Implicacoes Economicas Dos Templos Egipcios
Implicacoes Economicas Dos Templos Egipcios
Implicacoes Economicas Dos Templos Egipcios
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CompartilhaIgual 4.0 Internacional.
Bibliografia.
ISBN 978-85-66714-01-2
CDD 932
CDU 94(32)
Editora Klínē
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Sumário(
Trabalhos)apresentados)na)I)SEMNA)não)incluídos)neste)volume!....................................!4!
Equipe)organizadora)da)I)SEMNA!..........................................................................................................!5!
Lista)de)autores!...............................................................................................................................................!6!
Apresentação!....................................................................................................................................................!7!
Prefácio/Foreword,!Chris!Naunton!........................................................................................................!9!
Auxiliares)para)o)renascimento:)estátuas)funerárias)de)Osíris)e)PtahJSokarJOsíris)
da)coleção)do)Museu)Nacional/UFRJ,!Simone!Bielesch!.............................................................!13!
Para)falar)aos)deuses:)estudo)das)estatuetas)votivas)da)coleção)egípcia)do)Museu)
Nacional,!Cintia!Prates!Facuri!...................................................................................................................!38!
Tecnologias)tridimensionais)aplicadas)em)pesquisas)arqueológicas)de)múmias)
egípcias,!Simonte!Belmonte,!Jorge!Lopes!e!Antonio!Brancaglion!Jr.!.......................................!47!
Amarna:)pintando)uma)nova)paisagem,!Rennan!de!Souza!Lemos!.......................................!65!
As)representações)da)família)real)amarniana)e)a)consolidação)de)uma)nova)visão)
de)mundo)durante)o)reinado)de)Akhenaton)(1353J1335)a.)C.),!Gisela!Chapot!...........!76!
Hierarquia)e)mobilidade)social)no)antigo)Egito)do)Reino)Novo,!Nely!Feitoza!Arrais
!.................................................................................................................................................................................!88!
Implicações)econômicas)dos)templos)egípcios)e)a)constituição)de)poderes)locais:)
um)estudo)sobre)o)Reino)Antigo,!Maria!Thereza!David!João!...............................................!103!
Sobre)a)importância)da)teoria)social)na)egiptologia)econômica,!Fábio!Frizzo!........!112!
Identidade,)gênero)e)poder)no)Egito)Romano,!Marcia!Severina!Vasques!.....................!122!
“E)me)traga)essa)carta)de)volta”.)As)cartas)aos)deuses)e)os)estudos)de)gênero)no)
Egito)Ptolomaico.)Contribuições)da)antropologia,!Thais!Rocha!da!Silva!.....................!134!
As)estelas)funerárias)com)o)morto)reclinado)em)uma)cama)funerária:)etnia,)
identidade)e!emaranhamento)cultural)no)Baixo)Egito)durante)o)Período)Romano,!
Pedro!Luiz!Diniz!von!Seehausen!............................................................................................................!150!
Adriano)e)o)Egito:)a)construção)de)um)modelo)egipcianizante)para)a)Villa)Adriana,!
Evelyne!Azevedo!...........................................................................................................................................!164!
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TRABALHOS(APRESENTADOS(NA(I(SEMNA(NÃO((((((((((((((((((((
INCLUÍDOS(NESTE(VOLUME(
A coleção egípcia do Museu Nacional: entre a memória e a ciência – Prof. Dr. Antonio
Brancaglion Jr., Museu Nacional/UFRJ
Projeto Tothmea: resultados do passado e perspectivas futuras – Dr. Moacir Elias Santos,
UEPG
O uso do modelo mãe/filho pelos cristãos – Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese,
IH/UFRJ
Face a face com os egípcios antigos: uma estatueta muito especial do Museu Nacional –
Prof. Dr. Antonio Brancaglion Jr., Museu Nacional/UFRJ
Las colecciones egípcias argentinas, entre el Museo y la Universidad – Prof.ª Dr.ª María
Violeta Pereyra, Universidad de Buenos Aires
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EQUIPE(ORGANIZADORA(DA(I(SEMNA(
Pedro Luiz Diniz von Seehausen – mestrando em Arqueologia pelo Museu Nacional/UFRJ
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LISTA(DE(AUTORES(
Simone Bielesch!
Cintia Prates Facuri, Museu Nacional/UFRJ!
Simone Belmonte, INT
Jorge Lopes, PUC-Rio/INT
Antonio Brancaglion Jr., Museu Nacional/UFRJ!
Rennan de Souza Lemos, Museu Nacional/UFRJ
Gisela Chapot, UFF!
Nely Feitoza Arrais, UNILASALLE-RJ!
Maria Thereza David João, USP!
Fábio Frizzo, UFF!
Marcia Severina Vasques, UFRN!
Thais Rocha da Silva, Seshat-Museu Nacional/UFRJ; USP!
Pedro Luiz Diniz von Seehausen, Museu Nacional/UFRJ!
Evelyne Azevedo, Museu Nacional/UFRJ!
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APRESENTAÇÃO(
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Hoje em dia, dispomos em nosso país de pessoas que se dedicam ao estudo do Egito
antigo em vários programas de pós-graduação. A Semana de Egiptologia do Museu Nacional
surgiu com o intuito de congregá-las para debater tornar a Egiptologia no Brasil uma disciplina
acadêmica efetivamente consolidada. Precisamos amadurecer as pesquisas realizadas no país para
que, em médio ou longo prazo, possamos dialogar com a Egiptologia produzida em outros
países. Um diálogo frutífero vem sendo iniciado com colegas da Argentina, Itália, Portugal,
Espanha, França, Inglaterra e do próprio Egito. Somos especialmente gratos ao Dr. Chris
Naunton, Diretor da Egypt Exploration Society, por ter redigido o prefácio para esta publicação.
Somos igualmente gratos à Professora Violeta Pereyra, cuja equipe passamos a integrar no
Projeto de Conservação da Tumba de Neferhotep em Luxor. Agradecemos também ao Instituto
Francês de Arqueologia Oriental do Cairo pelo suporte e apoio às pesquisas realizadas no Museu
Nacional, e a todos os que participaram da primeira edição da Semana de Egiptologia. Em sua
segunda edição, a SEMNA a aumenta o tamanho do grupo que se dispôs dialogar e participar
do evento, a quem somos gratos: especialmente à Professora Christiane Zivie-Coche, Diretora
de Estudos na Seção de Ciências Religiosas da École pratique des hautes études e ao Dr.
François Leclère, diretor da Mission française de fouilles de Tanis.
Esperamos que este volume seja proveitoso para todos aqueles que buscam conhecer o
Egito antigo dentro e fora da academia, e que contribua para o desenvolvimento e
fortalecimento de futuras pesquisas acadêmicas em Egiptologia no Brasil.
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PREFÁCIO/FOREWORD(
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17th and 18th centuries. In the UK, many of today’s most prominent Egyptological institutions,
including the Egypt Exploration Society, were founded in the 19th century. Today, the most
important institution for Egyptology anywhere in the world is, of course, the Ministry of
Antiquities in Egypt. It has responsibility for all the country’s archaeological and historic sites
and monuments, and its antiquities museums, which house by far the richest collections of
Egyptian objects anywhere in the world. Egypt’s historical legacy is of global importance
however, and as such it draws the expertise of specialists from around the world.
Brazil is well placed to play an important role in this. It has a wonderful and well-known
collection of Egyptian antiquities at the National Museum in Rio de Janeiro, and a very healthy
group of specialists investigating a wide variety of topics as this volume attests.
Conferences such as the SEMNA event are an indispensable part of any scientific
discipline, providing an opportunity for scholars to share their knowledge and ideas. It is
wonderful to see some of the Egyptian material in the rich collections of Brazil given new
exposure. A focus on this most Brazilian aspect of Egyptology is to be expected but it is also
very exciting to see so many other topics and approaches covered as well. Brazilian scholars’
interpretations of material and themes which are familiar to us, demonstrate clearly that our field
remains dynamic and ever-changing, and also that Brazil has a great deal to contribute to
international Egyptology.
The publication of this volume is crucial for this reason as it will enable the ideas to
circulate among the international community of Egyptologists, raising awareness of the
importance of the contribution Brazil is making to Egyptology, introducing new information to a
much wider audience, and allowing the scholars’ interpretations to be tested. The more input
there is into international Egyptology, the more material, information, ideas and interpretations,
the better. Publication is the means by which all that knowledge can circulate, and the editors
and contributors to this volume should be congratulated for their efforts.
Sharing knowledge as far and wide as possible is of benefit to scholarship but also for the
promotion of our subject to a wider audience, the second of the challenges for Egyptology in
Brazil. It is an essential part of the role of those of us who are fortunate enough to make a living
from Egyptology to promote our subject, to share our knowledge and enthusiasm for Egypt’s
past as widely as we can. There is also, as mentioned above, a practical dimension to this. People
want to invest in their enthusiasms; Egyptology needs investment – of time and of money – and
the more enthusiasts there are willing to invest in Egyptology the more resources will be
available for developing professional Egyptology, and the crucial business of ensuring the
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survival of Egypt’s sites and monuments, and everything we have learned about them, into the
future.
It is very exciting to imagine how Egyptology will develop in Brazil in the coming years.
It is to be hoped that there will be many more gatherings such as the SEMNA conference,
bringing scholars from Brazil together, perhaps with Egyptologists working in other countries as
well, including, of course, Egypt. There are already rich collections in cities such as Rio, and as
awareness of the material in those collections increases it is very likely that scholars and other
enthusiasts from around the world will visit in ever increasing numbers to study the objects.
Awareness of the scholars contributing to the conference and their work will help embed
Brazilian Egyptology in the discipline internationally, which will be of benefit to all in the field.
As the field develops it will be better placed to attract students to university courses, and to
attract more investment in library and other essential facilities, and to bring in more investment
from the wider public, attracted by exhibitions, popular publications and public events.
The SEMNA conference and this volume are an exciting beginning, but they are only the
beginning.
Chris Naunton
Director, Egypt Exploration Society
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Estudos de Egiptologia
Parte 1
A coleção egípcia do Museu Nacional:
interpretação e aplicação de novas tecnologias
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AUXILIARES(PARA(O(RENASCIMENTO:(ESTÁTUAS(
FUNERÁRIAS(DE(OSÍRIS(E(PTAHESOKAREOSÍRIS(DA(COLEÇÃO(
DO(MUSEU(NACIONAL/UFRJ(
Simone Maria Bielesch
Resumo: O presente artigo apresenta parte dos resultados obtidos em nossa dissertação de mestrado (BIELESCH,
2010) sobre as estátuas funerárias de Osíris e Ptah-Sokar-Osíris da coleção egípcia do Museu Nacional/UFRJ – Rio
de Janeiro. Esta possui um exemplar de uma estátua funerária de Osíris e seis de Ptah-Sokar-Osíris. Apesar de seu
estado precário de conservação, uma reconstituição parcial das mesmas foi possível, permitindo classificá-las em
parte.
Abstract: The present article presents part of results obtained in our master theses (BIELESCH, 2010) about the
funerary statues of Osiris and Ptah-Sokar-Osiris from the Egyptian collection of de Museu Nacional/UFRJ – Rio de
Janeiro. This possesses an exemplar of a funerary statue of Osiris and six of Ptah-Sokar-Osiris. Despite of their
precarious state of conservation, a partial reconstitution of the same was possible, allowing a partial classification.
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“Livro dos Mortos”, as estátuas funerárias de Osíris como receptáculo para a guarda deste
também desaparecem.
Por volta da XXV Dinastia, com a volta de um equipamento funerário mais numeroso e
da construção de grandes complexos funerários, o conceito das estátuas funerárias de Osíris
reaparece na figura de suas sucessoras, as estátuas funerárias de Ptah-Sokar-Osíris. Esta forma
sincrética de Osíris, surgida no Médio Império, vindo à representar o deus do ciclo regenerativo
no qual Ptah simboliza a criação, Sokar a metamorfose e Osíris o renascimento
(BRANCAGLION JR, 2009:informação verbal). Em seu interior as estátuas funerárias de Ptah-
Sokar-Osíris agora, geralmente, contém uma pseudo “múmia-de-grãos”. Dessa forma, o morto
passa a estar conectado com rituais do Festival de Khoaik, que encenavam o renascimento de
(Ptah-Sokar-)Osíris e nos quais era fabricada uma figura de grãos semelhante à encontrada no
interior das estátuas. A forma osiríaca é substituída pela saH e a coroa Swty usada junto com o
toucado divino torna-se o padrão, passando portanto a estátua a aludir a uma forma divinizada
do morto unificada com Osíris.
No final da Baixa Época e no Período Ptolomaico, o simbolismo da estátua de Ptah-
Sokar-Osíris como um agente do renascimento é reforçado com novos elementos adicionados a
sua decoração. Nas inscrições, antes praticamente restritas a fórmulas funerárias e recitações,
temos a introdução do hino à Ptah-Sokar-Osíris. Estes novos elementos não remetem mais
apenas ao contexto osíriaco do pós-vida, mas também ao solar. Assim, a estátua funerária de
Ptah-Sokar-Osíris passa a ser um retrato do morto que foi bem sucedido em todas as etapas de
sua jornada para a outra vida; ele se tornou um Justo de Voz perante Osíris e um Glorificado
perante Rê. Justamente após atingir o ápice do seu simbolismo como um agente do
renascimento, a estátua funerária de Ptah-Sokar-Osíris irá desaparecer no final do Período
Ptolomaico com o aumento da helenização dos costumes funerários.
Classificação
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em esquecimento entre os egiptólogos, como podemos ver pelo fato de que muitas obras a
respeito dos aspectos funerários no Egito antigo sequer as mencionarem.
O trabalho mais completo a respeito e a principal referência até os dias atuais é o artigo
Papyrus-sheats and Ptah-Sokar-Osiris statues publicado por Maartin Raven em 1978-1979, no qual ele
estabelece uma tipologia das estátuas. As estátuas são dividas em cinco tipos, os quais, por sua
vez, contêm outras subdivisões, levando em conta características específicas no interior de cada
tipo. Os tipos I e II abrangem as estátuas de Osíris porta-papiros, e os demais tipos englobam as
estátuas de Ptah-Sokar-Osíris. (RAVEN, 1978-1979:258-273)
Em outro artigo de 1982, Raven irá fazer um estudo mais detalhado do conteúdo das
estátuas de funerárias de Ptah-Sokar-Osíris. As análises feitas por ele mostram ser o verdadeiro
conteúdo das estátuas, pseudo “múmias de grãos” feitas de uma mistura de barro e grãos de trigo
ou cevada, que não germinaram, envoltos em linho. Estas análises também provam serem falsas
as afirmações de serem estas pseudo-múmias membros do morto ou pequenos animais
mumificados, como ainda é comumente afirmado por estudiosos. (RAVEN, 1982, pp. 16-18)
Posteriormente surgiram alguns artigos apresentando estátuas inéditas e propondo
correções na cronologia de Raven. (ASTON, 1992; BIELESCH, 2010:151-155; BUDKA, 2003;
LIPINSKA, 2007; SCHOSKE, 2001; VARGA, 1995; ZIEGLER, 2003)
Em nossa dissertação de mestrado (BIELESCH, 2010) procuramos fazer um estudo
mais aprofundado das estátuas funerárias de Osíris e Ptah-Sokar-Osíris e criamos uma
classificação alternativa a de Raven, incorporando as novas informações surgidas após a
publicação de seu artigo. As estátuas foram dividas em 10 tipos, alguns com subtipos, além de
um grupo de estátuas que não se encaixam nos critérios de classificação. Além do estudo dos
exemplares da coleção do Museu Nacional/UFRJ.
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Inv. 16 [MN-1]
Fig. 1 – inv. 16 [MN-1] frente (BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)
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Fig. 2 – inv. 16 [MN-1] verso ( BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)
Fig. 3 inv. 16 [MN-1] possível reconstituição frente (BIELESCH, Simone Maria, data: jul. 2010)
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fig. 4 inv. 16 [MN-1] possível reconstituição lateral (BIELESCH, Simone Maria, data: jul. 2010)
) 19
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Inv. 17 [MN-2]
Fig. 5 – inv. 17 [MN-2] frente (BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)
Exceto pelo toucado divino de uma coloração preta, não há vestígios de pintura na
estátua funerária de Ptah-Sokar-Osíris de inv. 17. Os traços de seu rosto são bem definidos,
possuindo um rosto com um leve sorriso e grandes orelhas projetadas para frente. Os pés
terminam quase rentes ao plinto. Este conjunto de características demonstra o seu
pertencimento ao estilo do Período Saíta.
Como a estátua é sólida, uma cavidade com uma pseudo “múmia-de-grãos” em seu
interior poderia estar localizada na base desaparecida.
A estátua tem 27,7 cm de altura por 6,7 cm de largura por 5,4 cm de profundidade. O
pino da estátua para o encaixe na base foi serrado.
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Fig. 6 – inv. 140 [MN-3] frente (BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)
A presente peça tem como característica principal o fato de sua pintura ter sido aplicada
diretamente sobre a madeira. O toucado divino apresenta restos de pigmentação azul, o rosto
verde e o tronco vermelho. As fileiras do colar wsx e o contorno da coluna para inscrição em
um tom vermelho escuro ainda são visíveis. A inscrição desapareceu por completo.
Sua forma robusta e a face com as orelhas projetadas para frente são típicas do Período
Saíta. A combinação de todos esses traços visíveis aponta para uma figura do tipo 4. (Raven tipo
III) pertencente à XXVI Dinastia.
Como a estatua é sólida, uma cavidade com uma pseudo “múmia-de-grãos” em seu
interior poderia estar localizada na base desaparecida. Como na maioria das estátuas do tipo 4. a
base provavelmente era amarela, talvez com uma borda preta nas laterais. A tampa da cavidade
poderia ser simples ou ter um falcão. A coleção egípcia do Museu Nacional/UFRJ possui um
desses falcões (inv. 106) (BIELESCH, vol. 1, 2010:254 figs. 101 e 102), o qual provavelmente
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representa o deus Sokar, e que servia como tampa para a cavidade no topo da base das estátuas
funerárias de Ptah-Sokar-Osíris. Em geral os falcões costumam seguir a mesma paleta de cores
usada na estátua. O presente falcão também é vermelho como o tronco da nossa estátua e
proporcionalmente também poderia servir de tampa. O único detalhe que talvez indique que o
mesmo não pertencesse à presente estátua, é que a pintura do falcão foi aplicada sobre uma fina
camada de gesso, enquanto a pintura da estátua foi aplicada diretamente sobre a madeira.
A estátua tem 36 cm de altura por 8,2 cm de largura por 6,2 cm de profundidade.
Fig. 7 – inv. 181 [MN-4] frente (BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)
) 22
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Fig. 8 – inv. 181 [MN-4] verso (BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)
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Fig. 9 - comparação da inscrição observada por Kitchen (a) e Bielesch (b) da estátua funerária de Ptah-
Sokar-Osíris inv. 181.
de seu nome, . Pelo tamanho do espaço acima do nome de Osíris, o proscinema parece mais
viável. Abaixo do nome de Osíris temos o provável início de seu epíteto de xnty imntt
(“Primeiro dos Ocidentais”), seguido daquele de nTr aA (“Grande Deus”) e por fim resta apenas
a palavra nb (Senhor). Estes apontam para a sequência de epítetos de Osíris encontrados junto a
seu nome nas estátuas funerárias de Ptah-Sokar-Osíris: “Osíris, Primeiro dos Ocidentais, Grande
Deus, Senhor de Abidos”. Assim, olhando o conjunto teríamos a seguinte inscrição: Htp di nsw
) 24
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wsir xnty imntt nTr aA nb AbDw (Oferendas que o rei faz para Osíris, Primeiro dos Ocidentais,
Grande Deus, Senhor de Abidos).
A estátua tem 32 cm de altura por 7 cm de largura por 5,1 cm de profundidade.
Fig. 10 – inv. 200 [MN-5] frente (BRANCAGLION JR, Antonio, data: nov. 2006)
) 25
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Fig. 11 – inv. 200 [MN-5] verso com tampa aberta (BRANCAGLION JR, Antonio, data: nov. 2006)
A única estátua funerária de Osíris da coleção egípcia do Museu Nacional [MN-5] é uma
estátua do tipo 2.a (Raven tipo IC) de verniz preto. Originalmente usava uma coroa Atef e uma
barba divina. No interior da cavidade de seu tronco volumoso provavelmente possuía um papiro,
possivelmente com a inscrição do “Livro dos Mortos”. Este Osíris assemelha-se àqueles
encontrados no segundo cachette de sacerdotes de Deir el-Bahari. A partir da comparação com
estes, poderíamos datar a nossa estátua funerária de Osíris como pertencente à XXI Dinastia e
considerar que ele seja proveniente de algum sepultamento de um sacerdote ou funcionário do
templo de Amun, na região de Deir el-Bahari. Outro fator que reforça o provável cargo de seu
proprietário é a grande quantidade de objetos pertencentes aos servidores do deus Amun
originários dos sítios arqueológicos da margem Ocidental de Tebas.
Tamanho: 40 cm alt. x 12,5 cm larg. x 6,3 cm prof.
) 26
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Fig. 12 – inv. 203 [MN-6] frente. (autor: BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)
) 27
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Fig. 13 – inv. 203 [MN-6] verso. (BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)
A estátua de Ptah-Sokar-Osíris de inv. 203 apresenta uma forma robusta, com um rosto
arredondado, e com orelhas projetadas para frente, semelhante aos sarcófagos saítas. Da pintura
restam apenas alguns traços de tinta preta de duas fileiras do colar wsx e da borda da coluna
para uma inscrição na frente do tronco. Talvez ela fosse originalmente uma estátua do tipo 4.
(Raven tipo III), devido a seus traços saítas, mas, na falta de maiores detalhes, classificamos ela
como sendo uma estátua do tipo 9.
Como a estatua é sólida, uma cavidade com uma pseudo “múmia-de-grãos” em seu
interior poderia estar localizada na base, que desapareceu.
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A estátua tem 39,3 cm de altura por 10,2 cm de largura por 7,2 cm de profundidade.
Fig. 14 – inv. 204 [MN-7] frente. (BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)
) 29
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Fig. 15 – inv. 204 [MN-7] verso. (BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)
) 30
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Fig. 16 – furo quadrado para encaixe coroa Swty estátua inv. 204 (BRANCAGLION JR, Antonio, data:
jul. 2010).
Este tipo de furo não redondo como nas outras estátuas funerárias de Ptah-Sokar-Osíris
do Museu Nacional/UFRJ é encontrado normalmente apenas em estátuas de maior porte. Sua
forma delgada lembra as estátuas do final da Baixa Época e início do Período Ptolomaico, mas
por falta de maiores detalhes classificamos a mesma como pertencendo ao tipo 9. Na nossa
reconstituição representamos o presente Ptah-Sokar-Osíris usando um colar wsx n bik, o
qual normalmente é usado por estátuas desse período. Como a pintura desapareceu por
completo no local da disposição do colar, apenas podemos supor o uso deste em comparação
com outras estátuas do mesmo período (tipos 5.c, 6.b, 6.c., 7 e 8).
Como a estátua é sólida, uma cavidade com uma pseudo “múmia-de-grãos” em seu
interior poderia estar localizada na base desaparecida. A tampa da cavidade poderia ser simples,
na forma de um falcão, de um falcão sobre um sarcófago ou como um sarcófago na forma da
capela Per-nu, como optamos por ilustrar na nossa reconstituição.
A estátua tem 35,7 cm de altura por 8 cm de largura por 6,5 cm de profundidade. O pino
da estátua para encaixe na base foi serrado.
Bibliografia
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PARA(FALAR(AOS(DEUSES:(ESTUDO(DAS(ESTATUETAS(
VOTIVAS(DA(COLEÇÃO(EGÍPCIA(DO(MUSEU(NACIONAL(
Cintia Prates Facuri
Museu Nacional / UFRJ
Resumo: As estatuetas em bronze, em sua grande maioria representações de divindades, são uma importante fonte
para compreender o comportamento religioso individual dos egípcios antigos a partir da Baixa Época, quando
parece ter havido uma maior liberdade das pessoas em se relacionar com as divindades, sendo um testemunho
material de suas crenças. O presente trabalho visa apresentar um breve estudo sobre as estatuetas votivas em bronze
da coleção egípcia do Museu Nacional / UFRJ.
Abstract: The great majority of the bronze statuettes representing deities can be considered one of the main
evidence of the personal religious practice from the Late Period on, when people seems to have had a greater
freedom to establish a closer relationship with the deities. These objects, offered as gifts for the gods, are important
ways of understanding the personal religious behavior of the ancient Egyptians, being material evidences of their
beliefs. The present study presents a brief study of the bronze votive statuettes of the Egyptian collection of Museu
Nacional / UFRJ.
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boa parte deles possui pequenas dimensões e baixa qualidade, tendo sido ofertados por um
número cada vez maior de devotos.
Ao partir do III Período Intermediário, ao contrário do que ocorreu no Novo Império, a
oferenda de ex-votos às divindades parece ter sido um fenômeno por todo o Egito, e não restrito
ao Alto Egito, como anteriormente. Um ponto importante que deve ser esclarecido é que a falta
de evidências materiais em períodos mais recuados da história egípcia não implica na inexistência
de uma piedade pessoal. Esta sempre existiu, mas só foi manifestada de forma sistemática
tardiamente.
Os Bronzes Votivos
Apesar do fato de que a introdução do bronze tenha sido gradual durante a história
egípcia, é a partir do III Período Intermediário que a maior disponibilidade do material, associada
às propriedades físicas do bronze e o aperfeiçoamento de técnicas de fabricação (por cera
perdida, em sua maioria) permitiram o aumentou da produção das estatuetas votivas. Além disso,
pode-se afirmar que talvez o bronze possuísse uma ligação com a imagem de culto dos templos
(esta feita de metais preciosos), permitindo que as estatuetas em bronze fossem usadas como
substitutas daquelas, dadas as possibilidades cromáticas que o bronze pode adquirir dependendo
da sua liga e de seu polimento.
Praticamente todo panteão egípcio pode ser representado nas estatuetas em bronze,
inclusive representações chamadas de “panteístas”, onde vários elementos de divindades são
somados em uma imagem. No entanto, algumas formas se tornaram mais populares, como as
tradicionais representações do deus Osíris, Ísis Lactante e os gatos da deusa Bastet. As estatuetas
votivas em bronze podem compreender figuras individuais ou grupos de figuras, podendo haver
a figura de um devoto ajoelhado diante de uma divindade, estando estes deuses representados
em suas formas humanas, animais ou híbridas.
As estatuetas em bronze eram ocasionalmente enfaixadas em linho e colocadas em
relicários me madeira. Elas eram depositadas em locais específicos anexos aos grandes templos e
ofertadas o ano todo, mas em momentos específicos, como os festivais religiosos, o ano novo ou
o aniversário de coroação do faraó, as ofertas eram maiores. Com o passar do tempo, estes locais
ficavam lotados de ex-votos (estelas, bronzes, estatuetas em barro e óstracos), então os
sacerdotes promoviam uma “limpeza sagrada” para liberação de espaço. Os bronzes, junto com
outros objetos, eram colocados em poços de descarte, chamados em egiptologia de “cachette”.
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Deusa Leontocéfala
III Período Intermediário – Baixa Época (c. 1070 – 525 a.C.)
Egito, procedência desconhecida
Coleção Fiengo - D. Pedro I
H.13,8 cm
Liga de cobre (bronze)
Nº. Inv. 53
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Descrição
Deusa com cabeça de leoa com os braços estendidos ao longo do corpo e as mãos abertas sobre
a lateral das coxas. Seus pés estão juntos sobre uma base quadrada. Porta peruca tripartite, disco
solar com uraeus, cuja cauda que se estende até a parte posterior do toucado. O vestido justo
revela os contornos do corpo.
Comentário
Representações de deusas leontocéfalas com disco solar e uraeus eram associadas ao “olho do
Sol”, isto é, as Filhas do deus Rê, como as deusas Wadjet, Mut, Mehyt e principalmente Sekhmet.
Suas representações com os braços abaixados e as mãos abertas junto ao corpo são
características associadas ao feminino, imagens de esposas (desde o Antigo Império), rainhas e
algumas deusas que são “companheiras”, como Ísis, Néftis, mas principalmente Sekhmet. Esta é
uma postura que destaca a sua função de companheira e contraparte de um deus, sem estar
segurando algum cajado ou cetro, mas em atitude de marcha, algumas vezes, como se ela
demonstrasse o seu aspecto puramente feminino de deusa/rainha/esposa.
Ísis Lactante
Período Ptolomaico – Período Romano (c. 332 – 30 a.C.)
Egito, procedência desconhecida
Coleção Fiengo - D. Pedro I
H. 8,3 cm
Liga de cobre (bronze)
Nº. Inv. 78
Descrição
Deusa Ísis sentada em um trono hoje inexistente leva a mão direita (fragmentada) ao seio
esquerdo para amamentar Hórus criança sentado em seu como, amparado pela mão esquerda da
deusa na altura de seu pescoço. Hórus criança está nu e porta a coroa dupla. Ísis usa acima de
sua peruca tripartite um modius que sustenta o disco solar contornado por dois chifres de novilha,
em sua fronte aparece uma grande serpente-uraeus. O vestido justo revela os contornos do corpo.
Seus pés estão apoiados em um pequeno escabelo.
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Comentário
De acordo com Tran Tam Tinh (1973: 40), o estudo iconográfico de Ísis Lactante nos leva a
examinar o problema envolvendo a relação entre a religião egípcia e o cristianismo. Muitos
autores afirmam que o esquema iconográfico de Ísis Lactante influenciou fortemente a criação
da imagem de Maria Lactante. Já outros são mais cautelosos, dizendo que ela é somente uma
precursora à representação de Maria e o menino Jesus. Já outros questionam se a devoção dos
egípcios por Ísis Lactante, devoção esta intimamente ligada ao pensamento religioso egípcio,
teria sobrevivido até o cristianismo, originando a imagem da Madona aleitando a Criança. Diante
da ampla gama de suposições devemos estar atentos ao fato de que os autores muitas vezes
misturam o ser parecido com o ser descendente.
Touro Ápis
III Período Intermediário – Baixa Época (c. 1070 – 525 a.C.)
Egito, procedência desconhecida
Coleção Fiengo - D. Pedro I
H. 5,6cm
Liga de cobre (bronze)
Nº. Inv. 45
Descrição
Touro Ápis aqui representado em sua forma usual com disco solar entre seus cornos e uraeus ao
centro. Em sua testa deveria haver uma marca triangular, hoje não mais visível, e porta um colar
em seu pescoço. Suas costas são adornadas com ornamentos representando um escaravelho
alado, um manto estampado e um abutre alado. O touro sagrado está em pé em posição de
marcha, com suas patas esquerdas à frente e as direitas atrás, sobre uma base retangular.
Comentário
Representando a força divina da fertilidade, o touro foi adorado no Egito desde sua Pré-História,
sendo associado também à inundação, e por consequência a Hapi e ao Nilo, e posteriormente a
Osíris senhor do renascimento. Além disso, um dos epítetos do faraó era “touro possante”. O
touro Ápis é a imagem viva de Ptah, senhor de Mênfis, podendo ser chamado de “filho de Ptah”,
atuando como um intermediário na comunicação com o deus criador menfita através de
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oráculos. O touro Ápis, para ser assim então chamado, deve possuir uma série de marcas divinas,
dentre elas, possuir uma pequena marca triangular em sua testa e ter sido concebido por uma
vaca identificada com Ísis, através de um relâmpago. O touro Ápis é representando portando
entre seus cornos um disco solar, uraeus, a marca triangular em sua testa, um grande colar ao
redor do pescoço, sobre seu dorso um manto e um escaravelho ou abutre alado, estando na
maioria das vezes em pé sobre um trenó.
Conclusão
Os bronzes votivos fazem parte de uma sequência de práticas que envolveriam
oferendas, libações, preces, hinos, posturas corporais, ou seja, todo um conjunto de condutas do
fiel para com a divindade que não deixou vestígios, a não ser estas estatuetas. Podemos ver nos
bronzes a marca da devoção pessoal característica da Baixa Época, uma vez que a produção de
imagens divinas em bronze para o uso como ex-votos é claramente mais frequente a partir deste
período.
Os bronzes votivos devem ser vistos como um elemento importante para se
compreender esta forma de expressão religiosa individual, e não somente como meros elementos
ilustrativos dos aspectos formais da arte e da religião egípcia. As estatuetas egípcias em bronzes
representando divindades são uma expressão material da alma religiosa dos antigos egípcios e da
presença e da atuação destas forças divinas em suas vidas.
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TECNOLOGIAS(TRIDIMENSIONAIS(APLICADAS(EM(
PESQUISAS(ARQUEOLÓGICAS(DE(MÚMIAS(EGÍPCIAS(
Simone Letícia Rosa Belmonte
Laboratório de Modelos Tridimensionais, Instituto Nacional de Tecnologia (INT) Rio de
Janeiro, Brasil
Jorge Roberto Lopes dos Santos
Laboratório de Modelos Tridimensionais, Instituto Nacional de Tecnologia (INT) Rio de
Janeiro, Brasil
Núcleo de Experimentação Tridimensional, Pontifica Universidade Católica do Rio de Janeiro
Antonio Brancaglion Júnior
Laboratório de Processamento de Imagens Digitais, Museu Nacional (UFRJ), Rio de Janeiro,
Brasil
Resumo: A Arqueologia é a ciência que investiga o passado humano a partir do estudo de “vestígios e restos
materiais” deixados por povos que habitaram a Terra. Uma abordagem não destrutiva torna-se prioritária para a
preservação de tais tesouros. Construímos modelos físicos e virtuais de múmias egípcias usando Tomografia
Computadorizada, Escaneamento Tridimensional e Prototipagem Rápida. Além de preservarem os originais, essas
tecnologias permitem um aprofundamento nos nossos estudos arqueológicos.
Abstract: Archeology is the science which investigates Man’s past through the study of traces and matters left by
people who inhabited planet Earth. A non-destructive approach is a priority regarding the protection of such
treasure. We build physical and virtual models of Egyptian mummies through Computed Tomography (CT), 3D
scanning and Rapid Prototyping. Besides preserving the findings, such technologies allow us to go deeper in our
archeological studies.
Introdução
A origem da coleção egípcia do Museu Nacional é desconhecida, mas é aceito que
Nicolau Fiengo trouxe essa coleção de Marseille, França, a qual afirmava que era proveniente das
escavações de Giovanni Battista Belzoni. Belzoni alegava que os objetos que vieram para o Brasil
teriam sido encontrados nas suas escavações em Karnak, o “reino de Amon”, e em uma
necrópole tebana. Muitos dos objetos que pertenceram aos Imperadores do Brasil foram
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confirmados como tendo pertencido a sacerdotes e oficiais tebanos, desse modo, confirmando a
proveniência da coleção Fiengo (BRANCAGLION, 2009).
A mumificação artificial foi criada para uso exclusivo das elites, sendo praticada até a
chegada do cristianismo ao Egito. Além de múmias humanas, os egípcios antigos produziram
milhões de múmias de animais de várias espécies por considerá-los como avatares dos deuses
Fiengo (BRANCAGLION, 1999).
A Arqueologia pode ser definida como a ciência que estuda o passado humano a partir
dos “vestígios e restos materiais” deixados pelos povos que habitaram a Terra. Em muitas
ocasiões, uma das grandes dificuldades encontradas nos estudos em arqueologia está ligada a
limitação que alguns materiais possuem devido a sua fragilidade e raridade.
O desenvolvimento de uma abordagem não destrutiva desses materiais torna-se
necessária. Para tal, realizamos a construção tridimensional virtual de múmias egípcias obtendo
todas as suas dimensões e formas, juntamente como escaneamento tridimensional de alguns
materiais encontrados dentro desse contexto.
Desde 2003, o Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ),
juntamente com o Instituto Nacional de Tecnologia do Ministério da Ciência Tecnologia e
Inovação (INT/MCTI) têm coordenado uma série de análises e estudos utilizando tecnologias
de ponta para investigações de remanescentes antigos. Um dos primeiros trabalhos incluiu a
famosa Múmia Sha-Amun-em-su (SOUZA, 2009; BRANCAGLION, 2009). Nesse trabalho,
descrevemos parte da continuidade das investigações feitas nesse material e também incluímos
outros novos materiais, sendo a uma múmia de gato, uma máscara funerária e um pedaço de um
caixão.
Tecnologias Empregadas
Usando tecnologias de Tomografia Computadorizada (TC), Escaneamento
Tridimensional e Prototipagem Rápida (PR), buscamos através das técnicas usadas isolar caixões,
elementos funerários, materiais usados na mumificação, ossos e espaços vazios. Juntamente
utilizamos os arquivos matemáticos virtuais para construção de modelos físicos fiéis que poderão
ocupar acervos e exposições.
Tomografia Computadorizada
A Tomografia Computadorizada (TC) é um método complementar de diagnóstico
médico por imagens, não-invasivo. Trata-se de uma técnica radiológica, porém constitui-se num
aparelho muito mais complexo.
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Scanners 3D
Atualmente existem no mercado, muitos equipamentos de captura tridimensional ou
escaneamento tridimensional de superfície, os quais são desenvolvidos comercialmente para
atendem aos mais variadas aplicações, desde áreas de Engenharia Reversa, Desenho Industrial,
Conservação de Patrimônio, aplicações artísticas e médicas, além de outras áreas das ciências.
Assim tais equipamentos podem oferecer uma série de ferramentas distintas, alguns são
específicos para captura de objetos de grandes proporções, como por exemplo, estátuas,
monumentos, fachadas e até mesmo sítios arqueológicos, há ainda equipamentos próprios para
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uso em objetos de médio porte, como cadeiras, mesas, pessoas, enquanto outros equipamentos
foram desenvolvidos para obter objetos pequenos, como joias, eletrônicos, os quais geralmente
exigem uma captura bem detalhada.
Além disso, os escâneres oferecem uma série de resoluções e precisão distintas,
apresentam versões fixas (ex; Bodyscan) e portáteis, oferecem ou não a opção para captura de
textura e cores. Existem também versões voltadas mais para uso caseiro e outras para uso
profissional. Nós utilizamos duas tecnologias de escâneres 3D as quais descrevemos e
especificamos a seguir:
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Materiais Arqueológicos
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também a presença de amuletos, alocados as proximidades de suas mãos. Alguns outros aspectos
como a presença de olhos artificiais também puderam ser vistos (SOUZA, 2009;
BRANCAGLION, 2009).
Nesse trabalho nós utilizamos as imagens de TC de Sha-Amun-em-su para reconstruir
tridimensionalmente esses objetos, tornando possível a materialização dos mesmos. Para a
reconstrução utilizamos o programa de processamento de imagens médicas Mimics 16.0
(Materialise-Belgium). O programa usa processo de segmentação de imagens para fazer a
reconstrução tridimensional dos materiais analisados. Podemos então analisar imagem por
imagem e editar de modo separado estruturas distintas contidas nos exames, dessa forma, foi
possível reconstruir virtualmente num arquivo CAD, o escaravelho-sagrado, os amuletos, o
corpo ainda envolto nas bandagens e algumas outras estruturas (Fig. 1).
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Fig. 2: Análise dos casulos encontrados no caixão de Sha-Amun-em-su. Em A, imagens de TC, com indicações dos
artefatos encontrados. Em B, reconstrução tridimensional do caixão indicando a localização dos casulos. Em C,
reconstrução tridimensional dos casulos.
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Fig. 3: Em A, modelos impressos em escala 1:10 do caixão e corpo envolto em bandagens da Múmia de Sha-Amun-
em-su, juntamente com o molde transparente. Em B, mostra os modelos impressos já inseridos na exposição
permanente da Sala do Egito, no Museu Nacional.
Esses materiais agora fazem parte da exposição de egiptologia do Museu Nacional, eles
se encontram juntamente com o caixão fechado de Sha-Amu-em-su, de modo que os visitantes
do MN/UFRJ podem agora além de conhecer o caixão com a múmia que pertenceu a Dom
Pedro II, terem revelado o conteúdo do mesmo.
A reconstrução do “escaravelho-sagrado” indicou a presença de um rosqueado nas extremidades
superior e inferior desse objeto, tal formato será importante também para identificar futuramente
o tipo de material, do qual esse amuleto foi confeccionado (Fig. 4).
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Outro novo resultado é a reconstrução do que se acredita ser tecidos, que estão envoltos
na garganta de Sha-Amun-em-su. Os antigos egípcios tomavam muito cuidado com detalhes em
todo o processo de mumificação, certamente esse novo detalhe pode estar relacionado à
importância de Sha-Amu-em-su em vida, podendo refletir e confirmar seu “status” como uma
Sacerdotisa Cantora de Amon (Fig. 5).
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Fig. 6: Amuletos encontrados próximo às mãos Sha-Amun-em-su, preliminarmente identificados, em A, Pilar Djed,
em B, Nó Tit, em C, Plumas e em D, Coluna de Papiros.
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No interior da múmia verificou-se que se tratava de um gato jovem sem a crista occipital
e com dentes de leite. O modelo prototipado do esqueleto indicava o formato do crânio bem
evidenciado, tudo indica ser um Felis catus. Notou-se que há uma fratura na parte posterior do
crânio, e a coluna aparece seccionada entre a cervical C1 e C2, separando a cabeça do corpo, o
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que pode ser um indicativo do método usado para sacrificar esses animais, por tratarem-se do
tipo de fraturas frequentemente encontradas em múmias de gatos (BRANCAGLION, 2013a).
Os modelos prototipados foram também usados na exposição permanente do
MN/UFRJ, na Sala do Egito Antigo, os modelos encontram-se ao lado da múmia original,
expondo aos visitantes os segredos ocultos por séculos sob suas bandagens (Fig. 8).
Fig. 8: Prototipagem Rápida do esqueleto da Múmia de Gato 247 na escala real, mostrada na exposição permanente
do Museu Nacional, ao lado do material original.
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Fig. 9: Em A, escaneamento da Face de Caixão com o equipamento VIUScanTM Handy Scan 3D, em B, arquivo
virtual gerado e em C impressão por Prototipagem Rápida na escala 1:5.
Fragmento de Caixão
O fragmento de um caixão, pertencente ao MN/UFRJ, depositado sob o número de
inventário 2, possui 22,8 cm de altura, 21 cm de largura e cerca de 6 cm de espessura, feito em
madeira estucada, a cena e os hieróglifos são modelados em relevo e pintados com cores
brilhantes, onde predominam o verde e o vermelho. Este fragmento corresponderia ao ombro
direito do caixão, com o entalhe na parte superior feito para encaixar a tampa
(BRANCAGLION, 2013c).
Seu repertório iconográfico era o mesmo dos papiros funerários da época, isto é, versões
do tradicional “Livro dos Mortos”, do “Livro do Amduat” e de “Papiros Mitológicos”
(BRANCAGLION, 2013c).
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Para a captura de superfície tridimensional desse objeto, nós utilizamos o scanner Artec
MHTTM, com opção de captura de textura e cores. Com o arquivo virtual os dados obtidos
tornaram possível a realização um estudo mais apurado da peça.
Com o arquivo CAD, é possível manipular e editar o modelo. Assim, temos a
oportunidade de vê-lo em cores ou mesmo como sem elas (Fig. 10). A visualização em cores
oferece a opção de obter-se a réplica idêntica ao material original, com as mesmas proporções
além de oferecer a opção de impressão colorida do mesmo. A visualização sem cores, porém
com textura permite obter-se em detalhes as camadas de relevo da peça e compreender melhor a
técnica de modelagem aplicada nesse objeto, sem interferência de possíveis artefatos da pintura
(BRANCAGLION, 2013c).
Fig. 10: Sequência de trabalho no Fragmento de Caixão (ni02). Em A, o material original, em B, primeira sequência
de escaneamento com o equipamento Artec MHTTM, em C arquivo final sem adição de cores, e em D arquivo final
em cores.
Conclusões
Os resultados alcançados mostram avanços proporcionados pela utilização destas
tecnologias que permitiram aprofundar e expandir o escopo de estudos realizados na
investigação de materiais e evidências arqueológicas, ligando o passado com futuras tecnologias.
Através das técnicas usadas foi possível isolar caixões, elementos funerários, materiais usados na
mumificação, entre outros, ainda construindo cópias fieis dos mesmos.
Os modelos virtuais ocupam acervos servindo como réplicas idênticas de seus materiais,
podendo desse modo ser usados em muitos tipos de pesquisas científicas, e em alguns casos
facilitando a troca entre instituições, evitando a necessidade de uma peça sair da coleção, no caso
de determinados tipos estudos, à exemplo de leitura do material, estudo da morfologia,
verificação do conteúdo interno de urnas de modo detalhado.
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Abreviações
PR Prototipagem Rápida
TC Tomografia Computadorizada
Bibliografia
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Anexo 1
Especificações de Equipamento
Portátil Sim
Cores 24 bits
Anexo 2
Especificações do Equipamento
Portátil Sim
Textura 1.3 mp
Cores 24 bpp
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Parte 2
O período de Amarna no Egito antigo
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AMARNA:(PINTANDO(UMA(NOVA(PAISAGEM(
Rennan de Souza Lemos
Museu Nacional, UFRJ
Resumo: Este ensaio apresenta, em linhas gerais, o panorama atual dos estudos sobre o período de Amarna no
Egito antigo. Hoje em dia, dispomos de novos dados provenientes de escavações em Amarna que nos permitem
pintar um novo quadro sobre a cidade construída pelo faraó Akhenaton. É hora de voltarmos nossa atenção a
velhos e novos dados com base numa abordagem teórica que nos permita superar afirmações difundidas, porém
infundadas, e ao mesmo tempo construir outras novas.
Abstract: In this essay we present the current panorama of the studies on the Amarna Period in ancient Egypt.
Nowadays we do have new data coming from excavations at Amarna that makes us able to paint a new landscape of
the city of Akhenaten. It is time to pay attention both to old and new data with theory in mind. It will make us able
to overcome old unsubstantiated claims and at the same time to construct new perspectives.
Esta apresentação se baseia em um texto maior publicado livro coletivo O Egito antigo
– novas contribuições brasileiras. A publicação reúne somente estudantes envolvidos em
pesquisas que lidam com o Egito antigo, o que expressa o momento de crescimento pelo qual
vem passando os estudos brasileiros sobre o Egito antigo.
Aqui, diferentemente do que faço no texto mencionado – ou seja: desenvolver uma
perspectiva, a meu ver, nova para a interpretação do período de Amarna no Egito antigo,
aliando, um pouco em moldes pós-processuais, teoria e dados –, tratarei da renovação dos
estudos sobre Amarna em geral.
Tell el-Amarna, ou simplesmente Amarna, foi a cidade construída por grande força de
trabalho a mando do faraó Akhenaton em meados do século XIV a. C. na região central do
Egito. Na Antiguidade, era designada Akhetaton – o horizonte do Disco Solar. Isto porque se
tratava de uma cidade planejada, dedicada ao deus Aton, simbolizado pelo Sol propriamente dito,
e em cujos templos e outras estruturas religiosas realizava-se o culto a este deus.
Mas talvez esta não tenha sido a característica principal da cidade de Amarna. Pelo
contrário, o que imediatamente me salta aos olhos é a diversidade da vida nesta cidade. Amarna
foi planejada e sua composição urbana e social é desde muito tempo explorada (a obra mais
atualizada sobre Amarna é: KEMP, 2012). Porém, a maior parte da cidade vivida se auto-
organizava de acordo com os anseios dos que lá tinham suas casas, trabalhavam, enfim,
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experimentavam e construíam a paisagem, o que pode ser constatado nas próprias construções
da cidade e na necrópole (LEMOS, 2014).
O período de Amarna é um dos mais controversos da Egiptologia. Isto acontece devido
às grandes lacunas existentes em nosso conhecimento sobre a história deste período, e
igualmente por conta das mais variadas apropriações do passado por parte de grupos atuais.
A Escola dos Annales há muito já alertou os historiadores para o fato de que o passado é
uma construção do presente, na medida que as questões que formulamos a respeito dos tempos
históricos são fruto do contexto em que vive o pesquisador. Igualmente, a Arqueologia Pós-
processual nos alertou para a multivocalidade que rodeia a todo tempo objetos e sítios
arqueológicos, e para o fato de que o passado pertence a nós mesmos.
Admitir a multivocalidade, entretanto, não anula o fato de que existem certos
procedimentos que asseguram a Arqueologia de um certo rigor que valida o conhecimento por
ela produzido. É claro que tanto o conhecimento acadêmico quanto o não acadêmico são
igualmente válidos ao se tratar do passado. Porém, é preciso que estejamos atentos para as
deturpações que essas diferentes vozes sobre o passado podem cristalizar como sendo verdades
únicas, o que pode, de certa forma, prejudicar o conhecimento produzido pelas ciências sociais –
dentro delas, a Arqueologia.
Isto ocorre com Akhenaton e o período de Amarna. Paralelamente à Egiptologia,
apropriaram-se de Akhenaton, por exemplo, o movimento negro nos Estados Unidos, o
movimento homossexual, grupos místicos distintos etc. (MONTSERRAT, 2000; CARDOSO,
2004a). Não raro podemos encontrar os discursos deturpados (no sentido de não serem
corroborados pelo registro arqueológico ou pela documentação textual) refletidos na
Egiptologia.
Cyril Aldred, por exemplo, defendeu teses patológicas acerca de Akhenaton e
argumentou uma suposta relação homossexual entre o faraó e Smenkhare. Aldred afirmou,
ancorado na iconografia do período:
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O livro mencionado de Aldred é datado e ele mesmo reviu algumas das assertivas
presentes na obra em livro posterior (ver CARDOSO, 2004b). 1 De qualquer forma, é um
exemplo de como o conhecimento egiptológico pode ser influenciado por diferentes discursos
sobre o passado.
Outro problema envolvendo Amarna é a idealização de Akhenaton e de sua cidade. Erik
Hornung afirmou, por exemplo, que a Amarna foi uma “cidade de villas e palácios”
(HORNUNG, 1999: 96). Esta é claramente uma afirmação idealizada, basta que se analise o
urbanismo e a auto-organização da cidade de Amarna, o que, em conjunto com novos dados
bioarqueológicos disponíveis, constrói uma imagem bastante diferente da época (DABBS, ROSE
and ZABECKI, 2014).
O caso de Akhenaton e Amarna é tão emblemático que Bruce Trigger nos alertou para o
fato de que a fronteira entre os estudos históricos e a ficção história se tornou nebulosa
(TRIGGER, 1981: 165). O autor se refere justamente a este fenômeno de apropriações e
deturpações que geraram uma série de diferentes histórias sobre Akhenaton e o período de
Amarna. Novamente, não se trata de desqualificar as diferentes vozes, mas sim de estarmos
atentos às apropriações e deturpações do passado, não deixando assertivas que não são
corroboradas por dados se sustentarem, sobretudo quando tais apropriações do passado se
tornam instrumentos políticos para a dominação (ver MOTTA, 2012). A Arqueologia tem o
dever ético de denunciar esses casos.
Trigger propõe como saída um caminho que não é nenhuma novidade, mas que deve ser
constantemente lembrado especialmente aos egiptólogos: aliar teoria e dados na interpretação do
passado. Ele ainda deixou claro que, em alguns casos, somente o aparecimento de novos dados
poderia nos ajudar a entender o passado amarniano. Hoje em dia, de fato, é isto que acontece.
Trigger adianta, em Egiptologia, a passagem do foco no texto para o contexto,
perspectiva defendida por Willeke Wendrich (2010) e que indica a importância da reflexão
teórica sobre os dados disponíveis, afim de que possamos criar construções mais realistas do
passado. Os egiptólogos, pouco afeitos à teoria, somente há pouco tempo têm prestado atenção
a isto, apesar de não ser algo novo em nossa disciplina (ver p. ex. KEMP, 1989, 2006;
TRIGGER, KEMP, O’CONNOR and LLOYD, 1983).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1 De fato, a obra de Cyril Aldred terá que ser revisitada pela Egiptologia face à descoberta, na tumba de Amenhotep
Huy em Assasif, de um forte indício da co-regência entre Amenhotep III e Akhenaton (para a nova descoberta, ver
VALENTÍN, 2014), embora ainda não comprovada e aceita pelos egiptólogos (ver DODSON, 2014).
2 Projeto de mestrado em andamento desenvolvido por mim no Programa de Pós-graduação em Arqueologia do
A falta de uma abordagem teórica aos dados gera interpretações que não condizem com
os procedimentos de uma ciência social, mas sim expressam, mais do que tudo, as concepções e
opiniões do próprio autor. Além da tese já citada e Aldred, mais recentemente, Nicholas Reeves
pintou um quadro sobre um Akhenaton elitista e fanático que impôs às pessoas a sua nova
religião. Reeves, por exemplo, diz que
Esse tipo de visão sobre Akhenaton é seguida também por Marc Gabolde, que diz, sobre
o urbanismo de Amarna: “(...) apesar da indiferença manifesta do faraó em relação à urbe
propriamente dita e seus habitantes, a cidade se desenvolveu e sua urbanização progrediu
rapidamente” (GABOLDE, 2005: 59).
Nada disso pode ser provado ou é corroborado por dados, muito menos por teoria. É
expressão, em Egiptologia, da linha nebulosa entre ciência social e ficção sobre a qual nos alertou
Trigger. Tratam-se de afirmações que mais expressam as visões pessoais de cada autor do que de
fato o contexto, o qual se pode acessar – não diretamente, é claro – a partir do registro
arqueológico.
Neste ensaio, nosso objetivo é mostrar a gradativa superação desse cenário especulativo.
Isso se faz mais importante ainda no contexto atual: hoje nós temos novos dados disponíveis
que nos permitem complexificar as discussões e construir uma nova visão sobre o período de
Amarna.
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humano. Esses textos também nos informam sobre o planejamento urbano da cidade, como por
exemplo a localização dos principais edifícios administrativos e religiosos.
Apesar da consagração de toda a paisagem ao Aton, o planejamento urbano da cidade se
restringia a algumas partes, sobretudo à Cidade Central, onde se localizam os templos ao Aton, o
palácio e a residência do faraó e outros edifícios administrativos. Essas construções eram feitas
de blocos de pedra (articulados com argamassa de gipsita), um material durável, diferentemente
das demais construções da cidade, feitas de tijolos de barro (sobre os materiais de construção de
Amarna ver KEMP, 2012).
Em Amarna, as casas eram construídas de uma maneira que hoje em dia seria
considerada inapropriada devido às suas formas completamente irregulares, localizando-se muito
próximas umas das outras e muitas vezes ligando-se entre si, sendo separadas somente por um
muro, o que causa alguma dificuldade em distinguir casas diferentes nas escavações. Os
tamanhos delas variavam: havia casas grandes e casas pequenas. As primeiras certamente serviam
de habitação a pessoas de status social elevado, membros da elite de Akhetaton. Conectadas às
casas maiores, localizavam-se as menores, que serviam para abrigar os serviçais das casas
grandes. Afastadas do Nilo, essas casas maiores possuíam celeiros para seu suprimento – mas
também para suprir as casas menores – e poços para armazenamento de água, o que
possivelmente significa que serviçais tinham que ir e vir constantemente do Nilo, carregando
recipientes de cerâmica com água, cujos cacos podem ser vistos atualmente por todo o sítio.
Essas pessoas, caminhando pelas ruas irregulares da cidade que cresciam de acordo com as
formas das casas que se expandiam segundo desejos individuais e determinações sociais que
variavam de acordo com os habitus de classe, garantiam a diversidade social e prática de Amarna.
A essa diversidade social e prática, ligava-se também uma diversidade de crenças, afinal, as
mesmas pessoas que habitavam as casas grandes e pequenas dos subúrbios de Amarna e que
circulavam pelas ruas irregulares da cidade, possuíam seus amuletos, suas capelas privadas, seus
altares domésticos e seus deuses de devoção, tal como se pode concluir a partir do que foi e do
que está sendo escavado.
Os vestígios arqueológicos da cidade de Amarna nos mostram, então, que em vez de ser
considerada como expressão da nova religião de Akhenaton – ou ainda de um projeto político,
algo de que tendo a discordar (LEMOS, 2014: 199) –, Akhetaton fora, em sua maioria, uma
cidade auto-organizada (SPENCE, 2013: 71-72). Assim, o principal elemento estruturante da
paisagem de Amarna fora a diversidade da vida social, que abria espaço, tanto em nível estatal,
como iremos ver com o exemplo seguinte, quanto popular, para a prática de escolhas individuais,
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seja em matéria de organização de moradias, oficinas etc., ou de “forças espirituais” nas quais
acreditar.
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importado com as pessoas de sua cidade: Akhenaton abriu espaço para que os fiéis pudessem
participar do culto ao Aton também no Grande Templo ao Aton, o centro religioso de Amarna.
Assim, mesmo que geralmente interpretada puramente como intervenção estatal, a
Cidade Central também era expressão da diversidade da paisagem, onde os habitantes de Amarna
também poderiam se engajar ritualmente no culto ao Aton.
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crenças funerárias das camadas menos abastadas da população, pessoas estas que não são
acessíveis através dos textos hieroglíficos, produzidos e consumidos pela ínfima elite letrada.
O Cemitério das Tumbas do Sul não nos trouxe somente os objetos produzidos pelas
pessoas que viveram em Amarna, mas também as próprias pessoas. Seus ossos foram
preservados, posicionados, em alguns casos, como na ocasião do sepultamento. Associados a
amuletos, colares, e a outros corpos sepultados; com estilos de penteado diversos, lesões e outras
patologias típicas que indicam que essas pessoas não possuíram uma vida tão boa, esses corpos
são expressão da individualidade daqueles que viveram no Egito antigo, daqueles que
experimentaram e construíram a paisagem de Amarna e que conferiram a ela seu elemento mais
marcante: a diversidade da vida.
O Cemitério das Tumbas do Sul também nos permite entender melhor o período de
Amarna. Através de comparações com outros cemitérios do Reino Novo, podemos colocar
Amarna em contexto e entender melhor, através dos costumes e concepções funerárias da
maioria da população, as mudanças e permanências na longa duração.2
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2 Projeto
de mestrado em andamento desenvolvido por mim no Programa de Pós-graduação em Arqueologia do
Museu Nacional, UFRJ.
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Alemanha. A América Latina pode dar uma grande contribuição no sentido de perceber a
diversidade social, as distinções sociais entre os diferentes grupos, a criatividade na adaptação de
novas crenças a tradições antigas, num processo de emaranhamento que gera algo novo
(HODDER, 2012).
Na paisagem de Amarna chocaram-se tradição e inovação e, desse processo, novas
práticas e novas concepções surgiram, materializadas na malha urbana, no Grande Templo ao
Aton, na economia da cidade e na necrópole. Nesse momento, a diversidade social e a
individualidade floresceram, num processo dialético de interpretação individual da inovação e na
manutenção das tradições, modificadas, no entanto. Como nos diz Leandro Konder, filósofo
marxista brasileiro recentemente falecido, “a história é feita de sujeitos que sempre tomam
iniciativas, sempre alteram as coisas e se transformam a si mesmos. Mesmo o que perdura, ao se
perdurar, se modifica. Nada escapa (...) à mudança promovida pela intervenção ativa dos sujeitos
(que somos nós). A história é um movimento incessante, que se realiza, afinal, num tempo
incompleto, inacabado” (KONDER, 1999: 14).
Bibliografia
) 73!
!) )
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) )
) 74!
!) )
Semna!–!Estudos!de!Egiptologia!I!
) )
VALENTÍN, Francisco José Martín (2014), Proof of a long corengency between Amenhotep III
and Amenhotep IV found in the chapel of vizier Amenhotep-Huy (Asasif Tomb 28), West
Luxor, KMT: a modern jornal of ancient Egypt, 25, 2, p. 17-27.
WENDRICH, Willeke (2010), Egyptian archaeology: from text to context, in Willeke Wendrich
ed., Egyptian Arcaheology, London, Blackwell, p. 1-14.
) 75!
!) )
Semna!–!Estudos!de!Egiptologia!I!
) )
AS(REPRESENTAÇÕES(DA(FAMÍLIA(REAL(AMARNIANA(E(A(
CONSOLIDAÇÃO(DE(UMA(NOVA(VISÃO(DE(MUNDO(
DURANTE(O(REINADO(DE(AKHENATON((1353E1335(A.C.)(
Gisela Chapot
PPGH/UFF
Resumo: Pretendemos, nesta comunicação, demonstrar de que maneira as representações imagéticas da família real
amarniana, nos contextos litúrgicos e de intimidade régia foram determinantes para construir e sustentar uma nova
visão de mundo desmitologizada, introduzida pelo faraó Akhenaton durante a reforma de Amarna, no século XIV
a.C.
Abstract: We intend, in this paper, demonstrate how the iconographic representations of the Amarnian royal family
in contexts of liturgy and within the royal intimacy were crucial to build and to sustain a new world view
demythologized, introduced by pharaoh Akhenaten during his reign, the so called Amarna age, in the fourteenth
century BC.
Em um estudo acerca das concepções de mundo do antigo Egito, Jan Assmann notou
que mesmo dentro da “unidade teopoliítica indivisível” em que Estado e Religião repousavam no
Egito faraônico havia tensão e esta pôde ser vislumbrada na formação de cosmovisões diversas,
as quais possuíam dimensões religiosa, cósmica, política, social e antropológica próprias
(ASSMANN, 1989: 56).
Segundo David O’Connor, a visão de mundo de uma sociedade pode ser definida como:
“o modelo ou até mesmo a visão compartilhada por muitos, talvez a maioria de seus membros, a
respeito de como o cosmos surgiu, seu funcionamento, e sobre o local e papéis desempenhados
pela humanidade dentro do processo cósmico” (O’CONNOR, 1998: 128-129). O processo
cósmico, por sua vez, é entendido pelo autor como as formas complexas as quais o cosmos era
imaginado para funcionar a fim de continuar produtivo e estável.
Ao longo da décima oitava dinastia, a tensão entre “paradigmas conflitantes” tornou-se
tão latente que Assmann os classificou em três categorias: uma “concepção clássica”, baseada em
um cosmos acossado por forças caóticas cotidianamente, cujas raízes remetem ao Reino Antigo,
e apesar de sofrer variações e sofisticações ao longo do tempo, manteve-se ancorada no rito
associado à magia e ao mito, visão que Assmann designou como “teo-politologia da
manutenção”. Esta cosmovisão tradicional dos antigos egípcios pode ser sintetizada em uma
passagem conhecida na Egiptologia como “O faraó como um sacerdote solar”, um texto
originado no Reino Médio que especifica as funções que deveria exercer o faraó enquanto um
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sacerdote do deus solar Ra. Tal “tratado” apresenta uma divisão “oficial” dos cosmos, revelando
um “universo moral” formado pelos deuses, pelos mortos absolvidos por Osíris, pela
humanidade e pelo próprio faraó, que atuava em prol de Maat para manter o universo ordenado,
rechaçando a transgressão, Isefet (ASSMANN, 1989: 63).
Durante o reinado de Akhenaton, no século XIV a.C., observamos o nascimento de uma
“concepção amarniana”, fundamentada em uma “cosmologia positiva” que se voltava contra o
“drama cósmico” da concepção tradicional e tornou-se emblemática por abrir mão de
construções míticas, dispensar a magia, negar a morte e o mundo ctônico osiriano, assim como o
caos, outrora tão ameaçador, algo que Assmann particularmente enfatiza em seu estudo. Em
contrapartida, a cosmovisão altamente otimista no que tange à preservação universal, acentuava a
luz emanada pelo do disco solar como fonte única e imprescindível para sustentação da vida,
gerada a partir de seu movimento diário que também criava o tempo. Como um deus de luz, o
“Aton vivo” - cujo conceito pictórico era uma esfera dotada de raios terminados em mãos - não
tomava a palavra, tampouco participava de narrativas míticas ou tinha qualquer elo com a
humanidade. Sua relação direta era única e exclusivamente com seus representantes
antropomórficos, aqueles que o representavam diante da humanidade: Akhenaton, Nefertíti e
suas filhas.
Em seu estudo sobre as concepções de mundo egípcias, Assmann também considerou a
chamada “piedade pessoal”, ou seja, a relação direta das pessoas com divindades específicas, sem
passar pelo crivo do faraó ou dos templos, que não abordaremos nesta seção, mas foi o foco das
atenções do egiptólogo alemão no mencionado artigo.
Como base nas documentações textual e imagética referentes ao período de Amarna
(1353 -1335 a.C.), observamos que a nova cosmovisão de Akhenaton encontrou formas muito
particulares de expressão, as quais classificamos como: “expressão religiosa”, proclamada através
dos hinos e nomes didáticos do Aton e suas “expressões físicas”, por intermédio das
representações artísticas da família real amarniana, tema desta comunicação, mas também
notáveis na concepção arquitetônica da capital Akhetaton, dotada estruturas palaciais, templárias
e funerárias imbuídas de forte simbolismo solar.
Durante a reforma de Amarna, o faraó Akhenaton iniciou uma série de modificações
artísticas, sem, contudo, suprimir as regras canônicas vigentes, ou seja, padrão oficial para
representações iconográficas egípcias foi mantido, embora suavizado em alguns contextos.
Movimento, velocidade, profundidade, dramaticidade, emoção e imediatismo foram novos
elementos incorporados às composições do período, que as tornaram facilmente reconhecíveis
dentro do conjunto imagético que restou do antigo Egito.
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forma: “culto ao Aton”, “intimidade da família real” e “exibições públicas”, este subdividido em
janela das aparições, “deslocamentos régios”, “recepção de tributos estrangeiros” e “aparições
diversas”.
Tais cenas podem ser encontradas não apenas no ambiente templário, mas invadiram o
universo funerário - tanto as tumbas da elite, em Tebas e Amarna, como a tumba real - bem
como o âmbito doméstico. Para esta comunicação selecionamos dois exemplares relativos às
temáticas culto ao Aton e intimidade da família real a fim de realizarmos análises mais apuradas
das mesmas.
1-
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(MURNANE, 1995: 76). Por isso mesmo, o disco solar era venerado no céu e suas
representações eram feitas somente em duas dimensões.
Nas cenas rituais, Akhenaton e Nefertíti geralmente apresentam oferendas de flores, um
traço do culto heliopolitano muito comum em Amarna, além de libações, alimentos, incenso, ou
demonstram sua devoção com os braços erguidos em adoração ou, como em exemplares de
Karnak e Heliópolis, prostrados diante do deus Aton, que, em retorno, estende os símbolos da
vida, ankh, às narinas do casal real. Muitas vezes o Aton é retratado tocando vorazmente com
suas múltiplas mãos o que era oferecido.
A imagem 1 apresenta o fragmento de uma balaustrada proveniente do lado direito de
uma rampa do Grande Palácio, em Tell El Amarna. Akhenaton e Nefertíti fazem libações ao
disco solar, enquanto sua filha mais velha, Meritaton, chacoalha um sistro sem qualquer alusão
mítica atrás deles em uma composição diagonal típica das balaustradas.
A rainha veste um longo vestido plissado com abertura frontal que deixa os contornos de
seu corpo visíveis. Akhenaton utiliza um saiote mais curto até o joelho e a coroa branca com
uma faixa longa na parte de trás da cabeça. Meritaton, por sua vez, usa um vestido semelhante
ao da rainha e uma traça lateral, típica das crianças da realeza.
A androginia visível deixa corpos e rostos bastante estilizados, quase caricaturais, marca
registrada da arte amarniana em seus primeiros anos, em função de sua associação com primeiro
nome didático do deus de Amarna “Ra-Harakhty, que se alegra no horizonte, em seu nome de
Shu que está no Aton”, vigente até o ano oito de reinado e formulado antes das modificações
artísticas serem implementadas (BAINES, 1998: 289).
A mescla de elementos masculinos e femininos, visível, sobretudo, no casal real,
Akhenaton e Nefertíti, tinha intenções puramente teológicas: ambos foram identificados com
Shu e Tefnut, divindades geradas pelo demiurgo Atum-Ra, deus solar crepuscular e
antropomórfico, que criou o universo sem o auxílio de uma consorte e que possuía elementos
masculinos e femininos em sua natureza (CARDOSO, 2012: 66). Após emergir do Nun, as águas
caóticas que antecedem a criação, Atum “espirrou” e “cuspiu” Shu e Tefnut, respectivamente,
deuses feitos de sua mesma substância e que refletem, portanto, sua androginia original.
O deus Aton, demiurgo criador, segundo a visão de mundo amarniana, desprovido de
consorte, possuía, igualmente, elementos femininos e masculinos em sua natureza e, deste modo,
tal androginia também se refletia naqueles que eram consubstanciais com ele, Akhenaton e
Nefertíti, hipóstases solares, que formam com Aton uma “trindade teocrática” dentro da nova
cosmovisão (ASSMANN, 2013: 82).
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Imagem 2.
In: FREED, Rita E, MARKOWITZ, Yvone J and D’AURIA, Sue H. eds. (1999) Op.cit., p.220, peça 53.
Esta peça conhecida como Estela de Berlim, utilizada para veneração em capelas privadas
presentes nas casas da elite de Tell El Amarna, é, certamente, um dos exemplares mais
emblemáticos da reforma amarniana. O chamariz da cena é a intimidade da família, aqui
representada por Akhenaton, Nefertíti, Meritaton, Mekataton e Ankhsenpaton, retratados em
relevo cavado em profundidade no estilo extremo característico dos anos iniciais do reinado. A
presença de cartouches contendo o primeiro nome didático do Aton no topo da estela é um forte
indício que a mesma foi produzida até o ano 8.
O grupo familiar, que esbanja afagos e carícias jamais vistos no âmbito da realeza em
termos imagéticos, está informalmente sentado sob os raios do Aton no alto da cena em uma
estrutura que já foi considerada pelos egiptólogos como sendo uma sala no palácio, um pequeno
quarto de nascimento, para Arnold, e um quiosque a céu aberto, na visão de Aldred (FREED,
1999: 220).
Akhenaton utiliza a coroa keperesh, típica dos faraós da décima oitava dinastia, circundada
por um uraeus, além de um saiote plissado, e ergue a primogênita, Meritaton, para dar um
carinhoso beijo paternal. Em sua frente, Nefertíti traja sua coroa de topo plano, que alude à
deusa Tefnut, repleta de cobras, sendo um delas, pendente em seu rosto, tocada pela filha mais
nova, que repousa em seu ombro muito à vontade. Em seu colo a rainha segura a mão de
Mekataton, que, tal como Meritaton, aponta na direção contrária. A rainha usa um vestido
) 82!
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comprido também plissado e transparente que revela suas formas arredondadas, uma
preferência, como já assinalamos, dos “artistas” amarnianos.
Notemos que é possível distinguir entre pé esquerdo e direito, uma particularidade da
arte do período, que também proporcionou um tratamento refinado às mãos de Akhenaton,
Nefertíti e suas filhas, em como nesta composição (ALDRED: 1980: 176).
Ao contrário da imagem anterior de culto ao Aton, onde a desproporção entre os
tamanhos do rei e da rainha é notável, aqui a disparidade diminuiu drasticamente tornando
Akhenaton e Nefertíti praticamente equiparados, algo recorrente no grupo temático contendo
cenas de intimidade da família real.
Um aspecto importante na imagem 2 diz respeito a uma construção circular do espaço,
que torna a relação das figuras exibidas mais próxima e mais intimista. Davis provou a existência
de uma organização concêntrica nas composições, cujo ponto focal é o gesto das filhas de
Akhenaton (DAVIS, 1978: 388). Além disso, a forma como os corpos das crianças e do casal real
estão sobrepostos nos dá uma sensação de profundidade, certa tridimensionalidade, pouco
comum na arte egípcia.
Um ponto a ser destacado é que em Amarna, as crianças deixam de ser representadas
como pequenos adultos, com um dos dedos na boca, e passam a ser retratadas em gestos típicos
da infância (ALDRED, 1980: 174). Dorothea Arnold sugere que o ato de apontar seja, neste
caso, apotropaico. Na arte egípcia tradicional, tal gesto mágico era realizado para evitar o mal. A
autora usa o exemplo do nascimento de um bezerro, para proteger o recém nascido. Portanto,
nesta estela, as crianças desempenham um papel de proteção da casa, do nascimento, como
faziam Bes e Tauret (ARNOLD, 1996: 100-102).
O repertório imagético apresentado nesta comunicação corrobora a ideia de que, durante
a reforma de Amarna, a supressão de elementos míticos da visão de mundo e do antigo panteão
“constelativo” foi substituída por assuntos referentes à família do faraó Akhenaton, não apenas o
que concernia o âmbito litúrgico, mas também sua intimidade, seus deslocamentos, suas
aparições públicas, expostas ad nauseam nos relevos templários, nas tumbas de particulares, no
exterior de edifícios públicos e nos altares domésticos de Akhetaton.
Akhenaton, Nefertíti e suas filhas materializavam a presença divina e, por isso, mesmo,
suas aparições públicas tinham um quê hierofânico. Ao antropomorfizar o poder supremo, este
grupo sagrado usurpava papéis antes delegados às mais diversas divindades do rico panteão
egípcio, como Maat, Ísis, Osíris, Bes, Tauret e o próprio Amon-Ra, rechaçado veementemente
da nova visão de mundo.
) 83!
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Parte 3
Economia e sociedade no Egito faraônico
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HIERARQUIA(E(MOBILIDADE(SOCIAL(NO(ANTIGO(EGITO(DO(
REINO(NOVO(
Nely Feitoza Arrais
UNILASALLE-RJ
Resumo: A presente contribuição pretende demonstrar a estrutura sócio-hierárquica do Egito Antigo a partir da
análise da biografia de Ahmés, filho de Ibana, importante personagem da história política dos primeiros faráos da
XVIIIa dinastia que abre o Reino Novo cuja biografia nos permite analisar em especial a problemática sobre a
mobilidade social no Egito faraônico.
Abstract: This brief paper aims to demonstrate the social hierarchy of ancient Egypt by means of the biography of
Ahmes, son of Ibana, which was an important name in the politic of the first pharaohs of the XVIII dynasty of the
New Kingdom. His biography allows us to analyze specially the problem of the mobility in the pharaonic Egypt.
Cabe lembrar aqui o universo ideológico da elaboração de uma biografia na sociedade egípcia
faraônica, iniciando pela análise do que podemos conhecer sobre a concepção de mundo
particular à esta sociedade.
Para os antigos egípcios os elementos do Universo eram consubstanciais. Isso significa
uma ausência de distinção entre o natural, o sobrenatural e o social. O homem, as organizações
sociais - como a monarquia divina - a fauna e o meio-ambiente, tudo fazia parte de um todo
como em uma concepção holística ou monista do universo.
A biografia aqui escolhida, a de Ahmés, o filho de Ibana, data do início do Reino Novo,
fase de profunda reestruturação ideológica, uma vez que se encontra no limiar de um período de
centralização crescente do poder nativo que havia sido profundamente abalado pela dominação
estrangeira no Segundo Período Intermediário. Ideologicamente, a classe dominante egípcia
recuperou historicamente esta fase como um período negativo e impôs esta marca na sociedade
resultando em uma memória coletiva de abominação contra a dominação estrangeira apesar da
grande ‘egipcianização’ dos próprios invasores hicsos em sua permanência em solo egípcio durante
mais de um século (SHAW, 2000).
A biografia de Ahmés, filho de Ibana, é utilizada de há muito pelos egiptólogos que
trabalham com o tema militar. O título de Almirante tornou-se conhecido pela tradução de Kurt
Sethe e Georg Steindorff que reproduziram o texto da biografia na clássica coleção Urkunden des
ägyptischen Altertums (SETHE, 1927) uma seleção de peso com as mais variadas inscrições e textos
de cunho histórico-biográficos e religiosos que tinha por objetivo divulgar e ampliar a área de
estudos do antigo Egito, facilitando o acesso a essas fontes.
Ahmés serviu como chefe dos marinheiros sob três faraós: Ahmés I, fundador da XVIIIa
dinastia, a primeira do Reino Novo; Amenhotep I e Tutmés I, englobando aproximadamente os
anos de 1580-1520. Os relatos das batalhas são, em conjunto com a biografia de Ahmés Pen-
Nekhbet, as únicas descrições pormenorizadas da expulsão dos hicsos do Vale do Nilo e da
retomada do poder nativo nas mãos de um faraó. A estela de Kamés, outro documento
importante para a o conhecimento da luta contra os hicsos, retrata apenas o início da revolta.
Pelo relato de Ahmés, filho de Ibana, à tomada de Avaris sucedeu-se a perseguição aos
hicsos até Sharuhen (cidade situada ao sul de Canaã). Após seis anos de cerco a cidade caiu em
poder dos egípcios que tomam o controle da região. Ahmés retorna ao Egito e precisa pacificar a
região da Núbia, ao sul do vale, que havia se tornado independente durante o domínio
estrangeiro. Revoltas internas também parecem ainda sacudir o Egito. Ahmés nomeia dois
líderes, Aata e Tetian que teriam sido derrotados. Não se pode precisar a origem destes líderes, se
nativos ou estrangeiros. Sob Amenhotep I, Ahmés e as tropas retornam à Núbia e mais uma vez
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sob Tutmés I, o que parece indicar uma tensão constante na região. É sob este faraó que Ahmés
é nomeado “Chefe dos Marinheiros”. A expedição à Síria de Tutmés I é a última relatada por
Ahmés. Nesta expedição as tropas egípcias atingiram a cidade de Naharina, na região da
Mesopotâmia.
A inscrição original encontra-se ainda nas paredes de seu túmulo em El-Kab (EK 5),
onde pode ser vista atualmente, embora apresente muitas lacunas no texto resultantes da
deterioração desde sua descoberta. Segue abaixo o texto traduzido.
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3 Tradução realizada pela autora (ARRAIS, 2011).
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Em seguida Sharuhen foi sitiada durante 6 anos. Sua Majestade a tomou. Então eu trouxe
de lá duas mulheres e uma mão e, novamente o ouro me foi ofertado e os prisioneiros me foram
dados como escravos.
Após massacrar os asiáticos, Sua majestade subiu o rio em direção à Khent-em-nefer
para destruir os núbios. Foi um grande massacre. Eu trouxe de lá meu butim: dois homens vivos
e três mãos. Fui novamente recompensado com ouro e as duas mulheres me foram entregues.
Sua majestade desceu então o rio em direção ao norte, o coração feliz, forte e poderoso, pois
havia conquistado os países do sul e do norte.
Então Aata dirigiu-se para o sul (do Egito); seu destino desde então estava perto de seu
fim. Os deuses do Alto Egito o bateram???. Sua majestade o encontrou em Tent-taa-mu e o
trouxe prisioneiro e todo o seu povo foi tomado como butim. Eu trouxe dois soldados,
prisioneiros, oriundos do barco de Aata. Foi-me dado cinco cabeças e muitas extensões de terra
– cinco arouras – em uma cidade. O mesmo foi feito com todos os marinheiros.
Veio então um inimigo vil de nome Teti-an. Ele reuniu consigo homens maus de
coração. Sua majestade o matou e suas tropas ficaram como se nunca houvessem existido. Foi-
me dado três cabeças e campos – cinco arouras em minha cidade.
Eu conduzi por barco o rei do Alto e do Baixo Egito Djeserkara quando este retornou
ao país de Kush para ampliar as fronteiras do Egito. Sua Majestade atingiu este núbio vil no meio
de seu próprio exército e ele foi conduzido acorrentado. Do seu exército nada sobrou. Os que
fugiam eram derrubados para os lados como se não existissem.- Eu estava a frente de nosso
exército e lutei bravamente. Sua Majestade presenciou minha bravura. Eu trouxe duas mãos e as
entreguei a Sua Majestade.- Depois buscamos o povo e o gado do inimigo vencido. Trouxe um
prisioneiro o qual ofereci à Sua Majestade. Em dois dias conduzi o rei de volta ao Egito partindo
da cisterna superior. Fui recompensado com ouro e trouxe duas escravas como butim além
daquele oferecido à Sua Majestade. Fui nomeado “Guerreiro do Rei” (aHAwty n HqA).
Eu conduzi por barco o rei do Alto e do Baixo Egito, Aakheperkare quando ele subiu o
rio em direção a Khent-khen-nefer para reprimir uma insurreição nas montanhas e afastar uma
invasão das terras desérticas. Eu demonstrei bravura em presença do rei sobre águas difíceis
quando o barco enfrentou uma passagem perigosa nas cataratas. Por isto fui nomeado Chefe dos
Marinheiros. [passagem mutilada] Então Sua Majestade enfureceu-se como uma pantera. Ele
atirou sua primeira flecha que ficou encravada no peito deste vil inimigo. [passagem
mutilada]... sem forças perante seu Uraeus inflamado. Em um instante houve um massacre e
conduzimos todos os seus habitantes prisioneiros. Sua Majestade desceu então em direção ao
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norte tendo o controle sobre todos os países estrangeiros enquanto que um núbio vil estava
pendurado de ponta cabeça na proa do navio real. Desembarcamos em Karnak.
Após estes acontecimentos partimos para o para alegrar [lit.= lavar] o seu coração [o de
sua Majestade] em terras estrangeiras. Sua Majestade atingiu Naharina e encontrou o inimigo
recrutando tropas. Ele fez um grande massacre no meio deles e não pudemos contar o número
de prisioneiros que ele trouxe de suas vitórias. Eu estava a frente do exército e sua Majestade
pode constatar minha bravura. Eu trouxe um carro de guerra com seus cavalos e prisioneiros e
os ofereci ao rei. Novamente fui recompensado com ouro.
Quando envelheci e atingi a idade provecta mantive minhas honrarias e poderei
descansar na tumba que eu mesmo fiz.
Existe uma parte do texto final muito danificado e ainda uma lista dos escravos da propriedade
de Ahmés ... em Behy. De novo, o rei do alto e do Baixo Egito me recompensou … 60 aruras
em Hadyaa. No total, ... aruras.
“Se estiveres em uma antecâmara, levanta e senta como convém à tua posição (social), como a ti foi indicado desde
o primeiro dia.”4
(...) “Curva as costas ao teu superior, a teu supervisor no palácio, (e assim) tua casa se preservará em prosperidade e
tua recompensa virá como deve. Desventurado é aquele que se opõe ao seu superior, (pois) se vive tanto mais
quando se é dócil, e não faz mal em estender o braço (em gratidão).
Ensinamentos de Ptah-hotep (ARAÚJO, 2000: 250)
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
4 primeiro dia = alusão à criação (nota do tradutor)
5 Todas as datas utilizadas no presente artigo são anteriores à Cristo, salvo indicação em contrário
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A ideologia monárquica que apresenta a Monarquia como sagrada em seu mais alto grau,
ou seja, uma Teofania, esteve presente desde o início da organização do Estado faraônico e
tornou-se o eixo norteador da configuração hierárquica da sociedade. Esta não apresenta uma
auto-denominação precisa dos grupos e da divisão social que possa ser definidora da hierarquia
social egípcia. Heródoto identificou em sua obra uma classificação geral quando de sua estada no
Egito (séc.V) e que muitas vezes é citada como parâmetro de definição. Como este autor
pretendia descrever a sociedade e seus grupos, ele apresentou a seguinte divisão:
Tal divisão poderia ter lógica na cabeça de um grego, mas, não correspondia à visão
egípcia de sua sociedade. De uma forma geral, os egípcios falavam de seus quadros sociais sem
fazer uma particularização por profissão. Estas denominações podem ser encontradas nos
grandes textos religiosos que nos permitem algumas indicações sobre o tema.
No final do Reino Antigo, as paredes das pirâmides foram preenchidas com uma série de
textos rituais e mágicos os quais constituem os chamados Textos das Pirâmides. Os textos
compõem o mais antigo corpo de escritos religiosos do antigo Egito, sendo, também, os mais
antigos textos representativos de sua literatura. Foram encontrados nas pirâmides de dez reis e
rainhas na necrópole de Mênfis, capital do Egito no Reino Antigo. O texto mais completo e
conhecido é datado da 6ª dinastia do reinado de Unas (2375-2345 a.C.), em cuja pirâmide foram
encontradas as inscrições que certamente remetem-se a uma tradição anterior mas da qual não
temos ainda nenhum registro mais antigo. Nestes escritos primordiais pode-se entrever uma
vista econômico, o Estado egípcio era composto por duas classes bem distintas cuja hierarquia
era definida pela tributação e apropriação dos excedentes, ou seja, uma classe dominante que
compreendia o pólo estatal, nobreza, sacerdotes e grupos afins; e outra subordinada,
correspondente à grande maioria da população camponesa, i.e., cerca de 95% da sociedade. Isto
não nos permite reduzir a divisão social à estas classes sem levar em consideração a extrema
complexidade de sua organização social.
As profissões, em regra, eram hereditárias, principalmente pelo fato de não haver escolas
no sentido estrito da palavra. Gardiner indica que o ensino de uma profissão passava pela
formação equivalente ao de um ‘aprendiz’ e de um ‘mestre’ o que tendia a uma manutenção dos
mesmos grupos nos diversos ramos profissionais (GARDINER, 1938: 157-179). A cristalização
dos ‘loci’ sociais tende a ser portanto a norma para esta sociedade. Uma das poucas brechas
nesta regra era conseguida pela carreira de escriba. Por toda a história egípcia a profissão de
escriba sempre foi vista como uma das únicas a oferecer certa possibilidade de ascensão social
uma vez que poderia ser seguida por um jovem desde a tenra infância se os pais o inscrevessem
nos locais de formação, as ‘casas da vida’. Mesmo aqui, é necessário ater-se a regra de que a
grande maioria da população egípcia era analfabeta, portanto, essa mobilidade atribuída à
profissão de escriba não implica em um espaço aberto a todos. O serviço ‘público’ e seus
dependentes, ou seja, os cargos diretamente ou indiretamente ligados ao setor administrativo do
Estado egípcio distinguia alguns poucos da grande massa de trabalhadores, em sua maioria
camponeses, que constituíam a base da sociedade egípcia.
O mais alto cargo da hierarquia egípcia é o faraó. Os membros imediatos de sua família
consistiam no nível mais alto da hierarquia depois dele. Seguem-se os membros das famílias
reais, ou nobreza e famílias importantes. Os funcionários destacados por suas habilidades
podiam atingir favores reais que o colocavam no círculo restrito da corte. Uma vez conseguido o
acesso, seguindo a prática egípcia, o cargo e a posição passavam para seus filhos. Isto fortalecia a
prática de mobilidade horizontal que propicia a concentração dos privilégios em um grupo
mínimo em relação ao resto da sociedade.
Trigger identifica em seu estudo comparativo entre as sociedades por ele denominadas
primevas (TRIGGER, 1995), o que ele chama de especialistas dependentes os quais
constituiriam, grosso modo, a classe média.
Abaixo destes viria o grupo dos militares. Não seriam especialistas dependentes pois,
“trabalhavam com as mãos”, mas faziam parte da manutenção da ordem e da integridade do
território. No Egito a partir do Reino Novo quando se caracteriza como profissão permanente
também passa a ser uma das pouquíssimas formas de ascensão social na sociedade egípcia.
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Ahmés o filho de Ibana, se apresenta no início de sua biografia como portador do título
de ‘Superior dos marinheiros’ ( Hri Xnyt). Como é o único título que aparece no
discurso introdutório de identificação pessoal, presume-se ser este o título mais alto por ele
conseguido em vida. Comumente encontramos a tradução de Almirante. No entanto, nossa
opção em traduzi-lo como Superior dos Marinheiros parte da interpretação de que o texto não
nos deixa entrever em nenhum momento a participação de Ahmés em círculos de decisão
estratégica. Seu reconhecimento se dá por suas habilidades específicas, no caso a excelência na
navegação que o fez preservar o barco do faraó. As menções dizem respeito a coordenação de
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navio e talvez de uma esquadra o que o faria um oficial de nível superior como o título de
Capitão-de-esquadra. O título de Almirante seria o cargo máximo correspondente a organização
não de um barco mas, de toda a estratégia de ataque, cargos que se concentravam nos títulos de
comandantes gerais do exército visto que a marinha era parte subordinada deste e estes cargos
eram ocupados por integrantes da nobreza a qual Ahmés parece ter se integrado, mas não no
limitado círculo direto do faraó.
A origem social de Ahmés fica explicitada logo no início quando se identifica como filho
do soldado Baba do qual herdou a profissão. Isto o torna membro da comunidade, pois,
apresenta um costume reconhecido por esta. O interessante é notar a nítida oposição de
valoração entre o início de sua carreira e o final, apresentado antes disso. Vejamos uma análise
mais detalhada do texto:
“É por suas ações que o nome de um bravo é reconhecido e não será jamais esquecido
neste país.” (l.4-5)
As ações de bravura e coragem é que forneceram os elementos de reconhecimento social.
Por elas, Ahmés indica seus prêmios:
! recebi honras...
! fui recompensado com ouro
! fui munido de escravos
! deram-me numerosas terras
Como não há uma ação específica de Ahmés neste momento, não há significação social
maior. É somente a partir dos atos pessoais que são conduzidos pelo elemento axiológico inicial
de atos de coragem (ações de um bravo) que a carga positiva volta ao texto. Há um indício
interessante de passagem entre a infância e a adultez. Parece que Ahmés só passa a ser
reconhecido como socialmente significativo após o seu casamento (...Depois de construir um lar...).
) 96!
!) )
Semna!–!Estudos!de!Egiptologia!I!
) )
! eu acompanhei o soberano...
! provei meu valor...
! fui designado...
! tomei meu butim e uma mão...
! fui agraciado...
! eu o trouxe carregando-o...
! fui recompensado...
Poderíamos ver aí o momento que deve ter marcado Ahmés perante os seus
companheiros, destacando-o perante os oficiais. Até aqui todos os reconhecimentos e
recompensas foram intermediados pela figura do arauto real.
Apesar da referência à presença do soberano, a narrativa deixa claro que seus feitos não
foram presenciados por ele, mas antes, foram levados ao conhecimento do arauto real que o
recompensou por tal nas duas menções do ouro da coragem.
Até aqui a estrutura temática se concentra na figura do soldado Ahmés, filho de Ibana.
Entre o 5º e o 9º parágrafos, que descrevem as batalhas principais do faraó Ahmés I na luta de
libertação contra os hicsos (Avaris, Sharuhen, Núbia, luta contra Aata, luta contra Teti-an) o
tema central passa a ser a figura do faráo. As ações do soldado Ahmés tornam-se secundárias na
narrativa e são apresentadas como conseqüência das ações do faraó.
Esta parte do texto parece confirmar a hipótese de Spalinger (SPALINGER, 1982: 129-
131) que afirma que muitos textos privados, como a biografia de Ahmés filho de Ibana, podem
ter tirado seus elementos centrais dos chamados diários de guerra típicos dos faraós do Reino
Novo. Isto talvez explique o deslocamento do eixo temático da figura do soldado Ahmés para o
faraó. No entanto, este deslocamento temático acontece simultaneamente a uma mudança de
status do próprio soldado Ahmés.
Enquanto na primeira parte do texto, que corresponde ao início de sua carreira, ele toma
o seu butim e entrega os prisioneiros aos seus superiores a partir deste trecho do relato
(parágrafos 5 a 7) Ahmés passa a manter consigo os prisioneiros:
No último caso ele capturou dois homens e recebeu duas mulheres, mas a equivalência
numérica ainda corresponde. Outro elemento relevante em relação aos parágrafos anteriores é a
ausência da figura do arauto real como intermediador entre os superiores e Ahmés. Isto pode
denotar uma mudança de círculo hierárquico e maior proximidade dele com a esfera real.
) 98!
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) )
O episódio das rebeliões internas protagonizadas pelos líderes mencionados (Aata e Teti-
an) apresenta novos elementos importantes:
) 99!
!) )
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) )
Além de seu butim, Ahmés é presenteado com ouro e recebe o seu primeiro título de
destaque: “Guerreiro do Rei”. Logo em seguida, sob o faraó Tutmés I, Ahmés recebe seu
segundo título após demonstrar perícia na condução do barco real.
O trecho danificado não nos permite identificar o palco preciso das ações mas situa-se na
região da Núbia. Nos trechos onde a tradução se faz possível o elemento central é a figura e a
ação do rei, particularmente a grande fúria do faraó que se traduziu em um massacre e o retorno
com o corpo do inimigo pendurado de cabeça para baixo numa clara menção a uma medida
exemplar contra qualquer sublevação.
Após o trecho danificado, o texto apresenta as ações de Ahmés quando da expedição à
Naharina. Novamente a ação inicia-se centrada na figura do faraó, mas Ahmés também participa
de forma ativa. Desta vez o butim consistiu em um carro de guerra com seus cavalos que foram
ofertados a faraó.
A estabilidade de Ahmés no patamar superior da hierarquia militar que atingiu é indicada
quando afirma que manteve suas honrarias.
Conclusão
O antigo Egito era uma sociedade fortemente hierarquizada na qual um pequeno grupo
identificado como uma nobreza constituída formava a estrutura político-administrativa centrada
na figura do faraó que encarnava simbolicamente o próprio Estado. Este pequeno grupo
constituía uma classe dominante homogênea perante o restante da sociedade egípcia. Destacar-se
socialmente nesse grupo restrito compreendia a inserção em diversas funções até o cargo maior
de faraó. No decorrer do terceiro até a metade do segundo milênio uma das funções por
excelência atribuída ao faraó era a guerreira, definida como uma característica centrada no
equilíbrio cósmico do cargo de faraó o qual detinha o poder de manutenção da ordem social
defendida vigorosamente contra todos aqueles que não o reconheciam como tal. A partir do
Segundo Período Intermediário e da dominação estrangeira sobre o Egito, os valores guerreiros
serão também direcionados para o conjunto dos homens que constituíam a força do faraó
formando uma nova base de legitimação e reconhecimento para os que se destacassem nesta
função que adquire, a partir de então, uma nova semântica social.
) 100!
!) )
Semna!–!Estudos!de!Egiptologia!I!
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IMPLICAÇÕES(ECONÔMICAS(DOS(TEMPLOS(EGÍPCIOS(E(A(
CONSTITUIÇÃO(DE(PODERES(LOCAIS:(UM(ESTUDO(SOBRE(O(
REINO(ANTIGO(
Maria Thereza David João
PPGH/USP
NIEP-PréK/UFF
) 103!
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) )
Não se deve, igualmente, cair no erro de autores como Christopher Eyre (2000), que
atribuem ao Estado egípcio funcionamento semelhante ao das burocracias atuais,
desconsiderando, portanto, diversas particularidades inerentes a essa realidade política,
econômica e social.
Durante o Reino Antigo, a estrutura do Estado egípcio aparece sob forma tripartite,
resumida na atuação de um grupo de departamentos administrativos e de altos funcionários
comandados pelo vizir 6 . Este, por sua vez, formava junto com outros altos dignatários o
Conselho Real, espécie de conselho consultivo que auxiliava o faraó em suas decisões. Toda essa
rede funcionava com o auxílio de um corpo de funcionários de “enlace”, os quais eram
encarregados de supervisionar localmente um amplo leque de atividades. Junto a essa estrutura
tripartite coexistia outra, mais informal, formada por cortesãos próximos ao rei e pelos chefes de
aldeia. Estes últimos não faziam parte da burocracia estatal7 mas eram imprescindíveis para que
as ordens emanadas do palácio fossem executadas localmente.
Para fins dessa comunicação interessa, particularmente, não a organização da corte
central mas, sim, como era organizada a administração das províncias egípcias. Para o período
que antecede a VI dinastia pouco se sabe a respeito da administração provincial. As fontes
disponíveis indicam que, à exceção de alguns nomos8, a maioria das províncias parecia não
dispor de uma estrutura administrativa, sendo antes dirigidas de maneira mais ou menos informal
por chefes de aldeias e pelas grandes famílias locais. Marcelo Campagno observa a existência de
duas lógicas que organizavam de forma as relações estabelecidas nos dois âmbitos anteriormente
citados (CAMPAGNO, 2006): a do parentesco, a qual remonta a tempos pré-dinásticos e a do
patronato, que implica na existência de redes locais de clientelismo9.
Anteriormente à VI dinastia o controle das províncias era feito através de um sistema que
Christopher Eyre denominou “governo expedicionário” (EYRE, 2000). Esse sistema consistia
no envio de funcionários itinerantes diretamente da capital, Mênfis, cujas atribuições consistiam
basicamente na supervisão das províncias, na coleta de impostos, na aplicação da justiça, no
controle das obras de irrigação e na organização da corveia. Por conta da própria geografia do
Egito, um território longo e estreito cuja comunicação era feita majoritariamente através da
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
6O vizir era o homem mais importante do Egito após o faraó. Acumulava diversas atribuições, dentre as quais o
controle fiscal e a supervisão de diferentes departamentos administrativos.
7!Para uma discussão sobre o conceito de burocracia e sua aplicação à realidade do Egito faraônico ver JOÃO, 2008.
8!O A palavra egípcia spat (traduzida para o grego como nomo), significa "distrito", "circunscrição administrativa". Na
época do Reino Novo, havia cerca de trinta e oito nomos no Egito antigo - vinte e dois no Alto Egito e dezesseis no
Baixo Egito - os quais contavam com uma espécie de capital e possuíam, igualmente, templos dedicados ao deus ou
deuses locais, composição esta que remete às estruturas clânicas de outrora. Cada um destes nomos era governado
por um funcionário - o nomarca.
9!Essa última lógica interessa de forma especial aos objetivos dessa comunicação e será tratada, alhures, de forma
mais aprofundada.
) 104!
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navegação, a penetração administrativa nas províncias era relativamente fraca, quase que restrita
ao controle de grandes centros como Assuã, Coptos e Abidos, no Alto Egito, e Buto, no Baixo
Egito.
A grande reviravolta se deu, portanto, na VI dinastia quando reis como Merenre e Pepi II
empreenderam reformas administrativas com o intuito de aumentar e melhor aproveitar os
recursos locais, antes parcamente explorados, por parte da Coroa. As transformações
proporcionadas pelos governantes da VI dinastia, tanto em seus aspectos políticos quanto
econômicos, podem ser verificadas através da análise das titulaturas (BRESCIANI, 1988)
existentes nas autobiografias dos funcionários provinciais do período10. Surgem novos títulos
como o de “grande chefe do nomo” e “intendente do Alto Egito”, indicativos de uma tendência
e de uma tentativa de racionalização e formalização da presença do Estado nessas regiões.
Cabe salientar que essa estrutura administrativa já existia, ainda que de forma
embrionária, desde o Período Tinita (período dinástico primitivo), quando surgem os primeiros
nomos. Títulos como hqA spAt, que significa “governador do nomo”, existem desde fins da
segunda dinastia. O que as novas titulaturas surgidas na VI dinastia demonstram é um reforço no
status do nomarca e dos poderes inerentes às suas funções as quais permitem vislumbrar, por sua
vez, a ausência de uma lógica estatal fundada no critério de competência, como ocorre na
burocracia moderna, visto que não há especialização em determinada função e sim o
desempenho de um vasto leque de atividades.
A respeito da origem social desses governantes provinciais, as mesmas autobiografias
mencionadas anteriormente constituem rica fonte de pesquisa. Como exemplo cite-se a
autobiografia de Ankhtifi de Mo’alla (apud SEIDLMAYER, 2003), a qual corrobora com a
hipótese de que os filhos de importantes famílias locais eram enviados à capital para serem
educados e, posteriormente, eram nomeados para exercer os altos cargos da administração
provincial, onde faziam cumprir as diretrizes estabelecidas a partir de Mênfis. Dessa forma, nas
palavras de Moreno Garcia, tais pessoas seriam “cooptadas pelo aparato faraônico e convertidas
em funcionários plenamente integrados na administração” (MORENO GARCIA, 2004).
Parte da relevância da criação de novos cargos destinados a acentuar o controle da capital
sobre as províncias advém do fato de que este era um ato que não se fazia dissociado da
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
10 As autobiografias egípcias, encontradas em uma grande quantidade de monumentos funerários de particulares,
apresentam um retrato de homem ideal através do relato de feitos extraordinários levados à cabo por seus
realizadores. Deve-se, portanto, levar em conta os cuidados apontados por Olivier Perdu no momento de analisar
tais textos, o qual salienta o fato de os mesmos apresentarem somente uma parcela da verdade, a que é mais
lisonjeira e espetacular (cf. PERDU, 1995). Cabe observar, igualmente, que o rol de titulaturas que aparece ao lado
do nome do indivíduo indica uma espécie de cursus honorum, o que significa que nem sempre correspondem a
funções efetivamente por ele desempenhadas.
) 105!
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concessão, por parte da Coroa, de grandes extensões de terras aos cultos e templos provinciais.
Junto à concessão de terras ocorria também a concessão de trabalhadores, provenientes de
aldeias próximas e provavelmente escolhidos pelos próprios chefes das comunidades aldeãs11.
Isto posto, o controle de templos provinciais e a participação em atividades de culto aparece
como uma importante fonte de ingresso e de poder local, relação esta que merece ser explicitada
em maiores detalhes por permitir uma compreensão mais aguçada das relações entre poder
central e poderes locais no Egito desse período12.
Através das já mencionadas autobiografias e dos títulos que nela aparecem é possível
traçar um panorama mais preciso da atuação dos nomarcas dentro das atividades templárias
tendo em vista, obviamente, que a delimitação de funções variava de acordo com as
características de cada templo (ROCCATI, 1988: 73-78). Como demonstra Valérie Sèlve,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
11 Pegue-se o caso, por exemplo, de Nikaanj de Tehna, que acumulava as funções de ritualista, controlador das terras
e do templo de Hathor, responsável por um grande hwt e intendente das explorações agrícolas. Com a
hereditariedade das funções dos nomarcas, os territórios doados pelo rei para usufruto destes funcionários passam,
também, a ficar sujeitos às leis de hereditariedade. Dessa forma, o controle dos templos provinciais mostrava-se em
uma proveitosa fonte de poder local.
12 O foco nesse aspecto da administração provincial faz-se tendo em vista um dos objetivos da pesquisa de
doutorado ora desenvolvida da Universidade de São Paulo sob orientação do professor Marcelo Rede e financiada
pelo CNPq. O trabalho em questão tem como foco principal a análise das relações entre poder central e poderes
locais no Egito do Reino Médio, avaliando o impacto e os limites das transformações produzidas no período
imediatamente anterior, o Primeiro Período Intermediário na reorganização administrava do Estado egípcio. O
Primeiro Período Intermediário caracteriza-se pela descentralização do poder ao mesmo tempo em que se verifica a
ascensão de nichos de poder locais sob o comando dos governadores das províncias. Nesse sentido é interessante
observar os mecanismos que levaram tais pessoas a adquirir papel tão destacado, recuando o estudo para o Reino
Antigo – particularmente a VI dinastia e as reformas administrativas promovidas por reis como Pepi II - gênesis
desse processo.
) 106!
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litúrgicos destinados ao culto. Outros títulos, como imy-r pr-mnw (ou o “diretor da casa de
Min”) demonstram o envolvimento de seus portadores na direção dos chamados “lugares
sagrados”, os quais, em egípcio, são designados pelo termo hwt.
As funções ministeriais demonstram uma espécie de “status ritualístico” dessas pessoas e
sua participação ativa na realização dos cultos. Vale lembrar que, ideologicamente falando, o
faraó era o único autorizado a performar os cultos mas, na impossibilidade óbvia de se fazer
presente em todos os lugares do Egito, delegava essa função a terceiros. O que a presença de
títulos como Hry-sSta (“senhor dos segredos”), smA mnw (estolista de Min) e shd wiA (“inspetor
da barca-uia”) permite entrever, para além da organização do culto às divindades, é o fato de que
esses particulares passam a gozar de prerrogativas até então régias.
Essa última informação se torna absolutamente relevante se for tomado em consideração
o contexto que leva ao fim da VI dinastia e marca, por sua vez, o declínio do Reino Antigo. Esse
período é marcado pela ocorrência de um período anárquico conhecido como Primeiro Período
Intermediário, no qual a descentralização do poder deu margem ao fortalecimento dos
governadores provinciais, os quais passaram, segundo atesta a historiografia mais tradicional, a
agir como pequenos reis nos territórios submetidos a sua jurisdição13. Inscrições encontradas na
necrópole de El-Hawawish, pertencente à nona província egípcia, indicam uma linhagem de
governadores provinciais que monopolizou essa função por seis gerações. A hereditariedade das
funções dos nomarcas foi um fator que, sem dúvida, contribuiu para a crise que se instaurou no
Egito em fins do Reino Antigo14. Segundo Moreno Garcia,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
13 Sobre esse assunto, Moreno Garcia afirma que “o reforço das elites locais, consequência do reforço da
administração faraônica nas províncias permitiu entrever, de maneira paradoxal, a crise da monarquia. Os textos do
Primeiro Período Intermediário atestam dois fenômenos paralelos: de um lado, o reforço na posição social e do
poder das elites locais num quadro de empobrecimento de outros setores da população; de outro lado, a tomada em
assalto do poder por parte das elites provinciais” (MORENO GARCIA, 1999: 442).
14!Ciro Cardoso enumera alguns fatores que teriam levado à crise do Reino Antigo: 1) excesso de independência dos
sacerdotes, com isenções e doações que enfraqueceram o patrimônio estatal; 2) fraqueza pessoal dos reis; 3) avanço
do poder e hereditariedade de funções dos nomarcas; 4) revolta popular e 5) invasão estrangeira. (CARDOSO, 1994:
81).
) 107!
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15 Para mais detalhes ver JOÃO, 2008. Chamamos de Texto das Pirâmides o conjunto de encantamentos funerários
destinados a prover a imortalidade régia durante o Reino Antigo e de Textos dos Sarcófagos aquele pertencente às
elites nomarcais, surgido durante o Primeiro Período Intermediário.
16 A maioria dos sarcófagos contendo esse tipo de encantamento foi encontrada na região de Tebas, Assiut, Meir,
Saqqara e em cemitérios nomarcais como Deir El-Bersha. Para tanto, ver WILLEMS, 2008.
) 108!
!) )
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) )
O que se pode concluir acerca das situações descritas no decorrer dessa comunicação é,
em primeiro lugar, que a atuação das elites nomarcais em atividades de culto permitiu às mesmas
acumular o capital simbólico necessário capaz de lhes garantir grande prestígio social, num
momento em que o poder central estava desestabilizado. Entende-se, com isso, o grande
destaque dado nas fontes do período à iniciativa pessoal desses funcionários, os quais passam a
desempenhar funções régias não somente no âmbito religioso mas também no social,
substituindo o faraó como categoria identitária e desenvolvendo uma ampla rede de benefícios
através do recrudescimento das relações de patronato. Como salienta Simpson,
É de extrema relevância, igualmente, atentar para o fato de que o templo era uma
importantíssima instância econômica no Egito o que implicava, portanto, na participação das
elites nomarcais no gerenciamento das terras e trabalhadores pertencentes aos templos, bem
como dos recursos por eles captados favorecendo, dessa forma, a consolidação do poder de uma
aristocracia fundiária beneficiada pela concessão de cargos administrativos e hereditariedade de
suas funções.
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Semna!–!Estudos!de!Egiptologia!I!
) )
SOBRE(A(IMPORTÂNCIA(DA(TEORIA(SOCIAL(NA(
EGIPTOLOGIA(ECONÔMICA(
Fábio Frizzo
UCAM/UNESA
NIEP-Marx-PréK-UFF
Resumo: Em texto publicado há uma década, Ciro Cardoso afirmava que a egiptologia era uma disciplina infensa
aos debates teóricos, dedicando-se muito mais ao estudo da monarquia e da religião. O objetivo deste texto é
defender a ideia de que as estruturas econômicas faraônicas só podem ser corretamente entendidas a partir da
construção de modelos teóricos calcados na diferença qualitativa entre as sociedades pré-capitalistas e a capitalista.
Tais modelos são ainda mais importantes em razão da carência de fontes relativas à economia egípcia.
Abstract: In one paper published a decade ago, Ciro Cardoso stated that the Egyptology was a kind of knowledge
unsympathetic to theoretical debate, devoting itself primarily to the studies of kingship and religion. The present
paper aims to propose the idea that the pharaonic economic structures could only be understood rightly with the
elaboration of theoretical models based in the qualitative difference between the pre capitalist societies and the
capitalist society. These models are even more important in a context of scant evidences related to the Egyptian
economics.
) 112!
!) )
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) )
trabalhos de história de diferentes períodos, mantendo suas concepções gerais iniciais sobre
história e economia.
A isto se soma outra afirmação do mesmo autor:
Confesso que esta citação foi escolhida também como uma provocação aos colegas da
Arqueologia, disciplina que partilha um imenso campo em comum com a Egiptologia. Todavia,
para não cometer uma injustiça com um nome como Finley, convém lembrar que ele modificou
sua posição acerca da Arqueologia em outro texto, anos depois deste (FINLEY, 1994: 22). De
qualquer forma, sua afirmação ainda é válida: discute-se pouco método em seu sentido mais
abstrato. A metodologia em geral passou a ser tratada como técnica e não como uma discussão
de princípios de pesquisa.
Vinte anos após a publicação do artigo de Finley, aquele que foi sua contraparte
brasileira, sendo o mais importante historiador brasileiro da Antiguidade do século XX, fez uma
declaração semelhante em relação à Egiptologia especificamente. Em artigo de 1983, Ciro
Cardoso afirmou que “A egiptologia é uma disciplina bastante tradicional, infensa em muitos
casos ao debate teórico” (CARDOSO, 1983: 152).
Neste caso, Cardoso refere-se como “debate teórico” àquilo que Finley chamou de
“questões de método”, afirmando um tradicionalismo na área, ligado aos estudos de um tipo de
arqueologia que busca explicar uma sociedade menos do que descrever as materializações de sua
cultura. Tipo de arqueologia que, outrossim, foi o que fez com que Finley definisse tal disciplina
como “auxiliar”.
O debate teórico faz-se necessário para a montagem de um modelo de sociedade que é
distinta da nossa. Desta maneira, cria-se um método de pesquisa que busca afastar o historiador
(e aqui se deve entender o profissional que lida com o estudo de sociedades humanas no tempo)
do caminho mais fácil, que é aquele de ler o objeto de estudo (a sociedade, nunca devemos
perder de vista que o objeto de estudo é a sociedade!) com os olhos carregados dos conceitos da
sua realidade, sem o esforço de distanciamento necessário. Este é o pecado maior dos
) 113!
!) )
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) )
A princípio, há também aqui um caminho mais fácil que se mostra errado: a conclusão de
que devemos manter os vocábulos nas línguas originais para evitar males entendidos nas
traduções, já que as relações sociais são distintas nas temporalidades e sociedades. O exemplo
clássico para isso – que coincide no trabalho de Bloch e Finley – é o do escravo, seja na
passagem latina de servus de “escravo” para “servo” ou no debate sobre o doulos grego. Manter o
vocabulário inicial não explica nada! Para que um ser de outra sociedade entenda aquela relação,
devem-se fazer paralelos com a sua realidade, destacando sempre as diferenças entre as relações
nas distintas sociedades. Nas palavras de Finley, é necessária uma generalização, que nada mais é
do que um processo de abstração necessário há criação de um modelo que ajude a explicar uma
relação social.
Para exemplificar de maneira mais geral na sociedade específica que mobiliza este
volume, temos grandes problemas de tradução que demonstram os abismos entre os egípcios e
nós. Costumo falar para meus alunos nas primeiras aulas sobre o pensamento egípcio que é
necessário fazer um esforço para livrar o pensamento das amarras de nossa sociedade (por mais
que saiba que esse é um esforço inútil se tomado em sua completude, ou seja, nunca
conseguimos nos livrar completamente das amarras de nossa sociedade). No final, a
compreensão se dá, na minha experiência, através de analogias. Vejamos um exemplo.
Todos sabemos que a palavra “alma” não encontra nenhuma tradução precisa no egípcio,
já que aquela sociedade não pensava o ser humano a partir da dicotomia corpo x alma, tão
) 114!
!) )
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) )
característica de boa parte das nossas sociedades atuais. Agora, também não é razoável afirmar
simplesmente para uma pessoa ignorante em relação ao mundo faraônico que havia um ka e um
ba, por exemplo. A palavra original pode se manter (uma vez que não há nenhum paralelo direto
com outra do nosso idioma), mas uma analogia deve ser feita para tentar explicar o princípio de
sustento ou o princípio de mobilidade. Esta importância existe, ainda que saibamos que há uma
complexidade de atributos em cada um desses aspectos, muitos dos quais não são consensos
entre os egiptólogos, tal é a distância da nossa concepção de mundo. Penso em especial nas
teorias de Lanny Bell acerca do caráter familiar e hereditário do ka (BELL, 1997: 127-184).
Feitas estas explicações de caráter mais geral, passemos ao objeto mais específico da
economia egípcia. O que afirmei acima vale para o campo da economia, que talvez caia com
ainda mais facilidade na tentação de uma interpretação (ideológica!!!) do passado como similar ao
presente. Em outras palavras, como querem os liberais, da existência de uma lei universal de
regulação das economias.
Talvez a escolha da maioria dos egiptólogos pelo caminho mais fácil da leitura
(ideológica, ainda que não percebam!!!) da economia faraônica com uma estrutura de
funcionamento igual à economia atual esteja ligada, inicialmente, à peculiaridade da Egiptologia
que, segundo Ciro Cardoso,
Muito provavelmente a escolha deste caminho mais fácil está ligada a outros fatores,
como: 1) uma inculcação ideológica da economia capitalista como natureza humana, desenhada
desde o século XVIII; 2) um desinteresse, como assinalou Finley, pelo debate de método ou pela
leitura de trabalhos referentes a outros períodos históricos. Desta maneira, é possível concordar
com David Warburton quando ele afirma que: “(...) uma tendência marcante entre os egiptólogos
é acreditar que eles entendem a teoria econômica moderna” (WARBURTON, 1998: 144).
Aqui é preciso fazer uma ressalva: o campo da Egiptologia é marcado por uma formação de base
arqueológica e linguística, em detrimento de uma tradição historiográfica e sociológica. Assim,
por mais que os conhecimentos da maioria dos egiptólogos interessados ena economia possam
passar pela economia política, infelizmente são poucos aqueles que a estudam de fato e quase
nenhum se aventura no campo da crítica da economia política elaborada por Marx.
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entre objetos diferentes. Dito de outra maneira, os trabalhos concretos que produziram cada
uma das coisas são reduzidos a um único tipo de trabalho que, por conta deste caráter, não pode
ter qualquer forma concreta, sendo, assim, trabalho abstrato. Nas palavras de Marx,
Para servir como elo de equivalência na troca de dois objetos de trabalhos distintos, o
trabalho abstrato tem que ter um caráter quantitativo. Este é dado, no capitalismo, pelo tempo
de trabalho necessário à produção da coisa.
A produção dos mesmos objetos pode variar bastante em tempo dentro de uma dada
sociedade. Desta maneira, o tempo individual de trabalho necessário não poderia contar para o
estabelecimento do valor, porque mercadorias iguais produzidas de maneiras diferentes poderiam
ter valores diferentes. Neste sentido, Marx afirma a determinação do valor pelo tempo de
trabalho socialmente necessário. Segundo ele,
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às suas condições objetivas de reprodução através da troca de valores, a própria força de trabalho
surge como mercadoria.
Quanto à apropriação do trabalho alheio que, como visto, aparece como uma troca no
capitalismo, Marx afirma:
A pergunta que deve ser feita agora é: se a troca de valores baseados no trabalho abstrato
e, portanto, nos tempos de trabalho socialmente necessários é uma característica do modo de
produção capitalista, o que podemos dizer sobre o pré-capitalismo? Ainda que Aristóteles tenha
descoberto a comensurabilidade das trocas, Marx afirma que seria impossível mesmo para um
gênio como ele perceber que a essência desta comensurabilidade era o trabalho abstrato. Tal
impossibilidade dever-se-ia ao caráter diferenciado dos trabalhos na sociedade grega em
consequência da desigualdade entre homens, marcadamente com a escravidão.
Da mesma maneira que na sociedade grega, no Egito faraônico não havia uma igualação
em relação ao papel social de todos os trabalhadores. O trabalho da corveia real – fosse ele nos
campos, nas grandes obras ou nas expedições militares – não poderia ser encarado da mesma
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maneira que o trabalho do sacerdote no ritual diário dos templos. A inexistência de um trabalho
abstrato universal para servir como equivalente nas trocas tem que levar os egiptólogos a
pensarem outras explicações para as trocas egípcias. Explicações diferentes daquelas que
projetam em Deir el-Medina um mercado de funcionamento igual a qualquer feira atual.
Reafirmo, desta maneira, a necessidade de mostrar como a discussão teórica é importante
para se ter uma visão explicativa da economia egípcia, uma visão que se livre do estigma da
reprodução ideológica da realidade presente. Neste sentido, é necessária a formulação de
modelos explicativos distintos. Ou seja, por mais que fontes como aquelas referentes às trocas
em Deir el-Medina mostrem relações de compra e venda, não podemos cair no “caminho mais
fácil” de retratar aquela realidade como um mercado proto-capitalista, com distinções
quantitativas de desenvolvimento e entravado por estas, como, por exemplo, a falta de moeda.
A forma que me parece mais interessante para a construção desses modelos das
sociedades pretéritas é aquela que parte da sociedade atual, tratando de apontar claramente as
distinções em vez de ressaltar continuidades justificadoras (ou melhor, naturalizantes!) da
realidade presente (FRIZZO, 2012: 11). Assim, vale como mote a máxima marxiana de que a
anatomia do homem é uma das chaves explicativas para a anatomia do macaco. Só é possível
partir da realidade mais complexa da economia moderna para entender a economia faraônica a
partir de seus contrastes.
Para finalizar, gostaria de fazer uma homenagem declarando que este texto é um tributo
humilde àquele que me ensinou a ser, mais do que um egiptólogo (título que, aliás, me soa
estranho em terras tupiniquins), um historiador e, mais ainda, um professor de História; aquele
que sempre me incentivou a escapar dos caminhos mais fáceis através da leitura de obras de
outros períodos ou disciplinas e que sempre primou pelo debate teórico aliado ao denso
conhecimento empírico. Não acho que este trabalho seja um tributo justo (é provável que fosse
bastante criticado pelo desequilíbrio entre o debate teórico e a demonstração empírica), mas
quero acreditar que segue a vertente provocativa que era peculiar a este meu amigo e professor
que foi Ciro Cardoso, que continua presente, entre outras maneiras, por meio deste trabalho.
Bibliografia
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) 119!
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Parte 4
O Egito e o Mundo Clássico: gênero,
identidade e arte
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IDENTIDADE,(GÊNERO(E(PODER(NO(EGITO(ROMANO(
Resumo: A partir da temática “identidade” e sua aplicabilidade nos estudos sobre Império Romano abordaremos a
questão da identidade social e de gênero no Egito Romano utilizando como documentação material máscaras e
retratos funerários. Defendemos que a identidade social (e de gênero) está associada às redes de poder romanas
estabelecidas no Egito, que interferiam na formação das identidades locais. Escolhemos três áreas distintas para
exemplificar nossa hipótese: Fayum, Médio Egito e Alto Egito.
Abstract: From the theme of "identity" and its applicability in studies of the Roman Empire, we will approach the
issue of social and gender identity in Roman Egypt using equipment such as masks and funerary portraits as material
documentation. We defend that social (and gender) identity is associated with the Roman power networks
established in Egypt, which interfered with the formation of local identities. We chose three different areas to
illustrate our hypothesis: Fayum, Middle Egypt, and Upper Egypt.
Identidade ou Identidades
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estrutura das tumbas, as oferendas funerárias depositadas etc., os quais revelam informações
sobre as crenças funerárias envolvidas.
Uma interessante abordagem sobre contatos culturais no mundo antigo, pelo viés da
arqueologia, tem sido colocada por Philipp Stockhammer (2012: 1). Este autor propõe a
substituição do termo hibridização por emaranhamento (entanglement), já que o primeiro deriva
dos estudos pós-coloniais e não estaria totalmente definido. O termo hibridização é utilizado
para caracterizar fenômenos que são facilmente detectados como "borderline" ou nas “margens”
ou “fronteiras”, mas que não são facilmente explicáveis.
Os estudos pós-coloniais se dedicaram a explicar o “outro”, sobretudo na perspectiva da
análise literária. A cultura é considerada como inerentemente híbrida, já que sempre houve
contato cultural decorrente da circulação de pessoas, de ideias, de artefatos, signos. Esta cultura é
o local de conflito entre representações de identidade e diferença. Como a teoria pós-colonial
surgiu a partir de sociedades coloniais, que saíram recentemente do domínio estrangeiro,
sobretudo europeu, a ideia de conflito é essencial ao seu desenvolvimento. Por tal razão,
Stockhammer acredita que o conceito de hibridização está permeado pela discussão de poder, de
conflito e não serve, portanto, para explicar todo caso de contato cultural entre sociedades
distintas.
Segundo Ackermann (2012: 12),! Homi Bhabha teria se apropriado de uma parte do
conceito de hibridização de Mikhail Bakhtin, mas não dele como um todo. Bakhtin teria
desdobrado sua interpretação de hibridização em dois vieses: a intencional e a orgânica. A
hibridização orgânica seria aquela não intencional, inconsciente, quando observamos a fusão de
vários elementos culturais na vida cotidiana, quando ocorrem apropriações miméticas, trocas e
invenções. A hibridização "intencional" é o resultado de um contraste consciente e oposições em
um único discurso, quando uma voz é capaz de desmascarar o discurso da autoridade. Na
hibridização intencional os dois pontos de vistas não estão misturados e sim um contra o outro
dialogicamente.
Quando tratamos de Império Romano a questão do poder não pode ser deixada de lado.
Neste sentido, concordamos com a opinião de Mattingly (2011), que é importante considerar a
estrutura e o contexto local. Mas um aspecto da teoria defendida pelo grupo de Stockhammer na
Universidade de Heildelberg nos interessa em particular, pois os chamados emaranhamentos
podem ser considerados a partir de um ponto de vista espacial. Grandes cidades são um
potencial para emaranhamento, assim como áreas de porto, de fronteiras, de contatos comerciais
e culturais.
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Egito Romano
Ao refletirmos sobre o Egito Romano e, em especial, sobre a cultura material funerária
defendemos a hipótese de que a intensificação dos emaranhamentos pode ser medida pela
espacialidade, pelas redes de poder romanas estabelecidas em território egípcio. Não acreditamos
que houve uma influência proposital romana na religião funerária egípcia, mas sim que os
elementos culturais romanos e também gregos, derivados da época ptolomaica, podem ser
verificados na iconografia de determinados artefatos como as máscaras, os caixões, as
cartonagens e os retratos funerários sendo, portanto, exemplos do que Stockhammer (2012: 43)
chamou de emaranhamento material.
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Partindo da premissa de que as diversas respostas a Roma devem ser testadas no âmbito
local, no caso do Egito Romano a proximidade de Alexandria, do poder central romano, trazia
uma influência mais direta de elementos culturais de origem grega e romana. Quanto mais
próximos do poder central mais direta é a influência: em primeiro lugar de Alexandria e
evidentemente do Delta egípcio; em segundo lugar, do Fayum e, em terceiro, do Médio Egito.
Estamos considerando que houve adaptações da cultura autóctone em resposta à ação romana.
Trocas e reciprocidades culturais e mesmo atitudes de resistência podem ser observadas nos
aspectos da cultura material por todo o Egito. No entanto, acreditamos que as redes de conexão
ao poder central devam ser consideradas. Podemos considerar o Egito Romano como dividido
em áreas que servem a nossa análise das redes de conexão. Segundo o modelo teórico utilizado,
as áreas mais propícias ao contato e às trocas culturais são aquelas situadas próximas ao Mar
Mediterrâneo, na costa marítima, portanto, na região do Delta egípcio.
Os emaranhamentos que procuramos perceber na cultura material funerária podem estar
relacionados à identidade social do morto, assim como a sua identidade individual. A questão de
gênero não pode, então, estar desvinculada da esfera social, já que existiam papeis a cumprir.
Existia um padrão de iconografia para mulheres e homens, que poderia variar conforme o
suporte material. Mas notamos, conforme a localidade e também o período, que houve uma
alteração, por exemplo, no modo de confecção das máscaras funerárias, do período ptolomaico
até o século III d.C., quando a diferenciação de gênero tornou-se mais presente, assim como as
características individuais. Atualmente, a hipótese mais aceita considera a existência de oficinas
de produção de máscaras e retratos, o que indica que eram feitos em série havendo, portanto, um
repertório figurativo à disposição do comprador.
Segundo a concepção egípcia, após a morte, os vários elementos que compunham a
parte “espiritual” da pessoa se separavam. É o caso do Ka, do Ba, do Akh, da sombra e do nome.
O Ba era um tipo de alma representada com corpo de falcão e cabeça humana e, às vezes, com
braços. O Ka era outro componente da pessoa que teria sido criado juntamente com o corpo.
Era retratado como um par de braços erguido em posição vertical. Era o Ka que se incorporava
às imagens do morto e recebia as oferendas na tumba. Toda representação do morto seria,
portanto, uma “estátua” Ka. Akh era o espírito glorificado, era o aspecto do morto no qual ele
deixava a morte e era transfigurado num ser de luz, associado com as estrelas. Ele não é um
elemento, pois indica um estado; o indivíduo se torna um Akh quando glorificado, estágio que
alcança somente aquele que viveu segundo Maat. Enquanto o Ba e a sombra fazem parte da
esfera corporal, física do morto, o Ka e o nome pertencem à esfera social (ASSMANN, 2003:
34). O ritual de mumificação cuida da esfera corporal do morto e está associado às divindades
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funerárias como Ísis, Néftis e Anúbis. Já o nome e o Ka eram preservados pela esfera social e
estavam associados a Hórus, o filho que deveria prover as oferendas para o seu pai (o morto
como Osíris) e zelar pelo seu nome entre os vivos.
A visão tradicional da religião funerária egípcia continuou em outros períodos históricos,
sofrendo readaptações conforme as condições sociais. Pensando nesta continuidade e também
nos emaranhamentos propomos, para o Egito Romano, a seguinte análise:
• Identidade social: predomínio do status social de uma elite local que se espelhava em
Roma e nos costumes (penteados, vestimentas, joias etc.) em voga na casa imperial. O ka
enquanto representação do morto poderia, enquanto imagem, ser representado conforme
a influência de elementos gregos e romanos. O emaranhamento material variava
conforme a região do Egito e a sua proximidade com Alexandria.
• Identidade individual: a esfera física precisava ser pautada na iconografia egípcia
tradicional, pois as imagens dos deuses, dos amuletos e de outros símbolos possuíam um
valor mágico e não podiam ser alterados. O ba aparece na sua figuração tradicional e se
manteve a mumificação do cadáver, elemento necessário para a união do ba com o corpo
durante a trajetória noturna do sol. Para os egípcios, Rê, divindade solar, quando é noite
na superfície da terra, navegava com a sua barca no Mundo Inferior, iluminando os
mortos e fazendo-os acordar. É quando o ba voltava à tumba para junto de seu corpo
mumificado.
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privadas do Novo Império, mas também em outros suportes como estelas funerárias, por
exemplo.
Podemos notar também que, no caso das mulheres, houve uma influência do culto de
Ísis que se desenvolveu no Egito, mas também por todo o Império Romano como o princípio
do feminino. Ísis já fazia parte do culto funerário egípcio como esposa e irmã carpideira de
Osíris, em par com Néftis. No entanto, a sua aproximação cada vez maior com Háthor, na Baixa
Época, fez com que ela incorporasse, na sua iconografia, elementos dessa deusa como o sistro e
o disco solar entre os cornos de vaca.
Em relação à representação feminina, em lugares como o Fayum, por exemplo, notamos
uma influência maior de elementos gregos e romanos na representação, sobretudo no decorrer
dos séculos I e II d.C. O Fayum foi uma importante área de colonização greco-macedônica no
Egito. Provavelmente, uma área onde o emaranhamento material pode ser notado de forma mais
evidente.
Em muitas máscaras e retratos funerários femininos do Fayum notamos que a vestimenta
e joias típicas do Império Romano aparecem na iconografia da face e do peitoral. As
representações tipicamente egípcias permanecem na lateral das máscaras e nas cartonagens que
cobrem a múmia (os envoltórios corporais). As mulheres são representadas usando uma túnica e
manto e os cabelos seguem a moda usada pelas imperatrizes e mulheres da casa imperial romana.
Nas representações masculinas os homens também aparecem usando túnica com clavus, sendo
que os soldados aparecem retratados com o balteus, o cinturão próprio dos militares. Nos retratos
pintados notamos também a representação de efebos, que são retratados como frequentadores
dos gimnasium com o peito nu, imberbes e portando, sobre a cabeça, uma coroa de louros.
Quando pensamos na distribuição territorial do Egito podemos perceber que o Médio
Egito, sobretudo Antinoópolis, cidade fundada por Adriano em 130 d.C. e Hermópolis Magna,
era um local estratégico para o domínio romano, ponte de ligação com o Alto Egito. Os retratos
funerários do Médio Egito provavelmente derivam da tradição advinda do Fayum. Por outro
lado, as máscaras funerárias de Tuna el-Gebel, por exemplo, evidenciam a transição entre os
elementos do Delta e do Fayum com aqueles de Akhmim e Meir, cidades que faziam o elo de
ligação do Médio com o Alto Egito.
No Alto Egito os elementos egípcios tradicionais são mais marcantes na iconografia
como é o caso, por exemplo, do mobiliário funerário da família de Cornelius Pollius Sóter, que
foi arconte de Tebas no governo de Trajano (98-117 d.C.). Sóter era filho de uma egípcia,
chamada Philous, com um romano (Cornelius Pollius), cuja mãe era, por sua vez, também
egípcia (de nome Esoéris) e, o pai, romano. Podemos notar, ao analisar esta documentação, que
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“E(ME(TRAGA(ESSA(CARTA(DE(VOLTA”.(AS(CARTAS(AOS(
DEUSES(E(OS(ESTUDOS(DE(GÊNERO(NO(EGITO(
PTOLOMAICO.(CONTRIBUIÇÕES(DA(ANTROPOLOGIA(
Thais Rocha da Silva
Departamento de Letras Orientais – FFLCH/USP
Seshat – Laboratório de Egiptologia do Museu Nacional – UFRJ
Abstract: The small number of letters written and address by/to women practically justified the
abandonment of gender studies by demoticists interested in letters. When seen through the
anthropological perspective, letters to the oracles may potentialise new perceptions on gender.
We seek to discuss these articulations and present some possibilities for the understanding of
gender formulations in Ptolemaic society.
J’ai posé les écrits devant ce grand dieu, pour qu’ils les juge par un bon jugement17
de sistematização permitiu levantar algumas questões sobre como as cartas foram estudadas
desde a retomada dos estudos demóticos na década de 1970 (DEPAUW, 1997; SILVA, 2013).
As cartas são documentos relacionais e materializam a comunicação de partes que estão
separadas19. No caso do Egito antigo, a natureza desse tipo de comunicação é muito diversa e há
termos distintos para designar “carta”, que tendem a ampliar nossa percepção sobre o uso desses
documentos (BAKIR, 1970; SWEENEY, 2001). Levando em conta o caráter mágico da escrita
egípcia, podemos (e devemos) dilatar as percepções e entendimentos da documentação
epistolográfica tanto para o estudo das relações entre os indivíduos entre si, mas também com o
mundo sobrenatural.
Os egiptólogos interessados na chamada “piedade pessoal”, utilizaram modestamente as
cartas como fontes primárias. A maior parte das pesquisas sobre o tema se baseou em material
arqueológico, com poucas exceções (principalmente BAINES, 2001; ZAUZICH, 2000;
WENTE, 1991).
Os estudos sobre as cartas egípcias contemplam principalmente textos encontrados em
Amarna (SILVERMAN, 1991), Saqqara, El-Lahun (WENTE, 1991), Deir el-Medina, Medinet
Habu (WENTE e CERNY, 1967; JANSSEN, 1991), Deir el-Bahari, Elefantina, Tebas, mas com
poucos sobreviventes.
É difícil quantificar ou especular sobre a quantidade de cartas produzidas pela sociedade
egípcia, mas a grande maioria dos documentos provém do Médio Império e não foram
sistematicamente traduzidos. Parte do material do Novo Império teve traduções dispersas (cf.
SWEENEY, 2001: 7, 8, WENTE, 1991) e elas parecem apontar para um tom mais pessoal.
Para a literatura feminista, as cartas foram utilizadas como fontes primárias num esforço de
afirmar a posição das mulheres na sociedade (DAYBELL, 2006; SWEENEY, 2001; STAVES,
2006; CHEDGZOY, 2007; SAUNDERS, 2009) o que, por muito tempo, deu a falsa impressão
que as mulheres teriam nas cartas um instrumento (quase universal) de emancipação e expressão
pessoal. Esse tipo de abordagem apresenta dois principais problemas. O primeiro deles, já
apontado pelos estudos de gênero, é a ideia de uma opressão universal das mulheres, tema que já
foi exaustivamente discutido e que terminou com a desconstrução da categoria “mulheres”. O
segundo aspecto está baseado em noções a respeito da ideia de indivíduo e privacidade
circunscritas à sociedade burguesa anglo-americana dos séculos XIX e XX que não podem ser
transpostas para as sociedades antigas.
Não se trata, contudo, de discutir se os antigos egípcios tinham ou não a ideia de indivíduo
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
19 Sobre isso ver Epistolomaioi Characteres. Translated by A.J. Malherbe. Ancient Epistolary Theorists. SBL 19 (1988):
66-67 in Vandorpe, K. “Archives and Letters in Graeco-Roman Egypt.” in Pantalacci, 2008, p.155.
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20 Sobre isso ver Frood (2007) em que a autora discute a existência de biografias no Egito antigo pensando na auto-
representação. No caso da documentação funerária, Frood (2007, p. 3) destaca que o uso da primeira pessoa é uma
ficção já que tem por objetivo evocar a presença do morto na tumba. No caso da documentação epistolográfica não
se trata de uma ficção, uma vez que a presença de quem elabora a mensagem (por escrito ou não) é explicitada na
mensagem.
21!Sobre a classificação das cartas ver Bakir, Sweeney, Depauw, Wente, principalmente.
22 Há nessas fontes a identificaçao do endereço interno, com o nome do remetente e a divindade evocada.
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faz algum tipo de reclamação e pede interferência em seu favor (DEPAUW, 2006: 307). Há
documentos desse tipo desde o Antigo Império (fim do terceiro milênio a.C.) até o séc. VII d.C.
(DEPAUW, 2006; DONNAT, 2010), sendo que a maioria delas data do Primeiro Período
Intermediário. Esse tipo de ocorrência pode estar relacionado a uma “crise” de uma “cultura
formal” (DONNAT, 2010: 70) em que os indivíduos poderiam experimentar outras
manifestações de escrita.23 O aspecto epistolar nessas fontes em demótico é mais evidente do que
nas questões oraculares, sobretudo nas formas de saudação. Nos textos demóticos, a
identificação do remetente é em geral feita na formulação “voz do servo A diante de D” ou
“diante de D” e eles possuem endereço interno, mas somente duas com o externo (DEPAUW,
2006: 309-310) .
Do ponto de vista dos conteúdos, as cartas aos deuses diferem pouco das questões
oraculares: roubos, trabalho agrícola, negócios. Há semelhanças formais e formulares nos textos
oraculares e jurídicos desde o período faraônico, o que pode em parte justificar a atenção dada
ao material pelos demoticistas, cuja tradição está calcada na papirologia, disciplina que nasceu
pelo interesse nos documentos legais (ver ČERNY, 1962; SILVA, 2013). As cartas aos deuses só
aparecem no Egito por volta do fim do primeiro milênio a.C., o que possivelmente pode ser
justificado por um processo gradual de individualização das relações com o divino.
Já as cartas de recomendação eram textos colocados junto às múmias e que continham
recomendações para o outro mundo. Esses textos, contudo, não podem ser incluídos na
documentação epistolar e são vistos mais como amuletos do que como cartas, tanto pelo
conteúdo das mensagens, como pelo tipo de suporte – pequenas tiras de papiro junto às múmias.
Além do mais, como afirma Depauw, o destinatário e o remetente não estão espacialmente
separados.
Para este artigo foram selecionados duas cartas do período ptolomaico aos oráculos, os
papiros P. Carlsberg 428 e P. Berlin 23544. A escolha desses textos leva em conta dois aspectos
importantes que pretendo discutir em conjunto: a relação entre os estudos de gênero e as
práticas oraculares no Egito. A percepção dos demoticistas a respeito do gênero parece ter
colocado os textos oraculares sob uma perspectiva estritamente ligada aos estudos da religião24.
Ao mesmo tempo, os trabalhos sobre os oráculos do período faraônico não exploraram o tema
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
23!De acordo com Moreno Garcia (2010: 139) as cartas aos mortos também faziam parte de um novo tipo de
registro em que a escrita confere prestígio, através da escrita, nos cultos domésticos. Os mortos eram também
considerados parte da família extendida e portanto, tinham condição de interferir nos assuntos familiares a fim de
garantir a harmonia dos vivos.
24 Ver o site Trimegistos com o histórico da produção historiográfica sobre os textos em demotico.
(http://www.trismegistos.org/dl/search.php).
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do gênero, 25 mas ficaram circunscritos a descrições baseadas nas traduções dos óstracos
(principalmente) e em análises iconográficas (BLACKMAN 1925; 1926; ČERNY, 1935; 1942;
1962; 1972).
As práticas oraculares no Egito ficaram conhecidas para nós graças aos relatos de
Heródoto e evidências posteriores do período romano, como os textos de Apuleio, por exemplo.
Heródoto menciona os oráculos dedicados aos animais, mas não há fontes egípcias que
comprovem essa afirmação (ČERNY, 1972). O número de publicações sobre o tema é limitado
e se concentra principalmente em dois períodos, o Novo Império (óstracos em hierático) e o
período greco-romano, com textos em grego e demótico (RYHOLT, 1993). Os textos em copta
para períodos posteriores são mais raros.
Para os egípcios, os oráculos serviam como verdadeiros guias e tinham uma enorme
importância para a tomada de decisões de todos os tipos, chegando a influenciar a escolha de
altos cargos, inclusive dos faraós, como fez Hatshepsut ao evocar o oráculo do deus Amon para
legitimar o seu reinado. No Egito antigo, há indícios de que as práticas tenham se desenvolvido
em períodos mais tardios, principalmente a partir do Novo Império (BAINES, 1973; ČERNY,
1962; VALBELLE e HUSSON, 1998; GEE, 2002; STADLER, 2008).
Não se sabe exatamente como funcionavam os oráculos egípcios. As fontes nos informam
mais sobre as consultas realizadas pelos faraós, mas pouco se sabe sobre as consultas dos grupos
menos privilegiados. Os reis tinham acesso direto aos templos e podiam consultar os deuses em
seus santuários, que eram áreas restritas. Todavia, muitas dessas consultas foram realizadas pelos
faraós em festas públicas, como o Festival Opet, por exemplo (ČERNY, 1962: 36).
As pessoas comuns, por outro lado não tinham acesso direto aos templos. Restava-lhes
duas opções: a primeira era a dependência do sacerdote como intermediário para entregar as
perguntas e dar a devolutiva das respostas; a outra oportunidade era durante as festas onde a
estátua do deus vinha a público em procissões. Durante o Novo Império, há registros de que
estátuas das divindades poderiam agir como intermediários dos indivíduos que quisessem
consultar os oráculos (BAINES, 1987: 90). Aparentemente, tais estátuas eram uma referência de
que havia indivíduos agindo como intercessores diante dos deuses em períodos anteriores
(Idem), mas isso é apenas uma possibilidade. Contudo, é possível ver uma continuidade entre as
práticas oraculares, as ações intermediárias dos indivíduos e os festivais públicos no que diz
respeito ao exercício de se comunicar com os deuses.
A vila de Deir el-Medina apresenta indícios de pequenos santuários dedicados ao deus
Amon e parte das fontes indica a participação das pessoas em procissões e consultas públicas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
25 Com exceção de Sweeney (2008) que estudou as práticas oraculares em Deir el-Medina sob a ótica do gênero.
138!
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“that here either too versions, one positive and other negative, or
two slips, one written and the other blank, were submitted to the
deity, perhaps in a vessel from which the answer was then drawn”
(1962: 47).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
26A estátua da divindade nunca era vista pelos presentes.
27 Apresence grega no Egito, contudo, não parece ter modificado o modo como as atividades oraculares eram
conduzidas. É possível perceber algumas influências na redação dos textos com alguns elementos gregos e egípcios
combinados, o que possivelmente deriva de escribas e sacerdotes egípcios aprenderem o grego.
139!
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2002: 84), como o famoso relato bíblico de José que interpretou os sonhos do faraó.28!
Baines (1987: 93) menciona rapidamente a presença de tA rxt, a “mulher sábia” em Deir
el-Medina. As referências a consultas a uma “adivinha” (seer) não parecem indicar um evento
isolado, mas ao contrário, uma prática comum. Nesse tipo de consulta, a figura feminina é a em
geral o do médium e pode prever outras consultas aos oráculos públicos, por exemplo, e
responder as cartas aos mortos.
A antropologia explorou a relação com o sobrenatural de diversas maneiras, a magia e as
possessões foram notadamente influenciadas pelo trabalho de Evans-Pritchard, Witchcraft, Oracles
and Magic among the Azande. A visão ocidental viu a magia em grande parte como uma atividade
própria de sociedades primitivas. Apesar do esforço dos pesquisadores para reconhecer na magia
sua racionalidade própria, seu conjunto de regras e lógica, parece predominar ainda a visão de
que a experiência empírica é desconsiderada, ou seja, há uma tendência em analisar esses
fenômenos como “falsos”. De acordo com Winkelman:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
28!As Instruções a Amenenhat, que datam do Médio Império, trazem o relato do rei morto que aparece em sonho
para instruir o filho Senusret I.
29 Para os fins dessa apresentação, utilizo o termo “espíritos” em sua ideia mais geral. Não pretendo discutir o termo
140!
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algum tipo de possessão divina que é, necessariamente, incorporada (embodied) pelo médium.
Essas experiências em geral estão associadas a processos de dissociação e performance em
tempo real, com impacto direto na vida cotidiana.
No Egito, a comunicação com o sobrenatural por meio da escrita (e da arte) pode estar
associado à transformação de diversas experiências em uma experiência sensorial (STORCH,
2010: 15), em que um tipo especial de “mídia” transforma o imaterial em algo presente e
perceptível aos sentidos (DONNAT, 2010: 51). Portanto, a escrita e a arte não são meros
substitutos de algo “que não está ali”.
Poderíamos mencionar ainda nos tempos modernos, os memoriais de guerra e, entre os
mais recentes, o memorial dos atentados do 11 de Setembro de 2001, em Nova York como um
tipo de comunicação com os mortos. No local onde as Torres Gêmeas outrora existiram é
possível ler os nomes das vítimas, ver suas fotografias e deixar mensagens. Muitas das mensagens
às vítimas têm em comum pedidos de perdão, ajuda, o desejo dos vivos de serem vistos e o
desejo de que o morto esteja bem, tipo de registro que também pode ser visto nos cemitérios.
As cartas egípcias para os “mortos” (o akh) durante o período faraônico, em especial os
Antigo e Médio Impérios, parecem fazer parte de um conjunto de ritos funerários de
apaziguamento (pacification ritual). Donnat (2010: 69) acredita que as cartas aos mortos eram
também direcionadas aos deuses e que eles poderiam servir como testemunhas de que os ritos
eram realizados. A autora reforça a importância dos textos escritos que poderiam, em última
instância, servir como prova da realização dos rituais, não um substituto, mas um complemento
deles, embora nunca tenham feito parte de um “cânone funerário”. Elas são uma resposta a uma
necessidade atual (DONNAT, 2010: 70).31
Moreno Garcia (2010) aponta alguns indícios para o desenvolvimento das práticas
oraculares no Egito. De acordo com o autor, as cartas aos mortos desaparecem gradualmente ao
longo do período faraônico, paralelamente ao crescimento do número das cartas endereçadas aos
oráculos, durante o Novo Império. Tal variação seria explicada pelo desenvolvimento de uma
relação direta dos indivíduos com os deuses. Nesse novo modelo, os familiares mortos não
seriam mais necessários como intermediários entre os dois mundos, uma vez que a relação dos
indivíduos com os deuses já está posta num novo tipo de religião “oficial”: o faraó e os deuses
agem como novos intermediários entre os dois mundos (MORENO GARCIA, 2010: 153).
No que diz respeito aos textos demóticos, esse processo de individualização fica
evidente. Do mesmo modo, as cartas trazem temas pessoais em que os deuses podem interferir,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
31 Apesar das cartas terem algumas fórmulas padronizadas e similaridades formais, não podemos atribuir um cânone
a esse tipo de escrita, como acontece com outros documentos, por exemplo. Os escribas aprendiam as formulas
copiando-as de outras cartas, mas as mensagens eram personalizadas.
141!
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mencionada. Curiosamente, em nenhum dos textos, a pergunta ao deus é feita com base nas
características da parceira. Não sabemos se elas são “adequadas” ou não, se sabem cozinhar,
lavar ou passar, ou se são boas amantes. Mas a boa sorte do casamento está associada
diretamente à figura feminina.
Pergunta-se aos deuses aquilo que, na condição de mortal, não se tem garantia de atingir
sozinho. As divindades orientariam a ação masculina na escolha da esposa. Os papiros mostram
que a certeza da obtenção de sucesso no relacionamento depende de outra pessoa, no caso a
mulher. Portanto é a figura feminina a responsável pelo bom casamento e pelo seu legado (bens,
flihos, etc.), ainda que caiba ao homem torna-la apta para isso. “Ser esposa” é uma condição a ser
adquirida pela mulher, através da ação do homem. A mulher não tem uma pré-condição para ser
esposa, mas o homem tem os instrumentos que podem torna-la apta a exercer sua função.
Nas máximas de Ptah-Hotep, por exemplo, o papel masculino na manutenção do
casamento é apresentado de forma que cabe ao homem a responsabilidade na satisfação da
esposa e que, a partir disso, ela será capaz de multiplicar os bens do marido:
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34 Asestimativas, todas inconclusivas, variam entre 1 a 5% de pessoas letradas no Egito. Contudo, qualquer tipo de
afirmação é incerta.
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Papiros35
P. Carlsberg 428
Número Trimegistos: 44483
5,8 x 7,2 cm.
Carta; questão ao oráculo
Localização da Fonte: Copenhagen, Carlsberg Papyrus Collection P. 428
Data: aprox. 2 a.C.
Local de escrita: Tebtunis
Proveniência da Fonte: Tebtunis
Língua: egípcio/demótico
P. Berlin 23544
Número Trimegistos: 44486
7,0 x 9,5 cm
Carta; questão ao oráculo
Localização da Fonte: Berlin, Ägyptisches Museum.
Data: possivelmente ptolomaico
Local de escrita: possivelmente Mênfis
Proveniência da Fonte: possivelmente Mênfis
Língua: egípcio/demótico
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
35 Os textos aqui apresentados não apresentam a transliteração. Para isso ver Silva (2013).
146!
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AS(ESTELAS(FUNERÁRIAS(COM(O(MORTO(RECLINADO(EM(
UMA(CAMA(FUNERÁRIA:(ETNIA,(IDENTIDADE(E!
EMARANHAMENTO(CULTURAL(NO(BAIXO(EGITO(DURANTE(
O(PERÍODO(ROMANO(
Pedro Luiz Diniz Von Seehausen
Museu Nacional/UFRJ
Resumo: As interações culturais ocorridas no Egito durante o período romano marcaram profundamente sua
cultura material. Neste sentido, as estelas funerárias com o morto reclinado sob uma cama funerária consistem na
reinterpretação pela sociedade egípcia de um modelo em voga no oriente próximo. Através da análise de um
exemplar proveniente de Therenoutis, discutiremos questões de etnia, identidade e emaranhamento cultural no
Baixo Egito.
Abstract: Cultural interactions that occurred in Egypt during the Roman period profoundly marked their material
culture. In this regard, the funerary stelae with the dead reclining in a funerary bed consist in a reinterpretation by
the Egyptian society of a model in use in the Near East. Through the analysis of an stelae from Therenoutis, we will
discuss issues of ethnicity, identity and cultural entanglement in Lower Egypt.
Introdução
150!
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período. Optamos neste artigo por focar o nosso objeto de analise nas estelas funerárias do
Baixo Egito durante este período, mais especificamente da necrópole de Therenoutis.
As estelas são um suporte funerário utilizado nas três grandes etnias que influenciaram o
panorama cultural do Egito Romano. Com o intuito de fugirmos de interpretações baseadas em
conceitos como romanização, ou interpretações levianas que assemelham-se a fórmulas
matemáticas simples como “cultura grega + cultura romana + cultura egípcia = Egito Romano”,
discutiremos brevemente sobre o conceito de etnia, hibridismo e emaranhamento cultural.
Posteriormente, contextualizaremos superficialmente alguns dos aspectos da política romana
atuante no Egito, e analisaremos a estela RC 2246 localizada no Rosacrucian Egyptian Musem
em San José.
Etnia
O desejo de vincular identidade e etnia aos objetos e monumentos é uma preocupação
recorrente na história da arqueologia. Desde o período da renascença em diante, a cultura
material é classificada e dividida entre determinados grupos como por exemplo, romanos,
gregos, e saxônico. Posteriormente, o avanço do nacionalismo no século XIX, gerou um terreno
fértil para estudos preocupados com a classificação de traços arqueológicos e a vinculação destes
a identidades nacionais. Durante as primeiras décadas do século XX, o histórico culturalismo partia
do principio que a cultura material do passado refletia diretamente aos grupos étnicos do
presente(ver Trigger 1996). Todavia, apesar de o histórico culturalismo possuir grande
preocupação com o estabelecimento de ligações entre os remanescentes arqueológicos e os
grupos étnicos atuais, a história intelectual do termo etnia é relativamente recente. Não havendo
grande preocupação com a definição deste, o conceito de etnia só ganhou uma importância
estratégica dentro da teoria antropológica em meados da década de 1970. Esta mudança fora
diretamente influenciada pela mudança no cenário geopolítico com a independência das colônias
na Ásia e na África e o ativismo de minorias étnicas. A particularidade destes eventos fez surgir
uma gama de teorias de etnicidade tencionadas a explicar a diversidade deste fenômeno.
Sokolovskii e Tishkov, categorizam as diferentes teorias de etnicidade em três tipos:
“primordialistas”, “instrumentalistas” e “construtivistas”(2010: 240-243).
Simplificando bastante, a visão primordialista, está baseada na ideia de que existe algo
real e tangível na formação da identificação étnica e pode ser subdividida entre aqueles que
acreditam que a etnicidade pode ser vista predominantemente como um fenômeno biológico e
aqueles que acreditam que esta seja o produto particular da cultura e a história (SOKOLOVSKII
et TISHKOV: 2010:241). As diferenças conceituais entre ambas as visões primordialistas, são
151!
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enraizadas nos diferentes modos de compreensão da natureza humana e sociedade. Nos estudos
fortemente influenciados pelo evolucionismo, a etnia é frequentemente conceituada como
determinada pela genética e influenciada por fatores geográficos. Encontramos neste contexto,
o caso da sociobiologia, que possuía como tese principal a ideia de que grupos étnicos humanos
são basicamente grupos de parentesco entendido ou coletividades baseada na descendência
(SOKOLOVSKII et TISHKOV: 2010:241). A visão primordialista de que a etnia é definida a
partir da história e cultura de um povo foi adotada em grande escala pela Antropologia Soviética,
que apropriou-se do conceito de Volk criado por Herder durante o período neo-romântico
alemão. Sokolovskii e Tishkov citam o exemplo dos trabalhos de S.M Shirokogov (1923) e Y.V.
Bromley (1981) que definem etnicidade como um grupo de pessoas falando a mesma linguagem,
com os mesmos costumes, e vivendo na mesma terra (2010:241).
Também simplificando bruscamente, as teorias de etnicidade pautadas na visão
instrumentalista percebem o fenômeno da etnicidade como um instrumento político que pode
ser utilizado por lideres e outros em uma busca pragmática de seus interesses. Ao final da
década de 1960 e no inicio da de 1970, as teorias de modernidade e modernização tratavam a
etnicidade como um fenômeno marginal remanescente do mundo pré-industrial, que com o tempo
seria superado pelo avanço do estado moderno e os processos de integração nacional e
assimilação.36
Nestas teorias altamente influenciadas pelo funcionalismo, acreditava-se que a afinidades
culturais eram exploradas como base para afiliações intergrupais em disputas políticas. As
práticas culturais e valores destes grupos étnicos transformavam-se em símbolos de identificação
para membros de um determinado grupo, que também serviam ferramentas políticas de uma
elite na busca de poder. Esta visão do conceito de etnia estava fortemente pautada no utilitarismo.
As abordagens construtivistas colocam sua ênfase na fluidez e contingência do o da
identidade étnica, tratando-a como produto de determinados contextos sociais e históricos. F.
Barth define a etnicidade como uma atribuição que classifica a pessoa em termos mais gerais e
inclusivos, presumidamente determinada pela origem e background. Entretanto, para Barth, o
processo de construção da identidade étnica também é definido pelos mecanismos de fronteira
do grupo, baseado não na possessão de um determinado inventário cultural, e sim na
manipulação de identidades derivada do contexto.(1969:19). Em linhas gerais, o processo de
construção da identidade é definido pela negociação da fronteira étnica. Esta concepção permitiu os
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
36Neste período, o conceito de assimilação ainda estava em voga na antropologia norte americana e só fora cair em
desuso em meados da década de 1970.
152!
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conforme o contexto social, colocando grande importância na análise do contexto social para a
compreensão da etnicidade.
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Posto este cenário, somos compelidos a concordar que definir culturas como “pura” e
“mestiça” não é um papel que caiba mais a arqueologia, uma vez que a noção de “pureza” em
termos culturais é fortemente marcada pela xenofobia. Neste sentido, Stockhammer, propõem a
aplicação de outro termo para designar os processos culturais enquadrados como híbridos:
emaranhamento cultural. Este seria uma adaptação dos termos Geflecht e Verflechtung do alemão, que
em português também podem ser traduzidos como integração. Conforme nos esclarece
Stockhammer , o termo emaranhamento cultural nos auxiliaria a fugir de classificações taxonômicas
entre “puro” e “hibrido”, e também adicionaria uma noção de agência ao processo (2012: 47).
Devido a particularidade das fontes arqueológicas, Stockhammer divide a noção de
emaranhamento cultural em dois tipos: “emaranhamento relacional” e “emaranhamento material”(2013: 17).
O primeiro cenário poderia ser descrito quando um objeto é apropriado e integrado as práticas e
sistemas locais. Neste caso, mesmo que a relação humana com o objeto tenha alterado as
práticas culturais e a percepção do mundo material daquele grupo, o artefato permanece
inalterado. O emaranhamento relacional é altamente dependente do contexto arqueológico para ser
reconhecido e interpretado, pois somente através deste, é possível identificar os processos de
apropriação. Caso o contexto arqueológico seja perdido, como é o caso da maioria das estelas
trabalhadas nesta dissertação, o artefato apropriado só pode ser identificado caso esteja
enquadrado no segundo tipo: emaranhamento material. Este ultimo pode ser quando o processo de
apropriação resulta na criação de um novo artefato com partes de sua própria cultura e da
estrangeira. Contudo, como nos alerta Stockhammer, este processo é muito mais do que a junção
partes de duas culturas, e sim a criação de algo novo, representando uma nova “entidade
taxonômica”.
Este conceito proposto por Stockhammer assemelha-se muito com a noção de hibridação
desenvolvida por H. Bhabha, que enxerga nos processos de hibridismo a criação de um terceiro
espaço totalmente novo (2007). Contudo, a noção de emaranhamento nos permite fugir das
armadilhas morfológicas do termo hibridismo.
155!
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Contextualização
Uma das medidas políticas mais marcantes de Roma fora gerada pela tentativa de
cooptação da elite local do Egito Romano. Conforme nos esclarece Macmullen, além da
apropriação de estruturas culturais locais, também fazia parte da estratégia política de Roma; a
cooptação das elites locais, com o intuito de facilitar a administração da provincial (2000; 2). Esta
tática fora difundida ao longo de todo o império e modificara bruscamente o substrato cultural e
religioso de diversas províncias. No Egito, esta política tomou um rumo bastante particular, uma
vez que Augusto teve de “criar” uma elite favorável a Roma. Esta elite deveria ser de origem
“grega” para contrapor-se aos egípcios nativos, grande maioria da população. Contudo, a elite de
Alexandria por ser aliada dos Ptolomeus não era confiável à nova administração. Deste modo, a
administração imperial optou pela “criação” de uma elite “grega” favorável a Roma na chora.
Esta elite vivia nas metrópoles e apesar de não possuírem todas as vantagens dos cidadãos de
Alexandria gozavam de vários privilégios e seu poder só aumentou no decorrer do período
romano.
Como mencionado anteriormente, ao final do período Ptolomaico era difícil traçar uma
divisão étnica sistemática entre “gregos” e “egípcios”, uma vez que além do forte emaranhamento
cultural na região(principalmente no Delta) população do Egito tornou-se extremamente
miscigenada ao longo dos quase 300 anos da dominação grega. Deste modo, para a cooptação
da elite “grega” na chora, Roma teve de elaborar uma divisão entre “gregos” e “egípcios”.
No Egito Romano a divisão jurídica da sociedade se deu da seguinte forma: i) cidadãos
romanos (cives romani) – romanos, elite grega (alexandrinos promovidos à condição de cidadão
romano e também a elite que habitava as metrópoles da chora); ii) cidadãos peregrinos (cives
peregrini) das três e, posteriormente, quatro póleis do Egito (Alexandria, Ptolemaida, Náucratis e
Antinoópolis); iii) peregrinos não cidadãos (peregrini Aegyptii). Na escala social vinham, em
primeiro lugar, os cidadãos romanos, classe esta formada pelos altos funcionários do Império,
por notáveis alexandrinos e por legionários ou veteranos do exército. Em segundo lugar, vinham
os gregos das quatro cidades gregas do Egito e os judeus e, por último, os egípcios nativos. A
cidadania era concedida por motivos políticos e não étnicos. No entanto, a etnicidade servia à
prática política de privilegiar os categorizados enquanto “gregos” em detrimento dos “egípcios”.
Para estabelecer esta separação os romanos tiveram que adotar um critério de etnicidade
baseado na descendência e na participação da instituição do gymnasium. O grau de “helenização”
era medido por meio de três critérios: propriedade fundiária, habitação urbana e educação grega.
Estabelecido estes critérios, o valor dos impostos pagos a Roma dependiam do grau de
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Data: II a IV d.C
Procedência: Terenouthis
Material: Calcário
Dimensões: Altura: 24cm. Largura: 18cm.
Técnica: Alto e Baixo relevo.
Localização atual: San José, Rosacrucian Egyptian Musem RC2246
Imagem retirada de: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:FuneraryStele-
RomanEra_RosicrucianMuseum.png
Descrição
Estela retangular representando um edifício com duas colunas sustentando um frontão
retangular. O homem careca vestido a moda helenística está reclinado sob a cama funerária. Ele
segura uma taça com o braço direito e uma guirlanda de flores com a esquerda. No topo
esquerdo está a figura de um chacal sentado em posição de repouso. Abaixo da cama funerária
estão os elementos do banquete funerário: o ramo de flores, a ânfora,um vaso e uma mesa de
158!
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três pernas contendo dois copos e dois vasos. As linhas foram traçadas para o epitáfio, mas não
encontramos nenhum sinal dele.
Comentários
As estelas de Therenoutis apresentam ao todo 4 tipos de cenas diferentes: i) o morto
recostado em uma cama funerária, ii) o morto(ou mortos) em posição a de adoração, iii) o
morto em um barco funerário, e por fim iv) as cenas de família que combinam elementos dos
tipos 1,2 e 3.
Nesta variedade de cenas, o falecido pode estar representado dentro de um círculo, ou um
edifício, como no exemplar analisado. O edifício normalmente é representado por um frontão
triangular ou curvo, sustentado por duas colunas papiriformes ou lotiformes. O intuito deste tipo
de iconografia é representar o falecido como um devoto, diante da grande entrada de um templo
(HOOPER,1961; 22). Deste modo, os edifícios presentes nas estelas funerárias são bastante
semelhantes aos propileus dos templos do período greco-romano.
Neste padrão de estela o morto está recostado em uma cama com o braço direito
apoiado sob duas almofadas e o esquerdo segurando uma taça ou um prato de libação. A
utilização deste tipo de cena consiste na releitura de um modelo em voga no oriente próximo. O
mote do morto recostado sob uma kliné em um banquete vem da tradição helenística sendo
amplamente utilizado na parte oriental do império romano. No caso das estelas de Therenoutis,
o banquete é representado abaixo da cama funerária, retratado por um ramo de trigo, uma mesa
de três pernas e uma ânfora.
Conforme nos esclarece Kurtz e Boardman, este tema está associado ao motivo do
banquete que surgiu na Grécia a partir do século VI a.C com o intuito de representar o morto
como um herói descansando no Elísio (1971, 234). Este tema foi introduzido pelos gregos sendo
adaptado e reinterpretado em diversas regiões do oriente próximo. Entretanto, conforme nos
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As cenas com o morto reclinado sob uma cama funerária não são exclusivas das estela
funerárias. Este tipo de motivo também é encontrado em estátuas de terra cota ao longo de todo
o Baixo Egito.
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Estátua de terracota com o morto recostado. Mênfis I d.C. Museu do Louvre: E 26919.
Imagem retirada de: http://cartelfr.louvre.fr/cartelfr/visite?srv=car_not_frame&idNotice=36816&langue=fr
No caso do Egito, em todos os exemplares, o morto está representado frontalmente e vestido a moda helenística,
com o himation e o chiton. Este tipo de estela mistura constantemente elementos em alto relevo e baixo relevo, e o
falecido pode estar representado tanto em alto relevo, quanto em baixo relevo.
A presença de um chacal no canto esquerdo é comum neste tipo de cena. Assim como
nas estelas do Alto Egito, a intenção deste elemento na iconografia da estela é de representar
Anúbis. Localizado sempre dentro do edifício e no canto esquerdo da cena, o chacal pode ser
encontrado em duas posições: sentado em posição de alerta ou sentado em posição de repouso.
Os epitáfios poderiam ser esculpidos, ou pintados, o que explicaria o epitáfio deixado em
branco da estela analisada. De um modo geral, os epitáfios apresentam uma forma simples
contendo o nome do falecido, a idade e alguma pequena mensagem de pesar como “adeus”, ou
“morreu antes de seu tempo”. Como o exemplar analisado neste artigo não possui o epitáfio,
não nos aprofundaremos neste detalhe.
Conclusões
Entendemos que este contato entre duas culturas resultou em um emaranhamento material.
Este último pode ser quando o processo de apropriação resulta na criação de um novo artefato
com partes de sua própria cultura e da estrangeira. Contudo, como nos alerta Stockhammer, este
processo é muito mais do que a junção partes de duas culturas, e sim a criação de algo novo,
representando uma nova “entidade taxonômica” (2013;13). Assim como em outros exemplos da
cultura material, este emaranhamento material pode ser vividamente percebido no caso das estelas
com o morto recostado sob uma cama funerária.
Apesar deste tipo de cenas serem um modelo comum em voga no Oriente Próximo, sua
adoção no Egito foi marcado certas especificidades. As políticas estabelecidas por Augusto
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fizeram revigorar o sentimento de etnicidade dos habitantes do Egito Romano, onde pertencer à
etnia grega passou a ser enormemente valorizado e almejado por muitos. A popularidade deste
modelo é uma conseqüência disto. A cena de banquete deriva da tradição grega, e o morto é
sempre representado vestido à moda helenística. Contudo, apesar destes fatores, ainda é
possível ver elementos oriundos do cânone egípcio. A presença de um chacal representando
Anúbis, e a preocupação em representar o morto como um devoto indica que estes elementos
ainda estavam vivos no sistema de crenças do Egito Romano. Deste modo, este tipo de cena
reflete bem a criação de uma nova “entidade taxonômica”, onde ocorre uma releitura de um
modelo de estela comum no Oriente Próximo, pelos habitantes do Egito Romano, baseados em
seu próprio sistema de crenças.
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ADRIANO(E(O(EGITO:(A(CONSTRUÇÃO(DE(UM(MODELO(
EGIPCIANIZANTE(PARA(A(VILLA(ADRIANA(
Evelyne Azevedo
Museu Nacional/ UFRJ
Resumo: O objetivo deste trabalho é mostrar como a arte romana se apropriou de elementos egípcios para
construir um gosto egipcianizante nas esculturas da Villa Adriana e determinar em que medida a arte romana
estabeleceu uma relação de recepção com a arte egípcia. Acreditamos que a análise dos elementos que constituem
cada uma das esculturas associados ao seu local de descoberta formam um programa iconográfico idealizado pelo
Imperador e que era baseado na relação Roma-Grécia-Egito.
Abstract: The objective of this work is to show how Roman art appropriated Egyptian elements to build an
egipcianyzing taste in Hadrian’s Villa sculptures and determine the extent to which Roman art has established a
relationship with the reception of Egyptian art. We believe that the analysis of the elements of each part of the
sculptures form an iconographic program conceived by the Emperor that was based on the relation Rome-Greece-
Egypt.
A Villa Adriana era originalmente uma vila de origem republicana e que, possivelmente já
pertencia à família Elia, as obras do complexo construído por Adriano começaram já no ano 117
d.C., quando ele é nomeado imperador. Tratava-se de sua residência imperial afastada de Roma e
incluía uma série de edifícios que a tornaram um espaço monumental, não só por suas
dimensões, mas também pela riqueza de sua decoração. Mármores vindos de todo Mediterrâneo,
esculturas, afrescos e mosaicos decoravam os inúmeros edifícios que compunham a Villa.
As vilas ganharam importância durante a República, mas é durante o Império que elas
adquiriram um caráter luxuoso, com elementos inspirados na arquitetura grega, transformando-
as em lugares não só de ócio, mas também dedicados à cultura. Nestes espaços, deu-se início a
construção da Grécia como lugar de cultura. Academias, bibliotecas, mas, sobretudo, vastos
conjuntos escultóricos faziam parte dessas construções.
A Villa Adriana foi alvo de interesse arqueológico desde o século XV, mas foram as
escavações dos anos 1970 em diante que procuraram ter uma maior precisão científica,
interessadas em registrar os locais dos achados e não apenas o que era encontrado
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1990. Trabalhos como o de Adembri, Mari e Cacciotti atribuem a toda a Villa espaços egipcianizantes.
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O trabalho de Ligorio lhe rendeu duas importantes obras: o “Livro sobre a Villa Adriana
Tiburtina” e o “Tratado sobre a Antiguidade de Tivoli e da Villa Adriana”. Sua obra tornou-se
amplamente difundida e copiada, tendo sua descrição servido de guia para as escavações
posteriores. Verificada e desenhada por Francesco Contini na segunda metade do século XVII, a
planta proposta pelo primeiro, junto com sua descrição foi republicada sob as ordens do Cardeal
Barberini em 1668. Em 1751, as obras de Ligorio e Contini foram resumidas e publicadas em
edição bilíngüe.
Data ainda do final do século XVII, uma outra importante referência sobre a Villa
Adriana. Em 1671, Athanasius Kircher publicou sua obra sobre o Lácio, sede do Império
Romano e origem de sua sapiência. A região era importante não só por suas construções, mas
também pela sua natureza. Assim a obra se divide em cinco livros: no terceiro, “Sobre a
Antiguidade da Urbe tiburtina”, Kircher fala sobre a Villa Adriana. Em sua descrição da vila, dois
textos são fundamentais: o “Tratado da Antiguidade de Tivoli e da Villa Adriana” de Ligorio e a
História Augusta. Em sua autobiografia, Kircher nos conta que a inspiração para escrever sobre
a região onde nasceu o Império Romano surgiu enquanto ele realizava suas pesquisas de campo
para escrever sua Historia Eustaquio Mariana.
Kircher dedicou um amplo conjunto de obras à Antiguidade, a maioria delas dedicada ao
Egito, que por sua vez, não deixou de fazer suas aparições, ainda que indiretas nas outras obras
fosse na forma de citações, fosse em reproduções de peças egípcias. Como na reprodução do
Mosaico da Palestrina que representaria o cotidiano às margens do Nilo.
De acordo com Élio Esparciano na Hitória Augusta (TEIXEIRA; BRANDÃO; RODRIGUES,
2011: 10)39, no verso 26, Adriano: “Era de estatura elevada, aparência elegante, o cabelo penteado
as ondas, barba crescida, de modo a cobrir as cicatrizes congênitas que tinha na face, compleição
robusta. Andava muito a cavalo e a pé e exercitava-se continuamente com armas e com dardos.
Caçava muitíssimas vezes leões e matava-os com as suas próprias mãos. Foi a caçar que partiu
uma clavícula e uma costela. Partilhava sempre a caçada com os amigos. Nos banquetes,
apresentava sempre, conforme a situação, tragédias, comédias, atelanas, tocadoras de sambuca
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
39 De acordo com a recente tradução da História Augusta “O primeiro volume da HA inclui as Vidas de Adriano,
Élio, Antonino Pio, Marco Aurélio, Lúcio Vero, Avídio Cássio e Cômodo. Acredita-se que sua redação date do séc.
IV, pois refere-se a acontecimentos dessa época. Outra questao e a da autoria. As Vidas aparecem atribuidas a seis
autores: Elio Esparciano, Julio Capitolino, Vulcacio Galicano, Elio Lampridio, Trebelio Poliao e Flavio Vopisco.
Tambem a este respeito parece actualmente bastante consensual a ideia de que e obra de um so autor, disfarcado
sob a capa de outros nomes.As diversas designacoes para a autoria das varias secções podem ate ser nomes falantes.
Uma chave para esta interpretacao podera ser a conexao estabelecida entre o nome e o caracter de certos
biografados. Para este autor, por exemplo, Spartianus e severo, ‘espartano’, biografo de imperadores hostis ao
senado; Capitolinus liga-se ao Capitolio e por isso ao senado; Lampridius e frivolo, para imperadores frivolos; Vulcacius
Gallicanus lembra Vulcacio Rufino, rebelde da Galia, e portanto assume a autoria de Vidas de rebeldes. Nao se trata,
pois, de uma historia veridica: os criticos tem salientado que alguns factos sao ficcao.”
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(espécie de harpa tocada por mulheres de ma reputação), leitores e poetas. Edificou a Villa de
Tibur de forma tão extraordinária, que nela inscreveu os nomes de locais bastante célebres das
províncias, como o Liceu, a Academia, o Pritaneu, o Canopo, o Pecile e o Tempe. E, para nada
deixar de fora, ate incluiu os infernos” (TEIXEIRA; BRANDÃO; RODRIGUES, 2011: 70-71).
Esta descrição dos ambientes que compunham a vila rege o trabalho de Ligorio, que a
divide em nove partes, subdivididas, e marcadas por letras, de acordo com o seu mapa, que ele
insere no livro40. Este mesmo mapa é utilizado pelo jesuíta alemão em sua obra. Kircher não
criou um mapa para o Lácio, nem mesmo inseriu um ponto importante referente a uma
passagem bíblica. Sua descrição da Villa Adriana é baseada nas autoridades que o precederam. A
Antiguidade delineada por este que foi considerado um dos maiores eruditos seiscentistas,
situava-se entre um tempo intangível, ao qual pertenciam o Egito e a Mesopotâmia, revelados
apenas àqueles iniciados nos seus mistérios; e um tempo palpável, conhecido e visível: o tempo
da Antiguidade Clássica, cuja sabedoria remontava àquele tempo suspenso da Antiguidade
bíblica, próximo-oriental.
A Villa Adriana passou para o imaginário de antigos e modernos por sua esplêndida
arquitetura, sua rica decoração e seu espaço monumental. Mas também pela mítica envolvendo
seu idealizador, o Imperador Adriano. Apaixonado por um jovem grego, Antínoo, morto
durante a viagem ao Egito, Adriano edificará em sua memória inúmeras estátuas e fundará
inclusive, uma cidade em sua homenagem, Antinópolis. A dor da perda foi associada à imagem
romântica de um amor potencialmente dramático interrompido pela morte.
As vilas foram consideradas pela Tradição Clássica locais de descanso e refúgio,
ambientes de natureza bucólica que remetessem às descrições campestres virgilianas. Utilizada
como modelo, a Villa Adriana influenciou as construções das vilas renascentistas, como, por
outro lado, teve a sua arquitetura descrita de acordo com aquilo que era valorizado pelas
correntes classicistas41.
Esta é, no entanto, a fortuna crítica que se construiu em torno da imagem de Adriano.
Contudo, é importante lembrar que o Egito não era apenas o local onde o favorito do Imperador
havia morrido, mas era, principalmente, uma das mais, se não a mais importante província
romana. De onde ainda emergiram as divindades cultuadas na capital do Império e adoradas
pelos próprios imperadores.
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40 A nomenclatura utilizada por ele, apesar de incorreta, é utilizada até hoje em função de sua longa continuidades na
literatura sobre a Villa e será mantida neste trabalho.
41 Sobre a arquitetura da Villa e sua trajetória, ver MacDONALD, W. L.; PINTO, J. A., Villa Adriana. La costruzione e
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conjunto estatuário da vila pode ser atribuído um programa iconográfico que incorporava tanto a
arte egípcia quanto grega. A partir da análise das esculturas egipcianizantes da Villa Adriana e de
como elas se tornaram um modelo estatuário de elementos relativos ao Egito, pretendemos
mostrar de que maneira Adriano procurou estabelecer um significado político e religioso à sua
Villa e através de que elementos artísticos.
Acreditamos que as construções realizadas por Adriano entre os anos 117 e 138 d. C.
obedeciam a uma agenda iconográfica que foi utilizado por ele não só em Roma, mas em todo o
Império. Pretendemos mostrar de que maneira a incorporação de elementos egípcios na
estatuária romana se tornou parte de um importante programa artístico. Objetivamos, portanto,
mostrar como as esculturas egipcianizantes da Villa Adriana se tornaram um modelo a ser
copiado por todo Império, mas não na forma de um gosto pessoal e sim, na de um programa
iconográfico que pretendia recuperar elementos já conhecidos de uma tradição longamente
anterior a ele e que tinha grande importância na religião e política imperiais.
As esculturas egipcianizantes da Villa Adriana estavam dispostas em espaços específicos
do complexo e foram encontradas em locais que foram definidos pela literatura recente. Entre
esses trabalhos estão o de Raeder, de 1983, o de De Franceschini de 1998 e finalmente, o de
Salza Prina Ricotti, de 2001. O trabalho pioneiro de Raeder apresenta um catálogo das esculturas,
mas nenhum deles, no entanto, traz as imagens correspondentes. Além disso, recentes
descobertas devem ser somadas ao conjunto de obras existentes.
Partiremos, portanto, destes trabalhos, sobretudo o de Salza Prina Ricotti, mais recente e
que apresenta vasta pesquisa sobre as primeiras campanhas de excavação. De acordo com ela, as
esculturas egipcianizantes foram encontradas na Palestra, Piazza d’Oro, vinha dos Jesuítas,
Roccabruna, área da Accademia, Cento Camerelle e Pantanello, restando ainda duas esculturas de
Antínoo-Osíris e uma cabeça monumental egipcianizante também de Antínoo, cujos locais de
descoberta não foram identificados.
Sua pesquisa, contudo, apesar de indicar a tumba-templo de Antínoo, não atribui
especificamente ao local os objetos encontrados nas áreas do entorno. Encontrado em 1998, os
primeiros resultados das escavações do Antinoeion (realizadas entre 2002 e 2004) foram
publicados somente no início dos anos 2000 (MARI, 2002-2003: 145-185). Podemos, portanto,
dividir o repertório egipcianizante em dois grandes grupos: o primeiro pertencente ao Antinoeion
e o segundo à Palestra. Ao primeiro pertencem às descobertas das áreas dos Cento Camerelle, vinha
dos Jesuítas, torre de Roccabruna e Accademia42. Sabemos, no entanto, muito pouco sobre os
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42 Oterreno que pertencia aos padres jesuítas abarcava não apenas a área que foi destinada à vinha, mas todas estas
construções.
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O Canopo
Constituído por um grande canal, decorado com elementos arquitetônicos e esculturas –
dos quais ainda restam algumas partes – seguido de um segundo, quadrado e bastante menor,
que culminam em um monumental edifício em forma de ninfeo, ricamente decorado e que era
formado por uma exedra e uma área tricliniar43; a construção do Canopo pertence à segunda fase
edilícia da Villa Adriana, e pode ser situada entre os anos 122 e 125 d.C. Destinado aos grandes
banquetes realizados pelo Imperador, a área poderia receber entre 420 e 1200 comensais
(SALZA PRINA RICOTTI, 2001: 249). O Canopo ocupa a parte central da Villa, situando-se
entre as duas áreas imperiais, do Teatro Marítimo e da Accademia.
Os padres jesuítas possuíam propriedades na área do Canopo e em 1744 fizeram
escavações nas quais encontraram uma série de esculturas egipcinizantes que hoje se encontram
no Museu Gregoriano Egípcio, no Museu Vaticano. Muitas delas desapareceram e as
conhecemos somente pelas descrições de Piranesi, Bulgarini e Nibby. Sobre as escavações, no
entanto, não possuímos nenhuma documentação (DE FRANCESCHINI, 1991: 11).
A última grande campanha realizada nesta área inclusive, remonta aos anos 1950, às
escavações de Salvatore Aurigemma que trouxeram à luz o Euripo. Seu sucesso, no entanto,
deveu-se à descoberta de mais de cinquenta estátuas, dentre as quais as Cariátides. Apesar de
relativamente recente, assim como nas escavações anteriores, Aurigemma estava interessado
somente nas esculturas, deixando completamente de lado o estudo do sítio e de sua estratigrafia
(DE FRANCESCHINI, 1991:15).
As escavações de Aurigemma, por outro lado, provaram que o Canopo era uma área
tricliniar, com suas latrinas e estibadios e não um templo (CHIAPETTA, 2008: 5). Para C.
Tiberi, o Canopo poderia ser considerado um santuário dedicado aos deuses samotrácios, a
exemplo de outros santuários como Delos e Alexandria (TIBERI, 1957-1958: 48). De acordo
com o autor, as esculturas gregas possuíam um significado complementar associado às Grandes
Divindades samotrácias e, portanto, aos cultos de mistério (TIBERI, 1957-1958: 66-70),
defendendo que seu culto estava integrado ao de Ísis e Serápis. E que, por conseguinte, seria
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43 Sobre a arquitetura do complexo e análise de sua estrutura, vide SALZA PRINA RICOTTI (2001: 241-263).
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O Antinoeion
O Antinoeion foi considerado inicialmente um mausoléo ou cenotáfio, e templo. Acredita-
se, no entanto, que ali residissem os restos mortais de Antínoo e o local fosse também sua tumba
como indica a inscrição do obelisco situado ali, o dito Obelisco Barberini ou de Antínoo. Era
constituído por uma grande exedra (27,30m de diâmetro) em forma de ninfeo precedida por dois
pequenos templos e todo o complexo era circundado por colunas e um muro. Entre os dois
templos encontrou-se uma base quadrada onde se acredita estivesse erigido o dito obelisco. Os
templos e a colunata eram integralmente feitos em mármore e os outros edifícios em tijolo
revestido de mármore ou estuque (MARI; SGALAMBRO, 2007: 83). Situado entre os Cento
Camerelle e o Grande Vestíbulo, o local era circundado ainda por tamareiras (MARI, 2010: 12) e
contava com área de 63 x 23m.
No témenos, cujo chão era decorado com mosaicos de mármore, estavam situados os dois
templos (cada um de 15 x 9m), de frente um para o outro, construídos em mármore pário. Cada
um deles constituído de um pronaos, cella e escadaria de acesso. Seus pisos e paredes eram
decorados em opus sectile e é bastante possível que as colunas do pórtico da exedra fossem de
mármore Chemtou, também conhecido como amarelo antigo (MARI; SGALAMBRO, 2007: 83-
84). A exedra encontrava-se em um plano realçado em relação ao témenos e era precedida por
duas pequenas piscinas separadas por uma escada e revestidas em mármore branco. De acordo
com Mari: “Ai lati di questa sono localizzati gruppi di ambienti accessibili da porte ricavate nel
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44 Ao lado destas estão localizados grupos de ambientes acessíveis por uma porta escavada no recinto: identificam-
se, à esquerda, um possível corredor descoberto pavimentado com mosaico de grandes peças e um ambiente
quadrado, com fundação para estátua ao fundo, antigamente pavimentado e revestido em sectile. O muro do lado sul
do recinto que aparece apoiado em um corte no banco de tufa, mostra uma parede-ninfeo de pequenos nichos
retangulares, de cada um dos quais cai um feixe de água nos dois tanques de fronte. Uma porta escavada da metade
da parede permitia o acesso, através de uma rampa, ao nível superior; aqui se encontra uma cisterna da qual partia
uma grande fistula plúmbea, que ramificando-se, alimentava a parede-ninfeo e os tanques à frente da exedra, mas que
deviam servir também para a irrigação. (Trad. nossa)
45 Não estamos em condições de estabelecer o grau de mistura entre a tradição clássica e a tradição greco-alexandrina
no Antinoeion. Essa combinação foi certamente mais evidente nas decorações dentro dos templos, mas do lado de
fora, havia uma discreta referência ao Egito – no obelisco, nos ornamentos esculturais, e o no plano. (Trad. nossa).
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A Palestra
O complexo da Palestra, que incluía ainda o Teatro Grego, formava uma ambiência grega,
sendo a entrada da primeira orientada no sentido do teatro (MARI, 2010: 15). O conjunto
denominado Palestra é constituído por vários edifícios reunidos em um único bloco com cerca de
100m de largura e pode ser identificado com o Vale de Tempe na Tessália. Deve seu nome a Pirro
Ligorio que o escavou nos Quinhentos e assim o denominou em função do que ele acreditava
serem duas praças porticadas e contíguas, que ele julgou próprias para exercícios físicos. Outro
fator que o levou a acreditar que o local era uma área destinada a exercícios foi a descoberta de
três bustos masculinos em mármore vermelho com a cabeça raspada e usando coroas de oliveira
que ele acreditou serem atletas. De acordo com Mari, “Una delle due ‘piazze’ corrisponde in
realtà ad una vasta sala, cinta da un doppio portico ad arcate su pilastri con nicchie per statue. Lo
spazio central (m 29.50 x 1.9), pavimentado a lastroni di cipollino, era coperto a capriate; i
portici, pavimentati in opus sectile, erano allietati, sotto le arcate esterne, da fontanine e vaschette.
Nel retro della sala si sviluppava un giardino o viridarium, circondato da un portico, anch’esso con
fontanine. Un lato della sala si affacciava su un giardino pensile, con elaborata fontana al centro,
innalzato su concamerazioni sostruttive a volta. Dal lato opposto è un’aula (m 18.50 x 13) divisa
in tre navate (colonne di cipollino e pavonazzetto abbattute all’interno, con basi e capitelli corinzi
in marmo bianco), pavimentata in sectile di marmo africano e con nicchie (o nicchie-finestre) alle
pareti. E’ raggiungibile tramite una scala orientata verso il Teatro Greco ed è preceduta da un
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ingresso distilo. In ragione di un’ampia porta sul fondo, da cui sembra avere inizio un corridoio,
l’aula potrebbe anche fungere da suntuoso vestibolo per accedere alla zona retrostante, ove si
innalzano le ‘sale nobili’ del Piranesi, due a pianta cruciforme coperte da volte a crociera e una
rettangolare con volta a botte”46 (MARI, 2010: 15).
Além dos bustos em mármore vermelho, Ligorio encontrou também uma Ísis-Fortuna,
um sacerdote carregando um vaso e um Hermes acéfalo, que de acordo com Mari, poderia ser
um Antinoo-Hermes. As escavações recentes revelaram ainda outras peças egipcianizantes: uma
esfinge acéfala (MARI, 2010: 16) e o corpo de uma íbis (MARI, 2010: 16).
O complexo possivelmente era um Iseum dotado de um aqueduto próprio dada a
importância da água nos rituais e também para as muitas fontes. Nele foram encontrados ainda
fragmentos de relevos nos quais pode se identificar Antínoo acompanhado de uma outra figura à
direita da cena e de frente para uma divindade sentada. Essa mesma cena aparece no topo do
Obelisco Barberini e poderia representar Antínoo como um novo deus diante de outras
divindades mais antigas a fim de oferecer e receber a benção divina (MARI; SGALAMBRO,
2007: 91-92). De acordo com Mari, esses fragmentos pertencem ao mesmo conjunto de 15
estátuas em mármore negro já descobertas nas escavações anteriores. Algumas delas representam
divindades enquanto outras podem ser atribuídas a sacerdotes e sacerdotisas. Para ele: “The
artistic level is very high, and their execution, given their Egyptian style, may be attributed to an
atelier of sculptors who were active at Hadrian’s Villa. Seeing that there are other sculptural
fragments in red or white marble, it may be inferred that the sculptural program consisted of
several tens of figures. There is also a group of statues representing divinities in animal forms
(e.g. the Horus falcon and the Apis bull). It is difficult to ascertain where all these sculptures
were placed; perhaps they were displayed in the niches along the temenos wall or on bases inside
the exedra”47 (MARI; SGALAMBRO, 2007: 91-92).
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46 Uma das duas “praças” corresponde, na verdade, a uma ampla sala rodeada por um pórtico duplo com arcos
sobre pilares com nichos para as estátuas. O espaço central (29,50 x 1,9 m), pavimentado com lajes de [mármore]
cipollino, era coberto com treliças; os pórticos, pavimentados com opus sectile, eram embelezados, sob as arcadas
externas, com pequenas fontes e tanques. Nos fundos da sala, desenvolvia-se um jardim ou viridarium, rodeado por
um pórtico, também esse com pequenas fontes. Um lado da sala voltava-se para um jardim suspenso, com fonte
elaborada ao centro, erguido sobre cavidades muradas em toda a volta. Do lado oposto está uma sala (18,5 x 13m)
dividida em três naves (colunas de cipollino e pavonazzetto demolidas no interior, com bases e capitéis coríntios em
mármore branco), pavimentada em sectile de mármore africano e com nichos (ou nichos-janela) nas paredes. É
atingido por uma escada voltada para o Teatro Grego e é precedida por um ingresso distílico. Em função de uma
ampla porta ao fundo, da qual parece ter início um corredor, a sala também podia servir como um suntuoso
vestíbulo para acessar a área atrás, onde erguiam-se as salas nobres de Piranesi, duas de planta cruciforme cobertas
por tetos em arcos e uma retangular com teto em arco profundo. (Trad. nossa)
47 O nível artístico é muito alto, e sua execução, dado seu estilo egípcio, pode ser atribuído a um atelier de escultores
ativos na Villa Adriana. Vendo que existem outros fragmentos escultóricos em mármore vermelho ou branco, pode-
se inferir que o programa escultórico consistia em várias dezenas de figuras. Há também um grupo de estátuas
representando divindades em forma de animais (por ex. Hórus falcão e Touro Ápis). É difícil saber onde todas essas
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Existe ainda um terceiro grupo de fragmentos em mármore branco que pode ser
associado com bases, altares e vasos e que também eram decorados com hieróglifos e símbolos
egípcios e que possivelmente faziam parte da decoração do temenos (MARI; SGALAMBRO,
2007: 91-92).
A dita Palestra apresentava ainda afinidades com o Serapeum do Campo Marzio (MARI;
SGALAMBRO, 2007: 92-96) tanto arquitetônica quanto esculturalmente e situa-se próximo ao
considerado Templo de Vênus de Cnido. Ali foram encontradas importantes estátuas
egipcianizantes como os bustos de sacerdotes em mármore vermelho, a cabeça colossal de Ísis e
uma sacerdotisa isíaca. Sua denominação deveu-se ainda à identificação, por Pirro Ligorio na
metade do século XVI, destes bustos com atletas (MARI; SGALAMBRO, 2006: 53). Sua função,
no entanto, estava ligada a frequentação da corte imperial, pois, de acordo com Mari, “as
características arquitetônicas não são aquelas de uma construção utilitária, mas de uma área de
múltiplas funções onde estão presentes espaços abertos (pátios porticados) e fechados em forma
de salas monumentais (...), revestimentos marmóreos parietais e pavimentais, bem como
decorações em estuque e pintura” (MARI; SGALAMBRO, 2006: 53-54).
Erroneamente interpretados como atletas por Ligorio, os sacerdotes em mármore
vermelho eram provavelmente estátuas de corpo inteiro usando vestes longas que fechavam
abaixo do peitoral até os tornozelos, feitas em mármore branco. Apesar de estarem sem os
braços, Ligorio os descreveu tendo pesos para exercícios nas mãos os quais podem ser
interpretados, no entanto, como objetos usados nos cultos isíacos (MARI; SGALAMBRO, 2012:
17).
A essa região são atribuídas ainda as estátuas de Ísis-Sothis-Demeter, uma Ísis-Fortuna,
um Hermes e um sacerdote egípcio carregando um vaso, restaurado como uma figura feminina
(MARI; SGALAMBRO, 2006: 18). Recentemente foram encontrados ainda fragmentos de um
nemes e o corpo de uma íbis em mármore branco (MARI; SGALAMBRO, 2006: 18). Todas estas
esculturas remetem às cenas isíacas de Erculano nas quais os cultos à deusa Ísis era representado.
Inclusive a estátua de sacerdote com vaso encontra analogia com as cenas erculanas.
Possivelmente ainda, além das figuras dos pássaros, encontravam-se ainda palmeiras (como foi
comprovado por Mari na região do Antinoeion) a fim de recuperar um ambiente nilótico. Além
disso, “La planimetria del complesso richiama alla mente la disposizione sparsa, articolata in
molteplici templi e sacelli, degli Isea e Serapea del período imperiale, come i Serapei di Alessandria,
Menfi e di altre metropoli mediterranee. Degna di nota è anche l’ambientazione topográfica, oggi
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esculturas foram colocadas, talvez estivessem dispostas em nichos ao longo da parede do temenos ou sobre bases no
interior da exedra. (Trad. nossa)
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difficilmente percepibile nel suo insieme a causa delle alberature e degli inserimenti edilizi
moderni: il complesso della Palestra sorge davanti a scenografica parete con nicchie e ninfei che
riveste il pendio del pianoro tufaceo su cui si estende la villa. Nello spazio interposto, privo di
costruzioni, si sviluppava sicuramente un giardino, ove notevole era l’abbondanza di acqua
assicurata da un apposito condotto che riforniva anche le fontanine dei portici degli edifici
retangolari e la grande fontana al centro del giardino pensile. In questo ambiente suggestivo,
cinto tutt’intorno e separato dal corpo della villa, confacente all’atmosfera delle celebrazioni
isiache, bene si vedrebbe il pilastro con la testa colossale di Isis-Sothis-Demeter, pilastro che
Ligoriodice situato ‘in luogo alto’, come effettivamente è questa parte della Palestra rispetto alla
sala ipostila. (...) È probabile, quindi, l’identificazione del complesso, eretto in base ai bolli doliari
fra il 125 e il 135 d. C., con un Iseum, ove figuravano le varie divinità del pantheon sincretistico
dell’Egito greco-romano, se non, addirittura, con il Canopum citato nella biografia di Adriano fra i
luoghi della villa chiamati con ‘celeberrima nomina’ che rievocavano all’imperatore famose località
visitate durante i viaggi”48 (MARI; SGALAMBRO, 2006: 19).
Não podemos, contudo, afirmar com certeza se os diversos lugares da vila estavam de
fato nomeados de acordo com os locais célebres do Império. Sabemos, por outro lado, que a
decoração desses templos era, em muitos casos, feita com peças vindas do Egito (SIST, 2008: 67)
e em particular estátuas de esfinges e leões e obeliscos (SIST, 2008: 67).
A Piazza d’Oro
A Piazza d’Oro, por outro lado, pertence à parte leste da Villa Adriana e por isso,
consideravelmente distante dos outros edifícios com peças egipcianizantes, apenas
compartilhando com estes a mesma função do Canopo. Tratava-se de um edifício tricliniar onde
podiam ser convidadas cerca de 370 pessoas para um banquete com o Imperador. Consistia em
um ambiente mais reservado que aquele e ao qual os hóspedes de Adriano podiam chegar pela
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48 O layout do complexo traz à mente uma disposição esparsa dividida em muitos templos e santuários, dos Isea e
Serapea do período imperial, como os Serapeos de Alexandria, Mênfis e outras cidades do Mediterrâneo. Digna de
nota é também a ambientação topográfica, hoje dificilmente perceptível em sua totalidade por causa das árvores e
inserções edilícias modernas: o complexo da Palestra está localizado em frente à parede cenográfica com nichos e
ninfeos que reveste a encosta do planalto de tufo sobre o qual se estende a vila. No espaço intermediário,
desprovido de construções, seguramente se desenvolvia um jardim, onde era notável a abundância de água
assegurada por cano destinado a abastecer as fontes dos pórticos dos edifícios retangulares e a grande fonte ao
centro do jardim suspenso. Neste ambiente sugestivo, todo rodeado e separado do corpo da vila, adequado a
atmosfera das celebrações isíacas, bem se veria o pilar com a cabeça colossal de Ísis-Sothis-Demeter, pilar que
Ligorio diz estar situado ‘em lugar alto’, como efetivamente é esta parte da Palestra em respeito à sala hipóstila. (...) É
provável, por conseguinte, a identificação do complexo, construído de acordo com os selos entre 125 e 135 d. C.,
com um Iseum, onde figuravam as várias divindades do panteão sincrético do Egito greco-romano, se não for
absolutamente, o Canopum citado na biografia de Adriano entre os lugares da vila chamados com nomes célebres que
evocavam ao imperador famosas localidades visitadas durante as viagens. (Trad. nossa)
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via que dava acesso direto à praça (SALZA PRINA RICOTTI, 2001: 265). Luxuosamente
decorado, acredita-se que esta fosse a mais bem decorada das três áreas tricliniares da vila,
devendo a isso sua denominação de “praça de ouro”.
Existem duas notícias diferentes sobre as esculturas encontradas aqui. A primeira é de
Ligorio que situa neste edifício duas Vênus, Ninfas do Oceano, Io ou Vênus egípcia, Hipponae e
muitos fragmentos. A outra notícia é de Winnefeld que faz referência às duas Vênus de Ligorio,
uma cabeça de Marco Aurélio, uma cabeça de filósofo com barba e uma cabeça feminina, todas
três perdidas (SALZA PRINA RICOTTI, 2001: 276). Ligorio, no entanto, não registra a
escultura de Io ou a dita Vênus egípcia. Sabemos da existência de outras esculturas que poderiam
nos dar uma indicação da iconografia desta estátua a qual será discutida em detalhe no catálogo.
O Pantanello
O Pantanello era possivelmente um lago artificial (OPPER, 2008: 158) e foi descoberto
nas escavações realizadas pelo pintor inglês Gavin Hamilton na segunda metade dos anos 1700 e
daqui provêm muitas das esculturas da Villa, fazendo desta área uma das mais ricas em esculturas
e mármores, atirados ali por alguma razão que hoje desconhecemos. De acordo com Salza Prina
Ricotti, é importante observar que, nas áreas onde se acreditava viver o Imperador, não se
encontrou nenhuma estátua ou outra obra de arte, a não ser pelos mosaicos. Para ela, é possível
que muitos mármores tenham sido reduzidos a pó, “mas provavelmente as melhores obras
foram levadas embora. Pode ser ainda que parte, se não tudo, do que foi encontrado no
Pantanello fizesse parte da área mais prestigiosa da Villa Adriana” (SALZA PRINA RICOTTI,
2001: 423).
Essa hipótese é corroborada pelos achados que incluíam dois ídolos egipcianizantes em
mármore negro, um egípcio ajoelhado segurando um cilindro nas mãos e uma base com
hieróglifos. Foram encontrados ainda bustos de Adriano, Antínoo, uma cabeça de Sabina, dois
pavões - os quais aparecem também na decoração do Mausoléu de Adriano e que estavam
associados à apoteose da Imperatriz (OPPER, 2008: 213-214), candelabros, um vaso e várias
divindades (SALZA PRINA RICOTTI, 2001: 422). Os dois ídolos egipcianizantes pertencem à
Coleção Lansdowne em Londres, mas, infelizmente as outras duas peças encontradas aqui não
sobreviveram até os dias atuais e apenas as conhecemos pelos desenhos de Roccheggiani.
Nos anos anteriores a 1724, o proprietário da área, Lolli, recuperou um pequeno número
de estátuas do pântano, mas foi somente em 1769, com o apoio do proprietário do terreno
contíguo, Domenico De Angelis que eles começaram a drenar o antigo lago. As obras foram
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realizadas por Hamilton e foram bastante frutíferas pois recuperaram dezenas de estátuas e
fragmentos que foram, no entanto, levados para a Inglaterra (DE FRANCESCHINI, 1991: 11).
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49 É claro que à Villa Adriana, não faltam exemplos de classicismo, mas nunca por si só e sempre associado a outro:
basta citar um caso de manual como a decoração escultórica do Canopo, em que boa parte da literatura viu
referências às viagens do imperador e a geografia do Império: isso certamente evoca a grande Atenas clássica com
cópias das Amazonas realizadas em disputa pelos grandes de seu tempo ou com as Cariátides do Ereteo ou ainda
com Áries e Hermes; mas se o fio condutor é esse, a sintaxe geral é outra, e constrói uma linguagem diversa
representando as imagens dos Silenos, dos rios, dos animais, e com grande probabilidade os grupos estatuários
relativos ao mito de Ulisses. (Trad. nossa).
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