Implicacoes Economicas Dos Templos Egipcios

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Semna – Estudos de Egiptologia I


Antonio Brancaglion Junior
Thais Rocha da Silva
Rennan de Souza Lemos
Raizza Teixeira dos Santos
organizadores

Seshat – Laboratório de Egiptologia do Museu Nacional/Editora Klínē


2014
Rio de Janeiro/Brasil
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Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-
CompartilhaIgual 4.0 Internacional.

Capa: Antonio Brancaglion Jr.

Diagramação: Thais Rocha da Silva e Rennan de Souza Lemos

Revisão: Thais Rocha da Silva e Raizza Teixeira dos Santos

Catalogação na Publicação (CIP)


Ficha Catalográfica

B816s BRANCAGLION Jr., Antonio.


Semna – Estudos de Egiptologia / Antonio Brancaglion Jr., Thais
Rocha da Silva, Rennan de Souza Lemos, Raizza Teixeira dos Santos (orgs.). – Rio
de Janeiro: Seshat – Laboratório de Egiptologia do Museu Nacional, 2014.
179f.

Bibliografia.
ISBN 978-85-66714-01-2

1. Egito antigo 2. Arqueologia 3. História 4. Coleção


I. Título.

CDD 932
CDU 94(32)

Universidade Federal do Rio de Janeiro


Museu Nacional
Programa de Pós-graduação em Arqueologia
Seshat – Laboratório de Egiptologia

Quinta da Boa Vista, s/n, São Cristóvão


Rio de Janeiro, RJ – CEP 20940-040

Editora Klínē

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Sumário(
Trabalhos)apresentados)na)I)SEMNA)não)incluídos)neste)volume!....................................!4!
Equipe)organizadora)da)I)SEMNA!..........................................................................................................!5!
Lista)de)autores!...............................................................................................................................................!6!
Apresentação!....................................................................................................................................................!7!
Prefácio/Foreword,!Chris!Naunton!........................................................................................................!9!
Auxiliares)para)o)renascimento:)estátuas)funerárias)de)Osíris)e)PtahJSokarJOsíris)
da)coleção)do)Museu)Nacional/UFRJ,!Simone!Bielesch!.............................................................!13!
Para)falar)aos)deuses:)estudo)das)estatuetas)votivas)da)coleção)egípcia)do)Museu)
Nacional,!Cintia!Prates!Facuri!...................................................................................................................!38!
Tecnologias)tridimensionais)aplicadas)em)pesquisas)arqueológicas)de)múmias)
egípcias,!Simonte!Belmonte,!Jorge!Lopes!e!Antonio!Brancaglion!Jr.!.......................................!47!
Amarna:)pintando)uma)nova)paisagem,!Rennan!de!Souza!Lemos!.......................................!65!
As)representações)da)família)real)amarniana)e)a)consolidação)de)uma)nova)visão)
de)mundo)durante)o)reinado)de)Akhenaton)(1353J1335)a.)C.),!Gisela!Chapot!...........!76!
Hierarquia)e)mobilidade)social)no)antigo)Egito)do)Reino)Novo,!Nely!Feitoza!Arrais
!.................................................................................................................................................................................!88!
Implicações)econômicas)dos)templos)egípcios)e)a)constituição)de)poderes)locais:)
um)estudo)sobre)o)Reino)Antigo,!Maria!Thereza!David!João!...............................................!103!
Sobre)a)importância)da)teoria)social)na)egiptologia)econômica,!Fábio!Frizzo!........!112!
Identidade,)gênero)e)poder)no)Egito)Romano,!Marcia!Severina!Vasques!.....................!122!
“E)me)traga)essa)carta)de)volta”.)As)cartas)aos)deuses)e)os)estudos)de)gênero)no)
Egito)Ptolomaico.)Contribuições)da)antropologia,!Thais!Rocha!da!Silva!.....................!134!
As)estelas)funerárias)com)o)morto)reclinado)em)uma)cama)funerária:)etnia,)
identidade)e!emaranhamento)cultural)no)Baixo)Egito)durante)o)Período)Romano,!
Pedro!Luiz!Diniz!von!Seehausen!............................................................................................................!150!
Adriano)e)o)Egito:)a)construção)de)um)modelo)egipcianizante)para)a)Villa)Adriana,!
Evelyne!Azevedo!...........................................................................................................................................!164!
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TRABALHOS(APRESENTADOS(NA(I(SEMNA(NÃO((((((((((((((((((((
INCLUÍDOS(NESTE(VOLUME(

Remanescentes humanos encontrados na tumba de Harwa (TT 37), necrópole de El-


Assasif, Tebas: estudos preliminares – Prof.ª Dr.ª Claudia Rodrigues-Carvalho, Museu
Nacional/UFRJ

A coleção egípcia do Museu Nacional: entre a memória e a ciência – Prof. Dr. Antonio
Brancaglion Jr., Museu Nacional/UFRJ

O corpo na paisagem da necrópole de Tebas – Julián Alejo Sánchez, Museu Nacional/UFRJ

A construção de Akhetaton: um estudo por meio das fontes escritas e da arqueologia –


Liliane Cristina Coelho, UFF

Projeto Tothmea: resultados do passado e perspectivas futuras – Dr. Moacir Elias Santos,
UEPG

Remanescentes antigos, tecnologia moderna – Victor Bittar, Museu Nacional/UFRJ

Isolamento e identificação de fungos em amostras retiradas de múmias da coleção


egípcia do Museu Nacional do Rio de Janeiro – Ricardo França dos Reis, ESNP/Fiocruz

Tecnologias 3D aplicadas à Egiptologia – Prof. Dr. Jorge Lopes, PUC-Rio/INT

Coleções e mais coleções – Marina Buffa César

O uso do modelo mãe/filho pelos cristãos – Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese,
IH/UFRJ

Face a face com os egípcios antigos: uma estatueta muito especial do Museu Nacional –
Prof. Dr. Antonio Brancaglion Jr., Museu Nacional/UFRJ

Las colecciones egípcias argentinas, entre el Museo y la Universidad – Prof.ª Dr.ª María
Violeta Pereyra, Universidad de Buenos Aires

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EQUIPE(ORGANIZADORA(DA(I(SEMNA(

Prof. Dr. Antonio Brancaglion Jr. – coordenador geral

Rennan de Souza Lemos – mestrando em Arqueologia pelo Museu Nacional/UFRJ

Cintia Prates Facuri – mestranda em Arqueologia pelo Museu Nacional/UFRJ

Thais Rocha da Silva – mestre em Letras Orientais pela USP

Regina Coeli Pinheiro da Silva – doutoranda em Arqueologia pelo Museu Nacional/UFRJ

Pedro Luiz Diniz von Seehausen – mestrando em Arqueologia pelo Museu Nacional/UFRJ

Julián Alejo Sánchez – doutorando em Arqueologia pelo Museu Nacional/UFRJ

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LISTA(DE(AUTORES(

Simone Bielesch!
Cintia Prates Facuri, Museu Nacional/UFRJ!
Simone Belmonte, INT
Jorge Lopes, PUC-Rio/INT
Antonio Brancaglion Jr., Museu Nacional/UFRJ!
Rennan de Souza Lemos, Museu Nacional/UFRJ
Gisela Chapot, UFF!
Nely Feitoza Arrais, UNILASALLE-RJ!
Maria Thereza David João, USP!
Fábio Frizzo, UFF!
Marcia Severina Vasques, UFRN!
Thais Rocha da Silva, Seshat-Museu Nacional/UFRJ; USP!
Pedro Luiz Diniz von Seehausen, Museu Nacional/UFRJ!
Evelyne Azevedo, Museu Nacional/UFRJ!

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APRESENTAÇÃO(

A I Semana de Egiptologia do Museu Nacional foi fruto de um esforço coletivo de


diversos pesquisadores e estudantes ligados ao Laboratório de Egiptologia do Museu Nacional
da UFRJ. O objetivo era iniciar no Brasil um evento anual, de grande porte, que reunisse
pesquisadores do Egito antigo no país em um ambiente propício ao debate e à troca de ideias e
experiências. Na primeira edição do evento, realizada de 2 a 5 de dezembro de 2013, reuniram-se
pesquisadores de diversas regiões do país e de áreas de atuação diversas, em mesas de debates e
conferências. Naquela ocasião, contamos com a presença da Professora Violeta Pereyra da
Universidade de Buenos Aires, diretora da Missão Argentina em Luxor.
A I SEMNA teve um sucesso maior do que esperávamos. Foi bem recebida pela
comunidade acadêmica no Brasil e, principalmente, pelo público. Foi bem recebida também em
outros países como França, Inglaterra, Portugal, Argentina e no próprio Egito, sobretudo através
do Instituto Francês de Arqueologia Oriental do Cairo. A I SEMNA teve repercussão não
somente nos meios acadêmicos, através dos boletins, listas de divulgação das universidades e
agências de fomento à pesquisa, mas também nos grandes veículos de comunicação de massa no
Brasil. Foram mais de 500 inscritos e, destes, cerca de 300 pessoas passaram pelo Museu
Nacional nos quatro dias do evento. Isso mostra que temos no Brasil um público diversificado e
ávido por conhecer o Egito antigo.
Isso é reforçado pelo fato de haver, no Museu Nacional, uma coleção egípcia das mais
importantes, reconhecida por especialistas internacionais. Apesar de a realização da I SEMNA
ser o início de um esforço de consolidação e expansão da Egiptologia no Brasil, a própria
coleção do Museu Nacional expressa uma história relativamente antiga do interesse do Brasil
pelo Egito antigo. Desde 1827 no Brasil, a coleção egípcia despertou em D. Pedro II grande
interesse pela antiga civilização do Nilo, o que o fez viajar duas vezes para o Egito, trazendo de
lá novas peças que foram incorporadas à coleção do atual Museu Nacional.
O Museu Nacional possuía, no início do século XX, um setor de Egiptologia, chefiado
pelo eminente Alberto Childe, egiptólogo russo que escreveu o primeiro catálogo das peças
egípcias do museu. Após Childe, entretanto, os estudos egiptológicos estagnaram no país, sendo
restabelecidos em 1988 com a publicação do Catalogue of the Egyptian collection in the National
Museum, Rio de Janeiro por Kenneth Kitchen da Universidade de Liverpool, e com o início de
pesquisas de pós-graduação em Arqueologia e História do Egito antigo.

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Semna!–!Estudos!de!Egiptologia!I!
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Hoje em dia, dispomos em nosso país de pessoas que se dedicam ao estudo do Egito
antigo em vários programas de pós-graduação. A Semana de Egiptologia do Museu Nacional
surgiu com o intuito de congregá-las para debater tornar a Egiptologia no Brasil uma disciplina
acadêmica efetivamente consolidada. Precisamos amadurecer as pesquisas realizadas no país para
que, em médio ou longo prazo, possamos dialogar com a Egiptologia produzida em outros
países. Um diálogo frutífero vem sendo iniciado com colegas da Argentina, Itália, Portugal,
Espanha, França, Inglaterra e do próprio Egito. Somos especialmente gratos ao Dr. Chris
Naunton, Diretor da Egypt Exploration Society, por ter redigido o prefácio para esta publicação.
Somos igualmente gratos à Professora Violeta Pereyra, cuja equipe passamos a integrar no
Projeto de Conservação da Tumba de Neferhotep em Luxor. Agradecemos também ao Instituto
Francês de Arqueologia Oriental do Cairo pelo suporte e apoio às pesquisas realizadas no Museu
Nacional, e a todos os que participaram da primeira edição da Semana de Egiptologia. Em sua
segunda edição, a SEMNA a aumenta o tamanho do grupo que se dispôs dialogar e participar
do evento, a quem somos gratos: especialmente à Professora Christiane Zivie-Coche, Diretora
de Estudos na Seção de Ciências Religiosas da École pratique des hautes études e ao Dr.
François Leclère, diretor da Mission française de fouilles de Tanis.
Esperamos que este volume seja proveitoso para todos aqueles que buscam conhecer o
Egito antigo dentro e fora da academia, e que contribua para o desenvolvimento e
fortalecimento de futuras pesquisas acadêmicas em Egiptologia no Brasil.

Rio de Janeiro, dezembro de 2014

Antonio Brancaglion Jr.


Thais Rocha da Silva
Rennan de Souza Lemos
Raizza Teixeira dos Santos

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PREFÁCIO/FOREWORD(

What a pleasure it is to be asked to contribute to the Proceedings of the I SEMNA


Conference held in Rio in December 2013! This event, and the publication of the papers that
follows, represents an important step forward in the endeavour to promote Egyptology in Brazil,
and is to be warmly welcomed. There are perhaps two main aspects to the challenge: 1)
Developing the infrastructure for professional Egyptology within the country which will allow it
to play a major role in the filed internationally, in keeping with Brazil’s status as one of the most
important nations in the world in the twenty-first century. 2) Making use of that infrastructure
and the experts in Brazil to generate enthusiasm for ancient Egypt among the wider public,
capitalizing on the fascination with the country’s history, which seems to be present everywhere
in the world.
Success in each of these endeavours will lead in turn to success in the other. This has
been the model by which the London-based Egypt Exploration Society has been able to thrive
over the course of 132 years since its foundation in 1882. The Society was founded by a group of
‘amateurs’ who, concerned at the rapid destruction of ancient sites and monuments, resolved to
send an explorer to Egypt to gather as much material and information about ancient sites as
possible before they were lost. The gathering and sharing of the information obtained by the
explorers had a scholarly purpose – to increase understanding of the people and culture of
ancient Egypt - but it had a practical function too: there was, from the Society’s beginnings, a
great interest in ancient Egypt, and a demand for the books and lectures about the latest
discoveries. The public were willing to pay for more, and so the Society was able to continue its
work. This remains the model today – subscriptions and donations from members of the public
are still the Society’s most important source of income.
The study of Egyptology is longer established in some places, such as the UK, than in
others. It has been the subject of study for a very long time, ever since the ancient culture of
pagan beliefs, the very distinctive ‘walk-like-an-Egyptian’ artistic canon, and the hieroglyphic
script, had been weakened by an influx of others beliefs, languages and ways of doing things, and
eventually supplanted by the Arab conquest and the coming of Islam. Much of our knowledge of
ancient Egypt, even today, comes from later classical sources such as the writings of Herodotus
and Manetho, and medieval Arab scholars took a great interest in ancient Egypt and wrote about
it extensively. In more modern times, western nations began to rediscover ancient Egypt in the

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Semna!–!Estudos!de!Egiptologia!I!
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17th and 18th centuries. In the UK, many of today’s most prominent Egyptological institutions,
including the Egypt Exploration Society, were founded in the 19th century. Today, the most
important institution for Egyptology anywhere in the world is, of course, the Ministry of
Antiquities in Egypt. It has responsibility for all the country’s archaeological and historic sites
and monuments, and its antiquities museums, which house by far the richest collections of
Egyptian objects anywhere in the world. Egypt’s historical legacy is of global importance
however, and as such it draws the expertise of specialists from around the world.
Brazil is well placed to play an important role in this. It has a wonderful and well-known
collection of Egyptian antiquities at the National Museum in Rio de Janeiro, and a very healthy
group of specialists investigating a wide variety of topics as this volume attests.
Conferences such as the SEMNA event are an indispensable part of any scientific
discipline, providing an opportunity for scholars to share their knowledge and ideas. It is
wonderful to see some of the Egyptian material in the rich collections of Brazil given new
exposure. A focus on this most Brazilian aspect of Egyptology is to be expected but it is also
very exciting to see so many other topics and approaches covered as well. Brazilian scholars’
interpretations of material and themes which are familiar to us, demonstrate clearly that our field
remains dynamic and ever-changing, and also that Brazil has a great deal to contribute to
international Egyptology.
The publication of this volume is crucial for this reason as it will enable the ideas to
circulate among the international community of Egyptologists, raising awareness of the
importance of the contribution Brazil is making to Egyptology, introducing new information to a
much wider audience, and allowing the scholars’ interpretations to be tested. The more input
there is into international Egyptology, the more material, information, ideas and interpretations,
the better. Publication is the means by which all that knowledge can circulate, and the editors
and contributors to this volume should be congratulated for their efforts.
Sharing knowledge as far and wide as possible is of benefit to scholarship but also for the
promotion of our subject to a wider audience, the second of the challenges for Egyptology in
Brazil. It is an essential part of the role of those of us who are fortunate enough to make a living
from Egyptology to promote our subject, to share our knowledge and enthusiasm for Egypt’s
past as widely as we can. There is also, as mentioned above, a practical dimension to this. People
want to invest in their enthusiasms; Egyptology needs investment – of time and of money – and
the more enthusiasts there are willing to invest in Egyptology the more resources will be
available for developing professional Egyptology, and the crucial business of ensuring the

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survival of Egypt’s sites and monuments, and everything we have learned about them, into the
future.
It is very exciting to imagine how Egyptology will develop in Brazil in the coming years.
It is to be hoped that there will be many more gatherings such as the SEMNA conference,
bringing scholars from Brazil together, perhaps with Egyptologists working in other countries as
well, including, of course, Egypt. There are already rich collections in cities such as Rio, and as
awareness of the material in those collections increases it is very likely that scholars and other
enthusiasts from around the world will visit in ever increasing numbers to study the objects.
Awareness of the scholars contributing to the conference and their work will help embed
Brazilian Egyptology in the discipline internationally, which will be of benefit to all in the field.
As the field develops it will be better placed to attract students to university courses, and to
attract more investment in library and other essential facilities, and to bring in more investment
from the wider public, attracted by exhibitions, popular publications and public events.
The SEMNA conference and this volume are an exciting beginning, but they are only the
beginning.

Chris Naunton
Director, Egypt Exploration Society

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Estudos de Egiptologia

Parte 1
A coleção egípcia do Museu Nacional:
interpretação e aplicação de novas tecnologias
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AUXILIARES(PARA(O(RENASCIMENTO:(ESTÁTUAS(
FUNERÁRIAS(DE(OSÍRIS(E(PTAHESOKAREOSÍRIS(DA(COLEÇÃO(
DO(MUSEU(NACIONAL/UFRJ(
Simone Maria Bielesch

Resumo: O presente artigo apresenta parte dos resultados obtidos em nossa dissertação de mestrado (BIELESCH,
2010) sobre as estátuas funerárias de Osíris e Ptah-Sokar-Osíris da coleção egípcia do Museu Nacional/UFRJ – Rio
de Janeiro. Esta possui um exemplar de uma estátua funerária de Osíris e seis de Ptah-Sokar-Osíris. Apesar de seu
estado precário de conservação, uma reconstituição parcial das mesmas foi possível, permitindo classificá-las em
parte.
Abstract: The present article presents part of results obtained in our master theses (BIELESCH, 2010) about the
funerary statues of Osiris and Ptah-Sokar-Osiris from the Egyptian collection of de Museu Nacional/UFRJ – Rio de
Janeiro. This possesses an exemplar of a funerary statue of Osiris and six of Ptah-Sokar-Osiris. Despite of their
precarious state of conservation, a partial reconstitution of the same was possible, allowing a partial classification.

No final do Antigo Império (c. 1307 a.C.), no Período Pós-Amarniano, há uma


popularização dos ritos funerários antes reservados ao faraó. Cenas de deuses, antes restritas às
tumbas reais começam a aparecer em tumbas particulares. Neste contexto, um deus em
particular ganha grande popularidade, Osíris. O desejo das pessoas passa a ser de ter o mesmo
destino alcançado por Osíris e, como este, renascer no Mundo dos Mortos, juntando-se a seus
seguidores. Da mesma forma, a literatura funerária, antes exclusiva dos monarcas, passa a ser
usada por pessoas comuns. Para passar a guardar o “Livro dos Mortos”, o principal guia dessa
jornada para o Outro Mundo, são criadas as estátuas funerárias de Osíris. Assim, o “Livro dos
Mortos” passa a ser guardado pelo Senhor do Mundo dos Mortos, garantindo a sua eficácia na
ressurreição de seu proprietário.
No III Período Intermediário quando a atenção é voltada para o caixão, e o equipamento
funerário que acompanha o morto reduz-se drasticamente a apenas alguns itens essenciais, as
estátuas funerárias de Osíris permanecem, atingindo o seu ápice na XXI Dinastia. Ao lado dos
exemplares porta-papiro, os quais continuam sendo a maioria, surgem outros exemplares sólidos
com formas mais delgadas, devido à ausência da cavidade. As estátuas deste período, em geral,
pertenciam a pessoas que exerciam cargos sacerdotais ou estavam ligadas ao Templo de Amun.
Como exemplo, temos a grande quantidade de estátuas de Osíris de Verniz Preto encontrada no
cachette de sacerdotes de Amun em Deir el-Bahari. Na XXII Dinastia, com o desaparecimento do

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“Livro dos Mortos”, as estátuas funerárias de Osíris como receptáculo para a guarda deste
também desaparecem.
Por volta da XXV Dinastia, com a volta de um equipamento funerário mais numeroso e
da construção de grandes complexos funerários, o conceito das estátuas funerárias de Osíris
reaparece na figura de suas sucessoras, as estátuas funerárias de Ptah-Sokar-Osíris. Esta forma
sincrética de Osíris, surgida no Médio Império, vindo à representar o deus do ciclo regenerativo
no qual Ptah simboliza a criação, Sokar a metamorfose e Osíris o renascimento
(BRANCAGLION JR, 2009:informação verbal). Em seu interior as estátuas funerárias de Ptah-
Sokar-Osíris agora, geralmente, contém uma pseudo “múmia-de-grãos”. Dessa forma, o morto
passa a estar conectado com rituais do Festival de Khoaik, que encenavam o renascimento de
(Ptah-Sokar-)Osíris e nos quais era fabricada uma figura de grãos semelhante à encontrada no
interior das estátuas. A forma osiríaca é substituída pela saH e a coroa Swty usada junto com o
toucado divino torna-se o padrão, passando portanto a estátua a aludir a uma forma divinizada
do morto unificada com Osíris.
No final da Baixa Época e no Período Ptolomaico, o simbolismo da estátua de Ptah-
Sokar-Osíris como um agente do renascimento é reforçado com novos elementos adicionados a
sua decoração. Nas inscrições, antes praticamente restritas a fórmulas funerárias e recitações,
temos a introdução do hino à Ptah-Sokar-Osíris. Estes novos elementos não remetem mais
apenas ao contexto osíriaco do pós-vida, mas também ao solar. Assim, a estátua funerária de
Ptah-Sokar-Osíris passa a ser um retrato do morto que foi bem sucedido em todas as etapas de
sua jornada para a outra vida; ele se tornou um Justo de Voz perante Osíris e um Glorificado
perante Rê. Justamente após atingir o ápice do seu simbolismo como um agente do
renascimento, a estátua funerária de Ptah-Sokar-Osíris irá desaparecer no final do Período
Ptolomaico com o aumento da helenização dos costumes funerários.

Classificação

Apesar da sua importância para o equipamento funerário do final da história do Egito


antigo, não há quase publicações a respeito das estátuas funerárias de Osíris e Ptah-Sokar-Osíris.
No século XIX juntamente com o início da egiptologia, são feitos os primeiros estudos a
respeito das estátuas funerárias de Osíris e Ptah-Sokar-Osíris, sendo um dos principais resultados
alcançados a separação entre estátuas de Osíris e de Ptah-Sokar-Osíris. (CHAMPOLLION,
1827:156-157; LEEMANS, 1840:259; PASSALACQUA, 1826:170-171; RAVEN, 1978-
1979:253; ROSELLINI, 1836:349 n.2) Na primeira metade do século XX elas praticamente caem

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em esquecimento entre os egiptólogos, como podemos ver pelo fato de que muitas obras a
respeito dos aspectos funerários no Egito antigo sequer as mencionarem.
O trabalho mais completo a respeito e a principal referência até os dias atuais é o artigo
Papyrus-sheats and Ptah-Sokar-Osiris statues publicado por Maartin Raven em 1978-1979, no qual ele
estabelece uma tipologia das estátuas. As estátuas são dividas em cinco tipos, os quais, por sua
vez, contêm outras subdivisões, levando em conta características específicas no interior de cada
tipo. Os tipos I e II abrangem as estátuas de Osíris porta-papiros, e os demais tipos englobam as
estátuas de Ptah-Sokar-Osíris. (RAVEN, 1978-1979:258-273)
Em outro artigo de 1982, Raven irá fazer um estudo mais detalhado do conteúdo das
estátuas de funerárias de Ptah-Sokar-Osíris. As análises feitas por ele mostram ser o verdadeiro
conteúdo das estátuas, pseudo “múmias de grãos” feitas de uma mistura de barro e grãos de trigo
ou cevada, que não germinaram, envoltos em linho. Estas análises também provam serem falsas
as afirmações de serem estas pseudo-múmias membros do morto ou pequenos animais
mumificados, como ainda é comumente afirmado por estudiosos. (RAVEN, 1982, pp. 16-18)
Posteriormente surgiram alguns artigos apresentando estátuas inéditas e propondo
correções na cronologia de Raven. (ASTON, 1992; BIELESCH, 2010:151-155; BUDKA, 2003;
LIPINSKA, 2007; SCHOSKE, 2001; VARGA, 1995; ZIEGLER, 2003)
Em nossa dissertação de mestrado (BIELESCH, 2010) procuramos fazer um estudo
mais aprofundado das estátuas funerárias de Osíris e Ptah-Sokar-Osíris e criamos uma
classificação alternativa a de Raven, incorporando as novas informações surgidas após a
publicação de seu artigo. As estátuas foram dividas em 10 tipos, alguns com subtipos, além de
um grupo de estátuas que não se encaixam nos critérios de classificação. Além do estudo dos
exemplares da coleção do Museu Nacional/UFRJ.

As estátuas funerárias de Osíris e Ptah-Sokar-Osíris do Museu Nacional/UFRJ

A coleção egípcia do Museu Nacional/UFRJ no Rio de Janeiro possui atualmente um


exemplar de uma estátua funerária de Osíris e seis exemplares de estátuas funerárias de Ptah-
Sokar-Osíris. Elas foram adquiridas em 1826, por D. Pedro I e José Bonifácio em um leilão do
comerciante italiano Nicolau Fiengo junto com outros artefatos egípcios para integrar o acervo
do então Museu Real (atual Museu Nacional). Essa coleção foi trazida por Fiengo de Marselha,
alegando ele serem as peças fruto do trabalho do famoso negociante de antiguidades egípcias,
Giovanni Battista Belzoni. Belzoni, por sua vez, afirma serem as peças originárias de suas
“escavações” em Karnak, no “Domínio de Amun”, e na necrópole tebana. A origem de parte

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desses objetos se confirma, pois eles pertenceram a sacerdotes e funcionários tebanos.


(BRANCAGLION JUNIOR, 2002, p. 155)
A primeira referência feita às estátuas funerárias de Osíris e Ptah-Sokar-Osíris encontra-
se nos catálogo elaborado sobre as coleções de Arqueologia Clássica do Museu Nacional/UFRJ
por Alberto Childe em 1920, quando ele era curador da mesma. Neste, as estátuas são
erroneamente chamadas de “duplo (ka) osiriano” e atribuídas em sua maioria ao Novo Império.
A outra referência que temos a respeito delas encontra-se no catálogo da coleção egípcia
elaborada por Kenneth A. Kitchen em 1990. Neste, elas estão agrupadas sob a denominação de
estatuetas de Ptah-Sokar-Osíris na categoria de bens funerários, sem maiores acréscimos.
Nestes catálogos estão incluídas dentre as estátuas funerárias de Osíris e Ptah-Sokar-
Osíris as peças de número de inventário 182 e 199. A primeira foi excluída do catálogo por nós
elaborado das presentes estátuas, por termos chegado à conclusão de se tratar de uma estátua
votiva de Osíris, e não de uma estátua funerária de Osíris. A segunda peça não foi incluída no
nosso catálogo do Museu Nacional/UFRJ por encontrar-se desaparecida desde 1960 e pela falta
de maiores detalhes a respeito. No catálogo de Kitchen, a única informação que consta a respeito
é a de que se trata de “uma figura de madeira, pintada e gravada” (1990, p. 224)
Todas as estátuas encontram-se em um estado precário de conservação. O estuque com a
pintura caiu quase por inteiro em todas as estátuas, restando apenas alguns traços. A base de
todas as estátuas e a coroa Swty das estátuas funerárias de Ptah-Sokar-Osíris estão faltando.
Mesmo com essas limitações, uma série de conclusões pode ser tirada das mesmas. Abaixo
seguem as conclusões obtidas de cada estátua. Entre colchetes está denominação usada no
catálogo de nossa dissertação de mestrado (BIELESCH, 2010).

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) )

Inv. 16 [MN-1]

Fig. 1 – inv. 16 [MN-1] frente (BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)

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Fig. 2 – inv. 16 [MN-1] verso ( BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)

Fig. 3 inv. 16 [MN-1] possível reconstituição frente (BIELESCH, Simone Maria, data: jul. 2010)

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fig. 4 inv. 16 [MN-1] possível reconstituição lateral (BIELESCH, Simone Maria, data: jul. 2010)

Das estátuas funerárias de Ptah-Sokar-Osíris do Museu Nacional/UFRJ, a de inv. 16


[MN-1] é a que preservou o maior número de detalhes, permitindo uma reconstituição mais
exata do que as demais peças. Os restos de pigmentação apontam para uma estátua do tipo 5.c
(Raven tipo IVC) com a face folhada a ouro e o tronco de fundo vermelho com uma rica
iconografia. O colar wsx n bik, com contas de diversos formatos, iniciando-se abaixo do fim das
abas do toucado divino e com terminais em formas de grandes cabeças de falcões é típico em
objetos funerários do final da Baixa Época e início do Período Ptolomaico. O escaravelho alado
sustentando o disco solar, encontrado abaixo deste também é típico da iconografia das estátuas
funerárias de Ptah-Sokar-Osíris desse período. A ponta das fitas que se projetam abaixo do colar
são uma indicação do cargo sacerdotal exercido pelo dono da estátua.
Como possui uma cavidade no pilar dorsal, dentro da qual se deveria encontrar
originalmente uma pseudo “múmia-de-grãos” alongada, a base certamente era sólida. A mesma
poderia possuir ao seu redor um friso com hieróglifos decorativos ou o padrão serekh. No topo
da base poderíamos ter uma continuação da inscrição que originalmente existia no tronco ou um
lago acompanhando o padrão.
A estátua tem 54,4 cm de altura por 9,2 cm de largura por 10,2 cm de profundidade.

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Inv. 17 [MN-2]

Fig. 5 – inv. 17 [MN-2] frente (BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)

Exceto pelo toucado divino de uma coloração preta, não há vestígios de pintura na
estátua funerária de Ptah-Sokar-Osíris de inv. 17. Os traços de seu rosto são bem definidos,
possuindo um rosto com um leve sorriso e grandes orelhas projetadas para frente. Os pés
terminam quase rentes ao plinto. Este conjunto de características demonstra o seu
pertencimento ao estilo do Período Saíta.
Como a estátua é sólida, uma cavidade com uma pseudo “múmia-de-grãos” em seu
interior poderia estar localizada na base desaparecida.
A estátua tem 27,7 cm de altura por 6,7 cm de largura por 5,4 cm de profundidade. O
pino da estátua para o encaixe na base foi serrado.

Inv. 140 [MN-3]

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Fig. 6 – inv. 140 [MN-3] frente (BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)

A presente peça tem como característica principal o fato de sua pintura ter sido aplicada
diretamente sobre a madeira. O toucado divino apresenta restos de pigmentação azul, o rosto
verde e o tronco vermelho. As fileiras do colar wsx e o contorno da coluna para inscrição em
um tom vermelho escuro ainda são visíveis. A inscrição desapareceu por completo.
Sua forma robusta e a face com as orelhas projetadas para frente são típicas do Período
Saíta. A combinação de todos esses traços visíveis aponta para uma figura do tipo 4. (Raven tipo
III) pertencente à XXVI Dinastia.
Como a estatua é sólida, uma cavidade com uma pseudo “múmia-de-grãos” em seu
interior poderia estar localizada na base desaparecida. Como na maioria das estátuas do tipo 4. a
base provavelmente era amarela, talvez com uma borda preta nas laterais. A tampa da cavidade
poderia ser simples ou ter um falcão. A coleção egípcia do Museu Nacional/UFRJ possui um
desses falcões (inv. 106) (BIELESCH, vol. 1, 2010:254 figs. 101 e 102), o qual provavelmente

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representa o deus Sokar, e que servia como tampa para a cavidade no topo da base das estátuas
funerárias de Ptah-Sokar-Osíris. Em geral os falcões costumam seguir a mesma paleta de cores
usada na estátua. O presente falcão também é vermelho como o tronco da nossa estátua e
proporcionalmente também poderia servir de tampa. O único detalhe que talvez indique que o
mesmo não pertencesse à presente estátua, é que a pintura do falcão foi aplicada sobre uma fina
camada de gesso, enquanto a pintura da estátua foi aplicada diretamente sobre a madeira.
A estátua tem 36 cm de altura por 8,2 cm de largura por 6,2 cm de profundidade.

Inv. 181 [MN-4]

Fig. 7 – inv. 181 [MN-4] frente (BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)

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Fig. 8 – inv. 181 [MN-4] verso (BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)

A estátua funerária de Ptah-Sokar-Osíris de inv. 181 é a única na qual restou parte de


uma inscrição. A mesma, em hieróglifos cursivos pretos, está localizada em uma coluna na frente
do tronco da estátua. A marca de uma coluna no verso da estátua aponta para a existência de
uma possível continuação da inscrição nesta localidade. Os hieróglifos restantes identificados por
nós apresentam pequenas diferenças em relação às observações dos mesmos feitos por Kitchen
(1990, p.203), como pode ser visto na figura 9, a qual mostra ambas as interpretações das
mesmas. A seguinte tradução para a inscrição foi proposta por Kitchen (1990, p. 224): “[Ptah-
Sokar-]Osíris, o chefe da província de Thinis, grande deus, Senhor de [Abidos].”

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Fig. 9 - comparação da inscrição observada por Kitchen (a) e Bielesch (b) da estátua funerária de Ptah-
Sokar-Osíris inv. 181.

Comparando a tradução proposta por Kitchen com as inscrições de estátuas funerárias


de Ptah-Sokar-Osíris de outras localidades, a mesma mostra-se incorreta, até mesmo inexistente.
Pelo tipo de decoração da estátua, um colar wsx simples, com uma coluna de inscrição na frente
e no verso e um tronco vermelho, a presente estátua se encaixaria nos tipos 4. (Raven tipo III) e
5.b (Raven tipo IVB). Na falta da cor da face, poderíamos supor pela forma arredondada de sua
face com orelhas grandes, típica das representações do Período Saíta, tratar-se de uma estátua do
tipo 4., de face verde, da XXVI Dinastia. Em todo caso temos em primeiro lugar o fato de não
haver nenhuma estátua funerária de Ptah-Sokar-Osíris por nós conhecida na qual a inscrição
inicia diretamente com o nome de Ptah-Sokar-Osíris. O mesmo costuma aparecer mais a diante
nas inscrições. Aqui, supondo pertencer a presente estátua ao tipo 4., nas mesmas as inscrições
mais comuns encontradas são o proscinema, ou a recitação para Osíris ou para o morto, ou para
ambos. No nosso caso, a mesma dirige-se para Osíris, como pode ser observado pela presença

de seu nome, . Pelo tamanho do espaço acima do nome de Osíris, o proscinema parece mais
viável. Abaixo do nome de Osíris temos o provável início de seu epíteto de xnty imntt
(“Primeiro dos Ocidentais”), seguido daquele de nTr aA (“Grande Deus”) e por fim resta apenas
a palavra nb (Senhor). Estes apontam para a sequência de epítetos de Osíris encontrados junto a
seu nome nas estátuas funerárias de Ptah-Sokar-Osíris: “Osíris, Primeiro dos Ocidentais, Grande
Deus, Senhor de Abidos”. Assim, olhando o conjunto teríamos a seguinte inscrição: Htp di nsw

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wsir xnty imntt nTr aA nb AbDw (Oferendas que o rei faz para Osíris, Primeiro dos Ocidentais,
Grande Deus, Senhor de Abidos).
A estátua tem 32 cm de altura por 7 cm de largura por 5,1 cm de profundidade.

Inv. 200 [MN-5]

Fig. 10 – inv. 200 [MN-5] frente (BRANCAGLION JR, Antonio, data: nov. 2006)

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Fig. 11 – inv. 200 [MN-5] verso com tampa aberta (BRANCAGLION JR, Antonio, data: nov. 2006)

A única estátua funerária de Osíris da coleção egípcia do Museu Nacional [MN-5] é uma
estátua do tipo 2.a (Raven tipo IC) de verniz preto. Originalmente usava uma coroa Atef e uma
barba divina. No interior da cavidade de seu tronco volumoso provavelmente possuía um papiro,
possivelmente com a inscrição do “Livro dos Mortos”. Este Osíris assemelha-se àqueles
encontrados no segundo cachette de sacerdotes de Deir el-Bahari. A partir da comparação com
estes, poderíamos datar a nossa estátua funerária de Osíris como pertencente à XXI Dinastia e
considerar que ele seja proveniente de algum sepultamento de um sacerdote ou funcionário do
templo de Amun, na região de Deir el-Bahari. Outro fator que reforça o provável cargo de seu
proprietário é a grande quantidade de objetos pertencentes aos servidores do deus Amun
originários dos sítios arqueológicos da margem Ocidental de Tebas.
Tamanho: 40 cm alt. x 12,5 cm larg. x 6,3 cm prof.

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Inv. 203 [MN-6]

Fig. 12 – inv. 203 [MN-6] frente. (autor: BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)

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Fig. 13 – inv. 203 [MN-6] verso. (BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)

A estátua de Ptah-Sokar-Osíris de inv. 203 apresenta uma forma robusta, com um rosto
arredondado, e com orelhas projetadas para frente, semelhante aos sarcófagos saítas. Da pintura
restam apenas alguns traços de tinta preta de duas fileiras do colar wsx e da borda da coluna
para uma inscrição na frente do tronco. Talvez ela fosse originalmente uma estátua do tipo 4.
(Raven tipo III), devido a seus traços saítas, mas, na falta de maiores detalhes, classificamos ela
como sendo uma estátua do tipo 9.
Como a estatua é sólida, uma cavidade com uma pseudo “múmia-de-grãos” em seu
interior poderia estar localizada na base, que desapareceu.
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A estátua tem 39,3 cm de altura por 10,2 cm de largura por 7,2 cm de profundidade.

Inv. 204 [MN-7]

Fig. 14 – inv. 204 [MN-7] frente. (BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)

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Fig. 15 – inv. 204 [MN-7] verso. (BRANCAGLION JR, Antonio, data: jul. 2010)

A presente estátua de Ptah-Sokar-Osíris tem apenas vestígios de uma pintura preta no


toucado divino e na borda da coluna para inscrição na frente e no verso do tronco. Uma
peculiaridade que chama atenção é furo quadrado para encaixe da coroa Swty.

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Fig. 16 – furo quadrado para encaixe coroa Swty estátua inv. 204 (BRANCAGLION JR, Antonio, data:
jul. 2010).

Este tipo de furo não redondo como nas outras estátuas funerárias de Ptah-Sokar-Osíris
do Museu Nacional/UFRJ é encontrado normalmente apenas em estátuas de maior porte. Sua
forma delgada lembra as estátuas do final da Baixa Época e início do Período Ptolomaico, mas
por falta de maiores detalhes classificamos a mesma como pertencendo ao tipo 9. Na nossa
reconstituição representamos o presente Ptah-Sokar-Osíris usando um colar wsx n bik, o
qual normalmente é usado por estátuas desse período. Como a pintura desapareceu por
completo no local da disposição do colar, apenas podemos supor o uso deste em comparação
com outras estátuas do mesmo período (tipos 5.c, 6.b, 6.c., 7 e 8).
Como a estátua é sólida, uma cavidade com uma pseudo “múmia-de-grãos” em seu
interior poderia estar localizada na base desaparecida. A tampa da cavidade poderia ser simples,
na forma de um falcão, de um falcão sobre um sarcófago ou como um sarcófago na forma da
capela Per-nu, como optamos por ilustrar na nossa reconstituição.
A estátua tem 35,7 cm de altura por 8 cm de largura por 6,5 cm de profundidade. O pino
da estátua para encaixe na base foi serrado.

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PARA(FALAR(AOS(DEUSES:(ESTUDO(DAS(ESTATUETAS(
VOTIVAS(DA(COLEÇÃO(EGÍPCIA(DO(MUSEU(NACIONAL(
Cintia Prates Facuri
Museu Nacional / UFRJ

Resumo: As estatuetas em bronze, em sua grande maioria representações de divindades, são uma importante fonte
para compreender o comportamento religioso individual dos egípcios antigos a partir da Baixa Época, quando
parece ter havido uma maior liberdade das pessoas em se relacionar com as divindades, sendo um testemunho
material de suas crenças. O presente trabalho visa apresentar um breve estudo sobre as estatuetas votivas em bronze
da coleção egípcia do Museu Nacional / UFRJ.

Abstract: The great majority of the bronze statuettes representing deities can be considered one of the main
evidence of the personal religious practice from the Late Period on, when people seems to have had a greater
freedom to establish a closer relationship with the deities. These objects, offered as gifts for the gods, are important
ways of understanding the personal religious behavior of the ancient Egyptians, being material evidences of their
beliefs. The present study presents a brief study of the bronze votive statuettes of the Egyptian collection of Museu
Nacional / UFRJ.

As estatuetas votivas em bronzes, bem como os ushabtis e os amuletos, estão entre os


objetos mais negligenciados das coleções egípcias, apesar de serem objetos sempre presentes
nestas. No século XIX, era de interesse dos museus expor a grande variedade iconográfica das
divindades egípcias. Além disso, nesta época, as estatuetas em bronze podiam ser facilmente
adquiridas. Este interesse pela religião egípcia por parte dos colecionadores se deu pelo fato de
que no século XIX e início do XX acreditava-se que um conhecimento substancial da religião
egípcia era necessário para entender os egípcios e sua arte. Sendo assim, os grandes museus
optaram por expor as estatuetas em bronzes de forma didática, guiando a visão do visitante em
uma viagem através da arte egípcia.
As coleções egípcias no Brasil que possuem estatuetas em bronze são as do Museu de
Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) (BRANCAGLION, 1993),
Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi (em São Paulo), Museu de Arte de São Paulo (MASP),
Fundação Eva Klabin (BRANCAGLION, 2002), além de coleções particulares, e o Museu
Nacional / UFRJ (KITCHEN, 1990), que possui a maior coleção e a que será apresentada neste
estudo.

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A Religião Egípcia e os Objetos Votivos


Os egípcios não possuíam um termo específico para designar “religião” ou “piedade”. A
partir do II milênio a.C. torna-se frequente o emprego do termo rdit i3w, que significa “fazer
prece”, “rogar”, “adorar”, que de certa maneira expressa a prática religiosa de um devoto em
relação a uma divindade. A função do culto divino era não somente venerar a divindade, mas
estabelecer uma relação de troca entre a esfera divina e a humana.
O contato entre os devotos e as divindades era na maior parte das vezes feito por
intermédio de oferendas, preces, pedidos de auxílio e ex-votos. As três primeiras categorias são
mais bem documentadas do ponto de vista textual (estelas, óstracos, papiros, estátuas e
inscrições parietais). Já os ex-votos formam a categoria mais numerosa, sobretudo a partir da
Baixa Época, mas são poucas as informações que podemos extrair destes objetos em relação aos
seus ofertantes ou quanto aos propósitos que os levaram a fazer a oferenda. Os ex-votos não são
simples artefatos, mas a parte material sobrevivente de um ato de devoção. Rituais e preces
provavelmente acompanhavam a oferta do ex-voto, sendo um elemento significativo do ato
devocional que não deixou traços (PINCH, 1993: 333, 339).
Ex-voto, em egípcio m-isw iri “em recompensa por (ele ter feito)”, é considerado o
resultado direto de um ato devocional anterior, onde o suplicante ou adorador faz uma oferenda
acompanhada de uma prece. A inferência desta ação seria:
• Devoto – faz a oferenda e um pedido para a divindade
• Divindade – aceita a oferenda e realiza o pedido
• Devoto – agradece com o ex-voto
Uma discussão que infelizmente permanece sem resposta é se as estatuetas votivas em
bronze eram dedicadas quando o devoto fazia o pedido à divindade (ad-voto) ou se estes eram
entregues como agradecimento ao pedido realizado (ex-voto).
A maioria dos objetos votivos pode ser classificada em três categorias principais (PINCH
& WARAKSA, 2009: 5):
• Representações de divindades ou poderes divinos
• Objetos de culto
• Objetos associados à fertilidade humana
Algumas oferendas votivas, como estelas, vasos em rocha e tecidos, eram confeccionadas
especialmente para tal intento, já outros podiam ser pré-fabricados e então recebiam o nome do
devoto. Observa-se que as inscrições nos objetos votivos, na maioria dos períodos, eram
fórmulas, não inscrições pessoais.

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A oferenda de objetos votivos era realizada provavelmente quando as pessoas visitavam


os templos durante os festivais religiosos. Vale destacar que o momento em que os devotos
tinham um contato mais direto com as divindades dos templos era nos festivais religiosos,
quando os sacerdotes faziam procissão com os relicários das imagens divinas onde elas estavam
abrigadas. Neles, o deus deixava o templo fazendo uma viagem a outro distrito ou templo para
celebração, onde a população podia participar. No entanto, as pessoas não viam as figuras
divinas, apenas seus relicários.

Testemunhos Materiais da Devoção Pessoal


“Devoção Pessoal” é um termo usado para designar as práticas e crenças religiosas fora
do âmbito da Religião Oficial organizada pelo Estado. Estas práticas se desenvolviam em
ambiente doméstico, capelas privadas, necrópoles e nos templos em locais acessíveis ao povo. A
“devoção pessoal” não deve ser considerada uma alternativa à Religião do Estado, mas sim um
aspecto da vida cotidiana em uma sociedade onde a maior parte da população não participa dos
rituais oficiais nos templos. As práticas rituais feitas pelo povo nos locais de culto popular são
em grande parte uma versão em escala reduzida daquelas realizadas pelos sacerdotes nos grandes
templos.
As evidências materiais de uma devoção pessoal anterior ao Novo Império são muito
escassas. Apesar disto, em cada período histórico podem ser citadas as seguintes oferendas
votivas. No Antigo Império podemos destacar as figuras humanas e os vasos em cerâmica e
rocha que eram ofertados como ex-voto, tendo sido encontrados especialmente em Saqqara e no
templo de Satet em Elefantina (YOSHIMURA; KAWAI; HIROYUKL, 2005). No Médio
Império as estelas abidianas dedicadas em honra a Osíris (RICHARDS, 2005) são um dos
principais testemunhos desta devoção.
No Novo Império os principais exemplos deste contato entre devoto e divindade vêm da
região de Tebas, onde se destacam na margem leste o complexo de templos de Karnak
(BARGUET, 2006) e Luxor (BELL, 1997) e na margem oeste Deir el-Bahari (PINCH, 1993) e
Medinet Habu (HÖLSCHER, 1939, 1954).
Durante o III Período Intermediário, a relação dos devotos com suas divindades de
predileção se torna mais frequente, aumentando o número de testemunhos materiais desta
prática, sendo expressa principalmente sob a forma de amuletos (ANDREWS, 1994) e bronzes
votivos (WEISS, 2012).
Na Baixa Época e no Período Ptolomaico, a prática de oferecer objetos votivos
aumentou inda mais. Embora alguns objetos sejam de grande qualidade artística e técnica, uma

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boa parte deles possui pequenas dimensões e baixa qualidade, tendo sido ofertados por um
número cada vez maior de devotos.
Ao partir do III Período Intermediário, ao contrário do que ocorreu no Novo Império, a
oferenda de ex-votos às divindades parece ter sido um fenômeno por todo o Egito, e não restrito
ao Alto Egito, como anteriormente. Um ponto importante que deve ser esclarecido é que a falta
de evidências materiais em períodos mais recuados da história egípcia não implica na inexistência
de uma piedade pessoal. Esta sempre existiu, mas só foi manifestada de forma sistemática
tardiamente.

Os Bronzes Votivos
Apesar do fato de que a introdução do bronze tenha sido gradual durante a história
egípcia, é a partir do III Período Intermediário que a maior disponibilidade do material, associada
às propriedades físicas do bronze e o aperfeiçoamento de técnicas de fabricação (por cera
perdida, em sua maioria) permitiram o aumentou da produção das estatuetas votivas. Além disso,
pode-se afirmar que talvez o bronze possuísse uma ligação com a imagem de culto dos templos
(esta feita de metais preciosos), permitindo que as estatuetas em bronze fossem usadas como
substitutas daquelas, dadas as possibilidades cromáticas que o bronze pode adquirir dependendo
da sua liga e de seu polimento.
Praticamente todo panteão egípcio pode ser representado nas estatuetas em bronze,
inclusive representações chamadas de “panteístas”, onde vários elementos de divindades são
somados em uma imagem. No entanto, algumas formas se tornaram mais populares, como as
tradicionais representações do deus Osíris, Ísis Lactante e os gatos da deusa Bastet. As estatuetas
votivas em bronze podem compreender figuras individuais ou grupos de figuras, podendo haver
a figura de um devoto ajoelhado diante de uma divindade, estando estes deuses representados
em suas formas humanas, animais ou híbridas.
As estatuetas em bronze eram ocasionalmente enfaixadas em linho e colocadas em
relicários me madeira. Elas eram depositadas em locais específicos anexos aos grandes templos e
ofertadas o ano todo, mas em momentos específicos, como os festivais religiosos, o ano novo ou
o aniversário de coroação do faraó, as ofertas eram maiores. Com o passar do tempo, estes locais
ficavam lotados de ex-votos (estelas, bronzes, estatuetas em barro e óstracos), então os
sacerdotes promoviam uma “limpeza sagrada” para liberação de espaço. Os bronzes, junto com
outros objetos, eram colocados em poços de descarte, chamados em egiptologia de “cachette”.

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A Coleção Egípcia do Museu Nacional


A coleção egípcia do Museu Nacional do Rio de Janeiro é provavelmente a mais antiga
da América do Sul. A maior parte dos objetos chegou em 1826, trazida de Marselha por Nicolau
Fiengo e no mesmo ano as peças foram compradas por D. Pedro I. Apesar da procedência
inexata, acredita-se que a sua maior parte tenha sido reunida por Giovanni Battista Belzoni,
sendo provavelmente originária de Tebas, atual Luxor. Posteriormente, foram adquiridas outras
peças egípcias doadas por Felipe Lopes Neto e I. Dumont Villars e vendidas por Eduardo
Bianchi e Frederico Ramoush, sendo talvez esta a origem da maioria das estatuetas em bronze.
Infelizmente sabe-se muito pouco a respeito do contexto arqueológico em que os bronzes
votivos foram encontrados.
Acredita-se que os ex-votos em bronze pertencentes ao acervo do Museu Nacional
tenham como locais de origem as capelas de Osíris em Karnak e Medinet Habu, por inferência
aos demais objetos da coleção. Sua datação também é incerta, uma vez que não há
documentação consistente a respeito. O Museu Nacional possui ao todo setenta e quatro peças
em bronze, a grande maioria imagens divinas do grande panteão egípcio. O maior número (vinte
e oito, de acordo com o catálogo de KITCHEN, 1990) corresponde a estatuetas do deus Osíris,
possuindo diversos tamanhos e características.
O processo de fabricação mais utilizado nas estátuas egípcias de bronze é a fundição em
“cera perdida”, que consiste na formação de um molde de fundição em torno de um modelo de
cera, que pode ser derretido e substituído. A maioria dos bronzes da coleção foi fabricada em
molde maciço, mas alguns são de moldes ocos, possuindo uma massa argilosa em seu interior, o
que mostra que estes foram fabricados de modo mais elaborado.

As Estatuetas Egípcias em Bronze do Museu Nacional


A seguir serão apresentadas algumas das estatuetas pertencentes ao acervo do Museu
Nacional.

Deusa Leontocéfala
III Período Intermediário – Baixa Época (c. 1070 – 525 a.C.)
Egito, procedência desconhecida
Coleção Fiengo - D. Pedro I
H.13,8 cm
Liga de cobre (bronze)
Nº. Inv. 53

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Descrição
Deusa com cabeça de leoa com os braços estendidos ao longo do corpo e as mãos abertas sobre
a lateral das coxas. Seus pés estão juntos sobre uma base quadrada. Porta peruca tripartite, disco
solar com uraeus, cuja cauda que se estende até a parte posterior do toucado. O vestido justo
revela os contornos do corpo.

Comentário
Representações de deusas leontocéfalas com disco solar e uraeus eram associadas ao “olho do
Sol”, isto é, as Filhas do deus Rê, como as deusas Wadjet, Mut, Mehyt e principalmente Sekhmet.
Suas representações com os braços abaixados e as mãos abertas junto ao corpo são
características associadas ao feminino, imagens de esposas (desde o Antigo Império), rainhas e
algumas deusas que são “companheiras”, como Ísis, Néftis, mas principalmente Sekhmet. Esta é
uma postura que destaca a sua função de companheira e contraparte de um deus, sem estar
segurando algum cajado ou cetro, mas em atitude de marcha, algumas vezes, como se ela
demonstrasse o seu aspecto puramente feminino de deusa/rainha/esposa.

Ísis Lactante
Período Ptolomaico – Período Romano (c. 332 – 30 a.C.)
Egito, procedência desconhecida
Coleção Fiengo - D. Pedro I
H. 8,3 cm
Liga de cobre (bronze)
Nº. Inv. 78

Descrição
Deusa Ísis sentada em um trono hoje inexistente leva a mão direita (fragmentada) ao seio
esquerdo para amamentar Hórus criança sentado em seu como, amparado pela mão esquerda da
deusa na altura de seu pescoço. Hórus criança está nu e porta a coroa dupla. Ísis usa acima de
sua peruca tripartite um modius que sustenta o disco solar contornado por dois chifres de novilha,
em sua fronte aparece uma grande serpente-uraeus. O vestido justo revela os contornos do corpo.
Seus pés estão apoiados em um pequeno escabelo.

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Comentário
De acordo com Tran Tam Tinh (1973: 40), o estudo iconográfico de Ísis Lactante nos leva a
examinar o problema envolvendo a relação entre a religião egípcia e o cristianismo. Muitos
autores afirmam que o esquema iconográfico de Ísis Lactante influenciou fortemente a criação
da imagem de Maria Lactante. Já outros são mais cautelosos, dizendo que ela é somente uma
precursora à representação de Maria e o menino Jesus. Já outros questionam se a devoção dos
egípcios por Ísis Lactante, devoção esta intimamente ligada ao pensamento religioso egípcio,
teria sobrevivido até o cristianismo, originando a imagem da Madona aleitando a Criança. Diante
da ampla gama de suposições devemos estar atentos ao fato de que os autores muitas vezes
misturam o ser parecido com o ser descendente.

Touro Ápis
III Período Intermediário – Baixa Época (c. 1070 – 525 a.C.)
Egito, procedência desconhecida
Coleção Fiengo - D. Pedro I
H. 5,6cm
Liga de cobre (bronze)
Nº. Inv. 45

Descrição
Touro Ápis aqui representado em sua forma usual com disco solar entre seus cornos e uraeus ao
centro. Em sua testa deveria haver uma marca triangular, hoje não mais visível, e porta um colar
em seu pescoço. Suas costas são adornadas com ornamentos representando um escaravelho
alado, um manto estampado e um abutre alado. O touro sagrado está em pé em posição de
marcha, com suas patas esquerdas à frente e as direitas atrás, sobre uma base retangular.

Comentário
Representando a força divina da fertilidade, o touro foi adorado no Egito desde sua Pré-História,
sendo associado também à inundação, e por consequência a Hapi e ao Nilo, e posteriormente a
Osíris senhor do renascimento. Além disso, um dos epítetos do faraó era “touro possante”. O
touro Ápis é a imagem viva de Ptah, senhor de Mênfis, podendo ser chamado de “filho de Ptah”,
atuando como um intermediário na comunicação com o deus criador menfita através de

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oráculos. O touro Ápis, para ser assim então chamado, deve possuir uma série de marcas divinas,
dentre elas, possuir uma pequena marca triangular em sua testa e ter sido concebido por uma
vaca identificada com Ísis, através de um relâmpago. O touro Ápis é representando portando
entre seus cornos um disco solar, uraeus, a marca triangular em sua testa, um grande colar ao
redor do pescoço, sobre seu dorso um manto e um escaravelho ou abutre alado, estando na
maioria das vezes em pé sobre um trenó.

Conclusão
Os bronzes votivos fazem parte de uma sequência de práticas que envolveriam
oferendas, libações, preces, hinos, posturas corporais, ou seja, todo um conjunto de condutas do
fiel para com a divindade que não deixou vestígios, a não ser estas estatuetas. Podemos ver nos
bronzes a marca da devoção pessoal característica da Baixa Época, uma vez que a produção de
imagens divinas em bronze para o uso como ex-votos é claramente mais frequente a partir deste
período.
Os bronzes votivos devem ser vistos como um elemento importante para se
compreender esta forma de expressão religiosa individual, e não somente como meros elementos
ilustrativos dos aspectos formais da arte e da religião egípcia. As estatuetas egípcias em bronzes
representando divindades são uma expressão material da alma religiosa dos antigos egípcios e da
presença e da atuação destas forças divinas em suas vidas.

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TECNOLOGIAS(TRIDIMENSIONAIS(APLICADAS(EM(
PESQUISAS(ARQUEOLÓGICAS(DE(MÚMIAS(EGÍPCIAS(
Simone Letícia Rosa Belmonte
Laboratório de Modelos Tridimensionais, Instituto Nacional de Tecnologia (INT) Rio de
Janeiro, Brasil
Jorge Roberto Lopes dos Santos
Laboratório de Modelos Tridimensionais, Instituto Nacional de Tecnologia (INT) Rio de
Janeiro, Brasil
Núcleo de Experimentação Tridimensional, Pontifica Universidade Católica do Rio de Janeiro
Antonio Brancaglion Júnior
Laboratório de Processamento de Imagens Digitais, Museu Nacional (UFRJ), Rio de Janeiro,
Brasil

Resumo: A Arqueologia é a ciência que investiga o passado humano a partir do estudo de “vestígios e restos
materiais” deixados por povos que habitaram a Terra. Uma abordagem não destrutiva torna-se prioritária para a
preservação de tais tesouros. Construímos modelos físicos e virtuais de múmias egípcias usando Tomografia
Computadorizada, Escaneamento Tridimensional e Prototipagem Rápida. Além de preservarem os originais, essas
tecnologias permitem um aprofundamento nos nossos estudos arqueológicos.

Abstract: Archeology is the science which investigates Man’s past through the study of traces and matters left by
people who inhabited planet Earth. A non-destructive approach is a priority regarding the protection of such
treasure. We build physical and virtual models of Egyptian mummies through Computed Tomography (CT), 3D
scanning and Rapid Prototyping. Besides preserving the findings, such technologies allow us to go deeper in our
archeological studies.

Introdução
A origem da coleção egípcia do Museu Nacional é desconhecida, mas é aceito que
Nicolau Fiengo trouxe essa coleção de Marseille, França, a qual afirmava que era proveniente das
escavações de Giovanni Battista Belzoni. Belzoni alegava que os objetos que vieram para o Brasil
teriam sido encontrados nas suas escavações em Karnak, o “reino de Amon”, e em uma
necrópole tebana. Muitos dos objetos que pertenceram aos Imperadores do Brasil foram

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confirmados como tendo pertencido a sacerdotes e oficiais tebanos, desse modo, confirmando a
proveniência da coleção Fiengo (BRANCAGLION, 2009).
A mumificação artificial foi criada para uso exclusivo das elites, sendo praticada até a
chegada do cristianismo ao Egito. Além de múmias humanas, os egípcios antigos produziram
milhões de múmias de animais de várias espécies por considerá-los como avatares dos deuses
Fiengo (BRANCAGLION, 1999).
A Arqueologia pode ser definida como a ciência que estuda o passado humano a partir
dos “vestígios e restos materiais” deixados pelos povos que habitaram a Terra. Em muitas
ocasiões, uma das grandes dificuldades encontradas nos estudos em arqueologia está ligada a
limitação que alguns materiais possuem devido a sua fragilidade e raridade.
O desenvolvimento de uma abordagem não destrutiva desses materiais torna-se
necessária. Para tal, realizamos a construção tridimensional virtual de múmias egípcias obtendo
todas as suas dimensões e formas, juntamente como escaneamento tridimensional de alguns
materiais encontrados dentro desse contexto.
Desde 2003, o Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ),
juntamente com o Instituto Nacional de Tecnologia do Ministério da Ciência Tecnologia e
Inovação (INT/MCTI) têm coordenado uma série de análises e estudos utilizando tecnologias
de ponta para investigações de remanescentes antigos. Um dos primeiros trabalhos incluiu a
famosa Múmia Sha-Amun-em-su (SOUZA, 2009; BRANCAGLION, 2009). Nesse trabalho,
descrevemos parte da continuidade das investigações feitas nesse material e também incluímos
outros novos materiais, sendo a uma múmia de gato, uma máscara funerária e um pedaço de um
caixão.

Tecnologias Empregadas
Usando tecnologias de Tomografia Computadorizada (TC), Escaneamento
Tridimensional e Prototipagem Rápida (PR), buscamos através das técnicas usadas isolar caixões,
elementos funerários, materiais usados na mumificação, ossos e espaços vazios. Juntamente
utilizamos os arquivos matemáticos virtuais para construção de modelos físicos fiéis que poderão
ocupar acervos e exposições.

Tomografia Computadorizada
A Tomografia Computadorizada (TC) é um método complementar de diagnóstico
médico por imagens, não-invasivo. Trata-se de uma técnica radiológica, porém constitui-se num
aparelho muito mais complexo.

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Mecanicamente a TC é um equipamento de scanner de rotação contínua, com um tubo


rotatório emissor de raio-X que medem a intensidade de radiação que é transmitida, juntamente
com detectores fixos em forma de um cilindro, os quais se movem simultaneamente através do
campo de medição, o que possibilita uma imagem contínua de todas as estruturas do corpo
(KALENDER, et al. 2000).
Os princípios físicos da TC se baseiam na quantidade de radiação absorvida por cada
parte do corpo, desse modo, tecidos de diferentes composições absorvem radiação X de formas
distintas, ou seja, quando os tecidos são atravessados pelo raio-X, os órgãos de maior densidade
ou elementos mais pesados como cálcio presente nos ossos absorvem mais radiação, do que os
tecidos menos densos, como pulmonar, que contém ar no interior, desse modo ocorrem as
diferenciações (WERNER, et al. 2009).
O resultado é uma sequência de imagens bidimensionais tomográficas finas de tecidos e
conteúdo corporal, delineadas em escalas de cinza (quanto mais claro for a escala mais denso o
elemento, quanto mais escura a escala menos denso). Essas imagens são constituídas de pixels
(unidade da menor parte de um a imagem), onde cada pixel corresponde à média da absorção
dos tecidos nas áreas irradiadas, expresso em unidades de Hounsfield.
Mesmo tratando-se de um equipamento desatinado a estudos em medicina, a TC serve
também como método visualização da parte interna de objetos, e materiais. Desse modo
diversos trabalhos científicos (WERNER & LOPES, 2009; LOPES, BRANCAGLION,
AZEVEDO e WERNER, 2013), têm sido desenvolvidos utilizando a TC como metodologia de
aquisição de imagens bidimensionais não-invasivas, em estudos de arqueologia.
Para a realização dos estudos realizados por TC, os exames foram viabilizados em função de
uma parceria com o Centro de Diagnóstico por Imagem (CDPI). Para a obtenção das imagens
tomográficas, foram utilizados os tomógrafos Siemens Volume Zoom/Solaris/5 e Siemens
Sensation 64.

Scanners 3D
Atualmente existem no mercado, muitos equipamentos de captura tridimensional ou
escaneamento tridimensional de superfície, os quais são desenvolvidos comercialmente para
atendem aos mais variadas aplicações, desde áreas de Engenharia Reversa, Desenho Industrial,
Conservação de Patrimônio, aplicações artísticas e médicas, além de outras áreas das ciências.
Assim tais equipamentos podem oferecer uma série de ferramentas distintas, alguns são
específicos para captura de objetos de grandes proporções, como por exemplo, estátuas,
monumentos, fachadas e até mesmo sítios arqueológicos, há ainda equipamentos próprios para

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uso em objetos de médio porte, como cadeiras, mesas, pessoas, enquanto outros equipamentos
foram desenvolvidos para obter objetos pequenos, como joias, eletrônicos, os quais geralmente
exigem uma captura bem detalhada.
Além disso, os escâneres oferecem uma série de resoluções e precisão distintas,
apresentam versões fixas (ex; Bodyscan) e portáteis, oferecem ou não a opção para captura de
textura e cores. Existem também versões voltadas mais para uso caseiro e outras para uso
profissional. Nós utilizamos duas tecnologias de escâneres 3D as quais descrevemos e
especificamos a seguir:

VIUScanTM Handy Scan 3D – (Creaform)


O primeiro equipamento usado foi o scanner VIUScanTM Handy Scan 3D, pertencente
ao INT/MCTI. Trata-se de um equipamento que realiza a captura de superfície através de um
feixe de laser e utiliza pontos de referência fixos para ajuste de localização o qual garante a
precisão matemática durante o processo de varredura dos objetos.
O scanner VIUScanTM Handy Scan, desenvolvido e fabricado pela Creaform, é um escâner
portátil, de alta resolução, com opção para captura de textura e cores. Seu sistema auto-
posicionamento é baseado na leitura dos pontos de referência os quais podem ser posicionados
diretamente na peça, sendo colados, ou ainda apenas fixados por imãs em objetos que forem
imantados, ou possuírem componentes metálicos. Outro forma para uso do sistema de auto-
posicionamento é utilizar uma base com os pontos de referência pré-fixados na mesma, na qual
se posiciona a peça encima dessa base. Esse segundo método é bastante interessante, pois evita
que se toque diretamente em peças como materiais arqueológicos, assim diminuindo a
necessidade de manuseio.

Artec MHTTM – (Artec 3D Scanners)


O segundo equipamento usado foi o scanner Artec MHTTM, pertencente ao MN/UFRJ.
O scanner Artec MHTTM, do Artec Group, é um scanner de captura de superfície, portátil que
utiliza luz branca (lâmpadas flash sem laser), o qual não oferece nenhum tipo de risco óptico ao
usuário. O equipamento também possui opção de captura de textura e cores. Uma vantagem em
relação ao VIUScanTM é que Artec MHTTM é um equipamento mais leve e que efetua a captura
relativamente mais rápido.
Por ambos os escâneres serem portáteis tornam a utilização mais viável e fácil uma vez que
podem ser transportados até as coleções científicas para serem lá usados, sem haver a
necessidades da retirada de peças de sua intuição de tombo. Esse é um ponto bem importante,

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principalmente se considerarmos que em muitas coleções existem materiais bastante frágeis, ou


com dimensões que impediriam seu transporte de modo prático até um instituto onde a captura
3D pudesse der realizada.

Prototipagem Rápida - Impressoras 3D


Outras tecnologias utilizadas foram às máquinas de Prototipagem Rápida (PR), ou seja,
as impressoras 3D. Assim como outros equipamentos citados, existe no mercado uma série de
impressoras distintas, apresentadas em grande variedade.
Essas máquinas exibem uma série de possibilidades assim como também limitações, algumas
delas relacionadas à resolução da impressão, outras ao tamanho da área de impressão (áreas de
grande, médio e pequeno porte), variedade de materiais, como fios plásticos (abs/sls),
compósitos de gesso (ex: Zprinter/Zcorp), resinas (ex: Viper), materiais rígidos e flexíveis (ex;
Connex Object), assim como também materiais com maior ou menor resistência (ALMEIDA,
2008; SANTOS, et al. 2011).
Ainda as tecnologias de PR também podem estar ligadas a uma série de pós-
processamento de materiais, sendo também associadas a custos diferenciados.
Nesse trabalho nós utilizamos as máquinas de PR, Zprinter 350 (Zcorporation),
pertencente ao Instituto Nacional de Tecnologia, e Zprinter 310, pertencente ao Museu
Nacional/UFRJ, ambas utilizam um compósito de gesso como matéria prima e exige um pós-
processamento da peça, de limpeza e impregnação para conferir resistência. A Zprinter 350
oferece a opção de impressão em cores. Essas são tecnologias que com boa resolução, e
resistência, podendo construir objetos em escalas variadas.

Materiais Arqueológicos

Sha-Amun-em-su “A Cantora de Amon”


Em 2003, foram iniciados os trabalhos na Múmia de Sha-Amun-em-su exposta na Sala
Egípcia, essa fora a primeira vez que o MN/UFRJ atuava utilizando como método investigativo
a TC. Os estudos realizados puderam comprovar que o caixão o qual se encontra fechado,
realmente permaneceu não violado ao longo dos séculos, mesmo após ser retirada de seu túmulo
(SOUZA, 2009; BRANCAGLION 2009).
Alguns outros aspectos sobre a mumificação puderam ser visualizados graças a essa tecnologia
de investigação não-invasiva, verificou-se que a Múmia de Sha-Amun-em-su possuía o
“escaravelho-sagrado” ou “escaravelho-coração”, posicionado na altura de seu peito, assim como

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também a presença de amuletos, alocados as proximidades de suas mãos. Alguns outros aspectos
como a presença de olhos artificiais também puderam ser vistos (SOUZA, 2009;
BRANCAGLION, 2009).
Nesse trabalho nós utilizamos as imagens de TC de Sha-Amun-em-su para reconstruir
tridimensionalmente esses objetos, tornando possível a materialização dos mesmos. Para a
reconstrução utilizamos o programa de processamento de imagens médicas Mimics 16.0
(Materialise-Belgium). O programa usa processo de segmentação de imagens para fazer a
reconstrução tridimensional dos materiais analisados. Podemos então analisar imagem por
imagem e editar de modo separado estruturas distintas contidas nos exames, dessa forma, foi
possível reconstruir virtualmente num arquivo CAD, o escaravelho-sagrado, os amuletos, o
corpo ainda envolto nas bandagens e algumas outras estruturas (Fig. 1).

Fig. 1: Reconstrução tridimensional da Múmia de Sha-Amun-em-su, Esquife, Múmia envolta em bagagens, e


Esqueleto.

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Realizamos também a reconstrução do caixão e de “casulos de insetos” contidos no


mesmo, os quais futuramente poderão ser prototipados e possivelmente usados para
identificação dos insetos que ali estiveram em algum momento (Fig. 2).

Fig. 2: Análise dos casulos encontrados no caixão de Sha-Amun-em-su. Em A, imagens de TC, com indicações dos
artefatos encontrados. Em B, reconstrução tridimensional do caixão indicando a localização dos casulos. Em C,
reconstrução tridimensional dos casulos.

O modelo do corpo de Sha-Amu-em-su, assim como o modelo do caixão,


posteriormente foram impressos na máquina de PR, Z-printer 310 na escala de 1:10. Utilizamos
o modelo impresso do caixão para construirmos um molde transparente do mesmo, para isso
usamos uma chapa do plástico PETG, e usamos uma máquina de Vacuum Forming (Fig xx).
Desse modo pudemos associar o modelo impresso do corpo de Sha-Amun–em-su juntamente
com o molde do caixão, de modo a simular seu posicionamento dentro do caixão (Fig. 3).

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Fig. 3: Em A, modelos impressos em escala 1:10 do caixão e corpo envolto em bandagens da Múmia de Sha-Amun-
em-su, juntamente com o molde transparente. Em B, mostra os modelos impressos já inseridos na exposição
permanente da Sala do Egito, no Museu Nacional.

Esses materiais agora fazem parte da exposição de egiptologia do Museu Nacional, eles
se encontram juntamente com o caixão fechado de Sha-Amu-em-su, de modo que os visitantes
do MN/UFRJ podem agora além de conhecer o caixão com a múmia que pertenceu a Dom
Pedro II, terem revelado o conteúdo do mesmo.
A reconstrução do “escaravelho-sagrado” indicou a presença de um rosqueado nas extremidades
superior e inferior desse objeto, tal formato será importante também para identificar futuramente
o tipo de material, do qual esse amuleto foi confeccionado (Fig. 4).

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Fig. 4: Reconstrução tridimensional do “escaravelho coração” encontrado na Múmia de Sha-Amun-em-su, nos


detalhes indicações do padrão em rosca encontrado nesse artefato.

Outro novo resultado é a reconstrução do que se acredita ser tecidos, que estão envoltos
na garganta de Sha-Amun-em-su. Os antigos egípcios tomavam muito cuidado com detalhes em
todo o processo de mumificação, certamente esse novo detalhe pode estar relacionado à
importância de Sha-Amu-em-su em vida, podendo refletir e confirmar seu “status” como uma
Sacerdotisa Cantora de Amon (Fig. 5).

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Fig. 5: Reconstrução tridimensional da Múmia de Sha-Amun-em-su, mostrando com diferentes opacidades, e


indicando as estruturas como olhos artificiais e tecidos encontrados na garganta.

Observamos ainda que os amuletos situados dentro de um pacote, próximos às mãos de


Sha-Amun-em-su, somam num total de oito objetos. Preliminarmente, identificamos há quais
possíveis objetos os modelos podem ser associados. Entretanto, mais análises deverão ser
realizadas nesse contexto (Fig. 6).

Fig. 6: Amuletos encontrados próximo às mãos Sha-Amun-em-su, preliminarmente identificados, em A, Pilar Djed,
em B, Nó Tit, em C, Plumas e em D, Coluna de Papiros.

A Múmia de Gato (Número 247)


Em 2013, realizamos uma série de novos exames de TC, em novos materiais
arqueológicos, pertencentes a coleção Fiengo, do MN/UFRJ, entre eles uma múmia de gato,
identificada pelo número de inventário 247, a qual analisamos nesse trabalho.
Com os dados adquiridos pelas imagens de TC, pudemos confirmar realmente o
conteúdo do material embalsamado, identificando desse modo que realmente tratava-se de um
gato.
Esse é um dado muito importante, considerando que em muitas ocasiões materiais
arqueológicos desse tipo podem ter passado por fraudes antigas e/ou recentes, assim como,
possuírem materiais substituídos das verdadeiras múmias ou até mesmo incluídos e modificados
intencionalmente nos corpos, portanto confirmar a identificação dos indivíduos sepultados,
distinguir animais e humanos, verificar a integridade dos fardos funerários, a presença ou não de
amuletos ou de outros objetos é de grande relevância. (BRANCAGLION, 2013a).

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Utilizando o mesmo processo de segmentação, anteriormente aplicado na múmia de Sha-


Amun-em-su, construímos o modelo matemático virtual da Múmia de Gato 247, realizamos a
reconstrução tridimensional da múmia envolta em bandagens, assim como também a
reconstrução de seu esqueleto. De posse do arquivo 3D virtual, fizemos a prototipagem de
ambos os modelos, os quais foram usados para inferências a respeito da múmia original, o que
anteriormente a utilização dessas técnicas só poderia ser realizado destruindo parte do material
por técnicas de necropsia invasivas (Fig 7).

Fig. 7: Prototipagem Rápida da Múmia de Gato 247, escala 1:5.

No interior da múmia verificou-se que se tratava de um gato jovem sem a crista occipital
e com dentes de leite. O modelo prototipado do esqueleto indicava o formato do crânio bem
evidenciado, tudo indica ser um Felis catus. Notou-se que há uma fratura na parte posterior do
crânio, e a coluna aparece seccionada entre a cervical C1 e C2, separando a cabeça do corpo, o
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que pode ser um indicativo do método usado para sacrificar esses animais, por tratarem-se do
tipo de fraturas frequentemente encontradas em múmias de gatos (BRANCAGLION, 2013a).
Os modelos prototipados foram também usados na exposição permanente do
MN/UFRJ, na Sala do Egito Antigo, os modelos encontram-se ao lado da múmia original,
expondo aos visitantes os segredos ocultos por séculos sob suas bandagens (Fig. 8).

Fig. 8: Prototipagem Rápida do esqueleto da Múmia de Gato 247 na escala real, mostrada na exposição permanente
do Museu Nacional, ao lado do material original.

Face de Caixão – Máscara Funerária


Os rituais e equipamentos usados no ritual funerário dos egípcios antigos tinham como
objetivo proporcionar ao morto uma nova existência, desse modo os rituais figuravam uma nova
aparência aos mortos demonstrando-os sempre jovens e felizes na vida eterna. A face de caixão
aqui descrita foi comprada no Museu do Cairo no início do século passado, por Jorge Dumont
Villares, que posteriormente a doou ao MN/UFRJ, onde foi tombada sobre o número de
Inventário 2061 (BRANCAGLION, 2013b).
Esta face fazia parte da tampa de um caixão antropomórfico que pertencia a uma
categoria conhecida como “caixões amarelos”, identificáveis pelo fundo de cor amarela, e estava
associada à pele de ouro dos deuses, assim indicando seu status divino. Esse material pode ser
datado da XXI dinastia (c. 1100 a.C.) (BRANCAGLION, 2013b).

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Utilizando o equipamento VIUScanTM Handy Scan 3D, realizamos a captura de


superfície da peça, utilizando uma base com pontos de referência fixos, eliminando a necessidade
de tocar diretamente na peça.
O objeto foi escaneado em textura e cores originais, gerando um arquivo tridimensional
com proporções exatas e idênticas ao material original.
Posteriormente usamos a máquina de PR, Z-Printer 350, para impressão em cores do
arquivo. A réplica foi construída na escala real, tornando-se assim uma cópia fidedigna do
material original.
O protótipo impresso participou de diversas exposições itinerantes do MN/UFRJ, em
ocasiões onde o contato com o público visitante foi muito importante, pois de posse desse tipo
de réplica os visitantes tem não só a opção de visualizar a peça, mas também tocá-la, e em alguns
casos até mesmo posicioná-lo sobre seus rostos, de modo a aumentar bastante a interatividade
entre o público e a divulgação didático-científica da Instituição (Fig. 9).

Fig. 9: Em A, escaneamento da Face de Caixão com o equipamento VIUScanTM Handy Scan 3D, em B, arquivo
virtual gerado e em C impressão por Prototipagem Rápida na escala 1:5.

Fragmento de Caixão
O fragmento de um caixão, pertencente ao MN/UFRJ, depositado sob o número de
inventário 2, possui 22,8 cm de altura, 21 cm de largura e cerca de 6 cm de espessura, feito em
madeira estucada, a cena e os hieróglifos são modelados em relevo e pintados com cores
brilhantes, onde predominam o verde e o vermelho. Este fragmento corresponderia ao ombro
direito do caixão, com o entalhe na parte superior feito para encaixar a tampa
(BRANCAGLION, 2013c).
Seu repertório iconográfico era o mesmo dos papiros funerários da época, isto é, versões
do tradicional “Livro dos Mortos”, do “Livro do Amduat” e de “Papiros Mitológicos”
(BRANCAGLION, 2013c).

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Para a captura de superfície tridimensional desse objeto, nós utilizamos o scanner Artec
MHTTM, com opção de captura de textura e cores. Com o arquivo virtual os dados obtidos
tornaram possível a realização um estudo mais apurado da peça.
Com o arquivo CAD, é possível manipular e editar o modelo. Assim, temos a
oportunidade de vê-lo em cores ou mesmo como sem elas (Fig. 10). A visualização em cores
oferece a opção de obter-se a réplica idêntica ao material original, com as mesmas proporções
além de oferecer a opção de impressão colorida do mesmo. A visualização sem cores, porém
com textura permite obter-se em detalhes as camadas de relevo da peça e compreender melhor a
técnica de modelagem aplicada nesse objeto, sem interferência de possíveis artefatos da pintura
(BRANCAGLION, 2013c).

Fig. 10: Sequência de trabalho no Fragmento de Caixão (ni02). Em A, o material original, em B, primeira sequência
de escaneamento com o equipamento Artec MHTTM, em C arquivo final sem adição de cores, e em D arquivo final
em cores.

Conclusões
Os resultados alcançados mostram avanços proporcionados pela utilização destas
tecnologias que permitiram aprofundar e expandir o escopo de estudos realizados na
investigação de materiais e evidências arqueológicas, ligando o passado com futuras tecnologias.
Através das técnicas usadas foi possível isolar caixões, elementos funerários, materiais usados na
mumificação, entre outros, ainda construindo cópias fieis dos mesmos.
Os modelos virtuais ocupam acervos servindo como réplicas idênticas de seus materiais,
podendo desse modo ser usados em muitos tipos de pesquisas científicas, e em alguns casos
facilitando a troca entre instituições, evitando a necessidade de uma peça sair da coleção, no caso
de determinados tipos estudos, à exemplo de leitura do material, estudo da morfologia,
verificação do conteúdo interno de urnas de modo detalhado.

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Paralelamente, utilizamos os arquivos virtuais para construção de modelos físicos fiéis


que podem também ocupar acervos e exposições fixas e itinerantes, além se poderem ser usados
para um maior contato didático-científico com o público visitante, criando ainda a possibilidade
de integração com deficientes visuais.

Abreviações

3D Três dimensões ou tridimensional

CDPI Centro de Diagnóstico por Imagem


Instituto Nacional de Tecnologia do Ministério da Ciência Tecnologia e
INT/MCTI Inovação

MN/UFRJ Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro

PR Prototipagem Rápida

TC Tomografia Computadorizada

Bibliografia

ALMEIDA, Guilherme Lorenzoni (2008), Avaliação Comparativa de Tecnologias de


Prototipagem Rápida. Dissertação de Mestrado em Engenharia Civil, COPPE, Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
BRANCAGLION, Antonio (2009), The Scientific Study of Egyptian Mummies, in Heron
Werner Jr. and Jorge Lopes eds., Technologies (Palaeontology, Archaeology and Fetology), Rio
de Janeiro, Editora Revinter Ltda, p. 49-75.
BRANCAGLION, Antonio et al (2013a), Cat Mummy, in Jorge Lopes, Antonio Brancaglion Jr.,
Sergio Alex Azevedo e Heron Werner Jr. eds., 3D Technologies, Unveiling the past, shaping the
future, Rio de Janeiro, Editora Lexikon, p. 34-41.
BRANCAGLION, Antonio et al (2013b), Coffin Face, in Jorge Lopes, Antonio Brancaglion Jr.,
Sergio Alex Azevedo e Heron Werner Jr. eds., 3D Technologies, Unveiling the past, shaping the
future, Rio de Janeiro, Editora Lexikon, p. 42-45.

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BRANCAGLION, Antonio et al (2013c), Coffin Fragment, in Jorge Lopes, Antonio


Brancaglion Jr., Sergio Alex Azevedo e Heron Werner Jr. eds., 3D Technologies, Unveiling the
past, shaping the future, Rio de Janeiro, Editora Lexikon, p. 46-49.
BRANCAGLION, Antonio Jr. (1999), O Banquete Funerário no Egito Antigo, Tebas e Saqqara:
tumbas privadas do Novo Império (1570 - 1293 a.C.). Tese de Doutorado em Antropologia
Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
KALENDER, Willi A. (2000), Computed Tomography: Fundamentals, System Tecnology,
Image Quality, Applications, Munich, Publics MCD-Verlag.
LOPES, Jorge, BRANCAGLION, Antonio Jr., AZEVEDO, Sergio Alex Azevedo. &
WERNER, Heron Jr. (2013), 3D Technologies, Unveiling the past, shaping the future, Rio de
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from 3D Ultrasound, Magnetic Resonance Imaging and Computed Tomography Scan Data,
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Functional Requirements, London, Taylor & Francis Group, p. 179-192.
SOUZA, Sheila Maria Ferraz Mendonça (2009), Millenary Egyptian Mummies, Non-Invasive
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Archaeology and Fetology), Rio de Janeiro, Editora Revinter Ltda, p. 77-104.
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WERNER, Heron Jr.; SANTOS, Jorge Roberto Lopes. & FONTES, Ricardo da Cunha (2009),
Virtual and Physical 3D Technologies applied to Fetal Medicine, in Heron Werner Jr. and Jorge
Lopes eds., Technologies (Palaeontology, Archaeology and Fetology), Rio de Janeiro, Editora
Revinter Ltda, p. 105-183.

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Anexo 1

Especificações de Equipamento

Dados Viu Scan Handy Scan – (Creaform)

Resolução Geométrica 0.1 mm

Acuracia ou Precisão acima de 50 µm

Tipo Laser Class II (eye-safe)

Portátil Sim

Textura 50 to 250 DPI

Cores 24 bits

Anexo 2

Especificações do Equipamento

Dados Artec MHTTM – (Artec 3D Scanners)

Resolução Geométrica 0.5 mm

Acuracia ou Precisão 0.1 mm

Tipo Lâmpada de flash sem laser

Portátil Sim

Textura 1.3 mp

Cores 24 bpp

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Parte 2
O período de Amarna no Egito antigo
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AMARNA:(PINTANDO(UMA(NOVA(PAISAGEM(
Rennan de Souza Lemos
Museu Nacional, UFRJ

Resumo: Este ensaio apresenta, em linhas gerais, o panorama atual dos estudos sobre o período de Amarna no
Egito antigo. Hoje em dia, dispomos de novos dados provenientes de escavações em Amarna que nos permitem
pintar um novo quadro sobre a cidade construída pelo faraó Akhenaton. É hora de voltarmos nossa atenção a
velhos e novos dados com base numa abordagem teórica que nos permita superar afirmações difundidas, porém
infundadas, e ao mesmo tempo construir outras novas.

Abstract: In this essay we present the current panorama of the studies on the Amarna Period in ancient Egypt.
Nowadays we do have new data coming from excavations at Amarna that makes us able to paint a new landscape of
the city of Akhenaten. It is time to pay attention both to old and new data with theory in mind. It will make us able
to overcome old unsubstantiated claims and at the same time to construct new perspectives.

Esta apresentação se baseia em um texto maior publicado livro coletivo O Egito antigo
– novas contribuições brasileiras. A publicação reúne somente estudantes envolvidos em
pesquisas que lidam com o Egito antigo, o que expressa o momento de crescimento pelo qual
vem passando os estudos brasileiros sobre o Egito antigo.
Aqui, diferentemente do que faço no texto mencionado – ou seja: desenvolver uma
perspectiva, a meu ver, nova para a interpretação do período de Amarna no Egito antigo,
aliando, um pouco em moldes pós-processuais, teoria e dados –, tratarei da renovação dos
estudos sobre Amarna em geral.
Tell el-Amarna, ou simplesmente Amarna, foi a cidade construída por grande força de
trabalho a mando do faraó Akhenaton em meados do século XIV a. C. na região central do
Egito. Na Antiguidade, era designada Akhetaton – o horizonte do Disco Solar. Isto porque se
tratava de uma cidade planejada, dedicada ao deus Aton, simbolizado pelo Sol propriamente dito,
e em cujos templos e outras estruturas religiosas realizava-se o culto a este deus.
Mas talvez esta não tenha sido a característica principal da cidade de Amarna. Pelo
contrário, o que imediatamente me salta aos olhos é a diversidade da vida nesta cidade. Amarna
foi planejada e sua composição urbana e social é desde muito tempo explorada (a obra mais
atualizada sobre Amarna é: KEMP, 2012). Porém, a maior parte da cidade vivida se auto-
organizava de acordo com os anseios dos que lá tinham suas casas, trabalhavam, enfim,

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experimentavam e construíam a paisagem, o que pode ser constatado nas próprias construções
da cidade e na necrópole (LEMOS, 2014).
O período de Amarna é um dos mais controversos da Egiptologia. Isto acontece devido
às grandes lacunas existentes em nosso conhecimento sobre a história deste período, e
igualmente por conta das mais variadas apropriações do passado por parte de grupos atuais.
A Escola dos Annales há muito já alertou os historiadores para o fato de que o passado é
uma construção do presente, na medida que as questões que formulamos a respeito dos tempos
históricos são fruto do contexto em que vive o pesquisador. Igualmente, a Arqueologia Pós-
processual nos alertou para a multivocalidade que rodeia a todo tempo objetos e sítios
arqueológicos, e para o fato de que o passado pertence a nós mesmos.
Admitir a multivocalidade, entretanto, não anula o fato de que existem certos
procedimentos que asseguram a Arqueologia de um certo rigor que valida o conhecimento por
ela produzido. É claro que tanto o conhecimento acadêmico quanto o não acadêmico são
igualmente válidos ao se tratar do passado. Porém, é preciso que estejamos atentos para as
deturpações que essas diferentes vozes sobre o passado podem cristalizar como sendo verdades
únicas, o que pode, de certa forma, prejudicar o conhecimento produzido pelas ciências sociais –
dentro delas, a Arqueologia.
Isto ocorre com Akhenaton e o período de Amarna. Paralelamente à Egiptologia,
apropriaram-se de Akhenaton, por exemplo, o movimento negro nos Estados Unidos, o
movimento homossexual, grupos místicos distintos etc. (MONTSERRAT, 2000; CARDOSO,
2004a). Não raro podemos encontrar os discursos deturpados (no sentido de não serem
corroborados pelo registro arqueológico ou pela documentação textual) refletidos na
Egiptologia.
Cyril Aldred, por exemplo, defendeu teses patológicas acerca de Akhenaton e
argumentou uma suposta relação homossexual entre o faraó e Smenkhare. Aldred afirmou,
ancorado na iconografia do período:

“dessas cenas, a mais surpreendente é a que aparece em uma


estela inacabada em Berlim e indica uma relação homossexual
entre os dois governantes. Esta perversão parece ser enfatizada
pelo epíteto “Amado de Akhenaton”, a qual Smenkhare
incorporou em ambos os seus cartouches (...)” (ALDRED,
1972: 175).

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O livro mencionado de Aldred é datado e ele mesmo reviu algumas das assertivas
presentes na obra em livro posterior (ver CARDOSO, 2004b). 1 De qualquer forma, é um
exemplo de como o conhecimento egiptológico pode ser influenciado por diferentes discursos
sobre o passado.
Outro problema envolvendo Amarna é a idealização de Akhenaton e de sua cidade. Erik
Hornung afirmou, por exemplo, que a Amarna foi uma “cidade de villas e palácios”
(HORNUNG, 1999: 96). Esta é claramente uma afirmação idealizada, basta que se analise o
urbanismo e a auto-organização da cidade de Amarna, o que, em conjunto com novos dados
bioarqueológicos disponíveis, constrói uma imagem bastante diferente da época (DABBS, ROSE
and ZABECKI, 2014).
O caso de Akhenaton e Amarna é tão emblemático que Bruce Trigger nos alertou para o
fato de que a fronteira entre os estudos históricos e a ficção história se tornou nebulosa
(TRIGGER, 1981: 165). O autor se refere justamente a este fenômeno de apropriações e
deturpações que geraram uma série de diferentes histórias sobre Akhenaton e o período de
Amarna. Novamente, não se trata de desqualificar as diferentes vozes, mas sim de estarmos
atentos às apropriações e deturpações do passado, não deixando assertivas que não são
corroboradas por dados se sustentarem, sobretudo quando tais apropriações do passado se
tornam instrumentos políticos para a dominação (ver MOTTA, 2012). A Arqueologia tem o
dever ético de denunciar esses casos.
Trigger propõe como saída um caminho que não é nenhuma novidade, mas que deve ser
constantemente lembrado especialmente aos egiptólogos: aliar teoria e dados na interpretação do
passado. Ele ainda deixou claro que, em alguns casos, somente o aparecimento de novos dados
poderia nos ajudar a entender o passado amarniano. Hoje em dia, de fato, é isto que acontece.
Trigger adianta, em Egiptologia, a passagem do foco no texto para o contexto,
perspectiva defendida por Willeke Wendrich (2010) e que indica a importância da reflexão
teórica sobre os dados disponíveis, afim de que possamos criar construções mais realistas do
passado. Os egiptólogos, pouco afeitos à teoria, somente há pouco tempo têm prestado atenção
a isto, apesar de não ser algo novo em nossa disciplina (ver p. ex. KEMP, 1989, 2006;
TRIGGER, KEMP, O’CONNOR and LLOYD, 1983).

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1 De fato, a obra de Cyril Aldred terá que ser revisitada pela Egiptologia face à descoberta, na tumba de Amenhotep
Huy em Assasif, de um forte indício da co-regência entre Amenhotep III e Akhenaton (para a nova descoberta, ver
VALENTÍN, 2014), embora ainda não comprovada e aceita pelos egiptólogos (ver DODSON, 2014).
2 Projeto de mestrado em andamento desenvolvido por mim no Programa de Pós-graduação em Arqueologia do

Museu Nacional, UFRJ.


3 Tradução realizada pela autora (ARRAIS, 2011).
4 primeiro dia = alusão à criação (nota do tradutor)
5 Todas as datas utilizadas no presente artigo são anteriores à Cristo, salvo indicação em contrário
)
6 O vizir era o homem mais importante do Egito após o faraó. Acumulava diversas atribuições, dentre as quais o
67!
!) )
Semna!–!Estudos!de!Egiptologia!I!
) )

A falta de uma abordagem teórica aos dados gera interpretações que não condizem com
os procedimentos de uma ciência social, mas sim expressam, mais do que tudo, as concepções e
opiniões do próprio autor. Além da tese já citada e Aldred, mais recentemente, Nicholas Reeves
pintou um quadro sobre um Akhenaton elitista e fanático que impôs às pessoas a sua nova
religião. Reeves, por exemplo, diz que

“enquanto Amenophis III teria sido paciente em suas ambições


e disposto a seguir os sensatos conselhos de outros, Amenophis
IV era um jovem apressado – impulsivo, emotivo e totalmente
confiante em suas habilidades (...). [Sua] devoção à religião solar
– a sua própria, uma versão elitista desta religião que,
novamente, remontava a um passado distante – aparece
totalmente desenvolvida logo no início do reinado” (REEVES,
2001: 91).

Esse tipo de visão sobre Akhenaton é seguida também por Marc Gabolde, que diz, sobre
o urbanismo de Amarna: “(...) apesar da indiferença manifesta do faraó em relação à urbe
propriamente dita e seus habitantes, a cidade se desenvolveu e sua urbanização progrediu
rapidamente” (GABOLDE, 2005: 59).
Nada disso pode ser provado ou é corroborado por dados, muito menos por teoria. É
expressão, em Egiptologia, da linha nebulosa entre ciência social e ficção sobre a qual nos alertou
Trigger. Tratam-se de afirmações que mais expressam as visões pessoais de cada autor do que de
fato o contexto, o qual se pode acessar – não diretamente, é claro – a partir do registro
arqueológico.
Neste ensaio, nosso objetivo é mostrar a gradativa superação desse cenário especulativo.
Isso se faz mais importante ainda no contexto atual: hoje nós temos novos dados disponíveis
que nos permitem complexificar as discussões e construir uma nova visão sobre o período de
Amarna.

Revisitando o urbanismo de Amarna


A cidade de Amarna é o melhor exemplo para se estudar o urbanismo e a dinâmica da
sociedade urbana da época (KEMP, 1977, 2006; KEMP and STEVENS, 2010). Os textos das
estelas de fronteira que definiam os limites simbólicos da cidade nos informam os desejos do
faraó sobre a escolha do local, que não deveria ter pertencido a nenhuma divindade ou ser

) 68!
!) )
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humano. Esses textos também nos informam sobre o planejamento urbano da cidade, como por
exemplo a localização dos principais edifícios administrativos e religiosos.
Apesar da consagração de toda a paisagem ao Aton, o planejamento urbano da cidade se
restringia a algumas partes, sobretudo à Cidade Central, onde se localizam os templos ao Aton, o
palácio e a residência do faraó e outros edifícios administrativos. Essas construções eram feitas
de blocos de pedra (articulados com argamassa de gipsita), um material durável, diferentemente
das demais construções da cidade, feitas de tijolos de barro (sobre os materiais de construção de
Amarna ver KEMP, 2012).
Em Amarna, as casas eram construídas de uma maneira que hoje em dia seria
considerada inapropriada devido às suas formas completamente irregulares, localizando-se muito
próximas umas das outras e muitas vezes ligando-se entre si, sendo separadas somente por um
muro, o que causa alguma dificuldade em distinguir casas diferentes nas escavações. Os
tamanhos delas variavam: havia casas grandes e casas pequenas. As primeiras certamente serviam
de habitação a pessoas de status social elevado, membros da elite de Akhetaton. Conectadas às
casas maiores, localizavam-se as menores, que serviam para abrigar os serviçais das casas
grandes. Afastadas do Nilo, essas casas maiores possuíam celeiros para seu suprimento – mas
também para suprir as casas menores – e poços para armazenamento de água, o que
possivelmente significa que serviçais tinham que ir e vir constantemente do Nilo, carregando
recipientes de cerâmica com água, cujos cacos podem ser vistos atualmente por todo o sítio.
Essas pessoas, caminhando pelas ruas irregulares da cidade que cresciam de acordo com as
formas das casas que se expandiam segundo desejos individuais e determinações sociais que
variavam de acordo com os habitus de classe, garantiam a diversidade social e prática de Amarna.
A essa diversidade social e prática, ligava-se também uma diversidade de crenças, afinal, as
mesmas pessoas que habitavam as casas grandes e pequenas dos subúrbios de Amarna e que
circulavam pelas ruas irregulares da cidade, possuíam seus amuletos, suas capelas privadas, seus
altares domésticos e seus deuses de devoção, tal como se pode concluir a partir do que foi e do
que está sendo escavado.
Os vestígios arqueológicos da cidade de Amarna nos mostram, então, que em vez de ser
considerada como expressão da nova religião de Akhenaton – ou ainda de um projeto político,
algo de que tendo a discordar (LEMOS, 2014: 199) –, Akhetaton fora, em sua maioria, uma
cidade auto-organizada (SPENCE, 2013: 71-72). Assim, o principal elemento estruturante da
paisagem de Amarna fora a diversidade da vida social, que abria espaço, tanto em nível estatal,
como iremos ver com o exemplo seguinte, quanto popular, para a prática de escolhas individuais,

) 69!
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) )

seja em matéria de organização de moradias, oficinas etc., ou de “forças espirituais” nas quais
acreditar.

A Cidade Central e o Grande Templo ao Aton


A observação da Cidade Central pode ser o ponto de partida para a crítica dessas
sugestões, já que é inquestionável o fato de, nessa parte da cidade, a intervenção estatal ser clara
em sua organização. Eu gostaria de contestar essa visão a partir do exemplo do Grande Templo
ao Aton.
Segundo o professor Barry Kemp, o aprovisionamento de oferendas ao Aton foi uma
das maiores obsessões de Akhenaton. No Grande Templo ao Aton, em Amarna, foram
escavadas as fundações de uma infinidade de mesas de oferendas marcadas na argamassa de
gipsita nos pátios do chamado “Templo Longo”, além de mesas de oferendas feitas de tijolos de
barro construídas na parte exterior da parte principal do edifício, no interior da área murada do
templo (KEMP, 2012: 92).
As estruturas escavadas por Pendlebury no início do século XX (PENDLEBURY, 1951),
somadas aos trabalhos arqueológicos da equipe de Barry Kemp a partir de 2012, iluminam alguns
aspectos do culto desempenhado no Grande Templo ao Aton. As mesas de oferendas
representavam, em conjunto, a parte estrutural mais importante do templo (excetuando-se o
santuário), visto a infinidade delas que foi encontrada. Sobre elas, deveriam ser depositados
todos os tipos de alimentos como oferendas, tal como se pode ver nas representações do templo
nas tumbas dos oficiais (SPIESER, 2010). Expostas a céu aberto, o Aton poderia ter acesso
direto às oferendas que lhe eram apresentadas.
Além disso, a disposição espacial das mesas de oferendas pela área do templo é
significativa na interpretação de seu uso ritual. Enquanto as mesas feitas de tijolos de barro,
localizadas fora do edifício principal do templo, deveriam ser dedicadas ao uso dos habitantes
comuns da cidade, as mesas de oferendas no interior do “Templo Longo” eram utilizadas pelos
sacerdotes e pelo faraó em culto oficial. Esta hipótese é corroborada pela existência de estruturas
escavadas primeiramente em 1932 e, novamente, em fevereiro de: bacias de purificação,
localizadas na entrada do “Templo Longo”. Provavelmente, continham água do Nilo para que os
sacerdotes se purificassem, cumprindo com as exigências formais do ritual antes de adentrar o
edifício principal do templo. Tudo isso, ainda, vai contra a tese que afirma ter sido Akhenaton
um elitista e fanático estrategista interessado somente em seu próprio benefício, não tendo se

) 70!
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importado com as pessoas de sua cidade: Akhenaton abriu espaço para que os fiéis pudessem
participar do culto ao Aton também no Grande Templo ao Aton, o centro religioso de Amarna.
Assim, mesmo que geralmente interpretada puramente como intervenção estatal, a
Cidade Central também era expressão da diversidade da paisagem, onde os habitantes de Amarna
também poderiam se engajar ritualmente no culto ao Aton.

O Cemitério das Tumbas do Sul


Em 1999, Sue D’Auria reforçava uma das grandes questões insolúveis que Amarna nos
apresentava: o que teria acontecido com a população que habitava as casas da cidade? Teriam
sido essas pessoas sepultadas em outra localidade, talvez em Tebas? (D’AURIA, 1999: 166). A
descoberta, em 2003, de vários cemitérios em Amarna alterou o quadro que tínhamos até então
de forma considerável.
As pessoas comuns de Amarna foram sepultadas na necrópole da cidade, incluídas na
paisagem consagrada ao Aton e, ao mesmo tempo, que comportava e estimulava a diversidade.
O maior desses cemitérios, localizado entre a tumba de Ay e a tumba inacabada 24A na região
das tumbas do sul, posteriormente denominado Cemitério das Tumbas do Sul, foi escavado de
2006 a 2013. As escavações revelaram uma cultura material associada às pessoas comuns de
Amarna que expressa muitos aspectos outrora desconhecidos pelos egiptólogos (KEMP et al.,
2013).
O Cemitério das Tumbas do Sul ocupa a extensão de c. 650 metros de um wadi. É
possível de se distinguir visivelmente os limites do cemitério, cujas covas outrora foram
delimitadas com fragmentos calcário negro hoje dia visíveis. As pessoas foram enterradas neste
cemitério em simples covas escavadas no solo arenoso delimitado por bancos de calcário. Essas
covas possuíam o formato necessário para abrigar os corpos das pessoas, que eram colocados
diretamente na areia do deserto, criando um ótimo contexto para a preservação dos ossos. Há
um único exemplo de uma tumba com uma câmara funerária de tijolos de barro. Algumas
pessoas foram sepultadas em caixões de fibra vegetal muitíssimo frágeis, a maioria dos quais
foram destruídos por antigos ladrões em busca de tesouros. Alguns exemplos deste tipo de
caixão foram encontrados intactos, havendo paralelos deste tipo de tratamento do corpo em
sepultamentos no Ramesseum (JANOT, 2008). Há ainda exemplos de caixões decorados em
madeira, cujos hieróglifos não formam frases com sentido (KEMP, 2012).
Adornos, contas, amuletos e estelas também fazem parte da cultura material sepultada
com as pessoas comuns de Amarna. A partir desses objetos podemos inferir elementos das

) 71!
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crenças funerárias das camadas menos abastadas da população, pessoas estas que não são
acessíveis através dos textos hieroglíficos, produzidos e consumidos pela ínfima elite letrada.
O Cemitério das Tumbas do Sul não nos trouxe somente os objetos produzidos pelas
pessoas que viveram em Amarna, mas também as próprias pessoas. Seus ossos foram
preservados, posicionados, em alguns casos, como na ocasião do sepultamento. Associados a
amuletos, colares, e a outros corpos sepultados; com estilos de penteado diversos, lesões e outras
patologias típicas que indicam que essas pessoas não possuíram uma vida tão boa, esses corpos
são expressão da individualidade daqueles que viveram no Egito antigo, daqueles que
experimentaram e construíram a paisagem de Amarna e que conferiram a ela seu elemento mais
marcante: a diversidade da vida.
O Cemitério das Tumbas do Sul também nos permite entender melhor o período de
Amarna. Através de comparações com outros cemitérios do Reino Novo, podemos colocar
Amarna em contexto e entender melhor, através dos costumes e concepções funerárias da
maioria da população, as mudanças e permanências na longa duração.2

Considerações finais: prolegômenos de um modelo teórico para a paisagem diversa de


Amarna
Revisitar criticamente o urbanismo de Akhetaton e a arquitetura templária, elementos já
há muito conhecidos pelos egiptólogos, nos possibilita encontrar indícios de uma nova
interpretação do período de Amarna no Egito antigo, não mais enfatizando o caráter de uma
“reforma” religiosa de cunho político, mas sim as pessoas que construíram e viveram a paisagem.
Os novos dados disponíveis a partir das escavações no Cemitério das Tumbas do Sul
corroboram essa perspectiva ainda mais, já que agora temos acesso às próprias pessoas. A
integração dos dados da malha urbana, associados aos do cemitério, nos permite perceber cada
vez mais a agência das pessoas na paisagem, congregando-se ritualmente na cidade e no
cemitério, conformando uma paisagem bastante diversificada e interconectada em matéria de
crenças e práticas. O desafio agora é revisitar os dados antigos e interpretar os novos dados à luz
de um pensamento teórico para que assim possamos pintar uma nova paisagem de Amarna.
O objetivo deste ensaio foi expor o novo quadro que Amarna nos apresenta hoje em dia. O
momento é propício para o surgimento de novos trabalhos sobre o assunto – novos olhares
sobre velhos e novos dados. Nos Estados Unidos algumas dissertações de mestrado com foco
bioarqueológico vêm aparecendo (p. ex. SCHAFFER, 2009; HODGIN, 2012), assim como na

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2 Projeto
de mestrado em andamento desenvolvido por mim no Programa de Pós-graduação em Arqueologia do
Museu Nacional, UFRJ.
) 72!
!) )
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) )

Alemanha. A América Latina pode dar uma grande contribuição no sentido de perceber a
diversidade social, as distinções sociais entre os diferentes grupos, a criatividade na adaptação de
novas crenças a tradições antigas, num processo de emaranhamento que gera algo novo
(HODDER, 2012).
Na paisagem de Amarna chocaram-se tradição e inovação e, desse processo, novas
práticas e novas concepções surgiram, materializadas na malha urbana, no Grande Templo ao
Aton, na economia da cidade e na necrópole. Nesse momento, a diversidade social e a
individualidade floresceram, num processo dialético de interpretação individual da inovação e na
manutenção das tradições, modificadas, no entanto. Como nos diz Leandro Konder, filósofo
marxista brasileiro recentemente falecido, “a história é feita de sujeitos que sempre tomam
iniciativas, sempre alteram as coisas e se transformam a si mesmos. Mesmo o que perdura, ao se
perdurar, se modifica. Nada escapa (...) à mudança promovida pela intervenção ativa dos sujeitos
(que somos nós). A história é um movimento incessante, que se realiza, afinal, num tempo
incompleto, inacabado” (KONDER, 1999: 14).

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AS(REPRESENTAÇÕES(DA(FAMÍLIA(REAL(AMARNIANA(E(A(
CONSOLIDAÇÃO(DE(UMA(NOVA(VISÃO(DE(MUNDO(
DURANTE(O(REINADO(DE(AKHENATON((1353E1335(A.C.)(

Gisela Chapot
PPGH/UFF

Resumo: Pretendemos, nesta comunicação, demonstrar de que maneira as representações imagéticas da família real
amarniana, nos contextos litúrgicos e de intimidade régia foram determinantes para construir e sustentar uma nova
visão de mundo desmitologizada, introduzida pelo faraó Akhenaton durante a reforma de Amarna, no século XIV
a.C.

Abstract: We intend, in this paper, demonstrate how the iconographic representations of the Amarnian royal family
in contexts of liturgy and within the royal intimacy were crucial to build and to sustain a new world view
demythologized, introduced by pharaoh Akhenaten during his reign, the so called Amarna age, in the fourteenth
century BC.

Em um estudo acerca das concepções de mundo do antigo Egito, Jan Assmann notou
que mesmo dentro da “unidade teopoliítica indivisível” em que Estado e Religião repousavam no
Egito faraônico havia tensão e esta pôde ser vislumbrada na formação de cosmovisões diversas,
as quais possuíam dimensões religiosa, cósmica, política, social e antropológica próprias
(ASSMANN, 1989: 56).
Segundo David O’Connor, a visão de mundo de uma sociedade pode ser definida como:
“o modelo ou até mesmo a visão compartilhada por muitos, talvez a maioria de seus membros, a
respeito de como o cosmos surgiu, seu funcionamento, e sobre o local e papéis desempenhados
pela humanidade dentro do processo cósmico” (O’CONNOR, 1998: 128-129). O processo
cósmico, por sua vez, é entendido pelo autor como as formas complexas as quais o cosmos era
imaginado para funcionar a fim de continuar produtivo e estável.
Ao longo da décima oitava dinastia, a tensão entre “paradigmas conflitantes” tornou-se
tão latente que Assmann os classificou em três categorias: uma “concepção clássica”, baseada em
um cosmos acossado por forças caóticas cotidianamente, cujas raízes remetem ao Reino Antigo,
e apesar de sofrer variações e sofisticações ao longo do tempo, manteve-se ancorada no rito
associado à magia e ao mito, visão que Assmann designou como “teo-politologia da
manutenção”. Esta cosmovisão tradicional dos antigos egípcios pode ser sintetizada em uma
passagem conhecida na Egiptologia como “O faraó como um sacerdote solar”, um texto
originado no Reino Médio que especifica as funções que deveria exercer o faraó enquanto um

) 76!
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sacerdote do deus solar Ra. Tal “tratado” apresenta uma divisão “oficial” dos cosmos, revelando
um “universo moral” formado pelos deuses, pelos mortos absolvidos por Osíris, pela
humanidade e pelo próprio faraó, que atuava em prol de Maat para manter o universo ordenado,
rechaçando a transgressão, Isefet (ASSMANN, 1989: 63).
Durante o reinado de Akhenaton, no século XIV a.C., observamos o nascimento de uma
“concepção amarniana”, fundamentada em uma “cosmologia positiva” que se voltava contra o
“drama cósmico” da concepção tradicional e tornou-se emblemática por abrir mão de
construções míticas, dispensar a magia, negar a morte e o mundo ctônico osiriano, assim como o
caos, outrora tão ameaçador, algo que Assmann particularmente enfatiza em seu estudo. Em
contrapartida, a cosmovisão altamente otimista no que tange à preservação universal, acentuava a
luz emanada pelo do disco solar como fonte única e imprescindível para sustentação da vida,
gerada a partir de seu movimento diário que também criava o tempo. Como um deus de luz, o
“Aton vivo” - cujo conceito pictórico era uma esfera dotada de raios terminados em mãos - não
tomava a palavra, tampouco participava de narrativas míticas ou tinha qualquer elo com a
humanidade. Sua relação direta era única e exclusivamente com seus representantes
antropomórficos, aqueles que o representavam diante da humanidade: Akhenaton, Nefertíti e
suas filhas.
Em seu estudo sobre as concepções de mundo egípcias, Assmann também considerou a
chamada “piedade pessoal”, ou seja, a relação direta das pessoas com divindades específicas, sem
passar pelo crivo do faraó ou dos templos, que não abordaremos nesta seção, mas foi o foco das
atenções do egiptólogo alemão no mencionado artigo.
Como base nas documentações textual e imagética referentes ao período de Amarna
(1353 -1335 a.C.), observamos que a nova cosmovisão de Akhenaton encontrou formas muito
particulares de expressão, as quais classificamos como: “expressão religiosa”, proclamada através
dos hinos e nomes didáticos do Aton e suas “expressões físicas”, por intermédio das
representações artísticas da família real amarniana, tema desta comunicação, mas também
notáveis na concepção arquitetônica da capital Akhetaton, dotada estruturas palaciais, templárias
e funerárias imbuídas de forte simbolismo solar.
Durante a reforma de Amarna, o faraó Akhenaton iniciou uma série de modificações
artísticas, sem, contudo, suprimir as regras canônicas vigentes, ou seja, padrão oficial para
representações iconográficas egípcias foi mantido, embora suavizado em alguns contextos.
Movimento, velocidade, profundidade, dramaticidade, emoção e imediatismo foram novos
elementos incorporados às composições do período, que as tornaram facilmente reconhecíveis
dentro do conjunto imagético que restou do antigo Egito.

) 77!
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As imagens revelam que as primeiras representações de Amenhotep IV exibem o faraó


ainda em um padrão tradicional, muito semelhante ao de Tutmés IV e Amenhotep III, seus
antecessores no trono do Egito. No entanto, tais exemplares são raríssimos. Logo após sua
ascensão, o monarca adotou um novo e impactante estilo artístico em Tebas, que se estendeu ao
longo dos primeiros anos de governo em Akhetaton, fase inicial que Vergnieux sugeriu
denominar como “proto-amarniana” (VERGNIEUX e GONDRAN, 1997: 193).
Dimitri Laboury, por sua vez, prefere falar em uma “arte atonista”, pois acredita que as
mudanças iconográficas do período foram baseadas em uma “nova ideologia real” que priorizava
o culto ao Aton, que, para muitos estudiosos, tornou-se o único durante a reforma de Akhenaton
(LABOURY, 2011: 1).
Preferimos, contudo, manter a tradicional designação “arte amarniana”, pois muito
embora o Aton inegavelmente tenha dominado o conjunto imagético do período, ofuscando o
restante do panteão, existe visivelmente um grupo que sempre o acompanha nas representações
da era de Amarna: a família real, a grande protagonista da nova visão de mundo.
Sobre a iconografia divina, num primeiro momento, o deus amarniano foi concebido
como um homem com cabeça de falcão, Ra-Harakhty, forma habitual de se representar o sol no
Egito, abandonado ainda no começo do reinado em Tebas, em favor do disco solar, cujos únicos
vestígios antropomórficos eram as mãos nas pontas dos raios solares, as quais afagavam e
abençoavam a família real, bem como estruturas relacionadas ao casal, como o palácio, o trono e
o leito (CARDOSO, 2011: 17).
A metamorfose brusca na iconografia do deus determinou a gravitação do Aton para o
alto da cena nas representações do período, que lá permaneceu até o desfecho do episódio
amarniano. Por isso mesmo, Robert Vergnieux fala de um “deslocamento teológico” nas cenas
de culto, quando a liturgia tradicional, em torno de uma divindade antropomórfica ou
teriomórfica, foi substituída por um deus de forma incomum no panteão egípcio, cuja
consequência mais marcante, e, provavelmente intencional, era desviar os olhares para família de
Akhenaton sob seus raios (VERGNIEUX e GONDRAN, 1997: 191).
Em nossa pesquisa atual observamos a recorrência de três grandes eixos temáticos
envolvendo as representações do grupo composto pelo faraó Akhenaton, sua grande esposa real,
a rainha Nefertíti, suas seis filhas; a primogênita Meritaton, Mekataton, Ankhsenpaton e as mais
novas Neferneferuaton, Neferneferura e Setepenra, além da rainha-mãe, Tiy, em contextos
específicos de banquetes régios.
Para montagem do repertório imagético, consideramos atividades realizadas em conjunto
pela família de Akhenaton nos mais variados contextos, que nos levou a organizá-lo da seguinte

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forma: “culto ao Aton”, “intimidade da família real” e “exibições públicas”, este subdividido em
janela das aparições, “deslocamentos régios”, “recepção de tributos estrangeiros” e “aparições
diversas”.
Tais cenas podem ser encontradas não apenas no ambiente templário, mas invadiram o
universo funerário - tanto as tumbas da elite, em Tebas e Amarna, como a tumba real - bem
como o âmbito doméstico. Para esta comunicação selecionamos dois exemplares relativos às
temáticas culto ao Aton e intimidade da família real a fim de realizarmos análises mais apuradas
das mesmas.

1-

Imagem 1. Culto a Aton.


In: FREED, Rita E, MARKOWITZ, Yvone J and D’AURIA, Sue H. eds. (1999), Pharaohs of the Sun: Akhenaten,
Nefertiti, Tutankhamen, London, Thames and Hudson/Boston, Museum of Fine Arts, p. 226, peça 72.

Um decreto régio proclamado na estela de fronteira K, na capital, Akhetaton, afirma que


o Aton é “aquele que construiu a si mesmo com suas próprias mãos, nenhum artesão o conhece”

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(MURNANE, 1995: 76). Por isso mesmo, o disco solar era venerado no céu e suas
representações eram feitas somente em duas dimensões.
Nas cenas rituais, Akhenaton e Nefertíti geralmente apresentam oferendas de flores, um
traço do culto heliopolitano muito comum em Amarna, além de libações, alimentos, incenso, ou
demonstram sua devoção com os braços erguidos em adoração ou, como em exemplares de
Karnak e Heliópolis, prostrados diante do deus Aton, que, em retorno, estende os símbolos da
vida, ankh, às narinas do casal real. Muitas vezes o Aton é retratado tocando vorazmente com
suas múltiplas mãos o que era oferecido.
A imagem 1 apresenta o fragmento de uma balaustrada proveniente do lado direito de
uma rampa do Grande Palácio, em Tell El Amarna. Akhenaton e Nefertíti fazem libações ao
disco solar, enquanto sua filha mais velha, Meritaton, chacoalha um sistro sem qualquer alusão
mítica atrás deles em uma composição diagonal típica das balaustradas.
A rainha veste um longo vestido plissado com abertura frontal que deixa os contornos de
seu corpo visíveis. Akhenaton utiliza um saiote mais curto até o joelho e a coroa branca com
uma faixa longa na parte de trás da cabeça. Meritaton, por sua vez, usa um vestido semelhante
ao da rainha e uma traça lateral, típica das crianças da realeza.
A androginia visível deixa corpos e rostos bastante estilizados, quase caricaturais, marca
registrada da arte amarniana em seus primeiros anos, em função de sua associação com primeiro
nome didático do deus de Amarna “Ra-Harakhty, que se alegra no horizonte, em seu nome de
Shu que está no Aton”, vigente até o ano oito de reinado e formulado antes das modificações
artísticas serem implementadas (BAINES, 1998: 289).
A mescla de elementos masculinos e femininos, visível, sobretudo, no casal real,
Akhenaton e Nefertíti, tinha intenções puramente teológicas: ambos foram identificados com
Shu e Tefnut, divindades geradas pelo demiurgo Atum-Ra, deus solar crepuscular e
antropomórfico, que criou o universo sem o auxílio de uma consorte e que possuía elementos
masculinos e femininos em sua natureza (CARDOSO, 2012: 66). Após emergir do Nun, as águas
caóticas que antecedem a criação, Atum “espirrou” e “cuspiu” Shu e Tefnut, respectivamente,
deuses feitos de sua mesma substância e que refletem, portanto, sua androginia original.
O deus Aton, demiurgo criador, segundo a visão de mundo amarniana, desprovido de
consorte, possuía, igualmente, elementos femininos e masculinos em sua natureza e, deste modo,
tal androginia também se refletia naqueles que eram consubstanciais com ele, Akhenaton e
Nefertíti, hipóstases solares, que formam com Aton uma “trindade teocrática” dentro da nova
cosmovisão (ASSMANN, 2013: 82).

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É possível observarmos a presença de cartouches nos braços e na região peitoral do faraó,


comum também em algumas esculturas do período amarniano, que, para alguns egiptólogos,
poderia ser o local onde os raios solares deveriam incidir, o que não é de todo impossível,
considerando a importância da luminosidade para religião de Akhenaton, já que era através da
luz que o Aton se manifestava. Todavia, acreditamos que a presença de tais elementos no corpo
do faraó, recorrentes também na rainha, em outras composições, possa ser a forma de expressar
e materializar a ideia de consubstancialidade, tão enfatizada nos hinos ao Aton, fontes textuais
que proclamam ao mundo a concepção amarniana exaltando o casal real como seus
representantes terrenos e divinos.
Notamos aqui a manutenção de uma das características da arte egípcia canônica:
tamanhos diversos das figuras para indicar hierarquia, fosse esta social ou religiosa, além de uma
notável opção por um traçado curvilíneo, trajes mais leves e transparentes, que evidenciam as
formas volumosas e arredondadas dos corpos, elementos que também garantem certo
movimento a cena (CARDOSO, 2001: 129).
A nova visão de mundo suprimiu o mito e a magia. O ritual, realizado em gigantescos
pátios a céu aberto, abarrotado de mesas de oferendas, foi mantido, mas esvaziado de sua
funcionalidade simbólica, já que o faraó não tinha mais o mesmo peso na preservação cósmica,
como anteriormente. Por que, então, uma ênfase em cenas tradicionais de culto nas
representações do período? Qual é o papel do faraó no que diz respeito ao funcionamento
universal? O monarca ainda atuava como um “sacerdote solar”?
A ênfase nas representações cultuais talvez tenha sido a forma encontrada pelo faraó para
legitimar a relação exclusiva que ele e sua família, personificações da ordem cósmica,
desfrutavam junto ao Aton realçando assim a necessidade do culto em vida deste grupo divino,
já que a imagem era uma forma bastante potente de expressão ideológica no antigo Egito.
Todavia, as indagações acima não se esgotam nesta seção e merecem uma reflexão aprofundada
ao longo de nossa pesquisa.

2-

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Imagem 2.
In: FREED, Rita E, MARKOWITZ, Yvone J and D’AURIA, Sue H. eds. (1999) Op.cit., p.220, peça 53.

Esta peça conhecida como Estela de Berlim, utilizada para veneração em capelas privadas
presentes nas casas da elite de Tell El Amarna, é, certamente, um dos exemplares mais
emblemáticos da reforma amarniana. O chamariz da cena é a intimidade da família, aqui
representada por Akhenaton, Nefertíti, Meritaton, Mekataton e Ankhsenpaton, retratados em
relevo cavado em profundidade no estilo extremo característico dos anos iniciais do reinado. A
presença de cartouches contendo o primeiro nome didático do Aton no topo da estela é um forte
indício que a mesma foi produzida até o ano 8.
O grupo familiar, que esbanja afagos e carícias jamais vistos no âmbito da realeza em
termos imagéticos, está informalmente sentado sob os raios do Aton no alto da cena em uma
estrutura que já foi considerada pelos egiptólogos como sendo uma sala no palácio, um pequeno
quarto de nascimento, para Arnold, e um quiosque a céu aberto, na visão de Aldred (FREED,
1999: 220).
Akhenaton utiliza a coroa keperesh, típica dos faraós da décima oitava dinastia, circundada
por um uraeus, além de um saiote plissado, e ergue a primogênita, Meritaton, para dar um
carinhoso beijo paternal. Em sua frente, Nefertíti traja sua coroa de topo plano, que alude à
deusa Tefnut, repleta de cobras, sendo um delas, pendente em seu rosto, tocada pela filha mais
nova, que repousa em seu ombro muito à vontade. Em seu colo a rainha segura a mão de
Mekataton, que, tal como Meritaton, aponta na direção contrária. A rainha usa um vestido

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comprido também plissado e transparente que revela suas formas arredondadas, uma
preferência, como já assinalamos, dos “artistas” amarnianos.
Notemos que é possível distinguir entre pé esquerdo e direito, uma particularidade da
arte do período, que também proporcionou um tratamento refinado às mãos de Akhenaton,
Nefertíti e suas filhas, em como nesta composição (ALDRED: 1980: 176).
Ao contrário da imagem anterior de culto ao Aton, onde a desproporção entre os
tamanhos do rei e da rainha é notável, aqui a disparidade diminuiu drasticamente tornando
Akhenaton e Nefertíti praticamente equiparados, algo recorrente no grupo temático contendo
cenas de intimidade da família real.
Um aspecto importante na imagem 2 diz respeito a uma construção circular do espaço,
que torna a relação das figuras exibidas mais próxima e mais intimista. Davis provou a existência
de uma organização concêntrica nas composições, cujo ponto focal é o gesto das filhas de
Akhenaton (DAVIS, 1978: 388). Além disso, a forma como os corpos das crianças e do casal real
estão sobrepostos nos dá uma sensação de profundidade, certa tridimensionalidade, pouco
comum na arte egípcia.
Um ponto a ser destacado é que em Amarna, as crianças deixam de ser representadas
como pequenos adultos, com um dos dedos na boca, e passam a ser retratadas em gestos típicos
da infância (ALDRED, 1980: 174). Dorothea Arnold sugere que o ato de apontar seja, neste
caso, apotropaico. Na arte egípcia tradicional, tal gesto mágico era realizado para evitar o mal. A
autora usa o exemplo do nascimento de um bezerro, para proteger o recém nascido. Portanto,
nesta estela, as crianças desempenham um papel de proteção da casa, do nascimento, como
faziam Bes e Tauret (ARNOLD, 1996: 100-102).
O repertório imagético apresentado nesta comunicação corrobora a ideia de que, durante
a reforma de Amarna, a supressão de elementos míticos da visão de mundo e do antigo panteão
“constelativo” foi substituída por assuntos referentes à família do faraó Akhenaton, não apenas o
que concernia o âmbito litúrgico, mas também sua intimidade, seus deslocamentos, suas
aparições públicas, expostas ad nauseam nos relevos templários, nas tumbas de particulares, no
exterior de edifícios públicos e nos altares domésticos de Akhetaton.
Akhenaton, Nefertíti e suas filhas materializavam a presença divina e, por isso, mesmo,
suas aparições públicas tinham um quê hierofânico. Ao antropomorfizar o poder supremo, este
grupo sagrado usurpava papéis antes delegados às mais diversas divindades do rico panteão
egípcio, como Maat, Ísis, Osíris, Bes, Tauret e o próprio Amon-Ra, rechaçado veementemente
da nova visão de mundo.

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Em Amarna, as estátuas de culto da religião tradicional ganharam vida através da família


real, e poderiam ser vistas e adoradas, diariamente, em atividades aparentemente corriqueiras sob
os raios solares em Akhetaton, mas que se configuraram como o próprio ritual diário
(VERGNIEUX e GONDRAN, 1997: 191). O conteúdo ideológico de tais cenas, portanto, é
imperativo e não pode ser desprezado.
Em suma, o culto da família real, que atingiu vários níveis dentro do grupo, com
destaque para o faraó e a rainha, foi elevado ao mais alto grau de veneração já visto no Egito,
numa tentativa exacerbada e inovadora de restabelecer a intermediação régia no contato entre
homens e deuses, onde é possível observar, inclusive, as crianças atuando como deidades do
âmbito doméstico e simbolizando, nesta estela de Berlim, a diversificação da criação, tal como na
enéada de Heliópolis. Durante a reforma amarniana, as hierarquias divinas do antigo panteão
politeísta foram reproduzidas dentro da família real, onde Akhenaton e Nefertíti atuavam como
“grandes deuses” dinásticos e suas filhas como “deuses menores” dominando assim todo o
repertório imagético do período, determinante para sustentar uma nova visão de mundo na qual
a família real era o centro do mundo.

Bibliografia

Documentação Imagética
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Parte 3
Economia e sociedade no Egito faraônico

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HIERARQUIA(E(MOBILIDADE(SOCIAL(NO(ANTIGO(EGITO(DO(
REINO(NOVO(
Nely Feitoza Arrais
UNILASALLE-RJ

Resumo: A presente contribuição pretende demonstrar a estrutura sócio-hierárquica do Egito Antigo a partir da
análise da biografia de Ahmés, filho de Ibana, importante personagem da história política dos primeiros faráos da
XVIIIa dinastia que abre o Reino Novo cuja biografia nos permite analisar em especial a problemática sobre a
mobilidade social no Egito faraônico.

Abstract: This brief paper aims to demonstrate the social hierarchy of ancient Egypt by means of the biography of
Ahmes, son of Ibana, which was an important name in the politic of the first pharaohs of the XVIII dynasty of the
New Kingdom. His biography allows us to analyze specially the problem of the mobility in the pharaonic Egypt.

Dentro da tradição literária, as biografias são os mais antigos documentos da literatura


egípcia. São chamadas de autobiografias em muitas análises por autores modernos, pois é o
próprio morto que se apresenta em seus textos. No entanto, as biografias eram tradicionalmente
feitas pelos descendentes de seus proprietários como uma das virtudes morais dos filhos que
deveriam manter o culto aos seus antepassados o que incluía os funerais e se prolongava com
culto funerário (SCHULZ, 1997: 471- 489). Isso não excluí o fato de que o morto,
provavelmente, ainda em vida já conversara com os seus sobre os textos e sua própria tumba.
Esta última era uma das principais preocupações enquanto vivo. A tumba de Ahmés, o filho de
Ibana contém um exemplo claro sobre esta condição de ter sido feita por um descendente. No
caso, a figura de seu neto Pahery é retratada no túmulo como o responsável pelas inscrições
funerárias. Pahery, ele próprio proprietário de uma tumba ao lado da de seu avô, se faz
representar diante dele e da esposa de Ahmés, Ipu.
Uma das características mais importantes das inscrições tumulares egípcias era a
preocupação com a representação das principais atividades cotidianas da sociedade egípcia. O
objetivo desta era demonstrar de forma mais completa possível o estatuto social do seu
proprietário visto que o além, na concepção egípcia, tinha como referência a vida terrena
(CARDOSO, 1999: 133) Assim, a riqueza informativa das tumbas ultrapassa o domínio
individual tornando-se um documento valioso para o conhecimento da sociedade de seu tempo.
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Cabe lembrar aqui o universo ideológico da elaboração de uma biografia na sociedade egípcia
faraônica, iniciando pela análise do que podemos conhecer sobre a concepção de mundo
particular à esta sociedade.
Para os antigos egípcios os elementos do Universo eram consubstanciais. Isso significa
uma ausência de distinção entre o natural, o sobrenatural e o social. O homem, as organizações
sociais - como a monarquia divina - a fauna e o meio-ambiente, tudo fazia parte de um todo
como em uma concepção holística ou monista do universo.
A biografia aqui escolhida, a de Ahmés, o filho de Ibana, data do início do Reino Novo,
fase de profunda reestruturação ideológica, uma vez que se encontra no limiar de um período de
centralização crescente do poder nativo que havia sido profundamente abalado pela dominação
estrangeira no Segundo Período Intermediário. Ideologicamente, a classe dominante egípcia
recuperou historicamente esta fase como um período negativo e impôs esta marca na sociedade
resultando em uma memória coletiva de abominação contra a dominação estrangeira apesar da
grande ‘egipcianização’ dos próprios invasores hicsos em sua permanência em solo egípcio durante
mais de um século (SHAW, 2000).
A biografia de Ahmés, filho de Ibana, é utilizada de há muito pelos egiptólogos que
trabalham com o tema militar. O título de Almirante tornou-se conhecido pela tradução de Kurt
Sethe e Georg Steindorff que reproduziram o texto da biografia na clássica coleção Urkunden des
ägyptischen Altertums (SETHE, 1927) uma seleção de peso com as mais variadas inscrições e textos
de cunho histórico-biográficos e religiosos que tinha por objetivo divulgar e ampliar a área de
estudos do antigo Egito, facilitando o acesso a essas fontes.
Ahmés serviu como chefe dos marinheiros sob três faraós: Ahmés I, fundador da XVIIIa
dinastia, a primeira do Reino Novo; Amenhotep I e Tutmés I, englobando aproximadamente os
anos de 1580-1520. Os relatos das batalhas são, em conjunto com a biografia de Ahmés Pen-
Nekhbet, as únicas descrições pormenorizadas da expulsão dos hicsos do Vale do Nilo e da
retomada do poder nativo nas mãos de um faraó. A estela de Kamés, outro documento
importante para a o conhecimento da luta contra os hicsos, retrata apenas o início da revolta.
Pelo relato de Ahmés, filho de Ibana, à tomada de Avaris sucedeu-se a perseguição aos
hicsos até Sharuhen (cidade situada ao sul de Canaã). Após seis anos de cerco a cidade caiu em
poder dos egípcios que tomam o controle da região. Ahmés retorna ao Egito e precisa pacificar a
região da Núbia, ao sul do vale, que havia se tornado independente durante o domínio
estrangeiro. Revoltas internas também parecem ainda sacudir o Egito. Ahmés nomeia dois
líderes, Aata e Tetian que teriam sido derrotados. Não se pode precisar a origem destes líderes, se
nativos ou estrangeiros. Sob Amenhotep I, Ahmés e as tropas retornam à Núbia e mais uma vez

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sob Tutmés I, o que parece indicar uma tensão constante na região. É sob este faraó que Ahmés
é nomeado “Chefe dos Marinheiros”. A expedição à Síria de Tutmés I é a última relatada por
Ahmés. Nesta expedição as tropas egípcias atingiram a cidade de Naharina, na região da
Mesopotâmia.
A inscrição original encontra-se ainda nas paredes de seu túmulo em El-Kab (EK 5),
onde pode ser vista atualmente, embora apresente muitas lacunas no texto resultantes da
deterioração desde sua descoberta. Segue abaixo o texto traduzido.

Tradução da Biografia de Ahmés3


O chefe (superior) dos marinheiros, Ahmés, filho de Ibana, justo de voz, diz: “Eu falo a
vós, a todos os homens. Descreverei as honras que recebi; eu que fui recompensado sete vezes
com ouro diante do país inteiro e fui também munido de servidores e servidoras. Dotaram-me
também de numerosas terras. É por suas ações que o nome de um homem é reconhecido e não
será jamais esquecido neste país.
Ele continua: “Cresci na cidade de El-Kab. Meu pai era soldado do rei do Alto e do
Baixo Egito Sequenré, justo de voz, e chamava-se Baba, filho de Rainet. Tornei-me marinheiro
em seu lugar no barco “Touro combatente” no tempo do Senhor das duas terras Neb-Phty-Ra,
justo de voz. Eu era ainda muito jovem: não tinha mulher e dormia ainda na rede de dormir das
crianças.
Depois de construir um lar, fui convocado para o barco “Setentrional”, devido a minha
coragem. Eu acompanhei o soberano sobre a terra firme, seguindo suas saídas sobre o seu carro.
A cidade de Avaris foi sitiada. Provei meu valor diante de Sua majestade. Depois fui designado
para o navio “Aquele que brilha em Mênfis”. Combatemos então no canal Padjedku de Avaris.
Tomei meu butim e uma mão, o fato foi relatado ao arauto real e fui agraciado com o ouro da
coragem.
Depois recomeçamos a luta neste mesmo local e tomei novamente meu butim e trouxe
outra mão e fui agraciado mais uma vez com o ouro da coragem. Combatemos depois no Egito,
ao sul desta cidade. De lá trouxe um prisioneiro, um homem: eu entrei na água, vejam, eu o
trouxe como uma captura feita a caminho da cidade. Eu atravessei a água carregando-o e este
fato foi contado ao arauto real. Então fui recompensado mais uma vez com ouro.
Depois Avaris foi tomada; trouxe prisioneiros: um homem e três mulheres perfazendo
um total de quatro cabeças. Sua majestade mos deu como escravos.

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3 Tradução realizada pela autora (ARRAIS, 2011).
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Em seguida Sharuhen foi sitiada durante 6 anos. Sua Majestade a tomou. Então eu trouxe
de lá duas mulheres e uma mão e, novamente o ouro me foi ofertado e os prisioneiros me foram
dados como escravos.
Após massacrar os asiáticos, Sua majestade subiu o rio em direção à Khent-em-nefer
para destruir os núbios. Foi um grande massacre. Eu trouxe de lá meu butim: dois homens vivos
e três mãos. Fui novamente recompensado com ouro e as duas mulheres me foram entregues.
Sua majestade desceu então o rio em direção ao norte, o coração feliz, forte e poderoso, pois
havia conquistado os países do sul e do norte.
Então Aata dirigiu-se para o sul (do Egito); seu destino desde então estava perto de seu
fim. Os deuses do Alto Egito o bateram???. Sua majestade o encontrou em Tent-taa-mu e o
trouxe prisioneiro e todo o seu povo foi tomado como butim. Eu trouxe dois soldados,
prisioneiros, oriundos do barco de Aata. Foi-me dado cinco cabeças e muitas extensões de terra
– cinco arouras – em uma cidade. O mesmo foi feito com todos os marinheiros.
Veio então um inimigo vil de nome Teti-an. Ele reuniu consigo homens maus de
coração. Sua majestade o matou e suas tropas ficaram como se nunca houvessem existido. Foi-
me dado três cabeças e campos – cinco arouras em minha cidade.
Eu conduzi por barco o rei do Alto e do Baixo Egito Djeserkara quando este retornou
ao país de Kush para ampliar as fronteiras do Egito. Sua Majestade atingiu este núbio vil no meio
de seu próprio exército e ele foi conduzido acorrentado. Do seu exército nada sobrou. Os que
fugiam eram derrubados para os lados como se não existissem.- Eu estava a frente de nosso
exército e lutei bravamente. Sua Majestade presenciou minha bravura. Eu trouxe duas mãos e as
entreguei a Sua Majestade.- Depois buscamos o povo e o gado do inimigo vencido. Trouxe um
prisioneiro o qual ofereci à Sua Majestade. Em dois dias conduzi o rei de volta ao Egito partindo
da cisterna superior. Fui recompensado com ouro e trouxe duas escravas como butim além
daquele oferecido à Sua Majestade. Fui nomeado “Guerreiro do Rei” (aHAwty n HqA).
Eu conduzi por barco o rei do Alto e do Baixo Egito, Aakheperkare quando ele subiu o
rio em direção a Khent-khen-nefer para reprimir uma insurreição nas montanhas e afastar uma
invasão das terras desérticas. Eu demonstrei bravura em presença do rei sobre águas difíceis
quando o barco enfrentou uma passagem perigosa nas cataratas. Por isto fui nomeado Chefe dos
Marinheiros. [passagem mutilada] Então Sua Majestade enfureceu-se como uma pantera. Ele
atirou sua primeira flecha que ficou encravada no peito deste vil inimigo. [passagem
mutilada]... sem forças perante seu Uraeus inflamado. Em um instante houve um massacre e
conduzimos todos os seus habitantes prisioneiros. Sua Majestade desceu então em direção ao

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norte tendo o controle sobre todos os países estrangeiros enquanto que um núbio vil estava
pendurado de ponta cabeça na proa do navio real. Desembarcamos em Karnak.
Após estes acontecimentos partimos para o para alegrar [lit.= lavar] o seu coração [o de
sua Majestade] em terras estrangeiras. Sua Majestade atingiu Naharina e encontrou o inimigo
recrutando tropas. Ele fez um grande massacre no meio deles e não pudemos contar o número
de prisioneiros que ele trouxe de suas vitórias. Eu estava a frente do exército e sua Majestade
pode constatar minha bravura. Eu trouxe um carro de guerra com seus cavalos e prisioneiros e
os ofereci ao rei. Novamente fui recompensado com ouro.
Quando envelheci e atingi a idade provecta mantive minhas honrarias e poderei
descansar na tumba que eu mesmo fiz.
Existe uma parte do texto final muito danificado e ainda uma lista dos escravos da propriedade
de Ahmés ... em Behy. De novo, o rei do alto e do Baixo Egito me recompensou … 60 aruras
em Hadyaa. No total, ... aruras.

Hierarquia e Mobilidade Social no Egito antigo

“Se estiveres em uma antecâmara, levanta e senta como convém à tua posição (social), como a ti foi indicado desde
o primeiro dia.”4
(...) “Curva as costas ao teu superior, a teu supervisor no palácio, (e assim) tua casa se preservará em prosperidade e
tua recompensa virá como deve. Desventurado é aquele que se opõe ao seu superior, (pois) se vive tanto mais
quando se é dócil, e não faz mal em estender o braço (em gratidão).
Ensinamentos de Ptah-hotep (ARAÚJO, 2000: 250)

Nas máximas do sábio egípcio Ptah-hotep (provamelmente Va dinastia, sob o reinado de


Djed-Ká-Rá, cerca de 2410-2380 5 ), utilizadas por toda a história egípcia como modelo de
literatura sapiencial, podemos apreender uma visão da hierarquia social egípcia, bem como sua
legitimação : a base da diferenciação social reside no lugar dado a cada um desde o início dos
tempos. Os Homens constituem-se como grei ou, literalmente, “o gado do deus”, em hieróglifos
wnDwt-nTrt (Unedjut-netjeret) que fez o céu e a terra e tudo o que existe para
benefício deles. Assim como a organização da natureza é de origem divina, também o é a
organização social e, antes de tudo, a instituição monárquica, como podemos apreender dos
Ensinamentos para o rei Meri-Ká-Rá: “Ele [ o deus ] fez para eles [ os homens ] governantes
(ainda) no ovo, guias para erguer as costas do fraco” (ARAÚJO, 2000: 291).

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4 primeiro dia = alusão à criação (nota do tradutor)
5 Todas as datas utilizadas no presente artigo são anteriores à Cristo, salvo indicação em contrário
) 92!
!) )
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) )

A ideologia monárquica que apresenta a Monarquia como sagrada em seu mais alto grau,
ou seja, uma Teofania, esteve presente desde o início da organização do Estado faraônico e
tornou-se o eixo norteador da configuração hierárquica da sociedade. Esta não apresenta uma
auto-denominação precisa dos grupos e da divisão social que possa ser definidora da hierarquia
social egípcia. Heródoto identificou em sua obra uma classificação geral quando de sua estada no
Egito (séc.V) e que muitas vezes é citada como parâmetro de definição. Como este autor
pretendia descrever a sociedade e seus grupos, ele apresentou a seguinte divisão:

Os egípcios estão divididos em sete classes distintas, cujos nomes


são: sacerdotes, guerreiros, vaqueiros, porqueiros, negociantes,
intérpretes e barqueiros. São essas as classes egípcias, e seus nomes
provêm de suas atividades específicas (HERÓDOTO, 1988:164).

Tal divisão poderia ter lógica na cabeça de um grego, mas, não correspondia à visão
egípcia de sua sociedade. De uma forma geral, os egípcios falavam de seus quadros sociais sem
fazer uma particularização por profissão. Estas denominações podem ser encontradas nos
grandes textos religiosos que nos permitem algumas indicações sobre o tema.
No final do Reino Antigo, as paredes das pirâmides foram preenchidas com uma série de
textos rituais e mágicos os quais constituem os chamados Textos das Pirâmides. Os textos
compõem o mais antigo corpo de escritos religiosos do antigo Egito, sendo, também, os mais
antigos textos representativos de sua literatura. Foram encontrados nas pirâmides de dez reis e
rainhas na necrópole de Mênfis, capital do Egito no Reino Antigo. O texto mais completo e
conhecido é datado da 6ª dinastia do reinado de Unas (2375-2345 a.C.), em cuja pirâmide foram
encontradas as inscrições que certamente remetem-se a uma tradição anterior mas da qual não
temos ainda nenhum registro mais antigo. Nestes escritos primordiais pode-se entrever uma

distinção básica da população egípcia em três categorias : pat (pat) = nobres, e

Hnmmt (henememet) = povo de Heliópolis ou “povo solar” (Sonnenvolk)

rxyt (rehety)= povo, subordinados, que podem ser interpretados


respectivamente como nobreza, nobreza menor e as pessoas comuns ou plebe. Na literatura
posterior estes termos parecem ser usados para designar a humanidade em geral, e ainda nos
Textos dos Sarcófagos e no Livro dos Mortos, compilação religiosa do Reino Novo, é possível
identificar esta mesma auto-representação dos egípcios quanto a constituição de sua sociedade.
Essas denominações gerais não excluíam as específicas referentes às profissões, mas eram
utilizados de uma forma mais abrangente ao referir-se à sociedade como um todo. Do ponto de
) 93!
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) )

vista econômico, o Estado egípcio era composto por duas classes bem distintas cuja hierarquia
era definida pela tributação e apropriação dos excedentes, ou seja, uma classe dominante que
compreendia o pólo estatal, nobreza, sacerdotes e grupos afins; e outra subordinada,
correspondente à grande maioria da população camponesa, i.e., cerca de 95% da sociedade. Isto
não nos permite reduzir a divisão social à estas classes sem levar em consideração a extrema
complexidade de sua organização social.
As profissões, em regra, eram hereditárias, principalmente pelo fato de não haver escolas
no sentido estrito da palavra. Gardiner indica que o ensino de uma profissão passava pela
formação equivalente ao de um ‘aprendiz’ e de um ‘mestre’ o que tendia a uma manutenção dos
mesmos grupos nos diversos ramos profissionais (GARDINER, 1938: 157-179). A cristalização
dos ‘loci’ sociais tende a ser portanto a norma para esta sociedade. Uma das poucas brechas
nesta regra era conseguida pela carreira de escriba. Por toda a história egípcia a profissão de
escriba sempre foi vista como uma das únicas a oferecer certa possibilidade de ascensão social
uma vez que poderia ser seguida por um jovem desde a tenra infância se os pais o inscrevessem
nos locais de formação, as ‘casas da vida’. Mesmo aqui, é necessário ater-se a regra de que a
grande maioria da população egípcia era analfabeta, portanto, essa mobilidade atribuída à
profissão de escriba não implica em um espaço aberto a todos. O serviço ‘público’ e seus
dependentes, ou seja, os cargos diretamente ou indiretamente ligados ao setor administrativo do
Estado egípcio distinguia alguns poucos da grande massa de trabalhadores, em sua maioria
camponeses, que constituíam a base da sociedade egípcia.
O mais alto cargo da hierarquia egípcia é o faraó. Os membros imediatos de sua família
consistiam no nível mais alto da hierarquia depois dele. Seguem-se os membros das famílias
reais, ou nobreza e famílias importantes. Os funcionários destacados por suas habilidades
podiam atingir favores reais que o colocavam no círculo restrito da corte. Uma vez conseguido o
acesso, seguindo a prática egípcia, o cargo e a posição passavam para seus filhos. Isto fortalecia a
prática de mobilidade horizontal que propicia a concentração dos privilégios em um grupo
mínimo em relação ao resto da sociedade.
Trigger identifica em seu estudo comparativo entre as sociedades por ele denominadas
primevas (TRIGGER, 1995), o que ele chama de especialistas dependentes os quais
constituiriam, grosso modo, a classe média.
Abaixo destes viria o grupo dos militares. Não seriam especialistas dependentes pois,
“trabalhavam com as mãos”, mas faziam parte da manutenção da ordem e da integridade do
território. No Egito a partir do Reino Novo quando se caracteriza como profissão permanente
também passa a ser uma das pouquíssimas formas de ascensão social na sociedade egípcia.

) 94!
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O objetivo central, portanto, é identificar o elemento militar como membro ativo da


sociedade, cujas ações surtem um efeito de reconhecimento social e que, por isso, legitimam e
justificam os valores a ele relacionados. A função militar era exercida na sociedade egípcia desde
o pré-dinástico (SPENCER, 1992) e podemos identificar guerreiros em várias representações
pictóricas nas diversas fases da história egípcia sem, no entanto, visualizarmos uma estrutura
social configurada como militar o que nos leva necessariamente a análise do elemento social que
incorpora a função guerreira em seu aspecto “militar”, a figura do soldado. A função guerreira
não traz consigo a noção de militar como uma classe funcional específica. O antigo Egito era
uma sociedade fortemente hierarquizada constituída basicamente por duas classes distintas: uma
minoria da população concentrada na classe dominante, em torno da figura do faraó, e uma
grande massa da população constituindo a classe dominada. Nesta sociedade o controle da
violência está concentrado e confunde-se com a classe dominante. Em nossa interpretação, o
exercício da força armada é um aspecto de uma posição social hegemônica e não um atributo de
uma dada classe funcional, logo, nossa hipótese inicial é de que não há uma classe militar
específica no Egito antigo.
Por isso a importância de identificar e demonstrar a estrutura militar que só pode ser
compreendida como uma das instituições sociais incorporadas a uma sociedade referida a um
sistema político-econômico historicamente determinado: o Egito do Reino Novo
(SPALINGER, 2005). A partir da estrutura podemos compreender a função militar exercida por
alguns de seus membros e identificar, então, o modelo desta função definido pela sociedade e
expresso na forma de biografia. A hipótese de nossa análise é a de que é na estrutura do texto
que está a base para sua classificação, do qual se extrai a moldura ideológica por trás do discurso
objetivo da biografia, e a partir do qual podemos classificar o integrante do grupo como militar.

Análise da biografia de Ahmés, filho de Ibana

Ahmés o filho de Ibana, se apresenta no início de sua biografia como portador do título

de ‘Superior dos marinheiros’ ( Hri Xnyt). Como é o único título que aparece no
discurso introdutório de identificação pessoal, presume-se ser este o título mais alto por ele
conseguido em vida. Comumente encontramos a tradução de Almirante. No entanto, nossa
opção em traduzi-lo como Superior dos Marinheiros parte da interpretação de que o texto não
nos deixa entrever em nenhum momento a participação de Ahmés em círculos de decisão
estratégica. Seu reconhecimento se dá por suas habilidades específicas, no caso a excelência na
navegação que o fez preservar o barco do faraó. As menções dizem respeito a coordenação de
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navio e talvez de uma esquadra o que o faria um oficial de nível superior como o título de
Capitão-de-esquadra. O título de Almirante seria o cargo máximo correspondente a organização
não de um barco mas, de toda a estratégia de ataque, cargos que se concentravam nos títulos de
comandantes gerais do exército visto que a marinha era parte subordinada deste e estes cargos
eram ocupados por integrantes da nobreza a qual Ahmés parece ter se integrado, mas não no
limitado círculo direto do faraó.
A origem social de Ahmés fica explicitada logo no início quando se identifica como filho
do soldado Baba do qual herdou a profissão. Isto o torna membro da comunidade, pois,
apresenta um costume reconhecido por esta. O interessante é notar a nítida oposição de
valoração entre o início de sua carreira e o final, apresentado antes disso. Vejamos uma análise
mais detalhada do texto:

Elemento Axiológico central

“É por suas ações que o nome de um bravo é reconhecido e não será jamais esquecido
neste país.” (l.4-5)
As ações de bravura e coragem é que forneceram os elementos de reconhecimento social.
Por elas, Ahmés indica seus prêmios:

! recebi honras...
! fui recompensado com ouro
! fui munido de escravos
! deram-me numerosas terras

Quando da apresentação de sua origem os elementos axiológicos se não podem ser


classificados como negativos, demonstram-se nulos pela falta de atividade pessoal. As frases que
identificam esta condição são:

! meu pai era soldado ...tornei-me marinheiro em seu lugar


! eu era jovem
! não tinha mulher

Como não há uma ação específica de Ahmés neste momento, não há significação social
maior. É somente a partir dos atos pessoais que são conduzidos pelo elemento axiológico inicial
de atos de coragem (ações de um bravo) que a carga positiva volta ao texto. Há um indício
interessante de passagem entre a infância e a adultez. Parece que Ahmés só passa a ser
reconhecido como socialmente significativo após o seu casamento (...Depois de construir um lar...).
) 96!
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Entre o terceiro e o quarto parágrafo o conceito central é o de coragem.


“Devido à minha coragem”:

! eu acompanhei o soberano...
! provei meu valor...
! fui designado...
! tomei meu butim e uma mão...
! fui agraciado...
! eu o trouxe carregando-o...
! fui recompensado...

Estes parágrafos apresentam o crescente reconhecimento das qualidades guerreiras de


Ahmés. O relato de sua luta no canal e a tomada do prisioneiro, o qual é submetido e carregado
por ele, se destaca perante as lutas anteriores.

De lá trouxe um prisioneiro, um homem: eu entrei na água,


vejam, eu o trouxe como uma captura feita a caminho da
cidade. Eu atravessei a água carregando-o ...

Poderíamos ver aí o momento que deve ter marcado Ahmés perante os seus
companheiros, destacando-o perante os oficiais. Até aqui todos os reconhecimentos e
recompensas foram intermediados pela figura do arauto real.

o fato foi relatado ao arauto real e fui agraciado com o


ouro da coragem.

Apesar da referência à presença do soberano, a narrativa deixa claro que seus feitos não
foram presenciados por ele, mas antes, foram levados ao conhecimento do arauto real que o
recompensou por tal nas duas menções do ouro da coragem.
Até aqui a estrutura temática se concentra na figura do soldado Ahmés, filho de Ibana.
Entre o 5º e o 9º parágrafos, que descrevem as batalhas principais do faraó Ahmés I na luta de
libertação contra os hicsos (Avaris, Sharuhen, Núbia, luta contra Aata, luta contra Teti-an) o
tema central passa a ser a figura do faráo. As ações do soldado Ahmés tornam-se secundárias na
narrativa e são apresentadas como conseqüência das ações do faraó.

! Depois Avaris foi tomada...


! Sharuhen...Sua Majestade a tomou...
! Após massacrar os asiáticos, Sua Majestade
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) )

! subiu o rio para destruir os núbios...


! Sua Majestade desceu então o rio...o coração feliz, forte e poderoso, pois havia
conquistado os países do norte e do sul...
! (Aata) Sua Majestade...o trouxe
! Depois Avaris foi tomada...
! Sharuhen...Sua Majestade a tomou...
! Após massacrar os asiáticos, Sua Majestade subiu o rio para destruir...
! Sua Majestade desceu então o rio...o coração
! feliz, forte e poderoso, pois havia conquistado os países do norte e do sul...
! (Aata) Sua Majestade...o trouxe

Então eu trouxe / me foi ofertado...

Esta parte do texto parece confirmar a hipótese de Spalinger (SPALINGER, 1982: 129-
131) que afirma que muitos textos privados, como a biografia de Ahmés filho de Ibana, podem
ter tirado seus elementos centrais dos chamados diários de guerra típicos dos faraós do Reino
Novo. Isto talvez explique o deslocamento do eixo temático da figura do soldado Ahmés para o
faraó. No entanto, este deslocamento temático acontece simultaneamente a uma mudança de
status do próprio soldado Ahmés.
Enquanto na primeira parte do texto, que corresponde ao início de sua carreira, ele toma
o seu butim e entrega os prisioneiros aos seus superiores a partir deste trecho do relato
(parágrafos 5 a 7) Ahmés passa a manter consigo os prisioneiros:

...trouxe prisioneiros: um homem e três mulheres perfazendo


um total de quatro cabeças. Sua majestade mos deu como
escravos.
... eu trouxe de lá duas mulheres e uma mão e, novamente o
ouro me foi ofertado e os prisioneiros me foram dados
como escravos.
...Eu trouxe de lá meu butim: dois homens vivos e três mãos.
Fui novamente recompensado com ouro e duas mulheres me
foram entregues.

No último caso ele capturou dois homens e recebeu duas mulheres, mas a equivalência
numérica ainda corresponde. Outro elemento relevante em relação aos parágrafos anteriores é a
ausência da figura do arauto real como intermediador entre os superiores e Ahmés. Isto pode
denotar uma mudança de círculo hierárquico e maior proximidade dele com a esfera real.

) 98!
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) )

O episódio das rebeliões internas protagonizadas pelos líderes mencionados (Aata e Teti-
an) apresenta novos elementos importantes:

...Eu trouxe dois soldados, prisioneiros, oriundos do barco de


Aata. Foi-me dado cinco cabeças e muitas extensões de terra –
cinco arouras – em minha cidade. O mesmo foi feito com
todos os marinheiros.
Veio então um inimigo vil de nome Teti-an. Ele reuniu consigo
homens maus de coração. Sua majestade o matou e suas tropas
ficaram como se nunca houvessem existido. Foi-me dado três
cabeças e campos – cinco arouras em minha cidade.

Ahmés é recompensado com terras, forma de pagamento comum para militares do


Reino Novo como a frase O mesmo foi feito com todos os marinheiros nos deixa perceber. Mas, na
segunda vez o prêmio parece ter se dirigido especialmente a ele, ou pelo menos a um número
menor de pessoas. Além da recompensa em terras o diferencial de Ahmés nestes trechos é o de
receber cativos acima do número de apreensões por ele efetuadas ou mesmo, como no episódio
de Teti-an, sem mencionar tê-las feito.
A ascensão de Ahmés pode ser confirmada pelo próximo trecho de sua narrativa. Nos
parágrafos 10 e 11, suas ações de coragem voltam a ser cantadas, mas agora a presença real é
muito mais próxima de tal forma que a estrutura temática está dividida entre as ações de Ahmés
e as do faraó apresentadas de forma paralela:

! Eu conduzi por barco o rei... [quando] ...este retornou ao país de Kush


! Eu estava a frente de nosso exército..[quando]...Sua Majestade atingiu esse núbio vil
! lutei bravamente... [quando] ...Sua Majestade presenciou
! conduzi o rei de volta...

A proximidade do círculo real é mais patente na ação de oferecimento do butim por


parte de Ahmés ao soberano Amenhotep I, ao invés, de mantê-los como anteriormente:

! Eu trouxe duas mãos ... [e] ... OFERECI À SUA MAJESTADE


! Depois buscamos o povo e o gado do inimigo vencido... [e] ... OFERECI À SUA
MAJESTADE
! Trouxe um prisioneiro... [e] ... OFERECI À SUA MAJESTADE

) 99!
!) )
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) )

Além de seu butim, Ahmés é presenteado com ouro e recebe o seu primeiro título de
destaque: “Guerreiro do Rei”. Logo em seguida, sob o faraó Tutmés I, Ahmés recebe seu
segundo título após demonstrar perícia na condução do barco real.

Eu demonstrei bravura em presença do rei sobre águas


difíceis quando o barco enfrentou uma passagem perigosa nas
cataratas. Por isto fui nomeado Almirante.

O trecho danificado não nos permite identificar o palco preciso das ações mas situa-se na
região da Núbia. Nos trechos onde a tradução se faz possível o elemento central é a figura e a
ação do rei, particularmente a grande fúria do faraó que se traduziu em um massacre e o retorno
com o corpo do inimigo pendurado de cabeça para baixo numa clara menção a uma medida
exemplar contra qualquer sublevação.
Após o trecho danificado, o texto apresenta as ações de Ahmés quando da expedição à
Naharina. Novamente a ação inicia-se centrada na figura do faraó, mas Ahmés também participa
de forma ativa. Desta vez o butim consistiu em um carro de guerra com seus cavalos que foram
ofertados a faraó.
A estabilidade de Ahmés no patamar superior da hierarquia militar que atingiu é indicada
quando afirma que manteve suas honrarias.

Conclusão
O antigo Egito era uma sociedade fortemente hierarquizada na qual um pequeno grupo
identificado como uma nobreza constituída formava a estrutura político-administrativa centrada
na figura do faraó que encarnava simbolicamente o próprio Estado. Este pequeno grupo
constituía uma classe dominante homogênea perante o restante da sociedade egípcia. Destacar-se
socialmente nesse grupo restrito compreendia a inserção em diversas funções até o cargo maior
de faraó. No decorrer do terceiro até a metade do segundo milênio uma das funções por
excelência atribuída ao faraó era a guerreira, definida como uma característica centrada no
equilíbrio cósmico do cargo de faraó o qual detinha o poder de manutenção da ordem social
defendida vigorosamente contra todos aqueles que não o reconheciam como tal. A partir do
Segundo Período Intermediário e da dominação estrangeira sobre o Egito, os valores guerreiros
serão também direcionados para o conjunto dos homens que constituíam a força do faraó
formando uma nova base de legitimação e reconhecimento para os que se destacassem nesta
função que adquire, a partir de então, uma nova semântica social.

) 100!
!) )
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) )

A bravura, a perícia no campo de batalha e a lealdade ao faraó passam a representar uma


nova modalidade de destaque social permitindo que um grupo de homens ascenda ao patamar
mais alto da sociedade através dos aspectos militares de suas funções. Ao mesmo tempo, estes
valores passam a integrar os discursos laudatórios que legitimam o status diferenciado daquele
mesmo grupo dominante. Pode-se perceber uma nova ideologia social com a formação de uma
tropa de caráter permanente a partir do final do Segundo Período Intermediário e a decorrente
especialização de um grupo de homens de caráter militarizante. A ascensão social e a legitimação
de sua posição social perante os demais integrantes da sociedade relaciona-se diretamente com
sua formação militar específica.

Bibliografia

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CONSTITUIÇÃO(DE(PODERES(LOCAIS:(UM(ESTUDO(SOBRE(O(
REINO(ANTIGO(
Maria Thereza David João
PPGH/USP
NIEP-PréK/UFF

A complexidade administrativa subjacente à organização do Estado egípcio é tema, com


frequência, olvidado por boa parte dos estudiosos da área de Egiptologia. Boa parte dos estudos
fia-se na ideia já há anos estabelecida de que o Estado egípcio é composto, de um lado, pela
figura altamente centralizadora do faraó, o qual tudo controlava e, de outro, pelo restante da
população, cuja única saída era a obediência cega tendo em vista o esmagador poder da ideologia
de um faraó divino.
É bem verdade que, especialmente durante o primeiro período da história política do
Egito, o Reino Antigo (2686-2610 a.C.), a centralização política atingiu grandes proporções.
Como exemplo há a construção das famosas pirâmides de Gizé, empreendimento que não
poderia ter sido realizado sem a presença de um Estado forte capaz de arregimentar uma grande
quantidade de recursos e de mão-de-obra para a construção desses edifícios monumentais. Sem
dúvida, o peso da monarquia divina era decisivamente relevante – a ideia do faraó como o
mantenedor da maat (para os egípcios, a rede de forças que mantinha o mundo funcionando de
forma ordenada) proporcionava a coesão social sob seu cajado tendo em vista o grande temor de
que o mundo fosse devorado por isfet, as forças do caos.
Há, todavia, que se questionar acerca dos próprios limites dessa atuação estatal, visto que
a burocracia faraônica não chegava a todos nem regulava todos os aspectos da vida dos antigos
egípcios. Conforme aponta Juan Carlos Moreno García, o Estado “só se ocupava das atividades
produtivas ou daquelas manifestações culturais que serviam aos interesses da Coroa”
(MORENO GARCIA, 2004) e o resto era legado à iniciativa pessoal dos habitantes do Nilo.
Dessa forma, cabe compreender que a estrutura do Estado egípcio não pode ser
reduzida à verticalidade do binômio faraó-população, como querem autores como Jan Assmann
(cf. ASSMANN, 2003), egiptólogo hoje bastante influente. Havia, antes, instâncias intermediárias
entre essas duas esferas, bem como lógicas complementares à lógica estatal que contribuíam para
que as decisões tomadas na capital pudessem ser aplicadas em toda a extensão nilótica.

) 103!
!) )
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) )

Não se deve, igualmente, cair no erro de autores como Christopher Eyre (2000), que
atribuem ao Estado egípcio funcionamento semelhante ao das burocracias atuais,
desconsiderando, portanto, diversas particularidades inerentes a essa realidade política,
econômica e social.
Durante o Reino Antigo, a estrutura do Estado egípcio aparece sob forma tripartite,
resumida na atuação de um grupo de departamentos administrativos e de altos funcionários
comandados pelo vizir 6 . Este, por sua vez, formava junto com outros altos dignatários o
Conselho Real, espécie de conselho consultivo que auxiliava o faraó em suas decisões. Toda essa
rede funcionava com o auxílio de um corpo de funcionários de “enlace”, os quais eram
encarregados de supervisionar localmente um amplo leque de atividades. Junto a essa estrutura
tripartite coexistia outra, mais informal, formada por cortesãos próximos ao rei e pelos chefes de
aldeia. Estes últimos não faziam parte da burocracia estatal7 mas eram imprescindíveis para que
as ordens emanadas do palácio fossem executadas localmente.
Para fins dessa comunicação interessa, particularmente, não a organização da corte
central mas, sim, como era organizada a administração das províncias egípcias. Para o período
que antecede a VI dinastia pouco se sabe a respeito da administração provincial. As fontes
disponíveis indicam que, à exceção de alguns nomos8, a maioria das províncias parecia não
dispor de uma estrutura administrativa, sendo antes dirigidas de maneira mais ou menos informal
por chefes de aldeias e pelas grandes famílias locais. Marcelo Campagno observa a existência de
duas lógicas que organizavam de forma as relações estabelecidas nos dois âmbitos anteriormente
citados (CAMPAGNO, 2006): a do parentesco, a qual remonta a tempos pré-dinásticos e a do
patronato, que implica na existência de redes locais de clientelismo9.
Anteriormente à VI dinastia o controle das províncias era feito através de um sistema que
Christopher Eyre denominou “governo expedicionário” (EYRE, 2000). Esse sistema consistia
no envio de funcionários itinerantes diretamente da capital, Mênfis, cujas atribuições consistiam
basicamente na supervisão das províncias, na coleta de impostos, na aplicação da justiça, no
controle das obras de irrigação e na organização da corveia. Por conta da própria geografia do
Egito, um território longo e estreito cuja comunicação era feita majoritariamente através da
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6O vizir era o homem mais importante do Egito após o faraó. Acumulava diversas atribuições, dentre as quais o
controle fiscal e a supervisão de diferentes departamentos administrativos.
7!Para uma discussão sobre o conceito de burocracia e sua aplicação à realidade do Egito faraônico ver JOÃO, 2008.
8!O A palavra egípcia spat (traduzida para o grego como nomo), significa "distrito", "circunscrição administrativa". Na

época do Reino Novo, havia cerca de trinta e oito nomos no Egito antigo - vinte e dois no Alto Egito e dezesseis no
Baixo Egito - os quais contavam com uma espécie de capital e possuíam, igualmente, templos dedicados ao deus ou
deuses locais, composição esta que remete às estruturas clânicas de outrora. Cada um destes nomos era governado
por um funcionário - o nomarca.
9!Essa última lógica interessa de forma especial aos objetivos dessa comunicação e será tratada, alhures, de forma

mais aprofundada.
) 104!
!) )
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) )

navegação, a penetração administrativa nas províncias era relativamente fraca, quase que restrita
ao controle de grandes centros como Assuã, Coptos e Abidos, no Alto Egito, e Buto, no Baixo
Egito.
A grande reviravolta se deu, portanto, na VI dinastia quando reis como Merenre e Pepi II
empreenderam reformas administrativas com o intuito de aumentar e melhor aproveitar os
recursos locais, antes parcamente explorados, por parte da Coroa. As transformações
proporcionadas pelos governantes da VI dinastia, tanto em seus aspectos políticos quanto
econômicos, podem ser verificadas através da análise das titulaturas (BRESCIANI, 1988)
existentes nas autobiografias dos funcionários provinciais do período10. Surgem novos títulos
como o de “grande chefe do nomo” e “intendente do Alto Egito”, indicativos de uma tendência
e de uma tentativa de racionalização e formalização da presença do Estado nessas regiões.
Cabe salientar que essa estrutura administrativa já existia, ainda que de forma
embrionária, desde o Período Tinita (período dinástico primitivo), quando surgem os primeiros
nomos. Títulos como hqA spAt, que significa “governador do nomo”, existem desde fins da
segunda dinastia. O que as novas titulaturas surgidas na VI dinastia demonstram é um reforço no
status do nomarca e dos poderes inerentes às suas funções as quais permitem vislumbrar, por sua
vez, a ausência de uma lógica estatal fundada no critério de competência, como ocorre na
burocracia moderna, visto que não há especialização em determinada função e sim o
desempenho de um vasto leque de atividades.
A respeito da origem social desses governantes provinciais, as mesmas autobiografias
mencionadas anteriormente constituem rica fonte de pesquisa. Como exemplo cite-se a
autobiografia de Ankhtifi de Mo’alla (apud SEIDLMAYER, 2003), a qual corrobora com a
hipótese de que os filhos de importantes famílias locais eram enviados à capital para serem
educados e, posteriormente, eram nomeados para exercer os altos cargos da administração
provincial, onde faziam cumprir as diretrizes estabelecidas a partir de Mênfis. Dessa forma, nas
palavras de Moreno Garcia, tais pessoas seriam “cooptadas pelo aparato faraônico e convertidas
em funcionários plenamente integrados na administração” (MORENO GARCIA, 2004).
Parte da relevância da criação de novos cargos destinados a acentuar o controle da capital
sobre as províncias advém do fato de que este era um ato que não se fazia dissociado da

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
10 As autobiografias egípcias, encontradas em uma grande quantidade de monumentos funerários de particulares,
apresentam um retrato de homem ideal através do relato de feitos extraordinários levados à cabo por seus
realizadores. Deve-se, portanto, levar em conta os cuidados apontados por Olivier Perdu no momento de analisar
tais textos, o qual salienta o fato de os mesmos apresentarem somente uma parcela da verdade, a que é mais
lisonjeira e espetacular (cf. PERDU, 1995). Cabe observar, igualmente, que o rol de titulaturas que aparece ao lado
do nome do indivíduo indica uma espécie de cursus honorum, o que significa que nem sempre correspondem a
funções efetivamente por ele desempenhadas.
) 105!
!) )
Semna!–!Estudos!de!Egiptologia!I!
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concessão, por parte da Coroa, de grandes extensões de terras aos cultos e templos provinciais.
Junto à concessão de terras ocorria também a concessão de trabalhadores, provenientes de
aldeias próximas e provavelmente escolhidos pelos próprios chefes das comunidades aldeãs11.
Isto posto, o controle de templos provinciais e a participação em atividades de culto aparece
como uma importante fonte de ingresso e de poder local, relação esta que merece ser explicitada
em maiores detalhes por permitir uma compreensão mais aguçada das relações entre poder
central e poderes locais no Egito desse período12.
Através das já mencionadas autobiografias e dos títulos que nela aparecem é possível
traçar um panorama mais preciso da atuação dos nomarcas dentro das atividades templárias
tendo em vista, obviamente, que a delimitação de funções variava de acordo com as
características de cada templo (ROCCATI, 1988: 73-78). Como demonstra Valérie Sèlve,

[...] a cada ato ritual corresponde um título preciso: todos os


gestos efetuados pelos nomarcas nos quadros de culto são
detalhados por estes títulos e por algumas inscrições que
explicitam seu conteúdo (SELVE, 2000: 72).

É possível dividir em dois importantes conjuntos as funções pelas quais os governantes


provinciais eram responsáveis no âmbito templário: administrativas e ministeriais (SELVE, s/d),
ambas extremamente decisivas para a consolidação do poder dessas autoridades locais.
Dentre as funções administrativas tem-se, em primeiro lugar, a direção do corpo clerical,
expressa em títulos como o de imy-R Hmw-nTr, traduzido como “diretor dos profetas”. A
responsabilidade inerente a esse cargo consistia na administração do exercício do culto realizado
diariamente para a divindade no templo. Para tanto, era necessário o gerenciamento dos bens
fundamentais para a correta execução de tais cultos, como provisão de oferendas e objetos

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11 Pegue-se o caso, por exemplo, de Nikaanj de Tehna, que acumulava as funções de ritualista, controlador das terras
e do templo de Hathor, responsável por um grande hwt e intendente das explorações agrícolas. Com a
hereditariedade das funções dos nomarcas, os territórios doados pelo rei para usufruto destes funcionários passam,
também, a ficar sujeitos às leis de hereditariedade. Dessa forma, o controle dos templos provinciais mostrava-se em
uma proveitosa fonte de poder local.
12 O foco nesse aspecto da administração provincial faz-se tendo em vista um dos objetivos da pesquisa de

doutorado ora desenvolvida da Universidade de São Paulo sob orientação do professor Marcelo Rede e financiada
pelo CNPq. O trabalho em questão tem como foco principal a análise das relações entre poder central e poderes
locais no Egito do Reino Médio, avaliando o impacto e os limites das transformações produzidas no período
imediatamente anterior, o Primeiro Período Intermediário na reorganização administrava do Estado egípcio. O
Primeiro Período Intermediário caracteriza-se pela descentralização do poder ao mesmo tempo em que se verifica a
ascensão de nichos de poder locais sob o comando dos governadores das províncias. Nesse sentido é interessante
observar os mecanismos que levaram tais pessoas a adquirir papel tão destacado, recuando o estudo para o Reino
Antigo – particularmente a VI dinastia e as reformas administrativas promovidas por reis como Pepi II - gênesis
desse processo.
) 106!
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litúrgicos destinados ao culto. Outros títulos, como imy-r pr-mnw (ou o “diretor da casa de
Min”) demonstram o envolvimento de seus portadores na direção dos chamados “lugares
sagrados”, os quais, em egípcio, são designados pelo termo hwt.
As funções ministeriais demonstram uma espécie de “status ritualístico” dessas pessoas e
sua participação ativa na realização dos cultos. Vale lembrar que, ideologicamente falando, o
faraó era o único autorizado a performar os cultos mas, na impossibilidade óbvia de se fazer
presente em todos os lugares do Egito, delegava essa função a terceiros. O que a presença de
títulos como Hry-sSta (“senhor dos segredos”), smA mnw (estolista de Min) e shd wiA (“inspetor
da barca-uia”) permite entrever, para além da organização do culto às divindades, é o fato de que
esses particulares passam a gozar de prerrogativas até então régias.
Essa última informação se torna absolutamente relevante se for tomado em consideração
o contexto que leva ao fim da VI dinastia e marca, por sua vez, o declínio do Reino Antigo. Esse
período é marcado pela ocorrência de um período anárquico conhecido como Primeiro Período
Intermediário, no qual a descentralização do poder deu margem ao fortalecimento dos
governadores provinciais, os quais passaram, segundo atesta a historiografia mais tradicional, a
agir como pequenos reis nos territórios submetidos a sua jurisdição13. Inscrições encontradas na
necrópole de El-Hawawish, pertencente à nona província egípcia, indicam uma linhagem de
governadores provinciais que monopolizou essa função por seis gerações. A hereditariedade das
funções dos nomarcas foi um fator que, sem dúvida, contribuiu para a crise que se instaurou no
Egito em fins do Reino Antigo14. Segundo Moreno Garcia,

Uma leitura atenta das inscrições do Primeiro Período


Intermediário revela a existência de novos motivos e expressões,
de inovações no estilo e nos gêneros literários, que testemunham
mais uma mobilidade social e uma alteração nas relações de
força tradicionais no âmbito político (capital/província,
elite/sociedade, público/privado, rei/súditos, etc.) e de suas
manifestações ideológicas, que transformações no meio natural
(MORENO GARCIA, 1997: II).

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13 Sobre esse assunto, Moreno Garcia afirma que “o reforço das elites locais, consequência do reforço da
administração faraônica nas províncias permitiu entrever, de maneira paradoxal, a crise da monarquia. Os textos do
Primeiro Período Intermediário atestam dois fenômenos paralelos: de um lado, o reforço na posição social e do
poder das elites locais num quadro de empobrecimento de outros setores da população; de outro lado, a tomada em
assalto do poder por parte das elites provinciais” (MORENO GARCIA, 1999: 442).
14!Ciro Cardoso enumera alguns fatores que teriam levado à crise do Reino Antigo: 1) excesso de independência dos

sacerdotes, com isenções e doações que enfraqueceram o patrimônio estatal; 2) fraqueza pessoal dos reis; 3) avanço
do poder e hereditariedade de funções dos nomarcas; 4) revolta popular e 5) invasão estrangeira. (CARDOSO, 1994:
81).
) 107!
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Semna!–!Estudos!de!Egiptologia!I!
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É interessante observar como a ascensão do poder dos nomarcas é feita utilizando-se do


próprio modelo estatal a eles imposto, em uma dinâmica que não envolve, necessariamente, o
confronto com o poder central mas antes um processo de emulação em relação à Corte. Uma
análise superficial da cultura material do período já permite algumas conclusões nessa direção,
tendo em vista que os achados resultantes de escavações em cemitérios provinciais mostram que
os membros da elite neles enterrados cercavam-se do mesmo tipo de objetos valiosos e de
monumentos (como é o caso das mastabas) que os altos dignatários mais próximos do palácio.
A progressiva expansão da cultura e da administração palatina nas províncias não poderia
ter sido realizada sem a colaboração das elites locais, uma vez que elas mesmas seriam
beneficiadas nesse processo. O estreitamento das ligações entre poder central e poderes locais
pode ser notado de diversas formas, como através da fundação de centros de culto régios nas
províncias, casamentos entre reis e mulheres de origem provincial e acesso de provincianos ao
cargo de vizir (MORENO GARCIA, 1999: 438), o que integrava, gradativamente, as elites locais
ao aparato estatal.
Outro exemplo bastante ilustrativo é o caso da “democratização” da imortalidade”15,
processo através do qual encantamentos destinados a prover, com exclusividade, a imortalidade
régia, passam a compor – com algumas variantes e novos desenvolvimentos – a decoração dos
sarcófagos de membros das elites nomarcais, abrindo-lhes a perspectiva de obtenção do tipo de
imortalidade mais almejado pelos egípcios: o convívio junto aos deuses16.
A prerrogativa do “acesso divino” obtida por essa elite poderia, segundo o escandinavo
Sorensen, ser feita ao menos de três formas: a) oficiando em um ritual no templo; b) imitando
papéis míticos ou por identificação a um deus; c) por conhecimento religioso (SORENSEN,
1989). A partir da VI dinastia, alguns dos limites rituais de outrora, que distinguiam – em parte –
o status régio daquele dos particulares desapareceram, tendo em vista a maior participação dos
administradores provinciais em atividades de culto. A gradual erosão da distinção entre a posição
do faraó e a de seus súditos verificada na esfera funerária (uma vez que o faraó deixa ser o único
a obter uma imortalidade de tipo privilegiado) é, na realidade, a confirmação de um privilégio
obtido já em vida, o do “acesso ao divino”, garantido através da participação nas atividades
templárias de maneira administrativa e ministerial.

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15 Para mais detalhes ver JOÃO, 2008. Chamamos de Texto das Pirâmides o conjunto de encantamentos funerários
destinados a prover a imortalidade régia durante o Reino Antigo e de Textos dos Sarcófagos aquele pertencente às
elites nomarcais, surgido durante o Primeiro Período Intermediário.
16 A maioria dos sarcófagos contendo esse tipo de encantamento foi encontrada na região de Tebas, Assiut, Meir,

Saqqara e em cemitérios nomarcais como Deir El-Bersha. Para tanto, ver WILLEMS, 2008.
) 108!
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O que se pode concluir acerca das situações descritas no decorrer dessa comunicação é,
em primeiro lugar, que a atuação das elites nomarcais em atividades de culto permitiu às mesmas
acumular o capital simbólico necessário capaz de lhes garantir grande prestígio social, num
momento em que o poder central estava desestabilizado. Entende-se, com isso, o grande
destaque dado nas fontes do período à iniciativa pessoal desses funcionários, os quais passam a
desempenhar funções régias não somente no âmbito religioso mas também no social,
substituindo o faraó como categoria identitária e desenvolvendo uma ampla rede de benefícios
através do recrudescimento das relações de patronato. Como salienta Simpson,

[...] a iniciativa pessoal do funcionário para assegurar


prosperidade à casa real, amenizando os efeitos da fome, etc., as
demandas excessivas por tributos dos governantes, o
recrutamento de homens para projetos do rei, bem como o
papel do nomarca como o governante benevolente que é capaz
de perdoar o devedor pagando um empréstimo. Como nos
textos dos períodos seguintes, caracteriza-se pelo orgulho dos
nomos locais, com uma ausência correspondente de ênfase na
casa real (SIMPSON, 2005: 402).

É de extrema relevância, igualmente, atentar para o fato de que o templo era uma
importantíssima instância econômica no Egito o que implicava, portanto, na participação das
elites nomarcais no gerenciamento das terras e trabalhadores pertencentes aos templos, bem
como dos recursos por eles captados favorecendo, dessa forma, a consolidação do poder de uma
aristocracia fundiária beneficiada pela concessão de cargos administrativos e hereditariedade de
suas funções.

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) 111!
!) )
Semna!–!Estudos!de!Egiptologia!I!
) )

SOBRE(A(IMPORTÂNCIA(DA(TEORIA(SOCIAL(NA(
EGIPTOLOGIA(ECONÔMICA(
Fábio Frizzo
UCAM/UNESA
NIEP-Marx-PréK-UFF

Resumo: Em texto publicado há uma década, Ciro Cardoso afirmava que a egiptologia era uma disciplina infensa
aos debates teóricos, dedicando-se muito mais ao estudo da monarquia e da religião. O objetivo deste texto é
defender a ideia de que as estruturas econômicas faraônicas só podem ser corretamente entendidas a partir da
construção de modelos teóricos calcados na diferença qualitativa entre as sociedades pré-capitalistas e a capitalista.
Tais modelos são ainda mais importantes em razão da carência de fontes relativas à economia egípcia.

Abstract: In one paper published a decade ago, Ciro Cardoso stated that the Egyptology was a kind of knowledge
unsympathetic to theoretical debate, devoting itself primarily to the studies of kingship and religion. The present
paper aims to propose the idea that the pharaonic economic structures could only be understood rightly with the
elaboration of theoretical models based in the qualitative difference between the pre capitalist societies and the
capitalist society. These models are even more important in a context of scant evidences related to the Egyptian
economics.

Para seguir o aspecto cronológico e marcar a unidade entre a Egiptologia e os Classical


Studies como integrantes do campo da História Antiga, gostaria de iniciar com uma citação
daquele que talvez tenha sido o mais importante historiador anglo-saxão da Antiguidade no
século XX. Em artigo publicado originalmente em 1963, Moses Finley afirmou que:
A história antiga é única na história ocidental (mas tem paralelos na história do Oriente
Médio e do Extremo Oriente) quanto ao fato de seus profissionais, em decorrência de uma longa
tradição, serem frequentemente homens cuja formação não é histórica, e sim linguística e
literária, que se autodenominam classicistas (ou helenistas) e filologistas clássicos, epigrafistas e
papirologistas.
(FINLEY, 1989: 70)
A partir desta afirmação, Finley retira duas implicações: 1) uma tendência desses
especialistas em seguirem a linha das fontes (no caso específico, dos historiadores da
Antiguidade) por estarem imersos demais na literatura; 2) o fato de que a imensa maioria desses
pesquisadores só pensar em seus objetos de pesquisa, o que os levaria a não lerem outros

) 112!
!) )
Semna!–!Estudos!de!Egiptologia!I!
) )

trabalhos de história de diferentes períodos, mantendo suas concepções gerais iniciais sobre
história e economia.
A isto se soma outra afirmação do mesmo autor:

Geralmente é consenso de que os historiadores da Antiguidade


raramente discutem questões de método (salvo questões de
técnica em disciplinas auxiliares como a arqueologia ou a crítica de
textos). (...) decididamente, muitos historiadores acham que o
assunto está muito melhor sem essa discussão (FINLEY, 1989:
58).

Confesso que esta citação foi escolhida também como uma provocação aos colegas da
Arqueologia, disciplina que partilha um imenso campo em comum com a Egiptologia. Todavia,
para não cometer uma injustiça com um nome como Finley, convém lembrar que ele modificou
sua posição acerca da Arqueologia em outro texto, anos depois deste (FINLEY, 1994: 22). De
qualquer forma, sua afirmação ainda é válida: discute-se pouco método em seu sentido mais
abstrato. A metodologia em geral passou a ser tratada como técnica e não como uma discussão
de princípios de pesquisa.
Vinte anos após a publicação do artigo de Finley, aquele que foi sua contraparte
brasileira, sendo o mais importante historiador brasileiro da Antiguidade do século XX, fez uma
declaração semelhante em relação à Egiptologia especificamente. Em artigo de 1983, Ciro
Cardoso afirmou que “A egiptologia é uma disciplina bastante tradicional, infensa em muitos
casos ao debate teórico” (CARDOSO, 1983: 152).
Neste caso, Cardoso refere-se como “debate teórico” àquilo que Finley chamou de
“questões de método”, afirmando um tradicionalismo na área, ligado aos estudos de um tipo de
arqueologia que busca explicar uma sociedade menos do que descrever as materializações de sua
cultura. Tipo de arqueologia que, outrossim, foi o que fez com que Finley definisse tal disciplina
como “auxiliar”.
O debate teórico faz-se necessário para a montagem de um modelo de sociedade que é
distinta da nossa. Desta maneira, cria-se um método de pesquisa que busca afastar o historiador
(e aqui se deve entender o profissional que lida com o estudo de sociedades humanas no tempo)
do caminho mais fácil, que é aquele de ler o objeto de estudo (a sociedade, nunca devemos
perder de vista que o objeto de estudo é a sociedade!) com os olhos carregados dos conceitos da
sua realidade, sem o esforço de distanciamento necessário. Este é o pecado maior dos

) 113!
!) )
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) )

historiadores, bem como do antropólogo, chame-se de anacronismo, etnocentrismo ou o que se


preferir.
Longe da afirmação de que é impossível explicar o diferente, cabendo a nós uma
descrição do objeto – afirmação ligada ao impedimento de criar conhecimentos acadêmicos ou,
em outras palavras, um objeto epistemológico cognoscível –, o que estou afirmando é a
necessidade de pensar a sociedade estudada partindo do princípio de que ela é substancialmente
distinta desta na qual nós pesquisadores nos inserimos e, portanto, só é compreensível a partir da
formulação de um modelo totalizante.
O primeiro terreno acidentado nesta estrada é aquele da tradução das fontes, que foi
muito bem assinalado tanto por Finley, quanto por Marc Bloch, que alega que:

... para grande desespero dos historiadores, os homens não tem o


hábito, a cada vez que mudam de costumes, de mudar de
vocabulário (BLOCH, 2001: 59).

A princípio, há também aqui um caminho mais fácil que se mostra errado: a conclusão de
que devemos manter os vocábulos nas línguas originais para evitar males entendidos nas
traduções, já que as relações sociais são distintas nas temporalidades e sociedades. O exemplo
clássico para isso – que coincide no trabalho de Bloch e Finley – é o do escravo, seja na
passagem latina de servus de “escravo” para “servo” ou no debate sobre o doulos grego. Manter o
vocabulário inicial não explica nada! Para que um ser de outra sociedade entenda aquela relação,
devem-se fazer paralelos com a sua realidade, destacando sempre as diferenças entre as relações
nas distintas sociedades. Nas palavras de Finley, é necessária uma generalização, que nada mais é
do que um processo de abstração necessário há criação de um modelo que ajude a explicar uma
relação social.
Para exemplificar de maneira mais geral na sociedade específica que mobiliza este
volume, temos grandes problemas de tradução que demonstram os abismos entre os egípcios e
nós. Costumo falar para meus alunos nas primeiras aulas sobre o pensamento egípcio que é
necessário fazer um esforço para livrar o pensamento das amarras de nossa sociedade (por mais
que saiba que esse é um esforço inútil se tomado em sua completude, ou seja, nunca
conseguimos nos livrar completamente das amarras de nossa sociedade). No final, a
compreensão se dá, na minha experiência, através de analogias. Vejamos um exemplo.
Todos sabemos que a palavra “alma” não encontra nenhuma tradução precisa no egípcio,
já que aquela sociedade não pensava o ser humano a partir da dicotomia corpo x alma, tão

) 114!
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característica de boa parte das nossas sociedades atuais. Agora, também não é razoável afirmar
simplesmente para uma pessoa ignorante em relação ao mundo faraônico que havia um ka e um
ba, por exemplo. A palavra original pode se manter (uma vez que não há nenhum paralelo direto
com outra do nosso idioma), mas uma analogia deve ser feita para tentar explicar o princípio de
sustento ou o princípio de mobilidade. Esta importância existe, ainda que saibamos que há uma
complexidade de atributos em cada um desses aspectos, muitos dos quais não são consensos
entre os egiptólogos, tal é a distância da nossa concepção de mundo. Penso em especial nas
teorias de Lanny Bell acerca do caráter familiar e hereditário do ka (BELL, 1997: 127-184).
Feitas estas explicações de caráter mais geral, passemos ao objeto mais específico da
economia egípcia. O que afirmei acima vale para o campo da economia, que talvez caia com
ainda mais facilidade na tentação de uma interpretação (ideológica!!!) do passado como similar ao
presente. Em outras palavras, como querem os liberais, da existência de uma lei universal de
regulação das economias.
Talvez a escolha da maioria dos egiptólogos pelo caminho mais fácil da leitura
(ideológica, ainda que não percebam!!!) da economia faraônica com uma estrutura de
funcionamento igual à economia atual esteja ligada, inicialmente, à peculiaridade da Egiptologia
que, segundo Ciro Cardoso,

... se dedica muito mais – em parte pela natureza da maior parte


das fontes que se conservaram – a estudos da monarquia faraônica
e da religião do que, por exemplo, da economia (CARDOSO,
1983: 152).

Muito provavelmente a escolha deste caminho mais fácil está ligada a outros fatores,
como: 1) uma inculcação ideológica da economia capitalista como natureza humana, desenhada
desde o século XVIII; 2) um desinteresse, como assinalou Finley, pelo debate de método ou pela
leitura de trabalhos referentes a outros períodos históricos. Desta maneira, é possível concordar
com David Warburton quando ele afirma que: “(...) uma tendência marcante entre os egiptólogos
é acreditar que eles entendem a teoria econômica moderna” (WARBURTON, 1998: 144).
Aqui é preciso fazer uma ressalva: o campo da Egiptologia é marcado por uma formação de base
arqueológica e linguística, em detrimento de uma tradição historiográfica e sociológica. Assim,
por mais que os conhecimentos da maioria dos egiptólogos interessados ena economia possam
passar pela economia política, infelizmente são poucos aqueles que a estudam de fato e quase
nenhum se aventura no campo da crítica da economia política elaborada por Marx.

) 115!
!) )
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O que eu gostaria de deixar bem claro é a necessidade de entender que o funcionamento


da economia egípcia (e de todas as pré-capitalistas em geral) é qualitativamente diferente do
funcionamento e dos princípios da economia capitalista. Isto significa dizer que não há, como
querem primitivistas, uma diferença de grau de desenvolvimento do mercado, mas que princípios
e regras de funcionamento do mercado capitalista não vigoram no mundo pré-moderno. Pode
haver, como ressaltaram vários, inclusive Polanyi, um mercado no sentido de espaço de troca de
produtos e serviços, mas em hipótese alguma confirma-se a existência de aspectos inerentes ao
mercado generalizado de compra e venda (POLANYI, 1976: 311-315).
Primeiro, como afirma o antropólogo francês Maurice Godelier, não há uma esfera de
circulação unificada nas sociedades pré-capitalistas (GODELIER, 1971: 177). Nem todos os
bens circulam, nem todas as pessoas podem adquirir todos os bens. Em segundo lugar, não há
uma unidade universal de equivalência que fizesse com que fosse possível para qualquer pessoa
saber o valor de qualquer bem e, desta maneira, igualá-lo a outro em uma transação.
Ainda que, a primeira vista, as fontes possam parecer enganosas, quando, por exemplo,
deparamo-nos com a equivalência de um boi a 50 deben (medida de peso equivalente a 91 gramas)
de cobre (Ostraca Petrie 3 citada em JANSSEN, 1975: 9) é necessário ter em mente a diferença
brutal entre a sociedade egípcia faraônica e a realidade atual e, em paralelo, entre as economias
pré-capitalistas e a universalização proporcionada pelo capitalismo.
É só a partir do aprofundamento do debate teórico (ou metodológico num sentido mais
amplo) e da criação de modelos é que podemos entender as diferenças qualitativas entre o
mundo pré-capitalista e o atual. Afinal, sem um estudo claro do significado econômico do valor
(debate que envolve economistas desde o século XVIII) não é possível entender as trocas, já que
não se constatam os princípios universais de equivalência.
Vejamos como Marx trabalha com o conceito de valor. A princípio, a partir de sua
definição de mercadoria, Marx trabalha com os conceitos de valor de uso e valor de troca. O
primeiro está ligado diretamente à satisfação social de uma necessidade, já...

O valor de troca aparece, de início, como uma relação


quantitativa, a proporção na qual valores de uso de uma espécie se
trocam contra valores de outra espécie, uma relação que muda
constantemente no tempo e no espaço (MARX, 1986: 46).

O processo de troca, portanto, é um processo no qual os valores de uso são abstraídos.


As qualidades específicas das coisas desaparecem para possibilitar a equivalência quantitativa

) 116!
!) )
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) )

entre objetos diferentes. Dito de outra maneira, os trabalhos concretos que produziram cada
uma das coisas são reduzidos a um único tipo de trabalho que, por conta deste caráter, não pode
ter qualquer forma concreta, sendo, assim, trabalho abstrato. Nas palavras de Marx,

Todo trabalho é, por um lado, dispêndio de força de trabalho do


homem no sentido fisiológico, e nessa qualidade de trabalho
humano igual ou trabalho humano abstrato gera o valor da
mercadoria. Todo trabalho é, por outro lado, dispêndio de força
de trabalho do homem sob forma especificamente adequada a um
fim, e nessa qualidade de trabalho concreto útil produz valores de
uso (MARX, 1986: 53).

Para servir como elo de equivalência na troca de dois objetos de trabalhos distintos, o
trabalho abstrato tem que ter um caráter quantitativo. Este é dado, no capitalismo, pelo tempo
de trabalho necessário à produção da coisa.

O valor de uma mercadoria está para o valor de cada uma das


outras mercadorias assim como o tempo de trabalho necessário
para a produção de uma está para o tempo de trabalho necessário
para a produção de outra (MARX, 1986: 48).

A produção dos mesmos objetos pode variar bastante em tempo dentro de uma dada
sociedade. Desta maneira, o tempo individual de trabalho necessário não poderia contar para o
estabelecimento do valor, porque mercadorias iguais produzidas de maneiras diferentes poderiam
ter valores diferentes. Neste sentido, Marx afirma a determinação do valor pelo tempo de
trabalho socialmente necessário. Segundo ele,

Tempo de trabalho socialmente necessário é aquele requerido para


produzir um valor de uso qualquer, nas condições dadas de
produção socialmente normais, e com grau social médio de
habilidade e de intensidade do trabalho (MARX, 1986: 48).

Ao inserirmos a questão do trabalho na determinação do valor surge claramente um


corte na história das trocas relativo ao surgimento das condições necessárias ao aparecimento e
funcionamento do capitalismo. Como modo de produção no qual os trabalhadores sé tem acesso

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às suas condições objetivas de reprodução através da troca de valores, a própria força de trabalho
surge como mercadoria.
Quanto à apropriação do trabalho alheio que, como visto, aparece como uma troca no
capitalismo, Marx afirma:

Não constitui mais surpresa, pois, descobrir que o sistema de


valores de troca – a troca de equivalentes medidos em trabalho –
transforma-se em apropriação do trabalho alheio sem troca, a total
separação do trabalho e da propriedade ou, então, revela esta
apropriação como seu pano de fundo oculto. Pois as regras dos
valores de troca da produção de valores de troca, pressupõem a
própria força de trabalho alheio como valor de troca. Isto é,
pressupõem a separação da força viva de trabalho de suas
condições objetivas; um relacionamento com estas – ou com sua
própria objetividade – como propriedade de outrem (....) (MARX,
1986b: 106-107).

A pergunta que deve ser feita agora é: se a troca de valores baseados no trabalho abstrato
e, portanto, nos tempos de trabalho socialmente necessários é uma característica do modo de
produção capitalista, o que podemos dizer sobre o pré-capitalismo? Ainda que Aristóteles tenha
descoberto a comensurabilidade das trocas, Marx afirma que seria impossível mesmo para um
gênio como ele perceber que a essência desta comensurabilidade era o trabalho abstrato. Tal
impossibilidade dever-se-ia ao caráter diferenciado dos trabalhos na sociedade grega em
consequência da desigualdade entre homens, marcadamente com a escravidão.

O segredo da expansão do valor, a igualdade e a equivalência de


todos os trabalho, porque e na medida em que são trabalho
humano em geral, somente pode ser decifrado quando o conceito
de igualdade humana já possui a consciência de um preconceito
popular (MARX, 1986b: 62).

Da mesma maneira que na sociedade grega, no Egito faraônico não havia uma igualação
em relação ao papel social de todos os trabalhadores. O trabalho da corveia real – fosse ele nos
campos, nas grandes obras ou nas expedições militares – não poderia ser encarado da mesma

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maneira que o trabalho do sacerdote no ritual diário dos templos. A inexistência de um trabalho
abstrato universal para servir como equivalente nas trocas tem que levar os egiptólogos a
pensarem outras explicações para as trocas egípcias. Explicações diferentes daquelas que
projetam em Deir el-Medina um mercado de funcionamento igual a qualquer feira atual.
Reafirmo, desta maneira, a necessidade de mostrar como a discussão teórica é importante
para se ter uma visão explicativa da economia egípcia, uma visão que se livre do estigma da
reprodução ideológica da realidade presente. Neste sentido, é necessária a formulação de
modelos explicativos distintos. Ou seja, por mais que fontes como aquelas referentes às trocas
em Deir el-Medina mostrem relações de compra e venda, não podemos cair no “caminho mais
fácil” de retratar aquela realidade como um mercado proto-capitalista, com distinções
quantitativas de desenvolvimento e entravado por estas, como, por exemplo, a falta de moeda.
A forma que me parece mais interessante para a construção desses modelos das
sociedades pretéritas é aquela que parte da sociedade atual, tratando de apontar claramente as
distinções em vez de ressaltar continuidades justificadoras (ou melhor, naturalizantes!) da
realidade presente (FRIZZO, 2012: 11). Assim, vale como mote a máxima marxiana de que a
anatomia do homem é uma das chaves explicativas para a anatomia do macaco. Só é possível
partir da realidade mais complexa da economia moderna para entender a economia faraônica a
partir de seus contrastes.
Para finalizar, gostaria de fazer uma homenagem declarando que este texto é um tributo
humilde àquele que me ensinou a ser, mais do que um egiptólogo (título que, aliás, me soa
estranho em terras tupiniquins), um historiador e, mais ainda, um professor de História; aquele
que sempre me incentivou a escapar dos caminhos mais fáceis através da leitura de obras de
outros períodos ou disciplinas e que sempre primou pelo debate teórico aliado ao denso
conhecimento empírico. Não acho que este trabalho seja um tributo justo (é provável que fosse
bastante criticado pelo desequilíbrio entre o debate teórico e a demonstração empírica), mas
quero acreditar que segue a vertente provocativa que era peculiar a este meu amigo e professor
que foi Ciro Cardoso, que continua presente, entre outras maneiras, por meio deste trabalho.

Bibliografia

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Parte 4
O Egito e o Mundo Clássico: gênero,
identidade e arte

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IDENTIDADE,(GÊNERO(E(PODER(NO(EGITO(ROMANO(

Marcia Severina Vasques


Dep. de História/CCHLA/UFRN

Resumo: A partir da temática “identidade” e sua aplicabilidade nos estudos sobre Império Romano abordaremos a
questão da identidade social e de gênero no Egito Romano utilizando como documentação material máscaras e
retratos funerários. Defendemos que a identidade social (e de gênero) está associada às redes de poder romanas
estabelecidas no Egito, que interferiam na formação das identidades locais. Escolhemos três áreas distintas para
exemplificar nossa hipótese: Fayum, Médio Egito e Alto Egito.

Abstract: From the theme of "identity" and its applicability in studies of the Roman Empire, we will approach the
issue of social and gender identity in Roman Egypt using equipment such as masks and funerary portraits as material
documentation. We defend that social (and gender) identity is associated with the Roman power networks
established in Egypt, which interfered with the formation of local identities. We chose three different areas to
illustrate our hypothesis: Fayum, Middle Egypt, and Upper Egypt.

Pensar a respeito da identidade ou das identidades dos habitantes do Egito no período


romano é um tema um tanto quanto complexo, assim como a questão de uma identidade de
gênero. Portanto, partiremos inicialmente de uma discussão conceitual sobre a temática
“identidade” e sua aplicação nos estudos sobre Império Romano. Em seguida, abordaremos
como a questão da identidade social e de gênero pode ser discutida a partir da cultura material de
cunho funerário. Como acreditamos que a identidade social (e de gênero) está associada às redes
de poder romanas estabelecidas no Egito, daremos um enfoque regional à nossa abordagem,
pensando, à guisa de estudo de caso, em três áreas distintas: Fayum, Médio Egito e Alto Egito.

Identidade ou Identidades

Após o fim da Guerra Fria e o advento do que se convencionou chamar de globalização,


o debate sobre identidade se intensificou na academia, em parte como resultado do
recrudescimento de grupos separatistas do ex-bloco soviético, mas também como decorrência
anterior dos movimentos pós-coloniais, já presentes com força na década de 70 do século XX.

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Antigas classificações, como o conceito de classe da historiografia marxista, se tornaram,


em grande medida, obsoletas e o pós-modernismo da Nova História Cultural direcionou o foco
dos estudos para a esfera cultural e simbólica (GUARINELLO, 2013: 40). As teorias pós-
coloniais desenvolvidas por autores como Edward Said, Gayatri Spivak e Homi Bhabha, por
exemplo, demonstraram que havia a necessidade de desconstruir o discurso estabelecido, dando
voz aos outros grupos antes excluídos, sejam os pertencentes a sociedades não-ocidentais sejam
aqueles que convivem no mesmo ambiente sociocultural, como as mulheres e os homossexuais.
Com a globalização e os movimentos separatistas tivemos o surgimento de várias
identidades étnicas enquanto as reivindicações das minorias levaram à ampliação de grupos que
se identificam por causas comuns sejam sexuais, ambientais, religiosas etc. Em relação à
identidade étnica, existe o debate entre os defensores da existência de uma identidade natural,
advinda de uma herança biológica comum, da língua e dos costumes compartilhados (os
essencialistas ou primordialistas) e os que reivindicam ser a identidade construída conforme as
necessidades do grupo dependendo, portanto, das condições históricas e sociais.
As ideias de Fredrik Barth (1995) influenciaram sobremedida as discussões a respeito de
etnicidade e identidade cultural. Descartando a hipótese tradicional de que os grupos étnicos se
mantinham por causa do isolamento geográfico e social do grupo, Barth considerou que a
fronteira étnica, isto é, o limite que separa um grupo étnico de outro, é mantida pelo processo
social, o que significa que é a organização social do grupo que define os critérios de inclusão e
exclusão dos indivíduos. Assim, as fronteiras étnicas não são imutáveis, já que como a forma de
organização social pode mudar, o mesmo ocorre com os fatores que marcam a diferenciação
étnica. Neste sentido, a mobilidade e o contato social entre grupos diferentes não impede a
manutenção da diversidade dos grupos étnicos.
A linguagem, a religião e as formas culturais podem servir de reforço para a identidade
étnica, mas a noção de etnicidade é social e construída através do discurso. Por esta visão, a
etnicidade é uma consciência da identidade de um grupo em relação a outros grupos e as
categorias étnicas que os distinguem são atribuídas pelos próprios atores envolvidos. A
consciência da etnicidade só emerge no contexto da interação social entre pessoas de diferentes
tradições culturais (JONES, 1999: 226).
Portanto, na perspectiva atual, os grupos étnicos são um fenômeno dinâmico. Os limites
ou as fronteiras entre os grupos étnicos e a identificação dos indivíduos que os compõem podem
variar no tempo e no espaço e resultam, com frequência, de uma estratégia de manipulação da
identidade conforme a relação política e econômica.

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A formação da identidade se dá pelo embate de um grupo contra outro, ou seja, pelo


critério da alteridade. Tais discussões tão contemporâneas influenciam na maneira como
observamos o passado, como analisamos nossas fontes. Nos estudos sobre o Império Romano
tem ocorrido um grande debate acerca do que era ser romano e não romano. Richard Hingley,
David Mattingly e Louise Revell, por exemplo, têm se dedicado a essa discussão. As mesmas
questões que debatemos atualmente em um mundo globalizado servem para questionarmos a
Antiguidade.
Mattingly (2011: 206) considera que, na sociedade romana, não podemos dissociar a
identidade da questão do poder. A criação das identidades provinciais estava diretamente
relacionada a uma negociação de poder entre os romanos e os povos conquistados. Neste
sentido, a identidade étnica surge como uma estratégia de manutenção de poder e de status social.
As sociedades coloniais poderiam, conforme o contexto, demonstrar similaridades ou
discordâncias culturais em relação ao modelo imperial romano (MATTINGLY, 2011: 213). A
identidade pode ser múltipla e redefinida a cada momento. Portanto, não existia uma categoria
dicotômica entre nativos e romanos, pois este modelo de divisão binária não consegue explicar a
complexidade das relações sociais em casos de colonização e domínio territorial.
Quando refletimos acerca da cultura material notamos que ela também é dinâmica
podendo ser usada ativamente na justificação e manipulação das relações entre os grupos. Numa
visão própria da arqueologia pós-processual (JONES, 1997: 113; HODDER, 1990) o estilo da
cultura material não é analisado mais apenas do ponto de vista funcional, mas, sobretudo,
simbólico e mediador de relações sociais (WIESSNER, 1990). Sîan Jones retoma o conceito de
habitus de Pierre Bourdieu para assinalar que a expressão da etnicidade por meio da cultura
material está associada às disposições estruturais do habitus, que permeia todos os aspectos das
práticas culturais e as relações sociais que caracterizam um modo particular de vida (JONES,
1997: 120). Conforme o contexto, alguns estilos podem ser mantidos e outros podem cruzar as
fronteiras étnicas. Podemos obter uma melhor compreensão do modo pelo qual a evidência
histórica e arqueológica pode ser usada na análise das etnicidades passadas se levarmos em
consideração o processo envolvido na construção da identidade étnica.
Nos estudos sobre a relação entre Roma e as suas províncias a cultura material pode
espelhar tanto os mecanismos de estruturação do poder de uma sociedade explorada e subjugada
por outra quanto a identidade ou identidades que os indivíduos ou grupos envolvidos queriam
demonstrar num dado momento histórico. Vários autores têm enfocado o papel das elites locais
na manutenção e perpetuação do poder romano em nível regional. A cultura romana era um
foco de competição (JONES, 1997: 35) e era interessante à elite a “adoção” do modo de vida

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romano. Na prática, os vários setores da sociedade reagiam de modo diverso ao domínio


romano. Existiam diferentes respostas a Roma, que ia da integração à resistência e o próprio ser
“romano” variava conforme os grupos.
Fazia parte da estratégia romana de dominação a cooptação das elites locais, que, ao
colaborarem com o governo romano, obtinham vantagens sendo a principal delas a aquisição da
cidadania romana. Esta colaboração das elites tem sido vista de maneira distinta pelos
historiadores. Atualmente, o termo “Romanização” tem sido colocado em xeque por alguns
historiadores e arqueólogos, como David Mattingly (2011), que acredita ser este um conceito
reducionista, que não dá conta de explicar toda a complexidade das relações sociais entre Roma e
os povos conquistados exatamente porque as categorias de definição do conceito são de
oposição binária entre nativos e romanos. Segundo Lomas (1998: 74) a relação entre as elites
nativas e os romanos era dialética e se mantinha num jogo de poder e de interesses mútuos.
Havia um diálogo entre as elites locais e o poder central, essencial para a manutenção da
estrutura imperial.
Para pensar estas relações sociais no contexto do Império Romano Mattingly propõe
uma abordagem que seja balanceada entre o estudo local das identidades e a análise global,
estrutural da sociedade imperial romana. As ideias de Mattingly assemelham-se, neste aspecto,
àquelas desenvolvidas por Louise Revell (2009), que propõe uma análise do aspecto global
combinado às especificidades da identidade local. Revell aplica a teoria de Antony Giddens ao
buscar conciliar a análise do local, da questão do indivíduo, à totalidade das estruturas sociais.
A cultura material pode retratar várias identidades culturais, pois o seu significado
depende do contexto e a leitura da imagem do ponto de vista do observador. Por exemplo, era
interessante aos imperadores romanos serem retratados como faraós nos relevos dos templos
egípcios. A sua representação iconográfica dependia do contexto e da situação histórica dada. O
poder atua como um fator de criação de cultura e de identidade. Mesmo as construções romanas
como os anfiteatros, teatros e termas só são aparentemente derivadas de uma cultura
homogênea, pois estavam sujeitas a interpretações variadas.
Os retratos e as máscaras de múmia deste período demonstram que os indivíduos
poderiam transitar em várias esferas culturais e serem considerados egípcios, romanos ou gregos
conforme o contexto. O mesmo indivíduo durante sua vida poderia ter várias identidades, que
podem ser identificadas na cultura material por meio de certas características específicas como a
vestimenta, o tipo de cabelo e símbolos religiosos. Outros dados provenientes do contexto
arqueológico também colaboram para tal análise, como é o caso do tipo de sepultamento, da

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estrutura das tumbas, as oferendas funerárias depositadas etc., os quais revelam informações
sobre as crenças funerárias envolvidas.
Uma interessante abordagem sobre contatos culturais no mundo antigo, pelo viés da
arqueologia, tem sido colocada por Philipp Stockhammer (2012: 1). Este autor propõe a
substituição do termo hibridização por emaranhamento (entanglement), já que o primeiro deriva
dos estudos pós-coloniais e não estaria totalmente definido. O termo hibridização é utilizado
para caracterizar fenômenos que são facilmente detectados como "borderline" ou nas “margens”
ou “fronteiras”, mas que não são facilmente explicáveis.
Os estudos pós-coloniais se dedicaram a explicar o “outro”, sobretudo na perspectiva da
análise literária. A cultura é considerada como inerentemente híbrida, já que sempre houve
contato cultural decorrente da circulação de pessoas, de ideias, de artefatos, signos. Esta cultura é
o local de conflito entre representações de identidade e diferença. Como a teoria pós-colonial
surgiu a partir de sociedades coloniais, que saíram recentemente do domínio estrangeiro,
sobretudo europeu, a ideia de conflito é essencial ao seu desenvolvimento. Por tal razão,
Stockhammer acredita que o conceito de hibridização está permeado pela discussão de poder, de
conflito e não serve, portanto, para explicar todo caso de contato cultural entre sociedades
distintas.
Segundo Ackermann (2012: 12),! Homi Bhabha teria se apropriado de uma parte do
conceito de hibridização de Mikhail Bakhtin, mas não dele como um todo. Bakhtin teria
desdobrado sua interpretação de hibridização em dois vieses: a intencional e a orgânica. A
hibridização orgânica seria aquela não intencional, inconsciente, quando observamos a fusão de
vários elementos culturais na vida cotidiana, quando ocorrem apropriações miméticas, trocas e
invenções. A hibridização "intencional" é o resultado de um contraste consciente e oposições em
um único discurso, quando uma voz é capaz de desmascarar o discurso da autoridade. Na
hibridização intencional os dois pontos de vistas não estão misturados e sim um contra o outro
dialogicamente.
Quando tratamos de Império Romano a questão do poder não pode ser deixada de lado.
Neste sentido, concordamos com a opinião de Mattingly (2011), que é importante considerar a
estrutura e o contexto local. Mas um aspecto da teoria defendida pelo grupo de Stockhammer na
Universidade de Heildelberg nos interessa em particular, pois os chamados emaranhamentos
podem ser considerados a partir de um ponto de vista espacial. Grandes cidades são um
potencial para emaranhamento, assim como áreas de porto, de fronteiras, de contatos comerciais
e culturais.

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Nos estudos arqueológicos os processos de emaranhamentos podem ser observados de


duas maneiras: a cultura material pode ela mesma ser “emaranhada” ou ter apenas o seu uso, ou
seja, as práticas sociais emaranhadas (STOCKHAMMER, 2012: 43). Como sabemos se um
objeto é ou não “emaranhado”? Para tanto, deveremos retomar o conceito de cultura
arqueológica proposto pela Arqueologia Histórico-cultural. Primeiramente, precisamos saber
qual a tradição de confecção de determinado tipo de artefato para saber como ele mudou no
decorrer do tempo e se o contato com outras culturas teve alguma influência nesta alteração.
Estamos considerando estas entidades (a cultura arqueológica) do ponto de vista ético, externo,
do pesquisador. Por isso, usamos de modelos analíticos, sem os quais nossa análise não poderia
ocorrer.
Stockhammer (2012: 50)! usa as expressões “emaranhamento relacional” e
“emaranhamento material” para distinguir entre objetos emaranhados, aqueles que sofreram
alteração após o contato cultural e aqueles que permaneceram morfologicamente idênticos, mas
tiveram o seu uso reapropriado, ressignificado. Este último caso é o emaranhamento relacional,
pois foram as relações sociais que se alteraram, mas não o objeto em si.
No processo de “emaranhamento material” temos o desenvolvimento dos objetos
emaranhados, que está associado ao processo de "criação material". Um objeto é criado, novo,
combinando o familiar com o estrangeiro. Ele não é o resultado de uma continuidade local, mas
das trocas com o outro. Mesmo que um objeto tenha perdido seu contexto de origem, e,
portanto, perdemos a informação da prática social, ele pode ser identificado como um objeto
emaranhado, uma evidência de emaranhamento na arqueologia. É importante sabermos qual o
processo final de apropriação e criação. Este processo pode resultar em contínuas
reinterpretações, incorporações, manipulações e criações.

Egito Romano
Ao refletirmos sobre o Egito Romano e, em especial, sobre a cultura material funerária
defendemos a hipótese de que a intensificação dos emaranhamentos pode ser medida pela
espacialidade, pelas redes de poder romanas estabelecidas em território egípcio. Não acreditamos
que houve uma influência proposital romana na religião funerária egípcia, mas sim que os
elementos culturais romanos e também gregos, derivados da época ptolomaica, podem ser
verificados na iconografia de determinados artefatos como as máscaras, os caixões, as
cartonagens e os retratos funerários sendo, portanto, exemplos do que Stockhammer (2012: 43)
chamou de emaranhamento material.

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Partindo da premissa de que as diversas respostas a Roma devem ser testadas no âmbito
local, no caso do Egito Romano a proximidade de Alexandria, do poder central romano, trazia
uma influência mais direta de elementos culturais de origem grega e romana. Quanto mais
próximos do poder central mais direta é a influência: em primeiro lugar de Alexandria e
evidentemente do Delta egípcio; em segundo lugar, do Fayum e, em terceiro, do Médio Egito.
Estamos considerando que houve adaptações da cultura autóctone em resposta à ação romana.
Trocas e reciprocidades culturais e mesmo atitudes de resistência podem ser observadas nos
aspectos da cultura material por todo o Egito. No entanto, acreditamos que as redes de conexão
ao poder central devam ser consideradas. Podemos considerar o Egito Romano como dividido
em áreas que servem a nossa análise das redes de conexão. Segundo o modelo teórico utilizado,
as áreas mais propícias ao contato e às trocas culturais são aquelas situadas próximas ao Mar
Mediterrâneo, na costa marítima, portanto, na região do Delta egípcio.
Os emaranhamentos que procuramos perceber na cultura material funerária podem estar
relacionados à identidade social do morto, assim como a sua identidade individual. A questão de
gênero não pode, então, estar desvinculada da esfera social, já que existiam papeis a cumprir.
Existia um padrão de iconografia para mulheres e homens, que poderia variar conforme o
suporte material. Mas notamos, conforme a localidade e também o período, que houve uma
alteração, por exemplo, no modo de confecção das máscaras funerárias, do período ptolomaico
até o século III d.C., quando a diferenciação de gênero tornou-se mais presente, assim como as
características individuais. Atualmente, a hipótese mais aceita considera a existência de oficinas
de produção de máscaras e retratos, o que indica que eram feitos em série havendo, portanto, um
repertório figurativo à disposição do comprador.
Segundo a concepção egípcia, após a morte, os vários elementos que compunham a
parte “espiritual” da pessoa se separavam. É o caso do Ka, do Ba, do Akh, da sombra e do nome.
O Ba era um tipo de alma representada com corpo de falcão e cabeça humana e, às vezes, com
braços. O Ka era outro componente da pessoa que teria sido criado juntamente com o corpo.
Era retratado como um par de braços erguido em posição vertical. Era o Ka que se incorporava
às imagens do morto e recebia as oferendas na tumba. Toda representação do morto seria,
portanto, uma “estátua” Ka. Akh era o espírito glorificado, era o aspecto do morto no qual ele
deixava a morte e era transfigurado num ser de luz, associado com as estrelas. Ele não é um
elemento, pois indica um estado; o indivíduo se torna um Akh quando glorificado, estágio que
alcança somente aquele que viveu segundo Maat. Enquanto o Ba e a sombra fazem parte da
esfera corporal, física do morto, o Ka e o nome pertencem à esfera social (ASSMANN, 2003:
34). O ritual de mumificação cuida da esfera corporal do morto e está associado às divindades

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funerárias como Ísis, Néftis e Anúbis. Já o nome e o Ka eram preservados pela esfera social e
estavam associados a Hórus, o filho que deveria prover as oferendas para o seu pai (o morto
como Osíris) e zelar pelo seu nome entre os vivos.
A visão tradicional da religião funerária egípcia continuou em outros períodos históricos,
sofrendo readaptações conforme as condições sociais. Pensando nesta continuidade e também
nos emaranhamentos propomos, para o Egito Romano, a seguinte análise:

• Identidade social: predomínio do status social de uma elite local que se espelhava em
Roma e nos costumes (penteados, vestimentas, joias etc.) em voga na casa imperial. O ka
enquanto representação do morto poderia, enquanto imagem, ser representado conforme
a influência de elementos gregos e romanos. O emaranhamento material variava
conforme a região do Egito e a sua proximidade com Alexandria.
• Identidade individual: a esfera física precisava ser pautada na iconografia egípcia
tradicional, pois as imagens dos deuses, dos amuletos e de outros símbolos possuíam um
valor mágico e não podiam ser alterados. O ba aparece na sua figuração tradicional e se
manteve a mumificação do cadáver, elemento necessário para a união do ba com o corpo
durante a trajetória noturna do sol. Para os egípcios, Rê, divindade solar, quando é noite
na superfície da terra, navegava com a sua barca no Mundo Inferior, iluminando os
mortos e fazendo-os acordar. É quando o ba voltava à tumba para junto de seu corpo
mumificado.

Como afirmamos anteriormente, a identidade de gênero não está desvinculada da esfera


social. No Egito faraônico normalmente era o homem, como chefe da família, quem recebia os
cuidados necessários para seguir sua trajetória post-mortem com a preparação de uma tumba, do
mobiliário funerário e dos textos litúrgicos. Dessa forma, os textos funerários foram,
essencialmente, elaborados para homens. Ao que parece, a garantia de uma vida no Além ao
homem serviria como “salvação” do restante da família, mulher e filhos. No entanto,
observamos, já no Médio Império, adaptações dos textos funerários para mulheres que tinham
uma posição social de destaque.
No período romano era comum que as mulheres aparecessem nos textos funerários
como sendo identificadas à Háthor. Assim, se colocava o nome da deusa seguido daquele da
morta, da mesma forma que se fazia com o nome de Osíris, colocado diante do nome do
falecido. A deusa Háthor tinha um importante papel como divindade funerária no Egito, sendo a
protetora da necrópole tebana, além de ser uma deusa associada ao feminino (sexualidade,
maternidade, fertilidade) em vários aspectos. Já na iconografia do período faraônico as mulheres
aparecem vestidas com suas vestimentas de linho, joias, perucas, colar menat, espelho e sistro,
objetos associados à deusa, que aparecem normalmente em cenas de banquete de tumbas

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privadas do Novo Império, mas também em outros suportes como estelas funerárias, por
exemplo.
Podemos notar também que, no caso das mulheres, houve uma influência do culto de
Ísis que se desenvolveu no Egito, mas também por todo o Império Romano como o princípio
do feminino. Ísis já fazia parte do culto funerário egípcio como esposa e irmã carpideira de
Osíris, em par com Néftis. No entanto, a sua aproximação cada vez maior com Háthor, na Baixa
Época, fez com que ela incorporasse, na sua iconografia, elementos dessa deusa como o sistro e
o disco solar entre os cornos de vaca.
Em relação à representação feminina, em lugares como o Fayum, por exemplo, notamos
uma influência maior de elementos gregos e romanos na representação, sobretudo no decorrer
dos séculos I e II d.C. O Fayum foi uma importante área de colonização greco-macedônica no
Egito. Provavelmente, uma área onde o emaranhamento material pode ser notado de forma mais
evidente.
Em muitas máscaras e retratos funerários femininos do Fayum notamos que a vestimenta
e joias típicas do Império Romano aparecem na iconografia da face e do peitoral. As
representações tipicamente egípcias permanecem na lateral das máscaras e nas cartonagens que
cobrem a múmia (os envoltórios corporais). As mulheres são representadas usando uma túnica e
manto e os cabelos seguem a moda usada pelas imperatrizes e mulheres da casa imperial romana.
Nas representações masculinas os homens também aparecem usando túnica com clavus, sendo
que os soldados aparecem retratados com o balteus, o cinturão próprio dos militares. Nos retratos
pintados notamos também a representação de efebos, que são retratados como frequentadores
dos gimnasium com o peito nu, imberbes e portando, sobre a cabeça, uma coroa de louros.
Quando pensamos na distribuição territorial do Egito podemos perceber que o Médio
Egito, sobretudo Antinoópolis, cidade fundada por Adriano em 130 d.C. e Hermópolis Magna,
era um local estratégico para o domínio romano, ponte de ligação com o Alto Egito. Os retratos
funerários do Médio Egito provavelmente derivam da tradição advinda do Fayum. Por outro
lado, as máscaras funerárias de Tuna el-Gebel, por exemplo, evidenciam a transição entre os
elementos do Delta e do Fayum com aqueles de Akhmim e Meir, cidades que faziam o elo de
ligação do Médio com o Alto Egito.
No Alto Egito os elementos egípcios tradicionais são mais marcantes na iconografia
como é o caso, por exemplo, do mobiliário funerário da família de Cornelius Pollius Sóter, que
foi arconte de Tebas no governo de Trajano (98-117 d.C.). Sóter era filho de uma egípcia,
chamada Philous, com um romano (Cornelius Pollius), cuja mãe era, por sua vez, também
egípcia (de nome Esoéris) e, o pai, romano. Podemos notar, ao analisar esta documentação, que

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os membros da família Sóter, apesar de possuírem cargos administrativos importantes no


governo romano, estavam profundamente arraigados na tradição egípcia. Isto pode ser
comprovado tanto pela presença de inscrições em hieróglifo e demótico como pelo tipo
característico do material funerário. Nos sudários e caixões as mulheres possuem os cabelos
parecidos com os das máscaras femininas encontradas em Deir el-Medina e Deir el-Bahari. As
figurações femininas possuem a cabeleira típica de Háthor encontrada em outras divindades
femininas como Nut, a mãe de Osíris e, por associação, do morto identificado ao deus,
representada no fundo do caixão de vários membros desta família. A região tebana foi um
importante foco de resistência ao poder romano e, antes deste, ptolomaico.
Foi no Alto Egito que ocorreram importantes atos de resistência contra o domínio
estrangeiro, provavelmente porque esta região teve destaque e proeminência no período
faraônico e estava mais propensa a preservar a tradição local e lutar pela independência. Após a
morte de Ptolomeu IV, a Tebaida foi governada por faraós locais, o primeiro de nome
Haronnophris e, o segundo, chamado Chaonnophris, entre 204 e 186 a.C.. Outra revolta na
Tebaida ocorreu em 88 a.C., sob Ptolomeu IX Sóter II. E a última rebelião na região ocorreu no
início do período romano, em 29 a.C., sob o prefeito Cornelius Gallus. Outra forma de
contestação ao domínio estrangeiro, não tão contundente, mas não menos importante, eram os
textos que pregavam a volta de um faraó nativo. As “Crônicas Demóticas” eram provenientes do
meio sacerdotal de Ehnas, então Heracleópolis Magna, cidade do deus-carneiro Herishof. Outro
texto que circulava era o “Oráculo do oleiro”, escrito em grego e proveniente da região de
Elefantina, sede do deus Khnum. Embora estes textos fossem comuns nos períodos ptolomaico
e romano, provavelmente sua origem remonta à época que os persas dominaram o Egito
(GOUDRIANN, 1998: 108).
Em conclusão, acreditamos que possamos analisar a documentação material funerária
egípcia, sob o viés da identidade social e de gênero, a partir da verificação das redes de poder
romano em território egípcio. Assim, Alexandria e o Delta, por sua localidade às margens do
Mediterrâneo, estariam mais propensos aos emaranhamentos culturais (e também materiais)
enquanto o Fayum formaria o elo de ligação com o Médio Egito e este, por sua vez, com o Alto
Egito. Esta hipótese é a que defendemos no momento. No entanto, sabemos que são
necessários estudos mais aprofundados para a sua consolidação.

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“E(ME(TRAGA(ESSA(CARTA(DE(VOLTA”.(AS(CARTAS(AOS(
DEUSES(E(OS(ESTUDOS(DE(GÊNERO(NO(EGITO(
PTOLOMAICO.(CONTRIBUIÇÕES(DA(ANTROPOLOGIA(
Thais Rocha da Silva
Departamento de Letras Orientais – FFLCH/USP
Seshat – Laboratório de Egiptologia do Museu Nacional – UFRJ

Resumo: O pequeno número de cartas de mulheres e para mulheres em demótico praticamente


justificou o abandono do tema do gênero entre demoticistas. As cartas aos oráculos quando
associadas a conceitos importados da antropologia, potencializam novas percepções sobre o
gênero. Pretendo discutir essas articulações e apontar possibilidades para formulações a respeito
do gênero na sociedade ptolomaica.

Abstract: The small number of letters written and address by/to women practically justified the
abandonment of gender studies by demoticists interested in letters. When seen through the
anthropological perspective, letters to the oracles may potentialise new perceptions on gender.
We seek to discuss these articulations and present some possibilities for the understanding of
gender formulations in Ptolemaic society.

J’ai posé les écrits devant ce grand dieu, pour qu’ils les juge par un bon jugement17

As cartas egípcias produzidas em demótico constituem um corpus importante para o


estudo de diversos aspectos da vida dos indivíduos durante o período ptolomaico. Muitos desses
estudos, contudo, foram realizados sob o prisma da papirologia que, para o bem ou para o mal,
se concentraram em análises formais e filológicas. Ainda que pese a importância dessas
perspectivas, é necessário destacar outros aspectos que envolvem as fontes epistolográficas.
O trabalho de Mark Depauw (2006) sobre as cartas demóticas permitiu organizar e
vislumbrar o status desse campo de estudo18 e o periódico Enchoria apresenta anualmente a
listagem completa das publicações no Literaturübersicht sobre o material em demótico. Esse tipo
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
17 P. Turin 12 6, 3-4 in ČERNY, 1962: 8
18 Ebeid (2012) fez uma atualização de oito documentos que foram publicados desde o trabalho de Depauw.
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de sistematização permitiu levantar algumas questões sobre como as cartas foram estudadas
desde a retomada dos estudos demóticos na década de 1970 (DEPAUW, 1997; SILVA, 2013).
As cartas são documentos relacionais e materializam a comunicação de partes que estão
separadas19. No caso do Egito antigo, a natureza desse tipo de comunicação é muito diversa e há
termos distintos para designar “carta”, que tendem a ampliar nossa percepção sobre o uso desses
documentos (BAKIR, 1970; SWEENEY, 2001). Levando em conta o caráter mágico da escrita
egípcia, podemos (e devemos) dilatar as percepções e entendimentos da documentação
epistolográfica tanto para o estudo das relações entre os indivíduos entre si, mas também com o
mundo sobrenatural.
Os egiptólogos interessados na chamada “piedade pessoal”, utilizaram modestamente as
cartas como fontes primárias. A maior parte das pesquisas sobre o tema se baseou em material
arqueológico, com poucas exceções (principalmente BAINES, 2001; ZAUZICH, 2000;
WENTE, 1991).
Os estudos sobre as cartas egípcias contemplam principalmente textos encontrados em
Amarna (SILVERMAN, 1991), Saqqara, El-Lahun (WENTE, 1991), Deir el-Medina, Medinet
Habu (WENTE e CERNY, 1967; JANSSEN, 1991), Deir el-Bahari, Elefantina, Tebas, mas com
poucos sobreviventes.
É difícil quantificar ou especular sobre a quantidade de cartas produzidas pela sociedade
egípcia, mas a grande maioria dos documentos provém do Médio Império e não foram
sistematicamente traduzidos. Parte do material do Novo Império teve traduções dispersas (cf.
SWEENEY, 2001: 7, 8, WENTE, 1991) e elas parecem apontar para um tom mais pessoal.
Para a literatura feminista, as cartas foram utilizadas como fontes primárias num esforço de
afirmar a posição das mulheres na sociedade (DAYBELL, 2006; SWEENEY, 2001; STAVES,
2006; CHEDGZOY, 2007; SAUNDERS, 2009) o que, por muito tempo, deu a falsa impressão
que as mulheres teriam nas cartas um instrumento (quase universal) de emancipação e expressão
pessoal. Esse tipo de abordagem apresenta dois principais problemas. O primeiro deles, já
apontado pelos estudos de gênero, é a ideia de uma opressão universal das mulheres, tema que já
foi exaustivamente discutido e que terminou com a desconstrução da categoria “mulheres”. O
segundo aspecto está baseado em noções a respeito da ideia de indivíduo e privacidade
circunscritas à sociedade burguesa anglo-americana dos séculos XIX e XX que não podem ser
transpostas para as sociedades antigas.
Não se trata, contudo, de discutir se os antigos egípcios tinham ou não a ideia de indivíduo

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
19 Sobre isso ver Epistolomaioi Characteres. Translated by A.J. Malherbe. Ancient Epistolary Theorists. SBL 19 (1988):
66-67 in Vandorpe, K. “Archives and Letters in Graeco-Roman Egypt.” in Pantalacci, 2008, p.155.
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no sentido moderno do termo. Trata-se do reconhecimento de que havia uma individualidade


contextualizada, que permitiu, por exemplo, a constituição de uma vasta documentação
funerária20. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer a existência de mensagens pessoais na
documentação epistolográfica, mas que não podem ser anacronicamente entendidas como traços
de “intimidade” ou ideias de “autoria”. Baines (2001: 8) preferiu utilizar o termo “protagonista”,
levando em conta que as mensagens poderiam ser redigidas por diversas mãos e portanto a
identificação de um autor em particular seria dificultada.
Do ponto de vista formal, Depauw (2006) ao estudar as cartas demóticas escritas para o
sobrenatural classificou esses documentos como cartas fictícias. Assumindo que o destinatário
não teria como responder a mensagem, fosse o deus ou o morto, as cartas deixariam de ser
“reais”. Esse tipo de classificação parece menosprezar o aspecto mágico da escrita egípcia,
justamente como um intermediário entre os dois mundos, sendo também capaz de transformar o
imaterial em material.
Os egípcios tinham diversos tipos de “cartas” e não há consenso sobre as definições e
traduções dos termos. 21 !Na epistolografia demótica o problema é semelhante, pois a
documentação parece ter mudado pouco em relação a tradições anteriores.
As cartas demóticas ao sobrenatural foram divididas por Depauw em 3 grupos: as questões
oraculares, as cartas aos deuses, aos mortos e as chamadas “cartas de recomendação”, cada qual
com um contexto específico.
As questões oraculares têm como princípio a busca da divindade para que o indivíduo
baseie sua conduta (DEPAUW, 2006: 301). Baines (1987: 89) lembra também o aspecto
profilático dos oráculos e da comunicação com os mortos como um tipo de resposta a aflições
cotidianas. Documentos desse tipo são comuns no Egito desde o Novo Império e perduraram
no Egito cristão e islâmico. No que diz respeito aos aspectos formais, é difícil determinar em que
medida esses textos em demótico são cartas. Depauw enfatiza a natureza problemática dessas
fontes, lembrando a ausência do endereço externo, já que eram possivelmente entregues nos
templos aos sacerdotes, em contraste à presença do endereço interno.22 Além disso, poucas
foram dobradas e seladas, como ocorreu com outras cartas (DEPAUW, 2006: 302).
As cartas aos mortos eram textos endereçados a santos ou divindades em que o remetente

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
20 Sobre isso ver Frood (2007) em que a autora discute a existência de biografias no Egito antigo pensando na auto-
representação. No caso da documentação funerária, Frood (2007, p. 3) destaca que o uso da primeira pessoa é uma
ficção já que tem por objetivo evocar a presença do morto na tumba. No caso da documentação epistolográfica não
se trata de uma ficção, uma vez que a presença de quem elabora a mensagem (por escrito ou não) é explicitada na
mensagem.
21!Sobre a classificação das cartas ver Bakir, Sweeney, Depauw, Wente, principalmente.
22 Há nessas fontes a identificaçao do endereço interno, com o nome do remetente e a divindade evocada.

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faz algum tipo de reclamação e pede interferência em seu favor (DEPAUW, 2006: 307). Há
documentos desse tipo desde o Antigo Império (fim do terceiro milênio a.C.) até o séc. VII d.C.
(DEPAUW, 2006; DONNAT, 2010), sendo que a maioria delas data do Primeiro Período
Intermediário. Esse tipo de ocorrência pode estar relacionado a uma “crise” de uma “cultura
formal” (DONNAT, 2010: 70) em que os indivíduos poderiam experimentar outras
manifestações de escrita.23 O aspecto epistolar nessas fontes em demótico é mais evidente do que
nas questões oraculares, sobretudo nas formas de saudação. Nos textos demóticos, a
identificação do remetente é em geral feita na formulação “voz do servo A diante de D” ou
“diante de D” e eles possuem endereço interno, mas somente duas com o externo (DEPAUW,
2006: 309-310) .
Do ponto de vista dos conteúdos, as cartas aos deuses diferem pouco das questões
oraculares: roubos, trabalho agrícola, negócios. Há semelhanças formais e formulares nos textos
oraculares e jurídicos desde o período faraônico, o que pode em parte justificar a atenção dada
ao material pelos demoticistas, cuja tradição está calcada na papirologia, disciplina que nasceu
pelo interesse nos documentos legais (ver ČERNY, 1962; SILVA, 2013). As cartas aos deuses só
aparecem no Egito por volta do fim do primeiro milênio a.C., o que possivelmente pode ser
justificado por um processo gradual de individualização das relações com o divino.
Já as cartas de recomendação eram textos colocados junto às múmias e que continham
recomendações para o outro mundo. Esses textos, contudo, não podem ser incluídos na
documentação epistolar e são vistos mais como amuletos do que como cartas, tanto pelo
conteúdo das mensagens, como pelo tipo de suporte – pequenas tiras de papiro junto às múmias.
Além do mais, como afirma Depauw, o destinatário e o remetente não estão espacialmente
separados.
Para este artigo foram selecionados duas cartas do período ptolomaico aos oráculos, os
papiros P. Carlsberg 428 e P. Berlin 23544. A escolha desses textos leva em conta dois aspectos
importantes que pretendo discutir em conjunto: a relação entre os estudos de gênero e as
práticas oraculares no Egito. A percepção dos demoticistas a respeito do gênero parece ter
colocado os textos oraculares sob uma perspectiva estritamente ligada aos estudos da religião24.
Ao mesmo tempo, os trabalhos sobre os oráculos do período faraônico não exploraram o tema

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
23!De acordo com Moreno Garcia (2010: 139) as cartas aos mortos também faziam parte de um novo tipo de
registro em que a escrita confere prestígio, através da escrita, nos cultos domésticos. Os mortos eram também
considerados parte da família extendida e portanto, tinham condição de interferir nos assuntos familiares a fim de
garantir a harmonia dos vivos.
24 Ver o site Trimegistos com o histórico da produção historiográfica sobre os textos em demotico.

(http://www.trismegistos.org/dl/search.php).
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do gênero, 25 mas ficaram circunscritos a descrições baseadas nas traduções dos óstracos
(principalmente) e em análises iconográficas (BLACKMAN 1925; 1926; ČERNY, 1935; 1942;
1962; 1972).
As práticas oraculares no Egito ficaram conhecidas para nós graças aos relatos de
Heródoto e evidências posteriores do período romano, como os textos de Apuleio, por exemplo.
Heródoto menciona os oráculos dedicados aos animais, mas não há fontes egípcias que
comprovem essa afirmação (ČERNY, 1972). O número de publicações sobre o tema é limitado
e se concentra principalmente em dois períodos, o Novo Império (óstracos em hierático) e o
período greco-romano, com textos em grego e demótico (RYHOLT, 1993). Os textos em copta
para períodos posteriores são mais raros.
Para os egípcios, os oráculos serviam como verdadeiros guias e tinham uma enorme
importância para a tomada de decisões de todos os tipos, chegando a influenciar a escolha de
altos cargos, inclusive dos faraós, como fez Hatshepsut ao evocar o oráculo do deus Amon para
legitimar o seu reinado. No Egito antigo, há indícios de que as práticas tenham se desenvolvido
em períodos mais tardios, principalmente a partir do Novo Império (BAINES, 1973; ČERNY,
1962; VALBELLE e HUSSON, 1998; GEE, 2002; STADLER, 2008).
Não se sabe exatamente como funcionavam os oráculos egípcios. As fontes nos informam
mais sobre as consultas realizadas pelos faraós, mas pouco se sabe sobre as consultas dos grupos
menos privilegiados. Os reis tinham acesso direto aos templos e podiam consultar os deuses em
seus santuários, que eram áreas restritas. Todavia, muitas dessas consultas foram realizadas pelos
faraós em festas públicas, como o Festival Opet, por exemplo (ČERNY, 1962: 36).
As pessoas comuns, por outro lado não tinham acesso direto aos templos. Restava-lhes
duas opções: a primeira era a dependência do sacerdote como intermediário para entregar as
perguntas e dar a devolutiva das respostas; a outra oportunidade era durante as festas onde a
estátua do deus vinha a público em procissões. Durante o Novo Império, há registros de que
estátuas das divindades poderiam agir como intermediários dos indivíduos que quisessem
consultar os oráculos (BAINES, 1987: 90). Aparentemente, tais estátuas eram uma referência de
que havia indivíduos agindo como intercessores diante dos deuses em períodos anteriores
(Idem), mas isso é apenas uma possibilidade. Contudo, é possível ver uma continuidade entre as
práticas oraculares, as ações intermediárias dos indivíduos e os festivais públicos no que diz
respeito ao exercício de se comunicar com os deuses.
A vila de Deir el-Medina apresenta indícios de pequenos santuários dedicados ao deus
Amon e parte das fontes indica a participação das pessoas em procissões e consultas públicas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
25 Com exceção de Sweeney (2008) que estudou as práticas oraculares em Deir el-Medina sob a ótica do gênero.
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durante os festivais (ČERNY, 1962: 40-41).


No que diz respeito aos festivais públicos, é preciso considerar a performance como um
elemento central. A estátua do deus, trazida a público dentro do tabernáculo,26 era encarregada
de responder as questões apresentadas pelos participantes. Algumas fontes indicam que a
resposta poderia ser limitada a um simples “sim” ou “não” (ČERNY, 1962: 43), mas não
sabemos como era feita essa aprovação (ver ČERNY, 1962: 43-45).
No que diz respeito às fontes demóticas, não está claro como essa resposta era obtida. A
ideia de “trazer a carta de volta” parece indicar, de acordo com Černy:

“that here either too versions, one positive and other negative, or
two slips, one written and the other blank, were submitted to the
deity, perhaps in a vessel from which the answer was then drawn”
(1962: 47).

As imagens a respeito dos oráculos revelam pouco sobre o processo. Os sacerdotes


conduziam a estátua do deus e se moviam para indicar a vontade divina (STADLER, 2008). De
acordo com Černy (1962: 44), os sacerdotes movimentavam-se para trás para negar e para a
frente para dizer “sim”, o que parece ser reforçado por algumas imagens sobre os oráculos,
como por exemplo a de Amenhotep I na tumba de Amemnose, na XX dinastia.
No caso das perguntas feitas por escrito, aparentemente as respostas eram apresentadas da
mesma forma, o deus “pegava com as mãos” a mensagem e então a estátua do deus se movia
para a frente ou para trás. Durante o período faraônico, é possível que as perguntas aos oráculos
fossem em sua maioria, realizadas por escrito em pequenos óstracos, como atestam as fontes de
Deir el-Medina.
Todavia, é bom lembrar que os oráculos egípcios não eram semelhantes aos oráculos
gregos (VALBELLE e HUSSON, 1998: 1064-1070), nem mesmo com a ocupação grega durante
o período ptolomaico.27 Ao que parece, os oráculos eram um aspecto distintivo da religião
egípcia durante o período greco-romano e os sonhos exerceram um fascínio particular, na
medida em que eram vistos como uma maneira de inspiração e contato com o divino. Desde a
XVIII dinastia, os sonhos já eram percebidos como uma manifestação da verdade divina (GEE,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
26A estátua da divindade nunca era vista pelos presentes.
27 Apresence grega no Egito, contudo, não parece ter modificado o modo como as atividades oraculares eram
conduzidas. É possível perceber algumas influências na redação dos textos com alguns elementos gregos e egípcios
combinados, o que possivelmente deriva de escribas e sacerdotes egípcios aprenderem o grego.
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2002: 84), como o famoso relato bíblico de José que interpretou os sonhos do faraó.28!
Baines (1987: 93) menciona rapidamente a presença de tA rxt, a “mulher sábia” em Deir
el-Medina. As referências a consultas a uma “adivinha” (seer) não parecem indicar um evento
isolado, mas ao contrário, uma prática comum. Nesse tipo de consulta, a figura feminina é a em
geral o do médium e pode prever outras consultas aos oráculos públicos, por exemplo, e
responder as cartas aos mortos.
A antropologia explorou a relação com o sobrenatural de diversas maneiras, a magia e as
possessões foram notadamente influenciadas pelo trabalho de Evans-Pritchard, Witchcraft, Oracles
and Magic among the Azande. A visão ocidental viu a magia em grande parte como uma atividade
própria de sociedades primitivas. Apesar do esforço dos pesquisadores para reconhecer na magia
sua racionalidade própria, seu conjunto de regras e lógica, parece predominar ainda a visão de
que a experiência empírica é desconsiderada, ou seja, há uma tendência em analisar esses
fenômenos como “falsos”. De acordo com Winkelman:

Theories of magic have in general tended to be rationalistic,


psychological, or social-functional accounts of magical phenomena.
They have rarely accepted these phenomena as reported; consequently,
they have failed to consider the possibility that some magical
phenomena have the empirical basis claimed by practitioners (1982: 2).

Os antropólogos parecem ter tido dificuldades em seu trabalho etnográfico em distinguir


se os relatos dos seus informantes eram observações ou crenças, observações próprias,
ocorrências cientificamente estabelecidas ou meras racionalizações (WINKELMAN, 1982: 2).
No caso da relação com os espíritos29, talvez o problema seja justamente observar o
invisível 30 que, pela impossibilidade de ser visto, só pode ser experienciado pelo corpo
(STORCH, 201: 14). A princípio, isso poderia ser um enorme problema para os egiptólogos que
não tem o privilégio de fazer uma etnografia com seus informantes. Contudo, no caso egípcio,
esse tipo de experimentação é bastante complexa e os egípcios tiveram uma preocupação
especial em materializar e corporificar a experiência com o sobrenatural.
É preciso lembrar que as cartas aos deuses não têm o mesmo caráter do ex-voto. Nas
manifestações oraculares, a estátua do deus que se manifesta através do sacerdote parece indicar

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
28!As Instruções a Amenenhat, que datam do Médio Império, trazem o relato do rei morto que aparece em sonho
para instruir o filho Senusret I.
29 Para os fins dessa apresentação, utilizo o termo “espíritos” em sua ideia mais geral. Não pretendo discutir o termo

em si, mas o tomo em seu uso conforme apresentado na bibliografia utilizada. !


30 Sobre isso ver também outras referências em Storch (2010).

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algum tipo de possessão divina que é, necessariamente, incorporada (embodied) pelo médium.
Essas experiências em geral estão associadas a processos de dissociação e performance em
tempo real, com impacto direto na vida cotidiana.
No Egito, a comunicação com o sobrenatural por meio da escrita (e da arte) pode estar
associado à transformação de diversas experiências em uma experiência sensorial (STORCH,
2010: 15), em que um tipo especial de “mídia” transforma o imaterial em algo presente e
perceptível aos sentidos (DONNAT, 2010: 51). Portanto, a escrita e a arte não são meros
substitutos de algo “que não está ali”.
Poderíamos mencionar ainda nos tempos modernos, os memoriais de guerra e, entre os
mais recentes, o memorial dos atentados do 11 de Setembro de 2001, em Nova York como um
tipo de comunicação com os mortos. No local onde as Torres Gêmeas outrora existiram é
possível ler os nomes das vítimas, ver suas fotografias e deixar mensagens. Muitas das mensagens
às vítimas têm em comum pedidos de perdão, ajuda, o desejo dos vivos de serem vistos e o
desejo de que o morto esteja bem, tipo de registro que também pode ser visto nos cemitérios.
As cartas egípcias para os “mortos” (o akh) durante o período faraônico, em especial os
Antigo e Médio Impérios, parecem fazer parte de um conjunto de ritos funerários de
apaziguamento (pacification ritual). Donnat (2010: 69) acredita que as cartas aos mortos eram
também direcionadas aos deuses e que eles poderiam servir como testemunhas de que os ritos
eram realizados. A autora reforça a importância dos textos escritos que poderiam, em última
instância, servir como prova da realização dos rituais, não um substituto, mas um complemento
deles, embora nunca tenham feito parte de um “cânone funerário”. Elas são uma resposta a uma
necessidade atual (DONNAT, 2010: 70).31
Moreno Garcia (2010) aponta alguns indícios para o desenvolvimento das práticas
oraculares no Egito. De acordo com o autor, as cartas aos mortos desaparecem gradualmente ao
longo do período faraônico, paralelamente ao crescimento do número das cartas endereçadas aos
oráculos, durante o Novo Império. Tal variação seria explicada pelo desenvolvimento de uma
relação direta dos indivíduos com os deuses. Nesse novo modelo, os familiares mortos não
seriam mais necessários como intermediários entre os dois mundos, uma vez que a relação dos
indivíduos com os deuses já está posta num novo tipo de religião “oficial”: o faraó e os deuses
agem como novos intermediários entre os dois mundos (MORENO GARCIA, 2010: 153).
No que diz respeito aos textos demóticos, esse processo de individualização fica
evidente. Do mesmo modo, as cartas trazem temas pessoais em que os deuses podem interferir,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
31 Apesar das cartas terem algumas fórmulas padronizadas e similaridades formais, não podemos atribuir um cânone
a esse tipo de escrita, como acontece com outros documentos, por exemplo. Os escribas aprendiam as formulas
copiando-as de outras cartas, mas as mensagens eram personalizadas.
141!
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como benfeitores diretos dos pedintes.


Os papiros P. Carlsberg 428 e o P. Berlim 23544 podem ser lidos sob essa perspectiva e
trazem um tema caro aos estudos de gênero: o casamento. O tema foi explorado largamente
pelos egiptólogos e não pretendo retomar o imenso debate sobre ele. Porém, é preciso dizer que,
a despeito das discussões, o casamento não é para os antigos egípcios, um tema exclusivamente
“feminino”. Ele é, antes de tudo, um contrato entre as partes e essencialmente heteronormativo,
associado à manutenção da ordem e um ideal social, em que os indivíduos adquirem um status
privilegiado no grupo.
No caso das elites, onde a documentação é mais abundante, sabemos que mulheres
poderiam também elevar o status social de seus maridos e não só serem privilegiadas pelo
casamento. Embora as mulheres não ocupassem cargos ligados ao aparelho burocrático do
Estado egípcio, suas atividades nos templos eram conhecidas e poderiam servir como uma
espécie de trampolim social para os homens. Do mesmo modo, tinham a possibilidade de gerir
os bens familiares, como compra e venda de propriedades, supervisão do gado e das atividades
comerciais.
Os egípcios não tinham um único termo para casamento e a terminologia aponta, quase
que invariavelmente para o homem como principal agente no processo: rdi X Y m Hmt, “dar X
para Y como esposa”; iri m Hmt, “fazer [fazê-la] /tomar [como] esposa” (TOIVARI-VITALA,
2013: 4-5). Não havia uma cerimônia oficial e o casamento era muito mais uma união com fins
econômicos e procriativos (BRYAN, 1996). Curiosamente, o casamento como base da família
tinha referências espaciais associadas à casa e a uma ideia de família nuclear: o marido, a esposa,
filhos e a mãe do marido e as irmãs do marido (BRYAN, 1996: 36; TOIVARI-VITALA, 2010:
5)32. A ideia de “quem casa quer casa” tem correspondentes egípcios: “econtrar uma casa” (grg
pr); “entrar na casa” (aq r pr); “sentar-se/viver juntos” (Hmsi irm/m-di); “estar junto de” (m-
di); e “comer junto de” (wnm m-di) (TOIVARI-VITALA, 2001: 76 – 83; 2013: 5-6).
O famoso Papyrus Chester Beatty V (verso 2,6), mostra uma justaposição que é utilizada
para dar a ideia de educar (bringing up) crianças e, nesse caso, caberia ao homem o papel de fazer a
esposa (fazê-la esposa) também no sentido de educa-la e forma-la para o novo mundo adulto
(TOIVARI-VITALA, 2001: 19; 2013: 5): “Faça para você uma mulher quando você é jovem e
ensine-a a ser uma mulher (ser humano)”.33 A ideia de uma mudança de status pelo casamento
parece maior para a mulher do que para o homem, embora o casamento para ambos seja um
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
32 Asnoções sobre família são debatidas e podem ter outros membros associados, como os filhos, os enteados(as) e
uma série de servos da casa. Sobre isso ver principalmente Bryan (1996); Robins (1993); Toivari-Vitala (2001; 2013).
33 “Make for you a wife when you are a youngster and teach her to be a human/woman” (Gardiner 1935: pl. 27,6

apud TOIVARI-VITALA, 2013: 5).


142!
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marco de entrada na vida adulta.


Observando outras fontes textuais, como as máximas, por exemplo, o casamento parece
ser um tema de grande interesse para o público masculino, mas curiosamente aparece na
bibliografia atual dedicada às mulheres e ao tema do gênero, quase sempre uma versão
requentada da História das Mulheres. Um dos objetivos dessa literatura didática era ensinar as
pessoas a se comportarem (DIELEMAN, 1998). É possível identificar alguns paralelos com os
textos oraculares. Na perspectiva dos estudos de gênero, eles devem ser analisados de modo que
homens e mulheres estão em relação uns com os outros. Dito de outro modo, as prescrições de
atitudes de homens e mulheres são produzidas segundo comportamentos e ações do outro.
Contudo, as mulheres não podem ser vistas apenas como o tópico do texto. Ao contrário, é a
perspectiva relacional que deve prevalecer.
A circulação dessas máximas em demótico possivelmente nas proximidades do templo e
dirigidas aos sacerdotes (DIELEMAN, 1998, p. 42) pode indicar que o aspecto negativo das
representações das mulheres, por exemplo, fosse dirigido a um grupo específico de homens. O
uso de expressões como Hm.t , “esposa”, em geral surge associada a termos negativos, alertando
o leitor masculino para possíveis deslizes e artimanhas femininas, além da necessidade do marido
controlar e supervisionar a família e a esposa. Segundo Dieleman (1998: 45), controlar a
sexualidade feminina era uma preocupação econômica dos homens, já que as mulheres ao terem
filhos, asseguravam a permanência dos bens e sua circulação no núcleo familiar. Contudo, esse
tipo de afirmação parece reduzir o problema da sexualidade e das relações de gênero a um
aspecto econômico.
O propósito normativo desses textos, se lido sob essa orientação, pode ajudar a pensar o
papel das cartas aos oráculos, ampliando a percepção dessas relações por meio do casamento. Os
textos oraculares mostram a expectativa do pedinte para uma resposta dos deuses sobre o(a)
parceiro(a). A pessoa mencionada nas cartas carrega a dúvida de quem faz a pergunta.
As máximas, por outro lado, direcionam o leitor para o ideal a ser atingido e,
principalmente, instruem para o que deve ser feito a fim de se chegar a esse ideal. No caso das
cartas oraculares, o ideal é questionado através do outro, ou seja, o casamento não é questionado
em si, mas o parceiro com quem deve se casar.
Nos papiros escolhidos para este trabalho, os homens não cogitam não casar. O que se
espera é a confirmação do deus, se o casamento será para sua “boa sorte”, ou para o seu “bem”.
O que está em jogo não é o casamento em si, mas se a parceira em questão é a que deve ser
tomada como esposa. Novamente, os homens são os agentes no processo, mas aqui antes do
casamento. É preciso checar com o deus se de fato o processo deve continuar com a parceira

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mencionada. Curiosamente, em nenhum dos textos, a pergunta ao deus é feita com base nas
características da parceira. Não sabemos se elas são “adequadas” ou não, se sabem cozinhar,
lavar ou passar, ou se são boas amantes. Mas a boa sorte do casamento está associada
diretamente à figura feminina.
Pergunta-se aos deuses aquilo que, na condição de mortal, não se tem garantia de atingir
sozinho. As divindades orientariam a ação masculina na escolha da esposa. Os papiros mostram
que a certeza da obtenção de sucesso no relacionamento depende de outra pessoa, no caso a
mulher. Portanto é a figura feminina a responsável pelo bom casamento e pelo seu legado (bens,
flihos, etc.), ainda que caiba ao homem torna-la apta para isso. “Ser esposa” é uma condição a ser
adquirida pela mulher, através da ação do homem. A mulher não tem uma pré-condição para ser
esposa, mas o homem tem os instrumentos que podem torna-la apta a exercer sua função.
Nas máximas de Ptah-Hotep, por exemplo, o papel masculino na manutenção do
casamento é apresentado de forma que cabe ao homem a responsabilidade na satisfação da
esposa e que, a partir disso, ela será capaz de multiplicar os bens do marido:

If you are well-to-do and establish your household,


Be gracious to your wife in accordance with what is fair.
Feed her well, put clothes on her back;
Ointment is the balm for her body.
Rejoice her heart all the days of your life,
For she is a profitable field for her lord.
Do not condemn her,
But keep her far away from power; control her,
For her eye is quick and sharp.
Watch her (carefully),
For thus you will cause her to remain long in your house.
If you are too strict with her, there will be tears.
She offers sexual favors in return for her upkeep,
And what she asks is that her desire be fulfilled.

(Máximas de Ptah-Hotep apud Simpson, 2003: 160)

A aparente tensão entre atender os desejos da mulher e controlá-la não estão em


contradição. Cabe ao homem o papel de instrui-la na sua função de esposa, pois é essa função que
permitirá que o casamento, como instrumento de manutenção da ordem, se perpetue. Numa
sociedade em que os ideais de masculinidade estão diretamente ligados à fertilidade e à fartura,
não é surpresa que o casamento seja um tema masculino. A figura feminina aqui não é
meramente acessória, passiva. Ela é condição para que esse ideal masculino se realize e se
manifeste. Portanto, a boa sorte no casamento depende da parceira, transformada em esposa
pelo marido, na medida em que ela favorece a realização desse ideal masculino.

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Esse tipo de percepção sobre o casamento certamente perturba as teses feminista de


subordinação/emancipação feminina. Na sociedade egípcia não há referencias de que ser
esposo(a) dependa de uma condição natural.
Não há registros desse tipo de carta aos deuses redigidas por mulheres. Parte da
argumentação se desenvolveu na ideia de que as mulheres não sabiam demótico ou
simplesmente porque não recebiam nenhum tipo de letramento. Num primeiro momento, é
preciso considerar que há poucos registros de mulheres que sabiam ler e escrever em toda a
história do Egito (BRYAN, 1984; CRIBRIORE, 2001, 2002, 2006), bem como poucas
evidências que a população egípcia era letrada (BAINES e EYRE, 1983; JANSSEN, 1992;
DEPAUW, 2006).34 Contudo, é preciso evitar alguns vieses de gênero que apontam para uma
incapacidade das mulheres de ler e escrever (principalmente em demótico) ou para uma opressão
masculina que impedia que as mulheres fossem letradas.
Esse tipo de viés já foi reconhecido pela historiografia. Para Daybell (2006), por
exemplo, o letramento não é um atributo que necessariamente insira a mulher numa outra esfera
de percepção do gênero, ou seja, ela não vai ser melhor ou ter mais direitos, também afirmado
por Cribiore (2001, 2002, 2006). Mais do que identificar os protagonistas das cartas, é preciso
verificar sobre o que escrevem, mas também sobre o que não escrevem. Nesse sentido, as cartas
podem servir não para afirmar “uma (nova) posição”, mas para verificar, por exemplo, quais são
os atributos de gênero que emergem socialmente através dos textos produzidos pelas mulheres,
ou pelos homens (SILVA, 2013).
Esse tipo de questão favorece uma leitura de gênero nos dois papiros aqui apresentados
que deve incorporar uma perspectiva mais relacional dos protagonistas e personagens das cartas,
mas também do aspecto mágico da atividade oracular.
Os estudos sobre as cartas aos oráculos em demótico precisam sair de uma leitura
estritamente formal para incorporar outras perspectivas, principalmente as que levam em conta
uma leitura mais antropológica, inclusive com a perspectiva do gênero. A pergunta não deveria
ser por que as mulheres não escrevem em demótico ou grego sobre o casamento, mas por que os
homens escrevem. Essa curva na leitura dos papiros pode abrir espaço para outras reflexões a
respeito cartas aos deuses e mesmo sobre o casamento que ainda precisam ser feitas.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
34 Asestimativas, todas inconclusivas, variam entre 1 a 5% de pessoas letradas no Egito. Contudo, qualquer tipo de
afirmação é incerta.
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Papiros35

P. Carlsberg 428
Número Trimegistos: 44483
5,8 x 7,2 cm.
Carta; questão ao oráculo
Localização da Fonte: Copenhagen, Carlsberg Papyrus Collection P. 428
Data: aprox. 2 a.C.
Local de escrita: Tebtunis
Proveniência da Fonte: Tebtunis
Língua: egípcio/demótico

1.Pa-A, o filho de Harmais é quem fala


2.diante de Soknebtynis, o grande Deus;
3.Se é para minha boa sorte,
4.para viver com TA-Sr-anx
5.a filha de PAI = i (?), faça com que me
6.Tragam essa carta de volta!

P. Berlin 23544
Número Trimegistos: 44486
7,0 x 9,5 cm
Carta; questão ao oráculo
Localização da Fonte: Berlin, Ägyptisches Museum.
Data: possivelmente ptolomaico
Local de escrita: possivelmente Mênfis
Proveniência da Fonte: possivelmente Mênfis
Língua: egípcio/demótico

1.Meu grande senhor Osorapis, o servo


2.de teu servo é quem fala a Osorapis:
3.Se é para o meu bem (em) meus dias (?),
4.que eu não more com StrbA,
5.e que eu não possa torna-la esposa, possa alguém então

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
35 Os textos aqui apresentados não apresentam a transliteração. Para isso ver Silva (2013).
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6.trazer-me a carta sem tristeza,


7.sem ... . escrito

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! !

149!
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AS(ESTELAS(FUNERÁRIAS(COM(O(MORTO(RECLINADO(EM(
UMA(CAMA(FUNERÁRIA:(ETNIA,(IDENTIDADE(E!
EMARANHAMENTO(CULTURAL(NO(BAIXO(EGITO(DURANTE(
O(PERÍODO(ROMANO(
Pedro Luiz Diniz Von Seehausen
Museu Nacional/UFRJ

Resumo: As interações culturais ocorridas no Egito durante o período romano marcaram profundamente sua
cultura material. Neste sentido, as estelas funerárias com o morto reclinado sob uma cama funerária consistem na
reinterpretação pela sociedade egípcia de um modelo em voga no oriente próximo. Através da análise de um
exemplar proveniente de Therenoutis, discutiremos questões de etnia, identidade e emaranhamento cultural no
Baixo Egito.

Abstract: Cultural interactions that occurred in Egypt during the Roman period profoundly marked their material
culture. In this regard, the funerary stelae with the dead reclining in a funerary bed consist in a reinterpretation by
the Egyptian society of a model in use in the Near East. Through the analysis of an stelae from Therenoutis, we will
discuss issues of ethnicity, identity and cultural entanglement in Lower Egypt.

Introdução

No início do Terceiro Período intermediário ocorrem grandes mudanças nas práticas


funerárias. Durante este período surgem os primeiros enterros coletivos e a reutilização de
tumbas e templos de períodos anteriores. Os templos funerários, as tumbas da elite, e até mesmo
casas foram reaproveitados e remodelados para a alocação de um grande número de
sepultamentos. No período greco-romano a prática da mumificação populariza-se e ocorre uma
sobrecarga ainda maior das necrópoles, com a reutilização em larga escala de antigas tumbas e
outros espaços. Tumbas novas, também foram reconstruídas neste período, a tumba tradicional
egípcia formada por uma superestrutura e uma subestrutura continua em voga no período
romano, mas convive com outros tipos de sepultamento.
Esta diversidade pode ser explicada em parte pelo pode aquisitivo da família, mas
também refletem a sociedade multicultural do Baixo Egito durante o período Romano. Este
emaranhamento cultural pode ser percebido em diferentes aspectos da cultura material datada deste

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período. Optamos neste artigo por focar o nosso objeto de analise nas estelas funerárias do
Baixo Egito durante este período, mais especificamente da necrópole de Therenoutis.
As estelas são um suporte funerário utilizado nas três grandes etnias que influenciaram o
panorama cultural do Egito Romano. Com o intuito de fugirmos de interpretações baseadas em
conceitos como romanização, ou interpretações levianas que assemelham-se a fórmulas
matemáticas simples como “cultura grega + cultura romana + cultura egípcia = Egito Romano”,
discutiremos brevemente sobre o conceito de etnia, hibridismo e emaranhamento cultural.
Posteriormente, contextualizaremos superficialmente alguns dos aspectos da política romana
atuante no Egito, e analisaremos a estela RC 2246 localizada no Rosacrucian Egyptian Musem
em San José.

Etnia
O desejo de vincular identidade e etnia aos objetos e monumentos é uma preocupação
recorrente na história da arqueologia. Desde o período da renascença em diante, a cultura
material é classificada e dividida entre determinados grupos como por exemplo, romanos,
gregos, e saxônico. Posteriormente, o avanço do nacionalismo no século XIX, gerou um terreno
fértil para estudos preocupados com a classificação de traços arqueológicos e a vinculação destes
a identidades nacionais. Durante as primeiras décadas do século XX, o histórico culturalismo partia
do principio que a cultura material do passado refletia diretamente aos grupos étnicos do
presente(ver Trigger 1996). Todavia, apesar de o histórico culturalismo possuir grande
preocupação com o estabelecimento de ligações entre os remanescentes arqueológicos e os
grupos étnicos atuais, a história intelectual do termo etnia é relativamente recente. Não havendo
grande preocupação com a definição deste, o conceito de etnia só ganhou uma importância
estratégica dentro da teoria antropológica em meados da década de 1970. Esta mudança fora
diretamente influenciada pela mudança no cenário geopolítico com a independência das colônias
na Ásia e na África e o ativismo de minorias étnicas. A particularidade destes eventos fez surgir
uma gama de teorias de etnicidade tencionadas a explicar a diversidade deste fenômeno.
Sokolovskii e Tishkov, categorizam as diferentes teorias de etnicidade em três tipos:
“primordialistas”, “instrumentalistas” e “construtivistas”(2010: 240-243).
Simplificando bastante, a visão primordialista, está baseada na ideia de que existe algo
real e tangível na formação da identificação étnica e pode ser subdividida entre aqueles que
acreditam que a etnicidade pode ser vista predominantemente como um fenômeno biológico e
aqueles que acreditam que esta seja o produto particular da cultura e a história (SOKOLOVSKII
et TISHKOV: 2010:241). As diferenças conceituais entre ambas as visões primordialistas, são

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enraizadas nos diferentes modos de compreensão da natureza humana e sociedade. Nos estudos
fortemente influenciados pelo evolucionismo, a etnia é frequentemente conceituada como
determinada pela genética e influenciada por fatores geográficos. Encontramos neste contexto,
o caso da sociobiologia, que possuía como tese principal a ideia de que grupos étnicos humanos
são basicamente grupos de parentesco entendido ou coletividades baseada na descendência
(SOKOLOVSKII et TISHKOV: 2010:241). A visão primordialista de que a etnia é definida a
partir da história e cultura de um povo foi adotada em grande escala pela Antropologia Soviética,
que apropriou-se do conceito de Volk criado por Herder durante o período neo-romântico
alemão. Sokolovskii e Tishkov citam o exemplo dos trabalhos de S.M Shirokogov (1923) e Y.V.
Bromley (1981) que definem etnicidade como um grupo de pessoas falando a mesma linguagem,
com os mesmos costumes, e vivendo na mesma terra (2010:241).
Também simplificando bruscamente, as teorias de etnicidade pautadas na visão
instrumentalista percebem o fenômeno da etnicidade como um instrumento político que pode
ser utilizado por lideres e outros em uma busca pragmática de seus interesses. Ao final da
década de 1960 e no inicio da de 1970, as teorias de modernidade e modernização tratavam a
etnicidade como um fenômeno marginal remanescente do mundo pré-industrial, que com o tempo
seria superado pelo avanço do estado moderno e os processos de integração nacional e
assimilação.36
Nestas teorias altamente influenciadas pelo funcionalismo, acreditava-se que a afinidades
culturais eram exploradas como base para afiliações intergrupais em disputas políticas. As
práticas culturais e valores destes grupos étnicos transformavam-se em símbolos de identificação
para membros de um determinado grupo, que também serviam ferramentas políticas de uma
elite na busca de poder. Esta visão do conceito de etnia estava fortemente pautada no utilitarismo.
As abordagens construtivistas colocam sua ênfase na fluidez e contingência do o da
identidade étnica, tratando-a como produto de determinados contextos sociais e históricos. F.
Barth define a etnicidade como uma atribuição que classifica a pessoa em termos mais gerais e
inclusivos, presumidamente determinada pela origem e background. Entretanto, para Barth, o
processo de construção da identidade étnica também é definido pelos mecanismos de fronteira
do grupo, baseado não na possessão de um determinado inventário cultural, e sim na
manipulação de identidades derivada do contexto.(1969:19). Em linhas gerais, o processo de
construção da identidade é definido pela negociação da fronteira étnica. Esta concepção permitiu os

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
36Neste período, o conceito de assimilação ainda estava em voga na antropologia norte americana e só fora cair em
desuso em meados da década de 1970.
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antropólogos e arqueólogos a concentrar-se no caráter situacional e contextual da etnicidade,


dando uma maior fluidez ao conceito.
Posteriormente, com o advento de um novo paradigma interpretativo, baseado no pós-
modernismo, a atenção voltou-se para a negociação de múltiplos objetos além das fronteiras e
identidade. Neste contexto, foi argumentado que termos como “grupo” e “fronteiras”,
presentes na obra de Barth ainda remetem uma noção “fixa” de identidade(COHEN, 1978: 387).
Para reforçar a fluidez do termo, Cohen define etnicidade como “um conjunto diacrítico
sociocultural(aparência física, nome, linguagem, história, religião, nacionalidade) que definem
uma identidade compartilhada para membros e não membros(....) uma série de dicotomizações
de inclusão e exclusão” (COHEN, 1978: 386-7).
Deste modo, na perspectiva atual, os grupos étnicos são um fenômeno dinâmico. Os limites
ou as fronteiras entre estes grupos e a identificação de indivíduos que os compõem podem variar
no tempo e no espaço. Sokolovskii e Tishkov afirmam que as diferentes categorias apresenta
pelos próprios, dos estudos de etnicidade (“primordialista”, “instrumentalista” e
“construtivista”), não são necessariamente excludentes entre si, e em determinados contextos,
esta dicotomia deve ser transposta para a realização de um bom trabalho acadêmico. Desta
forma, devemos levar em conta que no caso do Egito Romano a etnia pode ter sido utilizada
como uma estratégia de manipulação da identidade conforme a relação política e econômica.
Na proposta da arqueologia pós-processual, a cultura material é considerada como
dinâmica, e dentro do quadro teórico adotado por esta pesquisa, ela é usada ativamente na
justificação e manipulação das relações entre os grupos (Hodder, 1990). Neste contexto, o estilo
da cultura é visto como uma forma de comunicação de elementos simbólicos que agem como
mediadores de relações sociais. Todavia, conforme nos elucida S. Jones, os estudos
arqueológicos voltados somente para análise do estilo podem cair em uma abordagem
reducionista e funcional, uma vez que na maioria dos casos as mudanças estilísticas terminam
por serem explicadas arbitrariamente como se existissem para atingir certos fins (2003:120). No
caso desta pesquisa, uma análise leviana das estelas funerárias do Egito Romano, poderia
interpretar as alterações estilísticas destas como somente a comunicação de uma identidade.
Em ressonância com este contexto, S. Jones define que a construção da etnia é
fundamentada nas disposições subliminares compartilhadas de agentes sociais que são moldadas
pelo habitus. (2003: 128). Para Jones, o processo de identificação étnica no reconhecimento das
diferenças em oposição aos outros, envolve crucialmente a objetificação de práticas culturais, as
quais constituem modos subliminares de comportamento (2003:129). Deste modo, a
configuração da etnicidade e por consequente o estilo presente na cultura material, podem variar

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conforme o contexto social, colocando grande importância na análise do contexto social para a
compreensão da etnicidade.

Hibridismo e emaranhamento cultural


Nos últimos anos, o termo hibridismo tornou-se um termo “guarda-chuva” dentro dos
estudos arqueológicos, capaz de comportar inúmeras definições diferentes(BURKE, 2006: 50) A
origem morfológica deste deriva do conceito de hibrido da biologia, onde é utilizado para designar
um cruzamento genético entre duas espécies vegetais ou animais distintas, os quais não podem
ter descendência devido aos seus genes incompatíveis. Nos estudos culturais, o termo hibridismo
possui diversos variantes, como sincretismo, hibridação, mestiçagem, bricolagem cultural e etc. Contudo,
em sua essência basicamente ele é utilizado para definir uma mistura entre duas ou mais
culturas diferentes.
No caso do termo sincretismo, ele fora utilizado por estudiosos da religião desde 1600 e na
época possuía o sentido de condenar alterações do verdadeiro cristianismo. Posteriormente
difusionistas utilizaram o termo sincrético e adaptaram o termo hibrido da biologia para designar
cenários de complexa interação cultural, onde não era possível apontar a ação de uma cultura
solidamente definida como é o caso da egípcia, romana e etc. Neste caso, o termo ainda era
carregado de preconceitos, pois reforçava a noção da existência de “culturas puras”.
O contexto pós-colonialismo trouxe um novo fôlego e uma nova perspectiva para os
estudos envolvendo sociedades classificadas como “híbridas”. Do mesmo modo que o conceito
de etnia fora resignificado, o pós-colonialismo significou um terreno fértil para os estudos
envolvendo o conceito de hibridismo e seus variantes. Segundo P. Burke, a proliferação destes
estudos e a preocupação com a compreensão do hibrido ressoam com o momento de “celebração
da mistura e do multiculturalismo em que vive nossa sociedade”(2006: 8). É neste contexto que
H. Bhabha (2007) chega a definir hibridação em termos de resistência, como uma estratégia dos
oprimidos para com o seus opressores.
Entretanto, conforme nos alerta P. Stockhammer, a aplicação do conceito de hibridismo e
seus variantes dentro da arqueologia precisam ser devidamente revisados. Em virtude de sua
associação ainda latente com o seu passado morfológico, a ideia de que duas ou mais culturas ao
se misturarem geram uma híbrida, reintroduz silenciosamente a noção de pureza nos estudos
arqueológicos (STOCKHAMMER, 2012: 1-2). Para Stockhammer, ao definirmos uma
sociedade como hibrida, devemos também definir o que não é considerado como hibrido. Neste
sentido, Stockhammer abre o leque para duas interpretações possíveis:

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“Ao discutirmos hibridismo, devemos definir o que entendemos


por “puro”. Se nada pode ser designado puro e tudo é hibrido,
então hibridismo se torna um termo redundante que pode ser
usado em um sentido metafórico para estimular a discussão, mas
não como uma ferramenta conceitual” (2013: 13).

Posto este cenário, somos compelidos a concordar que definir culturas como “pura” e
“mestiça” não é um papel que caiba mais a arqueologia, uma vez que a noção de “pureza” em
termos culturais é fortemente marcada pela xenofobia. Neste sentido, Stockhammer, propõem a
aplicação de outro termo para designar os processos culturais enquadrados como híbridos:
emaranhamento cultural. Este seria uma adaptação dos termos Geflecht e Verflechtung do alemão, que
em português também podem ser traduzidos como integração. Conforme nos esclarece
Stockhammer , o termo emaranhamento cultural nos auxiliaria a fugir de classificações taxonômicas
entre “puro” e “hibrido”, e também adicionaria uma noção de agência ao processo (2012: 47).
Devido a particularidade das fontes arqueológicas, Stockhammer divide a noção de
emaranhamento cultural em dois tipos: “emaranhamento relacional” e “emaranhamento material”(2013: 17).
O primeiro cenário poderia ser descrito quando um objeto é apropriado e integrado as práticas e
sistemas locais. Neste caso, mesmo que a relação humana com o objeto tenha alterado as
práticas culturais e a percepção do mundo material daquele grupo, o artefato permanece
inalterado. O emaranhamento relacional é altamente dependente do contexto arqueológico para ser
reconhecido e interpretado, pois somente através deste, é possível identificar os processos de
apropriação. Caso o contexto arqueológico seja perdido, como é o caso da maioria das estelas
trabalhadas nesta dissertação, o artefato apropriado só pode ser identificado caso esteja
enquadrado no segundo tipo: emaranhamento material. Este ultimo pode ser quando o processo de
apropriação resulta na criação de um novo artefato com partes de sua própria cultura e da
estrangeira. Contudo, como nos alerta Stockhammer, este processo é muito mais do que a junção
partes de duas culturas, e sim a criação de algo novo, representando uma nova “entidade
taxonômica”.
Este conceito proposto por Stockhammer assemelha-se muito com a noção de hibridação
desenvolvida por H. Bhabha, que enxerga nos processos de hibridismo a criação de um terceiro
espaço totalmente novo (2007). Contudo, a noção de emaranhamento nos permite fugir das
armadilhas morfológicas do termo hibridismo.

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Contextualização
Uma das medidas políticas mais marcantes de Roma fora gerada pela tentativa de
cooptação da elite local do Egito Romano. Conforme nos esclarece Macmullen, além da
apropriação de estruturas culturais locais, também fazia parte da estratégia política de Roma; a
cooptação das elites locais, com o intuito de facilitar a administração da provincial (2000; 2). Esta
tática fora difundida ao longo de todo o império e modificara bruscamente o substrato cultural e
religioso de diversas províncias. No Egito, esta política tomou um rumo bastante particular, uma
vez que Augusto teve de “criar” uma elite favorável a Roma. Esta elite deveria ser de origem
“grega” para contrapor-se aos egípcios nativos, grande maioria da população. Contudo, a elite de
Alexandria por ser aliada dos Ptolomeus não era confiável à nova administração. Deste modo, a
administração imperial optou pela “criação” de uma elite “grega” favorável a Roma na chora.
Esta elite vivia nas metrópoles e apesar de não possuírem todas as vantagens dos cidadãos de
Alexandria gozavam de vários privilégios e seu poder só aumentou no decorrer do período
romano.
Como mencionado anteriormente, ao final do período Ptolomaico era difícil traçar uma
divisão étnica sistemática entre “gregos” e “egípcios”, uma vez que além do forte emaranhamento
cultural na região(principalmente no Delta) população do Egito tornou-se extremamente
miscigenada ao longo dos quase 300 anos da dominação grega. Deste modo, para a cooptação
da elite “grega” na chora, Roma teve de elaborar uma divisão entre “gregos” e “egípcios”.
No Egito Romano a divisão jurídica da sociedade se deu da seguinte forma: i) cidadãos
romanos (cives romani) – romanos, elite grega (alexandrinos promovidos à condição de cidadão
romano e também a elite que habitava as metrópoles da chora); ii) cidadãos peregrinos (cives
peregrini) das três e, posteriormente, quatro póleis do Egito (Alexandria, Ptolemaida, Náucratis e
Antinoópolis); iii) peregrinos não cidadãos (peregrini Aegyptii). Na escala social vinham, em
primeiro lugar, os cidadãos romanos, classe esta formada pelos altos funcionários do Império,
por notáveis alexandrinos e por legionários ou veteranos do exército. Em segundo lugar, vinham
os gregos das quatro cidades gregas do Egito e os judeus e, por último, os egípcios nativos. A
cidadania era concedida por motivos políticos e não étnicos. No entanto, a etnicidade servia à
prática política de privilegiar os categorizados enquanto “gregos” em detrimento dos “egípcios”.
Para estabelecer esta separação os romanos tiveram que adotar um critério de etnicidade
baseado na descendência e na participação da instituição do gymnasium. O grau de “helenização”
era medido por meio de três critérios: propriedade fundiária, habitação urbana e educação grega.
Estabelecido estes critérios, o valor dos impostos pagos a Roma dependiam do grau de

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helenização. Neste cenário, os cidadãos romanos estavam isentos de taxas, os categorizados


enquanto “gregos” pagariam um valor reduzido do imposto, e os “não gregos” arcariam com o
imposto por inteiro. Deste modo, conforme nos esclarece Márcia S. Vasques:

“Os critérios estabelecidos por Augusto para dividir a sociedade


egípcia fizeram revigorar o sentimento de etnicidade dos
habitantes do Egito Romano. O pertencer à etnia grega passou a
ser enormemente valorizado e almejado por muitos. Como vimos
anteriormente, no final do período ptolomaico era difícil definir
quem era grego ou egípcio. Os romanos dividiram a população
egípcia a fim de separar egípcios e “gregos”. A etnicidade foi
usada pelos romanos com finalidades políticas e funcionava como
um meio de ascensão social” (2007:3).

Conforme o raciocínio de David Mattingly, a identidade está relacionada com a questão


de poder na sociedade romana e a criação das identidades provinciais não pode ser tomada
isoladamente da negociação de poder entre o Império Romano e os povos conquistados
(2011:206). Deste modo, no caso do Egito Romano, a identidade étnica passou a ser então uma
forma de manutenção do poder e status social, onde “ser grego” nas metrópoles, significaria
pertencer a um grupo de status.

A estela de Therenoutis – RC 2246


De um modo geral, a cultura material proveniente do Baixo Egito reflete este a cenário
político criado por Roma. Todavia, é possível observar tanto nas estelas como em outros
suportes funerários, a incorporação de elementos oriundos da antiga religião egípcia.
Exemplificaremos esta afirmação através da análise de uma estela proveniente da necrópole de
Therenoutis.

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Data: II a IV d.C
Procedência: Terenouthis
Material: Calcário
Dimensões: Altura: 24cm. Largura: 18cm.
Técnica: Alto e Baixo relevo.
Localização atual: San José, Rosacrucian Egyptian Musem RC2246
Imagem retirada de: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:FuneraryStele-
RomanEra_RosicrucianMuseum.png

Descrição
Estela retangular representando um edifício com duas colunas sustentando um frontão
retangular. O homem careca vestido a moda helenística está reclinado sob a cama funerária. Ele
segura uma taça com o braço direito e uma guirlanda de flores com a esquerda. No topo
esquerdo está a figura de um chacal sentado em posição de repouso. Abaixo da cama funerária
estão os elementos do banquete funerário: o ramo de flores, a ânfora,um vaso e uma mesa de

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três pernas contendo dois copos e dois vasos. As linhas foram traçadas para o epitáfio, mas não
encontramos nenhum sinal dele.

Comentários
As estelas de Therenoutis apresentam ao todo 4 tipos de cenas diferentes: i) o morto
recostado em uma cama funerária, ii) o morto(ou mortos) em posição a de adoração, iii) o
morto em um barco funerário, e por fim iv) as cenas de família que combinam elementos dos
tipos 1,2 e 3.
Nesta variedade de cenas, o falecido pode estar representado dentro de um círculo, ou um
edifício, como no exemplar analisado. O edifício normalmente é representado por um frontão
triangular ou curvo, sustentado por duas colunas papiriformes ou lotiformes. O intuito deste tipo
de iconografia é representar o falecido como um devoto, diante da grande entrada de um templo
(HOOPER,1961; 22). Deste modo, os edifícios presentes nas estelas funerárias são bastante
semelhantes aos propileus dos templos do período greco-romano.

Desenho da porta de entrada do Mammisi de Necatenbo em Dendera. (DAUMAS, 1952: 146).

Neste padrão de estela o morto está recostado em uma cama com o braço direito
apoiado sob duas almofadas e o esquerdo segurando uma taça ou um prato de libação. A
utilização deste tipo de cena consiste na releitura de um modelo em voga no oriente próximo. O
mote do morto recostado sob uma kliné em um banquete vem da tradição helenística sendo
amplamente utilizado na parte oriental do império romano. No caso das estelas de Therenoutis,
o banquete é representado abaixo da cama funerária, retratado por um ramo de trigo, uma mesa
de três pernas e uma ânfora.
Conforme nos esclarece Kurtz e Boardman, este tema está associado ao motivo do
banquete que surgiu na Grécia a partir do século VI a.C com o intuito de representar o morto
como um herói descansando no Elísio (1971, 234). Este tema foi introduzido pelos gregos sendo
adaptado e reinterpretado em diversas regiões do oriente próximo. Entretanto, conforme nos
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explica Hooper, apesar do tema principal em si ser helenista, a representação do corpo se


enquadra no cânone egípcio, pois existe um cuidado ao apresentar o morto como um devoto
realizando suas oferendas (1961: 21).

À esquerda: estela funerária de Antioquia: II a IV d.C – AO 11245. Museu do Louvre.


Imagem retirada de: http://cartelfr.louvre.fr/cartelfr/visite?srv=car_not_frame&idNotice=36458&langue=fr
A direita: estela funerária “do oriente próximo”, possivelmente Antioquia: I a II d.C - E 20771. Museu do Louvre.
Imagem retirada de: http://cartelfr.louvre.fr/cartelfr/visite?srv=car_not_frame&idNotice=36818&langue=fr

As cenas com o morto reclinado sob uma cama funerária não são exclusivas das estela
funerárias. Este tipo de motivo também é encontrado em estátuas de terra cota ao longo de todo
o Baixo Egito.

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Estátua de terracota com o morto recostado. Mênfis I d.C. Museu do Louvre: E 26919.
Imagem retirada de: http://cartelfr.louvre.fr/cartelfr/visite?srv=car_not_frame&idNotice=36816&langue=fr
No caso do Egito, em todos os exemplares, o morto está representado frontalmente e vestido a moda helenística,
com o himation e o chiton. Este tipo de estela mistura constantemente elementos em alto relevo e baixo relevo, e o
falecido pode estar representado tanto em alto relevo, quanto em baixo relevo.

A presença de um chacal no canto esquerdo é comum neste tipo de cena. Assim como
nas estelas do Alto Egito, a intenção deste elemento na iconografia da estela é de representar
Anúbis. Localizado sempre dentro do edifício e no canto esquerdo da cena, o chacal pode ser
encontrado em duas posições: sentado em posição de alerta ou sentado em posição de repouso.
Os epitáfios poderiam ser esculpidos, ou pintados, o que explicaria o epitáfio deixado em
branco da estela analisada. De um modo geral, os epitáfios apresentam uma forma simples
contendo o nome do falecido, a idade e alguma pequena mensagem de pesar como “adeus”, ou
“morreu antes de seu tempo”. Como o exemplar analisado neste artigo não possui o epitáfio,
não nos aprofundaremos neste detalhe.

Conclusões
Entendemos que este contato entre duas culturas resultou em um emaranhamento material.
Este último pode ser quando o processo de apropriação resulta na criação de um novo artefato
com partes de sua própria cultura e da estrangeira. Contudo, como nos alerta Stockhammer, este
processo é muito mais do que a junção partes de duas culturas, e sim a criação de algo novo,
representando uma nova “entidade taxonômica” (2013;13). Assim como em outros exemplos da
cultura material, este emaranhamento material pode ser vividamente percebido no caso das estelas
com o morto recostado sob uma cama funerária.
Apesar deste tipo de cenas serem um modelo comum em voga no Oriente Próximo, sua
adoção no Egito foi marcado certas especificidades. As políticas estabelecidas por Augusto
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fizeram revigorar o sentimento de etnicidade dos habitantes do Egito Romano, onde pertencer à
etnia grega passou a ser enormemente valorizado e almejado por muitos. A popularidade deste
modelo é uma conseqüência disto. A cena de banquete deriva da tradição grega, e o morto é
sempre representado vestido à moda helenística. Contudo, apesar destes fatores, ainda é
possível ver elementos oriundos do cânone egípcio. A presença de um chacal representando
Anúbis, e a preocupação em representar o morto como um devoto indica que estes elementos
ainda estavam vivos no sistema de crenças do Egito Romano. Deste modo, este tipo de cena
reflete bem a criação de uma nova “entidade taxonômica”, onde ocorre uma releitura de um
modelo de estela comum no Oriente Próximo, pelos habitantes do Egito Romano, baseados em
seu próprio sistema de crenças.

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ADRIANO(E(O(EGITO:(A(CONSTRUÇÃO(DE(UM(MODELO(
EGIPCIANIZANTE(PARA(A(VILLA(ADRIANA(
Evelyne Azevedo
Museu Nacional/ UFRJ

Resumo: O objetivo deste trabalho é mostrar como a arte romana se apropriou de elementos egípcios para
construir um gosto egipcianizante nas esculturas da Villa Adriana e determinar em que medida a arte romana
estabeleceu uma relação de recepção com a arte egípcia. Acreditamos que a análise dos elementos que constituem
cada uma das esculturas associados ao seu local de descoberta formam um programa iconográfico idealizado pelo
Imperador e que era baseado na relação Roma-Grécia-Egito.

Abstract: The objective of this work is to show how Roman art appropriated Egyptian elements to build an
egipcianyzing taste in Hadrian’s Villa sculptures and determine the extent to which Roman art has established a
relationship with the reception of Egyptian art. We believe that the analysis of the elements of each part of the
sculptures form an iconographic program conceived by the Emperor that was based on the relation Rome-Greece-
Egypt.

A Villa Adriana era originalmente uma vila de origem republicana e que, possivelmente já
pertencia à família Elia, as obras do complexo construído por Adriano começaram já no ano 117
d.C., quando ele é nomeado imperador. Tratava-se de sua residência imperial afastada de Roma e
incluía uma série de edifícios que a tornaram um espaço monumental, não só por suas
dimensões, mas também pela riqueza de sua decoração. Mármores vindos de todo Mediterrâneo,
esculturas, afrescos e mosaicos decoravam os inúmeros edifícios que compunham a Villa.
As vilas ganharam importância durante a República, mas é durante o Império que elas
adquiriram um caráter luxuoso, com elementos inspirados na arquitetura grega, transformando-
as em lugares não só de ócio, mas também dedicados à cultura. Nestes espaços, deu-se início a
construção da Grécia como lugar de cultura. Academias, bibliotecas, mas, sobretudo, vastos
conjuntos escultóricos faziam parte dessas construções.
A Villa Adriana foi alvo de interesse arqueológico desde o século XV, mas foram as
escavações dos anos 1970 em diante que procuraram ter uma maior precisão científica,
interessadas em registrar os locais dos achados e não apenas o que era encontrado

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(FRANCESCHINI, 1991: 15)37. Os primeiros registros de escavações na Villa remontam aos


anos 1400, financiadas pelo Papa Alexandre VI, na região do Odeon. As escavações podem ser
divididas em três grandes campanhas: as primeiras dos anos 1500 e 1600 que foram
encomendadas pelos Governadores de Tivoli e Cardeais próximos a eles; as seguintes dos anos
1700 a 1870, que foram obra de particulares que compraram terrenos na vila a partir dos anos
1700; e, finalmente, as escavações modernas posteriores a 1870, realizadas pelo Governo italiano
(primeiro Reino da Itália e depois República) (FRANCESCHINI, 1991: 6).
As pesquisas dos anos 2000 em diante revelaram a existência de um local destinado ao
favorito do Imperador Adriano, Antínoo. O local denominado Antinoeion foi interpretado como
uma tumba-templo e hoje, atribui-se a ele também a função de local de culto a Osíris, a quem o
culto de Antínoo foi associado (MARI; SGALAMBRO, 2007: 83-104). As últimas pesquisas
permitiram também a indicação de diferentes locais relacionados ao Egito, além da área do
Canopo38.
Estes trabalhos levaram à realização de duas grandes exposições sobre a Villa Adriana:
Villa Adriana. Una Storia mai finita, de 2010 e Antinoo. Il fascino della bellezza, de 2012. Além destas
duas, a exposição La lupa e La sfinge. Roma e l’Egitto dalla storia al mito, no Castel Sant’Angelo em
2008, recuperou a relação entre a cidade italiana e a terra dos antigos faraós desde a Antiguidade
até o século XIX. Foram realizadas ainda importantes exposições sobre Adriano e a sua vila, mas
que não tinham como foco principal o Egito: Hadrien (1999), Adriano (2000); Hadrien (2001),
Hadrian (2008), Villa Adriana (2000, 2002, 2004, 2006, 2007), Frammenti del passato (2009), Villa
Adriana (2010) (MARI, 2010: 7).
Após um longo esquecimento começado ainda na Antiguidade, que, no entanto, não
impediu os saques ao sítio, a Villa foi identificada por Flavio Biondo no fim dos Quatrocentos
como a famosa Villa de que falava a História Augusta. É a partir dos Quinhentos, contudo, que
ela se torna objeto de inúmeras escavações, datando desta época uma das mais importantes delas:
patrocinada pelo cardeal Hipólito d’Este, filho de Lucrécia Bórgia e Governador de Tivoli, a
empreitada tinha à frente o arquiteto Pirro Ligorio. A criação de novas obras a partir dos
modelos antigos levou ao estudo das ruínas que afloravam do solo romano. Encomendada pelo
Cardeal d’Este, sua Villa homônima foi influenciada pelas descobertas feitas nas escavações da
vila tiburtina.
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37 De acordo com M. de Franceschini, a última grande campanha arqueológica de projeção, pois revelou cerca de
sessenta estátuas, remonta aos anos 1950, às escavações na região do Canopo por S. Aurigemma. Ele, no entanto,
“registrou apenas a descoberta das estátuas, negligenciando completamente a estratigrafia e o estudo das fases de
espoliação e abandono desta zona da Villa”.
38 A tese de que todas as esculturas egipcianizantes pertenceriam ao Canopo foi defendida por Grenier nos anos

1990. Trabalhos como o de Adembri, Mari e Cacciotti atribuem a toda a Villa espaços egipcianizantes.
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O trabalho de Ligorio lhe rendeu duas importantes obras: o “Livro sobre a Villa Adriana
Tiburtina” e o “Tratado sobre a Antiguidade de Tivoli e da Villa Adriana”. Sua obra tornou-se
amplamente difundida e copiada, tendo sua descrição servido de guia para as escavações
posteriores. Verificada e desenhada por Francesco Contini na segunda metade do século XVII, a
planta proposta pelo primeiro, junto com sua descrição foi republicada sob as ordens do Cardeal
Barberini em 1668. Em 1751, as obras de Ligorio e Contini foram resumidas e publicadas em
edição bilíngüe.
Data ainda do final do século XVII, uma outra importante referência sobre a Villa
Adriana. Em 1671, Athanasius Kircher publicou sua obra sobre o Lácio, sede do Império
Romano e origem de sua sapiência. A região era importante não só por suas construções, mas
também pela sua natureza. Assim a obra se divide em cinco livros: no terceiro, “Sobre a
Antiguidade da Urbe tiburtina”, Kircher fala sobre a Villa Adriana. Em sua descrição da vila, dois
textos são fundamentais: o “Tratado da Antiguidade de Tivoli e da Villa Adriana” de Ligorio e a
História Augusta. Em sua autobiografia, Kircher nos conta que a inspiração para escrever sobre
a região onde nasceu o Império Romano surgiu enquanto ele realizava suas pesquisas de campo
para escrever sua Historia Eustaquio Mariana.
Kircher dedicou um amplo conjunto de obras à Antiguidade, a maioria delas dedicada ao
Egito, que por sua vez, não deixou de fazer suas aparições, ainda que indiretas nas outras obras
fosse na forma de citações, fosse em reproduções de peças egípcias. Como na reprodução do
Mosaico da Palestrina que representaria o cotidiano às margens do Nilo.
De acordo com Élio Esparciano na Hitória Augusta (TEIXEIRA; BRANDÃO; RODRIGUES,
2011: 10)39, no verso 26, Adriano: “Era de estatura elevada, aparência elegante, o cabelo penteado
as ondas, barba crescida, de modo a cobrir as cicatrizes congênitas que tinha na face, compleição
robusta. Andava muito a cavalo e a pé e exercitava-se continuamente com armas e com dardos.
Caçava muitíssimas vezes leões e matava-os com as suas próprias mãos. Foi a caçar que partiu
uma clavícula e uma costela. Partilhava sempre a caçada com os amigos. Nos banquetes,
apresentava sempre, conforme a situação, tragédias, comédias, atelanas, tocadoras de sambuca

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39 De acordo com a recente tradução da História Augusta “O primeiro volume da HA inclui as Vidas de Adriano,
Élio, Antonino Pio, Marco Aurélio, Lúcio Vero, Avídio Cássio e Cômodo. Acredita-se que sua redação date do séc.
IV, pois refere-se a acontecimentos dessa época. Outra questao e a da autoria. As Vidas aparecem atribuidas a seis
autores: Elio Esparciano, Julio Capitolino, Vulcacio Galicano, Elio Lampridio, Trebelio Poliao e Flavio Vopisco.
Tambem a este respeito parece actualmente bastante consensual a ideia de que e obra de um so autor, disfarcado
sob a capa de outros nomes.As diversas designacoes para a autoria das varias secções podem ate ser nomes falantes.
Uma chave para esta interpretacao podera ser a conexao estabelecida entre o nome e o caracter de certos
biografados. Para este autor, por exemplo, Spartianus e severo, ‘espartano’, biografo de imperadores hostis ao
senado; Capitolinus liga-se ao Capitolio e por isso ao senado; Lampridius e frivolo, para imperadores frivolos; Vulcacius
Gallicanus lembra Vulcacio Rufino, rebelde da Galia, e portanto assume a autoria de Vidas de rebeldes. Nao se trata,
pois, de uma historia veridica: os criticos tem salientado que alguns factos sao ficcao.”
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(espécie de harpa tocada por mulheres de ma reputação), leitores e poetas. Edificou a Villa de
Tibur de forma tão extraordinária, que nela inscreveu os nomes de locais bastante célebres das
províncias, como o Liceu, a Academia, o Pritaneu, o Canopo, o Pecile e o Tempe. E, para nada
deixar de fora, ate incluiu os infernos” (TEIXEIRA; BRANDÃO; RODRIGUES, 2011: 70-71).
Esta descrição dos ambientes que compunham a vila rege o trabalho de Ligorio, que a
divide em nove partes, subdivididas, e marcadas por letras, de acordo com o seu mapa, que ele
insere no livro40. Este mesmo mapa é utilizado pelo jesuíta alemão em sua obra. Kircher não
criou um mapa para o Lácio, nem mesmo inseriu um ponto importante referente a uma
passagem bíblica. Sua descrição da Villa Adriana é baseada nas autoridades que o precederam. A
Antiguidade delineada por este que foi considerado um dos maiores eruditos seiscentistas,
situava-se entre um tempo intangível, ao qual pertenciam o Egito e a Mesopotâmia, revelados
apenas àqueles iniciados nos seus mistérios; e um tempo palpável, conhecido e visível: o tempo
da Antiguidade Clássica, cuja sabedoria remontava àquele tempo suspenso da Antiguidade
bíblica, próximo-oriental.
A Villa Adriana passou para o imaginário de antigos e modernos por sua esplêndida
arquitetura, sua rica decoração e seu espaço monumental. Mas também pela mítica envolvendo
seu idealizador, o Imperador Adriano. Apaixonado por um jovem grego, Antínoo, morto
durante a viagem ao Egito, Adriano edificará em sua memória inúmeras estátuas e fundará
inclusive, uma cidade em sua homenagem, Antinópolis. A dor da perda foi associada à imagem
romântica de um amor potencialmente dramático interrompido pela morte.
As vilas foram consideradas pela Tradição Clássica locais de descanso e refúgio,
ambientes de natureza bucólica que remetessem às descrições campestres virgilianas. Utilizada
como modelo, a Villa Adriana influenciou as construções das vilas renascentistas, como, por
outro lado, teve a sua arquitetura descrita de acordo com aquilo que era valorizado pelas
correntes classicistas41.
Esta é, no entanto, a fortuna crítica que se construiu em torno da imagem de Adriano.
Contudo, é importante lembrar que o Egito não era apenas o local onde o favorito do Imperador
havia morrido, mas era, principalmente, uma das mais, se não a mais importante província
romana. De onde ainda emergiram as divindades cultuadas na capital do Império e adoradas
pelos próprios imperadores.

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40 A nomenclatura utilizada por ele, apesar de incorreta, é utilizada até hoje em função de sua longa continuidades na
literatura sobre a Villa e será mantida neste trabalho.
41 Sobre a arquitetura da Villa e sua trajetória, ver MacDONALD, W. L.; PINTO, J. A., Villa Adriana. La costruzione e

Il mito da Adriano a Louis I. Khan. Milão: Electa, 1997.


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A produção bibliográfica que tratou da vila procurou esclarecer as questões relativas à


composição arquitetônica do espaço e a posição das esculturas dentro dela. O Egito ocupava um
lugar de destaque na arte romana, mas que elementos foram apropriados por ela? Como ocorreu
essa recepção? A elaboração de esculturas egipcianizantes para a vila fez com que Adriano
consagrasse determinados elementos como o toucado egípcio nemes e o saiote shendit como
elementos marcadamente egípcios. Nosso objetivo é mostrar que elementos da cultura nilótica
foram apropriados pela arte romana e a partir da formação de um corpus iconográfico e de sua
análise, definir o processo de apropriação.
Objetos ligados ao Egito circulavam em Roma desde Augusto e o interesse por outras
culturas pode ser remontado aos tempos da República. Que relação, portanto, existia entre
Adriano e o Egito? Durante a sua permanência no poder, ele encomendou mosaicos, afrescos e
esculturas que remetessem ao Egito, restaurou templos dedicados à Ísis e sua divindade de culto
pessoal era o deus Serápis.
Tratava-se apenas de um gosto pessoal ou, por outro lado, de uma propaganda política?
É possível afirmarmos que quando uma determinada cultura busca elementos de outra, existe
uma agenda, seja ela política, econômica, religiosa ou social. Ao recuperar elementos específicos
da cultura nilótica, a arte romana não estava simplesmente manifestando uma moda
egipcianizante, mas estabelecendo um programa iconográfico particular.
Que interesse, portanto, havia em representar o Egito? Ele significava apenas uma
conquista militar como foi visto por Júlio César ou uma conquista econômica com a
incorporação de grandes campos produtores de cereais, como feito por Otávio Augusto? O
Egito de Adriano não era o mesmo de César ou Augusto, mas o Egito de uma sólida pax romana,
com seus territórios delimitados e sem ter enfrentado nenhuma grande rebelião. Mas o que
representar?
Ao produzir um conjunto arquitetônico e escultórico específico para a Villa, Adriano
escolheu as características egípcias que ele queria representar. Não se tratava, portanto, de um
modelo de alteridade, mas da criação de um novo modelo simbólico. Apropriado de um
conjunto de elementos anteriores, recuperados por ele e resignificados. Apropriar-se de
elementos da arte egípcia, não denotava, contudo, que seu significado intrínseco era conhecido,
bastava, entretanto, que esses elementos fossem reconhecidos como tal.
A arte romana se inspirou em elementos desta cultura para construir obras denominadas
egipcianizantes das quais se destacam, sobretudo, a estatuária. A Villa deve ser considerada o
exemplo máximo de egipcianização da arte romana e que se consagra definitivamente com a
incorporação de características atreladas à civilização nilótica pela arte helenístico-romana. Ao

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conjunto estatuário da vila pode ser atribuído um programa iconográfico que incorporava tanto a
arte egípcia quanto grega. A partir da análise das esculturas egipcianizantes da Villa Adriana e de
como elas se tornaram um modelo estatuário de elementos relativos ao Egito, pretendemos
mostrar de que maneira Adriano procurou estabelecer um significado político e religioso à sua
Villa e através de que elementos artísticos.
Acreditamos que as construções realizadas por Adriano entre os anos 117 e 138 d. C.
obedeciam a uma agenda iconográfica que foi utilizado por ele não só em Roma, mas em todo o
Império. Pretendemos mostrar de que maneira a incorporação de elementos egípcios na
estatuária romana se tornou parte de um importante programa artístico. Objetivamos, portanto,
mostrar como as esculturas egipcianizantes da Villa Adriana se tornaram um modelo a ser
copiado por todo Império, mas não na forma de um gosto pessoal e sim, na de um programa
iconográfico que pretendia recuperar elementos já conhecidos de uma tradição longamente
anterior a ele e que tinha grande importância na religião e política imperiais.
As esculturas egipcianizantes da Villa Adriana estavam dispostas em espaços específicos
do complexo e foram encontradas em locais que foram definidos pela literatura recente. Entre
esses trabalhos estão o de Raeder, de 1983, o de De Franceschini de 1998 e finalmente, o de
Salza Prina Ricotti, de 2001. O trabalho pioneiro de Raeder apresenta um catálogo das esculturas,
mas nenhum deles, no entanto, traz as imagens correspondentes. Além disso, recentes
descobertas devem ser somadas ao conjunto de obras existentes.
Partiremos, portanto, destes trabalhos, sobretudo o de Salza Prina Ricotti, mais recente e
que apresenta vasta pesquisa sobre as primeiras campanhas de excavação. De acordo com ela, as
esculturas egipcianizantes foram encontradas na Palestra, Piazza d’Oro, vinha dos Jesuítas,
Roccabruna, área da Accademia, Cento Camerelle e Pantanello, restando ainda duas esculturas de
Antínoo-Osíris e uma cabeça monumental egipcianizante também de Antínoo, cujos locais de
descoberta não foram identificados.
Sua pesquisa, contudo, apesar de indicar a tumba-templo de Antínoo, não atribui
especificamente ao local os objetos encontrados nas áreas do entorno. Encontrado em 1998, os
primeiros resultados das escavações do Antinoeion (realizadas entre 2002 e 2004) foram
publicados somente no início dos anos 2000 (MARI, 2002-2003: 145-185). Podemos, portanto,
dividir o repertório egipcianizante em dois grandes grupos: o primeiro pertencente ao Antinoeion
e o segundo à Palestra. Ao primeiro pertencem às descobertas das áreas dos Cento Camerelle, vinha
dos Jesuítas, torre de Roccabruna e Accademia42. Sabemos, no entanto, muito pouco sobre os

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42 Oterreno que pertencia aos padres jesuítas abarcava não apenas a área que foi destinada à vinha, mas todas estas
construções.
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objetos encontrados no Pantanello. Acredita-se que possam ter acabado lá na tentativa de


esconder ou salvar algumas das peças da espoliação pela qual passava a Villa Adriana entre os
séculos III e IV d. C.. Finalmente, devemos acrescentar a este grupo três objetos que
efetivamente pertenciam ao Canopo: as esculturas do Nilo e do crocodilo que decoravam o
grande canal e uma escultura de Ísis, encontrada na exedra.

O Canopo
Constituído por um grande canal, decorado com elementos arquitetônicos e esculturas –
dos quais ainda restam algumas partes – seguido de um segundo, quadrado e bastante menor,
que culminam em um monumental edifício em forma de ninfeo, ricamente decorado e que era
formado por uma exedra e uma área tricliniar43; a construção do Canopo pertence à segunda fase
edilícia da Villa Adriana, e pode ser situada entre os anos 122 e 125 d.C. Destinado aos grandes
banquetes realizados pelo Imperador, a área poderia receber entre 420 e 1200 comensais
(SALZA PRINA RICOTTI, 2001: 249). O Canopo ocupa a parte central da Villa, situando-se
entre as duas áreas imperiais, do Teatro Marítimo e da Accademia.
Os padres jesuítas possuíam propriedades na área do Canopo e em 1744 fizeram
escavações nas quais encontraram uma série de esculturas egipcinizantes que hoje se encontram
no Museu Gregoriano Egípcio, no Museu Vaticano. Muitas delas desapareceram e as
conhecemos somente pelas descrições de Piranesi, Bulgarini e Nibby. Sobre as escavações, no
entanto, não possuímos nenhuma documentação (DE FRANCESCHINI, 1991: 11).
A última grande campanha realizada nesta área inclusive, remonta aos anos 1950, às
escavações de Salvatore Aurigemma que trouxeram à luz o Euripo. Seu sucesso, no entanto,
deveu-se à descoberta de mais de cinquenta estátuas, dentre as quais as Cariátides. Apesar de
relativamente recente, assim como nas escavações anteriores, Aurigemma estava interessado
somente nas esculturas, deixando completamente de lado o estudo do sítio e de sua estratigrafia
(DE FRANCESCHINI, 1991:15).
As escavações de Aurigemma, por outro lado, provaram que o Canopo era uma área
tricliniar, com suas latrinas e estibadios e não um templo (CHIAPETTA, 2008: 5). Para C.
Tiberi, o Canopo poderia ser considerado um santuário dedicado aos deuses samotrácios, a
exemplo de outros santuários como Delos e Alexandria (TIBERI, 1957-1958: 48). De acordo
com o autor, as esculturas gregas possuíam um significado complementar associado às Grandes
Divindades samotrácias e, portanto, aos cultos de mistério (TIBERI, 1957-1958: 66-70),
defendendo que seu culto estava integrado ao de Ísis e Serápis. E que, por conseguinte, seria
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43 Sobre a arquitetura do complexo e análise de sua estrutura, vide SALZA PRINA RICOTTI (2001: 241-263).
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possível estabelecer uma relação entre a arquitetura do Serapeum de Alexandria e o Canopo da


Villa Adriana (TIBERI, 1959-1960: 15-40).
Ele foi considerado durante muito tempo o local, por excelência, das esculturas
egipcianizantes da Villa Adriana. Contudo, apenas três esculturas do complexo podem ser
associadas ao Egito: a escultura de Ísis, o Nilo e o crocodilo. Estas estão associadas por sua vez,
às esculturas clássicas encontradas no local: quatro cariátides – cópias menores das do Eretteo de
Atenas – dois Silenos canéforos, duas amazonas, um Áries, um Hermes, Scilla, o Tevere,
Dionísio jovem (cabeça), sátiro com Dionísio, cabeça de jovem, Giulia Domna, Élio César e um
fragmento de torso masculino com pata de animal (SALZA PRINA RICOTTI, 2001: 259-261).
A estátua de Isis é de tipo helenístico-romano e estava, possivelmente, associada a
esculturas de outras divindades que decoravam a parte interior do ninfeo. O Nilo por sua vez
funcionava como pendant do Tevere e apesar de apenas podermos sugerir a sua posição na
entrada do Canopo, podemos afirmar que ambas estavam colocadas lado a lado. Finalmente,
acredita-se que o crocodilo situava-se dentro do grande canal e funcionasse como fonte.

O Antinoeion
O Antinoeion foi considerado inicialmente um mausoléo ou cenotáfio, e templo. Acredita-
se, no entanto, que ali residissem os restos mortais de Antínoo e o local fosse também sua tumba
como indica a inscrição do obelisco situado ali, o dito Obelisco Barberini ou de Antínoo. Era
constituído por uma grande exedra (27,30m de diâmetro) em forma de ninfeo precedida por dois
pequenos templos e todo o complexo era circundado por colunas e um muro. Entre os dois
templos encontrou-se uma base quadrada onde se acredita estivesse erigido o dito obelisco. Os
templos e a colunata eram integralmente feitos em mármore e os outros edifícios em tijolo
revestido de mármore ou estuque (MARI; SGALAMBRO, 2007: 83). Situado entre os Cento
Camerelle e o Grande Vestíbulo, o local era circundado ainda por tamareiras (MARI, 2010: 12) e
contava com área de 63 x 23m.
No témenos, cujo chão era decorado com mosaicos de mármore, estavam situados os dois
templos (cada um de 15 x 9m), de frente um para o outro, construídos em mármore pário. Cada
um deles constituído de um pronaos, cella e escadaria de acesso. Seus pisos e paredes eram
decorados em opus sectile e é bastante possível que as colunas do pórtico da exedra fossem de
mármore Chemtou, também conhecido como amarelo antigo (MARI; SGALAMBRO, 2007: 83-
84). A exedra encontrava-se em um plano realçado em relação ao témenos e era precedida por
duas pequenas piscinas separadas por uma escada e revestidas em mármore branco. De acordo
com Mari: “Ai lati di questa sono localizzati gruppi di ambienti accessibili da porte ricavate nel

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recinto: si individuano, a sinistra, un probabile corridoio scoperto pavimentato a mosaico di


grandi tessere e un ambiente quadrato, con basamento per statua sul fondo, anticamente
pavimentato e rivestito in sectile. Il muro del lato Sud del recinto, che risulta addossato a un taglio
nel banco tufaceo, mostra una parete-ninfeo a nicchiette rettangolari, da ciascuna delle quali uno
zampillo ricadeva nelle due vasche antistante. Una porta ricavata a metà della parete consentiva
di accedere, tramite una rampa, al livello superiore; qui si trova una cisterna da cui partiva una
grossa fistula plúmbea che, diramandosi, alimentava la parete-ninfeo e le vasche davanti all’esedra,
ma che doveva servire anche per l’irrigazione”44 (MARI, 2008: 113-114).
Acredita-se que os dois telamones de Osirantínoo em granito vermelho que pertencem
ao Museu Vaticano estivessem colocados ladeando a entrada da tumba-templo no centro da
exedra. Junto com o obelisco em granito vermelho, as duas estátuas no mesmo material
formavam um continuum visual para o observador que entrava no espaço do Antinoeion.
Um ponto importante a ser considerado é por que o edifício não deve ser considerado
um Iseum ou Serapeum ao invés de um templo dedicado apenas a Antínoo. De acordo com Mari,
sua posição é aquela típica de um monumento funerário extra-urbano e dos mausoléus dinásticos
ligados às grandes vilas. Além disso, sua construção, feita a passos largos, é imediatamente
posterior à morte de Antínoo (MARI; SGALAMBRO, 2007: 97). Outro dado importante é que
as últimas escavações na área da Palestra mostraram que o lugar de culto destinado a Ísis situava-
se neste último. De acordo com ele ainda, “we are not in position to establish the degree of
blending between the classical tradition and the Graeco-Alexandrian tradition in the Antinoeion.
This mix was certainly more evident in the decorations inside the temples, but on the outside,
there was a lear reference to Egypt – in the obelisk, the sculptural ornaments, and the plan”45
(MARI; SGALAMBRO, 2007: 97).
As recentes escavações desta área trouxeram à luz achados que podem nos ajudar a
colocar as peças encontradas ao longo dos séculos no mesmo contexto arquitetônico.
Acreditamos, portanto, que além das esculturas encontradas pelos Jesuítas em seu terreno, cuja

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44 Ao lado destas estão localizados grupos de ambientes acessíveis por uma porta escavada no recinto: identificam-
se, à esquerda, um possível corredor descoberto pavimentado com mosaico de grandes peças e um ambiente
quadrado, com fundação para estátua ao fundo, antigamente pavimentado e revestido em sectile. O muro do lado sul
do recinto que aparece apoiado em um corte no banco de tufa, mostra uma parede-ninfeo de pequenos nichos
retangulares, de cada um dos quais cai um feixe de água nos dois tanques de fronte. Uma porta escavada da metade
da parede permitia o acesso, através de uma rampa, ao nível superior; aqui se encontra uma cisterna da qual partia
uma grande fistula plúmbea, que ramificando-se, alimentava a parede-ninfeo e os tanques à frente da exedra, mas que
deviam servir também para a irrigação. (Trad. nossa)
45 Não estamos em condições de estabelecer o grau de mistura entre a tradição clássica e a tradição greco-alexandrina

no Antinoeion. Essa combinação foi certamente mais evidente nas decorações dentro dos templos, mas do lado de
fora, havia uma discreta referência ao Egito – no obelisco, nos ornamentos esculturais, e o no plano. (Trad. nossa).
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procedência do Antinoeion é já aceita, podemos somar a ele os achados da Roccabruna e da


Accademia.
Na torre de Roccabruna, foram achadas duas Aras Egípcias e um vaso decorado com um
relevo de serpente e na área da Accademia, outro vaso egípcio decorado com hieróglifos (SALZA
PRINA RICOTTI, 2001: 421-422). Inicialmente associadas aos Cento Camerelle, cujas escavações
foram realizadas por Pirro Ligorio, as ditas “cem câmaras” são constituídas, na verdade, por 125
quartos e podiam hospedar cerca de 1500 empregados; as esculturas egipcianizantes encontradas
nessa área remontam às escavações realizadas pelos padres Jesuítas no século XVIII, antes de
instalarem ali sua vinha. Aqui foram encontradas as esculturas de Ísis (duas), duas ermas
(Canopo e “Ísis” e Ápis, originalmente a escultura era de Osíris, tendo sido transformada em Ísis
depois da restauração), dez estátuas egipcianizantes, uma Ísis Lactante, um Harpócrates, um
Antínoo e um Osirantínoo, uma pequena capela e um busto de Ápis. Muitas destas esculturas
foram perdidas e as conhecemos apenas pelos desenhos de Rocceggiani e aquelas que restaram
encontram-se, em sua maioria, na coleção do Museu Vaticano.

A Palestra
O complexo da Palestra, que incluía ainda o Teatro Grego, formava uma ambiência grega,
sendo a entrada da primeira orientada no sentido do teatro (MARI, 2010: 15). O conjunto
denominado Palestra é constituído por vários edifícios reunidos em um único bloco com cerca de
100m de largura e pode ser identificado com o Vale de Tempe na Tessália. Deve seu nome a Pirro
Ligorio que o escavou nos Quinhentos e assim o denominou em função do que ele acreditava
serem duas praças porticadas e contíguas, que ele julgou próprias para exercícios físicos. Outro
fator que o levou a acreditar que o local era uma área destinada a exercícios foi a descoberta de
três bustos masculinos em mármore vermelho com a cabeça raspada e usando coroas de oliveira
que ele acreditou serem atletas. De acordo com Mari, “Una delle due ‘piazze’ corrisponde in
realtà ad una vasta sala, cinta da un doppio portico ad arcate su pilastri con nicchie per statue. Lo
spazio central (m 29.50 x 1.9), pavimentado a lastroni di cipollino, era coperto a capriate; i
portici, pavimentati in opus sectile, erano allietati, sotto le arcate esterne, da fontanine e vaschette.
Nel retro della sala si sviluppava un giardino o viridarium, circondato da un portico, anch’esso con
fontanine. Un lato della sala si affacciava su un giardino pensile, con elaborata fontana al centro,
innalzato su concamerazioni sostruttive a volta. Dal lato opposto è un’aula (m 18.50 x 13) divisa
in tre navate (colonne di cipollino e pavonazzetto abbattute all’interno, con basi e capitelli corinzi
in marmo bianco), pavimentata in sectile di marmo africano e con nicchie (o nicchie-finestre) alle
pareti. E’ raggiungibile tramite una scala orientata verso il Teatro Greco ed è preceduta da un

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ingresso distilo. In ragione di un’ampia porta sul fondo, da cui sembra avere inizio un corridoio,
l’aula potrebbe anche fungere da suntuoso vestibolo per accedere alla zona retrostante, ove si
innalzano le ‘sale nobili’ del Piranesi, due a pianta cruciforme coperte da volte a crociera e una
rettangolare con volta a botte”46 (MARI, 2010: 15).
Além dos bustos em mármore vermelho, Ligorio encontrou também uma Ísis-Fortuna,
um sacerdote carregando um vaso e um Hermes acéfalo, que de acordo com Mari, poderia ser
um Antinoo-Hermes. As escavações recentes revelaram ainda outras peças egipcianizantes: uma
esfinge acéfala (MARI, 2010: 16) e o corpo de uma íbis (MARI, 2010: 16).
O complexo possivelmente era um Iseum dotado de um aqueduto próprio dada a
importância da água nos rituais e também para as muitas fontes. Nele foram encontrados ainda
fragmentos de relevos nos quais pode se identificar Antínoo acompanhado de uma outra figura à
direita da cena e de frente para uma divindade sentada. Essa mesma cena aparece no topo do
Obelisco Barberini e poderia representar Antínoo como um novo deus diante de outras
divindades mais antigas a fim de oferecer e receber a benção divina (MARI; SGALAMBRO,
2007: 91-92). De acordo com Mari, esses fragmentos pertencem ao mesmo conjunto de 15
estátuas em mármore negro já descobertas nas escavações anteriores. Algumas delas representam
divindades enquanto outras podem ser atribuídas a sacerdotes e sacerdotisas. Para ele: “The
artistic level is very high, and their execution, given their Egyptian style, may be attributed to an
atelier of sculptors who were active at Hadrian’s Villa. Seeing that there are other sculptural
fragments in red or white marble, it may be inferred that the sculptural program consisted of
several tens of figures. There is also a group of statues representing divinities in animal forms
(e.g. the Horus falcon and the Apis bull). It is difficult to ascertain where all these sculptures
were placed; perhaps they were displayed in the niches along the temenos wall or on bases inside
the exedra”47 (MARI; SGALAMBRO, 2007: 91-92).

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46 Uma das duas “praças” corresponde, na verdade, a uma ampla sala rodeada por um pórtico duplo com arcos
sobre pilares com nichos para as estátuas. O espaço central (29,50 x 1,9 m), pavimentado com lajes de [mármore]
cipollino, era coberto com treliças; os pórticos, pavimentados com opus sectile, eram embelezados, sob as arcadas
externas, com pequenas fontes e tanques. Nos fundos da sala, desenvolvia-se um jardim ou viridarium, rodeado por
um pórtico, também esse com pequenas fontes. Um lado da sala voltava-se para um jardim suspenso, com fonte
elaborada ao centro, erguido sobre cavidades muradas em toda a volta. Do lado oposto está uma sala (18,5 x 13m)
dividida em três naves (colunas de cipollino e pavonazzetto demolidas no interior, com bases e capitéis coríntios em
mármore branco), pavimentada em sectile de mármore africano e com nichos (ou nichos-janela) nas paredes. É
atingido por uma escada voltada para o Teatro Grego e é precedida por um ingresso distílico. Em função de uma
ampla porta ao fundo, da qual parece ter início um corredor, a sala também podia servir como um suntuoso
vestíbulo para acessar a área atrás, onde erguiam-se as salas nobres de Piranesi, duas de planta cruciforme cobertas
por tetos em arcos e uma retangular com teto em arco profundo. (Trad. nossa)
47 O nível artístico é muito alto, e sua execução, dado seu estilo egípcio, pode ser atribuído a um atelier de escultores

ativos na Villa Adriana. Vendo que existem outros fragmentos escultóricos em mármore vermelho ou branco, pode-
se inferir que o programa escultórico consistia em várias dezenas de figuras. Há também um grupo de estátuas
representando divindades em forma de animais (por ex. Hórus falcão e Touro Ápis). É difícil saber onde todas essas
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Existe ainda um terceiro grupo de fragmentos em mármore branco que pode ser
associado com bases, altares e vasos e que também eram decorados com hieróglifos e símbolos
egípcios e que possivelmente faziam parte da decoração do temenos (MARI; SGALAMBRO,
2007: 91-92).
A dita Palestra apresentava ainda afinidades com o Serapeum do Campo Marzio (MARI;
SGALAMBRO, 2007: 92-96) tanto arquitetônica quanto esculturalmente e situa-se próximo ao
considerado Templo de Vênus de Cnido. Ali foram encontradas importantes estátuas
egipcianizantes como os bustos de sacerdotes em mármore vermelho, a cabeça colossal de Ísis e
uma sacerdotisa isíaca. Sua denominação deveu-se ainda à identificação, por Pirro Ligorio na
metade do século XVI, destes bustos com atletas (MARI; SGALAMBRO, 2006: 53). Sua função,
no entanto, estava ligada a frequentação da corte imperial, pois, de acordo com Mari, “as
características arquitetônicas não são aquelas de uma construção utilitária, mas de uma área de
múltiplas funções onde estão presentes espaços abertos (pátios porticados) e fechados em forma
de salas monumentais (...), revestimentos marmóreos parietais e pavimentais, bem como
decorações em estuque e pintura” (MARI; SGALAMBRO, 2006: 53-54).
Erroneamente interpretados como atletas por Ligorio, os sacerdotes em mármore
vermelho eram provavelmente estátuas de corpo inteiro usando vestes longas que fechavam
abaixo do peitoral até os tornozelos, feitas em mármore branco. Apesar de estarem sem os
braços, Ligorio os descreveu tendo pesos para exercícios nas mãos os quais podem ser
interpretados, no entanto, como objetos usados nos cultos isíacos (MARI; SGALAMBRO, 2012:
17).
A essa região são atribuídas ainda as estátuas de Ísis-Sothis-Demeter, uma Ísis-Fortuna,
um Hermes e um sacerdote egípcio carregando um vaso, restaurado como uma figura feminina
(MARI; SGALAMBRO, 2006: 18). Recentemente foram encontrados ainda fragmentos de um
nemes e o corpo de uma íbis em mármore branco (MARI; SGALAMBRO, 2006: 18). Todas estas
esculturas remetem às cenas isíacas de Erculano nas quais os cultos à deusa Ísis era representado.
Inclusive a estátua de sacerdote com vaso encontra analogia com as cenas erculanas.
Possivelmente ainda, além das figuras dos pássaros, encontravam-se ainda palmeiras (como foi
comprovado por Mari na região do Antinoeion) a fim de recuperar um ambiente nilótico. Além
disso, “La planimetria del complesso richiama alla mente la disposizione sparsa, articolata in
molteplici templi e sacelli, degli Isea e Serapea del período imperiale, come i Serapei di Alessandria,
Menfi e di altre metropoli mediterranee. Degna di nota è anche l’ambientazione topográfica, oggi

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esculturas foram colocadas, talvez estivessem dispostas em nichos ao longo da parede do temenos ou sobre bases no
interior da exedra. (Trad. nossa)
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difficilmente percepibile nel suo insieme a causa delle alberature e degli inserimenti edilizi
moderni: il complesso della Palestra sorge davanti a scenografica parete con nicchie e ninfei che
riveste il pendio del pianoro tufaceo su cui si estende la villa. Nello spazio interposto, privo di
costruzioni, si sviluppava sicuramente un giardino, ove notevole era l’abbondanza di acqua
assicurata da un apposito condotto che riforniva anche le fontanine dei portici degli edifici
retangolari e la grande fontana al centro del giardino pensile. In questo ambiente suggestivo,
cinto tutt’intorno e separato dal corpo della villa, confacente all’atmosfera delle celebrazioni
isiache, bene si vedrebbe il pilastro con la testa colossale di Isis-Sothis-Demeter, pilastro che
Ligoriodice situato ‘in luogo alto’, come effettivamente è questa parte della Palestra rispetto alla
sala ipostila. (...) È probabile, quindi, l’identificazione del complesso, eretto in base ai bolli doliari
fra il 125 e il 135 d. C., con un Iseum, ove figuravano le varie divinità del pantheon sincretistico
dell’Egito greco-romano, se non, addirittura, con il Canopum citato nella biografia di Adriano fra i
luoghi della villa chiamati con ‘celeberrima nomina’ che rievocavano all’imperatore famose località
visitate durante i viaggi”48 (MARI; SGALAMBRO, 2006: 19).
Não podemos, contudo, afirmar com certeza se os diversos lugares da vila estavam de
fato nomeados de acordo com os locais célebres do Império. Sabemos, por outro lado, que a
decoração desses templos era, em muitos casos, feita com peças vindas do Egito (SIST, 2008: 67)
e em particular estátuas de esfinges e leões e obeliscos (SIST, 2008: 67).

A Piazza d’Oro
A Piazza d’Oro, por outro lado, pertence à parte leste da Villa Adriana e por isso,
consideravelmente distante dos outros edifícios com peças egipcianizantes, apenas
compartilhando com estes a mesma função do Canopo. Tratava-se de um edifício tricliniar onde
podiam ser convidadas cerca de 370 pessoas para um banquete com o Imperador. Consistia em
um ambiente mais reservado que aquele e ao qual os hóspedes de Adriano podiam chegar pela

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48 O layout do complexo traz à mente uma disposição esparsa dividida em muitos templos e santuários, dos Isea e
Serapea do período imperial, como os Serapeos de Alexandria, Mênfis e outras cidades do Mediterrâneo. Digna de
nota é também a ambientação topográfica, hoje dificilmente perceptível em sua totalidade por causa das árvores e
inserções edilícias modernas: o complexo da Palestra está localizado em frente à parede cenográfica com nichos e
ninfeos que reveste a encosta do planalto de tufo sobre o qual se estende a vila. No espaço intermediário,
desprovido de construções, seguramente se desenvolvia um jardim, onde era notável a abundância de água
assegurada por cano destinado a abastecer as fontes dos pórticos dos edifícios retangulares e a grande fonte ao
centro do jardim suspenso. Neste ambiente sugestivo, todo rodeado e separado do corpo da vila, adequado a
atmosfera das celebrações isíacas, bem se veria o pilar com a cabeça colossal de Ísis-Sothis-Demeter, pilar que
Ligorio diz estar situado ‘em lugar alto’, como efetivamente é esta parte da Palestra em respeito à sala hipóstila. (...) É
provável, por conseguinte, a identificação do complexo, construído de acordo com os selos entre 125 e 135 d. C.,
com um Iseum, onde figuravam as várias divindades do panteão sincrético do Egito greco-romano, se não for
absolutamente, o Canopum citado na biografia de Adriano entre os lugares da vila chamados com nomes célebres que
evocavam ao imperador famosas localidades visitadas durante as viagens. (Trad. nossa)
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via que dava acesso direto à praça (SALZA PRINA RICOTTI, 2001: 265). Luxuosamente
decorado, acredita-se que esta fosse a mais bem decorada das três áreas tricliniares da vila,
devendo a isso sua denominação de “praça de ouro”.
Existem duas notícias diferentes sobre as esculturas encontradas aqui. A primeira é de
Ligorio que situa neste edifício duas Vênus, Ninfas do Oceano, Io ou Vênus egípcia, Hipponae e
muitos fragmentos. A outra notícia é de Winnefeld que faz referência às duas Vênus de Ligorio,
uma cabeça de Marco Aurélio, uma cabeça de filósofo com barba e uma cabeça feminina, todas
três perdidas (SALZA PRINA RICOTTI, 2001: 276). Ligorio, no entanto, não registra a
escultura de Io ou a dita Vênus egípcia. Sabemos da existência de outras esculturas que poderiam
nos dar uma indicação da iconografia desta estátua a qual será discutida em detalhe no catálogo.

O Pantanello
O Pantanello era possivelmente um lago artificial (OPPER, 2008: 158) e foi descoberto
nas escavações realizadas pelo pintor inglês Gavin Hamilton na segunda metade dos anos 1700 e
daqui provêm muitas das esculturas da Villa, fazendo desta área uma das mais ricas em esculturas
e mármores, atirados ali por alguma razão que hoje desconhecemos. De acordo com Salza Prina
Ricotti, é importante observar que, nas áreas onde se acreditava viver o Imperador, não se
encontrou nenhuma estátua ou outra obra de arte, a não ser pelos mosaicos. Para ela, é possível
que muitos mármores tenham sido reduzidos a pó, “mas provavelmente as melhores obras
foram levadas embora. Pode ser ainda que parte, se não tudo, do que foi encontrado no
Pantanello fizesse parte da área mais prestigiosa da Villa Adriana” (SALZA PRINA RICOTTI,
2001: 423).
Essa hipótese é corroborada pelos achados que incluíam dois ídolos egipcianizantes em
mármore negro, um egípcio ajoelhado segurando um cilindro nas mãos e uma base com
hieróglifos. Foram encontrados ainda bustos de Adriano, Antínoo, uma cabeça de Sabina, dois
pavões - os quais aparecem também na decoração do Mausoléu de Adriano e que estavam
associados à apoteose da Imperatriz (OPPER, 2008: 213-214), candelabros, um vaso e várias
divindades (SALZA PRINA RICOTTI, 2001: 422). Os dois ídolos egipcianizantes pertencem à
Coleção Lansdowne em Londres, mas, infelizmente as outras duas peças encontradas aqui não
sobreviveram até os dias atuais e apenas as conhecemos pelos desenhos de Roccheggiani.
Nos anos anteriores a 1724, o proprietário da área, Lolli, recuperou um pequeno número
de estátuas do pântano, mas foi somente em 1769, com o apoio do proprietário do terreno
contíguo, Domenico De Angelis que eles começaram a drenar o antigo lago. As obras foram

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realizadas por Hamilton e foram bastante frutíferas pois recuperaram dezenas de estátuas e
fragmentos que foram, no entanto, levados para a Inglaterra (DE FRANCESCHINI, 1991: 11).

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E. Calandra chama atenção para o fato de que as esculturas eram frequentemente


reposicionadas e que por isso, é difícil considerá-las como pertencentes a um único local
(CALANDRA, 1996: 265). Além disso, a longa dispersão das esculturas dificultou a associação
destas a seus espaços. Todo o conjunto remonta a uma série de cerca de quatrocentas estátuas
(RAEDER, 1983) que são normalmente divididas em três tipos: grega, romana e egipcianizante.
Contudo, a iconografia e a tipologia deste conjunto estatuário nos permitem sugerir a existência
de dois grandes grupos escultóricos egipcianizantes que decoravam a Villa Adriana: o primeiro
pertencente ao Aninoeion e o segundo ao Iseum, hoje conhecido como a dita área da Palestra.
De acordo com Calandra ainda, é possível propor uma estatística para as peças greco-
romanas, excluindo os retratos, as esculturas egipcianizantes e os animais, em que o V século está
presente com cópias de obras do estilo severo ao classicismo pleno de Policleto, Míron, Fídias,
entre outros; enquanto que ao IV século estão associados tipos escultóricos mais que autores
específicos. Entre os conhecidos, no entanto, aperece a Vênus Cnídia de Praxiteles. As obras
helenísticas, por sua vez, constituem praticamente uma antologia do período, com as figuras das
divindades fluviais, os Silenos ou os Centauros (CALANDRA, 2012: 82).
As esculturas de divindades não tinham, todas elas, função sacra, mas conferiam prestígio
ao encomendante. As decorações dos jardins eram normalmente dedicadas ao tema dinonisíaco,
por exemplo. Este é o caso, por sua vez, das esculturas pertencentes ao Canopo. Consideradas
no escopo da pesquisa, foram relacionadas aqui como parte das esculturas egipcianizantes.
Entretanto, apresentam fatura plenamente romana e serviam de decoração para esta área
destinada a banquetes. Caso do Nilo e do Tevere ou ainda do crocodilo fonte.
As esculturas da Villa Adriana pertencem a todo o curso da arte grega: do estilo severo ao
helenismo até a idade romana, assim como também não havia em Adriano a propensão por um
artista particular. Faltam apenas esculturas relativas ao período Arcaico. Na realidade, esta
variedade cronológica da estatuária não era uma idealização de Adriano, mas derivava de
modelos que ele conhecia, como por exemplo, as coleções de arte dos reis ptolomeus que eram
expostas ao público no Palácio de Alexandria e em Pérgamo. Seu programa artístico estava,
portanto, alinhado com o pensamento romano. Os comitentes consideravam a arte grega um
patrimônio e por isso, buscaram nos diferentes períodos, aspectos que atendessem às

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necessidades funcionais de um determinado momento. Não se tratava assim, de um tipo de


ecletismo devido à falta de originalidade ou capacidade de invenção (CALANDRA, 2012: 83)
romanas, mas da apropriação de elementos que dessem conta de um significado simbólico.
De acordo com E. Calandra: “Di certo, a Villa Adriana non mancano esempi di classicità,
ma mai presente allo stato puro e sempre associata ad altro: basti citare un caso da manuale come
l’arredo scultoreo del Canopo, in cui tanta letteratura ha visto rimandi ai viaggi dell’imperatore o
alla geografia dell’impero: di certo esso richiama la grande Atene clássica con le copie delle
Amazzoni realizzate in gara dai grandi del tempo o con le Cariatidi dell’Eretteo o ancora con
l’Ares e l’Hermes; ma se i lemmi di base sono questi, la sintassi complessiva è altra, e costruisce
un linguaggio diverso chiamando in campo le immagini dei Sileni, di fiumi, di animali, e con
buona probabilità i gruppi statuari riferibili al mito di Odisseu”49 (CALANDRA, 2012: 83).
A linguagem utilizada por Adriano, portanto, inseriu não só elementos compósitos da
arte grega em sua extensão temporal, mas podemos dizer também geográfica quando se utilizou
da arte greco-egípcia para elaborar os tipos escultóricos que compunham o programa
iconográfico da Villa Adriana.
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49 É claro que à Villa Adriana, não faltam exemplos de classicismo, mas nunca por si só e sempre associado a outro:
basta citar um caso de manual como a decoração escultórica do Canopo, em que boa parte da literatura viu
referências às viagens do imperador e a geografia do Império: isso certamente evoca a grande Atenas clássica com
cópias das Amazonas realizadas em disputa pelos grandes de seu tempo ou com as Cariátides do Ereteo ou ainda
com Áries e Hermes; mas se o fio condutor é esse, a sintaxe geral é outra, e constrói uma linguagem diversa
representando as imagens dos Silenos, dos rios, dos animais, e com grande probabilidade os grupos estatuários
relativos ao mito de Ulisses. (Trad. nossa).
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