porto Alegre: Libreta, 2006.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 85

O livro-objeto na poética
de Hilal Sami Hilal:
a construção de um espaço/tempo

Aparecida Ramaldes
FAPES/PPGA/UFES – [email protected]

José Cirillo
CNPQ/FAPES/PPGA-UFES – [email protected]

Neste artigo abordamos alguns aspectos significativos do livro-objeto, pen-


sando-o como um objeto de arte que explora algumas características do livro
convencional. Assim também, o livro-objeto pode ser portador das dimensões
espacial e temporal. Criado para registrar e divulgar o conhecimento e a me-
mória, desde Gutenberg o livro é construído num presente e destinado a um
futuro. Sua construção implica em questões como: forma, estrutura, materiali-
dade, conteúdo e a relação entre leitor/objeto.
Palavras-chave: arte, escrita, poesia visual, livro de artista, processo de criação

This article approaches some meaning aspects of object-book. The object


book is thought like an art object that explores a few features from the con-
ventional book. Even so the object-book may carrier space and temporal
dimensions. Created for register and reveal knowledge and memory, since
Gutenberg the book is made in the present and destined for the future. Make
books involves questions like: form, structure, materiality, contents and the
relationship reader/object.
Keywords: art, writing, visual poetry, artist’s book, creative process
86 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Introdução
Neste artigo abordamos alguns aspectos significativos do livro-objeto, peça resultante
do campo da arte que explora características do livro convencional. No primeiro capítu-
lo analisamos a forma, a estrutura e a materialidade do livro impresso herdadas de seu
antecessor, o códex manuscrito.
No segundo capítulo refletimos sobre a circularidade da relação espacial e temporal
presentes em cada página. De sua concepção física até a leitura, a ênfase no espaço/
tempo no livro é reforçada pelo leitor. No caso dos livros-objetos é o espectador quem
interage com a obra. Ele pode manuseá-la, observá-la ou mesmo lê-la, criando novas
formas de interação táteis, visuais e legíveis.
No terceiro capítulo aproximamos a escritura da obra Livro Socorro (2011), de Hilal,
aos poemas concretos Tudo está dito (1974), de Augusto de Campos, e Sólida (1968),
de Wladimir Dias Pino.
Para as considerações finais direcionamos as análises sobre a relação tempo/espaço
inerente ao códex manuscrito ou moderno, para os livros-objetos do artista. Pensando em
seu processo criativo e na diversidade material de sua produção, discutimos a construção,
a estruturação e a relação tempo/espaço dos livros praticados por Hilal Sami Hilal.

Do livro convencional ao livro-objeto: matéria, forma e estrutura


Pode ser enganoso pensar que a revolução da imprensa (1450) foi responsável pelo
formato do livro convencional, tal como o conhecemos hoje. Desde Gutenberg o livro
tem sido suporte da escrita impressa e herdou o modelo de seu antecessor do período do
manuscrito, o códex ou códice.
Para chegar ao livro como o conhecemos foi necessário um processo evolutivo len-
to, desde os primórdios da escrita, que implicou conjuntamente o desenvolvimento dos
materiais, das técnicas de escrita e também da aprendizagem. Desde a Antiguidade já se
concebiam os suportes de escrita organizados em páginas, são exemplos as tabuletas de
madeiras, as de bambu e as placas de argila. A necessidade de facilitar o armazenamento
de informações tanto para fins comerciais, como educativos, levou à pesquisa constante
de novos suportes, ferramentas e técnicas de escrita.
No que tange à evolução dos materiais, devemos considerar as possibilidades que o
pergaminho, material feito a partir da pele de ovelha, trouxe para o processo de evolução
do livro. Com esse material foi possível fazer dobraduras e criar as páginas que passa-
ram a ser costuradas em cadernos e receberam capa. Assim o surge e evolui o códex ,
cujos primeiros exemplares foram feitos com papiro. Este foi o modelo precursor do
livro impresso do qual herdamos, a forma, a estruturação, a distribuição do texto nas
páginas, os sistemas de paginação, numeração, índices e sumários (Chartier, 1998, p. 7).
O livro convencional permanece até hoje com todas as características do códex.
O aspecto de livro que nos é familiar até hoje se generaliza com a difusão do Cris-
tianismo, entre os séculos II e IV. Ganha organização e estrutura. Sua mise em page, ao
longo da experiência, vai criando padrão estético de ornamentação, divisão de capítulos,
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 87

paginação, títulos, separação de palavras, incremento de acabamento e encadernação.”


(PAIVA, 2010, p. 22 )
Para este estudo sobre os livros-objetos de pensamos ser importante nos ater mais
detalhadamente sobre o códex manuscrito. Pois além das características que deixou de
herança ao livro moderno, ele guarda aspectos que nos remete aos livros-objetos atuais.
Principalmente por sua feitura artesanal e sua concepção como peças únicas – objetos
concebidos para o deleite estético de seus donos e/ou espectadores. Pensamos que tais
especificidades fazem com que o livro experimental de artistas visuais contemporâneos
se aproxime do códex manuscrito. E, por extensão, os livros-objetos de Hilal Sami Hilal,
com sua vocação experimentalista e artesanal.
Materialmente falando, o livro impresso é limitado por estar preso às regras de mer-
cado que exige o barateamento da produção. Enquanto o livro-objeto segue livre em
suas infinitas possibilidades materiais e criativas. Assim como foi o códex desde a época
do manuscrito, verdadeiras obras de arte.
De fato a contribuição da Revolução da Imprensa para a evolução do livro foi o
avanço técnico da reprodutibilidade, o que possibilitou a serialização das páginas im-
pressas. Graças à prensa de tipos móveis inventada por Gutenberg (1439), o suporte
livro deixou de guardar o conhecimento para poucos e passou a divulgá-lo numa velo-
cidade inimaginável para a época. A escrita e o conhecimento ganharam autonomia e se
libertaram dos limites monásticos impostos pelo Cristianismo.
Assim como o livro manuscrito e o impresso, os livros-objeto de Hilal são estrutura-
dos de modo sequencial, graças à serialização das páginas. Para o artista o fato de juntar
uma série de folhas de papel em maços já caracteriza um de seus primeiros livros. Do
mesmo modo, também são livros as séries de painéis com escrita, feitos em chapa de
cobre. Afixados em sequência na parede, as páginas de cobre não se fixam uma na outra,
mas guardam “consigo os sinais de ser parte de um todo.” (SILVEIRA, 2008, p.23).

Tempo e espaço: as dimensões do livro


Como um objeto construído o livro possui as três dimensões, altura, largura e espessura
e pode ser percebido pelos sentidos e apreendido pelo pensamento. É no campo da per-
cepção que, primeiramente, o livro vai se firmar como objeto de arte. Conforme Paulo
Silveira: “A leitura, o desfrute e a intelecção são processos de aproximação posterior.
Para qualquer das etapas, é principalmente a sua eloquência como corpo físico que im-
põe o seu status de objeto artístico [...]” (2008, p.122). Acreditamos que o pesquisador
utiliza o termo eloqüência pelo fato do livro se distanciar de um objeto comum que,
quase sempre, se limita a nos afetar pela visualidade ou por sua função. Livros nos
convidam a interagir e mesmo que o deixemos na estante, sentidos como o tato e o
olfato são convocados juntamente com a memória. Além disso, ele é concebido num
presente e destinado a um futuro como um objeto que guardará uma memória passada,
seja ela real ou ficcional. Por sua configuração formal, independente do que possa conter
literalmente, o livro pode ser considerado uma sequência de tempo e de espaço, dada
88 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

a organização de suas páginas. Por si só, cada página também representa o espaço e o
tempo, sobre elas o autor/artista vai inserir sua escrita ou suas imagens.
Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades e
velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo
animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produ-
zido pelas operações que o orietam, o circunstanciam, o temporaliza [...] (CERTEAU,
2007, p.202).
Conforme o filósofo, a variável tempo conjugada com os vetores de direção é que
constitui o espaço como um “lugar praticado”. O texto inscrito pelo autor vai construin-
do o espaço/tempo da página. Podemos pensar a escrita como memória externa, seus
registros são acontecimentos passados. E no caso de se registrar na folha alguma impres-
são ou ideia presente ou futura, como num projeto, essas se transformam imediatamente
em registro de memória - possível de ser acessado em outro tempo ou lugar.
Transferindo para o livro-objeto as reflexões sobre espaço e tempo que acabamos de
colocar, somos levados a pensar que ao escolher o livro como objeto de trabalho o artista
traz essa discussão para o campo da arte. Discussões que se fazem presentes em qual-
quer de suas categorias: pintura, fotografia, escultura, etc., apenas chamamos a atenção
para a ênfase que o livro propicia à circularidade do tema.
Do tempo de concepção ao de confecção passa-se ao tempo do leitor/espectador que
a cada virar de página lida com a duração no espaço escrito, aonde se desenrola outro
acontecimento. O leitor é “[...] o agente que atualiza a obra [...]” (PAIVA, 2010, p.93).
Sua relação com o tempo/espaço do livro se dá na gestualidade da leitura, assim como
na legibilidade do texto, que pode ser cronológico ou não. Primeiramente é a sequência
de páginas que marca o ritmo do gesto da leitura, antes mesmo do conteúdo. Numa
ação íntima podemos acelerar ou desacelerar o tempo, repetindo um gesto secular. E o
enfrentamos tátil e visualmente a cada passar de folha. Gestual que nos posiciona meta-
foricamente entre o passado e o futuro. Ao deitarmos a página virada deixamos para trás
um passado construído, enfrentamos o presente e nos lançamos ao futuro. E o ciclo de
duração recomeça na leitura da página seguinte.

Livro Socorro e os poemas concretos


Analisamos agora o Livro Socorro (Figura 6) construído com páginas de acetato inco-
lor e sobre elas um texto vazado que se repete. Essa serialização foi possível graças à
técnica de corte a laser, contratada pelo artista. Nesse processo os contornos das letras,
palavras e vazados adquiriram uma coloração ferrugem. Essa cor trouxe um aspecto
envelhecido para as páginas, parecido com a oxidação. Efeito que no entendimento do
artista, remete ao tempo.
Fechado o Livro Socorro tem aspecto sólido, opaco de um branco amarelado. No
texto a palavra socorro se repete em escalas variadas e se decompõe em outras. Na
construção da escrita, o artista elaborou o texto, explorando a visualidade e os sentidos
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 89

das palavras. Às vezes com destaque para determinadas letras ou sílabas. Socorro, Soco,
(So) corro- numa ideia de só corro, como referência verbal à velocidade.
Agora apresentamos para aproximações o poema Tudo está dito (figura 7), de Au-
gusto de Campos e Sólida (figura 8), de Wladimir Dias-Pino. Esclarecemos aqui que,
sem pretensões de fazer análises literárias dos poemas, nosso interesse é apenas a visua-
lidade do texto. No primeiro poema (Figura 1) observamos um fundo preto e as letras
brancas vazadas. Com tipografia em caixa alta as palavras são estruturadas apoiando-se
umas nas outras. O texto é fragmentado, desconstruído, dificultando uma leitura linear.
Abaixo a transcrição parcial do segundo poema Solida (figura 8) construído a partir
da palavra de seu título. Vemos do lado esquerdo a palavra Sólida se tornar Solidão, para
em seguida se decompor em outras palavras: sol, só, lida. As letras parecem se soltar e
cair, solitárias. À direita, a palavra Sólida, novamente se desfaz em pontos. Lembramos
que todo poeta possui licença poética para sua prática e Wladimir a usou quando retirou
a acentuação gráfica das duas palavras. Esclarecemos também que este poema-objeto
não se reduz a esta imagem, a obra completa combina estratégias interativas e matemá-
tica, criadas a partir dos quadrados latinos. Nesta análise recorremos apenas a esta parte
do conjunto para uma analogia com a obra de Hilal.

Considerações finais: tempo e


espaço nos livros-objeto de Hilal Sami Hilal
Para Hilal desde o início de sua carreira o plano bidimensional é o espaço onde seu
processo criativo se desenrola. Segundo o artista, mesmo construindo objetos tridimen-
sionais, afora o livro, é do plano que ele parte. As páginas de seus livros-objetos são
elaboradas em diferentes materiais: papel artesanal; chapa de cobre; acetato e etc. Nelas
o artista inscreve palavras, signos e nomes próprios. Também os símbolos da cartografia
são frequentes em suas escrituras, como a rosa dos ventos e os pontos cardeais. Esses
símbolos enfatizam seu interesse pela relação espaço-tempo que traduz e re-significa
em seus livros.
Para que uma obra possa ser considerada como um livro de artista contemporâneo
deve guardar uma ou mais característica do livro convencional, o códex moderno. Como
já dissemos, para Hilal o fato de juntar uma série de folhas em um maço caracteriza um
livro. A isso se dá o nome de serialização ou sequência de páginas ordenadas. Alguns de
seus livros possuem apenas esta característica.
As séries de chapas de cobre com escrituras dispostas verticalmente na parede apre-
sentam a serialização das páginas e a escrita como características do livro convencio-
nal. Outros, além da serialização, possuem o fechamento lateral das páginas. Estrutura
comum aos livros, que possibilitam a interação do espectador que as podem virar num
gestual de leitura.
O plano textual nos parece ser espaço propício para as experimentações propostas
por Hilal. Seus processos criativos são marcados pela experimentação fenomenológica
com as matérias. Nos trabalhos em chapas de cobre o artista usa o ácido e a corrosão que
90 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

ao mesmo tempo são: técnica e efeito; experimento e obra. Experiências que a nosso ver
posiciona o artista como um mestre que rege os elementos. Se para Michel de Certeau:
“o espaço é um lugar praticado”, Hilal o pratica regendo o tempo que corrói o cobre
deixando marcas sobre o espaço/página. Do efeito de corrosão com o ácido o artista
inscreve o texto sobre o cobre.
Para o investigador Silveira, alguns artistas optam por estancar o ‘tempo’ em seus
livros e diz que: “Uma das metáforas mais freqüentes é a do livro imobilizado sem
páginas (ou tempos) para virar. Abdica-se do ritmo, da memória do que foi visto, da
expectativa do que está para se ver, da relação no presente entre momentos passado e
futuro [...]”. (2008. p. 79 e 82). No entanto, a escolha do artista em negar a página não
diminui a ênfase na relação espaço/tempo que o livro carrega. O exemplo de Hilal que
trazemos agora é o Livro Esférico, de 2005 (figura 7). Desprovido de páginas, esse
livro-objeto é um novelo. Foi tramado com o fio de uma escritura de cobre obtida pelo
processo de corrosão com o ácido. Especialmente nesse livro a escritura se fez como
uma fileira de letras na vertical (fig. 3), unidas por finíssimas tiras de cobre num longo
fio que o artista enovelou. O livro redondo foi construído de dentro para fora, modelado
pelas dobraduras dessa escrita flexível. Como o desdobrar de nossa Linguagem, que se
faz em camadas de intertextualidades, o artista foi tecendo seu texto sobrepondo letras,
palavras e nomes.
A superfície dessa esfera é áspera, ugosa e como um véu de palavras desdobra sobre
si encobrindo o globo. Através de seus vazados é possível entrever outras camadas de
escrita. O Livro Esférico construído por Hilal é um o globo - um ‘lugar praticado’ pela
trama da escrita que o constitui.

Referências
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2007.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora da Unesp,
1998.
PAIVA, Ana Paula Mathias de. A aventura do livro experimental. Belo Horizonte: Autêntica Edi-
tora/Edusp, 2010.
SILVEIRA, Paulo. A página violada: da ternura à injuria na construção do livro de artista. Porto
Alegre: Editora UFRSG, 2008.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 91

Contextos e imagens: estruturação


de uma poética performática

Carla Borba
UFRGS – [email protected]

O presente artigo reflete sobre como diferentes contextos, nos quais algumas
ações performáticas são realizadas alteram a percepção do trabalho. Propõe
uma discussão sobre o tema a partir de relações transdisciplinares entre artes
visuais e teatro, criando conexões entre o ato de performar e o da representa-
ção teatral. Para isso serão analisadas relações em minha produção artística
a partir das ações performáticas Etroc e Vestido de Pedra, que se constituem
em trabalhos que objetivam a criação de imagens que se alteram dependendo
do contexto no qual elas estão inseridas.
Palavras-chave: performance, imagem, corpo, transdisciplinaridade

This article reflect on different contexts in which some actions performed alter
the perception of the work. Proposes a discussion on the topic from transdis-
ciplinary relationships between visual arts and theater, creating connections
between the act and perform in theatrical representation. For it will be analy-
zed relationships in my artistic production from performing actions Etroc and
Vestido de Pedra which constitute work that aim to create images that change
depending on the context in which they are embedded.
Palavras-chave: performance, image, body, transdisciplinarity.
92 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Introdução/Convite
Imagens povoam minha mente: um corpo disforme, um vestido, uma mulher, uma pe-
dreira; pedras transformando um corpo, agindo sobre ele, resistência, peso e leveza,
equilíbrio e desiquilíbrio; desafios. Interessa-me, sobretudo, um corpo que se faz ima-
gem, que indica a produção de imagens e que rege as orquestrações de meu fazer artísti-
co. Corpo e imagem em uma relação que promove o acúmulo de registros de fragmentos
vividos e de diferentes lugares e temporalidades.
O presente artigo apresenta uma reflexão sobre como o processo de criação artístico
se estabelece em minha produção a partir dos espaços e do contexto em que eles são apre-
sentados. Abordarei a relação entre as ações performáticas Etroc, Vestido de Pedra com o
espetáculo teatral Vão. Ambas as propostas tem por objetivo abordar a relação do corpo e
o espaço do feminino no mundo contemporâneo. Minhas ações performáticas se estrutu-
ram com uma profunda influência das imagens que elas geram como composição visual.
O espetáculo teatral Vão teve como proposta um processo colaborativo de criação
envolvendo artistas do teatro, artes visuais e música, entre os anos de 2010 e 2011 em
Porto Alegre/RS. A proposta inicialmente apresentada pela atriz Carina Dias envolvia a
minha participação nos ensaios/laboratórios como espaço de criação das performances.
A possibilidade de fazer do teatro meu atelier promoveu uma relação muito forte entre
minhas proposições artísticas com imaginário da linguagem teatral, como o palco, a
iluminação, os ensaios, a trilha sonora, os objetos cenográficos, as projeções, as atrizes
e a construção coletiva de um trabalho. A partir desta oportunidade, realizei as perfor-
mances Etroc e Vestido de Pedra.
A montagem teatral Vão tinha como concepção a interdisciplinaridade entre linguagens
artísticas, principalmente entre teatro e artes visuais, mais especificamente com a perfor-
mance. A minha participação no espetáculo propunha, inicialmente, a ação performática
Vestido de Pedra, no entanto, ao me deparar com o texto dramático, que seria dado por
uma das atrizes sugeri que ela fizesse a ação performática que inicialmente eu iria realizar
enquanto falava o trecho do texto Quarteto, do dramaturgo alemão Heiner Müller. No texto,
encontrei referências significativas à imagem que tinha do vestido. Uma mulher que faz de
seu corpo um registro da passagem do tempo, a exposição de um corpo vivo que sofre as
intempéries do desamor, da morte e da ação de tesouras e agulhas. Executar a performance
seria agir conforme o texto falado, seria dar voz à performance, pois – até o momento – eu
não havia imaginado realizar uma performance acompanhada de um texto falado.
A partir do momento em que ofereci à atriz a performance, precisei experimentar
outras possibilidades de ações; sendo assim, os ensaios tornaram-se espaço importan-
te para meu processo criativo. Em lugar de me deslocar para o espaço do atelier, os
encontros possibilitaram experimentações no palco e potencializaram o meu processo
de trabalho. Uma das condições mais latentes desta troca foram os diálogos que esta-
belecíamos enquanto grupo de trabalho e pesquisa em arte. Os ensaios tornaram-se um
laboratório de experimentação, onde eu observava minhas propostas performáticas de
forma lúdica. A caixa preta do teatro para mim se transformou no espaço fotográfico,
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 93

no qual as ações produzidas pelas atrizes desencadearam uma sequência de imagens


em meu imaginário.
Observando a realização da performance Vestido de Pedra pela atriz tive um distan-
ciamento perceptivo que me auxiliou a pensar e estruturar uma outra ação que intitulei
como Etroc. Enquanto no Vestido de Pedra existe um ato de adição e aumento do peso
do vestido através de pedras que são inseridas em vários bolsos que compõem o vestido,
pensei Etroc como o seu avesso: a remoção das pedras.
A performance Etroc inicia quando entro no palco vestindo uma túnica e sento no
fundo, ao lado de duas caixas de madeira. Aos poucos, retiro a roupa e visto várias
meias-calças nas pernas, braços, tronco e cabeça. O ato de vestir as meias faz referência
ao corpo sensual e elegante de uma mulher. A sobreposição e saturação de uma meia so-
bre a outra cria um estranhamento sobre a imagem do corpo. A meia-calça, que anterior-
mente era objeto de desejo, transfigura-se e gera uma imagem disforme do corpo femi-
nino. Dessa forma, ocorre um estranhamento e mutação do desejo pela repulsa. Depois
de vestida com as diversas meias permaneço sentada. Na passagem de uma cena à outra,
crio poses diferentes, com as quais tento gerar uma imagem de uma mulher elegante, o
que se torna impossível devido à imagem desfigurada que a meia-calça promove.
A performance Etroc, propriamente dita, inicia quando a trilha sonora do espetáculo
passa a ter um ritmo lento e grave. A partir desse momento, desloco com dificulda-
de duas caixas de madeira, dentro das quais se encontram aproximadamente 50 kg de
pedras. Posiciono cada um dos caixotes nas duas laterais do palco. Volto ao centro da
cena e inicio a ação que irá se estabelecer como o ponto central da performance e, pau-
latinamente, retiro as pedras uma a uma das caixas e as insiro no interior das diferentes
camadas da meia de nylon que envolvem meu corpo.
A inserção dos seixos vai, aos poucos, alterando a imagem de meu corpo e dificul-
tando o deslocamento no espaço cênico. No momento que a temporalidade infinita, sim-
bolizada pelas pedras, entra em simbiose com o tempo finito de meu corpo, essa relação
passa a ser insuportável e vou eliminando as pedras, as quais deixam de constituir a
imagem de um corpo transfigurado. O processo de eliminação acontece através da ação
do corte. Esse procedimento, em minha produção, se constitui como um gesto de separa-
ção, cisão, divisão entre estruturas que, incialmente, estavam unidas e que mesmo após a
interrupção continuam mantendo a memória dessa união. Todavia, ao mesmo tempo em
que tenho a relação com esse procedimento, também penso o corte como um momento
de abertura para novas problematizações. As pedras segregadas de meu corpo indicam
relações de perda, ausência e transformação de corpos que carregam em si a memória
de uma união passageira. A tesoura utilizada na ação representa um objeto importante
na concepção da performance. Ela indica o processo de transformação, é a responsável
pelo corte na meia-calça. O objeto tesoura se abre como duas pernas femininas e que ao
se fecharem, transformam-se em um falo. Nesse sentido, novamente a ideia de avesso
surge no trabalho, os contrários fazem parte de um mesmo gesto. A cada tesourada, as
pedras despencavam da meia que envolvia meu corpo (Figura 1). O som da pedra caindo
94 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

no palco gerava uma violência no gesto e um desconforto no observador. O áudio que


acompanhava meus gestos, nesse momento da performance, fica ainda mais grave e con-
tinua somando-se ao som das pedras. Os seixos de rio que anteriormente se deslocavam
pelo movimento da água passaram a rolar pelo meu corpo e pelo espaço cênico. Ao final
da performance, permaneço no palco assim como as pedras que ficam espalhadas na
cena, as quais serão utilizadas em seguida na ação Vestido de Pedra.

Figura 1 - Registro fotográfico por Luciano Montanha da performance Etroc no espetáculo


teatral Vão, Porto Alegre/RS, 2011. (Acervo da autora).

As imagens produzidas durante o espetáculo são registros de minha ação enquanto


uma ‘cena’ encadeada no roteiro do espetáculo. Assim, as fotografias apresentaram um
ponto de vista específico de alguém que observa a performance de um ângulo panorâmico,
como o ponto de vista do público. Nestas a luz, as linhas paralelas do palco, os objetos
em cena, as atrizes, além da minha própria movimentação, revelaram a potencialidade
da imagem produzida pelo meu corpo dentro do espaço cênico. Analisando os registros
fotografias do espetáculo identifiquei na força do gesto, da ação, a potencialidade da lin-
guagem performática. A presença do público intensificou minha consciência de uma ação
corporal vinculada à imagem. Meu corpo era um elemento a mais dentro da composição
gerada pelas características inerentes ao teatro, assim como a performance fez daquela
cena um plano de representação. Ou seja, enquanto executava a performance Etroc, eu es-
tabelecia um cruzamento entre performance, plano fotográfico e teatro. Relação acionada
pela presença de meu corpo como um corpo-câmera, no qual as premissas fotográficas
foram internalizadas promovendo, a todo instante, uma sequência de imagens.
Desenvolver uma performance dentro do teatro ampliou minha percepção quanto à im-
portância do espaço e a imagem gerada nesse contexto. A luz, os elementos compositivos
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 95

da cena e a caixa preta destacaram as especificidades poéticas da performance e a imagem


que ela produz. Meu corpo promove determinadas imagens conforme o espaço que o
circunscreve. Essa experiência foi crucial para a produção das performances posteriores.
Na tese do artista Élcio Rossini, encontrei a problematização sobre o atuar e o não
atuar e como essa relação paradoxal se desdobra na performance. A partir dos happenings
realizados nos anos 50, a ideia de trazer à cena o corpo do artista em uma experimentação
corporal de sua presença física e cotidiana sem um teor de personificação possibilitou a
discussão sobre até que ponto um performer está atuando ou não e como se estabelece
essa relação. Rossini traz para a sua discussão as ideias do teórico em arte dramática,
Michael Kirby e a experiência da performance Figuras e Fantasmas. Kirby estabelece
uma escala crescente entre a atuação e não atuação a partir da análise de diferentes carac-
terísticas da técnica da atuação. Figuras e Fantasmas consiste em três performers diante
do público, um ao lado do outro. No chão, à frente deles, estão dispostas peças de roupas,
acessórios e objetos. A ação proposta é trocar de roupa e, a cada troca, criar uma figura.
As roupas e acessórios são utilizados das mais variadas formas possíveis, calças, camisas,
vestidos, casacos, meias, perucas, chapéus, camisetas, gravatas e outras peças que não
são exatamente roupas, mas podem ser vestidas, ou associadas ao corpo. Nesse vestir e
desvestir surgem figuras e composições que são feitas e desfeitas, a tarefa é compor uma
figura e, logo em seguida, ficar diante do público em exposição. Depois de um tempo,
desvestir-se e, mais uma vez, vestir-se com uma nova combinação e assim por diante.
A ideia de coeficiente de representação fica evidente na performance de Elcio Rossi-
ni, pois quando os performers se apresentam para o público, parados, um simples gesto
como levantar o ombro, sorrir levemente faz desse momento um lugar de representação. A
identificação do grau de atuação presente no trabalho do performer é uma tarefa complexa
e, por vezes, difícil de definir. Os coeficientes que possibilitam uma análise são amplos e
subjetivos, pois o artista sempre estará inserido em um campo que, mesmo ele agindo de
modo contrário à reafirmação de uma identificação, não aparentando algo ou não simulan-
do e personificando, ele estará de alguma forma, representando outro ser artista.
Seguindo essa reflexão penso que, foi muito rica a experiência de propor para uma
atriz a execução de minha performance Vestido de Pedra, pois o processo colaborativo
gerou ocasionou novas possibilidades de desenvolvimento da performance. O vestido
além de ser um objeto propositivo de uma ação, também carrega em seu significado uma
carga de feminilidade, força e imagem. Compreendi que o vestido é um elemento que
possibilita a reflexão sobre o limite entre a construção de um personagem e a criação
de outro eu, de outra forma de estabelecer um discurso sobre o nosso corpo. Dessa ex-
periência, ficaram reflexões significativas, como a de que o vestido precisa estar em um
contexto onde o espaço se configura como seu dueto. As pedras já não bastavam como
elementos ativadores do corpo e da imagem do Vestido de Pedra.
O meu processo criativo sempre parte de imagens pré-concebida em meu imaginário
e são elas as responsáveis pela ativação do pensamento performático. A imagem acio-
na a necessidade de fazer a ação, de experimentar, errar e descobrir. Desta construção
96 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

lúdica e espontânea, são produzidas imagens fotográficas as quais irão revelar sobrepor
e desdobrar as possibilidades da ação performática.
A partir dessa consciência, decidi tentar encontrar novos contextos no qual a perfor-
mance Vestido de Pedra pudesse ser realizada, retirando o contexto teatral e incluindo
a paisagem como elemento de ativação da proposta. A primeira imagem que tive da
performance se constituía em uma mulher de vestido longo e pesado entrando no mar.
Uma cena bastante comum no imaginário feminino, uma mulher que se suicida entrando
no mar ou no rio com os bolsos cheios de pedras. Encontramos referências em Hamlet
de Shakespeare, em que a personagem Ofélia morre no rio, afogada pelo peso que com-
portava e, ainda na biografia da escritora Virgínia Woolf, que faz sua entrada derradeira
no rio com pedras nos bolsos de seu casaco.
A imagem do vestido foi se constituindo de forma gradativa em minhas anotações e
pesquisas. Como referência importante, utilizei duas ideias de vestido, a partir dos retra-
tos da rainha Elizabeth I e dos vestidos dos orixás da cultura afro-brasileira. No entanto,
após o processo criativo no contexto teatral a imagem se alterou, e a paisagem ideal para
uma fotografia ou para um vídeo passou a ser uma pedreira. A partir da colaboração da
atriz percebi que a ação corporal de carregar pedras precisava ganhar mais sentido, e
para tanto uma pedreira poderia potencializar a ação e a imagem.

Figura 2. Still do vídeo da autora, Vestido de Pedra, duração 10min, Caçapava do Sul/RS,
2012. (Acervo da autora)
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 97

Dessa forma decidi realizar um vídeo que através do lugar conseguisse transmitir o
peso das pedras, dessa forma encontrei em uma mina de cobre abandonada o cenário
ideal para a realização do trabalho. O vídeo produzido na pedreira tem duração de dez
minutos e uni a ação um ambiente repleto de cores, texturas e formas (Figura 2). Tam-
bém acentuou a força da ação de incluir pedras nos bolsos do vestido, demonstrando a
contraposição entre a imponência do lugar e o gesto intimista de guardar para si frag-
mentos daquele espaço grandioso.
As ações realizadas em diferentes espaços e contextos transforaram a minha per-
cepção sobre o trabalho. A consciência da importância do lugar apenas foi percebida
quando toda a aparelhagem teatral se tornou perceptível ao meu olhar. A imagem, em
meu processo criativo se estabelece como geradora das ações performáticas, da mesma
forma como os diferentes contextos em que elas ganham vida. O corpo que deflagra as
imagens a partir da performance está contido em uma paisagem que também fala através
do corpo. Paisagens e espaços artísticos que denotam a mesma performance, inúmeras
possibilidades de criação e percepção. Dessa forma, os pontos de convergência e diver-
gência da ação na pedreira e no palco do teatro podem ser percebidas pela forma em
que o contexto transforma o olhar do observador e de como as diferentes linguagens
artísticas se potencializam.

Referências
ROSSINI, Elcio Gimenez. Tarefas: Uma estratégia para criação de performances. Tese de dou-
torado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação de Artes
Visuais, Instituto de Artes, 2011.
98 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Colocar uma pedra nesse assunto

Carlos Eduardo D. Borges


DAV/UFES – [email protected]

O artigo desenvolve o relato apresentado no VI Fórum Bienal de Pesquisa


em Arte, Corpos entre artes/ Artes entre corpos, em 2013 no Pará. Trata de
discutir questões pertinentes a uma proposta prática, integrante do projeto
DeslocamentoFricçãoGalpão/Capanema, contemplada com o prêmio Projé-
teis Funarte de arte contemporânea, ocorrida entre dezenove e vinte e um de
setembro de 2012 no pátio do Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro.
Trata da realização de um trabalho sem uma forma final, que se constrói a
partir da desconstrução de suas próprias partes. Nela, a palavra ASSUNTO,
se completa (constrói) com o desmanche de outra parte, constituída pela pa-
lavra COLOCAR. A proposta acontece como um happening, após explanação
com interessados.
Palavras chaves: forma, espaço-tempo, imaginação.

This article develops the text presented in the VI Fórum Bienal de Pesquisa
em Arte, Corpos entre artes/ Artes entre corpos, Pará, 2013. Handle questions
provoqued by a pratical proposal took part in the Project DeslocamentoFric-
çãoGalpão/Capanema, that won the price Projéteis Funarte de arte contempo-
rânea, 2012, september, among the 19 e 21th, in the playground of do Palácio
Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro. Explain the construction of a work of
art without a final form, built by the desconstruction of its own parts. In this ha-
ppening, the word ASSUNTO is formed with the dismembering of its own other
part, meant by the word COLOCAR.
Key words: Form, space-time, imagination
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 99

Introdução
A oficina/happening começou no pátio do Palácio Gustavo Capanema com a coloca-
ção de pedras no pátio do Palácio. Em seguida aconteceu uma conversa com os parti-
cipantes, um grupo de 14 pessoas. Após as explicações, iniciou-se a ação pretendida.
Ocupou uma área de cerca de aproximadamente 60 metros quadrados e utilizou cerca
de uma tonelada de pedras de diversos tamanhos e formatos. A instalação resultante
ficou até o dia 21 de setembro, sofrendo pequenas participações, alterações e manten-
do sua incompletude.
Foi apresentada aos participantes como tratando da realização de um trabalho sem
uma forma final, no qual uma parte, no caso, formada pela palavra “ASSUNTO”, se
completa com o desmanche de outra parte, constituída pela palavra “COLOCAR”.

O Happening
Essa proposição foi realizada experimentalmente em 1999 (em um sítio em Nova Fri-
burgo), porém não divulgada ou exibida até 2012, quando foi adaptada para o projeto do
Palácio Gustavo Capanema.
Na proposta inicial cavam-se valas, formando a palavra Assunto. Essas valas-letras
são escavadas de forma a conterem as pedras necessárias para escrever Colocar uma
pedra neste. Após tomadas as medidas e as valas escavadas, as pedras são dispostas de
forma a escrever a frase citada, acima das valas que, por sua vez, “escrevem” a palavra
Assunto. Então os interessados são convidados a participar, escolhendo uma (ou mais)
pedra(s) (desfazendo a frase) e colocando na vala (na palavra assunto). Logo o trabalho
não possui uma forma definitiva no tempo-espaço, e só pode se completar na imagina-
ção das pessoas. Imaginação livre, independente, ligada já ao espaço mental e não ao
experimentado, mas provocada após o primeiro instante da ação, a partir do movimento
dos corpos que removem pedras, desfazendo uma frase, preenchendo palavras.
Esse princípio foi mantido na nova montagem do Palácio Gustavo Capanema. Porém
como esse espaço é tombado pelo Patrimônio Histórico, incluindo os jardins, a proposta
foi adaptada. Então a palavra ASSUNTO foi feita contornada por pedras, em lugar de
escavada e a frase escrita originalmente em pedras foi reduzida à palavra COLOCAR,
escrita, como na montagem inicial, em letras completamente preenchida por pedras.
Aconteceu a partir das 10:00 h do dia 19-09-12, no pátio externo do Palácio Gustavo
Capanema. Na data, depois de reunidos, os convidados receberam do proponente a fo-
tocópia de um desenho, uma explanação sobre a ação pretendida e sobre a reflexão que
levou ao desenvolvimento da proposta: um trabalho que apresenta como em constante
transformação no tempo-espaço.
As pedras então foram dispostas formando as palavras da forma proposta. Na pa-
lavra Assunto cada letra tem cerca de 3m de altura e na palavra Colocar, cerca de 1m,
aproveitando a referência dada pelas pedras do piso do pátio, formado por placas qua-
dradas com 1x1m. Cada palavra foi escrita a 1 metro de distância da outra, como se
estivesse sobre linhas, em analogia com a tradição da escrita ocidental.
100 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Figura 1: Fotografia de Beatriz Pimenta: Colocar uma pedra nesse assunto: montagem adap-
tada para projeto da Funarte. Rio de Janeiro 2012

A escala escolhida pretendeu assim respeitar a relação com a arquitetura do local


onde foi inserida e também se adequar à visibilidade do projeto. Essa proposta foi
apresentada em frente ao mezanino, local onde ocorreu quase a totalidade das demais
ações. Isso permitiu a todos uma visão completa do acontecimento e da instalação
resultante. A escala, tanto nessa montagem quanto na original, implica em permitir
aos participantes penetrarem no interior do espaço da “obra”, de forma a fortalecer o
conceito de ação ligada ao espaço/tempo, por meio das implicações fenomenológicas
resultantes, já que, segundo Robert Morris (apud FERREIRA, G; COTRIM, C (org.),
2006), em trabalhos que redefinem a noção de proximidade e distância, elas “... não
são experimentadas, a não ser pelo observador que se localiza dentro delas”. Assim,
como se trata de um trabalho em contínua transformação, a escala fortalece nos par-
ticipantes da ação, a percepção diferente de cada instante da sua construção, o que,
hipoteticamente, pode perdurar infinitamente.
Depois de formadas as palavras com as pedras, todos os presentes foram convidados
a participar, retirando pedras de uma palavra (colocar) e colocando em outra (assunto).
Esse desenvolvimento está registrado em vídeo.
Após o desmanche (ficaram algumas pedras, sugerindo a incompletude e fun-
cionando como forma-convite a outras participações) da palavra “Colocar”, restou
a palavra “Assunto”, permitindo ainda a colocação de novas pedras no interior de
suas letras. O happening resultou em uma forma incompleta em sua fisicalidade, a
ser completada na imaginação e provocada pela ação, ligando o espaço mental ao
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 101

experimentado. Essa palavra (assunto) poderia, hipoteticamente, continuar a receber


indefinidamente o acréscimo de pedras.
Essa proposta apresenta uma hipótese de ocupação do espaço alternativa à ordena-
ção minimalista, escapando de questões compositivas e de suas Gestalts: “Não tendo
nenhuma aparência característica, nenhum perfil singular para lhe dar uma Gestalt de-
finida...” (MORRIS, apud FERREIRA, G; COTRIM, C (org.), 2006). Se arte Minimal
apresentou o objeto único ou a ordenação regular de partes como alternativas a compo-
sição, essa proposta apresenta outra possiblidade de distribuição de partes, alternativa
a composição: a forma subordinada a palavra escrita, porém provocando significados
que não se esgotam na própria palavra ou na mensagem da simples leitura. Utiliza essa
compreensão, para somar à significação oferecida pela materialidade das pedras e à ação
realizada (ou por realizar), para revelar sua incompletude. Esse sentido fica vinculado a
própria construção/ desconstrução do trabalho, sempre apresentado em uma forma não
definitiva e que só fica completo na mente dos participantes quando se dá a compreen-
são da proposta. Assim tenta evitar a forma definida no espaço, independente do tempo.
Sua incompletude pretende explicitar essa compreensão do espaço como indissociável
do conceito de tempo. Em substituição à ideia intuitiva, cartesiana das formas estáticas,
essa proposta evita a nossa tendência à busca da Boa Forma (Gestaltiana) no arranjo das
pedras. Desconstrói também a ideia de trabalho de arte com uma forma “definitiva”.
Distancia-se da ideia de qualquer tipo de núcleo gerador, que ligaria essa proposta a
ideia do Vitalismo de Henry Bérgson (KRAUSS, 1998) que dominou a escultura em
pedra até a primeira metade do século passado. Evita ainda a ideia de simples ordenação
e a apresenta subordinada a um entendimento linguístico, no qual o material escolhido e
a própria ação contribuem de forma significante para a sua compreensão.
Por ter partes construídas, esse trabalho se torna herdeiro também da escola cons-
trutiva (tomando como módulos as letras). Apresenta um desdobramento de seus princí-
pios, ao propor significados linguísticos e materiais, percebidos na relação fenomenoló-
gica que se instala na sua própria construção e desconstrução.
Um trabalho correlato é Double Negative de Michael Heizer. A provocação de Du-
plo Negativo “... reproduz a intervenção do espaço externo na existência interior do
corpo, ali se alojando e formando suas motivações e significados” (KRAUSS, 1998).
Essa relação persiste na proposta de “Colocar uma pedra nesse assunto”, pois a escala
leva o corpo a se situar (durante a realização) no interior do trabalho e posteriormente a
se afastar para olhar. Mas no caso é o ato, o movimento do corpo no tempo e no espaço
ao realizar a ação, o principal provocador dos significados. E, ao se situar no interior do
campo de operação (realização) da instalação, “Não tendo nenhuma aparência definida,
a memória não pode gravá-la claramente.” (MORRIS, apud FERREIRA, G; COTRIM,
C (org.), 2006). Seguindo essa linha de raciocínio, segundo a crítica Rosalind Krauss,
trabalhos de arte como o citado de Michael Heizer ou o Quebra mar em espiral de Robert
Smithson, dão continuidade a uma tendência de descentralização da forma, iniciada no
período moderno no qual “... nosso corpo e nossa experiência de nosso corpo continuam
102 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

a ser o tema dessa escultura.”. (KRAUSS, 1998). Como a realização é coletiva (de modo
diferente dos exemplos de Heizer ou Smithson), essa relação será uma durante o Happe-
ning e outra depois. E poderá continuar se alterando indefinidamente.
Essa expansão significa que esta proposta é adequada a espaços exteriores à gale-
ria. A esse respeito Michael Heizer afirma que: “Trabalho do lado de fora porque é o
único lugar onde posso deslocar massas.” (HEIZER, apud FERREIRA, G; COTRIM,
C (org.), 2006). Isso leva a outras implicações. Segundo o artista Jose Resende, nesse
tipo de arte, quando realizada na cidade, “... o repertório necessário para sua leitura
permanece enclausurado pelo domínio de um pequeno grupo que detém sua proprie-
dade.” (RESENDE, apud COHN, S (org.) 2006). Penso que a literalidade explícita
dessa proposta permite certa compreensão. Aqui o trabalho se liga com o pensamento
de outro artista: Joseph Beuys. Para ele todo homem é um artista. Em minha inter-
pretação todo homem tem interesse em arte, que pode vir a ser compartilhado. José
Resende comenta ainda que uma obra “Ao romper com sua condição de mercadoria,
ela não só interfere obrigatoriamente na sua veiculação, como estabelece uma reflexão
crítica sobre seu próprio discurso” (RESENDE, apud COHN, S. (org.) 2006). Essa
proposta procura se aproximar dessa ideia, provocando e deixando em aberto possibi-
lidades de reflexões individuais.

Figura 2: Foto de Helio Branco: Colocar uma pedra nesse assunto: Dois dias após a monta-
gem no Palácio Gustavo Capanema. Rio de janeiro, 2012
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 103

Referências
COHN, Sérgio (org.). Ensaios Fundamentais: artes plásticas. Rio de janeiro; Beco do Azou-
gue,2010.
FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (seleção e comentários). Escritos de artistas. [Tradução de
Pedro Süssekind... et al]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
KRAUSS, Rosalind E. Caminhos da Escultura Moderna. Tradução de Julio Fischer. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
104 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Satisfeitos com seus desempenhos:


arte, ficção e interesses pessoais no
mercado de artes Paulista

Carlos Guilherme Hunninghausen


Galeria TATO, SP – [email protected]

Uma breve investigação acerca dos mecanismos, motivos e aspirações do


“sempre emergente” mercado de artes da maior cidade brasileira, São Paulo.
Palavras-chave: mercado paulista de artes, performance, desempenho, rela-
to, crítica.

A brief investigation of how the art market operates in Brazil´s largest (and
perhaps only brazilian city) which can boast a “thriving” art market.
Keywords: art market, private galleries, personal interests, academia, criticism.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 105

“É mais fácil vender terrenos no céu


que obras de arte”.
Anônimo

“É sinal de uma sociedade pouco saudável ...


aquela em que só é permitido a você
ser positivo sobre as coisas.
Curadores foram para a cama com galeristas,
críticos de arte e artistas para criar e vender ao público
uma coisa que não é arte”.
Julian Stallabrass

“Um dos princípios da arte,


consiste em não dar ao leitor a impressão
de que ele seria capaz de fazer o mesmo”.
Honoré de Balzac

“And it reminded me of something in a book by Don DeLillo


about how terrorists are the only true artists left,
because they’re the only ones who are still
capable of really surprising people”.
Laurie Anderson

A última década da recente estabilidade econômica brasileira viu também o mercado


de artes florescer. Em especial na maior cidade brasileira, São Paulo. Galerias pequenas
e grandes surgem por diversos bairros da cidade oferecendo o que deveria ser um pano-
rama da produção artística brasileira. Ao mesmo tempo em que esta estabilidade criou
as condições para a expansão e uma maior visibilidade deste mercado, ao se visitar as
galerias espalhadas pela maior e, talvez, a única cidade no país que se “orgulha” de ter
um mercado de artes, nota-se um descompasso entre o que é apresentado nestas galerias,
o que passa por arte, e as questões que circulam pela academia. No Brasil dos últimos 10
anos, poucas são as oportunidades para o mercado de artes oferecer uma tradução vigo-
rosa destas questões. Foi-se o tempo em que Chelpa Ferro marcava a produção nacional.
A primeira epígrafe que abre esse texto deve ser entendida tanto como uma piada quanto
como uma revelação. Feita por um galerista paulista (que prefere não ser identificado),
ela serve para ilustrar meu ponto de vista em relação à situação deste mercado. Se 2013
viu uma nova geração amadurecer, sair de seu torpor e ir às ruas reclamando uma nação
que nunca sai do papel, talvez seja também a hora para galeristas, artistas e agentes da
cultura saírem de seus nichos privilegiados em busca de uma arte cujos desdobramentos
se dêem também no âmbito político ao invés de apenas continuarem a ocupar-se dos
afetos pessoais, da sobrevivência própria e dos espaços privatizados que presidem hoje.
106 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Desatrelar a arte de suas manifestações materiais foi a única resposta possível que
artistas cansados de ver qualquer “novidade” imediatamente assimilada pelo mercado,
isso ainda na década de 50, puderam dar: ideias no ar ao invés de objetos nas paredes.
Com isso, entretanto, criaram-se também as condições para que muitos dos saberes pro-
duzidos pela arte fossem, ao longo desses anos, sendo jogados em uma vala comum:
ou se tornam apropriações, “commodities” de outras áreas ou se tornam saberes cujo
sentido original, se perdeu. Uma das características dos bens de consumo é tornar-se a
cada dia mais “cultural”. É fato: a habilidade para compreender ou pensar a arte sem sua
prova material é um desafio permanente diante da imensa capacidade que as sociedades
pós-industriais têm para criar objetos, bens de consumo e fantasias a partir destes. Faz-
se necessário pensar a arte não nos termos de sua natureza estética mas sim a partir de
seu funcionamento como comunicação, ato político e como valor econômico.
A arte é uma ideia e não depende da prova material para sobreviver. Há praticamente
um século se colocarmos como ponto de partida DADA, a arte tornou-se independente
de sua prova material. Aceita esta premissa, a arte existe como um passe de mágica.
Nem precisemos falar aqui da arte das cavernas, cujos sentidos atrelados ao ritual a torna
inacessível a nós senão através de elaboradas ficções. Estas afirmações não somente são
capazes de proporcionar revelações importantes mas, também, modificar nossa relação
com a arte. É assim, por exemplo, que Joseph Beuys, ao descascar batatas com sua fa-
mília, declarou-se o único, o último, ou o maior artista vivo e, é assim que ele também
decretou a morte da arte (tal qual a conhecíamos e concebíamos) quando exigiu uma
resposta do próprio Duchamp (resposta esta que nunca veio).
Isto é, a arte contemporânea adquiriu o status de um passe de mágica e não mais
depende do objeto para manifestar e “provar” suas intenções, mas a longa história que
a atrela ao objeto, aos materiais e à habilidade, continua a operar de maneira a manter
o mercado das artes em funcionamento. Isto é, se “pagar” por uma ideia parece uma
contradição, é no âmago desta contradição que o mercado das artes, precisa sobreviver.
Assim, no que diz respeito ao mercado de artes paulista, algumas de suas instituições e
muitos de seus agentes, os objetos de culto continuam a reinar soberanos. Entretanto,
um passe de mágica não somente libera a arte de seus alicerces materiais, como também
adiciona contornos conceituais ao fomentar a participação na experiência como crucial à
sua definição. A armadilha se dá quando tentamos reverter a mágica e recriar os objetos
que desapareceram pela mágica. Assim, realmente parece que é mesmo mais fácil ven-
der “terrenos no céu”, que “arte.”
É bem verdade que passes de mágica não fazem os objetos desaparecerem, fazem
apenas dúvidas aparecer. Foram passes de mágica que fizeram com que bens de con-
sumo e objetos culturais se misturassem de maneira tão intensa que tormou-se difícil
entender o status particular de cada um. No início deste novo século e com tantos novos
desafios acerca do destino, permanência e sobrevivência da humanidade no planeta sen-
do impostos não apenas frente aos excessos criados por nossas sociedades mas também
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 107

pelos limites físicos encontrados, nos parece que grande parte da mágica da arte tornou-
se óbvia ou irrelevante e seus sentidos, desgastados pela repetição.

Fig.1 Joseph Beuys “Hiermit trete Ich aus der Kunst aus” (com isso abandono a arte), 1985.
108 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Outra grande confusão em relação à arte diz respeito à produção cultural que se
inicia com o desenvolvimento das (então novas) tecnologias de reprodução: até hoje se
lamenta a perda da “aura” (Benjamin) apesar desta não mais fazer o sentido que fazia em
outros tempos. Isto é, em uma época (como sugere a nossa) comandada pela reprodução
digital que subverte a função e a característica do original nem mesmo a arte escapa. Por
exemplo, a literatura (como forma de arte) começou a ser desafiada ainda no século XIX
pelo jornalismo. A arquitetura, pela engenharia; o mesmo acontecendo com tantas ou-
tras áreas até chegarmos à própria ideia da arte. Mantidos artificialmente em separado,
os conhecimentos produzidos pelas esferas cultural e econômica estão, entretanto, em
curso de colisão direta já há algum tempo. A arte parece desafiada a sobreviver tentando
lidar ou tentando fugir destes dilemas. Keith Haring, por exemplo, considerava ‘real’
aquele mundo que se encontra longe do mundo das artes, seja ele então aquele represen-
tado pelo mercado, pelo mundo das revistas ou das coisas. Assim, lição aprendida das
páginas da filosofia de Andy Warhol, para falar sobre esta ‘realidade’, é preciso usar a
linguagem por ela criada.
Ainda que uma das características da arte seja sua imensa capacidade para rein-
ventar-se, como linguagem, como discurso e como produto através de metamorfoses
múltiplas, a partir destes enigmas, jogos e, por fim, verdadeiras armadilhas cuja função
primordial está em (constantemente) nos lembrar da aleatoriedade (simbólica) que exis-
te no centro da existência humana, o universo da arte, entretanto, parece ter perdido, ao
longo dos anos, esta batalha para a indústria que não apenas se encarregou de oferecer
produtos culturais de maneira mais eficiente, como também produzir bem estar e conhe-
cimento em escala suficientemente abrangente.
Continuamente desafiada por estes novos campos do conhecimento (que se desen-
volveram muito como conseqüência da escala industrial), mas que produzem resultados
semelhantes (antes exclusivos do saber artístico), a arte se torna apenas mais uma engre-
nagem daquela máquina que produz a “liberdade” necessária para a roda da economia
neo-liberal desenvolver-se em consenso (Chomsky, 1988).
Mesmo que grande parte do valor atribuído à arte seja, essencialmente, simbólico,
ainda assim é preciso levar algo para casa que nos lembre e justifique a transação. A
existência da ideia só é suficiente diante da prova material. Como se a prova material
da existência de uma ideia, este pilar da cultura ocidental, cuja expressão também se
encontra neste texto, no tipo de evento que o faz circular e na sua forma final, em papel
ou eletrônica, simplesmente não pudesse ser relevada. Assim, tanto a arte efêmera quan-
to as performances voláteis cuja materialidade, pressupõem-se, escapa às tecnologias
(fotografia, vídeo) hoje disponíveis e sancionadas para sua “captura” e documentação,
se tornam materialmente menos voláteis e sujeitas aos mesmos mecanismos de outras
tantas obras “menos” radicais.
Isto é, desde que a mágica foi parcialmente revelada, os próprios artistas, críticos e
instituições se encarregaram de criar e de manter em operação um complexo e hermético
sistema de proteção deste segredo: existe uma engrenagem que põe em movimento uma
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 109

hierarquia de autenticações longa e exaustiva cujas regras são praticamente inacessíveis


mas que, nem por isso, se torna menos vulnerável. A vulnerabilidade, pelo contrário,
se dá no centro do tecido social, nas relações interpessoais de poder que a autoridade
articula a aprtir destas instituições. Esta engrenagem avalia, valida, limita e autentica
sua própria produção ao mesmo tempo em que ideias sobre o que é ou o que não é arte
proliferam e circulam pela mídia de maneira a confundir. Isto é, enquanto inúmeros
produtos, todos voltados ao consumo, apresentam uma faceta estética e competem para
participar da economia neo-liberal, a arte se diz liberada deste sistema sem, verdadei-
ramente, folgar em sê-lo. Reinventar-se requer energia. Energia que nenhum sistema
consegue recuperar totalmente. Isto é, como na termo-dinâmica, se no mundo das artes
paulista, existe entropia, ela só existe pois o sistema é artificialmente “fechado”.
Em especial, para um mercado de artes periférico e “pequeno” como o paulista,
depender do objeto não de maneira circunstancial mas como pedra fundamental de toda
a sua atividade significa não somente fazer-se refratário às questões que circulam pela
arte mas também suprí-lo com toda as sorte de fetiches visuais possíveis (eu explico meu
termo a seguir). De fato, não interessar-se por questões que vão além de sua imediata
sobrevivência parece ser o tom. Se a arte é aquele espaço, aquele lugar em que as lingua-
gens são postas à prova e se desfazem com a mesma rapidez com a qual são criadas ...
nos parece que o mercado de arte paulista reflete esta situação apenas através da rapidez
com a qual as galerias particulares nascem e morrem pelas ruas da cidade e artistas são
lançados no mercado mas nunca, propriamente, nas obras expostas. Jardins, Pinheiros e
Barra Funda são os palcos principais dessas batalhas travadas atrás de portas fechadas,
através de intermináveis conversas telefônicas e pelo espaço matemático da internet.
A grande questão que se coloca aqui é quais são os métodos utilizados para esta ope-
ração. É como se este mercado, falsamente cosmopolita, estivesse lotado de especulado-
res cuja validade e autenticidade são sancionadas por instituições pouco transparentes e
cuja inspiração é claramente coronelista. Inúmeras são as instâncias em que se vê pouco
o mérito de determinada obra mas muitos afetos pessoais em operação. Alie-se a isso
modos particulares de inclusão social digital e a importância que o marketing adquiriu
em nossa sociedade essencialmente pós-tudo e temos uma imagem bastante complexa
mas nada amigável das atividades ligadas à arte na maior cidade do país.
Em São Paulo, o mercado das artes é dominado por um punhado de Galerias e ten-
dências que parecem mais preocupados com sua própria sobrevivência que com a ex-
ploraração genuína de limites: arte, mercado e indústria, são temas que não convivem
bem no mercado de artes paulista. Como forma de justificar suas próprias limitações este
mercado se protege de qualquer atividade que possa desestabilizá-lo através da defesa su-
mária de seus interesses. Seja através de formas pouco disfarçadas de afetos coronelistas,
seja por apresentar obras que, por sua forma, produção e distribuição se assemelham aos
produtos serializados da indústria da cultura, sem, entretanto, perder o status (mantidos
por estas próprias instituições) de “arte”. Enfim, uma ficção ... tida como perfeita.
110 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Assim, os inúmeros mecanismos que deveriam propor o reconhecimeno da arte


como experiência, continuam justamente a desautorizar qualquer tipo de arte efêmera,
incapaz de ser “levada para casa”. Liberada, tanto da habilidade quanto dos materiais
escassos e especiais que fizeram sua história, a arte, parece ter-se tornado o reino do aca-
so. Objetos encontrados, atos e eventos inusitados fazem hoje parte de seu vocabulário
tanto quanto os objetos que fizeram sua história.
Para não ficar na periferia de outras tantas formas do saber, uma das maneiras que a
arte contemporânea encontrou (desde Duchamp) para tentar manter seu status quo foi a
de utilizar-se dos fetiches visuais. Fetiches visuais são jogos, brincadeiras com objetos
e relações curiosas ou impossíveis de se encontrar no mundo físico (ou pelo menos,
geograficamente restritas) mas que fazem hoje parte do arcabouço básico da chamada
arte contemporânea. Para mim, uma espécie de surrealismo barato, pasteurizado e cuja
validade (sua importância como linguagem) já se esgotou de há muito. Bons exemplos
podem ser encontrados, no Brasil, em grande parte da obra de Nino Cais e, na Europa,
nas fotografias de Miles Aldridge.
Em grande parte, resultado da propagação da idéia dos ready-mades de Duchamp,
estes, em sua grande maioria perderam, por exaustão e repetição, a capacidade de co-
mentar acerca da realidade e conseguem apenas surpreender (mas apenas por instantes)
justo aquele espectador incauto, periférico que está interessado (e tem o dinheiro para
isso) em preencher com alguma peça “única” sua sala de estar, quarto ou casa de praia
desde que essa mesma não se deteriore, não cheire mal, nem cause um estranhamento
muito intenso ou duradouro. Isto é, seja um elemento palatável e, ao mesmo tempo,
demonstre o poder de compra do seu possuidor. Seu status hoje, é parecido com o de
um relógio de ouro, feito à mão, de um carro esporte artesanal de 500cv, mas não mais
com uma obra de arte.
Algumas facetas do mercado das artes se especializou não apenas em criar arte que
se enquadre nesta categoria, como também comercializá-la e, em uma lógica perversa
e às avessas, impor suas definições às próprias instituições que hoje (e em sua maioria)
se recusam aceitar obras que possam se deteriorar (para mais informações sobre esta
questão ver a obra de Hermann Nitsch). Assim, temos uma enxurrada de composições e
aproximações que resultam apenas em enigmas visuais decorativos: obras que nascem
domadas mas cuja vitalidade e validade são mínimas, quase não ultrapassando os limites
herméticos dos cubos brancos onde são primeiramente expostas e encontram um terreno
fértil e platéias ávidas. Assim, por exemplo, são os retratos em que se escondem ou se
trocam as cabeças por outras “formas”; peças de um quebra-cabeça visual que opera
apenas no âmbito das salas de exposição, mas que perde sua força em direta proporção
à distância com que se encontram destas.
Apesar de altamente desregulado, o mercado de arte continua sendo, por excelência,
um mercado do gosto. Sendo assim, é pelo gosto, que aqui deveria significar conheci-
mento, que o mesmo irá se definir e definir ao seu público. Aos mercados cabe a tarefa
definir a resposta de seus colecionadores. A repercussão na mídia é um caso a parte:
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 111

tanto pode ser dar porque algumas das pessoas envolvidas estabelecem relações de ami-
zade com outras, como, uma vez que essa máquina tenha sido posta em movimento, pela
“qualidade” de um trabalho. Normalmente qualidade e repercussão não andam juntas
mas sim dependem uma da outra.
O que proponho a seguir é um possível mapa de categorização dos tipos de Galerias
Paulistas deliberadamente simples. Todo tipo de categorização ou mapa tenta estabilizar
algo que não pode ser estabilizado e, ao fim, revela muito mais da própria estrutura ou
das referências de quem o escreve. Há que observar que mais interessantes são os limites
entre as categorias sugeridas, aquele espaço não mapeado, marcado pelo ínterim, do que
a tipologia em si: isto é, o resultado mais interessante se dá ao observarmos o que pode
acontecer no espaço entre o A e o B da classificação proposta que na classificação em
si própria. Os limites entre estas galerias é sempre cinza e, portanto, fluído. O possível
interesse nessa tipologia se dá apenas de modo a tentar organizar algo que se encontra
sempre no limite da emergência e que, portanto, se altera, substancial e rapidamente,
sem qualquer aviso prévio.

Galerias AA
Arte é um negócio de e para ricos. Assim, ter participação ou estar próximo destes,
pode caracterizar este perfil de galeria. Afinal, este é o consumidor que, a rigor, pode
comprar “merda enlatada”. O tipo de arte apresentada, em sua maior parte, é irrelevante.
Obras que em uma outra galeria seriam, decorativas ou meramente ruins, se tornam
sucesso de crítica e são “vistas como relevantes” uma vez que ocupem os espaços de
uma galeria “AA”.
Estas galerias preferem apresentar arte contemporânea ou arte moderna, sempre os
clássicos do cânone artístico ou do cânone em formação. Curiosamente, estas galerias
fazem parte do ciclo que produz o próprio cânone. Por excelência, possuem lastro eco-
nômico próprio ou, por relação, possuem demanda, isto é compradores certos. Sobre-
vivem anos a fio, quase sempre fazendo a primeira página do “caderno de cultura”.
Por pertencerem a este público restrito, ou por suas relações com ele, podem aparentar
sobreviver sem vender muito e serem “experimentais” (nas dimensões, nos materiais),
isto é, gastarem muito na produção de seus artistas. Neste caso, são claros exemplos de
lavagem de dinheiro, uma vez que poucos têm exatamente a ideia dos preços e os leilões
servem meramente para disfarçá-los. A demanda e os contatos fazem com que expo-
nham o que bem quiserem. Aqui tanto faz: apresentam os clássicos ou criam fetiches
visuais, dá no mesmo. Possuem apoios e patrocínios variados, muitos deles conseguidos
através de leis de incentivo fiscal, leia-se contatos próximos com indivíduos cujo poder
em aprovar ou não tais projetos, é real.

Galerias AB
Logicamente, se encontram um pouco abaixo das galerias AA, seja pelo experi-
mentalismo, pela falta dos contatos ($$) mais apropriados no meio, idealismo ou
112 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

inexperiência de seus fundadores e artistas. Estão sempre se movendo. Vez que outra,
acabam ingressando no mercado AA, ou sendo rebaixadas, quando uma crise financeira
as afeta de maneira contínua. É claro, a pressão feita pelo próprio mercado das galerias
AA que, primariamente, teme perder mesmo parte de seu espaço privilegiado, leia-se,
ter seus tolos enganados por outros negociantes, também as afeta. Existe um lastro eco-
nômico que lhes permite funcionar com conforto e esta é sua marca maior. São especia-
listas em criar os tais fetiches visuais caros e bem acabados. Sua importância é relativa
e podem trabalhar às escuras, isto é, permanecer anos em atividade sem aparecer, uma
vez fechadas suas portas para o público.

Galerias BB
Representam “o meio do caminho”. Podem ou não possuir lastro econômico, isto é,
dependerão das vendas para se manterem no jogo.
Vendem arte contemporânea e, ocasionalmente, um que outro clássico do cânone
vai parar em suas mãos. Precisam e se esforçam para subir de categoria, mas lhes falta
os recursos, os contatos e o pessoal adequado, uma vez que não podem pagar por todos
estes. Dependem, primariamente, do conhecimento adquirido através de uma paixão
genuína (?) pelas artes. Leia-se: não podem pagar para ingressar no mundo das galerias
AA, mas apostam alto no seu ingresso no mesmo. Sofrem pressão clara de todos os
lados. Aqui, poderia-se dizer, o jogo se torna quase uma armadilha da paixão e, muitas
vezes, representantes destas galerias caem nas armadilhas preparadas pelos mais antigos
ou mais espertos no jogo. Talvez sejam as galerias mais autênticas ainda possíveis neste
mercado, uma vez que são marcadas também pela ingenuidade. O lastro econômico que
lhes falta é substituído por investimentos em acessorias de imprensa que funcionam
a base de “jabá”. Tanto a falta de demanda quanto de contatos certos, dependendo da
situação do mercado e das vendas, podem não só facilmente rebaixá-las mas fazê-las,
simplesmente, desaparecer. Tornam-se C, isto é, são forçadas a desaparecer por comple-
to e seu catálogo de artistas, que muitas vezes inclui boas surpresas, acaba incorporado
pelas galerias AA. Suas mostras e exposições carecem da estrutura que muitas vezes se
torna a atração principal de uma mostra em galeria AA, AB. Isto é, por falta de recursos,
muitas exposições sequer decolam. Some-se a isso uma mistura de artistas e tendências
e temos aí uma situação limite mas, igualmente, constrangedora.

Galerias BC
São lojas. Ainda que organizadas em torno de obras de arte, não fazem questão de
esconder que estão ali para vender. E nem mesmo se preocupam em não demonstrar
isso deixando claro que suas obras devem ir “para as paredes”, combinar com o sofá.
Seus preços e pagamentos podem ser divididos (aliás não uma característica, mas uma
prática comum entre todas as categorias aqui alinhadas). Exibem edições e têm preços
módicos em formatos adequados às paredes das habitações da cidade. O gosto aqui,
mais que duvidoso, torna-se uma questão de personalidade. Trabalham principalmente
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 113

com arte decorativa. Estas galerias podem incluir alguns artistas importantes mas que
já não mais participam do “circuito” das artes em instituições e museus e viram seus
preços despencar por terem se tornado clichês visuais, saído de moda ou terem perdido
seus afetos no mercado. Sobrevivência aqui é o lema. Morrem e nascem com a mesma
velocidade das outras, mas são condicionadas ao proprietário, muitas vezes ele mesmo
um pequeno “colecionador”.

Galerias CC
É preciso falar? Representam o denominador comum mais baixo em relação à arte e
sua compreensão. Fazem-se valer de clichês e estereótipos culturais de maneira ampla.
Sequer poderiam ser classificadas como galerias e, por isso mesmo, são descaradamente
oportunistas. É raríssimo ver algum artista cuja obra possa se tornar importante começar
por elas. É raríssimo perceber qualquer elemento relevante em suas manifestações. Aqui
incluem-se, portanto em uma classificação guarda-chuva, uma interminável sequência
de “arte” cujo sentido já se desfez ao longo da história.

Palavras em busca de uma conclusão


Seja pela sua própria natureza, seja pelo seu conteúdo, este texto não é um texto aca-
bado, mas uma provocação. Sua premissa é, então, falha em sua origem e quase perde
o sentido enquanto eu mesmo a tento controlar. Tendo observado (de tão perto quanto
me foi permitido) os meandros deste mercado me pareceu necessária uma resposta,
ainda que incompleta. Optei, também, por retirar deste texto, quase todas as referências
e exemplos (artistas, obras e galerias em si) que nortearam minha escrita (deixando
apenas duas) como uma forma de proteção. Enquanto escrevo, sei que novas formas,
ligações e afetos estão sendo refeitos a desfazer ou a desmentir o que tento explorar
logo acima.
Se existe uma gigantesca falta de compreensão (ou mesmo empatia) por parte do
público (que resiste sequer pensar a arte como experiência ou como ato político), essa
resistência não é gratuita, muito menos natural. Ela existe e resiste por conta da asso-
ciação entre a arte, seus materiais, o mercado e as instituições necessárias à sua manu-
tenção. A natureza desta associação não se desfaz nem se transforma quando artistas,
galerias, mercado e instituições artísticas têm visão curta e imediatista, isto é, fazem o
possível para mantê-la o mais intacta possível com vistas à sua própria sobrevivência.
Nesta equação, todos são perdedores.
Posso ilustrar meu ponto de vista usando duas estéticas muito bem reconhecidas.
As escolas Surrealista e Impressionista. Tais movimentos nos ajudam a entender tanto a
relação entre arte e conhecimento, bem como a subseqüente perda de sua relevância, o
fim do “choque do novo” e a morte da arte através da criação e manutenção de fetiches
visuais (termo que tento brevemente explicar alguns parágrafos acima).
Apesar de já terem esgotado seu vocabulário e, por assim dizer, terem se tornado
estereótipos culturais, obras destes períodos (ou que os simulem com sucesso em pelo
114 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

menos algum de seus aspectos) continuam a suscitar adoração e a comandar altos pre-
ços. Uma das razões para isso é a própria história: estes foram os primeiros movimentos
a materializar certas relações cognitivas que, por assim dizer, dificilmente poderiam ser
expressas de outra maneira. Uma segunda razão pode ser a repetição: a familiaridade
com estas estéticas as torna imensamente palatáveis e populares para um grande número
de pessoas. Assim, grande parte das obras que hoje circulam pelo mercado são apenas
reapropriações de períodos que já se tornaram “historicamente importantes”. Por exem-
plo, os Surrealistas, que incorporaram e tornaram palatável Freud e o inconsciente, rea-
parecem via de regra como base para inúmeras novas obras numa sucessão interminável
de combinações. Enquanto na pintura, traços Impressionistas, Expressionistas ou mes-
mo Cubistas, reaparecem como praga que não se consegue extinguir. Um dos problemas
está justo ao admitirmos que tanto estes conhecimentos, quanto a experiência associada
a eles, diante das novas teorias, conceitos e ciência, pouco ainda tem a dizer ou revelar
sobre o mundo. Isto é, o problema está em manter-se intacta nossa relação com estas
obras para além do patamar histórico através da repetição exaustiva de seus preceitos.
O problema, em minha opinião, acontece quando clichês culturais são preservados de
maneira a negar espaço. Isto é, ao serem assimilados pela cultura, estes movimentos e
suas obras tomam o lugar de outros saberes que estéticas ainda em desenvolvimento não
conseguiram estabilizar nem comunicar (de modo eficaz). Assim, uma dezena de lin-
guagens já assimiladas e popularizadas continuam a circular pelo tecido social tornando,
senão acessível pelo menos mais visível, a repetição de experiências cuja vitalidade,
essencialmente, já cessou de existir. O mercado se alimenta desta situação. Em resumo,
diante do excesso e da repetição, a arte deixa de desempenhar um de seus papéis primor-
diais e sofre uma morte parcial então.
Por fim, apenas posso desejar que, em um futuro próximo, possamos ver obras de
arte de cunho político e público (de outra natureza que a das manifestações que tomaram
conta do país) se tornarem menos uma utopia ou ficção e mais uma presença física em
nosso país. E, assim, revelo meus reais interesses e adesões.

Referências
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116 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Site-specificity e autoria em
temporal de Stephan Doitschinoff

Carolina Cuquetto
PPGA/UFES – [email protected]

A proposta deste artigo é refletir as especificidades do site a partir do projeto


Temporal de Stephan Doitschinoff realizado entre os anos de 2005 e 2008 em
comunidades do entorno do município de Lençóis, Bahia. Doitschinoff produ-
ziu um trabalho site-specific no qual estabeleceu um diálogo entre sua inves-
tigação anterior sobre os universos simbólicos do sagrado e do profano e as
heranças religiosa e folclórica dessas comunidades. Temporal é analisado sob
o conceito de arte site-oriented definido por Miwon Kwon, e sob as noções de
functional site e arte place-specific definidos por James Meyer e Lucy Lippard,
respectivamente.
Palavras-chave: arte contemporânea, site-specificity, Stephan Doitschinoff,
Temporal

The proposal of this article is to reflect the specificities of the site in the project
the Stephan Doitschinoff’s project Temporal, conducted between 2005 and
2008 in the communities of Lençóis surroundings, Bahia. Doitschinoff produ-
ced a site-specific work in which he set a dialogue between his previous re-
search on the sacred and profane symbolic universes and the folk heritage of
these communities. Temporal is analyzed under the concept of site-oriented
art defined by Miwon Kwon, and under the notions of functional site and place-
-specific art defined by James Meyer and Lucy Lippard, respectively.
Keywords: contemporary art, site-specificity, Stephan Doitschinoff, Temporal
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 117

Introdução
É possível perceber uma transformação na ideia de apego ao lugar desde as práticas
minimalistas, que propuseram a experimentação do site via “uma coisa após a outra”
(JUDD, 2006), até às propostas que pulverizaram a noção de site como lugar físico e o
articularam de maneira discursiva.
Miown Kwon identifica três paradigmas na arte pública norte-americana a
partir da década de 1960: arte em locais públicos, arte como locais públicos e arte de
interesse público. O primeiro se caracteriza pela inserção de obras nos espaços públicos
que não são necessariamente projetadas para aqueles locais. O segundo define-se por
projetos que se confundem com a arquitetura e o mobiliário urbanos. E o terceiro para-
digma, arte de interesse público se caracteriza por trabalhos que envolvem de alguma
maneira as comunidades locais, como fonte de informação, grupo de conceitualização
ou produção das obras. Neste último caso, as trocas com o outro tornam-se possíveis e
novas formas de identidades locais podem ser reinventadas e colocadas em transforma-
ção. (KWON, 1997)

Temporal

O que distingue uma cultura local de outros quaisquer não são mais sentimentos de clausura,
afastamento ou origem, mas as formas específicas pelas quais uma comunidade se posiciona
nesse contexto de interconexão e estabelece relações como o outro. (ANJOS, 2005)

Atraído pela arte devocional, o folclore e o sincretismo religioso locais, Stephan


Doistchnoff (1977-) muda-se para o município de Lençóis em 2005. Até 2008 produz
Temporal, projeto site-specific que dá continuidade à sua investigação anterior sobre as
simbologias sagrada e profana. O primeiro mural é realizado após seis meses de vivên-
cia nas comunidades do entorno do município, e mais do que uma transposição de suas
pinturas em tela para paredes e muros, Temporal define-se pelas trocas entre artista e
comunidade.
Apesar de referir-se à arte pública norte-americana, a experiência de Temporal pode
ser aproximada da ideia de relacionamento entre artista e comunidade presente no con-
ceito de arte de interesse público descrito por Kwon. Doistchnoff aposta na vivência
e intercâmbio de experiências para viabilizar seu projeto. Vive como os membros da
comunidade e a partir daí, constrói o conteúdo que aparecerá em seus murais.
A partir da década de 1980, práticas que tratavam o site discursivamente foram in-
tensificadas e passaram a articular questões sociais e culturais como o feminismo, ra-
cismo e preservação ambiental. Trabalhos site-specific se aproximaram de ser “verbo/
processo” mais do que “substantivo/objeto”. Kwon refere-se a essas propostas como
orientadas para o site (site-oriented). A arte aproximava-se mais da vida e se confundia
com a cultura.
118 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

“(...) a definição operante de site foi transformada de localidade física – enraizada, fixa, real –
em vetor discursivo – desenraizado, fluido, virtual.” (KWON, 1997)

Novos espaços foram tomados por propostas artísticas e o site (como local) se am-
pliou para fora da galeria. Diferente dos sites fenomenológico e crítico-institucional,
em trabalhos site-oriented o site “não é definido como pré-condição, mas é gerado pelo
trabalho (frequentemente como conteúdo”) e então comprovado mediante sua conver-
gência com uma forma discursiva existente.” O espaço autônomo e idealista do mo-
dernismo foi substituído por questionamentos que antes não pertenciam ao universo
de assuntos possíveis nas práticas artísticas. Essa expansão para as questões sociais e
culturais possibilitaram “impacto e significado maiores” que naqueles projetos em que o
público não fazia parte (KWON, 1997). Doistchnoff buscou no folclore e na religiosida-
de de Lençóis, histórias que motivaram e constituíram Temporal. Assim, o artista possi-
bilitou uma reafirmação da identidade local através da inserção da experiência daquela
comunidade em suas obras.

Apego ao local e articulação das diferenças


As diferentes práticas artísticas de intervenção no espaço são acompanhas de aborda-
gens diversas da ideia de lugar. Para Lucy Lippard, o lugar não se define apenas como
o local físico, determinado por coordenadas geográficas, mas como possuidor de uma
relação de afeto com o local. “Espaço define a paisagem, onde espaço combinado com
memória define o lugar” (LIPPARD, 1997). Dessa maneira, o lugar não é o recipiente,
ou palco no qual as coisas acontecem, mas deve ser entendido como uma sobreposi-
ção de histórias, memória e afeto. Lippard acredita que projetos que consideram essas
dimensões são capazes de aliviar as consequências da indiferenciação das identidades
locais, provocada pelo avanço dos processos globalizantes. Defende a noção de arte
place-specific (ao invés de site-specific) como muito mais ligada às dimensões afetivas
e históricas. Esse apego pode ser entendido como forma de alívio às tensões provocadas
pelo sentimento de perda e de fragmentação do lugar (KWON, 1997).
Moacir dos Anjos acredita que ao invés da demarcação de fronteiras rígidas como
forma de proteção, as identidades locais podem se reinventar pela via da exposição e
transformação das diferenças. A globalização promove alterações na maneira como as
identidades culturais são percebidas e, consequentemente em suas formas de represen-
tação que por meio do questionamento dos discursos hegemônicos e da exposição de di-
ferenças, promovem novas formas de pertencimento ao mesmo tempo em que articulam
outras modalidades de inserção no mundo (ANJOS, 2005).
Assim, projetos site-oriented devem proporcionar uma situação na qual as pessoas
que pertencem àquele lugar sintam-se representadas (KWON, 1997). Entretanto, é ine-
vitável que resistências apareçam, uma vez que o artista precisa lidar com histórias e
experiências pessoais as mais diversas. A participação da comunidade não apenas como
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 119

fonte de informação legitima e assegura um “senso de propriedade”, um “reconheci-


mento de seu próprio trabalho na criação de, ou tornando-se, ‘a obra’.” (KWON, 1997)
Por lidar com uma temática religiosa, e principalmente com a ressignificação de sím-
bolos sagrados, Doistchnoff consegue que suas intervenções sejam aceitas pela comuni-
dade quando esta se vê representada e reconhece sua identidade nos murais. As pinturas
realizadas nas paredes das casas de adobe são inicialmente solicitadas por Doistchnoff,
mas na medida em que o projeto avança, essa situação se inverte e a população local
passa desejar a intervenção do artista em seus muros.

Capela de Santa Luzia


Após três anos de vivência em Lençóis, Doistchnoff é convidado por moradores para
pintar e recuperar a capela ecumênica do cemitério local (Figura 1). O artista opta então
por evitar que a ”acidez e a crítica” presentes em seu trabalho “não ferissem a sensibi-
lidade e a fé das pessoas da cidade” (DOISTCHNOFF, 2008). Ao final de dois meses,
percebe que aquele trabalho já não era mais seu, mas sim da comunidade. “Para mim
foi assustador e impressionante ver a nova dimensão que o meu trabalho levou aquele
lugar” (DOISTCHNOFF, 2008). O projeto para a capela Santa Luzia inspirou em 2009,
a instalação Novo Asceticismo (Figura 2) apresentado na mostra De dentro pra fora/de
fora pra dentro no Masp, São Paulo.

Figura 1. Detalhe da capela de Santa Luzia, Figura 2. Instalação Novo Asceticismo,


Lençóis, Bahia, 2008. (fonte: doitschinoff. 12x4,5m, na exposição De dentro pra fora/
com) de fora pra dentro, São Paulo, 2009. (fonte:
doitschinoff.com)

Esse processo “entre sites” é denominado por James Meyer como functional-site.
O site funcional é um processo, no qual o artista articula intertextualmente sites de na-
turezas diferentes, que não são apresentados simultaneamente, mas como fragmentos.
O site funcional está ligado à articulação de processos pelo artista e não é obrigado a
atrelar-se aos sites físicos que movimenta. “É um site informacional, um palimpsesto de
texto, fotografias e gravações de vídeo, lugares físicos, e coisas (...)” (MEYER, 2000).
Além de possibilitar a construção de outros projetos, Temporal é também o título do
120 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

documentário no qual o artista relata a experiência em Lençóis. O documentário de


mesmo nome torna-se registro ao mesmo tempo em que faz parte do projeto Temporal,
além de poder ser visto como outra obra.

Conclusão
Em práticas site-oriented, o valor da obra não está no resultado final como objeto de
arte, mas na construção de uma interação entre o artista e a comunidade. “Essa interação
é considerada como parte integral da obra de arte e igual em significado (e pode até ser
pensada como constituinte da obra)” (KWON, 1997). O artista deve ser “tonar um com
a comunidade”

E esse “tornar-se um”, não importa o quão temporário, é presumido como pré-requisito para
que o artista possa ser capaz de falar com, para e como membro representativo legítimo da co-
munidade. Simultaneamente, a característica dessa “união” funciona como critério para julgar
a autenticidade artística e adequação ética do trabalho de arte. (KWON, 1997)

Ainda, segundo Miwon Kwon, uma vez que a originalidade não está mais na obra
como objeto autônomo, é possível “deslocar” a originalidade para o local no qual a obra
está inserida. Local, obra e artista legitimam-se e conferem autenticidade mutuamente.

Referências
ANJOS, Moacir dos. Local/global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 80p.
DOITSCHINOFF, Stephan. Temporal: The Art of Stephan Doitschinoff (aka Calma). 2008. Dis-
ponível em: http://vimeo.com/2301531. Acesso em: 05 out. 2013.
JUDD, Donald. Objetos específicos. In: FERREIRA, Glória; COLTRIM, Cecília (org.).
Escritos de Artistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. p.96-106
KWON, Miwon. Um lugar após o outro: anotações sobre site-specificity. 1997
LIPPARD, Lucy R.. The lure of the local: senses of place in a multicentered society. 1. ed. New
York: The New Press, 1997. 328p.
MEYER, James. The Functional Site; or, The Transformation of Site Specificity. In: SUDER-
BURG, Erika (ed.). Space, Site, Intervention: situating installation art. Minneapolis: Univer-
sity of Minnesota Press, 2000. p.23-37
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 121

O Evanescente Caminho: o tecer


colaborativo de dramaturgia e
encenação por várias mãos

Cecília Maria de Araújo Ferreira


Cecília Raiffer
URC/CE – [email protected]

O Espetáculo “O Evanescente Caminho” é uma livre adaptação para o teatro


da obra literária “A Divina Comédia” de Dante Alighieri. Esta montagem foi
desenvolvida a partir das práticas investigativas realizadas pela Cia de Tea-
tro Engenharia Cênica em parceria com o Grupo de Pesquisa Laboratório de
Criação e Recepção Cênicas/LaCrir-Ce – CNPq/Universidade Regional do
Cariri/URCA. A tessitura da dramaturgia do espetáculo e a construção da en-
cenação aconteceram em concomitância com o treinamento corporal para a
cena, via improvisações cênicas induzidas por imagens propulsoras.
Palavras-chave: Imagens Propulsoras – Improvisação – Processo – Rastro

“O Evanescente Caminho” is a free adaptation of the literary drama “The Di-


vine Comedy” by Dante Alighieri. This assembly was developed from investi-
gative practices conducted by Cia de Teatro Engenharia Cênica in partnership
with the Research Laboratory of Creation and Reception Scenic / LaCrir-Ce
- CNPq / Universidade Regional do Cariri / URCA. The fabric of the drama and
spectacle of staging construction occurred concomitantly with the training body
for the scene via improvisations scenic images induced propulsion.
Keywords: Images Propelling - Improvisation - Process - Trail
122 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

O inalcançável fim ...


“A vida acontece sem ensaios. Há muitos segredos. Os dias aprofundam ou revelam
estes mistérios. Nada acontece sem a devida permissão”. Este é um trecho da drama-
turgia do espetáculo “O Evanescente Caminho”, este fragmento é emblemático para o
presente estudo, pois traz em seu bojo a natureza misteriosa do processo de criação em
arte/teatro. Somada ao mistério, caminho constante de descobertas e possibilidades, há a
presença da formação contínua e inacabada da obra ao longo da sua tessitura.
Compreender a imponderabilidade da junção / justaposição / colagem / montagem
de fractais no processo de configuração da obra aponta para a necessidade do seu tempo
de “amadurecimento”, ou tempo para “gestação”. Cada materialidade expressiva, em
contágio uma com as outras, causam uma tessitura emaranhada, aparentemente ina-
cessível para o seu criador, “o inevitável inacabamento é impulsionador”, jamais há a
satisfação plena, sempre há um retoque, uma palavra, um gesto a ser inserido:

A criação como processo relacional mostra que os elementos aparentemente dispersos estão
interligados; já a ação transformadora envolve o modo como um elemento inferido é atado ao
outro. (...) A inovação da interferência se encontra na singularidade da transformação: algumas
dessas combinações são inusitadas”. (SALLES, 2006).

O artista ao relacionar-se com a obra relaciona o mundo que o impulsiona à sua cria-
ção, e nesta interface transformações significativas são construídas no espaço do inusitado.

Tensões e silêncios na criação


O processo de montagem do espetáculo “O Evanescente Caminho” durou uma média de
29 (vinte e nove) meses; a partir da análise de alguns rastros processuais é possível ma-
pear um desaguar sucessivo, e muitas vezes simultâneo, das seguintes etapas poéticas:
1) Leitura e destaque de fragmentos de “A Divina Comédia”; 2) Treinamento corporal
dos atores mediante improvisação com a propulsão das imagens que surgiam a partir das
leituras; 3) Construção de dramaturgias com base nos materiais colhidos nas improvisa-
ções (e foram várias versões!); 4) Configurações da encenação (questões de movimen-
tos, relação ator x tempo x espaço, relação/enlaçamento com os vários elementos consti-
tuintes do fenômeno teatral, figurino, maquiagem, instalação cenográfica, música e luz);
5) 3 (três) Ensaios abertos com debates após as apresentações; 6) Primeira temporada
com 6 (seis) apresentações. E o processo ainda continua em andamento, pois há um de-
safio a ser vencido, apresentar o espetáculo em variados espaços. Este desafio cria novas
tensões na obra, é necessário modificar a estrutura espacial e temporal do espetáculo, o
jogo entre os atores, o jogo entre atores e a plateia, o jogo entre os operadores de luz e
som entre si, com o espetáculo e com a variação do lugar. Este dado, por si, já modifica
a encenação e a dramaturgia, é imprescindível uma reconfiguração: ... um novo retoque!
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 123

Os artistas estão no abismo da criação, podem tanto encontrar estratégias de voo quanto caí-
rem no fim do fim antes de iniciarem o movimento criador. O Caminho traçado, e consequen-
temente o destino [parcialmente] final (a obra entregue ao público) é fruto de questionamentos
diários e da predisposição de dizer sim à obra. (Ferreira, 2009)

Este mover, distribuído em fases, é revelado como uma rede de possibilidades que
é tecida constantemente, a obra necessita de transpiração, mas principalmente de respi-
ração, para que os elementos em contágio sejam transformados em espécie de “coisa”
única, intrinsecamente vinculados: “Nada acontece sem a devida permissão”. Com este
entendimento existe a compreensão que os rasgos, hiatos, vãos e fissuras também são
materiais de criação. Os longos 29 meses de “amadurecimento”/”gestação” foram deser-
to de possibilidades e escolhas de caminhos.

Intimidade com a matéria


Para que o espetáculo chegasse ao público, mesmo nos ensaios abertos, foi necessário
compreender a malha tensiva e penetrar na intimidade do universo em proposição artís-
tica. Dante Alighieri constrói sua narrativa para “A Divina Comédia” partir da vertica-
lização dos espaços: Inferno, Purgatório e Paraíso, e coloca-se deliberadamente em sua
história com o personagem Dante, faz de si mesmo uma personagem. Esta personagem
percorre os três espaços supracitados, é o único humano a viver tal experiência ainda em
vida, até conseguir ver a face luminosa de Deus. Mesmo fazendo severas críticas à igreja
e aos seus dirigentes, sua obra é profundamente inspirada nos ditames da instituição
124 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

católica, é válido ressaltar que o texto foi escrito em plena inquisição e que Dante Ali-
ghieri foi expulso, por questões políticas, de sua terra natal e levado a viver em exílio até
o fim dos seus dias. Contudo, esperava que com “A Divina Comédia” obtivesse o perdão
dos seus patrícios e voltasse para a terra natal, mas seu objetivo nunca foi alcançado.
Estes dados iniciais deram grande impulsão para a construção do espetáculo (com-
preensão dos espaços e vida e obra de D. Aliguieri). Os artistas apropriaram-se do ela-
borado “sistema dantesco” como ponto e contraponto. No espetáculo há a presença do
inferno, purgatório e paraíso, há o uso da ideia de ascendência nos/dos movimentos para
a configuração da cena e foram construídas cenicamente as personagens: Dante, Virgílio
e Beatriz. Contudo, ao invés do uso dos espaços como caminhos em sucessão, a encena-
ção optou em trabalhar os espaços dantescos em simultaneidade.
A imagem propulsora para a criação, agitada pela simultaneidade dos espaços de
atuação, foi a vida do homem comum, movida por sonhos, medos e custos/preços pelas
escolhas de caminho para a configuração da existência. Ao invés da ideia de verticalida-
de e da vida pós-morte, proposta na obra dantesca, houve a opção de considerar que o
inferno, o paraíso e o purgatório são aqui, no presente, em todos os instantes, a depender
apenas das escolhas feitas no cotidiano da vida. Com este campo de imbricação, foram
construídas as três feras que estraçalham Dante quando perguntam: “Quanto vale um
vale de acesso? Quanto você está disposto a pagar?”
A vida de Dante também foi matéria para a criação: a dramaturgia é tecida por uma
cena de julgamento, na qual estão presentes: A Condessa, A Juíza e O Bobo, estas perso-
nagens transforma-se nas feras, inspiradas nas figuras dantescas da Onça, Leão e Loba,
alegorias para a fraude, bestialidade e incontinência. A corte que julga também é com-
posta pelas personagens A Cortesã e O Poeta que se transformam respectivamente em
Beatriz e Virgílio. Dante é colocado na posição de O Condenado.
Esta metamorfose de personagens é complexa, os atores percorrem todos os espaços
como indivíduos que escolhem portas de acesso. Toda a dramaturgia é tecida na sala de
ensaio através de várias versões; há o uso de textos de Dante (em verso, prosa, português
e italiano), Bíblicos (em latim, português e alemão), colagem de fragmentos de texto de
Rainer-Maria Rilke, trechos colhidos nas improvisações e criações da dramaturga em
colaboração com o elenco.

A indução para os sentidos despertarem significados


Para que os espaços inferno, purgatório, paraíso fizessem sentido para a encenação e
dramaturgia do espetáculo “O Evanescente Caminho”, houve a necessidade construir
núcleos imagéticos compostos por ação e atmosfera: no inferno, a imagem é de um por-
tal, elemento água, é gélido e permeado pela solidão, tudo é surpreendentemente azul;
o purgatório é configurado como labirintos, a ideia de terra e subida é utilizada neste
espaço, com cores intensas e vibrantes; o paraíso tem como imagem o balanço do corpo,
o elemento é ar, entardecer e tudo âmbar. É claro que no decorrer do processo estas ân-
coras foram despertando significados cada vez mais complexos e emaranhados. Dentro
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 125

do processo de criação é necessária a existência de pontos-porto, para que depois tudo


fique em barcos a deriva na tempestade de conexões possíveis.
Quando a obra é entregue ao público o artista passa a enxerga-la com uma maior
nitidez, e o processo de emaranhamento é momentaneamente decifrado. A fase inicial
do processo abarcou o inferno, como já é sugerido na obra inspiradora, neste instante da
criação, que durou meses e meses, houve a sensação de enclausura. Segundo os depoi-
mentos dos artistas envolvidos: “É como se estivéssemos presos da mesma maneira em
que estão as figuras que Dante põe no Inferno”.

A combinação de crescimento e execução, que caracteriza o trabalho artístico, conduz a pro-


cedimentos que não podem ser descritos como uma elaboração sucessiva de fragmentos (...)
Uma interação de interferências, modificações, restrições e compensações conduz gradual-
mente à unidade e à complexidade da composição total. (Salles, 2004)

Na busca pela combinação de elementos, como estratégia para “suavizar” o espaço


do inferno, a encenação e a dramaturgia buscaram encontrar um tom mais coloquial,
com a contação de histórias, personagens tipos criadas em improvisação e uma série de
depoimentos reais acerca dos sonhos e medos que são alimentados e o preço a ser pago
por estes sonhos e medos. Estes depoimentos foram colhidos em urnas que espalhadas
na universidade e em enquetes realizadas em redes sociais; por um bom tempo este ma-
terial serviu como base para as improvisações. Esta tentativa de acesso para a construção
do espetáculo foi movida, principalmente, pelo fato do trabalho envolver jovens alunos
da graduação em teatro. Foi necessário criar um tom mais próximo da realidade dos
estudantes e que seus imaginários fossem tocados com ludicidade e delicadeza, pois a
obra dantesca traz em seu bojo uma visão extremamente maniqueísta da realidade, com
duras penas para todos os deslizes, por menores que sejam.

O delicado toque por várias mãos


A matéria da obra fala ao artista, que por sua vez precisa estar atento para escutar os
caminhos que a criação aponta. Entrar no espaço do inferno era complicado e passou a
ser receoso, nas improvisações surgiam muitas narrativas e memórias de assassinados,
violências, solidão, desespero e falta de esperança na vida. A rota de navegação foi mu-
dada neste momento, pois a obra pedia – exigia outra materialidade.
Para um trabalho tecido por muitas mãos é primordial o encantamento e generosida-
de para que as individualidades possam ser tocadas e o trabalho em colaboração seja viá-
vel e possível. Criar dramaturgia na sala de ensaio, a partir de improvisação, através de
um trabalho colaborativo, proposto por vários indivíduos com diversificadas vivências
em arte, é uma escolha de caminho árduo para a criação. É um lançar-se diariamente nos
abismos das possibilidades, caminhar de mãos dadas no escuro, sem certezas, apenas
com buscas por acesso à obra nascente. Esta tarefa é possível apenas para indivíduos
126 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

que aceitam o desafio de andar na corda bamba do processo criativo. E o que são os
processos sem esta incerteza geratriz?

Breve pausa
O estudo sobre criação de dramaturgia e encenação na sala de ensaio, pela Cia de Teatro
Engenharia Cênica, empreendido pelos seus artistas-pesquisadores, ganha novo lócus
de investigação com o espetáculo “O Evanescente Caminho”. As considerações aqui le-
vantadas sobre a natureza deste processo de criação são iniciais. Através da análise mais
apurada dos vestígios do espetáculo – cadernos de bordo, fotografias, vídeos e versões
da dramaturgia – haverá uma ampliação da discussão sobre o fenômeno da criação em
teatro via improvisação, e instalação e desenvolvimento da imagem propulsora. O Gru-
po de Pesquisa LaCrirCe nasce na perspectiva de promover, incitar, discutir, possibilitar,
gerar espetáculos inseridos na proposta de poética brevemente apresentada.

Referências
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução e notas Italo Eugenio Maruo. São Paulo: Edi-
tora 34, 1998.
FERREIRA, C. M. A. Uma morfologia cênica em rastros reverberantes. In: CONGRESSO IN-
TERNACIONAL DA APCG, 9., 2008, Vitória. Processo de Criação e Interações: a crítica
genética em debate nas artes, literatura e ensino. Belo Horizonte : C/Arte, 2008. p. 95-100.
______. Cena e jogo: o imaginário na carne. 2009. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) –
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia.
SALLES, Cecília. Gesto inacabado: processo de criação. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2004.
_______. Redes de criação: construção da obra de arte. São Paulo: Editora Horizonte
2006.

Sites
www.engenhariacenica.com.br
http://dgp.cnpq.br/diretorioc/fontes/detalhegrupo.jsp?grupo=8800803W3D7HOX


Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 127

Alfarrábio como território poético

Christiane Cavalvante Frauzino


CNPQ–PPGCV/UFG – [email protected]

O presente artigo trata da apropriação de um alfarrábio como espaço de dis-


cussão poética e exercício de olhar e percepção sobre esse objeto-território.
Páginas carcomidas, manchadas, dissolvidas pela ação implacável do passar
dos dias de um século. Aqui, o alfarrábio As Applicações da Photographia, de
D.G.H. Niewenglowski (1911), é a semente para uma proposta de exposição
na qual se quer discutir e articular os conceitos que envolvem o livro, a foto-
grafia, o tempo, o esquecimento e a apropriação, partindo assim do próprio
objeto como território fértil para produção e construção de novos significados
a serem estruturados num espaço expositivo. O alfarrábio aqui é colocado
na brecha da ideia do fim do livro (Machado, 1994) e sua apropriação como
território poético dentro da produção e discussão sobre o livro de artista. Nes-
se espaço-brecha, reside o potencial latente a ser concretizado em forma de
exposição.
Palavras-chave: Alfarrábio. Livro de artista. Lugar poético.

The present paper is about how to aprropiate a old book as point of poetic
discussion and poetic territory. How to look at the old book as culture object
and dream possible poetics in contemporary art. How to realize the visual
elements inside the book as seeds bubbling looking for a way to pullulate and
to create many connections between the old and the new ? The alpharabius
“As applicações da photgraphia. D.G.H. Niewenglovski (1911), is the aim to
formulate possible poetics and to construction a work and a exhibition project.
Keywords: Alpharabius- artistic book – poetic territory
128 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Páginas de amor em capa velha


Folhear cada página do livro com delicadeza para que não se dissolvam nas pontas dos
dedos, ouvir o som que compõe uma música única a cada passagem de página, pausas,
ritmos, folhear para frente e para trás. Um alfarrábio é mais do que um livro velho e
carcomido, é um objeto precioso a quem o ama. Ao resgatá-lo, dá-se o início de um
percurso afetivo, de uma cartografia sentimental por esse universo delicioso das páginas,
palavras, capítulos, imagens e capas que, no desenrolar do processo criativo alfarrábio
+ sujeito, vai criando corpo, tornando-se pulsões concretas, elaborando conceitos, con-
figurando visualidades e apresentando-se então de outras formas e com outras significa-
ções e sentidos, espaço aberto aos diálogos entre tempos, lugares passados e seus novos
lugares na arte contemporânea.
Da paixão por esse tipo de artefato (lat. arte factus (adj. factus ‘feito’) ‘feito com
arte’), emerge o desejo de estabelecer conexões afetivas, buscando as possibilidades de
evidenciar o alfarrábio como lugar e território poético singular capaz de transitar por
entre vestígios temporais. Lá, cá, aqui, acolá, bem lá depois do acolá. É um status de
relacionamento com esse tipo de objeto cultural, herdeiro de códices, um livro antigo,
velho, rasgado, cheirando a mofo e que faz espirrarem os alérgicos, no qual abre-se um
espaço de evidência existencial possível nesse tempo contemporâneo contaminado de
inumerabilidades de imagens em constante chuva fina. Tece, com os vestígios e refluxos
do alfarrábio, um forrinho de crochê para um criado mudo, um criado imaginário onde
depositam-se vontades e desejos de adormecer ao lado e, portanto, de abrir uma pequena
brecha para a possibilidade de fabular outro mundo.
O termo “alfarrábio” como o encontramos hoje deriva do nome do filósofo islâmico
do século X, Abu Nasr Mohammad Ibn al-Farakh al-Farabi. Al-Farabi (Al-Pharabius,
na Europa), como ficou conhecido, desenvolveu uma extensa obra nas áreas de filoso-
fia, música, cosmologia, teologia, ciências políticas e física. Teorizou sobre as obras de
Aristóteles e Platão e foi um dos maiores enciclopedistas do seu tempo. A obra de Al-
Farabi é um estudo à parte que não caberia nesse pequeno ensaio. Seguiram-se adiante
sentidos para a palavra “alfarrábio”, como: livro velho em desuso, livro sem serventia,
livro desatualizado, obsoleto; relacionados e correlatos ao termo alfarrábio, encontra-
mos também calhamaço e cartapácio. Encontramos a seguinte referência no Dicionário
Houaiss da língua portuguesa (2001) referindo-se ao filósofo Al-Farabi e ao sentido do
termo: “a vulgaridade de citação de sua pessoa acabou por depreciar a sua obra, juntan-
do-lhe os conceitos de antiguidade, falta de interesse”.
É pontualmente, no aspecto desse desinteresse que define alguns sentidos etimo-
lógicos para o alfarrábio como objeto obsoleto, que reside todo o potencial da latência
poética e pela qual a apropriação desse artefato como território poético instaura uma
cartografia sentimental. Aqui começa outro destino para um alfarrábio compreendido
apenas por seus apaixonados. “Especificamente para a arte, o livro-objeto é uma solução
inteiramente plástica” (Silveira, 2013) e dele podemos fabricar os sentidos poéticos, seja
a partir de um livro fabricado para ser livro-objeto/livro de artista ou um livro-objeto
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 129

apropriado e deslocado do seu contexto sociocultural, como é proposto aqui: a apropria-


ção do alfarrábio As Applicações da Photographia, de D. G. H. Niewenglowski (1911).
Segundo Arlindo Machado (1994), podemos definir o livro, numa acepção mais am-
pla, como sendo todo e qualquer dispositivo através do qual uma civilização grava, fixa
e memoriza para si e para a posteridade o conjunto de seus conhecimentos, descobertas,
sistemas de crenças e voos de sua imaginação. Em seu artigo Fim do livro?, o autor traz
a discussão sobre o possível desaparecimento do livro-objeto assim como o definimos
hoje – um objeto tipográfico, encadernado e impresso em várias cópias e tiragens. É
nessa brecha de discussão da vida ou morte do livro como objeto tipográfico que o alfar-
rábio eclode como território poético.

Dos rastros das traças ao território poético


Livro, fotografia, tempo, esquecimento, apropriação, paixão, afeto, resgate, silhuetas,
máquinas, ortografia curiosa. Folheando o alfarrábio, muitas curiosidades saltitam como
pipoca, cada grão dos elementos constituinte do livro se transforma em conceitos expo-
sitivos que forjam a idealização da exposição. O livro As Applicações da Photographia,
de D .G. H. Niewenglowski (1911), foi publicado pela primeira vez no ano de 1907,
contém 463 páginas, 11 x 18 cm de dimensão, 2,5 cm de espessura e está dividido
em duas partes. A primeira parte contém dezessete capítulos e a segunda parte, seis
capítulos, somando um total de vinte e três capítulos. O índice está localizado no final
do livro, da página 459 a 463. Capa dura com pequena restauração caseira de sua lom-
bada, ortografia em língua portuguesa segundo acordo ortográfico de 1911, do qual o
Brasil foi excluído, editado por H. Garnier, Livreiro-Editor, rua do Ouvidor, 109, Rio
de Janeiro. Docteur Gaston Henri Niewenglowski, o autor, era “official da instrucção
publica, preparador de chimica na Faculdade das sciencias da Universidade de Paris,
professor de photographia na associação philothechnica, redactor em chefe da <<Re-
vista das sciencias photographicas>>, doutor da revista mensal <<a photographia>>”.
(Niewenglowski, 1911).
Num primeiro momento, extraí alguns elementos do livro para construir as primeiras
peças que conceituariam a idealização da exposição, pensada de maneira a articular poé-
ticas usando fotografia, gravura, desenhos, vídeo, objetos, instalação. Tudo isso, é claro,
ainda é apenas um projeto que se deseja concretizar. Após várias leituras do alfarrábio,
foram extraídas, em forma de inventário manuscrito num caderno com folhas pautadas,
366 palavras escritas com duplo F (efe). Difficuldade, differença, effetuar, sufficiente,
effeito, soffrer, affirmar, diffracção. Essas palavras se repetem com muita frequência ao
longo do livro. Cada capítulo é fechado com uma imagem em silhueta de uma figura ora
masculina (duas figuras diferentes), ora feminina. São apenas três figuras humanas em
silhueta que se repetem ao longo do livro. O livro contém técnicas de fotografia desen-
volvidas até o período de 1911, com fotos e ilustrações das experimentações citadas nos
capítulos, bem como os maquinários em pesquisa na época. Os elementos acima citados,
130 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

constituintes do alfarrábio aqui proposto como território poético, geram cada um seu
corpo particular e singular que comporão a exposição.
O inventário de 366 palavras escritas ortograficamente com duplo F(efe) será ma-
nuscrito com pincel e tinta nanquim em um rolo de papel manteiga sem cortes de 1,0 x
20 m de dimensão, o qual, depois de pronto, ficará desenrolado e apresentado no espaço
expositivo disponível para ser manipulado pelos visitantes. As silhuetas das três figuras
humanas serão redimensionadas em escala natural e impressas em vinil adesivo preto,
mantendo o negro da silhueta, e serão transferidas para paredes e piso do espaço exposi-
tivo. Será feita também uma animação a partir das três silhuetas. As ilustrações das má-
quinas e aparatos de captura de imagem contidas no livro serão escaneadas, impressas
em formato 50 x 70 cm em papel fotográfico e encadernadas como um livro-objeto que
estará disponível para a manipulação. Fotografias produzidas a partir do livro-alfarrábio
como referente estarão dispostas em vários formatosm compondo a exposição. A função
da fotografia aqui proposta vai além do registro fotográfico, ela entra como upgrade
de um olhar poético sobre o próprio alfarrábio. “O principal projeto da fotografia dos
artistas não é reproduzir o visível, mas tornar visível alguma coisa do mundo, alguma
coisa que não é, necessariamente, da ordem do visível” (Rouille, 2009). A proposta das
imagens fotográficas é um olhar redimensionado, recortado, ampliado, em que se deseja
tragar o espectador através da fruição e instigar a percepção daquilo que ele olha e como
olha. Todos esses elementos aqui descritos têm por objetivo articular, instaurar, atualizar
e tecer referências, construindo novas significações e produzindo novas formas de pen-
sar e poetizar um objeto obsoleto socialmente, porém atualizado como território poético.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 131

Grãos de pipoca – álbum de retratos

Figura 1. As fotografias desse álbum de retratos são de autoria própria.

Referências
HOUAISS, dicionário da língua portuguesa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001.
MACHADO, Arlindo. Fim do livro? Palestra feita pelo autor em 12 de maio de 1994 no IEA.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010340141994000200013&script=s-
ci_arttext. Acesso em: 28 set. 2013.
NIEWENGLOWSKI, D. Gaston H. As applicações da photographia. Rio de Janeiro: Livraria
Garnier, 1911.
ROUILLÉ, André. A fotografia dos artistas. In: A fotografia – entre documento e arte contemporâ-
nea. São Paulo: Editora Senac, 2009.
SILVEIRA, Paulo. A definição do livro-objeto. In: Edith Derdyk (Org.). Entre ser um e ser mil: o
livro-objeto e suas poéticas. São Paulo: Editora Senac, 2013.
132 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Função e fruição – novas


interfaces do monumento público
contemporâneo

Ciliani Celante
PMV/Vitoria – [email protected]

José Cirillo
CNPQ/FAPES/PPGA-UFES – [email protected]

A proposta reflexão tem como tema de análise o monumento público come-


morativo contemporâneo em sua interface multiautoral e em constante diálogo
com a memória coletiva. Assim temos na atualidade a inserção de monumen-
tos efêmeros ou tradicionais de forte dependência coletiva em sua construção
e relações de sentido. Este texto busca refletir nobre o papel da memória co-
letiva na construção e significação do monumento em sua concepção contem-
porânea. Apoiam-se estes estudo no conceito de “lugar de memória” (NORA),
buscando identificar estratégias e dinâmicas não tradicionais que se movem
paralelas à sua contemporaneidade, evidenciando uma busca pela livre inte-
ratividade, migrações do lugar de origem, agregação de novos significados
junto ao original, releituras e interferências visuais.
Palavras-Chave: Monumento – Intervenção- Processo De Criação

La reflexión de esta ponencia se propone analizar el tema del monumento


nacional contemporáneo en su interfaz multiautoral y en constante diálogo con
la memoria colectiva. Así que hoy tenemos la inclusión de los monumentos
efímeros o tradicionales una dependencia en suya construcción y en las rela-
ciones de sentidos colectivos. Este texto pretende reflejar la noble función de
la memoria colectiva en la construcción y el significado del monumento en su
diseño contemporáneo. Estos estudios se basan en el concepto de “lugar de la
memoria” (NORA), buscando identificar las estrategias y dinámicas paralelas
y no tradicionales que muestran una búsqueda de forma y interactividad, la
migración del lugar de origen, la adición de nuevos significados a lo largo de
las lecturas originales e interferencia visual.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 133

Introdução

Por monumento, no sentido mais antigo e verdadeiramente original do termo, entende-se uma
obra criada pela mão do homem e edificada com o objetivo preciso de conservar sempre
presente e viva na consciência das gerações futuras a lembrança de um ato ou de um destino
(RIEGL, 1984 p. 35).

Se pensarmos a cidade como a junção e fruição de diferentes saberes e fazeres, orga-


nizados e efetivados por diferentes grupos de sujeitos, com diferentes culturas, pesamos
logo no que possibilita a coabitação de tão diversos modos de pensar e agir. De pronto
uma resposta: a cultura é o aglutinador social – criada pelo homem, e não pela natureza,
é o cimento que mantém relativamente estável, toda a estrutura social. Mas, mais que sa-
beres e fazeres humanos, a cultura, como memória dos sujeitos e da cidade, se manifesta
indicialmente em signos materiais e imateriais. Interessa-nos aqui, particularmente, a
sua presença material na forma de monumentos.
Quando Alois Riegl (1984) diz que considera verdadeiramente monumento, as obras
que possuem desde sua concepção uma função memorizadora, no sentido de eternizar
na memória coletiva certos atos ou acontecimentos, a principio parece simplesmente
trazer à conceito um costume comumente percebido e registrado em várias formas de
sociedades no decorrer da história humana. Das formas mais rudimentares, como o uso
de pedras memoriais - tão comum nas antigas culturas árabes -, passando por laboriosas
estátuas-monumentos oriundas da tradição greco-romana, assistimos o século XX con-
seguir engajar e converter ao seu projeto de sociedade, a milenar concepção de monu-
mento juntamente com suas formas práticas.
Em termos concretos e conceituais, é possível apontar nesses memoriais princípios
direcionadores que apontam tendências de uma memória coletiva ativa e coautora do
espaço em que se inserem em matéria e essência.
Se a história da arte - ou por que não os próprios monumentos - guarda um longo
registro da escultura a seu serviço, podemos pensar que no final do século XIX alguns
desses índices da memória coletiva como as obras Balzac (1897) e a Porta do Inferno
(1840-1917), ambas de Rodin e concebidas como monumentos, não conseguiram ser-
vir às intenções originais do termo reigleriano de monumento, nem atender ao que a
sociedade esperava delas como elementos da saudação à memória coletiva; dava-se ai
sinais de uma eminente emancipação de status do monumento público – fato que toma
expressão em obras de Brancussi, como a Coluna Sem Fim (1918). Sobre isto, como
bem observou Rosalind Krauss (1979), revela-se o momento em que se é possível iden-
tificar um repensar da possibilidade da tradicional parceria escultura/monumento, que
pareciam seguir por caminhos que se tornariam incompatíveis à propostas e tendências
do mimese até então estabelecida. O motivo, hoje com a distância de um século, é bem
simples: o monumento estava diante de um tempo-espaço onde o curso da construção
cultural agregaria à escultura experiências estéticas que viriam a incitá-la para novas
134 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

aspirações sensitivas e imagéticas, enquanto o monumento por seu conceito e função


definida estaria fadado à estatização tornando assim a relação de certa forma truncada.
Porém, se o conceito e função do monumento pareciam destiná-lo a um tipo vitalício
de situação, o mesmo século XX tratou de desloca-lo da temida estagnação, usando para
isso o imperativo viés do capitalismo dominante e seus atributos distribuidores de kits
de sobrevivência, a preços de obrigatória adequação (na qual a própria mercantiliza-
ção da memória se fez estratégica), principalmente para atender as novas necessidades
oriundas da relação entre o homem, o tempo e o espaço construídos a partir do advento
da era industrial, na qual a mais urgente veio ser justamente o entendimento e aceitação
das possíveis formas de fruição a serem agora consideradas.
Sintetizando a reflexão de Jonathan Crary em “A visão que se desprende: Manet e
o observador atento no fim do século XIX”(CRARY,2001), a respeito da necessidade
de novas concepções visuais, podemos concluir indiretamente que a fruição vem sendo
constantemente reorientada desde as mudanças no processo produtivo e novas tecno-
logias do contexto social que envolveu o século XIX. Crary fala sobre a exigência de
uma readaptação dos sentidos frente às demandas de situações embrionárias da cultura
de massa que então se formava. Assim, as questões que envolvem a visão e a prática
do olhar foram reconsideradas e analisadas não mais baseadas em regimes e modelos
clássicos de visualidade, mas de forma científica e experimental em várias áreas de
estudos. Como resultado de diversos trabalhos, entendeu-se que o objeto já não contin-
ha em si a verdade visual, mas ao contrário estava sujeito a subjetividades resultantes
das condições e constituições fisiológicas e até culturais do observador/interator, ou
seja: a suposta verdade visual deslocava-se do objeto para a fonte do olhar, no caso o
observador com toda a sua vasta gama de condições e informações. A visão e todos os
outros sentidos não eram mais depositários de uma certeza perceptiva única e padrão.
Entendia-se que estes, embora biologicamente constituídos, eram sujeitos a uma ação
psicológica e cultural que ultrapassavam os limites orgânicos da percepção.
Essa nova forma de entender a percepção provocou uma crise em relação aos ins-
trumentos suportes na geração e formação do conhecimento, no caso, os sentidos. Um
possível resultado desse conflito foi a preparação de um espaço social para o modernis-
mo visual, e por outro lado, a relativização do olhar juntamente com o novo modo de
compreender a autonomia da experiência perceptiva que desobrigava-a de sua suposta
necessidade de relação com fatores externos, colocou a visão em um patamar de igual-
dade e natural modernização juntamente como outros processos, no que diz respeito a
dinâmica borbulhante e impulsionadora do surgimento de novas necessidades e novas
soluções. Assim, o século XX foi recebido com ares especialmente inovadores e junto
com ele, premissas da entrada global em um novo tempo, cujo ingresso, em longo prazo,
custou desmistificações em vários setores da vida social, resultando numa racionaliza-
ção que excluiu não só costumes e maneiras, mas também antigas formas de relação
entre objeto e expectador.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 135

Frente a esta configuração de fruição não mais passiva, o monumento público in-
tencional1 que possui como autor a própria sociedade – nos referimos aqui à autoria
da cultura e não do sujeito - normalmente passou a refletir em sua forma e atuação
durante todo século XX as características peculiares da memória coletiva que o gera
e sustenta e que também por sua vez se apropria cada vez mais de sua autonomia em
aniquilar ou promover significados aos monumentos, deslocar e redefinir valores, como
também substituir seu motivo memorialistico original por outro a partir da mesma obra,
re-apropriando-a e re-significando-a. Assim, se o inicio do século XX trazia a projeção
de incompatibilidade a ser sentida no âmbito da experiência funcional entre os possíveis
cursos destinados a escultura e o monumento comemorativo intencional, podemos notar
que há, no final do mesmo período, a possibilidade de nova calibragem entre os eixos
de atuação dessas categorias que acabaram por se cumprimentar novamente a partir da
segunda metade do século XX, pois a constatada tendência comportamental dos monu-
mentos juntamente com a compreensão da escultura em seu atual sentido de percepção
e ampliado campo de possibilidades de fruição, como explanado por Rosaling Krauss,
acaba por colocar novamente a escultura como suporte compatível com as atuais formas
de atuação do monumento público contemporâneo, não sendo este porém como no pas-
sado, o único suporte para a existência do monumento memorialístico.
Consideradas estas questões, nos colocamos em um foco mais específico, ou em um
campo de investigação físico mais delimitado. Partindo de algumas obras existentes na
cidade de Vitória, ES/Brasil, selecionamos uma que em especial contem em si alguns
exemplos de como tem se dado hoje a participação do monumento na cidade do sec.
XXI. Podemos citar a existência do Monumento ao Índio (FIGURA 1), estatuária natu-
ralista em bronze, popularmente conhecida como Araribóia, situado atualmente na ave-
nida Beira-Mar, centro da cidade, que idealizado fisicamente pelo escultor Carlo Crepaz,
na década de 1960; tinha por objetivo representar de forma geral o índio brasileiro,
porém não muito tempo depois foi re-significado quando a sociedade o batizou com o
nome de “Araribóia” em homenagem a um citado índio guerreiro de terras capixaba e
norte-fluminense.

1. MONUMENTO INTENCIONAL: Designação usada por Alois Riegl em O Culto Moderno dos
Monumentos, para se referir a monumentos erigidos com o fim específico e original de come-
morar, relembrar um fato ou acontecimento às gerações futuras. Difere-se de monumento não
intencional referindo-o como sendo aquele em que a sociedade assim o elevou posteriormente
devido a alguma importância adquirida para a sociedade.
136 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Figura 1. Monumento ao Índio dec.1960 – Fonte: arquivo público estadual

Não nos prendendo sobre os pormenores que envolvem a origem deste personagem,
citado por alguns autores como que vindo do Rio de Janeiro e chegado em terras capixabas
por meados de 1500, sobre este mesmo monumento é comum a pergunta: onde o índio está
agora? O motivo se dá por suas conhecidas mudanças de localização geográfica ao longo
dos anos desde sua inauguração, sendo quatro deslocamentos de endereço registradamente
comprovados, porém acompanhados de alguns outros comentados pela população. Na
primeira mudança de local, enquanto guardava-se nos depósitos da prefeitura da cidade
à espera de definição de para onde ser levado, o apelo de recolocação do monumento foi
através de uma marcha carnavalesca intitulada “Bota o índio no lugar”, que dizia:

Bota o índio no lugar,


Ele quer tomar banho de mar,
Bota o índio no lugar,
Ele é da avenida Beira-Mar.
Era Araribóia,
Ele quer voltar pra lá.
Doutor, por favor
Bota o índio no lugar.
(FARIA, 1992 p.27)
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 137

O monumento foi recolocado após o apelo popular, para sair outras tantas vezes e no-
vamente retornar à Beira-Mar. Porém nem os restauros asseguram a peça uma localização
definitiva: um pouco mais distante ou um pouco mais próximo do mar (como no ultimo
restauro em 2012), o monumento nunca voltou exatamente ao local de onde saíra, somam-
se consideráveis variações dentro do próprio endereço. Atualmente é possível visitá-lo na
mesma avenida Beira-Mar, porém ao lado do clube do Forte São João (Figura 2).

Figura 2. Araribóia - Monumento ao índio – Após restauração de 2012.


Fonte: Secom/PMV

Paralela a essa tendência de re-significação e re-locação, quase sempre de iniciativa


do poder público, no entanto com o aval participativo da população, o que pode ser
identificado em seu próprio comportamento de aceite às mudanças (pois quando a ma-
nipulação política sugere rumos estranhos à coletividade a resposta vem mesmo que em
forma de marcha carnavalesca), temos em relação aos monumentos tradicionais existen-
tes, intervenções que se sobrepõem como camadas em representação do atual momento
e seus valores, o que acontece tanto em monumentos intencionais recentemente erigidos,
quanto com monumentos intencionais e não intencionais erigidos em outras épocas, fa-
zendo com que a instituição desses memoriais na atualidade, mesmo não atingindo seu
objetivo enquanto evocadores de um certo passado, por ato, personalidade ou qualquer
outro motivo que fora e merece ser de relevância histórico coletiva, continue a cumprir
visualmente o seu papel na construção imagética do lugar, contribuindo na distinção de
suas características habilitando-o a se tornar em um “lugar de memória” (NORA), mes-
mo que essa memória venha se solidificar por meios de dinâmicas não tradicionais que se
138 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

movem paralelas a sua contemporaneidade como, a busca pela livre interatividade, agre-
gação de novos significados junto ao original, releituras e interferências visuais. Em 2009
o 8 salão Bienal do Mar premiou uma obra coletiva intitulada “O Retorno do Araribóia”,
projeto de intervenção urbana itinerante em que uma réplica do monumento circulou por
vários pontos da capital capixaba. O índio então andou mais algumas vezes (Figura 3).

Figura 3- Intervenção para 8a edição do Salão do Mar. Fotos de Michele Cristine Marques e
Giovanna Maria Pereira Faustini

O Monumento ao Índio Araribóia em sua dinâmica trajetória, já vestiu camisa de


time de futebol, tangas coloridas e segurou até um berimbau em lugar do arco e flecha.
Não discutindo aqui sobre as diversas formas que se dá a depredação de monumentos
e qual exatamente o comportamento que se caracterize como tal, o fato é que é comum
ver na prática de seu desuso como composição memorialística, apropriações proibidas
e ditas desajustadas, mas que acabam por traçar diálogos que os incluem em sua condi-
ção de vestígios da construção do tempo da cidade como item participante da paisagem
imagética mental num plano cartográfico sensível.

O monumento não depende apenas da investidura do ser e da instauração da arte. Ele depende
em ultima instancia, sempre, da outorga dos humanos.sem essa outorga, sem essa ratificação,
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 139

por mais excelente que a obra seja, essa obra é para ninguém, se ninguém lhe infundir, se
ninguém lhe associar sua carga emotiva ou a sua vivencia intencional (ABREU, 2003 p 11).

Assim temos na atualidade a inserção de monumentos efêmeros, de passagem na


paisagem, não mais de forte apelo memorial, no entanto de forte dependência coletiva
em sua construção, propondo assim outras vias de fruição em atendimento a própria
função memorialística do monumento contemporâneo. Desta forma, parece que se finda
a era de mumificação preservacionista de um objeto material candidato a depositário de
lembranças e destarte cobra-se desse monumento um relacionamento ativo com a socie-
dade para a qual se julga apto presentificar-se por algum motivo, credenciando-se assim
a um papel co-participante na formação da malha identitária. O monumento distancia-se
de um sentido de objeto histórico figurativo de lembranças e insere-se em um eixo de
atuação natural e espontaneamente competitivo em poder influenciador num processo
de/em formação de identidades. Assim, troca sua proposta de eternização física baseada
na contemplatividade, estatização, reverenciamento e intocabilidade (que acabava por
finalmente traduzi-lo quase que unicamente em marcador geográfico na paisagem), pela
incerteza da própria continuidade, porém elevando-se como categoria de contempora-
neidade existencialmente autônoma.
Ao permitir expor-se no atual quadro fruitivo caracterizado pela livre interpretação,
volubilidade, apropriação, manipulação e descartabilidade o monumento deixa de men-
digar a atenção sobre seu caráter sensorial (como objeto) e mental (no sentido memoria-
lístico) e opta por uma legitimação a custo e risco da própria continuidade físico-signi-
ficativa mas que registre de certa forma uma passagem colaborativa e autêntica em seu
contexto espaço/tempo mostrando-se compatível a habitar nas diversas contemporanei-
dades a que um objeto memorializador se propõe a testemunhar por sua especificidade.
Essas são as observáveis previsões existenciais do monumento na atualidade que se
deu possível e decorrentemente do viés naturalmente cursado por esta categoria que foi
literalmente criada na rua e tal como menor abandonado, sucumbiu em alguns lugares,
sobreviveu agonizadamente em outros e em notáveis casos venceu na vida. Vítimas do
meio tiraram do próprio meio a subsistência cuja qualidade se reflete nestes sob muitas
maneiras e características. Assim chegaram até o momento e na falta da disciplinar ma-
nutenção em sua função e objetivo, deixaram-se absorver pelos tempos de seus meios. E
dado que em sua trajetória a forma prevaleceu sobre a função, como parte carente da si-
tuação o monumento público acabou por unir-se as questões da forma. E o espaço cedeu
a força. Quando o Índio Araribóia andou na intervenção de 2010 pelas ruas da cidade de
Vitória ele se apresentou como participante consciente e ativo no tempo em que se insere
e sobre o qual, se coloca transeunte por direito. Parece que neste caso o ato interven-
cionista a partir deste monumento representou um dos vários possíveis nós de interação
na interconexão de tempos e espaços na qual se dá a contínua formação da memória.
Interessante notar que quando este monumento finalmente se dispõe como objeto atual
ele alcança de forma eficaz os objetivos originais de sua tradicional funcionalidade: traz
140 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

à memória o índio brasileiro, ao mesmo tempo populariza a passagem de Araribóia e


principalmente deixa registrado em sua imagem as marcas da atual geração.

Referências
ABREU Jose Guilherme de. A Problemática do Monumento Moderno. In Boletim Interativo da
Associação Portuguesa dos Historiadores da arte, n. 1. Dezembro 2003. Disponível em www.
apha.pt/boletim.
CRARY, Jonathan. A visão que se desprende: Manet e o observador atento no fim do século XIX.
In: Charney e Schwartz. O cinema
e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
KRAUSS. A escultura no campo ampliado. Revista Gávea, Rio de Janeiro, n. 1, dezembro de
1984.
NORA, Pierre. “Entre Memória e História: a problemática dos lugares”, In: Projeto História. São
Paulo: PUC, n. 10, pp. 07-28, dezembro de 1993.
RIEGL, Alois. Le Culte moderne des monuments. Son essence ET as gênese. Tradução Daniel
wieczorek, Paris, Seuiul, 1984.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 141

Pixação, apropriação e
transgressão:
reflexões sobre uma
prática artístico-fotográfica
Cíntia Corona
UFES – [email protected]

Gisele Ribeiro
PPGA/ UFES

Esta pesquisa pretende refletir a relação entre a pixação, a cidade, a arte e a


fotografia, através de uma investigação teórico-prática, visando à realização
de um trabalho de arte em fotografia. Sempre em tensão com a cidade, a
possibilidade de enquadramento da pixação como atividade artística tem se
tornado, contudo, cada vez mais complexa, já que quando institucionalizada
arrisca perder seu caráter transgressor e crítico.
Palavras-chave: pixação, cidade, arte, apropriação, fotografia.

This research pretends to discuss the relationship between pixação, the city,
the arts and photography, from the perspective of an investigation based both
in theory and in practice, aiming at the construction of a work of art in photo-
graphy. In constant tension with the city, the possibility of framing the practice
as an artistic activity has shown to be increasingly more complex, since its
institutionalization puts in risk its transgressive and critic character.
Keywords: pixação, city, art, apropriation, photography.
142 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Introdução
A pixação está presente nos muros, na fachada dos prédios, portas de aço, viadutos,
postes, pontes, ruínas, monumentos e tantas outras superfícies urbanas que funcionam
como espaços onde as tensões exercidas pelas relações de poder de uma sociedade de-
terminada são confrontadas.
A intensa presença da pixação nos muros das cidades não passa despercebida, afecta
a todos, tanto autores como transeuntes. Segundo Deleuze e Guattari em O que é a filo-
sofia: “Afecto vem a ser o que conserva em si as sensações de uma obra de arte, ou outro
objeto ou referência” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 216). A prática da pixação,
porém, enfrenta obstáculos relacionados à apropriação e ressignificação dos espaços
da cidade. A reprovação no âmbito jurídico está relacionada à defesa da propriedade
privada e do patrimônio público. Desde a sua emergência a pixação é representada so-
cialmente como sujeira, poluição visual, como contravenção. No entanto, pesquisadores
de diferentes áreas já consideram tal prática uma expressão do campo das artes visuais,
em que o pixador cria uma linguagem para intervir na cidade. Como explora Jean Bau-
drillard, em seu artigo Kool Killer ou a insurreição pelos signos:
Os grafites provêm da categoria do território. Eles territorializam o espaço urbano
decodificado – esta rua, aquele muro, tal quarteirão assume vida através deles, tornando-
se território coletivo. E eles não se circunscrevem ao gueto, eles exportam o gueto para
todas as artérias da cidade, eles invadem a cidade branca e revelam que ela é o verda-
deiro gueto do mundo ocidental. Com eles, é o gueto linguístico que irrompe na cidade,
como se fosse uma revolta de signos (BAUDRILLARD, 1996, p. 319).
Este trabalho justifica-se, dessa forma, por tentar refletir sobre a pixação, bem como
sobre suas relações com a prática fotográfica que a captura e desloca, inserindo-a em
outros sistemas de circulação de imagens.

Percurso Histórico da Pixação


Embora vários autores insistam na presença do grafite em tempos remotos da história
ocidental, alguns vão se deter em momentos precisos onde a prática do grafite, e aquilo
que chamamos hoje “pixação”, ganharão relevância no debate sobre a cultura urbana.
Na revolta estudantil de maio de 1968 em Paris, por exemplo, as inscrições em spray
foram amplamente utilizadas como forma de protesto contra as instituições acadêmicas
e estatais, conforme aponta Cristina Fonseca (1982). Outros autores, como Jean Bau-
drillard, vão indicar outro momento marcante para o surgimento do grafite e da pixação.
Em seu artigo Kool Killer, de 1974, Baudrillard, afirma que: “... ambos, tanto muros pin-
tados como grafites, nasceram após a repressão das grandes revoltas urbanas de 66/70”
(BAUDRILLARD, 1996, p. 319). Em todo caso, os muros aparecem historicamente
como foco de disputa semântica e territorial.
Já durante as décadas de 1970 e 1980 em New York – de acordo com Nicholas Ganz,
em O mundo do grafite (2011) –, enquanto alguns sujeitos eram presos, outros foram
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 143

convidados a expor seu grafite em museus e galerias ao redor do mundo, como por
exemplo, Keith Haring e Jean Basquiat.
Considerando a pluralidade através das quais aparecem as pixações no ambiente
urbano brasileiro, Arthur Lara na dissertação Grafite arte urbana em movimento (1996),
classificou três tipos de pixação encontrados na década de 1970: 1) relacionadas à Di-
tadura Militar: “Abaixo a ditadura”; 2) relacionadas com frases subjetivas e poesias; 3)
pixações semelhantes à publicidade: “Cão fila Km 26”.
Teria sido durante a década de 1990, conforme Sérgio Franco (2005), que a pixação
teria se consolidado nas metrópoles brasileiras, assumindo-se como elemento definidor
na formação de alguns sujeitos, considerados então artistas, possuidores de uma técnica
específica para realizarem suas intervenções.
Mais recentemente, em 2008, a pixação imposta a três instituições – Centro Univer-
sitário Belas Artes de São Paulo, Galeria Choque Cultural e Bienal de São Paulo – le-
vantou um debate recorrente, segundo o qual a pixação poderia ser arte; por outro lado,
levantou também importantes questionamentos sobre uma possível institucionalização
e domesticação do caráter transgressor da pixação.
Apesar dessa possível neutralização, acentuada pelas apropriações fotográficas e
videográficas contemporâneas, do ponto de vista do uso da linguagem e da questão da
autoria, a pixação ainda parece resistir em tensão.

Pixação: Transgressão e Palavra


A pixação seria entendida como uma prática essencialmente marginalizada, transgressi-
va, questionadora das noções de patrimônio público e/ou privado. Costumam ser carac-
terizadas por inscrições ou assinaturas, em geral executadas com tinta spray, de uma só
cor, de execução rápida e repetitiva, feitas principalmente no horário noturno (ANTO-
NACCI, 1994; GITAHY, 1999; SOUZA, 2008; FRANCO, 2005).
A interpretação das intervenções dos pixadores no espaço urbano não deve se res-
tringir a um exame do significado de suas palavras, pois funcionam, na maioria das ve-
zes, justamente na contramão do sentido; são propositadamente ilegíveis ou destituídas
de significado preciso. Conforme argumenta Baudrillard, o caráter transgressor dessa
escrita se dá precisamente por operar como significantes vazios. Trataria-se de signos
que operam em relação a outros signos. A “intuição revolucionária” de que são portado-
res viria da percepção de que a “[...] ideologia não mais funciona no nível dos signifi-
cados políticos, e sim no dos significantes, e que é bem aí onde o sistema é vulnerável e
deve ser desmantelado” (BAUDRILLARD, 1996, p. 320).
A relação com os “nomes” – que funcionam subversivamente como pseudônimos,
alegorias de assinatura –, tocam no problema da autoria e da apropriação, questões im-
portantes tanto do ponto de vista da noção de propriedade, quanto para o debate em
torno da fotografia no campo da arte.
144 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Apropriação, Pixação e Fotografia


A questão da apropriação relaciona-se diretamente com a questão da autoria, buscando
questionar a função do autor, tensionando-a. As pixações encenam e alegorizam a assi-
natura como parte indissociável do sistema de atribuições na produção artística. A rela-
ção entre a pixação e a apropriação está baseada na tensão entre o anonimato e a autoria:
Estes nomes ao avesso [...], têm uma verdadeira carga simbólica: elas são feitas
para serem dadas, trocadas, transmitidas ou se religarem entre si indefinidamente no
anonimato, mas um anonimato coletivo, no qual estes nomes são como termos de uma
iniciação, deslocando-se de um pólo para outro e trocando-se tão bem que acabam não
sendo, a exemplo da língua, propriedade de ninguém (BAUDRILLARD, 1996, p. 319).
As pixações se apropriam do cenário urbano, estabelecendo um embate – na maioria
das vezes, crítico – com a cidade, que vem sendo objeto de apropriações questionáveis
por parte do Estado e do âmbito privado. Se a apropriação da pixação ataca a apropria-
ção anteriormente praticada pelas relações de poder materializadas na cidade, a foto-
grafia – como prática indissociável da ideia de apropriação – pode provocar mais uma
dobra de apropriação na prática da pixação. Dessa forma, o trabalho que propomos visa
à apropriação crítica da apropriação da apropriação (CRIMP, 2005).

Figura 01 e 02. À esquerda: Cíntia Corona, Fotografia Senna, Vitória ES, 2013. À direita: Cíntia
Corona, Fotografia BSP, Vitória ES, 2013.

A estratégia do projeto, realizado simultaneamente às reflexões teóricas, parte de


uma pesquisa artístico-fotográfica de pixações, sobretudo de tags, na cidade de Vitória,
ES. Com a fotografia é possível capturar e deslocar a pixação, inserindo-a em outros
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 145

sistemas de circulação de imagens. A proposta é usar a imagem como objeto de interven-


ção devolvendo-a ao meio urbano de onde foi retirada (figuras 01 a 06). Essa reinserção
pretende subverter o funcionamento próprio das imagens técnicas no mundo contem-
porâneo, ao mesmo tempo que a apropriação das “assinaturas” permite uma dobra na
pixação, propondo um embate com os próprios pixadores, questionando – como Barthes
(2004) e Foucault (2001) – a ideia de autoria como expressão de um sujeito individual,
aspecto crítico potencialmente presente em suas atividades.

Figura 3. Cíntia Corona, Fotografia Kombi, Figura 4. Cíntia Corona, Fotografia Os Gê-
Vitória ES, 2013. meos, Vitória ES, 2013.

Figura 5. Cíntia Corona, Fotografia Ratos, Figura 6. Cíntia Corona, Fotografia Caos, Vi-
Vitória ES, 2013. tória ES, 2013.

Referências
ANTONACCI, Célia. Grafite, pixação & Cia. São Paulo: Annablume, 1994.
BARTHES, R. A morte do autor. In: O rumo da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BAUDRILLARD, Jean. Kool Killer ou a Insurreição pelos signos. In: A troca simbólica e a morte.
São Paulo: Loyola, 1996.
CRIMP, Douglas. Apropriando-se da apropriação. In: Sobre as ruínas do museu. São Paulo: Mar-
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146 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é filosofia. Rio de Janeiro: 34, 1992.
FOUCAULT, Michel. O Que é um autor? In: Ditos e Escritos: Estética – literatura e pintura,
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FONSECA, Cristina. A poesia do acaso (na transversal da cidade). São Paulo: T. A. Queiroz
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FRANCO, Sérgio. Iconografias da metrópole: grafiteiros e pixadores representando o contempo-
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UFRJ, 2008.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 147

No interior da casa:
interpenetração de morada e
trabalho como práxis da produção
autorrepresentacional
Cláudia França
PPGA/UFU – [email protected]

Análise da trajetória pessoal de criação, considerando o conjunto de traba-


lhos produzidos entre 2000 e 2013, em que a autorrepresentação torna-se
a tônica da trajetória poética. Nestes trabalhos, o espaço doméstico assume
importância fundamental, pois nele ocorre a interpenetração do fazer cotidiano
(arrumar a casa) e o fazer artístico, da morada com o atelier. Dentro da casa
se descortina uma “população de objetos” que traduz um sujeito. A casa se
presentifica ainda como tema, pelo uso múltiplo dos seus objetos e por meio
de ações, verbos escritos em textos e pensados como imagens. Tramo tal
análise com questões da antropologia, filosofia e história das mentalidades.
Palavras-chave: processo de criação; casa; autorrepresentação

Análisis de la trayectoria personal de creación, en que se considera un grupo


de trabajos producidos entre 2000 y 2013; en ellos la auto-representación es
la tónica del camino poético. El espacio interior del hogar es muy importante,
pues en el ocurre la interpenetración del hacer cotidiano con el hacer artístico,
del hogar con el atelier. En el interior de la casa se descortina una “populación
de objetos” que traduce un sujeto. La casa se presenta todavía como tema,
por el uso múltiple de sus cosas y por medio de sus acciones, verbos escritos
en textos y pensados como imágenes. Tramo tal análisis con cuestiones de la
antropología, filosofía y historia de las mentalidades.
Palabras-clave: proceso de creación, casa, auto-representación
148 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Considerações iniciais
Entre 1967 e 1968, Richard Serra escreveu uma lista com 84 verbos de ação em seu
caderno de notas. A lista chamou a atenção de Rosalind Krauss (1998: 331), que ob-
servou: “Em vez de um inventário de formas, Serra registra uma relação de atitudes
comportamentais”. As formas não podem ser antecipadas em nossa percepção, sequer
imaginadas: são as ações que as determinam. A lista também não no assegura informa-
ções importantes ao pensamento visual de um escultor: escala, peso, quantidade de ma-
terial a ser usado. As múltiplas ações são potencializadas como respostas técnicas, mas
principalmente se imprimem como significantes na visualidade resultante. Há um forte
apelo ao devir, como se as ações inaugurassem um modo de formar, não a partir de uma
matéria específica, mas partindo da ação mesma de trabalhar. Trata-se, antes de tudo, e
mais concretamente, de uma lista de afazeres.
Essa lista foi base para a elaboração de uma similar à do artista, em 1996: registro
simples de ações envolvidas em meus trabalhos tridimensionais realizados até então.
Soldar, pintar, oxidar, trançar, costurar, entortar, enrolar, enfiar, colar, pregar, amarrar,
emparelhar, sobrepor, encostar, relacionar, repetir, esperar, substituir, interagir, socializar
- era um conjunto de 20 verbos heterogêneos entre si, indicando a transitoriedade dos pro-
cessos envolvidos. Naquela lista havia um olhar retrospectivo para a produção tridimen-
sional. Difere da lista de Richard Serra, pois primeiro houve a produção e depois a detec-
ção de ações. Isso permitiu pensá-las não como determinantes formais, mas como temas
importantes no percurso poético: instabilidade, efemeridade, peso, relação dinâmica com
o espaço. As últimas ações elencadas indicavam também o rumo conceitual do trabalho.
Pude detectar também procedimentos que singularizavam o fazer; um modo ain-
da incipiente de pensá-lo a partir de ações sobre materiais e formas. Uma antecipação
do que viria a conhecer depois: a dimensão dos conceitos operatórios como modo de
análise de um trabalho em processo. Segundo Rey (2002: 126), o sentido do trabalho
toma forma por meio de suas operações fundamentais. E as operações, mais do que pro-
cedimentos técnicos, “são operações do espírito, entendido, aqui, num sentido amplo:
viabilização de idéias, concretizações do pensamento”. A autora continua: “Cada pro-
cedimento instaurador da obra implica a operacionalização de um conceito. Por isso,
os nomeamos conceitos operatórios. (...) [Eles] permitem operar, isto é, realizar a obra
tanto no nível prático quanto no teórico”.
Atualmente, a lista pessoal de verbos ressurge, em outro contexto. Trata-se de uma
seleção de 60 verbos, como ações executadas na organização do espaço doméstico. No
entanto, tal lista diferencia-se da anterior porque consubstancia a realização de um traba-
lho instalacional, em que a palavra é utilizada como imagem. Essa lista não é percebida
enquanto puro devir das formas. Diferentemente da lista de Serra, ela não se reporta a
tempos realizados ou a fazer; são ações do presente.
A lista revela também a crescente abertura da poética para outros campos do sa-
ber em que a palavra e seu significado, bem como o ato de inventariar, são práticas
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 149

fundantes de seus discursos – como na prática literária e na etnográfica – e que retornam


para o trabalho artístico como imagem e conceito operatório visível.
Apresentadas em um espaço expositivo, as palavras, ao mesmo tempo em que com-
põem uma lista de afazeres, podem ser ainda uma espécie de “poema concreto”. Mas
antes de tudo, tal lista dá relevo às ações no interior da casa. O trabalho doméstico
presentifica essas ações, que evidenciam um jogo de espelhamento e interpenetração da
conduta criadora no atelier e na casa, já que ambos os espaços – quiçá os tempos - são
os mesmos.
A proposta deste e de outros trabalhos relaciona-se, portanto, com a casa, lugar de
habitação do sujeito, mas também lugar de trabalho e de produção artística. Este texto
busca iniciar uma reflexão, em que se salienta a casa como pano de fundo que emerge
na superfície das fundamentações poéticas, interpenetração de ações cotidianas e ações
artísticas. Analiso a trajetória pessoal de criação, elaborando um mapeamento de traba-
lhos produzidos entre 2000 e 2013, em que a questão da autorrepresentação torna-se a
tônica da trajetória poética e em cujo centro se coloca “a casa”.

A casa como campo a ser pesquisado


Compreender o que é uma casa vai muito além de um único domínio do saber. A casa
não é mero depósito de objetos, mas um complexo ponto no espaço/tempo pelo qual
passam infinitas acepções e modos de relação intersubjetiva, tendo força relacional e
simbólica. A casa é um lugar de mundos simbólicos compossíveis, (mesmo) no interior
de uma solidão compartilhada: espaço em que autorrepresentações são tramadas, sonha-
das, redesenhadas, deslocadas e postas em xeque, coabitando ou não com outros sujeitos
e suas identidades.
Um lugar habitado pela mesma pessoa durante um certo tempo esboça um retrato
(...) a partir dos objetos (presentes ou ausentes) e dos costumes que supõem. O jogo
das exclusões e das preferências, a disposição do mobiliário, a escolha dos materiais,
(...) tudo já compõe um ‘relato de vida’, mesmo antes que o dono da casa pronuncie a
mínima palavra. O olhar atento reconhece imediatamente a confusão dos fragmentos
do ‘romance familiar’, traço de uma encenação destinada a dar uma certa imagem de
si, mas também a confissão involuntária de uma maneira mais íntima de viver e sonhar.
(Giard, 1996: 204)
Em “A História da vida privada” (1989), Philipe Ariès e outros historiadores descre-
vem práticas de organização do ambiente doméstico e outras ações de cunho confessio-
nal que denotam a necessidade de constituição de um espaço para a solidão do indiví-
duo, desde o século XVII. A partir de adaptações espaciais e outras práticas do privado,
o indivíduo começa a produzir documentos (cadernos de notas, diários e cartas) e a
obter objetos (caixas com fechaduras, pequenos gabinetes) que mais são “lugares” onde
começa a guardar uma “cultura material” própria e a se perceber em sua singularidade,
ao mesmo tempo em que são resguardados seus papeis sociais. Ariès ainda comenta que
150 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

no século XX, o crescimento populacional urbano é tal que a casa passa a ser vista de
outro modo: espaço de proteção ao olhar do outro.
Luce Giard também está atenta a esse aspecto, escrevendo que o espaço doméstico
é onde alguém “se sente em paz”, fazendo-se o possível para a permanência em seu
interior e resguardando os limites entre o(s) morador (es) e o mundo. Mas é no espaço
doméstico que se faz um amplo espectro de ações que evidenciam o esforço de manu-
tenção da privacidade do indivíduo e ao mesmo tempo revelam o esforço de se construir
a socialização com outros grupos, num jogo de identidades pessoais e a coletividade.
Nesse jogo, a casa torna-se um universo de descobertas e transformações:
Só uma língua morta não sofre modificações, só a ausência de qualquer residente
respeita a ordem imóvel das coisas. A vida entretém e desloca, ela usa, quebra e refaz,
ela cria novas configurações de seres e objetos, através das práticas cotidianas dos vivos,
sempre semelhantes e diferentes. O espaço privado é aquela cidade ideal onde todos os
passantes teriam rostos de amados, onde as ruas são familiares e seguras, onde a arqui-
tetura interna pode ser modificada à vontade. (Giard, 1996: 207)
A casa é um sítio singular com o qual se pode pensar em uma “sociologia” dos ob-
jetos, pois é povoada de coleções; é onde também realizamos diversos gestos e ações,
repetitiva e minuciosamente, vivenciando identidades possíveis. Para Abraham Moles,
nessa “sociologia” percebe-se a submissão dos objetos ao efeito espaço-tempo, deter-
minando sua classificação em bens de consumo e bens duráveis, estes sobremaneira
interessantes, pois neles se percebe a presença do sujeito. Nos objetos de durabilidade
maior, o “tempo aparece aí como uma dimensão suplementar da variância das formas,
introduzindo pelo grau de desgaste, uma memória que os objetos trazem à percepção
do mundo” (Moles, 1981: 26).
O que se coloca aqui é como o universo da casa pode ser abordado por um artista, a
partir de seu fazer artístico. Como pensar sobre produções que têm (n)a casa o seu fun-
damento? Não seria interessante aproximar modos investigativos outros sobre o lugar,
os sujeitos e objetos que ele abriga?
A reflexão sobre o processo de criação faz aproximar o específico do campo prático
da arte a dimensões práticas de outras áreas do conhecimento, de modo a revelar, mesmo
na superfície do processo, a sua complexidade de instauração. E o liame que conecta tais
dimensões inicialmente distantes é um conceito operatório ativado pelo fazer artístico.
O método etnográfico, próprio da antropologia, é um desses pontos de contato. A
etnografia é a interação do pesquisador com sujeitos e situações de outro ambiente, em
que se deseja vivenciar, de perto e por certo tempo, determinados fatos e modos de vida,
distintos daqueles do próprio pesquisador. Nesse convívio, o pesquisador coleta dados
de interesse à sua pesquisa em observação direta das situações, em entrevistas, registros
visuais e sonoros, anotações pessoais.
É possível pensar em um morador da casa fazendo a etnografia de seu próprio habi-
tat? Como o artista realizaria, instado como um etnógrafo amador, o inventário e taxono-
mia de seus pertences? E como ele cambiaria o fazer etnográfico para o fazer artístico?
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 151

Gratton e Sheringham (2005: 10) pensam nisto ao considerarem o caráter projetual


de várias proposições artísticas desde o fim dos anos 1960, vendo o artista contempo-
râneo como “um não especialista que mescla subjetividade e objetividade...”. Para os
autores, o artista é quem “coleta, observa, classifica, enumera, compara [;] quem é ri-
goroso e disciplinado e ao mesmo tempo humorado e irreverente [;] o praticante do que
poderíamos chamar de inter-in-disciplinaridade”. Outros autores têm aproximado arte
contemporânea e antropologia por seus modos de operação (Hal Foster, Susan Hiller,
José António Fernandes Dias). Foster propõe um paradigma do “artista como etnógrafo”
(1996), pensando que nos últimos 35 anos, o artista tem visto e escutado seu entorno
como etnógrafo, mas revelando algo que faltaria ao antropólogo: a autorreflexividade,
ação que revela o sujeito que está por detrás de seu interesse pelo entorno. O ponto a
se subverter aqui, de certo modo, é que no caso de minha proposta de fazer e de pensar
o fazer pessoal, enquanto “pseudo-etnógrafa”, não saio em busca de outros sítios, mas
percebo a riqueza de fenômenos no interior de minha própria casa.

Produções caseiras
Considero aqui o recorte temporal de pouco mais de uma década (de 2000 a 2013) para
conectar trabalhos a partir da casa – espaço de interpenetração de morada e atelier.
As produções em exame são objetos e instalações de forte apelo gráfico. Para além da
representação do sujeito por um corpo, alude-se a um lugar para a acomodação dessa
representação, bem como a referência aos seus hábitos e costumes particulares. É nesse
momento que o espaço doméstico adquire outro estatuto, a partir de uma consciência
maior do que a “casa” significa em meu processo de criação.
Há 22 anos vivo em constantes mudanças de/em domicílio. Mudanças de endere-
ço, viagens constantes, hóspede em espaços adaptados, manutenção de duas casas em
regiões diferentes por duas vezes em um longo período de tempo, outros em minha
casa enquanto estou fora, reformas estruturais, anfitriã de viajantes de curtas e longas
temporadas. Considero-me relativamente nômade. Tais movimentações implicam um
sem-número de ações no trato da organização da casa que podem passar despercebidas
pelo(s) outro(s). Isto porque há um grau de invisibilidade dessas ações por conta mesmo
de suas recorrências, em que o “fazer” compete com o “desfazer”; os objetos, as ações e
os sujeitos se entrelaçam em um campo entrópico, ou mesmo atópico.
Percebo que a questão da casa passa a atravessar a produção pessoal, trazendo no-
vos dados e fazendo ressignificar a produção autorrepresentacional pela autorreferência.
Assim, valho-me frequentemente de objetos de uso doméstico: louças, roupas e móveis
constituem modos de alusão a minha singularidade como sujeito. A notável quantifi-
cação dos objetos alude, por sua vez, ao trabalho que se realiza no interior da casa. A
própria casa é usada como suporte físico para a realização de ensaios fotográficos, sendo
ela mesma outro modo de autorreferência, percebida indicialmente como fundo da cena
fotográfica. Posso pensar a casa como 1) lugar desejado, 2) nos objetos domésticos que
participam como matrizes objetuais em objetos e instalações, 3) e por ações próprias da
152 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

organização doméstica. A poética efetua o cruzamento do lugar expositivo com o lugar


do desejo, da pluralidade semântica que os objetos passam a ter e pela transitividade das
ações procedurais, o que torna os objetos e instalações “situações”.

Figura 1: Mapeamento da produção 2000-2013.

No entanto, essa mudança de eixo na produção autorrepresentacional tem suas ori-


gens em práticas passadas, das quais destaco 1) o fato de nunca haver tido um espaço
diferenciado como atelier. Minha produção sempre se fez nas dependências comparti-
lhadas da casa e nos intervalos de uso de lugares e de objetos. De certa maneira, posso
pensá-la como se dando sempre ao olhar do(s) outro(s) habitante(s) da habitação. Pro-
cedimentos e escolhas eram partilhados num espaço tensivo entre o público e o privado,
no interior de um espaço não tão neutro assim. Em função dessa tensão público/privado,
2) o arranjo dos objetos na construção poética propõe situações de equilíbrio precário,
onde há a iminência da queda e da quebra de objetos.
Mesmo que organize o espaço doméstico conforme os ditos de Philipe Ariès sobre a
especialização dos aposentos e da segregação de móveis, percebo que o espaço do ate-
lier não obedece aos mesmos critérios de organização. Quaisquer lugares da casa podem
abrigar trabalhos em processo; quaisquer objetos podem ser motivos composicionais. O
que ocorre é uma intensa interpenetração de realidades distintas: a realidade cotidiana e
a ação simbólica imiscuída nesta realidade. É comum o uso múltiplo de objetos – matri-
zes que podem ser usadas normalmente no espaço doméstico, apresentando-se também
em uma instalação. Um empilhamento desordenado de pratos tanto pode ser o resultado
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 153

de um ato doméstico prosaico quanto percebido como composição plástica. A mesa da


cozinha pode abrigar um bastidor de bordado ou uma porta se transforma em cavalete,
desestabilizando o “lugar comum” das coisas.
Pergunto-me quando um espaço íntimo estará finalmente organizado. A organização
doméstica pode ser pensada no sem fim da processualidade artística ou no sem fim da
construção identitária? Será o espaço íntimo um correlato do espaço interior de uma
subjetividade?
A lida com objetos de uso doméstico tenta engendrar, no trabalho artístico, reflexões
sobre a instabilidade dessas organizações domésticas, assim como a instabilidade das
relações humanas. Pratos, copos, taças, garfos, vidros, roupas e móveis me significam a
fragilidade no estabelecimento dessas relações. Mesmo que os elementos se encostem
simples e instavelmente um no outro - persiste um rigor construtivo nas montagens,
tentativa de estabelecer ordem e simetria em objetos que são frágeis ao contato manual.
A movimentação do(s) sujeito(s) no imóvel traduz bem o constante desafio em meu
processo de arranjar e rearranjar as coisas no espaço privado, e nesse modus vivendi,
percebo que enlaço nele minhas identidades e meu percurso criativo.

Considerações finais
A não especialização do espaço de atelier no interior da casa pode ser um traço cultural
de épocas em que se vinculava a condição da mulher ao trabalho doméstico. Embora tal
situação nas sociedades contemporâneas difira bastantemente desse quadro, a vincula-
ção da mulher ao espaço interior doméstico permanece no senso comum. Este aspecto
e a condição biológica da mulher são direcionamentos possíveis para se pensar a ma-
nutenção desta situação pessoal: a de minha fixação à casa pela ausência de um espaço
específico para o atelier. Esse lugar tornou-se espaço cumulativo das funções de morada,
segurança e privacidade, guarda de objetos e atelier, onde repousam trabalhos em latên-
cia ao lado de fragmentos de trabalhos já realizados.
Essa mistura de “territórios”, por sua vez, contaminou o fazer artístico com diversas
operações tipicamente cotidianas feitas com as coisas: empilhar, dobrar, lavar, passar e
outra digna de atenção: colecionar, e suas ações correlatas – classificar e arquivar. De
certo modo, organizamos nossos ambientes domésticos como arquivos, cujo critério
de organização ocorre a partir da especialização de um aposento ou móvel. Também
construímos listas, relações de objetos, produzindo dados, enfim, que se assemelham
relativamente aos procedimentos metodológicos de uma pesquisa etnográfica.
A partir dessas considerações é que percebo um novo modo de produzir, conectando
a casa à palavra escrita, talvez por ser ali também que eu escreva, desenhe, leia e prepare
aulas. O trabalho da lista parece abrir a quarta vertente de percepção da casa, além dos
outros modos (uso de objetos, a construção de uma casa simbólica no espaço expositivo,
a performatividade de ações domésticas). A quarta vertente é a listagem de ações pos-
síveis na organização do espaço doméstico e a apresentação dessa lista como trabalho
autônomo no espaço expositivo.
154 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Nesse contexto “inter-in-disciplinar” de análise, tomo minha casa como o objeto,


dentro do qual se descortina uma “população de objetos” que traduzem um sujeito.
As considerações iniciadas revelam a interpenetração das operações do processo de
criação e as operações cotidianas, mostrando, ao mesmo tempo, a relação arte/vida
que funda a poética.

Referências
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Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 155

A demarcação de territórios
de criação entre
compositor e intérprete

Cristiano Sousa dos Santos


UNIR – [email protected]

Para a música Ocidental institucionalizada na academia, compositor e intér-


prete são indivíduos distintos, responsáveis por fases diferentes na cadeia de
produção musical, cada um com seu processo e objeto próprios. Ao composi-
tor caberia a gênese da peça, sua elaboração e registro em notação musical
que, na continuidade, seria lida, interpretada e executada pelo instrumentista.
A tensão aparece quando há a tentativa de controle por parte do compositor
sobre o evento total, dando diretrizes de performance de sua obra e interfe-
rindo no processo que seria “do outro”. O mesmo poderia ser dito do intér-
prete-instrumentista que não respeitaria seu limite de atuação ao interferir na
constituição e identidade da obra alheia.
Palavras-chave: Música; Autoria; Compositor; Performer

For music institutionalized in Western academia, composer and performer are


distinct individuals, responsible for different stages in the chain of music pro-
duction, each with its own process and object. The composer would fit the ge-
nesis of the piece, its preparation and recording of musical notation that at the
continuity would be read, interpreted and executed by the instrumentalist. The
tension appears when there is attempting of control by the composer on the
total event, giving guidelines for performance of his work and interfering with
the process that would be “the other.” The same could be said of the performer-
-instrumentalist who would not respect the limits of their role in interfering with
the formation and identity of the work of others.
Keywords: Music; Authorship; Composer; Performer
156 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Situação fundiária
A interpretação musical – conjunto de decisões e correlações sobre elementos como
tempo, timbre, dinâmica e articulação em uma performance – constitui no principal sítio
criativo arrendado ao instrumentista reconhecido pela música erudita Ocidental. As ex-
ceções – ocorrências onde o intérprete-instrumentista é também compositor – advém em
sua maioria da interseção com a música popular e experimental. Para que o instrumentis-
ta tenha acesso ao material que, após processamento, resultará no seu produto artístico, é
necessário que haja contato por meio de registro da obra composta. Tradicionalmente, a
música erudita privilegia o acesso mediado pela notação ortocrônica, ou partitura, muito
embora existam outros tipos de notação, ou mesmo o acesso à obra por performances e
seus registros – em áudio ou vídeo. Por outro lado, as influências de diretrizes teóricas
com ênfase na fidelidade não apenas ao texto musical do compositor, mas também ao
seu contexto artístico, ainda se fazem presentes em suas estruturas disciplinares.
Do outro lado da cerca, o compositor anseia pela concretização física de sua obra
em uma performance, mesmo que este empreendimento não seja imprescindível para
a declaração de sua existência. Excetuando os casos onde o próprio compositor atua
como intérprete-instrumentista de sua obra ou quando esta obra é performada por meio
eletrônico, haverá a dependência de uma figura estranha para que haja a sonorização.
Portanto, ao final do processo, após a constituição do material, da forma e de seu regis-
tro escritural por parte do compositor, a interferência do intérprete – por vezes alheio e
despreocupado com o universo sonoro em questão – poderá deturpar a intenção inicial
do outro ao promover e enfatizar elementos não previstos, ou ignorando relações caras
à natureza da obra.
É neste contexto que, ao buscar a delimitação de competências e direitos artísticos,
na demarcação de seus respectivos terrenos “próprios” de criação, que tanto compositor
quanto intérprete-instrumentista conduzirão a prática musical à uma divisão de trabalho
hiper-específica, onde a especialidade e o métier determinarão o horizonte do possível.
Se há casos onde a complementaridade entre competências artísticas resultou em par-
cerias antológicas – como são os casos de Andrés Segovia e Manuel Ponce, e de Julian
Bream e William Walton, no universo violonístico – o desejo pelo estabelecimento de
controle total e emancipação autoral, levou “um” ao extermínio do “outro”.

Das Propriedades
A escritura foi incorporada ao processo composicional como componente representante
da obra em um processo que poderia ser desenhado da função como ferramenta de au-
xílio à memória na sua versão rudimentária dos neumas, passando a registro de obra no
Renascimento, esboço da obra no período Barroco, aproximação com a obra no Classi-
cismo, e, finalmente, a fotografia da própria obra no período Romântico (BUJIC, 1993;
BUTT, 2002). Com os modernistas, o detalhamento escritural se torna necessário para
que não aconteçam desvios interpretativos. Entretanto, o desejo de controle serial do
ataque e da dinâmica não são obtidos com os instrumentistas convencionais e é neste
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 157

sentido que a música eletrônica poupará o compositor da imprecisão humana, dando


a emancipação desejada à escritura, onde aquilo que é executado está mais próximo
daquilo que foi idealizado:
“Primeiramente, a composição eletroacústica poupará ao compositor serial a impre-
cisão da execução instrumental [grifo do autor], diante da qual ele se via forçado a fazer
concessões por vezes inadmissíveis com relação ao rigor serial. Estruturação serial e
realização acústica estariam assim estreitamente vinculadas, seu processo composicio-
nal descartaria a presença importuna do intérprete, ameaça constante para um perfeito
emprego dos valores pré-concebidos.” (MENEZES, 2009, p. 33).
A determinação total da escritura traria independência à obra não apenas em relação
ao intérprete, mas também em relação ao próprio compositor, finalizando um estágio de
emancipação e autonomia iniciado no século XIX. A música eletrônica, com a possibili-
dade de criação sonora a partir de seus componentes mais básicos, daria ao compositor o
controle absoluto do seu processo musical, e, com a abolição do intérprete, seria em sua
fase inicial a principal oposição ao indeterminismo. Em contraposição à racionalidade e
controle da fase inicial da música eletrônica, a imprecisão do intérprete é incorpora ao
próprio processo da obra por outra corrente composicional. Importante notar que esta
pseudo liberdade não dá autonomia de criação ao performer, mas apenas se oportuniza
de uma debilidade caraterística do processo:
“É, pois, a própria estrutura que se tornará aproximativa – constituindo-se a chama-
da técnica de grupos um instrumento muito eficaz aos olhos dos compositores – , em
que o intérprete reencontrará, enfim, um maior grau de liberdade gestual. É, sobretudo,
às características de conjunto que ele deverá dirigir então sua atenção. Sua inelutável
imprecisão será, pois, incorporada pela estrutura das obras. Dessa forma, a determinação
excessiva dos detalhes – cujo resultado se apresentava por fim como certa indetermi-
nação proveniente das dificuldades insuperáveis quando de sua execução – dá lugar ao
nascimento das formas aleatórias, circunstância propícia à chegada de um personagem
como John Cage na Europa, cuja obra reservava, como se sabe, um lugar fundamental
ao papel do acaso e do imprevisto.” (ibid, p. 37).
Se a partir do século XIX a música antiga passa a integrar o repertório das salas de
concerto – até este período, havia uma rotatividade e execução das peças contemporâ-
neas, apesar de Mozart já ter arranjado obras de Bach e Händel – , fenômeno marcado
pelo resgate de J. S. Bach por Mendelssohn (LAWSON; STOWELL, 2004), a qualidade
ou tipo de abordagem deste processo assumiria grau de desprendimento a ser contes-
tado durante o decorrer do século seguinte por teorias de performance de repertório
histórico. A ideia de evocar um compositor do passado é emparelhada por John Butt
(2002) ao desejo de forja de uma historiografia composicional onde, na linha traçada,
nomes contemporâneos seriam uma continuidade de nomes consagrados. A “interpreta-
ção” empreendida por Mendelssohn, entretanto, caracterizou-se por rearranjos da peça
original, o que para o movimento de música historicamente informada de hoje seria
um ato de imperícia. É a partir, portanto, da publicação de 1915 de Arnold Dolmetsch,
158 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

citado como pioneiro por Lawson e Stowell (2004), que temos diretrizes metodológicas
que balizariam as abordagens dos intérpretes do dia em relação ao repertório antigo. O
conteúdo destas publicações não está apenas carregado de dados relativos ao contexto
performático de determinada época, mas trazia principalmente a ratificação do intérprete
como meio, como artífice, ferramenta a serviço de uma verdade histórica.
Nas últimas três décadas, o debate em torno do conceito de autenticidade tem ocu-
pado a cena da performance de música antiga e constituiu-se em aspecto definidor da
qualidade do performer – em seu álbum dedicado à obra para alaúde de J. S. Bach,
Sharon Isbin (2003) justifica sua abordagem ao violão como autêntica pelo fato de que
o próprio compositor costumava realizar transcrições para instrumentos diferentes. De
acordo com John Butt (2003), Stephen Davies (2003), o intérprete seria considerado
autêntico não por ser original ou inovador frente ao repertório utilizado, mas por sua
capacidade de emular contextos sonoros e intenções de um outro indivíduo, o composi-
tor. Para que isto seja possível, o intérprete deve se portar como um “arqueólogo” que,
por meio de pesquisas musicológicas, tentaria montar um quebra-cabeça da sonoridade
original. Uma importante contraposição a esta premissa vem de Authenticities, de Peter
Kivy (1995), onde são apresentados três tipos de fidelização ligados ao compositor, e
um tipo que seria próprio do intérprete. Na prática, Kivy parece procurar espaço para le-
gitimação das interpretações não ortodoxas, muitas vezes consideradas “incorretas” por
não se adequarem aos termos colocados por pesquisas musicológicas ou pelas diretrizes
do compositor, admitindo a produção desviante de uma gama de artistas que não encon-
tram resguardo teórico na ideia tradicional de fidelidade. Por outro lado, em resposta
às críticas de que a noção de autenticidade não faria mais parte do universo da prática
musical, Kivy (2007) argumenta que o termo foi substituído por eufemismos como “per-
formance historicamente informada”. Este episódio demonstra não apenas que o desejo
por autenticidade está ainda presente, apesar de camuflado, mas que a ortodoxia musical
não se autodeclara.
É com Richard Taruskin (1995), entretanto, em seu Text and Act, que a adoção do
conceito de autenticidade toma sua mais qualificada crítica, associando-a ao medo por
arriscar um posicionamento crítico, ou realmente “autêntico”. Este desejo de impar-
cialidade leva à criação de leis que diminuirão seus objetos de estudo, o que garantirá
o domínio e a autoridade dos resultados obtidos. O resultado é o artista intérprete-ins-
trumentista escondido atrás de uma racionalização musicológica que será efetivada por
dois aspectos típicos do modernismo: historicismo e autonomia da obra de arte.
Outro sinal do estreitamento do universo de atuação do intérprete-instrumentista pode
ser visualizado nas demandas por habilidades em leitura de partitura e respostas instru-
mentais rápidas – especialmente aos músicos ligados à orquestras – , bem como na grada-
tiva dedicação a apenas um instrumento durante o século XIX, em detrimento da prática
de grupos instrumentais, fenômenos indicados por António Vasconselos (2002). Ambos
seriam demonstrações da profissionalização do ofício instrumental e, em nossa análise,
ao lado do aspecto teórico, resultantes da gênese da Performance como disciplina.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 159

Dos casos citados onde intérprete-instrumentista e compositor trabalharam de ma-


neira colaborativa, a divisão entre competências do sensível é óbvia. O conhecedor
das possibilidades sonoras do instrumento indica aquilo que não funciona para que o
compositor faça reparos e, ao final do processo, elabora os mecanismos mecânicos que
resultarão na sonoridade desejada da obra pelo instrumento. Temos aqui o processo
“próprio” do instrumentista: a digitação, ou o conjunto de decisões relativas às escolhas
dos dedos. É a digitação que determinará em última instância os aspectos – dinâmica,
timbre, articulação e tempo – que constituem a interpretação musical, produto da criação
do instrumentista que não compõe.

Horizonte pequeno
É incontestável a legitimidade artística da produção resultante de ambos os territórios.
Particularmente do lado do performer, a ideia de interpretação promoveu uma multipli-
cidade de abordagens no repertório novo e antigo, o que permitiu a atomização tanto dos
procedimentos quanto das discussões teóricas. Entretanto, se olharmos por outro viés,
tomando como parâmetro não mais as regras definidas dentro destas práticas, tornadas
agora disciplinas, mas escopos teóricos abrangentes, iremos notar o anacronismo da di-
visão do trabalho artístico, onde o direito à criação é dado apenas ao especialista. Assim,
admitindo a proposição pós-moderna – onde o congelamento das práticas é rejeitado,
em prol das invenções de novos jogos (NASCIMENTO, 2011), da livre utilização de
pressupostos e ferramentas, do uso não linear dos dados históricos, do não compromisso
com a verdade ou com o sabido, em direção à criação selvagem e não preconcebida – é
que vinculamos a tensão autoral entre compositor e intérprete ao que Jacques Ranciére
(2009a, 2009b) chamou de modernitarismo – as práticas modernistas tornadas estáticas
– tutelado por questões normativas e, portanto, sob o regime representativo de arte.

Referências
BUJIC, Bojan. Notation and Realization: Musical Performance in Historical Perspective. p. 129-
140. In KRAUSZ, Michael (ed.). The interpretation of music: philosophical essays. New York:
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NASCIMENTO, João Paulo Costa do. Abordagens do pós-moderno em música: a incredulidade
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RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: Estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto.
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VASCONSELOS, António Ângelo. O conservatório de música: professores, organização e políti-
cas. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 2002.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 161

Um autor-diretor e um lugar:
a questão da autoria no
documentário

Daniela Zanetti
DCS/UFES – [email protected]

O artigo aborda a questão da autoria no documentário a partir da análise de


dois filmes de um mesmo diretor, morador de Ceilândia, cidade-satélite de
Brasília. O estudo busca identificar recorrências estilísticas e se os documen-
tários trazem marcas autorais que de alguma forma se vinculam ao lugar so-
bre o qual se fala e a partir do qual se enuncia.
Palavras-chave: documentário, autoria, periferias.

El artículo aborda la cuestión de la autoría en el cine documental a partir del


análisis de dos películas del mismo director, residente de Ceilândia, ciudad
satélite de Brasília. El estudio busca identificar recurrencias estilísticas y si los
documentales llevan marcas de autor que de alguna manera están relaciona-
dos con el lugar del que se habla y del que se expresa.
Palabras clave: documentales, autoría, periferias.
162 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Introdução
Este trabalho identifica recorrências estilísticas na obra de um diretor cinematográfico
que, sob a perspectiva do lugar de enunciação e de um campo de produção audiovisual
emergente, vincula-se às periferias urbanas brasileiras. O objetivo é examinar quais as-
pectos dos filmes estudados trazem marcas autorais que de alguma forma se vinculam ao
lugar que é, ao mesmo tempo, tema e cenário das narrativas, e lugar de origem do diretor
e dos personagens retratados. Parte-se do pressuposto de que, desde o início dos anos
2000, houve um processo de formação de novos cineastas responsáveis pela constru-
ção imagética das periferias “por elas mesmas”, resultando numa produção audiovisual
mais heterogênea e talvez mais “emancipada” no que se refere ao desenvolvimento de
concepções autorais de realização audiovisual. Trata-se de uma produção audiovisual
que se vincula às periferias não somente no que se refere aos temas em foco, mas essen-
cialmente à instância da produção, com realizadores (diretores, roteiristas, produtores)
que se declaram como originários das periferias, pertencentes a este contexto social
urbano. Ainda que se possa considerar o chamado “cinemas das periferias” uma espécie
de “marca”, ou uma denominação vaga que talvez pouco informe sobre as obras sob
esta categorização, toma-se como pressuposto o fato de haver realizadores que de algum
modo se reconhecem como sendo das periferias, ao mesmo tempo que toma-se a perife-
ria como elemento aglutinador e, portanto, central na narrativa.
Para tanto, são analisados dois filmes de um mesmo diretor: Rap, o Canto da Cei-
lândia (2005, 15’) e A cidade é uma só? (2011, 52’), de Adirley Queirós, morador de
Ceilândia, cidade-satélite de Brasília. São filmes que ilustram bem a heterogeneidade
de um cinema que, sob a perspectiva temática e de inserção no campo cinematográfico,
dedica-se a uma reflexão sobre indivíduos e a cidade a partir de suas comunidades. São
filmes premiados e que caracterizam uma nova safra de produções brasileiras, exibidas
em festivais e salas de cinema para um público mais amplo e diversificado, alcançando
visibilidade para além dos circuitos restritos dos chamados festivais de “cinema das pe-
riferias”. Ao mesmo, tempo deslocam seu foco para a violência simbólica do espaço ur-
bano, utilizando imagens dos moradores e dos espaços das periferias para narrar episó-
dios do cotidiano e re-contar fatos históricos relativos à própria configuração da cidade.

Autoria no documentário
A questão da autoria em documentários pressupõe a observação de possíveis homo-
geneidades estilísticas, de marcas identificáveis nas obras de um mesmo diretor, bem
como a recorrência de aspectos relativos ao conteúdo e à forma, esta vinculada à lin-
guagem cinematográfica (Serafim, 2009). Mesmo tendo como pressuposto que um filme
é resultado de um trabalho de equipe, de um coletivo, e que também está vinculado
a um campo de produção quase sempre industrial, considera-se que é possível haver
elementos nas obras que remetem à figura do autor, como opções estéticas, modos de
construção retórica, recursos de mise en scène, entre outros, e que podem ser considera-
dos marcas autorais. Não é uma questão apenas de perspectiva, mas também de estilo. O
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 163

documentário, antes der tudo, é definido pela intenção social do autor, que se manifesta
nos elementos de indexação na escrita do filme, e seu ponto de vista tem relação direta
com a voz que emerge da obra.
Segundo Nichols (1991, 2005), como qualquer outro discurso do real, o documen-
tário conserva um vestígio de responsabilidade em descrever e interpretar o mundo da
experiência coletiva. A idéia é alcançar, dominar um argumento em relação ao mundo
histórico. Nesse processo, sons e imagens criam um vínculo com o mundo que todos
nós compartilhamos. É papel do documentário fazer asserções, construir argumentos e
pontos de vista sobre este mundo sócio-histórico e, para tanto, também utiliza cenários
e personagens, ainda que estes pertençam a uma dimensão do mundo concreto. Os per-
sonagens são tratados como atores sociais e, contrariando a crença no predomínio dos
“acasos” em documentários, este gênero normalmente envolve algum tipo de encenação
(Ramos, 2008). O documentário pode ser analisado a partir do ponto de vista do diretor,
do texto e também do espectador. No que se refere ao campo da direção, fala-se da pre-
sença de um sujeito condutor da construção retórica, mas também de autoria. Não é uma
questão apenas de perspectiva, mas também de estilo. O documentário, antes der tudo, é
definido pela intenção social do autor, que se manifesta nos elementos de indexação na
escrita do filme (Ramos, 2008), e seu ponto de vista tem relação direta com a voz que
emerge da obra. O texto é o material fílmico em si, e diz respeito aos modos de repre-
sentação que, em última instância, são formas de organização dos textos em relação a
certas características recorrentes ou convenções. Um modo de representação envolve,
por exemplo, questões de autoridade e de credibilidade do discurso. Segundo Nichols
(1991), elementos de narrativa (como uma forma particular de discurso) e aspectos do
realismo (como um estilo representacional) informam sobre a lógica do documentário
e a economia do texto. Para o estudo dos filmes em foco, são consideradas as seguintes
categorias de análise: i) a construção dos personagens e o lugar que ocupam na nar-
rativa; ii) a fala dos personagens, a composição de seus discursos; e iii) a relação que
estabelecem com a história, a memória, por meio dos registros audiovisuais, os relatos
oficiais e os relatos individuais.

Marcas de um lugar, marcas de um autor


Rap, o canto da Ceilândia foi exibido em diversos festivais entre 2005 e 2006, receben-
do os prêmios de Melhor Curta do Júri Oficial e de Melhor Curta do Júri Popular no Fes-
tival de Brasília de 2005. Trata do surgimento da cidade de Ceilândia a partir do ponto
de vista de quatro cantores de rap locais: Marquim (Tropa de Elite), X (Câmbio Negro),
Japão (Viela 17) e Jamaika (Antídoto). Mostra a trajetória desses artistas no universo
da música e, em paralelo, resgata o processo de construção da cidade onde moram. Es-
ses são convocados a refletir sobre a intersecção entre violência e isolamento social ao
resgatarem a memória da comunidade. O fio condutor do documentário, portanto, está
nos depoimentos dos rappers.
164 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Este curta-metragem segue um formato próximo ao da reportagem. Na edição, al-


ternam-se as entrevistas com imagens de moradores, casas, ruas e comércios da região,
compondo o “cenário” do qual se fala e a partir do qual se fala. Considerando as cate-
gorias sugeridas por Nichols (1991, 2005), na obra prevalece o modo interativo de pro-
dução documentária, pois o diretor, embora não apareça no vídeo, traz uma perspectiva
de engajamento com o universo por ele registrado. Imagens de arquivo sobre a história
da cidade também reforçam a condução de um argumento, mas sem a necessidade de se
recorrer à voz over dos documentários expositivos. As imagens de arquivo funcionam
como constatação de um fato passado e os depoimentos ajudam a compor um texto
homogêneo, mantendo uma continuidade retórica e enfatizando a impressão de obje-
tividade, o que é mais característico dos documentários expositivos. Na trilha sonora,
ouvem-se as músicas cantadas pelo próprio DJ Jamaika, cujas letras funcionam como
uma espécie de extensão das falas dos entrevistados, reforçando a “mensagem” do docu-
mentário. A primeira parte do filme trata basicamente da origem de Ceilândia. A fala de
um dos rappers é colocada na introdução, juntamente com imagens em plano aberto da
cidade. Os depoimentos dos rappers rememoram o processo de formação de Ceilândia,
que surge a partir da Campanha de Erradicação de Invasões nos anos 70. As fotografias
antigas revelam o processo de “transferência” dos moradores (“erradicação de invaso-
res”, segundo a legenda de uma das fotos): caminhões transportando mudanças, cons-
truções de novas casas (“barracos”), pessoas carregando latas d’água. Os depoimentos
ressaltam as condições precárias do local para onde foram transferidas as pessoas na
época. O discurso enfatiza o fato da população ter sido “jogada” para Ceilândia, “expul-
sa” de Brasília, e os entrevistados ressaltam que foram seus pais, vindos do Nordeste,
que ajudaram a construir o Plano Piloto de Brasília.
Num segundo momento, o foco do documentário passa a ser a cultura hip hop em si
e o universo desses artistas representantes do rap brasiliense. Segundo eles, a realidade
não pode ser maquiada e o rap canta a realidade como é, falando da violência e dos
problemas da periferia. A música também contribui para o fortalecimento de uma iden-
tidade coletiva: além de todos integrarem o mesmo movimento musical e defenderem
causas parecidas, também são moradores da mesma comunidade. Esses aspectos em
comum são agregadores. O movimento, então, funciona como instrumento de autovalo-
rização. Os artistas se consideram “ceilandenses” e se reconhecem como os primeiros a
“levantarem a bandeira” da Ceilândia, defendendo a idéia de que a cidade pode ser um
lugar bom para se viver. É através da vida artística que também conseguiram se estabe-
lecer profissionalmente. A música lhes proporciona certo reconhecimento e legitimidade
no campo artístico. Outro tema abordado é a forma como lidam com o preconceito, pois
são artistas negros, de origem pobre, representantes do movimento hip hop e moradores
de uma periferia que sempre foi um lugar associado à marginalidade, à criminalidade,
à violência. Esse tipo de fala demarca espaços e identidades, quase estabelecendo um
antagonismo entre o “nós” (os moradores da periferia) e o “eles” (os que não perten-
cem a ela). Por isso, não se consideram brasilienses, mas sim ceilandenses, “autênticos”
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 165

representantes da periferia: “Brasília? Um lugar onde se separou pobres dos ricos. Um


muro que trouxe preconceitos. Quantos daqui estão na universidade de Brasília? Pou-
cos”. afirma Jamaika. Contudo, ainda pela voz dos rappers, o discurso inicial de viti-
mização, do sujeito oprimido, vai dando lugar, ao longo da narrativa, a um discurso de
força, de auto-afirmação e de valorização de um certo ethos, que, no caso dos entrevista-
dos, é perpassado pelo hip hop, um movimento musical e cultural altamente codificado,
com linguagem, modo de se vestir, gosto musical, opções de entretenimento e consumo
próprios deste universo. Ser morador de Ceilândia, de maneira similar, implica em fazer
parte de um coletivo associado às idéias de discriminação e de “falta” (de condições
materiais, de estrutura, de benefícios), mas também de identificação – com um estilo
musical, uma grupo social, um modo de vida e o próprio espaço periférico.
O projeto do documentário A cidade é uma só? foi o vencedor do Edital Brasília 50
anos, do Ministério da Cultura, e sua realização teve co-produção da Empresa Brasil de
Comunicação (EBC) e do Ministério da Cultura. Foi exibido na TV Brasil e circulou
por diversos festivais, conquistando o Prêmio da Crítica na Mostra de Tiradentes (2012)
e a Menção Honrosa na Semana dos Realizadores (2011). Nessa obra, a cidade é vista,
comentada, vivenciada a partir de três personagens que relatam suas experiências como
moradores da periferia de Brasília, sendo que apenas um deles “interpreta” a si mesmo:
Nancy Araújo uma cantora popular que relembra o processo de remoção de cerca de
80 mil pessoas de Brasília para uma área periférica, distante do Plano Piloto. Os outros
dois se fazem passar por Zé Antônio, um corretor de imóveis que atua nas periferias do
Distrito Federal, e seu cunhado Dildu, um faxineiro que se candidata a vereador. Ini-
cialmente, o filme trata das origens de Ceilândia por meio dos depoimentos da cantora
Nancy, que vivenciou em sua infância a Campanha de Erradicação de Invasões (CEI)
ocorrida nos anos 70 em Brasília. Ela representaria o sujeito histórico, responsável pelos
relatos diretos sobre suas experiências e sua relação com o tempo e o espaço “documen-
tado”. Sua trajetória se confunde coma a da cidade, e seu discurso é calcado na ideia de
exclusão, de não-pertencimento ao Plano Piloto de Brasília, ou seja, a região central da
cidade. Os outros dois personagens principais são ao mesmo tempo sujeitos do mundo
histórico e personagens que atuam para as câmeras. São, de fato, moradores de Ceilân-
dia, mas interpretam personagens ficcionais criados por eles mesmos.
Ainda tomando como base os modos narrativos propostos por Nichols (1991, 2005),
a obra mescla os modelos interativo e reflexivo, pois se constrói a partir de uma hibri-
dização dos campos da ficção e do documentário. Seria um tipo de formulação “mista”,
que não diz respeito a uma estratégia discursiva que guardaria em si um problema ético
no uso das imagens, mas designa, por outro lado, obras documentais que utilizam certos
artifícios ficcionais, como a criação de personagens. Tal estratégia contribui para que
o documentário possa ser considerado reflexivo, pois é o significante que está sendo
relativizado, ao invés de ocupar um lugar pré-determinado. O conhecimento acerca da
realidade é perpassado pela dúvida com relação à autenticidade dos personagens e das
situações representadas.
166 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

O que A cidade é uma só? coloca em evidência não é apenas a questão de se


haver uma cidade “partida”, uma divisão social implícita nesse cenário e um processo de
exclusão, bastante comum nas grandes metrópoles brasileiras. Com as estratégias nar-
rativas utilizadas e a escolha por um modo reflexivo para se tratar deste tema por meio
da história de uma cidade de periferia, o documentário chama a atenção também para
o fato de que os processos históricos se organizam a partir das apropriações e re-apro-
priações dos discursos e dos registros históricos formais. O discurso oficial é apropriado
e reelaborado pelos personagens. Em Rap, o canto da Ceilândia, os atores sociais se
representam a si mesmos – ao pelo menos o fazem a partir do modo de representação
adotado –, e tanto os relatos históricos como as imagens de arquivo funcionam como
dispositivos de vinculação a uma memória coletiva compartilhada. As fotografias pas-
sam a ser utilizadas como objetos de “comprovação” de um fato histórico, articuladas
com um discurso que se propõe a justificar a situação no tempo presente: em síntese, as
imagens das famílias e seus pertences sendo transportadas em caminhões, como parte
do processo de remoção. As imagens são incorporadas ao discurso de segregação so-
cial que está na essência do conjunto de vozes do documentário, incluindo as músicas
dos rappers da região, que de certo modo contribuem para organizar um discurso sobre
Ceilândia. A relação com o passado, nesse sentido, se faz também pela música, que, sob
certa perspectiva, também funcionaria como um documento.
Em A cidade é uma só? a lógica do arquivo como documento de comprovação
é subvertida. As vozes do documentário, ao se referirem às imagens, à música, a um
suposto registro audiovisual, colocam sob suspeita a própria noção de arquivo como
documento, uma vez que se “revelam” tanto os processos de criação como de descons-
trução desses documentos, e sua aura de verdade, de comprovação de um dado histórico,
se desfaz. E isso, em parte, se deve à própria construção dos personagens e da criação
de situações que na maioria das vezes são fictícias, como por exemplo a campanha
política de Dildu, filiado a um partido fictício. Desse modo, há um dispositivo criado
para simular situações que por vezes também coloca em jogo a própria visão que se
tem das periferias. Desse modo, questiona justamente o “poder de verdade” instituído
pelo conceito stricto senso de história ao propor uma espécie de colagem de fragmentos
históricos associados à memória de moradores e outros criados a partir de uma memória
coletiva que caracteriza um território periférico.

Conclusão
Enquanto em Rap, o canto da Ceilândia o único cenário é a cidade-satélite, de modo
que os personagens ficam circunscritos à Ceilândia, A cidade é uma só? extrapola os
limites da periferia. Espaços do Plano Piloto de Brasília – como suas largas avenidas e
a Esplanada dos Ministérios – são incorporados ao cenário e a relação dos personagens
com a capital dinamiza a narrativa. O primeiro documentário é essencialmente com-
posto por entrevistas com atores sociais, com ênfase na defesa explícita de uma tese.
Por isso, traz um discurso mais caracterizado pela denúncia social, de auto-valorização
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 167

e de afirmação de uma identidade vinculada às periferias. No segundo filme, o diretor


investe num modo mais reflexivo de apreensão da realidade, articulando depoimentos
com, por exemplo, situações encenadas por personagens criados e o uso de dispositivos
que agregam à narrativa o processo de pesquisa documental e de reconstituição histó-
rica. E a vitimização dá lugar a um discurso mais irônico. Uma comparação entre os
dois filmes revela a recorrência de alguns aspectos: em relação ao conteúdo, Ceilândia
aparece como elemento central, sendo também cenário privilegiado na narrativa, ao
passo que Brasília funciona como um contraponto; no que se refere à forma, a utilização
de imagens de arquivo, em especial fotografias; a atuação de amigos e conhecidos do
diretor, moradores de Ceilândia, seus parceiros de trabalho; o rap como trilha sonora e
referência cultural e a utilização de músicas criadas pelos próprios artistas participantes
dos documentários, cujas letras funcionam como uma espécie de extensão das falas dos
entrevistados; a utilização de entrevistas e depoimentos. Ainda que apenas duas obras –
um curta e um longa-metragem – possam configurar uma amostra pequena, é possível
localizar nelas escolhas autorais que, neste caso, estão fortemente vinculadas ao lugar de
enunciação, que se confunde com o lugar “físico”, concreto – ao mesmo tempo tema e
cenário –, e a partir do qual o diretor fala por meio de seus personagens, tanto os “reais”
(os atores sociais) como os ficcionais.

Referências
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1991.
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas, SP: Papirus, 2005.
RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... o que é mesmo documentário? São Paulo: Editora Senac
São Paulo, 2008.
SERAFIM, José Francisco. O autor no cinema documentário. In: SERAFIM, José Francisco
(Orgs.) Autor e autoria no cinema e na televisão. Salvador: EDUFBA, 2009.
168 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Tipografias urbanas:
enamoramentos e conflitos entre
a pixação paulista e as instituições
paradigmáticas do universo da arte
Deborah Lopes Pennachin
UFMG – [email protected]

São Paulo, maior centro urbano brasileiro, é uma cidade marcada por um
fenômeno estético único: a pixação, termo utilizado para definir uma lingua-
gem criada espontaneamente nas periferias da metrópole e que acabou por
dominar seu cenário como um todo. Manifestação mais radical do graffiti, a
pixação desafia os limites do espaço físico e as normas que regem os fluxos
semiósicos urbanos. Por meio dela manifestam-se a revolta e a insatisfação
daqueles que vivem à margem das benesses proporcionadas pela sociedade
de consumo. Ao alcançar o topo dos mais altos prédios e inserir-se à força na
paisagem da cidade, a pixação acabou por despertar o interesse do circuito da
arte, com o qual vem mantendo nos últimos anos uma relação de amor e ódio.
Palavras- chave: arte de rua, conflito, circuito oficial da arte

São Paulo, the biggest urban center in Brazil, is a city marked by a unique aes-
thetic phenomenon: pixação, a term used to define a language spontaneously
born in the metropolis guettos and that came to dominate its entire scenery.
Being the most radical manifestation of graffiti, pixação defies both the limits of
the physic space and the norms that regulate semiosic urban flows. Through
pixação people who cannot share the benefits offered by consumption society
expose their revolt and insatisfaction. By reaching the highest spots of the
highest buildings and forcing its presence on the urban landscape, pixação
ended up attracting the interest of those involved in the art circuit, with which it
has developed a love and hate relationship over the last years.
Keywords: street art, conflict, official art circuit
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 169

Traços da invisibilidade
A pixação paulistana surgiu no início da década de 1980, e teve como principais precur-
sores Pessoinha, Bilão e Juneca, os primeiros a realizar inscrições cuja essência era o
nome do pixador, e não frases poéticas ou de conteúdo político. Pode-se afirmar que a
pixação surgiu como uma mescla da atitude questionadora dos estudantes que se arris-
cavam nas ruas durante o período da Ditadura Militar para protestar contra a opressão
do governo e da estratégia de marketing criada pelo dono do canil que vendia cães da
raça fila. Os pixadores perceberam que o espaço urbano poderia ser utilizado como
uma forma de mídia, e começaram a fazer propaganda de si mesmos, processo este que
resultou em uma competição cada vez mais acirrada na qual a busca por visibilidade fez
surgir uma cultura específica, com códigos, valores e critérios de avaliação particulares.
A invisibilidade social é um fator determinante para a existência da pixação em São
Paulo, uma cidade cindida pela desigualdade na distribuição de renda e cercada por
periferias pobres muitas vezes ignoradas por seus moradores mais abastados. O escritor
Ferréz opina:

Pode-se dizer que a cidade é subdividida em duas, e isso é claro, central e periférica, a parte
difícil é dizer quem cerca quem. (...) a São Paulo que te cerca é de concreto e a nossa é de lama,
a sua é: Moema, Morumbi, Jardim Paulista, Pinheiros, Itaim Bibi e Alto de Pinheiros; a nossa
é: Jardim Ângela, Iguatemi, Lajeado, São Rafael, Parelheiros, Marsilac, Cidade Tiradentes,
Capão Redondo. (FERRÉZ: 2000, p.30)

A grande maioria dos pixadores de São Paulo são moradores de bairros periféricos
e de favelas espalhadas no entorno da cidade, muitas vezes na região metropolitana de
São Paulo. Manco faz uma analogia entre a Nova Iorque da década de 1970 e o contexto
de desigualdade social no Brasil:

A pobreza crônica do Brasil é muito pior que a de Nova York nos anos 1970, mas tais condi-
ções alimentaram uma vibrante cultura graffiti em ambos. O estilo de escrita mais notável de
São Paulo (…) é a pichação, uma forma de assinatura que se origina nos bairros mais pobres.
(MANCO: 2005, p.10)

O pesquisador Sotirios Bahtsetzis confirma o caráter contestatório da pixação de São


Paulo em Urban Art: “Um dos exemplos mais interessantes da disposição do poder das ruas
para visualizar relações sociais é a pichação.” (BAHTSETZIS in CLAUB: 2009, p.183).
Lembramos que o graffiti e a pixação eram consideradas práticas indistintas até o
momento em que, especificamente na cidade de São Paulo, se distanciaram devido a
fatores históricos. Percebemos na fala do empresário a presença da contraposição entre
o graffiti, “arte”, e a pixação, “nojenta prática”, um dos fatores que agravou a cisão en-
tre as duas atividades e levou até mesmo à instauração do que se chamou de guerra de
tinta, durante os anos de 2008 e 2009, período no qual os pixadores atropelaram painéis
170 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

de graffiti em pontos consagrados da cidade de São Paulo, como o Beco do Batman, na


Vila Madalena, há muitos anos um dos principais espaços da cidade tomados totalmente
pelo graffiti, o buraco da Paulista e o SESC da rua 24 de maio, no centro da cidade,
que havia sido pintado por grafiteiros a convite da prefeitura. A série de ataques incluiu
também a galeria Choque Cultural, no bairro de Pinheiros, e a Escola de Belas Artes,
uma instituição privada localizada na Vila Mariana.

Encontros da Bienal de Arte de São Paulo com a pixação paulista


A relação da pixação com a Bienal de Arte de São Paulo tem sido conturbada desde
2004, quando, em sua 26ª edição, foi invadida por NÃO, que pixou instalações reali-
zadas pelo artista cubano radicado nos Estados Unidos Jorge Prado, que na ocasião se
manifestou de forma positiva em relação à intervenção: “Acho legal e acho estranho.
(...) Acho que as pessoas são livres e todo mundo tem o direito de se expressar da forma
que quiser. Eu não sou um moralista. (...) Se fizeram é porque alguma coisa tinham a
dizer.” (Folha de S. Paulo, edição do dia 29 de setembro de 2004, página E3) A respeito
de sua ação, NÃO expressa inconformismo em relação às obras escolhidas para parti-
cipar da Bienal: “Encontrei uma ou duas coisas que poderiam ser chamadas de arte. O
resto era enganação. (...) Uma exposição dessas não acrescenta nada” O pixador tam-
bém expressa sua admiração pela obra de Jorge Prado e esclarece que sua intervenção
não foi um ato de vandalismo: “Porque eu não posso participar da Bienal? Até curti o
trabalho do cara que eu pichei. Visualmente, a arte dele é legal. (...) Mas não escolhi
nada. Foi ali que pude pichar porque ninguém iria me ver. (...) Se eu tirasse a utilidade de
alguma coisa quando picho, aí seria vandalismo. Mas eu só interfiro com uma estética,
não atrapalha nada. Até estou acrescentando algo. Os pixos mostram que pessoas vivem
ali, mostra que a vida é intensa. Tem a ver com o cotidiano, tipo “tô vivo”. (Folha de S.
Paulo, edição do dia 3 de outubro de 2004, página C5)
A ação de NÃO, que também pratica o graffiti, abriu um precedente no que se refere
à ação dos pixadores na Bienal Internacional de Arte, o mais importante evento de arte
do país. Em sua 28ª edição, em 2008, o pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque do Ibira-
puera, que abrigava a mostra, foi invadido por um grupo de cerca de quarenta pixadores
que aproveitaram o vazio deixado pelos curadores em um dos andares da exposição
para realizar suas inscrições. A ação resultou na detenção de Caroline Pivetta da Mota,
pixadora que passou cinqüenta e quatro dias presa sob a acusação de infração à Lei de
crimes Ambientais de número 9605 e solta mediante pedido de habeas corpus expedido
pelo então ministro da cultura, Juca Ferreira. No dia 15 de setembro de 2011, o Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo manteve a condenação de Caroline Pivetta da Mota a
quatro anos em regime semi-aberto.
Na 29ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, os mesmos pixadores que inva-
diram a edição anterior do evento, que ficou conhecida como Bienal do vazio, foram
convidados a participar da exposição por meio de elementos documentais do universo
da pixação, que incluíram folhinhas, fotografias e um vídeo. Apesar da participação dos
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 171

pixadores como artistas convidados, a abertura do evento não ocorreu sem incidentes, e
um dos pixadores tentou escrever a frase “Libertem os urubus” na obra do artista plás-
tico Nuno Ramos, uma instalação que abrangia os três andares do pavilhão da Bienal e
contava com a presença de dois urubus vivos que, depois da ação do pixador, interrom-
pida pela segurança do evento, acabaram sendo retirados dali. O curador chefe da 29ª
Bienal Internacional de Arte de São Paulo, Moacir dos Anjos, ao discorrer sobre este
fato, admite: “Nem tudo que é arte a Bienal é capaz de abrigar ou de entender plenamen-
te. (Folha de S. Paulo, edição do dia 21 de junho de 2010, página E2)
A invasão de pixadores na 28ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, em 2008,
foi acompanhada por uma série de ataques realizados contra instituições representativas
do circuito oficial da arte e a painéis de graffiti, como mencionamos anteriormente.
A primeira dessas ações aconteceu em julho de 2008, por ocasião da apresentação de
projetos de conclusão de curso dos alunos do curso de Artes Visuais da Escola de Be-
las Artes. Um dos formandos, Rafael Guedes Augustaitiz, conhecido na pixação como
PIXOBOMB, convidou um grupo de pixadores para realizar, segundo ele, “uma inter-
venção para discutir os limites da arte e o próprio conceito de arte” (Folha de S. Paulo,
edição do dia 13 de junho de 2008, página C7). A ação consistiu na invasão da Escola e
na pixação de suas áreas interna e externa por um grupo de cerca de quarenta pixadores,
e acarretou também na prisão e expulsão do aluno, como relata Arthur Dantas, redator
da revista +SOMA:

Em junho de 2008, em uma ação de Terrorismo Poético, Rafael Augustaitiz, 24, apresentou
como trabalho de conclusão na Faculdade de Belas Artes em São Paulo uma intervenção nos
arredores e interior da instituição baseado na ação de um grupo de pichadores. (...) A ação
característica da ala mais radical da arte urbana alcançou repercussão nacional e um duplo
prejuízo: para a instituição, que recompôs a fachada do prédio, e para Rafael, expulso da fa-
culdade. (DANTAS in ZIMBRES: 2008, p.28)

É interessante perceber que Dantas está correto ao qualificar a intervenção como


“uma ação de Terrorismo Poético”, já que Hakim Bey foi uma das principais inspira-
ções de PIXOBOMB para planejar este e outros ataques. Em muitas de suas pixações,
a máxima do Terrorismo Poético ditada por Hakim Bey, “Arte como crime, crime como
arte”, é reproduzida com o uso de tinta em spray.
A invasão da Escola de Belas Artes, da galeria Choque Cultural e da Bienal Inter-
nacional de Arte de São Paulo pelos pixadores nos remete ao texto Guerrilha Cultural,
redigido pelo artista Julio Le Parc em 1968:

Trata-se de fazer com que as pessoas se conscientizem de que o trabalho que se faz em nome
da cultura ou da arte é destinado somente a uma elite. De que o esquema por meio do qual
essa produção entra em contato com as pessoas é o mesmo sobre o qual se apóia o sistema de
dominação. (LE PARC in FERREIRA: 2006, p.200-201)
172 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

A série de ataques provocou uma vívida discussão entre artistas, curadores, críticos
de arte, grafiteiros e pixadores, sem que um consenso em relação aos seus objetivos, à
forma como foram executados e à sua legitimidade fosse alcançado. Idealizados por um
grupo específico de pixadores, mais exatamente por PIXOBOMB e CRIPTA, ambos
residentes na zona oeste da região metropolitana de São Paulo, as invasões e atropela-
mentos instigaram o interesse da mídia, promovendo um aumento da visibilidade das
questões referentes ao universo da pixação e colocando em crise a definição dos limites
do campo da arte.

A pixação no circuito oficial da arte


Apesar da percepção negativa que cerca a pixação, já foram organizadas em São Paulo
duas exposições voltadas especificamente para ela. A primeira, intitulada Evoluímos,
aconteceu em julho de 2008 no espaço expositivo da Psicodelia Rústica, atual Ã, uma
loja e estúdio de tatuagem situada no bairro da Vila Madalena. No convite para a abertu-
ra constava um pequeno texto explicativo sobre a pixação no qual ela era definida como
“parte da cultura urbana de São Paulo”: “(...) Uma cena que não vai acabar, independen-
te de qualquer medida ou postura que adotem, já faz parte da cultura urbana de São Pau-
lo. (...) A Psicodelia Rústica apresenta uma exposição voltada para essa manifestação,
vista por alguns como vandalismo, e por outros como uma intervenção urbana extrema
da cena underground, com participação de mais de cem integrantes do movimento.”
Em julho de 2010, no espaço independente Matilha Cultural, no centro da cida-
de, foi aberta ao público a exposição Caligrafia Maudita, contendo várias folhinhas de
pixação, convites de festas, assinaturas, fotos, recortes de jornais e revistas e vídeos
relacionados a ela.
Além destas exposições voltadas especificamente para a pixação e de sua participa-
ção, legítima ou não, nas últimas edições da Bienal Internacional de Arte de São Paulo,
a pixação se destacou em uma grande exposição de arte urbana organizada pela Fonda-
tion Cartier pour l’art contemporain, em 2009, na cidade de Paris, denominada Born in
the Streets: from New York to Paris (“Nascido nas ruas: de Nova Iorque a Paris”), uma
retrospectiva da história do graffiti. O pixador convidado para participar do evento foi
autorizado pela curadoria a pintar a fachada do edifício da Fondation Cartier. É inte-
ressante reparar que também o graffiti brasileiro passou por um processo semelhante
de assimilação pelo circuito oficial da arte, sendo reconhecido como uma manifestação
artística legítima no exterior antes de conquistar adeptos em território nacional.
Resta saber até que ponto a pixação irá trilhar os passos deixados pelo graffiti, e
se inserir nos circuitos artísticos oficiais e na grande mídia sem deixar esmaecer sua
natureza eminentemente contestatória. É este um fenômeno que se encontra ainda em
observação, visto que seu processo se iniciou há pouco tempo.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 173

Referências
Claub, Ingo [ed.] Urban Art. Weserburg. Hatje Cantz. 2009. p. 138
Ferrara, Lucrecia D´Alessio. Olhar periférico. São Paulo. Edusp. 1999. p. 8
Ferreira, Glória (org.) Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro. Fu-
narte. 2006. pp. 200, 201
Ferréz. Capão Pecado. São Paulo. Labortexto Editorial. 2000. p. 30
Franco, Sérgio Miguel. Iconografias da Metrópole: grafiteiros e pixadores representando o con-
temporâneo. São Paulo. USP. 2009. p. 80
Manco, Tristan; Neelon, Caleb. Graffiti Brasil. Londres. Thames & Hudson. 2005. pp. 10, 28
Medeiros, Daniel (org.) Ttsss...a grande arte da pixação em São Paulo, Brasil. São Paulo. Editora
do Bispo. 2006. p. 17
Zimbres, Fábio. Transfer: cultura urbana, arte contemporânea, transferências, transformações.
Porto Alegre. Santander Cultural. 2008. p. 28
174 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Cadernos de artista – uma


particular tradução do real

Dinah de Oliveira
EBA/UFRJ – [email protected]

O tipo de caderno que este artigo quer privilegiar é aquele que, mesmo sem
intencionalidade, o artista elabora sem finalidade definida e que acaba se
tornando ele mesmo um objeto autônomo do trabalho de arte. Um caderno
como instância que acolhe a criação ainda sem forma e constitui um pequeno
espaço de exposição e de mostragem-montagem particular. Tomaremos os
cadernos de artista como instância construída por condições de possibilidade
que nos remetem à discussão epistemológica de Benjamin ao distinguir ideias
e conceitos em uma relação dialética de suspensões e não de acabamentos.
Para Benjamin, os fenômenos precisam das ideias para sobreviver no univer-
sal e, ao mesmo tempo as ideias ficariam vazias sem os fenômenos.
Palavras-chave: Cadernos de artista, Walter Benjamin, tradução.

This article focuses on the type of notebook that is created with no defined
purpose and that, even without the artist’s intention, ends up becoming an
autonomous object of art in itself. A notebook, like an instance, welcomes crea-
tion while it is still formless and constitutes a small exhibition of a particular
sampling-composition. Here we will hold artists’ notebooks as instances cons-
tructed by the conditions of possibility which refer us to the epistemological
discussion of Benjamin when distinguishing ideas and concepts in a suspen-
ded and unfinished dialectical relationship. For Benjamin, phenomena need
ideas to survive in the universal and, at the same time, ideas would be empty
without phenomena.
Keywords: Artists’ notebooks, Walter Benjamin, translation.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 175

Tradução e sobrevivência
É possível nos aproximarmos dos cadernos de artista como objetos de valor único, além
do aspecto da originalidade, na medida em que são como lugares de encontro íntimo do
artista com seu olhar sobre o mundo, como mundo reflexivo próprio, ou espaço analíti-
co. Os cadernos são como espaços abertos do que acontece no interior do artista, o que
não necessariamente se realiza na obra, já que esta adquire uma série de informações
implícitas de referências culturais. O processo de reflexão no diário-caderno se dá por
ser um espaço explorativo, experimental que congrega os erros e as certezas da mão
semelhante a um arquivo que absorve o mundo à sua volta. Nesta perspectiva, a questão
desenvolvida no presente artigo diz respeito às possíveis apropriações do comum pelos
trabalhos no campo das artes plásticas, mas também tenta pensar como mais especifica-
mente o caderno de artista se conecta a um aspecto ampliado, abarcado pela noção de
ações na arte do presente. Um dos pressupostos que unem o trabalho em cadernos de ar-
tista ao campo ampliado dos trabalhos de arte é a idéia de que os modos de subjetivações
perfazem uma dimensão política relacionada, em grande medida, aos diferentes modos
em que o real se apresenta como forma que sobrevive em traços no trabalho de criação.
Nossas relações com o mundo são relações de potência como salientou Blanchot em A
conversa infinita, o que ainda nos faz voltar a atenção para os cadernos como exibição
de potências do cotidiano.
Nossa hipótese é a de que os modos de subjetivação que alicerçam o trabalho da arte
na contemporaneidade, encontram no caderno de artista formas particulares de materia-
lização em que é possível apreender aspectos do político justamente por serem formas
traduzidas do âmbito do real. Procuraremos estabelecer certas relações entre determina-
dos procedimentos encontrados nos chamados cadernos de artista e a noção de tradução
de Walter Benjamin, expressa no ensaio A tarefa do tradutor. Tal ensaio foi elaborado
como prefácio de sua tradução dos Tableaux parisiens de Baudelaire, publicado em 1923.
A proposição de análise que vê o caderno de artista como objeto autônomo encontra
re-pouso no trabalho-pensamento de Hélio Oiticica. Para começar, já não é tão fácil as-
sim separar ordens na obra de Oiticica em que teoria e prática são tratadas como trabalho
de arte. Seu Programa Ambiental “propõe uma manifestação total, íntegra, do artista
nas suas criações, que poderiam se proposições para a participação do espectador” que
inclui tanto as modalidades de arte conhecidas como outros meios que “se realizam
através da palavra, palavra escrita ou falada” (OITICICA, 2011).
Um dos aspectos privilegiado aqui da recepção da noção de original presente em A
Tarefa do Tradutor é a sua identificação com o inacabamento do signo de arte a partir da
não-completude das obras originais. Uma das noções importantes do artigo se refere ao
fato de que a não-completude do original atesta o que nas obras é intraduzível, só encon-
trando modos de dizer de si por meio das diferenças entre as línguas, o que ficaria acen-
tuado na tradução. Como ressalta Susana Lages a tradução é responsável pela continui-
dade da vida das obras – agente temporal – e delineia-se como espaço de trocas entre as
línguas. Em suas palavras: “Uma tradução é caracterizada por uma certa instabilidade,
176 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

uma vez que se define como mediadora, não apenas entre duas culturas espacialmente
distantes, mas também entre dois momentos históricos diversos” (LAGES, 2002).
O caderno da artista colombiana Natalia Echevarri é exemplo de um modo de regis-
tro de seu processo de criação que implica em uma série de traduções de aspectos visuais
de seu cotidiano. É como um tipo de espaço onde se dão convergências dos trabalhos
já realizados por ela e de projetos ainda por fazer. O fundamento de suas obras é a
investigação de habitações nos espaços alternativos de moradia das cidades, como co-
munidades, ocupações e até mesmo residências flutuantes em pequenos barcos que são
redimensionados em objetos trabalhados, muitas vezes, a partir de materiais originais
das próprias construções. Em suas palavras o caderno “funciona como um diário em que
registra pensamentos, trechos de canções, exercícios reflexivos e até projetos utópicos”
que ultrapassam a forma de registro na medida em que sua construção se dá juntamente
com a experiência.
Um exemplo importante é o registro fotográfico da série Cores que é elaborada a
partir de percursos realizados diariamente pela artista com a intenção de registrar obje-
tos separados pela cor. Um exercício para o olhar procurando espaços que a influenciam
cotidianamente em analogia com lugares de outras dimensões como mar, o deserto e a
savana. O desejo foi o de procurar um pouco desses espaços no interior de uma cidade, ir
à procura do amarelo, do azul, do verde e efetuar os registros de cada cor no caderno. Tal
aspecto funcional do caderno, ou seja, o de servir como um espaço de visualização das
imagens do interior da câmera é transgredido pela formação de um dispositivo em que é
possível dimensionar os objetos colocados em conjunto sob relações de correspondência
e de montagem. A concepção dessa forma expositiva que redimensiona os objetos na
série imprime possibilidades de apreensão pela proximidade de uma semelhança extra-
sensível como no léxico benjaminiano em A Doutrina das Semelhanças.

Figuras 1,2 3. Detalhes da série cores do caderno de Natalia Echeverri, 2013 (acervo da
artista).
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 177

Lembramos aqui do gesto de Marcel Duchamp ao inaugurar, por assim dizer, um


modo portátil de arquivo-exposição de suas obras com La Boite em valise. Podemos
acrescentar ainda seu conhecido e notório investimento sobre os deslocamentos dos
objetos cotidianos impondo uma inelutável transformação do próprio estatuto da noção
de obra de arte. Determinou-se assim, uma tensão imperiosa entre a aparência da instân-
cia do real (o aparecer da coisa) e suas possibilidades de criação de novos e inusitados
sentidos. Por seu turno, a série Cores no caderno de Echevarri é como uma mostragem
portátil da profusão de objetos-cores que a artista captou da rua.
Tal característica de aproximação com os processos empíricos pode ser entendida
como aspecto fundamental de constante endereçamento ao lugar do original. Neste sen-
tido, o aspecto de tradução que surge na série das cores nos transporta para uma feno-
menologia microscópica, se quisermos falar nos termos de Bachelard, em que aparecem
ainda topologias afetivas dos lugares que se acentuam com a montagem. De modo seme-
lhante e distinto, a artista carioca Luiza Coimbra reflete sobre o desejo de redimensionar
o objeto amoroso em modos portáteis. É assim que trata sua atração pelo mar: pinta em
azul a superfície da página aberta. Não deixa de transparecer sua fatura nos espaços
vazios que vazam o branco como pequenas nuvens, aproximando ou nos fazendo con(-
fundir) céu e mar e revelando ainda seus limites e fraturas.
Pelo procedimento da montagem, fatura da série Cores de Echeverri em que sua
tradução se materializa, o pensamento se articula junto à idéia de estar traduzindo al-
guma linguagem própria daquelas imagens-objeto. Linguagem das coisas, linguagem
dos objetos em um pensamento imanente. A montagem faz irromper uma experiência
temporal que desagrega a causalidade dos possíveis discursos desenvolvidos sob a vi-
são das imagens. A relação específica em que Benjamin trata a tradução com o original
edifica três importantes conceitos que podem ser compreendidos como fundamentos
epistemológicos presentes em seu prefácio da tese sobre o Barroco Alemão. Segundo a
leitura realizada por Jeanne Marie Gagnebain, o conceito de origem se diferencia pela
oposição com a ideia de gênese, por sua proposição como um salto que destrói a suces-
são cronológica e como restaurador do inacabamento da obra.
O efeito não totalizante da montagem pode ser analisado como uma interpretação
da tradução em Benjamin. Se o original está sempre aberto para a tradução podemos
dizer que não existe um momento no tempo em que o sentido se revela por inteiro. Nos
termos em que os trabalhos de arte contemporâneos e seus discursos são elaborados,
isso significa que a obra é constituída em uma relação de alteridade com seus próprios
processos de elaboração. O lugar do original na série Cores é a própria montagem das
ruas em sua mistura de fisionomias. O traço sobrevivente que a tradução entre espaços
deixou transparecer, dada pela montagem na superfície-dispositivo do caderno, talvez
seja o descentramento de sentidos, elemento que se tornou comum como um espaço de
correspondências entre a criação (tradução em montagem) e o chamado mundo do real.
Em seu livro Devant le temps, Didi-Huberman afirma: “Sempre, diante de uma imagem,
estamos diante do tempo” (DIDI-HUBERMAN, 2000).
178 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Daqui se compreende que uma imagem só existe em uma combinatória dos tempos,
é sempre uma montagem de tempos diferenciados que a memória reúne problematica-
mente e que estão inseridos em um espaço inadequado para qualquer percepção direta
ou unívoca. Pensando os cadernos de artista como formas de manter o que será esque-
cido com o passar do tempo, podemos inferir-lhes um sentido desacelerador do tempo
cotidiano percebido como causalidade. Como idéia de valor do conhecimento-monta-
gem, depreendemos que este é aberto sem que as múltiplas possibilidades de verdade se
apaguem umas às outras, numa espécie de conhecimento por mostragem na montagem.
Isso se verifica “desde Baudelaire e da sua definição da imaginação da imaginação como
[faculdade científica], em “Warburg e o seu atlas Mnemosyne, Walter Benjamin e o seu
Livre des passages (...), a fecundidade de um tal conhecimento através da montagem
(...) repleto de armadilhas e pejado de tesouros. Ele requer um tato permanente de cada
instante” ( DIDI-HUBERMAN, 2012).
O caderno Pelego do carioca Bruno Pelego é uma obra que tem sido feita ao longo
do tempo. Trata-se de um caderno-livro que mede aproximadamente 28x37 cm e que
está em eterno inacabamento, incluindo ainda alguns empréstimos de seu espaço para
que outras pessoas façam interferências. Os variados desenhos, esquemas, projetos, re-
gistros, colagens e escritos que compõem o caderno são revisitados diversas vezes e
transformados, resultando em uma forma que já nasce provisória destruindo qualquer
imposição cronológica e causal. Tais regiões táteis de re-montagens assomam operações
que materializam o desejo de trabalhar, experimentar com as imagens, o que faz parte de
uma estratégia de desmontar hierarquias inerentes a um projeto de arte-conhecimento. O
que sobrevive de sua alquimia de fórmulas – que repetem figurações do falo ao mesmo
tempo em que insiste em colecionar e arquivar fragmentos de registros do Jogo do Bicho
– promove deslocamentos afetivos de aspectos do cotidiano traduzidos em apropriações
políticas. Os diferentes contextos em que identificamos tais elementos (o falo e o Jogo
do Bicho) atravessam esferas de poder e modos familiares de estar em contato com a
cultura do corpo disciplinado de que nos fala Foucault.
O gesto fundamental desses cadernos parece ser o de conceber as imagens juntamen-
te com sua composição. Um dos efeitos das traduções realizadas diz respeito mesmo aos
desvios e indexações das imagens em relação ao mundo, com os objetos, com o que o
olhar pode captar. Inspecionando a semiótica (Pierce), a noção de mimese, à que toda
imagem está sujeita, não diz respeito a uma relação icônica pura, “a uma semelhança
perceptual entre signo e realidade”. O aspecto de semelhança ao qual a faculdade mimé-
tica se alia é do campo indicial, que nos termos da doutrina de semelhança de Benjamin,
coloca em jogo temporalidades disjuntivas entre o momento de sua captação (momento
particular no tempo) e o presente em que ela esta manifesta. Tal poder alusivo é tradu-
zido como força de presente no já mencionado Mar portátil de Luiza Coimbra, assim
como em Pelego, cujo movimento de referenciação se confunde com questões de gênero
do próprio artista.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 179

Figuras 4 e 5. Mar portátil de Luiza Coimbra, 2013 e Pelego de Bruno Pelego (acervo dos
artistas).

Estes cadernos-afetivos – arquivos de imagens do mundo – são como respostas ex-


perimentais às necessidades de produções subjetivas na direção de práticas e estratégias
disponíveis no solo da arte contemporânea que tendem ao acolhimento e, simultanea-
mente, ao ultrapassamento do comum e do familiar. As relações com experiências do
cotidiano são impressas por meio de uma operação em que o conceito de origem de Ben-
jamin está presente na medida em que se trata de um movimento que procura restaurar o
passado, tendo a consciência de sua incompletude e, portanto, dando a ver formas inaca-
badas. Para Benjamin a ação do conceito de origem está tensionada “por um lado, como
restauração e reprodução, e por outro, e por isso mesmo, como incompleto e inacabado”
(BENJAMIN, 1984). O princípio do inacabamento, como o que rege a composição do
original, é o que possibilita sua tradução como movimento de vida das obras. Se nos de-
tivermos a pensar a instância do real como lugar de origem dos fenômenos no caso dos
cadernos de artista, eles se tornam a mediação, ou nos termos de Benjamin, aparecem
como conceitos que restauram a experiência no mundo das ideias. É importante não
esquecer que o filósofo faz uma inversão irônica de Platão ao considerar que as ideias
aparecem no mundo sensível justamente pelas imagens.

Referências
BENJAMIN, Walter. “A tarefa do tradutor” in A tarefa do tradutor de Walter Benjamin: quatro tra-
duções para o português. Tradução: Susana Kampff Lages, Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2008.
________. “A Doutrina das Semelhanças” in Obras escolhidas vol.1: Magia e técnica, arte e polí-
tica. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984).
________. Origem do Drama Barroco Alemão. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Bra-
siliense, 1984, p.68.
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. São Paulo: Escuta, 2001.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente. Tradução:
________. Devant Le temps. Paris: Les éditions de minuit, 2000.
OITICICA, Hélio. O museu é o mundo. Org. César Oiticica Filho. Rio de Janeiro: Beco do Azou-
gue, 2001.
180 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Notas de uma pesquisa em poéticas


visuais: o diário-invólucro, o
diário-mensageiro,
o diário-interligante
Eduardo Araújo de Ávila
UFG/GO – [email protected]

Cadernos, diários, notas têm sido utilizados como instrumentos de registro


processual que oferecem ao artista-pesquisador possibilidades de exercícios
de autocrítica do trabalho em desenvolvimento, além de auxiliar a sistematiza-
ção de seu processo criativo. Independentemente da nomenclatura adotada,
esses recursos são indispensáveis para pensar o modo como a obra será
materializada. Este artigo relata a dinâmica de meu registro de pesquisa em
que utilizo notas avulsas, organizadas não como cadernos de anotações de
caráter íntimo, mas como ferramentas de reflexão compartilhada.
Palavras-chave: registros processuais, diários de artista, criação compartilhada.

Sketchbooks, diaries, notes have been used as instruments of the process


documentation that offer the artist-researcher opportunities to exercise self-
criticism of the work in progress, but also help to systematize the creative pro-
cess. Regardless of the nomenclature adopted, these resources are essential
to think about how the artwork will be materialized. This article reports on the
dynamics of my research registry that I use single notes, not as organized ske-
tchbooks of intimate nature, but as tools for shared reflection.
Keywords: procedural documents, artist’s diaries, creating shared.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 181

Introdução
As notas apresentadas nos três “documentos do processo” (SALLES, 2008) da pesquisa
em arte e cultura visual em questão, revelam algumas reflexões, imagens e referências de
uma investigação em desenvolvimento. As notas também revelam pistas do que o investi-
gador tem estudado, produzido e analisado. Essas informações foram dispostas a garantir
que o processo criativo pudesse ser analisado, à medida que a obra se materializasse.
Os três diários propostos por mim, como meios de registro e também de divulgação
dos modos de produzir, serão apresentados mais adiante, porém, antes é necessário ex-
por os referenciais teóricos que suscitaram a criação desses diários.
Toda a carga subjetiva que compõe a obra e que não é exposta ao público, torna-se
subentendida ou mesmo imperceptível. Esses dados remanescentes podem ser exempli-
ficados por analogia a estrutura de um iceberg, como alegoriza Sandra Rey:
Imaginemos que a obra de arte se constitui numa espécie de iceberg, isto é, um
todo composto por uma parte visível na superfície (a obra em sua configuração formal
e material) e por uma grande parte que fica submersa, invisível (o pensamento, ideias
e conceitos veiculados pela obra). Essa parte submersa nem sempre se evidencia expli-
citamente na configuração formal da obra, mas é, sem dúvida, o que a diferencia como
obra de arte dos demais objetos produzidos por uma sociedade. (REY, 2002, p. 125)
E os diários ou cadernos de estudos são os receptáculos que compõem a base desse
iceberg. Diante disso, Sandra Rey propõe que o artista-pesquisador deve possuir um
ponto de vista teórico diferenciado, e sugere “instâncias metodológicas” para o campo
de investigação em poéticas visuais (REY, 1996, p. 86). As instâncias analisadas indi-
cam por um lado, uma metodologia aplicada à prática de ateliê, por outro, uma metodo-
logia de pesquisa teórica. Assim como o dualismo da designação do artista-pesquisador,
prática e teoria tornam-se as duas partes indivisíveis do todo, pois “obra e linguagem
(oral ou escrita) são tão indissociáveis quanto o corpo e a mente, um precisa do outro
para existir.” (REY, 2002, p. 130)
Os procedimentos colocados em prática tanto no ateliê quanto em outros ambientes
de trabalho, como o computacional, por exemplo, demandam sistematizações, inúmeras
experimentações, tomadas de decisões, insights. Assim, nesses espaços “o artista vai
levantando hipóteses e testando-as permanentemente” (SALLES, 2004, p. 26).
Assim sendo, em meu projeto de pesquisa, opto por algumas abordagens metodoló-
gicas, recomendadas por Sandra Rey: criar estratégias de ação (como manter um ou mais
diários de estudos e fichas de anotações sobre as obras); coletar dados (como catálogos,
sites de artistas) e procurar, sempre que possível, as informações nas fontes; conceituali-
zar (fazer um levantamento de ferramentas teóricas que auxiliem nas reflexões); realizar
exercícios de redação como redigir pequenos ensaios e artigos; apresentar os resultados
de modo inventivo, respeitando as normas preestabelecidas pela academia, contudo, con-
siderando que na diagramação e na apresentação formal, leve-se em conta a obra pro-
duzida. Ou seja, é importante jogar o “jogo da Universidade”, mas também subvertê-lo.
182 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Os diários apresentados a seguir serão descritos na ordem em que foram criados, o


que compreende o segundo semestre de 2011 e o presente momento. Os diários tam-
bém receberam títulos que representam a forma como as anotações foram pensadas
poeticamente.

“Notas e (es)quinas”: o diário-invólucro


Esse diário possui um nome oficial, notas e [es]quinas, mas também recebeu a desig-
nação de o diário-invólucro por tratar-se da primeira experimentação envolvendo os
sentidos da chamada “cultura do invólucro” (termo cuja tradução refere-se ao conceito
tsutsumu bunka dos estudos sobre cultura japonesa), sobre a qual discuto em minha dis-
sertação. O notas e [es]quinas corresponde ao diário encadernado, que reúne informa-
ções técnicas, processuais, além de informações sobre as linguagens artísticas adotadas
e minhas impressões sobre o resultado parcial de minhas experimentações.
O título representa as notas que foram feitas nas bordas (quinas) das páginas do diário
de ateliê. Isto é, algumas notas e citações percorrem as bordas das folhas avulsas marcan-
do o espaço das quinas do diário composto por bolsos. O tipo de encadernação adotado
para esse diário é conhecido como longstitch (ou encadernação do “ponto longo”) que
possui como característica marcante deixar uma espécie de abertura na lombada, revelan-
do parte das linhas e costuras. As costuras foram feitas com fios de nylon transparentes,
para que a estrutura fosse resistente e, ao mesmo tempo, discreta visualmente. Aliás, toda
a proposta visual do diário é assinalada pela lisura dos quadrados tão presentes em minha
produção e pela translucidez dos materiais utilizados. Esse visual reflete meu interesse
pelas sutilezas e tenuidades em tons de preto, branco e suas matizes.
O diário possui capa dura, em papelão cinza. A capa e a contracapa foram revestidas
com duas serigrafias sob algodão cru, produzidas no segundo semestre de 2011, da pri-
meira série de serigrafias que produzi. O miolo do diário é composto por cadernos feitos
de papel vegetal que, na verdade, foram projetados para se assemelharem a invólucros
ou envelopes. Dentro dessas “páginas-envelopes” deposito minhas anotações sobre os
processos de impressão adotados, sobre os materiais utilizados, mas traz também alguns
estudos iniciais produzidos no ateliê de gravura. Trago também inquietações e desejos
do que ainda estava por vir.
Em virtude de minha formação em Design Gráfico, considerei necessário desen-
volver um projeto gráfico para o diário. Consequentemente, o projeto gráfico para o
diário-invólucro tornou-se referência para o projeto de pesquisa. À medida que o diário
foi sendo desenvolvido e que os registros eram diagramados, impressos e depositados
nas páginas-envelopes, o diário foi materializando-se como um livro, mais precisamen-
te, como um livro de artista. Para chancelar essa ideia, ao final do semestre, o diário
recebeu seu cólofon:
Estas notas foram compostas em Myriad Pro, tamanho 16, impressas em papéis
sulfite e reciclato 90g, e escritas na estação goiana das chuvas de 2011.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 183

Diante disso, comecei a indagar-me se os cadernos de artista ou diários de ateliê


podem ser organizados em outros formatos, privilegiando aquilo que foi documentado
durante o processo criativo. Assim sendo, compartilho uma dúvida: O diário pode tor-
nar-se livro de artista?

“Notas em carácter”: o diário-mensageiro


O diário notas em carácter, cujo título diz respeito as “notas produzidas com caracteres
digitais”, é o espaço de registro que instaurei por meio de uma conta de e-mail, e que
corresponde ao segundo documento do processo de criação e investigação teórica. Nele,
deposito informações relevantes sobre meus estudos e experimentações artísticas. As
informações registradas são anotações do processo de produção, citações de autores,
arquivos com informações sobre a pesquisa, artigos, links para vídeos e contribuições
enviadas por amigos e colegas via e-mail. Essas informações podem ser escritas e do-
cumentadas diretamente no próprio espaço, ou seja, são digitadas e enviadas à caixa de
mensagens do próprio endereço eletrônico, ou enviadas via celular para o diário/e-mail.
Aliás, o fato de esse diário ter sido organizado a partir de uma conta de e-mail, fa-
cilitou o processo de registro de investigação, pois, antes, realizava minhas anotações
em folhas avulsas e de forma não linear, porém sempre havia a dúvida sobre como eu
deveria guardá-las, para que elas não se perdessem. Dessa maneira, a estrutura que a
própria conta de e-mail possui já exerce a função de organizá-las, categorizá-las e da-
ta-las para mim.
Alguns questionamentos são algumas vezes compartilhados com amigos e colegas.
Lanço um comentário ou dúvida para uma determinada pessoa que conhece meu traba-
lho e, gentilmente, essa pessoa envia-me uma resposta. Assim, “o diário-mensageiro”
tornou-se o guardião das memórias de uma pesquisa em artes e igualmente o estafeta de
diálogos partilhados com pessoas importantes em meu processo de formação.

“Notas de acrônicas”: o diário-interligante


O diário notas de acrônicas corresponde ao meu terceiro registro do processo de cria-
ção e compreende os desdobramentos da produção artística, bem como as principais
informações de todo o processo, que foram anteriormente analisadas nas outras notas.
Este diário foi organizado em formato blogue e reúne os artigos acadêmicos, as imagens
de estudo (registros das experimentações), e os produtos parciais desses estudos, nesse
caso, as gravuras e os objetos artísticos que são o foco desta investigação teórica e prá-
tica em nível de mestrado.
A proposta de tornar o notas de acrônicas um web log (cujo termo está relacionado
ao sentido de “diário na web”) parte de minha necessidade em compartilhar com amigos,
colegas de trabalho, pesquisadores e outras pessoas (igualmente bem-vindas) informa-
ções sobre meu processo de criação e pesquisa teórica. A partir do diário-interligante
dou continuidade ao meu processo de registro investigativo, mas levando em conside-
ração as participações e escritos postados nele, por indivíduos que, mesmo que apenas
184 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

como incentivo à minha pesquisa, sentiram-se convidados (e provocados) a contribuir


com algum dizer, comentário, sugestão, dica.
Embora as participações com os usuários em rede, nessa modalidade de diário, ainda
sejam poucas — principalmente, em virtude de este diário ter sido criado recentemente
e encontra-se em desenvolvimento —, o que já foi postado ou enviado por e-mail reflete
que, mesmo abrindo espaço para as pessoas acompanharem de perto pensamentos, ano-
tações e registros de um processo particular de criação, existem relatos (encaminhados
diretamente a mim e não postados no notas de acrônicas) que expõem os receios desse
usuário em interferir no processo de forma indevida e desnecessária ou ainda de apenas
querer observar, sem que necessariamente sejam feitos comentários ou participações
públicas. Segue um exemplo de comentário nesse sentido:
Visitei o seu diário, mas estou sem saber que tipo de comentário poderia fazer, mes-
mo porque, acho que para ajudá-lo necessitaria de uma fundamentação científica que
viesse dar ênfase ao comentário em questão. A informalidade muitas vezes não são tão
úteis. No entanto, continuarei visitando e lendo as publicações de outros para que eu
possa interagir do assunto. (Comentário enviado por e-mail em 30 de setembro de 2013).
Por outro lado, compartilho a seguir um desses comentários que fala sobre modos de
organizar ideias, por meio de registro de um determinado processo criativo, neste caso, o
de uma arquiteta que identificou-se com o meu modo de proceder nessa coleta de dados
e apontamentos para a construção da obra artística.
[...] Pensando no meu processo de criação eu sempre me lembro do meu primeiro
professor de projeto arquitetônico. Na nossa segunda aula ele nos levou para a seção de
periódicos da biblioteca e disse “Vão olhar revistas. Vocês precisam criar repertório, não
se cria projeto do nada!” Até hoje todas as vezes que vou iniciar um projeto a primeira
coisa que eu faço é procurar imagens, por isso sempre junto dos arquivos do meu projeto
eu tenho uma pasta “Repertório”. Muitas vezes eu também peço para o cliente selecio-
nar imagens, o seja o “repertório” dele. Isso me ajuda a conhecê-lo e identificar o que ele
deseja. (Comentário postado no diário notas de acrônicas em 30 de setembro de 2013.)
Assim sendo, optei por apenas divulgar os registros feitos nesse diário, por meio
de mensagens compartilhadas em redes sociais, e deixar o espaço para comentários e
participações livres a quem queira contribuir de alguma maneira.

Considerações finais
Entre as anotações feitas e depositadas num diário encadernado, num diário que utiliza
a estrutura de uma conta de endereço eletrônico como documento processual e num diá-
rio que tornou-se blogue (lembrando que cada um desses diários contribuiu de alguma
maneira para formação deste projeto e deste investigador), vários foram os registros
desse fazer/formar, que independentemente dos instrumentos metodológicos, me fize-
ram compreender que o primordial é não perder de vista o que está sendo produzido.
Ressalto ainda que em qualquer lugar ou ocasião é possível gerar-se reflexões e ideias
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 185

sobre e para o projeto: no ateliê, em sala de aula, em frente ao computador, a caminho


de casa, proseando com os amigos.

Referências
REY, Sandra. Da prática à teoria: três instâncias metodológicas sobre a pesquisa em poéticas vi-
suais. In: Porto Arte. Porto Alegre, v. 7, n. 13, pp. 81-95, nov. 1996.
_______. Por uma abordagem metodológica da pesquisa em artes visuais. In: BRITES, Blanca;
TESSLER, Elida (org.) O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em artes plásticas.
Porto Alegre: Universidade/UFRGS, 2002. pp.123-140.
SALLES, Cecília Almeida. Redes da criação: construção da obra de arte. 2 ed. Vinhedo: Hori-
zonte, 2008.
_______. Arquivos de criação: arte e curadoria. Vinhedo: Horizonte, 2010.
186 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Estampas digitais: relato de


um processo artístico para a moda

Elaine Spagnol
FAPES / PPGA UFES – [email protected]

A presente investigação apresenta o relato do processo de criação de estam-


pas digitais para uma marca de roupas femininas e as aproximações que este
ato criativo apresenta com a fotografia artística contemporânea. O processo
de criação das estampas, condicionado à técnica de estamparia, digital, sua
adequação destas às tendências, mercado e público alvo da marca também
são apresentados neste relato, assim todas as implicações e características
deste modo de fazer artístico atual são abarcadas.
Palavras-chave: processo criativo, estamparia digital, apropriação de ima-
gens, fotografia contemporânea, moda.

This research presents a study about the create process of digital prints for a
women’s clothing brand and the approaches among this creative act shows
with the contemporary art photography. The prints creative process, subject
to stamping digital technique, the adequacy of the trends, market and target
audience to the brand are also presented in this report therefore seeks to cover
all the implications and characteristics of this mode of art making current.
Keywords: creative process, digital printing, assemblage, contemporary pho-
tography, fashion.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 187

Processo artístico em estampas digitais


Na criação de estampas para coleções de moda muitas características técnicas devem
ser levadas em consideração para que a impressão dos motivos nos tecidos ocorra sem
nenhum transtorno. O designer de estamparia deve aliar a parte técnica e a criatividade
durante o processo de composição do desenho para obter um resultado satisfatório.
É possível estabelecer conexões, de várias formas, entre os processos de criação
em artes e em design de estamparia têxtil, como afirma Levinbook (2007) em relação
à estética:

“Se de fato arte e design compartilham de uma vocação estética, e o sentido da estética está
voltado à arte, pode-se apontar questões que traduzam um olhar sobre aspectos relacionados
ao design em estamparia têxtil visto que este tem como uma de suas características a harmonia
na criação e distribuição dos motivos que o compõe.”

Uma das técnicas de impressão de estampas mais utilizadas atualmente é a digital


que é considerada um dos mais significativos avanços que ocorreu na tecnologia de
estamparia têxtil desde a criação da serigrafia, e está ocasionando uma revolução nas
estampas e na moda. Desde os métodos de criação e desenvolvimento dos desenhos até
a maneira de produzir as estampas, o designer hoje tem mais tempo para explorar novas
idéias, mais liberdade e possibilidades de criação. (BOWLES, 2009. p.10)
Assim como nas gravuras, por muito tempo as estampas, necessitavam de matrizes
para serem reproduzidas nas superfícies e cada cor dependia de uma matriz, precisando
passar pelo processo de separação de cores. As estampas hoje são criadas em ambiente
virtual, formadas por códigos binários, devido à melhor resolução da impressão é possí-
vel a maior utilização de fotografias além de ser dispensável o uso de matrizes.

“Considera-se estamparia digital todos os métodos em que as imagens são geradas ou digitali-
zadas em meio eletrônico e que a transferência da arte para o tecido não necessite da interme-
diação de matrizes, nem de separação de cores.” (LASCHUK, 2013. p.65)

O mercado global da moda inclui basicamente dois tipos de empresas as de fast


fashion e as de moda de luxo. E as empresas de moda locais por sua vez baseiam seus
negócios em um destes dois modelos. As empresas de fast fashion possuem público
consumidor do sexo feminino, jovem, volúvel, inconstante, com recursos modestos. Es-
tas redes como afirma CRANE (2011) “assimilam e copiam ideias de moda, mas não
as criam.”, como seu público está interessado somente nas tendências, os lucros destas
empresas geram são enormes.
A marca para a qual as estampas deste relato foram desenvolvidas possui característi-
cas similares às fast fashion como: público consumidor jovem do sexo feminino, de recur-
sos modestos, mas ávido pelas últimas tendências de moda. Tendências estas que por sua
vez são captadas por especialistas em vários lugares do mundo e traduzidas nas coleções
188 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

apresentadas nas semanas de moda de várias cidades como Paris, Milão, Londres e Nova
York. Estas apresentações são bem variadas e diversificadas. (CRANE, 2011)
As estampas da marca são feitas pelo processo de sublimação, que se inicia com
impressão a jato de tinta com pigmentos sublimáticos sobre papel, que funciona como
elemento de transferência da imagem. Em prensa térmica o papel é colocado em contato
direto com o tecido, que deve ser de fibra de poliéster, a alta temperatura leva o pigmen-
to a vaporizar-se e a pressão o faz migrar para o interior das fibras do tecido.

O processo de criação do designer de estamparia inicia-se com a pesquisa de tendên-


cias onde são analisados desfiles, cores, museus, filmes, revistas, internet, blogs de moda,
sempre se considerando a marca para a qual as estampas serão feitas e seu público alvo.
Para as estampas deste relato o ponto de partida foram desfiles internacionais com moti-
vos de florais, listras e geométricos. O uso de desenhos digitais é amplamente observado
nas coleções de moda e uma forte característica da marca são suas estampas exclusivas.

Figura 1. Fotos de desfiles das coleções primavera/verão 2014. Fonte: www.vogue.co.uk

Apropriação na fotografia artística


Desde o surgimento da fotografia muitas formas foram utilizadas e criadas para mani-
pular as fotografias, como as fotomontagens, fotogramas e o programa Photoshop, per-
mitindo infinitas possibilidades de interferências nas fotografias. Os trabalhos artísticos
fotográficos na atualidade recebem, muitas vezes, a manipulação proveniente da pós-pro-
dução digital, pois com a fotografia digital o fotógrafo interfere na imagem até ela parecer
correta, até a imagem ficar como ele deseja. (LUNENFELD, 2001. p. 08) Este fato abre
uma enorme possibilidade no processo criativo é o que acontece com grande parte das
criações artísticas de fotógrafos, que recorrem ao uso das manipulações e apropriações.
Pode-se afirmar que no processo de criação artística atual não parte-se mais de um
material bruto, único, original e sim de uma elaboração em que o artista utiliza e modifi-
ca de acordo com sua vontade tudo que já foi criado ou fabricado e está a sua disposição.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 189

Na sociedade atual todos os campos do conhecimento estão interligados se influen-


ciando mutuamente, um fato corriqueiro durante a criação de estampas é o uso, feito
pelos designers, de imagens que não foram produzidas por eles, partindo-se de um ma-
terial apropriado, assim como muitos fotógrafos no campo das artes, estes profissionais
da moda chegam a resultados também inovadores e únicos, assim como enfatiza Le-
vinbook (2007):

O design de superfície em estamparia têxtil acompanha a moda como um espelho dos acon-
tecimentos do momento em que vive, foto que provoca, já em seu processo de criação, o
acompanhamento dos sinais de seu tempo e registrando em seu produto final características
inerentes a atualidade. (LEVINBOOK, 2007)

Relato do processo de criação de estampas digitais


O desenvolvimento de estampas está mudando ao suprir restrições que tradicionalmente
limitavam o trabalho dos designers, livres das separações de cores e outros aspectos re-
lativos a outras técnicas de estamparia, podem hoje, nas digitais, trabalhar com milhares
de cores e incríveis luxo de detalhes. (BOWLES, 2009. p.07)
Foram criadas três estampas entre elas uma corrida, que é um tipo que possui motivo
que se repete sem emendas dando a impressão visual de continuidade infinita, graças ao
rapport. E duas estampas localizadas, aplicadas neste caso na frente de blusas, assim
sendo se trabalha com o molde ou as medidas da peça.
Primeiro foi pensada e estampa corrida e a partir de elementos utilizados nesta foram
desenvolvidas as localizadas acrescentando elementos, eliminando outras e utilizando
novas referências visuais. Várias imagens foram captadas, geralmente em bancos de
imagens ou em outras fontes permitidas para este fim. Manipuladas em programa de
tratamento de imagens modificando ou eliminando o fundo que não seria utilizado na
estampa, alterando-se cores e elementos das imagens, para que o conjunto destes ele-
mentos formasse uma harmonia visual. A transformação das imagens capturadas pode
ser observada na figura 2.

Figura 2. Acima imagens das fotografias apropriadas e abaixo imagens do resultado após as
manipulações.

Para a corrida foi escolhido o motivo floral já que este tipo de estampa possui grande
aceitação pelo público da marca e foi vista em vários desfiles e em outras fontes de pes-
quisa. Na figura 3 etapas da montagem da estampa e ela finalizada.
190 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Figura 3. Duas etapas da montagem da estampa corrida e por último a estampa final.

As cores azul e verde foram utilizadas, pois são as cores de malha das partes de cima
destinadas a formar looks com este corrido. Foram inseridos também alguns efeitos que
imitam renda para compor a estampa, elementos estes, assim como os detalhes das flo-
res, só possíveis de serem reproduzidos com fidelidade de detalhes graças à técnica de
estamparia digital, assim como a variedade de cores presentes nestes desenhos.
Na primeira estampa localizada foram utilizadas na sua criação outras três imagens
de flores, uma imagem de textura, a palavra beautiful, a estampa corrida colorida, em
versão preta e branca e alguns elementos listrados, como pode ser observado na figura 4.

Figura 4. Diagrama com todos os elementos utilizados na criação da estampa e no final à


direita a estampa.

Já na segunda localizada a tendência de listras e geométrico é explorada de outra


forma, com listras pretas e brancas na vertical formando o fundo da estampa, as flores
utilizadas no corrido ganham uma nova disposição espelhada e uma grade geométrica
com a imagem de textura da localizada anterior também foi utilizada. Segue a figura 5
com última a estampa.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 191

Figura 5. Elementos utilizados na criação da estampa e no final à direita ela finalizada.

Considerações Finais
Mesmo seguindo as tendências, se demonstrou que é possível desenvolver estampas
criativas e originais, não sendo este um limitador e sim um ponto de partida para o seu
desenvolvimento. Também a apropriação das fotografias durante o processo de criação
gera um resultado totalmente diferente e distinto da imagem inicial, sendo esta uma for-
ma utilizada para que o processo de criação seja mais fácil. Não somente a preocupação
com a estética do motivo, mas também a prática artística fotográfica influência este meio
artístico hibrido que o hoje é o design de estamparia.

Referências
CRANE, Diane; Maria Lucia Bueno (org.) Ensaios sobre moda, arte e globalização cultural.
Tradução de Camila Fialho. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2011.
BOWLES, Melanie. ISSAC, Ceri. Diseño y Estampación Textil Digital. Tradução de Roberto R.
Bravo. Barcelona: Blume, 2009.
LEVINBOOK , Miriam. Design de superfície e arte: processo de criação em estamparia têxtil
como lugar de encontro. Anais do 3º Colóquio de Moda, 2007. ISSN 1982-0941 Acessado
em 23/09/2013 às 15:35 http://www.coloquiomoda.com.br/anais/anais/3-Coloquio-de-Mo-
da_2007/8_05.pdf
LASCHUK, Tatiana. RÜTHSCHILLING, Evelise Anicet. Processos contemporâneos de impres-
são sobre tecidos. Revista ModaPalavra e-periódico. Vol. XII, 2013. Acessado em 25/09/2013
às 22:50 http://www.ceart.udesc.br/modapalavra/edicao12/modapalavra_12.pdf
LUNENFELD, Peter. Fotografia Digital: a Imagem Dubitativa. Tradução de Silas de Pau-
la. Revista Passagens. vol 2, 2011. (p. 01-15) Acessado em 25/08/2013 às 14:36
http://www.revistapassagens.ufc.br/index.php/revista/article/viewFile/19/18
http://www.vogue.co.uk Acessado em 27/09/2013 às 19:23
192 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Ninhos e o arquivo agora

Elaine Tedesco
UFRGS – [email protected]

Lurdi Blauth
FEEVALE – [email protected]

O artigo trata da instalação “Ninhos e o arquivo agora” composta por foto-


grafias, gravuras e ninhos, criada especialmente para o Porão do Paço da
Prefeitura Municipal de Porto Alegre, em 2013, por Elaine Tedesco e Lurdi
Blauth. Aborda-se a colaboração entre as artistas e as especificidades de seus
desdobramentos numa poética de coautoria, focalizando o uso de imagens de
arquivo e os aspectos indiciais presentes na fotografia e na gravura e, tam-
bém, a instalação como uma estratégia de contato com o lugar no qual o ninho
é uma metáfora da acolhida.
Palavras-chave: arquivo, contato, lugar, fotografia, instalação.

The theme of the present article is the instalation Nests and the archive now,
made up of photos, metal engravings and nests, created especially for the
Porto Alegre Town Hall Basement in 2013 by two artists and researchers. It
approaches the cooperation between the artists, and the specificities of its
unfoldings in a joint authorship poetic, focusing the use of archived images,
and the indicial aspects that are present in photography and, also, installation
as a strategy of contact with the place, in which the nest is a metaphor for a
cosy welcoming.
Key-words: archive, contact, place, photography, installation.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 193

Introdução
O processo de criação da instalação que denominamos de “Ninhos e o arquivo agora”
teve como ponto de partida a percepção sobre o espaço expositivo do Porão do Paço
da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, RS, compartilhada em conversas sobre sua
história, seu significado e sua arquitetura e relacionadas a conceitos e procedimentos
que constituem as caminhadas individuais. Assim, foram estabelecidas as convergên-
cias para as escolhas do trabalho: fotografar no lugar, usar imagens de arquivo e dispor
ninhos pelo Porão. Os ninhos, objetos exteriores ao Porão, fazem parte das coleções
individuais e conectam nossas poéticas. As fotografias apresentadas foram obtidas no
local e essa conexão com o lugar, através da obtenção fotográfica, teve como interface
o uso de imagens de arquivos.
A colaboração e as especificidades de seus desdobramentos numa poética de coauto-
ria são provenientes do desenvolvimento de alguns trabalhos em parceria, desde 2010, a
partir da realização paralela (Feevale e UFRGS) da pesquisa “Procedimentos de contato”.
O intuito desta pesquisa é investigar as passagens entre diferentes procedimentos de con-
tato na gravura, fotografia de base química e imagem digital para a produção de imagens
no processo de criação. A instalação “Ninhos e o arquivo agora” é movida por um desejo
de conectar as poéticas, desse modo, propiciando uma maior integração à pesquisa.
A partir da definição de um espaço expositivo, no caso, o Porão do Paço Municipal
da Prefeitura de Porto Alegre, tratou-se o mesmo com as suas especificidades estruturais
e históricas: paredes largas de tijolo aparente e estrutura que sustenta a arquitetura do
prédio formada por arcos. O local contém uma antiga prisão que, no início da história da
cidade, funcionava para manter infratores e, também, já foi um depósito de mantimentos
da municipalidade.

Os ninhos
Por que ninhos agora? Quais associações entre as imagens apresentadas nessa insta-
lação? Iniciamos com uma citação poética: “ninhos brancos, teus pássaros vão florir”
(Ganzo, apud Bachelard, 2008, p. 103). No pensamento bachelardiano, encontramos
algumas reflexões: o ninho tem a função de habitar e é uma imagem que desperta em
nós a representação de uma primitividade. Ao observarmos um ninho, sempre, restamos
encantados com a sua engenhosidade e a perfeição com que o pássaro constrói a sua
pequena morada, deixando a marca de um instinto que se repete. O ninho é também um
esconderijo da vida alada, onde, talvez, possa-se ficar invisível sob o céu.
Ao mesmo tempo em que é um abrigo precário, o ninho também remete ao devaneio
da segurança e ao lugar do refúgio absoluto. Essas imagens nos instigam a pensar sobre
flutuações dialéticas entre o interior e o exterior, entre o escondido e o manifesto, entre
possibilidades e impossibilidades.
194 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Os arquivos
Na série apresentada por Lurdi Blauth, o arquivo agora faz parte de um acervo pessoal
de fotografias digitais e oriundas de locais em situação de clausura, de paredes precá-
rias, de passagens entre interior e exterior, de ninhos abandonados no seu jardim que
foram acolhidos no seu atelier e, ainda, imagens de ninhos gravadas em placas de cobre.
(Figuras 1, 2, 3). Além disso, a arquitetura do porão e os seus detalhes também foram
fotografados, e, em uma das salas ─ a ex-prisão ─ a artista relacionou-a com duas foto-
grafias de seus arquivos que mostram a arquitetura de uma ex-prisão visitada na cidade
de Montevidéu, UY.

Figura 1. Lurdi Blauth, 2013, Ninho objeto, 18x18x12cm


Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 195

Figura 2. Lurdi Blauth, Ninho Habitado IV, Figura 3. Lurdi Blauth, 2013, Fotografia so-
2013, Calcografia, 30x40cm bre canvas, 60x100cm

Assim, nos trabalhos apresentados nessa exposição, a fotografia digital é o disposi-


tivo deflagrador para a criação das distintas imagens, que abarca a gravação de placas
de metal, a impressão convencional e a impressão digital sobre papel e canvas. Nesse
processo, constata-se que a migração entre meios e procedimentos provoca tensões entre
as imagens geradas pelo modo analógico (gravura) e as imagens concebidas por meios
digitais (fotografia), cujos resultados guardam os aspectos indiciários da fotografia.
O que podemos perceber nas imagens apresentadas nessa exposição? As imagens
desses trabalhos são operadas pela intermediação entre o gesto tradicional e o gesto que
opera a produção de tecnoimagens e, de certa maneira, comportam uma ambiguidade.
Para Vilém Flusser (2008, p. 16), “as imagens tradicionais são superfícies abstraídas
de volumes, enquanto as imagens técnicas são superfícies construídas com pontos”.
Para este autor são gestos opostos, “o primeiro concretiza e o segundo abstrai planos”
(Flusser, 2008, p. 35). De um lado, o que vemos são imagens que possuem uma certa
profundidade, fixam-se nas superfícies dos volumes, ou seja: “o olho contempla superfí-
cies para poder imaginar volumes” (Flusser, 2008, p.20). De outro, as imagens técnicas
remetem para as estruturas de superfícies dos volumes localizadas no próprio espaço.
No entendimento desse autor, “imagens técnicas não são superfícies efetivas, mas su-
perfícies aparentes, superfícies cheias de intervalos [...] e se dirigem rumo à superfície a
partir de pontos” (Flusser, 2008, p.35).
Nesse sentido, as imagens, ao serem intermediadas entre esses distintos meios, per-
mitem que o espectador transite entre o objeto real e o virtual. No caso dessa exposição,
ambas as imagens são provenientes de uma realidade preexistente (os ninhos e as pa-
redes do porão), porém, no momento em que são inseridas em um processo computa-
cional, essas características físicas se transformam em “valores numéricos”. Ou seja,
de acordo com Edmund Couchot (2003, p.163-64), “a imagem numérica não é mais o
registro de um traço deixado por um objeto pré-existente pertencendo ao mundo real [...]
ela se instaura em uma nova ordem visual em ruptura com as técnicas tradicionais da
imagem”. Assim, as relações articuladas nesses trabalhos propõem analogias que jogam
196 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

com objetos reais (os ninhos) e a produção de imagens que remetem a uma visualidade
que se equivale a semelhanças de uma realidade próxima e afastada.
Elaine Tedesco, por sua vez, usou, como um dos materiais para montar a insta-
lação, seus arquivos de películas em preto e branco. Fotografias que estavam guardadas
em sua caixa de negativos, as quais vem experimentando, nos últimos anos, projetar
sobre diferentes contextos, procurando criar imagens que as atualizem. Criar novas fo-
tografias, a partir dos arquivos pessoais, assim como desdobrar um trabalho em outro,
reutilizando partes ou o todo em novas situações de apresentação, é parte de seu método
de trabalho, seja em fotografia, vídeo ou instalação.
As imagens escolhidas são retratos de crianças, obtidos em negativo 35mm,
preto e branco e com uma câmera Leica, no início dos anos 1980, em diferentes locais
da cidade de Porto Alegre, especificamente: no Mercado Público – que fica ao lado da
Prefeitura (onde está situado o porão); na Praça XV, localizada em frente ao Mercado
Público, e no Parque Farroupilha. O processo de trabalho no Porão consistiu em projetar
esses negativos, com um antigo projetor de slides, sobre as paredes do lugar. Essa ação
luminosa criou uma sobreposição entre imagem projetada e arquitetura, implicando uma
fusão entre ambas (Tedesco, 2009), que foi fotografada com uma câmera digital. A so-
breposição é geradora de outra imagem, na qual as superfícies estão aderidas. A textura
da parede misturou-se aos retratos das crianças obtidos 30 anos antes, acrescentando-
lhes novas significações (Figuras 4, 5). Agora, as novas fotografias são matrizes numéri-
cas a espera de uma atualização, encontram-se virtualmente como arquivos de imagens
digitais numa pasta em seu computador.

Figura 4. Elaine Tedesco, 2013, Guri no mercado, fotografia Figura 5. Elaine Tedesco,
90 x 60cm 2013, vista da instalação

Relacionamos essa sequência de procedimentos ao que François Soulages define


como fotograficidade - “a articulação do irreversível e do inacabável, irreversível obten-
ção do negativo e o inacabável trabalho do negativo” (Soulages, 2005, p.18). São ima-
gens que passaram por diferentes estados (película fílmica, imagem luminosa, imagem
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 197

digital). Passaram, também, por duas etapas de irreversibilidade e, novamente, encon-


tram-se na situação de material disponível a ser trabalhado. Os arquivos de imagens di-
gitais foram escolhidos e impressos em papel fotográfico no tamanho de 60cm x 90cm,
colados e montados em molduras preto-foscas.
Enfim, dispuseram-se as fotografias diretamente sobre o chão, encostadas às pa-
redes sobre as quais haviam sido registradas. O inacabável trabalho do negativo foi
posto em sucessivas operações entre diferentes procedimentos de contato e gerou um
afastamento, a cada etapa maior, da irreversível obtenção e, consequentemente, a ima-
gem tornou-se dissemelhante (Ranciére, 2011, p.14). O caráter icônico das imagens – a
similaridade com a aparência de seu objeto referencial – espelha o que não é conhecido
pelo observador – as camadas que existem no processo do fotografar, desta forma, quem
as vê projeta sobre elas o que conhece. Na atualidade, os processos de manipulação de
imagens em softwares inundam nosso dia a dia, a partir desse conhecimento, é mais pro-
vável supor que sejam retratos manipulados em programas para tratamento de imagens
com artifícios, jogos e desenhos.

A instalação em contato com o lugar - considerações finais


Os ninhos guardados pelas artistas, durante alguns anos, fazem parte de seus materiais
de trabalho e seus arquivos físicos. Os ninhos em feltro vermelho, conectados às paredes
do Porão, foram criados por Tedesco, em 1991, expostos em duas instalações e, atual-
mente, são parte de seu acervo; e Blauth, que coleciona ninhos de pássaros abandonados
e coletados em seu jardim, desde 2005, apresentou-os dentro de caixas de acrílico. Dis-
postos pelo lugar, tais objetos estabelecem uma conexão temática que se dilata no tempo
e expande-se, ultrapassando a mera relação de semelhança existente entre eles.
Jacques Rancière (2011, p.11), quando escreveu sobre o cinema, postulou: “E há o
jogo de operações que produz aquilo a que chamamos arte, ou seja, precisamente uma
alteração de semelhança”. Para o autor, não ser semelhante na atualidade, passa a ser um
imperativo da arte, afirmação que é posta em dialética quando questiona se a não seme-
lhança seria “a submissão da riqueza concreta a operações e artifícios que encontram
na linguagem sua matriz?” (Rancière, 2011, p. 16). Estamos nós envolvidas com esses
jogos de linguagens, operações e artifícios durante a produção das imagens e, ao mesmo
tempo, procurando ultrapassá-los na montagem da instalação (Fig.6).
Montar uma instalação pode ser comparado a construir um ninho, o ninho precisa
de um suporte – muitas vezes, uma árvore – o pássaro busca materiais para construí-lo,
a forma do ninho é tramada, por ele, na possível relação entre as linhas, materiais e a
árvore (ou outro local) que lhe serve de apoio. Em uma analogia a esse processo, para
realizar uma instalação, também se precisa de um lugar preexistente, é com ele que são
articulados os demais elementos que constituem a ideia do artista. Instalar é reordenar as
partes com o todo, tramar o encontro do imaginário com o espaço existente, montar es-
truturas que acolherão as pessoas e, depois, serão desmontadas, é criar dessemelhanças,
198 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

criar um espaço de múltiplos contatos, produzir situações que na acolhida proporcionem


o que Ranciére denomina “partilha do sensível” entre os sujeitos.

Figura 6. Blauth e Tedesco, 2013, vista geral da instalação

Referências
BARTHES, Roland. (1984). A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
COUCHOT, E. (2003) A tecnologia na arte. Porto Alegre, RS: Editora da UFRGS.
FLUSSER, V. (2008) O universo das imagens técnicas. São Paulo, SP: Annablume.
SOULAGES, Françoise.(2005). A Fotograficidade. In: Porto Arte, PPGAV/UFRGS, v. 13, no
22. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/PortoArte/article/view/27900/16507. acesso em
20/09/2013.
RANCIÈRE, Jacques.(2011). O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto.
TEDESCO, Elaine Athayde Alves. Um processo fotográfico em sobreposição no espaço urbano.
Tese. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/17034, acesso em 21/09/2013.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 199

Estéticas da co-autoria: Mashup,


sampleamento e remixagem no vídeo
brasileiro contemporâneo

Erly Vieira Jr.


PPGA-Ufes – [email protected]

Dentro de uma auto-referente “cultura da reciclagem” (BASTOS, 2004) con-


temporânea, marcada pelas lógicas do sampleamento e remixagem, de que
forma os procedimentos de autoria estão reconfigurados, em especial nos
meios audiovisuais? Analisaremos aqui a presença desses conceitos na pro-
dução de três nomes brasileiros do século XXI: o cearense Salomão Santana,
o coletivo paulistano Bijari e a artista capixaba Elisa Queiroz.
Palavras-chave: sampleamento, remixagem, found footage, “cultura da reci-
clagem”.
200 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Uma família de Testemunhas de Jeová, em visita a conhecidos em outro estado,


reúne-se para uma leitura bíblica, seguida de uma explanação do pastor. Esse encontro,
registrado em vídeo, é uma espécie de videocarta a ser enviada a alguém da família, que
não pôde participar desse momento de comunhão religiosa. Os cortes de cabelo volu-
mosos e repicados, as estampas das roupas indicam ser uma imagem gravada em algum
momento da segunda metade da década de 80. A baixa resolução da imagem VHS, num
precário estado de conservação, repleta de falhas e drop outs, concede a esse vídeo
um certo caráter fantasmagórico, como se estivéssemos diante de uma nova versão da
“invenção de Morel”, já muito deteriorada nesses quase vinte anos que nos separam o
momento da gravação original.
Este material compõe o filme Jarro de Peixes (2008), assinado pelo cearense Salo-
mão Santana, nascido em 1985. Como A curva (2007), seu trabalho anterior, trata-se de
um material retirado do acervo do videomaker Miguel Pereira, capturado nas décadas de
80 e 90 em Juazeiro do Norte, cidade natal de Salomão – um arquivo composto por fitas
VHS, basicamente registros casamentos, festas e videobooks de anônimas aspirantes a
modelo, originalmente gravados por encomenda, sem intenções artísticas. Se A curva
era um típico trabalho do gênero found footage (vertente do cinema experimental que
se apropria de imagens de arquivo, recontextualizando-as e conferindo novos sentidos),
Jarro de Peixes se diferencia por evitar ao máximo as intervenções de pós-produção,
dando ao espectador a impressão de ser um trecho integral do material bruto que foi
dali retirado e transposto para outro contexto, o dos festivais e mostras audiovisuais.
Podemos inclusive enxergar esse tipo de procedimento como uma atualização, no cam-
po audiovisual, de uma lógica de apropriação muito comum nas artes visuais, tornada
comum a partir dos ready-made duchampianos de cem anos atrás.
Se, nos últimos vinte anos, vimos emergir uma cultura marcada pela auto-referên-
cia e revivalismo, em que a noção de autoria é atravessada por inúmeras apropriações
e releituras de produtos artísticos e midiáticos (a “cultura da reciclagem” à qual Mar-
cus Bastos se refere), cabe aqui pensar de que formas essas questões reaparecem nos
meios audiovisuais. Estamos aqui já distantes da tão proclamada “morte do autor”,
largamente discutida por teóricos como Barthes e Foucault no final dos anos 60. A
própria disponibilidade de acervos culturais (sonoros e imagéticos) nos meios digitais
e as possibilidades contemporâneas de compartilhamento e apropriação desses mate-
riais, bem como as práticas colaborativas de criação artística faz com que a questão
da autoria seja recolocada em novos patamares – por exemplo, através de trabalhos de
autoria coletiva, ainda que realizados transnacionalmente, a partir de práticas de rede,
ou mesmo através de propostas que envolvam a interação com o público, tornando-o,
por vezes, uma espécie de co-autor.
A popularização da cultura do sampleamento na música popular, a partir do começo
da década de 80, que possibilitou a ascensão de gêneros como o hip hop, a música ele-
trônica e o funk carioca, é sintomática desse processo. Cabe lembrar que, nas canções
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 201

que sampleiam outras gravações pré-existentes, o crédito de autoria é compartilhado


também com os detentores de direito autoral dessas gravações originárias – inclusive no
que tange aos ganhos financeiros dentro da indústria fonográfica mundial.
Para investigar esses processos artísticos, autores como Lev Manovich (2004) e
Marcus Bastos (2004) têm tomado emprestados termos originários da música eletrônica:
seja o sampleamento, em que uma amostra (sample) sonora ou imagética de uma obra
pré-existente é “colada” numa nova obra, trazendo consigo seus significados originais e
agregando os do novo contexto; o remix, recombinando enunciados e elementos estéticos
originais e novos; ou ainda o mashup, cujo caráter demolidor vem justamente da junção
de duas ou mais obras, reconciliadas na forma mas divergentes semanticamente – naquilo
que talvez mais se aproxime, no século XXI, do ideal duchampiano do ready-made.
Vale lembrar que tais procedimentos, ao se apoderarem de imagens e sons pré-exis-
tentes e muitas vezes conhecidos do público, também permitem à nova obra incorporar
todo um imaginário (simbólico e afetivo) que está atrelado à obra original – tensionada,
obviamente, pelo deslocamento de contexto em que a nova obra “derivada” se insere.
E, ao experimentar essa nova obra, o público é convocado a também fazer dialogar seus
repertórios e impressões sobre a obra “originária”.
No campo do cinema experimental, tais práticas já se fazem presentes há mais de
meio século, através do found-footage; contudo, com a larga popularização das tecno-
logias digitais, a partir do final da década de 90, elas têm se tornado bastante frequentes
na videoarte e no VJing, em especial sob uma forte presença micropolítica da ironia -
no sentido que Linda Hutcheon (1991) confere ao termo. Pensemos, por exemplo, no
sampleamento empregado pela capixaba Elisa Queiroz em seu Free Williams (2004).
Trata-se de um trabalho videoartístico, com base numa performance empreendida por
Elisa e outros seis coadjuvantes, numa clara parodização da figura da nadadora e atriz
hollywoodiana Esther Williams, e das coreografias aquáticas de Busby Berkeley nos
musicais das décadas de 30 e 40.
Em suas obras, Elisa sempre fez uso de sua figura obesa para questionar os padrões
estéticos dos corpos esguios/atléticos vigentes na sociedade de consumo, resgatando
ideais de sensualidade que mais se aproximam das figuras femininas barrocas ou mesmo
das imagens de fertilidade de algumas esculturas pré-históricas, em apropriações bastan-
te irônicas. Em Free Williams, o grau de paródia atinge o máximo quando uma imagem
de Esther Williams, nadando sorridente com os personagens de desenho animado Tom e
Jerry, do filme Dangerous when wet (1953), é apropriada, para em seguida receber uma
inserção da própria Elisa, também nadando, também sorridente, a partir de um efeito de
chroma key. Essa imagem sintetiza toda uma poética presente nos trabalhos da artista,
precocemente falecida em 2011: “Construo peças para discutir minha identidade e meu
poder de sedução, usando a ludicidade para reler a percepção do desencaixe que minha
corpulência sugere à sociedade contemporânea ocidental, recondicionando o olhar do
espectador.” (QUEIROZ, 1998).
202 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Já a lógica da remixagem permite descontruir certos elementos simbólicos do texto


imagético original, ao reorganizar suas durações, velocidades, ordem narrativa e impor-
tância hierárquica dentro do material audiovisual original. Pensemos aqui no trabalho
subversivo que o austríaco Martin Arnold faz na cena final de seu Alone: Life wastes
Andy Hardy (1998), ao se apropriar de trechos de uma comédia juvenil hollywoodiana
da década de 40. Nele, a imagem de um bem-comportado “selinho” entre os adoles-
centes Judy Garland e Mickey Rooney acaba sendo dotada de um explícito sentido se-
xual apenas através da manipulação da velocidade dessa imagem (é mantida inclusive
a banda sonora original), numa espécie de vai e vem que se amplia, repetindo o beijo e
aumentando microscopicamente o suspiro que a atriz emite ao final dele, acelerando a
cada repetição até simular um intenso orgasmo, totalmente inexistente na versão origi-
nal da cena.
Outro exemplo marcante está em 468, trabalho realizado em 2006 pelo coletivo
BijaRi. Retratando a ação policial para desocupar um edifício abandonado no centro de
São Paulo (Ocupação Prestes Maia), habitado por 468 famílias de sem teto, o vídeo se
utiliza basicamente da cobertura telejornalística do evento para desconstruir o discurso
hegemônico de gentrificação e privatização das políticas públicas empreendidos pelos
órgãos governamentais em São Paulo. Ao manipular digitalmente as imagens e sons, por
meio de uma instigante edição, contrapondo falas dos jornalistas e apresentadores de
televisão, repetindo-as em off, várias vezes, sob imagens que esvaziam a suposta verda-
de inerente a seus enunciados, o vídeo do coletivo paulistano faz emergir um poderoso
contra-discurso de evidenciação das lacunas e contradições do poder público, altamente
irônico e demolidor, e que costuma ser silenciado pelo telejornalismo de massa. Aqui,
até a hierarquia dos enunciados é invertida: os depoimentos dos “sem-teto”, por exem-
plo, deixam de ser mero complemento (como nas reportagens originais) e são estrategi-
camente posicionados em pontos-chave do vídeo, de modo a ecoarem como perguntas
que não querem calar, como a mãe que questiona a garantia de vagas nas escolas para
seus filhos, em caso de remoção para outro lugar, uma vez que o ano letivo encontra-se
já bastante avançado.
A remixagem no campo videográfico, inclusive, pode se apropriar, de forma ico-
noclasta, de procedimentos banais e cotidianos, advindos da cultura de internet, como
por exemplo os gifs animados, em que frames são sequenciados e repetidos em looping
permanente. Essa estética inspira (segundo depoimento do próprio artista) os experi-
mentos de montagem presentes em Primas (2012), de Salomão Santana, que desbasta
pequenos trechos de imagens de seu usual arquivo (um pequeno barco pesqueiro, duas
jovens de biquíni tomando sol à beira de um açude, casais de mãos dada, desfilando na
praça de uma cidade de interior), reduzindo a ação a sequências de movimentos corpo-
rais, que vão se sucedendo numa espécie de looping, ora repetindo um mesmo take, ora
sequenciando imagens parecidas, extraídas de takes diferentes. Ao esvaziar a imagem
de arquivo familiar de seu sentido original, submetendo-a à lógica do gif (potencializado
por um insólito mashup, pela adição de uma locução de Francisco Cuoco e uma trilha
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 203

sonora estilo blaxploitation), o curta de Salomão acaba por instaurar uma experiência
sensorial de estranhamento e fascínio, numa espécie de objeto “alienígena”, tanto no
campo do cinema quanto no das artes visuais brasileiras, cujos efeitos ainda estão por
ser desvendados.

Referências
BASTOS, Marcus. “A cultura da reciclagem”. In: ALZAMORA, Geane et al (org). Cultura em
fluxo: Novas mediações em rede. Belo Horizonte : PUC-MG, 2004.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
MANOVICH, Lev. “Quem é o autor. Sampleamento/ mixagem / código aberto”. In: ALZAMO-
RA, Geane et al (org).Cultura em Fluxo:  Novas mediações em rede. Belo Horizonte: PUC-
-MG, 2004.
QUEIROZ, Elisa. “Depoimento”. In: Objeto obeso. Vitória: GAEU/ Ufes, 1998 (catálogo de ex-
posição).
204 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Autoria: marca registrada?

Fabíola Tasca
Escola Guignard/UEMG – [email protected]

Resumo: A presente comunicação pretende especular acerca de relações en-


tre arte e trabalho subjacentes à noção de autoria na contemporaneidade,
estreitamente tributária da separação entre concepção e execução como ins-
tâncias de produção da obra de arte.
Palavras-chave: autoria, arte contemporânea, marca registrada

The aim of this paper is to explore the relations between Art and Work that
underlie the very idea of authorship in contemporary art and culture, closely
linked to the split between Conception and Execution as separate instances on
the process of production of the artwork.
Keywords: authorship, contemporary art, trademark
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 205

Jackson Pollock está no umbral da porta. De um lado, uma legião de artistas ansio-
sos, marcados pela insígnia da marginalidade em suas diversas feições, compelidos pela
urgência do fazer, engajados no enfrentamento de matérias, materiais e procedimentos
de trabalho que traçam os respectivos pertencimentos à especificidade de uma ou outra
mídia; de outro lado uma espécie de celebração em torno da inexorável anexação da vida
como obra de arte.
Em 1958 Allan Kaprow exortava os jovens artistas a celebrarem certa generalida-
de operativa no exercício de suas ocupações profissionais. Não mais definidos como
pintores, poetas, dançarinos, músicos... aos artistas bastaria enunciarem sua condição
intransitiva e tudo na vida estaria aberto para eles. “Simplesmente artistas” é como
Kaprow define e resume a não circunscrição disciplinar constitutiva do fazer artístico
contemporâneo, diagramado na passagem do idioma modernista para o não modernista,
a partir da figura emblemática de Pollock (Kaprow, 2006). Nicolas Bourriaud esclare-
ce a diferença fundamental entre o “ofício” do artista e os demais ofícios, salientando
que o diacrítico em questão reside na natureza dos gestos realizados. Se as profissões
ordinárias requerem o aprendizado e o exercício de gestos previamente definidos e co-
dificados, “o artista moderno deve ele próprio inventar a sucessão de posturas e gestos
que lhe permitirão produzir” (Bourriaud, 2011, p. 11). E não só os gestos e posturas,
mas o ritmo e a distribuição dos produtos de seu trabalho. Bourriaud sublinha que “a
obra de arte difere das outras classes de objetos pelo fato de não ser determinada por
um contexto profissional normativo” (Bourriaud, 2011, p. 12). Estamos no território da
liberdade, reduto por excelência da arte e dos artistas, desde que arte se faz sem restrição
metodológica ou de materiais.
Luiz Renato Martins salienta que a Arte Moderna traça o percurso da constituição da
arte como “paradigma simbólico do trabalho emancipado”, na medida em que o artista
torna-se o “maior responsável e detentor primeiro dos frutos do seu trabalho, das obras
que apresenta diretamente ao julgamento público e, eventualmente ao mercado compra-
dor” (Martins, 2003, p. 128).
Trata-se do desenho de um novo contrato social-artístico, em paralelo ao qual as
formas gerais de trabalho e de produção nos primórdios do capitalismo caminham em
sentido contrário.

À legião de antigos produtores independentes, os artesãos e os pequenos proprietários, mes-


clados aos demais miseráveis, resta como única possibilidade o regime de trabalho alienado:
o modo no qual os proventos salariais podem variar, mas nunca o grau de liberdade frente à
configuração e ao destino final do trabalho, cuja determinação pertence exclusivamente ao
capitalista. (Martins, 2003, p. 128)
206 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Nessa perspectiva,

a arte passa a valer, de certo ângulo ético e cognitivo, como um horizonte utópico ou uma
promessa, para o restante da humanidade, que se vê excluída do direito de autodeterminação
no trabalho e, por conseguinte, do direito à consciência cujo desenvolvimento se liga ao tra-
balho.” (Martins, 2003, p. 129)

Giulio Carlo Argan compreende a história da arte como uma história da liberdade,
referindo-se à liberdade do artista poder deliberar sobre materiais, temas, procedimen-
tos, independente de qualquer academia, de qualquer poder da igreja ou independente
do poder real. Se considerarmos este postulado, podemos perceber o artista como o
“modelo” do trabalhador emancipado.
Em que medida tais apontamentos nos auxiliam na tarefa de compreender algumas
mutações em curso nas condições de produção da obra de arte e no papel do artista?
Numa determinada perspectiva, poder-se-ia agir como se a propalada liberdade fosse
um elemento inquestionável, de maneira a colaborar para certa idealização da atividade
artística, o que funcionaria como sustentáculo do estatuto vigente da arte na sociedade,
um estatuto que informa a doxa. Trata-se de um discurso que investe na mistificação
do trabalho artístico apresentado como uma atividade especial o que, num certo sentido,
pode ser compreendido como uma manobra ideológica que termina por encobrir as efe-
tivas condições de produção da obra de arte, colaborando para a perpetuação do papel
conservador da Instituição Arte que se ancora em determinadas premissas:

(1) A arte como manifestação suprema e eterna (leia-se apolítica) da civilização cristã ociden-
tal. (2) A arte como manifestação reservada a alguns poucos eleitos, inteligentes e sensíveis,
e que o são por dom, não por educação e aprendizado social. (3) A arte como espaço mítico,
fechado sobre si mesmo, uma espécie de moderno substituto da religião. (Brito, 2005, p. 54)

Mas, pode-se questionar a possibilidade de um trabalho não alienado no contexto


do sistema capitalista, convocando uma reflexão sobre as relações entre arte e traba-
lho. Tal reflexão permanece na ordem do dia pelo menos desde que Marcel Duchamp
propôs objetos industriais como obras de arte, transportando o processo capitalista de
produção (trabalhar a partir do trabalho acumulado) para a esfera da arte. Desde que
tal provocação foi acolhida pelo mundo da arte como um dos lances mais engenhosos
e significativos, a autoria foi problematizada de maneira irrevogável; não mais condi-
cionada às habilidades artesanais, à intimidade com um ou outro metiê, o fazer artístico
viu-se recorrentemente endereçado à pergunta sobre as especificidades de tão misteriosa
atividade. Atitude como resposta. É o que nos diz Mário Pedrosa quando esclarece os
critérios para a seleção de Porco Empalhado, enviado por Nelson Leirner ao Salão de
Brasília, em 1969: “Na arte pós moderna, a idéia (sic), a atitude por trás do artista é
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 207

decisiva” (Pedrosa, 1986, p. 236). Jacques Lenhardt (Leenhardt, 1994) caminha no


mesmo sentido ao afirmar que a operação duchampiana, não apenas inserindo objetos
readymade, mas, também, imagens já prontas no contexto da produção artística, propõe
considerar o artista/autor não como um produtor de imagens que as ofereceria ao consu-
mo “passivo” dos espectadores, mas como aquele que convidaria o espectador a assumir
uma relação crítica com as imagens que o rodeiam. O artista/autor seria - para Lenhardt,
a partir de Duchamp - aquele que convidaria o espectador a ultrapassar sua submissão
“automática” às imagens e com elas estabelecer certo tipo de engajamento. Essa é, sem
dúvida, uma maneira de perceber a recolocação da questão da autoria quando esta não
está mais identificada com o fazer, um determinado fazer, aquele da manipulação da
matéria, do jogo com os materiais, da conformação do objeto.
A partir da segunda metade do século XX, a arte vem estabelecendo inúmeros pro-
cedimentos que são responsáveis pelo deslocamento do lugar do autor enquanto um
produtor de obras de arte - compreendidas em sua realidade material -, para a condição
de um propositor de questões. Dispor elementos pré-existentes constitui parte do traba-
lho do artista contemporâneo, engajado na tarefa de promover a emergência de novos
sentidos a partir de justaposições insuspeitas. Mixar, apropriar, combinar, reordenar são
verbos concernentes ao idioma contemporâneo, verbos que sinalizam o desalojamento
da tradicional ideia de criação (ex nihilo), de índole romântica e moderna, pelas ideias
de arranjo, combinação, organização. Nesse contexto, conforme salienta Jacques Ran-
cière, parece desfazer-se o que constituía o conteúdo tradicional da noção de obra: “a
expressão da vontade criadora de um autor numa materialidade específica trabalhada por
ele, singularizada na figura da obra, erigida como original distinto de todas as suas re-
produções. A idéia (sic) de obra torna-se radicalmente independente de toda elaboração
de uma matéria particular” (Rancière, 2003).
Como Nicolas Bourriaud acrescenta: “os artistas atuais não compõem, mas progra-
mam formas: em vez de transfigurar um elemento bruto (a tela branca, a argila), eles
utilizam o dado” (Bourriaud, 2009, p. 13). O curioso é que tal reconfiguração dos pro-
cedimentos artísticos não ameaça a figura do autor. Estamos no seio de um processo
complexo no qual a autoria passa a ser articulada a partir da complexa separação entre
execução e concepção.
Jacques Rancière nos diz que a noção de autor não se dissolve na manipulação das
coisas banais ou na infinidade de reproduções, mas, ao contrário, aproxima-se da pro-
priedade pessoal da ideia. Se o artista contemporâneo não está mais sob o imperativo
de fazer a obra utilizando-se de sua própria força de trabalho, e, ao invés disso, pode
terceirizar a execução, contratar assistentes, fornecer instruções, “[o] que se perde então
não é nem a personalidade do autor nem a materialidade da obra. É o trabalho pelo qual
essa personalidade se alterava nessa materialidade. A retirada da obra em direção à idéia
(sic) não anula a realidade material da obra. Mas ela tende a transformar a propriedade
paradoxal da obra impessoal em propriedade lógica de uma patente de inventor.” O que
208 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Rancière vem nos dizer é que o autor contemporâneo é mais estritamente proprietário
do que jamais o foi qualquer autor.

Figura 1 - Rochelle Costi, Reprodutor, 2008. (Fonte: http://rochellecosti.com)

Uma oportunidade de especularmos a esse respeito nos é oferecida pela instalação


de Rochelli Costi, Reprodutor (Figura 1). Dispostos no espaço da galeria encontravam-
se imagens fotográficas de obras de diversos artistas, como German Lorca, Leonora
de Barros, João Castilho, João Modé, Man Ray, Marina Abramovic, Mauro Restiffe,
Rosângela Rennó, Thomas Farkas, Vik Muniz, além de um retrato da própria Rochel-
le Costi feito por um fotógrafo anônimo. A exposição apresentava também “mesas de
reprodução”, as quais podiam ser utilizadas para o exercício do ato de desenhar a ser
executado pelos visitantes. Estes tinham a liberdade de escolher uma fotografia, retirá-
-la da parede, encaixá-la em uma das mesas reprodutoras e copiá-la através da sombra
projetada por um vidro vermelho que dividia a mesa em duas metades. De um lado a
imagem de inequívoca autoria, do outro lado a sombra projetada, imagem etérea, puro
reflexo que, ao ser reforçado pelo gesto do visitante, constituía um desenho de sua au-
toria. Depois de executada a ação de índole participativa, a imagem/desenho produzida
pelo visitante podia integrar a instalação compondo a curadoria assinada por Rochelle
Costi, o conjunto de seus originais.
Muito se disse sobre Reprodutor sublinhar que a reprodutibilidade é sempre autoral
e subjetiva. É sem dúvida uma possibilidade de leitura bastante interessante e Pierre
Menard poderia ser um bom aliado se optássemos por seguir essa direção. Mas, para o
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 209

argumento que gostaria de sugerir neste texto, os gestos de cada visitante não tanto os
alçam à condição de autores (status em relação ao qual se requer bem mais do que um
fazer isolado) mas, antes, os situam como fazedores que insinuam a questão da autoria
como marca. Não por acaso a inicial da palavra Reprodutor estava grafada com o sím-
bolo de Marca Registrada. Seria preciso muito mais espaço e trabalho para investirmos
em deslindar o labirinto das complexas relações contemporâneas entre produção e con-
sumo, obra de arte e produto, concepção e execução, problemas em relação aos quais o
campo do design talvez tenha muito a nos dizer. A potência de Reprodutor, creio, está
na habilidade com a qual manobra certa ambiguidade: o procedimento por meio do qual
cada visitante reproduzia as imagens/marcas dos autores em questão era o trabalho por
meio do qual ele ou ela tanto sinalizava sua subordinação à ideia do autor quanto dela
podia tomar distância.

Referências
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. Tradução Luigi Cabra. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
BOURRIAUD, Nicolas. Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si. Tradução Dorothée de
Bruchard. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BRITO, Ronaldo. Análise do Circuito. In: _______. Experiência crítica – textos selecionados.
Organização de Sueli de Lima. São Paulo: Cosac & Naify, 2005. pp. 53-63.
KAPROW, Allan. O legado de Jackson Pollock. In: FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecília
(Org.). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. pp. 37-45.
LEENHARDT, Jacques. Duchamp: Crítica da razão visual. In: NOVAES, Adauto. Artepensamen-
to. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. pp. 339-349.
MARTINS, Luiz Renato. A arte entre o trabalho e o valor. Palestra proferida no Centro Maria
Antonia, USP, no seminário Argan, 10-12 nov. 2003. Disponível em:< http://www.unicamp.
br/cemarx/criticamarxista/critica20-A-martins.pdf>. Acesso em: 07 fev. 2011. pp. 123-138.
PEDROSA, Mário. Do porco empalhado ou os critérios da crítica. In:_______. Mundo, Homem,
Arte em crise. Organização de Aracy Amaral. São Paulo: Perspectiva, 1986. pp..231-236.
RANCIÈRE, Jacques. Autor Morto ou Artista Vivo Demais? Folha de São Paulo. 06 de abril de
2003. Caderno Mais.
210 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Revistas de invenção como redes


colaborativas no brasil dos anos 70

Felipe Martins Paros


UNIR/RO – [email protected]

O presente artigo recupera algo do papel das chamadas “Revistas de In-


venção”, ligadas ao cenário das artes e poesia experimental dos anos 70 de
grandes capitais brasileiras tais como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador,
através da história de uma delas: a soteropolitana “Código”. Surgida em 1974,
mantida e publicada de maneira independente pelo mineiro Erthos Albino de
Souza até 1990, “Código” foi das mais longevas e influentes entre elas, e con-
figurou-se como uma intensa rede de colaboração entre uma geração já con-
sagrada de criadores brasileiros, e a geração imediatamente posterior a eles.
Palavras-chave: 1. Revistas de Invenção; 2. Arte Experimental Brasileira; 3.
Arte Brasileira dos Anos 70.

This article have the role of recovering something called “Magazines of Inven-
tion”, linked to the arts and experimental poetry scene of the 70’s in the major
Brazilian cities such as São Paulo, Rio de Janeiro and Salvador, through the
history of one of them: “Código” (Code), raised from Salvador (Bahia) in 1974,
was mainteined and published independently by Erthos Albino de Souza (born
in Minas Gerais) until 1990, and was one of the most enduring and influential
among them, and it configured as an intense network of collaboration between
an already established generation of Brazilian creators, and the generation
immediately after them.
Keywords: 1. Magazines of Invention; 2. Brazilian Experimental Art; 3. Brazi-
lian Art of the 70’s.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 211

Introdução
A Poesia Concreta Brasileira dos anos 50 é conhecida por ter explorado as possibilidades
sonoras e semânticas do texto impresso, juntamente com as gráfico-visuais: uma postura
designada por seus fundadores (os poetas Augusto de Campos, Haroldo de Campos
e Décio Pignatari) como “verbivocovisual”. Além de criadores artísticos, esses poetas
foram grandes tradutores, ensaístas e professores, tendo sido Décio Pignatari um dos in-
trodutores do pensamento de Charles Sanders Peirce em nosso país - o fundador de uma
Teoria Geral dos Signos que trouxe dentro de si o germe de uma postura intersemiótica e
essencialmente experimental, que se tornou característica da produção artística herdeira
das ideias e práticas concretas no Brasil.
A revista “Noigandres”, publicada por eles em 1952, pode ser compreendida como
descendente de publicações modernistas como “Klaxon” (1922). Nos anos 70, em con-
sonância com esse espírito experimental, outras publicações circularam nas grandes
capitais brasileiras, mormente São Paulo e Rio de Janeiro: as ditas “Revistas de Inven-
ção”, como as definiu o poeta curitibano Paulo Leminski (1982, p.3): independentes, em
alguns casos “marginais”, e relacionadas ao cenário artístico e cultural proveniente do
Concretismo e do Tropicalismo, partiam da vontade de criação de redes de circulação,
colaboração e troca de informações teóricas e artísticas alternativas ao establishment,
sendo que algumas delas ainda permanecem em atividade.
A revista soteropolitana “Código” (1974), editada e publicada pelo mineiro Erthos
Albino de Souza foi uma das mais emblemáticas, além de ter inspirado outras que sur-
giram posteriormente. O presente artigo buscou recuperar algo da trajetória dessa pu-
blicação como uma forma de entender essa intensa rede colaborativa que ligou artistas
visuais, poetas, ensaístas, músicos e compositores no Brasil dos anos 70.

Revistas de vanguarda, revistas de invenção...


Talvez a palavra “revista” nem sempre seja a mais adequada para se referir à natureza
das publicações mencionadas aqui, surgidas principalmente a partir do início da década
de 70. De qualquer maneira, a prática de organiza-las e publicá-las foi um procedimento
típico dos movimentos de vanguarda do início do século XX, mormente os literários,
procedimento este herdado pela cena artística brasileira e especialmente ativado no pe-
ríodo já mencionado.
Ao pensarmos no termo “revista”, talvez nos venham à mente definições como esta:
“(...) tradução do inglês review (porém, é óbvio que teria de escavar muito mais para um
esclarecimento realmente satisfatório da etimologia): ‘publicação periódica em que se
divulgam artigos originais, reportagens etc, sobre vários temas, ou, ainda, em que se di-
vulgam, condensados, trabalhos sobre assuntos variados já aparecidos em livros e nou-
tras publicações’” (KHOURI, 2003, p. 11). Porém, a maior parte dessas características
não se aplica às “revistas” mencionadas aqui, começando pela sua razão de ser. Afinal, as
revistas ligadas aos movimentos de vanguarda surgiram como uma ampliação e um veí-
culo para os chamados “manifestos”, convertendo-se dessa maneira em uma plataforma
212 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

para a circulação de novas ideias e práticas artísticas compartilhadas, sem que com isso se
abdicasse das expressões e pesquisas individuais, pois “como uma tendência de “ismos”,
o modernismo foi uma atmosfera intensificadora de diferenciações estéticas, culturais e
políticas com uma certa psicologia, sociologia e formalismo em comum. Como em todas
as seitas, religiosas ou políticas – e era na base de tais analogias que os movimentos
se formavam e atuavam -, os “ismos” tendiam ao cisma e ao sectarismo. Assim, con-
gregavam adeptos, montavam manifestações, apresentavam-se em público. Portanto, de
grande importância para a sua história são os manifestos que apresentavam e as revistas
que os promoviam ou publicavam” (BRADBURY et al, 1989, p.162-163).
As “Revistas de Invenção” são herdeiras (diretas e indiretas) de uma sequência de
publicações independentes cujo início podemos identificar nas revistas ligadas ao grupo
modernista paulistano, entre elas “Klaxon” (a pioneira, de 1922), a “Revista de Antropo-
fagia” e “Terra Roxa e Outras Terras”. Outro elo ainda mais importante dessa corrente
foi “Noigandres” (1952), publicação juvenil, mas de enorme sofisticação, do nascente
grupo de poetas concretos paulistas (a saber: os irmãos Augusto e Haroldo de Campos
e Décio Pignatari, na época na casa dos seus 20 anos), surgida como uma reação ao
conservadorismo poético da chamada “Geração de 45”. Os futuros poetas concretos rei-
vindicaram para si a herança experimental dos criadores do primeiro modernismo brasi-
leiro, e já em suas primeiras produções anunciaram uma postura criadora que dissolveu
a fronteira tradicional entre linguagens artísticas, abrindo caminho para experimentalis-
mos e processos de criação interpenetrados por sistemas sígnicos diversos.
Assim, no Brasil como em outros países ocidentais onde foram concebidas e pu-
blicadas, as revistas experimentais foram um fenômeno de contestação das práticas
artísticas vigentes, sempre ao redor de um núcleo programático e ideológico comum.
Buscaram a inovação em sua composição gráfica, mantiveram-se independentes no que
concerne aos seus recursos financeiros e acreditaram na possibilidade de circulação al-
ternativa ao circuito comercial das editoras e galerias. Lideradas por figuras agregadoras
e muitas vezes de apelo profético (como é típico das grandes figuras de vanguarda),
eram essencialmente colaborativas e muitas delas reuniram gerações diferentes de cria-
dores (em geral, “mestres” e “discípulos”). Porém, muito embora tivessem a intenção de
fazer circular informação artística atualizada para o maior número possível de pessoas,
elas em geral permaneciam restritas a um círculo não muito mais largo do que aquele
previamente frequentado e ativado pelos seus editores e colaboradores. Dessa maneira,
um dos grandes méritos dessas publicações era, justamente, a instauração de redes de
colaboração entre jovens criadores, e entre esses e a geração anterior, já estabelecida.
O resultado mais imediato dessas redes era um intenso fluxo de material teórico, meta-
linguístico e artístico, que as retroalimentava e criava condições para a renovação das
práticas e aporte teórico dos membros das mesmas.
As revistas setentistas, assim como as suas ancestrais dos anos 20 e 50, comparti-
lham com todas as outras publicações de vanguarda uma outra razão de ser: “tais publi-
cações com um público leitor limitado, mas característico, especializado, geralmente
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 213

de gosto avançado, disposto (muitas vezes) a reunir as diversas artes, tornaram-se os


meios básicos de expressão de novos talentos” (BRADBURY et al, 1989, p. 162-163).
Toda uma geração de jovens artistas e de poetas teve seus primeiros trabalhos impor-
tantes publicados nas páginas desses volumes, que acabaram por se configurar em co-
letâneas antecipadas da produção de nomes que acabariam ganhando grande relevância
na cena artística brasileiras nas décadas seguintes até os nossos dias, tais como Tadeu
Jungle, Lenora de Barros e Arnaldo Antunes, entre outros. Tal como afirmado por um de
seus principais colaboradores, o poeta curitibano Paulo Leminsky (1982, p. 3): “Con-
solem-se os candidatos. Os maiores poetas (escritos) dos anos 70 não são gente. São
revistas. Que obras semicompletas para ombrear com o veneno e o charme policromá-
tico de uma Navilouca? A força construtiva de uma Polem, Muda, ou de um Código?
O safado pique juvenil de um Almanaque Biotônico Vitalidade? A radicalidade de um
Pólo Cultural/Inventiva, de Curitiba? A fúria pornô de um Jornal Dobrábil? E toda uma
revoada de publicações (Flor do Mal, Gandaia, Quac, Arjuna), onde a melhor poesia
dos anos 70 se acotovelou em apinhados ônibus com direção ao Parnaso, à Vida, ao
Sucesso ou ao Nada”.
Porém, nem todas as “Revistas de Invenção” eram “revistas” no sentido ortodoxo
do termo, muitas delas sendo editadas em formatos inusitados, como no caso da revista
“Artéria”, que surgiu como uma pequena brochura, mas já foi uma sacola com pranchas
soltas, uma coleção de serigrafias espiraladas, uma fita K7 com experimentações sono-
ras, um site da internet (http://arteria8.net) etc. A maior parte delas durou uma ou duas
edições e, em geral, se alinhavam em duas grandes tendências, identificadas com o cená-
rio artístico-cultural das duas principais cidades onde estavam sediadas: 1) publicações
de tendência construtiva, sob grande influência das ideias teóricas e práticas artísticas
do grupo dos poetas concretos paulistanos; 2) publicações ligadas ao que se convencio-
nou chamar de “poesia marginal” carioca, de forte caráter contra-cultural e de crítica
ao regime militar. Ambas tinham em comum o background da experiência tropicalista
(que permitiu congregar a influência da cultura popular e o refinamento de fontes mais
eruditas, entre elas o legado da poesia concreta paulista), e na prática, compartilhavam
diversos de seus colaboradores, que se faziam presentes com sua produção artística e
teórica em revistas de ambas as tendências.

Código
Mesmo fora do eixo Rio - São Paulo, a revista “Código” foi uma nobre representante das
publicações de linhagem construtiva, criada, publicada e distribuída (fosse através de
envio postal, fosse através de livrarias especializadas e centros culturais que a aceitavam
em regime de consignação) a partir da cidade de Salvador. Seu primeiro exemplar, como
já dito, é do ano de 1974. É um exemplo paradigmático do funcionamento desse tipo
de publicação a partir das redes que propiciavam a sua criação e desenvolvimento, a re-
troalimentavam e garantiam a sua vida útil e circulação. Além disso, é um caso extraor-
dinário entre as várias “Revistas de Invenção” mencionadas acima por Paulo Leminsky,
214 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

pois durou extraordinários 12 volumes, quando a maioria delas não durava mais do que
2 ou 3. Isso se deveu ao seu editor e principal mecenas, o engenheiro mineiro Erthos Al-
bino de Souza, à época funcionário da Petrobrás, e que investia praticamente tudo o que
ganhava em projetos de animação cultural, agindo como um autêntico mecenas. Exerceu
um papel convergente para os integrantes de uma geração de jovens baianos universi-
tários interessados em arte e literatura de vanguarda, nas experiências tropicalistas e no
legado da poesia concreta paulista (uma vez que Erthos, ao frequentar a programação
cultural da então recente Universidade Federal da Bahia, aproximou-se de personagens
como o antropólogo, poeta, tradutor e ensaísta Antonio Risério e o cantor e compositor
Caetano Veloso, entre outros). Também se tornou amigo, financiador e colaborador dos
poetas concretos paulistas (mantendo vínculo mais intenso, em um primeiro momento,
com Haroldo de Campos, e posteriormente, com Augusto de Campos, documentado
através de vasta correspondência).
No início, Erthos ofereceu principalmente recursos financeiros para que Antonio
Risério (na época com 19 anos) e seus jovens “amigos-prodígio” concebessem, organi-
zassem e publicassem uma revista que abriu as suas páginas para colaboradores diver-
sos (a maior parte deles já envolvidos com “Revistas de Invenção” em outros estados,
convidados a colaborar através de telefonemas e cartas), muitos deles criadores já res-
peitados e consagrados, tais como os já citados poetas concretos paulistas (presença
constante em toda a trajetória de “Código”). Com uma tiragem que nunca ultrapassou
os 1500 exemplares, e lançada em um show de Gal Costa, a publicação não tinha um
nome próprio, mas trazia em sua capa o célebre poema “Código” de Augusto de Campos
(espécie de patrono honorário da revista, e “mentor”, tanto de Erthos quanto Risério). O
poema acabou transformando-se no logotipo da revista, comparecendo na capa de todos
os 12 volumes produzidos até 1990. Mas Erthos só passou a assumir realmente o papel
de editor a partir do terceiro volume da mesma (1978), quando da mudança de Antonio
Risério para São Paulo, para cursar Antropologia na Universidade de São Paulo.

O Legado de Código
“Código” circulou pelo país através do correio, principalmente. Foi enviada para seus
colaboradores no Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba, que a fizeram circular nos meios
especializados. Foi vendida em feirinhas e sob consignação em livrarias e centros cul-
turais, mas jamais conseguiu sequer se pagar. Desta feita, não conseguiu ultrapassar
o mesmo círculo que a criou e manteve viva, mas foi extremamente influente dentro
desse universo, inspirando a criação de outras revistas de mesma natureza, ou até mais
ousadas, como a já citada revista “Artéria”, em São Paulo. Ainda assim, a publicação
ultrapassou as fronteiras nacionais, tendo sido incluída em exposições de livros e publi-
cações de artista na Europa e nos EUA. E talvez ainda estivesse em circulação, não fosse
o fato de que seu editor e mecenas exclusivo, Erthos Albino de Souza, tenha sucumbido
ao Mal de Alzheimer no ano 2000.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 215

Para encerrar este pequeno texto enfatizando a grande importância de publicações


como “Código” no cenário artístico-literário-cultural brasileiro dos anos 70, reforçando
também o seu legado para a nossa época, cito novamente o professor Omar Khouri
(2003), ele mesmo um participante ativo desta história, quando o mesmo diz: “Se, como
se define um grupo de vanguarda, esses não se constituíram propriamente, pois, a re-
núncia necessária não existiu em termos de poética individual em prol de um projeto
coletivo, existiram as afinidades, como que acordos tácitos. Houve, sim, uma renúncia
em termos de veiculação da obra própria, individual, em prol da publicação das de
vários: daí, as revistas (...) De qualquer modo, o que vale dizer é que as tais revistas
tiveram um papel fundamental na veiculação da poesia, a partir dos anos 70” (p. 13).

Referência
BRADBURY, Malcolm et al (org ). Modernismo – Guia Geral. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
KHOURI, Omar. Revistas na Era Pós-Verso. Cotia: Ateliê Editoral, 2003.
LEMINSKY, Paulo. O Veneno das Revistas de Invenção. In: Folhetim 278, suplemento do jornal
“Folha de São Paulo”, 16 de maio de 1982.
PAROS, Felipe M. Decifrando Códigos. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Programa de Pós-
Graduação em Artes da Unesp, 2004.
216 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

O processo criador da
performance existir juntos:
autoria e colaboração

Gisela Reis Biancalana


UFSM – [email protected]

O presente trabalho discute a performance artística intitulada Existir Juntos,


concebida para o Evento Internacional Arte#OcupaSM, em junho de 2013, na
Estação Férrea de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. A proposta consistiu
em agrupar artistas diversos em proposições que procuravam abordar formas
de existir socialmente na contemporaneidade ao propor suas ações artísticas.
O encaminhamento tido como prerrogativa da criação baseou-se nos proces-
sos colaborativos recorrentes na arte contemporânea. No Brasil os processos
colaborativos passaram a destacar-se na década de 90, antes de suas discus-
sões acentuadas. As reflexões oriundas da prática introduziram transforma-
ções significativas na criação hierarquizada que imperava até então.
Palavras chave: processos colaborativos, autoria, performance.

This paper discusses the artistic performance entitled Existir Juntos, designed
for the International Event Arte#OcupaSM, in June 2013, in the railway station
of Santa Maria, Rio Grande do Sul. The proposal consisted of grouping artists
in various propositions that sought to address forms of social existence in con-
temporary art by proposing their actions. The routing has had as prerogative
of creation to base itself on collaborative process recurring in contemporary
art. Collaborative process in Brazil came to prominence in the 90s, before their
sharp discussions. The reflections from practice introduced significant chan-
ges in the hierarchical setting prevailed. The collaborative process prized for
collective designing and conducting.
Keywords: collaborative process, authorship, performance.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 217

Introdução
A performance artística intitulada Existir Juntos foi concebida para o Evento Internacional
Arte#OcupaSM, que aconteceu entre os dias 28 de maio e 1 de junho de 2013, na Estação
Férrea da cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. A proposta do evento consistiu
em agrupar artistas em proposições que procuravam abordar formas de existir junto na
contemporaneidade ao propor que diversas ações artísticas habitassem o local escolhido.
O lugar determinado para o evento é patrimônio histórico da cidade há algum tempo.
O local é caracteristicamente marcado pela passagem esporádica de pessoas e, ainda,
de poucos trens de carga que acabam por romper com o silêncio daquele espaço/tempo
que parece imóvel pelo abandono. O evento acontece pelo terceiro ano consecutivo
procurando reforçar sua autonomia, uma vez que permite dissolver-se e reinventar-se
em materialidades artísticas como será descrito adiante. Sendo assim, o Arte#OcupaSM
procura não inscrever-se em categorias determinadas.
Neste contexto, propositivo e espaço/temporal, insere-se a temática supracitada que
considerou os questionamentos de Roland Barthes sobre o exercício de viver juntos,
buscando conectar-se com as distintas formas de existência que perpassam a contem-
poraneidade. Segundo o autor: “a que distância devo me manter dos meus semelhantes
para construir com os outros uma sociabilidade sem alienação? (ROLAND BARTHES,
Bienal de São Paulo, 2006). A interrogação de Barthes sugere o coabitar com o outro e
o evento acrescentou formas de ocupar e criar lugares/tempos de existência para a arte.
Desta forma, a Estação Férrea, naquele momento, procurava Existir Junto com os
artistas proponentes em suas obras, questionando como, onde e quando é possível fundar
fluxos que se reverberam em mudanças no ser, no pensar e no agir humanos por um perío-
do de existência em arte. Nos dias atuais as dinâmicas da existência são complexas, pois,
coexistem diferentes planos, níveis e dimensões da atuação humana. O Arte#OcupaSM
ampliou possibilidades de vida na arte amalgamando artistas que fazem avançar dispo-
sitivos artísticos de existências coletivos ao propor um fazer consciente do outro e da
existência do outro na arte sediados naquele local em suas diversas formas de ocupação.
A performance criada para estrear durante este evento ainda estabelece duas outras
conexões. A primeira com uma proposta, oriunda de artistas da Universidade Federal
de Brasília (UnB) para desenvolver processos de criação à distância fomentando futu-
ros encontros e apresentações coletivas e/ou simultâneas. A segunda com um projeto
internacional proposto por professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS) que propõe a troca de relatos referentes a processos criadores em artes da cena
para análise sob a perspectiva de outros artistas criadores.
Segundo Swidzinski (apud AGRA, 2011, p. 13), a performance é

como ela é, no momento que nós a fazemos. Isto demonstra que ela pode ser tudo aquilo que
possa acontecer. Pode muito bem ser poesia visual, música, ter uma forma teatral ou coreo-
gráfica, plástica ou outra. Qual? Pouco importa. (...) Já faz bastante tempo, Kaprow afirmou
que naquele momento os artistas não se definiriam: ‘Sou pintor, poeta, bailarino.’ A vida toda
218 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

está aberta, nós a descobrimos através de todos os nossos simples sentidos. O que interessa
aos artistas que praticam a performance é o mundo que se abre sobre nós. É por isso que gosto
tanto da performance.

A lúcida citação do autor acima se faz presente apenas para situar o trabalho no
contexto abrangente da linguagem da performance, sobretudo porque funde elementos
da dança, do teatro e das artes visuais. Assim, partindo do tema do evento e do conteúdo
contido no projeto da Unb, juntaram-se a diretora da performance apresentada e três per-
formers aos quais foi exposta a ideia inicial do trabalho que foi coletivamente discutido
a fim de que se chegasse ao momento em que foi apresentado no evento. Desta forma,
o trabalho de construção da performance contemplou o tema do evento Existir Juntos,
executou as proposições ligadas ao projeto vinculado à Unb de forma coletiva entre
diretora e performers e interage com as proposições da UFRGS.
O projeto advindo da UnB enviou dois materiais específicos a partir dos quais se po-
deria criar livremente de acordo com as pesquisas desenvolvidas pelos grupos envolvidos.
O primeiro foi um conjunto de cartas em forma de baralho, mas contendo dizeres diversos
relativos a modos de encarar a vida: como ser, como estar, como pensar e sentir no mundo
contemporâneo. Foram selecionadas quarenta e oito cartas. O segundo era um conjunto de
cinco músicas das quais foram selecionadas três para este trabalho devido à identificação
apontada pelo grupo entre suas sonoridades e as palavras impressas nas cartas.
As cartas continham uma palavra chave e uma reflexão escrita sobre esta palavra
inscrita. Inicialmente foi proposto aos três performers que criassem individualmente,
em laboratório, um gesto para cada palavra chave presente nas cartas. Durante os en-
saios os performers improvisavam movimentos variados tendo como referência básica o
gesto proveniente da palavra contida na carta. As improvisações consideravam o espaço
em seus planos, níveis e deslocamentos; o tempo em suas variações de velocidades e
pausas, as partes do corpo destacadas em cada gesto na sua relação com as outras, bem
como a fluência dos movimentos. Os performers foram assimilando suas sequências de
movimento, as suas variações possíveis e, ao mesmo tempo, procuraram não cristaliza-
-los em partituras, pois elas seriam jogadas ao acaso como será descrito posteriormente.
Após esta etapa da criação o grupo começou a atribuir relações entre as palavras e
as três músicas selecionadas separando, em seguida, três conjuntos de carta para as três
músicas escolhidas. A separação se deu por afinidade de assuntos atribuídos às cartas e
identificados com as músicas. Neste momento da criação, os gestos foram se enrique-
cendo de sentido para os performers e acabaram compondo ações ao serem repetidos e
explorados de maneiras diversas. Assim, cada um dos três grupos de cartas ficou atrela-
do a cada uma das três músicas e foram, aos poucos, tornando-se vozes de uma fala dos
corpos em movimento e que, por sua vez já necessitavam ser compartilhadas.
Sendo assim, o grupo começou a pensar em como seriam ativadas as palavras chave
selecionadas e a primeira proposta relacionou-se ao jogo de cartas. Pensou-se, então, que
as cartas poderiam ser distribuídas para o público, mas restava definir de que maneira
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 219

se daria esta distribuição e como elas chegariam aos bailarinos. Ao mesmo tempo em
que se buscavam caminhos para resolver os impasses do processo começaram a surgir
reflexões sobre este trabalho que começava a se configurar: eram três bailarinos, três
músicas e três grupos de cartas. Porque não fazer apresentações para públicos de três
pessoas? Assim estabeleceu-se que este público, formado por três pessoas, retiraria uma
carta cada um para ler e escolher um bailarino para quem entregar a carta O bailarino,
por sua vez começaria sua performance.
Mas como seria a execução da música se o público retirasse cartas de grupos mu-
sicais diferentes? Então, foi decidido que cada público de três pessoas que entrasse
escolheria um dos grupos de cartas que correspondia a uma das músicas e, desta forma,
mesmo os bailarinos recebendo cartas com inscrições diferentes elas seriam do mesmo
grupo de cartas e, consequentemente, corresponderiam a mesma música. Cada pessoa
que fosse assistir ao trabalho poderia entrar várias vezes e se depararia com uma obra
diferente e semelhante ao mesmo tempo. Diferente porque as ações de cada performer
eram únicas para cada carta e porque são diversas combinações de músicas e cartas a
serem retiradas e entregues. Semelhante porque o espaço/tempo, os performers e com-
ponentes da proposta se repetem como, por exemplo, o ato de escolher cartas e os outros
elementos da cena.
Estas combinações compõe um universo de quarenta e oito possibilidades de expe-
rimentar ações para cada performer divididas em três músicas e três performers resul-
tando em três grupos de dezesseis cartas para cada música. Considerando que o público
decida acompanhar um performer a cada vez que entrar no ambiente preparado para o
evento ele terá todas estas possibilidades de ver coisas diferentes. Se a opção for obser-
var o conjunto dos três performers, as combinações de cartas serão diferentes, então, o
trabalho também se apresentará diferente. Se considerar-se, ainda, que os movimentos
não são partituras rigidamente coreografadas, mas são ações que se combinam via im-
provisação sobre um tema, as possibilidades se multiplicam ainda mais.
A partir desta configuração estabelecida outros desafios se apresentavam. Qual seria
o espaço da Viação Férrea disponibilizado para o trabalho. Que iluminação o local pos-
sui? Quando o trabalho finalizaria? Estas dúvidas foram se transformando em soluções,
em parte, pelo encaminhamento sugerido pelos organizadores do Arte#OcupaSM. To-
dos os artistas reuniram-se um dia antes do evento para explanar sobre sua obra e colo-
cá-la em discussão no grupo. Neste contexto borbulhante se decidiu que o trabalho seria
apresentado em uma grande tenda escura e seria iluminado por lanternas oferecidas ao
público. Também foi decidido que o trabalho iniciaria ao anoitecer e finalizaria quando
se encerrassem os trabalhos da noite. As propostas assim delineadas na reunião entre
os artistas participantes do evento permaneciam vivas ao serem lançadas ao acaso das
colaborações reflexivas. Três lanternas foram adquiridas para as apresentações e eram
entregues ao público que entrava de três em três e participava das performances que
duravam o tempo da música, cerca de dez minutos a cada entrada. E assim, as formas de
encarar a vida, contidas nas cartas, eram perpassadas pelos corpos dos performers pela
220 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

via das ações experimentadas em forma de improvisação e existiam junto com o públi-
co que participava interagindo na escolha das cartas e, consequentemente, da música,
assim como na iluminação. Outras formas de interação com o público surgiram durante
as performances.
A criação lançou-se a um processo que se ancorou em dois encaminhamentos tidos
como prerrogativas desta criação. O primeiro está baseado nos processos colaborativos
e o segundo no conceito de Work in Progress. No Brasil os processos colaborativos
passaram a destacar-se na década de 90 tendo Antonio Araújo como um de seus precur-
sores, além de ser este artista que cunhou o termo no país (FERNANDES, 2010, p. XI).
Estas práticas, já eram utilizadas antes de suas discussões mais acentuadas e introduzi-
ram transformações significativas na criação hierarquizada que imperava até então nas
artes da cena, com as funções artísticas bastante definidas. Segundo Fernandes (2010,
p. XI) os processos colaborativos prezam pelas criações conjuntas, com concepção e
realização coletivas. Por outro lado, os artistas não desprezaram os seus conhecimentos
advindos de seu processo formativo como se acredita precocemente. Esta performance
envolveu, a princípio, a diretora e os performers na determinação das escolhas processu-
ais, mas, subsequentemente, abarcou as propostas dos três projetos citados e, em última
instância, esteve aberto à interação com o público.
O mundo contemporâneo apresenta alternativas processuais que parecem cada vez
mais permeadas umas pelas outras num movimento de desfronteirização de saberes
bastante rico em possibilidades criativas. No processo colaborativo aqui apresentado
aparece claramente o caráter autoral do atuante, ou seja, o performer enquanto sujeito
instaurador de sua subjetividade na obra efêmera e não apenas executante, as coisas não
são dadas de antemão e sim buscadas, primeiramente em si mesmo transbordando para
um imbricar dos contextos da vida e da obra em processo interativo com os públicos.
Deste modo, a autoria também se estende para além dos artistas envolvidos.
O segundo encaminhamento remete-se ao Work in Progress, pois a performance
configurou-se da maneira descrita para aquele evento em que ela estreou, mas pretende
permanecer dinâmica e flexível às possibilidades em diferentes eventos, situações, cir-
cunstâncias que se apresentarem. Na contemporaneidade, as artes se entrecruzam e são
perpassadas por ouros campos de conhecimento resultando em contextos pluralizados e
multifacetados. Neste contexto artístico as atitudes performativas revelam claramente as
faces deste tempo com suas origens nas vanguardas do início do século XX, mas, com
suas raízes mais profundas fincadas na Arte Total wagneriana. Aqui também se vê incor-
porada a noção de obra aberta de Eco (1969) que na segunda metade do século passado
já propunha sistemas dinâmicos ampliadores das possibilidades de visão e de percepção.
Mas, este conceito está ligado às questões de recepção, ampliando as possibilidades de
leitura, porém, ainda não se contrapõe com a noção de obra concluída. O Work in Pro-
gress adota essa ideia e também a alarga com sua noção de obra inacabada, em percurso
implicando interatividade, permeação, risco. Ao mesmo tempo, o procedimento pode
encaminhar-se para um produto final. Assim, para Cohen (1998) o conceito de obra
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 221

inacabada é um pouco diferente do conceito de Work in Progress, pois, enquanto o pri-


meiro quer mostrar o percurso sendo parte do produto ele apenas incorpora o acaso na
obra, já o segundo acrescenta a variação do percurso dinâmico interativo entre criação,
processo e formalização de modo que o acaso transforma o produto.
Os paradigmas que perpassam as múltiplas formas de pensamento na contempora-
neidade geram percepções que impulsionam novos olhares na captação da diversidade
que compõe uma multiplicidade de realidades interpostas e dinâmicas que se apresen-
tam. Esta multiplicidade deverá aparecer nas próximas apresentações em lugares, tem-
pos, situações, circunstâncias, públicos diversos e, provavelmente, assumirá diferentes
formas neste percurso. Este trabalho já tem mais duas apresentações previstas para este
ano, em Campinas e em Brasília.

Referências
FERNANDES, Silvia. Teatralidades Contemporâneas. Perspectiva: SP, 2010.
COHEN, Renato. Work in Progress na Cena Contemporânea. Perspectiva: SP, 1998.
ECO, Humberto. Obra Aberta. Perspectiva: SP, 1969.
AGRA, Lúcio. Porque a Performance deve resisttir às definições. In VIS – Revista do Programa
de Pós Graduação em Arte – v.10 n° 1 Brasília: Programa de Pós Graduação em Arte, janeiro/
junho 2011.
222 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Espaços habitados: o artista


e a casa como ateliê transitório

Glayson Arcanjo
UNICAMP / UFG – [email protected]

O presente texto tem como ponto de partida o relato do processo de ocupação


de casas prestes a serem demolidas em Belo Horizonte, em 2007, e nos anos
seguintes, entre 2008 e 2012, já nas cidades de Uberlândia e Prata em Mi-
nas Gerais, na cidade de Goiânia em Goiás. Ao descrever parte do processo
pretendo desencadear discussões iniciais acerca das relações entre Espaço
e Criação, percebendo em concomitância, como três artistas contemporâneos
considerarão o seu deslocamento para os lugares como condição para se
desenvolver um processo de investigação em arte.
Palavras chave: Espaço, Processo de criação, Desenho, Casa.

El siguiente texto tiene como punto de partida el relato del proceso de ocupa-
ción de casas a punto de ser demolidas en Belo Horizonte en el año 2007 y en
los años siguientes, entre 2008 y 2012 en las ciudades de Uberlândia y Prata
en Minas Gerais, así como en la ciudad de Goiânia en Goiás. Al describir parte
del proceso de demolición existe la intención de desencadenar discusiones
iniciales sobre la relación entre Espacio y Creación, percibiendo en paralelo,
cómo tres artistas contemporáneos consideran su desplazamiento a esos lu-
gares como condición para desarrollar un proceso de investigación en arte.
Palabras clave: Espacio, Proceso de creación, Dibujo, Casa.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 223

O deslocamento como procedimento


Robert Smithson, artista norte americano, realizou nos anos 60 uma série de interven-
ções, fotografias, desenhos e textos resultantes de caminhadas que permitiram pensar
o deslocamento físico do artista como um procedimento afim à criação. Intitulado Os
Monumentos de Passaic, o trabalho, referencial na obra do artista, foi desenvolvido a
partir de passeios às ruinas encontradas nos subúrbios de Nova Jersey.
Em um de seus escritos, Smithson relata a necessidade do artista contemporâneo
sair do ambiente isolado em que a arte moderna o deixou e partir para sua inserção no
ambiente externo, sendo este deslocamento uma possibilidade do artista se libertar das
armadilhas e dos ofícios modernos a serem superados.

O artista moderno em seu ateliê, elaborando uma gramática abstrata dentro dos limites de seu
“oficio” só leva a uma outra armadilha. Quando as fissuras entre mente e matéria se multipli-
cam em uma infinidade de lacunas, o ateliê começa a desabar [...] sair do confinamento do
ateliê liberta o artista, em certa medida, das armadilhas do oficio e da sujeição da criatividade”
(SMITHSON, 2009, p.191).

É interessante observar como as estratégias foram criadas por Smithson, que tinha
como objetivo percorrer um trajeto, realizando um deslocamento externo aos espaços
institucionalizados.

La metodología que sigue el artista consiste en ir tomando fotografías de los despojos in-
dustriales de la zona, por medio de éstas, Smithson reinterpreta los suburbios de su lugar de
nacimiento, siguiendo la idea de la mirada pintoresca. Teniendo todo ese bagaje presente, Smi-
thson decide un sábado cualquiera, coger un autobús hacia New jersey. Esta vez va solo. En el
camino lee el New York Times y un libo de ciencia ficción de Brian Aldiss. No se ha olvidado
de una cámara para inmortalizar su viaje a Passaic, como si fuera un turista cualquiera, o un
antropólogo que a realizar una investigación. (DEREN, 2012, sp)

Inventar modos de deslocar-se do ateliê para lugares com pouca ou quase nenhuma
presença de pessoas tornou-se um procedimento recorrente também no processo de Ire-
ne Kopelman, artista argentina nascida em Córdoba e que realiza desenhos de observa-
ção in situ através de sua permanência nestes lugares desabitados.
Ao observar seu processo de criação parece fundamental que a artista, inicialmente,
habite a paisagem, por horas e dias, para realizar seus desenhos diretos.

Seu trabalho de desenho frente a uma paisagem é lento, silencioso como sua projeção gráfica,
e resulta de um processo prolongado de observação e quase de comunhão frente à natureza.
Tem realizado registros sensíveis, por assim dizer, de paisagens agrestes e distantes de sua
base de trabalho, seja em Ushuaia, no extremo meridional da América do Sul, seja na Espanha
e no Havaí. Seus desenhos se acompanham, em alguns casos, de verdadeiros diários de viagem
e observação. Sua produção tem algo de um diálogo com a tradição delicada da apreensão da
224 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

natureza desconhecida, como em trabalhos de viajantes do século XIX. Observar os canyons


e fazer os desenhos in situ é fundamental para esta artista. Assim, segundo ela, seu trabalho se
desenvolve a partir “da apreensão e do entendimento da paisagem, através de sua observação
direta da mesma. Por essa mesma razão é fundamental para mim começar o projeto desde ali,
desde esse ‘estar’ na paisagem através do desenho”. (8ª BIENAL DO MERCOSUL, sd)

Posteriormente a Kopelman reconstruirá as paisagens habitadas e desenhadas por


ela, deslocando-as para outras superfícies e propondo instalações estabelecendo rela-
ções com espaços expositivos de galerias e museus.
Por fim, passo ao trabalho de Gordon Matta-Clark, outro artista norte-americano,
que em “Office Baroque” propôs cortes nas estruturas de um edifício, abrindo buracos
circulares em suas paredes; pode-se ver pela imagem em destaque, um círculo maior no
centro do edifício e outro menor excêntrico.
O artista ao efetuar tais cortes nas paredes e chão traz para sua ação, e para visuali-
zação do espaço do edifício, outra percepção das camadas, planos e perspectivas. Espe-
cificamente para esse projeto e diante da dificuldade de sua realização, ele produziu um
de seus primeiros desenhos para esse tipo de operação, a fim de auxiliá-lo na realização
dos cortes.

Fiz um dos primeiros desenhos na vida para esse tipo de trabalho, e como tinha de ser uma
obra interna, ele se revelou uma espécie de culminância de toda uma série de atitudes e proje-
tos internos que eu queria fazer, uma tentativa de juntar tudo em uma unidade formal de algum
tipo. (MATTA-CLARCK, 2010, 178).

O procedimento de abrir vãos nas paredes irá modificar o modo de relação do espec-
tador com o espaço, já que ele terá a possibilidade de alcançar visualmente os diferentes
cômodos, depois, os distintos andares, até mirar o espaço externo da rua. Sobre outra de
suas produções, “Splitting” de 1974, ele ressalta a dificuldade quando se tenta realizar a
documentação de sua obra:

Após várias observações, é possível ao menos ter uma visão geral, mas ainda assim não tería-
mos nenhuma idéia de sua profundidade e complexidade; portanto, em certo sentido, é quase
impossível na realidade documentar essa obra, o que é uma das coisas que me atrai em todo
processo de documentação (Ibid, 179).

Matta-Clarck, ao modificar a ideia de uma apreciação total da obra para uma pos-
sibilidade de apreciação das múltiplas facetas do espaço e irá levantar outra importante
questão que é justamente a dificuldade de documentação de um trabalho que recorre a
profundidade e complexidade espacial.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 225

A casa como ateliê transitório


A partir de agora passo a relatar o processo de Desenho em demolição, ocupação reali-
zada entre 06 a 09 de junho de 2007 à Rua Califórnia s/n e em frente ao número 100, no
bairro Sion, na cidade de Belo Horizonte. O tempo de minha permanência neste espaço
foi de quatro dias e se deu no justo intervalo entre a desocupação da casa e sua posterior
demolição (Figuras 1 e 2). Ao efetuar a entrada e ocupar esse local a ser esquecido,
percebi, porém, que ainda existiam vestígios ali, mas tudo estava prestes a desaparecer.
Já bastante destruída pela retirada de telhados, janelas, portas, grades e pisos, a casa
apresentava também sua estrutura formada por pilastras, pilares, armações, vigas e lajes
de um modo mais evidente. Pode-se dizer que nesses desenhos estruturais o acabamento
lhes foi retirado, restando-lhes apenas algo de sua ossatura.

Figura 1: Desenho em demolição. Intervenções realizadas pelo artista. (Fonte: acervo do


autor, 2007)

Figura 2: Desenho em demolição. Intervenção realizada pelo artista. (Fonte: acervo do autor,
2007)
226 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

As aberturas surgidas por entre vãos da casa permitiam também a percepção de alguns
vestígios de luz e sombra em meio à destruição - como na abertura nascida com o teto
arrancado, de onde por um buraco podia-se visualizar o céu. A incidência da luz do sol
rebatia em toda estrutura da casa e ampliava as áreas de sombra criando incontáveis níveis
de contraste em seu interior, tanto nas paredes e no chão. A mesma luz criava desenhos
transitórios que se modificavam ou até mesmo se perdiam com a passagem do tempo.
Ao evidenciar a ruína e sua demolição, constata-se que sua estrutura esfacela-se,
estando a casa, naquele momento, muito mais perto das noções de transitoriedade que
de eternidade. Mas o que resta da casa projetada e construída, após a sua demolição?
Diante de tal questão uma outra ocupação realizada em 2009 em uma casa localiza-
da à Rua João Pinheiro, na cidade de Prata, Minas Gerais, aponta para o encontro, na
casa, de objetos pertencentes ao antigo morador, resíduos por algum motivo deixados
ou esquecidos ali como roupas, livros, contas vencidas e a pagar. De todos os objetos
encontrados, os que me mais prendeu a atenção foram cartas escritas à mão pelo mo-
rador e outras recebidas por pessoas queridas dele. Depois de permanecer um período
do no local, passei à identificação dos objetos dediquei-me a desenhar in situ, partes do
texto de uma das cartas nas próprias paredes da casa (Figura 3). O processo foi filmado
e os textos desenhados nas paredes foram fotografados. Alguns dias depois a casa foi
totalmente demolida.

Figura 3: Fotografia da parede com desenhos na ocupação realizada na cidade de Prata –


MG. 2009. (Fonte: Acervo do autor)

Procedimentos de registro e captação podem ser percebidos em meu processo


de trabalho, já que câmera fotográfica e a câmera de vídeo cada vez mais foram se
tornando companheiras constantes nas caminhadas pelas ruas, permitindo produzir
centenas de registros fotográficos de casas abandonadas, destruídas e tombadas. Os
registros produzidos desde 2010 deram início a uma série de modificações e expe-
rimentações gráficas feitas diretamente nas fotografias realizadas durante derivas e
coletas/registros pela cidade. As fotografias, após uma seleção inicial dos arquivos,
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 227

foram impressas em papel fotográfico e depois lixadas; receberam camadas de tinta


ou, foram nelas, coladas fitas adesivas (Figura 4). Estes procedimentos tinham o intui-
to de realizar um tipo de apagamento, este feito agora com a ação manual de apagar a
própria superfície do papel fotográfico.

Figura 4: S/Título. Fita e raspagem sobre papel fotográfico. 2010. (Fonte: Acervo do autor)

Digo outro tipo de apagamento, pois nas ocupações realizadas em Belo Horizonte em
2007 e também nas casas demolidas na cidade de Prata em 2009, pude observar a pre-
sença de outros tipos de ferramentas de apagar. A primeira delas trata-se de uma borracha
de dimensões humanas, já que em determinadas situações, a solução para o apagamento
da casa é realizar a demolição com marretas e alavancas (Figura 5). A segunda borracha
tem dimensões muito maiores, já que possui a escala de uma máquina/trator chamada de
Patrola. Esta máquina, ao chegar aos locais da demolição, atua efetivamente como uma
grande borracha e joga ao chão as matérias da construção. O deslocamento da máquina
possibilitou como derivações desse processo, trabalhar com escalas mais gigantescas de
apagamentos ao demolir as estruturas inteiras que ainda se mantinham de pé.
228 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Figura 5: Frames capturados de vídeo e impressos em papel fotográfico. 2010. (Fonte: Acervo
do autor)

Ao habitar tais lugares, caberia pensar a criação por outras vias, na possibilidade
ainda alargada de realizar desenhos in situ, bem como processos envolvendo o registro
e a manipulação fotográfica. Outros desdobramentos possíveis para esta pesquisa se
fazem ao atentar na relação do espaço com essas cavidades surgidas com a demolição,
com os resíduos e restos que são gerados com o desmoronamento das paredes (ao que
denomino de desenhos revirados, desenhos quebrados, desenhos amontoados e empoei-
rados). Assim, materiais precários e instáveis como a poeira, cacos e pedras, restos de
escombros, ou seja, toda a matéria que sobra com a demolição da casar a pode ampliar
as possibilidades para aprofundamentos plásticos e teóricos pretendidos no desenrolar
desta pesquisa.

Referências
8ª BIENAL DO MERCOSUL. Disponível em: <http://www.bienalmercosul.org.br/novo/index.
php?option=com_pessoa&Itemid=12983&task=detalhe&campo=artista&id=5327> Acesso
em: 28 set 2013.
DEREN, Martina. Los Monumentos de Passaic. Disponível em <http://martinaderen.com/arte/los-
monumentos-de-passaic-de-robert-smithson/>. Acesso em: 28 set 2013.
MATTA-CLARCK, Gordon. Gordon Matta-Clarck descreve seu trabalho: Office Baroque. In:
RANGEL, Gabriela, et al. Gordon Matta-Clarck: desfazer o Espaço. Museu de Arte Moderna
de São Paulo: São Paulo. 2010. P. 178-180
SMITHSON, Robert. Discussões com Heizer, Oppenheim, Smithson. In: FERREIRA, Glória;
COTRIM, Cecília (org.). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
p. 275-288
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 229

Autoria e politicidade nos


processos criativos em dança nas
redes digitais

Iara Cerqueira
PUC/SP – [email protected]

A rede digital configura-se num contexto que estimula o imaginário em que


a existência está atada ao ato de postar – que não precisa corresponder a
alguém com vida civil verificável. Nesse entendimento esse resumo propõe
pensar corpo nos processos criativos das redes também como uma questão
política a partir da Teoria Corpomídia e do conceito de imunidade no qual
Roberto Espósito trabalha e sua possível contribuição na área de dança. Uma
questão surge em relação à autoria nesses processos virtuais: É possível criar
colaborativamente em rede digital? O viver nesta realidade que foi construída
implica em novos hábitos cognitivos, hoje somos sujeitos que entendem que
compartilhar é tornar alguma informação pública em alguma rede social.
Palvras-chave: Corpomídia, imunização, redes, permanecer

The digital network is configured in a context that stimulates the imagi-


nation in which the existence is tied to the act of posting - which need not
correspond to someone with verifiable civilian life . In understanding this
summary suggests thinking body in the creative processes of the networks
also as a political issue from Corpomídia Theory and the concept of immuni-
ty in which Roberto Esposito works and its possible contribution to the dan-
ce area. A question arises regarding the authorship these virtual processes
: Is it possible to collaboratively create digital network ? The reality we live
in was built implies new cognitive habits today are individuals who unders-
tand that sharing is to make public some information on some social network.
Keywords: Corpomídia , immunization, networks remain
230 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Corpomídia e paradigma da imunizaçao: pensando em rede

“corpo: o trançado da trama que se trança em rama”


Helena Katz

Na Teoria Corpomídia (KATZ & GREINER), as informações trocadas com o am-


biente se tornam corpo, ou seja, o corpo nada mais é do que uma manifestação do tipo
de comunicação em curso com os ambientes. Pensar processos colaborativos de criação
em redes digitais a partir dessa teoria significa agir politicamente e contextualmente
co-implicado nas continuas e transitórias informações que circulam on e off line . Os
processos colaborativos no espaço virtual formam estruturas que facilitam a informação
circular livremente, de pontos diversos e de maneira não linear a uma infinidade de ou-
tros pontos emissores/receptores de informação.
A importância disso se configura na realimentação e na participação colaborativa
que se opera indistintamente com vários atores/autores.
Nesse entendimento o espaço de atuação em rede mais do que um espaço de diálogo,
constitui-se num local gerador de conteúdo, produtor de conhecimento, e instigador de
questões ligadas à natureza do indivíduo.

Pode-se obter mais valor da participação voluntária do que jamais foi imaginado, graças ao
aperfeiçoamento de nossa habilidade de nos conectarmos uns aos outros e de nossa imagina-
ção do que será possível a partir dessa participação. Estamos saindo de uma era de cegueira
induzida por teorias, na qual o compartilhamento do pensamento (e a maioria das interações
não mercadológicas) se limitava, de formas mais inerentes do que casuais, a grupos pequenos
e fechados. (SHIRKY, 2011, p. 144)

Numa perspectiva Corpomídia o corpo que atua nas redes se organiza de forma
autônoma e contextualizada reconfigurando-se continuamente em relações que se cons-
tituem por necessidades de representações no trânsito de diversificar informações e na
busca de um exercício efetivo de atuação partilhada. Este conceito parece se situar poli-
ticamente nesse contexto midiático por entender corpo além do simples fato de ser, mas
de estar, de continuar, num exercício sucessivo, responsável de agente e produtor de sen-
tido. Os corpos se organizam continuadamente tecendo relações que se tornam corpos,
pensando nessas ocorrências como ajustes contínuos nesse ambiente. Essa teoria não
constrói atores/autores refratários e herméticos, pois a própria lógica desse pensamento
se realiza produzindo possibilidades, trocas, negociações e produção de conhecimento.
O conceito de Espaço de autonomia proposto por Manuel Castells ( 2013, p.161)
estudioso da sociedade em redes digitais, e a Teoria Corpomídia entendem corpo impli-
cado no ambiente, fora de uma perspectiva dualista de mundo ou distanciado de acon-
tecimentos sem implicações politicas. Ambos refletem corpo com “responsabilidade
de cada um de nós com o que cada um é e com o que o mundo não somente é, mas,
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 231

sobretudo com o que o mundo pode ser” (KATZ & GREINER, 2011, p.6). Autonomia
segundo Castells refere-se à capacidade de um ator social torna-se sujeito ao definir sua
ação em tornos de projetos elaborados independemente das instituições da sociedade,
segundo seus próprios valores e interesses (2012, p.168).
Outro aspecto interessante em relação à Teoria corpomídia e que nos ajuda a refle-
tir em relação a ações partilhadas nos processos criativos virtuais com a definição de
Espaço de autonomia se localiza nos discursos e posicionamentos que habitam esse
ambiente, pressupondo-se a transformação de politica em biopolítica. A transformação
da politica em biopolitica propõe um entendimento em que o corpo tem papel central
nas discussões acerca da vida, por isso o papel democrático que essa teoria se insere atua
diretamente no papel politico de ser/estar no mundo. O termo biopolítica aparece em
1977 quando Foucault vem ao Brasil participar de uma conferencia sobre o nascimento
da medicina social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
A rede virtual rege com implicações políticas e biopolíticas as novas formas do viver
em um ambiente midiático, que faz do corpo um eixo estruturante da sua existência.
Modos de existir atuam e constituem um pensamento democrático de permanecer, uma
relação continuada e colaborativa de pensar outros modos de existir. Nesse ambiente a
visibilidade tem um fator político implicativo no processo criativo enquanto fator cons-
titutivo do fazer e não somente do produzir, pressupondo uma visibilidade ao pensamen-
to como continuidade e permanência que segundo Greiner (2010, p.93):

(...) considero que é a presença do corpo que dá visibilidade ao pensamento e por isso torna-se
cada vez mais valorizada nas experiências de arte contemporânea cujo objetivo tem sido, prio-
ritariamente, expor pensamentos e não produtos ou resultados estéticos a serem rapidamente
consumidos

Segundo Shirk (2011, p.82) “participar é agir como se sua presença importasse,
como se, quando você vê ou ouve algo sua resposta fizesse parte do evento” e “a satis-
fação de sentimentos de participação e compartilhamento pode aumentar nosso desejo
de maior conexão, o que aumenta sua expressão e assim por diante”.
Blogs, e-mails e sites, mecanismos utilizados na internet para a circulação de in-
formação, instiga a reflexão sobre os processos de criar compartilhados estimulando
discursos e sugestões, ampliando caminhos e intersecções na qual articulações geram
novas compreensões dessas relações virtuais. Por outro lado as relações de poder se
constituem cotidianamente nesse ambiente.
Roberto Espósito (2010), em Paradigma da Imunização discorre sobre o poder de
continuidade da vida, de conservar viva a vida, que salva e assegura o organismo de
forma individual ou coletiva, introduzindo no seu interior um fragmento da mesma
substancia patogênica da qual o quer proteger e que, assim, bloqueia e contraria o seu
desenvolvimento natural. Para ser conservada, a vida se utiliza de uma imunidade in-
duzida, artificial, um agente externo que coopera na continuidade da existência, nesse
232 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

entendimento a ideia de compartilhar já nos leva a inflexão à imunização. No ambiente


midiático das redes digitais ao mesmo tempo em que participamos e compartilhamos,
estamos também fazendo isso de uma maneira muito específica.
Nesse sentido, quem são os autores nesse lugar e como criar colaborativamente em
rede digital sem eliminar opiniões e singularidades, dando vazão a essa diversidade de
apreciações, reconhecendo e pontuando essa dimensão como forma de valorização das di-
ferentes formas de um comum num processo de criação em rede? Faz-se assim pertinente
pensar que as possibilidades comunicacionais em rede têm produzido imunização (Es-
pósito, 2010) reconfigurando as relações em várias das formas de manifestações sociais.

A potencialização positiva dos interesses compartilhados dos que atuam em redes digitais pa-
rece unificar os sujeitos por meio de um acordo ou pacto refratando a legitimidade de discursos
que não se encaixem nesse perfil. Nesse entendimento vão enfraquecendo as possibilidades
de outros questionamentos, promovendo positivamente os traços que legitimam os acordos
desses atores/autores que se encontram nesse espaço virtual despotencializando outros saberes
assim como o exercício de partilhar informações de criação em dança. Mudanças gradativas
ocorrem motivada pela participação entre pessoas que longe de se estabilizarem continua a
crescer e a satisfazer desejos de informação e conhecimento fomentados por anseios e interes-
ses pessoais. (ALBUQUERQUE, 2013, p.6)

Conclusão

Embora corpo e ambiente estejam envolvidos em fluxos permanentes de informação, há uma


taxa de preservação que garante a unidade e a sobrevivência dos organismos e de cada ser vivo
em meio à transformação constante que caracteriza os sistemas vivos. Mas o que importa é
ressaltar a implicação do corpo no ambiente, que cancela a possibilidade de entendimento do
mundo como um objeto aguardando um observador (GREINER; KATZ, 2005,p.130).

A experiência nas redes faz pensar como as postagens sobre experiências criativas
evidencia o caráter experimental e visível que faz as redes virtuais se tornarem credíveis,
consequentemente possibilitando construir autonomia e conhecimento. Possivelmente a
ideia de satisfação de participação nos processos de criação nas redes digitais conflua
ao estabelecimento de uma dependência desses pares, assim como uma hierarquização
sutil e móvel, porém com características de controle assim como o poder pastoral, que
segundo Lazaratto (2010) estabelece relações contínuas e complexas entre os homens,
uma dependência do outro, de ver e ser visto.
O interesse mais específico de discorrer sobre os processos do fazer dança num con-
texto complexo de uma rede comunicativa entre corpo e ambiente com mediação do cibe-
respaço se situa nos discursos que são produzidos nesse fazer artístico, nesse lugar que re-
flete pensamentos/posicionamentos singulares e coletivos, muito mais do que um espaço
de diálogo constitui-se num ambiente gerador de conteúdo e produtor de conhecimento.
Partilhar nas redes virtuais os processos artísticos, bem como disseminar os resultados
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 233

dos estudos e práticas facilita e possibilita a organização dos conteúdos discutidos. É uma
comunicação que amplia caminhos, intersecções e articulações que geram novas com-
preensões dessas relações midiáticas. Essas formas outras de conviver apontam para uma
reformulação dos entendimentos sobre os modos de agir online: participar e compartilhar
são verbos que nomeiam ações com implicações sociais diferentes. Nesse sentido o papel
da internet trata-se de um eficiente meio de propagação e uma constante necessidade de
se relacionar e fidelizar os usuários virtuais proporcionando importantes mudanças nos
atuais processos de transformação e desafios do espaço da cidade.
Nesse caminho faz-se pertinente uma rápida abordagem sobre as manifestações de
julho de 2013 no Brasil para refletir sobre a questão de autoria nos processos de criação
em rede digitais.
O papel desempenhado pela internet viabilizou a potencia de agenciamento e indig-
nação de uma população em protesto buscando um espaço na cidade de resistência e
liberdade contra as ações ditatórias exercidas pelo poder publico.
Assim como os manifestantes que foram as ruas sem interesse de serem nomeados,
a possibilidade de criar algo representativo que legitime essa ação em conjunto discorre
pelo mesmo caminho. Ao estar partilhando um procedimento em rede todos são expe-
rimentadores, fazem parte de uma ação processual em que a própria condição de atuar
favorece a criação e aprofundamento de uma politica de cooperação. Viver em rede
implica, em viver em um mundo onde tudo pode ser inventado para ser partilhado com
outros, que também podem ser inventados. O que configura a existência e o ato de postar
– que não precisa corresponder a alguém com vida civil verificável. Ou seja, o compar-
tilhamento proposto em rede pode ter efeitos transformadores em torno do espaço e do
tempo e focaliza reconhecer e ajustar mecanismos para sobreviver, por isso esse lugar
que organiza as pessoas, as coisas, as circulações e as maneiras de fazer, tendo os autores
envolvidos, se tornam agentes e produtores de sentidos coletivos.

Redes são estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada, integrando novos nós
desde que consigam comunicar-se dentro da rede, ou seja, desde que compartilhem os mesmos
códigos de comunicação (por exemplo, valores ou objetivos de desempenho). Uma estrutura
social com base em redes é um sistema aberto altamente dinâmico suscetível de inovação sem
ameaças ao seu equilíbrio (CASTELLS, 1999, p.566)

Bibliografia
ALBUQUERQUE, Iara Cerqueira Linhares de. Anais do 4º. Encontro Nacional de Pesquisadores
em Dança (2013).
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
ESPÓSITO, Roberto. Bios: biopolítica e filosofia. Lisboa/Portugal: Edições 70, Lda., 2010.
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KATZ, Helena. UM, DOIS, TRÊS a dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte: Helena Katz,
234 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

2005.
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Sites
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noskop.org/images/c/c4/Open_19_Beyond_Privacy.pdf>
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 235

Aspectos da linguagem plástica na


dança contemporânea

Inara Novaes Macedo


FAPES/PPGA/UFES – [email protected]

Este trabalho pretende relacionar Dança Contemporânea e Artes Plásticas


através da Fotografia. Por meio da captação de imagens, nessa pesquisa
busca-se identificar elementos da linguagem plástica em experimentos co-
reográficos e performativos. O corpo dos bailarinos/performers vistos como
objeto plástico, e as interferências do meio nestes sujeitos serão eixos nortea-
dores nesta pesquisa. No exercício performático, os gestos corporais exibem
caminhos visuais e fragmentações que nos permitem perceber pictorialidade
a partir de efeitos visuais resultantes da combinação: sujeito e meio. Para fun-
damentar a pesquisa busquei apoio nos trabalhos de Márcia Almeida, sobre
afetações plásticas do corpo e Arte coreográfica, e nos trabalhos de Eduardo
Barbosa, sobre a representação do Corpo na Arte Contemporânea. Para um
panorama histórico e contextualizador, busquei referências em Alain Corbin,
Jean-Jacques Courtine e Geoges Vigarello, além de Lúcia Santaella. O tra-
balho de campo se desenvolveu em dois momentos, no primeiro, a partir do
processo de criação de um espetáculo de final de ano da turma de Dança
Contemporânea de 2009 da Escola de Teatro, Dança e Música FAFI; no se-
gundo, num trabalho autoral e experimental com algumas dessas alunas na
praia. Neste último, utilizamos diversos elementos como tecidos e materiais
líquidos, para numa interação sujeito e ambiente, potencializar os aspectos
plásticos que ali já eram identificados. Dessa maneira, corpo, areia, mar, e
câmera, se fizeram dança e movimento, ora gerando imagens fragmentadas,
ora uma homogeneidade de cores que se entrelaçavam e se confundiam.
Palavras chave: Linguagem plástica, artes visuais, fotografia, dança contem-
porânea
236 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Introdução
Uma das características da contemporaneidade é a dissolução de barreiras entre as lin-
guagens artísticas. Na medida em que este pensamento é difundido e proporciona zonas
de passagem e hibridismo, mais ocorre o diálogo entre diversas áreas e isso pode ser
identificado tanto nas criações artísticas como também em projetos educacionais, traba-
lhos acadêmicos, entre outros.
O presente trabalho propõe identificar e analisar elementos característicos da lingua-
gem plástica em experimentos coreográficos e performativos. O corpo dos bailarinos/
performers vistos como objeto plástico, e as interferências do meio nesses sujeitos serão
eixos norteadores nesta pesquisa. Para promover esse diálogo entre Dança Contempo-
rânea e Artes Plásticas utilizaremos a fotografia como ferramenta principal de análise.
Apesar do hibridismo entre as linguagens artísticas ser marcante na contemporanei-
dade é possível perceber a carência de estudos que tratem especificamente de Plastici-
dade na Dança. Além disso, o interesse pela temática é oriundo da formação em Artes
Plásticas da pesquisadora e seus trabalhos autorais fotográficos em diálogo com seus
atuais trabalhos com a Dança Contemporânea.

O Corpo na Arte e na Dança Contemporânea


O corpo presta-se ao fomento de reflexões a respeito das sociedades e das culturas.
Sabe-se que durante muito tempo, ao longo da história da Arte, o corpo apresentou-se
como forte temática nas obras de incontáveis artistas. Segundo Barbosa, no século XX,
a partir da década de cinquenta, o corpo passou a se libertar da iconografia secular que o
representava e passou a ser expressão de si mesmo. Por meio de manifestações como a
Body Art, a Performance, o Fluxus e o Happening, o corpo deixou de representar apenas
o ideal da beleza para se tornar também instrumento questionador dos valores sociocul-
turais (2010, p.1198 e 1199), Isto é, passou a ser não somente assunto de reprodução,
mas um reprodutor de ideias.
Ao deslocar o foco da visão sobre o corpo é possível atribuir-lhe novas funções, es-
timular novos olhares ao abordá-lo. Na visão de Santaella, o corpo foi se tornando uma
questão que a arte vem explorando sob uma multiplicidade de aspectos e dimensões que
colocam em evidência sua impressionante plasticidade e polimorfismo (2004, p.65). O
corpo visto como objeto de arte apresenta características plásticas presentes na textura
da pele, nos membros e nos rastros dos movimentos.
Assim como as Artes, a Dança resignificou o corpo no decorrer do tempo, na medida
em que o bailarino abandonava a função de mero executor e passava a exercer também
a função de criador. Como afirma Andréa Snizek (2007, p.112),

O dançarino torna-se um pesquisador do seu próprio corpo e do alheio. Observação, inquiri-


ção, experimentação, reflexão e expressão tornam-se objetivos da dança. Fazer, sentir e refletir
tornaram-se indissociáveis. A linguagem corporal é o objeto de estudo e de expressão privi-
legiado.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 237

As experiências pessoais, as expressões e as características corporais de cada indi-


víduo se tornam inspiração para as criações dos coreógrafos contemporâneos, que, em
sua maioria tentam aproveitar ao máximo as contribuições dos bailarinos. Complemen-
tando, Freitas (2006, p.8) diz:

(...) um corpo agora hiperaparelhado, correndo todos os riscos dos estados que isto pode pro-
vocar. Alterou também o modo de se pensar a organização coreográfica, como uma produção
linear com determinismos concretizados, ao utilizar diversas estratégias, tais como o acaso, e
as observações e análises sobre como se chega a determinado movimento e o universo que este
estado de estar entre, de mediar, possibilita como enriquecimento.

Além das transformações no processo de criação e na relação bailarino x coreógra-


fo, as possibilidades de utilização do corpo também tem sido cada vez mais exploradas
na Dança Contemporânea, principalmente através da Tecnologia. Segundo Ihde, o cor-
po possui três sentidos: o modo pelo qual a fenomenologia compreende nosso ser no
mundo emotivo, perceptível e móvel; o sentido social e cultural, em que os valores e
experiências são culturalmente construídos; e por último, o sentido das relações tecno-
lógicas, das simbioses entre o corpo e a tecnologia (2002, apud SANTAELLA, 2004,
p.10). Na contemporaneidade, o corpo pode ser visualizado constantemente através da
difusão imagética das mídias em geral, além de se fazer recurso importante nas criações
artísticas. A projeção mapeada, o vídeo, o design, a luz, os processos computacionais a
internet, a fotografia, são exemplos de processos cada vez mais utilizados.
Neste trabalho, a Fotografia foi o recurso escolhido para proporcionar a criação do
diálogo entre Dança e Artes Plásticas, pois através da captação das imagens do corpo em
movimento poderemos identificar e analisar os diversos elementos visuais presentes em
cena e relacioná-los com os de uma composição plástica.
Mas antes disso, é importante visualizar o corpo como um objeto de arte e perceber
sua plasticidade. Para Márcia Almeida (2012, p.4 e 5),

A plasticidade se caracteriza pela maleabilidade e a capacidade de adaptação constantes das


formas. A plasticidade é em si o “plástico”. Então, é um material que pode assumir diversas
formas, dependendo dos usos a que se destina. De um lado modela e de outro transforma,
destruindo a forma existente. Dessa maneira, a plasticidade é um movimento de dupla ação,
contraditório e ainda assim, absolutamente inseparáveis. Se de um lado toma forma, se adapta,
de outro anula o tecido da forma.

Afirma ainda que o ser humano é por natureza um ser plástico e que ao passar por di-
versas experiências passa por transformações. E que a cada transformação novas formas
expressivas aparecem. Dessa forma, o bailarino sendo obra de arte, representa o material
de sua própria expressão. (ALMEIDA, 2011) Cada indivíduo tem uma “digital”, uma
expressão, resultantes de sua vivência.
238 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

A Fotografia e a Arte
O fenômeno da produção de imagem pela passagem da luz através de um orifício já era
conhecido por volta de 350 a.C.. Em torno de 1525 foi descoberto o escurecimento de
sais de prata e a partir daí, diversas atividades químicas, que mais tarde levariam ao des-
cobrimento da Fotografia, foram experimentadas. Mas foi por volta de 1826 que a primei-
ra fotografia foi reconhecida, quando o inventor francês Joseph Nicéphore Niépce con-
seguiu fixar permanentemente uma imagem. Paralelamente, Daguerre também produzia
efeitos visuais com uma câmara escura e a este espetáculo dava o nome de Diorama.
As descobertas da época, principalmente as de Daguerre anunciadas em 1839, cau-
saram estranhamento e surpresa. Ao mesmo tempo em que conquistaram a atenção de
muitos, também causaram revolta entre artistas que não reconheciam seu caráter estéti-
co. A fidelidade das imagens com o real, a riqueza de detalhes, jamais seriam alcançadas
pelas mãos de um pintor, já que a Fotografia era a transposição direta da realidade.
Durante um tempo a Fotografia foi vista apenas como um instrumento, um auxiliar das
Ciências. Com muita resistência, no ano de 1859, pela primeira vez o Salon Carré do
Louvre, salão francês que expunha obras de vários artistas, abriu um espaço exclusiva-
mente para a fotografia.
Com o passar dos anos as críticas foram diminuindo, aos poucos ascende a visão de
que a Fotografia não precisava ser testemunho, poderia se desprender do real. Muitos
artistas passaram a se utilizar da fotografia para desenvolver suas obras e a partir do
século XX, a relação entre Fotografia e Arte se estreitou ainda mais nas chamadas Artes
Contemporâneas. Para Susan Sontag, a fotografia seria um poderoso instrumento de dis-
tanciamento e de despersonalização de nossa relação com o mundo, na medida em que a
câmera faria com que as coisas “exóticas” parecessem próximas e as “familiares”, estra-
nhas e distantes (2004, apud DOMINGOS, 2008, p. 29). A Fotografia não seria somente
um instrumento de registro documentário, mas também um instrumento de expressão do
imaginário e do Olhar de cada individuo.

O corpo na Fotografia
Como já mencionado anteriormente, a temática “Corpo” sempre foi abordada nas obras
de Arte, tanto como mero assunto a ser reproduzido, como também reprodutor de ideias.
Na Fotografia não foi diferente, na moda e na publicidade, por exemplo, o corpo é peça
fundamental até os dias de hoje. Assim como nas Artes, a Fotografia Contemporânea ex-
plora de maneira criativa as possibilidades que o Corpo pode oferecer. A exemplo disso,
neste trabalho pretende-se captar imagens do Corpo em movimento, suas fragmentações
e os efeitos visuais resultantes da combinação: corpo, movimento, iluminação, figurino
e cenário. Dialogando com a ideia acima, Wilton Garcia (2007 p. 3 e 4) discorre sobre
sua obra:

Em meus trabalhos como artista e pesquisador, por exemplo, utilizo o corpo como tema recor-
rente de criações visuais e investigativas para abarcar o viés da ação crítico criativa exposta na
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 239

contemporaneidade.(...)Procuro enfatizar os deslocamentos visuais que tangenciam a máxima


subjetiva de uma possibilidade de corpo em ação: uma forte sensação de movimento. (...) Em
seu exercício performático, a manifestação gestual de um corpo exibe a contundência do mo-
vimento físico e recobre-se de uma dinâmica plástica.

Sob um ponto de vista plástico, poderíamos comparar o corpo em cena, a uma pin-
tura. A imagem que vimos numa tela é impregnada de elementos, que juntos formam
uma composição visual. Da mesma forma, se visualizarmos o corpo em performance,
como “Corpo-Obra-de-Arte”1 ou objeto plástico, conseguiríamos identificar os mesmos
elementos visuais, característicos de uma pintura: linha, ponto, movimento, cor, textura,
luz, entre outros. Em um espetáculo de Dança, portanto, a composição visual seria o
corpo e seus elementos, inseridos num espaço também repleto de informações, como
cenário, figurino e iluminação.

Elementos visuais da linguagem plástica


A composição de qualquer imagem seja ela pintura, fotografia, desenho, vídeo, é forma-
da por um conjunto de elementos visuais que possibilitam sua leitura. Esta pode ocorrer
de forma denotativa – identificação, descrição ou enumeração dos elementos; ou de
forma conotativa, através da interpretação de signos ou ideias.
Para Dondis, existe uma enorme importância no uso da palavra “alfabetismo” em
conjunção com a palavra “visual”. Ela afirma que a visão é natural; a criação e com-
preensão das mensagens visuais são naturais até certo ponto, mas a eficácia, em ambos
os níveis, só pode ser alcançada através do estudo (2003, p.18) e afirma:

A sintaxe visual existe. Há linhas gerais para a criação de composição. Há elementos básicos
que podem ser aprendidos e compreendidos por todos os estudiosos dos meios de comunica-
ção visual, sejam eles artistas ou não, e podem ser usados, em conjunto com técnicas manipu-
lativas, para a criação de mensagens visuais claras.

No trabalho em questão, as composições fotográficas a serem criadas,


podem sugerir subjetividade, significados e interpretação ao espectador,
porém prioriza a leitura denotativa dos elementos visuais a partir dos
movimentos coreográficos, para uma análise essencialmente plástica. Os
principais elementos visuais que serão abordados aqui são:

Linha; Luz;
Forma; Movimento;
Textura; Perspectiva.
Cor;

1. Expressão utilizada por Márcia Almeida na obra Arte Coreográfica: plasticidade corporal e
conhecimento sensível, 2012.
240 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Considerações finais
Os elementos visuais presentes na composição de uma pintura, uma fotografia ou um
vídeo, também podem ser vistos numa composição coreográfica, ou numa performan-
ce. Isso porque, a estrutura corporal apresenta características plásticas de um objeto de
arte, os membros apresentam linhas retas e curvas, na pele é possível enxergar textura,
luminosidade, cor, assim como no cabelo. A posição do corpo em relação ao espaço, por
exemplo, pode sugerir um ponto ou a ideia de perspectiva. O deslocamento e os gestos
dão movimento à cena e os próprios movimentos coreográficos apresentam um pouco de
cada elemento plástico. Por meio da fotografia é possível captar os rastros deixados por
essa movimentação. As cores provenientes da iluminação, do cenário, do figurino e do
corpo em movimento se misturam formando uma massa de tinta na imagem fotográfica.

Referências
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Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 241

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242 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Monumentos insurgentes:
utopias concretas em tempo real

Ines Linke
UFSJ – [email protected]

Luis Firmato
UFSJ

A partir de conceitos de Jacques Rancière busca-se analisar os trabalhos Mo-


numento a Bataille  (Documenta 11, Kassel, 2002) e  Monumento a Grams-
ci (Dia Art Foundation, Nova York, 2013) de Tomas Hirschhorn e duas constru-
ções coletivas que integraram o Monumento a Macunaíma (Urbanidades, São
João del-Rei, 2013). Em seus trabalhos, Hirschhorn adapta a tradição monu-
mental da arte pública e reflete sobre as noções anti-hierárquicas e as criticas
sociais dos anos 1960/70. Em Monumento a Bataille e Monumento a Gramsci,
duas homenagens esculturais participativas, o artista improvisa uma situação
colaborativa com grupos socialmente marginalizada em Kassel e Nova York. 
Palavras-chave: Arte pública; Participação; Intervenção urbana; Partilha do
sensível.

Based on the concepts of Jacques Rancière, the paper seeks to analyze


Thomas Hirschhorn’s Bataille Monument (Documenta 11, Kassel, 2002) and
Gramsci Monument (Dia Art Foundation, New York, 2013) and two collective
constructions from Macunaíma Monument (Urbanidades, São João del-Rei,
2013). In his works, Hirschhorn adapts the monumental tradition of public art
and reflects on anti-hierarchical notions and social criticism of the 1960 /70. In
Bataille Monument and Gramsci Monument, two participatory sculptures, the
artist improvises collaborative situations with socially marginalized groups in
Kassel and New York.
Keywords: Public Art; Participation; Urban intervention; Distribution of the Sen-
sible.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 243

Monumentos são erguidos nos espaços públicos para homenagear personagens, ce-
lebrar eventos históricos e ornamentar a paisagem urbana. Eles se destacam tradicio-
nalmente por suas dimensões ou materialidade, como pela capacidade de formar iden-
tidades e consolidar memorias coletivas. Apesar de se tornarem imagens estáticas de
personagens ou ações, os marcadores permanentes de identidade local e/ou nacional
também contribuem para o esquecimento dos eventos. Nesse aspecto, refletindo sobre
um conceito ampliado de monumento, Deleuze e Guattari (1992), associam-no a um
ato de fabulação que remete uma história parcial e excludente. São atos seletivos que
(re)inventam heróis dispostos no espaço urbano como fantasmas (na maioria das vezes
representando homens brancos de meia idade) em pedra e metal.
No século XX, outras iniciativas romperam com as convenções estéticas de bustos,
estátuas de personagens e heróis históricos, etc., propuseram diferentes relações com o
espaço físico e o contexto sociocultural e utilizaram estratégias artísticas para desafiar
a norma hegemônica no espaço público. Nesse contexto, o antimonumento dos anos
1960/1970 se afirmou tanto por tentar romper com o regime estético vigente, como por
questionar a supremacia representada por convenção da categoria artística. O antimo-
numento foi posto em oposição a ideia tradicional do monumento e teve sua forma e
função deslocada. O Memorial Invisível (1993), exemplo radical de arte pública, foi
criado por Jochen Gerz e alunos da Academia de Arte de Saarbrücken. 2146 pedras
de calçamentos foram removidas e gravados em uma das faces nomes de cemitérios
judaicos e reassentadas com a inscrição contra o chão da praça que era sitio do centro da
Gestapo. Assim, o lugar da memória é substituído por uma experiência do espectador e
o público estabelece relações física e simbólica com o lugar.
Dialogando com noções anti-hierárquicas e críticas sociais dos anos 60/70 inerentes
ao antimonumento e o contramonumento, Hirschhorn recusa em seus trabalhos as cara-
terísticas do monumento clássico para repensar a arte pública. Em Monumento a Batai-
lle, uma homenagem escultural temporária concebida pela Documenta 11 de Kassel, o
artista improvisa uma exposição a partir de materiais cotidianos externa dos principais
locais da mostra e cria uma situação relacional com uma comunidade de trabalhadores,
na maior parte imigrantes. Os moradores são convidados e contratadas para colaborar
com o artista em atividades diárias em torno da obra do filósofo francês Georges Batai-
lle. O artista se coloca enquanto proponente e trabalhador responsável pelo funciona-
mento da obra, que tende estimular cooperação e parcerias capazes de revelar as junções
secretas entre as coisas, como a participar na lutar contra injustiças e desigualdades
sociais. As atividades diárias na biblioteca temporária, na venda de Kebab, no estúdio
de TV, nas oficinas, etc., são transmitidas ao vivo na internet.
244 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Figura 1 e 2.  À esquerda: Construção do monumento (Todd Heisler, The New York Times,
2013) . À direita: Inauguração do Monumento (Construction pictures, http://gramsci-monu-
ment.com/page121.html, 26.06.2013).

Seguindo a mesma metodologia de trabalho, em Monumento a Gramsci (Figuras 1


e 2), o artista instala uma biblioteca, Internet café, estação de rádio, agencia de jornal,
oficina, sala de estar e bar e estabelece uma programação de conversas sobre arte e o
filósofo marxista revolucionário italiano Antônio Gramsci com os residentes na Bronx.
Semelhante a Monumento a Bataille, ele desafia a ideia do “monumento” pelo caráter
despretensioso dos eventos, o uso dos materiais, a aparência de “totens de culto do lixo
pós-apocalíptico” (Kennedy, 2013), como pela escolha da localização. Utilizando mate-
riais comuns (madeira, papel, tecido, papelão) e objetos descartados (móveis abandona-
dos), Hirschhorn procura um “arte kitsch” que se insere na cultura cotidiana das pessoas
e denuncia a “arte pela arte” e/ou “arte perfeita” (Tellechea, 2002) em dialogo com uma
das principais ideias de Gramsci:
Não existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual,
não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo, homem, fora de
sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um “filósofo”,
um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo, possui uma
linha consciente de conduta moral, contribui assim, para manter ou para modificar uma
concepção do mundo, isto é, para promover novas maneiras de pensar (Gramsci, 1979).
O homem é um ser politico que se define a partir das relações sociais estabelecidas,
assim como por sua participação na vida coletiva. No caso dos monumentos de Hirs-
chhorn, a arte publica é o momento de participação do artista e dos moradores colabo-
rando em uma “concepção de mundo”.
Com a escolha pelo baixo estatuto socioeconômico da comunidade principalmente
turca na Alemanha e afroamericana no Bronx, Hirschhorn afirma sua posição privile-
giada de artista. Uma equipe local de pessoas atuando como prestadores de serviço,
funcionários e trabalhadores anônimos gerenciada pelo artista foi montada. A desigual-
dade dos participantes sugere um debate a respeito da viabilidade da arte colaborativa,
face às desigualdades socioeconômicas de artista e moradores, ao tempo em que aponta
para a existência de um plano comum sensível, uma unidade espaço-temporal partilhada
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 245

por diferentes pessoas, práticas e discursos. No encontro com o outro, os valores são
negociados para (re)projetar um ambiente a partir dos elementos existentes, unindo o
que habitualmente não pode ser unido, interferindo, deste modo, na realidade imediata.
No caso do Brasil, os monumentos tradicionais apresentavam eventos de uma forma
propagandística importando modelos iconográficos idealizados, herdados da tradição
acadêmica europeia. Todas as cidades têm bustos de “personalidades celebres” e em
vários locais se encontram estatuas de índios, bandeirantes e negros em escala majestosa
numa tentativa de valorizar as raízes brasileiras e expressar as fabulas nacionais. Nos
últimos anos, também surgiram contramonumentos como o Monumento ao Índio (Brasí-
lia, 2000) que rememora a morte do índio Galdino, incendiado em 1997, ao mesmo tem-
po em que perpetua as convenções do monumento tradicional. Outro tipo de mobiliza-
ção, que poderia ser enxergada como escultura social ou monumento público, aconteceu
em 2012 a partir da divulgação de uma carta de índios guaranis caiovás do Mato Grosso
do Sul denunciando violências sofridas pela tribo. Em solidariedade, brasileiros urbanos
adicionaram o sobrenome Guarani – Kaiowa a seus primeiros nomes nas redes sociais.
A afirmação “Sou Guarani Kaiowá” não agrega valor indenitário a partir de sua
enunciação, mas aponta para um significado simbólico construído a partir de um con-
texto especifico. O convite para compor o Monumento a Macunaíma também circulou
na Internet. A partir das propostas uma programação de três dias buscando privilegiar
atividades que desafiariam o caráter monumental da arte pública, ações que apontaram
para crises de “civilização” por meio de intervenções efêmeras e instancias que dialoga-
ram com os monumentos de Hirschhorn antropofagicamente, foram criadas.
Instâncias de troca foram produzidas, diferentes visões confrontadas e estimulada
a ativação recíproca na interação entre o espaço físico e imaginário sugerido pela obra
Macunaíma. Escolheu-se o personagem-título do romance do escritor brasileiro Mario
de Andrade (1928) como falso herói capaz de representar o multiculturalismo brasileiro.
Mas o que se deseja comemorar?
As ações Carregamento do tronco e Moradores: ocupação noturna do grupo Ur-
banidades-Intervenções integrou a programação heterogênea do evento que teve parti-
cipação ativa de mais de quarenta pessoas. Carregamento de Tronco (Figuras 3 e 4) se
baseou inicialmente nas corridas com carregamento de toras de madeira realizados por
tribos brasileiras. Segundo Júlio Cezar Melatti, as corridas com toras estão ligadas á
práticas rituais, porem, apesar de depender diretamente de habilidades físicas humanas,
não podem ser consideradas esportivas já que não apresentam elementos competitivos.
O ritual consiste basicamente em carregar um tronco de madeira ao longo de um trajeto
predefinido. Para a ação do monumento, optou-se carregar uma amarrado de varas de
bambu de seis metros que lembrou um tronco ou mastro de Santo Antônio de uma ma-
terial local pouco presente na imagem da cidade.
246 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Figura 3 e 4.  Registros fotográficos. Carregamento do tronco, Urbanidades, 2013.


Fotografias de Igor Santos Oliveira.

Definiu-se um trajeto seguindo o eixo central da cidade ao longo do córrego do


Lenheiro, atravessando o núcleo histórico de um extremo a o outro, seguindo para o
bairro Fábricas, ao longo da avenida principal onde se encontram os comércios e fabri-
cas da cidade. A ação transformou os participantes em uma equipe obrigada a funcionar
colaborativamente e em negociação. No livro A Necessidade da Arte Ernest Fischer
exemplifica a ideia que reforça a questão da coletividade pela recusa da competitividade
em atividades cotidianas e artísticas:
A sociedade primitiva implicava uma forma densa e fechada de coletivismo. Nada
era mais terrível do que ser excluído da coletividade e ficar sozinho” e continua “ A arte,
em todas as suas formas [...] era a atividade social por excellence (Fischer, 2002).
Faz-se necessário pensar no outro e criar um equilíbrio entre os participantes. Rever-
sou-se o peso, o lugar, mudou-se de posição para achar diferentes maneiras de realizar
a ação inócua, que apenas visava o deslocamentos dos bambus de um lugar para outro.
A ação constituiu uma prática que participou “na distribuição geral das maneiras
de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade” (Rancière,
2005). Rancière teoriza um regime específico da partilha do sensível que define uma
experiência que não se reduz à percepção natural, posto que é vivida fora das condições
normais da experiência cotidiana. O sensível assim compreendido é marcado pela pre-
sença de uma “potência heterogênea, a potência de um pensamento que se tornou ele
próprio estranho a si mesmo” (Rancière, 2005).
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 247

Figuras 5 e 6. Registros fotográficos. Moradores: Ocupação noturna, Urbanidades, 2013.


(Acervo do grupo).

Essa potência de diferenciação foi objeto da ocupação Moradores (Figuras 5 e 6),


um acampamento embaixo de uma ponte de pedestres no centro da cidade. As redes
ocuparam um espaço não utilizado por causa da poluição do córrego. Houve um rom-
pimento com o lugar pré-determinado que impediu a identificação da ocupação com
moradores de rua ou modos de fazer artísticos. Segundo Rancière, o regime estético se
constitui através de uma aparente contradição, um momento insurgente que possibilita
perceber a potência do encontro entre o real e o artificial num confronto com o espec-
tador que elabora o sentidos visual e seu sentido social a partir da ocupação como ação
simbólica e como forma autônoma da vida.
Para Rancière, a formação de uma comunidade política é baseada no encontro dis-
cordante de percepções individuais. A arte, como incentivadora da multiplicidade de
manifestações e interesses, permite as colisões das diferenças. As inscrições dessas rela-
ções conflituosas resultam em um evento antagônico, deslocando as rotinas cotidianas.
Criam-se memoriais não-intencionais, monumentos insurgentes que se transformam
em situações reais como material simbólico e real construído. Nesse sentido os monu-
mentos de Hirschhorn e as ações do grupo Urbanidades pretende abolir a arte pública
tradicional e redefinir o estatuto da representação do individuo no espaço público, mas,
sobretudo participam da repartição da experiência comum, podendo, inclusive ser visto
como ações políticas que contestam a norma hegemônica e propõem um exercício de
estabelecer uma equilíbrio coletivo temporário.
248 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Referências
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso
Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992.
FISCHER, Ernst. A Necessidade da Arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 1979.
KENNEDY, Randy. Bringing Art and Change to Bronx. The New York Times. June 27, 2013. Ac-
cessible in: http://www.nytimes.com/2013/06/30/arts/design/thomas-hirschhorn-picks-bronx-
development-as-art-site.html?pagewanted=all&_r=1&. Acessed: 30.07.2013.
MELATTI, Julio Cezar. “Corrida de Toras”. Em: Revista de atualidade indígena. Ano I, nº 1, pp.
38-45, Brasília: FUNAI, 1976
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Ed. 34, 2005.
TELLECHEA, Juan Carlos. Thomas Hirschhorn en Documenta 11. Disponível em: http://www.
swissinfo.ch/spa/Thomas_Hirschhorn_en_Documenta_11_.html?cid=2752022. Acesso:
30.07.2013.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 249

Zonas de sombra, indeterminação


e incompletude: notas sobre a
dinâmica processual de um desenho

Jamerson Sérgio Passos Rezende


IARTE/UFU – [email protected];

Cláudia Maria França da Silva


PPGA/UFU – [email protected]

Este texto relata uma pesquisa atual em Desenho, cujos desdobramentos le-
vantam questões sobre o limite entre o acabamento e o inacabamento de um
trabalho artístico. Questionam-se quais seriam os indicativos do desenho de
observação enquanto registro de um “motivo” e quais seriam os indicativos de
um desenho que adquire o status de autônomo. Espera-se que a aproximação
ou distanciamento da materialidade do desenho com relação ao referente, de
certa forma mensure o quão autônomo o trabalho é, em nível de estilização
ou abstração das suas formas. Este processo é mediado conceitualmente por
Pareyson (1984), em questões que tocam a formatividade de uma obra, em
diálogo com Salles (2009).
Palavras-chave: Desenho; processo de criação; formatividade; sombras.

This text reports a current research in Drawing, which unfolding allows rai-
se questions concerning the boundary between the ending and the incom-
pleteness of an artwork. It questions which would be indicative of observa-
tion drawing while registering a “reason” and which would be indicative of a
drawing that acquires the status of autonomous. It is hoped that the approach
or detachement from the drawing materiality in respect to the referent, in a way
to measure how as the work is at the level of abstraction or its forms stylization.
This process is conceptually mediated by Pareyson (1984), on issues that tou-
ch the formativity of an artwork in dialogue to Salles (1998).
Keywords: Drawing, creation process; formativity; shadows.
250 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Considerações iniciais
Desde os primeiros desenhos, durante a graduação em artes visuais, pôde ser observada
a recorrência de um modo específico de ocupação do espaço, em que a forma represen-
tada ocupava uma pequena porção ao centro, deixando grande parte para o pronuncia-
mento do vazio. O contorno era então preenchido com hachuras a grafite, até obter a
variação de alguns pontos na escala de valor, conferindo uma noção básica de volume.
Como fiz tais desenhos pensando-os inicialmente como esboços, estudos preparatórios
no campo da observação e da memória, não vinculei a ocupação espacial da forma a uma
peculiaridade sua, como se ela possuísse um “caráter introspectivo”.
A partir do momento em que essa “introspecção” da forma foi aventada, deu-se início
à parte experimental propriamente dita, tendo como norteadores os seguintes elementos:
a relação de proporção forma-espaço; os graus da escala de valor; a relação claro-escu-
ro e a notação de sombras, como elementos visuais que pudessem alterar ou corroborar
a situação dada naqueles esboços observados. Tais relações de contraste e composição
demandaram, por sua vez, experimentações com outros materiais para além dos grafites.
A parte prática atual consiste na produção de uma série de desenhos de observação
a partir objetos de pequena escala, facilmente disponíveis, mas que ao mesmo tempo,
apresentam uma complexidade em sua forma, sobretudo na riqueza de seus planos. Em
suas sobreposições e/ou justaposições já se percebe o potencial para uma composição
gráfica relativamente impactante em sua visualidade, podendo ser mais explorada, de
acordo com o grau de descentralização da forma no espaço do suporte.
Com base nesse critério, para uma primeira experimentação, foram escolhidos mo-
tivos como papéis levemente amassados em um “exercício tautológico” do desenho,
ou seja, ocorre a representação visual de um papel amassado sobre um plano de papel.
Posteriormente, representei pequenas pedras irregulares de cortes bem definidos. Tais
objetos foram, em diferentes momentos, colocados sobre uma base plana e firme sob
uma luz próxima e relativamente difusa, projetando sombras no próprio modelo (objeto
real) bem como na sua base.
Uma questão importante é respectiva às qualidades matéricas dos elementos ob-
servados: papeis amassados e pedras solicitam um modo específico de traçar. Como os
limites desses elementos com o entorno são bastante definidos, suas sombras próprias e
as projetadas solicitam igualmente procedimentos técnico-formais em consonância com
a dureza de seus contornos. As linhas de contorno das formas contribuem para a per-
cepção de diferentes pesos visuais nos desenhos representados com as pedras e papéis
amassados: a pedra, por ser fisicamente mais pesada deve corresponder no desenho a
um peso visual maior, conseguido com uma linha de contorno mais densa; enquanto no
papel, ela deve permanecer “leve” assim como material referente.

Procedimentos e discussões
Nos estudos iniciais já se fez relevante a variação de texturas nas formas gerais do
desenho, dadas primeiramente com hachuras rápidas e evidentes. No entanto, o estudo
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 251

das sombras merece uma demanda temporal maior. Percebo que a sombra é um indício
importante não somente para conquistas técnicas, mas também para ganhos composicio-
nais e simbólicos. Para tal, utilizei-me de situações de um foco e de dois focos de luz, no
sentido de multiplicar as sombras dos referentes.
Onde havia sombras médias (difusas), este conjunto de linhas deveria acontecer
unidirecionalmente, no sentido dominante (de maior peso) em cada parte. As sombras
projetadas nos objetos deveriam se dar por dois momentos hachurados, em direções
opostas e sobrepostas, como se cruzadas. A sombra de situação, responsável por situar
o desenho em seu espaço, se destacaria por uma segunda técnica gráfica, limitando uma
área de mancha escura e opaca, obtida com têmpera (Figuras 1 e 2).

Figuras 1 e 2: Jamerson Rezende. Experimentos de sombra com desenhos de papéis amas-


sados, 2013. Grafite e têmpera sobre papel, caderno 30 x 21 cm. (Fonte: Acervo próprio).

Esta sombra destacada, além de apoiar visualmente a forma, pretende apontar com um
de seus vértices extremos, para uma grande área de papel branco, mantendo diálogo cons-
tante entre figura e fundo, harmonizando a composição e garantindo sua dinâmica visual.
Há, portanto, uma diferenciação de duas sombras, e com elas, uma necessidade de
representação de diversos instantes no desenho: a representação do objeto; de sua som-
bra natural (difusa); e da sombra de situação; esta, focada e projetada, tanto no objeto
quanto no espaço circundante.
Cada uma dessas partes demanda uma particularidade de tratamento visual em sua
textura e técnica utilizada. A premissa aqui é a de fazer corresponder a materialidade do
desenho à materialidade do referente, aproximando-os. Espera-se que esta aproximação
ou distanciamento do desenho com relação ao modelo, de certa forma mensure o quão
autônomo o trabalho é em nível de estilização ou abstração das suas formas.
Nas primeiras experimentações, notou-se uma disparidade indesejada, fragmentando o
desenho em dois, com prejuízo das formas em grafite. Julgando ser um conflito de ordem
técnica, foi buscada uma aproximação das hachuras entre si, sendo menos evidente em sua
252 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

individualidade, para poder se comportar também como mancha. Com isso, esperava-se
obter mais coerência entre as partes da forma e a unidade do todo. O desenho não estava
finalizado, estava ainda na esfera do esboço preparatório – fato reforçado pela necessidade
de registros fotográficos como documento processual, durante essa etapa.
A questão que se coloca nesse momento é: como as tonalidades de cinza contribuem
para a autonomia do trabalho sem a perda da materialidade original, indicada no referente?
Havia ali, um distanciamento muito grande entre os tons de cinza e o preto. Os cin-
zas se aproximavam mais do branco do suporte do que da mancha escura, demandando
uma revisão desta escala de valores, com tons médios. A ambiguidade técnica conti-
nuava gerando um conflito visual, visto que ambas concorriam entre si pela atenção do
espectador, prejudicando a totalidade do trabalho.
São testadas outras densidades de grafite e espalhamentos da forma em suas manchas,
com a projeção de um foco de luz mais denso em posição diferente da primeira fonte lumi-
nosa. Nesse caso, as sombras secundárias claras também foram feitas com técnica úmida,
como a mancha escura, para se diferenciar em textura com o material observado.
Uma segunda variação seria a de destacar somente a sombra de situação no dese-
nho, reduzindo as demais. Assim, somente a mancha escura divide espaço com o objeto
representado, semelhante às pesquisas plásticas de Regina Silveira (Figura 3), diferen-
ciando-se na composição espacial. Enquanto a artista projeta as sombras em espaços
tridimensionais para obter distorções visuais nas mesmas, este trabalho volta-se para a
percepção bidimensional, procurando a ativação do espaço branco do suporte, a partir
das formas desenhadas.

Figura 3: Regina Silveira. Paradoxo do Santo, 1994. Vinil adesivo, madeira e escultura, 155
m2. Foto: Ding Musa. (Fonte: reginasilveira.com).
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 253

As sombras contribuem para uma contextualização


espacial das figuras (papel amassado e pedra) no suporte
utilizado, definindo suas posições. Podem ser definidas
então, sob o conceito de “fundação” para o desenho, ou
seja, sua base estrutural em termos visuais. Funcionam
agora, como elemento básico de localização da forma em
um espaço geográfico idealizado. (Figura 4).
Outra problemática com relação ao procedimento
prático está na noção de indicativos no potencial de fina-
lização do trabalho. Ou seja, quais indicativos apontam
para a condição de acabamento ou inacabamento de uma
obra de arte, visto que o esboço ainda possui uma virtua-
Figura 4: Jamerson Rezen-
de. Estudo de composição lidade, um “vir a ser” arte.
com sombra escura, 2013. Os desenhos realizados, cada qual como resposta a
Grafite e têmpera sobre pa- um problema surgido a partir da representação das som-
pel, caderno 30 x 21 cm.
bras, estabelece uma espécie de “diário”, o qual prepara
(Fonte: Acervo próprio).
projetos do que seria um “desenho autônomo”. No entan-
to, não haveria naquele conjunto, situações ou fragmen-
tos próprios de uma situação “finalizada”, em Desenho?
Pareyson (1997) define a arte como o “puro êxito de uma atividade plasmadora”, ou
seja, como o acabamento de uma ação formadora, um processo cuja condição de sucesso
é sua própria adequação consigo mesma, não com outro fim ou valor além de si. Para o
autor, este acabamento da obra de arte, ou “forma formada” (obra finalizada), surge da
resolução de um problema interno à mesma, dado pela dialética entre atuação da “for-
ma formante” (obra em processo) juntamente com a intenção e intervenção do artista.
Assim, a expressividade da obra aconteceria quando ela se concretizasse em si enquanto
modo de formar, definindo com ele, seu modo de ser.
Para Salles, este processo de formação da obra está ligado à resolução da contínua
tensão existente entre o projeto do artista (sua intenção artística) e sua adequação material.
É a tensão entre o que se quer dizer e aquilo que se está dizendo. Esta é, na verdade,
a caracterização do ato criador, em seu sentido mais geral, que estamos, aqui, sustentan-
do, na medida em que o trabalho da criação – um percurso que exibe tendências – está
inserido na continuidade do processo. (SALLES, 2009: 67).
Nestes desenhos, a tensão material foi dada com a introdução de uma segunda téc-
nica no mesmo suporte, competindo com a primeira (hachuras a o grafite) em termos de
atenção visual. Superar esta disparidade técnica se tornou, nos termos de Salles, a “lei”
interna do processo, ou seja, objetivo prático e norteador do mesmo a fim de buscar uma
síntese entre forma e conteúdo.
O sucesso desta síntese deve determinar o quão finalizado é um trabalho em arte.
254 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

A relação entre forma e conteúdo não pode ser definida, portanto, por uma dico-
tomia. Investigar onde um começa e o outro termina é descobrir a própria natureza da
arte. O poder de expressão do produto que está sendo fabricado está na fusão de forma
e conteúdo – uma espécie de amálgama. (SALLES, 2009: 80).
Este poder de expressão é dado na experiência com a obra entregue ao público; em
outras palavras, sua contemplação estética plena, dentro do que o artista se propôs, e por
vezes se estendendo além. Podemos entender ainda a questão do acabamento e expres-
sividade da forma segundo o conceito de “presença” da obra de arte no pensamento de
Didi-Huberman. Segundo o autor, esta presença teria uma característica aurática, perce-
bida por uma relação dialética entre o objeto artístico e o observador.
Aurático, em consequência, seria o objeto cuja aparição se desdobra, para além de
sua própria visibilidade, o que devemos denominar suas imagens, suas imagens em
constelações ou em nuvens, que se impõem a nós como outras tantas figuras associadas,
que surgem, se aproximam e se afastam para poetizar, trabalhar, abrir tanto seu aspecto,
quanto sua significação, para fazer delas uma obra do inconsciente. (DIDI-HUBER-
MAN, 1998: 149, grifos do autor).
Podemos dizer que somente a obra acabada, no sentido de sua própria realização
enquanto processo e apresentação tem a presença aurática capaz de justificar-se pela
contemplação que proporciona, ao mesmo tempo em que possibilita e permite ao obser-
vador associações complementares diversas para além de sua visualidade. No entanto,
considerando que lido com esboços e estudos e que estes ainda não foram vistos por
outras pessoas, coloco-me como o observador, o outro que observa atentamente o que
o desenhista está a fazer e, assim, perceber os graus de finalização e inacabamento dos
desenhos. Neles, o observador que sou eu, pode percebe o grau de desdobramento das
pedras e papeis em nuvens, que sobrevoam a planaridade do suporte.

Considerações finais
Enquanto esboço, o desenho é geralmente caracterizado por sua redução técnica, ma-
terial e escalar, a fim de uma execução mais ágil. Ou seja, o desenho preliminar apre-
senta-se com caráter imediato de estudo preparatório para outro fim (posterior àquele).
O desenho final também tem essa intenção de sê-lo, desde sua gênese. A diferença com
relação ao esboço está no fato de ele apresentar um nível mais detalhado, no sentido
de adequação de suas formas ao seu conteúdo, tornando-se idealmente pleno no que se
propõe. Torna-se objeto autônomo com relação ao seu próprio processo de construção.
Há graus de autonomia do desenho, esta autonomia sendo definida quanto à sua in-
tencionalidade do proponente, intenção final do artista. Ou seja, se o desenho tem ou não
a pretensão de ser arte finalizada – e isso deve transparecer no trabalho, salvo nos casos
de esta ser apresentada ao público como uma forma artística alternativa. Esta pesquisa
não se esgotando aqui, encontra-se em processo de produção e reflexão. Tais hipóteses
têm de ser constantemente testadas para conclusões mais consistentes.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 255

Referências
DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.
SALLES, C. A. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Annablume/FAPESP,
1998.
PAREYSON, L. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
256 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Uma dramaturgia tecida


por muitas mãos

Jéssica Lorenna Lima Gonçalves


URCA – [email protected]

A presente pesquisa é decorrente do Projeto PIBIQ/CNPq: Da Estante Para


o Palco: a criação colaborativa de dramaturgia original e a recepção da livre
adaptação da Divina Comédia de Dante Alighieri. A pesquisa foi iniciada em
janeiro de 2011. Foi desenvolvida e realizada pelo Grupo de Pesquisa Labo-
ratório de Criação e Recepção Cênica – LACRIRCE. A estreia do espetáculo
aconteceu em agosto de 2013.
Palavras chave: Criação. Colaboração. Dramaturgia original.

Esta investigación es el resultado del Proyecto PIBIQ / CNPq: Del Estante


para el escenario: la creación colaborativa de teatro original y la recepción de
la adaptación libre de la Divina Comedia de Dante Alighieri. La investigación
se inició en enero de 2011. Fue desarrollado y llevado a cabo por el Labora-
torio de Investigación Grupo de Creación y recepción Scenic - LACRIRCE. El
estreno del espectáculo tuvo lugar en agosto de 2013.
Palabras clave: Creación. Colaboración. El drama original.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 257

O estudo é desenvolvido a partir de processo de criação em colaboração, com um


Grupo composto por professores e alunos do Centro de Artes Reitora Violeta Arraes de
Alencar Gervaiseau da Universidade Regional Do Cariri- URCA. Como primeira etapa
da pesquisa, criamos um campo de imagens a partir do universo de Dante Alighieri,
aguçando nosso imaginário para a criação cênica a partir do universo teórico-prático,
referenciados por autores como Fayga Ostrower e Cecília Salles que apesar de ambas
serem teóricas das artes visuais, comungam de perfeita sincronia com nossa pesquisa no
que se diz respeito aos vestígios deixados no caminho do processo.
A partir dos encontros fomos instigados a destacar recortes do texto que mais nos
chamassem atenção, com esses recortes da obra iniciamos a segunda etapa do projeto
que era organizar os recortes de acordo com que cada membro do grupo desejava falar
criativamente.
A terceira etapa consolidou-se dentro da sala de ensaio, usando recortes da obra cita-
da começamos a agir por meio das improvisações, os jogos propostos estabeleciam um
elo de confiança entre os atores, desenvolvíamos os primeiros alinhavos da nossa narra-
ção. Esse alinhavar, costurar, cozer tecidos dramatúrgicos, foi possível pelas vivencias
praticas, pela sintonia dos encontros. A coletividade foi fator indispensável, as formas
cênicas apresentavam-se e aperfeiçoavam-se a partir do grau de intimidade do coletivo.
Durante esses dois anos de pesquisa muitas estratégias foram criadas para a cons-
trução da dramaturgia. Assim, fragmentos do texto de A Divina Comédia, dos textos de
Antonin Artaud e trechos bíblicos eram trazidos para sala de ensaio, com um intuito de
fazer parte dos jogos improvisacionais, e desenvolver nossas potencialidades criativas.
A encenadora e dramaturga da adaptação na qual trabalhávamos conduzia as improvisa-
ções. Depois delas, conversávamos para registrar o que de fato interessava para o traba-
lho, no decorrer deste percurso eram feito recortes dos quais construímos possibilidades
de cena. Atualmente, com um olhar mais distanciado do processo, consigo perceber que,
o que realmente regeu nosso trabalho, foram os encontros na sala de ensaio e as diversas
referências encontradas no percurso. De fato, essas descobertas feitas no caminho, é o
que pauta a encenação e a dramaturgia. Entendendo esta dramaturgia não só como dra-
maturgia do texto, mas também a dramaturgia tecida para a construção da personagem.
Assim como a autora Salles coloca também se aplica a criação dos personagens.
No momento da construção da obra, hipóteses de naturezas diversas são levantadas
e vão sendo postas à prova. São feitas seleções e opções que geram alterações e que, por
sua vez, concretizam-se em novas formas. É nesse momento de testagem que novas rea-
lidades são configuradas, excluindo outras. E, assim, dá-se a metamorfose: o movimento
criador. Tudo é mutável, mas nem sempre é mudado. (SALLES,2004)
Para aguçar o imaginário dos envolvidos no processo, todos os membros do Grupo
de Pesquisa foram instigados a ler a obra A Divina Comédia, e a partir da leitura, trazer
fragmentos para os encontros práticos a fim de serem compartilhados. Conforme íamos
tirando as dúvidas uns dos outros, partíamos para as improvisações. As improvisações
foram uma das principais estratégias para o recorte da obra e reelaboração da mesma.
258 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Este processo exigia-nos um grande poder de imaginação, nos envolvendo no tecido da


criação nossos próprios questionamentos e desejos, pois de acordo com Ferreira:
A dinâmica do processo criativo (...) é desenvolvida mediante um envolvimento
do artista com o seu desejo de expressão. (...) Esta consciência criativa, voltada para
a realização do circulo mágico, extrapola os limites do ponderável, perceptível, lógico
e analítico, requer do individuo criativo a capacidade de ir além dos fatos concretos e
empíricos. (FERREIRA, 122-123, 2009)
Acredito que este é um dos motivos para justificar a demora a se fechar o “círculo
mágico” do trabalho. As pessoas envolvidas não poderiam estar ali por qualquer motivo,
precisavam estar envolvidas por completo com suas questões e seus porquês. Somente
assim conseguiriam chegar até o final do processo. Talvez, o mais delicado neste tipo de
trabalho, seja esperar o tempo que a encenação pede, respeitando o amadurecimento do
processo de cada um, pois tudo depende dos caminhos a percorrer e decisões a tomar.
Como a autora Fayga Ostrower coloca muito bem no seu livro Criatividade e Processos
de Criação: “Será ele, dentro de sua seletividade, a discriminar o caminho, os avanços
e os recuos, as opções e as decisões que o levarão a seu destino.” (OSTROWER, p.75,
1991) Então, assim entendemos que, cada um é encarregado de fazer suas próprias es-
colhas e decidir por qual trilho seu destino irá seguir.
Diante de tantas prerrogativas percebo, o quanto nós caminhamos e evoluímos en-
quanto pessoas, que se propuseram há escutar o tempo e a demora do outro. Neste senti-
do buscamos um maior desenvolvimento enquanto profissionais, pois esta pesquisa nos
permitiu a experimentação como pesquisadores, levando em conta nossas habilidades.
“A criação é, sob esse ponto de vista, conhecimento obtido por meio da ação. O pro-
cesso criador revela diferentes instantes cognitivos, envolvendo gestos os mais diversos
para se alcançar esse conhecimento.” (SALLES, 2004) Para que o conhecimento fosse
exercitado, precisávamos experimentar qual área queríamos seguir paralelamente ao tra-
balho de criação da personagem e da encenação. Um exemplo disso é a possibilidade de
vivenciar não apenas um trabalho como atriz, mas também como produtora do espetá-
culo. Da mesma forma, ocorreu com outros membros do grupo dos quais desenvolveram
atividades como iluminadores, cenógrafos, maquiadores entre outras habilidades.

A dramaturgia na construção do personagem


Realizamos, para a construção da dramaturgia do espetáculo, algumas estratégias de
criação das personagens. Ao mesmo tempo em que improvisávamos e criávamos pos-
sibilidades para a dramaturgia, utilizávamos das mesmas estratégias para a dramaturgia
das personagens. Conforme já relatei, o inicio do nosso processo foi pautado em impro-
visações, passando assim para a criação de partituras ou Células, como chamávamos.
Ou seja, depois de improvisar, cada ator era responsável de criar células de cenas, para
que no encontro com todos os atores e a encenadora, as construções fossem amaradas e
tecidas de fato na cena.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 259

Uma das estratégias utilizadas para a construção da dramaturgia das personagens foi
que, cada ator criasse uma espécie de carta que identificasse as características de seus
personagens. Cada carta criada pelos atores era nomeada como AVATAR. Personagens
como jogadores de um tabuleiro da vida. Com essas construções, assim cada ator ficou
responsável de construir suas células, levando em consideração as características de
seus avatares. Os atores usaram para a construção dessa carta desenhos, colagens, pintu-
ras para identificar seu jogador. Com esse tipo de estratégia percebo que já íamos crian-
do nossos personagens e eles já iam ficando em nossos corpos mesmo que timidamente.
Até esta etapa do processo os personagens eram Dante, Virgílio, Beatriz, Matilde, Deus,
Diabo, Onça, Loba e Leão. A construção destas cartas possibilitou a primeira construção
do que seriam nossos personagens.
Esta criação levou em consideração os três espaços, como se para cada espaço: in-
ferno, purgatório e paraíso, existissem ou fosse criado um personagem diferente. Com
suas intenções, partituras e desejos. Precisávamos, além de criar as partituras (células),
exercitar os nossos corpos para as mudanças rápidas de espaços. Usando-se dos proce-
dimentos de hipertensão e suspensão íamos saindo de um espaço e entrando em outro.
Então, precisávamos deixar tecidos em nossos corpos referências que nós conduzissem
a cada um daqueles espaços sugeridos por Dante. A diferença é que todos os espaços
seriam usados em simultaneidade. E para a construção das personagens esses fatores
deveriam ser levados em conta.
Semanalmente nos encontrávamos para a realização de trabalhos físicos que en-
volvia voz e corpo. O treinamento conduzido pela encenadora apontava a atenção para
exercícios de dicção, precisão, agilidade, foco, força, jogo e interação entre os envolvi-
dos. As partituras criadas eram pensadas e repensadas. Para esta construção utilizamos
bastante da repetição para desenvolver um treinamento eficiente com/em nossos corpos.
Para que estes chegassem à cena vivos e vigorosos.
Desenvolvemos algumas perguntas, que primeiramente foram feitas a nós mesmos,
como: Qual seu sonho? Qual seu medo? E quanto você está disposto a pagar? Depois
de pensadas essas perguntas e, pelo menos temporariamente, respondidas a nós mes-
mos, resolvemos realizar as perguntas também com a comunidade. Aquelas pessoas
que responderam a tais perguntas sonhavam em ter uma casa, em se formar, em ganhar
na loteria e na maior parte das respostas estavam dispostos a tudo e ao próprio esforço
para conseguir seus objetivos. Alguns desses fragmentos foram inseridos na primeira
versão da dramaturgia. Depois dessas pesquisas sobre o medo o sonho e o preço, a ence-
nadora propôs que nós atores desenvolvêssemos pelo menos 3 personagens-tipo. Ainda
na primeira versão da dramaturgia nós desenvolvemos algumas cenas baseadas nesses
personagens-tipo. Eram figuras comuns da nossa sociedade que resolvemos usar de ins-
piração para a criação, neste caso, t anto da dramaturgia textual quanto à dramaturgia da
personagem. Muitos recortes foram feitos para essa construção de personagens até que
se estabelecesse o que seria levado ao público.
260 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Na trajetória de construção dos personagens, o texto escrito vai sendo singularizado,


os atores anotam e fazem indicações nele, refletindo o processo de (re)criação do texto
na montagem, partindo de suas compreensões e impressões, da direção da peça, dos
treinamentos vocais e corporais. (GAYOTTO, pg.38, 1997.)
Este processo é conhecido por receber várias interferências no seu decorrer. Cada
nova informação que íamos aderindo à construção das personagens mais mudanças pro-
vocavam, tanto na dramaturgia como na encenação, principalmente por ser um trabalho
repleto de retalhos e tecido por muitas mãos. Com o tempo percebíamos o que estava
funcionando e poderia ser amadurecido e que por consequência poderia ser retirado da
dramaturgia e assim do espetáculo. Um grande exemplo disso foram os personagens de
Deus e o Diabo. Passamos muito tempo trabalhando com esses personagens até chegar
um determinado momento do processo, em que estes foram substituídos por persona-
gens chamados de Juiz, Rainha, Bailarina, Poeta e Bobo e assim, interferindo seriamente
na dramaturgia, já que neste tipo de processo um ponto dependa e seja ligado ao ponto
anterior.
Hoje chegamos a uma dramaturgia que é repleta de idas e vindas, que assim refletem
na encenação como se fossem cenas repetidas e que também são refletidas na criação
das personagens. Este processo me coloca no lugar de experimentar e por consequência
investigar o percurso feito pela obra e assim analisar os rastros desse processo, concor-
dando e destacando uma citação que acho pertinente da autora Cecilia Salles quando
diz que: “Quando falo em percurso, refiro-me aos rastros deixados pelo artista e pelo
cientista em seu caminhar em direção à obra entregue ao público.”(SALLES,2004) E é
assim que me sinto, em um lugar ainda de descoberta. Principalmente refletindo sobre a
construção e apresentação da obra, tentando perceber como tudo foi tecido e costurado,
refletindo e encontrando novas possibilidades.

Referências
FERREIRA, Cecília Maria de Araújo. Cena e jogo: o imaginário na carne. 2009. Dissertação
(Mestrado em Artes Cênicas) – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Universidade
Federal da Bahia.
GAYOTTO, Lucia Helena. Voz Partitura da Ação. São Paulo: Summus. 1997.
MARTINS, Marcos Bulhões. Encenação em jogo: experimento de aprendizagem e criação do
teatro. São Paulo: HUCITEC, 2004.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. – 6º Ed. – Petópolis, vozes. Rio de
Janeiro. 1991.
SALLES, Cecília Almeida. Gesto Inacabado: processo de criação artística. 2º Ed – São Paulo –
FAPESP – Annablume, 2004.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 261

Simulacro e jurisprudência –
Sobre o desejo de normose frente
aos subterfúgios da criação

João Wesley de Souza


UFES/UGr, Espanha – [email protected]

Investigar algumas questões conceituais, pertinentes ao percurso de entroni-


zação de uma hipotética obra de arte que concorrem dentro do seu processo
de criação e reconhecimento, e ainda, envolvendo os vestígios e as contami-
nações oriundas desta experiência, que atingem seu autor, constitui o objeto
deste artigo.
Palavras chave: Arte e filosofia, Arte e sistema de arte, Arte e processo de
criação.

Investigate some conceptual issues, relevant to the route enthronement


of a hypothetical artwork that competes within their process of creation
and recognition, and also involving the traces and contamination deri-
ved from this experience that affect its author, are the subject of this paper.
Keywords: Art and philosophy, Art and the art system, Art and creative process.
262 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Deambular sobre algumas questões conceituais pertinentes a uma suposta proposi-


ção de obra de arte, que concorrem dentro do seu processo de criação e reconhecimento,
e ainda, envolvendo os vestígios e as contaminações oriundas desta experiência que
atingem inexoravelmente seu autor, constitui o objeto deste artigo. Definir os conceitos
que interagem neste processo, levando às atitudes assumidas pelo autor, dentro deste
transito, trata se da intenção primeira deste texto, no sentido de delimitar um campo de
conceituação que, em ultima instancia, funcionará como referencia para a construção e
entendimento, sobre algum argumento que possa surgir neste percurso.

Para um desejo de aproximação com o sistema de arte


Inicialmente, vamos orientar-nos em direção a referencia dos rastros (Derrida, 1967)
encontrados no processo de criação, vamos considerar algumas possíveis atitudes que
o autor pode lançar mão para viabilizar sua circulação e interação, de fora para dentro,
e com, o sistema de arte. Lembramos que o citado sistema de arte ao qual o autor busca
se inserir é sempre delimitado pelo seu recorte geográfico experimental, cultural e tem-
poral, ou seja, o seu Umwelt (Uexkull, 2009) possível. Tal política de aceitação, aqui
traduzida como desejo de integração, necessariamente, tem que atravessar diagonalmen-
te o âmbito do conceito de normose (Weil, 2003). Perceptíveis mudanças de atitudes,
câmbios de estratégia que envolve reordenações conceituais e mudanças nos planos
de trabalho que podem surgir em uma análise do percurso criativo de qualquer artista
visual militante, em relação ao seu sistema cultural mais imediato. Para ilustrar esta ad-
vertência apresentamos duas pinturas, figuras. 1 e 2, de uma pintora, já consagrada, da
geração 80. Nota se nas legendas destas imagens, uma perfeita integração, uma eficiente
normose com o sistema de arte em vários dos seus níveis, tanto no que se refere a um
importante colecionador quanto a uma conhecida instituição de arte.

Figura 1: Rio 40º, Cristina Canale, 1987. Figura 2: Com curadoria de Luiz Camillo
Óleo s/ tela, 200 x 300 cm. Coleção Marcan- Osório, Cristina Canale, mostra individual,
tonio Vilaça. Imagem extraída de http://www. Arredores e Rastros MAM - Rio de Janeiro.
nararoesler.com.br/disponiveis/cristina-cana- 21.06.2010. Imagem extraída de http://www.
le em 22 de setembro de 2013. nararoesler.com.br/noticias/cristina-cana-
le-abre-mostra-individual-no-mam-rio-de-ja-
neiro em 22 de setembro de 2013.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 263

Sobre a adaptabilidade do autor


Considerando que qualquer processo de criação é antecedido por uma cultura instituí-
da e historificada, e que se encontra inserido no gerúndio de sua contemporaneidade,
com perspectivas a um futuro, vamos então, admitir e relacionar o conceito de duração
(Bérgson, 1999) com as possíveis atitudes que ocorrem no ato de criação, no qual o
autor pode fazer uso para garantir sua durabilidade dentro do sistema de arte. Esconder
e fingir se, construir e reformular seus simulacros entendidos como arcabouço técnico e
conceitual utilizados como uma política de sobrevivência dentro de um sistema cultural
móvel e descentralizado (Hall, 2011), praticas aqui vistas como fundamentos compor-
tamentais, admissíveis, quanto á necessidade de adaptação na relação entre o criador
e o sistema cultural dominante, podem ser novamente interpretadas como elementos
de eficiência relacional com o Umwelt. Ter uma atitude, ou varias outras cambiantes,
é estar e sobreviver, durando no espaço físico e mental ao alcance da experiência do
sujeito, no qual cada autor, uma vez inscrito, deve construir sua possível resposta, se-
gundo suas possibilidades de recepção e interpretação, do lado de dentro desta bolha
fenomenológica.

A imagem como resposta experimental


Todo sujeito está condicionado a um umwelt, ou a seu entorno. Seu alcance, melhor di-
zendo, aquilo que pode ser tocado e conhecido no trato (Heideger, 2009) com o mundo,
dentro dos limites desta bolha biológico-fenomenológica, aqui se pode compreender,
como uma biosfera cultural que determina e delimita as possibilidades hermenêuticas
desta relação. O que o sujeito interpreta e exprime na forma de uma configuração visual,
nos caso das artes visuais, nada mais é do que sua capacidade de resposta e entendi-
mento sobre a realidade onde está inserido. Suas respostas visuais são, portanto, suas
configurações criadas neste encontro entre o sujeito e sua “realidade circundante”, admi-
tidas como uma fricção hermenêutica (Gadamer, 1992), com o mundo. Simplificando,
considerando estas premissas, podemos dizer que toda imagem criada, traz em si, e
consigo os vestígios deste encontro entre o sujeito e seu ambiente biológico e cultural
circundante. Ao relacionarmos estes rastros fenomenológicos com as imagens produzi-
das neste contexto, diga se neste umwelt, devemos considerar estes modos de recepção
semiológicos, específicos de cada sujeito.

Da ficção ao fato
Para investigar os contextos e estratégias onde se insere o desejo de reconhecimento so-
bre ato de criação ambicionado pelo autor, posto que a criação de configurações visuais,
ainda pode ser vista como uma tentativa de comunicação, daí a necessidade de resposta
pública sobre este ato, ou seja, para observarmos o âmbito de validação e reconhecimen-
to da obra de arte, vamos percorrer e definir os conceitos e substâncias que estariam en-
volvidos neste processo que em ultima instância, constitui mais um campo de manobras
onde o autor deve participar, com uma determinada eficiência, para que sua produção
264 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

seja reconhecida ou ignorada. Neste momento vamos chamar a atenção sobre o aspecto
ficcional (Vaihinger, 1925), da obra de arte em seu berço. No seu momento de criação a
obra de arte pode ser admitida como uma ficção livre. Cada configuração visual criada
pode ser uma especulação imaginativa, antes que a mesma, segundo seu êxito dentro do
sistema cultural circundante, ultrapasse sua situação inicial de ficção livre, para atingir
posteriormente a realidade em uma nova condição de coisa durável, ou fato visual. Este
êxito, pode ser obtido através da sedimentação cultural conquistada pelas estratégias
eficazes implementadas no processo de inserção pública da obra. Digamos aqui: o êxito
do desejo de reconhecimento que autor espera da sua produção, a passagem da ficção ao
fato cultural instituído, é diretamente proporcional á eficiência conquistada, na constru-
ção da narrativa contextual da sua imagem. Esta qualidade pode ser visível na própria
obra como presença visual inserida no sistema dominante, ou reconhecível nas atitudes
ou conceituações escritas do artista.

A estratégia da jurisprudência
O uso de recursos históricos como um argumento de jurisprudência, poderia ser com-
preendido como outra possibilidade de validação e reconhecimento, desde que seja con-
cebido dentro de um contexto neo-acadêmico, onde o autor tem, a princípio, uma rela-
ção estreitada com o conhecimento formal e institucional da arte. Lançar mão daquilo
que já está sedimentado na cultura historificada, para que através de correspondências e
relações silogísticas, se consiga introduzir substancialidade nas criações recentes, pode
ser um recurso de eficaz baseado em exemplos e analógicos, uma vez que: aquilo que
foi inicialmente concebido como uma ficção livre passe a condição de substância ativa,
quando atinge a realidade, diga se, caso consiga atingir o sistema cultural, com força
duradoura. A esta possibilidade de romper os limites do Umwelt e atingir a realidade,
chamuscos de eficiência da ficção, ou ficção eficiente, como definiu Vaihinger.
Lembramos que a imagem artística instituída, passa pelo mesmo processo de con-
venção social. Tudo se inicia como um absurdo ficcional, uma mentira, para adquirir,
à medida que comprova sua eficiência, como função essencial para a continuação da
vida, o status de verdade no final deste processo, como aponta Nietzche em Sobre la
verdad y mentira en sentido extramoral. (Nietzche, 2010). A imagem artística é efi-
ciente e durável, quando é importante para a continuação da espécie, quando importa,
em algum sentido, para o sensus comunis (Kant, 1987). Daí, podemos compreender a
dificuldade em definir apriorísticamente, o que é, ou o que pode ser arte, uma vez que,
quem define esta qualidade é um acordo, prolongado no tempo, entre o senso comum
e o poder cultural estabelecido. Quer dizer a estratégia da jurisprudência tem sua efi-
ciência comprovada, quando um juízo positivo construído ao longo do tempo, advém
de uma normose com âmbito do poder da crítica institucionalizada. Considerando isto,
resta ao criador também ser um bom jogador neste campo de sutilezas, para que sua
produção ganhe importância, visibilidade e duração. Neste caso, nos parece que o artista
deve saber interagir, tanto com a crítica institucional quanto com o senso comum. Não
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 265

podemos esquecer que os teóricos, mesmo considerando sua quantidade numérica redu-
zida, também fazem parte e integram-se ao senso comum e também podem nutrir-se de
uma relação intuitiva com ele.

Considerações finais
Na adversidade vivemos, simulamos, interpretamos e narramos imagens, as múltiplas
bifurcações de caminhos e possibilidades que o contexto cultural nos oferece, exige
atualmente que o artista, mais do que saber fazer coisas com as mãos, também saiba
tomar atitude. Para esta permanente condição em que se encontra o autor, um desejo de
normose frentes aos subterfúgios que envolvem o processo de criação da obra de arte, a
principio, nos parece ser até agora, a única atitude possível. A normose sempre vai exigir
estratégias eficazes de dissimulação e de busca de referencias já cristalizadas na cultura.
Porém não podemos esquecer que a normose, em sua própria estrutura conceitual, sofre
inevitavelmente da enfermidade anacrônica em terminar mantendo as coisas onde sem-
pre estiveram, uma vez que corrobora, concordando sempre, com o já instituído. Neste
caso, usar estratégias de normose implica em andar de par com o conservadorismo, uma
atitude estranha à transgressão, gesto tão necessário para reinventar artisticamente as
coisas. Fazer uso deste comportamento, desta inclinação à docilidade (Foucault, 1979),
pode ser uma indicação fácil, o caminho natural que o poder central do sistema de arte
instituído aponta e demanda, mas como podemos observar na própria historia da arte,
o impressionismo, assim como outros movimentos que realizaram profundas mudanças
no conceito de arte, em seus momentos específicos, não tinha nenhuma concordância
com as verdades instituídas pelo sistema vigente. Em vez de atuar segundo as normas
do jogo oficial, os impressionistas, assim como outros possíveis exemplos paralelos,
criavam novos jogos que exigiam a reformulação das normas vigentes, desestruturando
o que se conhecia como arte, até então.
Podemos observar nas pinturas de Jorge Duarte, outro pintor da “Geração 80” (Fig.
3 e 4) como um exemplo de “anormose”. Uma atitude antítese da normose, também
pode relacionar com o sistema mercadológico e educacional da arte, mas sempre de
modo discordante e complexo. Considerando que estas pinturas que apresentamos exis-
tiram, entre um antes e depois, de uma interação com seu professor no Mestrado de
Linguagens Visuais na EBA UFRJ, podemos dizer que este pintor caminha no sentido
contrário a um desejo de normose, tanto em relação ao ensino quanto ao sistema de arte
de um modo geral, fato que não impede em ultima instancia, apesar de certa dificulda-
de relacional, que seus trabalhos sejam reconhecidos ao longo do tempo. De volta ao
exemplo histórico que suscita esta atitude, poderia dizer que: todos criadores envolvidos
com as grandes mudanças no conceito de arte, estavam essencialmente no caminho
contrário, na contramão do fluxo. Em vez de optarem pela docilidade entranhável como
estratégia de penetração e reconhecimento, eles apostaram na “anormose” como meio
de ampliação de seus horizontes experimentais e estéticos. Fica aqui outra possibilidade
de atuação, outro caminho a percorrer dentro do sistema de arte.
266 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Figuras 3 e 4: Sapo sopa e Frog soup, Jorge Duarte, 1999. Vinilica sobre madeira, 30 x 45 cm
cada, Coleção do artista.

Referências
BERGSON, HENRY. Matéria e memória. Martins Fontes, São Paulo, 1999.
DERRIDA, JACQUES. De la Gramatologie. Collection Critique, Paris, 1967.
FOUCAULT, MICHEL. Microfísica do poder. Graal, Rio de janeiro, 1979.
GADAMER. H.G. Verdad y Método. Ediciones Sígame, Salamanca, 1993.
HALL, STUART. A identidade cultural na pós-modernidade. DP&A editora, Rio de Janeiro, 1998.
HEIDEGER, MARTIN. Ser y Tiempo. Editorial Trota, Madrid, 2009.
KANT, INMANUEL. The critic of judgement. Hackett Publishing Company, Indianólopis, 1987.
NIETZCHE FRIEDRICH. Sobre la verdad y mentira en sentido extramoral. Editorial Tecnos,
Madrid, 2010.
UEXKULL, JAKOB VON. Theoretical Biology. Hardcourt, Brace&Company. INC, New York,
1926.
VAIHINGER, HANS. The philosophy of “as if”. Hardcourt, Brace&Company. INC, New York,
1925.
WEIL, PIERRE. A patologia da normalidade. Editora Vozes, Rio de Janeiro, 2011.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 267

A obra como fragmento do percurso


do artista: um estudo sobre a
própria poética

Joedy Marins
FAAC/UNESP – [email protected]

A elaboração da obra de arte passa por fases distintas, gradativas, intensas,


durante as quais as criações emergem respondendo a necessidades vitais de
organização pessoal. Nas Artes Visuais, o deslumbramento estético faz parte
constante de descobertas infinitas que resultam nas produções, permeando
linguagens, renovando-as. Observando meu processo criativo, percebo que
o deslumbramento é a grande diretriz para produzir desde as anotações nos
cadernos, sejam elas provenientes de palavras ou desenhos.
Palavras-chave: Processos de criação – arte contemporânea – poéticas artís-
ticas – redes de criação – Cecília Almeida Salles

The elaboration of the work of art goes through distinct stages, piecemeal, in-
tense, during which it the creations emerge answering vital needs of personal
organization. In the visual arts, the fascination aesthetic is part of the endless
discoveries that result in productions, permeating languages​​, renewing them.
Watching my creative process, I see that the fascination is the great guideline
to produce from notes in the notebooks, are from words or drawings.
Keywords: process of creation – art contemporary – artistic poetic – crea-
tion’networks – Cecília Almeida Salles
268 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Poética
Durante meu processo criativo, percebo como a sede pela criação acompanha o nas-
cimento da obra em busca de um objeto de estudo. O interesse se concentra em algo
maior do que a materialização daquele momento, integrando-o ao ansiar a fase seguinte.
O registro passa a ser mais uma ferramenta para alcançar um conhecimento específico,
que não se esgota enquanto maior objetivo, do contrário, a obra seria o fim. A busca pelo
objeto de estudo passa a ser um turbilhão que absorve tudo o que for necessário para tra-
zer respostas na forma plástica. Nessa absorção, as linguagens me emprestam subsídios,
características que não me fazem necessariamente fiel a somente uma delas.
Ao “rejeitar”, adequar, selecionar para o momento da criação, vejo como nessas ope-
rações julgo quais técnicas, materiais e linguagens estão aptos para materializar ideias
como estratégias para avançar em um campo a ser conquistado. O objetivo maior se
encontra em conhecer o que se está fazendo e para alcançá-lo é necessário me aproximar
do alvo e avançar novamente. Minha realização (assim como acredito também estarem
as conquistas profundas do ser humano) está no percurso a ser trilhado e dentro dele,
seus trajetos são registrados quando processados no ato da criação. Ao comunicá-la
não saio do percurso, em um continuum. A materialização somente responde a uma
necessidade maior na qual utilizo ferramentas à disposição de uma poética. É ela quem
manipula as linguagens, alterando-as, transformando-as.
Nessa leitura comparo minhas conquistas como criadora a outras tão persistentes
quanto, dentre as quais posso citar o caminhar. Os passos da criança, por exemplo, não
objetivam a vitória em uma maratona, mas sim o domínio para o próximo passo e próxi-
mo, até alcançar um determinado lugar e assim por diante. A comparação também pode
ser feita com a trajetória de um atleta, tendo-se a continuidade, a persistência e a resig-
nação em comum. Assim como, para um atleta, a bola, os tacos, a raquete, dentre outros,
não são o objetivo de sua vitória, mas sim instrumentos, da mesma forma, para mim,
enquanto artista, as técnicas, materiais e suportes são canais para se aproximar mais per-
to do alvo. Nesse sentido, considero relevante abordar a maneira pessoal de se utilizar
cada um desses canais como o grande desafio para o profissional. Tomo a liberdade de
considerar que a maneira específica como o artista o faz constitui o verdadeiro sentido
de ser artista, sua lente específica para ler o mundo. Ele é impelido por um conjunto de
variáveis que inclui a maneira como aprimorou usar a tinta, o papel, a fotografia, o buril,
o lápis. Há uma relação intensa nessas variáveis, que podem ser chamadas de influências
mútuas nas conexões da rede de criação, que o impele a olhar seu objeto de estudo e
a interpretá-lo. Como ele fica diante dessas lentes? Esse é o interstício que cabe a esse
artista, o intervalo onde lerá o mundo e onde a obra de arte nascerá.
Nesse intervalo entre o autor e criação da obra, a forma mais adequada e calculada
para se produzir está nas adaptações à realidade, ou “inadaptações”, “ruídos”, visões
originais que não se enquadram nos paradoxos. Por resultarem da individualidade, da
identidade em leituras absolutamente pessoais da realidade, constituem ideias originais,
que em sua poesia geram estranhamento ao espectador . Quanto mais o artista conhece
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 269

a maneira de manipular e utilizar suas ferramentas, testando as possibilidades as quais


atendem, subjugando materiais, linguagens, métodos ao alcance de seu objeto de estudo
e à maneira que o enxerga, mais a fundo chegará e deixará sua marca, registro de seu
olhar específico. Sua interpretação emergirá trazendo respostas, que por sinal, direcio-
narão a outras perguntas, não esgotando sua ânsia criadora.
Dentro dessa trajetória, seja em quais áreas for, sabemos sempre o ponto exato onde
paramos. A criação representa uma organização interna constante que nos permite co-
nhecer melhor não somente temas externos, como também a nós mesmos e assim a uma
maior compreensão de como lemos o mundo. É um processo interligado, intrínseco ao
ser humano. Daí, as redes de criação chegarem a ser comparadas às leis da natureza,
como faz Cecília Salles ao citar Morin para mencionar as regras existentes nos jogos de
associações (SALLES, 2006, p.24).
Ao ler sobre a não linearidade do conceito de rede dentro da construção da obra de
arte, vejo o quanto se apresenta coerente essa teoria frente às fases lógicas do proces-
so criativo: apreensão, preparação, incubação, iluminação, verificação e comunicação,
segundo Abraham Moles (1971) e George Kneller (1973). A não linearidade vem de
encontro às ocorrências das fases, variáveis em cada processo, fazendo com que os in-
sights surjam das relações entre um processo e outro no decorrer da vida do artista. As
investigações para o surgimento de uma série (objeto de estudo) podem ser exatamente
a realização da série anterior, nascendo umas das outras, como livros sendo lidos ao
mesmo tempo. O primeiro a ser iniciado pode ser o último a ser finalizado, inclusive.
O fazer artístico constitui um mecanismo vivo que pode ser compreendido a partir das
sinapses, de como elas ocorrem como raios em uma grande tempestade.

Percurso e fragmentos
Ao estudar a criação em rede, percebo o quanto ela me é familiar, o quanto vem de
encontro à maneira como minhas investigações são organizadas dentro do processo cria-
tivo. Exemplos disso são as formas como estruturei minha tese de doutorado “Legado:
gestações da arte contemporânea - Leituras de imagens e contextualizações do feminino
na cultura e na criação plástica” (BAMONTE, 2004) ao fazer a leitura de minha produ-
ção plástica e a maneira como dou continuidade às criações que compartilham de uma
mesma abordagem. Na trajetória de minha produção procuro a trajetória de um trabalho
específico e encontro marcas impregnadas da identidade que venho construindo. En-
contro um contexto plástico maior do qual minha produção faz parte e outros universos
que se abrem e dialogam entre si. Nesse percurso, delineia-se uma organicidade nas
imagens citadas no corpo do texto, como um jogo de combinações constantes, no qual
os elementos se repetem e se reafirmam. Há uma dinâmica no interesse na e pela própria
criação, pelo processo latente, constante, a sede pelo que o trabalho proporciona e não
exatamente por ele em si.
270 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Diante de minha produção atual, observo que as reflexões presentes na tese foram
continuadas e nessa afirmação encontro argumento para reconhecer nas linhas que se
conectam e nas tramas que foram construídas, o que Cecília Almeida Salles denomina

(...) conjuntos construídos constituídos a partir de interações, retroações, inter-retroações, que


constituem um tecido complexo.
(...)Uma decisão do artista tomada em determinado momento tem relação com outras ante-
riores e posteriores. Do mesmo modo, a obra vai se desenvolvendo por meio de uma série de
associações ou estabelecimento de relações. (...) (SALLES, 2006, p.27)

Diante de algumas imagens de obras produzidas posteriormente à defesa do douto-


rado, trago imagens apresentadas na tese, aproximando vários momentos de criação. Às
imagens da tese denominei “diálogos propostos”, cartões individuais inseridos no final
do texto que juntos forma uma colcha de retalhos, pensados para que o espectador fizes-
se leituras isoladas das imagens apresentadas no decorrer da abordagem, que possuem
um vínculo entre si, a partir de referências e obras de artistas que trabalham temas e
contextos próximos. São propostas de interação entre criações de mesma autoria, dessas
com as de outros artistas e contextos e entre si, em diálogos constantes que ampliam as
possibilidades de interpretação a partir de conteúdos que foram trabalhados dentro da
tese, no processo de criação plástico e teórico.
Ao observar todas as imagens apresentadas, interessa-me como esse jogo de inte-
rações pode parecer com as regras da natureza, pontuando que “diálogos propostos”
foram criados para enfatizar o vínculo do fazer artístico com a experiência biológica da
gestação e da fertilidade feminina. O desenvolvimento das células do corpo é abordado,
da mesma forma que Cecília Salles apresenta o jogo de interações, em regras que se
aproximam da natureza. Tanto a produção, quanto a necessidade de criar e o objeto de
pesquisa são apresentados tendo os padrões têxteis artesanais como metáforas da vida
sendo gerada e, dessa forma, como uma criação em rede. Abaixo estão vinte imagens
das sessenta que foram inseridas na tese para compor os “diálogos propostos”. Há uma
leitura a ser feita das obras com um contexto maior, que inclui obras de outros artistas,
imagens do cotidiano e desenhos ilustrativos de Biologia.
Para demonstrar o continuum em meu processo criativo, apresento no formato de
“diálogos propostos” algumas imagens de obras apresentadas na tese e realizadas pos-
teriormente para que as conexões sejam observadas em minha poética, aproximando-se
momentos diferentes do processo criativo. As conexões a serem feitas estão dentro de
um contexto mais específico autoral, a serem lidas individualmente pelo espectador,
enfatizando-se seus conteúdos ao formar a trama como redes de criação.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 271

Figuras 1 a 20:. Imagens que fazem parte de “Diálogos Propostos” (BAMONTE, 2004) -
da direita para a esquerda, de cima para baixo: 1. Sem Título, Joedy Marins, 1995 (Marins,
1990-2003); 2. “Corte”, Edith Derdyk, 2002 (Derdyk, 2002); 3. Representação gráfica da fe-
cundação do óvulo (Demarest, 1971, p.47); 4,7,12,16,20: Retalhos de Legado, Joedy Marins,
2002 (detalhes) (Marins, 2003); 5. Couple III (“Casal III”), Louise Bourgeois, 1997 (Fundação,
1998); 6. Toalha de crochê artesanal; 8. Representação gráfica do trajeto do óvulo fecunda-
do (Persaud, 2000, p.5); 9. Foto de um feto em gestação (Persaud, 2000, p.13); 10. “Traços
Arraigados”, Joedy Marins, 1993 (Marins, 1991-2003); 11. Representação gráficado ciclo fértil
feminino (Demarest, 1971, p.43); 13. Sem Título, Joedy Marins, 2000 (Marins, 2000); 14. Es-
pécie de aranha (Argíope multicolorida) tecendo a teia (Milidge, 1999); 15. Sem Título, Joedy
Marins, 2001 (Marins, 2001); 17. Dote II (em execução), Joedy Marins, 2003 (Marins, 1991-
2003); 18. “Gestação” (13o quadro), Joedy Marins, 1991 (Marins, 1990-2003); 19:Legado,
Joedy Marins, 2002 (Marins, 2003).

Considerações Finais
Escrever sobre o próprio processo criativo exige um afastamento para que o autor se apro-
xime do lugar ocupado pelo espectador. À medida que ocorre um distanciamento do pe-
ríodo em que cada obra ou série foram finalizadas, há uma somatória a outras produções
formando-se um conjunto apto a ser refletido. Ao se fazer essas reflexões, percebe-se que a
272 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

criação como rede é uma constante, que se refaz e não permite rupturas entre as diferentes
fases do artista. Uma obra jamais será totalmente desconectada das outras dentro do con-
junto produzido pelo mesmo criador. Ao propor a aproximação de imagens representativas
de séries e períodos distintos de minha produção plástica, verifico o quanto o ato criativo
é muito mais complexo do que compartimentar séries e fazer organizações lineares. Há
um pulsar constante que liga uma obra à outra, trazendo-as à memória para que juntas
originem novas produções. Considero o presente trabalho somente um exercício do reco-
nhecimento dessas conexões, aberto a muitas outras que, com certeza virão.

Figura 21 a 40:. Imagens de criações apresentadas em “Diálogos Propostos” junto a tra-


balhos produzidos posteriormente (BAMONTE, 2004) - da direita para a esquerda, de cima
para baixo, criações: Joedy Marins: 21. Sem Título, 1995 (Marins, 1990-2003); 22. “Traços
Arraigados”, 1993 (Marins, 1991-2003); 23. “Revisitando Legado”, 2010 (Marins, 2010); 24,
25, 36, 37: Retalhos de Legado, 2002 (detalhes) (Marins, 2003); 26: “Bichos”, 2010 (Marins,
2010); 27: Dote II (em exposição), 2003 (Marins, 2012); 28 e 38. Nu feminino IV e XV, (Marins,
2011); 29. Sem título, 2011 (Marins, 2011); 30. Sem Título, 2001 (Marins, 2000); 31. Dote II
(em execução), 2003 (Marins, 2003); 32.“Gestação” (13o quadro), 1991 (Marins, 1990-2003);
33.Catedral IX, 2010 (Marins, 2010); 34.Legado, 2002 (Marins, 2003); 35. Bulbos XII, 2012
(Marins, 2012); 39.“Ainda assim não me disperso” V, 2012 (Marins, 2012); 40.Sem Título, 2001
(Marins, 2001);
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 273

Referências
BAMONTE, Joedy L. B. M. Legado – gestações da arte contemporânea: leituras de imagens e
contextualizações do feminino na cultura e na criação plástica – São Paulo: Universidade de
São Paulo, Escola de Comunicações e Artes, 2004. 307 p.
KNELLER, George. Arte e ciência da criatividade. 17 ed. São Paulo: IBRASA, 1978.
MOLES, Abraham. A criação científica. São Paulo: Perspectiva, Edusp, 1971.
SALLES, Cecília Almeida. Redes da criação: a criação como rede. Vinhedo: Horizonte, 2006.
274 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

“E fomos olhar pássaros”:


sonoridade pictórica

Jorge Luiz Mies


CAPES/PPGA/UFES – [email protected]

Ângela Grando
PPGA/UFES – [email protected]


Dentro do quadro geral de revisão e estudo da obra da pintora capixaba Re-
gina Chulam, o texto pretende refletir sobre modos de ver uma obra pictórica,
tomando como caso de estudo a análise do quadro E fomos olhar Pássaros
(2012) e buscando, nos esquemas conceituais de Merleau-Ponty, caminhos
para se aprofundar na aproximação da obra.
Palavras-chave: pintura, processo de criação, Regina Chulam.

Considering the study and analyses of capixaba painter Regina Chulam´s


works, this article discusses many possible “ways of seeing” a pictorical work,
taking “E fomos olhar pássaros (2012)” as a study case and analysing it. Besi-
des, it also tries to use Merleau-Ponty´s Conceptual Schemes as a theoretical
background that will enable to discuss Regina´s work through a deeper and
closer perspective.
Keywords: painting, process of creation, Regina Chulam.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 275

Ao pesquisar o processo de criação da artista capixaba Regina Chulam, passamos


a descortinar um íntimo universo poético que aponta para a vocação de um verdadeiro
sentido de seu ofício, de um processo não aplacado, em teste contínuo, como mostra o
fazer/refazer da trajetória de sua obra. Dentro dos conceitos apropriados para este estudo,
para um pintor, totalmente dedicado a sua arte, cada trabalho representa uma experiência
criativa singular que clama por novas buscas. Ele sabe que seu projeto pictórico nunca
está concluído, pois cada criação, com suas novas descobertas e soluções encontradas,
permite novos desdobramentos em quadros futuros. O artista, que está sempre buscando
e questionando seu trabalho, apresenta um processo de maturação constante, transfor-
mando a imensidão do mundo que habita em uma experiência estritamente pessoal.
Ao nos debruçarmos sobre uma obra pictórica já considerada acabada, para revelar
as camadas matéricas de seus próprios meios de expressão, descobrimos os cruzamen-
tos de sentido e as possibilidades de diálogo que se criam na pintura, a partir da livre
combinação do desenho, da cor, da textura e da estrutura de sua superfície trabalhada.
Cada pincelada vai se tornando um percurso em que o pintor, ao criar as formas e os mo-
tivos de seu desejo, reinventa o que será entregue ao olhar do espectador. Neste estudo,
discutimos, particularmente, a construção de uma pintura de Regina Chulam, buscando
analisar as transformações e os ajustes de um trabalho que em todo seu processo de fei-
tura se realiza de maneira dinâmica, aguçando a memória e os afetos da artista. Teremos,
como suporte teórico, os escritos fenomenológicos de Maurice Merleau-Ponty, e alguns
estudos deste campo filosófico nos favorecerão uma dimensão mais poética do processo
de criação por intermédio de uma experiência perceptível.
A pintura é uma atividade humana de potencial criativo que expressa experiências
vividas e percebidas por um ser sensível (MACHADO, 2010). O olhar do pintor va-
gueia, investiga as coisas visíveis no mundo. Sua visão desvela o mundo da percepção
e a converte em pintura. Como ser sensível, o pintor se aproxima das coisas, deixa-se
ver pelas coisas do mundo e é visto por elas. Seu olhar subtende a cor, o movimento
da sua mão subtende a forma dos objetos (MERLEAU-PONTY, 2006). O quadro traça
a trajetória perceptiva do artista: o caminho do mundo visível ao mundo da expressão,
convertido no gesto pictórico (NÓBREGA, 2000).
Para o filósofo Merleau-Ponty a obra de arte é um acontecimento, um fenômeno
estético que revela as impressões do mundo visível, ou seja, tudo o que pode ser obser-
vado na natureza e apreendido pelos olhos (ESCOUBAS, 2007). O artista capta essas
impressões pela visão e as converte em pintura. Promovida pela percepção do pintor, a
pintura esboça na tela o trabalho de sua visão, um mundo investido em formas e cores. A
linguagem pictórica, segundo o filósofo francês, é uma potência de fazer ver e de fazer
mundo, de dar visão aos videntes, pintor e espectador, ou seja, o fato pictórico cria um
mundo sob o olhar. Um mundo criado pelo pintor que o pinta e pelo olho que o olha.
Assim, a visão do pintor é uma ferramenta do renascimento contínuo da imagem, que ao
olhar para as coisas também é olhado por elas (MERLEAU-PONTY, 2004).
276 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Merleau-Ponty também aponta que o olho é o instrumento de entrega do pintor. É por


intermédio do olhar que o pintor se aproxima do mundo para transformá-lo em pintura.
Essa transformação se dá por meio da aprendizagem do ver, conquistada por exercícios que
sensibilizam o olhar na captação das sensações do mundo visível. A visão se torna gesto
revelando luzes, cores e linhas, elementos de existência reelaborados pelo sentido retiniano,
atrelado ao campo do sensível. Assim, a pintura é a projeção de um mundo, uma atividade
que, segundo o crítico de arte Ronaldo Brito, “interroga o aparecer do mundo; sente e pensa
a força, o peso e as consequências de tudo o que vem a ser visível” (2005, p. 202).
Como incessante busca de uma resposta à interrogação que o mundo dirige ao pin-
tor, a pintura estabelece uma dimensão poética que comunica mundo, autor e espectador.
O mundo oferta formas e cores variadas e, consequentemente, a infinita possibilidade de
interação com as coisas. O pintor transforma suas percepções visuais em forma material,
permitindo, assim, que o espectador, ao animar a tela pelo olhar, possa descortinar o
mundo percebido pelo pintor. Cada quadro, então, é a expressão de uma experiência que
se torna acessível aos olhos de quem o contempla.
As pinturas de Regina Chulam, sem dúvida, capturam o olhar do observador e refle-
tem um verdadeiro sentido do ofício que foi se estabelecendo junto com a vocação pela
intensa pesquisa pictórica. A acumulação de conhecimento pictórico será perseguida
sem tréguas, por meio de uma trajetória metódica, que trabalha, essencialmente, a estru-
tura dos planos e se revigora nas manchas cromáticas das telas, oferecendo uma sensibi-
lidade estética ao seu contemplador. O olho, ao percorrer a superfície coberta por tinta,
assimila, sutilmente, as atmosferas impregnadas na memória da artista, manifestadas no
espaço do quadro. Nesse sentido, o espaço pictórico de Chulam se constitui pela prática
do exercício do olhar: olhar do pintor, que percebe o mundo ao seu redor e o transforma
em pintura; e olhar do espectador, convidado a explorar as sensações oferecidas.
A tela E fomos olhar pássaros (figura 1), engendrada em 2012, desvenda o mundo
que cerca a artista: o mundo físico, lugar onde se encontram os elementos que compõem
o espaço habitado por Chulam e o mundo memória, que aciona imagens presentes em
seu vocabulário plástico-temático. Dos detalhes à percepção geral do quadro, a autora
vai experimentando sensações, ou seja, revelando suas próprias experiências e a maneira
que foi afetada por elas. O mundo exterior, vivido, e o mundo interior, reexaminado, são
continuamente recordados com novas formas e cores sobre a superfície da tela. Parafra-
seando Merleau-Ponty, “[...] o papel do pintor é cercar e projetar o que dentro dele se vê”
(2004, p. 21). E, aqui, é preciso considerar uma relação importante que esta tela solicita
ao espectador, ou seja, o aspecto do “tempo” que a apreciação da obra em tríptico exige,
por apontar relações estáveis e mediatizar os contatos com o real.
Regina Chulam, ao trabalhar esta tela, organizou registros fotográficos que mostram as
etapas de seu processo de execução; verdadeiros documentos para acessar o universo ín-
timo de sua criação. Ao fotografar o processo de construção de E fomos olhar pássaros, a
artista guarda etapas de tempos em sua própria tensão. Neles recaem importantes decisões
de uma biografia da obra, como a partir de seu processo de fabricação, com ambivalências
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 277

e transformações, foi possível o surgimento de novas formas. Cada uma das três telas exi-
bem o valor construtivo da forma, da linha e da cor, evidenciando os principais elementos
visuais presentes na poética da pintora e suas potencialidades expressivas.
A memória da artista aciona afetos e recordações que serão transmudados em ima-
gens. Desse mundo de reminiscências, Regina traz as figuras de seu temário: poltronas,
pássaros e agaves; elementos que compõem uma série de obras expostas em sua cons-
tituição definitiva na sua trajetória. Essas figuras, que, persistentemente, constituem o
seu espaço plástico, envolvem uma organização de natureza estritamente pessoal, fazem
parte da constituição subjetiva da autora no decorrer de seu processo de criação. Seu
vocabulário temático, sempre que acessado, é uma linha de força condutora do processo
de construção de suas obras. Sob as inúmeras camadas matéricas de E fomos Olhar
pássaros, encontra-se o cachorro da artista, um grande sinal de afeto. Bapoo, como é
chamado seu fiel companheiro, deitado sobre o tapete, ao receber as pinceladas de ver-
melho, deixando à mostra apenas seu contorno, oferece a estrutura necessária para os
pássaros que mais tarde tomarão seu lugar (figura 2).

Figura 1. E fomos Olhar pássaros, 2012. Acrílica sobre tela, 150 X 240 cm. Foto da artista.

O espaço físico de Aracê é o mundo habitado pela autora. O local, próximo à Pedra
Azul, cercado de montanhas, do verde da natureza e do canto dos pássaros, vem sendo
o recanto onde a artista encontra a sua fonte de inspiração e amadurecimento de ideias.
Ali, desde 2006, vive, totalmente, entregue ao ofício do puro prazer da pintura e, prin-
cipalmente, entregue a si mesma e na criação infinita de imagens. Aracê é o espaço de
sua operação poética, reflexo de seus diálogos com os problemas da pintura, que para
ela, são formulados, exclusivamente, pela própria pintura. A infinita contemplação desse
278 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

espaço resulta em imagens que tanto nas declarações da artista e nos títulos de muitos
quadros, quanto na reivindicação da luz local, é detectável uma maior sensibilidade na
orquestração de tons agudos e graves. Na verdade, não se pode interessar pela questão
da cor sem solicitar a questão da luz e da sua propagação (GRANDO, 2005). Sem dú-
vida, considerando o trabalho das etapas precedentes de Chulam, trata-se de captar pela
cor a qualidade rara da luz e o frescor da atmosfera daquela região, o que se reflete na
sinfonia de verdes e azuis em contraste com o vermelho e o laranja, manchas de gestua-
lidade que dilatam a construção de suas composições.

Figura 2. Na tela central o cachorro da artista vai dando lugar aos pássaros.

O quadro é dividido em três partes. Cada uma delas apresenta os resquícios de ama-
durecimento de um processo pictórico que não abriu mão de relacionar-se, estreitamente,
com o papel específico do desenho. As linhas, que sustentam os elementos figurativos da
composição, permitem a Chulam manipular o espaço e, assim, garantir os novos rumos
de suas ações plásticas. Gênese das coisas, a linha anda no espaço, estende-se na espacia-
lidade ativamente (MERLEAU-PONTY, 2004). Sua pintura trabalha a contínua renova-
ção da linha. É graças a ela que a composição deixa à mostra o caminho de sua constru-
ção. Aqui, à medida que, por intermédio dos traços, o desdobramento e a metamorfose
das poltronas são sugeridos, as camadas mais externas vão deixando visíveis os vestígios
das camadas mais internas, construindo, por consequência, uma trama linear expressiva
que dinamiza e questiona uma figuração tradicional. Em oposição, a textura dos traços
na tela de maior dimensão energiza a pincelada ao ser absorvida pelas manchas de cores.
A maioria das obras da artista está relacionada, estreitamente, às suas vivências, por-
tanto cada traço contém o ar, a luz, o desenho, o objeto das manifestações do visível, res-
tituídas na representação. A pintura, como experiência perceptiva, pela tônica moderna da
linha, dá às coisas uma presença, um ritmo. Como primeiro ato da criação, a linha articula
o espaço, abrindo-o a um campo de possibilidades afetivas com o objeto. Mas é a musicali-
dade emocional das cores que fornece uma abertura mais profunda, ao nos imergir em sua
materialidade. Ao modular a espacialidade, torna mais dinâmico o mundo do artista que
se materializa na superfície. A questão é saber “estar dentro”, o que significa intensificar
o processo de agoridade da percepção que, isenta de toda pretensão à fixação e articulada
sob uma “necessidade interior”, toma o valor central do desdobramento da forma artística
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 279

(GRANDO, 2005). Na trajetória da artista, a necessidade de captar as cores foi gradativa-


mente marcando sua pintura como seu selo distintivo, ora como fragmentos do mundo vi-
venciado, ora escapando da representação perspéctica, mas continuando a conter as figuras.
Nesta pintura, a poltrona da tela da direita, que no início do processo de criação es-
tava de frente para o espectador e composta por tons alaranjados (figura 3), no decorrer
de sua feitura ganha pinceladas brancas, permitindo que a camada de laranja respire por
meio das transparências. Sua sombra vai se acinzentando e mais tarde recebendo outras
tonalidades que compõem o fundo (como podemos observar na figura 2). Após desenhá-
-la de perfil, a artista esboça, novamente, sua sombra à sanguínea sobre as marcas ante-
riores (figura 4). Ao escolher modificar a posição do assento, percebemos que o processo
criativo de Chulam também é ditado por decisões acompanhadas de reflexões. Como
aponta Cecilia Salles, “[...] o trabalho de criação se dá em meio a inúmeras recusas e
aceitações, que envolvem muitas escolhas” (2006, p. 76). Portanto esses movimentos da
construção, ao deixar marcas de sua história no quadro, mostram o complexo trabalho
de elaboração e maturação que a obra perpassa em diferentes etapas.
A poltrona branca está definida pelo contorno dos traços e pelo conteúdo matérico
que esculpe a forma. Destaca-se do fundo pelo tom violáceo que, antes retraído, agora,
na completude da obra, amplia-se sobre a superfície e dilata o espaço para representar,
essencialmente, cores. Se as profundas camadas de E fomos olhar pássaros mostram
o tríptico arquitetado por planos retangulares, fazendo com que a artista trabalhe as
figuras de maneira perspéctica, os acordes cromáticos, na composição final, reverberam
pelo quadro como se as cores fossem fragmentos de uma realidade maior. As grandes
pinceladas esverdeadas se estendem pelas três telas para estabelecer um jogo de ligação
entre as partes. O mesmo pode-se dizer da faixa retangular extensa de matiz vermelho-
-alaranjado que encadeia os painéis.

Figura 3. Poltrona de frente para o espectador. À esquerda, poltrona composta por tons ala-
ranjados. À direita, poltrona ganha pinceladas brancas. A sombra vai se acinzentando e rece-
bendo as tonalidades que compõem o fundo. Na figura 4 podemos observar as modificações
da poltrona.

O assento alaranjado é constituído por riscos mais soltos, indicando uma mão liberta
das exigências formais do desenho. As imagens fotográficas (figura 4) mostram que a
280 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

forma da poltrona não se alterou (a artista diminuiu um pouco as costas do assento), mas
a cor, tanto do objeto quanto do fundo, foi se adaptando às novas investidas da artista
nas outras duas telas. Os registros indicam também que a composição, em que a poltro-
na se faz presente, foi a última parte manipulada por Chulam. A artista desconstruiu a
forte geometrização com largas pinceladas verdes que, na tentativa de encobrir os tons
violáceos e azulados, estes acabaram por se fazer sentir.

Figura 4. Assento laranja. As imagens fotográficas mostram que a forma da poltrona não se
alterou, mas a cor, tanto do objeto quanto do fundo, foi se adaptando às novas investidas da
artista nas outras duas telas.

Se as outras partes sinalizam experiências plásticas anteriores, nas quais trabalhou


com uma figura de incessante interrogação plástica (cadeiras e poltronas surgem no
temário da artista no final da década de 1980), a tela maior nos permite perceber uma ex-
pressão mais profunda de suas concepções estéticas. Sua lenta metamorfose possibilita
reconhecer uma sensibilidade diferente, tanto na sua interpretação iconográfica, quanto
na maneira de pintar, em ordenar linha e mancha. A camada mais profunda, estruturada,
geometricamente, por intermédio de pinceladas mais transparentes, vai se misturando
às novas camadas de tinta que se articulam sobre a superfície. Em meio às manchas de
tonalidades azuladas, que, posteriormente, se amenizam com os verdes, surgem os esbo-
ços dos pássaros. O retângulo vermelho que serviu para encobrir o cachorro dá suporte
ao contorno de mais duas outras aves. A composição ganha, também, o traçado de uma
agave (planta presente no jardim da artista) que se lança sobre as misturas de cores que
se estendem pelo espaço pictórico (o que podemos observar nas figuras 2 e 4).
As figuras dos pássaros e da agave são absorvidas pelas manchas de cores. As linhas
parecem se esvair no contraste de tonalidades análogas justapostas que, graças ao verde,
vibram com a presença do vermelho complementar. Essa parte da composição proporciona,
ao espectador, uma imersão na linguagem abstrata da artista, em que linhas e cores parecem
travar um rico diálogo de experimentação plástica e de experiência estética: amalgamadas
na construção do espaço, a linha, de função sustentante, depende da cor; e a cor, de função
sensível, arrebata a linha, afeta o olhar que se dirige à obra. Nesta tela, exclusivamente, é
possível perceber como a artista combina elementos abstratos e referentes figurativos que,
ao oferecerem possibilidades para recriar e transfigurar formas, permitem-lhe, também,
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 281

dinamizar o espaço. Para isso, recorre a uma figuração que se dissolve nas possibilidades
da abstração e uma abstração que, no contraste das manchas de cores, sustenta a figuração.
É interessante notar, também, que, no decorrer da execução de E fomos olhar pássa-
ros, a artista vai mudando as telas de lugar como se fossem peças de um quebra-cabeça.
As peças são manipuladas na intenção de fazer o olhar se adaptar às composições pro-
visórias, possibilitando as correções e os ajustes presentes em todo o processo. Assim
como os traçados e as pinceladas, cada mudança das partes do conjunto é testada, per-
manentemente, na busca de novas soluções formais e ordenações harmônicas. As dife-
rentes possibilidades de variação refletem as diferentes possibilidades de obra. Portanto
“o trabalho criador”, como discute Salles, “mostra-se como um complexo percurso de
transformações múltiplas por meio do qual algo passa a existir” (2004, p. 27).
O olhar de Regina Chulam, assim como de qualquer outro pintor entregue, plena-
mente, a seu ofício, percorre o mundo sempre em busca de novas experiências. O mundo
do pintor é visível, portanto pinta porque viu, porque foi afetado pelas coisas visíveis
(MERLEAU-PONTY, 2004). Quando retorna ao ateliê, reinicia a luta pela organiza-
ção do quadro, alimentado pelas dúvidas, pelas escolhas, equilíbrios e contradições. As
metamorfoses pelas quais a tela passa são sinais de um processo criativo que a partir
das sensações percebidas e vividas, manipula a matéria, regendo as leis da criação. Ao
desfolharmos as camadas da pintura, vão sendo reveladas as fases do percurso da obra,
os encontros e desencontros, “[...] o que a obra deseja e necessita” (SALLES, 2004, p.
132). A sobreposição das figuras e as manchas por baixo dos signos lineares engendram a
intencionalidade pictórica, a relação dinâmica das cores. Eis a pintura!

Referências
BRITO, Ronaldo. Experiência crítica – textos selecionados: Ronaldo Brito. São Paulo: Cosac
Naify, 2005.
ESCOUBAS, Eliane. Alguns temas da estética francesa contemporânea. O que nos faz pensar:
Caderno do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Rio de Janeiro, 2007, n. 21, p. 213-226.
FILHO, Osvaldo Fontes. Merleau-Ponty e a “obscuridade moderna” segundo a arte. Ars, São Pau-
lo, 2005, v. 3, n. 6, p. 103-121.
GRANDO, Angela. Convergências: caminhos em direção à abstração. Farol: Revista de Artes,
Arquitetura, Comunicação e Design da Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de
Artes, Vitória, 2005, ano 6, n.6. p. 66-77.
MACHADO, Bernadete Franco Grilo. Visão e corporeidade em Merleau-Ponty. Argumentos: re-
vista de filosofia, 2010, ano 2, n. 3, p. 82-88.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito: seguido de A linguagem indireta e as vozes do
silêncio e A dúvida de Cézanne. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
______. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
NÓBREGA, Terezinha Petrúcia da. Merleau-Ponty: o corpo como obra de arte. Princípios, Natal,
2000, n. 8, p. 95-108.
SALLES, Cecilia. Redes da criação: construção da obra de arte. São Paulo: Editora Horizonte, 2006.
282 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

A natureza da vida:
transcendendo a subjetividade
através da obesidade

Júlia Mello
UFES/FAPES – [email protected]

José Cirillo
CNPQ/FAPES/PPGA-UFES – [email protected]

O presente trabalho realiza uma reflexão acerca de identidade, corpo e poder


através das experiências de Fernanda Magalhães em “A Natureza da Vida”,
projeto iniciado em 2000 e ainda em desenvolvimento. Convidando outros
artistas, ela realiza performances em diferentes contextos e é fotografada e
filmada no espaço público revelando seu corpo obeso. Magalhães confronta
normas vigentes e apresenta-se como um indivíduo (e parte de um coletivo)
que não se conforma. Mostra que é possível transcender o corpo subjetivo e
dar voz a uma coletividade.
Palavras-chave: Arte – Obesidade – Subjetividade – Coletividade - Identidade

This present work conducts a reflection on identity, body and power throu-
gh the experiences of Fernanda Magalhães on “The Nature of Life”, project
started in 2000 and still in development. Inviting other artists, she conducts
performances in different contexts and is photographed and filmed in public
areas revealing her obese body. Magalhães confronts current standards and
presents herself as an individual (and part of a collective) that is not satisfied.
Shows that it is possible to transcend the subjective body and give voice to
the collectivity.
Keywords: Art - Obesity – Subjectivity – Collectivity - Identity
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 283

Introdução
Fernanda Magalhães (1962-) é uma artista londrinense que realiza trabalhos com o cor-
po desde os anos de 1990. Sua arte revela sua obesidade. Se traçarmos uma linha do
tempo da sua produção, notamos que se desenvolveu a partir de uma busca pessoal pela
libertação de um corpo excluído e que agora é utilizado para dar voz a uma coletividade.
Na década de 1990, Magalhães saiu de sua cidade natal para estudar fotografia no
Rio de Janeiro. Lá se deparou com corpos à mostra preocupados com a boa forma e
passou a sentir-se desconfortável com sua estrutura física (TVARDOVSKAS; RAGO,
2007). O exagerado culto ao corpo a angustiou e fez questionar a sua corpulência (RI-
BEIRO, 2013). O sentimento de não aceite da sociedade sobre sua obesidade resultou
em uma fase de isolamento e exclusão que pode ser confirmada, entre outros trabalhos,
na série “Auto Retrato no RJ”, de 1993, feita a partir de fotografias – e foi através delas
que Fernanda diz ter construído a sua poética (MAGALHÂES, 2008).
Embora a série citada não seja objeto de estudo central no presente texto, traremos
um trabalho com o intuito de contextualizar o leitor (Figura 1):

Figura 1. Autorretrato (fotografia) de Fernanda Magalhães, Série Auto Retrato no RJ, 1993.

No autorretrato acima, Fernanda Magalhães mostra-se encolhida em um quarto, iso-


lada, com o corpo pouco revelado pelas vestes longas, sob um colchão, segurando um
carrinho vazio. Ela parece se esconder e evita o confronto com a câmera fotográfica
(RIBEIRO, 2013). Podemos considerar a possibilidade de uma aproximação da situação
com o aprisionamento de um corpo que deseja ser libertado. E é essa “libertação” que
284 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

vamos notar a partir da série “A Representação da Mulher Gorda Nua na Fotografia”,


iniciada em 1995, decorrente de um projeto homônimo desenvolvido em 1993. A partir
dela, Magalhães expande seus questionamentos “[...] estendendo-se ao corpo do outro,
em especial ao das mulheres (MAGALHÃES, 2008, p. 90)”.
Notamos a mudança de posicionamento: antes se sentia oprimida por ser gorda e
agora busca homologar seus excessos. Passa a se apresentar através da arte como um
“sujeito fragmentado” (HALL, 1999), pois além de mostrar-se como gorda, mostra-se
como mulher, como vítima da medicina, como vítima da hegemonia da “boa forma”.
Fazem parte da série fotografias, desenhos, colagens, performances, dentre outras
manifestações artísticas. Como exemplo veremos “Gorda 13” (Figura 2):

Neste trabalho temos a fotografia de uma mulher obesa nua retirada de uma revista
pornográfica americana (“Buff”) e uma mixagem de excertos textuais com uma foto 3x4
fragmentada de Fernanda Magalhães sobre um fundo escuro (RIBEIRO, 2013). Em um
dos papéis lemos o seguinte texto:

Quero que as mulheres magras e médias encarem a disforia de sua imagem corporal e se deem
conta de que há um mundo de diferença entre suas experiências de mulheres que odeiam seus
corpos e minha experiência de ser gorda. Todos os corpos femininos são odiados em nossa
cultura, e isso não significa que todas as mulheres sejam gordas.

Este trabalho prova a extensão das discussões de Fernanda à questão do corpo femi-
nino instituído e biologicamente imposto. A rejeição deste corpo abordada em “Gorda
13” indica que não só as obesas, mas as magras e médias, precisam se dar conta de seu
aprisionamento como mulher.
Com a série citada a artista passou a explorar melhor aspectos externos à sua corpo-
reidade, mas que não deixam de manter relação com ela. Na produção seguinte, cerne
do nosso artigo, veremos mais claramente a amplitude de questionamentos que passarão
a englobar, mais explicitamente, outros indivíduos.

A Natureza da Vida

Ver com profundidade, ver muito, olhar para o outro e interagir/misturar-se, doar-se, entregar-
se (MAGALHÃES, 2008, p.32).

Depois da “A Representação da Mulher Gorda Nua na Fotografia”, Fernanda Maga-


lhães passou a encarar, de forma aparentemente mais consistente, o seu papel crítico no
campo artístico. Vários projetos se entrecruzaram tornando mais clara sua abordagem
sobre o corpo, as identidades e contestações. Sua poética adquiriu um caráter coletivo,
seu olhar voltou-se para o outro, misturou-se. Sua produção se tornou “mais localizada”
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 285

dentro das estruturas sociais. Observamos então a expansão da obesidade na obra da


artista, que como vimos, iniciou-se através de um processo subjetivo.
“A Natureza da Vida” talvez seja o que melhor representa o caráter de coletividade.
Convidando outros artistas Fernanda realiza performances em diferentes contextos e é
fotografada e filmada no espaço público. O projeto, que “começou em 2000, mas criou
forma em 2011” (CULTURA, 2013) faz parte da 1ª edição da “FotoBienalMasp” reali-
zada entre os dias 14 de agosto a 3 de novembro de 2013. Uma das ações, escolhida para
ser aqui abordada, foi realizada em 2011 e refere-se a um protesto contra a retirada das
árvores do Bosque Central de Londrina (Figura 3).
Magalhães utiliza seu corpo nu obeso para ocupar esse ambiente devastado. Critica a
posição do poder público que visava modificar a paisagem verde criando nessa área uma
rua com circulação de veículos e com pontos de ônibus e ao mesmo tempo confronta
normas vigentes. Mostra-se como um indivíduo (e parte de um coletivo) que não se con-
forma. Discute questões sobre o corpo, gênero, identidade e meio ambiente ameaçado
(sentimentos de opressão) em uma única ação sem hierarquizá-los.

Figura 2. Materiais diversos, Fernanda Ma- Figura 3. Performance de Fernanda Ma-


galhães, Gorda 13, Série A Representação galhães no Bosque Central de Londrina, A
da Mulher Gorda Nua na Fotografia, 1995. Natureza da Vida, 2011. Fotografia: Graziela
Dies.

Na fotografia apresentada, registro da performance e também peça fundamental do


projeto, observamos a dramatização do ambiente. Diversos troncos espalhados ao chão
em tons de frieza e poucas árvores sobreviventes ao fundo. Fernanda envolve um deles
286 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

em seu colo, prostrando-se como uma figura maternal. Seu corpo nu revela uma pele
delicada que se desdobra em contraste à rigidez e aspereza da madeira. A imagem clama
pelo impedimento da destruição do ambiente. É tão clara, que abrange um contexto mais
generalizado de defesa de qualquer natureza. A artista mostra, com este exemplo, que é
possível transcender o corpo subjetivo e dar voz a uma coletividade.
Este trabalho foi realizado durante a ação que foi movida junto ao Grupo Ocupa
Londrina e a ONG MAE Londrina. Foi conseguido o embargue da obra e o local foi
transformado em área de preservação permanente (O CORPO, 2012).
A performance teve um papel fundamental na transformação do processo criativo
de Fernanda e no englobamento de outras questões. No início, intimidada com a hege-
monia da magreza, realizava ações entre quatro paredes, sozinha. Deixou de dançar e
praticar o teatro, artes que compuseram sua formação, devido ao preconceito em relação
a sua forma. Aos poucos, conta, a repressão foi sendo rompida assumindo forma de
performances que passaram a permear seu cotidiano. Foi a partir de então que assumiu,
conscientemente, suas ações.
A performance surgiu como necessidade de expressar pelo corpo, buscando deixar
transbordar minhas faces submersas. Extravasar é assumir esta linguagem como arte e
como vida. As dores transformaram-se pelo trabalho. A performance é uma forma de
voltar a dançar, trazendo as transformações do meu corpo que, liberto de amarras, busca,
no outro e na ação da troca, a sua própria reconstrução (MAGALHÃES, 2008, p.84).
Para a artista, a performance é fundamental para dar significado ao “A Natureza da
Vida”. A partir dela ela pode fazer provocações e evocar emoções que lhe transbordam.
“São sentimentos que quero expressar sobre o corpo, os preconceitos, a invisibilidade, a
aparência, as instituições...” (CULTURA, 2013).
Além disso, o fato de convidar outros artistas a participar traz novos olhares sobre os
discursos que são traduzidos pelo corpo obeso.
Como conclusão deste breve estudo, é importante lembrar que Fernanda Magalhães
passou por diversos processos de aceitação e não aceitação de normas, corpos, iden-
tidades e realidades até adquirir uma postura “blasfêmica” que “[...] nos protege da
maioria moral interna, ao mesmo tempo em que insiste na necessidade da comunidade”
(HARAWAY, 2009, p.35). Intoxicou-se a si mesma antes de se apresentar como uma
artista que, unida a outros, buscou uma potência para agir. Mostrou que “[...] é possível
fundamentar exclusivamente a partir de si valores que valham também para os outros
(FERRY, 1994, p. 32)”. Em uma última palavra, Magalhães precisou sentir na pele para
poder traduzir outras angústias e unir vozes.

Referências
CULTURA. Jornal de Londrina, Londrina, 8 ago. 2013. Disponível em: < http://www.jornalde-
londrina.com.br/cultura/conteudo.phtml?id=1396888>. Acesso em: 02 out. 2013.
__________. Jornal de Londrina, Londrina, 21 ago. 2013. Disponível em: < http://www.jornalde-
londrina.com.br/cultura/conteudo.phtml?id=1401385>. Acesso em: 02 out. 2013.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 287

FERRY, Luc. Homo Aestheticus: a invenção do gosto na era democrática. São Paulo: Ensaio, 1994.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
Disponível em: < http://www.geoideias.com.br/geo/images/livros/HALL,%20Stuart.%20
A%20Identidade%20Cultural%20na%20Pos-Modernidade.pdf>. Acesso em 15 ago. 2013.
HARAWAY, Donna. Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do
século XX. In: TADEU, Tomaz (Org. e trad.), Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-
-humano. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p.33-118.
MAGALHÃES, Fernanda. Corpo Re-construção Ação Ritual Performance. 2008. Tese apresenta-
da ao Programa de Doutorado em Artes da Universidade Estadual de Campinas para a obten-
ção do título de Doutora em Artes, Campinas, 2008.
O CORPO como protesto. Zunái – Revista de Poesia & Debate. Disponível em: < http://www.re-
vistazunai.com/materias_especiais/subversao_da_nudez/performance_fernanda.htm>. Aces-
so: 25 jul. 2013.
RIBEIRO, Vinicios. Engordurando a arte contemporânea: as imagens de Fernanda Magalhães.
In: Com Ciência. Revista eletrônica de jornalismo científico. 10 fev. 2013. Disponível em: <
http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=85&id=1043>. Acesso em: 25 jul.
2013.
TVARDOVSKAS, Luana; RAGO, Luzia. Fernanda Magalhães: Arte, corpo e obesidade. In: Ca-
derno Espaço Feminino, Revista do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Federal
de Uberlândia, v. 17, nº1, jan./jul. 2007. Disponível em: < http://www.seer.ufu.br/index.php/
neguem/article/view/378>. Acesso em: 24 jul. 2013.
288 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

O pequeno gesto: um ensaio em


torno da experiência ordinária

Luciano Vinhosa
UFF – [email protected]

Neste texto descrevo, ao mesmo tempo que reflito sobre, o processo artístico
envolvendo a criação do trabalho fotográfico titulado O pequeno gesto. Ao lon-
go da reflexão, os principais conceitos o implicando vão sendo apresentados
ao leitor. Em linhas gerais, o texto trata da forma como organizo a experiência
comum que vivo em meio urbano, reconsiderando-a a partir de uma motiva-
ção poética que já me persegue há alguns anos.1
Palavras chaves: processo artístico, fotografia, arquivo

In this paper I describe and reflect about the artistic process involving the crea-
tion of photographic work titled The small gesture. Throughout reflection, the
key concepts are being presented to the reader. In general, the text is about
how to organize the common experience that I live in the city, reconsidering the
experience from a poetic motivation.
Keywords: artistic process, photography, archive

1. Este trabalho integra o projeto de pós-doutorado intitulado Museu das coisas: dois ensaios
em torno da experiência ordinária desenvolvido na França sob a supervisão do prof. Dr. Jean-
-Pierre Cometti entre novembro de 2012 a outubro de 2013. Tem apoio financeiro da CAPES
(Coordenação de Pessoal de Nível Superior), agência de fomento do governo brasileiro, a
quem devo meus agradecimentos.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 289

Introdução
O pequeno gesto é uma coleção de intervenções obsessivas empreendidas pelo usuário
urbano em seu cotidiano, observadas e fotografadas por mim em toda parte do mundo
em que tenho perambulado desde 2011. Tais intervenções constituem-se de toda sorte
de objetos ordinários e desprezíveis, como garrafas de água mineral, de cerveja, latas
de refrigerante, guardanapos, caixas de papelão, restos de alimentos entre outros dejetos
que, depois de consumidos, foram abandonados em lugares quaisquer, mas de um modo
preciso. Quer dizer, foram deixados aqui ou ali em cima de uma mureta, espetados em
uma grade, abandonados nos cantos das calçadas, enfiados em frestas de construções,
etc.. No conjunto, objeto e lugar, formam “situações” que refletem o comportamento
mais ou menos padronizado do homem urbano civilizado, constrangido por uma es-
pécie de ordem sub-reptícia. Esses “cacoetes disciplinares” vêem sendo organizados
como um inventário de gestos universais cujas entradas que dão acesso ao arquivo e o
sistematizam foram definidas por mim como categorias a priori a serem fotografadas.
Deste modo, o repertório de “situações gestuais” foi limitado anteriormente de forma
arbitrária, mas em atenção primeiramente à realidade. Elas foram alocadas em 15 entra-
das poéticas, a saber: 1) Acolá; 2) Ali; 3) A oportunidade faz o uso; 4) Aqui; 5) Assim!;
6) Assinaladas; 7) Dádivas; 8) Do lado de cá; 9) Do lado de lá; 10) Enfiadas; 11) Guar-
dadas; 12) Imitação da arte; 13) Lançadas fora; 14) Mallembradas; 15) Parassempre. As
imagens, quando tomadas pela câmera fotográfica, obedecem, por suas estruturas vi-
suais, a uma construção que reenvia aos termos (entradas/ categorias) que as organizam.
Em outras palavras, os termos se referem ao modo como as imagens são metodicamente
construídas no momento em que tais gestos são flagrados pela câmera. Para além da
simples taxionomia, o procedimento adotado reconhece nos objetos/ situações fotogra-
fados um certo estado anímico (uma vida interior) coincidente com o gesto do sujeito
anônimo que lhes engendrou — um modo de intencionalidade intrínseca que a imagem
tenta reforçar no justo ato fotográfico. No discurso que organiza, O pequeno gesto induz
a uma discreta ficção, um mundo relacional íntimo e silencioso em que a imaginação
tem lugar privilegiado.

Digressões em torno do “pequeno gesto”

§ 1) Da experiência dispersa à rede de sentidos atravessados


O trabalho começa com uma súbita perplexidade diante do trivial, uma atenção particu-
lar com aquilo que me cercava cotidianamente e que por esta razão nunca fora o objeto
de uma consideração diferenciada — os gestos ordinários! Investido desta curiosidade,
observo que tais gestos se repetem obsessivamente e de forma tão banal que permane-
ceriam quase invisíveis não fosse a insistência com que se apresentam sorridentes agora
para mim que lhes presto toda atenção quando caminho pelas ruas do mundo. [—Sim,
os gestos... aqui estão eles e ali também! Um outro acolá!] Eles estão em relação aos
lugares específicos onde foram levados a cabo, mas não guardam entre eles nenhuma
290 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

unidade particular. Estão, por assim dizer, situados no espaço, de algum modo largados
em sítios específicos, por toda parte dispersos na paisagem. Encarando-os face-a-face,
concentrando-me sobre suas qualidades e sobre aquilo que me dizem insistentemente,
observo todo um vasto universo de minúcias se elevar no meu pensamento como poeira
evoluindo no ar, pondo em movimento miríades de partículas brilhantes que se chocam
casualmente com algumas idéias vagas. Em conformidade a esta realidade, começo a
remarcar o tanto de recorrências automáticas e tento agrupá-las em categorias tomando
alguns tipos que exemplificam a singularidade de cada uma delas. Então me vêem os
nomes para acomodá-las em um arquivo que passo a organizar. As categorias, embo-
ra titubeantes e imprecisas de saída, é o ponto de partida para deslanchar o processo.
Munido de algumas entradas a priori [as categorias esboçadas], passo a fotografar as
“situações” encontradas com alguma ordem e me aprofundo na coleção. [A partir desse
ponto são as oportunidades que fazem os encontros.] Na medida em que me deparo com
elas, as fotografo. No vai-e-vem entre o terreno e a revisão das imagens no gabinete, as
“categorias” se consolidam e as novas buscas no terreno passam a atender com maior
critério a demanda interna dos termos que designam as situações encontradas. De retor-
no ao gabinete, entre uma categoria e outra, novas passagens se abrem, deslizamentos
se operam. Quanto mais um gesto penetra e ocupa o lugar de um outro, suas posições se
embaralham no arquivo. Fabulações se entretêm nas possibilidades dos arranjos. Uma
ficção começa a se desenhar nas relações abertas que emergem do diálogo silencioso
entre imagem e categorias — atravessamentos! O trabalho começa a ganhar corpo por
sua inconsistência.

§ 2) O modo de nomear vai ao encontro do modo de fotografar


No ato do flagrante, passo a fazer várias tomadas da mesma “situação” tentando apreen-
dê-la por diversos ângulos, os mais fotogênicos. Assim, no gabinete, uma estupefação
se consolida: a mesma “situação”, em conformidade ao modo como foi construída pela
objetiva, pode simultaneamente e potencialmente pertencer a várias categorias. Tudo
dependerá daquilo que a imagem sugere enquanto imagem. Neste ponto, compreendo
que a estrutura espacial da imagem atende aos termos que as designam em categorias,
criando uma realidade própria e autônoma que passará em seguida a determinar o modo
como irei fotografar as futuras “situações” encontradas. Assim, no vai-e-vem entre gabi-
nete e terreno, assumo o encargo que as categorias são permutáveis entre si, permitindo
uma permeabilidade em seus arranjos. Uma mesma “situação” assentada em uma cate-
goria “X” pode ser alocada em uma outra categoria “Y” ou ainda em outras tantas “Y,
Z ... N” dependendo da relação intrínseca que se estabelece entre termo e imagem. As
passagens entre as categorias são portanto fluidas, frágeis, porosas. Essa indeterminação
da coleção que acabo de descobrir abre o jogo a todo outro que virtualmente a apreciará.
É necessário que o modo de expô-la — a forma artística — deixe clara essa fluidez. Um
problema a se pensar, sobretudo quando estamos lidando com imagens fotográficas...
simplesmente porque podem assumir formas artísticas muito diversas segundo o suporte
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 291

em que se exprimem. Um mundo de possíveis se entretêm. Uma poética se determina a


partir de sua materialidade...

§ 3) Paisagem de um qualquer lugar indeterminado


Em se tratando de gestos universais, encontrados onde quer que a civilização urbana se
insinue, atravessam certamente as culturas. Do ocidente ao oriente, não importa, perten-
cem a um qualquer homem citadino. Estão certamente ancorados na paisagem, em sítios
específicos, mas esta é, por assim dizer, difusa. Bem mais precisas são as situações,
quer dizer o somatório entre objeto e lugar oportuno: o modo em que e como ocorrem
servindo-se de certos dispositivos isolados do cenário urbano. Desta feita, a paisagem
que os abriga é um quadro amplo e indistinto, mero fundo. Não guarda em si nenhum
traço particular com o gesto, nenhuma causalidade. A ocasião faz a “situação” que se
apresenta ao transeunte como uma oportunidade para engendrar finalmente o gesto: —
intencional, displicente, quase inconsciente, não fosse o intuito de certa ordem obstinada
que o penetra. Essa cacofonia universal reflete na forma como as imagens são tomadas
no plano geral. Em sua maioria, desfocadas ao fundo, nada em particular diz da cidade
do mundo onde o “gesto” foi observado. Estamos em um qualquer ponto indeterminado
do globo, em uma qualquer paisagem de um homem qualquer: em lugar nenhum e por
toda parte.

§ 4) [Por associação]/ [Pelo modo como foram engendrados]/ [Por posição]


A descoberta dos gestos e as primeiras fotografias foram realizadas ainda em 2011 quan-
do de uma viagem pela Europa. Esse material ainda pouco elaborado foi transforma-
do em projeto de pós-doutorado. A idéia de categorizá-los e dispor simplesmente em
ordem alfabética já estava presente desde o início do trabalho e foi influenciada pelo
prefácio de As palavras e as coisas de Foucault, em que o autor menciona ter escrito o
livro inspirando-se em um texto de Borges que cita uma certa enciclopédia chinesa em
que todos os animais do mundo, reais e fabulosos, estão descritos sob estranhas rubri-
cas que se listam simplesmente pela série alfabética, contrariando toda lógica científica
do pensamento ocidental, apesar de remeterem-se ironicamente a ele devido ao escopo
classificatório e a própria idéia de reunir saberes universais.2 Assim, no andamento do
processo e influenciadas por Borges, as “situações” foram acomodadas finalmente em
15 categorias cujas entradas, embora sejam apresentadas em ordem alfabética, se re-
portam na verdade à construção dos “gestos” enquanto imagens: 1) Acolá; 2) Ali; 3) A
oportunidade faz o uso; 4) Aqui; 5) Assim!; 6) Assinaladas; 7) Dádivas; 8) Do lado de
cá; 9) Do lado de lá; 10) Enfiadas; 11) Guardadas; 12) Imitação da arte; 13) Lançadas
2. “os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domestica-
dos, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classifi-
cação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino
de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem
moscas”. Trecho de Borges citado por Foucault. (As palavras e as coisas, uma arqueologia
das ciências humanas. São Paulo : Martisn Fontes, 2000). Disponível em PDF.
292 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

fora; 14) Mallembradas; 15) Parassempre. Escrevendo este texto e refletindo sobre
o trabalho, pude avançar um pouco mais e compreender outros aspectos que estavam
implícitos na organização do arquivo. As categorias iniciais derivaram-se, por sua vez,
de 3 classes mais abrangentes de gestos que as contém, mas que só agora tornaram-se
conscientes para mim, a saber: a) Por associação (A oportunidade faz o uso/ Dádivas/
Imitação da arte/ Mallembradas/ Parassempre); b) Por modo (Assim!/ Assinaladas/En-
fiadas/ Guardadas/ Lançadas fora); c) Por posição (Acolá/ Ali/ Aqui/ Do lado de cá/ Do
lado de lá). Se a enciclopédia de Borges soa mais esdrúxulas aos ouvidos sincopados
à racionalidade é certamente devido ao fato que os termos empregados não designam
nenhuma imagem, permanecendo o plano da linguagem na linguagem. A imagem téc-
nica que emerge com a sociedade moderna não é somente contemporânea, mas também
solidária às ciências. Não é a toa que a fotografia tem no cerne de sua lógica produtiva
o arquivo e a legenda, que em si representam a estrutura que organiza e controla a expe-
riência a partir da classificação e descrição supostamente neutras. Mas no fim das contas
toda estrutura só guarda sentido à sua própria construção intrínseca, na falta da qual a
própria verdade desmoronaria sobre si. A fotografia como arte, por alçar vôo poético,
transcende aos parâmetros da racionalidade ao qual se destinava originalmente, esta-
belecendo uma outra ordem de sentidos que naufraga toda objetividade da descrição.
Fato que a torna crítica à ciência na medida que, caricaturando-a, expõe seus limites,
fragilidades e inconsistências. “O pequeno gesto”, seguindo a lógica da imagem na arte,
é crítico à descrição e à toda pretensão de realidade, mas se equilibra nela.

§ 5) Entre o perspectivismo e a obra de arte


Grosso modo, perspectivismo é o conceito antropológico que se refere ao modo de
compreensão cosmológica que certos grupos ameríndios têm do meio que os cerca.
Qualifica-se por reconhecer em todas as espécies compondo uma comunidade ecoló-
gica, plantas e animais (inclusive o homem), um ponto de vista sobre as outras e sobre
o mundo. No caso, ainda que modeladas em corpos diferentes, todas as espécies se
entendem como humana em relação à todas as demais não humanas. Em outras pala-
vras, todas as criaturas, equivalendo-se no plano antropológico a partir de seu ponto
de vista humano, gozam do estatuto de sujeito e se comportam como alteridades cau-
sais.3 Na cultura ocidental, a obra de arte reveladora de um sujeito reenviando à uma
intencionalidade, veio ocupar esse lugar de forma sublimada: travestiu-se de “expressão
individual”. Situando-se entre o perspectivismo e a obra de arte, os objetos/situações
são portadores de intencionalidade que revelam um sujeito causal oculto, sem nenhuma
expressão particularizada. Toda uma carga generalizada de voluntarismo emana de seus
interiores quando me fitam indiscretos pelas ruas, por isso sou afetado por eles. Com
efeito, os reconheço pelas diferentes energias que os impulsionam, donde as categorias
sob as quais os agrupei. Esses objetos são, portanto, sujeitos genéricos que se insinuam
3.Seus principais defensores são os antropólogos Eduardo Viveiros de Castro
e Phillipe Descola.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 293

sorrateiros pelos meandros dos caminhos bem antes de o olhar vigilante da limpeza
urbana os surpreender.

§ 6) Dos modos expositivos e das formas artísticas


O arquivo fotográfico com fins artísticos é um trabalho em permanente processo e pode,
no final, assumir diferentes formas de visualidade dependendo do suporte em que se
materializa, espacializa, organiza e se mostra ao mundo. Pensar imagens para que sejam
projetadas é diferente de pensá-las para serem vistas em seqüência nas sucessivas pá-
ginas de um livro, por exemplo, e que, por sua vez, são diferentes de exibi-las em uma
parede, reproduzidas em papel (?), emolduradas(?), protegidas por vidros (?)... Muda
o suporte, tudo muda: materialidade, escala, modos de espacialização, sentidos. Pro-
blemas do métier. O pequeno gesto ainda não está resolvido em sua forma artística
final porque permanece como arquivo virtual. Três formas artísticas vêem sendo po-
tencialmente elaboradas. E primeira e mais óbvia, bem adaptada à fotografia, é o livro.
Neste caso, grosso modo, o arquivo seria mostrado dispondo as categoriais em ordem
alfabética segundo as seqüência das páginas. Cada categoria comportaria 5 imagens
tipo; cada imagem, ocupando individualmente uma página, seria legendada na margem
inferior direita da seguinte forma: O pequeno gesto/por posição/acolá; O pequeno gesto/
por posição/ali; O pequeno gesto/por associação/a oportunidade faz o uso e assim por
diante. Em um segundo modo, as imagens seriam projetadas. Neste caso, imagino três
projeções simultâneas, a princípio em um mesmo recinto composto de três paredes ar-
ticuladas em ângulos de 90º (Figura 1). A ordem de projeção seria aleatória, podendo
eventualmente coincidir imagens em dois ou em três dos planos. De tempos em tempos,
a imagem seria interrompida em um ou mais planos de projeção simultâneos, em seu
lugar entraria a legenda sobre fundo negro. Na terceira forma, as fotografias seriam
dispostas linearmente na parede, todas em formato paisagem (22 x 32 cm), emolduradas
individualmente, formariam blocos de 5 imagens, um sexto quadro seria incluído no
conjunto e conteria a designação daquela categoria. A disposição na parede seria tal que
cada grupo se encaixaria no seguinte como um lego. O arranjo final deve sugerir que as
imagens possam virtualmente mudar de posição e de categoria (Figura 2).

Figura 1 Figura 2
294 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

La práctica artística
de la experiencia.
El espéctador como
elemento participativo de la obra.
Luis Ángel López Diezma
Universidad de Granada – [email protected]

En esta comunicación se pretende abordar un caso práctico que ejemplifique


cómo los artistas emergentes buscan algunos soportes que se alejan de lo que
tradicionalmente podemos entender como expositivos, para acercar el arte de
nuestra época al público y hacerlo partícipe de la obra, al mismo tiempo que la
compone.Se realiza una contextualización sintética de la trasformación que ha
sufrido el carácter exibitivo del arte, para comprender cómo en ocasiones esta
intención se ve alterada por los artistas que recurren a otros métodos de exposi-
ción, alejados de los que culturalmente se pueden llegar a considerar como es-
pacios destinados a este fin. Estos síntomas de cambio argumentan un rechazo
al carácter mercantilista del arte contemporáneo, cuyos resultados intangibles
se fundamentan en la experiencia de los artistas con un público determinado.
Palabras clave: Arte público, experiencia, espacio público, práctica artística.

This communication is intended to address a practical case study that illus-


trates how emerging artists seeking some mounting that are far from what we
traditionally understood as expository, to bring the art of our time to the public
and sharer of the work, while that composes the same.
The transformation suffered by the character of art exhibitive is contextualized
synthetically, to understand how this intention is sometimes altered by the ar-
tists who use other methods of exposure, away of which culturally may is con-
sidered as spaces for this purpose. These signs of change argue a rejection
of mercantilist character of contemporary art, intangible results of which are
based on the experience of the artists for a determined public.
Keywords: Public art, experience, public space, art practice.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 295

El encuentro del arte con el público


Se considera necesario plantear una breve contextualización de la trasformación que ha
sufrido el carácter exibitivo del arte, cuyos resultados intangibles se fundamentan en la
experiencia de los artistas con un público determinado, para comprender los elementos
que hicieron posible el encuentro del arte con el público, que desde el S. XVIII hasta la
actualidad no han parado de extenderse.
Estos mecanismos se hacen más evidentes tras la II Guerra Mundial, cuyas con-
secuencias convirtieron a Estados unidos en la principal potencia hegemónica a nivel
mundial, absorbiendo todos los centros de decisión, incluidos los culturales. A partir de
este momento se multiplicaron los museos públicos y las exposiciones temporales con
gran repercusión a nivel mundial, como la Bienal de Venecia (que se celebró por primera
vez en 1895 y adquiere gran importancia desde 1907 hasta la actualidad), o la Docu-
menta de Kassel (se lleva a cabo desde 1955 y se organiza desde 1972 cada cinco años).
En los años 70 la cultura en general y el arte en particular se empezaron a configurar
como un elemento del consumo de masas. “Los museos se han transformado en la meta
del peregrinaje final de todos los recorridos turísticos, con afluencia nunca vistas hasta
ahora.” (Rico, J.C, 1999). Pero sin duda se produjo un fracaso en el intento de encontrar
un prototipo de espacio universal para intentar asimilar las nuevas tendencias artísticas
(Body art, Land art, Performance, Videoarte…) abriendo la posibilidad de una concep-
ción diferente del espacio expositivo.
Esta crisis que contemplaba el espacio como un simple contenedor de obras de arte,
es asimilado por los artistas de la época cuya respuesta era entendida como un diálogo
de la obra con el entorno. La búsqueda por insertarse en el tiempo y espacio cambiante
y la intención de implicar al público más renovado, lleva a trascender los límites del
museo como era entendido hasta el momento. Basándonos en una cita literal de Bolaños,
los artistas “ocupan la calle, trabajan en el desierto, en los espacios industriales de las
márgenes de las ciudades, exponen en fábricas, instalan sus estudios en un almacén, en
escuelas abandonadas o en talleres de automóviles” (Bolaños, M. 2006).
En este sentido la evolución del carácter expositivo es considerada como un fenó-
meno cultural, que la llamada posmodernidad ha renovado, quedando por analizar la
incidencia que han tenido en la gestión y evolución del arte de las últimas décadas del S.
XX y el desarrollo de los primeros años del S. XXI (Guash, A. M., 2000).
Comprendiendo esa búsqueda de los espacios no asimilados por el sistema como un
mecanismo que evidencia el carácter en contra de los procesos de mercantilización, se
alcanzará así un arte que estrecha vínculos con lo público y lo cotidiano. En la actualidad
no se podría explicar el arte de nuestra época sin atender a una de sus características más
esenciales, la de que es ya por definición un arte público, “un arte concebido, ejecutado
y dirigido para el consumo anónimo, para el mercado” (Calvo Serraller, F., 2001).
La reflexión anterior es muy significativa puesto que ahora el arte se concibe como un
reflejo de la vida, un trasmisor donde el análisis crítico y cultural posee más representativi-
dad que el análisis formal. Podríamos entender el arte de nuestra época como un generador
296 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

de metáforas sobre lo real que abarca desde lo más próximo y cotidiano, hasta todo aquello
que tan solo intuimos y que nos cuesta asimilar por su complejidad y magnitud. En la situa-
ción actual de hibridación cultural, numerosos artistas se apropian de claves creativas que
transitan por referencias cultas, populares, marginales o masivas, de tal forma que nos inter-
pelan a reinscribirlas en los contextos mutantes de lo cultural y lo social, para mostrar otras
subjetividades y otras posibilidades de narración y puesta en forma (Delgado, I., 2005).

La experiencia como soporte de una práctica artística propia.


A continuación vamos a conocer parte de mi propio trabajo artístico, entendido con un
sentido de proximidad social y un carácter autobiográfico, para ejemplificar la preocu-
pación por la contextualización de la obra más que por la exhibición de sus registros
formales. Potenciando lo que Ana María Guasch denomina una Situación didáctica con
el objetivo de que el discurso comprendido en la obra provoque una respuesta por parte
del espectador, que al mismo tiempo se aleja de lo que podemos entender como consu-
midor de arte, se redunda así en el carácter cotidiano para despojar de esta experiencia
artística el sentido institucional.
En este trabajo se recurre a la niñez con un sentido autobiográfico para analizar mis
vivencias y desarrollar una propuesta artística personal donde se cuestiona las relaciones
sociales y la identidad infantil. Para ello apelo a uno de los recuerdos que aún tengo más
presente, siendo los personajes de los cuentos y sus historias elementos que nos acom-
pañan a lo largo de nuestra vida, elementos que aún perdurar en la memoria.
¿Quién no recuerda a una niña vestida de rojo o a un muñeco de madera con alma
humano? ¿A un gato que calzaba botas o una mujer bella que yacía durmiente? Segui-
mos identificando sus personajes y manejando sus claves: comprendemos el sentido que
puede tener una manzana envenenada, un zapato de cristal, una varita mágica, una casa
de chocolate… imágenes y recuerdos que se almacenan en nuestra memoria con facili-
dad, quizá por la sutil forma en que llegaron a nosotros.
Todos estos sentidos e imágenes pertenecen a un imaginario que se ha ido cons-
truyendo desde la infancia mediante pequeñas narraciones, historias camufladas de mo-
ralejas con el objetivo de transmitir una serie de valores, frecuentemente éticos, apoya-
dos en mitos y estereotipos para enfatizar su validez en la formación del niño.
El principal objetivo de mi propuesta es recurrir al arte contemporáneo para generar
situaciones que pongan en tela de juicio la relación entre el imaginario y la literatura
infantil a través de cuentos populares, detectando mitos y prejuicios, subvirtiendo el
actual discurso cultural hegemónico y de forma irónica o metafórica deconstruir unos
relatos que conectan con la imaginación del mundo y que median en nuestra construc-
ción de la idea de infancia, generando interpretaciones de estas narraciones para crear
cierta controversia.
El caso particular que se muestra en este artículo es la relectura del cuento de La
Cenicienta (Figuras 1, 2, 3 y 4), por tratarse de una de la historia que han pertenecido a
mi infancia y que aún recuerdo. Para ello rescato el idealismo de ser princesa y recurro
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 297

al maravilloso vestido que Disney diseñó a Cenicienta, para afrontar el papel de una
forma personal enmascarado en la figura de la propia princesa, mientras que desarrollo
la cotidianidad en Venecia; una ciudad considerada culturalmente de cuento, donde se
celebra uno de los acontecimientos más representativos del arte contemporáneo actual
(Bienal de Venecia) y es referencia de acontecimientos culturales que pueden hilvanar
con el sentido de esta propuesta (Carnavales).

Figura 1. Luis Ángel López, Liberazione, Figura 2. Luis Ángel López, Fondamenta
2010. Fuente propia. della Misericordia, 2010. Fuente propia.

Figura 3. Luis Ángel López, Gondola-Gondole, 2010. Fuente propia.

Figura 4. Luis Ángel López, Promozione, 2010. Fuente propia.


298 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Hago uso de la masculinidad que me ha tocado asumir para adquirir un rol que sería
imposible encontrar en cualquier cuento de hadas; un varón con vestido y peluca. Con
esta trasformación, adquiero un papel que desmitifico cuando salgo a la calle para rela-
cionarme con el entorno y los habitantes, algunos de ellos frecuentes en la mia giornata
abituale (mi día a día). Con esta experiencia artística conecto con el espectador de a pie
y observo su comportamiento alterado por mi persona: ¡Cenerentola bella! (Preciosa
Cenicienta). ¿È una ragazza o un bello ragazzo? (¿Es una chicha o un chico guapo?)
El acercamiento al mundo infantil me ha permitido remontarme a mis orígenes para
emprender una práctica personal, desde la experiencia. Los resultados artísticos los po-
dríamos considerar metáforas visuales que reflejan esta experiencia personal y subvier-
ten la asimilación de un cuento popular, analizando la doble moral del ser humano y
los valores que la sociedad trata de volcar sobre la iconografía infantil, interpretando y
descontextualizando escenas y personajes rescatados del recuerdo.
Esta aproximación a mi propio trabajo nos ayuda a entender los diferentes soportes
examinados por el arte contemporáneo, cuyo planteamiento va más allá de las instantá-
neas que lo documentan, comprendiendo la experiencia como carácter fundamental en
el trabajo. Conectando con el imaginario popular del espectador de a pie y apropiándo-
me del espacio público como soporte fundamental de la acción que toma sentido cuando
se desarrolla ante un determinado espectador, enmarcado en un contexto concreto y con
unas claves que trasgreden el aura de la obra de arte, ya que se aleja de ese resplandor
sagrado que tradicionalmente enalteció el objeto artístico como elemento de culto (Ben-
jamin, W., 1991). Poniendo en entredicho el carácter exibitivo como consecuencia de la
institucionalización que ha sufrido el arte hasta la actualidad y acreditando la transgre-
sión de las fronteras disciplinares.

Referencias
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dernismo liberal. Madrid: Catarata, 2009.
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que retórico y el primado de la alegoría en el arte contemporáneo, 2009. [En línea] Edición di-
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300 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

A “queda dos anjos”:


o artista no mundo

Luiz Sérgio de Oliveira


PPPGEC/ UFF – [email protected]

Exposto às coisas mundanas da contemporaneidade, o artista se percebe me-


lhor integrado no campo social. Essa nova condição do artista pode significar
uma maneira de se (re)encontrar no mundo, de (re)descobrir seu lugar nesse
mundo, avizinhando-o das angústias que nos acometem em nosso dia a dia. A
partir de sua presença difusa no meio da multidão, o artista parece encontrar
um novo lugar, enfatizando que o perder-se e o achar-se perfazem a dialética
do processo. Ancorado em fundamentos teóricos e críticos, este estudo tem
como objetivo apontar as condições que têm levado o artista a uma aproxi-
mação vertiginosa das realidades cotidianas, enquanto visa refletir sobre as
implicações desse deslocamento do artista para o processo de criação da arte
na contemporaneidade.
Palavras-chave: artista; criação; contaminação; real

Exposed to the worldly things of the contemporary times, the artist perceives
themselves better integrated in the social field. This new condition of the artist
can mean a way to (re)discover their place in that world, inching nearer the
troubles that afflict us in our daily life. From its diffuse presence in the midst
of the crowd, the artist seems to find a new place, emphasizing that the lost
and the found make up the dialectic process. Anchored in theoretical e criti-
cal foundations, this study aims to point out the conditions that have led the
artist to a dizzying approach to the everyday realities, while reflecting on the
implications of this displacement of the artist to the process of creation of art
in contemporary society.
Keywords: artist; creation; contamination; real
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 301

No importante estudo em torno do surgimento da noção e das práticas de vanguarda


na arte, a escritora norte-americana e historiadora da arte Linda Nochlin se debruçou
sobre a obra de Gustave Courbet e Edouard Manet para estabelecer as linhagens das
vanguardas que dariam lastro às experiências da arte moderna ao longo do século XX.
Em “A invenção da vanguarda”, publicado como capítulo do livro The Politics of
Vision – Essays on Nineteenth-Century Art and Society (1991), Linda Nochlin pontuou
que “certamente o artista que melhor incorpora as implicações duais – progressista
tanto artisticamente quanto politicamente – do uso original de termo ‘vanguarda’ é Gus-
tave Courbet e seu Realismo militantemente radical”, lembrando que o artista declarou
peremptoriamente que o “realismo é democracia na arte”. Naquele cenário histórico, o
quadro de Courbet “O ateliê do artista é uma declaração crucial da visão política pro-
gressista em termos formais e iconográficos mais avançados disponíveis em meados do
século XIX”. (NOCHLIN, 1991, p. 3)
Portanto, para a historiadora norte-americana, o pintor francês Gustave Courbet se-
ria o modelo originário de práticas de arte que rejeitaram e enfrentaram a dicotomia,
sob certos aspectos predominante em parte da arte do século XX, que proclamava a
separação entre arte e política. Para Linda Nochlin, essa perspectiva de alienação e de
afastamento das coisas mundanas de nossas sociedades está subentendida em nossa
percepção mais comum da noção de vanguarda, e que Edouard Manet é tido como seu
modelo basilar:

se tomarmos “vanguarda” sem aspas, devemos chegar a conclusão de que o que geralmente
está indicado no termo começa com Manet e não com Courbet. Implícito – e talvez central
mesmo – para nossa compreensão de vanguardismo é o conceito de alienação – psíquica,
social, ontológica – absolutamente estranho à abordagem de Courbet tanto à arte quanto à
vida”. (NOCHLIN, 1991, p. 12)

Embora faça a ressalva de que Manet nunca foi verdadeiramente um “um homem
alienado – isto é, fechado em si mesmo em conflitos interiores ou distanciado de sua
verdadeira situação social, como eram seus quase contemporâneos Flaubert e Baudelai-
re” (NOCHLIN, 1991, p. 13), e que Manet se surpreendeu com as reações provocadas
por duas de suas obras capitais - Dejeuner sur l´herbe e Olympia: “Manet nunca desejou
protestar. Seria contra sua natureza, a qual não esperava que as pessoas protestassem”.
(NOCHLIN, 1991, p. 12)
Ainda de acordo com Linda Nochlin, “com Manet, [...] pela primeira vez, somos
confrontados com uma obra [oeuvre] que, como o próprio dândi (que foi originalmente
postulado como o equivalente humano a uma obra de arte”, oferece um exemplo con-
tundente do artista em estado de isolamento do restante dos domínios sociais:
A visão de isolamento tem sua apoteose [na pintura] Um bar em Folies-Bergere,
talvez a imagem mais aguda de alienação já pintada, [...] na qual o anônimo porém
concreto aparece aprisionado entre o mundo das coisas tangíveis e aquele dos reflexos
302 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

impalpáveis, existindo apenas como um ponto intermediário entre vida e arte. É justa-
mente sobre tais desconfiança e alienação e as maneiras admiravelmente inventivas,
destrutivas e autodestrutivas de produzir arte a partir delas [desconfiança e alienação]
que a vanguarda moderna tem sido construída desde então. (NOCHLIN, 1991, p. 17)
Poderíamos citar diferentes artistas modernos que buscaram afirmar a independência
e autonomia da arte em termos que nos parecem atualmente inexplicáveis e inaceitáveis,
mas que tiveram potência nos momentos de suas enunciações. É o caso de manifesta-
ções do pintor norte-americano Ad Reinhardt, em textos coligidos pela historiadora da
arte e crítica Barbara Rose: “uma coisa que se pode dizer sobre arte e vida é que arte é
arte, e que vida é vida, que arte não é vida e que vida não é arte”; ou ainda “se o artista
pensa que é menos ridículo quando ele se envolve com política do que quando o político
se envolve com a arte, ele [artista] está enganado”. (ROSE, 1991, p. 54)
Ao longo do século XX, em uma dilatação dos tempos que atinge os anos iniciais
do século XXI, essa percepção de vanguarda tem persistido em práticas que afirmam
invariavelmente a autonomia da arte diante do campo social, instauradas em universos
de distanciamento, descolamento e exclusão, lastreadas em pensadores como Theodor
W. Adorno e Max Horkheimer.
Somente mais recentemente, a partir da publicação de Teoria da vanguarda, in-
fluente estudo de Peter Bürger (1974), tem sido possível empreender um deslocamento
dessa percepção da noção e das práticas de vanguarda para realinhá-las com aquelas
identificadas como “vanguardas históricas”, enfatizando sua rejeição das experiências
de interposição de distâncias entre arte e vida, entre arte e política, entre arte e cotidiano:
Os movimentos europeus de vanguarda podem definir-se como um ataque ao sta-
tus da arte na sociedade burguesa. Não impugnam uma expressão artística precedente
(um estilo), mas a instituição arte na sua separação da práxis vital dos homens. [...] Os
vanguardistas vêem como rasgo dominante da arte na sociedade burguesa sua separa-
ção da práxis vital. Tal juízo foi proporcionado, entre outras coisas, pelo esteticismo,
ao transformar esse momento da instituição arte em conteúdo essencial da arte. [...] A
práxis vital, à qual o esteticismo se refere por exclusão de partes, é a racionalidade dos
fins da vida prática burguesa. Os vanguardistas não tentam em absoluto integrar a arte
nessa práxis vital; pelo contrário, partilham a recusa do mundo ordenado conforme a
racionalidade dos fins que o esteticismo havia formulado. O que os distingue deste é a
tentativa de organizar, a partir da arte, uma nova práxis vital. (BÜRGER, 1991, p. 91)
Para o crítico alemão e professor de Teoria de Literatura da Universidade de Bre-
men, Alemanha, a ideia de vanguarda é indissociável daquela de imbricação e contami-
nação da arte com os domínios sociais ampliados:
Os movimentos históricos de vanguarda negam, em resumo, as características es-
senciais da arte autônoma: a separação da arte em relação à práxis vital, a produção
individual e a consequente recepção também individual. A vanguarda intenta a supera-
ção da arte autônoma no sentido de uma recondução da arte em direção à práxis vital.
(BÜRGER, 1991, p. 96)
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 303

Ou conforme apontado pelo filósofo italiano Antonio Negri,

o paradoxo artístico consiste hoje no desejo de produzir o mundo (corpos, movimentos) dife-
rentemente – e de dentro –; um mundo que não admite outro mundo além daquele que de fato
existe. E que sabe que o “lado de fora” a ser construído somente pode ser o outro dentro de
uma absoluta interioridade. (NEGRI, 2011, p. 108)

Parece não ser por outro motivo que as práticas contemporâneas de arte têm invaria-
velmente o domínio público como lócus preferencial de sua instauração, em situações
que somente com grande dificuldade parecem encontrar alguma similitude com os pro-
cessos e procedimentos de criações artísticas consolidadas. Em muitos desses cenários
contemporâneos da arte, o artista parece abandonar a identidade tradicional do artista
para assumir outras funções, algo identificado por Allan Kaprow como changing jobs,
conforme citado por Sven Lütticken:

vemos mais uma vez o ideal da vanguarda de integrar arte e vida – não tornando-se parte
da indústria da cultura (Warhol) ou através de atividades secretas que buscam transformar a
ordem social e criar um novo mundo no qual não mais haveria arte autônoma (Bataille), [...]
mas através da adoção de identidades profissionais diferentes. (LÜTTICKEN, 2002, p. 142)

Ainda de acordo com Lütticken, “para Kaprow, changing jobs implica na possibi-
lidade de adentrar na vida e fazer coisas que poderiam ser apresentadas ou vistas como
arte, mas que assim não tinha que ser”. (LÜTTICKEN, 2002, p. 143)
Na abertura de seu provocativo artigo “The Social Turn: Collaboration and its Dis-
contents”, publicado na Artforum, a crítica inglesa Claire Bishop elenca uma série de
atividades que somente a muito custo são reconhecidas como práticas de arte:
O canal de tevê na internet para idosos envolvidos em um projeto de moradias em
Liverpool (Tenantspin, 1999) do Superflex; Annika Eriksson (Do you want an audien-
ce? 2003); a parada social para mais de 20 organizações sociais em San Sebastián (So-
cial Parade, 2004) de Jeremy Deller; Lincoln Tobier treinando moradores de Auber-
villiers, a nordeste de Paris, para produzir programas de rádio de meia hora (Radio Ld’A,
2002); uma clínica de aborto flutuante, A-Portable, do Ateliê Van Lieshout (2001) [...].
(BISHOP, 2006, p. 178)
A lista iniciada por Claire Bishop poderia ser alongada quase que indefinidamente,
e a ela poderíamos acrescentar exemplos brasileiros e de toda a América Latina para
formar aquilo que a autora define como um “catálogo de projetos [que] é apenas uma
amostra da recente onda de interesse artístico na coletividade, na colaboração e no com-
promisso direto com grupos sociais específicos” (BISHOP, 2006, p. 178), para acres-
centar que esse “panorama de obras socialmente colaborativas forma a princípio o que
temos de vanguarda nos dias de hoje: artistas que usam situações sociais para produzir
304 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

projetos desmaterializados, antimercadológicos e politicamente engajados, que levam


adiante o apelo modernista de mesclar a arte à vida”. (BISHOP, 2006, p. 178)
Em seu esforço para articular sua obra no universo das práticas cotidianas, em prá-
ticas de arte que assumem como suas as singelezas do mundo mundano, o artista acaba
por renunciar ao abrigo dos espaços protegidos do ateliê e por cair no mundo. Com esse
deslocamento, o artista contemporâneo se integra ao mundo real, a este mundo permea-
do pelas grandiosidades e pelas pequenezas do cotidiano, implicando inevitavelmente
na contaminação de sua arte em sua atuação diretamente dentro desse mundo, dando
seguimento à tarefa que o caracteriza há séculos: reinventar o mundo.
Essa nova condição do artista pode simplesmente representar sua desaparição no
mero ato de se perder; mas também pode significar uma maneira de se (re)encontrar no
mundo, de (re)descobrir seu lugar nesse mundo. A partir de sua presença difusa no meio
da multidão, o artista parece encontrar um novo lugar no mundo, enfatizando que o per-
der-se e o achar-se perfazem a dialética do processo. Como se ao lançar-se no mundo,
o artista refluísse da necessidade de afirmação peremptória de sua condição singular
e única para, ao contrário, desaparecer por entre uma multidão de singularidades que
formatam as sociedades contemporâneas.
Diante da desaparição das possibilidades de preservação de um lugar para a arte
apartado do mundo, o artista foi dragado impiedosamente para dentro do mundo. Uma
queda dos anjos no meio do mundo a ser vivido, em um movimento para dentro desse
mundo no qual o artista agora se esbalda entre as belezas e as mazelas do cotidiano.

Referências
BISHOP, Claire. The Social Turn: Collaboration and its Discontents. Artforum, fev. 2006, p. 178-183.
BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Lisboa: Vega / Universidade, 1993 [1974].
LÜTTICKEN, Sven. Secrecy and Publicity. New Left Review n. 17, set.-out. 2002, p. 129-148.
NEGRI, Antonio. Art & Multitude. Londres: Polity Press, 2011.
NOCHLIN, Linda. The Politics of Vision – Essays on Nineteenth-Century Art and Society. Nova
York: Harper & Row Publishers, 1991.
ROSE, Barbara (ed.). Art as Art: Selected Writings of Ad Reinhardt. Berkeley, California: Univer-
sity of California Press, 1991.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 305

Os espaços, as imagens,
os sons e os processos
de criação do movimento

Maju Martins
UNICAMP – [email protected]

Neste artigo serão apresentadas algumas considerações acerca da ocupação


performática de espaços públicos e os processos de criação do movimen-
to. O espaço público, neste caso, é entendido como plataforma de pesquisa,
criação e partilha. O corpo indaga os espaços em suas composições visuais
e sonoras e propõe soluções expressivas que fazem emergir novas compo-
sições entre corpo, espaço, imagem, som e movimento. Estas ideias serão
apresentadas a partir da reflexão e do relato de duas experiências práticas,
uma individual e outra coletiva.
Palavras chave: corpo, espaço, imagem, som e movimento.

In this paper it will be presented some remarks on the performative occupa-


tion of public spaces and the creation processes of the movement. The public
space is in this case understood as a sharing platform of research and crea-
tion. The body inquires the spaces in its visual and musical compositions and
proposes solutions which make significant new compositions emerge between
body, space, image, sound and movement.
Keywords: body, space, image, sound and movement.
306 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

É pela ação do corpo que inquirimos os espaços, questionando-os e descobrindo


inúmeros outros espaços que permanecem adormecidos, esperando para serem inven-
tados, criados, revelados, ressignificados. A trama de nossa existência se desenrola e se
reproduz nos espaços. Podemos pensá-los de um modo mais abrangente e mutável do
que usualmente somos levados a fazê-lo. Neste caso, o espaço deixa de ser entendido
como um dado concreto para se tornar uma experiência poética, um campo de tensão,
de convergências de forças que entrecruzam corpo, território, memórias, sons, estímulos
visuais e táteis, “uma simultaneidade de estórias-até-agora (stories-so-far)”. (MASSEY,
2009). Para o analista Felix Guattari (1992) os espaços extrapolam seus atributos físicos
e concretos e se desdobram em uma complexa rede de máquinas abstratas constituintes
no modo de ser e existir dos seres humanos:

O alcance dos espaços construídos vai então bem além de suas estruturas visíveis e funcionais.
São essencialmente máquinas, máquinas de sentido, de sensação, máquinas abstratas funcio-
nando como o “companheiro” anteriormente evocado, máquinas portadoras de universos in-
corporais que não são, todavia, Universais, mas que podem trabalhar tanto no sentido de um
esmagamento uniformizador quanto no de uma re-singularização liberadora da subjetividade
individual e coletiva (GUATTARI, 1992).

É no sentido da “re-singularização liberadora da subjetividade individual e coletiva”


que a ocupação dos espaços públicos como espaço de experimentação para o movimen-
to criativo busca contribuir. Propondo um novo encontro para experimentarmos outros
conjuntos de relações entre o corpo e o espaço, subvertendo suas ordens e seus costumes
rotineiros, abrindo veredas para um conhecimento mais profundo e diverso sobre nós no
mundo e sobre o mundo em nós.
O objetivo do trabalho desenvolvido na oficina “Improvisação em Dança” era ins-
taurar processos de criação a partir da pesquisa, experimentação e improvisação ges-
tual e a investigação da relação com os espaços, internos e externos ao corpo, tendo
em vista a contiguidade e a coexistência entre ambos. Investindo em um processo de
pesquisa corporal abrangente que busca recursos nas diversas camadas que compõe o
corpo, transitando da concretude de sua estrutura, passando pela fluidez de seus gestos,
abstraindo em seu substrato simbólico. Para tanto eram propostas experimentações a
partir de diferentes meios, corporais, sonoros, visuais, táteis, composições individuais e
em grupos. As experimentações iniciavam na sala de ensaio e se desdobrava para o es-
paço público. Relatarei um de nossos encontros para apresentar possíveis composições
entre movimento, espaços, imagens e sons. Iniciamos com uma prática de uma hora de
trabalho corporal dividido entre alongamentos, aquecimentos, exercícios de respiração
e sensibilização. O trabalho de sensibilização deste dia consistia em permanecer deita-
do ouvindo os sons ao redor. Perceber os sons mais distantes, os sons da rua e os mais
próximos, os sons do corpo, da respiração, do coração batendo. Perceber a paisagem
sonora com a maior intensidade possível. A limpeza auditiva proposta pelo compositor
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 307

e artista plástico Murray Shafer (1991) nos induz a perceber a paisagem sonora, para que
adentremos no mundo dos sons com maior acuidade auditiva, nos levando a perceber a
“sinfonia do universo”. “Os olhos apontam para fora; os ouvidos para dentro. Eles ab-
sorvem informação” (SHAFER, 1991). Cada participante passa a compor a trilha para
sua improvisação, buscando nos sons do entorno recursos que mobilizam o corpo para
o movimento. Os sons nos afetam constantemente, não temos pálpebras nos ouvidos,
dizia SHAFER (1991). Transformar os sons em estímulos para o movimento percebê-
-los como parte da composição do espaço e dialogar em movimento com as paisagens
sonoras e as paisagens concretas, esta era a proposta para a ocupação do espaço público.
Após esta prática, foram espalhados no chão da sala inúmeros cartões com reproduções
de quadros e esculturas produzidos nos séculos XIX e XX. Os participantes engati-
nhavam pela sala observando estas reproduções. Era pedido que escolhessem uma das
gravuras, apenas com os olhos, e a partir do momento da escolha, eles passavam a se
movimentar como se estivessem dentro daquela imagem. Podemos notar que a imagem
conhecida, o Território existencial cultural partilhado, é devorado pelo olhar e passa a
operar a partir de modulações que o corpo propõe pelo movimento, reverberações da
imagem produzindo movimento, um contínuo entre o gesto do artista plástico dos sécu-
los passados e o gesto do dançarino/performer de hoje. Em outra etapa do trabalho, as
experimentações passaram a ser realizadas em espaço público. Compor com o espaço,
assim como, o pintor compõe com as cores e as formas, alterando a paisagem dos espa-
ços com movimentos que tornam vívida a arte, uma experiência existencial-relacional.
A experiência esta fundada na experimentação da ação do corpo que tem como parceiro
de criação o espaço e seus atributos concretos e abstratos, as texturas, os contornos, as
imagens, os sons, os cheiros, os signos, as memórias, as presenças. Tudo isso mobilizan-
do o corpo, tudo isso ativando os sentidos e as percepções, tudo isso dialogando comigo
e com o meu vir a ser, gerando fissuras no concreto e abrindo os poros da pele para que
a imaginação e a criatividade possam se manifestar. Assim como o espaço, o corpo é
constituído de atributos concretos e abstratos que se relacionam com as concretudes e
abstrações dos espaços circundantes. Uma mão é um dado concreto composto de carne,
ossos, ligamentos, com gestos e funções que são partilhados coletivamente. As mãos
seguram, pegam, apertam, acariciam, escrevem, tecem,... Mas, cada mão carrega em si
memórias únicas, razões próprias, desejos singulares que a mobiliza a segurar, a pegar, a
apertar, a acariciar, a escrever e a tecer. Cada gesto é o resultado de histórias, vontades,
sentidos e significados encarnados em cada corpo. Todo gesto é, antes de tudo, potência,
energia em transformação na relação com o tempo e o espaço.

Temos então que lidar não somente com a discursividade fonológica, gestual, espacial, mu-
sical, etc., que dá suporte à constituição de um Território existencial, mas somos igualmente
confrontados com consistências de conteúdo não-discursivas, as quais são referidas a essas
mesmas semiologias discursivas. (GUATTARI, 1992).
308 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

É, exatamente, entre as consistências discursivas e não-discursivas que o corpo ex-


pandido, o corpo em estado de criação, opera, (re)organizando a si e o entorno, simulta-
neamente, reafirmando sua condição de potência criadora.
No trabalho de vídeo dança “Antúrio: vestígios do corpo-rio” o espaço da ocupação
foi a nascente do rio Gregório, o lugar no qual a água brota da terra e faz a vida florescer.
O rio é compreendido como fluxo, movimento, passagem e transformação, um agencia-
dor de metáforas e metamorfoses. O rio em questão, corta a cidade de São Carlos (SP),
foi em suas margens que a cidade se constituiu. Ocupar a nascente do rio propõe ao
corpo a experiência deste espaço de origem, o reencontro com seus fluídos originários,
suas formas primeiras, seu alimento essencial. O rio tomado como a expressão da vida,
a água que abre caminhos, que deixa rastros, que promove a vida, que constitui paisa-
gens, que desemboca em outros rios e que desagua no mar, no grande inconsciente, no
desconhecido, a morte. O processo de aproximação e conexão com o espaço evidenciou
que há uma inversão de forças no processo de improvisação. Diferentemente do que a
ação de dançar no espaço, como imaginado anteriormente, a experiência revelou que,
ao contrario, é o espaço que dança o corpo. A partir dos inúmeros estímulos sensoriais,
sons, cheiros, texturas, seres, vento, luz... O corpo vai sendo conduzido a uma dança que
ele próprio desconhece. Não sou eu quem dança no espaço, mas é o espaço que dança
meu corpo, como um cavalheiro que conduz a dama pelo salão. Aguçar a sensibilidade,
ter arrepios na coluna, o coração disparado e a entrega a este parceiro desconhecido.
Durante as ocupações foram capturas imagens por meio do uso de duas câmeras. Uma
câmera externa e uma câmera acoplada ao corpo. A acoplagem da câmera ao corpo
produz um novo órgão corporal, combinando visão e memória, é um “terceiro olho” que
registra a passagem do corpo pelo espaço. A segunda câmera que capta as imagens da
ação de ocupação do curso do rio tem a função de limitar o olhar, como um microscópio
que nos faz enxergar aquilo que não é visível a olho nu, revelando as “zonas de contá-
gio” (GUATTARI, 1992) criadas pela ação da ocupação, revelando, assim, os vestígios
do corpo-rio.

Referências
GUATTARI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1992.
MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2008.
SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Editora da UNESP, 1991.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 309

Cartografando espaços urbanos


para criações multiautorais

Mara Porto
PPGA/UFU – [email protected]

Este ensaio apresenta um recorte da minha pesquisa de pós-graduação em


Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia,
a qual se encontra em andamento, e que propõe pensar a cidade como su-
porte de criação. Através do tema da minha pesquisa, ministrei um Curso de
Extensão – “Arte Urbana: re-poetizando a cidade”, que foi realizado na cidade
interiorana de Patos de Minas/MG, através do Centro Universitário de Patos
de Minas/UNIPAM, o qual possibilitou um desdobramento de ações poéticas
no espaço público, centrado na proposta de repensar a cidade como lugar
de reocupação e campo de atuação da arte e da criação multiautoral, entre
participantes artistas e não artistas.
Palavra Chave: Arte Urbana, Cidade e Criação Multiautoral

Este ensayo presenta un recorte de mi investigación de posgrado en Artes Vi-


suales por el Instituto de Artes de la Universidad Federal de Uberlândia, la cual
se encuentra en marcha, y que propone pensar la ciudad como soporte de
creación. A través del tema de mi investigación, ministrei un Curso de Exten-
sión – “Arte Urbano: re-poetizando la ciudad”, que fue realizado en la ciudad
interiorana de Patos de Minas/MG, a través del Centro Universitario de Patos
de Minas/UNIPAM, el cual posibilitó un desdoblamiento de acciones poéticas
en el espacio público, centrado en la propuesta de replantear la ciudad como
lugar de reocupação y campo de actuación del arte y de la creación multiauto-
ral, entre participantes artistas y no artistas.
Palabra Llave: Arte Urbano, Ciudad y Creación Multiautoral
310 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Apresentação
Curso de Extensão “Arte Urbana: re-poetizando a cidade”
Minha pesquisa de mestrado, iniciada em 2013, privilegia a busca de lugares no espaço
urbano através do processo do caminhar/deslocar como ação poética e estética para
coleta de materiais, ações ou intervenções artísticas, entre outras. Aliado a isto, dou
preferência aos ambientes de natureza, mesmo no espaço urbano, elejo os espaços que
tenham uma maior concentração de área verde, como parques, praças, áreas preserva-
das, entre outros.
A relação da arte com a cidade tem sido uma inquietação constante da sociedade nos
últimos tempos, por isso pensar a cidade e a natureza através da arte é propor um diálogo
com importantes circunstâncias atuais e temas sociais contemporâneos. A segregação dos
espaços urbanos, a diminuição dos espaços naturais e o individualismo de uma sociedade
pós-moderna, faz com que artistas contestem, através da arte, esse mundo contemporâneo.
O espaço urbano é abordado, tanto em minha Pesquisa, quanto no Curso de Ex-
tensão, ministrado no Centro Universitário de Patos de Minas/UNIPAM, possibilitan-
do pensar a cidade como um campo aberto para experimentações artísticas, através de
ações/intervenções, instigando uma percepção mais atenta dos espaços da cidade e da
natureza ainda presente nestes espaços.
A primeira proposição artística do Curso de Extensão foi mapear os espaços/lugares
para a criação das ações poéticas a serem realizadas em coletivo pelos participantes.

Cartografando o Espaço Urbano: o caminhar como ação poética


A ação de caminhar e o deslocamento pelo espaço urbano são pensados aqui como uma
ação artística e poética. O caminhar nesse sentido pode se diferenciar de um caminhar
descomprometido, de um caminhar corriqueiro; o ato de caminhar do artista coloca-se
como um caminhar atento a perceber os espaços envoltos nas dinâmicas sociais, am-
bientais e nas desordens presentes nas paisagens.
Essas experimentações de caminhadas, melhor definindo como derivas, se inaugu-
raram com os dadaístas (suas derivas eram aleatórias), e se consolidaram com os situa-
cionistas (suas caminhadas eram mais objetivas e funcionais) e foram se desenvolvendo
como processos artísticos individuais na contemporaneidade.
Assim, realizamos com os participantes do Curso de Extensão a prática da “deriva”
conceituada pelos artistas da Intenacional Situacionista, que buscavam na caminhada
um comportamento lúdico-construtivo, que afirmavam ser absolutamente “oposto às
tradicionais noções de viagem e passeio” (DEBORD, apud JACQUES, 2003, p. 87).
Assim, mapeamos e traçamos os caminhos os quais percorremos, projetamos uma
linha espacial dentro de um sistema espacial, organizamos um conjunto de possibilida-
des de lugares para a criação das ações poéticas e o lugar definido pelos participantes
do Curso foi a Avenida Getúlio Vargas, que contém em seu percurso um aglomerado de
nove praças, localizada no centro da cidade de Patos de Minas.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 311

Desta forma, ao invés de utilizar o espaço urbano como lugar de passagem, procu-
ramos vivê-lo de forma ativa e afetiva, potencializando essa experiência em procuras,
capturas, movimentos, tudo isso através do ato de caminhar, pensando cada passo pelas
frestas da intimidade com os espaços percorridos, onde a realidade é percebida de forma
mais implícita do que explícita.

A Cidade como Pergunta - A Cidade como Resposta


Patos de Minas é uma cidade interiorana, com aproximadamente 140 mil habitantes, o
circuito artístico ainda é bastante limitado, principalmente na área das Artes Visuais;
desta maneira a intenção deste curso foi possibilitar aos participantes (artistas e não
artistas de formação) um momento de criação coletiva, de pensar a arte de maneira mais
ampla e refletir sobre temas contemporâneos.
Para inserir uma reflexão do processo de criação da arte, sugeri pensar aquilo que
ainda não tinha sido fomentado na cidade, no âmbito da arte contemporânea, que as
ações fossem criadas coletivamente, que passassem de criações individuais a multiau-
torais e que utilizassem questões críticas da cidade nas criações poéticas. Essas provo-
cações poderiam levantar uma discussão a fim de articular um diálogo com elementos
do cotidiano da cidade, em relação ao público e ao privado, pensando em contestar
poeticamente algumas desordens encontradas no entorno da Avenida Getúlio Vargas e
nos espaços de convívio das praças.
Segundo o pesquisador Paulo Reyes, vivenciar os espaços públicos da cidade é estar
aberto não só ao conhecido, ao que é familiar, mas, sobretudo, estar disponível ao olhar
do estranho. Desta maneira ele afirma que:
A realidade cotidiana está aí, já se faz presente independente da minha inserção nela.
Entretanto, ao mesmo tempo, só tem sentido para mim quando me sinto parte dessa en-
grenagem. Assim remetemos ao público o que é da ordem do privado. (REYES, 2005,
p.23). Dessa maneira podemos pensar o espaço público como lugar íntimo de criação, e
questionar a ordem do público e do privado, do urbano e da natureza, tecendo um experi-
mento através da arte, atuando na relação direta com esse espaço de convívio da cidade.
O pensar das ações foram construídos a partir das reflexões sobre a relação de uma
zona de conforto existente no cotidiano da cidade, entre o que é público e o que é privado,
desta maneira os trabalhos tomaram uma dimensão “política”, mas também poética, atin-
gindo diretamente um domínio da ação sócio-política para a esfera do fazer artístico. De
tal modo, trabalhamos em torno da memória, da tomada de consciência e entendimento
sobre a transformação da cidade, da realidade e do contexto que a cidade nos cerca.

As Ações Poéticas na Avenida Getúlio Vargas


As árvores
A Avenida Getúlio Vargas foi tombada pelo Patrimônio Histórico, no decreto nº 2068 de
22 de maio de 1998; em suas praças existem árvores centenárias que criam, além de uma
cidade arborizada, uma delicadeza poética na paisagem do centro urbano dessa cidade.
312 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Há 10 anos aproximadamente, não era permitida a construção de prédios acima de


quatro andares no entorno da Avenida, pois descaracterizava a paisagem urbana que foi
projetada para manter uma identidade e uma memória arquitetônica da cidade. Infeliz-
mente, não foi bem assim que ocorreu com o passar dos tempos, as construções prediais
estão a todo vapor, e os construtores não satisfeitos com esse ganho, da arquitetura ver-
ticalizada, ainda cortaram algumas das árvores centenárias para maior visibilidade das
fachadas dos prédios, provocando muita contestação pelos próprios moradores da Av.
Getúlio Vargas, mas nada foi feito, além de replantarem algumas mudas de arborização
urbana, o que não substituem, a meu ver, uma árvore centenária.
Desta maneira os tocos das árvores, ainda encontrados na praça, foram base da cria-
ção de um dos trabalhos realizados pelos participantes do Curso de Extensão (figura 1, 2
e 3); foram feitas quatro placas de MDF (medium-density fibreboard material derivado
da madeira) com escritas em adesivos e anexadas aos tocos criando uma alusão crítica
das árvores que foram cortadas.

Figuras 1, 2 e 3. À esquerda: as placas feitas de mdf e anexadas aos tocos das árvores que
foram cortadas na praça da Av. Getúlio Vargas. Ao centro detalhe da placa. À direita: um dos
edifícios em construção que foi um dos motivos dos cortes das árvores, para maior visibilidade
da fachada. Fotografia de Mara Porto, Patos de Minas, 2013. (Acervo da Artista)

Os Antigos Casarões
Com a mesma proposta de preservação da identidade e da memória da Avenida Ge-
túlio Vargas, os antigos casarões foram preservados durante décadas, mas o momento
presente os coloca como alvo da especulação imobiliária; hoje só restam alguns destes
casarões preservados, e muitos ainda não foram tombados pelo Patrimônio Histórico,
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 313

o que possibilita a fácil destruição destes imóveis. Um dos casarões da Getúlio Vargas
está à venda por metro quadrado, o que pressupõe que será construído um “lindo prédio
novo” em seu lugar e que mais um dos preciosos casarões estará, em pouco tempo, na
paisagem de uma memória da cidade e da Avenida.
Pensando nesse contexto social e simbólico, os participantes do Curso fizeram um
faixa questionando a relação da cidade com a memória (figura 4 e 5). A faixa que foi
anexada no casarão continha os seguintes dizeres: “E NOSSA MEMÓRIA!? TAMBÉM
ESTÁ A VENDA?”. A faixa foi anexada no sábado, e no dia seguinte foi vista sendo
arrancada pelo dono da Imobiliária responsável pela negociação do imóvel.

Figuras 4 e 5. Faixa de tecido anexada no Casarão da Av. Getúlio Vargas. Fotografia de Mara
Porto, Patos de Minas, 2013. (Acervo da Artista)

Outro casarão que também foi motivo de criação poética foi o Palacete Amadeu Dias
Maciel da família Maciel, fechado há mais de 20 anos e sem utilização nenhuma em seu
interior. Este já foi levado para justiça para tombamento, mas até o presente momento
nada foi determinado. Deste modo, ficou definido que uma obra, em caráter de urgência
seria realizada, para impedir as infiltrações nas pinturas internas, portanto foi colocado
um tapume na cor preta em torno da casa, mas até hoje nenhuma obra foi iniciada.
Para a realização desta intervenção, os participantes do Curso apropriaram de um
dos cartazes do Poro, dupla de artistas de Belo Horizonte/MG – Brígida Campbell e
Marcelo Terça-Nada!, que trabalha também com ações e intervenções no espaço públi-
co e que disponibiliza seus cartazes, folders, panfletos para download, e desta maneira
utilizamos um dos cartazes para questionar a realidade deste casarão.
Vinte cartazes foram colados neste tapume, criando um rastro colorido e distribuído
na cena fria da paisagem; assim, os transeuntes que por ali passavam, revisitavam com o
olhar, o casarão; se deslocando e possibilitando uma outra leitura da realidade cotidiana;
logo, os cartazes levavam as pessoas a re-observar a beleza da arquitetura ali adormeci-
da e esquecida (figura 6 e 7). A intervenção foi realizada no sábado e, no outro dia pela
manhã, os cartazes foram arrancados um a um por um vigia do casarão, os cartazes que
não foram arrancados, pela quantidade de cola, foram pintados com uma demão de tinta
amarela, na tentativa de apagar os questionamentos sobre mais uma das poucas identi-
dades da nossa arquitetura (figura 8 e 9).
314 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Figuras 6 e 7. À Esquerda o cartaz apropriado do PORO, com alterações no título. À Direita o


Casarão da Família Maciel na esquina da Av. Getúlio Vargas com a Rua Olegário Maciel, com
o tapume e os cartazes anexados. Fotografia de Mara Porto, Patos de Minas, 2013. (Acervo
da Artista)

Figuras 8 e 9. À Esquerda o vigia arrancando os cartazes anexados no tapume. À Direita


alguns dos cartazes pintados com uma demão de tinta amarela. Fotografia de Sarah Versiani,
Patos de Minas, 2013.

As Criações Multiautorais
As ações poéticas que foram realizadas no espaço urbano foram distribuídas pela cidade
e dissolvidas em múltiplas autorias. Portanto, quando criamos em coletivo podemos
dizer que escrevemos uma narrativa do processo de criação construído no desvio pelo
outro, criando relações de continuidade de pensamentos, de apropriações de reflexões
para amadurecimentos de outras ideias e assim estabelecemos uma relação onde um cria
a partir do outro.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 315

Entre as produções de natureza efêmera, como na arte urbana, entre outras práticas
artísticas no domínio público, é fácil notar que a autoria está em processo de transfor-
mação; assim, os participantes do Curso puderam compreender estes procedimentos da
arte contemporânea os quais atravessam uma etapa de mudança no cenário da criação,
estabelecendo relações transversais em relação à autoria e as multiautorais.
Concluímos, então, que a dificuldade de construção do processo de criação coletivo
entre os participantes é encontrada no interstício das relações que cada indivíduo carrega
a partir de suas crenças, suas analogias sociais, políticas e culturais, a relação afetiva
com a cidade, entre outras; e estas relações diversas, ao mesmo tempo em que dificulta
a amarração do processo de criação, também enriquece a elaboração dos trabalhos. Com
essas convergências de uma diversidade de pessoas com profissões e conhecimentos
distintos, conseguimos criar um fio que conduzisse e que costurasse as reflexões con-
ceituais, estéticas, poéticas e afetivas de todos os participantes e que possibilitou uma
sistematização das ações realizadas.
Assim, concluímos durante o Curso, e posteriormente na divulgação das ações que
foram realizadas, que “as estéticas relacional e interativa como campos de interdepen-
dências em fluxo, possibilitam inovadoras plataformas de intervenções urbanas e práti-
cas contemporâneas”. (Cleomar Rocha, Valzeli Figueira Sampaio e Lilian Amaral. Dis-
ponível em: < http://www.anpap.org.br> Acesso em: 03 de outubro de 2013).

Referências
CAMPEBELL, Brígida, TERÇA-NADA! Marcelo. Intervalo, Respiro, Pequenos Deslocamentos:
Ações Poéticas do Poro. = Interval, Breathing, Small displacements: Poro’s poetical actions [
tradução para o inglês: Bruna Di Gioia, Ines Linke, Nayara Pinheiro Teixeira e Ronan Morais
Pena]. - São Paulo: Radical Livros, 2011.
REY, Sandra. Por uma abordagem metodológica de pesquisa em artes visuais. In: BRITES, B.
O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em artes visuais. Porto Alegre: UFGRS,
2002.
REYES, Paulo. Quando a Rua Vira Corpo [ou a dimensão pública na ordem digital]. São Leopol-
do/RS: Unisinos, 2005.
JACQUES, Paola Berenstein (org.) Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade /
Internacional Situacionista (Tradução Estela dos Santos Abreu) . Rio de Janeiro: Casa da Pa-
lavra, 2003.
Cleomar Rocha, Lilian Amaral e Valzeli Figueira Sampaio, 2013. Disponível em: < http://www.
anpap.org.br>. Acesso em: 03 de outubro de 2013.
316 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Tesselas de uma cidade:


reflexões sobre autoria na arte
pública a partir da
obra de Raphael Samú
Marcela Belo
FAPES/PPGA UFES – [email protected]

José Cirillo
CNPQ/FAPES/PPGA-UFES

No contexto das reflexões sobre autoria, este texto reflete sobre o processo
de criação de uma obra mural, destinada à cidade. Por sua grande dimensão,
cerca de 168,27 m², a obra contou com uma grande equipe de produção, mas
sem ação efetiva na alteração do projeto autoral de Raphael Samú. O texto se
propõe a apresentar o modo de concepção das obras murais do artista plástico
Raphael Samú, demonstrando sua autonomia quanto à criação artística. Pre-
tendemos analisar também a importância de seu ateliê para o processo criativo
de suas obras como elemento efetivador de uma autoria centrada no artista.
Palavras-chave: Processo de criação, Produção em Ateliês, Autoria Artística.

En el marco de las reflexiones sobre la autoría, el texto reflexiona sobre el


proceso de creación de un mosaico conmemorativo para la ciudad de Vitória,
ES. Por su gran tamaño, de unos 168,27 m², la obra tuvo un gran equipo de
producción, pero ninguna acción efectiva para cambiar el proyecto del autor
Rafael Samú. El texto tiene como objetivo presentar la forma de diseñar las
obras murales del artista Raphael Samú, demostrando su autonomía como
la creación artística. Tenemos la intención de analizar la importancia de su
estudio para el proceso creativo de su trabajo como parte de un hacer artístico
centrado en la autoría personal.
Palabras clave: Proceso de creación, Talleres de producción, Autoría artística
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 317

Introdução
As cidades contêm um repertório artístico o qual o transeunte, muitas vezes, acaba não
dando conta de assimilar, devido ao grande número de informações visuais presentes
nela, como por exemplo, na publicidade excessiva da contemporaneidade que transfor-
mou as cidade em imagens de si mesmas. O lugar reservado às obras de arte vem sendo
questionado e muitos teóricos defendem esta saída dos espaços institucionais, promo-
vendo assim maior aproximação com o público.
Alguns autores debruçaram-se sobre este assunto, mas existem várias perspectivas
que devem ser tidas em conta, um autor que se destaca no estudo da cidade é o arqui-
teto e teórico americano Kevin Lynch. Seu livro A Imagem da Cidade ([1960] 1997)
consiste numa análise de vários aspectos das cidades e dos elementos que a compõem,
fazendo também um estudo que analisa e descreve três cidades americanas: Boston, Los
Angeles e Jersey City.
O texto fala da importância da imagem que cada um faz de sua própria cidade e de
sua singularidade. Cada cidadão tem vastas associações com alguma parte de sua cida-
de, e a imagem de cada um está impregnada de lembranças e significados. Para Lynch
“o design de uma cidade é, assim, uma arte temporal, mas raramente pode usar as seqü-
ências controladas e limitadas de outras artes temporais como, por exemplo, a música.
Em ocasiões diferentes e para pessoas diferentes, as seqüências são invertidas, inter-
rompidas, abandonadas, anuladas. Isso acontece a todo passo” (LYNCH, 1997, p. 01).
Murais, painéis, monumentos, ou mesmo esculturas de grande porte formam uma
arte de escala mais abrangente, na qual o artista mantém uma relação de integração com
um público muito maior, construindo, assim, a imagem da cidade e construindo o ima-
ginário das pessoas que ali habitam.
Neste contexto, o artista Raphael Samú, artista de origem paulistana radicado no
Espírito Santo desde os anos de 1960, encontra-se inserido na discussão da arte para
espaços públicos da cultura capixaba, seus mosaicos murais estão presentes na cidade e
na memória dos habitantes de Vitória.
Antes destas obras “invadirem” o espaço público, existe todo o processo de criação ar-
tístico que se inicia dentro do ateliê do artista. Portanto, a finalidade deste artigo é entender
um pouco o lugar onde Samú exerce sua criatividade artística, o qual reforça o conceito de
autoria centrada na figura do artista. Veremos também como a questão da autoria se aplica
aos trabalhos deste artista. Para subsidiar a observação deste espaço teremos como base o
ensaio intitulado A função do ateliê (1971), do artista francês Daniel Buren.

Sobre o artista
Raphael Samú nasceu em São Paulo, em 1929, sua mãe era romena e seu pai húngaro
e escolheram o Brasil para viver. Em 1948, um amigo de seu pai que já havia estudado
Belas Artes começou a lhe dar aulas de pintura e no ano seguinte, 1949, foi aprovado
para ingressar na Escola de Belas Artes de São Paulo.
318 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Durante sua vida acadêmica, Samú fez alguns cursos, tais como o curso de monitoria
para a II Bienal Internacional de São Paulo; o curso de gravura na Escola de Artesanato
do Museu de Arte de São Paulo, estudou gravura em metal com Mário Gruber; História
da Arte com Wolfgang Pfeiffer e xilogravura com Lívio Abramo. Formou-se em escul-
tura em 1955, na Escola de Belas Artes e em seguida fez um curso de litogravura com
Renina Katz, no Museu de Arte de São Paulo – MASP.
O contato com o mosaico ocorreu durante sua graduação quando ele fez uma via-
gem à Bahia e fez alguns croquis de uma feira local. Um desses croquis, feito a gua-
che, retratava a cena de uma pescaria. De volta a São Paulo, este desenho foi visto
pelo professor Joaquim da Rocha Ferreira, que tinha acabado de voltar de Ravena, na
Itália, que achou interessante executá-lo com a técnica do mosaico. Assim, executou
o seu primeiro mural em mosaico.
Em 1958 Samú foi contratado para trabalhar na divisão de mosaicos da Vidrotil, em-
presa fabricante de pastilhas de vidros (tesselas) fundada em 1947 em São Bernardo dos
Campos - São Paulo, onde ele trabalhou até 1961. O trabalho nessa fábrica foi de suma
importância para o seu aprimoramento nessa técnica. Lá, ele recebia projetos, ampliava
e supervisionava a execução dos mosaicos. Realizou, entre outros, mosaicos de Di Ca-
valcante, Lívio Abramo, Clóvis Graciano e Cândido Portinari. Aqui, nesta fase ainda
sobre a vida do artista podemos verificar que há uma tensão entre a autoria do objeto
plástico e sua produção. Durante esse tempo a serviço da Vidrotil, Samú é um executor
de projetos autorais de artista consagrados da arte moderna brasileira. Ele recebia os
cartões com a imagem da obra a ser executada, devendo realizá-la sem intervir em seu
processo criativo, ou mesmo reclamar sua autoria pela transposição da linguagem do
desenho/pintura no papel (cartão) para a linguagem das tesselas de vidro. Neste contexto
de separação entre a criação da obra e sua execução, entre o saber estético do artista e o
saber técnico do executor, foi sendo formada a concepção de autoria de Raphael Samú.
Porém, depois de longo período na Vidrotil, Samú decide seguir por conta própria e
lança-se em outras missões no campo da arte. Muda-se definitivamente para o Estado
do Espírito Santo com o qual já flertava há alguns anos como mosaicista.
Em 1961, no contexto da federalização, a Universidade Federal do Espírito Santo
precisava contratar professores qualificados, então, Raphael Samú e sua esposa Jerusa,
que também era artista plástica, candidataram-se a esses cargos. Seus currículos foram
aprovados pelo conselho da Escola de Belas Artes e, no ano seguinte, mudaram-se para
o Espírito Santo, onde ele lecionou até 1989.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 319

Do ateliê para a cidade

Figura 1: Mural da UFES (superior), Edifício Cauê (inferior esquerda), Edifício Aldebaran (in-
ferior centro) e Residência em Bento Ferreira (inferior direita). Fotografia de Marcela Belo.

Paralelamente às atividades didáticas, Raphael Samú deu continuidade ao seu tra-


balho como mosaicista no Estado. A chegada à cidade de Vitória coincidiu com um pe-
ríodo de crescimento urbanístico, quando um grande número de construções reclamava
uma decoração mais sofisticada, o que abriu para ele um excelente campo para seus
painéis em mosaico. Foi com esse trabalho que Samú tornou-se conhecido, executando
seus mosaicos em diversos locais, tais como edifícios públicos e privados, casas parti-
culares, escolas, escritórios, dentre outros (figura 1)
Ao transferir-se para o Espírito Santo Samú passou a investir em sua produção au-
toral, estreitando a relação obra/autor deixada um pouco de lado no período no qual
trabalhou na Vidrotil. Neste momento o artista, que adquiriu os conhecimentos técnicos
necessários nesta fábrica, passou a explorar sua própria linguagem plástica. Porém, esta
não era bem definida, transitava do abstrato para o figurativo com muita tranqüilidade,
atendendo assim as encomendas dos clientes. A partir de então, o artista firmou-se no
mercado capixaba empregando sua assinatura em diversos murais.
Em entrevista concedida pelo artista pudemos perceber as etapas do seu processo de
criação. Primeiramente ele recebe uma encomenda e pergunta ao cliente se há alguma
preferência específica pelo tema do mural, a partir de então ele cria o desenho, que é
submetido à aprovação. Caso afirmativo, inicia a confecção de um croqui em papel
vegetal, que posteriormente é ampliado para o tamanho natural do mosaico. A partir de
então inicia-se a montagem das tesselas.
320 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Todo o processo criativo da obra, incluindo a montagem das tesselas, é feito pelo
próprio Samú, diferentemente do processo da Vidrotil, na qual o artista entregava um
cartão com o desenho proposto e a fábrica ficava encarregada da sua montagem. Samú
somente terceiriza a mão-de-obra dos mestres de obras, que aplicam o mosaico pronto
à superfície desejada.
A exceção deste processo criativo dá-se na montagem do mural da Universidade
Federal do Espírito Santo (figura 1 – imagem superior). A disciplina Mosaico ainda não
fazia parte da grade curricular dos cursos presentes no Centro de Artes da UFES, mas
aliada à encomenda que recebeu do então Reitor (Máximo Borgo), de criar um mural na
entrada da Universidade, Samú interessou-se em dividir sua experiência com as demais
pessoas, portanto criou um projeto de extensão onde foi possível ensinar a técnica mu-
siva à diversas pessoas.
O artista criou um ateliê no Centro de Artes da Universidade e passou a trabalhar
neste espaço recebendo a colaboração de diversas pessoas na montagem do mosaico,
sendo estes: amigos, alunos, outros professores, técnicos administrativos e uma auxiliar
oficial, chamada Elisabeth M. Cabral. Curiosamente, este é o único mural, do qual temos
conhecimento, que Samú inclui outra pessoa na assinatura do mural (figura 2). Elisabeth
aparece apenas como auxiliar, ou seja, em momento algum compartilha a autoria da
obra, participa apenas do processo de execução do mosaico.
Raphael Samú afirma que as pessoas que o ajudaram neste processo tinham uma
visão muito fragmentada da obra, colocavam as tesselas sobre o desenho seguindo o
projeto fixado na parede do ateliê, mesmo sem identificar o desenho rapidamente, devi-
do à sua grande escala.
Mesmo recebendo a colaboração de diversas pessoas para a confecção deste mural,
as fotografias tiradas durante este processo (figura 3) demonstram um artista solitário,
tal qual no seu ateliê particular. Ele não possui em seu acervo particular fotografias de
toda equipe de trabalho.

Figura 2: Assinatura do mural Fonte: Fotogra- Figura 3: Ateliê montado no Centro de Ar-
fia de Marcela Belo tes - UFES. Fonte: Fotografias de Walace
Neves. Acervo de Raphael Samú
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 321

Esta obra estabelece relações com o momento histórico e o ambiente cultural no


qual o artista estava inserido, ou seja, dialogava diretamente com os acontecimentos da
década de 1970. A obra reflete diversas questões representativas da contemporaneidade:
a corrida espacial, a evolução da pesquisa científica, a criação dos computadores e a
moda. A concepção desta obra partiu de uma encomenda para a Universidade Federal do
Espírito Santo, portanto necessitava difundir os valores advindos da pesquisa científica.
A divulgação de tais valores era importante na conjuntura política do país, que neces-
sitava de mão-de-obra especializada para alavancar o crescimento econômico do país.
Portanto, esta transposição de imagens do dia-a-dia do artista para a obra solidifica ainda
mais o caráter biográfico da obra.
O ateliê do artista (figura 4) nos fornece indícios do caminho percorrido durante o
processo de criação de suas obras e reforça o aspecto autoral centrado no seu projeto
plástico e em suas experiências de vida, o que dá ao seu trabalho um cunho biográfico
e demarca um conceito de autoria subjetivamente construído. Encontramos livros, re-
vistas, jornais, desenhos, pinturas, gravuras, serigrafias, croquis, projetos de execução,
revistas em quadrinhos, fotografias de obras executadas e objetos de arte adquiridos nas
diversas viagens que fez durante sua vida. Seu ateliê é uma extensão de sua casa, é onde
o artista passa a maior parte de seu dia: produzindo, recebendo amigos e estudantes para
pesquisa, assiste televisão, escuta músicas, lê livros.

Figura 4: O atual ateliê do artista Fonte: Fotografia de Mariana Reis


322 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

O ateliê , diz Buren (2009), é o único lugar onde a obra de arte está realmente em
casa, portanto mais próxima de sua realidade. Para ele o ateliê funciona também como
uma espécie de “boutique” que curadores e revendedores visitam a fim de fazer suas se-
leções. Uma vez que essas seleções foram feitas, o trabalho é transportado para o museu
ou galeria, onde a sua “verdade” e “realidade” são perdidas (p. 112). Porém, vemos que
esta noção de ateliê – “boutique”- não se aplica muito bem no caso dos mosaicos murais
de Samú, pois ele trabalha a partir de encomendas, assim, suas obras são específicas para
cada local aplicado.
O autor define a função do ateliê da seguinte maneira: “1) É o lugar de origem da
obra. 2) É na maioria das vezes um lugar privado , que poderia ser uma torre de marfim.
3) É um lugar fixo onde objetos portáteis são produzidos” (BUREN, 2009, p. 110).
Assim, consideramos o ateliê como um elemento importante nas obras do artista,
enquanto “o lugar da criação”, que nos remete para outros territórios que ultrapassam as
quatro paredes da sua construção, e/ou como seu campo de trabalho.
Esse trabalho, longe de esgotar um assunto ou tema, pretende uma abertura ao uni-
verso do momento de criação da obra artística de Raphael Samú. Representa um esboço
da relação de autoria do artista e uma pequena reflexão sobre a ligação de seu processo
de criação e seu ateliê.

Referências
BUREN, Daniel. The Function of the Studio, In: ALBERRO, Alexander, STIMSON, Blake. Insti-
tutional Critique: an anthology of artists´writings. Cambridge: MIT, 2009.
LYNCH, Kevin. A imagem da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, [1960] 1997
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 323

Paisagens biográficas –
memórias pós-coloniais –
identidades colaborativas

Marcos Antônio Bessa-Oliveira1


UNICAMP - NAV(r)E – [email protected]

As criações colaborativas em pinturas pós-coloniais não se dão apenas por


uma memória histórica, por biografia única ou identidades estáveis. Tomando
quatro pintores sul-mato-grossenses – Wega Nery, Henrique Spengler, Jorapi-
mo e Ilton Silva – é possível constatar que as obras baseadas numa Aiesthesis
(Bio)Descolonial tomam biografias próprias e alheias, memórias históricas e
culturais e identidades alteráveis como corpus de produção. Assim, a partir de
uma noção de “cumbuca cultural”, podemos dizer que as biografias próprias e
alheias, memórias históricas e culturais, bem como as identidades transitórias
que constituem o espaço e as paisagens biográficas sul-mato-grossenses são
partes consideráveis dos processos de criação desses artistas. Palavras-cha-
ve: Biopictografia; Pós-colonialidade; Memória; Identidades.

The collaborative creations in paintings postcolonial not only give a historical


memory for biography single or stable identities. Taking four painters sul-mato-
grossenses – Wega Nery, Henrique Spengler, Jorapimo and Ilton Silva – it is
clear that the works based on a Aiesthesis (Bio)Descolonial own and others
take biographies, historical memories and cultural identity as changeable cor-
pus production. Thus, from a notion of “cultural cumbuca” we can say that
biographies own and others, historical and cultural memories and identities
that constitute the transitional space and landscapes biographical sul-mato-
grossense are considerable parts of the creation process of these artists.
Keywords: Biopictographs; Postcoloniality Memory; Identities.

1. Este trabalho é parte da pesquisa de doutorado, intitulada “Paisagens Biográficas como


Retratos da Cultura Local de Mato Grosso do Sul”, que o autor desenvolve sob a orientação
do professor doutor Mauricius Martins Farina.
324 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

“A originalidade da arte e do pensamento teórico latino-americanos se destaca, hoje, em função


da configuração privilegiada da latinidade como um lugar transnacional para o debate crítico
e acadêmico, depois da hegemonia do estado-nação.” (Holanda; Resende, 2000) (Grifo meu)

Muitos processos e poéticas artísticas ainda se resumem em mortes: do pintor, da


arte, da técnica da pintura em si quando se pensa na produção artística contemporânea;
ou no fim das narrativas, quando se levou em consideração a ideia de existência de uma
narrativa universal, por falta de linearidades, ainda que tomada a produção artística na
atualidade. Muitos processos, com isso, restringiram e ainda se restringem em traições,
assassinatos ou copiar e superar “modelos”. De algum modo é compreensível essa
questão ao se perguntar o sentido da pintura hoje, eximindo-a dessa relação com a morte
pictórica – cerrada na dualidade de história versus contemporaneidade –, diante da prá-
tica e dos múltiplos processos e poéticas das Artes Visuais nos dias atuais. Igualmente,
podemos nos perguntar qual representatividade da produção artística em pintura e quais
as relações possíveis na pintura atual se tomadas as mesmas perspectivas críticas histó-
ricas? Seria possível também indagar-nos das possibilidades distintas de seus processos
e poéticas, tomados logicamente como atos criativos, se desvincularmos a pintura de
dualismos com noções de mortes históricas ou se propusermos outras interpretações
possibilitadas por repertórios críticos que não façam correspondências entre antes e de-
pois (grafemos os termos antes(s) e depois(s) como plurais).
Igualmente problemático, são infinitas as outras possibilidades baseadas na relação
com o sujeito enquanto processo e poética pictóricas (ainda mesmo que tomássemos
outras práticas artísticas): de biografias (autorizadas ou não pelos biografados), auto-
biografias, histórias ou escritas de si, escritas do outro, memórias próprias e alheias,
heranças históricas, genética entre outras opções que grafam o bios do sujeito próprio
ou de sujeitos “estranhos” como corpus de narrativa. Alternativas que fazem dos pro-
cessos e poéticas artísticas serem transformados em práticas artísticas com autoria e/ou
repertório com definições quase improváveis. Quer dizer, ainda que não seja a intenção
desta pesquisa a antiga discussão de autoria artística, morte desses ou daqueles sujeito/
narrativa, a relação bio+grafia na produção artística na atualidade tem outras possibili-
dades interpretativas que às vezes escapam às leituras tradicionais. No entanto, a ideia
que se baseia nesta discussão toma essa noção de bios-grafados nas produções artísticas
de quatro artistas pintores sul-mato-grossenses como processos e poéticas colaborativas
de criação nas suas respectivas produções.
É dessa seara na história dos processos poéticos pictóricos que essa pesquisa visa
reelaborar um discurso crítico, fundamentado numa opção de aiesthesis (bio)descolo-
nial, para buscar uma outra compreensão da pintura – a partir dos processos e poéticas
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 325

– de quatro artistas nascidos na linha de fronteira geográfica em Mato Grosso do Sul:


Wega Nery, Henrique Spengler, Jorapimo e Ilton Silva.2 Um discurso crítico que, por
exemplo, a História da Arte – especialmente em Mato Grosso do Sul – nunca contem-
plou. Uma vez que almejo que consigamos “[...] pensar a pintura como ato de fronteira,
que, através de constantes e permanentes negociações com o mundo, determina seus
limites, tornando-se dessa maneira o encontro entre sua definição e sua indefinição”
(Hovayek, 2011, p. 15). Mas, entretanto, sem nenhuma submissão do agora ou depois
ao passado histórico artístico e muito menos fronteira como perímetro delimitador da
pintura. Do mesmo jeito, sem privilegiar a dicotomia entre um e outro lado para pensar
essa fronteira geográfica como processo e poética geo(bio)gráfica nas produções desses
artistas que têm em suas obras pictóricas não só suas identidades e memórias próprias
desse lugar lindeiro. Mas a de pessoas que passam, chegam, vão e vem por aquelas fron-
teiras que (de)marcam todas as bio-grafias expressas nas pinturas.

Figura 1. Pintura de Wega Nery (1912-2007) – Última Tarde Um Império em Chamas - 50 x


70 cm, óleo sobre tela, 1970

2. Sobre essa ideia de aiesthesis (bio)descolonial ver meu ensaio publicado na Revista Raído
(online: ISSN 1984-4018), do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFGD, semestre
Jul. / Dez. 2013, Número 14, cuja temática é Teoria e Prática do Discurso Crítico na América
Latina) intitulado “Paisagens biográficas descoloniais”.
326 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Wega Nery numa série de pinturas dos anos 1980 toma a paisagem pantaneira da
cidade de Corumbá, na divisa internacional do estado com a Bolívia, para criar obras
que retratam o bios da paisagem do Pantanal sul-mato-grossense. Nery parece retratar
com suas pinturas o “entrevero” político e do poder econômico entre as fronteiras tão
presentes na região. Uma verdadeira batalha cultural é travada naquele lugar. De um
lado da linha imaginária que é traçada pelas águas dos rios ficam os brasileiros com sota-
que boliviano e na outra margem não o é diferente em relação aos bolivianos que falam
com um sotaque português arrastado no espanhol. Artefatos das culturas se misturam
em intensidades quase como se dão os enlaces pessoais; porque o primeiro parece se dar
de maneira maior e incontrolável por qualquer forma de poder ou política. Ainda que
existam os limites pré-estabelecidos como fronteiras. Entre “revoltosos” e “agressivos”
manejos gestuais e cores intensas, aplicadas nas telas que servem como suportes, obras
e paisagens parecem muito próximas da realidade bio(geo)gráfica do lugar. Nas telas da
artista, as cenas de guerras por que passaram aquelas pessoas se presenteficam pelas (re)
voltas da pintura.

Figuras 2. 3. 4. Pinturas de Henrique Spengler (1958 - 2003) – da Série “Unidade Guaicuru


d’Cultura”. Técnica: Acrílica sobre tela, 1987

Já Spengler tomou em toda sua obra a iconografia kadiwéu que “cicatrizava” na pele
o bios de cada sujeito daquela etnia. Próximo ao ato de circuncisão freudiana que marca
o sujeito para alémvida como uma insígnia particular (Derrida, 2001). A iconografia
étnica kadiwéu na obra de Spengler parece literalmente retratar as peles dos campesinos
que residiram “livremente” no Brasil por um bom tempo na fronteira sul do antigo Mato
Grosso. Lócus geográfico na região Centro-Oeste brasileira que repartido em 1977 deu
origem ao atual estado de Mato Grosso do Sul. As pinturas faciais de desenhos geome-
trizados, adaptados pelo artista com cores das terras da cidade morena, são objetos de
inspiração investigativos antropológicos, críticos e artísticos (como fez o próprio artista
em todo seu percurso poético e processual) faz muitos anos. Corrobora essa afirmativa o
fato de que os mesmos desenhos Kadiwéu largamente utilizados pelo artista terem sido
estudados, ainda que de maneira muito estrutural, pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss
ao afirmar que
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 327

Esta técnica tão característica, que se reencontra na arte da China arcaica, entre os primitivos
da Sibéria e na Nova Zelândia, aparece também na outra extremidade do continente america-
no, entre os índios Kadiwéu. Um desenho que reproduzimos aqui representa um rosto pintado
segundo o uso tradicional das mulheres desta pequena tribo do sul do Brasil, um dos últimos
vestígios da nação outrora florescentes dos Guaikurú. (LÉVI-STRAUSS: 1996, p. 285).

A passagem de Lévi-Strauss é sintomática dessa discussão considerando a proposi-


ção de que culturas subalternas, mesmo na contemporaneidade, ainda que atualizando
algumas discussões propostas pelo antropólogo a partir de estudos sobre culturas his-
tóricas, ancorado exclusivamente nos conhecimentos científicos, sempre têm tendência
de organizar as sociedades. Assim podem, do mesmo jeito, (des)organizar essas culturas
ao que se refere à instituição de uma ideia de identidade artística local. Se valendo dos
métodos (especialmente Modernos) essas ciências podem organizar essas sociedades e
suas práticas artísticas baseados em modelos tradicionais, desorganizando, vamos dizer
assim, sua rotina sociocultural local. Ou seja, apenas um reposicionamento histórico-
cultural das leituras nas proposições linguísticas, antropológicas, filosóficas, históricas,
sociológicas, etnológicas, entre outras ciências constituídas na modernidade, pode con-
tribuir na atualidade para podermos pensar as culturas periféricas, como Mato Grosso
do Sul, por exemplo, com especificidades em seus processos e poéticas artísticas. Uma
possibilidade também, quem sabe, desses lugares serem pensados como produtores e
compartilhadores de práticas culturais e de conhecimentos indistintos de organização ou
desorganizados da ótica sempre eurocêntrica.

Figuras 5. Pinturas de Jorapimo (1937 – Figura 6. Pintura de Ilton Silva (1943) - da


2009) – S/T e S/D “Série Itaúna”, s/t, 2010

Se detendo no que há de mais característico na paisagem biográfica pantaneira sul-


-mato-grossense, campesinos de toda natureza (histórica, geográfica, social e política),
Jorapimo pintou com um “realismo” “impressionante”, literalmente, dias de rotinas da
vida da e na fronteira entre Brasil-Bolívia. Na cidade de Corumbá (do lado brasileiro da
fronteira), às margens dos vários rios que “caldam” a região levando e trazendo fron-
teiras moveis e líquidas, as lavadeiras, pantaneiros, brasileiros e bolivianos do artista
(em)cenam as telas do artista, quase sempre em acrílica pintadas com cartão de plástico
328 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

quebrado e aquarelas sobre tela e papel, dedos e pincéis. Jorapimo retratou as identidades
variáveis (Hall, 2006) de lavadeiras, pantaneiros, sul-mato-grossenses, bolivianos, para-
guaios, entre outras, que corroboraram a sua e as obras de outros artistas que têm na pele
a “marca” autoral da exclusão colonial histórica e da pós-colonialidade contemporânea.
Ainda mais representativo disso tudo, desse grosso caldo cultural de biografias co-
laborativas nos processos e poéticas desses artistas, é o “reservatório” cultural, se posso
dizer assim, de onde Ilton Silva diz retirar grande parte, se não tudo para o seu repertório
de processo e poética pictural. Especialmente na “Série Itaúna”, mas na sua obra como
um todo, Ilton Silva pinta ainda hoje se valendo do que ele próprio nominou carinho-
samente de “cumbuca cultural”: uma mistura de tudo que forma, (trans)forma ou cons-
titui a cultura do estado de fronteiras “guardadas” como poética e processo de criação.
Quase magicamente os artistas parecem ter retirado dessa “cumbuca”, e ainda o faz no
caso de Silva, todo o universo (particular) das suas obras pictóricas. Insistindo para não
inscrever esses artistas na ideia de movimentos artísticos históricos que retoma noções
de mortes, datas, anterioridades, antecessores, cópias ou modelos, que sempre tomam a
Europa ou os Estados Unidos como contrapontos, cada um a seu modo, retirou colabo-
rações biográficas e geográficas dessa cumbuca e as “imprimiram” nas telas.
Já que a performance da cumbuca cultura é colaborativa no que tange o seu reperto-
rio de memórias e arquivos culturais; ou seja, nesse “reservatório”, tudo que é da ordem
do bios-geo-gráfico encontra-se armazenado, a espreita de ser (des)arquivado a qualquer
momento, pelo artista que a partir dali queira criar processos e poéticas artísticas. Como
metáfora de uma mala e/ou baú de viagens, dentro estão as memórias anarquivadas
(Derrida, 2001) de cada sujeito que por ali transitou em algum tipo de viagem, passa-
gem, paragem ou passeio. E nesse caso, se tornam repertório inesgotável para as pro-
duções culturais que dali erige e trabalham, como pintura de paisagem e memória, com
repertórios de lembranças e/ou esquecimentos por algum percalço das vidas próprias e
alheias. Diante disso, cada revirada nessa cumbuca cultural da cultura sul-mato-gros-
sense evidencia memórias culturais cada vez mais esquecidas pelo tempo. Logo porque,
esquecer é lembrar, como vaticinou Clarice Lispector em algum momento.
A afirmativa de Ilton Silva, nesse caso, se torna tão importante e adequada para
pensar os processos e poéticas desses quatro artistas, igualmente as suas pinturas todas
(Nery, Spengler, Jorapimo e Ilton Silva), porque todos fizeram presentificar, de algum
modo muito particular, essas memórias e histórias do lócus cultural sul-mato-grossense.
Já afirmei sobre as pinturas de Wega Nery, Henrique Spengler e Jorapimo, cada um re-
tratou suas imagens das fronteiras a partir de suas perspectivas biográficas e geográficas,
e para Ilton Silva a matéria não o é diferente. Na “Série Itaúna”, produzida pelo artista
nos anos 2010, um dos meus objetos de ilustração artística de exploração crítico-cultural
pós-colonial nesta pesquisa, cenas da infância do artista, representações escultóricas da
obra artística materna (filho de Conceição dos Bugres retrata várias das esculturas de
“Bugres” feitos de raiz de mandioca pela mãe), paisagens pantaneiras e imagens vistas
apenas na linha de fronteira entre o Paraguai e o Brasil nas cidades de Ponta Porã (do
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 329

lado brasileiro) e Pedro Juan Caballero (no lado paraguaio) compõem os E S P A Ç O


S pictóricos daquelas pinturas.
Igualmente nas obras dos outros artistas citados, varias cores do local se fazem presen-
te nessas pinturas. A exemplo do negro imperante das pedras-pretas que em Tupi-guarani
nominam treze pinturas que compõem a “Série Itaúna” de Ilton Silva (doze divulgadas no
site do artista e uma obra que faz parte do meu acervo pessoal), especialmente, com man-
chas pictóricas que (de)marcam paisagens de vidas bio(geo)grafias desses sujeitos que
“nesse processo de escrita, sujeitos fraturados compartilham da construção de biografias
e se disseminam na rasura das assinaturas e no embaralhado dos textos.” (Souza, 2002).
Como se fossem um só corpo, pinturas, identidades, sujeitos e paisagens biográficas e o
lócus geográfico de enunciação (a fronteira ao sul do estado) se fazem e desfaz nas telas
desses quatro artistas. Variando do branco intenso, da última série de pinturas iconográ-
ficas de Spengler, passando pelo colorido vibrante contínuo de Wega Nery e Jorapimo,
às manchas de pretos de Ilton Silva, vermelhos, verdes e amarelos num fundo, quase
sempre branco, o fato é que as pinturas desses artistas carregam as memórias, histórias e
biografias retiradas da cumbuca cultural de Mato Grosso do Sul.
Sem se apegar a noções de pertencimentos, ideias de propriedades ou pré-concebi-
das, esses artistas tangem biografias que, qualquer ideário crítico que busque ou se paute
em verdades que devem ser comprovadas, não podem ser visualizadas. Nesse caso, de
felicidades e infelicidades, voluntária ou involuntariamente, das cenas dos E S P A
Ç O S urbanos ou paisagens biográficas, as pinturas felicitam os observadores com o
que está mais na ordem do admirado de que falou Jacques Derrida. “Nunca falo do que
não admiro [...]”. (Derrida, 2004), mas, penso também, que não consigo me livrar da
memória do que me apela pelo lado do que pode ou quer negado. Certeiramente, Clarice
Lispector disse que “às vezes a vida volta” (Lispector, 1979), como num ato de posses-
são que apenas as memórias, também de ordem (in)voluntárias, (des)arquivam-se.
É que, em certo sentido, as identidades significam o (auto)reconhecimento que faz
uma pessoa ou um grupo de sua inscrição em uma rede imaginária que o sustente (dê
seu pertencimento a uma armação de sentido). Porém as redes, as armações, se levantam
em diversos níveis: na região, na cidade, no bairro, na religião, na família, no gênero,
na sexualidade, na raça, na ideologia, etc. Por isso, as referências a prática individual ou
coletiva, os lugares da memória, se situam em dimensões que não podem ser enclausu-
radas em torno a uma só questão e que constantemente se sobrepõem em vários estratos
variantes. (Escobar, 2000) (Tradução livre minha)3

3. “Es que, en cierto sentido, las identidades significan el (auto)reconocimiento que hace una
persona o un grupo de su inscripción en un red imaginaria que lo sostiente (de su pertenencia
a un armazón de sentido). Pero las redes, los armazones, se levatan en diverses niveles: la
región, la ciudad, el barrio, la religión, la familia, el género, la sexualidad, la raza, la ideología,
etc. Por eso, las referencias a la práctica individual o colectiva, los lugares de la memoria, se
sitúan en dimensiones que no pueden ser clausuradas en torno a una sola cuestión y que
constantemente se superponen en varios estratos vacilantes.” (Escobar, 2000)
330 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Também em Mato Grosso do Sul, essa rede imaginária situada nas linhas de frontei-
ras, sustentam os grupos de sujeitos biográficos que estão estampando e são estampados
nessas pinturas. Do mesmo modo a “cumbuca cultural” de Ilton Silva é colaboração
irrestrita de memórias e histórias locais para essas pinturas e artistas. Se de alguma
forma as paisagens naturais contribuíram para as pinturas com o exotismo natural das
regiões fronteiriças e pantaneiras, do mesmo jeito as identidades, memórias e histórias
subalternas são sobrepostas e fazem sobreposições processuais e poéticas, do bem ou
do mal quereres, nas pinturas e paisagens biográficas e E S P A Ç O S para esses
sujeitos/artistas.

Referências
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Claudia de Moraes Rego.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã: diálogo. Trad. André Telles,
revisão técnica Antonio Carlos dos Santos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
ESCOBAR, Ticio. “Identidades en tránsito”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de; RESENDE,
Beatriz. (Orgs.). Artelatina: cultura, globalização e identidades. Rio de Janeiro: Aeroplano,
2000, p. 170-192.
HALL, Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade. Trad. de Tomaz Tadeu da Silva, Guara-
cira Lopes Louro. 10 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de; RESENDE, Beatriz. “Nota dos organizadores”. In: HOLLAN-
DA, Heloisa Buarque de; RESENDE, Beatriz. (Orgs.). Artelatina: cultura, globalização e
identidades. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000, p. 08-10.
JORAPIMO. Imagem Gravura, s/t; Técnica: Acrílica sobre papel; Medidas: 60 x 80 cm. Disponí-
vel em: http://clebermolduras.com.br/?atr=12 - acessado em: 13 de março de 2013.
LÉVI-STRAUSS. Claude. “O desdobramento da representação nas artes da Ásia e da Améri-
ca”. In: _____. Antropologia estrutural. Tradução de Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires.
Revisão etnológica de Júlio Cezar Melatti. 5ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996, p.
279-304.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H.. 7. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
NERY, Wega. Pintura “Paisagem Imaginária”. Técnica: óleo sobre tela - Medidas: 60 x 72 cm.
Assinatura: canto inferior esquerdo e dorso. Data: 1976. Disponível em: http://www.tableau.
com.br/ - acessado em: 15 de março de 2013.
SILVA, Ilton. Pintura da Série Itaúna. Disponível em: www. iltonsilva.com.br – acessado em: 01
de agosto de 2012.
SPENGLER, Henrique. Título: “Unidade Guaicuru d’Cultura”. Autor: Henrique de Melo Spen-
gler. Ano: 1987. Disponível em: http://www.ufgd.edu.br/galeria/exposicao-mitos-na-ufgd/
dsc-1068.jpg/view - acessado em: 15 de março de 2013.
SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. (Humanitas).
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 331

Des-escrevendo

Maria Heloisa Angeli


UNICAMP – [email protected]

Esse ensaio consiste em uma análise focada no elemento cromático do traba-


lho de arte Des-escrevendo, desenvolvido a partir da apropriação de três dos
meus diários pessoais antigos. Foram considerados seus aspectos técnicos
e conceituais, como: o apagamento do texto por meio da aplicação de tíner,
o método utilizado para esse procedimento, as implicações da origem dos
textos e do ato de apagá-los e a simbologia da cor azul, empregada predomi-
nantemente neste trabalho.
Palavras-chave: Arte contemporânea, desenho, processo da criação, livro de
artista, diário.

This essay is an analysis focused in the chromatic element of the art work
Des-escrevendo (Un-writing), developed from the appropriation of three from
my old personal diaries. In this analysis, have been considered the art work
technical and conceptual features such as: deletion of the texts by applying
thinner, the method used in this procedure, the implications from the text’s
origin and the text’s deletion, and the blue color’s symbology, predominantly
used in this art work.
Keywords: Contemporary art, drawing, creation process, artist’s book, diary.
332 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Considerações iniciais
Diários são documentos pessoais ligados à intimidade de quem os produz. Na maioria
das vezes são destinados a retratar experiências cotidianas, sonhos e desejos, mas tam-
bém frustrações, medos e angústias. O leitor dos textos escritos em um diário geralmen-
te é apenas o próprio escritor, em raros casos esses textos são compartilhados com um
amigo próximo. Assim sendo, o diário é um suporte que recebe registros que não serão
compartilhados nem veiculados e expressos em outros meios de comunicação e de arte.
Durante o período de 2001 a 2006 desenvolvi sete diários. Eram cadernos de folhas
pautadas, comprados prontos em papelarias, normalmente não maiores que 15x21cm.
O conteúdo dos textos de meus diários envolvia relatos de experiências cotidianas, ano-
tações sobre reflexões e divagações a respeito do estar no mundo. Nessa época escrevia
constantemente, pois objetivava registrar o máximo possível em uma tentativa de vencer
o tempo, permanecendo no texto a pessoa que eu era, por mais que na realidade eu mu-
dasse com o passar do tempo.
Em 2008 deixei de escrever em diários e gradativamente a existência deles virou
um incômodo, pois sentia-me presa ao passado por conservar esses relatos. Somente
em 2010 esses objetos foram retomados com a intenção de destruir o registro dessas
memórias, tornando os textos ilegíveis. Foi uma escolha feita com cautela, pois dentre
as opções viáveis de destruição e de descarte dos diários optei por apropriar-me desses
objetos para transformá-los em suportes e materiais de trabalhos de arte.
Des-escrevendo foi o nome dado ao conjunto de três trabalhos desenvolvidos com
os diários. Seus textos foram tornados ilegíveis a partir da aplicação de tíner, que os
transformou em manchas. A partir desse procedimento técnico a desconstrução tornou-
se o elemento-base desse trabalho, sugerindo alguns questionamentos: Por que apagar
ao invés de rasurar, queimar ou destruir de outra maneira? O que significa proceder
apagando esses registros íntimos? Qual foi o critério de seleção dos três diários dentre
os oito existentes?
A ação de apagar os textos dissolveu a palavra e a escrita. Ora formou áreas de
manchas de cor, ora resquícios de frases e palavras. Esse movimento de apagamento do
texto guiou o desenvolvimento de todos os trabalhos daquele momento e aproximou a
escrita da imagem. Nos diários essas relações de proximidade entre dois campos de ex-
pressão foi explorada considerando que os textos desconstruídos e as palavras diluídas
deram origem a imagens de cor azul. Diante desse azul percebi que Des-escrevendo é
o trabalho no qual a informação cromática é mais significante, de forma que surgiu a
necessidade de investigar a presença da cor nos diários.
Para este ensaio, parte de uma pesquisa em andamento, selecionei da série dos diá-
rios pessoais aqueles que foram escritos com caneta esferográfica azul e preta, pois
este é o material comumente utilizado para escrever à mão e estas são as cores mais
escolhidas para esse fim. A mancha de azul aliada à diluição da escrita e da palavra trou-
xe-me alguns questionamentos, como: que efeito plástico é esse da cor sobre os diários
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 333

e principalmente, que cor é esse azul capaz de evocar sentimentos de prazer e de não
prazer no leitor e mesmo em mim?
O presente texto faz parte de uma parte da pesquisa de mestrado em andamento, cujo
foco é a análise e o desenvolvimento de meus trabalhos de arte, que abordam a proxi-
midade entre escrita e imagem, e vem sendo desenvolvida no programa de mestrado em
artes visuais da UNICAMP desde o segundo semestre de 2012.
As fontes para este ensaio são três diários que fazem parte da série Des-escrevendo
(2010) e o desenvolvimento de um processo da criação que envolveu a técnica da dilui-
ção e teve como resultado a elaboração de um novo trabalho de arte, Diário em Azul,
desenvolvido em 2012 em conjunto com este ensaio. Utilizo como referencial teórico
para análise cromática deste estudo a teoria da cor apresentada por Luciano Guimarães
e os estudos sobre cor e emoção de Eva Heller.

A escrita e a cor azul


Para tratar da cor faz-se necessário definir alguns termos que serão encontrados ao longo
do texto: cor – todos os estímulos visuais cromáticos; matiz – os estímulos cromáticos,
excluindo o branco e o preto; tom – variações de uma cor em razão da luminosidade ou
da saturação; claridade – qualidade que provoca variações de uma cor por meio do acrés-
cimo de branco ou preto; saturação – pureza de um matiz ou a impureza desse, quando
tende ao cinza e torna-se “apagado”; luminosidade – termo referente à quantidade de luz
que é refletida por uma cor (sendo o branco é a cor mais luminosa e o preto a menos).
A cor utilizada em Des-escrevendo foi a azul. A diluição da tinta presente nas páginas
por meio das palavras foi heterogênea, há pontos nas folhas onde a cor está mais clara,
pelo acréscimo do branco do papel, e pontos onde está mais escura pois a tinta se concen-
trou ali. Ainda é possível ler palavras que não receberam tíner o suficiente, e há páginas
onde o texto foi gravado no papel devido à pressão da caneta. Em decorrência desse efei-
to estético considero que o trabalho remete à relação humana com a passagem do tempo
e com a memória, pois conforme o tempo passa nossas lembranças perdem a clareza.
Considero também que a escrita é um registro de precisão apurado, capaz de pos-
sibilitar a superação de barreiras geográficas e temporais, acessando relatos e ideias de
autores falecidos, ou que moram em lugares distantes, da mesma maneira que acessa-
mos textos de autores contemporâneos e conterrâneos. Metaforicamente, a escrita é uma
forma de parar o tempo. Portanto, apagá-la, dissolvê-la, é uma maneira de reiniciar o
movimento do tempo, desembaraçando-se da necessidade de tentar preservá-lo estático.
Devido ao significado de escrever e preservar o registro escrito é interessante con-
siderar que a ação de apagar é uma parte essencial do trabalho, tão importante quanto o
resultado em si mesmo.
O suporte do livro é um dos elementos importantes nesse trabalho, pois junto das pá-
ginas pautadas ele faz referência ao texto. Porém, as manchas nas quais as letras foram
transformadas também remetem a um texto. Para reforçar essa remissão selecionei para
334 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

a série final apenas os diários que foram escritos com caneta esferográfica de tinta azul e
preta. A seleção desse material se deve ao fato de que é o mais utilizado na escrita à mão.
A cor azul nos remete à paz e à calma. Segundo Eva Heller, o azul é a cor mais apre-
ciada e é associada ao frio, à confiança, à espiritualidade, à inteligência e ao feminino
(HELLER, 2007, p. 6-7). Mas as sensações proporcionadas pelo azul não provêm exclusi-
vamente de um conteúdo simbólico cultural. Existem razões biológicas para tal fenômeno.
Luciano Guimarães explica que somos capazes de enxergar cores devido à exis-
tência de células chamadas cones no olho humano. Tais células se concentram num
ponto do olho próximo ao nervo ótico denominado fóvea. Os cones possuem proteínas
sensíveis ao estímulo cromático, sendo possível para uma pessoa com a visão saudável
enxergar o espectro de cores com comprimento de onda aproximado entre 380 a 760
nanômetros. A visão das cores ocorre a partir da síntese aditiva: os cones são divididos
segundo o estímulo ao qual são sensíveis: ondas curtas (azuis), ondas médias (verdes) e
ondas longas (vermelhos); a combinação desses estímulos gera a percepção de todas as
outras cores. (GUIMARÃES, 2004, ps. 34-36).
Há variação na quantidade dessas proteínas, sendo que existem as mais sensíveis ao
estímulo dos matizes verdes e as menos sensíveis ao estímulo dos matizes azuis. Assim,
o estímulo da cor azul é brando, enquanto o do amarelo - matiz que, quando saturado,
excita a totalidade tanto dos receptores das ondas longas (vermelhos) quanto dos re-
ceptores das ondas médias (verdes) - é mais intenso e mais agressivo. (GUIMARÃES,
2004, ps. 34-36).
Uma das razões pelas quais o azul é tão utilizado na escrita é que por ser um estí-
mulo suave podemos nos expor a ele por muito tempo sem nos incomodarmos e, sendo
pouco luminoso, esse matiz cria contraste com o papel branco, que é a cor mais lumino-
sa, tornando fácil enxergá-lo.
É devido a esse estímulo suave provocado pela cor azul que ela é associada à paz, à
calma, à inteligência, à espiritualidade e é apreciada por muitas pessoas.

As possibilidades estéticas e conceituais da diluição


Durante a feitura de Des-escrevendo consta-
tei - nas primeiras experiências com diver-
sos tipos de solventes como água e cândida
- que é difícil diluir e manchar traços feitos
pela caneta esferográfica. Por isso precisei
recorrer ao tíner, um tipo de solvente mui-
to forte. A técnica utilizada para aplicação
do tíner consistiu em colocar um caderno
de cada vez, aberto no meio, sobre uma
Figura 1: página de um dos diários. Ima-
gem do acervo da artista. São Paulo, 2012.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 335

bandeja retangular de aproximadamente 40x30x3cm, e aplicar o tíner sobre as páginas,


abrindo em outros pontos aleatórios para a segunda e terceira aplicações, de forma a
todo o texto ser apagado.
A diluição da tinta foi heterogênea, as folhas que receberam o tíner diretamente
ficaram mais apagadas do que as folhas que receberam o solvente que penetrou pelos
papéis até atingi-las. Estas últimas apresentam um tom de azul mais saturado por terem
sido menos agredidas pela ação do tíner e por terem recebido a tinta que escorreu das
folhas que as sobrepunham. Não foi apenas a concentração de tíner recebido pela folha
que influiu na tonalidade de azul de cada mancha, mas também a quantidade de tinta
aplicada sobre o papel no momento da escrita.
Visando analisar detalhadamente esses resultados, produzi um experimento no qual as
quantidades de tinta de cada cor e tíner aplicado sobre as folhas foram controladas com
precisão. Foram testadas três diferentes quantidades de tíner, aplicadas sobre quatro
diferentes concentrações de texto (ou seja, de tinta da caneta esferográfica), sendo que
cada tipo de texto foi escrito três vezes com combinações diferentes de cores: azul, azul
e preto, preto.
Essa nova experiência com a técnica de diluir a tinta das canetas esferográficas pro-
porcionou um entendimento acerca da formação das manchas de tinta e de detalhes
técnicos gerais. Constatei que o controle da quantidade de texto (que está vinculada à
quantidade de tinta sobre o papel) e da quantidade de tíner produz resultados bastante
variados (Figura 2: As variações de intensidade de diluição de acordo com a quantidade
de tíner utilizada: pouco tíner, quantidade média e muito. Imagem do acervo da artista.
São Paulo, 2012).
Os efeitos produzidos pela variação nas quantidades dos materiais utilizados po-
dem ser explorados em relação a linhas não diluídas, ou combinados criando gradações.
A técnica pode ser utilizada para criar efeitos de apagamento gradual ou surgimento
gradual com apenas um papel contendo palavras ou imagens posicionado sobre outros
papéis no momento da aplicação do solvente, pois as folhas que recebem indiretamente
o tíner o absorvem e também apresentam manchas.
A absorção do material foi muito importante na composição de Des-escrevendo,
pois as folhas que constituem os diários não receberam o tíner uma a uma, mas em
conjunto. Dessa forma houveram folhas que receberam solvente indiretamente e esse
material se acumulou, carregando resquícios da tinta nas folhas que as sobrepunham.
Tanto em Des-escrevendo como no experimento com as folhas almaço a cor azul
foi escolhida por sua qualidade de remeter à escrita à mão. Contudo, para uma análise
detalhada do trabalho é preciso ir além da primeira razão que motivou essa escolha e
entender o azul como elemento de construção do trabalho finalizado.
A cor azul é associada a diversas qualidades em cada sociedade e meio cultural; uma
das associações que se aproximam do trabalho Des-escrevendo é o azul como um signo
da melancolia e da tristeza. Ela é encontrada na língua inglesa, na qual as expressões
got the blues (ter o azul) e I’m blue (estou azul) significam estar triste, e in a blue funk
336 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

denota medo intenso (HELLER, 2007, p.46). O azul é igualmente associado ao femini-
no e à água. Em diversas línguas existem nomes femininos derivados ou relacionados
à cor azul (Celestina, Celina, Saphira, Iris, etc) enquanto há poucos nomes masculinos
relacionados a essa mesma cor (HELLER, 2007, p.33).
Algumas das associações encontradas por Heller em sua pesquisa são citadas tam-
bém por Jean Chevalier e Alain Gueerbrant:

O azul é a mais profunda das cores: nele, o olhar mergulha sem encontrar qualquer obstáculo,
perdendo-se até o infinito, como diante de uma perpeétua fuga da cor. O azul é a mais imate-
rial das cores: a natureza o apresenta geralmente feito apenas de transparência, i. e., de vazio
acumulado, vazio de ar, vazio de água, vazio do cristal ou do diamante. O vazio é exato, puro e
frio. (...) O temor metafiísico torna-se, assim, um medo azul (fr. Une peurbleue), e passar-se-á
a dizer não vejo senão azul (fr. je n’y vois que dubleu) com o sentido de não vejo nada. Em
alemão, estar azul significa perder a consciência por causa do álcool. O azul, em certas práticas
aberrantes, pode até mesmo significar o cúmulo da passividade e da renúncia. (CHEVALIER;
GUEERBRANT 2012, p.107-109).

O azul, portanto, possui como qualidades a associação ao feminino, ao infinito


e à tranquilidade, mas também à passividade extrema, ao medo e à tristeza. Além do
tom de azul característico das canetas esferográficas remeter à estética da escrita, esse
matiz, por sua associação ao ideal e ao imaterial, provoca também a reminiscência à
perpetuação de informações que a escrita possibilita.
Constatamos que conhecendo a simbologia da cor azul e a maneira que a percebe-
mos como estímulo físico, é possível ampliar as possibilidades de leitura do trabalho
de arte Des-escrevendo considerando a informação que ela nos transmite de diferentes
perspectivas.

Considerações finais
O trabalho de arte Des-escrevendo foi desenvolvido com enfoque na relação entre escri-
ta e imagem. Contudo, foi constatado que sua interpretação vai além das considerações
surgidas em decorrência desse primeiro enfoque.
O presente ensaio demonstra que a técnica da diluição da tinta de caneta esferográ-
fica por meio do solvente tíner é uma técnica válida, que oferece diversas possibilidades
de soluções estéticas. Ela foi escolhida por estar de acordo com a temática da escrita
envolvida no trabalho, resultando numa composição estética harmônica que aborda a
proximidade entre escrita e imagem por suas relações gráficas e conceituais.
A concentração da análise no elemento cromático, a cor azul, como elemento de
construção do trabalho, proporcionou um recorte a partir do qual foi possível considerar
as qualidades estéticas e conceituais do trabalho de forma clara, na medida em que o
azul é um dos elementos centrais de Des-escrevendo.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 337

Finalmente, por meio da exposição das associações à cor azul que mais se destacam,
é possível a partir desse ensaio refletir sobre o uso dessa cor em outros contextos que não
apenas o trabalho Des-escrevendo.

Referências
CHEVALIER, Jean; GUEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 26ª ed.; 2012.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2ª ed., 2009.
GUIMARÃES, Luciano. A cor como informação: a construção biofísica, linguística e cultural da
simbologia das cores. São Paulo: Annablume, 3ªed.; 2004.
HELLER, Eva. Psicología del color: como actúam los colores sobre los sentiientos y la razón.
Barcelona, 2007.
338 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

A perspectiva ético-política
no “programa ambiental”
de Hélio Oiticica

Mariana Gomes Ribeiro


PPGECA/UFF – [email protected]

O Programa Ambiental de Hélio Oiticica se caracteriza por uma nova maneira


pensar o espectador, suas novas possibilidades de “estar no mundo”. Tendo
como ponto de inflexão os conceitos de Estetização da Existência, de Niet-
zsche e Foucault, pretendo mostrar que as questões ética e política são tra-
balhadas por Oiticica nesse projeto estético de maneira a aproximar Arte &
pensamento, Arte & vida e Arte & Política nas relações entre um indivíduo com
outro, com ele próprio e com as instituições, articulando de maneira radical as
ideias de autonomia e liberdade no que tange, especialmente, a relação entre
artista e espectador.
Palavras-chave: Programa Ambiental; Hélio Oiticica; Ética&Estética; Arte&Vi-
da; Arte&Pensamento.

The Helio Oiticica’s “Ambiental Program” is characterized by a new way to


think the spectator, their new ways to “being in the world”. Taking as a point
of inflection the Nietzsche’s and Foucault’s concepts of aesthetics of existen-
ce, I intend show that ethics and politics is worked in this aesthetics project
approaching art&thinking, Art&life and Art&Politics in the relations of a subject
with another one, with himself and the instituitions, by a radical articulation of
the ideas of autonomy and freedom, especially, in the relationship of artist and
spectator.
Keywords: Ambiental Program; Hélio Oiticica; Ethics&aesthetics; Art&Life; Ar-
t&Thinking.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 339

Artista ou Espectador?
Mesmo em correntes que defendem que a arte não tenha uma função específica ou deter-
minada (especialmente social), a potência da arte sempre esteve ligada ao efeito que ela
causa na sociedade, de diferentes formas. Dessa maneira, o espectador em sua relação
com a arte sempre teve um lugar central no debate acerca dessas práticas: diversos artis-
tas, teóricos da arte e filósofos se debruçaram sobre esta questão.
A segunda metade do século XX assistiu a uma mudança da estrutura global, que
culminou na mudança na forma de olhar, de viver e de estar no mundo. Essas mudanças
atingiram diversas balizas das áreas do saber: a história, a linguística, etc. Grande parte
dessa mudança se deve ao pensamento de Nietzsche. Tal pensamento questiona o dis-
curso que visa dirigir, iluminar a humanidade.
As concepções que Nietzsche tenta enfrentar têm como base a filosofia Platônico-
Socrática, a qual se estrutura a partir de oposições fixas. O pensamento de Nietzsche faz
referência a outros olhares, olhares fundamentados em eixos diversos, que repensam
o ser, propondo que este possa ser algo fluido, não-estável. As metas narrativas e suas
totalitárias noções de totalidade começaram a ser questionadas.
Em vista disso, a construção do indivíduo, de sua subjetividade, na sociedade con-
temporânea implica na observação e elucidação dos jogos de poder, das relações de for-
ça, no campo social. Entretanto, pensar práticas e discursos éticos e políticos demandam
uma visão do que seja o campo social e dos espaços-tempos possíveis para que esses
ocorram que extrapolem o senso comum. Ética e política se fazem e são pensados, tam-
bém, por corpos de saber que não apenas a filosofia política.
Das correntes mais recentes que pensam o aspecto ético e político da relação artista
e espectador na arte contemporânea, está aquela que vem a propor a participação do
espectador com a obra. Aqui, iremos pontuar brevemente dois desdobramentos dessa
corrente: o primeiro diz respeito àquelas práticas artísticas que se limitam a propor uma
participação mecânica, com possibilidade pré-definida, do que decorrerá nessa parti-
cipação. Isto é, são práticas que por mais que ofereçam uma experiência estética dife-
renciada, não oferecem a possibilidade de liberdade ao espectador para estabelecer sua
própria relação com aquilo que lhe foi proposto. São práticas que, de certa forma, estão
a arbitrar sobre o que cabe ou não ao espectador: mesmo participante da obra, ele não
tem autonomia para se posicionar diante àquela experiência e muito menos deformá-la
ou definir o que dela lhe cabe, seu papel está limitado ao de receptor.
O segundo desdobramento é aquele que se propõe a buscar um aprofundamento do
que seria esta participação do espectador. Essa participação se faz em algumas práticas
artísticas de maneira radical e autônoma: o espectador passa a ser parte constituinte da
obra. Nesse sentido, o interesse é pelo ser humano em relação a obra, em sentido amplo.
As obras são entendidas como meio para a vivência/experiência singular de cada indi-
víduo: agora, o papel do espectador não está mais limitado e este pode ser até mesmo
um co-autor (o que chamaremos aqui de partípice). Isto, pois, expande as possibilidades
de estabelecimento qualitativo e quantitativo das relações entre artista com o espectador
340 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

e do espectador com a obra. Dito de outra forma, não existe, nessas práticas, a estável
oposição entre artista e espectador ou obra e espectador, pois essas categorias são sem-
pre colocadas em uma zona de tensão e contágio.
No Brasil, alguns artistas foram pioneiros nesse tipo de prática. Aqui, o privilegiado
será Hélio Oiticica e o que ele chamou de Programa Ambiental.

Artista-agenciador
O carioca Hélio Oiticica é um dos mais importantes artistas contemporâneos do mundo.
Nascido em 1937, Hélio possui obras performáticas, pinturas, esculturas, escritos e, por úl-
timo, mas não menos importante, pensador e criador de mundos e possibilidades de existir.
Num primeiro momento, Hélio trabalha questão visual em relação com o tempo
(cor-tempo). Nas palavras do próprio artista, essa relação problematiza a cor-metafísica,
onde “o problema, pois, é o tempo e não o espaço, dependendo um do outro. Se fosse
o espaço, chegaríamos, novamente, ao material, racionalizado. A noção de espaço é
racional por excelência, provém da inteligência e não da intuição” (OITICICA, 1986).
Nesse momento o espaço pictórico é totalmente delimitado e satisfatório: a relação entre
quadro e sujeito se dava apenas pela análise temporal.
Hélio continua suas reflexões dizendo que quem figura algo, figura através de algo.
Isto quer dizer que a expressão linear, que não está baseada nas transformações estrutu-
rais, está sempre calcada numa concepção de suporte passivo, que não busque superar
ou transformar esse caráter estrutural passivo do suporte (OITICICA, 1986). Ele foi um
grande teórico e comentador de seus trabalhos. Desde sempre se mostrou muito cons-
ciente e lúcido sobre o que estava fazendo e o que pretendia com cada aspecto do seu
fazer. Seu intuito era estabelecer uma grandeza-cor, que conseguisse estabelecer o que
ele chama de expressão total.
Para ele, a técnica ou o processo que dava gênese à suas obras correspondia ao que
a arte expressa. Nesse sentido, a mudança que se dá quando ele se propõe a estabelecer
a grandeza cor é “uma mudança na concepção de pintura como tal” (OITICICA, 1986).
Essa grandeza cor, segundo ele, não é a formulação das bases físicas ou psíquicas, mas
a inter-relação dessas duas com o que quer que a cor expresse, aquilo que define cada
parte se ligando à outras em continuidade. Isto é, “o uso de elementos pré-fabricados ou
não que constituem as obras importa somente como detalhe de totalidades significantes”
(OITICICA, 1986).
Em 1965, Hélio passou a frequentar a favela da Mangueira, à época, uma pequena
comunidade da zona Norte do Rio de Janeiro. Ao subir o morro, esse lugar já marginal,
que ele escolheu seu lugar como ser individual e social: ser marginal para ele significava
abandonar as estruturas sociais e buscar seu lugar de homem-total-no-mundo.
Nesse sentido, num segundo momento, ao tentar estabelecer a grandeza-cor,ele fez
um adendo à relação cor-tempo: suas reflexões se voltam para a relação entre a cor e o
espaço (cor-estrutura). A proposta é a de uma prática que justaponha e dialogue horizon-
talmente com o tempo e o espaço, este segundo agora composto pelos espaços pictórico
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 341

e “real” (espaço ambiental, para usar o termo de Oiticica). O duo sujeito-quadro não era
mais suficiente para que essa expressão total da cor se fizesse possível.
As obras de Oiticica, definitivamente, começam a se tornar espaços de vivência, pois
a arte que ele buscava (aquela baseada nas transformações estruturais) está sempre a se
opor ao caráter passivo do suporte. Sendo assim, o suporte é pensado não apenas em
seu caráter físico, mas sob a máxima de que este elemento suporte se faz como supor-
te-expressão, um elemento, segundo ele, intrínseco entre o espaço e a estrutura . Neste
ponto se dá a passagem do suporte-quadro e fosse para o suporte-mundo: na medida
em que se equilibra esses dois elementos (espaço[s]-tempo), a realização e a expressão
se expandem, fazendo, assim, com que a configuração estética cresça: o espaço virtual
recria e incorpora o espaço “real”, construindo um espaço-tempo que se faz virtual e
intermitente. A grandeza-cor, pensada por Hélio é aquela que é composta pelo tripé
visualidade-espaço-tempo.
Esse conflito do espaço pictórico com o espaço real faz emergir o que ele chama de
espaço ambiental. O espaço ambiental pensado por Hélio é onde a Anti-Arte se dá. A
anti-arte é, segundo ele, a compreensão de ser o artista um propositor de experiência(s):
o espectador agora não mais é um mero contemplador, ele é um partípice - parte consti-
tuinte e co-autor- da(s) obra(s).
A noção de mundo ambiental vem sinalizar a posição ética do programa ambien-
tal: um diálogo horizontal com o tempo e com o espaço; um diálogo horizontal com a
expressão e a realização individual e coletiva. Isto porque a experiência estética que se
dá no mundo ambiental está pautada em “relações que se podem chamar de ‘imaginati-
vo-estrutural’, que, por serem pensadas como elementos agenciais contínuos, implicam
possibilidades pluridimensionais que se dão entre a percepção e imaginação produtiva,
e estas duas, por sua vez, se retroalimentam” (OITICICA,1986). É uma interferência
de longo alcance no comportamento do espectador: desde o infinitamente pequeno até
o espaço arquitetônico, por exemplo, as ordens não estão estabelecidas a priori, mas se
criam segundo a necessidade nascente em cada experiência singular.
Isso não pode melhor ser exemplificado com sua obra Parangolé. Esta obra, como
outras, fruto de sua vivência/experiência pessoal no morro da Mangueira, demonstra seu
inconformismo estético, como dito acima. Mas ela se faz, ao mesmo tempo, como uma
escolha existencial ética e política. Isto porque, ao cruzar a fronteira entre o morro e o
asfalto, abandonar as estruturas sociais e buscar seu lugar de homem-total-no-mundo se
tornou imprescindível.
Os parangolés consistem em peças de vestimentas (estandartes, capas, bandeiras,
etc.), geralmente com camadas coloridas, feitas para as pessoas usarem, carregarem,
dançarem. A(s) cor(es) ganha(m) um dinamismo no espaço, um caráter literal de vi-
vência, permitindo o espectador vestir-se nela: em lugar de um mero contemplador, o
espectador se torna partípice (parte integrante da obra) e co-autor da mesma, pois a obra
se dá no exato momento em que espectador e peça se tornam um só em comunhão. Isto,
entretanto, é mais que fazer do corpo suporte da obra. Em seus escritos, Hélio deixa
342 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

bem claro que trata-se da “incorporação do corpo na obra e da obra no corpo”, isto é: a
encarnação da pintura no corpo e vice-versa. Se trata, pois, de descristalizar as distâncias
entre obra-espectador e espectador-criador, bem como extrapolar o próprio conceito de
arte: o espectador agora era atraído a uma opção que não estava cogitada nas suas expe-
riências convencionais cotidianas.
Deste modo, a prática de Hélio se aproxima da ideia de um artista-agenciador:
aquele que age calcado na ideia de construção de afeto e confiança e no otimismo na
“potência do devir revolucionário das pessoas” (DELEUZE, 1992).
Neste ponto, cabe trazermos reflexões que julgamos pertinentes para a análise do
que essa noção de Programa Ambiental e as práticas que a partir dela poderão se dar
fiquem mais claras. Essa aproximação se faz útil no ponto em que questiona o processo
de “coisificação” ou “falência” da experiência humana, coletiva e individual.
Com sua célebre frase “torna-te quem tu és”, Nietzsche, aos mais desatentos, pode
sugerir uma busca por uma essência que estaria dentro de cada um de nós. No entanto,
os jogos e armadilhas são, ao meu ver, um artifício para ensejar um pensamento que se
faça como contra-efetuação. Sendo assim, por exemplo, o conceito de eterno retorno
do mesmo em Nietzsche ganha um outro sentido: a operação de contra-efetuação se dá
na retirada da ideia de “retorno” do plano cosmológico e na colocação deste no plano
ético. Isto é, o que se repete são as escolhas e a diferença. É uma tentativa a todo tempo
de descristalização de práticas, idéias e a prioris, até mesmo em seu próprio discurso.
O tom do discurso nietzscheano é de ironia sóbria e traz consigo um inescapável
fator estetizante. Isto porque ele entende que existe um aspecto da razão que é revelado
pela potência do sensível. Nietzsche está, por assim dizer, pensando a existência como
fenômeno estético. Essa existência vivida como fenômeno estético não se trata em ne-
nhum momento de esconder ou fantasiar – no menor sentido possível do termo – através
de uma apreciação artística que aponte para o além-mundo, metafísico – assim como ele
pensava antes de romper com o pensamento de Schopenhauer e com a arte das obras
de arte de Wagner. Antes, trata-se de sair da posição de criatura e se tornar criador de
sua própria vida. É esse o embelezamento que Nietzsche está propondo, é esse o ponto
que nos interessa aqui: a arte como arte de viver, a vida mesma formulada como arte, a
arte mesma como possibilidade de uma vida satisfatória. Nesse sentido, a vida e a arte
estariam convergindo, não necessariamente para uma existência bela, mas para uma
existência onde a possibilidade de transformação da subjetividade seria o adubo primei-
ro para esse cultivo incessante de si.
Em Foucault, percebemos uma posição semelhante à de Nietzsche. Sendo assim,
Foucault declara: “O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte te-
nha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos ou à vida
(...). Mas a vida de todo indivíduo não poderia ser uma obra de arte? Por que uma mesa
ou uma casa são objetos de arte, mas nossas vidas não?”( FOUCAULT, 1992). Foucault
chama essa postura em relação a si mesmo de “estética da existência”. E, para ele,
essa estetização da existência, essa elaboração de si mesmo, não constitui um exercício
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 343

solitário. Ao contrário, o outro é constituinte do mesmo, pois se trata de uma ação ética.
Ou seja, em Foucault existe uma política da arte de viver, pois esta trata de trabalhar as
relações entre um indivíduo com o outro e com ele mesmo.
Foucault está, por assim dizer, pensando a ética como uma prática refletida da li-
berdade. Ele tenta evidenciar como o sujeito pode se auto-afirmar – e como ele se au-
to-afirmou durante os tempos – dentro de jogos de verdade. A ética, nesse sentido, está
ligada aos jogos de verdade. Não se trata, pois, de uma busca por uma essência humana
que estaria aprisionada por esses jogos, não se trata apenas de ver a ação coercitiva dos
mesmos. Se trata de pensar, conhecer e se munir de um certo número de regras e verda-
des – mesmo que para recusá-las – para se construir como sujeito.

Considerações Finais
A expressão total do Parangolé, a ação, a fruição in ato (seja ela visual, tátil e etc.), é que
propicia a vivência-total-parangolé. Isto é, ao lançar o espectador no mundo ambiental,
Hélio busca vincular a experiência estética à autonomia, permitindo, assim, que uma
percepção criativa singular a cada partípice se dê. Abrir, expandir e fazer surgir uma to-
tal liberdade de criadores e criaturas, ensejar fluxos móveis e agenciamentos diversos: a
vivência plurisensorial da obra radicaliza a experiência estética. É um deslocamento da
experiência do campo intelectual para o da experiência vivencial criativa. Nos diz que
Parangolé não é uma obra, mas um local, um espaço de vivência, onde a experiência
livre e autônoma se funda e se faz política e vital a um só tempo.
O Programa Ambiental de Hélio Oiticica é o otimismo e a crença de que o valor es-
tético não é apenas um trabalho técnico, mas uma ação que se faça diferente em relação
à realidade; aliás, que desnaturalize a própria noção realidade, especialmente aquilo que
castra e impede a imaginação e a criação. É nesse sentido que a prática artística de Oi-
ticica se aproxima dos conceitos supracitados. Trata-se de uma experiência estética que
expurga de si mesma de qualquer tipo de metanarrativa que a autoriza a arbitrar sobre
aquilo que o espectador deva apreender do que lhe é proposto pelo artista.
Ao se colocar como uma espécie de artista-agenciador, Hélio abre mão de qual-
quer posição de superioridade dada ao artista pelo pensamento ocidental e se coloca no
mesmo patamar de seus espectadores; não só reconhece a existência de vários tipos de
inteligências e de maneiras de partilhar o comum, como busca legitimá-las no momento
em que torna o espectador partípice (parte integrante e co-autor) de suas criações.
O Programa Ambiental, se materializa enquanto experiência estética no momento
em que se desmaterializa enquanto arte (tal qual o pensamento ocidental cristalizou):
uma experiência única e intransferível que faz a obra ser a própria ação de fazer a obra
e a vida a própria ação de construção de sentido(s). É a criação da vida com e pela
arte, e vice-versa.
344 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Referências
Nietzsche, F. Ecce homo. Porto Alegre: L&PM, 2003. Tr. Bras. de Marcelo Backes. ___________
. Além do bem e do mal ou prelúdio de uma filosofia do futuro. Curitiba: Hemus S.A., 2001.
___________ . O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992.
DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990), tr. br. de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora
34, 1992.
OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1986.
FOUCAULT, M. Ditos e Escritos III. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. 2ª. ed.
Organização e seleção de textos de Manoel Barros da Mota. Tr. bras. de Inês Autran Dourado
Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
_______________ . As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 345

Ateliê de artista: processo e criação


como documento nas artes visuais
na arte pública no Espírito Santo a
partir de um artista capixaba
Mariana Lugon
CNPq/ UFES – [email protected]

José Cirillo
CNPQ/FAPES/PPGA-UFES

Este texto é parte dos estudos que investigam a arte publica no Espírito Santo
a partir da década de 1990, estando norteado pela linha de pesquisa Arte,
Espaço e Pensamento do Programa de Mestrado em Artes da Universidade
Federal do Espírito Santo. O estudo em questão aqui trata de aspectos do
processo de criação do artista capixaba José Carlos Vilar. Investiga-se não
apenas a produção do artista, mas os bastidores da criação em seu espaço
do ateliê do artista - índice de processo de criação nele desenvolvido, foca-se
também no levantamento e inventário de seus outros documentos de processo
(arquivos, rascunhos, matrizes, tintas, maquetes, etc.) que são reveladores de
sua aproximação com o espaço da cidade e na produção de obras públicas.
Palavras chave: processo de criação; artista capixaba, arte pública;

Este ponéncia és parte de los estudios que investigan el arte público en La


Província del Espíritu Santo, Brasil, desde 1990, viculado a El Programa de
Maestría en Artes de la Universidad Federal de Espírito Santo. El estudio ocu-
pa de aspectos del estudio del proceso de creación del artista José Carlos
Vilar. Este trabajo, investiga la producción del artistay su proceso de creación.
Hacemos tambien un inventario de su obra y sus documentos del proceso
(archivos, borradores, matrices, pinturas, maquetas, etc.) que revelan su acer-
camiento al espacio de la ciudad y de la producción de obras públicasde sus
obras en el espacio colectivo.
Palavras clave: processo creativo; arte público brasileña; arte contemporáneo
346 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Introdução
Estudar o processo de criação via os documentos e arquivos do processo criador produzidos
pelos artistas plásticos contemporâneos, na Região Metropolitana de Vitória (ES), é uma
tarefa que nos leva a discutir o conceito de documento da criação. Compartilhamos aqui da
hipótese de que o lugar da criação, o espaço do ateliê, do artista pode ser pensado como lócus
de vestígios da criação, o que nos leva a pensá-lo como um arquivo ou um documento do
processo criador, pois permite perceber nuances da criação em ato (Cirillo e Grando 2009).
O objetivo deste estudo é investigar a arte pública no Espírito Santo a partir do
estudo do processo de criação do artista José Carlos Vilar, pretende-se também apro-
ximarmo-nos da investigação do ateliê do artista como índice do processo de criação
nele desenvolvido, buscando identificar nesse espaço características que nos levem a
classificá-los como documentos de processo; para tal e a partir do caso estudado, os
documentos de Vilar são identificados, classificados de modo a e ampliar o Banco de
imagens do processo criador do artista; esperamos assim contribuir para a compreensão
e o estudo sobre a arte pública contemporânea no Espírito Santo;
O trabalho de arte pública, direcionado para os espaços coletivos da cidade, também
tem sua interface com os espaços íntimos dos ateliês dos artistas. O atelier e a prática
artística são a origem de um processo criativo que, muitas vezes, se torna difícil para tra-
duzi-lo em palavras por ser constituído de uma narrativa íntima e, teoricamente, intrans-
missível do gesto criativo, ato esse, origem do objeto. Essa visão iluminista, entretanto,
alimenta a imagem romântica do artista como gênio e esconde que por trás de uma obra,
ou um conjunto delas, existem esforço e trabalho diários – como qualquer outro trabalho
conhecido. Além disto, os espaços de ateliê revelam nuances e índices do processo de
criação, revelando como elementos de próprio espaço de trabalho, ou mesmo de restos
e registros de obras anteriores contaminam os novos processos criativos: uma evidencia
de que existe uma possibilidade de simbiose entre a obra e o espaço onde ela é gestada.
Os ateliês são considerados um elemento importante nas obras da artista, na composição
da obra, mas principalmente enquanto elemento processual, de forte importância metodo-
lógica e estética. É o lugar da criação. O ateliê de criação se coloca como um verdadeiro
arquivo vivo, sendo mais que um fiel depositário dos rascunhos e restos de obras finalizadas:
esse espaço é dinâmico, é memória em ação (Cirillo, 2004). Para Lima (2007, p. 18), o ateliê
surge como metáfora: “O atelier é [...] muito mais que o espaço de trabalho. Muito mais do
que o espaço onde se tira as fotografias, onde se atende telefones, onde se organiza dossiers,
onde se desenha, onde se pensa.” Assim, estudar a arte pública capixaba, a partir desses
espaços de criação, é colocar em cheque o mito da genialidade, além de evidenciar a rotina
que envolve a criação artística e o movimento da mente criadora em busca do objeto da arte.
Neste projeto, procura-se encontrar algumas possibilidades de resposta para a refle-
xão sobre o processo de criação de obras para espaços públicos e intervenções urbanas
no espaço do ateliê, esse entendido como documento de processo, como algo que trás
em si as marcas indiciais do processo de criação dessas obras e revelando parte das de-
cisões tomadas pelo artista.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 347

O estudo aqui proposto está embasado na Crítica Genética, movimento que surgiu na
França, em meados do século XX – tendo chegado ao Brasil na década de 1980 - cuja prin-
cipal característica, segundo Cirillo e Grando (2009), consiste na investigação cientifica dos
documentos e arquivos do processo de criação, marcas indiciais da mente criadora em ação.
O estudo investigou algumas possibilidades de compreensão do processo de criação
como uma atividade dinâmica capaz de evidenciar as nuances da construção da obra. Os
principais arquivos depositários da informação aqui buscada decorreram, portanto, de
como o espaço influência o processo criativo do artista. O trabalho foi desenvolvido em
duas etapas concomitantes: a investigação do espaço pessoal de criação e a investigação do
espaço urbano de criação. Durante a segunda etapa, se iniciou a coleta de dados por meio
dos seguintes procedimentos: Coleta de documentos de processo a serem classificados, ca-
talogados, digitalizados e analisados; Depoimentos do artista (entrevista formal e informal),
que subsidiaram algumas das possíveis conclusões e pesquisa de fontes bibliográficas.
Os procedimentos da coleta, análise e crítica do material tiveram como referência
metodológica os procedimentos da crítica genética (Hay, 1999 e 2007; Grèsillon, 1994,
2007; Salles, 2000, 1998, Cirillo 2002 e 2004).

O artista
Natural do Espírito Santo, o artista José Carlos Vilar (Figura 1) nasceu em Aribiri, Vila
Velha onde morou boa parte de sua vida. Interessou-se inicialmente pela escultura atra-
vés do convívio com um artista popular de nome “professor Cretas”, que atuava nas
obras pavonianas no bairro de Santo Antônio. Dado o interesse pela arte, graduou-se em
Artes Plásticas em 1974, pela Universidade Federal do Espírito Santo. Já formado, in-
gressou na carreira didática e tornou-se professor da Universidade no ano de 1976, onde
permaneceu até 2012. Durante toda sua vida acadêmica, fez experimentações no campo
das artes plásticas, mas a paixão pela escultura sempre falou mais alto e paralelamente
as atividades didáticas seguiu a carreira de escultor que vai até os dias atuais.

Figura 1: “Criador e criatura”. O artista capixaba José Carlos Vilar com uma de suas obras no
espaço público.
348 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

O processo de criação do artista


Com a meta de identificar as questões recorrentes no processo criativo do artista e sua
relação com o ateliê, ficou evidente desde a primeira visita ao ateliê como funciona o
seu processo de criação.
A imagem geradora em sua obra parte de sua memória pessoal, de suas lembranças
afetivas e das influencias de fatores sociais, além de tudo que o cerca. Ele possui o há-
bito de fazer todo registro de seu trabalho no processo de criação da obra, e os registros
são feitos em cadernos, folhas avulsas, pastas e tudo que possa servir naquele momento
(figuras 02 e 03).
Esses cadernos de registros do artista ampliam em muito os territórios da memória
para além de sua capacidade de armazenamento de lembranças. Assim, ao recorrer a
registros passados, um desenho leva a outro, que leva a uma nova inspiração, a uma
antiga lembrança.

Figura 2: Caderno do artista. Figura 3: Esboços no caderno do artista

A compreensão do processo de criação do Vilar é observando nesses registros, e


logo identificamos uma característica pessoal de formas que se repetem em sua obra, do
esboço a maquete, tornando-as assim a sua identidade pessoal. Formas recorrentes que
dão vida a obras tão diferentes e únicas.
É a partir do seu registro que o artista parte para a confecção da maquete da obra.
Essa maquete feita em escala menor da obra final torna-se necessária, uma vez que
grande parte de suas obras são monumentais (feitas para o espaço público). Observando
essas maquetes em seu ateliê (figuras 04 e 05), nos leva ao questionamento se eles são só
o “produto da obra” ou se são a própria obra do artista. A perfeição com que são execu-
tados, não pode se considerar como apenas um “produto”. Mas muitas vezes, tornam-se
um, bem como apenas um registro da sua criação.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 349

Figura 4: Estante com obras/ maquetes no Figura 5: Obras/ maquetes no ateliê do ar-
ateliê do artista. tista.

Passada a etapa de maquete, o artista passa para a execução final da obra (figuras
06 e 07) que nem sempre é realizada em seu ateliê devida as proporções que a obra as-
sume. Essas obras são executadas em galpões metalúrgicos e isso por sua vez nos leva
ao questionamento da relação do artista com seu ateliê e com esses espaços (que será
discutido adiante).
Com base nessa pesquisa de criação no espaço do ateliê, passamos a encarar o pro-
cesso de construção da obra como resultado de um trabalho complexo. É um trabalho
progressivo, que vai atravessando diferentes etapas e que definitivamente não é realiza-
da a partir “do nada”. Ao nos depararmos com o processo criador, “as camadas super-
postas de uma mente em criação vão sendo lentamente reveladas e surpreendentemente
compreendidas” (SALLES, 2000, p. 14).

Figura 6: Maquete de uma obra do Vilar. Figura 7: Obra finalizada e já


alocada no espaço público.

O ateliê do artista
O registro do ateliê do artista evidencia que se divide o espaço igualitariamente com os
documentos de processo e sua concretização em madeira e metal (materiais escolhidos
pelo artista para esse fim), com os quais estabeleceu uma relação pautada por uma atitu-
de de pesquisa e de diálogo constantes.
350 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

O ateliê do Vilar, mais que um local de trabalho, é onde ele passa 90% do seu dia a
dia e assim, assume diferentes papeis. É o seu ateliê, mas também, é o seu galpão e seu
escritório. Ali está sua cozinha, seu computador portátil, sua sala de reuniões, é onde
ocorre todo seu processo de criação. Dentro desse contexto, faz-se necessário uma postu-
ra investigativa desse espaço do artista, para que haja uma desconstrução da visão idea-
lizadora do espaço, como aponta Marisa Flórido César na revista Arte e Ensaios, 2007:

Se aguardamos o momento excepcional da aparição de uma obra, ela também se mostra ali
em processo, inacabada, misturada na percepção cotidiana, entre os objetos do dia-a-dia, des-
protegida das molduras que a fazem, confundida ao senso comum. E logo percebemos que o
ateliê também encerra as exterioridades mundanas, a trivialidade da vida e dos dias comuns,
o ordinário das horas, a rotina do artista. (...) A natureza do ateliê é ambígua: ele pertence ao
universo artístico, mas é extrínseco à obra de arte. Como a moldura, insere-se nos domínios da
margem, dos apensos à obra de arte

Essa relação do artista com o seu ateliê nos leva ao questionamento do quanto isso
influência no seu processo de criação, uma vez que ele cria, no mesmo local em que
“vive”. As memórias e lembranças estão por toda parte, independente de em qual dimen-
são for e isso deixa o artista imerso nessa atmosfera de criação.
Outra particularidade do ateliê do Vilar é a sua relação com um galpão metalúrgico.
Devido ao metal que é recorrente em suas obras, o ateliê também assume esta função
operaria. E essa relação intima do artista com seu local de trabalho, faz com que ele
assuma também uma relação intima com o galpão metalúrgico que executa a sua obra
final. Passa a ser um local familiar para o Vilar, o galpão metalúrgico – externo ao seu
ateliê. Coloca-se como uma espécie de prótese topológica – uma extensão metafórica de
seu espaço íntimo de criação -, torna-se uma extensão do seu próprio ateliê.
Essa relação umbilical ateliê – galpão metalúrgico é percebida no próprio formato
do espaço do ateliê do artista (projetado pelo próprio Vilar – figura 08), no seu material,
no maquinário existente dentro do ateliê, as ferramentas utilizadas, etc. (figura 09 e 10)

Algumas considerações finais


Os resultados obtidos foram de acordo com os estudos realizados a partir da bibliografia
disponível. Foi observado in loco o que antes foi citado por Cirilo, 2010 que “O ateliê de
criação se coloca como um verdadeiro arquivo vivo, sendo mais que um fiel depositário
dos rascunhos e restos de obras finalizadas: esse espaço é dinâmico, é memória em
ação”. O ateliê do artista Vilar, é um exemplo disso, onde por toda parte encontramos
o registro de sua obra, seja em qual dimensão for, ou para qual fim foi realizada. É só
no espaço do ateliê que o pesquisador pode vivenciar a vida do artista e assim, captar o
máximo de seu processo de criação.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 351

Portanto, podemos observar a importância desses registros do processo de criação


do artista para a história da arte e principalmente, a arte capixaba (tão carente dessas
informações), e no caso da pesquisa, o estudo da arte pública capixaba.
Investigar o espaço do ateliê do artista Vilar, nos levou muito mais que o simples co-
nhecimento do seu trabalho, nos conduziu aos questionamentos sobre como o trabalho é
criado e executado, todo seu processo de criação, seu envolvimento com as obras e sua
relação com o ateliê.
A investigação de um processo, já nos remete ao inacabado e com isso, a pesquisa
constante de registros que nos leva as novas situações, novos questionamentos e novas
descobertas de um artista que tanto tem a oferecer a arte capixaba.
É importante salientar que pouco foi feito em apenas um ano de pesquisa e muito
ainda há de ser estudado para que possamos traçar um perfil do artista e a partir daí, o
perfil da arte pública capixaba a partir dos anos 1900.

Figura 8: O ateliê do Vilar visto de fora. Figura 9: O ateliê visto de dentro, Exemplifi-
cando as semelhanças com um galpão me-
talúrgico

Figura 10: Galpão metalúrgico onde uma obra do Vilar estava sendo executada
352 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Referências
CESAR, Marisa Flórido. (2007). O Ateliê do artista. In: Arte & Ensaios. Revista do Programa de
Pós graduação em Artes Visuais. Rio de Janeiro: EBA-UFRJ, ano XIV, nº 15;
CIRILLO, José; GRANDO, Ângela (Org). (2009). Arqueologias da Criação: Estudos Sobre o Pro-
cesso de Criação. Belo Horizonte, Com Arte.
CIRILLO, José. (2004). Imagem – Lembrança: Comunicação e Memória no Processo de Criação.
2004. 160f. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Universidade Católica de São
Paulo. São Paulo.
______. (2002). Pela Fresta: memória como matéria no processo de criação de Shirley Paes Leme.
Farol, Vitória: Ufes, ano 3, n.3, p. 61-73.
HAY, Lois. (1996). Pour une sémiotique du mouvemente. Gênesis, n. 10, 1996
______. (1999). A montante da escrita. Tradução de José Renato Câmara. Papéis Avulsos, Rio de
Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, n. 33, p. 5 -19.
______. (2002). O texto não existe: reflexões sobre a crítica genética. In: ZULAR, Roberto (Org).
Criação em processo: ensaios sobre a crítica genética. São Paulo Illuminuras, p 29-44.
LIMA, Francisco Cardoso. (2007). O Atelier Enquanto Lugar de Processo de Criação Artística.
2007. 110f. Dissertação ( Mestrado em Criação Artística Contemporânea) – Departamento de
Comunicação e Arte, Universidade de Aveiro. Aveiro.
SALLES,Cecília Almeida. (2000). Crítica Genética: uma (nova) Introdução. São Paulo: Educ.
______. (1994). Gesto Inacabado: Processo de Criação Artística. São Paulo: Fapesp/ Annablume,
1998. GRÉSILLON, Almuth, Elementos da Crítica Genética, Porto Alegre, UFRGS, tradução
Cristina de Campos Velho Birk.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 353

Na fibra do tecido,
a estampa do corpo nu

Nathália Mello
UERJ – [email protected]

O poder do discurso performativo é o tópico-chave investigado pela pesquisa


que se inicia. Acentuo como inquietação pricipal a tática engajada na constru-
ção do discurso e na sua comunicação. Apresentando minha persona perfor-
mática, corporalmente represento imagens para interpretações biológicas e
psicológicas para gênero como também para interpretações históricas e geo-
gráficas para pele. A fábrica de tecidos é um elemento concreto que situa meu
discurso no contexto representativo; entretanto, a performance a ser constituí-
da é um “ato em linguagem” que já performo aqui através da “incorporação de
normas de poder às quais me oponho”. (Butler, 1998)
Palavras-Chave: história, ficção, dobra, trabalho, imagem

The power of the performative discourse is the key topic explored throughout
this research. I highlight this central concern as a political strategy of construc-
ting a discourse and of specializing its delivery. Presenting my performance
persona, I physically represent images of biological and psychological interpre-
tations for “sex” and also historical and geographical interpretations for “skin”.
The fabric factory is a concrete element situate my discourse in the representa-
tive context; however, the performance constituted is an “act in language” that I
perform by “embodying the norms of power I oppose”. (Butler, 1998)
Keywords: history, fiction, wrinkle, work, image
354 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

“Every man that suffers is a piece of meat”


(Deleuze, 1981)

O cruzamento de duas temporalidades específicas atarraxam sensações corporais


correntes: um passado indígena, quase mitológico e um passado operário. Ambos passa-
dos se dão possíveis no presente por registros orais. Tais temporalidades são consecuti-
vas na minha fantasia de memória, uma história estranhamente linear, em que o trabalho
produz um ideal e um conflito com esse mesmo ideal. Esse ideal corrobora um entendi-
mento de identidade que é fundamental na produção de uma metodologia específica para
o trabalho artístico que se forma. Cada trabalho se funda em sua metodologia interna. A
identidade é um projeto aberto e a produção artística vai revelando seu caráter múltiplo,
expandido. A documentação pode ser usada para registro do processo criativo ou como
material de expansão. Sigo o caminho da opção descolonial e me atrevo a falar do meu
próprio processo criativo atual para a criação de “Na fibra do tecido, a estampa do corpo
nu”, um trabalho de costura e tecelagem entre tecidos, histórias de decadência industrial
dentro do Rio de Janeiro, corpo ex-rural, corpo ex-indígena. Forma-se um painel de
complexidades da convivência entre as diversas temporalidades e um produto artístico.
Imagino que tanto a história quanto a ficção estejam descritas, em suas similaridades
e versões, numa mesma página. Dobro essa página. Tento uma outra atividade: a de si-
tuar cada descrição – a da história e a da ficção - em duas páginas diferentes para depois
entrelaçá-las. A história não é, em nenhum dos casos, só background para a linguagem
criada, ficcional. No entrelaçamento ora o que está atrás aparece à frente ora surge por
detrás. Historicamente, tem-se a impressão de que a própria história vem, carregada de
influência imaterial, da esquerda para direita, numa linha reta onde o passado está por
trás. Os objetos do passado parecem ser de espuma, enquanto objetos de memória.

Um espaço de dobrar
A fábrica de tecidos é um espaço “inteiramente carregado de qualidades” e “povoado
de fantasma”. (Foucault, 1984) A fábrica não compreendia somente o prédio industrial.
A arquitetura do bairro onde cresceram as famílias de operários – contramestres, te-
celões, coloristas – era desenhada a partir do prédio industrial. À frente da Fábrica de
Tecidos Fluminense, estão, ainda hoje, os bangalôs de mestres de tecelagem, casas de
um só nível com muitos quartos para as famílias de quase ou mais de dez filhos. Essas
casas testemunharam a rotina do apito da fábrica. Nas redondezas, próximas ao prédio
principal da fábrica, ainda estão casas de dois níveis, com escadaria central, parede re-
servada para o retrato pintado de seu dono, casas geralmente reservadas para os chefes,
diretores, todas com aparência de jovem ruína. A estratégia da fábrica era manter seus
operários ao alcance do controle sonoro – Você que atende ao apito de uma chaminé de
barro, cantou Noel Rosa – e disciplinar do apito de barro, materialização explícita do
poder. (Focault, 1977)
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 355

Imagino a fábrica como espaço heterotópico, justapondo-a aos cinco príncipios de


Foulcault: as fábricas não estavam em só um lugar do mundo, foram um fenômeno da
revolução industrial de origem inglesa. Fato que nos direciona ao segundo princípio
– “cada heterotopia tem um funcionamento preciso e determinado no interior da socie-
dade, segundo a sincronia da cultura na qual ela se encontra”. A fábrica no Brasil teve
função de domesticar hábitos então profundamente rurais. A fábrica justapôs “em um
só lugar real vários espaços”; a fábrica reuniu seus operários para a produção, para o
trabalho; para o consumo de tecidos, alimentos e outras mercadorias básicas em geral
(os salários eram descontados diretamente, continuamente, os funcionários perdiam o
controle da sua própria recompensa); para a moda e o lazer, desfiles de alta e média
costura e campeonatos de futebol, febre entre operárias, operários, respectivamente. O
apito do juiz, lembrava o apito de barro, ambos exerciam funções muito específicas de
disciplina, entre elas, a da separação por gêneros.
Do quarto princípio; a fábrica como uma heterocronia: Foucault sugere que a hete-
rotopia funciona como um recorte no “tempo tradicional”. A fábrica-máquina ocupou
todo o tempo tradicional do operário. Imagine operários sonolentos em duas funções,
dobrando dia e noite, para dar conta de tantos filhos. O “tempo tradicional” coincidia
com as funções particulares. A fábrica-relógio isolou o homem comum de qualquer ou-
tra atividade não-conduzida. O tempo heterocrônico da fábrica foi o tempo do trabalho,
não houve tempo para sonho, viagem inesperada, visita à entes distantes, devaneio. A
vida do trabalhador da cidade dormitório, da baixada fluminense tornou-se alheia ao
que não é trabalho. Até o tempo de lazer era “liberado, estimulado e administrado” pela
fábrica. Ilana Feldman comenta sobre o “ócio produtivo” do trabalhador que o filme Pa-
cific de Marcelo Pedroso apresenta como “produto de um inesgotável trabalho”. (2011)
Mesmo na hora vaga, o trabalhador produz. Como avaliado pela experiência de Pacific,
hoje, o homem comum, o neto ou o bisneto da fábrica, foi deslocado para classes de
maior poder aquisitivo ou maior poder de crédito. Ele aprendeu a exigir mais crédito,
entretanto, a relação de dependência é de fundamento similar ou ampliado. Esse mesmo
homem comum urge em registrar tudo que não é oficialmente trabalho. Documenta-se,
por todos os ângulos, a era da construção de memória.
O quinto princípio define a heterotopia como lugar onde “só se pode entrar com uma
certa permissão” do patrão, sempre lembrado religiosamente como generoso, provedor,
poderoso. Coincide também como lugar que produz e presencia o rito de passagem do
homem, que como seu pai e seu avô, começava a trabalhar (seguindo a mesma profis-
são), casava-se com uma noiva decente, prosseguindo com a vida como ela devia ser. A
fábrica era espaço das obrigações sociais que mais pareciam naturais. A fábrica modelou
padrões familiares e subjetividades. As fábricas supunham “um sistema de abertura e
fechamento que, simultaneamente, as isola e as torna penetráveis”. A fábrica era um
espaço funcional. (Foulcault, 1984)
356 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

E talvez nossa vida ainda seja comandada por um certo número de oposições nas quais não se
pode tocar, as quais a instituição e a prática ainda não ousaram atacar: oposições que admiti-
mos como inteiramente dadas, por exemplo, entre o espaço privado e o público, entre o espaço
da família e o espaço social, entre espaço cultural e o espaço útil, entre o espaço de lazer e o
espaço de trabalho; todos são ainda movidos por uma secreta sacralização. (Foucault, 1984)

Metodologia desdobrada
A fábrica também corresponde ao modelo panóptico em que as subjetividades são di-
recionadas à “urgência do como sobreviver junto”. (Robert, 2006) Por outro lado, a
fábrica é só um conjunto de frases ou estórias e objetos, como fotografias de família no
bairro chamado Barreto. Essas famílias me fazem acessar uma imagem em movimento
coreográfico de um espaço, recortado, heterotópico, que está mais presente que passado,
e, que está dentro e fora da figura fábrica. Na distância, esse espaço está povoado de
rumores infantis, barulhos de maquinaria, pequenas perversões, pequenas traições e ex-
perimentações, passos em pavilhões húmidos, pulos em poças d’água, ficções que surgi-
ram a partir desses corpos e vozes que me contam estórias. Sou movida a contar do que
“permanece desmaterializado” que não poderá nunca engajar com o restritivo sentido da
“materialização governada pelos princípios de inteligibilidade”. (Butler, 1993) É através
da ficção que desdobro uma imagem de uma história brasileira da qual encontro resquí-
cios no meu próprio corpo. Quando afirmo “sou movida” assumo o caráter formativo do
poder e controle, no entanto, busco a sua transfomação através do poder performativo
que responde às restrições, privações e obrigações. (Butler, 1993)

Figura 1. Fotografia de Hrafnhildur Benediksdóttir, Abscene: A young female of the Tupinomos


tribe from “Water Which Hides Itself” says “I do” today, Londres, 2010. (Acervo da Artista)
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 357

A produção artística e respectiva metodologia que surge está, em primeiro lugar,


inserida no contexto econômico do surgimento de um capitalismo em que a produção
econômica é toda baseada na força do trabalho. É impossível não relacionar o trabalho
artístico à uma lógica que não o define: a lógica do assalariado. A metodologia que de-
senvolvo, portanto, deseja estabelecer parcerias para criar coragem. Surge um primeiro
elemento da criação artística – o impulso – que é também uma qualidade de movimento.
Me lanço ao chão, não há processo de criação que eu tenha idealizado que não comece
do chão. Segundo elemento criativo: o chão. A ação vem do chão, vem da força que essa
exerce em relação ao corpo. O corpo pode estar reagindo às imagens de amores, baru-
lhos de máquina, pequenas perversões, pequenas traições e experimentações, passos em
pavilhões húmidos e pulos em poças d’água.

She is outside the terms of the polis, but she is, as it were, an outside without which the polis
could not be […].” (Butler, 1998)

Richard Serra, em seu ensaio sobre o peso, diz que toda matéria-prima da qual pre-
cisa está contida naquela lembrança do trabalho do seu pai, a lembrança mágica do peso
que flutua sobre a água, que se transformou em um “sonho recorrente”. A minha lem-
brança, no entanto, é de algo que não vivi e não vi, mas as estórias que ouvi se transfor-
mam, como “sonhos recorrentes”, em imagens histórico-ficcionais. Atravessei inúmeras
vezes a fachada da Fábrica de Tecidos Fluminense – o ir-e-vir é o terceiro elemento de
criação, qualidade e movimento.
Quando Serra afirma que tem mais a dizer dobre tumbas e enterramentos, compreen-
do também que minha busca artística é um desejo de ocupar o oco dessa imagem que se
dá via sonoridade. “Es una búsqueda de lo propio, en cuyo camino se va desmantelando
todo aquello que lo encubre, lo desodoriza, lo silencia y lo deforma” (Mignolo, 2012), é
uma busca pelo que muitos desses familiares corpos-arquivos que já se foram não dei-
xaram visitados. É uma busca particular, que retorna ao lugar familiar, mas é uma busca
ficcional que “excede o sujeito biográfico”. (Klinger, 2012) Há porém algo incorporado
da contação de histórias, das recitações, dos gestos e dos ritos, práticas que podem de-
saparecer ou se transformar, através da transmissão corporal. A ausência de registro da
poética do trabalhador fluminense é uma provocação.
A busca é uma tentativa de dar voz à uma camada da sociedade que não soube da sua
importância histórica, enquanto base da economia no Rio de Janeiro, uma sociedade su-
cessora de índios e escravos. Mas é uma busca performada através de afetações sonoras.
Klinger estabelece a ambivalência da performance que se dá pela por proximidade e dis-
tanciamento: “na performance (...) o performer está mais presente como pessoa do que
como personagem”. (2012) Klingler refere-se às afirmações de Judith Butler em relação
à “performance” quanto à ausência de originalidade. A impossibilidade de originalidade
em movimentos ou ações já consolida o fato de que tenho um material incorporado que
não é meu. É fabricado. Estar mais presente como pessoa enquanto performer significa
358 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

apresentar todas as regras, restrições, privações e obrigações que me governam, assim


como as fantasias, mitos e fragmentos de memórias que me formam.
Percebo que, além de visitar esse espaço da morte representando essa voz social e
familiar silenciada, tenho outra responsabilidade política: visitar novas paranóias, ob-
sessões provocadas pela transformação do conjunto de regras e vigilâncias que foram
abruptamente modficadas pela curta mutação do capitalismo. Ainda mapeando e percor-
rendo o bairro do Barreto, percebo o confronto entre o saudosismo e desejo de perma-
nência e insurgência de novos valores já não mais conectados com a lógica “de classe”.
Duas ou três gerações inteiras percebem múltiplos acidentes de temporalidade. Luciana
Wollmann percebe que tais gerações tem diante de si “valores concernentes à velha ética
do trabalho, tais como: disciplina auto-imposta, submissão passiva, prática voluntária”
assim como “novas normas que privilegiam o curto prazo, o trabalho em equipe, a flexi-
bilidade do tempo e o fim da rigidez das antigas redes hierárquicas”. Ela diz ainda: “esta
combinação de diferentes formas de caráter nas relações de trabalho atua muitas vezes
de forma corrosiva no entendimento que o sujeito tem do seu próprio trabalho e por
extensão, de si.”. Wollmann fala sobre sobre o declínio do Barreto, bairro antes operário
comandado pelo apito da fábrica. Nesse trabalho, a autora destaca a cultura do trabalho
que caracterizou e ainda caracteriza a “valorização de uma vida repleta de sacrifícios e
no infindável adiamento do desejo de satisfação e realização”. Ela também reflete sobre
sobre a trajetória de “esvaziamento industrial” dada pela crise que a indústria têxtil en-
carou desde a Primeira Guerra Mundial, atravessando a política nacionalista militar e as
dívidas externas que a levaram à falência e fim. (Wollmann, 2011)
A fachada da Fábrica de Tecidos Fluminense expõe a decadência do bairro ex-operá-
rio. Familiares e vizinhos mostram as fotos e objetos do passado e se emocionam com o
encantamento daquele passado, bucólico e fantasmagórico, porque tão descaracterizado.
Muitos dos moradores da região tem no seu passado algum ponto de convergência com
a fábrica, principal fonte de renda local. Muitos moradores, ex-contramestres de tece-
lagem, como meu avô materno, ex-tecelões, jovens coloristas como meu pai, teceram
uma identidade rural, indígena, justaposta à lógica da separação de classe e parecem se
perder diante de novas ideias de permanente formação identitária.

Construção minha de terra e água. Agora, o trabalho é tempo integral, o traba-


lho  ascende, de alguma maneira. É um corta-caminho, expressa idéia de corrente, ra-
pidez, de A a B, um tanto linear. A linha de pensamentos de alguém pára e permanece
em diferentes pontos. AB é também prefixo para ausência, abominada. É simples, não é
tão complexo quanto o prefixo OB, que se refere à abertura, exposição, oposição, resis-
tência, bloqueio, finalidade, completude e o seu inverso. Eu escolho AB particularmente
porque AB não é OB. Entretanto, AB está instantes de ser tudo o que OB é. Eu não
quero desaparecer hoje. AB é territorialidade: a incorporação dos limites de uma terra
e sua linguagem. Em AB, eu piso nos solos performativos. AB é um percurso histórico-
ficcional. Traço um acidente entre a política e a teatricalidade da auto-representação.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 359

A apresentação sobre demarcações e fronteiras corporais e, portanto, sociais, acontece


através da interação entre a lama, a água e um silêncio chato, esquisito.

O ambiente ex-rural, ex-campo de batalha entre portugueses e Tupinimós e france-


ses e Tamoios, ex-operário tradicional, que antes priorizava as relações de praça, está
hoje abandonado. O objetivo corrente é conhecer melhor essa região, passar por pontos
onde a história maior toca a minha pequena estória junto às lembranças familiares. O
meu objetivo é acessar as gerações que ainda perpetuam suas saudades e, a partir daí
mapear essa região que não é nem uma coisa nem outra, nem operária ou ociosa, nem
violenta ou completamente doce, nem conhecida por sua culinária mas que todos os
fins de semana celebra a vida com uma fartura popular particular. O Barreto é lugar de
passagem e já perdi as contas de quantas vezes atravessei sua rua principal, a Rua Dr.
March, principalmente de ônibus.
360 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

A sonoridade poética da matéria:


percursos imaginários
na obra de Paulo Vivacqua

Paola Sarlo
CAPES/ PPGA/ UFES – [email protected]

A tecnologia é um instrumento transformador da relação entre as pessoas,


mas também, e sobretudo, da relação do homem com o mundo, especialmen-
te sua expressão criativa. Para alguns artistas, ela serve tanto como ferra-
menta quanto matéria de suas propostas estéticas. O objetivo desse estudo é
propor uma discussão sobre o cruzamento das linguagens sonora e visual no
trabalho de Paulo Vivacqua (1971-), através da análise das suas instalações
que se fundem nos ambientes nos quais são montadas. Elas trazem desloca-
mentos no processo de criação ao sugerirem ao expectador percursos invisí-
veis nos quais os sons suscitam narrativas imaginárias e produzem, assim,
uma singular experiência estética, aberta a contaminações.
Palavras-chave: som, processo de criação, imaginação, interação.

Technology is a great way to modify people and its relations, or even man´s re-
lation to the world , and more specifically one´s creative expression . For some
artists, it could be either a tool or matter for aesthetic proposals.  This stu-
dy  proposes  a discussion  when sound and visual languages are merged in
the work of Paulo Vivacqua (1971-), through analysis of his exhibition  and its
mixed “Ambience”. They bring changes in the creation process by suggesting
the viewer  to go into “invisible paths” where sounds raise imaginary narratives
and produce thereby a singular aesthetic experience, open to contamination.
Keywords: sound, creation process, imaginary, interaction.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 361

Introdução

Nada existe, não existe a realidade,mas apenas sensações.


(Fernando Pessoa, 1916)

A tecnologia é um instrumento transformador da relação entre as pessoas, mas tam-


bém, e sobretudo, da relação do homem com o mundo, especialmente sua expressão
criativa. Para alguns artistas, ela serve tanto como ferramenta quanto matéria de suas
propostas estéticas. Para Paulo Vivacqua (1971-) ela permite a invenção de itinerários
para um lugar entre a música e as artes plásticas. Através de suas esculturas sonoras1
ele nos leva a um novo lugar - um campo de ressonância - por onde transitamos num
transe sinestésico. Preenchendo os espaços vazios e silenciosos com fios, alto-falantes,
luzes, vidros e som , o artista compõe instalações plenas de visualidade. O som emitido
transcende o contexto da música, abolindo partituras e sua estrutura narrativa; e a ilu-
minação traz uma atmosfera sombria ao seu site-specific.
Após anos de imersão na musica erudita, Paulo Vivacqua aboliu as partituras e mer-
gulhou em pesquisas experimentais até imergir no que se pode definir como arte etérea,
captando sons da natureza ou de objetos que (aparentemente) existem em silencio. Essa
visão foi compartilhada por Paulo Herkenhoff, que na ocasião da exposição Poéticas da
Percepção escreveu na parede: ” Por isso, a obra é pele e é plástica porque opera com o
corpo do olhar vazio: o ar. “  
É um processo semelhante ao de um pintor que, após anos de estudos clássicos e
suas representações, se encontra na arte abstrata.
Literalmente, suas caixas de som retiram “ leite de pedra”, e nos trazem sons de altíssi-
ma voltagem visual. Ao se conjugar aquilo que se vê com o que se ouve, captamos vestígios
sonoros de outros mundos, de outra dimensão, que são habitados pelas nossas sensações.

Sensacionismo
Podemos contemplar o trabalho de Paulo, tangenciando a teoria do sensacionismo de
Fernando Pessoa (1888-1935) que dizia que “(...) apenas as nossas sensações podem
nos mostrar a realidade, as idéias são sensações de coisas não colocadas no espaço”2.
Para Paulo Vivacqua, música é espaço. É através dela que as idéias alcançam abrigo, e é
assim que ele consegue abolir a distancia entre a obra e o espectador. O sensacionismo
pretende realizar na arte a decomposição da realidade em seus elementos geométricos
psíquicos, através da análise profunda dos estados da alma.

1. Escultura sonora e Arte sonora são termos relativamente novos. Lidos sob a luz de uma
relação estreita com as artes visuais, apontam mais tentativas de renovação da música, reve-
lando estratégias, táticas e ações que fomentam a passagem do plástico para a experiência
sensorial direta – e o fazem através do som.
2. PESSOA, Fernando. Obras em prosa. Sao Paulo: Companhia José Aguilar Editora,1974.
Pg.441
362 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Há sentimentos e conceitos que, de sua natureza complexos, não são suscetíveis de


expressão simplificada. As esculturas sonoras de Paulo Vivacqua nos reafirmam essa
incapacidade culturalmente condicionada da maioria dos seres humanos de apreender,
mediante palavras, suas experiências musicais de modo apropriado3. Segundo Gernot
Böhme (2000), a música é um objeto imaterial trabalhado secularmente por suas po-
tências simbólicas. Músicas são, e foram, criadas por sua capacidade de forjar nossos
sentimentos, o que já as diferencia da idéia de uma arte voltada para a sensação pura,
desvinculada de uma acepção criada em função de uma linguagem demasiadamente
codificada 4. De certa forma, o som e a sonoridade se colocam a serviço de uma lingua-
gem maior, que é o sentido que se deseja dar à composição, muitas vezes orientada por/
para determinada função: música de trabalho, música de dormir, música de relaxar,etc.
A música organiza o mundo, dá a atmosfera das nossas sensações, invade o campo das
idéias. Porém o material da música, assim como afirmava Bakhtin, não é o som, e sim
o efeito, a tensão volitiva do artista que molda esse material. Junta-se um pouco desse
efeito de tristeza (tons menores) a um pouco desse efeito de tensão (intervalos diminu-
tos) e a um pouco desse outro efeito de alegria (tons maiores).O material, o programa
da música não se esgota. A questão no campo da arte sonora é movida no trabalho de
descoberta do material.
Paulo Vivacqua, afirma que o som é real, ao mesmo tempo em que trabalha sobre o
imaginário, o lúdico. O som é tátil, toca-nos e, nesse sentido, é efetivador das sensações.
O gramofone, de certa forma, rouba da música a sua arte de criar efeitos. A arte sonora
cria um imaginário novo para a arte e, em parte, ‘empobrece’ a música. Vivacqua confi-
dencia: “a arte sonora coloca a sensação diretamente no centro das afecções”. O público
não é levado a se relacionar apenas intelectualmente, pois a obra toca diretamente no
corpo. O som é uma matéria que atravessa todas as barreiras possíveis. Não podemos
fechar nossos ouvidos para um som, como podemos fechar os olhos para uma imagem
intolerável. O som, quando escapa da música, desorganiza o espaço, desorganiza nossos
corpos – ele existe apenas por ser movimento5.
Portanto, ao obtermos contato com as obras, nos cabe mergulhar numa viagem inti-
ma isenta de palavras e narrativas.Sao deslizamentos por um eterno vir-a-ser que se dá
misturado as sensações possíveis: caminhar,escutar,contemplar,que regem disparando
as potencias estéticas da obra.

3. ADORNO,Theodor W. Introducao a sociologia da música. Trad. Fernando R. de Moraes


Barros. São Paulo: ed. Unesp, 2011.Pg.179
4. BÖHME, Gernot. Acoustic atmospheres: a contribution to the study of ecological aesthetics.
In Soundscape: The Journal of Acoustic Ecology, v. 1, n. 1, Burbury, B. C.Pg.26
5. GAUDENZI, Ricardo Cutz. Arte sonora: entre a plasticidade e a sonoridade – um estudo
de caso e pequena perspectiva histórica. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura)
–Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.:
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 363

Ninféias
As Ninféias são plantas semi-aquáticas, adaptadas as margens de rios calmos ou lagos.
As Ninféias de Paulo são formadas por uma colônia de caixas de som interconectadas
entre si, e a água do lago é representada pelas camadas de placas de vidro iluminadas
(Fig.1 e 2). O vidro traz a leveza e a transparência da água (Fig.3). Elas estabelecem
um diálogo e usam uma linguagem misteriosa que ecoa semelhante a uma enunciação.
Podemos pensar que a obra de arte resida no material, mas não é possível negar a atração
material do som. “Cada sala tem um som”, afirma Vivacqua, e aí é preciso fazer falar
essas vozes dos objetos, dos lugares, das pessoas. Fazer a passagem do material(que
vibra) para o imaterial subjetivo, como afirmação da vivencia interpessoal.
A obra funciona como um agente ativo: o som confere uma dramaticidade específica
às formas e materiais empregados, como se revelasse algo sobre eles. As caixas de som
são passaportes para um novo lugar, onde imagens interiores e pensamentos materiali-
zam e desmaterializam-se deixando um rastro, como memória ou fantasma.

Fig. 1. Ninféias (Galeria Ar- Fig. 2 e 3. Ninféias (Galeria Artur Fidalgo – Rio), 2006.
tur Fidalgo – Rio), 2006.

Deserto
A obra Deserto foi exposta no Cairo (Egito) ,e é uma instalação composta por uma ce-
nografia completa.Suas caixas de som protagonizam efeitos sonoros frente ao aparato
cenográfico da obra: areia ,luz, fundo( Fig.4). O site-specific dessa obra está localizado
em meio ao deserto, onde areia e vento são componentes essenciais. Verifica-se uma
complexa interacção dialéctica entre a dimensão cultural do local de exposição e as
propriedades dos objectos nesse contexto. O lugar da experiência sonora é onde se faz o
trabalho. As caixas de som, que trabalharam imersas na água( vidro) em Ninféias, agora
brotam da areia do deserto. Mas são apenas artifícios. E, em determinado momento, é
364 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

estabelecida uma situação ritual, estética, de uma instalação que nos permite experimen-
tar esse evento sonoramente.

Fig.4. Stereo Desert (Townhouse Gallery – Cairo), 2006.

Conclusão
Existe a possibilidade de vermos o alto-falante como ready-made, ainda como a forma
do som e sua força de mediador. Mas no trabalho de Paulo Vivacqua o alto falante é ao
mesmo tempo matéria, meio e sentido. O próprio meio torna-se um objeto fetichizado,
que serve de gatilho mental para acionar a imaginação sonora e criar uma pura expec-
tativa de ação.
A arte sonora reside, portanto, menos na existência de um texto e mais na existência
de um resultado, na proposição e vivência de uma experiência. O trabalho do artista se
apropria, portanto, de mecanismos, de objetos, ressonâncias, efeitos físicos e visuais
para criar um momento em que nossa sensibilidade auditiva é elevada e retirada da letar-
gia cotidiana. Através de sua atitude criativa Paulo Vivacqua parece reafirmar a máxima
de Schopenhauer: “A música exprime a mais alta filosofia numa linguagem que a razão
não compreende.”
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 365

Referências
ADORNO, Theodor W. Introducao a sociologia da música. Trad. Fernando R. de Moraes Barros.
São Paulo: ed. Unesp, 2011.
ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história concisa. Tradução de
Alexandre Krug e Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.
Tradução de Aurora Forsoni Bernadini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior,
Helena Spryndis Nazário, Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Hucitec, 1990.
BÖHME, Gernot. Acoustic atmospheres: a contribution to the study of ecological
aesthetics. In Soundscape: The Journal of Acoustic Ecology, v. 1, n. 1, Burbury, B. C.:
BRITO, Ronaldo. O moderno e o contemporâneo (o novo e o outro novo). In: BASBAUM, Ricar-
do (Org.). Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções,
ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
GAUDENZI, Ricardo Cutz. Arte sonora: entre a plasticidade e a sonoridade – um estudo de caso
e pequena perspectiva histórica. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura)– Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
KRAUSS, Rosalind E. Caminhos da escultura moderna. Tradução de Julio Fischer.
São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LAGNADO, Lissette. A instauração: um conceito entre a instalação e a performance.
In: BASBAUM, Ricardo (Org.). Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções e estra-
tégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
LOPES, Almerinda da Silva. Materialidade e imaterialidade na arte do nosso tempo.Catálogo da
exposição do Museu da Vale.
PESSOA, Fernando. Obras em prosa. Sao Paulo: Companhia José Aguilar Editora,1974.
366 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Entre autoria e colaboração,


a direção de arte em maria
antonieta de Sofia Coppola

Patrícia Dourado
PUC-SP – [email protected]

O presente artigo analisa a relação entre autoria e colaboração no cinema, a


partir do estudo de caso da direção de arte no filme Maria Antonieta (2006)
de Sofia Coppola. Entende-se aqui “autoria” como a existência de um proje-
to poético pessoal para o filme. E “colaboração” como o trabalho de equipe
conforme ocorre no cinema. São analisadas entrevistas publicadas em sites,
jornais e revistas do período de lançamento do filme; a filmografia da equipe
envolvida; o making of do filme; o press kit do Festival de Cannes de 2006 e
as production notes publicadas no site oficial do filme.
Palavras-chave: autoria, colaboração, processo de criação, cinema, direção
de arte.

This paper analyzes the relationship between authorship and collaboration in


movies, using the production design of Sofia Coppola’s movie Marie Antoinette
(2006) as a case study. Here, “authorship” is perceived as the existence of a
personal poetic project for the movie, and “collaboration” is the teamwork as
it happens in the making of movies. Several sources were analyzed, such as
interviews published in websites, newspapers and magazines from the period
that the movie was released; the team’s filmography; the making of feature
film; the press kit of 2006 Cannes Festival and the production notes that were
published on the movie’s official website.
Keywords: authorship, collaboration, creation process, cinema, production
design.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 367

Quando assisti pela primeira vez ao filme Maria Antonieta (2006), lembro que uma
das coisas que mais me chamou atenção foi o visual do filme, os figurinos não com-
pletamente de época, a paleta de cores que desafiava o olhar esperado para o período,
o frescor das imagens. Tudo acompanhado de uma trilha sonora que também fugia do
tradicional, músicas do século XVIII, cravos e violinos, se misturavam ao pop rock dos
anos 70 e 80 e ao rock contemporâneo. E aquilo, apesar de estranho, trazia uma descon-
fortável familiaridade. Pela primeira vez, percebi que a rainha francesa dos livros de his-
tória era apenas uma adolescente quando passou pelos principais momentos de sua vida.
Aos quatorze anos, Maria Antonieta deixou sua casa e seu país para trilhar o cami-
nho escolhido pela mãe Maria Tereza. Mudou de nome, de Maria Antonia para Maria
Antonieta, para casar-se em uma acordo político com o delfim da França, Luís XVI,
ainda mais inábil e inseguro do que ela. Aos dezenove anos, foi coroada rainha da Fran-
ça, mas, para os franceses, seria sempre L’autrichienne. Amargurou durante longos sete
anos o desinteresse sexual de Luís XVI e as queixas do povo francês e da mãe Maria Te-
reza que lhe cobravam a consumação do casamento e um herdeiro que assegurasse sua
posição. (Figura 1). Luís XVI, tão jovem quanto, trazia o peso de não se achar suficiente,
herdou o trono por viradas do destino, depois da morte precoce do pai e de dois irmãos
mais velhos, pulando três casas na linha de sucessão (FRASER, 2006).

Figura 1. Cena do filme Maria Antonieta (2006). Maria Antonieta acaba de ler mais uma das
cartas repreenssívas da mãe, o visual tenta simbolizar o sentimento de Maria Antonieta, que
quase some em meio a padronagem do papel de parede. (DVD do filme, 51-52min)
368 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Sofia Coppola conta que o que primeiro lhe chamou a atenção na história de Maria
Antonieta foi perceber o quão jovens eles realmente eram, ela e Luís XVI, e imaginar
como seria viver e, finalmente, ter que crescer em cirscunstâncias tão extremas. Foi du-
rante um jantar, quando um amigo, que havia lido a biografia escrita por Sefan Zweig,
lhe falou sobre Maria Antonieta, fazendo uma descrição principalmente psicológica do
que foi tudo aquilo, que ela começou a se interessar em saber mais sobre Maria Anto-
nieta e tudo o que ela passou. Até então, ela só conhecia os clichês habituais sobre o seu
estilo de vida decadente. Em busca do ponto de vista da rainha, Sofia leu vários histo-
riadores diferentes, até chegar na biografia de Antonia Fraser, que escolheu para adaptar
o filme (PRESS, 2006).
O filme Maria Antonieta se constrói a partir de um projeto pessoal da roteirista e
diretora Sofia Coppola, cuja filmografia aponta tendência ao filme de autor: “É uma
coisa muito pessoal fazer um filme, e eu preciso de liberdade completa.” (Sofia Coppola
apud O’HAGAN, 2006). No entanto, por ser o cinema uma arte essencialmente coletiva
– raro um projeto, ainda que pessoal, é levado a cabo e realizado por uma pessoa só –,
a equipe que realiza este projeto junto com o autor, ao execer seu trabalho colaborativo,
está também exercendo uma relação de coautoria na obra.
Qualquer teoria coerente da autoria deve levar em conta essas diversas superposi-
ções em termos de circunstâncias materiais e de equipe na autoria cinematográfica (…),
encontramo-nos [no cinema] distantes do domínio da inspiração imaculada e do gênio
desimpedido evocados pelas noções românticas de autoria. (STAM, 2006, p. 110)
Todavia, dentro da organização social, a função autor ajuda a organizar certos dis-
cursos, a perceber recorrências, a integrar desvios (FOUCAULT, 2009, p. 53). Ajudam
crítica e público a se relacionarem com a obra em sua complexidade, a partir do pensa-
mento relacional entre obra e autor, obra e processo, obra e obras. O caráter restritivo, de
que se culpou em outra época a função autor, quando se discutiu questões como a morte
do autor, dá lugar nessa pesquisa ao pensamento relacional que traz a questão da autoria
de volta ao debate. Pensar a obra é também pensar a rede de relações que a acompanham
(SALLES, 2007, p. 152), e o autor não há como ser separado disso.
O autor é aquilo que permite explicar tanto a presença de certos acontecimentos
numa obra como as suas tranformações, as suas deformações, as suas modificações di-
versas (e isto através da biografia do autor, da delimitação da sua perspectiva individual,
da análise da sua origem social ou da sua posição de classe, da revelação do seu projecto
fundamental). (FOUCAULT, 2009, p. 53)
Engenhosamente dividido em equipes (arte, fotografia, música, dramaturgia etc.), o
processo criativo no cinema se dá exatamente da comunicação entre essas equipes. O
autor é quem guia, agrupa, alinha e alimenta esse time em torno de um mesmo projeto
poético, inicialmente pessoal, mas que, a partir do convite das equipes, passa a ser um
projeto coletivo também. Como lembra Rabiger (2007), o conceito do cineasta auteur,
cunhado nos anos 50, durante a nouvelle vague francesa para caracterizar os roteiristas/
diretores (como foi o caso de Sofia Coppola em todos os seus filmes até aqui), não passa
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 369

disso – de um conceito, não de uma realidade (p. 11). A formação de uma boa equipe,
onde o diretor se sinta confortável e confiante, é uma das principais premissas para a
realização do filme. Os agradecimentos sinceros durante os prêmios da Academia feitos
à equipe não são apenas um ritual. Eles reconhecem a verdadeira fonte de criatividade
nessa forma de arte que depende da colaboração (ibidem, p. 12).
Sofia trouxe para a equipe de seus filmes família, amigos e profissionais que admira.
O pai, Francis Ford Coppola1, foi produtor de todos os filmes da filha, desde o primeiro
curta-metragem, Lick the Star2, em 1998. A mãe, Eleanor Coppola3, documentarista,
realizou o making of de Maria Antonieta e produziu a entrevista que acompanha o press
kit do Festival de Cannes (PRESS, 2006). O irmão, Roman Coppola4, diretor de video-
clipes, é o segundo diretor (second director) dos três primeiros filmes da irmã, incluindo
Maria Antonieta, e produtor do dois seguintes, Um lugar qualquer (2010) e The Bling
Ring (2013). O primo, Jason Schwartzman5, é o Rei Luís XVI de Maria Antonieta.
Para a equipe de arte de Maria Antonieta, Sofia contou com KK Barrett6 e
Milena Canonero7, respectivamente diretor de arte8 e figurinista. Sofia já havia traba-
lhado com KK Barrett em Encontros e desencontros, que assinou também a direção
de arte de Quero ser John Malkovich (1999) e Onde vivem os monstros (2009), ambos

1. Filmografia de Francis Ford Coppola disponível em http://www.imdb.com/name/


nm0000338/?ref_=sr_1 (Acessado em 05.10.2013).
2. Ficha técnica de Lick the star (1998), disponível em http://www.imdb.com/title/tt0197626/
(Acessado em 05.10.2013).
3. Filmografia de Eleanor Coppola disponível em http://www.imdb.com/name/nm0178880/?re-
f_=sr_1 (Acessado em 05.10.2013).
4. Filmografia de Roman Coppola disponível em http://www.imdb.com/name/nm0178910/?re-
f_=sr_1 (Acessado em 05.10.2013).
5. Filmografia de Jason Schwartzman disponível em http://www.imdb.com/name/
nm0005403/?ref_=fn_al_nm_1 (Acessado em 05.10.2013).
6. Filmografia de KK Barrett disponível em http://www.imdb.com/name/nm0057187/?ref_=-
fn_al_nm_1 (Acessado em 05.10.2013).
7. Filmografia de Milena Canonero disponível em http://www.imdb.com/name/nm0134382/?re-
f_=sr_1 (Acessado em 05.10.2013).
8. Desde 1939, os Estados Unidos usa o termo “production designer” para o que chamamos
no Brasil de diretor de arte. O “art director” americano passou a chamar-se “production desig-
ner” após o trabalho realizado por William Cameron Menzies em “E o vento levou” (1939). Foi
a forma que o produtor David Selznick encontrou de elevar o trabalho realizado por Menzies
para o filme (LOBRUTTO, 2002, p. 2). O “art director” nos Estados Unidos hoje desempenha
função semelhante a do primeiro assistente de arte no Brasil (reservadas as diferenças de
modo de trabalho entre os dois países) e tem grande importância na equipe de arte. É o
responsável por coordenar as equipes internas da arte e para isso dialoga diretamente com o
“production designer”. Na ausência do “production designer”, o chefe do departamento de arte
é o “art director”. É possivel encontrar mais informações sobre a diferença entre “production
desinger” e “art director” em RIZZO, 2005. Nesta pesquisa, chamamos de diretor de arte o
“production designer”, por ser uma pesquisa que se dá no Brasil, e a nomenclatura utilizada
aqui para o chefe do departamento de arte, na grande maioria dos fimes, é “diretor de arte”.
370 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

do ex-marido e também cineasta Spike Jonze. Milena Canonero assinou o figurino de


O Poderoso Chefão III (1990), onde Sofia fez uma pequena participação como atriz
(o que fazia desde criança em diversos filmes do pai9). Milena foi figurinista de filmes
emblemáticos como Laranja Mecânica (1971) e Barry Lyndon (1975) e levou o Oscar
de Figurino por Maria Antonieta (2006).
Eu escolhi as pessoas com quem eu queria trabalhar. Eu acho que você só precisa
explicar sua visão e explicar que o papel de cada um é ajudar a desenvolver o filme.
Este método é mais suave e menos totalitário e tem sido bastante eficaz. (Coppola apud
PRESS, 2006)
A direção de arte responde pelo conceito visual do filme, operando no campo da
construção dos elementos visuais: cenário, figurino, maquiagem, objetos etc. Mas, como
lembra Vincent LoBrutto (2002, p. 25), a direção de arte não apenas interpreta visual-
mente os aspectos físicos da narrativa, cuida também dos aspectos incoscientes, psico-
lógicos e emocionais evocados por essa fisicalidade. É isso que torna a direção de arte
tão importante para Sofia Coppola: “Eu quero que as formas visuais contem a história
mais do que a fala dos personagens.” (Sofia Coppola apud RICKEY, 2013). A figurinista
Milena Canoneno reafirma isso nas notas de produção disponibilizadas no site oficial
do filme:

Sofia é um pouco como eu, está mais interessada nos sentimentos que um traje pode passar
para o público. Então, alguns dos nossos trabalhos em Maria Antonieta são simbólicos, outros
são estilo, e outros são psicológicos. Há sempre uma razão para uma textura particular ou cor.
(Milena Canonero apud PRODUCTION, 2006)

Para manter a equipe coesa, constrindo junto o visual que se quer dar ao filme, é co-
mum a utilização de imagens de referência, que por vezes se tornam livros de referência
ou, no caso de Sofia Coppola, “moodboards”. As referências visuais são importantes
elementos de comunicação entre colaboradores, todos precisam estar conscientes de
estar fazendo o mesmo filme, de estar seguindo o mesmo caminho. Ainda que o roteiro
seja uma escrita para a tela e, no caso de Sofia Coppola, a roteirista seja também a direto-
ra do filme; do roteiro à tela, cabem diferentes interpretações visuais. As palavras, sejam
na fala do diretor ou no roteiro, sozinhas, não dão conta da incrível complexidade que
é a criação de imagens em equipe, pois a interpretação visual dessas descrições verbais
pode ser diferente em cada um dos criadores. É aí que entram as imagens de referência,
que funcionam desde elementos de inspiração, ao ajudar a equipe a sentir a atmosfera
a ser construída; a elemento de comunicação, ao permitir que a equipe dialogue e se
entenda a partir dessas referências.
No mundo da moda, é super comum a construção de “moodboards” (murais com
referências visuais) para um desfile ou coleção. Sofia diz que pegou da sua experiência
9. Filmografia de Sofia Coppola disponível em http://www.imdb.com/name/nm0001068/ (Aces-
sado em 05.10.2013).
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 371

em moda, estagiária da Chanel aos 15 anos e proprietária de uma linha de moda no Ja-
pão aos 22, o carinho pelos “moodboards” como ferramenta de trabalho (GEVINSON,
2013). O diretor de arte KK Barret conta que a própria paleta de cores para o filme surgiu
de uma imagem dessas referências de Sofia Coppola, onde estavam estampados biscoi-
tinhos Ladurée. As cores dos “macarons” passaram a orientar a paleta de cores do filme
(PRODUCTION, 2006).
A música nos filmes de Coppola, assim como o visual, sempre foram importantes
elementos narrativos e de construção atmosférica. “Essa é uma coisa muito importante
pra mim. Eu preciso ser capaz de criar uma atmosfera e tudo mais decorre disso.” (Sofia
Coppola apud O’HAGAN, 2006). Assim como ela faz “moodboards” para inspirar o
visual do filme, também gosta de escrever os roteiros nos próprios lugares onde a histó-
ria se passa (MURRAY, 2006) e ouvir músicas que tenham a ver com aquela atmosfera
enquanto escreve, boa parte das músicas dos seus filmes são decididas ainda no processo
de escrita do roteiro (PRODUCTION, 2006). Desde o primeiro filme, ela conta com a
parceria do supervisor musical Brian Reitzell10, com quem discute o tom da música en-
quanto escreve, e assim foi com Maria Antonieta (ibidem). Uma das músicas escolhidas
passou a orientar diretamente o próprio conceito visual do filme, como lembra a figu-
rinista Milena Canonero (apud PRODUCTION, 2006): “Muito de nossas composições
estavam no âmbito da canção “I want candy”. Nós escolhemos as cores e texturas que
lembram coisas que você quer comer.” (Figura 2).

Figura 2. Cena do making of de Maria Antonieta. Sofia Coppola, dentro da perspectiva de criar
para o filme imagens que dessem vontade de comer, fala para a figurinista Milena Canonero
que gostaria de repetir o vestido dos morangos, agora por completo. (DVD do filme, vídeo
making of)

Em busca de ativar o paladar do espectador e, junto com ele, os sentimentos de


fome, desejo e insasiedade, tão importantes para o desenho da história - o retrato de uma
rainha estrangeira infeliz, deslocada e buscando aceitação em meio a uma corte luxuosa
e esbanjadora, enquanto o povo com fome se organizava para destabelecer essa ordem
-, a equipe de arte contou com uma equipe responsável só pela criação de bolos, doces e
comidas de época (PRODUCTION, 2006).

10. Filmografia de Brian Reitzell disponível em http://www.imdb.com/name/nm0718687/ (Aces-


sado em 05.10.2013).
372 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Outro importante parceiro da equipe de arte é o diretor de fotografia Lance Acord,


com quem Sofia trabalhou em seu primeiro curta-metragem, Lick the Star (1998). Lance
Acord11 é um parceiro antigo do diretor de arte KK Barret, os dois trabalharam jun-
tos, além de Maria Antonieta, também no filme anterior de Sofia Coppola, Encontros
e Desencontros, e nos filmes Quero ser John Malkovitch e Adaptação. A sintonia entre
diretor de arte e diretor de fotografia é muito importante, pois a direção de fotografia
é resposável por registrar aquilo que será criado pela direção de arte, e como isso vai
chegar ao espectador depende do entendimento, da troca e do diálogo entre esses dois
diretores e suas equipes. Como lembra LoBrutto (2002), o visual de um filme surge da
colaboração entre a tríade diretor, diretor de fotografia e diretor de arte, e o diálogo e a
sintonia entre eles é fundamental para a realização do projeto (p. 14).
O que é possível dizer é que mesmo que um filme surja de um projeto pessoal, a
equipe que colabora com a realização deste projeto é também parte dele, cada um com
suas singularidades colabora para o resultado final da obra. Mesmo quando falamos em
um filme de autor, este trabalho traz também as marcas daqueles que colaboraram com
o autor, as redes de criação se cruzam. Nosso compromisso foi falar da direção de arte
e da importância dos profissionais dessa equipe para o filme, mas o mesmo acontece
com as outras equipes também. O cinema é uma arte coletiva, com engenharia bastante
complexa, e só é possível falar em autoria no cinema, considerando também as particu-
laridades desse processo.

Referências
COPPOLA, Sofia. Maria Antonieta. DVD. Sony Pictures, 2006.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Nova Vega, 2009.
FRASER, Antônia. Maria Antonieta: biografia. Rio de Janeiro: Record, 2007.
GEVINSON, Tavi. Girls with power and mystique: An interview with Sofia Coppola. Rookie
Magazine, 17 de junho de 2013, disponível em: http://rookiemag.com/2013/06/sofia-coppola-
-interview/ (Acesso em: 05.10.2013).
LOBRUTTO, Vincent. The filmaker’s guide to production design. New York: Allworth Press,
2002.
MURRAY, Rebeca. Writer/director Sofia Coppola talks about Marie Antoinette. About.com Gui-
de, 2006. Disponível em: http://movies.about.com/od/marieantoinette/a/mariesc101006.htm
(Acesso em: 05.10.2013).
O’Hagan, Sean. Sofia Coppola talks about Marie Antoinette. The Guardian, 08 de outubro de
2006, disponível em: http://www.guardian.co.uk/film/2006/oct/08/features.review1 (Acesso
em: 05.10.2013).
PRESS Kit Marie Antoinette Festival de Cannes. Cannes Archives, 2006. Disponível em: http://
www.festival-cannes.fr/assets/Image/Direct/016496.pdf (Acesso em: 05.10.2013).
PRODUCTION Notes. Marie Antoinette Official Site Sony Pictures, 2006. < http://www.sonypic-

11. Filmografia de Lance Acord disponível em http://www.imdb.com/name/nm0010139/ (Aces-


sado em 05.10.2013).
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 373

tures.com/movies/marieantoinette/site/ > (Acesso em: 08.04.2010). O site oficial do filme não


está mais disponível, mas as “Production Notes” foram digitalizado para PDF e estão dispo-
níveis em: http://www.visualhollywood.com/movies/marie-antoinette/notes.pdf (Acesso em:
05.10.2013).
RABIGER, Michael. Direção de cinema: técnica e estética. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
RICKEY, Carrie. Lost and Found - An interview with Sofia Coppola. Directors Guild of America,
Spring 2013, disponível em: www.dga.org/Craft/DGAQ/All-Articles/1302-Spring-2013/So-
fia-Coppola.aspx (Acesso em: 05.10.2013).
RIZZO, Michael. The art direction handbook for film. New York: Focal Press, 2005.
SALLES, Cecília Almeida. Redes da criação: construção da obra de arte. São Paulo: Anablume,
2007.
STAM, Robert. A americanização da teoria do autor. Em: Introdução à teoria do cinema. São
Paulo: Papirus, 2003.
374 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

O diálogo como
possibilidade de criação

Rafael Pagatini
DAV/UFES – [email protected]

O presente artigo apresenta um estudo sobre como a conversa e a narração


de histórias se estabeleceram em possibilidades de acesso ao ambiente na-
tural ao longo do desenvolvimento da pesquisa “Conversas com a paisagem”.
O projeto se estabeleceu em uma série de proposições que buscaram revelar
através de uma investigação artística, a afinidade entre o estado de transitar
por determinados espaços geográficos e as possibilidades criativas deflagra-
das por meio da observação da paisagem em torno de estradas, rodoviárias e
das reverberações geradas a partir da travessia física pelo espaço. Para isso
o projeto se estruturou na produção de fotografias e textos através de viagens
rodoviárias, em ônibus interestaduais, pelo Brasil.
Palavras-chave: Conversas, Paisagem, Viagem, Arte contemporânea.

Este artículo presenta un estudio sobre como la conversación y la narración


de historias se establecieron en oportunidades de acceso al ambiente natural
durante todo el desarrollo de la investigación “ Conversaciones con el paisaje”.
El proyecto se constituyó en una serie de propuestas que pretendían revelar,
a través de una investigación artística, la afinidad entre el estado de transitar
por determinados espacios geográficos y las posibilidades creativas deflagra-
das por la observación del paisaje alrededor de las carreteras, estaciones de
autobuses y de las reverberaciones generadas a partir de la travesía física por
el espacio. Para eso, el proyecto se estructuró en la producción de fotografías
y de textos a través de los viajes por carretera, en autobuses y recorriendo
varias provincias de Brasil.
Palabras clave: Conversaciones, Paisaje, Viaje, Arte Contemporáneo.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 375

O objetivo deste curto ensaio é refletir como o diálogo se estruturou em mecanismo


de acesso ao ambiente sociocultural em minha proposição artística “Conversas com a
paisagem”. O trabalho se constituiu em deslocamentos pelo Brasil, a partir de um es-
pírito inquieto interessado em ter contato com diferentes ambientes e vivências através
da viagem, de forma que a pesquisa fosse se desenvolvendo ao longo dos percursos
percorridos e que ao mesmo tempo esses deslocamentos se transformassem na próprio
produção artística. O projeto iniciou com viagens de ônibus, objetivando a entrega a
novas vivências que me seduziam pela riqueza popular e por sentir que ao embarcar em
percursos de longas distâncias em ônibus interestaduais perdia o controle sobre meus
itinerários. Ao mesmo tempo nesses percursos teria mais consciência dos intervalos,
pausas, percalços decorrentes do trajeto, o que produziria maior sensibilidade ao tempo
da paisagem, ratificando a viagem como ponto inicial do processo de criação.
A estrutura de trabalho baseou-se no dialogo com passageiros, nas impressões rela-
cionadas aos caminhos percorridos e na produção de fotografias. As anotações dessas
experiências estabeleceram um elemento importante, pois as reflexões acerca das conver-
sas, das diferenças na geografia, no contexto social e econômico, observadas na condição
de vagante, constituíram um rico campo de pesquisa. Outro elemento relevante foi o pa-
pel dos meios de locomoção, particularmente do transporte rodoviário, em uma perspec-
tiva nacional. O sentimento de irremediável decadência desse serviço pode ser observado
em vários momentos ao longo do projeto, da mesma forma que as rotas de longa distância
são, em sua grande maioria, realizadas por pessoas de baixo poder aquisitivo. As migra-
ções entre as cidades também se estabeleceram como objeto de análise pela variedade
de configurações, desde a busca por oportunidades de trabalho, tratamento de doenças,
deslocamentos ocasionais ou mesmo a necessidade de encontros familiares. (Figura 1)

Figura 1. Fotografia do autor. Intervenção na Rodoviária de Porto Alegre-RS, de 24 de setem-


bro a 27 de outubro de 2013. (Acervo do Artista)
376 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Esses deslocamentos promoveram uma intervenção na sala de espera do Terminal


Rodoviário de Porto Alegre-RS com fotografias de grande formato em caixas de luz e
um livro lançado pela editora da Universidade Federal do Espírito Santo que contém
algumas histórias, impressões, devaneios e fotografias. O objetivo inicial da pesquisa
foi pensar o processo de criação através das viagens e confrontar as expectativas que
possuía sobre as cidades e as paisagens com a realidade que teria contato. Outro objetivo
foi desenvolver uma pesquisa sobre as rodoviárias no Brasil, como elas se estruturam,
como é sua arquitetura, a forma como os passageiros se envolvem com esses espaços,
quem os habita, e pensar o que fica nesses locais de passagem.
Ao longo do projeto me deparei com um espaço riquíssimos em histórias que de
alguma forma se relacionavam com as paisagens que passavam pela janela e das minhas
incursões pelas cidades que desembarcava. Nesse contexto percebi que normalmente
utilizamos a palavra conversas para fazer referência a relação entre pessoas que dividem
palavras, ideias, pensamentos, assuntos. Durante as viagens senti a necessidade de que
as conversas com os passageiros mais do que apenas dados informacionais sobre o des-
locamento fosse utilizado como forma de relação com a paisagem. Dessa forma minhas
incursões geraram uma série de percepções sobre o meio natural através de pessoas que
como o artista se deslocavam entre territórios. As anotações das impressões, reflexões e
dos diálogos, além das diferenças no ambiente e de como ele sofre influências de fatores
sociais como econômicos transformaram as anotações em um discurso literário no qual
as expectativas, mudanças e acontecimentos no interior do veículo se estabeleceram
como manancial poético para a construção artística ao longo da viagem. Percebeu-se
que o diálogo se estrutura como elemento de construção coletiva sobre determinados
temas quando ele se afirma de modo não hierárquico possibilitando o acesso a múltiplas
perspectivas sobre a paisagem e ao olhar do outro entorno do contexto no qual estamos
inseridos. Ademais, quando a conversa ocorre nesse contexto ocorre uma interpretação
de uma “vontade do meio natural” através das histórias verbalizadas. Essa não se faz
apenas por um caráter contemplativo, do eu comigo mesmo, mas quando me desloco
por diferentes locais tenho contato com um determinado grupo social que revela seus
desejos, angústias em seus diálogos. A paisagem percorrida nos serve de casa, local de
encontro que promove o desenrolar de nossas narrativas. Ao conversarmos revelamos
toda construção entre natureza e cultural que fala através de nós, na qual uma está con-
tida na outra. (Figura 2)
Ao mesmo tempo o dispositivo fotográfico possibilitou a consciência do desloca-
mento pelo seu aspecto híbrido que sempre gira entre o ficcional e o documental, além
de oferecer a oportunidade de indicar uma postura para o exterior do veículo, do olhar
que percebe as transformações do relevo, clima, vegetação. Essa relação entre fotografia
e as histórias narradas estão relacionadas com a percepção de alguém que percebe a
viagem não apenas através do sentido da visão, mas por outras formas e relações que
ocorrem no interior do ônibus em constante movimento e ao olhar para fora em direção
ao cenário que se transforma a cada quilometro rodado através da janela. Dessa forma
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 377

além das fotografias produzidas a partir do interior do ônibus foram realizados textos
que foram publicados no livro e aproximam do projeto a sensação de percorrer fisica-
mente o espaço.
Como pessoas que passam de um lugar a outro, na publicação o leitor é con-
vidado a iniciar sua leitura e a criar seu próprio itinerário ao longo das páginas do livro.
Elas não foram numeradas justamente para possibilitar múltiplas ordenações e recons-
truções. O deslocamento se estabelece como núcleo da narrativa, materializando-se atra-
vés da consciência das vivencias e das historias colhidas no decorrer dos encontros. As
viagens representam um auxilio do pensamento, torna- se metáfora da nossa própria
existência, ao se estabelecer como processo de conexão com o mundo. A utilização da
primeiro pessoa do singular no presente do indicativo alternando com a terceira pessoa
tem como objetivo proporcionar ao leitor a possibilidade de criar enquanto se lê a pró-
pria sensação de viagem, dando-se ênfase para algumas descrições do espaço e do con-
texto para proporcionar a criação de uma imagem mental da cena descrita. As fotografias
presentes no livro não se comportam como ilustrações dos trechos narrados, algumas
foram propositadamente inseridas próximas a momentos da narrativa correspondentes
a outro cenário, criando assim um estranhamento e uma quebra em um leitura linear da
publicação. (Figura 3)

Figura 2. Fotografia do autor. Algum lugar en-


Figura 3. Fotografia do autor. Anotações em
tre Gabu-BA e Ibirapitanga-BA, 2013. (Acer-
diário de viagem. 2013. (Acervo do Artista)
vo do Artista)

Desde o primeiro embarque percebi que aqueles espaços soturnos e austeros da


rodoviária produziam um potencial de investigação muito interessante. Ao longo dos
percursos as paisagens que se transformavam criavam um diálogo com as histórias que
por vez ou outra escutava de conversas entre passageiros e das minhas impressões sobre
o lugar. Mais do que personagens que apresentam suas falas e construções de perso-
nalidade através de ações, gestos, formas de andar, vestir, tive a preocupação de tentar
quebrar com o mundo autossuficiente de uma narrativa clara e sem quebras. O leitor
pode pular de um parágrafo para outro sem seguir uma ordem linear, da mesma forma
378 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

que minhas impressões se transformavam a cada novo encontro, promovendo diálogos


que traziam percepções de outras mentes e apresentavam novas necessidades, tempos,
vivências. Conversar se estabeleceu na possibilidade de constituir vários pontos de
vista, diminuindo a lacuna entre esses olhares fragmentados, através da oralidade foi
possível construir um elo de comunicação que retira a intermediação de discursos já
consolidados. As histórias narradas pelos passageiros ou passantes que encontrava em
minhas incursões pelas cidades criam laços concretos entre indivíduos e fenômenos que
guardam significados na consciência coletiva. Algumas histórias como a de uma menina
que vendia fotografias para chaveiros na rodoviária de Belém-PA e que durante o diálo-
go perguntada se conhecia a história de construção da cidade, respondendo que os portu-
gueses vieram para Belém comer a comida típica dos índios, que apesar de inicialmente
parecerem ingênuas, revelam o conhecimento sobre o lugar e a historiografia da cidade.
Outras conversas na mesma cidade geraram horizontes de percepção surpreendentes
sobre a rede de relações que existe em um importante comércio popular local chamado
mercado Ver-o-Peso. Através do diálogo com pescadores e pessoas que trabalham no
desembarque do peixe no local, percebi uma complexa teia de relações entorno da pesca
e na venda do pescado. A figura do balanceiro que segundo vários depoimentos possui
as atribuições de pesar a produção dos pescadores e indicar compradores para o pesca-
do, ficando com cinco a sete por cento do total da venda, foi constantemente apontado
como indivíduo que promove a harmonia no sistema local. Mais do que um atravessa-
dor, aquele que compra e revende e se coloca entre o pescador e o comerciante, esse
personagem se torna importante por organizar e manter o sistema quando, por exemplo,
algum pescador tem problemas de saúde ou encontram-se em dificuldades para custear a
viagem de pesca. O balanceiro auxilia nas despesas, mais do que pela necessidade eco-
nômica seu auxílio deve-se por laços de amizade. A construção desse cenário através das
conversas levaram ao encontro de várias pessoas que trabalham em diferentes funções
como carregadores, geleiros, viradores que em ricas trocas sempre fizeram referência
a uma relação familiar, de diferentes gerações, as quais trabalham juntas e se tornam
amigas, sendo leais as relações pessoais através da reciprocidade.
O objetivo inicial de contato com a paisagem da cidade se transformou quando tive
consciência de que era impossível observar aquele constructo separado de todas as
relações humanas que estão presentes nesse cenário. As conversas passaram a figurar
e transformar uma relação introspectiva e contemplativa da paisagem em diálogos
com seus agentes, o que possibilitou uma nova construção do espaço físico, na qual
se tornou perceptível o que inicialmente era invisível. Assim, os cursos criativos e
reflexivos da proposição foram cultivados pelas possibilidades de conversas como
entrega a novas vivências.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 379

Entre a escrita e a leitura:


cadernos como espaço de criação

Raphael de Andrade Couto


Colégio Pedro II / RJ – [email protected]

Procuro investigar a questão da leitura e da escrita nos cadernos de artista


coo espaços de invenção: muito além de uma ideia de espaços de notas, os
cadernos assumem uma autonomia e fisicalidade que lhes dão um status de
obra de arte, ao mesmo tempo que contaminam e são contaminados por toda
a complexidade da produção artística. Por fim, transitando entre os trabalhos
do autor/artista penso no corpo como esse espaço de notas, dessa escrita que
exige do leitor uma outra percepção de corpo e texto.
Palavras-chave: Cadernos de Artista, Corpo, Marcel Duchamp, Artur Barrio

Trato de investigar el tema de la lectura y la escritura en los cuadernos del


artista como espacios de invención: más allá de una idea de los espacios de
notas, los cuadernos de artista asumen autonomía y cuerpo que les dan un
estatus de obra de arte, mientras que contaminan y están contaminados por
la complejidad de la producción artística. Por último, moviéndose entre la obra
del autor / artista pienso en el cuerpo como este espacio de notas, esta escri-
tura que requiere el lector una percepción diferente de cuerpo y texto.
Palabras llave: Cuadernos de artista, cuerpo, Marcel Duchamp, Artur Barrio.
380 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

1.
O presente artigo se coloca como um desafio: o artista/autor que fala do próprio trabalho
não sem o distanciamento crítico, mas que ao mesmo tempo que foge de uma leitura
distanciada do trabalho. Busca, portanto, uma reflexão com o trabalho em processo, com
a execução em andamento, como um bloco de notas, como um diário afetivo e reflexivo.
Para pensar em cadernos como esse espaço de reflexão e invenção do artista/autor
que disserta com a própria poética, é importante partir de uma ideia de processo: o texto,
assim como o fazer artístico encontram-se em andamento e, muito além de uma reflexão
fechada com o tema proposto, se propõe a ser, a cada página, um espaço de experimen-
tação. Por isso acredito ser importante utilizar o termo escrever com o trabalho, e não a
partir de ou sobre, pois estes pressupõem uma escrita anterior/posterior, e sim – como
no caso desse artigo – de uma escrita em conjunto com a poética, que pode ser pensada
como um texto de artista, como obra.
Dessa forma é importante pensar na escrita e na leitura como problemas: os cader-
nos e livros de artista (cuja diferenciação conceitual não será possível nesse texto) se
configuram numa escrita especial, onde não apenas a estrutura linear, de páginas e frases
da esquerda para a direita e de cima para baixo são rompidas, como a própria matéria-su-
porte do livro. Escrever aqui pressupõe um ato expandido, além de sua estrutura original
e tradicional, que transita desde anotações recorrentes a um trabalho até a um caderno
que ganhe condição de objeto: o acúmulo de notas e ideias acaba por si dando aos
cadernos um status de obra autônoma, sem necessariamente serem vistos como comple-
mentares a uma obra ou apenas dos estudos como curiosidade e um entendimento mais
profundo do artista.
Da mesma forma, a leitura de um caderno ou livro de artista exige uma condição
especial do leitor: uma dedicação mais delicada e aberta às possibilidades que o obje-
to traz: exige uma curva, uma leitura de manipulação, de reinício, de exploração das
possibilidades do objeto e, por fim de um escrita conjunta: o leitor que complementa o
trabalho ao manipulá-lo, ao estar no caderno.
Portanto, há uma exigência do corpo como texto: não um texto tradicional mas um
texto especial – da dedicação na escrita e na leitura, e de um corpo que reflete e absorve
essa textualidade.

2.
Parto aqui da ideia do caderno como espaço de invenção: sem vínculos ou comprome-
timentos, o caderno é um espaço de estudo, de surgimento de ideias, de comparações e
análises. De palavras e imagens soltas, desenhos, colagens, notas. A anotação, esse fazer
primeiro, essa escrita livre é o marco inicial de uma produção de artista que se coloca
como “feitor”.
Assim, as anotações, as ideias, os fazeres primeiros possuem em si uma autonomia
em relação aos seus desdobramentos. Seu caráter formal apresenta em si um caráter de
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 381

objeto, um espaço de liberdade e experimentação. Como no Grande Vidro de Marcel


Duchamp, cuja Caixa Verde (figura 1)

foi ironicamente pensada como manual-catálogo de assistência à visão do Vidro, a modo de


exercício retiniano, porém, ambos territórios, o da obra e o das anotações, se desejam autôno-
mos e extremamente dissociativos, no visível e no literário respectivamente, e de articulação
relativamente inexata. (Moure in: Duchamp, 1998)

de assistências, faz do universo das anotações e, consequentemente dos cadernos


de artista, um espaço de invenção de fronteiras complexas, de repetições, de processo.
Como continua Gloria Moure, estes se “negam a converter-se em trama, suporte ou re-
ferência e se aliam apenas por “condescendência” poética”. (op.cit.).
Há que se destacar essa dissociação entre o visível e o literário apontado por Moure
na Caixa Verde: o espaço das anotações, da escrita e do estudo, apresentado em pran-
chas na Mariée mise à nu par ses célibataires, même apresentam o Grande Vidro em
uma estrutura de estudo, de processo e de escrita. Enquanto o Grande Vidro possui sua
autonomia fetichista do ver através, da dupla superfície e do deslocamento de um lugar
da pintura, a Caixa Verde apresenta as superfícies como páginas, como texto. Páginas a
serem lidas de qualquer maneira, dispostas sobre uma mesa como pranchas, como um
álbum, onde a escrita e a anotação do artista o colocam na condição de livro, de estudo.
Estudo esse que não caminha apenas no aspecto da “montagem”, mas em ano-
tações que vão para um caminho mais indeterminado. Talvez aí resida a autonomia das
anotações em relação aos trabalhos: coabitando com a ideia de projeto, as anotações da
Caixa Verde apontam para ideias, formas, detalhes e questões mais subjetivas, no que
Gloria Moure mais uma vez se faz presente:

Do mesmo modo que a obra de arte não é a origem central do desenvolvimento expansivo do
âmbito de criação, tampouco se manifesta como necessidade uma oscilação à preponderância
da objetividade ou da subjetividade. Pelo contrário, a tensão entre elas se mantém e não há
pretensão alguma de dissipá-la pois nela reside a ignição criativa, a criação e a percepção
plásticas. (op. cit.)

Seria possível então pensar toda a obra de arte como anotação? Onde a tensão entre ob-
jetividade e subjetividade, entre os múltiplos fazeres (de projetar e refletir) se atravessam?
Acredito numa horizontalidade entre esses “fazeres” e fronteiras: ao mesmo tempo
que possuem uma autonomia enquanto obra de arte, há cruzamentos e atravessamentos
entre os cadernos e seus desdobramentos, no que Georges Didi-Huberman diferencia
as ideias de table e tableau (Didi-Huberman, 2010), onde a mesa seria esse espaço de
horizontalidades, de influências múltiplas, de encontro de questões, de montagem. E não
apenas a análise de um trabalho em sua unidade, quadro.
382 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

A horizontalidade pressupõe uma travessia de fronteiras, de barreiras, e as anota-


ções, longe de uma localização inferior numa hierarquia de uma produção de obra, são
parte de um todo que se influencia mutuamente.
Caráter esse que pode ser percebido nos Cadernos-Livros de Artur Barrio, onde o
artista, por meio de um texto-imagem, fundamenta sua produção de modo horizontal e
multicontaminante (Figura 2).

Figura 1:Marcel Duchamp: La Boîte Verte, 1943. Figura 2 – Artur Barrio: CadernoLivro,
Fonte ignorada 1978. Fonte: Revista Arte & Ensaios,
PPGAV/UFRJ

Como coloca o artista/autor, “CadernosLivros têm como conteúdo textos/ projetos/


documentos/ trabalhos/ reflexões/ ensaios/ anotações/ divagações/ contos/ ideias/ frag-
mentos de ideias/ desenhos/ colagens/ etc.” num fluxo múltiplo de documentação, pro-
jetos, registros, ideias e divagações. Os CadernosLivros assumem assim um lugar nessa
estrutura mesa, de anotação, de obra autônoma e de diálogo com uma obra maior, que
não se restringe a projeto, execução e registro, mas funciona numa estrutura circular,
como um ouroboros, pois ao mesmo tempo em que é “embrião” é “trabalho”.
Assim, penso nos cadernos como espaço corpóreo: ao serem vestígios da ação 4 dias
e 4 noites e também pontos de partida para outros produtos, ao acumularem textos, ima-
gens, palavras e imagens, desenhos e fotografias, ideias e registros, estudos e detalhes da
máquina de chocolate para o Grande Vidro, além das anotações e percepções do projeto,
os cadernos assumem uma identidade corporal única: uma estrutura matérica que não
se assemelha às estruturas de quaisquer obras: há uma fragilidade única, o papel que se
altera com as intervenções e experimentos, o erro, o caráter livre de leitura e escrita, a
desistência, a incompletude, o processo em seu caráter mais puro.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 383

Nos meus cadernos (Figura 3) encontro essa inquietação: a fragilidade, o risco de


destruição e a própria exposição destes a um público leitor que ali encontra o inespera-
do: diferentes pesos, colagens, incisões, costuras, textos... enfim, uma variada gama de
imagens como uma textualidade especial: um conjunto não narrativo que possui uma
identidade nesses encontros de tensões. Como escrita aqui, assim como em Duchamp e
Barrio, percebo um caráter não explicativo de um universo de ideias, mas esse acúmulo
de fluxos e propostas, em caráter bruto, estando os cadernos sujeitos à destruição, perda
e inutilização, tanto na sua fisicalidade quanto no seu arcabouço de ideias.

Figura 3: caderno do autor – sem data, coleção do artista.


Os cadernos mantém esse caráter de espaço notas, de diário fragmentado e multidi-
recional, mas nesse acúmulo de materiais, textos e processos pessoais, se aproximam de
uma ideia de livro de artista.
Mais do que de livro de artista, os cadernos assumem na minha poética uma condi-
ção de notas além do papel. A questão da escrita como condição especial no caderno de
artista, subjetiva, não-narrativa, fragmentada, tautológica, reflete no corpo como espaço
de notas. A pele assume esse caráter de superfície onde o texto se projeta, num caráter
imagético, com a mesma visceralidade das páginas escritas (Figura 4). Como no texto A
Colônia Penal, de Franz Kafka, onde o condenado é colocado numa máquina que tatua
na pele o crime pelo qual este foi condenado, sangrando e sendo marcado até a morte.
O corpo do condenado na colônia é resíduo reflexivo de seu próprio erro. Não há
sentença verbalizada, mas marcada na pele: “_Seria inútil anuncia-la (a sentença). Ele
vai experimentá-la na própria carne.” (Kafka, 1998)
Meu corpo não é marca de uma sentença até a morte, mas é marca de passagens
subjetivas, como um caderno de notas, de projetos. A marca visceral, o sangue que
se projeta tem a intensidade de uma escrita especial, e exige do leitor/espectador um
entendimento desse corpo como anotação, como texto, como verbo, como grito mudo.
384 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Figura 4: Válvula – performance – 2013 – acervo do artista

Referências
ARTE & ENSAIOS – Revista do PPGAV?UFRJ. Edição 17. Rio de Janeiro, dezembro de 2008.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas: Cómo llevar el mundo a cuestas? Madrid, Reina Sofia, 2010.
DUCHAMP, Marcel. Notas(Introducción de Gloria Moure). Madrid, Editorial Tecnos, 1998.
KAFKA, Franz. O Veredicto/ Na Colônia Penal. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 385

Quando o sentido do
registro se faz presente

Reginaldo da Nóbrega Tavares


UFPel – [email protected]

Angela Raffin Pohlmann


UFPel – [email protected]

Este artigo descreve o processo de colaboração na criação de um conjunto


de esculturas. As esculturas foram construídas a partir do resgate da memó-
ria de vida do autor, em colaboração com outro colega. A colaboração foi
estabelecida a partir de conversas e da troca de ideias, que propiciaram a
reflexão e o amadurecimento dos estudos e motivação para realizar esta série
de trabalhos. Os registros armazenados na memória correspondiam a diferen-
tes momentos de vida. Estas lembranças estavam adormecidas e de maneira
silenciosa o autor sabia de sua importância. A colaboração faz com que as
pessoas se conectem com elas mesmas e resgatem as lembranças.
Palavras-chave: conversar, colaborar, proceso de criacão.

En este artículo se describe el proceso de colaboración en la creación de un


conjunto de esculturas. Las esculturas se construyeron a partir de la recupe-
ración de la memoria de vida del autor, en colaboración con otro compañero.
La colaboración se estableció a partir de conversaciones y del intercambio de
ideas, lo que llevó a la reflexión y la maturación de los estudios y motivación
para llevar a cabo esta serie de trabajos. Los registros almacenados en la
memoria correspondian a diferentes momentos de vida. Estos recuerdos es-
tavan adormecidos y de manera silenciosa el autor sabía de su importancia.
La colaboración hace con que las personas se conectan con ellas mismas y
rescaten los recuerdos.
Palabras clave: charlar, colaborar, proceso de creación.
386 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Introdução

“Nós nos comunicamos para criar com os outros uma razão para viver”
(Vilém Flusser)

Este artigo descreve o processo de colaboração na criação de um conjunto de escul-


turas. As esculturas foram construídas a partir do resgate da memória de vida do autor,
em colaboração com outro colega. A colaboração foi estabelecida de modo informal e
espontânea a partir de conversas e da troca de ideias. As conversas propiciaram os mo-
mentos de estudos e motivação para realizar esta série de trabalhos.
Colaborar é dedicar tempo para uma construção. Uma conversa é uma maneira de
estabelecer uma colaboração, pois conversar necessita do desprendimento de tempo.
Então, quando conversamos estamos consumindo tempo para nos comunicarmos, nós
estamos dedicando um tempo de nossas vidas para nos aproximarmos de outros. Esta
comunicação envolve transmissão e recepção de informações, de palavras e de senti-
dos. Estamos construíndo uma experiência. Experiência no sentido descrito por Larrosa
(2002) para quem a experiência envolve expor-se, colocar-se em risco, enfrentar o pe-
rigo e deixar-se atravessar pelo que se passa. Estamos trocando com os outros. Uma
conversa colaborativa nos estimula e reforça as nossas convicções, nos afirma como
seres humanos, pois temos a chance de tentar expor o que pensamos, o que sentimos, de
tentar mostrar quem realmente somos, as nossas razões, justificativas e descrever as nos-
sas emoções. Quando conversamos mantemos a esperança de sermos compreendidos.
Conversar é um momento muito especial da vida.
Quando pensamos na vida moderna, vemos que as pessoas estão correndo para
todos os lados a fim de atender as demandas já programadas nas rotinas e nas eventuais
demandas que surgem diariamente. Mas se não temos tempo como podemos conversar?
Na vida moderna nos comunicamos quase que permanentemente. Estamos conectados
através da rede de computadores e de telefones. Nós estamos enviando mensagens ele-
trônicas através das redes de computadores e de celulares, porém a comunicação pela
via eletrônica não é a mesma conversa.
Quando conversamos presencialmente com alguém nós criamos uma percepção ins-
tantânea desta conversa. Estes contatos físicos são feitos em quase todos os lugares,
como em casa, na escola, no trabalho e no deslocamento entre lugares. Mas conversar
não parece ser simples. No dia-a-dia vemos que as pessoas estão correndo, focadas em
seus afazeres, desconfiadas das intenções alheias, se distanciando uns dos outros. As
conversas são mais rápidas, mais distantes e focadas em um objeto pragmático, e muitas
vezes não trazem nenhum sentido. Porém, o ser humano é um ser falante e capaz de pro-
duzir ideias. As conversas francas e honestas que estabelecem conexões entre indivíduos
colabora, potencializam ideias que podem se transformar em projetos importantes para
um ou mais protagonistas daquele momento.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 387

A Memória
A memória é o lugar a onde se encontra o nosso passado recente e o passado distante.
Precisamos deste passado para vivermos e criarmos a estrutura necessária ao nosso re-
dor. Os nossos aprendizados, sentimentos, reconhecimentos e tantas outras coisas estão
armazenadas na memória. Mas como resgatamos o passado? Temos a chance de resgatar
o passado quando somos estímulados. Estes estímulos são percebidos através do olfato,
tato, visão e audição. Estes estímulos quando capturados desencadeiam um processo
de busca das lembranças e registros mentais da experiência vivida. Os nossos registros
armazenados na memória correspondem a diferentes momentos de nossas vidas. Alguns
registros que estão arquivados no acervo de nossa memória podem não estar em uso.
São lembranças que ocupam espaço, que podem ser acessadas, mas sofrem da falta de
sentido. Porém, estes registros não foram descartados e estão vivos em nossa memória.
Talvez, a intuição da importância destas lembranças mantivesse este registro memori-
zado em lugar seguro. No entanto, a intuição não é condição suficiente para encontrar o
sentido destes registros que estão vivos na memória. Talvez, o sentido tenha que vir por
meio de um estímulo externo.
Muitas ideias e projetos interessantes podem estar sendo gestados de maneira si-
lenciosa já que os registros estão armazenados na memória do autor. Embora alguma
construção esteja em curso, esta construção inicia sem direção e sentido.

Esculturas
As esculturas aqui referidas tiveram início muito tempo antes de sua realização. Elas
tiveram início no momento em que as experiências estavam sendo vividas. Estas ex-
periências geraram informações e conhecimentos que foram armazenados na memória.
Porém, produtos e subprodutos, resultados de uma vivência, perdem o sentido ao longo
do tempo ou por falta de sua atualização ou porque são armazenados sem sentido.
Os registros que deram origem às esculturas referidas neste texto nasceram em outro
momento da vida do autor, mas estes registros somente recentemente foram resgatados.
Quando ganharam sentido foram resgatados e motivaram a produção de esculturas. Mas
quando um registro ganha sentido? Não sabemos dizer. Talvez, o sentido do registro
tente se fazer presente e mostrar o quanto ele nos pertence, mas pode não ser simples
percebê-lo.
A figura 1 mostra uma das esculturas produzidas a partir do resgate de registros men-
tais que foram armazenados há muitos anos. Esta escultura deu forma aos registros que
foram resgatados. O material usado é arame de aço galvanizado, parafusos, porcas e arrue-
las. Este material forte e rígido permitiu um resultado inusitado graças à sua flexibilidade.
388 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Figura 1: Escultura realizada pelo autor (arame galvanizado, porcas e parafusos, 60 x 40 x 60


cm, 2013)

Do ponto de vista de um primeiro olhar as esculturas descrevem uma simples cone-


xão de parafusos com arames de aço galvanizados. Os fios de arames são enrolados no
corpo do parafuso e uma porca empurra a arruela contra o arame. O arame que está tor-
cido no corpo do parafuso é então apertado e permanece firme entre a arruela e a cabeça
do parafuso. Mas um segundo olhar pode revelar a força das conexões que sustentam a
forma. Por trás da aparência caótica da escultura podemos perceber que os fios de ara-
mes e parafusos ocupam uma posição singular e que cada parafuso colabora de forma
única para dar um sentido à escultura. Quando este sentido é percebido, o observador
pode ver a ordem na qual os parafusos se conectam.

Conclusão
A colaboração entre duas ou mais pessoas é um fato comum. Os trabalhos que envolvem
a colaboração de um grupo de pessoas também parece ser uma alternativa do tempo em
que vivemos. As pessoas se aproximam por diversas razões e este contato pode poten-
cializar o aprendizado, compreensão, respeito, prazer e criatividade. Porém, uma pessoa
poderia ser capaz de despertar em outra os sentidos que ajudam a facilitar a compreen-
são da sua paisagem interna e externa. Isto talvez possa acontecer quando uma pessoa
entrega para a outra a atenção que ela precisa, ou quando empresta, de forma honesta, o
ouvido. A colaboração faz com que as pessoas se conectem com elas mesmas e resgatem
as lembranças que foram catalogadas lá atrás em outros tempos. A troca de ideias poten-
cializa uma reflexão que traz um sentido para os registros na memória.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 389

Referências
BERNARDO, Gustavo; FINGER, Anke; GULDIN, Rainer. Vilém Flusser: uma introdução. São
Paulo: Annablume, 2008.
FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo:
Editora Cosac Naify, 2007.
LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. In: Revista Brasileira de
Educação. Rio de Janeiro, n.19, 2002.
390 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Linha da vida: registros


autobiográficos de artista

Ricardo Maurício Gonzaga


PPGA/UFES – [email protected]

O texto apresenta um aspecto ainda não publicado, seja em forma de exposi-


ção ou de análise textual no âmbito acadêmico, da obra de seu autor, consti-
tuído por um conjunto de álbuns autobiográficos realizados a partir de 1978.
Híbridos de diários - apesar de cada unidade constituir mais propriamente
um anuário - e cadernos de experimentação de artista, estes álbuns operam
simultaneamente o registro de uma biografia específica e a construção de um
lugar específico para o exercício cotidiano da arte.
Palavras-chave: cadernos de artista, imagem, texto, linguagem, história.

This paper presents an aspect not yet published, whether in form of exposure
or academic textual analysis, of the author’s work, consisting of a set of auto-
biographical albums made since 1978. Hybrid of diaries - although each unit
be more properly a yearbook - and expW language, history.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 391

Introdução
A escrita do texto deste artigo implica em uma dificuldade e um desafio: derivam ambos
do problema que todo autor enfrenta ao elaborar análise da própria obra. Nestes casos
a necessidade de objetividade se confronta com a impossibilidade de escapar à subje-
tividade, impositiva, obviamente, por definição. Não se trata, no entanto, de tentativa
inédita, muito pelo contrário, já que constitui prática corrente e aceita - ainda que nem
por todos e, por muitos, com restrições - que chega a constituir boa parte da contribuição
dos escritos sobre arte na atualidade. Convém também mencionar que as desvantagens
referentes à evidente dificuldade de distanciamento, oriunda da fusão das posições, au-
tor, artista/teórico, parecem ser plenamente compensadas pela possibilidade de uma fala
que, ao se originar no próprio âmago do processo de criação, responsabiliza-se pela
elaboração de uma análise a partir deste lugar privilegiado, que só o próprio autor, evi-
dentemente, pode ocupar.
No caso de um grupo específico de artistas - grupo este em que me incluo - que de-
vido à especificidade de sua formação em nível de pós-graduação, teve a oportunidade,
que se manifestou na verdade em forma de exigência, de exercitar esta fala específica,
autoanalítica e autorreflexiva, esta tarefa não se apresenta como inédita, à medida que
foi enfrentada ao longo de inúmeras monografias de mestrado e doutorado, resultando
na escrita de dissertações e teses correspondentes, próprias às áreas de Poéticas ou Lin-
guagens Visuais dos programas de pós-graduação em arte, no Brasil e no exterior.
Se, por um lado, o aspecto político do exercício desta oportunidade, tão visceral-
mente avessa ao espírito de divisão de competências moderno, aparentemente não deve
ser negligenciado, por outro, tais análises devem, evidentemente, evitar a todo custo o
perigo de incorrer no equívoco de se manifestar como críticas de cunho laudatório ou
autopromocionais. Em relação a este aspecto, vale referir que não se trata aqui de modo
algum de tentativa de exercício de juízo de valor sobre o objeto analisado - esta sim uma
impossibilidade evidente para o próprio autor.
Finalmente, é preciso mencionar que, no caso específico, devido ao fato do objeto
analisado constituir material de caráter autobiográfico - diários ou anuários em forma
de cadernos - ou álbuns - de artista - de cunho eminentemente privado, todas as difi-
culdades citadas ficam naturalmente ampliadas. No entanto, o desafio desta análise e
apresentação se impôs, aproveitando esta oportunidade de vir a público, porque, dado o
caráter absolutamente excêntrico deste material, avesso por natureza à própria ideia de
exposição, em não se aproveitando brechas como esta para sua apresentação, o curso
natural apontaria, inevitavelmente, para sua recepção pública póstuma. Neste caso, se-
ríamos obrigados a aceitar incondicionalmente o juízo de Duchamp, quando menciona
preferir a posteridade como forma de espectador: “porque o espectador contemporâneo
não tem nenhum valor, na minha opinião” (Duchamp apud Cabanne, 2008, p. 132). O
que talvez não fosse absolutamente estranho à natureza dos álbuns, à medida em que,
muitas vezes parecer ser mesmo com ela - a posteridade - que eles dialogam.
392 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

História, prática e teoria


Temos a tendência de juntar e guardar coisas. Por motivos afetivos, sentimentais, nos
apegamos a pequenos objetos, papéis e fotografias que nos remetem a momentos espe-
ciais de nossas vidas. De certa forma eles nos ajudam a construir e salvaguardar uma
percepção própria de nossas existências. Muitas vezes, ao retornar de uma viagem, orga-
nizamos álbuns de recortes, scrapbooks, em inglês, que vão nos permitir posteriormente
relembrar e reconstituir os momentos felizes daquela experiência. Organizados em ál-
buns ou guardados em caixas, estas lembranças - suvenires - nos acompanham muitas
vezes ao longo da vida: o que fazer delas? Em 1978, aos vinte anos de idade, deparei-me
pela primeira vez com o problema e com o dilema decorrente: manter - e consequen-
temente, continuar acumulando - coisas e pequenos papeis, fotografias e cartas ou pro-
mover contínuas seleções ao longo do tempo, no sentido de conservar apenas aquelas
lembranças que constituiriam a essência da essência do que há de mais significativo
para mim, como indivíduo? Hoje, a tendência generalizada, a ponto de ter se tornado até
paradigmática, é a de considerar todos estes ‘documentos’ como absolutamente descar-
táveis. Tal tendência pode ser explicada, como o faz Jean Baudrillard (2002), por uma
desvalorização generalizada do passado, que incide sobre toda e qualquer materialidade
documental. Respondendo a estas imposições, o senso comum já tomou sua decisão,
clara e irrevogável, que deve valer para todos: desfaçam-se destas inutilidades, desape-
guem-se, isto será o melhor para você, sua vida se tornará mais leve, tanto no sentido
figurado, quanto, neste caso obviamente, no material - o que, sob este aspecto, não deixa
de ser verdade. No entanto, aos vinte anos, decidi agir inversamente a estas prescrições,
que, na verdade, ainda não se manifestavam, muito menos com a violência normatizante
impositiva com que o fazem hoje, a serviço da homogeneização das existências e em-
pastelamento das singularidades: passei a organizar tudo aquilo que poderia ser fixado
em folhas de cadernos bidimensionais em álbuns, à razão de um por ano, anuários,
portanto. A partir daquele ano, 1978, tendo realizado três para os anos imediatamente
anteriores, dei sequência a esta prática que continua até hoje (Figuras 1 e 2).
Como ‘containers poéticos’ (LACERDA, 1991), estes álbuns guardam ‘de um tudo’,
por assim dizer, de folhas com anotações manuscritas: recados, listas de compras, cartas
em seus envelopes, até notas impressas: contas de supermercado, bilhetes de passagens,
extratos de bancos, embalagens de remédios; imagens: fotográficas ou recortadas de
jornais ou revistas, figurinhas soltas de antigos álbuns e desenhos, meus ou de meus
filhos, de outras crianças (por vezes, encontrados), amigos, alunos e colegas, sejam de-
senhados diretamente sobre as folhas dos álbuns, sejam coletados de um guardanapo
de bar ou de uma folha abandonada após uma reunião, quando foram distraidamente
esboçados (figura 3). Esta ampla gama de materiais, os registros mais banais da vida
cotidiana, se organiza como matéria prima para o trabalho ao longo destas páginas, que
documentam, como diários de bordo, o trânsito de uma vida e de muitas outras que com
ela se entrelaçam.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 393

Figura 1: Álbuns da década de 80 (capas): da esquerda para à direita e de baixo para cima:
1984, 1985, 1986, 1987, 1988, 1989.

Figura 2: Álbuns da década de 90 (capas): da esquerda para à direita e de baixo para cima:
1991, 1992, 1993, 1994, 1995, 1996.

Escritores frequentemente elaboram, ao longo da vida, diários, que se acumulam,


vindo a ser revelados, publicados - apenas a posteriori, em edições póstumas. Acredito
que, como nestes diários, se manifeste em minha prática um certo ‘desejo de faraó’, se
me permitem a expressão, desejo de permanência para além da morte, ou de não confor-
mismo em relação ao fim abrupto que ela impõe. Desejo este, aliás, nada estranho à mo-
tivação dos artistas - e escritores - em geral, de todos os tempos, que pode chegar, talvez,
até a se constituir como causa fundamental para todo processo de criação: recusar-se
a desaparecer por completo. Um impulso inconformista contrário ao fim inescapável.
394 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Figura 3: Páginas dos álbuns dos anos 2000 (em cima) e 1996 (em baixo)

A diferença destes álbuns, diários/anuários em relação a seus congêneres produzidos


por escritores reside, a meu ver, em sua natureza híbrida, mistura de escrita e imagens,
que conduz a narrativa autobiográfica por outras vias, distintas das próprias à escrita.
Neste sentido, à despeito de sua feição eminentemente histórica - dada sua lineari-
dade cronológica, parece ser mais apropriado definir esta escrita autobiográfica como
sendo pós-histórica, na acepção de Vilém Flusser (1996) para este conceito, justamente
por seu caráter híbrido, que se reconfigura a cada momento, a partir do próprio exercício
de sua reinvenção cotidiana.
Segundo Vilém Flusser, vivemos o limiar de uma nova era, em que uma nova for-
ma de linguagem, pós-histórica, estaria sendo forjada, a partir do advento das imagens
técnicas. Esta linguagem, que se constituiria como um amálgama de imagens e textos,
determinaria o fim da era histórica do Ocidente, dominado pelo paradigma da forma
escrita que transcreve a linguagem falada e que caracteriza aquilo que ele, Ocidente, tem
de específico: o império do conceito (à medida que o Oriente só vem a se encontrar com
esta forma de linguagem ao se defrontar com a cultura ocidental, lidando anteriormente
com sistemas ideogramáticos de linguagem). Se, como aponta Flusser (1987), em rela-
ção a esta nova linguagem, somos todos ainda analfabetos, já se encontram, no entanto,
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 395

em andamento inúmeras tentativas iniciais de sua formulação, nos mais diversos cam-
pos, inclusive e, naturalmente - talvez, principalmente - no campo da arte. Um exemplo
corriqueiro e até banal, por extremamente cotidiano, é a utilização de signos programa-
dos oferecidos por softwares de comunicação textual, tais como emoticons e emojis, em
mensagens de textos trocados por usuários da rede mundial de computadores. A prática
de ilustrar ou mesmo apenas sublinhar o que está sendo dito - escrito - por pequenos
signos previamente programados, reflete a necessidade nascente de uma comunicação
por meio de dispositivos imagéticos, numa sociedade cada vez mais dominada pela
produção e consumo de imagens. Parece notável que, anteriormente à criação destes sig-
nos agora disponibilizados por programas, tal necessidade já houvesse se manifestado,
emergindo na forma de improvisações, como a utilização de signos gráficos, parênteses,
aspas, colchetes, dois pontos, disponíveis nos teclados dos computadores pessoais, que,
associados, configuravam os signos desejados, expressões de alegria (smiles) admira-
ção, tristeza, espanto, etc.
Realizados ao longo de um período de trinta e cinco anos, portanto e, já agora, su-
perando mesmo este número, à medida que, com o aumento de imagens fotográficas,
derivado da utilização de câmaras digitais, tornou-se necessário realizar um álbum por
semestre, ao invés dos anuais, este conjunto manifesta concretamente uma verdade hera-
clitiana: uma comparação entre álbuns com intervalos de mais de dez anos - de qualquer
período - vai apresentar diferenças notáveis, tanto no que diz respeito aos conteúdos
fixados, quanto em relação às opções em termos de organização e diagramação. Este
processo de metamorfose contínua parece denotar de forma clara, concreta, que o modo
de ser do ente que somos, para falarmos com Heidegger (2002), é de natureza plástica,
não podendo deixar de sê-lo igualmente seus produtos.
Os primeiros álbuns eram feitos a partir de cadernos de desenho, comprados, com
espirais metálicas. Posteriormente estas foram substituídas por outras mais largas, de
plástico. Atualmente, são encadernadas folhas de papel ofício, com espirais de plástico,
as mais largas possíveis. As capas são cortadas em papel cartão duplex e especialmente
preparadas a cada álbum. As primeiras folhas, assim como as últimas, por abrir e fechar
cada álbum, apresentando o ano que se segue, também se diferenciam das demais, que
se inserem no fluxo de passagem do tempo (figura 4).

Figura 4: Primeiras páginas dos álbuns dos anos de 1985 (em cima) e 2003 (em baixo)
396 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Os papéis cotidianos são mantidos em ordem, em agenda pessoal, vinculados aos


dias respectivos e transferidos para envelopes de plástico ao fim de cada mês, para sua
utilização posterior, quando chega seu momento de inserção nos álbuns. As fotos, atual-
mente, também são arquivadas digitalmente e ampliadas neste momento. O lapso de
tempo entre o vivido e a realização dos álbuns costumava ser de um ano, aumentou para
dois e hoje está em cinco.
Obra aberta por definição, a possibilidade - e inevitabilidade - de sua interrupção
coincidirá com o fim da própria história de seu autor, guardado um pequeno lapso de
tempo, à medida que a realização das páginas dos álbuns acontece a uma pequena mar-
gem dos acontecimentos.
Cortada a linha da vida, portanto, será naturalmente estancado o fluxo destes arqui-
vos. Poéticos ou artísticos. Ou não. A posteridade decidirá e a ela caberá o ônus de lidar
com eles. Ou deles se desfazer: revertere ad locum tuum.

Referências
BAUDRILLARD, Jean. Tela total. Porto Alegre: Sulina, 2002.
CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. São Paulo: Perspectiva,
2008.
FLUSSER, Vilém, Prétextos para a poesia. In: Cadernos RioArte, ano 1, nº 3, 1985.
______________. Texto/ Imagem enquanto dinâmica do Ocidente. In: Cadernos RioArte, ano II,
nº 5, 1996.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2002.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 397

Apropriação e participação
em Mouchette Org:
a profundidade no zerodimensional

Rodrigo Hipólito dos Santos


PPGA /UFES – [email protected]

Através da proposição artística Mouchette.org (1996) este artigo trata de ca-


racterísticas específicas da net.art voltadas para o compartilhamento e a inte-
ratividade. Sob a ótica da “estética relacional” de Nicolas Bourriaud, trata-se
do cunho colaborativo desse trabalho. Com vistas para o elogio da superfi-
cialidade de Vilém Flüsser, tangenciado pelo sentido de “técnica moderna”,
apresentado por Martim Heidegger, aponta-se a relação mais extensa entre o
domínio da tecnoimagem e o apagamento da condição histórica.
Palavras-Chave: mouchete.org, apropriação, participação, net.art

Through artistic proposition “Mouchette.org”, (1996) this article deals with the
specific characteristics of net.art focused on sharing and interactivity. Under
the perspective of Bourriaud’s “relational aesthetics”, this text deals with colla-
borative sense of this work. With views over the Flusser’s praise of superficiali-
ty, crossed by the sense of “modern technique”, presented by Martin Heideg-
ger, shows the most extensive relationship between the area of ​​tecnoimagem
and erasing the historical condition.
Keywords: mouchete.org, ownership, participation, net.art
398 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Qual seria a melhor maneira de Mouchette cometer suicídio quando chegar aos treze
anos? A artista que se apresenta em Mouchette.org jamais atinge a idade final, mas, tal-
vez tenha encontrado uma grande transformação quando o nome por detrás do avatar foi
revelado. A página inicial (www.mouchette.org, 1996) da criação de Martine Neddam
apresenta a imagem de moscas a andar sobre uma flor. Tudo aponta para um recorte
improvisado, uma composição amadora e infantil. No canto superior esquerdo da home-
page surge o rosto de uma menina de, talvez, 13 anos. Ao lado da foto há informações
como num questionário: ela é uma artista, seu nome é Mouchette, tem quase 13 anos,
mora em Amsterdã e logo adiante um botão para alterar o “estado de espírito” da suposta
artista. Ao acionar o botão o fundo é trocado por outra imagem de flor e as moscas per-
manecem (mouche). Na medida em que o usuário “explora” os atalhos a partir da home-
page, textos, áudio, imagens e animações surgem como referências pouco consistentes
da vida e da obra da artista adolescente. A hipertextualidade de Mouchette.org parece
servir para que o usuário perca-se na exploração. Cada link faz surgir no ecrã conteúdos
que tanto põem em dúvida a veracidade do que é dito quanto aumentam o envolvimento
do usuário. Por um breve currículo de realizações e imagens de sua residência em Ams-
terdã, até “pinturas” com intervenção digital de extrema inocência, a vida de Mouchette
é apresentada. Muitos dos links parecem sem saída e realmente assim seriam, não fosse
a requisição de contato direcionada ao usuário do website através de formulários de fee-
dback. E-mails personalizados são enviados aos usuários receptivos, isto é, aqueles que
cedem seu e-mail e prestam-se para possíveis diálogos.
Mouchette.org nunca foi retirado do ar e na medida em que conquistava o público
frutificava também polêmicas. Direitos autorais, pedofilia e os limites da liberdade na
internet são pontos discutidos com o “problema” Mouchette.org (SALVAGGIO, 2002).
A referência ao filme de Robert Bresson, Mouchette, a virgem possuída (1967) é uma
das bases estruturais da “personalidade virtual” Mouchette. O filme, por sua vez, foi
inspirado no livro La Nouvelle Histoire de Mouchette (1937), de Georges Bernanos. Tra-
ta-se da história de uma adolescente que sofre dissabores sociais e familiares numa pe-
quena comunidade e comete suicídio após ser violentada. Martine Neddam apropria-se
do título, da narrativa e do peso psicológico dessas referências para conceber a persona
virtual. O linguajar simples, repleto de conotações sexuais e mórbidas, aliado a indica-
ção de uma criança de 12 anos de idade, torna a relação com os usuários aparentemente
inadequada ou eticamente preocupante.
Nos primeiros anos de existência de Mouchette.org a autoria permaneceu encoberta.
O processo de aprimoramento do trabalho levou Neddam à construção de outros “ca-
racteres virtuais” e trouxe respostas do público provavelmente não previstas no projeto
inicial. Websites baseados no desenvolvimento de Mouchette.org surgiram como modo
de apoio ou mesmo crítica e esses novos locais de apresentação de conteúdo foram, em
alguma medida, agregados ao trabalho inicial. Hoje Mouchette.org não mostra o “ca-
ráter virtual” proposto por Martine Neddam em 1996, mas surge como uma plataforma
para discussão dos limites personais da vivência na web.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 399

A discussão a respeito da localização do autor diante da importância do papel do


espectador para a construção do significado nas artes visuais não é novidade. A assimila-
ção das ideias provindas do pós-estruturalismo na crítica de arte permitiu que houvesse
um diálogo direto entre a teoria, os espaços de exposição e as trabalhos cada vez menos
receptivos a uma abordagem morfológica. Em 1966, na John Hpkings University, o
colóquio Langages of Criticism and the Sciences of Man prestou-se a discutir as conjec-
turas pós-estrutrualistas (Derrida, Lacan, Goldmann, Todorov, Barthes). Essas teorias
abriram margem para o tratamento dos trabalhos de arte que usavam de imagens de
circulação e assumiam os sentidos conotativos como princípio de leitura dos resultados
de desmontagem e demonstração das camadas de significação agregadas pelos itens
apropriados. Essa espécie de transformação no cenário crítico permitiu afirmações como
a de Sherrie Levine:

O mundo está cheio ao ponto de sufocar-se. O homem marcou sua presença em cada pedra.
Cada palavra, cada imagem é arrendada ou hipotecada. [...] Uma imagem é um tecido de ci-
tações saídas dos inumeráveis centros de cultura. Nós podemos apenas imitar um gesto que é
sempre anterior, nunca original. [...] O observador é o espaço onde se inscrevem todas as cita-
ções que compõem uma imagem, sem que nenhuma delas seja perdida. O significado de uma
imagem situa-se não em sua origem, mas em seu destino. (EVANS; LEVINE, 2009, p. 81).

Situar o significado de uma imagem (ou de qualquer espécie de conteúdo) em seu


destino, muito mais que em suas origens quase sempre incertas, é uma das principais
condições encaradas pelos propositores da arte na web. Para diversas propostas de arte
apresentadas na passagem da década de 1980 para 1990 a separação entre o autor, o pro-
cesso de trabalho e o espectador tornou-se ou muito difícil ou realmente impraticável.
Um esforço lúcido para a compreensão desse cenário encontra-se na teoria de Nicolas
Bourriaud (2009a). O autor aborda uma parcela da produção atual de arte que emerge
num cenário socioeconômico desgastado pelo capitalismo tardio, no qual a aceleração
do consumo parece guiar o poder de conferir significados aos produtos. Os “eventos”
propostos por Tiravanija são exemplos para Bourriaud. O artista promove momentos
de convivência, abre o museu ou a galeria, ou mesmo a rua, como restaurantes para o
consumo de sopas e crepes. Por vezes ao próprio público é deixada a responsabilidade
de preparação de seu alimento, noutras ocasiões o artista é o anfitrião-cozinheiro. O
ambiente construído pela reunião das pessoas em torno do produto e o que mais esse
público puder retirar dos diálogos abertos é o que Tiravanija entrega como arte. Em
eventos como os de Tiravanija encontramos o que Bourriaud considera como “formas”
artísticas plenas, isto é, os “meetings, os encontros, as manifestações, os diferentes tipos
de colaboração entre as pessoas, os jogos, as festas, os lugares de convívio, em suma,
todos os modos de contato e de invenção de relações” (BOURRIAUD, 2009a, 40) que
no cenário da arte atual apresentam-se como verdadeiros “objetos estéticos”. Bourriaud
empenha-se em compor uma “teoria estética que consiste em julgar as obras de arte em
400 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

função das relações inter-humanas que figuram, produzem ou criam” (2009a, p.151). O
“critério de coexistência” seria a saída crítica para melhor compreensão das produções
de valor relacional. Diante da proposta de um artista o público poderia perguntar-se
sobre sua própria localização com o que lhe é apresentado. Tal critério considera que o
trabalho de arte “produz um modelo de socialidade, que transpõe o real ou poderia se
traduzir no real” (2009a, p.149). A “coexistência” com o público seria a marca da arte
relacional. Nesse sentido a revolução comportamental ocorrida com a popularização da
internet demonstra um desejo de construção de novos espaços de socialidade que não
apaguem o caráter personal das atividades do quotidiano.
A ideia de “subjetividade polifônica” do psicanalista francês Felix Gattari é cara
ao trabalho de Bourriaud, pois é centrada na indicação de um novo paradigma estéti-
co. À arte estaria resguardado um poder de criar novas qualidades para o mundo, de
promover sentidos através do afeto e da percepção. Nessa explicação pontual Gattari
cita Duchamp: “A arte é um caminho que leva à regiões que o tempo e o espaço não
regem” (1992, p. 129). Na “máquina autopoética” (GATTARI, 1992, p. 135) residiria
essa capacidade da arte e o início de um paradigma estético o qual permite a valorização
de uma subjetividade polifônica, ou plural. A arte relacional presta-se bem como modo
de singularizar situações e assim ressaltar subjetividades que não dispensam a condição
personal do sujeito, mas permitem sua confluência com e sua inserção em situações
coletivas e institucionais.
Nas ideias apresentadas por Bourriaud em Pós-Produção (2009b) o sentido do uso
e do tráfego de informações para as realizações da arte atual surgem com maior ênfa-
se. Tanto a estética relacional como a pós-produção “tomam como ponto de partida o
espaço mental mutante que a internet, instrumento central da era da informação em
que ingressamos, abril para o pensamento” (BOURRIAUD, 2009b, p. 8). Ao inserir
a discussão de uma pós-produção como modo de fazer da arte atual, as propostas não
podem se afirmar como uma criação a partir do zero, mas como reciclagem de produtos
já existentes e pertencentes ao imaginário de uma cultura do fluxo de dados (BOUR-
RIAUD, 2013).
“[...] os artistas atuais não compõem, mas programam formas: em vez de transfigu-
rar um elemento bruto (a tela branca, a argila), eles utilizam o dado.” (BOURRIAUD,
2009b, p. 13). Produtos tornaram-se matéria-prima. Nesse cenário toda a informação
está disponível como dado. O interesse está nas relações criadas ou alimentadas entre a
mixagem e a subjetividade do público. Como aponta Manovich (2001.p. 49), vislumbrar
um sentido amplo de colaboração é inevitável quando se lida com a construção em rede,
embora essa interatividade possua sempre barreiras do próprio meio. Na web a reprodu-
ção é a regra e a cópia uma constante. Trabalhar uma informação na web é tanto repro-
duzi-la de alguma fonte quanto compartilhar a construção do sentido dessa informação
com os demais fios humanos. As propostas de artistas que fazem uso primordialmente
da web, como Neddam, devem ser encaradas sob o critério de coexistência e da recodi-
ficação em rede, mas também sob os limites do meio.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 401

A difusão dos aparelhos digitais e a consequente assimilação no quotidiano dos


produtos eletrônicos transformam a experiência com o mundo. A utilização do aparato
tecnológico que nos é disponibilizado pelo desenvolvimento dos artefatos digitais cria
a ilusão de que dominamos tais instrumentos. No entanto, o mundo sobre o qual reside
a socialidade humana pertence cada vez menos ao homem. “Estranhamente, asseme-
lhamo-nos àqueles numerosos povos primitivos que não compreendem os mecanismos
biológicos e evolucionistas que sustentam os fenômenos planetários, e que nem mesmo
sabem interpretá-los” (DYES, 2003, p. 268). Usufruímos hoje de um conforto fascinan-
te, mas não temos consciência do modo como tal conforto é produzido. Segundo Dyes
vivenciamos um “inconsciente tecnológico”, pois nossas rotinas e percepções mais ínti-
mas são guiadas por “caixas-preta”. Lidamos com o sentido de “aparelho programado”
empregado por Vilém Flüsser.
Os conceitos de “aparelho” e “programa” nos falam tanto de estruturas funcionais,
como as máquinas fotográficas, quanto, num âmbito mais extenso, de estruturas que
contemplam a organização das atividades humanas. Aparelhos são estruturas que reali-
zam uma atividade a qual determina a existência dessa mesma estrutura. Aparelhos são
funcionais. “Funcionar é permutar símbolos programados” (FLÜSSER, 2011, p. 44). A
programação permite que o aparelho, a estrutura, realize-se funcionando. O conjunto de
possibilidades de execução de uma tarefa inscritas na base do aparelho pode ser entendi-
do como o programa. O que fazemos, em última análise, ao fotografar com uma câmera
é reproduzir um conteúdo codificado contido no interior de sua caixa-preta. O produto
dessa experiência Flüsser denomina imagem técnica, ou tecnomimagem.
A tecnoimagem é a representação de um código inscrito no interior da caixa-preta
da máquina fotográfica. Essa mesma determinação pode ser aplicada aos dados que cir-
culam no interior de um computador e consequentemente no ambiente da web. As ima-
gens de computador são o exemplo máximo da imagem eletrônica, ou imagem sintética.
Num pensamento mais amplo a existência do código como base encontra-se em todas
as realizações científicas ocorridas após a estipulação do cálculo decartiano. O processo
de construção de conhecimento fundado no cálculo obedece à mesma estrutura de for-
mulação de um aparelho com sua caixa-preta, pois o cálculo é mesmo a origem dessa
estrutura. O sentido específico de “técnica” contido no conceito de tecnoimagem fala
de uma técnica baseada na existência de um código a ser representado. O programa dos
aparelhos é um cálculo, uma fórmula que possui seus resultados em sua própria forma.
Em suma, nada de novo pode surgir do cálculo. A técnica que permite o sucesso de tal
lógica é chamada por Martin Heidegger de “técnica moderna”. O filósofo da fenomeno-
logia hermenêutica tece, em A Questão da Ténica (2008) a distinção entre a técnica no
entendimento grego e chamada técnica moderna, baseada no cálculo decartiano.
Para Heidegger, a thekné grega vincula-se ao modo de aparecimento de uma coisa
real e verdadeira, isto é, com as quatro causas filosóficas: a causa materialis, a causa
formalis, a causa finalis (a intenção para a qual destina-se a “matéria formada”) e a cau-
sa efficiens (o produtor, ou o próprio produzir, o ato de produzir). Já a técnica moderna,
402 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

não estaria vinculada a esse processo de “responder e dever” que formaria a base da
thekné e da poiésis gregas. A técnica moderna faz com que coisas apareçam para a
realidade, porém, seu procedimento é a construção de um esqueleto, uma fórmula, ou,
mais propriamente, uma “composição” (gestell) sobre a qual os elementos observados
no mundo são dispostos para se chegar a um resultado. Sob esse prisma, por exemplo, a
ciência não mais estudaria o mundo, mas puramente seus próprios códigos. Os aparelhos
dos quais nos fala Flüsser, somente puderem ser concebidos por essa determinação. É na
programação do aparelho que reside sua condição de reprodutor de processos. As conse-
quências do domínio da técnica moderna através dos aparelhos são as mais extensas e a
fala de Dye é bastante esclarecedora do modo como somos afetados.

Nosso conforto aumenta, nossa esperança de vida também, nós nos alimentamos melhor, dor-
mimos melhor, estamos menos afligidos pelas dores e terrores; em resumo, as nossas necessi-
dades primárias não somente estão sendo suprimidas, mas o estão sendo de uma maneira cada
vez mais agradável. Entretanto, não sabemos como tudo isso se produz. Mais as sociedades
humanas se virtualizam, mais a linguagem, a codificação e a decodificação reais e científicas
do mundo nos escapam. Vivemos hoje num tipo de inconsciente tecnológico [grifo nosso],
onde tudo é possível, tudo é maleável, moldável, transformável ao infinito, onde o tempo e o
espaço estão ao nosso alcance, mas é onde também as modificações profundas permanecem
para nós opacas, ocultas e inacessíveis. (DYE, 2003, p. 268-269).

O trabalho de arte na rede esforça-se por demonstrar as programações do mundo co-


dificado, desse hiper-real, e o faz inevitavelmente de modo interativo, através de jogos.
O artista que trabalha com a web apropria-se tanto da network, da aparelhagem, quanto
dos códigos e do próprio usuário e sua rede. A intenção primeira é a criação de jogos de
significados para reprogramar o mundo. Essa recodificação somente é possível através
da participação, da aceitação e do trabalho do espectador-co-autor. Martine Neddam cria
uma plataforma na qual aderem produtos de diversas épocas, rotinas e mídias. A persona
de Mouchette “toma corpo” na medida em que pode travar diálogos com os habitantes
da web. Os jogos feitos pela personagem de Neddam baseiam-se na virtualidade de seu
surgimento, isto é, nas possibilidades de reconhecimento por parte do usuário do site
de itens ali encontrados. Levar o usuário ao diálogo para que possam ambos, o usuário
e “mouchette” compartilhar um espaço de vivência é sublinhar as subjetividades po-
lifônicas promovidas pelo sucesso da internet. A rede de compartilhamento de dados
funda-se numa realidade inteiramente calculada (baseada no cálculo), de modo que suas
representações são dos programas que dão vida aos aparelhos. No entanto, trabalhos
como Mouchette.org demonstram que a realização de jogos insere “ruído” num cam-
po aparentemente sem profundidade que é a eletrônica. Na prática, Mouchette.org não
possui três dimensões, não pode ser tocada, não será encontrada nas esquinas da cidade,
porém, pode surgir como o interstício para diálogos e atividades subjetivas. A arte reali-
za a fundação de sentidos no caminho entre as ações e os encontros.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 403

Referências
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Trad. de Denise Bottmann. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2009a.
______. Pós-Produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. Trad. de Denise Bott-
mann. São Paulo: Martins Fontes, 2009b.
DYES, Olliver. Arte na Rede. In: DOMINGUES, Diana (Org.).Arte e Vida no Sec. XXI: tecnolo-
gia, ciência e criatividade. São Paulo: UNESP, 2003, pp. 265-272.
EVANS, Davis (Org.). Appropriation. London: Whitechapel Gallery, 2009.
FLÜSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São
Paulo: Annablume, 2011.
______. O Universo das Imagens Técnicas: Elogio da Superficialidade. São Paulo: Annablume,
2008.
GUATTARI, Félix. O Novo Paradigma Estético. In: ______. Caosmose: um novo paradigma esté-
tico. Trad. de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Claudia Leão. Revisão Técnica de Suely Rolnik.
Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
HEIDEGGER, Martim. A questão da técnica. In:______. Ensaios e conferências. 5.ed. Petrópolis:
Vozes, Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008, p. 11-38.
MANOVICH, Lev. The Language of New Media. Massachusetts: MIT Press, 2001.p.49.
SALVAGGIO, Eryk. A Critical Analysis of Mouchette.org. eryk at maine.rr.com. Tue Nov 19
09:53:09 CET 2002. Disponível em: <http://tekspost.no/pipermail/syndicate/2002-Novem-
ber/011506.html>. Acesso em: 24 jul. 2013.
404 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

As performances do artista e do
público na intervenção “Conte-me
um segredo”

Rodrigo Souza
UFJF – [email protected]

Este trabalho tem como objetivo abordar a intervenção “Conte-me um segre-


do”, realizada no centro da cidade de Juiz de Fora – MG, no intuito de entender
a performance criada pelo artista numa dupla relação: não somente o espaço
da rua foi alterado pela performance, pela criação de um espaço-efêmero,
mas também o “eu” do performer se travestiu de outro “eu”. A intervenção
consistiu, portanto, em um processo de afetar e de deixar-se afetar, de lidar
com o fluxo cotidiano, com o desconhecido.
Palavras-chave: performance, intervenção, segredos.

This paper aims to address the intervention “Tell me a secret”, held in the
center of the city of Juiz de Fora - MG, understanding the performance by the
artist in a dual relationship: not only the space of the street was changed by the
performance, the creation of a space-ephemeral, but the “I” of the performer
is dressed in another “I”. The intervention consisted therefore in a process to
affect and to let be affected to cope with the daily flow, with the unknown.
Keywords: performance, intervention, secrets.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 405

Introdução
O projeto “Conte-me um segredo”, realizado em Juiz de Fora-MG nos meses de maio,
junho e julho de 2013, foi dividido em duas partes. A primeira, uma intervenção em
espaço urbano e, a segunda, uma instalação interativa.
O performer foi para o “Calçadão da Rua Halfeld”, uma das principais vias de circu-
lação de pessoas na cidade, vestido com um colete estilo “compro ouro”, no qual estava
escrito a frase “Conte-me um segredo”. Ele distribuía panfletos para que as pessoas
escrevessem neles seus segredos, que também explicavam do que se tratava aquela in-
tervenção. As pessoas depositavam os papéis com os segredos em uma urna próxima ao
espaço em que o performer estava. (Figuras 1 e 2)
Todo esse processo foi gravado, no intuito de gerar um vídeo cuja função ultrapas-
sasse apenas a de documentação da performance, de modo a funcionar como uma obra
paralela. Além disso, o objetivo do vídeo não era revelar quem estava ali contando os
segredos, mas resguardar a imagem das pessoas: elas eram filmadas apenas abaixo da
linha do pescoço e/ou a imagem estava desfocada.
Os segredos recolhidos, juntamente com o vídeo, foram expostos sob o formato de
uma instalação interativa no mês de julho. Além disso, também foram expostas algumas
fotografias realizadas posteriormente à intervenção, fotografias com enquadramentos
semelhantes às utilizadas em documentos de identificação. Na instalação, os segredos
e as fotografias estavam amarrados com fios de nylon em uma tela de arame, suspensa.
Neste artigo, a proposta é pensar em como as relações entre artista e público – e as
respectivas performances, isto é, as montagens que fazem de si, num jogo de mostrar
e esconder suas “identidades” – podem servir como catalisadoras para processos de
criação de novos modos de vida, desprogramando gestos e pensamentos já habituais.

Figura 1. Distribuição dos panfletos na inter- Figura 2. Pessoa colocando seu segredo na
venção. (Acervo do Artista) caixa durante a intervenção. (Acervo do Ar-
tista)

Intervenções
A intervenção “Conte-me um segredo” foi pensada como um modo de se inserir no fluxo
cotidiano da cidade, em um processo de afetar e de ser afetado, enquanto um modo de
“chegar entre”.
406 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Os movimentos mudam, no nível dos esportes e dos costumes. Por muito tempo viveu-se
baseado numa concepção energética do movimento: há um ponto de apoio, ou então se é
fonte de um movimento. Correr, lançar um peso etc.: é esforço, resistência, com um ponto de
origem, uma alavanca. Ora, hoje se vê que o movimento se define cada vez menos a partir de
um ponto de alavanca. Todos os novos esportes – surfe, windsurfe, asa delta – são do tipo:
inserção numa onda preexistente. Já não é uma origem enquanto ponto de partida, mas uma
maneira de colocação em uma órbita. O fundamental é como se fazer aceitar pelo movimento
de uma grande vaga, de uma coluna de ar ascendente, “chegar entre” em vez de ser origem de
um esforço. (Deleuze, 2010, p.155)

Assim, quando uma intervenção artística explora o espaço urbano como local de sua
realização, ela se insere em um fluxo preexistente, o do cotidiano. Em meio a esse movi-
mento, ela cria um intervalo, uma zona efêmera, um espaço-tempo singular. Essa cena,
diferente da cena do teatro, não pode ser repetida ou recriada, uma vez que o próprio
espaço no qual ela se localiza se transforma a cada instante. Isto é, não apenas a inter-
venção ressignifica o espaço no qual ela se insere, mas também é por ele ressignificada.
Deste modo, a intervenção pode ser entendida como um acontecimento, enquanto
um corte no tempo cronológico, como um ato pelo qual afeta o estado de um corpo. A
experiência que corresponde ao acontecimento é, assim, uma “disjunção associativa”,
“tempo morto não sucede ao que chega, coexiste com o instante ou o tempo do acidente,
mas como a imensidão do tempo vazio em que o vemos ainda por vir e já chegado, na
estranha indiferença de uma intuição intelectual.” (Deleuze, 1992, p.149, apud Zoura-
bichvili, 2004). Sob o termo Aion, o acontecimento insere um tempo flutuante, um fora
no tempo, uma temporalidade para-doxal. Contudo, esse fora não é transcendente, mas
imanente. Não há como conceber o acontecimento fora do tempo, embora ele próprio
não seja temporal. É necessário, então, estabelecer um conceito de multiplicidade, de
modo que a “coisa” não tenha “mais unidade a não ser através de suas variações, e não
em função de um gênero comum que subsumiria suas divisões” (Zourabichvili, 2004).
Chronos, portanto, deriva de Aion. Não há acontecimento fora de uma efetuação no
espaço e no tempo, ainda que o acontecimento não se reduza a isso.
O acontecimento tem lugar entre os corpos, no meio, entre as formas inteligíveis e as
coisas sensíveis, entre o sujeito e o objeto, mas também é a condição deles. É uma rea-
lidade intermediária, nem interior nem exterior, mas as duas coisas a um só tempo, em
que sujeito e objeto se confundem estreitamente, mas que a partir do qual se distinguem,
embora apenas virtualmente.

Afetações
Na intervenção “Conte-me um segredo”, o performer, ao buscar uma experiência que
o aproximasse da vida cotidiana, o fez com o objetivo de se inserir no social, deixando
que o próprio fluxo o afetasse a partir das relações tramadas com o público. O colete
idêntico ao dos homens-placa, ao dos “compro ouro”, foi apropriado de modo que o ar-
tista pudesse se inserir naquele fluxo. Somente um olhar atento reconheceria que aquele
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 407

sujeito tinha em seu colete não um anuncio, mas um pedido: “conte-me um segredo”.
A proposta de afetar o público para uma desconstrução do olhar tão determinado pelo
fluxo do cotidiano, portanto, começava já mesmo com a escolha do figurino.
Os panfletos que eram distribuídos convidavam o espectador a participar da inter-
venção, e também explicavam que todo aquele material seria exposto sob um formato de
instalação interativa, isto é, que os segredos escritos por eles naqueles papéis em algum
momento seriam revelados.
O que interessava na intervenção, sobretudo, não era o conteúdo de cada um dos
segredos, se esses eram verdadeiros ou falsos, mas sim o próprio ato da escrita, de con-
vidar o público a participar daquela trama, a fabular seus segredos em meio ao fluxo da
cidade. Uma reinvenção do espaço urbano e do cotidiano, mas também de si mesmo.
Deste modo, a intervenção “Conte-me um segredo” pode ser entendida também a partir
a partir do conceito de arte relacional, como aborda Bourriaud. Segundo o autor, a arte
relacional tomaria “como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu con-
texto social, mais que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado” (Bour-
riaud, 2009, pp.19-20). Assim, ele analisa a produção dos anos 1990 a partir da ideia das
relações humanas como o lugar da obra de arte, enfatizando o modo como os artistas se
inserem nas relações sociais para extrair formas e dar funções poéticas a essas relações.
Contudo, como aponta o autor, o objetivo do artista não é questionar os limites da arte,
mas utiliza-se da forma-performance para produzir efeitos diferentes.
Um conceito central para Bourriaud é o de “interstício”, que poderia ser conjugado
com o pensamento do “chegar entre” de Deleuze, abordado anteriormente neste artigo.
Ambos conceitos evidenciam possibilidades de inserção em uma rede de relações e de
fluxos, que possibilitam sugerir outras possibilidades de conexões para além das vigen-
tes. É um atentar para a ruptura, a interrupção, o entremeio, o entreato.
Bourriaud, ainda em seu livro “Estética Relacional”, recorre a Guattari, pois, para o
autor, “a única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subje-
tividade que auto-enriqueça continuamente sua relação com o mundo” (Guattari apud
Bourriaud, 2009, p. 145). Bourriaud conclui que essa definição se aplicaria também às
práticas artísticas contemporâneas, uma vez que os artistas produzem trabalhos catali-
sadores de experiências em vez de objetos concretos e fechados. Assim, o público faz
parte da obra.

Atuações
Nos é importante aqui entender a performance enquanto um processo em que “um corpo
se expõe e ao se expor cria a situação na qual se expõe, não sem, no mesmo gesto, criar-
se a si mesmo. Uma forma aparece e ganha forma – não previamente – mas à medida em
que aparece” (Brasil, 2011). No projeto, inicialmente, o artista estaria fantasiado com
máscara, roupas, sapatos, todos brancos pois não se queria associar que a pessoa estaria
contando segredos para uma outra pessoa, mas sim para um personagem fictício, uma
entidade, despersonalizado. Contudo, ao longo do processo, entendemos que aquele que
408 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

pediria os segredos para as pessoas não precisaria de se esconder atrás de uma fanta-
sia: a ficção estaria sendo criada no processo da performance. Na verdade, o que nos
interessava era o poder e a força da criação, tanto do performer, quanto do público, não
importando para distinções entre verdadeiro e falso, real e ficção.
Nesse sentido, é importante perceber a intervenção e a performance como um modo
do artista explorar o estranho em si. O artista tornava-se um personagem atuante através
da interação com o público e com aquele espaço no qual estava inserido, no intuito de
deixar-se afetar também por aquela experiência.
Assim foram com as conversas sempre amigáveis com os outros “compro ouro” e
com comerciantes da região, que iam, por vezes, perguntar o que estava acontecendo ou
mesmo para contar histórias de paixões secretas a um desconhecido no centro da cida-
de. Também afetaram aqueles que passavam, pegaram o papel para escrever o segredo
e voltavam no dia seguinte, com algo escrito – ou os que contavam segredos todos os
dias; ou mesmo todos aqueles que por ali passaram, uma vez que incitavam o artista a
ter que se transformar para se relacionar com cada um com quem ele decidia interagir,
principalmente pelos modo de falar e de agir com cada um dos passantes. (Figura 3)

Figura 3. Conversas durante a intervenção. (Acervo do Artista)

Além disso, propomos pensar junto ao conceito de “função fabuladora” (Deleuze


e Guattari, 1992), ao atentar mais para as sensações que impregnavam as narrativas
daquelas experiências, do que aquilo que estava sendo contado. O que importava era a
escrita de si como meio de tornar-se outro naquele processo.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 409

Quando escreviam segredos nos papéis – ou contavam ao pé do ouvido do artista


–, as pessoas não estavam apenas lembrando das histórias, mas invocando “blocos de
sensações” (Deleuze e Guattari, 1992) que envolviam as traições, as emoções contidas,
as vontades não realizadas, dentre outras narrativas que relatavam. Nesse sentido, a
intervenção poderia ser entendida enquanto uma potencializadora de intensidades, cria-
dora de novos modos de ser e de existir, desprogramando hábitos de percepção de si, do
outro, do mundo.

Conclusões
A relação arte/vida já evidenciada pelos cubistas com suas colagens de jornais e ima-
gens, “pedaços de realidade”, ou mesmo pelas performances e pela body art dos anos 60
e 70, é tema também de artistas contemporâneos, dentre os quais destacam-se os traba-
lhos de Sophie Calle e de Rirkrit Tiravanija. As obras de ambos, por sinal, são tomadas
por Bourriaud como exemplos do que chamou de “estética relacional”, em que define o
artista contemporâneo como produtor de relações.
Seria, também, nesse limiar entre a arte/vida que o projeto “Conte-me um segredo”
buscaria se inserir, através da produção de acontecimentos potencializadores de sen-
sações desestabilizadoras tanto para o artista quanto para o público. Transformar em
processo criativo uma experiência existencial seria, assim, o que importaria de fato para
essa intervenção, apagando quaisquer distinções entre realidade e ficção.
Deste modo, arte e vida se atravessam, se intercessam, se encontram, se vivenciam,
se artificializam. Uma se travestindo da outra, uma se constituindo a partir da outra,
numa relação de criação de novos modos de ser e de existir no mundo. E o sujeito, entre,
como personagem de si mesmo.


Referências
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2009.
BRASIL, André. A performance: entre o vivido e o imaginado.In: XX Encontro Anual da Compós,
2011, Porto Alegre. Anais do XX Encontro Anual da Compós, 2011, Porto Alegre
DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). São Paulo: Ed.34, 2010.
______________. Cours Vincennes : Intégralité du cours, 1978. Disponível em: http://www.web-
deleuze.com/php/texte.php?cle=194&groupe=Spinoza&langue=5.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed.34, 1992.
GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992.
ZOURABICHVILLI, François. Le Vocabulaire de Deleuze. Paris: Elipses, 2003. Disponível em:
http://www.ufrgs.br/corpoarteclinica/obra/voca.prn.pdf
410 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

O deslocamento do objeto pela


apropriação artística

Sabrina Vieira Littig


PPGA/UFES – [email protected]

O deslocamento do objeto para o campo da arte investiga as noções de au-


toria, materialidade, fetichização e hibridização dos processos envolvidos nas
concepções da linguagem da apropriação de objetos, bem como o seu caráter
reivindicativo da qualidade de obra de arte. Douglas Crimp usa o argumento
de que a apropriação se torna uma categoria acadêmica na medida em que o
museu utiliza-a para classificar ou tematizar a ordem destes objetos. Assim o
readymade, o objet trouvé, a assemblage, e demais tipos de vertentes apro-
priacionistas, no discurso da desestetização das artes, como sugere Harold
Rosenberg, se apresenta na ênfase dada à realidade dos materiais usados,
na forma primária, na antiforma, na antiestética, na desnaturalização do olhar
e na arte processo.
Palavras-chave: Objeto, arte, deslocamento, apropriação.

The displacement of the object for the art field investigates the notions of au-
thorship, materiality, fetishization and hybridization of the processes involved
in the conceptions of language appropriation of objects, as well as its character
of claims of quality artwork. Douglas Crimp uses the argument that the appro-
priation becomes an academic category in that the museum uses it to rate or
thematize the order of these objects. Thus the readymade, the objet trouvé, the
assemblage, and other types of appropriationist aspects, in the discourse of
not aesthetics of the arts, as suggested by Harold Rosenberg, presents itself
in the emphasis given to the reality of materials used in primary form, the anti-
form, the unsightly, the denaturalization of the look and art process.
Keywords: Object, art, displacement, appropriation
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 411

O objeto e a experiência artística


Os objetos na sua definição são prolongamentos da existência material humana e segun-
do Abrahan Moles (1920-1992)1, existem para suprir as necessidades do homem. Em
sua funcionalidade definem a espacialidade do universo material, delimitam ou referen-
ciam os espaços do entorno, e criam a identidade destes locais, em um sistema simbólico
referencial. Jean Baudrillard (1929-2007) diz que o sistema de significação dos objetos,
transcende a fenomenologia da vida cotidiana, estendendo-se ao conceito de signo e
símbolo2 existindo quase tantos critérios de classificação quanto objetos. O objeto na
experiência artística surge com as vanguardas do século XX, quando se observa um
potencial do objeto como linguagem nova. As experiências de automatismo dadaístas e
as apropriações insólitas do surrealismo são exemplos da radical atitude mental domi-
nante do período entre guerras. As colagens cubistas também refletem este espírito de
contradição às regras da arte acadêmica e o questionamento às estruturas da arte. Não
existe, porém, uma definição clara de apropriação de objetos que consiga dar conta dos
processos criativos em torno da temática. Objetos vêm sendo absorvidos pela arte desde
as primeiras décadas do século XX em grande parte em decorrência das inovações da
reprodução fotográfica da imagem, e do desenvolvimento dos aspectos da produção in-
dustrial de bens de consumo como reflexo da evolução do design e das transformações
nos meios de fabricação entre os séculos 18 e 19 (CARDOSO, 2004)3.
Não é possível tratar da inserção dos objetos na arte, sem falar de Marcel Duchamp
(1887-1968). Antes mesmo das performances e exposições libertárias do Cabaré Vol-
taire em Zurich, em 19164 onde ocorriam as primeiras manifestações dada, Duchamp
já estava escolhendo artigos em lojas de ferragens para suas experiências com o futuro
readymade5. Segundo Duchamp6, ele conhecera o dadaísmo quando estava nos Estados
Unidos, através do livro de Tzara, La Première Aventure Céleste de M. Antipyrine, e
pelo contato com Francis Picabia (1879-1953). Foi Marcel Duchamp quem estabeleceu
equivalência entre consumir e produzir, entre escolher e fabricar, quando criou seu rea-
dymade. Segundo afirma “[...] a escolha destes ‘readymades’ jamais foi ditada por delei-
te estético. A escolha foi feita com base em uma reação de indiferença visual e ao mesmo
tempo em uma total ausência de bom ou mau gosto [...]” (DUCHAMP. 2009: p.40. Trad.

1. “(...) O objeto, dentro da nossa civilização, é artificial. Não se falará de uma pedra, de uma
rã ou de uma árvore como um objeto, mas como uma coisa. A pedra só se tornará um objeto
quando promovido a peso de papéis, e quando munida de uma etiqueta: preço..., qualidade...,
inserindo-a no universo de referencia social.”. MOLES, Abrahan. A Teoria dos objetos. Rio de
Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro. 1981 : p. 26.
2. BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2002: p.10.
3. CARDOSO, Rafael. Uma introdução à história do design. São Paulo: Edgard Blücher, 2004.
4. BRADLEY, Fiona. Surrealismo. Trad. ALCIDES, Sergio. São Paulo: Cosac Naify, 2001.
5. CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. São Paulo: Perspecti-
va, 2001. (Debates)
6. CABANNE, Pierre. Op Cit.: p.85.
412 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

nossa)7. Por definição o nome readymade “[...] foi dado por Duchamp a um tipo de obra
que inventou, consistindo em um artigo produzido em massa selecionado ao acaso e ex-
posto como obra de arte. [...]” (CIPOLLA. 2001: p.438)8. Estes objetos colocados para
a apreciação artística contestavam um programa rígido de ações estéticas. Escarneciam
da elevação que os circuitos artísticos impunham a si mesmos. O readymade incor-
pora uma proposta de manipulação e recontextualização da própria história do objeto
enquanto pronto, instigando o artista ao não construir, mas a reivindicar através de sua
vontade, o status de obra de arte, explorando o paradoxo de que todo o objeto exposto
por um artista numa galeria se torna arte. Segundo Douglas Crimp (1944-) ficou claro
com os readymades de Duchamp, que a função dos artistas é trabalhar no âmbito de sua
“autoridade discursiva”, e a dos museus de arte é de “[...] declarar, diante de cada um dos
objetos que abriga: ‘Isto é uma obra de arte’. [...]” (2005: p.195)9.
O dadaísmo, ao qual Duchamp, Man Ray (1890-1976) e Francis Picabia, se reuni-
ram a partir de 1916 renega as definições disponíveis até então de arte e o sistema de
avaliação e validação dos objetos artísticos. Nesta vertente, o surrealismo também soube
explorar novos conceitos para o objeto. Os objetos começam a surgir na arte como simu-
lacros da realidade, com forte peso simbólico e evocativo, em esquemas compositivos
formais de matriz cubista à lógica das assemblages. Salvador Dali (1904-1989), por
volta de 1931, em um texto sobre os objetos surrealistas, diz que “[...] Todo o objeto era
considerado um ‘ser’ perturbador e arbitrário e era creditado como tendo uma existência
totalmente independente da atividade do experimentador. [...]” (1996: p. 422-429)10.
Dali ainda identifica seis categorias para os objetos surrealistas: “[...] objetos de fun-
cionamento simbólico (origem automática); objetos transubstanciados (origem afetiva);
objetos a ser projetados (origem onírica); objetos embrulhados (fantasias diurnas); obje-
tos mecânicos (fantasias experimentais) e objetos moldados (origem hipnagógica). [...]”
(BRADLEY. 2001: p. 43). Embora o objeto surrealista tenha sido formalizado por Dali,
é Alberto Giacometti (1901-1966) que ligado ao movimento entre 1930 e 1935, começa
a projetar o desejo sobre os objetos, para solucionar os problemas de sua escultura11. A
obra Bola Suspensa (1930), de Giacometti, é analisada por Dali como pertencente à pri-
meira categoria de objetos com função simbólica, erótica, e que demanda a participação
do espectador. Uma possível metáfora sexual. Outros objetos surrealistas, expostos em
1936, na Galerie Chales Ratton, mais baseados na composição de peças do que na sua
modelagem, incluíam o Telefone-Lagosta (1936) de Dali, e Café-da-manhã envolto em

7. DUCHAMP, Marcel. “Apropos of ‘Readymades’/1961”. In: EVANS, Davis (Org.). Appropria-


tion. London: Whitechapel Gallery, 2009: p. 40.
8. CIPOLLA, Marcelo Brandão. Dicionário Oxford de Arte. 2ª edição. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2001.
9. CRIMP, Douglas. Sobre as Ruinas do museu. São Paulo: Martins Fontes. Ed.1ª. 2005. 2005.
10. DALI, Salvador. O objeto revelado na experiência surrealista. In. SHIPP, B. Teorias da arte
moderna. 1996: p. 422-429.
11. BRADLEY, Fiona. Op cit.: p. 43.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 413

pele de Méret Oppenheim (1936)12. Este último considerado um objeto fetichista, ao


qual se atribui significação erótica excepcional situando-se nos limites entre absurdo,
realidade, imaginação e experimentação. O objeto surrealista, desta forma se distingue
do readymade pelo aporte simbólico que assume, através da subjetivação e da metáfora.
Como emblemas do fetichismo e da imaginação, esses objetos não deixavam nenhum
espaço para a objetivação formalista. O sentimentalismo da prática de garimpagem às
ecléticas lojas bric-à-brac13 do século 19, é subvertido, pelo sistema de “gabinetes de
curiosidades” surrealistas, definindo um fascínio pelo objet trouvé, aquele objeto en-
contrado, apresentado por um artista, sem alterações substanciais14. O objet trouvé se
distingue do readymade essencialmente por ser escolhido não pela indiferença, mas jus-
tamente pelo oposto, por gosto e afinidade de quem o escolhe, reconhecendo neste um
achado estético. A materialidade do objeto é que dita sua manipulação. Pode ser um
objeto natural, como uma pedra, uma concha, um objeto artificial, ou antigas peças de
ferro, de cartões postais até fotografias. O uso de diversos materiais tridimensionais,
para compor formas artísticas, deriva quase que diretamente da colagem cubista15, que
segue popular até o fim dos anos cinquenta. O termo assemblage começa a ser usado a
partir de Jean Dubuffet (1901-1985), mais precisamente a partir de 1953, para descrever
suas obras que não eram nem colagens, nem esculturas16. A assemblage, a despeito do
readymade e do objet trouvé, se identifica pelo uso de materiais nem estéticos, nem
prontos, mas de ambos. Na assemblage, todo e qualquer material pode ser incorporado à
arte, apropriado dos mais diversos meios, sendo característica sua acumulação. Um bom
exemplo de objeto utilizado na produção de sentidos das assemblages é a caixa. Como
espaço delimitado, ela protege o que está em seu interior, guarda segredos, como nos
faz pensar as enigmáticas caixas do americano Joseph Cornell (1903-1972), nomeadas
por ele de Museus, Caixas de joias, Farmácias e Habitats17. Guardar e esconder; na
linguagem poética, traz em si a dialética do aberto e fechado, uma fórmula do homem

12. DALI/ ABRIL COLEÇÕES. Tradução: ESMANHOTTO, Mônica; ESMANHOTTO, Simone.


São Paulo: Ed. Abril. 2011.
13. Bricabraque – do francês bric-à-brac – sm  1 antique or curiosity shop, bric-a-brac
shop. 2 bric-a-brac. – Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/ingles/definicao/por-
tugues-ingles/bricabraque_529803.html Acessado em 05/10/2013 . 16:57h
14. “Object Trouvé – (Fr. <<objecto encontrado>>) Qualquer objecto encontrado por um artis-
ta, e apresentado, sem qualquer alteração ou somente com modificações mínimas, como uma
obra de arte por si só ou como parte de uma obra de arte. Ver também COLAGEM, READY-
-MADE”. CIPOLLA, Marcelo Brandão. Op Cit: p.139.
15. LUCIE-SMITH, Edward. Dicionário de termos de arte. Lisboa: Dom Quixote, 1990: p. 59.
16. DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas e movimentos: guia enciclopédico da arte moderna. São
Paulo: Cosac & Naify, 2003. 304 p.
17. MCSHINE, Kynaston.  Joseph Cornell. New York: The Museum of Modern Art; Munich:
Prestel, 1990.
414 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

enquanto ser entreaberto. Bachelard (1884-1962)18 dirá que essa dialética do interior e
exterior na figura do cofre, da proteção da caixa e da fechadura, delimita uma fenome-
nologia das figuras imagéticas ricas de ambiguidade, ligadas ao signo do esconderijo,
do mistério e intimidade. Bachelard destaca que “[...] no cofre estão as coisas inesque-
cíveis, inesquecíveis para nós, mas inesquecíveis para aqueles a quem daremos nossos
tesouros.[...]”. (1978: p. 252). No mundo dos objetos inertes, a caixa esconde e revela,
transporta e protege. O cofre é um cárcere de objetos19. Em outro expressivo momen-
to de discussão a respeito das formas dos objetos, Georges Didi-Huberman (1953)20,
revela as relações tautológicas dos cubos minimalistas, e dá especial atenção a Black
Box (1961), do escultor Tony Smith (1912-1980), obra antológica, que o artista realizou
após o contato com uma pequena caixa preta, um fichário de madeira, exposto sobre a
escrivaninha de um amigo, que o fascinou de tal modo, vindo a influenciar seu trabalho
e o de outros artistas proeminentes21.
Foi Marcel Duchamp quem logo percebeu as peculiaridades das caixas para seus tra-
balhos. Ele produzirá inúmeras obras aos quais dará o nome de museus-portáteis, as Boi-
te-em-Valise. As relações com uma arte de arquivo, através das caixas em que Duchamp
organiza miniaturas, anotações e documentos, se evidenciam em uma abordagem irôni-
ca à fotografia, através da repetição e reprodução de seus documentos de processo. Uma
das suas obras emblemáticas é Tróis Stoppages Étalon, (1913-14). Foi também uma das
primeiras obras encerradas numa caixa produzida por ele. Consiste de três placas de
vidro finas e longas, sobre as quais estão dispostos pedaços de tela que servem de fundo
a três linhas de costura, fechadas em uma caixa de madeira de “croquet”. Duchamp diz
que para realizar a obra, repetiu três vezes a seguinte experiência: soltou um fio de 1 me-
tro de comprimento à altura de 1 metro na horizontal, deixando o fio deformar à vontade.
Ele recolhe os fios e os prende, cada um em uma tira de lona próprio ligado a uma placa
de vidro. Ele definiu este objeto como “acaso em conserva”22. A ideia de acaso, segundo
Duchamp, estava em voga por conta das primeiras manifestações de automatismo. O
acaso interessava-o como meio de contradizer a realidade lógica, o que o leva a repetir
três vezes a experiência de soltar a linha. No seu dizer, colocar qualquer coisa numa tela,
num pedaço de papel, associar a ideia de um fio caindo aleatoriamente ao sistema mé-
trico francês vigente, representava a experimentação e quebra de paradigmas. Segundo

18. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural,
1978.
19. BACHELARD, Gaston. Op cit.: p. 254.
20. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos o que nos olha. Ed. 34, 1998: p. 264.
21. DIDI-HUBERMAN, Georges. Op cit.: p. 90-91.
22. CABANNE, Pierre. Op. Cit.: p.68-69.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 415

Rhonda R. Shearer23, pesquisadora americana da obra de Duchamp, o fio distorcido


transforma-se num metro curvo, desafiando convenções especificas do sistema de me-
didas matemáticas. Ela estabelece relações matemáticas também ao interpretar o evento
de probabilidade em que se dá a experiência da queda dos três fios, relacionando com as
leis da probabilidade de Henri Poincaré (1854-1912), matemático de origem francesa, e
com a própria geometria euclidiana. Nessa perspectiva, Marcel Duchamp elabora suas
três quedas sob os auspícios de uma nova geometria (por conseguinte não euclidiana)
onde as regras de um metro curvo são possíveis: “[...] Duchamp declara que devería-
mos duvidar de qualquer sistema único, [...]”24, mesmo em se tratando de convenções
matemáticas como o sistema internacional de unidades de medidas francês25. No emara-
nhado de objetos lançados a arte, o fundamental reside na função da “vontade artística”.
Os significados se esquivam, a atividade mental é imediata e segue a espontaneidade
dos objetos. Onde não existem projetos pré-estabelecidos, a materialidade é imediata à
descoberta do objeto pelo artista. O discurso da “desestetização”, de Harold Rosenberg
(1906-1978) permite compreender o objeto antiestético relacionando-o a processos que
o lançam da arte a vida real. Ele afirma ser um princípio comum a espécies de arte deses-
tetizada, que o produto obtido seja menos importante do que os processos que envolvem
sua produção26. Segundo Nicolas Bourriaud (1965), quando um artista usa um objeto
para produzir seus trabalhos de arte, ele necessariamente, interpreta-o. O uso de objetos
fabricados como obras de arte, configura uma linguagem cujos significados de consumo
são latentes. Consumir o objeto de arte, como a qualquer outro objeto, conforme diz
Bourriaud, não é um ato passivo, de apreciação despreocupada. Nele, se descortinam
uma série de processos e operações que se desenvolvem como verdadeira “produção
silenciosa e clandestina”27.

23. SHEARER, Rhonda R. Marcel Duchamp’s impossible bed and others “not” readymade
objects: A possible route of influence from art to science/ Part II. Art & Academe (ISSN:1040-
7812), Vol 10, nº 02 1998: pág 76-95. Compyright 1997 Visual Arts Press Ltd. Disponível
em: http://www.marcelduchamp.net/marcelduchamp-Impossible-Bed-2.php - Acessado em
01/10/2013. 18:50h.
24. Shearer é conhecida por suas pesquisas que reproduzem as experiências descritas por
Marcel Duchamp em suas notas. O presente extrato foi retirado da segunda parte de ensaio
publicado originalmente em inglês, em Art & Academe (ISSN:1040-7812), Vol 10, nº 02 1998:
pág 76-95. Compyright 1997. Visual Arts Press Ltd. Disponível em: http://www.marceldu-
champ.net/marcelduchamp-Impossible-Bed-2.php - Acessado em 01/10/2013. 18:50h.
25. O Sistema internacional de unidades foi criado na França, logo após a Revolução Fran-
cesa, em 1799. Disponível em inglês e Francês: http://www1.bipm.org/en/si/history-si/ Acesso
em 01/10/2013; 17:50h
26. ROSEMBERG, Harold. Desestetização. In: BATTCOCK, Gregory (Org.). A Nova Arte Ed.
Perspectiva. 1975. São Paulo: 215-224.
27. BOURRIAUD, Nicolas. O uso dos objetos. In: Pós-produção: Como a arte reprograma o
mundo contemporâneo. Trad. BOTTMANN, Denise. São Paulo. Martins Fontes. 2009.
416 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

A tentativa de tematizar estes objetos quase sempre apresenta uma série de proble-
mas. Como encontrar uma classificação que explique ou justifique sua presença no am-
biente artístico? Uma análise isolada destes objetos demonstra antes uma necessidade
de busca por uma linguagem própria do que a adoção de um movimento. Isto denota a
necessidade de analisar a obra circunstancialmente, ou seja, a partir de características
próprias do seu contexto histórico, e das motivações artísticas que os criaram. Solicitar
a estes objetos que se enquadrem a um movimento, vanguarda ou linguagem artística,
representaria reduzir o alcance de seu diálogo com a arte.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 417

A criação compartilhada na
performance “tratado das
incorpóreas [sub]versões”

Samira Margotto
UNIR/RO – [email protected]

Éder Rodrigues
UNIR/RO – [email protected]

Cristiano Sousa dos Santos


UNIR/RO – [email protected]

Os registros que compõem o processo de criação da performance “Tratado


das incorpóreas [sub]versões” estão pautados em trajetos pluridimensionais
que envolvem o diálogo efetivo entre as linguagens artísticas, elegendo o cor-
po como espaço transgressor das fronteiras estéticas. Este trabalho performá-
tico se constituiu a partir de uma prática colaborativa que reuniu profissionais
oriundos das áreas do teatro, artes visuais, música, literatura e dança em um
exercício de trânsito e deslocamentos entre as funções específicas de cada
modalidade e os processos contemporâneos de assinatura coletiva da obra.
Palavras-chave: performance; prática colaborativa; diálogo interartes; proces-
sos de criação.

The records that make up the process of creating the performance “Tratado
das incorpóreas [sub]versões” are graded in multidimensional paths involving
effective dialogue between the artistic languages​​, choosing the body as a spa-
ce of transgressive aesthetic boundaries. This performative work constituted
from a collaborative practice that gathered professionals from the areas of
theater, visual arts, music, literature and dance in an exercise and traffic shifts
between the specific functions of each modality and contemporary processes
of signing collective work.
Keywords: performance, collaborative practice; dialogue interart; creation pro-
cesses.
418 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

A criação compartilhada na performance


“Tratado das incorpóreas [sub]versões
A proposta em desdobrar questões conceituais de linguagens artísticas diferentes em
um mesmo processo de criação possibilitou uma reflexão acerca dos principais debates
que envolvem o espaço contemporâneo, principalmente quando se elege a quebra das
fronteiras entre as artes como o eixo modulador da pesquisa. Dentro desta perspectiva
é que o Projeto de Extensão “Desdobramentos” da Universidade Federal de Rondônia
propôs uma pesquisa de linguagens, onde o diálogo interartes alicerça tanto o processo
quanto o produto. A terceira etapa de desenvolvimento deste projeto culminou com a
performance “Tratado das Incorpóreas [sub]versões” que deu continuidade ao trabalho
dos professores-artistas idealizadores deste projeto, porém ampliando o foco das refle-
xões ao dialogar com a performance e a dança. A performance foi apresentada na Casa
da Cultura Ivan Marrocos no dia 22 de maio de 2013 em Porto Velho/RO.
Para a construção deste trabalho, o ponto convergente estruturante partiu da mesma
linha de investigação que integrou no status da criação todas as proposições possíveis
acerca do conto Suspiros, porém nesta performance em específico, o interesse do cole-
tivo se pautou nas reverberações expressivas da dança e suas relações com as texturas,
sonoridades, imagens e ambiência que a narrativa evoca. Dessa forma, foi levantado um
inventário de sensações, memórias, registros esparsos, recortes imagéticos, fragmentos
textuais, fotografias, proposições musicais e outros elementos capazes de delinear a at-
mosfera cotidiana e doméstica do conto, além de vários pretextos subversivos para atuar
como provocadores na construção dos movimentos.
A escritura espetacular da performance foi elaborada coletivamente onde todos os
envolvidos, a partir de suas especificidades, contribuíram para a construção estética da
obra desde a sua concepção até o produto final compartilhado com o público. A escolha
da performance como modalidade artística após incursões pelas áreas do vídeo-arte e
da instalação trouxe significados plurais ao projeto, corroborando com as colocações de
Renato Cohen mediante aos apontamentos onde “A performance, na sua própria razão
de ser, é uma arte de fronteira que visa escapar às delimitações, ao mesmo tempo que
incorpora elementos de várias artes.” (COHEN, 2004.)
A ruptura com estéticas tradicionais a partir da pluridimensionalidade do processo
de criação, fator que muito caracteriza a arte contemporânea, fundamenta a concepção
de uma performance cujo formato emerge de condições únicas da associação entre os
diversos artistas envolvidos. Desta forma, embora em cena esteja apenas a performer,
a assinatura de todos os fatores sociais, históricos, memorialísticos e imagéticos que
compõe a performance pauta-se pela coletividade da construção. Ainda que cada qual
estreite maiores proposições com a área que representa, é no diálogo entre as áreas que
esta performance se circunscreve.
Pensar sobre os processos de criação de linguagens artísticas tão diversas como são
o teatro, a dança, a música e as artes visuais de modo que cada área se retroalimente em
um processo contínuo de coexistência e estabelecimento de diálogos nos parece ser um
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 419

elemento potencializador da pesquisa de linguagens. A construção de uma referência poé-


tica comum aos artistas envolvidos teve por base a apropriação do universo imaterial e ma-
terial do conto citado e em como o corpo da performer poderia trabalhar com as inúmeras
questões que o temário coloca, tais como a reivindicação ao próprio corpo, a subversão da
categoria de gênero e o questionamento dos estereótipos femininos na sociedade.
Neste sentido, referências ao pensamento de Rancière foram cruciais para os debates
teóricos de concepção deste trabalho, principalmente quando o autor esclarece sobre a
partilha do sensível como um fixador do comum compartilhado e das partes exclusi-
vas. A repartição das partes e dos lugares se funde numa partilha de espaços, tempos
e tipos de atividades que segundo Rancière “determina propriamente a maneira como
um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha”
(RANCIÈRE, 2005).
Tratado das incorpóreas [sub]versões é uma performance enraizada na dança con-
temporânea que correlaciona o som, a imagem e a poética do espaço. O público é convi-
dado a trilhar o mesmo caminho que a performer demarca com rastros de açúcar. O doce
de suas sutilezas e a pureza de um prólogo representativo é agudamente revertido quan-
do os ingredientes internos e externos se misturam durante o tempo em que a performan-
ce mergulha na fluidez de movimentos que sublinham silenciamentos e profundidades.
A performer trabalha no próprio ato o conceito estético de contaminação das ar-
tes e em muitos momentos transita de forma relacional por entre os quadros-vivos que
sugere, a tridimensionalidade espacial construída e o dialogismo coreográfico entre a
obra e o espaço físico no qual foi inserida. Em igual importância dançam no espaço
poeticamente construído, a iluminação, as projeções de vídeo, a música, os suspiros e a
intensidade dos movimentos que permite à arte se completar nesta performance como
expressão do ato poético.
O processo de criação foi regido pelas características que o som e as imagens as-
sumiam em cada um dos três eixos que subdividem a performance sendo 1) Açúcar, 2)
Claras e 3) Raspas e limão. A inserção de células sonoras que, junto ao texto, pudessem
dar a ideia de criação em processo, também ofereceram suporte à hibridez processual in-
vestigativa, principalmente no que diz respeito a recriar corporalmente os correspondentes
à acidez, ao doce e à viscosidade que os ingredientes que intitularam os eixos denotam.
Compreendida como espaço-tempo de desconstrução, a performance desnuda não
só a forma estereotipada que o ambiente doméstico suscita, como também subverte a
expectativa linear de uma releitura comumente feita de obras literárias. Os registros de
tempo por onde a performance opera obedecem a uma dinâmica corpórea própria, ínti-
ma e interna, onde a durabilidade das misturas se justifica pelo confronto com o espaço.
A definição dos contornos estabelece experiências onde o corpo age como um catalisa-
dor das criações temporais e de ambiência, das fulguras líquidas e dos sons (mecânicos
e vocais) em alternância de volumes e intensidades.
Nesta perspectiva, além do quesito coletivo de construção deste trabalho, o termo per-
former melhor define a “atuação” da artista bailarina, abarcando com maior amplitude a
420 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

sua posição no processo. O compartilhar-se em cena, correlacionando concomitantemente


a ficção e o depoimento, a obra e o processo, a representação e o acontecimento redimen-
sionam os preceitos e a abrangência do trabalho. Esta pluralidade característica da per-
formance equaciona debates acerca de alguns conceituais do campo do teatro e da dança,
sublinhando alguns espaços fronteiriços assinalados por Lehmann em suas considerações
sobre a cena pós-dramática. “É evidente que deve surgir um campo de fronteira entre per-
formance e teatro, à medida que o teatro se aproxima cada vez mais de um acontecimento
e dos gestos de auto-representação do artista performático.” (LEHMANN, 2007)
Em Tratado das incorpóreas [sub]versões, os artistas elegeram o próprio corpo como
matéria bruta dos resíduos capazes de se relacionar de maneira performático com os
prospectos transgressores que o conto sugere. Dessa forma, a construção de um inventá-
rio abstrato das nuances que nos impelem ao ultimato de um tratado de tudo o que sendo
incorpóreo nos compõem com a mesma força que a instância palpável, foi a base do
trabalho com forte cunho memorialístico, propenso a redesenhar no espaço não a super-
fície de uma coreografia apenas, mas as dimensionalidades literárias, pessoais, sonoras
e históricas de um corpo entreaberto às escalas do sentido.
O trajeto pluridimensional entre as linguagens artísticas e os reflexos no corpo da per-
former são evidenciados pela projeção, onde o repertório de movimentos traça no espaço
uma atmosfera subjetiva e delicada que re[cria] nuances sugestivas entre o feminino, as
fronteiras coreográficas e o universo cotidiano das receitas. A diversidade das linguagens,
tendência das artes performativas expressas no corpo, encontra nesta obra um estudo poé-
tico do movimento onde conforme coloca Louppe “ A análise e a transmissão do ato, não
passa pelo signo, mas pela contaminação entre os estados criados, enquanto o movimento
se desenvolve em graus de qualidades de energia, em tonalidades” (LOUPPE, 2005.)
A assinatura compartilhada da obra evidencia-se no diálogo presente entre a instân-
cia sonora, a teatral e a visual, tendo a performer como o fio condutor de um processo
que passou pelo corpo e pelo pensamento de cada um dos integrantes. A poética do
incorpóreo vai deixando rastros de impulsos, sabores e existência onde a performance
elimina a fronteira entre as artes como o seu local de enunciação, possibilitando a partir
do seu registro mediações entre o labor e o ato criativo.

Figura 1. Performance “Tratado das incorpó- Figura 2. Performance “Tratado das incorpó-
reas [sub]versões”. Performer: Andréa Melo reas [sub]versões. Performer: Andréa Melo
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 421

Figura 3. Performance “Tratado das incorpó- Figura 4. Performance “Tratado das incorpó-
reas [sub]versões. Performer: Andréa Melo reas [sub]versões. Performer: Andréa Melo

Referências
COHEN, Renato. Performance como linguagem. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
LEHMAN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosacnaif,
2007.
GERHEIM, Fernando. Linguagens inventadas: palavra, imagem, objeto: formas de contágio. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
LOUPPE, Laurwence. Danses Tracées. Paris: Dis Voir, 2005.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.
422 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

A utilização de fundos de arquivo:


o ensaio poético e as polifônias

Samira Margotto
UNIR/RO – [email protected]

Naara Fontinele dos Santos


Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3 – [email protected]

Os processos coletivos de criação, que se difundiram na contemporaneidade


a partir da década de 1990, têm atravessado as mais diversas áreas da pro-
dução artística e gerado diversas análises acerca da alteração do estatuto
da autoria. Porém, se no campo da criação a relação de verticalidade está
sendo tensionada, nas análises sobre o processo predominam os discursos
acadêmicos decodificados, especialmente, em relação à participação desses
“outros”. Tendo como referência a “Oficina de experimentação: o trabalho com
imagens de arquivo no cinema documentário”, realizada recentemente em
Porto Velho/RO, a reflexão proposta parte do cruzamento entre as vozes da
equipe de mediação e os depoimentos dos participantes a respeito da realiza-
ção coletiva de um exercício fílmico em vídeo com imagens de arquivo.
Palavras-chave: Processo de criação, Práticas colaborativas, Cinema e arquivo

The collective creative processes that spread through the 90s have influenced
diverse areas of artistic production and sprung analyses surrounding the ques-
tion of authorship. However, if in the creative field the vertical relationships are
under stress, the academic study of processes is still commonly directed at the
participation of “others”. Using as reference the “Experimentation workshop:
use of archive images in contemporary film”, which recently took place in Porto
Velho/RO, this paper begins by relating the voices of mediators with the tes-
timony of participants about the collective effort involved in the filmic exercise
with archive images.
Keywords: Process of creation, Collaborative art practices, Cinema and arquive
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 423

Introdução: a dimensão social e o desejo polifônico


Se entre os anos de 1980 e parte da década de 1990 o termo “pós-moderno” e seus
correlatos ocuparam a arena dos debates, levando Mike Featherstone a expor seu des-
conforto ao tratar de algo que estava simultaneamente na moda e com conteúdo difícil
de definir (Featherstone: 1990, p.93), na atualidade, são as questões em torno dos múl-
tiplos aspectos que envolvem a dimensão social que ocupam o centro das discussões,
problematizando dentre outras coisas, o estatuto da autoria nas práticas colaborativas.
No centro dos debates estão às posições divergentes de Claire Bishop e Grant Kester,
assumindo posto semelhante ao atribuído a Jürgen Habermas e Jean-François Lyotard
nas discussões filosóficas em torno do termo “pós-moderno”.
Analisando a questão participativa na produção artística a partir dos anos de 1960
até 2006, Claire Bishop aponta para três aspectos recorrentes nas tentativas de incentivar
a participação: ativação, autoria e comunidade (Bishop: 2006, p.12). O primeiro seria
a vontade de criar um sujeito ativo de participação capaz de determinar sua própria
realidade social e política. Tal questão, para a autora, deriva da legitimidade da relação
desejada entre a experiência da obra de arte e o agenciamento do individual\coletivo. O
segundo aspecto é relativo à autoria, no qual o gesto de ceder o controle autoral na pro-
dução partilhada é concebido como mais igualitário e democrático, do que a criação de
uma obra de um único artista, surgindo e produzindo “um modelo social mais positivo e
não-hierárquico” (Bishop: 2006, p.12). Por último, o terceiro aspecto, envolve para a au-
tora, uma crise de percepção na sociedade atual, acentuada com a queda do comunismo,
que procura restaurar o vínculo social por meio da elaboração coletiva de significados.
Portanto, ela ressalta que dentre os principais impulsos por trás da arte participativa esta-
ria uma tentativa de “restauração do vínculo social por meio de uma elaboração coletiva
de significado”. (Bishop, 2006, p. 12).
As considerações acima constam na “introdução: espectadores como produtores”
do livro Participation, com organização de Claire Bishop. Nessa mesma introdução, a
autora esclarece que “limitações de espaço, impediram uma apresentação mais completa
do Collective Actions group”, coletivo russo cuja proposta, segundo Bishop, consiste
em apagar os limites entre colaboração, evento e reflexão, convidando assim os partici-
pantes a documentar suas impressões a cada trabalho realizado (Bishop: 2006, p.15). A
“apresentação incompleta” faz referência aos depoimentos dos participantes que foram
excluídos do texto do coletivo publicado em Participation. Tal decisão da autora pode
ser lida como um indicativo de um aspecto paradoxal presente no campo artístico con-
temporâneo: enquanto no processo de criação as relações de verticalidade estão sendo
tensionadas, no registro acadêmico ainda persiste certa manutenção hierárquica, pre-
sente implicitamente neste caso, tanto na ordem de organização das sessões (disposição
dos textos dos artistas entre os dos teóricos e dos críticos, seus intérpretes pela tradição)
quanto na exclusão, “por limitações de espaço”, dos depoimentos dos participantes. Ao
ser seccionado, o trabalho adquire não somente uma incompletude, mas expõe no seu
recorte, no que precisou ser omitido, algo que pode ser aferido da definição que Jacques
424 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Rancière denomina de partilha do sensível, “como um sistema de evidências sensíveis


que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele defi-
nem lugares e partes respectivas.” Assim, para o autor “Uma partilha do sensível fixa,
portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas” determinando
“a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte
nessa partilha.” (Rancière, 2009, p.15).
O objeto de análise deste artigo é a oficina piloto “O trabalho com imagens de ar-
quivo no cinema contemporâneo”, concebida e ministrada para um projeto de mestrado
em Didática da Imagem na Universidade Paris 3 - Sorbonne-Nouvelle, realizada em par-
ceria com o curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Rondônia na cidade de
Porto Velho, em agosto de 2013. Esclarecer de antemão esses dados significa não apenas
informar sua ligação a priori com alguns elementos da tradição pedagógica: a oficina
é resultado de um projeto institucionalizado, foi concretizada por meio de uma parce-
ria entre instituições de ensino e ministrada nas dependências físicas da Universidade
Federal de Rondônia. Entretanto, o que parece fundamental para analisar as tensões da
autoria em um processo de criação conjunta, como foi o caso, não são seus aspectos
externos e evidentes, mas a forma de efetivá-los, como o fez Tânia Bruguera no projeto
Arte de Conducta, abordando “a educação como material que funciona no âmbito do – e
como – espaço político [...] montando um espaço possível para o desenvolvimento de
um diálogo sobre isso.” (Helguera: 2011, p.19).

Oficina de experimentação: o trabalho com imagens


de arquivo no cinema
A proposta da oficina consistiu em criar uma situação de transmissão e fabricação em
torno de imagens de arquivo. Durante três dias, quinze participantes compartilharam
uma experiência de descoberta, investigação, análise e criação, perante imagens cap-
turadas por Dana Merrill, fotógrafo oficial da empreiteira, referentes à construção da
Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (1907-1912) do acervo Diogo Braga de Andrade do
IPHAN/RO e da coleção Dana Merrill do Museu Paulista/USP.
A metodologia aplicada envolveu uma reflexão teórica sobre o uso de imagens de
arquivo no cinema documentário e dinâmicas de trabalho com as fotografias. A reflexão
teórica consiste na apresentação de um panorama analítico de filmes compostos por
“imagens pré-existentes”, buscando evidenciar a qualidade do cinema de explorar novos
documentos e de torná-los “monumentos” (conceito de Foucault), no sentido de que
alguns materiais audiovisuais revelam e instruem sem a intenção de revelar e de nos ins-
truir (Blümlinger: 2013, p.179-218). Quanto à série de atividades compondo a oficina,
esta configurou um conjunto de ações que exigiram dos participantes um posicionamen-
to ativo, crítico, pensante, inserindo-os em uma situação de diálogo e questionamento
coletivo, desdobrando-se em uma ação fabricadora em conjunto.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 425

Vale destacar que a concepção do dispositivo pedagógico que conduz o estudo das
fotografias adotou como referência principal a obra contínua do filósofo e historiador de
arte Georges Didi-Huberman dedicada à reflexão sobre como ver as imagens e o con-
ceito de montagem como elemento criador de um pensamento conduzido pela imagem,
o gesto de montagem como produtor de conhecimento - la connaissance par les monta-
ges, como afirma o autor. Além disso, a reflexão do teórico e documentarista Jean-Lou-
is Comolli pontuou o posicionamento tomado diante das “imagens do passado”, pois,
como diz o autor, a imagem enquadrada opera uma “ocultação de uma parte do visível”
(Comolli: 2008, p.44).
Trata-se assim de uma metodologia que visa pensar as fotografias extrapolando sua
recepção inicial (e o saber pré-existente sobre aquilo que elas representam) e incita a
reflexão sobre aquilo que elas mostram, mas também o que elas escondem. Na pers-
pectiva de expandir o conhecimento sobre as fotografias, apresenta-se aos participantes
uma “pequena história das fotos de Dana Merrill”- retomando a situação na qual elas
foram fabricadas, a intenção de origem, as diferentes interpretações atribuídas ao longo
do tempo, aquilo que elas representam e revelam no tempo presente, entre outros-, pas-
sando também por diversas narrativas históricas, memórias e problemáticas em torno do
momento histórico ali relembrado. Dessa forma, a percepção de tais imagens adquiriu
aos poucos uma dimensão histórica, antropológica e política, provocando uma expansão
das possibilidades de trabalho com as fotografias.
Após discutir, legendar, catalogar, associar as fotografias, o primeiro gesto de “ela-
boração coletiva de significado” foi o levantamento de ideias de utilização das fotogra-
fias para a concepção do vídeo. Em grupos de quatro, os participantes escreveram uma
“nota de intenção”, na qual explicaram a questão que desejavam abordar e como dar
forma e significação àquelas imagens, explicitando o ponto de vista e regime discursivo
tomado (com ou sem narrador, vinculado a fatos reais ou a elementos ficcionais, por
exemplo), desencadeando, o que um dos participantes definiu como “uma cascata de
histórias e debates com variados e improváveis repertórios.” Dentre as propostas, duas
atraíram mais o interesse dos participantes, a escolha ocorreu por meio de uma votação
que decidiu, por um voto de diferença, a ideia que seria desenvolvida.
A etapa seguinte, extremamente dinâmica e frenética, consistiu em um grande
desafio: fabricar o vídeo no prazo de um dia. Enquanto um grupo desenvolvia a es-
crita da narração, outro selecionava as imagens para compor o filme e dois outros se
ocupavam em filmar as fotografias e preparar a trilha sonora. Ambos os processos de
criação se pautaram nas discussões e anotações das atividades precedentes. Para a
narração, por exemplo, foram retomadas frases oriundas da atividade para legendar as
fotografias. Quanto à seleção das imagens, a catalogação do acervo facilitou bastante
a “navegação” pelas trezentas e quarenta fotografias, já que os participantes estavam
familiarizados com as imagens.
Relativamente confinados em uma sala das 9h às 19h, com pausa apenas para o
almoço, os participantes se investiram intensamente para conseguir finalizar o “filme”
426 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

no prazo estipulado. “Filme”, pois embora os mediadores da oficina repetissem diversas


vezes que se tratava de uma experiência de criação coletiva de um exercício em vídeo,
os participantes se referiam ao objeto que eles criariam como um “filme”. Seja um filme,
obra mista, ensaio fílmico ou exercício em vídeo, o produto audiovisual fabricado nessa
oficina resta, sobretudo, como uma montagem de ideias, intuições e significações elabo-
radas (e negociadas) pelos quinze participantes. Afim de “marcar o dia da realização do
filme”, como justificou um dos participantes, a montagem recebeu o título 18 de agosto.
Vale evidenciar que tal data marca não somente seu dia de fabricação, mas também seu
único dia de projeção, pois os fundos de arquivo não autorizaram a exibição das imagens
utilizadas na oficina. No momento dessa projeção exclusiva de 18 de agosto, um dos
participantes da oficina disse: “aproveitem, pois é a primeira e última exibição do nosso
filme”. Após esse primeiro encontro com a “obra mista, fictícia e documental, com-
posta de vídeo, som, efeitos gráficos e muita emoção” (segundo um dos participantes),
os espectadores/produtores elencaram coisas que gostariam de modificar no vídeo. Foi
manifestado o interesse, de todo o grupo, de aperfeiçoá-lo - e de adquirir os direitos de
exibição dos arquivos - para inseri-lo na programação de um festival de cinema local.

A distribuição de poder
O desejo dos participantes de dar continuidade e “vida” ao produto audiovisual por eles
criado, assim como a indagação da identificação de tal oficina enquanto prática colabo-
rativa foram os questionamentos propulsores no presente artigo. Ao repensar os meca-
nismos, limites e implicações tanto do processo quanto dos procedimentos dessa oficina
percebe-se que é possível – e preciso - considerar outros aspectos da prática colaborativa
em criações contemporâneas, para além da questão da ameaça à autonomia autoral nas
práticas colaborativas (Claire Bishop) e da reflexão ética na qual é necessário o artista
repensar seu estatuto privilegiado (Kester: 2004).
No campo expandido das práticas atuais, na dilatação de fronteiras entre áreas e
tantas outras questões que estão sendo postas, todas as tentativas de definição cabal, bem
como papéis prescritos, parecem carregar certo ar obsoleto. Neste contexto, as palavras
de uma artista como Tânia Bruguera, ao expor sobre o novo modo “que não seja claro”
de participação na produção atual, ecoam e clamam atenção:
“A confusão é um elemento útil porque ela oferece a possibilidade não-temida de
participação e mudança. Isto é onde muita arte política falhou, em minha opinião, no mo-
mento que reconheceram o lado educacional dos gestos políticos elas se apropriaram de
expressões literais de aprendizagem ao invés de criar novas maneiras de se envolver, ma-
neiras cuja distribuição de poder fosse negociada, onde pessoas tivessem que repensar o
seu lugar, onde a política fosse representada pelos participantes.” (Helguera, 2011, p. 26).
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 427

Referências
BLÜMLINGER, Christa. Cinéma de seconde main. Paris: Klincksieck, 2013.
BISHOP, Claire. A virada social: colaboração e seus desgostos. Concinnitas. n°12, vol 01, ano 09,
julho 2008.
BISHOP, Claire (Org.). Participation. Cambridge: Massachusetts: MIT Press, 2006.
COMOLLI, Jean-Louis. Mauvaises fréquentations, document et spectacle. Revista Images docu-
mentaires. n°63, 1er et 2e semestre 2008, pp. 41-62.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Quand les images prennent position. L’oeil de l’histoire. Paris:
Éditions de Minuit, 2009.
______. Remontages du temps subi, l’œil de l’histoire 2, Paris: Éditions de Minuit, 2010.
FEATHERSTONE, Mike. “Moderno e pós-moderno: definições e interpretações sociológicas”.
(Colaboração Especial). Sociologia, Problemas e Práticas. Lisboa. nº 8, 1990, pp. 93-105.
HELGUERA, Pablo. Transpedagogia: a arte contemporânea e os veículos da educação. In: HEL-
GUERA, Pablo, HOFF, Mônica (orgs.). Pedagogia no campo expandido. Porto Alegre: Funda-
ção Bienal do Mercosul, 2011. p. 11-31. Disponível: http://www.fundacaobienal.art.br/novo/
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RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. 2 ed. São Paulo: EXO experimen-
tal org; Ed. 34, 2009.
KESTER, Grant H. “Colaboração, arte e subculturas”. In: HARA, Helio. (Org.) Caderno Vi-
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______. Conversation pieces: community and communication in modern art, Berkeley and Los
Angeles: University of California Press, 2004.
428 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Poéticas da destruição: narrativas


entre arte, cultura e poder

Silfarlem Junior de Oliveira


PPGA/UFES – [email protected]

Diego Kern Lopes

O presente trabalho tem por objetivo problematizar o enquadramento das rela-


ções entre as noções de autoria e de prática colaborativa nas construções da
arte pública contemporânea. Neste sentido serão apresentados e analisados
dois casos que envolvem bens culturais e artísticos do Espírito Santo, a saber,
o uso do trabalho “A ressurreição de Lázaro” do pintor Levino Fanzeres como
barricada durante a ocupação da Assembleia Legislativa do Espírito Santo
e a decapitação da escultura “O menino e o delfim” dos escultores Pedro e
Fernando Gianordoli.
Palavras-chave: arte – cultura - poder

Este trabajo tiene como objetivo discutir, en el marco del arte público contem-
poráneo, las relaciones entre las nociones de autoría y práctica colaborativa.
En este sentido, será presentado y analizado dos acontecimientos que abar-
can bienes culturales y artísticos del Estado de Espíritu Santo, de hecho, el
uso de la obra “La Resurrección de Lázaro” del pintor Levino Fanzeres como
barricada durante la ocupación de la Asamblea Legislativa del Espíritu Santo
y la decapitación de la escultura “El niño y el delfín” de los escultores Pedro y
Fernando Gianordoli.
Palabras-clave: arte – cultura - poder
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 429

O presente trabalho tem por objetivo problematizar o enquadramento das relações


entre as noções de autoria e de prática colaborativa nas construções da arte pública con-
temporânea. Neste sentido, sustentando nossa reflexão, apoiaremos nossa argumentação
na análise e reflexão de narrativas que são atravessadas pelos campos da arte, da cultu-
ra e do poder. Exemplificando tais narrativas abordaremos dois episódios envolvendo
bens culturais e artísticos no estado do Espírito Santo, durante as manifestações que
ficaram conhecidas como “levantes de junho”. Os dois episódios/casos sobre os quais
focaremos nossas análises são o uso da pintura “A ressurreição de Lázaro” de Levino
Fanzeres que foi utilizado como barricada (figura 1) e a decapitação da escultura “O
menino e o Delfim” dos escultores italianos Pedro e Fernando Gianordoli (figura 2). A
escolha destes casos fundamenta-se na hipótese de que nestes trabalhos o que temos é
o conceito foulcaultiano da “função autor” (FOUCAULT, 2009) fazendo com que estas
construções materializem um conjunto de relações que se desdobram no espaço e no
tempo em função das estruturas de poder que tentam neutralizar ou impor valor moral
nestas ações. Neste sentido, esta estrutura ao manter intacta a obra/monumento pretende
manter intacta sua ordem discursiva. Pelo mesmo princípio, ações contrárias colocam
em risco a aparente autonomia consensual aurática atribuída, histórica e discursivamen-
te, a tais trabalhos de arte. Desta forma, podemos encarar os ciclos de “construção” e
“destruição” de um trabalho em arte como ciclos de um constante processo de criação.
Tal suposição encontra força principalmente nos trabalhos de arte situados em espaços
públicos onde as forças sociais e institucionais antagonizam-se de forma mais clara e di-
reta. Estas relações antagônicas podem ser sintetizadas através das palavras de Rosalyn
Deutsche em seu trabalho Agorafobia:

El espacio público [...] es el espacio social donde, dada la ausencia de fundamentos, el signi-
ficado y la unidad de lo social son negociados: al mismo tiempo que se constituyen se ponen
en riesgo. Lo que se reconoce en el espacio público es la legitimidad del debate sobre qué es
legítimo y qué es ilegítimo (DEUTSCHE, 2008, p.8).

Estruturando este antagonismo, partimos do postulado que defende a inexistência


de neutralidade na estruturação da sociedade. Esta perspectiva encontra fundamento no
trabalho da filósofa Chantal Mouffe (1996) que sustenta que o mundo é atravessado pela
dimensão ontológica “do político”, ou seja, “o político” é a força que faz com que as
percepções que distinguem amigos de inimigos possam estar presentes em qualquer tipo
de relação. Dentro deste fundamento ontológico encontra-se “a política” como conjunto
de discursos e práticas, também artísticas, que contribuem a uma ordem e a reproduzem.
Nas palavras de Chantal Mouffe:

Como la dimensión de ‘lo político’ siempre está presente, nunca puede haber una hegemonía
completa, absoluta, no excluyente. En ese marco, las prácticas artísticas y culturales son abso-
lutamente fundamentales como uno de los niveles en los que se constituyen las identificaciones
430 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

y las formas de identidad. No se puede distinguir entre arte político y arte no político, porque
todas las formas de prácticas artísticas o bien contribuyen a la reproducción del sentido común
dado – y en ese sentido son políticas –, o bien contribuyen a su deconstrucción o su crítica.
Toda las formas artísticas tienen una dimensión política (MOUFFE, 2007, p. 26).

Sendo assim, todo trabalho de/em arte apresenta um determinado posicionamento


político. Isto, ao ser admitido, faz com que a tradicional neutralidade adjetivada aos
monumentos artístico/históricos transformados e tratados como um patrimônio comum
a todos e que devem ser mantidos intocados e inquestionados seja posta em xeque. Em
outras palavras, a difundida separação/afirmação que alega e sustenta a arte e o patrimô-
nio histórico cultural como uma coisa e governos, estados, sociedades, forças políticas
como outra é aqui frontalmente criticada.
Merece destaque que nestes jogos de narrativas entre arte, cultura e poder temos
tanto uma reatualização de um conceito clássico de autoria – feita pelos defensores de
uma dada ordem ou propriedade cultural, intelectual – quanto à instauração de práticas
colaborativas que subvertem a própria função autor. Prova disto é a atmosfera de polê-
mica e carga moral que surge na ocorrência destes eventos. Estas práticas colaborativas,
no espaço público, demonstram um uso do simbólico não apenas por parte das “insti-
tuições oficiais”, mas também pelos indivíduos e coletivos em ação. Como comenta
Nestor Canclini, as transformações e usos do simbólico, de forma “não oficial”, em
detrimento aos “guardiões públicos” dos monumentos que “costumam afirmar seu valor
e suas formas históricas como intocáveis” permite que movimentos sociais, culturais e
políticos, alheios “ao sentido hegemônico do que seja o ‘correto’ reapropriem símbolos
dando-lhes novos significados [...]” (CANCLINI, 2012, p.76).

Não é difícil perceber a velocidade e facilidade com que a estrutura hegemônica


reage cada vez que tem seus símbolos antagonizados e reapropriados. Isto pode ser veri-
ficado nas diferentes instâncias dos aparelhos institucionais, jurídicos e acadêmicos que,
de imediato, proferem sentenças naturalizadas onde qualquer forma de ação deste tipo
é indexada como vandalismo. O que parece ficar claro é que este processo de indexa-
ção tem por objetivo bestializar tais práticas esvaziando-as de qualquer tipo de senso
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 431

ou propósito, fazendo com que estas ações sejam categorizadas como acidentes, como
irracionalidades. Talvez até pudéssemos aceitar o adjetivo “irracional” se este represen-
tasse algum tipo de antagonismo ao fundamento racionalista do projeto da modernidade.
Porém, o que parece é que a irracionalidade tem sido utilizada nestas práticas como
sinônimo de selvageria, ou seja, de não civilizado, de “não humano”, de não pertencente
ao campo das possibilidades de análise por ser definida como uma ação tautológica e
que possui fim em si mesmo. Discordamos deste consenso imposto e acreditamos no
desprendimento e decantação de significados presentes nestas práticas, casos, episódios.
Tais ações não têm fim em si mesmo, elas têm origem e destino anteriores e posteriores a
elas mesmas, fazem parte de uma estrutura social que constitui a elas e aos trabalhos que
alvejam. Podemos constatar estas estruturas e exterioridades relacionais, por exemplo,
na possibilidade de escrita das palavras e ideias que constituem este texto.
Interpretamos que os manifestantes na Assembleia Legislativa do Estado do Espí-
rito Santo ao usarem uma pintura como barricada expõem as zonas fronteiriças entre
projetos de mundo. Dentre todo o mobiliário presente na sala, a utilização do quadro
como barreira revela a reapropriação e utilização de símbolos e valores contra as es-
truturas que os dão origem. O quadro se tornou uma excelente opção de obstáculo,
não pelas características materiais que apresenta (muito pelo contrário, um chassi de
madeira e pano claramente não cumprem tal função), mas, sim, pela força concreta e
hegemônica que traz em si e representa. Acreditamos que os manifestantes percebe-
ram que os policiais, que pretendiam invadir o recinto, não poderiam atentar contra o
quadro sob pena de estarem atentando contra as premissas e diretrizes que dão origem
a sua própria corporação enquanto braço armado do Estado. Nesta ação colaborativa e
ressignificadora, a autoria torna-se funcional pois junto à Levino Fanzeres tomam parte
neste processo o anonimato dos manifestantes, o anonimato das forças do Estado, as
testemunhas, os fotógrafos, os jornalistas, os leitores deste texto. Todos elencados como
peças fundamentais na transformação da pintura em objeto de arte, de patrimônio, de
História, de política, de embate hegemônico. Da mesma forma, nos parece que, a deca-
pitação da estátua “O menino e o Delfim” (figura 2) traz à tona os ciclos construtivos
e destrutivos históricos da formação dos espaços públicos. A eleição e implementação
de monumentos sempre foi deliberada coincidindo com projetos e orientações ideológi-
cas hegemônicas de um determinado tempo. Em outras palavras, o trabalho dos irmãos
Gianordoli encontra seu tempo no início do século XX e seu espaço em uma capital
de Estado que, como muitas em todo Brasil, estava sendo reconfigurada arquitetoni-
camente sob os paradigmas de uma modernidade latino-americana. O que precisa ser
resgatado dos estratos mais profundos que formam este espaço público é a lembrança
e constante ratificação da presença anterior de outros grupos e comunidades que não
foram somente decapitados, mas, também, soterrados pela História que nos constitui. O
que percebemos é que estas práticas, estas estratégias colaborativas desvelam a intenção
de consensualidade presente na organização social. Ou seja, os casos aqui trabalhados
revelam a presença ontológica do dissenso em nossa sociedade e o esforço constante das
432 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

estruturas hegemônicas em criminalizá-lo, dissipá-lo e apagá-lo de nossas percepções e


experiências. Desta forma acreditamos que a escultura ao ser danificada e o quadro ao
ser usado como barreira, colocam em ato todas as potências que as constituem enquanto
trabalho de arte. Conseguem condensar e revelar todas as forças históricas que as cons-
tituem. Ao exporem e evidenciarem o dissenso permitem que a arte, em um só golpe,
revele as realidades do mundo. Realidade não como uma verdade essencial, mas como
a ficção definida pelo filósofo Jacques Rancière em seu livro O espectador emancipado:
Não há real em si, mas configurações daquilo que é dado como nosso real, como
objeto de nossas percepções, de nossos pensamentos e de nossas intervenções. O real é
sempre objeto de uma ficção, ou seja, de uma construção do espaço no qual se entrela-
çam o visível, o dizível e o factível. É a ficção dominante, a ficção consensual, que nega
seu caráter de ficção fazendo-se passar por realidade e traçando uma linha de divisão
simples entre o domínio desse real e o das representações e aparências, opiniões e uto-
pias (RANCIÈRE, 2012, p.74)
Sendo assim, os entrelaçamentos narrativos entre arte, cultura e poder revelam os
embates dissensuais das ficções que nos compõem. Os deslocamentos e reapropriações
simbólicas evidenciam as formas como tais ficções são construídas e como determina-
das versões ganham uma adjetivação de verdade inquestionável. Entretanto, esse status
pode ser mudado através da ativação da potência poética destrutiva presente em práticas
que visem desvelar o dissenso. Desta forma acreditamos que, justamente, esta potência
poética destrutiva (política e simbólica), é o que garante o movimento histórico (e a
consequente existência efetiva dos campos) e não como aparentemente se sustenta sua
“depredação”, inclusive o da arte.

Referências
CANCLINI, Nestor G. A sociedade sem relato – Antropologia e Estética da Iminência. São Paulo:
Edusp, 2012.
FOUCAULT, Michel. Ditos e Esccritos vol. III. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema.
São Paulo: Forense Universitária, 2009.
DEUTSCHE, Rosalyn. Agorafobia. Barcelona: MACBA, 2008.
MOUFFE, Chantal. Prácticas artísticas y democracia agonística. Barcelona: Universitat Autòno-
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_______________. O regresso do político. Gradiva: Lisboa, 1996.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 433

Relações intermidiáticas no
processo de recriaçao de
“O cavalo de guerra”

Sílvia Maria Guerra Anastácio


CNPQ/PPGL/ UFBA – [email protected]

A peça War Horse, “O Cavalo de Guerra”, encenada no National Theatre, Lon-


dres, desde 2009, foi inspirada no romance homônimo do autor inglês Michael
Morpurgo, publicado em 2004. O texto foi roteirizado para o palco e esse pro-
cesso de transposição midiática inclui um conjunto de documentos composto,
de um lado, por diálogos e rubricas visando a sua encenação, de outro, por
registros genéticos expressos através de fotos e vídeos de croquis, maquetes,
workshops, ensaios, entrevistas, diários, dentre outros. Observou-se que a
representação cênica apresentou limitações, que precisaram ser contornadas,
o que foi feito com o apoio de uma rede de suportes midiáticos em que signos
das mais diversas linguagens, sobretudo a fotografia, o vídeo, o desenho, a
pintura, a cenografia e o teatro de marionetes entram em diálogo.
Palavras-chave: War Horse, intermídia, processo, teatro, marionetes.

The play War Horse, staged at the National Theatre, London, since 2009, was
inspired by a novel published in 2004 and written by the British author Michael
Morpurgo. The text was scripted for stage and the dossier of this intermedia
transposition is composed of a set of documents: on one hand, there are drafts
of dialogues and rubrics seeking their enactment; on the other, photos and
videos of sketches, models, workshops, rehearsals, interviews, diaries, among
others. The scenic representation had its limitations that needed to be overco-
me with the support of an intermedia network, including a variety of languages,
such as photography, video, drawing, painting, music, stage design and pu-
ppetry that dialogues with each other in that creative process.
Key words: War Horse, intermedia, process, drama, puppetry.
434 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

A meta deste artigo é abordar o processo de adaptação do romance War Horse, data-
do de 1982, do ator e escritor inglês Michael Morpurgo, que foi recriado para o palco em
2007. Focalizamos, sobretudo, como as fronteiras entre os diversos sistemas semióticos
se diluem na transposição teatral em questão quando estímulos intermidiáticos entram
em fusão, visando um efeito performático singular; os signos plásticos relacionados à
pintura, ao desenho, à fotografia e ao cinema serão especialmente contemplados na aná-
lise. O romance, ao sair das páginas do livro de Michael Morpurgo, migrou para o palco
do New London Theatre, sendo posteriormente, transposto para o cinema por Spielberg,
em 2011. Até hoje tem sido encenada a peça War Horse, não apenas em Londres, mas
também em outros continentes, chegando aos Estados Unidos e ao Canadá.
O palco onde se desenrola a história é Devon, região rural situada ao sul da Ingla-
terra, e o enredo se situa durante a segunda guerra mundial. A tensão dramática gira
em torno de uma história de amor entre um garoto com o seu cavalo Joey e o fato do
animal acabar se perdendo nos campos de batalha gera toda a trama. O paratexto inclui:
a brochura Staging War Horse (BSWH), ou “Encenando War Horse; esta contém fotos
de maquetes, de ensaios, de oficinas, de protótipos, de desenhos e de storyboards. Tam-
bém o programa da peça, New London Theatre Programme (NLTP), que inclui fotos
de tomadas de palco, closes de cenário, desenhos, galeria de atores e responsáveis pela
criação. A brochura do Making behind-the-scenes (BMWH) contém fotos de desenhos
e protótipos. Além disso, o livro Handspring Puppet Co. (HPC) conta toda a história da
Companhia de marionetes da África do Sul, pertencente a Basil Jones e Adrian Cohler,
responsáveis pela construção e performance das marionetes de War Horse no palco;
esse livro traz desenhos de marionetes sendo construídos e levados ao palco, além de
imagens de protótipos desses bonecos movidos por atores. Finalmente, a edição do livro
de Morpurgo utilizada como referência para este artigo (2007), o site oficial, que contém
registros importantes do processo de criação em análise e o trailer da peça.
O dossiê genético da peça War Horse é constituído por um making of de 48.15mn,
com entrevistas intercaladas por ricos registros genéticos, como filmagens de ensaios,
workshops, sequências de cenas no palco, takes de maquetes, manuscritos, quadros, es-
boços, desenhos, diários de trabalho. São ouvidos: o escritor de War Horse; o diretor do
National Theatre; dois co-diretores da peça; o escritor que adaptou o livro para o teatro;
os criadores das marionetes; o diretor responsável pelo aspecto cinético da encenação,
havendo sempre uma busca de dar uma ilusão de realidade através do movimento das
marionetes no palco; os atores; a desenhista, ilustradora e cenografista; o técnico de
iluminação; e o de som.
Também fazendo parte do conjunto do dossiê genético da montagem da peça, o
making of contém entrevistas extras, que ocupam 70.16mn do vídeo. Novamente, é dada
a palavra ao autor do romance, aos atores, bem como à artista plástica, que teve uma
função relevante dentro da concepção da peça e aos diretores.
Há ainda um arquivo de fotos digitais tiradas pela pesquisadora, que registrou a
Exposição Staging War Horse (Exibição/Exhibition Staging War Horse), categoria de
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 435

documentos codificada como ESWH. A exposição ocorreu no National Theatre Sou-


th Bank, Londres, de 18 de junho a 9 de setembro de 2012. As 152 fotos do arquivo
mostram desenhos, quadros, peças de figurino, facsímile de manuscritos autógrafos,
storyboards, sketchbooks, cenas de ensaios, de workshops, maquetes e protótipos usados
na montagem da peça War Horse.
Quanto às referidas fotos tiradas para compor o dossiê genético de War Horse, tam-
bém são documentos digitais. As brochuras e o programa da peça, bem como os regis-
tros dos protótipos das marionetes de War Horse, que constam do livro da Handspring
Puppet Co., todos esses documentos foram escaneados, ganhando assim configurações
numéricas. Logo, trata-se de um dossiê genético digital, ou porque os documentos nas-
ceram em meio digital (no caso das entrevistas gravadas e filmadas) ou por terem sido
codificados em dígitos binários (no caso de brochuras impressas, por exemplo, que fo-
ram digitalizadas para efeito de estudo), o que gerou então, uma representação imaterial,
simbólica e numérica do material em estudo (TAMMARO, 2008).
Todo o dossiê foi colocado em tabelas divididas em segmentos, marcando o tempo
de início e o final de cada entrevista, bem como assinalando os tipos de registro ali
encontrados. Dessa forma, foi possível organizar o material coletado, classificando-o,
descrevendo-o e transcrevendo as falas do making of, o que facilitou o estudo do proto-
texto que escolhemos analisar (GRÉSILLON, 2007). Pelo fato de desejarmos dar relevo
ao aspecto intermidiático desse processo de criação, especialmente no que concerne à
influência das artes plásticas, foram escolhidos segmentos que contemplassem tal re-
corte e, a partir da opção feita, os documentos do dossiê digital em questão passaram a
dialogar entre si para serem analisados sob o viés delimitado.
Um dos gatilhos importantes que deflagrou o romance, que serviu de ponto de parti-
da para a adaptação teatral foi um quadro encontrado num vilarejo do sul da Inglaterra e
que hoje se encontra na casa de Michael Morpurgo e não com o mesmo nome do animal
do romance e, também da peça, assim contrariando o que diz o livro. Este segmento é
o Extra 1 , Ex1, parte da tabela apresentada (Tabela 1); contém fotos/filmes do vilarejo,
além do quadro mencionado, conforme marcado com um “X”:

Por acaso, comprei um quadro na mão de um comerciante de antiguidades do povoado [...] foi
do quadro que veio a ideia de escrever a história, que ia começar no Foro do povoado, com um
quadro de um cavalo que estava pendurado lá [...] Mas o problema é que o quadro no meu livro
tem o nome Joey, pintado pelo Capitão Nichols em 1914, e é assim que a história começa[...]
Mas o problema é que o quadro que eu comprei não se chamava Joey, mas Topthorn. [...] co-
loquei o nome de Topthorn num amigo de Joey [...] e o herói da história passou a ser Joey.[...]
As pessoas aparecem no povoado [...] procurando pelo quadro de Joey pendurado no Foro do
povoado de Iddlesleigh. E a vizinha [...] diz:” Sinto muito, mas o quadro não está no Foro do
povoado mas em casa [...] e procuram pelo quadro de Joey e o que encontram é o de Topthorn
(MORPURGO, 2OO9) (Tradução nossa).
436 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

O que fica claro, neste segmento, é que a verdade artística tem uma natureza parti-
cular e quando traduzida para uma obra de arte, percebemos que não há um comprome-
timento entre a escritura e os signos do mundo. De modo que o criador é dono de seu
próprio universo ficcional e senhor das leis que ali irão reinar. Também fica claro como
a imagem geradora de uma obra pode pertencer a qualquer sistema semiótico, a qualquer
linguagem, pois, o gatilho da história War Horse pertence a um sistema não verbal, um
ícone capaz de gerar todo o tipo de criações e recriações.
Mas como fazer com que o protagonista que, no romance, contava sua história, o
cavalo Joey, pudesse falar no palco? Como haveria de uma marionete, representando
Joey, emocionar a plateia e tornar-se um signo convincente em um palco tão próximo à
audiência? O que ficou claro, no making of, é que, de acordo com o adaptador Nick Sta-
fford, seria necessário adicionar detalhes e outros personagens para contar uma história
que, no livro, entrariam pela voz do cavalo. Logo, a focalização da história teria de pas-
sar por ajustes, sendo expressa através de outros olhares e mídias (GENETTE, 1972).
Sobretudo, outra mídia veio em nosso auxílio, o desenho, pois a artista plástica Rae
Smith “entra na pele” do Capitão Nichols que, no romance, gostava de desenhar o que
acontecia à sua volta e acrescentar seus próprios storyboards. Agora é Rae Smith quem
desenha e, como em um palimpsesto, vemos a mão do Capitão Nichols, sob a dela. Des-
se modo, através de uma linguagem não verbal, mas forte e carregada de emoção, a au-
diência é capaz de compartilhar sentimentos, conflitos, tensões e sofrimentos do próprio
Joey. Além de desenhar o cenário da história, Devon, ou Joey cavalgando, Rae Smith
faz inúmeros storyboards detalhando todos os personagens, como a seguinte amostra de
Joey em várias posições:

Figura 1: Foto de desenho Figura 2: Foto de storyboard Figura 3: Foto de desenho


de Devon (ESWH) (ESWH) de Joey (ESWH)

Rae Smith inspira-se também em quadros de outros artistas que admira, como Nash,
para trazer ao palco o tom dramático desejado, muitas vezes através dos cenários, que
vão sendo projetados, especialmente em volta de todo o palco. Os movimentos artísticos
da época são invocados por Rae para expressar o clima da peça, cheio de emoção. Nas
entrevistas do making of sabe-se que:
Durante todo o periodo da Primeira Guerra Mundial, […] investiu-se bastante em
tecnologia […]. Houve também um movimento artístico, como o dos futuristas que
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 437

Tabela 1

Tabela 2
438 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

viam na guerra a possibliidade de haver um processo de purificação (como mostra um


quadro de Umberto Boccioni, “The Charge of Lancers”, ou “A acusação dos lanceiros”,
1915) […] Na Inglaterra, foi a vez dos Vorticistas,, basicamente, uma reação contra a
exposição futurista desse país , os loucos […] filiados a Marinetti , que davam decla-
rações de que era importante as mães […] cortarem as amarras e lançarem seus filhos
para aquela guerra sangrenta e confusa. Compreendo que as pinturas dos vorticistas e
expressionistas, como Nash, eram capazes de expressar de maneira muito mais poética a
Primeira Guerra Mundial, e mesmo todo esse ambiente fragmentado (mostra The Ypres
Salient by Night, 1918 de Paul Nash) e as paisagens surreais, não humanas, parecem
representar a experiência única de cada soldado na guerra. Vivi dentro do personagem
de Nichols da mesma maneira que um ator viveria um personagem e comecei a desenhar
tudo que ele via. Esse é o caderno, o primeiro de esboços de Capitão Nichols, de quando
ele entra na guerra. Temos aqui o inicio da ideia do livro de esboços que o jovem Albert
leva consigo para a guerra. Essas pinturas de Nichols, quer dizer minhas, são Devon
rural em 1914.
Os quadros de pessoas como Nash expressam de maneira muito mais poética a Pri-
meira Guerra Mundial, e mesmo todo esse ambiente fragmentado (mostra The Ypres
Salient by Night, 1918 de Paul Nash) e as paisagens surreais, não humanas, parecem
representar a experiência única de cada soldado na guerra. Vivi dentro do personagem
de Nichols da mesma maneira que um ator viveria um personagem e comecei a desenhar
tudo que ele via. Esse é o caderno, o primeiro de esboços de Capitão Nichols, de quando
ele entra na guerra. Essas pinturas de Nichols, quer dizer minhas, são Devon rural em
1914 (SMITH, 2009) (Tradução nossa).

E Paule Constable, encarregada dos efeitos de luz do palco ainda comenta:

Então Rae teve essa ideia da projeção. No céu tem como se fosse um papel rasgado que é a tela
para as projeções durante todo o espetáculo. Fora disso, tem o piso, o espaço cênico fica no
escuro e se define por meio da luz. Rae e eu conversamos muito sobre como poderíamos usar
pinturas e luz para mostrar onde estávamos e para onde se deslocavam as pessoas rapidamente
de um lugar a outro. Em War Horse, queremos mostrar para a plateia dois lugares distintos.
[...] onde a peça começa é Devon. Ali temos uma comunidade rural. [...] temos ângulos altos
de luz, a luz do sol morno e belo, o tipo de cena das pinturas da época, que faz você pensar em
longos dias de verão [...]. Mas o que acontece em seguida é que vemos Devon [...] no inferno
da Primeira Guerra Mundial (CONSTABLE, 2009). (Tradução nossa) .

As referências a pinturas da época são constantes e influenciaram a montagem do


cenário, pois, ao observarmos desenhos de Rae projetados no palco, é fácil. identificar
influências futuristas, cubistas, vorticistas, como se pode conferir na Tabela 2.
Trata-se, portanto, de um rico processo de criação intermidiática, que preenche os três
requisitos de intermidialidade a intermidialidade no sentido de transposição midiática; de
combinação de mídias; e de alusão ou referência a outras mídias (RAJEWSKY, 2012).
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 439

Figura 4: Close de desenho de Rae no making of, projetado no palco

Figura 5: Tomada de focos de luz, rasgão onde são projetados vídeos e fotos, making of

Referências
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BICKERSTAFF, D.; GRABSKY, P.; COFFEY, T.; SABEL, S., 2009). Brochura Making War Hor-
se (acompanha o DVD). London: National Theatre Seventh Art Productions, 2009.
GENETTE, G. Figures III. Paris: Seuil, 1972.
GRÉSILLON, A. Elementos de crítica genética. Ler os manuscritos modernos. Porto Alegre: Edi-
tora da UFRGS, 2007.
KRUT, D. Handspring Puppet Company. South Africa: David Krut Publishing, 2009.
MORPURGO, M. War Horse. Illustrated by François Place. London: Kaye and Ward, [1982],
2004.
440 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

RAJEWSKY, I. O. “A fronteira em discussão: o status problemático das fronteiras midiáticas


no debate contemporâneo sobre intermidialidade”. In DINIZ, T.F.; VIEIRA, A. (org.) Inter-
midialidade e estudos interartes: Desafios da Arte Contemporânea 2. Trad. Isabella Santos
Mundim, Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, Faculdade de
Letras da UFMG, 2012.
RIVERA, C. War Horse. New London Theatre Programme. London: London Theatre Art Produc-
tions, s.d.
STAFFORD, N. War Horse. Adapted for the stage from the novel by Michael Morpurgo. London:
Faber and Faber, 2007.
TAMMARO, A.M.; SALARELLI, A. A biblioteca digital. Trad. Antonio Agenor Briquet de Le-
mos. Brasília: Briquet de Lemos, 2008.

DVD
BICKERSTAFF, D.; GRABSKY, P.; COFFEY, T.; SABEL, S. Making War Horse.
Main feature running time: 48.15. DVD extras running time: 70:16. London: National Theatre
Seventh Art Productions, 2009.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 441

Intervenção urbana: provocação,


reflexão ou transformação?

Sonia Monego
UNOCHAPECÓ – [email protected]

Márcia Moreno
UNOCHAPECÓ – [email protected]

Com este artigo apresentaremos o resultado de interferências urbanas reali-


zadas na cidade de Chapecó – SC pelos professores e estudantes do curso
de Artes Visuais da Unochapecó, tendo como tema: Intervenção Urbana: pro-
vocação, reflexão ou transformação? Este artigo se encaixa na área temática
“A arte nas e das ruas como experiências multiautorais”, tendo em vista o uso
da linguagem artística como forma de diálogo e reflexão entre o público e as
obras. O objetivo do projeto foi Instigar/provocar a reflexão do público sobre
questões políticas, econômicas e sociais usando a linguagem de interferên-
cias nos espaços urbanos da cidade de Chapecó, possibilitando assim maior
inserção social das Artes Visuais no cotidiano dos sujeitos que circulam quase
que diariamente por espaços comuns na cidade referência.
Palavras chave: Arte contemporânea, Interferência artística, arte pública.

Through this article we will show the results of urban interventions reali-
sed  in  Chapecó City, Santa  Catarina by teachers and students of the Visual
Arts degree course of Unochapecó having as the subject : Urban Intervention:
provocation, reflection or transformation? This article fits under the theme “Art in
the streets and street art as experiences of multiple authors”, in view of the use of
language as a form of artistic dialogue and reflection between the public and the
works. The goal of the project was to Instigate / provoke the reaction/reflection of
the public on political, economic and social subjects using the urban interferen-
ce  language of Chapecó city , thus enabling greater social inclusion of Visual Arts
in everyday subjects which circulates almost daily by spaces in the city reference.
Keywords: Contemporary art, artistic interference, public art.
442 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Intervenções urbanas no espaço público


Ao longo da história, a praça, espaço público e local de encontros e debates, tem sido
um elemento significativo nas relações culturais, porém podemos observar que desde
sua origem até a atualidade a praça mantém pelo menos uma função que é o encontro
de diferentes culturas, etnias ou classes sociais, servindo também de espaço político e
cultural, bem como preservação de memórias, pois aí se encontram diversos monumen-
tos como representações de ícones históricos ou de histórias que remetem a memória
da cidade. Segundo Brissac (2004, p.13), a cidade “[...] é um horizonte saturado de ins-
crições, depósitos em que se acumulam vestígios arqueológicos, antigos monumentos,
traços de memória e o imaginário criado pela contemporaneidade”.
Partindo desta contextualização, o que nos interessa nesta reflexão é o espaço ur-
bano frequentado pelos diferentes públicos, pois entendemos que é ai que podemos
propor atividades artísticas culturais, provocando nas pessoas uma reflexão crítica sobre
situações contemporâneas. Sair de instituições culturais e dos circuitos de instituições
estabelecidos e levar a arte a um espaço mais amplo baseiam-se na vontade de democra-
tizar o acesso às expressões artísticas por meio de apropriação de circuitos alternativos
acessíveis a todos, proporcionando a percepção crítica do olhar.
De acordo com Brissac (2011, p.14,),

Tirar obras de instituições culturais, dos circuitos de instituições estabelecidos, dos padrões
convencionais de classificação, e leva-las a um diálogo mais amplo. Não tomar as obras iso-
ladamente, mas como intervenção num espaço mais complexo [...] os trabalhos específicos
do lugar levam para fora do atelier tradicional, substituído pela indústria, mídia e urbanismo,
explicita a relação entre arte e cidade: trata-se de despertar a experiência do mundo de que
toda arte é expressão.

Com a arte urbana podemos envolver os indivíduos, o fluxo urbano coletivo, o trân-
sito, a arquitetura, a paisagem, o clima, a cultura e os demais fenômenos ocorrentes
nesse espaço público onde ocorre a intervenção.
Intervir é interagir, causar reações diretas ou indiretas, em síntese, é tornar uma obra
inter-relacional com o seu meio, por mais complexo que seja, considerando o seu con-
texto histórico, sociopolítico e cultural.
Para Quintella in Cirrilo (2011, p 471) “[...] mais do que apenas uma relação obra/
suporte com os espaços públicos, a obra de arte estaria na essência da criação da própria
esfera de vida pública. A arte quando inserida no espaço público, tende a ser decodifica-
da como um bem pertencente a todos”.
Podemos aqui fazer referência às obras de arte que são realizadas para permanece-
rem nos espaços públicos, realizadas geralmente pelo poder público e as obras efêmeras,
que na maioria das vezes são realizadas por ações individuais ou coletivas, como o caso
das interferências urbanas, que apresentam temas emergentes, tratando de questões lo-
cais, pontuais, momentâneas com força e potência para despertar o interesse das pessoas.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 443

Para Quintella (in Cirillo, 2011, p.470) “[...] os artistas que trabalham com obras
efêmeras acreditam na sua potencia transformadora, apostam no impacto da visualidade
das ruas, na radioatividade desses gestos simbólicos por mais imateriais que sejam”.
Muitos artistas contemporâneos têm usado diferentes formas de manifestações artís-
ticas, sendo o espaço urbano muito ocupado, pois esta é uma forma mais direta de dialo-
gar com o público. O Vinculo entre a arte e o público tendo a cidade como intermediá-
ria, provoca a reflexão, realiza obras de acordo com o discurso da arte contemporânea.
Partindo destes pressupostos apontaremos as Interferências Urbanas realizadas pe-
los professores e alunos do curso de Artes Visuais da Unochapecó (Universidade Comu-
nitária da Região de Chapecó) na cidade de Chapecó, Oeste de Santa Catarina, Brasil.
Estas Interferências Urbanas aparecem como uma alternativa aos circuitos ofi-
ciais, capaz de proporcionar o acesso direto e de promover um corpo-a-corpo da obra
de arte com o público, independente de mercados consumidores ou de complexas e
burocratizantes instituições culturais.
Para Brissac (2011, p.26),

Nas cidades os olhos não veem coisas, mas figuras de coisas que significam outras coisas. Íco-
nes, estátuas, tudo é símbolo. Aqui tudo é linguagem, tudo se presta de imediato a descrição ao
mapeamento. Como é realmente a cidade carregada deste invólucro de símbolos, o que contem
e o que esconde, parece impossível saber.

Desta forma, ao propormos intervenções no espaço urbano de Chapecó pretendemos


ampliar o acesso ao público da produção artística, enriquecendo o universo estético,
bem como provocar um estranhamento e impacto reflexivo e questionador em relação
as questões políticas, econômicas e sociais, possibilitando assim , maior inserção social
no comportamento das pessoas que circulam pelas ruas, praças e calçadão. Sendo assim,
partimos de questões relevantes e significativas para a sociedade em questão, como é o
caso do trânsito, meio ambiente e agroindústrias.
Entre as interferências realizadas selecionamos apenas 3 para relatarmos, sendo elas:
“Andar de moto pode ser um meio suicida, “A Imprudência no trânsito mata”, “Chicken
Parade”. Com a intervenção “Andar de moto pode ser um meio suicida”, procuramos
realizar uma ação com o intuito de provocar um olhar aguçado em relação ao elevado
número de acidentes provocados por este meio de transporte, assim como diz Martins
(2012, p.25) “[...] a mediação cultural, como facilitadora do encontro entre arte e fruidor,
precisa ser pensada como uma ação específica, como uma área de estudo singular”.
Na continuidade a autora fala da importância do sujeito fruidor para que se alcance
os resultados esperados e afirma:

[...] isso significa que não se pode provocar apenas sua face cognitiva, conscientizando-o de
todas as nuances presentes na obra ou em sua relação com ela; mas acima de tudo, é pre-
ciso promover um contato que deixe canais abertos para sensações, sentidos e sentimentos
444 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

despertados, para a imaginação e a percepção, pois a linguagem da arte também fala por sua
própria língua e é por ela mesmo que se lê. (MARTINS, 2012, p.25).

Partindo destes conceitos, propusemos a realização da exposição de uma moto “en-


forcada”, a ideia surgiu a partir da palavra “suicida”, onde a representação desse ato se
deu na elaboração de uma forca.
A Instalação foi montada no canteiro central da Avenida Getúlio Dorneles Vargas
cruzamento com a Rua Benjamin Constante, atual calçadão, e provocou a interação com
o público, que com curiosidade e questionamentos, fez com que olhassem com outras
perspectivas e pontos de vista a situação das motos na cidade. As concessionárias por
sua vez, tiveram um olhar voltado para o prejuízo, reclamaram, pois se diziam vítimas,
estavam preocupadas com a queda na venda do produto. Pudemos perceber que cada
um olha sobre seu viés,
Por aproximadamente 10 dias a moto ficou “enforcada” sem nenhuma identificação,
o que instigou ainda mais os observadores, passados os dez dias, colocamos então um
banner apresentando estatísticas (informações repassadas pelo corpo de bombeiros do
município) quanto ao elevado número de acidentes e também suas consequências. Desta
forma, oportunizamos dados reais sobre a situação dos motoqueiros na cidade, deixando
para que cada um tirasse suas conclusões. Com esta interferência no espaço público,
as pessoas puderam ampliar seus conhecimentos sobre arte contemporânea bem como
conheceram mais a fundo um fato significativo da cidade de Chapecó que é o trânsito
de motos. Com isso concordamos que; “Quanto mais experiências estéticas, maior apro-
priação artístico-cultural” (LEITE apud MAKOWIECKY e OLIVEIRA, 2008, p.70).
Devido ao grande impacto e mobilização provocada com o “enforcamento da moto”,
o Departamento de Transito do Município contatou com o grupo de artistas, propondo
uma nova ação relacionada ao trânsito, mas agora pensando em automóveis. Segundo
pesquisas e registros, no município há também um grande índice de acidentes automobi-
lísticos, fato que se deve ao grande número de veículos que circulam todos os dias pelas
ruas da cidade. Segundo estatísticas, existe aproximadamente 150 mil carros para uma
população aproximada de 180 mil habitantes, quase um carro por pessoa.
Partindo destes dados, realizamos um levantamento dos principais pontos da cidade,
com maior índice de acidentes para realizar a interferência. Nestes espaços propusemos
a inserção de carros batidos e desenhos de silhuetas de corpos no chão, representando o
pedestre que muitas vezes é atropelado, inclusive quando utiliza a faixa de segurança.
Toda a ação da Intervenção foi realizada na madrugada, com o intuito da população
se deparar, ao irem para o trabalho na manhã seguinte, com a cena desconfortante de um
acidente, um carro sobre o canteiro central, manchas vermelhas, como se fosse sangue
e sinais de corpos no chão.
Para Martins (2012, p.26), “[...] a obra, assim, é sua própria mediadora. É primeiri-
dade que apela para o encontro. Cabe também ao mediador deixar espaço para que este
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 445

primeiro encontro seja vivido, no silêncio dos códigos da própria linguagem. Respeitar
este tempo é respeitar a obra, a arte”.
Ao acordar a cidade ficou em alvoroço, ao se depararem com as cenas dos carros ba-
tidos, as pessoas comentavam, questionavam, teria morrido alguém? O que aconteceu?
Por meio da imprensa, que noticiou as interferências realizadas, pudemos constatar que
a população ficou abalada com os supostos acidentes. Ao serem entrevistadas as pessoas
se diziam perplexas; um senhor comentou: “Parece que houve um acidente aqui, e gra-
ve, olha as marcas dos corpos pelo chão [...]”.
Bononi (aput Furtado) diz:

A arte pública não enfeita a cidade nem a transforma num museu ao ar livre. Ela pressupõe
muito mais que isso. Ela se impõe o dever de resgatar a formação do olhar da população e ao
mesmo tempo o de se adequar ao entorno por sua inserção social no urbano (In Cirillo at all,
2011, p.329).

Outra intervenção que comentaremos aqui foi Chicken Parade, realizada em 2012.
Esse projeto teve como referência a Cow Parade que teve seu início no ano de 1998, na
cidade de Zurique, Suíça. O projeto que apresenta como objetivo a propagação e demo-
cratização da cultura, envolveu vários países, cidades e artistas.
A proposta do projeto Chicken Parade – Intervenções Urbanas, na cidade de Chape-
có, teve como objetivo explorar a agroindústria da cidade, tendo em vista que a mesma
se destaca internacionalmente por exportar produtos alimentícios industrializados de
natureza animal.
Neste contexto, a galinha passa a ser o foco nesta intervenção. Nove “galinhas”,
feitas de fibra de vidro, medindo 1,5 m de altura por 2 m de largura, serviram de suporte
para os artistas. Cada artista desenvolveu um projeto, para ser pintado nas galinhas,
tendo como tema a história e memória de Chapecó. A ênfase recaiu sobre a indústria,
colonização e o progresso do município.

Figura 1: Intervenção Urbana “A Imprudên- Figura 2: Intervenção Urbana “Chicken Para-


cia no trânsito mata”. Local: Avenida Getú- de: intervenções urbana”. Local: Rua Benja-
lio Dorneles Vargas. Fonte: Sonia Monego, min Constant – Calcadão. Fonte: Gina Zani-
2007 ni, 2013.
446 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Este projeto, que foge dos padrões convencionais, ao expor fora do “cubo branco”,
visa também deselitizar a arte, tornando-a acessíveis a todos. As “Chicken”, que ficaram
expostas 50 dias no calçadão, se transformaram num ponto turístico.
O espectador ao manter contato visual com a intervenção, conectava a relação da
forma (galinha) com a história local, atingindo assim, um dos objetivos do projeto que
era promover essa aproximação com a história/memória local, bem como a inserção/
imersão da Arte num espaço onde as pessoas, querendo ou não visualizavam as grandes
formas de galinhas, detendo assim os seus olhares mais atentos à um espaço urbano
corriqueiro.
Segundo Zaidler (in Cirillo at all,2011, p.132),

A intervenção artística na cidade transforma qualitativamente a amplitude do espaço público.


Agrega a sua complexidade significados e códigos, de modo que obra e entorno – o material
e o sociocultural – se integram em um único bem simbólico, cuja principal potencialidade é
oferecer-se à fruição e favorecer a percepção de um determinado local enquanto lugar.

Diante o exposto, podemos afirmar que todas as ações realizadas pelo grupo de
professores e alunos no espaço urbano de Chapecó provocaram diferentes olhares para
situações locais, fazendo com que muitas pessoas revissem seus conceitos, uma vez que
instigou a pensar e refletir sobre determinados fatos. A arte Urbana proporcionou as pes-
soas um olhar diferenciado para a cidade, instigando o olhar para situações do cotidiano,
possibilitando outras perspectivas e pontos de vista diferentes.

Referências
CIRILLO, José e et al (orgs). II Seminário Internacional sobre Arte Público en Latinoamérica. Arte
Público Y Espacios Políticos: interacciones y fracturas en las ciudades lationamericas. vol.
I e II: 2011, Vitória, ES.
MAKOWIECKY, Sandra e OLIVEIRA, Sandra R. (orgs.). Ensaios em Torno da Arte. Chapecó:
Argos, 2008.
MARTINS, Mirian Celeste; PICOSQUE, Gisa. Mediação cultural para professores andarilhos na
cultura. 2 ed.São Paulo: Intermeios, 2012.
PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens Urbanas. 3.ed. rev. E ampl.-São Paulo: Editora Senac São
Paulo, 2004.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 447

Breves considerações sobre os


Cadernos de desenho
como estruturadores do
pensamento visual
Thaís Rodrigues Risk
PUC-Campinas – [email protected]

Paula Cristina Somenzari Almozara


PUC-Campinas – [email protected]

Este texto realiza uma reflexão a partir de elementos bibliográficos e icono-


gráficos visando, em especial, algumas considerações sobre os cadernos de
desenho como objetos que possibilitam a estruturação do pensamento visual.
Palavras-chave: cadernos de desenho; arte contemporânea, suporte, dese-
nho, arquivo, projeto.

This essay presents a reflection and some considerations about the sket-
chbooks as an object that contributes to the structuring of visual thinking.
Keywords: sketchbooks, contemporary art, support, drawing, archive, project.
448 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

A pesquisa sobre cadernos de desenho revela-se como uma tarefa árdua por determi-
nar uma complexa rede de relações entre suportes históricos e a necessidade de se esta-
belecer parâmetros que delimitem em si o objeto de estudo na verificação de seus usos e
formatos ao longo de diversos períodos. As raízes dos cadernos de desenho estão ligadas
ao hábito de registrar e arquivar e por consequência conceitual e também material sua
história está ligada a escrita e ao livro.
A ideia geral associada hoje ao caderno de desenho é a de que se trata de um suporte
amovível utilizado de modo sistemático por diversos artistas e que possui um formato
muito próximo ao do livro (encadernação, lombada, folhas costuradas, etc.) sendo ba-
sicamente contentores de projetos para futuras obras, suporte para a memória e para a
guarda de ideias, aforismos, notas etc., enfim, é visto como uma espécie de arquivo para
desenhos e estudos.
Em suas origens é bastante provável que fossem agrupamentos de anotações visuais/
gráficas organizadas, mas não configuradas no formato de encadernações fixas de folhas
costuradas ou coladas. Essa estrutura é bastante recente, por volta do Século XV, quan-
do os livros também adquiriram definitivamente o papel como suporte, afastando-se
do padrão de rolos e desdobráveis e do uso de pergaminho e/ou outros materiais como
elementos constituintes.
Para entender os contextos históricos, primeiramente, é importante pensar no cader-
no como um objeto que pode estabelecer dois tipos de estrutura de análise que refletem
primeiramente sua complexidade funcional e em segundo lugar sua complexidade es-
trutural (ALMOZARA, 2013 apud SANTOS, 2012, p. 69). Por complexidade funcional
podemos entender as qualidades de uso inerentes ao objeto e que no caso do caderno
de desenho são estabelecidas pela sua função como substrato organizacional de infor-
mações visuais, anotações de projetos, enfim, como um arquivo de possibilidades que
se traduzem de modo tradicional pela escrita e pelo desenho. A complexidade estrutural
por sua vez revela as tendências materiais que propiciam ou favorecem o uso e são,
nesse caso, estabelecidas pela matéria com o qual é feito, pelo formato, tamanho, cores
etc. Tanto função, como estrutura são elementos que se completam e se modificam de
acordo com as necessidades poéticas dos artistas. E assim, de certo modo, o “objeto tra-
duz em sua materialidade a intenção do ato preexistente que lhe deu origem, e sua forma
é produto de uma performance imaginada até mesmo antes de sua própria configuração
física”. (DOHMANN, 2010. p. 71).
Levando-se em conta apenas a ideia de suporte mnemônico e ampliando assim as
possibilidades de se observar essa questão ao longo de diversos momentos da História,
o que encontramos - como aproximação ao caderno de desenho - são formatos bastante
inusuais para nossa pré-concebida ideia sobre esse meio.
Tolnay em sua obra fundamental sobre a história do desenho dos antigos mestres,
publicado originalmente em 1943, afirma, por exemplo, que as “ostracas” (Figura 1),
pedaços de pedra calcária (limestone) ou cerâmica eram assim utilizados por artistas e
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 449

escribas do antigo Egito como suportes de desenho e escrita em substituição aos caros
papiros.
O nome “óstraca” vem do termo grego “ostrakon” (όστρακον), “concha” devido a
aparência de tal suporte. Em geral essas peças, encontradas em tumbas reais, corres-
pondiam a grupos de peças de estudos preliminares para pinturas parietais e em outros
grupos de peças, como citados por CRUM (1902), estavam relacionadas a fragmentos
que continham listas relativas às questões de administração. O que nos interessa obser-
var nesses exemplos é que em ambos os casos, mesmo com perdas ocorridas em séculos,
tais desenhos e escritos chegaram até nós em função de terem sido sistematicamente
guardados como registro e arquivos documentais.

Figura 1. Desenho egípcio, “Óstraca”, Ramses IV em sua carruagem (detalhe). Desenho li-
near em preto sobre pedra calcária, tamanho original 32 cm x 41,5 cm. Museu do Cairo. Fonte:
TOLNAY, 1943. p. 161. A reprodução original do livro encontra-se em preto e branco.

A tradição da guarda e organização de coleções de esboços e desenhos se estabelece


fortemente com a difusão de suportes mais compactos e portáteis, como o pergaminho
e posteriormente o papel.
Na Idade Média os exempla (Figura 2), espécie de coleção de desenhos, eram usa-
dos como forma de se obter modelos que possibilitassem a reprodução ou cópia de
450 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

composições para a constituição de novas obras e como forma de perpetuar informações


para às novas gerações de artistas.

Figura 3. Sebastián Romo.


Estudo para a instalação
“Máquina acelerado de fic-
ções”. Desenho sobre pa-
Figura 2. Livro de modelo de Iniciais (Exempla, Model Book). pel. 8a Bienal do Mercosul,
Toscana, Itália; ca. 1175. 9 1/16 x 5 11/16 in. (23 x 14,5 cm). 2011. Fonte: Catálogo da 8a
The Fitzwilliam Museum, Cambridge, MS 83-1972. Fonte: Bienal do Mercosul, p. 352.
http://www.metmuseum.org/

Os “exempla”, também conhecidos como livros de modelos, foram assim ampla-


mente utilizados na construção de uma visualidade específica que só encontrou oposição
nos artistas do Renascimento.
Segundo Tolnay, a execração ao uso dos modelos foi expressa claramente por Leo-
nardo da Vinci em seu Trattato, no qual aconselhava aos artistas realizarem o desenho
direto da natureza em substituição ao uso dos “exempla” como fonte de consulta:

Isto possui um grande significado e uma mudança, visto que anteriormente os “exempla”
funcionavam como uma fonte imprescindível de “motivos” para a realização de uma obra. A
partir da percepção da natureza e da noção de expressão individual o desenho assume uma co-
notação de que é da natureza e de sua observação que deve partir a manifestação e a realização
da obra. (TOLNAY, 1943. p.4)

A importância dessa observação de Tolnay é a de que a concepção sobre a forma de


se realizar esboços e guardá-los adquiriu novo sentido que não estava mais relacionada a
uma perpetuação de modelos rígidos que deveriam ser copiados e transmitidos às novas
gerações, mas evocava uma nova condição do artista como criador e atento observador
da natureza, como protagonista de uma nova ordem cultural que começava a se delinear
no Renascimento.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 451

A prática de organização de arquivo pessoal de desenhos foi mantida, mas estrutura-


da de outro modo, determinando um desenho realizado direto da natureza e de conota-
ções pessoais. Um exemplo, dessa prática pode ser observado, segundo SLIVE (1986),
em Rembrandt.
No inventário realizado em 1656, quando o artista foi considerado insolvente e seus
bens foram a leilão, constavam dos lotes a serem leiloados, vinte e quatro “livros” en-
cadernados com folhas limpas entre as quais Rembrandt guardou meticulosamente seus
desenhos. Os “livros” encontravam-se separados por assuntos: mulher com criança, nus,
paisagens, animais e sem dúvida o de maior destaque incluía os temas bíblicos.
Nesse contexto, pensar em uma reunião ou coleção de diversos esboços e estudos é
uma maneira que possibilita a compreensão das origens do que viriam a ser os cadernos
de desenhos modernos e contemporâneas e definem, sob certos aspectos, a importância
e o sentido desses objetos.
Como aponta Ayao Okamoto em sua tese de doutorado:

Artistas plásticos, arquitetos, músicos, designers, cineastas, entre outros criadores, cada qual
a seu modo, utilizam-se das suas possibilidades imaginativas para por em prática uma forma
pensada e desejada. E, quase sempre constroem seu universo criativo a partir de anotações ou
apontamentos em seus cadernos. Podemos considerar, nesse sentido, que, como “princípio
criativo,” o traço, o esboço ou croquis são desencadeadores em potenciais processos imagina-
tivos e descritivos, ou seja, a imagem proporciona o caráter mágico para a compreensão das
mensagens. (OKAMOTO, 2009. p.01)

Cadernos na arte contemporânea


Os cadernos, em contexto histórico, sempre foram objetos de uso restrito a intimidade
do ateliê e de certo modo guardados com cuidados extremos, pois eram fontes de conhe-
cimento, qualificação e diferenciação da produção dos artistas.
As práticas poéticas na arte contemporânea dão assim, novo sentido aos modos de
utilização dos cadernos, permitindo que sejam equiparados a outros suportes criativos.
Trata-se, portanto, de práticas nas quais o projeto se confunde ou se transforma em
obra, e que de certo modo, tem suas conexões nos movimentos da Arte Conceitual e da
Land Art, permitindo que os estudos ou planejamentos também fossem eles próprios, em
alguns casos, definidos como obras a serem apresentadas publicamente.
O que demonstra uma ruptura das categorias e pretensas hierarquizações de lingua-
gem nas quais materiais e processos não tradicionais na arte contemporânea conduzem
infindáveis redes de apropriações e resignificações que transformam um objeto histori-
cizado (BOURRIAUD, 2009) em elemento poético.
Assim, o caderno na arte contemporânea é espaço de construção sígnica, que tam-
bém estabelece um livre trânsito entre um espaço de arquivo (e estudo) e um espaço
de instauração (e apresentação) da obra, de modo a amplificar sua relação estrutural e
452 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

funcional para que seja percebido como “território dialógico” a partir do qual, enfim, os
espaços de produção também são vistos como espaços expositivos e vice-versa.
Considerando essas questões, podemos citar o trabalho do artista mexicano Sebas-
tián Romo, por utilizar seus cadernos de desenhos e de projetos como locais de manobra
entre esses dois territórios, conciliando estruturas expositivas, arquivos, imagens etc. e
deixando o processo totalmente à mostra.
Toda a produção desse artista insere certos objetos e técnicas, que são deliberada-
mente conectados entre si como potentes elementos culturais na formação de redes de
significados que se apresentam na criação de camadas de ideias e conceitos.
Romo em sua participação no componente “Cadernos de Viagem” da 8a Bienal do
Mercosul em 2011, utiliza seu caderno de viagem como arquivo e ateliê portátil para
posteriormente amplificar sua relação com esse suporte para o espaço expositivo, no
qual cria um ambiente que é uma extensão de seus cadernos de viagem (Figura 3).
Nessas breves considerações podemos antever que o caderno pode ser um meio
representativo e significante da ideia de arquivo, que estrutura a “apresentação sinóptica
de diferenças” cujo objetivo é dar a entender os nexos de coisas aparentemente distintas
colocadas lado a lado e que estão baseadas “não no que é similar, mas na conexão secre-
ta entre as diferentes imagens” (DIDI-HUBERMAN, 2010).

Referências
ALMOZARA, P.C.S. “Caderno/território”. IN: CIRILLO, José, Org.; GRANADO, Ângela, Org.
O sabor da sua saliva é sonoro: reflexões sobre o processo de criação. São Paulo: Intermeios,
2013. pp. 74-80.
BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CRUM, W. E. Coptic Ostraca, from the collection of the Egypt Exploration Fund, the Cairo Mu-
seum and Others. London, 1902.
DIDI-HUBERMAN, Georges. “ATLAS ¿Cómo llevar el mundo a cuestas?”, vídeo com entrevis-
ta de Georges Didi-Huberman (curador da exposição). Museu Reina Sophia, Madrid. Vídeo
3’44”. 2010. Disponível em: http://youtu.be/WwVMni3b2Zo. Acessado em: 20/09/2013.
Dohmann, Marcus. O objeto e a experiência material. ARTE & ENSAIOS. Revista do Programa
de Pós-Graduação em Artes Visuais, EBA/UFRJ, no 20, Julho/2010. p. 70-77.
OKAMOTO, Ayao. Os cadernos de apontamentos: percurso e fabulação do desenho através do
universo das sensações. Tese de Doutorado. Área de Conhecimento: Poéticas Visuais. Orien-
tador: Evandro Carlos Frasca Poyares Jardim. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes
- ECA/USP, 2009.
SLIVE, Seymour. Drawings of Rembrandt. New York, Dover, 1986.
TOLNAY, Charles de. History and technique of old master drawings. New York: H. Bittner and
Company, 1943.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 453

Aspectos poéticos,
históricos e culturais
relacionados ao livro de artista

Tiago Emanuel de Oliveira


PUC-Campinas – [email protected]

Paula Cristina Somenzari Almozara


PUC-Campinas – [email protected]

O artigo investiga algumas questões pertinentes ao livro de artista no que


diz respeito à configuração como suporte poético, a constituição material e
as possibilidades estéticas de modo a apresentar um panorama da produção
dessa vertente e uma abordagem sobre aspectos histórico-culturais.
Palavras-chave: artes visuais; livro-objeto; livro de artista.

The article proposes some issues relating to the artist’s book regarding the
configuration as a poetic support, the material constitution and the aesthetic
possibilities in order to give an overview of production that area in an historical-
cultural perspective.
Keywords: visual arts; book-object; artist’s book
454 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

A importância do livro como suporte para a arte contemporânea está ligada as dife-
rentes formas de “leituras” - em sentido metafórico - criadas a partir da desconstrução
ou renovação do objeto livro (SILVEIRA, 2001).
No Brasil os primeiros artistas a se dedicarem a uma quebra dos padrões literários
que culminaram em “livros-objetos” ou “livros-obra” foram os poetas Concretistas e
Neoconcretos que no final dos anos cinqüenta e sessenta do século XX integraram a poé-
tica visual em suas experiências formais de modo a romper com as estruturas padrões da
língua (TERSARIOLLI, 2008).
Como potente elemento cultural passível de engendrar complexas situações visuais
e semânticas, o livro foi assim vislumbrado por artistas e movimentos do século XX,
como uma maneira de explorar a circulação da obra, transformando-a em auto-conten-
tor expositivo que permitisse seu transito por diversos meios e espaços de modo a criar
elementos que transgredissem os padrões de mercado, como afirma Panek:

[...] o interesse dos artistas em sair do espaço institucionalizado, leva-os a pensar no espaço
para “além do cubo branco”, ou seja, para um ponto que ultrapassa as paredes tradicionais
dos museus e galerias dedicados à arte moderna, um lugar que pode ser buscado no espaço
público ou no espaço das publicações eventuais ou periódicas. Talvez por isso, nos anos ses-
senta, o livro tenha sido escolhido como forma de romper barreiras e ultrapassar as fronteiras
da modernidade, sendo usado como suporte da arte e dando origem ao livro de artista. O livro
de artista vem substituir as paredes dos museus, dos salões e das galerias e, por ser uma mídia
móvel, passa a ter uma função mais abrangente no que se refere à apresentação pública. (PA-
NEK, 2005 p. 01)

O livro de artista cria nesse sentido relações sígnicas que são reconhecidos no objeto
“livro”, mas que “libertam” ou amplificam as interpretações sobre o próprio objeto,
criando um campo visual experimental (SILVEIRA, 2001), no qual artistas realizam
suas experiências determinadas por um contexto de “pós-produção” (BOURRIAUD,
2009), evidenciando a possibilidade de provocar tensões e distensões sobre as camadas
de significados introjetadas por esse potente objeto historicizado.
Para se ter uma visão mais ampla do livro de artista torna-se necessário enfatizar o
contexto histórico-social do livro, mostrando que seu desenvolvimento como potente
objeto cultural auxilia-nos na compreensão do interesse e da forma como os artistas se
apropriaram do livro para a construção poética visual.
O livro como estrutura formal constituído por “cadernos” que compõe o corpo da
encadernação - conhecido nos primórdios como codex (ou códice) e depois pelos ma-
nuscritos e incunábulos - é uma criação tardia na Europa que veio a substituir os vo-
lumem, rolos de pergaminhos e/ou papiros, usados fortemente até a o século IV d. C.
(MCMURTRIE, 1997).
Com a invenção e aprimoramento das prensas e tipos de impressão o livro se difunde
pelo mundo, voltando-se para todos os tipos de público, de modo a ganhar diversidade
de tamanhos, cores, texturas, etc.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 455

Verdadeiros cultos se formaram em torno do livro. O livro desperta o interesse de todas as ca-
madas sociais, é alheio à cor, raça ou credo. Na sua história, o livro foi o instrumento utilizado
para contestar, declarar amores, sofrimentos, descobertas, etc. Dessa forma, ao analisar a his-
tória e o desenvolvimento da escrita e do conhecimento da humanidade, é possível afirmar que
o livro é o suporte natural da literatura, ou seja, é o portador de todo o nosso conhecimento,
guarda o registro de nosso comportamento e nossos afetos, é o portador das leis e responsável
pela divulgação da fé na mensagem divina (SILVEIRA, 2001, p. 246).

O problema de saber exatamente como “surge” o livro de artista está vinculado tam-
bém a dificuldade de se classificar as obras em si, inclusive no que se refere ao próprio
livro como suporte. Observamos, nesse sentido, que diversas nomenclaturas foram (e
ainda são) usadas para se tratar ou fazer referência ao livro como suporte artístico, como
por exemplo: livro de arte, livro-obra, livro de artista, livro-objeto, livro-poema etc (SIL-
VEIRA, 2001). Isso acontece por uma enorme variação nos formatos e tipos de livros
realizados, que podem ser desde os livros impressos e de formatação padrão até peças
perecíveis feitas de matéria orgânica - como o “Livro de Carne” de Artur Barrio (Figura
1) - o que caracteriza o livro de artista, segundo SILVEIRA (2001) como “categoria”
extremamente mutável.
Assim, a ideia de livro de artista é vista de modo geral como uma construção plástica
que apresenta indícios ou referências ao objeto “livro” - seja pela referência ao formato,
a página, a leitura etc. - mas que trabalha com conceitos que podem perverter, ampliar,
subverter, desconstruir os próprios referenciais utilizados.
Cada artista ou cada livro trabalha com uma linguagem própria, cada um utiliza uma
metodologia diferente de construção do objeto/obra e para entender sua existência como
objeto, em muitos casos é preciso observar o percurso do artista.
Portanto, o livro de artista em si não depende apenas do seu formato acabado ou da
sua aparência final para que possa ser apreendido, mas está dependente de uma rede de
referências culturais que dá sentido a obra (SILVERA, 2001).
Como exemplo das redes e camadas de leituras simbólicas, culturais e até mesmo
sociais, propostas pelos livros de artistas podemos observar como sendo um trabalho
emblemático o “Livro de Carne” de 1978-79 de Artur Barrio (Figuras 1 e 2).
Considerando o contexto social da época de realização dessa obra - em plena di-
tadura militar no Brasil na década de 70 do século XX - a comparação que reside no
poder da palavra e da leitura como o poder de dilacerar e mudar a matéria, oferece uma
potente via de interpretação ligada a metáfora presente na leitura/corte, palavra/carne e
que por sua vez está vinculada ao gesto/sensação da manipulação do livro determinada
por duas ações: a de “leitura” (virar a página) e o movimento da faca de um açougueiro
(que corta a carne crua).
456 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Figura 1: Artur Barrio. Livro de carne, 1979. Figura 2: Artur Barrio, Transcrição: “LIVRO
Dimensões variáveis. Fonte: http://arturbar- DE CARNE A leitura deste livro é feita a par-
rio-trabalhos.blogspot.com/2011/04/livro-de- tir do corte/ação da faca do açougueiro na
carne-1978-1979.html carne com o conseqüente seccionamento
das fibras; fissuras, etc., etc., assim como
as diferentes tonalidades e colorações. Para
terminar é necessário não esquecer das tem-
peraturas, do contato sensorial (dos dedos),
dos problemas sociais etc. e etc. .............
Boa leitura ........A. A. Barrio 3.79”. Dimen-
sões variáveis. Fonte: http://arturbarrio-tra-
balhos.blogspot.com/2011/04/livro-de-car-
ne-1978-1979.html

A relação que certos artistas estabelecem não apenas com a forma, mas com o con-
teúdo apropriado das edições é outro elemento importante nas considerações sobre o
livro de artista. Maria do Carmo Freitas Veneroso (2012. p.84) afirma que:
[...] os livros de artista utilizam frequentemente a fusão entre mídias que pode ocor-
rer nas relações intermidiáticas, quando, por exemplo, palavras e imagem dialogam,
sendo que o elemento visual funde-se conceitual e visualmente com as palavras. (VE-
NEROSO, 2012. p.84)
Exemplificando essa questão, o artista inglês Jonathan Callan embora trabalhe com
a anulação de qualquer possibilidade de se ter acesso ao conteúdo total das edições que
invariavelmente são usadas na construção de suas esculturas, integra a sua obra a poten-
cia textual presente nos livros que utiliza. Ou seja, ele se vale da ideia de negar ao livro
seu “direito” de ser um contentor de informações e histórias para usá-lo como elemento
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 457

construtivo de peças tridimensionais sem afastar totalmente sua origem editorial, obje-
tual e cultural que remete a um determinado autor e/ou título etc.
Em seus trabalhos é possível observar que a apropriação que o artista faz de certas
edições específicas acaba por conferir novo sentido às suas obras. Assim, a palavra, de-
terminada pelo título ou pela indicação de quais volumes foram usados irá implicar na
relação intermidiática de fusão entre conceito/forma e palavra/sentido.
Segundo Antaya (2011) a obra de Callan é muito mais inspirada por escritores, poe-
tas e filósofos do que propriamente por artistas visuais. Em Seven Volumes (Figura 3) de
2009, o artista apresenta um conjunto de sete seções transversais circulares feitas a partir
de um único volume da obra literária “Em Busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust.
Todo o texto foi enrolado e cortado de modo a fazer uma referência às sete partes que
formam a obra do escritor.

Conhecido pelo seu tamanho, essa obra de Proust contém mais de um milhão de palavras e
é uma das mais extensas obras da literatura. Os círculos de Callan aparentemente infinitos e
comprimidos fazem ecoar a natureza épica do texto original, bem como faz referência à forma
como foi escrito: Proust manteve-se acrescentando escritos até a sua morte, o que reforça a
sensação de que o processo de sua geração era potencialmente sem fim, como é o perímetro de
um círculo. (ANTAYA, 2011. p.58 [tradução livre feito pelos autores])

Figura 3: Jonathan Callan. Seven Volumes, 2009. Escultura; material: papel; dimensão total
da obra original 48 x 35 x 21 cm. Fonte: ANTAYA, 2011. p. 59
458 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

O livro de artista, ao mesmo tempo em que parece se converter em uma categoria


ou um gênero nas artes visuais - situação que causaria estranhamento após a quebra do
duopólio pintura-escultura (ARCHER, 2001) nas artes contemporâneas - perverte, no
entanto, essa ideia ao afirmar-se, na realidade como um catalisador de possibilidades
formais (determinado por ser um objeto cultural e histórico) por meio do qual os artistas
operam as redes de conexões significativas que irão refletir a complexidade estrutural,
conceitual e poética das relações entre as mídias.
Assim, o fascínio causado pelo livro de artista reside justamente em sua ostensiva
determinação contemporânea de transitar e transgredir diversos sistemas, sejam eles, o
das artes, das comunicações, da cultura e da história.

Referências
ANTAYA, Christine et al. Book art, iconic sculptures and installations made from books. Berlin:
Gestalten, 2011.
ARCHER, Michael. Arte Contemporânea, uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
MCMURTRIE, Douglas C. O livro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
PANEK, Bernardette. O livro de artista e o espaço da arte. In: ANAIS: III Fórum de pesquisa
científica em arte. Curitiba: Escola de Música e Belas Artes do Paraná, 2005.
SILVEIRA, Paulo. A pagina violada, da ternura a injuria na construção do livro do livro de artis-
ta. Porto Alegre: UFRGS, 2001.
TERSARIOLLI, Ariovaldo. O livro como objeto da arte. Monografia apresentada ao Programa
de Pós- graduação em História da Arte. Faculdade de Pós-Graduação em História da Arte –
FAAP. São Paulo, 2008.
VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. Palavras e imagens em livros de artista. Pós: Belo
Horizonte, v.2, n.3, p.82-103. Maio/2012.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 459

A incrível história do poste


que virou árvore e a arte
relacional: um encontro

Tomaz de Aquino
UFF – [email protected]

Discutindo as relações entre Butoh e a Mímica, os grupos Poéticas do Corpo e


Teatro MiMO, respectivamente, desenvolveram a performance A incrível histó-
ria do poste que virou árvore a partir dos questionamentos que os inquietavam
acerca do homem contemporânea e suas relações sociais. Para a realização
desse artigo, buscou-se um diálogo entre o processo de criação da perfor-
mance e a estética relacional proposta por Nicolas Bourriaud, proporcionando
uma discussão entre as estéticas trabalhadas pelos grupos e a arte relacional.
Palavras-chave: Performance, arte relacional, butoh, mímica.

Discussing the relationship between Mime and Butoh, groups Poéticas do Cor-
po and Teatro MiMO, respectively, develop performance A incrível história do
poste que virou árvore based on questions that disquieted about the contem-
porary man and his social relations. To conduct this article, we sought a dialo-
gue betwen the creative process and relational aesthetics proposed by Nicolas
Bourriaud, providing a discussion between aesthetics worked by groups and
relational art.
Keywords: Performance, relational art, butoh, mime.
460 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Poetizando as mímicas do corpo


Em 2011 os grupos Teatro MiMO e Poéticas do Corpo, ambos sediados no Instituto Fe-
deral de Educação Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), uniram-se em um intercâmbio
de grupos proporcionado pela Prefeitura Municipal de Fortaleza, por meio do edital de
Formação e Intercâmbio entre Grupos de Teatro de Fortaleza e articularam o projeto
Poetizando as mímicas do corpo.
O grupo de pesquisa e extensão Poéticas do Corpo tem como marco para o início
de suas atividades o ano de 2003. O coletivo estuda a construção do corpo cênico nas
relações entre a dança, o teatro e as artes visuais, debruçando-se, sobretudo no território
da performance e adentrando no universo da dança-teatro japonesa – Butoh, sua mais
recente pesquisa.
O Teatro MiMO iniciou suas atividades em 2008. Inicialmente, éramos quatro alu-
nos da graduação em Artes Cênicas. Reunimo-nos para compor um grupo de estudo
prático sobre o corpo, tendo como foco a linguagem da Mímica e o treinamento psico-
físico do ator.
Os grupos tinham que escolher pontos de convergência em seus treinos para a rea-
lização do projeto. Dentre as investigações de cada coletivo, foi escolhida a estética do
Butoh, por parte do Poéticas do Corpo e a Mímica, por parte do Teatro MiMO.
O Butoh surge no pós-guerra japonês dentro do contexto da Modernização Norte-A-
mericana (1945 – 1950) e do Milagre Japonês (1950 – 1973). Em meio a esses aconte-
cimentos, surge uma questão: perder ou assumir uma nova identidade? Assim, a dança
vai se modelando por meio de pequenas experimentações, incialmente, com Tatsumi
Hijikata. Data de 1959 a primeira obra em Butoh realizada por Hijikata: Kinjiki (Cores
Proibidas), inspirada numa novela japonesa de Yukio Mishima. Yoshito Ohno, filho de
Kazuo Ohno, participou do espetáculo entrando para a companhia de Hijikata.
Ainda no início dos anos 1950, Hijikata conhece Kazuo Ohno e o inspira a praticar
a dança que estava em desenvolvimento. Os dois estabelecem uma relação de parceria e
em 1961, sob a influência da Dança Expressionista Alemã (dança livre) e do Surrealis-
mo, surge oficialmente no campo das artes o Ankoku Butoh: dança das trevas. Uma ma-
nifestação que dança seus mortos, que surge da lama, dos destroços – segundo palavras
de seu criador Tatsumi Hijikata. Uma manifestação que tenta a religação do homem com
a natureza e dança o seu cotidiano. Uma dança em trânsito.
Nossos encontros foram permeados pelo Jinen Butoh – desenvolvido por Atsushi
Takenoushi – estética que dança as forças da natureza e busca o encontro com as pessoas
e o meio ambiente. Nessa experiência, dançamos a força da natureza no ciclo das quatro
estações do ano, proporcionando um treinamento das qualidades de movimento que as
estações remetiam ao nosso corpo e ao imaginário por meio de metáforas, sobre o meio e
os homens: outono (preparação para a última florada, para a morte, a perda), inverno (re-
colhimento, isolamento, galhos vazios, começo do fim, morte), primavera (renascimento,
flores desabrochando, pássaros cantando) e verão (intensidade da vida, prazer supremo).
Assim, percebemos uma relação cíclica do dançar o cotidiano da vida e da morte.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 461

No que concerne a Mímica, adotamos a Mímica Corporal Dramática, desenvolvida


pelo francês Etienne Decroux, que estudou arte dramática na École du Vieux Colombier,
fundada em 1921 por Jacques Copeau, onde teve contato com o exercício do véu, con-
forme comenta Soum (2009, p. 9) “os atores vestiam roupas de ginástica, calçavam uma
máscara (um véu) e deviam interpretar com a ajuda de seus corpos os diferentes temas
da vida cotidiana, na cidade, no campo, ou temas diferentes evocando os diversos ciclos
da vida.”. Jean d’Orcy apud Soum (2009, p. 9) nos conta que

Para aquele que veste a máscara, o que acontece? Ele se isola do mundo exterior: a noite que
se impõe permitirá em primeiro lugar que ele rejeite tudo o que o atrapalha e, em seguida, por
um esforço de concentração, atinja o vazio; a partir deste momento, ele poderá reviver e agir,
mas, dramaticamente desta vez.

O que surgia, durante o processo de treinamento do ator, como resultado desse exer-
cício pré-expressivo, era uma dança pessoal, que em diálogo com Burnier (2001, p.141)
podemos compreendê-la como sendo uma dança que é oriunda do

[...] treinamento pessoal. Ele tenta dissolver um sentido mais “mecânico”, de “exercício”, que
pode estar embutido na palavra treinamento, e introduzir uma dimensão mais fluídica, orgâni-
ca, viva através da palavra dança. Já o termo pessoal tenta evocar o sentido de não preestabe-
lecido, não predeterminado, portanto, algo do indivíduo, criado por ele, algo a ser encontrado.

O Butoh caracteriza-se pela busca de uma elaboração de experiência pessoal, e não de


uma forma, não constitui uma técnica fechada e, portanto, universal. O que o diferencia da
Mímica Corporal, que embora apresente esse caráter subjetivo do véu, é uma técnica mais
desenhada, mas o trabalho com seus princípios, aborda uma relação com o vazio.
Assim, percebemos que as duas estéticas – o Butoh e a Mímica – dançam o cotidiano
humano e os seus dramas. Dançam as diferentes metáforas que perpassam nossas vidas
como a relação com a matéria, a natureza, o comportamento em relação aos outros seres,
o comportamento em sociedade, os estados do coração e da alma, a representação do
pensamento, a memória.

A incrível história do poste que virou árvore


O objetivo do projeto Poetizando as mímicas do corpo era discutir os caminhos que co-
nectavam o desenvolvimento integral do ser através de experimentações estéticas com o
Butoh e a Mímica, investigando o natural, o urbano, a afetividade, a midiatização, a arte
e pensando a relação com a cidade, resultando na montagem de uma obra (espetáculo,
performance, intervenção, vídeo etc.).O intercâmbio resultou na performance A Incrível
História do Poste que Virou Árvore. Mas
462 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

O que é performance? Uma peça teatral, dançarinos dançando? Um concerto musical? O que
você vê na TV? Circo ou carnaval? Uma entrevista coletiva com o presidente da República?
As imagens do papa do modo como ele é retratado pela mídia [...]. performance não é mais um
termo fácil de definir: seu conceito e estrutura se expandiram por toda a parte. Performance é
étnica e intercultural, histórica e atemporal, estética e ritual, sociológica e política. Performan-
ce é um modo de comportamento, um tipo de abordagem à experiência humana; performance
é exercício lúdico, esporte, estética, entretenimento popular, teatro experimental e muito mais.
(SCHECHNER; MCNAMARA, 1982 apud LIGIÉRO, 2012, p. 10).

Reunimo-nos durante cinco meses/ciclos – março a julho de 2011 – numa carga


horária de 40 horas mensais, otimizadas da seguinte forma: 32 horas para o intercâmbio
entre os grupos, 4 horas para manutenção do blog: umnaolugarnatural.blogspot.com.br
e 4 horas para troca junto à cidade, em espaços sobreviventes às ações do homem, por
meio de intervenções urbanas, como resultado do encontros mensais.
Findado os cinco ciclos, a performance foi assumida por nós como um work in
process1, sendo realizada nas ruas da cidade, especificamente em 7 sítios2, em contexto
de “não-lugares” (AUGE, 2007), pesando numa cidade reinventada, religada ao todo.
O experimento buscava resgatar as relações de afeto do homem contemporâneo que
está inserido nas “auto-estradas de comunicação” (BOURRIAUD, 2009, p.11) dentro
de uma lógica de mercado que extingue qualquer relação mais verdadeira, próxima,
porosa e humana.
A performance3 iniciava com um encontro. Um encontro com o sítio. Era necessário
senti-lo antes da intervenção acontecer. Cada membro do grupo ia chegando ao local
escolhido de forma natural, tornava-se, naquele momento, habitante daquele ambiente,
encontrando-se com o mesmo e assumindo aquele cotidiano, recebendo-o. Fazíamos
uso do da Deriva4 como método de percepção espacial e integração ao mesmo.

1. Cohen (2006, p. 17) nos diz que “Literalmente poderíamos traduzir por “trabalho em proces-
so”, procedimento este que tem por matriz a noção de processo, feitura, iteratividade, retro-ali-
mentação, distinguindo-se de outros procedimentos que partem de apreensões apriorísticas,
de variáveis fechadas ou de sistemas não-interativos.”
2. A cidade de Fortaleza é divida por Regionais Administrativas, totalizando 7. Resolvemos
apresentar a performance em 7 espaços: 6 Praças e o Aterro “comercial” da Praia de Iracema
(que não foi possível devido a intervenção da Guarda Municipal, pois iria desestabilizar o fluxo
da região destinada ao comércio e ao turismo etc.).
3. Link da performance (registro editado): http://www.youtube.com/watch?v=dEePRPLG4bw.
Os textos de cada integrante, sobre a história do poste que virou árvore, podem ser encontra-
do no blog: http://umnaolugarnatural.blogspot.com.br.
4. A Teoria da Deriva, de Guy Debord (2009), foi compreendida por nós com um procedimen-
to de estudo psicogeográfico, ou ainda, uma técnica de passagem por ambientes urbanos
variados, esquecendo as preocupações e relações naturais (afetivas, de trabalho, lazer), se
propondo a vivenciar a cidade de modo que impulsione uma percepção-concepção do espaço
urbano enquanto território desconhecido, para ser decifrado e reconhecido de outros pontos
de vista, através da experiência direta, permitindo-se aos encontros que surgem, a recepção
do espaço e o que ele lhe proporciona.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 463

Após esse momento de chegada, os artistas se conectavam entre si por meio de fios
imaginários e, depois, conectavam-se com o público e contavam – cada um para uma
pessoa diferente, presente no ato – a sua versão de como um poste virou árvore. Depois,
faziam um exercício de conexão interna e externa (consigo e com o outro performer
e depois com o transeunte ou espectador) o qual chamei de encontros e despedidas.
Depois desse momento, um ator nasce, em um poste, envolvido num casulo – tecido
acrobático –, como num desabrochar da pétala de uma flor. Os atores que contemplavam
esse momento vão ao público e, com um gesto, convidam-nos para a contemplação e um
abraço coletivo no poste. Aos poucos, os atores vão saindo, um por um, deixando apenas
o público na contemplação daquele poste e retornam ao cotidiano daquele ambiente.

A Arte Relacional e o encontro


A atual conjuntura da vida contemporânea, na qual somos bombardeados de informa-
ções que nos chegam via meios de comunicação de massa, incluímos nesse meio, as
mídias sociais e seus aparelhos de transmissão – celulares, tablets, dentre outros –, que
nos aproxima e nos permite estar mais ligados e antenados ao mundo e ao outro. A
comunicação que outrora demorava dias para se efetivar, hoje acontece em tempo real,
aproximando as pessoas e reforçando os laços afetivos. A ideia do progresso da huma-
nidade acarretou o crescimento industrial e mercantil da humanidade, e trouxe, com ela,
a mecanização do homem e o aceleramento dos meios de comunicação. Hoje, sabemos
que ao aderir as novas mídias, o que procurarmos acerca de algum assunto ou de uma
pessoa querida, desde que esses dados estejam disponíveis na rede, nós os obteremos.
Logo, estamos mais próximo das pessoas, ou pelo menos, sentimo-nos mais próximo.
Um efeito virtual.
Borriaud (2009, p. 11) comenta que “a comunicação encerra os contatos humanos”.
Penso que essa frase cabe aos dias pós-modernos, nos quais os contatos reais estão se
esvaindo em detrimento das relações virtuais proporcionada pelas novas mídias que
emitem a sensação do prazer de um encontro, afetam nossas emoções e realizam uma re-
lação virtual ou, ainda, uma representação da relação, padronizando os vínculos sociais.
Penso, será possível manter uma relação sem que a mesma seja uma representação?
No desenvolvimento da performance, sobretudo, no exercício dos encontros e des-
pedidas, em um tempo dilatado, dois performers cruzam o espaço, conectados consigo
e com o outro, aproximam-se e doam pelo olhar seu último suspiro (imagem da última
florada de uma árvore saindo do outono e indo para o inverno), seu último minuto de
vida e vão definhando ao chão. Nesse processo, se o contato físico surgir, ele é bem-
vindo. Essa despedida não precisa necessariamente ter um aspecto de tristeza. A emoção
464 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

que surgir, vai depender da relação que se estabelece entre cada dupla. No espaço do
entre, no “interstício social”5. (BORRIAUD, 2009, p. 19).
Podemos relacionar o interstício como o lugar do encontro, o espaço de trocas hu-
manas para além do sistema vigente que foge as zonas de comunicação. Nesse hiato
entre duas pessoas, podemos detectar o início de alguma relação que provavelmente
desencadeia um processo emotivo. Mas o que seriam essas trocas e esses olhares? Esses
encontros e despedidas?
O jogo propõe uma reflexão sobre o encontro (social) entre duas pessoas, tal qual
o realizamos cotidianamente: um encontro superficial e de natureza mercantil, sem o
olhar verdadeiro, sem o tempo da respiração entre os dois corpos que se encontram; ou
ainda, reflete que, para haver o encontro, não necessariamente deverá haver um propó-
sito inicial, predeterminado, objetivo e sem porosidade. Queremos propor com o jogo a
seguinte reflexão sobre o encontro: as pessoas não poderiam simplesmente estar abertas
e porosas na relação com o outro?
Comecei a compreender nossas atividades como “(uma arte que toma como horizonte
teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de
um espaço simbólico autônomo e privado)” (BORRIAUD, 2009, p. 19), e mais tarde tive
a percepção que poderíamos estar de acordo com os parametros da arte relacional, que

[...] nasce da observação do presente e de uma reflexão sobre o destino da atividade artística.
Seu postulado básico – a esfera das relações humanas como lugar da obra de arte – não tem
precedentes na história da arte, [...]. O espaço em que se apresentam suas obras é o da inte-
ração (George Bataille diria: “dilacera”) todo e qualquer diálogo. O que elas produzem são
espaços-tempos relacionais, experiências inter-humanas que tentam se libertar das restrições
ideológicas da comunicação de massa; de certa maneira, são lugares onde se elaboram so-
cialidades alternativas. Modelos críticos, momento de convívio construído.” (BOURRIAUD
2009, p. 61-62).

Percebi com a leitura de Bourriaud (2009) que a arte relacional inspira-se em pro-
cessos maleáveis que regem a vida comum e a obra se completa com a participação
efetiva do público. Na performance A incrível história do poste que virou árvore essa
participação é aberta, não é necessária para que a obra aconteça, porém, é interessante

5. O termo interstício foi usado por Karl Marx para designar comunidades de troca que escapa-
vam ao quadro da economia capitalista, pois não obedeciam à lei do lucro: escambo, vendas
com prejuízo, produções autárquicas etc. O interstício é um espaço de relações humanas que,
mesmo inserido de maneira mais ou menos aberta e harmoniosa no sistema global, sugere
outras possibilidades de troca além das vigentes nesse sistema. (BOURRIAUD, 2009, p. 22).
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 465

para o desenvolvimento da mesma. Fica a pergunta: seria possível relacionar A incrível


história do poste que virou árvore com os parâmetros da estética relacional?6
Observando, na rua, a experiência das pessoas que adentravam no jogo encontros
e despedidas constituindo conosco a performance, creio que naquele momento e no
momento de abraçar o poste e contemplá-lo ao final da mesma, que estávamos nos rela-
cionando com a estética relacional proposta por Bourriaud (2009, p. 42), uma relação
artista-público que aciona o trabalho, ‘“função de ponto de encontro” que constitui o
campo artístico e funda sua dimensão relacional. [...] Uma obra pode funcionar como
dispositivo relacional com certo grau de aleatoriedade, máquina de provocar e gerar
encontros casuais, individuais ou coletivos.”. Uma arte do encontro.

Referências
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Martins
Fontes, 2009.
BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas: Editora da UNI-
CAMP, 2001.
COHEN, Reanato. Work in progess na cena contemporânea: criação, encenação e recepção. São
Paulo: Perspectiva, 2006.
DEBORD, Guy. Internationale Sintuationniste. Madrid, Literatura Gris, 1999.
LIGIÉRO, Zeca. Performance e Antropologia de Richard Schechner. Rio de Janeiro: Mauad, 2012.
SOUM, Corinne. Etienne Decroux e a mímica corporal dramática. Revista On-line de Mímica e
Teatro Físico. São Paulo, v. 1, n. 1, p. 4-30, fev. 2009. Disponível em: < http://www.mimus.
com.br/corinne2.pdf> Acesso em 28 out. 2010.
TAKENOUSHI, Atsushi. O que é jinen? Disponível em: < http://www.jinen-butoh.com/profile_e.
html>. Acesso em: Acesso em 20 jan. 2011.

6. Termo cunhado pelo crítico de arte francês em 1995, no catálogo da exposição Traffic, no
CAPC Contemporany Museum, em Bordeaux. No seu texto, Nicolas discute a variedade da
arte produzida por uma geração de artistas na Europa, no início dos anos 90, questionando
“quais são os verdadeiros interesses da arte contemporânea, suas relações com a sociedade,
a história, a cultura?” (BOURRIAUD, 2009, p. 9). O autor ainda problematiza outra questão:
“será ainda possível gerar relações no mundo, num campo prático [...] tradicionalmente desti-
nado à “representação” delas?” (BOURRIAUD, 2009, p.12).
466 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Membranas: camadas entre o que


vemos e o que não vemos

Vânia Elisabeth Selzlein Sommermeyer


UFRGS – [email protected]

Pelas operações de encobrimentos, obliterações e aderências que realizo há


algum tempo em meu trabalho, cunho os termos operatórios de latência e
ativação, bem como a noção de membrana, sempre que houver delimitações
de espaços. Pensando nestas operações e ampliando a pesquisa poética e
teórica, trago como estudo de caso duas séries de fotografias realizadas por
foto-phone. A primeira Percursos, de 2003 e 2007 realizada nas caminhadas
por Porto Alegre e a segunda série, Salida de Emergência, de 2011, registra
a paisagem em viagem empreendida entre as cidades de Málaga e Rhonda,
na Espanha.
Palavras-chave: fotografia, membrana, superfície, contemporaneidade

The operations of cover-ups, cancellations and adhesions realize that for some
time in my work, hallmark operative terms of latency and activation, as well as
the notion of membrane whenever there are boundaries of spaces. Thinking in
these operations and expanding research poetic and theoretical, I bring as a
case study two series of photographs taken by photo-phone. The first Routes
in 2003 and 2007 held in Porto Alegre walks by, and the second series, Salida
Emergencia of 2011, records the journey undertaken in landscape between the
cities of Malaga and Rhonda, Spain.
Keywords: photography, membrane, surface, contemporaneity.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 467

Membranas: camadas entre o que vemos e o que não vemos.


Ganhar tempo, não perdê-lo, é a tônica contemporânea. Mas, como lutar contra o tempo
cotidianamente? A problemática desta indagação nos leva a pensar que atuamos numa
sobreposição constante de ações, encarando outro modo de como nos movemos e de
como lidamos com a existência. Cremos, que para o artista, nunca há perda de tempo,
pois no ato trivial ou rotineiro de qualquer atividade, ele encontra um raio de significa-
ção, contido em seus movimentos e pequenos gestos. Por outro lado, o processo de tra-
balho do artista, mistura realidade e ficção e, “joga com os dois, mistura-os, inverte-os e
os põe em movimento”, diz (Cauquelin,2008, p.193).
Fato este, que reforça a apresentação da série de fotografias que trago, pois realiza-
das enquanto caminhava ou me deslocava de um lugar para outro. Apesar da rapidez do
mundo, em detrimento da posição, que assumo como artista/arqueólogo de insignificân-
cias, desejo reter o breve e o extraordinário, contido no momento fugidio do presente
real, mesmo que este seja passível de ser intercambiado rapidamente.
Ao avistar com atenção o entorno dos lugares que visitava, passei a me ocupar em
registrar fotograficamente, evidências de membranas, sugeridas como o encontro de
espaços. Daquela fase inicial, até hoje, as inúmeras fotografias em arquivo digital, cons-
tituíram-se em séries, que ampliaram nossa problemática sobre as superfícies, envol-
vendo as passagens de espaços, principalmente pela captação rápida e fugaz de um
mecanismo portátil de registro- o foto-phone. Percursos, 2003 e 2007 [fig.1 e 2] são
imagens fotográficas das vitrines com seus interiores repletos de remédios, potes, mó-
veis, cortinas, novelos de lã, potes de água, colchões, etc., das lojas de Porto Alegre.

Figs. 1.2.Vânia Sommermeyer. Série Percursos. Fotografias de caminhadas por Porto Ale-
gre (1) 2003 (2) 2007 [Ruas Osvaldo Aranha/Borges de Medeiros] .Acervo do artista.

Com a série Percursos, fazemos aproximações com as fotografias do fotógrafo Eu-


gène Atget [figs. 3 e 4] que, em suas mais de 10.000 imagens retratou as alterações que
a sociedade e a cultura expunham em seus modos de vida entre 1895 e 1927. Rosalind
Krauss observa atentamente que: (...) “podiam-se isolar os ritmos de acumulação re-
petitivos que tanto interessavam a Neue Sachlichkeit ou ainda os “collages” caros aos
surrealistas, particularmente atraídos pelas fotografias de vitrines das lojas, que fizeram
a celebridade de Atget.” (Krauss, 2006, p.162)
468 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Figs 3, 4. Eugène Atget.Vitrines, Paris – 1926. George Eastman House/Getty Images.

“As ruas são a morada do coletivo”, diria (Benjamim, 2007, p. 958), com suas lojas
elegantes formando uma cidade, um mundo em miniatura, onde tudo era possível en-
contrar. “O novo ambiente de vidro transformará completamente o ser humano”, diria
(Benjamin, 2000, p. 267). Imaginamos que ainda continua, pois apesar de sua função
isolante e térmica, o vidro hoje atua como superfície transparente e límpida para mostrar
e, em contra partida na opacidade, esconder e apagar. Ainda encontramos vitrines ele-
gantes em meio a numerosas ilhas de alimentação rápida. Perdemos o glamour, apesar
do alvo ainda ser o coletivo; não mais em espaços abertos, mas em inúmeros corredores,
como se galerias fossem, monitorados por câmeras.
Nas vitrines de Atget vemos seu interior repleto de mercadorias para o consumo,
superpondo-se por paisagens que invadem a superfície reflexiva do vidro, não mais to-
talmente transparente. O exterior invade o pequeno nicho interno decorado, que serve de
pano de fundo para a mercadoria. Visíveis na superfície do vidro, pelo reflexo, também
encontramos frases soltas, que Benjamin explica que são placas de esmalte escurecido
como “reclames publicitários” presos as paredes opostas à vitrine. Das palavras que se
intrometem no vidro das vitrines captadas por Atget, fazemos analogia a série Salida de
Emergência, 2011 [figs. 5 e 6]. Série de fotografias realizadas por foto-fone, de dentro
de um ônibus em movimento, numa viagem no sul da Espanha. Acompanhando o ines-
perado, apesar da visão restrita da janela, passo a captar a paisagem externa pelo vidro
incluindo a frase de advertência, quase como um reclame ou anúncio que se projeta.

Figs. 5, 6 Vânia Sommermeyer. Salida de emergencia , 2011. Fotografia captada em percur-


so de ônibus entre Málaga/Rhonda. Acervo do artista.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 469

Neste sentido, nos baseando em (Foucault,1999,p.19) que diz, “ as palavras aderem


diretamente às coisas (...) numa presença surda e insistente” , temos que aqui, não seria
diferente; juntas paisagem e frase formavam um operador visual por camadas, amplian-
do em importância, mesmo que pelo acaso/objetivo, nosso estudo sobre as membranas.
Desafios ao corpo surgem na captação, pois a paisagem corre rapidamente como o ôni-
bus, exigindo um constante ir e vir, num equilíbrio precário, mas sem perder de vista, a
frase como mais uma camada por perseguir. (Didi-Huberman, 2011, p.115) afirma que
“não se percebem absolutamente as mesmas coisas se ampliamos nossa visão ao hori-
zonte que se estende, imenso e imóvel além de nós; ou na proporção que se aguça nosso
olhar sobre a imagem que passa, minúscula e movente, bem próxima de nós. A imagem é
lucciola das intermitências passageiras.” Não teria tempo para enquadramentos, apenas
seguir o fluxo do movimento e da visão que aquele ponto de vista sugeria, buscando a
possibilidade frágil de ordem ao capturar na oscilação da frase, dois espaços ao mesmo
tempo. (Deleuze, 2007, p. 44) diria que “a inclusão, a inerência, seria a causa final da
dobra, passando de uma a outra através do deslocamento, não sendo o ponto de vista que
incluiria, mas aquilo que ocupa o ponto de vista”. Com isso não foram poucas as pessoas
que viram ali uma manipulação da imagem, o que nos remete a pensar que, não acredi-
tamos mais nas possibilidades da mão executando ações que envolvem apuro e destreza,
pois delegamos ao computador ou a uma ilha de edição esta tarefa. (Gombrich, 2012,
p.10) em O Sentido da Ordem, salienta que “não é apenas o movimento simultâneo que
é garantido pela rígida cronometragem. Ainda mais importante é a possibilidade ineren-
te, em qualquer ordem, de construir uma hierarquia de movimentos ou rotinas a fim de
garantir o desempenho de tarefas mais complexas.” Causa surpresa, a palavra ordem ter
como sinônimos: camada, categoria, habite-se (como autorização de ocupação), e segun-
do Barthes é exatamente isso que a fotografia faz: “ela se instala, com uma consciência
do ter-estado-lá.” Percursos e Salida de Emergencia não são fotografias analógicas, nem
de alta definição obtidas com câmeras digitais sofisticadas, mas paradoxalmente, obtidas
por um veículo extremamente difundido culturalmente - o celular. Buscamos um artefato
ágil e portátil, capaz de registrar o que se encontra fora do interesse geral, e, quem sabe,
revelarmos um mundo apartado dos interesses de uma sociedade apressada. “Já dizia
Deleuze que, selecionar os casos singulares e as cenas menores é mais importante que
qualquer consideração de conjunto.” Neste ponto, talvez resida a diferença, do que é
relevante para cada pessoa capturar e, como as dimensões de exposição pública, formas
de apresentação e noções de tempo e espaço são perceptíveis, para simples usuários e
para os artistas. Por outro lado a singularidade e o modo facilitado de um celular de bolso
“comporta em muitos casos um processador mais potente que um computador de dois
anos atrás, além de estar ligado a Internet”, como nos informa (Zizek, 2011, p.9).
Voltando à série Salida de emergência, verificamos a problemática que a prática
apontava, em trabalhos anteriores. No Mestrado a fotografia confirmava a tese, que sus-
tentávamos, de que toda forma possível de aderência age como uma membrana; mesmo
nos deslocamentos e situações de passagem de um espaço a outro, porém na presença
470 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

daquela frase entendíamos que algo acontecia entre o corpo, o ônibus e o celular portátil
na mão; este mediando e aferindo o exterior pelo vidro da janela. Assim, poderíamos
pensar que frase, à luz da leitura de Lacan, atuaria como sintoma ao expor uma mensa-
gem codificada sobre segredos mais íntimos, desejos ou traumas? Para quem se dirige a
frase? Ela indica uma ação para frente (interatividade) ou uma advertência para recuar
(interpassividade)? Neste sentido, e tentando responder às indagações acima, a fra-
se poderia funcionar como a lamela para Lacan; bem descrita por (Zizek,2006, p.78)
como uma “entidade de pura superfície, sem densidade de uma substância, um objeto
infinitamente plástico que pode mudar incessantemente de forma, até se transportar de
um meio para outro.” Ou ainda, ser uma espécie de órgão/máscara vestivel, preso às
superfícies e atuando como uma prótese excessiva e incoerente. O encaixe e desencaixe
da frase junto à paisagem, enquanto o ônibus segue, além de visível ao final, na imagem
fotográfica, se oculta como enigma atuando no “secreto e oculto, mas que veio à luz”,
inesperadamente, como diria Schelling (Freud,1976, p.281). Neste sentido, ao abordar a
questão do enigma, proponho observar uma obra, das mais estranhas, e por sua vez, das
mais observadas no mundo da arte: O Grande vidro (La Mariée mise à nu par ses céli-
bataires, Même), de Marcel Duchamp. Mesmo que Duchamp negue a obra retininiana,
o Grande Vidro se dá pelo olhar do espectador, onde a soma do que é obra e do que se vê
como obra, associada ao local e a forma de apresentação, atua sobre o trabalho e o traba-
lho sobre o espectador, alterando o que se via inicialmente. Uma parede que não é muro,
um espelho que não reflete uma imagem perfeita, mas mostra o que não está na obra: o
enigma em si mesmo, e o ambiente circundante. Assim, a transparência e a opacidade
estão juntas em um mesmo trabalho. O Grande Vidro pode ser lido como uma parede/
tela transparente - de vidro e de texto. A sua grandiosidade se da a ver pelo grau de in-
compreensão que igualmente silencia e esconde um corpo moderno feito máquina dese-
jante, a qual encobre os fenômenos da realidade e do mundo visível. A obra poderia ser
equivalente a um monumental objeto/parede - como um biombo, que serve para dividir
um ambiente. Esta especulação que faço, de aproximá-lo a um biombo, poderia remeter
ao aspecto extremamente íntimo de sua utilização, pois o biombo serve para resguardar
a intimidade de quem se veste. Todavia, este móvel pode suscitar em quem nada vê, e
assiste a esta operação, uma série de fantasias sempre relacionadas a este móvel, seu uso
e de quem está encoberto por ele. O biombo divide, sutilmente, um ambiente amplo em
dois: um mais recatado, afastado, para esconder algo que não se revela por completo e
outro de uso normal, aberto por onde se circula socialmente. Ao pensar na simplicida-
de que Duchamp impunha a sua vida (pois vivia em transito, praticamente sempre em
quartos alugados) é que esta relação com o biombo se intensifica. (Duarte, 2000.p.31)
define bem o que aventávamos: “(...) a imagem se oferece vestindo-se de proibição. De
ver. É proibido olhar. O trabalho esconde suas tramas, como se estivesse envergonha-
do do retiniano de sua imagem”. Assim, O Grande Vidro nos revela, aos poucos, sua
constituição, como que tentando nos dizer “decifre-me.” Isto nos leva ao conceito de es-
tranhamento que remete à “palavra alemã ‘unheimlich’: estranho, misterioso; sinistro;
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 471

excepcional, incomum”. ‘Unheimlich’ é obviamente o oposto de ‘heimlich: doméstico,


familiar. Aquilo que é ‘estranho’ é assustador precisamente porque não é conhecido e
ao mesmo tempo muito familiar. Naturalmente, contudo, nem tudo o que é novo e não
familiar é assustador. ” (Freud, 1976, p. 275, 277, 279).
De modo semelhante o real vem habitar com seu estranhamento as imagens da série
Janelas de meu estúdio, de 1948 de Joseph Sudek, [figs. 7 e 8], onde a água condensada
sobre o vidro, em primeiro plano, comporta-se como uma superfície gráfica, que se des-
faz aos poucos, transformando o que é transparente em região de opacidade; impedindo
o dar a ver completo da paisagem gelada do fundo e também do exterior do estúdio.

Fig. 7 Joseph Sudek. The window of my stu- Fig. 8 Joseph Sudek. Last Roses, 1956
dio, 1948.

As gotas em condensação, somadas a composição interna do lugar geram a bela


imagem fantasmal e distorcida do real produzida na fina película do vidro e, mais uma
vez, associamos o fenômeno ao conceito de membrana. (Borges, 2007,p.63) em Ficções
contribui de forma capital, quando diz que “o fato estético não pode prescindir de algum
elemento de assombro e que assombrar-se de memória é difícil.”
Maquinismos de ambiguidade: encobrir/revelar, transparente/opaco, escrita/ima-
gem, acaso/sistematização; presentes nas obras analisadas, levam a pensar, ao final,
numa constância operacional em relação a superfície/vidro, onde seus depósitos semân-
ticos, linguísticos, reflexivos, latentes e ativados, operam num entre-dois, entre escrita/
paisagem ou vidro/reflexo. Ao apontarmos as películas que cobrem o superfícies ou
separam espaços, principalmente com a suposição de que O Grande Vidro pudesse ser
um biombo; temos que a psicanálise confirma o que pensávamos: a “riqueza da vida
472 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

interior” é falsa: é um biombo, uma distância falsa, cuja função, por assim dizer é salvar
as aparências(...) a verdade está, antes de tudo , do lado de fora, naquilo que fazemos.”
Assim a fotografia vai revelando nossa superação de um real existente, onde o impos-
sível pode acontecer, como diria Lacan. E o arquivo, o Espaço da Latência, ao se abrir
propicie a ativação das operações de recuperar, transportar e editar os produtos de nossa
poética para os espaços de apresentação da arte.

Referências
BARTHES, Roland. O Óbvio e o obtuso.Coleção Signos/42. São Paulo: Martins Fontes,
1977
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte Editora UFMG, 2007
_______________ Obras Escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Editora Brasi-
liense, 2000.
BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Cia Das Letras, 2007
CAUQUELIN, Anne.Frequentar os Incorporais. Contribuição a uma Teoria da Arte
Contemporânea.São Paulo. Martins Fontes, 2008.
DELEUZE, Gilles. A Dobra. Leibniz e o Barroco. São Paulo: Papirus, 2007.
Diferença e repetição. São Paulo: Edições Graal. 2006. Conversações. São Paulo: Edi-
tora 34, 1992.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos Vaga-lumes. Belo Horizonte:Editora
UFMG, 2011
DUARTE, Claudia. Marcel Duchamp. Olhando o Grande Vidro como interface. Rio de
Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000
FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Traduzido por
Eudoro A. M. de Souza. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p.281.
FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. São Paulo: Editora Forense Universitária,
1999
GOMBRICH, E.H. O Sentido da Ordem: um estudo sobre a psicologia da arte deco-
rativa.Traduzido por Daniela Pinheiro Machado Kern. Porto Alegre: Bookman, 2012
ZIZEK, Slavoj. Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2010
___________Primeiro como tragédia, depois como farsa.São Paulo: Boitempo, 2011

Dissertações, textos e artigos:


KRAUSS, Rosalind. Os espaços discursivos da fotografia. ae Revista do PPGEV EBA.
UFRJ.2006.
SOMMERMEYER, Vânia E. S. “Membranas do mundo: agenciamentos, operações
e formas de ativação do espaço”, Dissertação de Mestrado em Poéticas Visuais, IA,
UFRGS, defendida em 07/04/2012, tendo a Profª Dra. Maria Ivone dos Santos como
orientadora.
_________________________O GRANDE VIDRO –fronteira entre um mundo que
agoniza e um novo mundo ainda sem forma. Apresentado no seminário A imagem
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 473

imperfeita, em janeiro de 2008, por ocasião da disciplina Utopia, arte e psicanálise,


ministrada pelo Prof. Dr. Edson André de Souza, em 2007.IP.UFRGS.

Jornais:
”Deleuze escreve sobre Witmann”. Caderno Mais! : O pensador da dobra do milênio,
Folha de São Paulo domingo,2 de junho de 1996.p.8.

Filme:
“Em um mundo melhor”, (Hævnen), de Susanne Bier (Dinamarca, 2010)
474 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

El proceso de creación artística


como campo de conocimiento

Veronica del Pilar Noriega Esquives


PPGAV/UFG – [email protected]

Este artículo pretende explicar mis procesos de construcción practico-teóri-


cos en mi tesis de maestría en la línea de investigación en poéticas visuales
y procesos de creación. Mi propuesta “El Vestigio del encuentro: Cuerpo de
Artista y Cuerpo de Obra” es una producción artística basada en un análisis
teórico y práctico sobra la materialidad de la obra de arte vista como canal de
los afectos desde la reflexión del cuerpo propio en los procesos técnicos y
conceptuales del grabado contemporáneo. Mi intención es de situar al lector
desde mi postura como profesional activa del arte y resaltar mi interés en los
entrecruzamientos de los vínculos afectivos de la entrega simbólica del cuerpo
en los procesos de transferencia de la obra de arte.
Palavras-chave: Grabado, cuerpo, creación artística

This article pretends to explain my practical-theoretical process of building


used in my master research. My dissertation, “The trace of encounter. Body
Artist and Body Work”, is an artistic production based on theoretical analyses
and practical guidance of the corporeality of the artwork pointed as a route for
affections through a meditation of the body and the contemporary printmaking
technical and conceptual processes. My intention is to place the reader into
my posture as an active professional artist and emphasize my interest in the
intersections of the affective bonds emerged by the symbolic delivery of the
body into the transferring processes of the artwork.
Keywords: Printmaking, body, artistic creation
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 475

Materia, cuerpo y fisicalidad de la obra


Dentro del panorama artístico siempre estuvo presente la materia. Ella, además de ser
el vehículo (pigmento), el soporte (aquello que recibe al vehículo) y el resultado final
(obra); es también el ente ejecutante o el cuerpo creativo. Remover a la materia de su
primera instancia en la obra de arte fue un hecho históricamente relevante y con innega-
bles repercusiones puesto que pasó a ser objeto y sujeto, en otras palabras, se convirtió
en la obra en sí.
El dialogo que emerge del encuentro entre todas las materias/cuerpos se localiza
dentro y fuera de los actos de creación de la obra de arte. Es pues “una teoría no escrita,
pero resultado de una serie de ideas trabajadas por medio de la materia” (SILVA, María
Inés; VERA, Alejandro, 2010, p.43) que se revela al consciente y abre paso a la crea-
ción de nexos tangibles e intangibles que suplen la necesidad primaria del contacto, del
poseer y del dejar huella.
Siendo el ser humano tan deseoso en todo aspecto y sobre todo en lo carnal, no sor-
prende que la mayoría de representaciones corporales estén cubiertas por un aura sexual
y que todo intento por escapar de aquella nube llamada pulsión por el psicoanálisis sea
en vano. Sin embargo no debemos olvidar que también nacemos con vacíos mentales
y es gracias a la experiencia o vivencias corporales que nuestro cerebro produce co-
nocimiento y que llevados a la escena del arte deriven a la práctica artística hacia una
producción de conocimiento o filosofía en acción. Pues en la investigación artística el
conocimiento es derivado del hacer y de los sentidos y por ende somos capaces de ela-
borar formas alternativas de investigar.

De mi propuesta artística
La propuesta de este segmento es de presentar mi proceso de creación práctico-teóricos
en el transcurrir de mis propuestas artísticas.
Considero de gran importancia mencionar que mi formación de 4 años en el campo
del grabado direccionó mi andar y es que gracias a ella descubrí que la técnica se puede
convertir en conocimiento reflexivo, si se quiere llamar teoría, así como los procesos
sistemáticos artísticos con las experiencias o vivencias personales.
El Grabado es un medio de creación que registra y reproduce imágenes por medio
de diversas técnicas. Los conceptos vinculados a este arte giran en torno a ejercicios es-
pecíficos del quehacer de un grabador además de buscar un perfeccionamiento histórico
y técnico. En mis años de estudiante en la Facultad de Arte de la Pontificia Universidad
Católica del Perú los conceptos que me fueron presentados para estructurar la práctica
del grabado son: Matriz, Vehículo, Soporte y Edición, los cuales dirigen u orquestan a
los alumnos a producir obra gráfica y a su vez a reflexionar en torno a ella.
Básicamente, Matriz es toda superficie que contiene trazos y de la cual se obtiene
una copia, vehículo es aquel material que permite la reproducción de la matriz, soporte
es donde la matriz y el vehículo se imprimen y, finalmente la edición hace referencia a
la cantidad de ejemplares reproducidos de una matriz.
476 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Estos conceptos ofrecen un abanico de posibilidades para pensar el grabado de for-


ma mental y emocional. El grabado es un trazo en una materia, una huella, una ausencia
y una presencia al mismo tiempo; el grabado hace evidente la convivencia retro alimen-
tadora entre vida y arte, entre cuerpo que vive y obra que lo representa.
Las condiciones técnicas y poéticas del grabado contemporáneo me permiten crear
diálogos con mi propio cuerpo en paralelo a los procesos y procedimientos técnicos del
grabado.
El vínculo entre realidades materiales y simbólicas es resultado de pensar el cuerpo
y pensar el grabado. Ambas acciones forman parte de mis estrategias metodológicas
para analizar la materialidad de la obra de arte desde la reflexión del cuerpo-propio y/o
cuerpo de artista, que puede resultar en un escrito poético. En ambos “el objeto no es
tratado en su status de permanencia, sino de transformación y cambio a través del uso”
(MARCHAN, Simón 1994, p. 235).
En la figura 1 podemos observar que la materialidad del cuerpo-propio y cuerpo
de obra es abordada no solo desde sus propiedades volumétricas, sino también desde
su dimensión perceptual. La obra mencionada fue elaborada en el año 2006 y es mi
primera experiencia en donde los materiales y sus propiedades corpóreas fueron pro-
tagonistas del surgimiento de la obra al exponer al medio ambiente cuatro planchas de
metal en cuyas superficies fueron impresas imágenes de mi rostro mediante la técnica
de la serigrafía usando barniz marino. La imagen resultante fue producto de la inevitable
corrosión del metal (Figura 1).

Figura 1: Sin Título, 2006. 75 x 5 cm c/u. Impresión serigráfica con barniz transparente en
planchas de ferro y expuestas al medio ambiente. (Colección de la artista)
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 477

Ahora bien, el campo del arte está cada día más “acompañado” por la escena tec-
nológica y desde hace algún tiempo este interrelacionamiento fue cuestionado y actual-
mente lo sigue siendo, debido a temores en cuanto a la pérdida del aura de la obra de
arte. Pero el término técnica proviene del griego techné y significa arte, oficio, destreza
y es esa “interiorización lo que distingue al mero conocimiento informático y técnico,
de la sabiduría (KREBS, Víctor 1997).
En la obra Como un Autorretrato del año 2008 (Figura 2) rescato aquel conocimien-
to humano que se encuentra inmerso en su historia corporal, en sus dimensiones territo-
riales y sobre todo en sus rastros o vestigios de su pasado, de su presente y su eventual
futuro. Para ello escogí la elaboración de papel, cuya historia, técnica y utilidades dentro
y fuera del campo artístico han revelado su indiscutible lazo con la humanidad y su
capacidad de reinventarse.
Para complementar esta parte, doy como ejemplo mi obra “De Velo”, elaborada
para la exposición colectiva “El Vestido. No hay puntada sin hilo” en la que doce artis-
tas fuimos convocados para crear obras en torno a un objeto común, el vestido. Para
resumir el objetivo de la obra compartiré la frase: “las relaciones definen al objeto y no
al contrario” (BATICKOVA, Eva 2010). Esto quiere decir que todo objeto creado está
pensado en su futura correspondencia útil con el cuerpo y es aquella condición quien le
da sentido, por lo tanto la obra de arte puede desarrollar nuevas realidades a partir de
objetos habituales y estas últimas son conocimiento. (Figura 3)

Figura 2: Como si fuera un au- Figura 3: De velo, 2011. Transfer sobre láminas de pa-
torretrato, 2010. Papel hecho a rafina flotando en agua dentro de bandejas de acrílico.
mano, transfer (Colección de la
artista)
478 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Consideraciones finales
Quizá la relación entre materia, cuerpo y obra, sea para muchos, una realidad explorada
ya agotada, pero para mí representa una convivencia además de ineludible, altamente
intrigante y sugerente porque me permite determinar rutas metodológicas que escapan
de las barreras de la investigación tradicional.
Desde que el arte se liberó de su propio tecnicismo o academicismo, el campo de
acción de los artistas se amplió y con ello mucho terreno fue ganado para el repertorio
temático del arte, su papel en la sociedad y sus vínculos con todo tipo de investigación.
Puedo argumentar que el mundo perceptible y el mundo de lo espiritual articulados
en torno a la realidad corpórea de la obra de arte invitan a la reflexión.
Lo expuesto en este artículo es un ejemplo del pensamiento creativo, de las reflexio-
nes en torno al proceso de creación artística -que envuelve al proceso técnico, mental y
emocional- que permiten descubrir a los materiales y medios idóneos, así como también
la construcción de conocimiento y validar a la práctica artística como instancia investi-
gativa y productora de documentos.

Referências
BATICKOVA, Eva. A Época brasileira de Vilém Flusser. Annablume: São Paulo. 2010.
CANTON, Katia. Corpo, Identidade e Erotismo. WMF Marfins Fontes: São Paulo, 2009.
KREBS, Víctor. Del Alma y el Arte. Editorial Arte: Caracas. 1997
MARCHÁN, Simón. Del Arte Objetual al Arte de Concepto. Akal: Madrid. 1994.
SILVA, María Inés; VERA, Alejandro. Proyectos en Artes y Cultura. Universidad Católica de
Chile, 2010
VIVES, Rosa. Pensar el Grabado. Disponível em: <http://diposit.ub.edu/dspace/bits-
tream/2445/17987/1/Pensar%20el%20grabado.%20OMADO.pdf >Acessado em maio de
2012.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 479

A cidade como obra.


O artista como Transformador.

Vinicius Gonzalez
PPGA/ UFES – [email protected]

Este artigo é resultado do processo de construção da dissertação de mestra-


do pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do
Espírito Santo, e tem como objetivo trabalhar uma leitura poética e concei-
tual do termo cidade e suas implicações para o campo da arte, em síntese,
através do olhar estético enxergar a cidade como obra de arte. Por meio dela
podemos descobrir suas qualidades como paisagem; ambiente carregado de
significado histórico e sentimental. “Caminho das Águas”, de Piatan Lube é
uma intervenção urbana que pretende redesenhar as áreas limítrofes das for-
mas geográficas das antigas cidades de Vitória e Florianópolis, a fim de trazer
para a superfície, a história documental da evolução urbana destes territórios.
Palavras chave: Arte pública / paisagem urbana / cidade / intervenção

This article is a result of the construction of the dissertation by the Graduate


Program in Arts of the Federal University of Espírito Santo, and aims to work
out a conceptual and poetic reading of the term town and its implications for the
field of art in synthesis through the aesthetic look see the city as a work of art.
Through it we can discover its qualities as landscape, environment loaded with
historical significance and sentimental. “ Caminho das Águas “ by Piatan Lube
is an urban intervention that aims to redraw the border areas of geographical
forms of the ancient cities of Vitória and Florianópolis , in order to bring to the
surface , the documentary history of the evolution of these urban territories .
Keywords: Public Art / Urban landscape / city / intervention
480 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Um breve percurso
Historicamente a cidade sempre foi sinônimo de refúgio, proteção, sobrevivência. Sím-
bolo máximo da libertação do homem diante da natureza. Trazia em suas idealizações
a promessa de continuidade da frágil raça humana, como acreditava os medievais, onde
os homens livres viviam dentro dos muros, enquanto os camponeses ficavam a própria
sorte. Ainda na pólis grega, a cidade propiciava aos homens livres a oportunidade de al-
cançar a imortalidade de pensamento e de ação e deste modo ascender acima da servidão
biológica (TUAN, 1980).
Desde as primeiras civilizações a tentativa de se construir uma cidade ideal habitou
o consciente dos seus habitantes. Forma em detrimento do simbólico. A cidade ideal de
Platão combinava o círculo com o quadrado. No Egito antigo, o planejamento ortogonal
baseado nos princípios cosmológicos figurou entre os complexos arquitetônicos dese-
nhados para servir os mortos. As cidades europeias dos primeiros séculos da era cristã
tinham como característica principal a forma circular, como a Cidade de Deus de Santo
Agostinho (TUAN, 1980). Entre 1150 e 1350 foram construídas inúmeras cidades forti-
ficadas. Mais do que a Idade Média, a Renascença e o Barroco foram períodos em que o
planejamento buscava a cidade ideal, apesar de poucas saírem do papel.
Para a grande maioria, hoje a cidade como ideal parece declinar diante das transfor-
mações a partir da revolução industrial e suas consequências ao meio ambiente físico.
Diante da crescente expansão populacional e a consequente expansão territorial, as ci-
dades crescem de maneira orgânica e muitas vezes descontrolada. O tão sonhado senti-
mento de garantias se desfaz na mesma velocidade que nos distanciamos uns dos outros,
afinal, a cada novo empreendimento imobiliário, a cada novo bairro regulamentado,
privilegia-se a cultura do isolamento como premissa para uma vida segura e “tranqui-
la”. Não seria exagero afirmarmos que cada casa, prédio ou condômino habitacional se
transformou em pequenos feudos medievais, onde o outro é a margem, e o coletivo se
restringe a sua cercania.
Em uma visão interna do problema que se transforma essas megacidades, como
aponta Brissac (2004), a mudança de escala com brutal verticalização, a criação de
grandes complexos dotados de infra-estrutura autônoma e a reconfiguração urbanística
de regiões inteiras são indicativos de uma nova etapa do processo de reestruturação
da espacialidade metropolitana. Em síntese, o território urbano se transforma em um
imenso complexo habitacional, principalmente com o surgimento das metrópoles após
a Segunda Guerra Mundial.
Mas as cidades não são apenas conglomerados de ferros fundidos e concretos ar-
mados. É preciso subverter o caminho apocalíptico apontado pelas estáticas e censos
sócios demográficos. Ficar preso a essa leitura restringiria nosso campo de atuação e
de nada contribuiria para o desenvolvimento do trabalho. Nossa questão aqui é outra.
Aqui, a cidade é muito mais do que um grande barril de pólvora prestes a ir pelos ares.
Ela é possibilidade de novas leituras estéticas. É ambiente carregado de significado
histórico e sentimental.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 481

Por mais que exista um diagnóstico padrão para o futuro dos complexos urbanos,
também é sabido que cada cidade possui particularidades e especificidades que fazem
suas engrenagens serem únicas, que nos possibilitam enxergá-las com olhos mais deli-
cados, ou como em nosso caso, possibilitam realizar uma leitura poética do que o campo
da arte entende sobre o conceito cidade. Nesse sentido a definição de cidade parte de
uma leitura histórica do seu processo de formação como busca de reconhecimento dos
caminhos trilhados até chegar ao ponto da busca pela apropriação de uma realidade
urbana que podemos chamar de nossa. Entendemos que seja fundamental partir de uma
leitura universal para, pelo menos, tentar dar conta do nosso micro cosmo.
Quando se fala em cidade, nós que pertencemos às civilizações urbanas, assumimos
sempre uma postura dupla e contraditória em relação a esta forma de vida associada
(CACCIARI, 2009). De um lado concebemos a cidade como lugar de trocas afetivas,
relações inteligentes e seguras, enfim, um lugar para se morar. Por outro lado, cada
vez mais consideramos e queremos que a cidade seja lugar de negócios, dinâmico, uma
máquina que permite a todos estabelecer sem impedimentos suas relações comerciais.
Estamos falando de reconhecimento, sentir-se parte. Condição fundamental no pro-
cesso de significação do lugar que habitamos. Afinal, habitar é ser-estar no mundo (HEI-
DEGGER, 1951). Com o devido cuidado e sem ter a intenção de aprofundar a discussão,
podemos afirmar que habitar não se trata de um estado de ter residência, morar em uma
construção, mas sim estabelecer um modo onde o homem ao desenvolver possibilidades
de uma relação ser-no-mundo constrói o mundo que o circunda. Resumindo a miúdos,
ao paço que (re)construímos nosso entorno, nossa realidade, entramos em constante
estágio de habitação daquilo que nos faz parte.
Mas por favor, não nos apeguemos à materialidade visível que o verbo construir nos
remete. Aqui, habitar se faz através de uma relação sensível com o mundo (fazer arte).
Habito porque transformo, reconfiguro. Vejo o que ninguém vê. Ou quando vejo o que to-
dos veem meu olhar é atraído por nuanças e detalhes que possivelmente passaram desper-
cebidos pela grande maioria. A cidade para mim é campo fértil de possibilidades infinitas.
O skyline urbano é como a paisagem impressionista explodindo em cores e movimento.

Da cidade à arte um olhar basta


Quando Lynch nos diz que olhar para a cidade pode dar um prazer especial, por mais
comum que possa ser o panorama, ele deixa claro que ao mudarmos a perspectiva do
olhar passamos a enxergá-la como uma grande obra de arte temporal, como ele mesmo
define. Temporal porque não aceita padrão como outras artes, temporal porque a cidade
é vista sob todas as luzes e condições atmosféricas possíveis. “A cada instante, há mais
do que o olho pode ver, mais do que o ouvido pode perceber, um cenário ou uma paisa-
gem esperando para serem explorados” (LYNCH, 2011).
Nesse sentido é que precisamos nos atentar e repousar nossos esforços. Através de
um olhar estético enxergamos naturalmente a cidade como obra de arte. Por meio dela
podemos descobrir suas qualidades como paisagem; ambiente carregado de significados
482 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

materiais e imateriais. Cidade que se torna nesse momento o grande suporte, meio de
construção e reconstrução de realidades e representações, ativando e (re)configurando
novas paisagens a cada olhar mais atento, por fim, produzindo outra realidade visual.
Em Lynch a paisagem é entendida como um conjunto de elementos dos quais consti-
tuem a fisionomia das cidades, do qual esperamos que nos dê prazer ao contemplá-la, ou
pelo menos que nos de condição de questiona-la, confronta-la. Maderuelo (1994) por sua
vez traz a cidade como fruto do trabalho coletivo, gerando um profundo significado sim-
bólico, ao ponto que podemos considerá-la como uma obra de arte porque representa as
aspirações, ideais, realizações e frustrações de seus habitantes ao longo de toda história.
Entende-se, portanto que a paisagem urbana torna-se um campo onde ocorre a mate-
rialização entre diferentes espaços e tempos, entre diversos suportes e tipos de imagem.
Nesse contexto, acreditamos que a arte pública se coloca como responsável por ativar
novas paisagens, como ocorre quando acontece eventos como o Salão Bienal do Mar.
Sem pretender um efeito comparativo eventos como o “Madri Abierto”, que acontece
anualmente na cidade de Madri, Espanha; e o “Arte Cidade”, que desde 1994 toma as
ruas de São Paulo, não pretendem afirmar a necessidade da arte estar fora dos museus
e galerias, muito pelo contrário, procuram enfatizar novas estratégias espaciais e críti-
cas sobre o uso do espaço urbano (público). Diante desse novo contexto urbano a arte
contemporânea apresenta, e representa, sobretudo, a complexidade do ambiente, suas
diferenças e, principalmente, a consequente capacidade de interpretação de cada um que
de fato ali habita, determinando múltiplas possibilidades de leitura.
Nessas condições os artistas contemporâneos através de suas intervenções/insta-
lações estabelecem mudanças no cenário, estimulam o debate comunitário, interagem
com a arquitetura do entorno e corrobora para um novo olhar sobre o lugar. Quando
observamos na arte contemporânea um campo ampliado de atuação, possibilitado pelo
encurtamento da relação discursiva entre o fazer e o pensar, passamos a enxergar as
práticas artísticas pautadas em espacialidades diversas.
Observemos. Em Dezembro de 2008, na cidade de Vitória/ES, inaugurou a 8ª edição
do Salão do Mar. Diferentemente das edições anteriores, dessa vez (2008) a missão era
de ser Bienal. Buscando sintonizar e recolocar o evento nas tendências mais contempo-
râneas do circuito, a proposta para essa edição era se lançar a cidade, rompendo com
as paredes, com as salas e galpões, ganhando os espaços públicos, expondo-se à obser-
vação ativa dos passantes e transeuntes. Doze projetos de caráter interventivo foram
selecionados para serem executados em uma área delimitada entre a região beira-mar e
o miolo central da ilha.
Dessa vez, renunciasse às definições estilísticas tradicionalmente pré-estabelecidas
nas fichas de inscrição. Ganhar a cidade se revela ambiente fértil que possibilitaria ex-
plorar desde a nítida relação do mar com a cidade como também avançar por sua pai-
sagem, observar sua arquitetura, entender seus fluxos e quem sabe respirar junto com
seus passantes. Assim, o Salão buscou que cada projeto tivesse a direta intenção de se
relacionar com a cidade e suas múltiplas possibilidades.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 483

“Caminho das Águas”, obra selecionada do artista plástico Piatan Lube, tinha como
proposta pintar uma linha azul de 30 centímetros de largura em um azul vivo sobre o
chão da cidade redesenhando seus antigos limites geográficos. Mar e terra. Ou como
aponta o artista, trata-se de uma intervenção artística que consiste em uma linha azul
que será traçada nas áreas limítrofes das antigas formas geográficas do arquipélago de
Vitória, sobrepondo-se à forma territorial contemporânea da cidade (LUBE, 2008).
Quando a obra se transforma em projeto, “Caminho...” é aprovado no Edital 2009 do
IPHAN para desvendar e revelar as memórias entranhadas de outra ilha-capital, Floria-
nópolis/SC. É na ilha que a obra encontra seu caminho (LUBE, 2012). Inúmeras cidades
ao longo do litoral brasileiro com certeza receberam modificações em seus traçados
originais em nome do progresso. O mar compõe nossa genética e as ilhas são como
extensões de nosso farto território. Habitá-las era questão de necessidade e logo cidades
seriam levantadas, moldadas, erguidas para o alto e para frente. Expandir era preciso.
Naturalmente suas margens foram sendo dilatadas e redesenhadas. Pontes e conexões
com o continente não seriam mais suficientes para dar conta do desenvolvimento urbano
estabelecido. Enfim, muitas “ilhas” foram de encontro à terra firme e preservaram ape-
nas o nome de sua formação geológica como lembrança do que um dia foram. Vitória/
ES e Florianópolis/SC resistiram e se tornaram capitais, o que não significa que passa-
ram sem cicatrizes por esse processo.
Assim “Caminho das Águas” ganhou as ruas. Invadiu calçadas, contornou postes,
sobiu em bancos, cruzou praças e avenidas. Desvendou ruelas. Revelou esquinas com
ares de província. Em três dias o que antes era monotonia, ganhou tons de novidade. “O
que essa faixa azul está fazendo aqui?” pergunta o transeunte desavisado. Para aqueles
em que o processo de ir e vir é uma rotina, a paisagem quase não muda. Ou se muda
pouco percebe. Anda, entra, sai, corre. Os dias vão e vem como se todos os sons, cores
e cheiros fossem os mesmos. Se deparar com um elemento que lhe rouba a rotina pode
ser inquietante. De onde vem? Para onde vai? Será vandalismo? No mínimo um tanto
curioso na mente de quem se atenta, nem que seja por pouco minutos.
Ao marcar o antigo limite entre mar e terra, a linha azul reativa e traz a discussão o
processo de mudança social, político e econômico que transformaram a paisagem, con-
tando histórias e revelando cicatrizes de ocupação, desvelando um mar de perspectivas.
A linha simbólica traçada no concreto sugere também um caminho a ser percorrido no
espaço urbano, desloca para o chão e o infinito o olhar do transeunte e o estimula a múl-
tiplas interpretações (LUBE, 2009). Assim como tantas outras obras que se apropriam
do contexto urbano, fala em memória, relações sociais, paisagem, pertencimento, pro-
cesso histórico. Busca a partir desse ponto e através da arte convidar a cidade a pensar
sobre ela mesma, ao mesmo tempo em que através da linha traz a arte à superfície e para
a realidade visual dos seus habitantes.
O que a linha azul de “Caminho das Águas” se propõe é ser parte dessa particula-
ridade, desse algo a mais que difere um lugar do outro. Por mais que o idealizador da
obra não consiga atingir as camadas mais profundas da história singular daquela cidade,
484 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

por mais que exercite a prospecção das variadas camadas existenciais que repousam sob
aquele solo, somente seus transeuntes podem através dela (a arte/obra) ativar as marcas
de constituição da identidade local; desde que se permitam interagir e atingir fundo as
águas submersas em concreto e asfalto. Mas trata-se de uma leitura poética dos fatos
históricos, afinal estamos falando de arte. Não se pode, e o artista tem real noção de suas
possibilidades, pretender dar conta na totalidade de tudo e de todos.
O que está em jogo, muito mais do que seguir as riscas as primeiras cartografias da
ilha, é a necessidade, acima de qualquer outra coisa, de interação com o lugar. Recon-
figurar a paisagem através da linha azul é o que podemos chamar de licença poética.
Pode-se admitir enfim que o pertencimento é uma tendência do projeto poético da obra
de arte inserida na cidade; e dele decorre a noção de coletividade. Pública, então, já
o é a arte na sua concepção uma vez que sua natureza (a da arte) é para o outro e seu
entorno (CIRILLO 2009). Nesse sentido o projeto artístico como um todo se equivalem
independente da relação do artista com a cidade. O foco é a obra e é ela que interage
diretamente com a paisagem urbana. É o elo de pertencimento que une o transeunte
a sua memória, e conseguinte a memória coletiva da cidade. Essa relação é capaz de
ativar/resgatar/buscar no espectador um conteúdo inconsciente facilitador para uma
aproximação afetiva entre ele, a obra, a cidade, seu entorno ou tudo mais que possa
remeter naquele momento de interação; independente de um senso estético de gosto ou
admiração (belo e feio bom e ruim).

Referências
CACCIARI, Massimo. A cidade. 4ª ed. Pazzini Editore, Villa Verucchio. Espanha, 2009.
CIRILLO, Aparecido José. América: 500 anos de devastação e saque (de Washington Santana):
do anti-monumento à arte pública em Vitória, ES. Anais 18º Encontro da Associação Nacional
de Pesquisadores em Artes Plásticas Transversalidades nas Artes Visuais, Salvador, Bahia.
2009
HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. conferência pronunciada por ocasião da “Se-
gunda Reunião de Darmastad”, publicada em Vortäge und Aufsätze, G. Neske, Pfullingen,
1954. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback
LUBE, Piatan. Caminho das Águas, Memorial Descritivo. Acervo pessoal do artista, 2009
____________ Caminho das Águas, Monografia de Graduação. Acervo pessoal do artista, 2012.
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Tradução Jefferson Luiz Camargo. 3ª ed. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2011.
MADERUELO, Javier. Arte público: naturaleza y ciudad. Madrid: Fundacion César Manrique.
1994
PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens Urbanas. 3 ed. São Paulo: Senac, 2004.
TUAN, Yi-fu. Topofilia: Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Edição
brasileira Difel, Tradução Livia de Oliveira. São Paulo/Rio de Janeiro, 1980.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 485

A dança e a escuridão como


linguagem e conceito no processo
de criação contemporànea

Visitación Ortega Cente


Universidade de Granada – [email protected]

Este artigo intenciona realizar uma aproximação sobre os aspectos que for-
mam o conceito de escuridão no processo criador que usa como estratégia
a dança, e por tanto, estabelecer uma conexão entre algumas configurações
espaciais que participam na construção do conceito de escuridão, com os
seus significados pessimistas, e os espaços da dança e do corpo, submergi-
dos nestes mesmos campos simbólicos. Através das distintas obras artísticas
que são expostas neste artigo, se realiza uma abordagem aos significados
que se entrelaçam com o conceito da escuridão na ciação artística, estabele-
cendo algumas diretrizes que configurem o conceito na medida em que: este
se usa no processo criativo, formando assim, uma conexão entre o corpo, o
movimento e a escuridão.
Palavras chave: Dança, Corpo, Escuridão, Espaço, Arte contemporânea.

This article intends to make an approximation on the aspects that form the
concept of the dark in the creative process that uses dance as strategy, and
thus, establish a connection between some spatial configurations involved in
the construction of darkness, with their meanings pessimists, and the spaces
of dance and body submerged in these same symbolic fields. Through diffe-
rent artistic works that are presented in this article, it performs an approach to
the meanings that intertwine with the concept of darkness in artistic creation,
establishing some guidelines that characterize the concept as it is used in this
creative process, thus forming a connection between the body, movement and
darkness.
Keywords: Dance, Body, Dark, Space, Contemporary art.
486 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Introdução
Para poder estabelecer uma aproximação sobre o conceito de dança e de escuridão como
estratégia no processo de criação do contemporâneo, iniciamos, em primeiro lugar, com
uma abordagem sobre a linguagem da dança para conhecer seu nexo com o corpo. Dan-
ça que, além de ser uma atividade motora que exprime idéias, emoções e sentimentos,
se imbrica ontologicamente com o movimento, conformando assim como isomorfa em
relação ao mesmo.
Após a análise sobre a dança, o corpo e seu nexo com o conceito da escuridão como
âmbito que contem o próprio processo criativo, se estabelece uma relação entre as obras
de artistas que configuram novos espaços para a dança, dando um papel relevante ao
fenômeno da escuridão e a sua interpretação pessimista. Tal noção é formada através dos
aspetos sociais e históricos da nossa cultura, com reminiscências claras ligadas ao curso
da evolução, fornecendo um discurso negativo representado através das fobias ancestrais.
Ao concluirmos se apresentará outro possível entendimento sobre o conceito de es-
paço escuro, de escuridão que configuram simbolicamente o processo criativo do movi-
mento e da dança como um processo catártico (Páez, D. y Blanco, A., 2006) que situa
o corpo no espaço alienado dirigido pelas manifestações dominantes desta conjunção.

A dança como linguagem


Desde o inicio o ser humano faz uso da dança na sua comunicação com o mundo a través
do corpo e de suas diferentes formas de interpretar o mesmo. A linguagem do corpo defi-
ne-se como a dança, um ímpeto de algum movimento criador que também pode ser com-
preendido como uma atividade motora que exprime idéias, emoções e sentimentos. Uma
dança que se imbrica ontologicamente com o movimento, conformando assim, como
isomorfa em relação ao mesmo (Lepecki, 2008). Um movimento de procura, como uma
viagem, como uma dissolução do ser; uma atividade complexa onde se conjuga fatores
biológicos, psicológicos, sociológicos, históricos, estéticos, morais, políticos, técnicos,
geográficos. Tanto sua expressão como sua técnica pode ser individual- solista (Lepecki,
2008) ou coletiva.
A dança é uma linguagem viva que fala do homem e é utilizada como uma mensa-
gem artística que está projetada para uma realidade superior, onde as imagens e alegorias
estabelecem relações mais estreitas entre as emoções e a necessidade de comunicação
do ser humano (Wigman, 2002). O movimento natural realizado a traves do gesto forma
um sentido e um significado conotativo y estético, que ao mesmo tempo pode estar con-
cebido e estruturado. A dança é uma arte que necessita do corpo como suporte e meio
de expressão, e seus movimentos tem que distinguir-se dos outros movimentos, por isso
se estabelece alguns itens na forma e no objetivo da mesma para poder ser identificada.
Devido a seu interesse cultural, a dança tem um fim inicialmente de ordem utilitária nas
sociedades primitivas, por tanto, tem um efeito de socialização unificador e é utilizada
para a cura dos enfermos, para atrair chuva, fertilidade da terra, etc..., com enorme poder
emocional tanto para os dançarinos como para os espectadores (Le Boulch, 1971).
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 487

Nas palavras de Ana Martín Cañas (Arpal y Mendiola, 2007), o elemento principal
da dança é o corpo; um corpo que nos últimos anos tem sido usado como espaço de
reflexão, como um discurso encarnado que substitui alegações:

Um corpo convertido em um espaço desde onde resistir, um espaço onde alterar as inscrições
discursivas e normalizando o poder que está inscrito, mostrando imagens escondidas, silencia-
das, desconfortável, ou criando outras novas (...). É ao mesmo tempo arma, discurso, suporte,
dispositivo, espaço.

O corpo como espaço, como recipiente e transmissor de emoções, que ao mesmo


tempo estabelece limites entre o corpóreo e o vácuo, entre o interno e o externo; dico-
tomias estabelecidas análogas à luz e à escuridão que formam também o espaço que
definem. Corpos que são formados simbolicamente por fatores culturais, históricos, e
por “outros” corpos que habitam no mesmo espaço. Nesse artigo argumentamos a im-
portância da dança como estratégia de expressão para a construção das novas formas de
compreender o espaço de uma criação artística onde a escuridão forma parte da mesma.
Conformar o movimento sem estabelecer percepções visuais é um exercício comple-
xo, porque a transmissão emocional é limitada aos canais auditivos, gustativos, olfativos
e tácteis. A sugestão dessas emoções não tem um caractere padrão que levará à constru-
ção mental da imagem em movimento, mas é construída com a intenção comunicadora
das sensações e sentimentos, dando segurança ao sujeito, procurando um lugar como
extensão de seu próprio corpo.

A escuridão como espaço no processo criador


Esta dissertação situa a escuridão como um elemento de alienação, um fenômeno que
não é próprio na percepção visual. A “não imagem” é percebida visualmente através
do cerebelo, onde começa a desenvolver a capacidade imaginativa para a construção
mental da imagem. Uma imagem que está presente na memória é construída por nós
fenomenologicamente, e como somos construídos pelo olhar do “outro”, que este con-
traste na escuridão é mais evidente.
Escuridão é falta de luz, e a claridade que permite o contraste para perceber os obje-
tos e os espaços. A falta de claridade na escritura e na linguagem pode suscitar: sombra,
lugar ou zona, região onde não se percebe as imagens, sons, o e sinais; ignorância, de-
feito. Uma outra noção de escuridão, que de acordo com o relato da Bíblia de Jerusalém,
precede a própria luz como formando parte da não-matéria, ou seja, neste caso, a escuri-
dão é à origem, e depois, foi à luz que revelou e organizou o caos material.
O conceito de escuridão tem sido construído desde sua origem como uma metáfora
para o indecifrável, o oculto, o proibido, o desconhecido, até chegar estabelecer asso-
ciações com o inferno e com a morte. A escuridão por Andreas Heinecke procura uma
inseguridade e transforma o espaço em um lugar de angustia e medo, porque o corpo
encontra-se em um terreno onde as referencias visuais estão subordinadas aos demais
488 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

nexos perceptivos; formando parte do subterrâneo, ocupando uma posição inferior em


respeito ao sentido da vista.
No contexto natural, a escuridão nos é dada pela noite. Uma noite que nos rodeia
de segredos, proporcionando intensidade e profundidade intangível, fugaz como a pro-
pagação mesma da própria luz no vácuo. A noite compreende o período entre o fim da
tarde e o amanhecer do dia seguinte, e tem como foco luminoso a lua, uma iluminação
dos reflexos do sol. É formado como um território misterioso onde se podem encontrar a
solidão e o vácuo; onde a escuridão é presente, “permanecendo à margem da corrupção
dos homens permitindo o regresso ao divino” (Novalis, 1985), como um território onde
a ritualização para a espiritualidade é de forma mais imediata e factível.
Se adentrarmos na escuridão, nós descobrimos de forma mental, a necessidade de
reconstrução do espaço, para assim, estabelecer referencias visuais sobre nosso corpo.
Nosso corpo conhece as fronteiras limítrofes que distancia daquilo que nós identifica-
mos, provocando, algumas vezes, o medo e o terror devido ao desconhecimento.
O corpo do espectador é o que está em jogo na obra de Janet Cardiff y George Bures
Miller, intitulada The Killing Machina (2007).
“Tal instalação, inspirado inspirada na obra de Kafka, onde descreve um instrumen-
to de tortura que mata a reu cinzelando em carne viva, o motivo da sua condena (Na
colônia penitenciaria, 1914)” (Adell Creixel, 2009). É um objeto similar a uma cadeira
de dentista, fornecido com dois braços mecânicos arrematados com umas pontas. Tudo
se localizando no espaço escuro. O espectador quando entra na sala têm que pressionar
um botão para ativar a máquina, os braços começam dançar a ritmo dos tambores que
ativam as polias elétricas dos braços. Ao mesmo tempo, monitores de televisão e focos
de luz são ativados, criando espetáculo e caos, projetando sombras gigantes dos corpos
e objetos da própria sala.
Em um palco escuro também encontramos a obra artística da artista Vera Mantero,
Uma misteriosa Coisa, disse e.e cumming (1995). Os espectadores esperam em seus as-
sentos o começo. Em primeiro lugar, começa-se ouvir batendo de forma indecisa sobre
o andaime do palco. Progressivamente um foco de luz vai iluminando o rosto branco da
uma mulher com lábios vermelhos e com tonalidade azulada em seus olhos e com lon-
gos cílios. Neste espaço escuro se apresenta o oculto, lamentando a violência comparti-
lha e a tristeza produzida em um terreno colonizado onde o sinistro mostra o movimento
acontecido pelo próprio movimento. O sinistro como alegoria ao mau comportamento,
o gesto presente na escuridão, com o movimento oculto da dança; o que não se pode
perceber pela vista é percebido pelos demais sentidos para configurar o verdadeiro sig-
nificado da obra.
A criação de acontecimentos coreográficos onde os instrumentais são caracterizados
pelos vestígios do passado, como elementos que podem produzir medo, pode ser obser-
vada na relação no do espelho com o tempo, que se apresenta na obra de María La Ribot,
que mostra uma construção em abismo que combina a historia da arte do século XX,
com os inícios do cine e da figura do clown (Figura 3). Podemos reconhecer a construção
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 489

do espaço como uma tela, com a capacidade de absorção dos personagens, más é, um
espaço com conotações pessimistas pela presença da cor negra.
As obras dinâmicas apresentadas neste artigo usam a dança como veículo ritualísti-
co, o corpo e o espaço atuam como contraste para dar forma e compreender a escuridão.
Uma escuridão que precisa ser identificada com respeito ao corpo, e um corpo que usa o
movimento para realizar uma adaptação eficiente como o meio.

Conclusões
O través do movimento, o corpo tem sido gradualmente exposto a espaços construídos
pela escuridão, seja no caso do corpo do espectador como o corpo do artista das obras
apresentadas neste artigo. O interesse principal corresponde-se com a simbologia que os
espaços escuros representavam a través do movimento do corpo nesse mesmo ambiente,
compreendido como pessimista, pelas diversas conotações que têm sido assinaladas no
transcurso da história.
Entender o conceito de escuridão, que configura simbolicamente o processo criativo
do movimento do corpo, de maneira distinta, pode ser entendido a través da dança, como
processo catártico que situa ao corpo no espaço, dirigido pelos impulsos dominantes da
mesma que emergem no ato do desempenho dançante. Considerando “o corpo como
sistema aberto e dinâmico de intercambio, que produz constantemente, modos de sub-
missão e controle, assim como de resistência e devires” (Derrida, 1987), podemos dizer
que: o mesmo além de ser o suporte e motor da forma, é origem de todo um sistema de
significação centrado na imagem dinâmica.

Referências
ADELL CREIXEL, A. “Aproximaciones del arte del terror”. Lápiz. Arte y Horror, nº 258, Di-
ciembre, 2009.
ARPAL, J. e MENDIOLA, I. Estudios sobre cuerpo, tecnologías y cultura. Bilbao: Servicio Edi-
torial Argitalpen Zerbitzua, 2007.
DERRIDA, J. Psyché: Inventions de l’autre. París: Galilée, 1987.
LE BOULCH, J. Vers une science du movement humanin. Introduction à la psychochinétique.
París: Lés Éditions ESF, 1971.
LEPECKI, A. Agotar la danza: performance y política del movimiento. Centro coreográfico Galle-
go: Universidad de Alcalá, 2008.
NOVALIS. Himnos a la noche. Barcelona: Editorial Icaria, 1985.
WIGMAN, M. El lenguaje de la danza. Barcelona: Ediciones del Aguazul, 2002.
490 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Super Performance: Práticas


colaborativas entre artista,
curador e visitante

Yiftah Peled
DAV/UFES – [email protected]

O projeto artístico Super Performance realizado em junho de 2012, no espaço


independente Atelier 397, em São Paulo, envolveu a distribuição de múltiplos
dos artistas Yuri Firmeza, Daniela Mattos, Orlando Maneschy e Vitor César.
Os artistas foram convidados para criar múltiplos de performance destinados
à distribuição. Como resultado do processo dialógico promovido entre a cura-
doria e os artistas Daniela Mattos e Vitor César, surgiu um atravessamento
curatorial artístico na forma de um dispositivo de distribuição e oferecimen-
to performático dos múltiplos aos visitantes. O dispositivo foi projetado para
alterar a forma de acesso às obras possibilitando que os visitantes fossem
presenteados por outros visitantes da mostra, num processo de ‘performatiza-
ção’ e engajamento do público. Através da descrição e análise desse evento,
esse artigo pretende explorar práticas colaborativas entre artistas, curador e
visitantes no campo das Artes Visuais.
Palavras chave: artes visuais, performance, curadoria, participação

The artistic project Super Performance was exhibited in 2012, at the indepen-
dent art space Atelier 397, in Sao Paulo. The artists Yuri Firmeza, Daniela
Mattos, Orlando Maneschy and Vitor César were invited to create multiples
for performance to be freely distributed. As a result of a dialogical process
between the curator, Daniela Mattos and Vitor César, a specific display was
created. The display was projected to alter the form of access to the art work
and to make possible for the visitor to receive a gift through the action of other
visitors in the exhibition, promoting participation and performance of the public.
Keywords: visual arts, performance, curatorship, participation
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 491

Introdução
Quais são as alternativas para o consumo da arte? Como a distribuição de múltiplos
artísticos pode ganhar uma diferenciada complexidade? A visitação pode ser expandida
para um contexto de participação performativa num contexto expositivo? Essas foram
as principais perguntas que nortearam uma discussão entre os artistas participantes do
projeto “Super Performance”1.
A partir de um projeto apoiado por um edital da Funarte, em 2012, os artistas Yuri Fir-
meza, Daniela Mattos, Orlando Maneschy e Vitor César foram convidados pelo curador
e artista Yiftah Peld para criar múltiplos de performance destinados à distribuição no es-
paço expositivo. Foi solicitado aos artistas criar um número suficiente de múltiplos para
distribuição (mas sem restrição curatorial quanto ao seu número, formato ou material).
Durante seis meses de conversas entre os participantes do projeto foram construídas,
conjuntamente, estratégias de distribuição dos múltiplos. Nessas conversas não houve
engajamento de todos os artistas convidados.

Múltiplos dos artistas


Para a exposição a artista Daniela Mattos elaborou oito tipos de cartões (8x12cm) e uma
tira de papel (8x96cm) com textos. Junto foram disponibilizados envelopes para recolhi-
mento dos impressos sobre as quais a artista apresentou a seguinte instrução:

“isso é um invólucro para interseções


Se quiser, leve esses cartões consigo,
Use os como seus,
misture as palavras deles com as suas,
deixe–os em lugares impropérios,
perca-os,
faça deles bilhetes para si,
Marque seus livros com eles ou
adote-os como seus novos cartões de visita.
se preferir, apenas guarda-os na memória.

Os cartões denominados de “Interseções” são textos compostos de re-combinações


de partes de frases de artistas e filósofos. Mattos apropriou-se de seus pensamentos para
oferecê-los metamorfoseados em novos e tencionados sentidos.
Para a artista: “aquele que aceita a proposição feita por meio deste múltiplo, pas-
sa também a performar com suas(s) escolha(s) modo(s) de existência do trabalho no

1. Esse texto é uma elaboração mais extensa de texto publicado pelo autor, Peled
(2011), no catálogo da Funarte.
492 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

mundo” (MATTOS, 2012, declaração da artista). O ato da leitura é visto por Mattos
como uma forma de participação e como uma ação performativa2.
O múltiplo do artista Yuri Firmeza foi uma mensagem gravada com sua voz expan-
dida através do sistema Bluetooth entre os celulares dos presentes na mostra. O sistema
identifica pessoas presentes num raio de transmissão e permite que eles sejam conec-
tados dividindo informações. A mensagem do artista era composta do seguinte texto:

Essa distância é o que você faz em mim pensamento e nossas confissões em nada deveriam
interessar. Sim, sei de tua presença indelével, dos intervalos, dos prelúdios e das fugas. E por
não ser de todo volátil é que desconfio. Não atravessaremos imunes.

A fala de Firmeza insere um elemento de contaminação no texto, uma presença


causadora de uma fragmentação interna que desestabiliza a possibilidade de pureza.
A transmissão do texto coloca o agente emissor como provocador dessa instabilidade.
O artista Orlando Maneschy preparou CDs para distribuição nos quais foram grava-
das algumas de suas canções favoritas na prática de karaokê. Os CDs foram distribuídos
durante a exposição para quem participou do karaokê na estrutura montada e inaugurada
pelo artista que cantou antes da realização de um debate entre os artistas e o público
presente. Durante todo o evento Maneschy atuou como incentivador dos visitantes na
ativação de performances. Para Maneschy, “o karaokê DOR é uma instalação performa-
tiva, um ambiente relacional. Um território para aqueles que não temem a exposição e a
potência de sua própria imagem e o atravessamento/rompimento de imagens artificiais,
programadas, idealizadas” (fragmento do texto do artista inserido na capa do seu CD,
2012). O contexto participativo em seu trabalho é proporcionado como possibilidade de
performance para os visitantes na qual a condição de troca de papeis é continua.
O artista Vitor César preparou um múltiplo/estêncil feito de cartolina (60x80 cm)
com uma frase recortada: “Sempre Algo Entre Nós” que sugeria que, além da posse de
um objeto de arte, a obra podia se tornar um instrumento para expansão do texto se utili-
zado como grafite no espaço urbano. O recorte da frase no papel deixa transparecer que
no ato da leitura o papel fica entre o leitor e seu ambiente, lembrando a frase escrita por
Helio Oiticica sobre uma das construções da obra Éden: “A pureza é um mito”.
A frase de Vitor César denuncia a impossibilidade de uma suposta neutralidade pro-
jetada nos espaços expositivos, ao mesmo tempo em que sugere que a obra de arte é algo
que recebe sua sustentação na relação entre o visitante e a escrita/linguagem. A lingua-
gem torna-se um elemento de intermediação para construir um sentido de realidade. O
espaço vazado das letras torna-se ambíguo remetendo a possibilidade de uma construção
afetiva ou de um impedimento.

2. John L. Austin (1911-1960) no seu livro “How to do things with words”, de 1962, cunhou o
termo “performativo” para destacar um sentido de ação/afirmação de certas situações da fala.
Essa prática de posturas afirmativas permite repensar a forma de uso de documentos, publi-
cações, depoimentos, discursos, palestras, cursos, aulas e conversas como obras de arte.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 493

Visitantes no dia da abertura usaram os cartazes do artista para desempenhar pos-


turas performáticas. Essas ações foram executadas para quem fotografava no espaço.
Assim, surgiu um jogo de performance no qual o cartaz com a frase vazada intermediava
a relação com a imagem registrada dos corpos.

Consumo
O jogo de palavras do titulo do evento Super Performance aponta uma relação com o
consumo, partindo do suposto que São Paulo é uma cidade que tem um circuito artístico
comercial fortalecido, porém limitado a uma parcela muito pequena da população. Sob
essa perspectiva, o projeto apoiado financeiramente por um órgão público de incentivo
à cultura reverte diretamente para os visitantes que podem se tornar colecionadores e
realizadores de performances. Trata-se de uma ação política inclusiva, disponibilizando
obras sem a comum cobrança adicional sobre o produto final da cultura, uma vez que se
considera que o papel de um recurso público (no caso o apoio da Funarte) não é diluir-se
no sistema econômico com a produção de arte, mas permanecer num estado de tensão
produtiva. O incentivo financeiro é visto como um fator determinante para promover o
surgimento de alternativas e diferenciações de padrões culturais vigentes, nesse caso
relacionados às dinâmicas nas quais o papel mercadológico (principalmente privado)
tem força moldante sobre a estrutura do acesso à cultura. Assim, a questão do consumo
no projeto se baseou em uma proposta denominada de “Arte em Prol da Transparência
Curatorial (APTC)” que disponibilizou um cronograma de execução do projeto e de
valores destinados aos participantes a partir de uma prática de divisão eqüitativa de
recursos entre os artistas e o curador/organizador alem disso os artistas receberam a
quantia integral do recurso já na fase inicial do projeto.

Visitação/Consumo
A questão do consumo norteou o processo dialógico entre os participantes através do
qual se pretendia diluir categorias fixas dos papeis de artistas, montadores e curadores
ou organizadores numa proposta de montagem conjuntamente elaborada. Para iniciar
esse processo, foram colocados em pauta para discussão alguns contextos históricos que
abordam formas de distribuição de obras de arte.
Como referência central foi discutida a “Exposição não Exposição”, do artista Nel-
son Leirner, realizada na Galeria Rex, em São Paulo, em 1967. A exposição ofereceu ao
público a oportunidade de levar gratuitamente obras de Leirner para casa. Através de um
convite para a exposição publicado em um jornal local, o artista lançou uma proposição
onde se podia ler: “Pare...Olhe...Entre...Pegue...”. Entretanto, na abertura da mostra o
acesso às obras de arte não foi simplificado pelo artista porque a fronteira que separava o
público dos objetos foi intencionalmente dificultada através de uma série de obstáculos3.

3. Obstáculos como obras acorrentadas, blocos de cimentos e até uma piscina. Relato com-
pleto sobre a exposição encontra-se em Lopes (2006).
494 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Tais obstáculos foram montados com o intuito de destacar a dificuldade de receber os


presentes do artista. Na noite do evento, uma multidão estava à espera na porta da gale-
ria. Quando as portas se abriram, o espaço foi invadido por pessoas agitadas e ansiosas
pela posse das obras, atendendo ao desejo de Leirner que, de acordo com Lopes (2006),
queria mobilizar um grande público para causar confusão. Ao tentar retirar uma obra
presa à parede, um dos visitantes munido de um grande alicate, causou acidentalmente
um apagão no espaço, fato que acirrou a disputa pelo garimpo das obras.
No contexto da “Exposição não Exposição” a célebre frase: “Art is anything you can
get away with” (1967, p.32) do crítico canadense Marshall McLuhan torna-se pertinen-
te. Originalmente relacionada à capacidade de persuasão do artista frente ao sistema de
arte, a frase, sob uma tradução literal no contexto da performance do público pode ser
traduzida como: arte é qualquer coisa que você consegue levar ou “escapar com”.
Leirner provocou comportamentos performáticos da multidão e incentivou um espe-
táculo com elementos de tumulto e agressividade, exacerbando o elemento do consumo
dentro do espaço da arte parecido com cenas atuais de promoção de liquidação promovi-
dos por grandes lojas de departamentos. Os obstáculos para apanhar obras funcionaram
como armadilhas captaram o público em pleno ato de violência incitado pelo artista e
deram visibilidade performática a tal presença. Tal forma tencionada de distribuição
contrasta com uma maneira mais comumente realizada de distribuição de múltiplos,
disponibilizados em pilha, bem conhecida na obra do renomado artista Felix Gonzáles
Torres (1957-1996). A distribuição de múltiplos em pilhas montadas no chão ou sobre
bases para consumo dos visitantes revela certa simplicidade. Ao mesmo tempo tal forma
torna-se um corpo que se desmaterializa na medida em que é consumido, provocando
um sumiço criativo. Torres, na obra “Sem-título” (da série Placebo), de 1991, utili-
zou essa disposição de maneira poeticamente potente quando disponibilizou no chão
do espaço expositivo uma quantidade de balas/doces com o mesmo peso do corpo do
seu falecido namorado. Em outra obra do artista, “Passport #II”, de 1993, os visitantes
podiam pegar de uma pilha cadernos do tamanho de um passaporte com imagens de
gaivotas voando impressas em preto e branco. Na medida em que tais múltiplos foram
distribuídos, provocou-se um cruzamento de fronteiras entre o espaço expositivo e o co-
tidiano, sendo a obra levada para territórios desconhecidos através da ação dos agentes
performáticos (visitantes).
Em Leirner e Torres, encontram-se duas estratégias de oferecimento que foram con-
sideradas na elaboração de formas expositivas dos múltiplos na exposição. A partir des-
sas referências, na entrada de Super Performance, era possível ler a seguinte proposição:
“Super Performance. Por favor, ofereça”.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 495

Oferecimentos
Nas obras produzidas pelos artistas do projeto encontra-se uma postura de distribui-
ção manifesta como performance e como possibilidade de oferecimento dos próprios
participantes.
O trabalho de Yuri Firmeza dependia da ação de distribuição. O artista ganhou um
representante performático (Pedro Esquerra, funcionário do Atelier 397) que iniciou a
emissão do texto via celular, desempenhando um papel performativo na abertura do even-
to, Esquerra colou uma fita em sua camisa onde se lia: “Yuri Firmeza. Bluetooth. Aqui”.
O texto de Firmeza foi transmitido ao público criando um processo de expansão
do texto através do oferecimento. A propagação da mensagem gravada dependia da
continuação da ação distribuidora entre os participantes. O ato do oferecimento de tal
mensagem se destacou como possibilidade performática enquanto pessoas no espaço
dispararam os textos.
Para Orlando Maneschy, sua obra:

abarca tanto a performance do(s) artistas(s), quanto a do público (recriado também enquanto
artistas), que somam-se ao conceito da instalação. Pela inscrição do público, fica claro que o
ambiente/cenário é instalação enquanto espaço performativo: uma apropriação dos estados do
mundo atual4.

Além da oferta do CD do artista para quem se disponibilizava a cantar, a performan-


ce dos participantes do karaokê pode ser percebida como um ato de oferecimento para
outros presentes.

Dispositivo curadoria/artistas
Como resultado do processo dialógico promovido entre a curadoria e os artistas Daniela
Mattos e Vitor César, surgiu um atravessamento curatorial/ artístico que consistia no
uso de um dispositivo de distribuição para oferecimento performático dos múltiplos. O
dispositivo consistia de três prateleiras com dobradiças fixadas nas paredes das quais os
visitantes puderam retirar os múltiplos dos dois artistas.
O dispositivo foi projetado para alterar a forma de acesso às obras proporcionado
que os visitantes fossem presenteados por outros visitantes da mostra.
Cada prateleira tinha um fecho e um sistema de cabos (com uma roldana instalada
no teto) que permitia puxar/levantar sua superfície para uma posição horizontal provo-
cando a abertura do mecanismo que travava o acesso ao múltiplo5

4. Texto enviado pelo artista por email: 29 Abr 2012.


5. O mecanismo tinha uma pequena gambiarra produzida através de uma adapta-
ção de sistema de armadilha de ratoeira.
496 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Figura 1-3. Oferecimento dos múltiplos de Daniela Mattos. Abertra da Exposição Super perfor-
mance. Atelier 397, São Paulo, jun 2012.

O mecanismo funcionava através de uma tensão provocada pelo corpo do partici-


pante que encaixava seu corpo no cinto pendurado. Pela distância criada na hora de
esticar o cabo de cada prateleira, quem levantava as prateleiras ficava impedido de pegar
os múltiplos6. Desse modo, o acionador do mecanismo só podia receber o múltiplo no
ato de reciprocidade com outros visitantes, como de fato aconteceu durante a abertura da
exposição. Desta forma, um ritmo próprio entre oferecer e recolher múltiplos aconteceu
na abertura do evento, permitindo que o público presente assistisse ao processo de troca
entre agir e observar. Além disso, a situação propiciou a prática de Dinâmicas e Trocas
Entre Estados de Performance (DTEEP), (PELED, 2010) ao alternar as funções entre
performers do consumo e performers do oferecimento.
Quais são os elementos de similitude e de diferenciação com os acontecimentos
provocados na “Exposição não Exposição”? Como na mostra de Leirner, na Super Per-
formance o mecanismo para oferta dos múltiplos promovia uma condição participativa
que tornava o ato de distribuição mais complexo.

Figuras 4-6. Imagens do dia da inauguração, Atelier 397, jun. 2012.

Por outro lado, o ato do consumo proporcionado através do oferecimento dos múl-
tiplos na exposição Super Performance estimulava os visitantes a adotar práticas soli-
dárias e cooperativas, contrastantes com os comportamentos que surgiram na mostra
de Leirner. A ação que fundamentou a “Exposição não Exposição” foi o esvaziamento

6. Antonio Manuel, na obra “Eis o saldo”, de 1968, usou panos pretos e um sistema de cordas
com roldanas através das quais os visitantes poderiam revelar o conteúdo da obra - no caso
imagens de manifestos contra a ditadura brasileira. Desta forma ao levantar os obstáculos/
panos, participantes proporcionavam a vista da imagem para si e para outros presentes.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 497

das obras do espaço realizado através da desmontagem performática dos visitantes. Em


Super Performance, cada momento de ativação (de levantar e abaixar a prateleira) mar-
cava repetidamente movimentos entre exposição e a não-exposição e permitia, no ato de
oferecimento praticado entre os participantes, a edificação renovada da mostra.

Referências
AUSTIN, J.L. How to do things with words. 1962. In: BIAL, Henry. The Performance Studies
Reader. New York: Routledge, 2004. pp.147-153.
LOPES, F. A Experiência Rex. São Paulo: Editora Alameda, 2009.
MCLUHAN, M. FIORE, Q. AGEL, J. The Medium is the Massage: An Inventory of Effects. New
York: Random House. 1967.
PELED, Y. Super Performance: Múltiplo e Gratuito. Rio de Janeiro: Rede Nacional Funarte Artes
Visuais, 2011.
_____. DTEEP Dinâmicas e Trocas Entre Estados de Peformance. In: Anais do 19º Encontro
Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas/ANPAP (Recurso ele-
trônico). Universidade do Estado da Bahia. 21-25 set 2010. Cachoeira, Bahia, 2010.
498 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

De frente para a emparede galeria


de arte e por dentro do
Cineclube Lima Barreto: propostas
para a arte contemporânea
Yvana Gonçalves Belchior
UFES / UAB – [email protected]

Andrea A. D. Valentina
UFES – PMV

A EMPAREDE Galeria de Arte e o Cineclube LIMA BARRETO possibilitam


ao espectador - passant, usufruir da arte gratuitamente, não de rua, mas na
rua. A particularidade desta Galeria é de funcionar 24hs por dia. Nela, artistas
e cinéfilos dispõem de um Cineclube, podendo assistir filmes sentados nas
antigas cadeiras do Teatro Glória. Analisamos as ações desta Galeria e do
Cineclube, mostrando como a arte contemporânea capixaba pode se articular
com tais propostas.

The EMPAREDE Art Gallery and the Film Society LIMA Barreto enable any
viewer - passant, enjoy free art, not street, but the street. The feature of this
gallery is to work 24 hours a day. Here, artists and film buffs have a Cineclube
and can watch movies sitting on old theater chairs Gloria. We analyze the
actions of this Gallery and Film Club, showing how contemporary art capixaba
can articulate such proposals.
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 499

Emparede galeria de arte - Apresentação


Caminhando por determinada rua, nossos olhares fitam sobre a paisagem urbana. Po-
demos passar por uma rua próxima, ou quem sabe, atravessar aquela outra rua mais
estreita, até que você se depara com uma parede pelo caminho... Até aqui, nenhuma
novidade, mas, não estamos falando de uma parede qualquer, mas sim, de uma parede
pintada. Oras, paredes são pintadas!! Sim, são pintadas com cores das mais diversas,
além das suas possíveis texturas. Mas, não como a EMPAREDE. Esta parede faz parte
de uma casa igualmente especial! A iniciativa abrange propostas de realização de ex-
posições inicialmente de artistas locais convidados, com intervalos de apresentação e
mostra da própria artista. Na verdade, talvez o ponto mais básico de nossa paisagem
urbana continue a ser a casa (Damatta,2012). O autor relata acerca da rua e dos seus
encontros, aqui, nossa paisagem se enquadra voltada para a EMPARDE Galeria, local
estratégico fazendo parte de uma das paisagens de Vitória. A EMPAREDE Galeria de
Arte é uma proposta experimental, da artista plástica Yvana Belchior, que transformou
uma parede externa de sua residência, (4,19mX2,40mX0,58m), situada no bairro Santo
Antônio em Galeria de Arte. A iniciativa abrange a realização de exposições de artistas,
com intervalos, que também são mostras. A cada realização de uma exposição, insere-se
a Exposição Intervalos com possibilidade de atrações do bairro e de artistas. Durante
24hs diárias, estudantes, moradores, artistas ou mesmo aquele transeunte mais desaten-
to, têm acesso às exposições na Galeria. Sem se atentar, esse transeunte tem mais um,
ou seu primeiro contato com as artes visuais de sua vida. Nesta rua se conjuga o verbo
ESTAR – diante da EMPARE a pessoa está na Galeria – e não IR – vou à galeria.

A emparede enquanto galeria a céu aberto


Inserir o Espaço Galeria à rua, sem portas de acesso, incentivando o olhar, provocando
experiências às pessoas e ao próprio artista, de modo inesperado. Comungando não
apenas a relação Obra X Espectador, mas também o desapego do artista com o objeto
artístico, acessível a quem possa fazer dele o que lhe convier, além da atuação direta das
intempéries. Afinal, a responsabilidade em estabelecer o limite entre a obra e o expec-
tador é exclusivamente de quem observa, sentindo desejo de tocar, se aproximar mais
do objeto para melhor entendê-lo. Pois, acreditamos, junto com Damatta, que estamos
diante de um espaço urbano, que tende a ser complementar e hierárquico. Um espaço
marcado por relações sociais e nela embebido. Assim, o espaço em frente da minha
casa é da minha família, do mesmo modo que o espaço em frente (e o tempo) de todas
as “ruas” e, consequentemente, de todos os perigos (Damatta,2012). O perigo para nós
aqui é vencido a cada mostra, é entendido como superação dos problemas inerentes ao
espaço público como vandalismo, o que temos é a valorização da arte como bem cultu-
ral de forma a torná-la mais acessível, este é nosso desejo, inserindo-a no dia a dia da
população. Divulgando e dando acessibilidade as artes do nosso Estado, fazendo parte
de um círculo que passa pelo artista e sua produção.
500 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

Realizando exposições desde Maio de 2012, teve suas duas primeiras mostras da
obra da própria artista – Yvana Belchior. Em suas seguintes edições, recebeu a Expo-
sição “ZOO” do artista plástico Orlando da Rosa Faria, representante artístico da mais
pura Arte capixaba. Após esta exposição, registros de Intervalos e posterior exposição
“CHEIRO DE BRASIL” da artista Maruzza Valdetaro e mais Intervalos, atualmente,
temos a exposição FELICIDADES do artista Júlio SCHMIDT. Registramos um número
significativo de visitas a Galeria de Arte, em ambas as mostras, afinal, o desejo maior
da cidade é que a rua seja das pessoas. O desafio é a real apropriação; é entender e agir
com a consciência de que a rua é de todos nós (Saturnino,2012) e nos empenhamos neste
sentido de apropriação do objeto artístico localizado na rua.

O caso do acaso - Le passant avec sa fille


Certo dia, caminhava pela rua uma senhora e uma criança, as duas alcançaram a calçada
e ao depararem frente a EMPAREDE a criança pergunta: Mãe o que é isso? Referindo-se
ao trabalho em exposição “Cheiro de Brasil”. Então, a mãe diminuiu o ritmo das passa-
das e o olhar fitando o trabalho, diz - É uma colcha de vento. A criança vira-se ainda a
olhar de costas, sem mais perguntas. Momento este que pudemos presenciar. Segundo o
cronista João do Rio quando se refere à rua em crônica no livro A alma encantadora das
ruas, diz que as ruas das grandes cidades têm o poder de criar o tipo urbano, de plasmar
a moral dos seus habitantes, inocular-lhes gostos, costumes, hábitos, modos, opiniões
(Pechman,2012). Acreditamos que o ser humano é repleto de imaginação, fantasia e cria-
tividade. E expor, compartilhar, possibilitar a fruição desse instante é contribuir para
sermos melhores seres humanos. Afinal, assim como Pechman, também acreditamos que
a rua traduz o mundo urbano e nos conta muito das formas da sociabilidade e da urbani-
dade de cada cidade. O MinC relata: 14% da população brasileira vai ao cinema - 96%
não frequenta museus, 93% nunca foi a uma exposição de arte e 78% nunca assistiu a um
espetáculo de dança. E em nosso estado temos um resumido número de espaços exposi-
tivos, e esta ausência reflete também uma necessidade do próprio artista de colocar-se no
corpo-a-corpo, no experimental, através de suas obras com o expectador.

A emparede galeria acessível dia e noite


Através da EMPAREDE é possível promover Arte de Vanguarda através das mais va-
riadas expressões artísticas – PINTURA, PLOTER, SUBLIMAÇÃO, INSTALAÇÃO,
ESCULTURA, VÍDEO, POESIA, mudando a estética urbana do bairro e a rotina das
pessoas: há quem diga que passou a andar por essa rua devido a Galeria. Ao escrever
sobre a cidade, Ardene diz que tudo depende de para quem se está falando e, sobretudo,
para o prazer de quem, do indivíduo ou do grupo? (Ardene, 2012). A intenção é que a cul-
tura seja promovida, individual ou coletivamente. Registramos duas crianças que diante
da exposição Intervalos com pinturas, disseram: “Já passei por aqui várias vezes, adoro
ver essas cabeças”. Narração espontânea como esta nos anima a trabalhar, este embate
certeiro do acaso com a arte é um momento único. Recebemos visitas de estudantes com
Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013 501

encontro com o artista, construindo olhares mais críticos. Para Rogério Ribeiro diretor de
um CEMEI, “Democratizar e ampliar o acesso à arte é o que vem em mente no primeiro
momento quando vemos os trabalhos tão disponíveis aos olhos”. A Galeria também visa
favorecer a circulação e o mercado da arte, valorizando a produção artística e seu consu-
mo saudável e culturalmente acessível. Ansiamos por uma verdadeira sinfonia, este ter-
mo é usado por Amaral quando escreve sobre a sinfonia de São Paulo: a cidade é humana
como vitrine que expõe sua multiplicidade cultural (Amaral, 1994). A Galeria oportuniza
este aprendizado. Seu nome acontece como desejo de exposição da arte: sobre as paredes,
na rua, sob olhares, circulando. EMPAREDE. Seu nome surge como referência à rua, o
externo, o contato, a vida diversificada, o mundo. Arte para ser vista, experimentada.

A proposta do Cineclube Lima Barreto


Paralelo à galeria de arte, surge a parceria com o Cineclube, após doação de um lote de
20 cadeiras do Cine Teatro Glória. O cineclube LIMA BARRETO aconteceu em Vitória
nos anos 80 a partir de atividades de um grupo de jovens que realizavam sessões de fil-
mes que ao longo dos anos teve suas apresentações diminuídas. Hoje o cineclube retorna
às atividades em parceria com a EMPAREDE Galeria. O interesse dos capixabas pelo
cinema também guarda relação com o histórico de produção cinematográfica que carac-
teriza o Estado, pois, de acordo com o Catálogo de filmes: 81 anos do cinema capixaba
de Carla Osório, desde que Ludovico Percisi estreou o filme Bang Bang em 1926, até a
curta metragem A fuga de Saskia de Sá em 2007, contam-se 102 filmes realizados no ES
(Zardo, 2009). E é a esta produção que queremos continuar a dar fôlego, contribuindo
para a formação de platéia, incentivando ao debate da arte em suas variadas formas de
expressão. E aqui lembramos Pessoa, quando escreve que a construção como edificação
reúne e integra em torno de si um lugar: a ponte, a casa, a igreja, e acrescentamos a
praça, a calçada e a rua em si. A relação entre esses lugares constitui o espaço (Pessoa,
2012). A EMPAREDE Galeria e o Cineclube tem a convicção de estar a favor da proxi-
midade entre arte e vida – e estar contribuindo para trazer a cada um que se permita, um
pouco mais do humano às pessoas. Belo, feio, grande, pequeno, baixo, alto, distorcido,
uniforme, competente, criativo, dissimulado, alegre, atrevido, abelhudo, doce, amargo,
angelical, responsável, interessante, persistente, teimoso. EXPERIMENTAL. Ser Cine-
clube é uma mistura de tudo isso, é o encontro.

Considerações
É assunto comum entre artistas plásticos discutir sobre seu acervo pessoal, sua pro-
dução. Mas afinal, uma produção para tê-las amontoadas? Em alguns momentos, é
possível que parte deste acervo se reverta em presentes para os mais próximos, no
entanto, a repetição deste ato não é o que anseia um artista. A EMPAREDE surge
assim, tornando a produção artística exposta a contemplação, a crítica, ao desgaste, à
fadiga pelas intempéries, ao desejo de apresentar-se ao outro, mostrar-se, provocar e
ser provocada. E percebemos que essa fadiga era compartilhada com outros artistas:
502 Poéticas da Criação – Vitória, E.S. 2013

sem local, apoio, possibilidades de apresentar suas produções. Alguns deles cogita-
vam nem mais produzir suas obras. Não temos dúvidas da contribuição que a Galeria
insere na produção artística contemporânea, a receptividade por parte dos artistas é
significativa, além da presença das escolas nos prestigiando. Nossa maior dificuldade
é a falta de patrocínio. Ansiamos verbas do poder público ou de particulares, afinal, a
manutenção da Galeria passa por tinta, limpeza, conta de luz e principalmente na troca
de exposição, adequando-a para a seguinte. Seguindo nosso trajeto, mesmo diante das
dificuldades ou incertezas, acreditamos que a arte contemporânea que aqui propomos
ocupa um lugar significativo entre os capixabas, estimulando o diálogo e a presença
na galeria, mesmo que esta passagem se dê pelo encontro do acaso, que, para nós se
torna realidade, e que aqui partilhamos com você.

Referências
AMARAL, Aracy. Modernidade e modernismo no Brasil. SP: Mercado das Letras. 1994.
ARDENE, Paul. A cidade “corpopoética”. Vale: Vila Velha, 2012.
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil BRASIL?. São Paulo: Cortez, 2011.
__________________. In: Sobre Desejos e Cidades. Vale: Vila Velha: 2012.
MARTINS, Miriam Celeste. Didática no ensino da Arte. São Paulo: FTD, 1998.
PECHMAN, Robert. Cenas, algumas obs-cenas da rua. Vale: Vila Velha: 2012.
PESSOA, Fernando (Org). Sobre Desejos e Cidades. Vale: Vila Velha, 2012.
SATURNINO, Caruso. Ruas do mundo. Fundação Vale: Vila Velha: 2012.
ZARDO, Julia. (org). Audiovisual Capixaba. Instituto Gênesis da PUC - RJ, 2009.
ISBN 978-85-64586-68-0

9 788564 586680

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