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ISSN 0101 - 4366

Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos.


Et possint sera posteritate frui.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180, n. 481, pp. 11-360, set./dez. 2019.


INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
Considerado de utilidade pública:
Estadual: Lei nº 1.068, de 14-9-1966 (Diário Oficial do Estado, parte I, de 20-9-1966)
Federal: Decreto nº 61.251, de 30 de agosto de 1967
Av. Augusto Severo, 8, Rio de Janeiro, CEP 20021-040

Fundado em 21-10-1838, em plena Regência, por 27 sócios da prestigiosa Sociedade


Auxiliadora da Indústria Nacional, o IHGB originou-se de proposta anterior do marechal de
campo Cunha Matos e do cônego Januário da Cunha Barbosa. Pedro II logo o tomou sob seus
auspícios.
Os objetivos estatutários eram, entre outros: coligir, metodizar, publicar ou arquivar
documentos, promover cursos e editar a Revista Trimestral de História e Geografia ou o
Jornal do IHGB.
O Arquivo é hoje um dos melhores do Brasil, graças a sucessivas doações de papéis de
estadistas e historiadores, como José Bonifácio, o marquês de Olinda, Varnhagen, Cotegipe, o
conde d´Eu, o visconde de Ouro Preto, Prudente de Morais, Rodrigues Alves, Epitácio Pessoa,
Manuel Barata, Wanderley Pinho, Hélio Viana e Jackson de Figueiredo, entre outros.
A Biblioteca, por compra, doações e permutas, ultrapassa de 500 mil volumes, de grande
interesse para os estudos brasileiros.
A Mapoteca dispõe de cerca de 12 mil cartas geográficas, referentes, sobretudo, ao
território brasileiro.
O Museu, criado em 1851 para guardar a memória de varões ilustres em máscaras
mortuárias, retratos e lembranças pessoais, exibe hoje peças, como a espada de campanha de
Duque de Caxias (modelo dos espadins dos cadetes do nosso Exército) ou a cadeira em que
Pedro II, durante 40 anos, presidiu a 508 sessões do Instituto.
A Pinacoteca é rica, abrangendo desde a imensa tela da Coroação de Pedro II, de autoria
do sócio Araújo Porto-Alegre, até a impressionante galeria de retratos (e bustos) de monarcas,
nobres e personalidades da Colônia à República.
Os sócios, eméritos, titulares, honorários e correspondentes, no país e no estrangeiro, são
eleitos vitaliciamente. O corpo social promove conferências, congressos e cursos, anunciados
com antecedência, e realiza reuniões acadêmicas, de março a dezembro, todas as quartas-
-feiras. As atas são publicadas pela Revista no último número do ano.
R IHGB
a. 180
n. 481
set./dez.
2019
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
DIRETORIA – (2018-2019)
Presidente: Victorino Chermont de Miranda
1º Vice-Presidente: Jaime Antunes da Silva
2º Vice-Presidente: Affonso Arinos de Melo Franco
3º Vice-Presidente: João Maurício de Araújo Pinho
1º Secretária: Lucia Maria Paschoal Guimarães
2º Secretária: Maria de Lourdes Viana Lyra
Tesoureiro: Fernando Tasso Fragoso Pires
Orador: Alberto da Costa e Silva
CONSELHO FISCAL
Membros efetivos: Alberto Venâncio Filho, Luiz Felipe de Seixas Corrêa e Ma-
rilda Correia Ciribelli
Membros suplentes: Marcos Guimarães Sanches, Pedro Carlos da Silva Telles e
Roberto Cavalcanti de Albuquerque
CONSELHO CONSULTIVO
Membros nomeados: Antonio Izaias da Costa Abreu, Armando de Senna
Bittencourt, Carlos Wehrs, Célio Borja, Cybelle Moreira de
Ipanema, Esther Caldas Bertoletti, Maurício Vicente Ferrei-
ra Júnior e Miridan Britto Falci.
DIRETORIAS ADJUNTAS
Arquivo: Jaime Antunes da Silva
Biblioteca: Claudio Aguiar
Cursos: Antonio Celso Alves Pereira
Iconografia: Pedro K. Vasquez
Informática e Dissem. da Informação: Carlos Eduardo de Almeida Barata
Museu: Vera Lucia Bottrel Tostes
Patrimônio: Guilherme de Andrea Frota
Projetos Especiais: Mary del Priore
Relações Externas: Maria da Conceição de Moraes Coutinho Beltrão
Relações Institucionais: João Mauricio de A. Pinho
Coordenação da CEPHAS: Maria de Lourdes Viana Lyra e Lucia Maria Paschoal Gui-
marães (subcoord.)
Editor do Noticiário: Victorino Chermont de Miranda
COMISSÕES PERMANENTES
ADMISSÃO DE SÓCIOS: CIÊNCIAS SOCIAIS: ESTATUTO:
Alberto da Costa e Silva Antônio Celso Alves Pereira Alberto Venancio Filho
Alberto Venancio Filho Cândido Mendes de Almeida Antonio Celso Alves Pereira
Carlos Wehrs José Murilo de Carvalho Célio Borja
Fernando Tasso Fragoso Pires Maria Cecília Londres João Maurício A. Pinho
Lucia Maria Paschoal Guimarães Maria da Conceição de Moraes Victorino Chermont de Miranda
Coutinho Beltrão
GEOGRAFIA: HISTÓRIA: PATRIMÔNIO:
Armando de Senna Bittencourt Eduardo Silva Afonso Celso Villela de Carvalho
Cybelle Moreira de Ipanema Guilherme de Andrea Frota Antonio Izaías da Costa Abreu
José Almino de Alencar Lucia Maria Paschoal Guimarães Claudio Moreira Bento
Miridan Britto Falci Marcos Guimarães Sanches Fernando Tasso Fragoso Pires
Vera Lúcia Cabana de Andrade Maria de Lourdes Vianna Lyra Roberto Cavalcanti de Albu-
querque
REVISTA
DO
INSTITUTO HISTÓRICO
E
GEOGRÁFICO BRASILEIRO
Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos.
Et possint sera posteritate frui.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180, n. 481, pp. 11-360, set./dez. 2019.


Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 180, n. 481, 2019.

Indexada por/Indexed by
Ulrich’s International Periodicals Directory – Handbook of Latin American Studies (HLAS) –
Sumários Correntes Brasileiros – Google Acadêmico - EBSCO

Correspondência:
Rev. IHGB – Av. Augusto Severo, 8-10º andar – Glória – CEP: 20021-040 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Fone/fax. (21) 2509-5107 / 2252-4430 / 2224-7338
e-mail: [email protected] home page: www.ihgb.org.br
© Copyright by IHGB
Tiragem: 300 exemplares
Impresso no Brasil – Printed in Brazil
Revisora: Talita Rosetti Souza Mendes
Secretária da Revista: Tupiara Machareth

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. - Tomo 1, n. 1 (1839) -


Rio de Janeiro: O Instituto, 1839-
v. : il. ; 23 cm

Quadrimestral
ISSN 0101-4366
Ind.: T. 1 (1839) – n. 399 (1998) em ano 159, n. 400. – Ind.: n. 401 (1998) – 449 (2010) em n. 450
(2011)

1. Brasil – História. 2. História. 3. Geografia. I. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Ficha catalográfica preparada pela bibliotecária Maura Macedo Corrêa e Castro – CRB7-1142
CONSELHO EDITORIAL
António Manuel Dias Farinha – Universidade de Lisboa – Lisboa – Portugal

Arno Wehling – Universidade Veiga de Almeida – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Carlos Wehrs – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

José Murilo de Carvalho – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Manuela Mendonça – Universidade de Lisboa – Lisboa – Portugal

Maria Beatriz Nizza da Silva – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil

COMISSÃO DA REVISTA: EDITORES


Eduardo Silva – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Esther Caldas Bertoletti – Ministério da Cultura – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Lucia Maria Bastos Pereira das Neves – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ-Brasil

Maria de Lourdes Viana Lyra – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Mary del Priore – Universidade Salgado de Oliveira – Niterói-RJ – Brasil

CONSELHO CONSULTIVO
Fernando Camargo – Universidade Federal de Pelotas – Pelotas-RS – Brasil

Geraldo Mártires Coelho – Universidade Federal do Pará – Belém-PA – Brasil

Guilherme Pereira das Neves – Universidade Federal Fluminense – Niterói-RJ – Brasil

José Marques – Universidade do Porto – Porto – Portugal

Junia Ferreira Furtado – Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte-MG – Brasil

Leslie Bethell – Universidade de Oxford – Oxford – Inglaterra

Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos – Ministério das Relações Exteriores – Brasília-DF – Brasília

Marcus Joaquim Maciel de Carvalho – Universidade Federal de Pernambuco – Recife-PE – Brasil

Maria de Fátima Sá e Mello Ferreira – ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa – Lisboa – Portugal

Mariano Cuesta Domingo – Universidad Complutense de Madrid – Madrid – Espanha

Miridan Britto Falci – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Nestor Goulart Reis Filho – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil

Renato Pinto Venâncio – Universidade Federal de Ouro Preto – Ouro Preto-MG – Brasil

Stuart Schwartz – Universidade de Yale-Connecticut – EUA

Ulpiano Bezerra de Meneses – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil

Victor Tau Anzoategui – Universidade de Buenos Aires – Buenos Aires – Argentina


SUMÁRIO
SUMMARY
Carta ao Leitor 11
I – ARTIGOS E ENSAIOS
ARTICLES AND ESSAYS
Fingindo que representam o bem comum: 15
relações sociais e poderes invisíveis nos caminhos do sertão
Pretending to represent the common good: social relations and
invisible powers in the ‘sertão’ ways
Marcos Guimarães Sanches
A Balaiada e as disputas de memória das 41
elites políticas no Piauí oitocentista.
The Balaiada and the disputes of memory of the political
elites in the Nineteenth Century Piauí
Pedro Vilarinho Castelo Branco
Conselhos ao Imperador: Reflexões sobre as mensagens 71
de Luiz Algusto May a D. Pedro II
Advices to the Emperor: Reflections on the
messages of Luiz Augusto May to D. Pedro II
Alessandra Bettencourt Figueiredo Fraguas
A obra Combate Naval do Riachuelo como 95
lugar de memória da Guerra do Paraguai
The painting Combate Naval do Riachuelo
as a place of memory of the War of Paraguay
Guilherme Viertel
Sandra P. L. de Camargo Guedes
Homens do futuro, do presente e do passado 123
em comemorações históricas – Portugal e Brasil, século XIX
Men from the future, of the present and from the past
in historical celebrations – Portugal and Brazil, 19th century
Gustavo Pereira
A Constituição Castilhista de 1891 e as origens 153
do constitucionalismo autoritário na República Brasileira
The 1891 Castilhista Constitution and the origins
of the authoritarian constitutionalism in the Brazilian Republic
Argemiro Cardoso Moreira Martins
Francisco Rogério Madeira Pinto
O organizador e o planejador: Maurício Nabuco, 187
Roberto Campos e a transformação
da diplomacia brasileira no século XX
The organizer and the planner: Maurício Nabuco,
Roberto Campos and the reshaping of Brazilian
diplomacy in the 20th century
Rogério de Souza Farias
As razões do Direito Administrativo na doutrina brasileira 219
do século XIX (1857-1884)
The reasons of administrative law in 19th century brazilian
legal doctrine (1857-1884)
Walter Guandalini Junior
Poder e Punição através da Clemência: 255
O Direito de Graça entre Direito Penal e Constitucional
na Cultura Jurídica Brasileira (1824-1924)
Power and punishment through mercy: the Right of Pardon
between Penal Laws and Constitutional Law in the Brazilian
Juridical culture (1824-1924)
Arthur Barrêtto de Almeida Costa
As três funções do Solar Góes Calmon: 305
Residência da família, Museu do Estado da Bahia
e sede da Academia de Letras da Bahia
The three functions of the Goes Calmon Mansion:
Family residence, Museum of the State and headquarter
of the Academy of Letters of Bahia
Edivaldo M. Boaventura
II – COMUNICAÇÕES
NOTIFICATIONS
Manuel Bandeira e Gilberto Freyre: um encontro singular 329
Manuel Bandeira and Gilberto Freyre: a peculiar meeting
José Almino de Alencar
III – RESENHAS
REVIEW ESSAYS
O mal que destrói o corpo da República: 349
corrupção e mau governo na época moderna
(séculos XVI a XVIII)
Marcos Arthur Viana da Fonseca
• Normas de publicação 355
Guide for the authors 357
Carta ao Leitor

Integrando o processo de institucionalização da História no período,


foi ao longo do século XIX que surgiram os primeiros periódicos dura-
douros da especialidade. Em 1859, vinha à luz em Leipzig a Historische
Zeitschrift; a Revue Historique foi criada em 1876 por Gabriel Monod e
Gustave Faganiez; em 1884, surgia a Rivista Storica Italiana; dois anos
depois, The English Historical Review; enquanto The American Histori-
cal Review só veio à luz em 1895. Todas continuam ativas até hoje.

Contra esse pano de fundo, vale lembrar, no entanto, que, inaugura-


da em 1839, a R.IHGB completou 180 anos em 2019! Em seu primeiro
tomo, trazia breve notícia da criação do IHGB, no ano anterior, e o dis-
curso proferido naquela ocasião por Januário da Cunha Barbosa, seu se-
cretário perpétuo. De lá para cá, apesar de todas as dificuldades e agruras,
480 números vieram à luz e estão, há anos, para alegria de inúmeros estu-
diosos, disponíveis para consulta em linha no sítio do IHGB. Inicialmente
pensada com periodicidade trimestral, tornou-se hoje quadrimestral, com
a conversão em Anuário do último número de cada ano, justamente aque-
le reservado ao registro da vida acadêmica da casa e das demais ativida-
des institucionais. Por conseguinte, embora poucos se lembrem, trata-se
da mais longeva de todas as revistas de estudos históricos e, depois das
Philosophical Transactions of the Royal Society e do Journal des Savants
(ambas de 1665), uma das mais antigas revistas acadêmicas do mundo,
com publicação regular, até os dias atuais.

O objetivo da R.IHGB sempre foi o de divulgar as informações reu-


nidas tanto pelo corpo social do IHGB como por estudiosos da História,
da Geografia, da Antropologia, da Sociologia, do Direito, da Arquitetura,
das Artes e de outras áreas afins, com o objetivo de contribuir para a
discussão de problemas e questões que envolvam essas especialidades,
direta ou indiretamente, com o conhecimento do Brasil. No entanto, de
acordo com as conjunturas, sofreu adaptações, pois, desde von Martius
e Varnhagen, a escrita da História não deixou de transformar-se; e, com
ela, a Revista.
Por tradição, a R.IHGB reparte-se em quatro seções: a de “Artigos e
Ensaios”, a de “Resenhas”, a de “Documentos” e a de “Comunicações” –
em que se divulgam trabalhos expostos nas sessões da CEPHAS/IHGB.
Circunstâncias eventuais deixaram, contudo, o número atual praticamen-
te órfão das duas últimas. Não obstante tal inconveniente e o momento
delicado em que se encontra a vida cultural e acadêmica do país, 2019
constitui, portanto, mais um ano – o 180o – que se encerra com a missão
da R.IHGB cumprida.

Compõem este número dez textos inéditos, uma comunicação e uma


resenha. Na seção “Artigos e Ensaios”, percorrem-se os caminhos das re-
lações sociais e de poder nos sertões do século XVIII e chega-se a artigo
póstumo de Edivaldo Boaventura, reconhecido intelectual baiano, com
a análise das funções do Solar Góes Calmon em Salvador. Pelo trajeto,
encontram-se textos sobre as memórias políticas da Balaiada; cartas iné-
ditas de Luís Augusto May ao imperador; as comemorações oitocentistas,
numa perspectiva que tece passado e presente, do centenário da morte
do marquês de Pombal no Brasil e em Portugal; as origens do constitu-
cionalismo autoritário na República Brasileira a partir da Constituição
Castilhista de 1891; e a transformação da diplomacia brasileira no século
XX. Para completar, dois textos que enveredam pela História do Direito,
ao tratar do Direito Administrativo na doutrina brasileira do século XIX
e o Direito de Graça entre Direito Penal e Constitucional na cultura
jurídica brasileira.

Na parte das “Comunicações”, incluiu-se trabalho de cunho literá-


rio e histórico sobre singular encontro entre Manuel Bandeira e Gilberto
Freyre. Por fim, a “Resenha” debruça-se o “mal que destrói o corpo da
República: corrupção e mau governo na época moderna”, uma temática
bastante atual.

A variedade desses temas enriquece o diálogo da História com as


demais áreas de conhecimento e contribui para o esclarecimento de todos.
Que sirvam também – nessa ocasião em que se celebram os 180 anos da
R.IHGB –, para refletir sobre o papel da História na formação do mundo
contemporâneo, tão complexo quanto dividido por visões dicotômicas e
simplistas, para cuja compreensão a vocação dos estudiosos pode, assim,
ver-se mobilizada.

Façam bom uso da leitura!

Lucia Maria Bastos P. Neves


Diretora da Revista
Fingindo que representam o bem comum:
relações sociais e poderes invisíveis nos caminhos do sertão

15

I – ARTIGOS E ENSAIOS
ARTICLES AND ESSAYS

FINGINDO QUE REPRESENTAM O BEM COMUM:


RELAÇÕES SOCIAIS E PODERES INVISÍVEIS NOS
CAMINHOS DO SERTÃO
PRETENDING TO REPRESENT THE COMMON GOOD:
SOCIAL RELATIONS AND INVISIBLE POWERS IN THE
‘SERTÃO’ WAYS;
Marcos Guimarães Sanches1

Resumo: Abstract:
O título apropria uma afirmativa do Governador The title appropriates an affirmative of the
Gomes Freire de Andrada ao avaliar, junto ao Governor Gomes Freire de Andrada as he
Rei, a disputa entre interesses de grupos vincu- evaluate with the King the dispute between
lados às Freguesias do Pilar e da Estrela, ambos interests of groups linked to the Pilar and
em caminhos que levavam às minas no início do Estrela ‘Freguesias’, both on paths leading to
século XVIII. Nesta centúria, o interior da Capi- mines in the early Eighteenth Century. In this
tania do Rio de Janeiro foi desbravado por vias period, the interior of the Captaincy of Rio de
de comunicação que interligavam a capitania Janeiro was explored by ways of communication
fluminense às recém-descobertas áreas minera- that interconnected the ‘fluminense’ captaincy
doras. Nelas, se constituíram localidades inte- to the newly discovered mining areas, in
gradas aos novos circuitos econômicos. A cons- which were constituted localities integrated
tituição do espaço, resultante do complexo das to the new economic circuits. The constitution
relações sociais, deu vida a diversas localidades of space, resulting of the complex of social
que, mesmo quando não desfrutavam de status relations, gave life to several localities
administrativos específicos, como por exem- which, even when not contemplating specific
plo, Vilas, tiveram papel relevante no processo administrative statuses, as for example,
de conquista e de colonização. Os conflitos são Vilas, played a relevant role in the process of
conhecidos, assim como a documentação uti- conquest and colonization. The conflicts are
lizada, mas se pretende pensar o processo no known, as well as the documentation used, but
contexto da política metropolitana de controle this work intends to reason the process in the
context of the metropolitan policy of control and
e de extração sobre a colônia ao qual se juntava
extraction on the colony to which a broad set of
um amplo conjunto de interesses dos diversos
interests of the several social groups and their
grupos sociais e de suas respectivas atividades respective economic activities in permanent
econômicas em permanente disputa, produzindo dispute gathered, producing a situation in which
uma dinâmica na qual interagiam as resistências interact the resistances to colonial control and
ao controle colonial e, ao mesmo tempo, o seu its reinforcements as a possible instrument to
reforço como possível instrumento de apoio a support certain private interests as well. The
determinados interesses privados. As localida- localities, acknowledged as ‘Freguesias’ in the

1  –  Sócio Titular do IHGB. Professor de História do Brasil Colonial da Universidade


Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRO). E-mail: [email protected].

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Marcos Guimarães Sanches

des, reconhecidas como Freguesias na última last decade of the seventeenth century, were
década do século XVII, estavam “às margens “on the margins of the visible power”, for even
do poder visível”, pois, mesmo sem status ad- without administrative status, they interacted
ministrativo, interagiam por seus sujeitos num by the means of their subjects in a dialectical
processo dialético na regência da governação da process in regency of the governance of the
conquista. conquest.
Palavras-chave: Brasil Colonial; Rio de Janei- Keywords: Colonial Brazil; Rio de Janeiro;
ro; Sociedade Colonial. Colonial Society.

O título apropria uma afirmativa do Governador Gomes Freire de


Andrada ao avaliar, junto ao Rei, a disputa entre interesses de grupos
vinculados às Freguesias do Pilar e da Estrela, ambos em caminhos que
levavam às minas no início do século XVIII. Naquela centúria, se recon-
figurava o espaço da capitania. O núcleo urbano, cercado por explora-
ções rurais2, na expressão de Veríssimo Serrão, desde a sua fundação e
que avançara pelas terras agricultáveis do recôncavo da Guanabara, era
articulado, no início século XVIII, por caminhos, que aproveitavam an-
tigas vias dos “naturais da terra”, como já demonstrou Sergio Buarque
de Holanda3, ligando núcleos produtivos mais distantes, em especial, as
novas e ricas minas recém-descobertas.

Estava em construção uma região, entendida como um espaço deter-


minado resultante da ação do homem no meio, logo um fenômeno históri-
co, estruturado a partir de relações sociais específicas, que se diferenciam
conforme o lugar e o tempo. Melhor dizendo, usando a lição de Milton
Santos, um “verdadeiro campo de forças”4 cuja investigação deve consi-
derar as “configurações políticas e ideológicas na base deste processo”,
os seus “agentes”, na realização de seus interesses, e a construção de uma
narrativa explicativa do seu próprio processo constitutivo.

A historiografia, nos últimos anos, muito avançou no estudo das vi-


las e das cidades, mas pouco nos legou ainda sobre outros pontos de con-
quista como as Freguesias, os arraiais, as passagens, os locais e seu enrai-
2 – LISBOA, Joaquim, Veríssimo. O Rio de Janeiro no Século XVI. Lisboa: Comissão
Nacional do IV Centenário do Rio de Janeiro, 1965.
3  –  HOLANDA, Sérgio Buarque. Caminhos e Fronteiras. Rio de Janeiro: José Olympio,
1957, p. 24.
4 – SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova: da Crítica da Geografia a uma Geo-
grafia Crítica. São Paulo: Edusp, 2002, p.153.

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Fingindo que representam o bem comum:
relações sociais e poderes invisíveis nos caminhos do sertão

zamento no território, cabendo, talvez, não esquecermos o balanço feito


por Capistrano de Abreu da ocupação do território no final do período
colonial como “linhas interrompidas a cada instante”, “pontos indicando
um traçado a realizar”5.

A constituição do espaço, resultante do complexo das relações so-


ciais, deu vida a diversas localidades que, mesmo sem desfrutarem de
status administrativos específicos, por exemplo, como Vilas, tiveram pa-
pel relevante no processo de conquista e de colonização. Analisamos um
recorte de tais relações, por vezes conflituosas, entre indivíduos e grupos
com interesses ou autodefinidos, como “moradores” das Freguesias do
Pilar do Iguassu e da Piedade do Inhomirim (Estrela), pontos de partida
de caminhos para as minas, nas primeiras décadas do século XVIII, no
apogeu da exploração mineradora.

O Rio de Janeiro e, de modo geral, as capitanias do sul, tiveram cres-


cente importância no conjunto da América portuguesa, acompanhando
o “pleno progresso” da economia colonial, “o mais brilhante que uma
colônia europeia conhece no século XVII”, para citar as conclusões de
Mauro, para quem a concorrência antilhana prejudicou a economia do
açúcar, mas, a partir de 1670, “a prosperidade voltou definitivamente com
o ouro de Minas”6. As minas das gerais ampliaram os “triângulos” que de-
finiam o padrão do comércio atlântico de que já nos falava Boxer7, ideia
retomada e ampliada por Luís Felipe Alencastro (Portugal, Brasil, África;
Rio de Janeiro, Angola, Prata; Rio de Janeiro, Angola, Minas Gerais etc.).

No início do século XVIII, o interior da Capitania do Rio de Janeiro


foi desbravado por vias de comunicação que interligavam a capitania flu-
minense às recém-descobertas áreas mineradoras e, nelas, se constituí-
ram localidades integradas aos novos circuitos econômicos. A descoberta
do ouro e a ocupação das Gerais dinamizaram um circuito econômico

5  –  ABREU, J. Capistrano. Capítulos de História Colonial. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1976, p. 190.
6 – MAURO, Frédéric, Portugal, Brasil e o Atlântico, Lisboa, Estampa, 1989. Vol. II,
p. 281-282.
7 – BOXER, Charles. A Idade de Ouro do Brasil. São Paulo: Nacional, 1963, p. 40.

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Marcos Guimarães Sanches

regional polarizado na capitania fluminense, principal porto e centro da


colonização portuguesa no sul da América. Nesse contexto, à política me-
tropolitana de controle e de extração sobre a colônia se juntava um amplo
conjunto de interesses dos diversos grupos sociais e suas respectivas ati-
vidades econômicas em permanente disputa, produzindo uma dinâmica
na qual interagiam as resistências ao controle colonial e, ao mesmo tem-
po, o seu reforço como potencial instrumento de apoio a determinados
interesses privados.

As localidades, reconhecidas como Freguesias na última década do


século XVII, mas de pequena expressão urbanística, pois só foram eretas
Vilas, no caso de Estela, na década de 1840, estavam, de certa forma, “às
margens do poder visível”, na expressão de António Manuel Hespanha,
pois, mesmo sem status administrativo, interagiam por seus sujeitos num
processo dialético na regência da governação da conquista.

Ao longo do século XVII, se adensara a ocupação do recôncavo da


Guanabara, fruto da consolidação não só da produção de açúcar, mas
de uma economia escravista exportadora no entorno da cidade de São
Sebastião, verificável não só pela expansão numérica dos engenhos, mas
também pelo estabelecimento de várias freguesias, ou pelo menos sua
capela curada no Recôncavo, confirmando o avanço da fronteira agrícola,
a exemplo de Pilar, Santo Antônio de Sá e Jacutinga (1612), Suruí (1628),
São Gonçalo (1629), São João de Meriti (1646), Guia de Pacobaíba e
Magé (1647), Piedade do Inhomirim (1677), Itaboraí (1679) e Piedade
do Iguaçu (1699), todas com origem muito semelhante, criadas, via de
regra, em patrimônio privado por iniciativa de proprietários, senhores de
escravos e produtores agrícolas, estabelecidos em seu território.

O significado da criação das Freguesias não se esgota no entendi-


mento clássico de Américo Jacobina Lacombe como:
índice seguro da existência de núcleos ou centros de povoamento com
suficiente densidade demográfica para justificar a sua instalação [...].
Assim, pelo estudo das datas das sesmarias e das resoluções régias que
confirmaram a criação das freguesias é possível situar os pontos de

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Fingindo que representam o bem comum:
relações sociais e poderes invisíveis nos caminhos do sertão

povoamento e conjecturalmente retraçar os caminhos que os ligavam


à cidade8.

Representavam o “colo” não só no sentido de aconchegar e de guar-


dar, de Rafael Bluteau, mas expressando o morar, o ocupar, o trabalhar
e o cultivar, isto é, o ser colono, no dizer de Alfredo Bosi9, garantindo
concomitantemente o pasto do espírito e o controle dos corpos. A história
das duas Freguesias nos dá uma pista dessa função. Pilar foi criada em
1617 e Piedade do Inhomirim (Estrela), em 1677, ambas na condição
“curadas” ainda no contexto da expansão agrícola, mas foram alvos da
atenção da já criada Diocese de São Sebastião e transformadas em fregue-
sias “coladas”, em 1697, portanto dependentes da Fazenda Real, quando
já repercutiam no Rio de Janeiro as descobertas minerais10.

A abertura dos caminhos para as minas emprestou nova dinâmica


as duas localidades. Como alternativa ao caminho velho de Paraty, Artur
de Sá e Menezes, quando da sua segunda viagem a São Paulo, depois
estendida às minas, entre outubro de 1699 e março de 1700, contratou
com Garcia Rodrigues Paes a abertura do caminho para o Rio de Janeiro.
Fechava um círculo de pacto e de negociação com os paulistas, antecedido
pelo perdão concedido a Manuel Borba Gato, confirmado pelo Rei, que
lhe passou ainda a patente de General e a designação Garcia Rodrigues,
Guarda-mor das minas em 15 de janeiro de 1698. A necessidade de evitar
o extravio do ouro, além de garantir o comércio e o abastecimento das
minas, exigia a abertura de uma rede definida de caminhos, empreitada
delegada pelo Governador Artur de Sá e Menezes a particulares11. No

8  –  LACOMBE, Américo Jacobina. Ordens religiosas, irmandades e confrarias. Revista


do Instituo Histórico e Geográfico Brasileiro. Vol. 288, jul-set 1970. p. 188.
9 – BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992,
p. 11.
10  –  PIZARRO E ARAUJO, José de Souza Azevedo; Memórias Históricas do Rio de
Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1945. Ver respectivamente: Vol. 2º, p; 104 e Vol. 3º,
p. 220.
11  –  Arquivo Nacional (ANRJ). Correspondência dos Governadores do Rio de Janeiro,
Códice 77, Livro VI, f. 142v a 144v.

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dizer de Paulo Cavalcante, ao “pragmatismo do pacto incorporava os prá-


ticos da terra”12.

O caminho estava transitável nos primeiros anos do século XVIII,


apesar das restrições do novo governador Álvaro de Albuquerque, com
quem parece Garcia Paes não mantinha tão boas relações. Recebendo pe-
dido de ajuda de Rodrigues Paes em 8 de julho de 1703, o encaminhou ao
Rei em 14 do mesmo mês, observando os “poucos cabedais e escravos”
disponíveis para terminar a obra. Em 13 de março de 1704, respondia
negativamente a Rodrigues Paes e, a 24 de maio, encomendava novo ca-
minho a Amador Bueno da Veiga, representante de outra rede de poder
da sociedade paulista13, apesar da Ordem de 25 de agosto de 1704 reco-
nhecer: “Tenho notícia certa hé chegado das Minas, Garcia Roiz Paez, e
já descoberto o Caminho Novo”. No entanto, negava-lhe a pretensão de
empreender “a entrada que intentava fazer no Sertão”14.

O segundo caminho, já cogitado na encomenda a Bueno da Veiga,


foi efetivamente aberto, entre 1723 e 1725, por Bernardo Soares Proença,
partindo do Inhomirim, como adiante se verá. Há ainda uma terceira va-
riante, que aqui não nos interessa: a da serra do Tinguá que, partindo de
Piedade do Iguaçu, em ponto mais a montante do mesmo rio Iguaçu, se
comunicava com o caminho de Rodrigues Paes, na futura Freguesia de
Conceição do Alferes.

A construção do segundo caminho, o do Inhomirim, é o ponto de


partida para os conflitos que nos propomos a analisar. É inegável a “maior
comodidade” na transposição da Serra do Mar, mas a sua construção não
retirou a importância do Caminho Novo, tomando por base duas des-
crições do seu percurso. A clássica de Antonil, em 1711, indicava a im-
plantação no seu eixo de um conjunto de atividades produtiva (roças,
pousos etc.) que sabemos constitutivos de uma economia mercantil de

12 – CAVALCANTE, Paulo. Negócios de Trapaça. Caminhos e Descaminhos na Amé-


rica Portuguesa (1700-1750). São Paulo: Hucitec, 2006, p. 95.
13 – MAGALHÃES, Basílio. Expansão Geográfica do Brasil Colonial. São Paulo: Na-
cional; Brasília: INL, 1978, p. 301 ss.
14 – Idem. Ibidem.

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Fingindo que representam o bem comum:
relações sociais e poderes invisíveis nos caminhos do sertão

abastecimento. A mesma descrição apresentada por Antonil é repetida no


“Itinerário Geográfico”, de Francisco Tavares de Brito, em 1732, cuja
relevância pode ser inferida por sua inclusão no Códice Costa Matoso15.

Mapa

O Caminho Novo e suas Variantes

Fonte: Carta Topográfica da Capitania do Rio de Janeiro, Manoel Vieira Leão, 1767.

15  –  Itinerário Geográfico com a verdadeira descrição dos caminhos, estradas, roças,
sítios, povoações, lugares, vilas, rios, montes e serras que há da cidade de São Sebastião
do Rio de Janeiro até as Minas do Ouro (1732). In: Códice Costa Matoso. Coleção das
notícias dos primeiros descobrimentos das minas na Amnérica que fez o doutor Caetano
da Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em feve-
reiro de 1749 & outros papéis. V.1. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de
Estudos Históricos e Culturais, 1999, p. 898-910.

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Mas qual a relevância de nossas Freguesias? Quase um século e meio


depois do nosso recorte, Pilar e Estrela não se destacavam como polos
produtivos e apresentavam um tecido urbano bastante acanhado. Milliet
de Saint Adolphe (1845) definiu Pilar como uma “linda povoação” com
“uma só rua”, “casario aparatoso e com muitas lojas de fazenda”, com um
engenho, fornos de telhas e de tijolos e 3 mil habitantes16. Sobre Estrela,
refere-se a uma “povoação de muito comércio”, o “mais frequentado por-
to desta baía”, elevada a Vila em 1846, sem referências a produção local
e sua população17.

Os dados do nosso dicionarista estão próximos aos apresentados


por Fania Fridman para o final do século XVIII, sugerindo como hipótese
certa estabilidade no período, não se descartando terem os dois autores
consultado as mesmas fontes18.

Destacar o “acanhamento” das nossas localidades exige ampliar a


persecução para além do seu próprio limite para entender as disputas, as
tensões e os conflitos. Talvez, relativizar a afirmativa citada de Capistrano
de Abreu, já que os nossos “pontos” se situavam em traçados já realiza-
dos, os diferentes caminhos constitutivos de uma região econômica e so-
cial, englobando as Capitanias fluminense e mineira. Progressivamente,
o nosso espaço perdia os atributos de sertão, “apartado do mar” e entre
“terras”, no sentido de isolados, virgem, etc, como lhe atribuiu à época
Raphael Bluteau19.

Mais relevante ainda é o problema, pois os caminhos entre Rio de


Janeiro e Minas Gerais rapidamente ultrapassaram a mera condição de
passagem, constituindo-se em área de produção mercantil associada aos
seus dois extremos. Controlar o caminho era ter acesso ao trânsito das
16 – SAINT-ADOLPHE, J. C. R. Milliet de. Dicionário Geográfico, Histórico e Descri-
tivo do Império do Brasil. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro; Brasília: Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada, 2014, vol. 2, p. 675.
17 – Idem, 1º Volume, p. 299.
18  –  FRIDMAN, Fania. Freguesias Fluminenses ao final do setecentos. Revista do IEB
(Instituto de Estudos Brasileiros), nº 48, março 2001, p. 91-143.
19  –  BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez & Latino Disponível em: http://dicio-
narios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/. Acesso em: 10 de março de 2018.

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Fingindo que representam o bem comum:
relações sociais e poderes invisíveis nos caminhos do sertão

mercadorias, inclusive o ouro, interferindo na dinâmica do mercado e,


eventualmente, produzindo descaminhos, percepção que não escapou a
Braudel, que, ao se referir à importância do Porto de Estrela, “uma es-
tação de mulas, no sopé da serra do Mar às portas do Rio de Janeiro”,
afirma: “os que dirigem os comboios, os tropeiros brasileiros, financiam
a produção de algodão e, em breve, a do café. São os pioneiros de um
capitalismo precoce”20.

O recorte escolhido serve como microcosmos onde se manifestam


tensões e conflitos que, além de expressar suas dinâmicas, repercutem os
desafios da América portuguesa no início do século XVIII. A extração fis-
cal no contexto da atividade mineradora – tanto em relação à arrecadação
propriamente dita, quanto à jurisdição sobre ela –, o controle do acesso
às minas, a projeção do setor mercantil na capitania e sua articulação ao
setor produtivo e aos fluxos do comércio atlântico se apresentavam como
linhas de força na América portuguesa, particularmente na sua porção sul,
nucleada pelo Rio de Janeiro.

O primeiro dos problemas a sobressair envolve a tributação do ouro.


Diagnóstico produzido pelo Governador João de Lencastre, em 12 de
janeiro de 1701, “sobre a arrecadação dos quintos do ouro” é bastante
ilustrativo do quadro que se apresentava na medida em que o autor o
organiza em duas partes: “inconvenientes” e “remédios”. Relacionava a
“inconvenientes” a liberdade de ir às minas, a “gente vaga e tumultuaria
pela maior parte gente vil e pouco morigenadas”, a “vida licenciosa e
nada cristã”, o “valhacouto de criminosos, vagabundos e malfeitores”,
formadores do perigo de rebelião, além da existência de mais ouro “que
o conveniente”, o “detrimento” da lavoura e o aumento dos preços dos
escravos. Entre os “remédios”, defendia a proibição de ida às minas sem
passaporte passado pelo Governador geral e os do Rio de Janeiro e de
Pernambuco; uso de um caminho mais curto, pelo Espírito Santo, em via
a ser fortificado; a fundação de duas vilas nas barras dos rios das Velha e

20 – BRAUDEL, Fernand. Civilização Material e Capitalismo, Lisboa, Cosmos, 1970,


p. 281.

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Verde, “lugares abundantes em mantimento” e onde se cobraria o quinto e


o estabelecimento de fortalezas com tropas para manter a ordem21.

A administração e o controle fiscal das explorações auríferas não


pertenciam à alçada do Rio de Janeiro e sua Provedoria de Fazenda,
mesmo antes da criação da Capitania de São Paulo e Minas Gerais, em
1710, pois a Provedoria/Superintendência das Minas, desde os regimen-
tos filipinos, era um braço administrativo autônomo com direção provida
diretamente pelo Rei, apesar de na sua trajetória, desde a extinção da
Repartição do Sul até a designação de Rodrigo Castelo Branco (1673),
ter se mantido sobre o controle da rede encabeçada pelos Correia de Sá22,
sendo frequente a acumulação dos ofícios de Provedor da Fazenda e das
minas pelo mesmo oficial. Neste quadro, entrecruzavam-se os interesses
da sociedade colonial e a preocupação com o controle e a extração fiscal.

No entanto, a mineração, como já afirmamos em outra ocasião, “so-


bressai não só pela produção em si, mas pela formação de um complexo
econômico regional, envolvendo o Rio de Janeiro, Minas Gerais e, em
menor escala, São Paulo”23. De passagem, deve ser lembrada a separação
dos ofícios de Provedor da Fazenda e Juiz da Alfândega (Carta Régia, 4
de setembro de 1704)24, o estabelecimento na Alfândega da sua “pauta”25,
logo revisada, em 170126, com a consequente cobrança da dízima, inclu-
sive sobre os produtos agrícolas, dentre eles o açúcar, objeto de polêmi-
21  –  RAU, Virginia e SILVA, Maria Fernanda Gomes da. Os Manuscritos do Arquivo da
Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil. Coimbra, 1958, Vol. 2, Doc. 28, p. 14-17.
22  –  SANCHES, Marcos Guimarães. “Navegando em águas turvas” o averiguar e o tirar
proveito das minas no século XVII In Anais do IV Encontro Internacional de História Co-
lonial. Dimensões da desordem em colônias: injustiças, ilicitudes e descaminhos. Belém:
Açaí, 2012. v. 14. p. 134-147.
23  –  SANCHES, Marcos Guimarães. Proveito & Negócio. Tese de Doutoramento em
História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997, p. 149-150.
24  –  ANRJ, Códice 60, Vol. 28, fl. 113 v
25  –  Carta do provedor da Alfândega acerca da cobrança da dízima de todos os gêneros
entrados na Alfândega de São Sebastião do Rio de Janeiro, cujo rendimento os moradores
desta cidade haviam oferecido para custeio da Infantaria, com que se novo aumentara o
efetivo da guarnição. (Rio de Janeiro, 19 de junho de 1700). AHU Projeto Resgate, Rio
de Janeiro. Documentos Avulsos (AHU-RJ-AV). AHU_ACL_CU_017, Cx. 22\Doc. 2394
e 2395.
26  –  ANRJ. Vice-Reinado, Cx. 495, pc. 2.

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Fingindo que representam o bem comum:
relações sociais e poderes invisíveis nos caminhos do sertão

ca desde o século XVI27, e aparentemente só resolvido pelo Alvará de


16 de novembro de 1720, conciliando o entendimento da Junta dos Três
Estados e o dos “homens de negócio do Brasil, em prejuízo com a falta
de saída de açúcares”:
1 – os açúcares que se navegassem para fora do reino não pagariam
quaisquer direitos de entrada ou de saída; 2 – aqueles que se expor-
tassem antes da chegada da primeira frota da Baía, teriam além disso
dois tostões de favor por arroba, que se pagariam às pessoas que os
embarcassem dos mesmos direitos dos açúcares do reino abaixo de-
clarados, em presença da certidão do porto em que os desembarcas-
sem; 3 – os açúcares que se consumissem no reino e nas Ilhas, excepto
da Madeira, pagariam nas alfândegas dois tostões o arrátel do branco,
cento e cinquenta réis o do masca­vado e branco batido, estando nestes
direitos incluído o que dantes pagavam, mas o mascavado batido não
pagaria nada; 4 – em tudo o que fosse possível se observaria a respei-
to do açúcar o mesmo que se observava com o tabaco, e os oficiais
que dessem busca ao tabaco, nas naus do Brasil, dá-la-iam também
ao açúcar; os «descaminhadores» do açúcar incorreriam nas mesmas
penas que os do tabaco, havendo os mesmos interesses nas «tomadias
e denunciações», excepto na primeira frota que viesse de cada porto
em que se registasse apenas o que viesse fora do livro de carga. Toda
a pessoa que embarcasse açúcares para fora do reino seria obrigado a
apresentar, dentro de um ano, certidão dos portos onde haviam sido
desembarcados, ou da perda do navio, e para tal dariam fiança abo-
nada na alfândega da quantia em que importariam os direitos se se
consumissem no reino; sem certidão de ter dado a dita fiança não se
poderiam embarcar para fora quaisquer açúcares sob pena de serem
tomados como perdidos, metade para o denunciante e metade para a
fazenda real. Do produto dos direitos se «inteirariam» em primeiro
lugar a alfândega e o comboio e suas dependências, o que faltasse para
o pagamento dos «filhos da folha» tirar-se-ia dos dois tostões de favor
do açúcar que se navegasse para fora, e o resto ficaria consignado,
para pagamento das tropas. No que dizia respeito ao consulado e mais
direitos do açúcar, contratados, examinar-se-ia o que haviam impor-

27  –  Velhas discussões eram retomadas como a tributação do açúcar nas Alfândegas. Se
no início da colonização prevalecera a isenção de 10 anos para pagar-se o dízimo, mas não
a dízima, com larga burla na sua aplicação, agora, era necessário conciliar a captação de
recursos para despesas crescente e os interesses locais.

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tado os ditos direitos nos três últimos anos e o preço do «meyo» se


haveria por recebido do contratador enquanto durasse o seu contrato28.

Na separação dos ofícios, o Juízo da Alfândega passou a ser exerci-


do por Manuel Correia Vasques29, irmão do Alcaide-mor Tomé Correia
Vasques30, cujo filho Martim Correia Vasques estava casado, desde 1706,
com uma das filhas de Garcia Rodrigues Paes. De um lado, se ligavam os
grupos presentes no controle dos extremos do circuito, a produção mine-
ral e o porto do Rio de Janeiro, e, de outro, a rede dos Correia de Sá reto-
mava a gestão dos negócios fazendários, de onde estavam relativamente
afastados desde o assassinato do Provedor Pedro de Souza Pereira (1687),
homônimo do pai, proprietário anterior do ofício, agora exercido por Luís
Lopes Pegado, ligado a outros grupos atuantes na Capitania.

Nesse contexto, se multiplicavam os indícios de conflitos de juris-


dição, como na Carta Régia de 26 de outubro de 1697, recomendando
ao Governador Sá e Menezes que, “na averiguação das minas usasse de
toda jurisdição ... e de volta ... pertenceria a direção dellas ao Provedor
da Fazenda” e, mesmo no Regimento de 1702, claramente uma reação
ao profundo envolvimento de Artur de Sá e Menezes na mineração, limi-
tando, desde então, as interferências dos governadores, não fez cessar os
conflitos de jurisdição, talvez, em nome da efetividade da arrecadação,
como na manifestação do Governador João de Lencastre, em 26 de agosto
de 1698, ao lhe escrever, sobre sua primeira viagem a São Paulo:
...pouco fruto [da viagem] porém como os negócios a que V. S., foi,
são na sua opinião dos Paulistas, tanto contra nas conveniências, e
liberdade, é certo, os hão de dificultar de toda a sorte que puderem:
e assim é necessário que o tempo os desengane, e V.S. os persuadir,
de quão errada é a desconfiança com que vivem, na presunção do que
imaginam: e só V. S. com seu grande entendimento, os poderá reduzir
a que naquela matéria jogam sem carta coberta; porque entendo que

28  –  RAU, Virginia e SILVA, Maria Fernanda Gomes da. op. cit., Vol. 2, Doc. 381, p.
289-291.
29  – AHU Projeto Resgate, Rio de Janeiro. Castro e Almeida (AHU-RJ-CA). AHU_
ACL_CU_017-1, Cx. 13\Doc. 2716
30 – REINGANTZ, Carlos. Primeiras famílias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bra-
siliana, 1965, V. I, p. 251.

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Fingindo que representam o bem comum:
relações sociais e poderes invisíveis nos caminhos do sertão

os paulistas fazem particular estudo em ocultar o mesmo, que V.S.


procura descobrir31.

A nova conjuntura impactou evidentemente a economia regional, da


qual o Rio de Janeiro se tornava um núcleo ou um “empório” no dizer de
seu futuro Governador Gomes Freire de Andrade. Duas mudanças aqui
merecem ser registradas. A emergência de um grupo de homens de ne-
gócios, ligados preferencialmente à mercancia, mas que se interiorizava,
aparecendo nas disputas em torno dos caminhos, entendidos mais uma
vez não só como passagem, mas como locus de uma emergente produção
mercantil32. E, em paralelo, uma mudança na estrutura da arrecadação.
Se, até o final do seiscentos, os dízimos arrematados incidentes sobre pro-
dutos agrícolas respondiam por mais de 50% dos rendimentos da Fazenda
Real, a sua participação foi ultrapassada, no início do século seguinte,
pela dízima da Alfândega. O valor ofertado pela Câmara, quando da sua
implantação, em 1699 (14:968$273 rs) foi multiplicado nas décadas se-
guintes, num quadro de aumento geral da arrecadação sistematizado por
Angelo Carrara:
Em 1702, na Bahia, o valor do contrato dos dízimos continuava a
crescer. Por volta de 1710, o contrato das baleias, arrematado por seis
anos, a 110.000 cruzados; contrato dos dízimos, arrematado a qua-
se 200.000 cruzados [por ano]; contrato dos vinhos, por seis anos,
a 195.000 cruzados; contrato do sal, por doze anos, a 28.000 cruza-
dos por ano; contrato da aguardente da terra e do Reino, por 30.000
cruzados. No Rio de Janeiro, o contrato das baleias, arrematado por
três anos, a 45.000 cruzados; contrato dos dízimos, por três anos, a
190.000 cruzados; rendimento da Casa da Moeda: em dois anos, a
cunhagem de “3 milhões de moedas de ouro deu de lucro a El-Rei que
a compra a 12 tostões a oitava, mais de 600.000 cruzados”; contrato
dos vinhos, por 4 anos, 50.000 cruzados; imposto de 10% das fazen-
das do Rio de Janeiro, 80.000 cruzados por ano. Em Pernambuco, o
contrato dos dízimos, por três anos, 97.000 cruzados; contrato dos

31 – Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1929, Vol. XI, p.263-
268.
32  –  SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais
e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650-c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2003, p. 148.

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vinhos, por três anos, 46.000 cruzados. São Paulo, os dízimos, por três
anos, 60.000 cruzados33.

Na Alfândega fluminense, em 1712, o valor da dízima alcançou a


cifra de 53:200$000 réis. No triênio de 1721 a 1723, o valor saltou para
166.500 cruzados anuais (mais 25%)34, isto é, 66:600$000 e, no seguin-
te (1724-1727), totalizaram 243.500 cruzados anuais, isto é, 97:400$000
réis (mais 82%)35. “Este crescimento prenunciava uma transformação
muito mais profunda: a mudança do eixo de gravidade econômica do
Brasil: de Salvador para o Rio de Janeiro”, representando mais da metade
das rendas do início do século36.

Em síntese, o conhecido levantamento de 1733 consolida a percep-


ção da crescente preponderância das atividades mercantis.
RIO DE JANEIRO
RENDIMENTOS – 1733

CONTRATOS VALORES
Dízima da Alfândega 107:600$000
Dízimos Reais 57:630$000
Direitos dos Escravos para Minas 43:200$000
Tabaco 37:200$000
Passagens (Caminhos das Minas) 33:375$00

Fonte: IHGB. Arquivo Ultramarino, 1.2.12 e 1.4.3137.

33  –  CARRARA, Angelo Alves. Fiscalidade e Conjunturas Financeiras do Estado do


Brasil, 1607-1718; Disponível em: http://www.leitura.org/fiscalidade-e-conjunturas-fi-
nanceiras-do-estado-do-brasil-1607.html. Acesso em 12 de agosto de 2014..
34  –  Inclui também os rendimentos de Santos. Documentos Históricos. Rio de Janeiro:
Biblioteca Nacional, 1928, Vol. I, p. 66-67.
35 – Idem.Vol. I, p. 95.
36  –  CARRARA, Angelo Alves. op. cit..
37  –  Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Arquivo. Conselho Ultramari-
no. 1.2.12 – “Relação de todos os contratos e mais rendas reaes que tem Sua Magestade,
que deus guarde, na capitania do Rio de Janeiro, suas origens e criações e para o que forão
aplicadas as suas consignações” (1733); Idem. 1.4.31 - “Lista dos contratos que tem a
Capitania do Rio de Janeiro, seus principios, arrematações fios presentes, e antecedentes
triénios, rendimento de toda a Fazenda Real, Casa da Moeda, donativo e guarda costa: os
documentos de suas despesas certas, e incertas e o liquido de todo o rendimento. Relação
dos ofícios e seus proprietários” (1734)

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Fingindo que representam o bem comum:
relações sociais e poderes invisíveis nos caminhos do sertão

Os dados apresentados nos remetem à problemática dos caminhos


e seu controle, pois o rendimento das passagens para as minas, naquele
ano, representava aproximadamente 30% do rendimento da Alfândega e
57% dos dízimos reais. Só a passagem dos rios Paraíba e Paraibuna foi
arrematada em 1732 por 27 mil cruzados, quase o dobro do contrato an-
terior de 16 mil38.

No primeiro momento, os registros foram administrados por particu-


lares por meio de contrato com a Fazenda Real, sendo os contratadores
pessoas ligadas, de alguma forma, à mineração, como no caso do Guarda-
mor, Garcia Rodrigues Paes. Mais tarde, instituiu-se a administração por
funcionários régios, os Provedores dos Registros, o que não corresponde
necessariamente ao esforço centralista e fiscalista da administração por-
tuguesa setecentista, pois tais indivíduos pertenciam ou estavam ligados
a grupos locais poderosos e, tampouco, eliminou a participação de parti-
culares nos negócios em torno dos registros, como o conhecido caso de
Matias Barbosa, cujo desdobramento de ação empresarial constituiu o
importante patrimônio fundiário dos Souza Coutinho em Minas Gerais39.

O controle dos registros era também objeto de disputa entre institui-


ções locais, como as Câmaras e as Provedorias. Em 1706, o Rei concedia
a Provedoria de Santos o controle dos registros em São Paulo, mas, em
1715, ao tratar do Registro do rio Pinheiros no planalto paulista, determi-
na que as Câmaras circunvizinhas, “concorram por finta, ou pelo modo
que for mais suave”40.

Não é clara a documentação ainda nos primeiros anos do setecen-


tos sobre o exercício efetivo da autoridade nas minas: enquanto Garcia
Rodrigues Paes ainda é destinatário do Rei na condição de Guarda-mor,
em 1 de maio de 1702, ainda que provavelmente afastado por longo pe-
38  –  ANRJ. Correspondência dos Governadores do Rio de Janeiro. Códice 84, 2, 82. 94
e 135v.
39  –  PINTO, Francisco Eduardo. A Hidra de Sete Bocas. Sesmeiro e Posseiros em con-
flito no povoamento das Minas Gerais (1750-1822). Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2014,
Capítulo 4.
40 – Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1928, Vol. I, p. 26-27
e 44.

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ríodo por força da empreitada de abertura do caminho, desde 1701, o


Rei concedia os valores do dízimo e um contingente de índios a Manoel
Rodrigues Arzão para ir às minas e, explicitamente, nomeava a Antonio
Rodrigues Arzão “suceder na administração das minas” (30 de janeiro de
1701 e 26 de março de 1701).

No mesmo momento, já se faziam presentes dois temas recorrentes


em boa parte do século XVIII: a discussão sobre os “meios para a boa ar-
recadação dos quintos” (27 de novembro de 1699) e o pedido de informa-
ções “todos os anos” dos rendimentos da Fazenda Real (13 de janeiro de
1700 ), reiterado pelo Conselho Ultramarino, em 21 de outubro de 1700,
em uma conjuntura em que eram crescentes as despesas inclusive com a
defesa41, resistindo a Coroa, como na manifestação de 12 de novembro de
1701, na utilização dos quintos – “rendimentos ... pertencentes a Fazenda
Real” nos encargos crescentes42. O próprio Provedor reclama que o re-
gimento, por ser muito antigo, não dava conta da diversidade dos novos
encargos, sendo orientado pelo Rei (21 de outubro de 1700) a aplicar o
Regimento das Fronteiras, ordenamento de clara inspiração militar43.

Certamente, o quadro foi agravado após as invasões francesas de


1710 e 1711, pela preocupação de defesa, já manifestada por Marialva,
em 1709, e reiterada por sucessivos documentos dos Conselhos da mo-
narquia44, nos quais alguns dos seus próceres, como o Duque de Cadaval
e o Marques de Fronteira, chegaram a defender o abandono do sul, dis-
pensável face “aos quintos e às arrobas” (Cadaval), não sendo o Prata e o
mar “os verdadeiros limites do Brasil” (Fronteira)45.

A sobreposição de jurisdições, típica do Estado moderno, também


interferia no processo de arrecadação. Apesar de claramente os quintos
não serem arrecadados na Provedoria da Fazenda (no caso do Rio de

41  –  IHGB. Arquivo, Conselho Ultramarino, 1.1.22.22, 399 e 1.1.22.22, 402.


42 – Idem, 1.2.23, 23, 8v.
43  –  ANRJ. Códice 61, Vol. 13, fl. 245.
44  –  Ver como exemplo: RAU, Virginia e SILVA, Maria Fernanda Gomes da. op. cit.,
Vol. 2, Doc. 125, 126 e 127, p. 80 ss.
45 – Idem. Vol. 2, Doc. 176 e 177, p. 119-120.

30 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):15-40, set./dez. 2019.


Fingindo que representam o bem comum:
relações sociais e poderes invisíveis nos caminhos do sertão

Janeiro), vários dos seus titulares alegavam a condição de “procurador”


da Rainha, titular dos direitos sobre o ouro. Ainda em 1716, Bartolomeu
de Siqueira Cordovil evocava tal condição a exemplo do antecessor Luis
Lopes Pegado, o que lhe foi negado em Consulta da lavra do Duque de
Cadaval e aparentemente em caráter definitivo. Firmava-se o entendi-
mento que a concessão de D. João IV à Rainha não era pessoal e fora
feita especificamente sobre as minas de São Paulo, as únicas conhecidas
na época46.

Mas, no caso de São Paulo, o conflito remontava à sucessão do pri-


meiro donatário e se prolongou até o período pombalino. Quando da cria-
ção da Capitania de Minas Gerais e São Paulo, em 1709, foi declarada a
extraterritorialidade de Santos, sob a alegação de se evitar descaminhos
do ouro. A nova Capitania de São Paulo (1720) reincorporava Santos e,
sob a direção de Rodrigo Cesar de Menezes, reforçava seu contato com as
redes comerciais mais amplas do Atlântico, onde a família do Governador
tinha importante atuação. Mesmo o território da Capitania sendo gradu-
almente reduzido com a criação de Santa Catarina e Rio Grande (1738)
e Mato Grosso e Goiás (1748), quando São Paulo foi novamente subor-
dinado ao Rio de Janeiro, pelo menos, até 1753, se arrastavam as nego-
ciações com os herdeiros de Martim Afonso de Souza pelo domínio da
Capitania. O herdeiro Marques de Cascais reivindicava direitos sobre os
rendimentos da mineração, como já citado, enquanto a Coroa frequente-
mente pedia informações sobre os rendimentos das capitanias de donatá-
rio, como especial atenção para São Vicente47.

Somente com a criação, entre 1735 e 1736, das Superintendências,


com competência judicial, organizadas em regiões de produção, em vá-
rias Capitanias e, de certa forma, descentralizando o controle com vistas
ao aumento da arrecadação48, eram reduzidos os conflitos em torno da
atraente arrecadação da tributação sobre o ouro49.
46 – Idem. Vol. 2, Doc. 244, p. 182-183.
47  –  Ver como exemplo os pedidos de 15.3.1727 e 22.8.1727. Documentos Históricos.
Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1928, Vol. I, 131-135.
48 – Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1928, Vol. I, 282 ss.
49  –  Alvará sobre administração e funcionamento das intendências da fazenda Real no

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):15-40, set./dez. 2019. 31


Marcos Guimarães Sanches

O perigo externo, os conflitos de jurisdição e a disputa entre vários


grupos da sociedade colonial não passavam despercebidos dos oficiais
do Reino. As reações contra Castro Morais, as desordens em torno da
posse de Antônio de Albuquerque, levando o governador a reconhecer em
mais de uma ocasião, “ser necessária toda prudência com sujeitos arrui-
nados e poucos ciosos de suas conquistas”50, reverberaram no Conselho
Ultramarino em manifestação de Antônio Rodrigues da Costa, a propósito
dos embates entre o Governador Francisco Távora e a Câmara da cidade,
envolvendo as despesas decorrentes do resgate da cidade aos franceses:
“[...] para lhe ser mais suave e semelhantes apertos não servem mais que
de exasperar os povos e fazer pesado o jugo da obediência de vida do
Príncipe [...]51”.

O quadro apresentado se reflete no nosso objeto: a disputa de interes-


ses entre indivíduos e “moradores” com negócios na área dos rios Iguaçu
e Inhomirim, onde se destacavam respectivamente os portos do Pilar e da
Estrela, pontos de partida de dois caminhos, dentre as muitas variáveis
existentes, utilizados para a ligação com as minas. Embora a documenta-
ção explorada já seja conhecida, nos parece possível aprofundar a análise
da dialética entre o micro e o macro.

As restrições impostas ao trânsito e/ou a preocupação com os regis-


tros expressavam o fiscalismo típico da política colonial no setecentos. No
entanto, os interesses da fazenda real deveriam conciliar-se com os das
fazendas privadas, gerando, via de regra, disputas e conflitos variados. O
fiscalismo da metrópole e o direito de resistência, arraigados na cultura
política do Antigo Regime, expunham as tensões que prenunciavam, se

Brasil, 28.1.1736. AHU Projeto Resgate, Minas Gerais (AHU-MG). Arquivo Histórico
Ultramarino, Minas Gerais, Cx. 32, Doc. 6; Doc. 21. AHU_ACL_CU_011, Cx. 31\Doc.
71.
50 – ANRJ. Códice 756. Ver cartas a D. Lourenço de Almeida, de 16 de novembro de
1711 e a Antônio de Albuquerque a Pedro de Vasconcellos, de 11 de julho de 1712.
51  –  AHU-RJ-CA. Parecer do conselheiro Antônio Rodrigues da Costa em consulta do
Conselho Ultramarino, de 20 de janeiro de 1714. AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 16. Doc.
3336.

32 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):15-40, set./dez. 2019.


Fingindo que representam o bem comum:
relações sociais e poderes invisíveis nos caminhos do sertão

não a crise da colonização, pelo menos a reformatação do Império agora


“deste mundo”52.

Os conflitos então desencadeados envolviam moradores de diferen-


tes capitanias e instâncias da administração, colonos entre si e face às au-
toridades. A localização dos registros, ponto nevrálgico para o controle do
tráfico interno, mudou nos momentos iniciais da mineração, sob a pressão
de diferentes autoridades coloniais. O Conde de Assumar, destacado na
historiografia pelos esforços de impor a ordem nas minas, reivindicava
a transferência do registro de Iguaçu para a Paraíba para “evitar que se
passasse do Rio de Janeiro para as minas com negros e fazendas”. O re-
gistro tinha sido deslocado de serra acima para a baixada pelo governador
Francisco Xavier de Távora para retira-lo da jurisdição do Governador de
São Paulo e Minas Gerais com quem divergia sobre os limites entre as
duas capitanias e em consequência sobre a jurisdição do registro53.

Tratamos de um recorte especial constituído em torno de dois cami-


nhos “oficiais”, reconhecidos pela administração e dotados de algum tipo
de controle fiscal, mas não se deve perder de vista que, em paralelo, as
vias “oficialmente” reconhecidas, como a ligação entre os nossos dois ca-
minhos, como adiante se verá, funcionaram ativamente. Ao caminho pio-
neiro aberto por Garcia Rodrigues Pais, foram anexadas outras variantes,
reconhecidas ou não pela administração, pelas quais fluía o comércio en-
tre o litoral e as minas. No início da década de 1720, apogeu da produção,
a Coroa promoveu a abertura de nova via, com maior “comodidade”, face
à topografia do terreno e à menor extensão. Incumbindo-se da emprei-
tada, o Sargento-mor Bernardo Soares Proença, depois de Garcia Paes
ter declinado da tarefa, recebeu a determinação régia: “vá aquele sertão
fazer o referido exame” para comprovar as “ditas” vantagens anunciadas
pelos moradores do Inhomirim.

52  –  SOUZA, Laura de Mello e BICALHO, Maria Fernanda. 1680-1720: o império des-
te mundo. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
53  –  CARVALHO, Theophilo Feu. Caminhos e roteiros nas Capitanias do Rio de Janei-
ro, São Paulo e Minas In: Annaes do Museu Paulista. São Paulo: 1931, T. 4º, p. 689-699.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):15-40, set./dez. 2019. 33


Marcos Guimarães Sanches

A ação da coroa, no sentido da abertura de novo caminho, encontrou


respaldo nos moradores do rio Inhomirim, ponto de partida do caminho
de Proença, que, em 1723, além de enumerar as suas vantagens, se pro-
punham a “abrir o dito caminho a nossa custa”, com menos “inconveni-
ências” que o do Iguaçu54 .

Reagiram os moradores do Iguaçu à decisão do Ouvidor Antonio de


Souza de Albuquerque (11 de junho de 1723) ordenando, por ser “mais
conveniente ao Serviço de Sua Majestade”, a diligência do Sargento-mor
para estabelecer o novo caminho. Não tiveram sucesso, estando o cami-
nho finalizado em 1725, como se pode concluir da Carta Régia encami-
nhada ao Governador Aires de Saldanha e Albuquerque (6 de julho de
1725), mandando “de minha parte – agradeçais ... o serviço que me fez
neste particular movido pelo zelo do Real Serviço”:
[o] dito exame à sua custa, em que gastou cinqüenta dias examinando
pessoalmente com muito trabalho e desvelo as paragens mais exqui-
sitas encurtando em quatro dias e mais direto e suave por descobrir
melhores passagens nas abertas [vales/gargantas] das serras e também
com viagem mais direta e breve desta Cidade[Rio de Janeiro] para o
dito Rio de Inhomirim, o qual não só tem a comodidade de ser habita-
do de vários moradores pelas margens dêle, logo do princípio de sua
barra para cima como vários portos abundantes de toda maré, conve-
nientes para o desembarque da gente e cavalaria, mas também livre da
pensão que há no Rio de Guaguassu de fazerem segunda viagem em
canoas pequenas pela incapacidade do dito rio e não ser necessário
tirarem as cargas aos cavalos nas passagens estreitas e perigosas, que
não tem [...] fazendo-se o caminho pelo rio Inhomirim que desde a
barra é povoado de moradores, com estalagem à beira d’água, cômo-
dos pastos para as bestas até o porto e que as dito acomodar, porque de
qualquer pôrto poderão carregar bestas e marchar até o Paraíba sem ti-
rar cargas, nem sentirem inconveniência de subir serra nem alugarem
canoas por não ser necessário e sobretudo ser o caminho muito breve
que em três dias se poderá ir à Paraíba55.

54  –  AHU-RJ-CA. AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 20\Doc. 4398.


55 – Idem. AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 33\Doc. 7832

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Fingindo que representam o bem comum:
relações sociais e poderes invisíveis nos caminhos do sertão

Garcia Rodrigues Paes, apesar de ter se escusado da tarefa, pleiteou


terras no novo caminho – que a carta do Governador sugere já possuir
algum tipo de atividades ligadas ao trânsito, como pousos e estalagens -,
o que lhe negou o monarca que, de outro lado, fez concessão ao Sargento-
mor56. Constata-se, mais uma vez, a máxima “sem mercê, não há serviço”,
ou seja, a prestação de serviços, “movido pelo zelo do Real Serviço”, im-
plicava concessões, privilégios e mercês, o que o próprio Rei admitia em
segunda carta de agradecimento endereçada ao Governador Luis Vahia
Monteiro (28 de novembro de 1728), ordenando “lhe torneis a agradecer
de minha parte o bom serviço e zêlo com que neste particular se tem ha-
vido, o final fica na minha leal lembrança para atender aos seus préstimos
quando tratar dos seus requerimentos”57.

Não tardou a reação enérgica dos moradores do Iguaçú contra o novo


caminho expressa em requerimento do Padre João Álvares de Barros,
Vigário de N.S. do Pilar, detentor “da preferência que há muitos anos tem,
em o Porto chamado de Pilar, para navegação das suas canoas, em terras
do seu porto, em fazenda sua e com atenção das extraordinárias despesas
que fez na abertura do mesmo rio”58.

O vigário, além de defender as melhores condições do Iguaçu sobre


o Inhomirim, recorria ao Rei de decisão do Governador em transferir o
privilégio para João Cherem, sob o pretexto, segundo o recorrente, de “se
obrigar a conduzir os pretextos de guerra, soldados e mais coisas perti-
nentes ao Serviço Real”, o que o requerente dizia estar sempre atendendo.
A decisão régia foi declarar “livre a navegação no Pilar”, por meio de
Ordem Régia de 14 de junho de 1725 endereçada ao Provedor da Fazenda
Bartolomeu de Siqueira Cordovil59.

A decisão não impediu a retomada das divergências, em torno de


privilégios que para os colonos abasteciam “suas fazendas”. Bernardo

56 – Idem. AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 21\Doc. 4811.


57 – Idem. AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 33\Doc. 7832.
58 – Idem. AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 22\Doc. 4946.
59 – Idem. AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 45\Doc. 10641 e AHU_ACL_CU_017-1, Cx.
22\Doc. 4946.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):15-40, set./dez. 2019. 35


Marcos Guimarães Sanches

Soares Proença, em 1733, qualificando-se como Ten. Cel. de Infantaria


Auxiliar do recôncavo, alegava mais uma vez o “zêlo” do Real Serviço,
“o maior trabalho, dispêndio e perigo”, na abertura do caminho para re-
clamar da pretensão do Mestre de Campo Estevão Pinto, de abrir nova via
entre o caminho do Iguaçu e o traçado do Proença60.

Estevão Pinto tinha ligações na Capitania de Minas Gerais, pois seu


pedido de patente recebeu parecer favorável de D. Lourenço de Almeida61.
O traçado citado pode ser tanto pela baixada, contornando o “pé da serra”
entre as duas localidades, como o conhecido “atalho” do Caminho do
Couto, ligando-o a região da futura Freguesia de N. S. da Conceição do
Alferes (portanto, no Caminho de Garcia Paes), espaço objeto de várias
concessões de sesmarias em 1728.

Os conflitos envolviam uma rede de interesses, da qual participavam


moradores, comerciantes da cidade do Rio de Janeiro e fazendeiros de
serra acima, como o próprio Bernardo Soares Proença, beneficiário de
mais de uma concessão no Caminho do Inhomirim e na área entrecortada
pelo “atalho” entre as duas vias62.

O controle da passagem dos rios, já apresentado na manifestação


do Vigário do Pilar, continuava a ser objeto da disputa entre diferentes
interessados. João Rodrigues dos Santos, “morador do Rio de Janeiro”,
“tendo grande vontade de ter emprego no serviço do V.M.” requeria, em
1739, a adjudicação do contrato das passagens das canoas do Rio Pilar,
oferecendo o elevado valor de 20 mil cruzados no primeiro triênio, além
da livre passagem de tudo o que for do real serviço”, “com a condição de
se mandar proibir com o dito caminho novo do Inhomirim”, responsável
pela “gravíssima perda que padecem os habitantes deste Rio do Pilar” na
diminuição dos rendimentos dos frutos de sua fazenda”63.

60 – Idem. AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 33\Doc. 7832 e AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 22\


Doc. 4946.
61  –  Arquivo Ultramarino, Minas Gerais. AHU_ACL_CU_011, Cx. 3\Doc. 52 (1).
62  –  AHU-RJ-CA. AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 19\Doc. 4278 (1); AHU_ACL_CU_017-
1, Cx. 19\Doc. 4163 (1); AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 21\Doc. 4811 (1).
63 – Idem. AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 45\Doc. 10641.

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Fingindo que representam o bem comum:
relações sociais e poderes invisíveis nos caminhos do sertão

Também em defesa da exclusividade do caminho do Couto, passan-


do pelo porto do Pilar e contra Estevão Pinto, manifestava-se Francisco
Gomes Ribeiro. Morador do Rio de Janeiro, apresentava-se como
Capitão-mor, tendo sido nomeado para tal ofício na Capitania de Cabo
Frio, em 167664, era um “homem de grosso trato” da cidade. Comerciante,
foi Provedor da Santa Casa da Misericórdia e procurador da Câmara.
Requeria por si e por seus “vizinhos” contra “Estevão Pinto, que tem roça
no Pau Grande, com dolorosa e prejudicial ambição, tem aberto algumas
picadas no mato com veredas para o continente”65.

O comerciante bem estabelecido na cidade do Rio de Janeiro era


um dos beneficiários da sesmaria onde se estabeleceu a Fazenda Pau-
Grande66, vizinha da roça de Estevão Pinto e sede da primeira grande
unidade de produção da região com engenho de açúcar. A Fazenda Pau
Grande, considerada modelo de grande propriedade, no início do século
XIX, já era descrita por Monsenhor Pizarro como importante unidade
produtiva:
em Pau-Grande, fazenda distante perto de 2 léguas, há uma fábrica
de açúcar, de baixo de cujo teto trabalham igualmente os de farinha
de mandioca e de milho, a de arroz, e de azeite de mamona; em lugar,
separado, o de serrar madeira, para tabuada e cosseiras; tudo a bene-
fício de água67.

Os Gomes Ribeiro também acumularam outras propriedades na re-


gião como a Manga Larga, uma das primeiras sesmarias do Caminho
Novo, adquirida da viúva do sesmeiro original em 1735 e com confirma-
ção solicitada no ano seguinte68, além de terras na própria Freguesia do
Pilar, para as quais pediu confirmação69, no mesmo ano em que adotou o

64 – Idem, AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 7\Doc. 1328 (1).


65 – Idem. AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 45\Doc. 10641.
66  –  Arquivo Ultramarino, Minas Gerais. AHU_ACL_CU_011, Cx. 75\Doc. 24.
67  –  PIZARRO E ARAUJO, J. S. A.. op. cit., T. IV, p.55.
68  –  Manga Larga trespassada em 1735: AHU-RJ-CA. AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 38\
Doc. 8806 (1); adquirida da viúva do sesmeiro: AHU-RJ-CA AHU_ACL_CU_017-1, Cx.
38\Doc. 8867 (1).
69 – AHU-RJ-AV. AHU_ACL_CU_017, Cx. 59\Doc. 5664 (1). Francisco Gomes Ribeiro
pedia confirmação de terras na Freguesia do Pilar.

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mesmo procedimento em Pau Grande. A família parece ter estendido sua


influência à Freguesia da Piedade do Iguaçú, ponto de partida da variante
do Tinguá, onde, em 1748, o irmão Manoel Gomes Ribeiro, reiterava
pedido de designação como Capitão-mor70.

Por outro lado, Estevão Pinto era acusado pelo Capitão Francisco
Tavares, o “Alferes” da Freguesia de Pati, de destruir roças e provocar
outros danos a seus vizinhos, em 1736, denúncia acolhida no Conselho
Ultramarino que determinou a instauração de devassa em 173871.

A defesa do monopólio do caminho de Pilar era também justificada


pelas condições de defesa proporcionadas pela serra do Couto, argumento
levantado pelos defensores do Inhomirim como prejudicial: “a mais forte
muralha com que se pode defender é o não haver mais que uma estrada,
que está em qualquer caso acidental fica sendo dispensável ao inimigo”.

Voltando ao monopólio sobre a passagem do rio, contra a preten-


são de João Rodrigues dos Santos, também se levantou Antônio Proença
Coutinho, com perfil sócio ocupacional semelhante a Gomes Ribeiro,
sendo morador e estabelecido como comerciante na cidade do Rio de
Janeiro. O filho de Bernardo Soares Proença alegava as despesas do seu
pai e de seus amigos para os quais pediu sesmarias nos caminhos – “que o
fizeram e nele fabricar as suas fazendas foi na boa fé de recuperarem nos
seus frutos a grande dispensa que nele fizera”72.

Lembrando a determinação de 1725, determinando a liberdade de


navegação do rio Pilar, atacava o concorrente: “um pobre que vive de
uma taverna e por indução dos roceiros do Caminho de Pilar, entra em
semelhantes diligências afim tão somente do seu próprio interesse”. No
caso do Proença, a disputa frente às autoridades da Capitania e a manu-

70  –  AHU-MG. AHU_ACL_CU_011, Cx. 75\Doc. 24 (1).


71  –  AHU-MG. AHU_ACL_CU_011, Cx. 75\Doc. 24 (1) e AHU-RJ-CA. CU AHU_
ACL_CU_017-1, Cx. 41\Doc. 9784 (1) 1738.
72  –  AHU-RJ-CA. AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 45\Doc. 10641

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Fingindo que representam o bem comum:
relações sociais e poderes invisíveis nos caminhos do sertão

tenção dos privilégios73 se estendeu pelo menos até 1744, quando Antonio
Proença Coutinho afirmava ainda ter “pendências” a resolver.

A terra, elemento decisivo na definição das hierarquias da sociedade


colonial, era um dos interesses em jogo no caminho. Garcia Paes e seus
descendentes acumularam terras que se estendiam desde a passagem do
Paraíba até os campos de Belém na bacia do rio Guandu, “sem embargo”
das limitações estabelecidas para a região do caminho Novo como o limi-
te de meia légua em quadra74. Os Proença também se valeram da condição
de “descobridores” do Inhomirim para obterem concessões sesmarias.
Nos dois casos, o estudo dos patrimônios sugere a prática de grilagem no
acrescentamento das propriedades, ao longo das sucessivas concessões e
confirmações. Já os Gomes Ribeiro nos sugerem um percurso, mais apro-
priado à conjuntura econômica do setecentos, a trajetória da atividade
mercantil para a propriedade da terra.

As disputas continuavam quase que indefinidamente, chegando ao


Conselho Ultramarino que, por meio de Provisão de 6 de fevereiro de
1736, solicitava informações a Gomes Freire de Andrade sobre a peti-
ção de Francisco Gomes Ribeiro e “dos vizinhos que tem fazendas em
Aguassu, caminho de Minas, onde solicitavam “não consentirão se abram
ficadas novas para o continente das mesmas minas”. Requerendo parecer
do governador, mandava “cumprir a lei”, certamente referindo-se à Carta
Régia de 21 de outubro de 1733, que “proíbe novos Caminhos para Minas
Gerais”.

A resposta do Governador, em 15 de agosto de 1736, contrária ao


pedido, praticamente serve como conclusão do nosso raciocínio:

73  –  Requerimento de Antonio de Proença Coutinho, morador no Rio de Janeiro, no qual


pede que não fosse deferida a petição de João Rodrigues dos Santos na parte que se refere
à proibição da passagem pelo Caminho de Inhomirim. Idem. AHU_ACL_CU_017-1, Cx.
45\Doc. 10643.
74  –  Carta Régia pela qual se mandaram passar cartas de sesmaria a Garcia Rodrigues
Paes e a seus 12 filhos das terras que se lhe fizera mercê, em recompensa dos serviços que
prestara na abertura do caminho para as Minas. Idem. AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 27\
Doc. 6180.

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Marcos Guimarães Sanches

Os senhores das fazendas que estão em estas passagens, desejam e


pretendem fazer fechar os outros dois passos da serra para que todo o
rendimento venha a cair em suas roças. Assim uns fingem o que esta
petição representa de bem comum e utilidade da fazenda de Vossa Ma-
jestade, a qual ao presente diminuiria nos dízimos se as fazendas (que
são importantes) das outras passagens não tivessem consumo nos seus
mantimentos. Outros intentam um grande rendimento na passagem, e
a que eu respondo em outra carta, sendo sua idéia acabar as fazendas
dos contrários com a cláusula de se fecharem os outros dois caminhos,
o que não é justo como a Vossa Majestade exporei75.

Percebia o governador a força dos interesses privados, ainda que à


época, progressivamente, cedessem à ampliação da esfera do público,
numa conjuntura que refletia a consolidação do absolutismo e repre-
sentada na centralização que marcou a administração de Gomes Freire
de Andrade. Decantado pela tradição historiográfica, desde Varnhagen,
como modelo de eficiência da administração, sobretudo por sua ação uni-
ficadora, o elogiado governador como outros oficiais de seu tempo, eram
extremamente atentos à necessidade de compor dissenções e negociar as
suas ações, se preciso temperando o agro com o doce (Gomes Freire,
1752) ou sabendo “mandar com modo” (Lourenço de Almeida, 1722).
Sem dúvida, aprimorava-se na passagem para o setecentos a administra-
ção da colônia, inserida dentro do que Russel-Wood chamou de “traje-
tória crescente”, quando as posições da Coroa foram, também de forma
crescente, submetidas à “pressão colonial”76.

Texto apresentado em abril de 2019. Aprovado para publicação em


setembro de 2019.

75 – Idem; AHU_ACL_CU_017-1, Cx. 45\Doc. 10641 e ANRJ. Rio de Janeiro, Vice-


-Reinado, Caixa 745, Pacote 1.
76 – RUSSEL-WOOD, A. J. R.. Centros e Periferias no Mundo Luso-Brasileiro 1500-
1808. Revista Brasileira de História, v.18, n.36, 1998, p.243.

40 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):15-40, set./dez. 2019.


A Balaiada e as disputas de memória
das elites políticas no Piauí oitocentista

41

A BALAIADA E AS DISPUTAS DE MEMÓRIA DAS ELITES


POLÍTICAS NO PIAUÍ OITOCENTISTA.
THE BALAIADA AND THE DISPUTES OF MEMORY OF THE
POLITICAL ELITES IN THE NINETEENTH CENTURY PIAUÍ
Pedro Vilarinho Castelo Branco1
Resumo: Abstract:
O artigo analisa a Balaiada, particularmente, a The article analyzes the Balaiada, in particular
forma como esse movimento impactou a cons- the way in which this movement impacted the
trução das memórias das elites política no Piauí. construction of the memories of the political
Na construção do argumento, como documen- elites in Piauí. In the construction of the
tação, utilizamos artigos do Jornal O Telegrafo; argument, as documentation, we used articles
relatos de memórias; textos literários e/ou histo- from the periodical O Telegrafo; reports of
riográficos que tratem da Balaiada. O argumento memories; literary and / or historiographic
se concentra na análise de três personagens que texts approaching the Balaiada. The argument
ganham centralidade nos relatos e nos conflitos focuses on the analysis of three characters that
de memória, quais sejam: Manuel Clementino gain centrality in the reports and in the conflicts
de Sousa Martins, Lívio Lopes Castelo Branco e of memory, namely: Manuel Clementino de
Silva, e o Barão da Parnaíba. No itinerário, mos- Sousa Martins, Lívio Lopes Castelo Branco e
traremos os embates na escrita, que, ao sabor ora Silva, and the Baron of Parnaíba. In the itinerary,
das tendências políticas, ora dos afetos, buscam we will show the conflicts present in the writing,
definir, criar as três personalidades. Entendemos which, to the taste of political tendencies, now
que há uma disputa de memórias que, num jogo of the affections, seek to define and also seek to
de claro e escuro, pretende heroicizar ou des- create the three personalities. We understand
qualificar os três personagens, e esse conflito that there is a dispute of memories that, in a
tem como pano de fundo não apenas a constru- game of light and dark, intends to heroize or
ção e a afirmação de identidades, mas também a disqualify the three characters, and this conflict
legitimação de espaços de domínios políticos no has not only the construction and the affirmation
Piauí. Os autores que escrevem sobre a Balaia- of identities, but also the legitimation of spaces
da acabam por perpetuar a memória e os feitos of political domains in Piauí as background.
dos personagens, fazendo com que os mortos The authors who write about the Balaiada end
continuem a atuar sobre os vivos, servindo de up perpetuating the memory and the deeds of the
exemplos; por isso, as imagens são construídas, characters, causing the dead to continue to act
usando o filtro que esconde/evidencia ações. Os on the living, serving as examples; therefore, the
escritos e os efeitos de verdade que procuram images are constructed using the filter that hides
criar são instrumentos manipulados na luta pelo / evidences actions. The writings and effects of
poder, desenvolvida pelos grupos que dominam truth that they seek to create are manipulated
ou que procuram dominar a sociedade. Entender instruments in the struggle for power, developed
as disputas de memória e os impactos na cons- by groups that dominate or seek to dominate
trução discursiva das elites piauienses é o obje- society. Understanding the memory disputes
tivo do argumento. and the impacts on the discursive construction
of the Piaui elites is the purpose of the argument.
Palavras-chave: Balaiada: Elites políticas; Me- Keywords: Balaiada: Political elites; Memoirs;
mórias; Piauí. Piauí.

1  –  Universidade Federal do Piauí. E-mail: [email protected].

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):41-70, set./dez. 2019. 41


Pedro Vilarinho Castelo Branco

Nos relatos de memória e nos textos literários ou historiográficos,


que tratam do Piauí nos séculos XVIII e XIX, há sempre menção aos
feitos dos ancestrais masculinos em processos históricos caracterizados
por conflitos armados. Dessa forma, os embates entre colonizadores e
indígenas, as pugnas pela posse da terra, as lutas pela independência e,
finalmente, a Balaiada são marcos na construção das memórias dos an-
tepassados, balizas históricas para a afirmação de certo caráter viril, dos
homens de elite envolvidos nesses conflitos2.

A Balaiada é um desses eventos que marcam a memória e a história


do Piauí. Por sua magnitude, tornou-se, desde o momento do conflito
real, palco de lutas simbólicas. A disputa pela memória, pela imposição
da verdade, a definição do caráter dos envolvidos nas lutas são motivo de
contestações que se fazem presentes ainda hoje. O referido evento passou
a fazer parte da historiografia brasileira como um movimento de rebeldia
no período regencial brasileiro, ocorrido, majoritariamente, na Província
do Maranhão.

No entanto, a revolução estendeu-se, também, às províncias do Piauí


e de parte do Ceará. O envolvimento dos piauienses deu-se não só em vir-
tude do descontentamento popular com as aviltantes práticas de recruta-
mento militar, mas também por oposição ao governo de Manuel de Souza
Martins, o Barão da Parnaíba, que governava a Província desde o fim do
período colonial. A forma ditatorial como agia o potentado piauiense fez
com que os habitantes da província e, mesmo parte das elites interessadas
em desestabilizar a oligarquia Sousa Martins, empenhassem-se no movi-
mento rebelde iniciado no Maranhão.

Por sua vez, o Barão da Parnaíba aproveitou a mobilização e o en-


volvimento de parcela das elites piauienses – que assumiam a oposição
ao seu governo – para derrotar os adversários e consolidar, assim, o seu
domínio provincial3.
2  –  CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho. Entre a História e a Memória: práticas mas-
culinas no Piauí oitocentista. Projeto História (PUCSP), v. 45, p. 187-217, 2012.
3  –  As primeiras abordagens historiográficas acerca da Balaiada ocorreram ainda no de-
correr do século XIX, com a obra Memória histórica e documentada da Revolução da

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A Balaiada e as disputas de memória
das elites políticas no Piauí oitocentista

A intenção é revisitar artigos de jornais, relatos de memórias, textos


literários e/ou historiográficos que tratem da Balaiada, buscando enten-
der de que forma esse movimento impactou a construção das memórias
no Piauí. Na construção do argumento, analisaremos particularmente três
personagens que ganham centralidade nos conflitos de memória, quais se-
jam: Manuel Clementino de Sousa Martins4, Lívio Lopes Castelo Branco
e Silva5, e Manuel de Sousa Martins6.

No itinerário, mostraremos os embates na escrita, que, ao sabor ora


das tendências políticas, ora dos afetos, buscam definir, criar as três per-
sonalidades. Entendemos que há uma disputa de memórias que, num jogo
de claro e escuro, pretende heroicizar ou desqualificar os personagens, e
esse conflito tem como pano de fundo não só a construção e a afirmação

Província do Maranhão desde 1839 até 1840, de Domingos José Gonçalves de Maga-
lhães que, à época dos eventos, ocupou o cargo de secretário particular de Luís Alves de
Lima e Silva, Governador do Maranhão e futuro Duque de Caxias. Em 1872, um segundo
trabalho historiográfico foi realizado, com o título Notas diárias sobre a revolta civil que
teve lugar nas províncias do Maranhão, Piauí e Ceará pelos anos de 1838, 1839, 1840
1841, escritas em 1854, à vista de documentos oficiais. Desta feita, escrito por José Mar-
tins Pereira de Alencastre, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasi-
leiro, em 1872. No século XX, a temática continuou a instigar os pesquisadores, e muitos
trabalhos foram produzidos por historiadores do Piauí e do Maranhão. Entre as produções
desse período, podemos apontar o trabalho de Maria Amélia Freitas Mendes de Oliveira,
A Balaiada no Piauí, publicado em 1985, pelo Governo do Piauí, no âmbito do Projeto
Petrônio Portela; e o trabalho de Claudete Maria Miranda Dias, Balaios e bem-te-vis: a
guerrilha sertaneja. Vale mencionar ainda o trabalho de Matthias Rohrig Assunção: De
caboclos a Bem-te-vis, publicado em 2015, pela Editora Annablume, onde entre outras
temáticas relacionadas ao Maranhão o autor aborda o movimento da Balaiada.
4  –  Manuel Clementino de Sousa Martins nasceu em 1799 e faleceu em 1839. Militar,
atuou nos conflitos ocorridos no Ceará, em 1832, após a abdicação de D. Pedro I, na Ba-
laiada, em 1839, sendo morto em combate. Era sobrinho, afilhado e genro de Manuel de
Sousa Martins (Visconde da Parnaíba).
5  –  Lívio Lopes Castelo Branco e Silva nasceu em Campo Maior, em 1813, e faleceu em
1869. Foi jornalista, advogado e escritor, exerceu cargos públicos no Piauí, sendo ativo
participante da Balaiada e, por este motivo, foi perseguido por Manuel de Sousa Martins,
mesmo após o perdão concedido pelo Imperador Pedro II.
6  –  Manuel de Sousa Martins nasceu em Oeiras, Piauí, em 1767, e faleceu em 1856. Foi
personagem importante no processo da independência do Piauí, assumindo a presidência
do Conselho de Governo, no período de 1825-1828 e a presidência do Piauí de1831 a
1843. Por sua participação na política e em contendas militares, sempre se mostrando fiel
aos interesses do Império brasileiro, foi agraciado com os títulos de Barão e posteriormen-
te de Visconde da Parnaíba.

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Pedro Vilarinho Castelo Branco

de identidades, mas a legitimação de espaços de domínios políticos 7. Os


autores que escrevem sobre a Balaiada acabam por perpetuar a memória e
os feitos dos personagens, fazendo com que os mortos continuem a atuar
sobre os vivos, servindo de exemplos8.

Um pressuposto que precisa ser esclarecido refere-se ao entendimen-


to da Balaiada. Acreditamos que o movimento foi também momento para
conflitos entre grupos oligárquicos. Os adversários do Barão da Parnaíba,
que governava o Piauí há quase vinte anos, perceberam, no clima tenso,
oportunidade de afastar do poder o Barão da Parnaíba e seu grupo po-
lítico, concentrado em torno da capital Oeiras. Essa linha de raciocínio
interpretativo se fará presente no artigo.

Iniciaremos a construção do argumento pela análise do jornal O


Telégrafo, por entendermos que esse veículo de comunicação, criado pelo
governo da província do Piauí, no final de 1839, é o primeiro a utilizar a
escrita para construir uma versão da Balaiada e de seus personagens no
âmbito da província. O Telégrafo tinha como principal objetivo manter
a população informada sobre os acontecimentos da guerra desenvolvi-
da contra os rebeldes. A criação do jornal ocorre quando o presidente
do Piauí percebe o envolvimento de grupos da elite no movimento, o
que dava a ele inequívoco caráter de disputa de grupos oligárquicos pelo
domínio do poder provincial. Diante dessas circunstâncias, o governo
verifica, na publicação do jornal, uma estratégia eficiente para legitimar
suas ações no combate, ao tempo em que procurava deslegitimar os ad-
versários, priorizando, de início, a desconstrução dos homens da elite que
colocavam em risco o seu domínio.

Os editores do jornal, na construção de uma narrativa para a Balaiada,


escolhem retroceder no tempo, narrar alguns acontecimentos iniciais do
movimento objetivando estabelecer balizas enunciativas sobre os fatos.
Afirmam ainda que, nessa retrospectiva, não trataram das incursões de
7  –  LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Unicamp, 1994, p. 426.
8  –  ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. O engenho de meninos: literatura e
história de gênero em José Lins do Rego. In: Nos destinos de fronteira. Recife: Bagaço,
2008, p. 350-371.

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A Balaiada e as disputas de memória
das elites políticas no Piauí oitocentista

Raimundo Gomes no Piauí, mas dos acontecimentos envolvendo Lívio


Lopes Castelo Branco e o cerco da cidade de Caxias pelos rebeldes, as
desventuras sofridas pela população da cidade, após a invasão dos ba-
laios, bem como as malogradas tratativas desenvolvidas por Lívio Castelo
Branco, com o governo do Maranhão, após a tomada de Caxias9. Outro
assunto tratado pelo jornal são as ações de Manuel Clementino no campo
de batalha até sua morte10.

O jornal define Manuel Clementino e Lívio Lopes Castelo Branco


como principais protagonistas e antagonistas no enredo inicial da
Balaiada. Acreditamos que o silêncio inicial do líder popular Raimundo
Gomes dá-se pela percepção de que o perigo maior era Lívio Lopes
Castelo Branco, visto que seu sucesso poderia motivar grupos da elite a
apoiarem um levante contra a estrutura política de poder, controlada pelo
Barão da Parnaíba.

O que podemos pensar do impacto de um jornal numa sociedade pro-


fundamente marcada pelo analfabetismo, como era o caso da província
do Piauí? Acreditamos que, em primeiro lugar, a intenção do presidente
da província era alcançar as elites e as dissuadir de seguir o caminho de
Lívio Lopes Castelo Branco, que havia aderido ao movimento, bem como
utilizar a imprensa para criar uma verdade sobre a Balaiada, convencendo
a população de que o governo estava agindo no combate aos rebeldes. Se
poucas pessoas teriam acesso direto ao texto escrito, as notícias publica-
das teriam outras formas de circular, por meio de leituras coletivas, ou
mesmo na vulgarização posterior por meio da propagação oral.

Passando a analisar o major Manuel Clementino, podemos afir-


mar que as primeiras menções que descrevem seu envolvimento com a
Balaiada são escritas na edição inaugural do Telégrafo, quando o editor
afirma que o presidente da província havia confiado ao valente Manuel
Clementino o comando de todas as tropas oficiais envolvidas no combate

9 – O Telégrafo. n. 1, Oeiras, nov. de 1839. Tipografia Provincial, p. 2.


10  –  O Telégrafo trata das ações de Manuel Clementino, até o momento de sua morte,
nas edições de n. 1 a 6.

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Pedro Vilarinho Castelo Branco

aos rebeldes. No relato, é expressa a certeza da vitória no enfrentamento,


dado o conhecido valor militar do comandante das forças governistas,
bem como é divulgado o fato de estarem lutando contra inimigos des-
qualificados, que atuavam motivados pela sanha, pelo desejo de roubar e
destruir a tranquilidade e a propriedade de homens de bem11.

O Telégrafo afirma que Manuel Clementino levava esperança e segu-


rança aos homens de bem. Sua bravura e seu espírito de liderança faziam
com que os rebeldes temessem a presença do campeador da ordem. No
entanto, todas as esperanças se esvaneceram com sua repentina morte em
setembro de 1839. Na edição n. 6, O Telégrafo faz épico relato sobre sua
última batalha e sobre o momento em que foi mortalmente atingido12.

O culto a Manuel Clementino continua em O Telégrafo de n. 8, quan-


do é publicada a carta do governador do Maranhão, lamentando a morte
do corajoso e heroico militar piauiense. No n. 14, são feitas referências ao
último ataque empreendido por ele aos revoltosos e também ao aprisio-
namento de correspondências rebeldes, onde esses, ao se referirem ao fa-
lecido comandante legalista, diziam “que já não existia o homem a quem
temíamos”.

Entendemos que as referências sempre positivas a Manuel Clementino


têm a intenção de deliberadamente heroicizar o personagem, de construir
sua imagem sem máculas, homem de espírito elevado, devotado à pátria.
Suas supostas palavras finais têm claramente o objetivo de tirar qualquer
dúvida acerca de suas motivações superiores e de seu merecimento como
militar e como homem.

Analisando outras fontes escritas, ainda do século XIX, em que o


personagem Manuel Clementino é abordado, podemos citar alguns rela-
tos, de caráter historiográfico, como os de J. M. Pereira de Alencastre13

11 – Interior. O Telégrafo. Oeiras, 25 de novembro de 1839, n. 1, p. 3.


12  –  Interior (continuação). O Telégrafo. Oeiras, 9 de dezembro de 1839, n. 6, p. 1-2.
13  –  ALENCASTRE. J. M. Pereira de. Notas diárias sobre a revolta civil que teve lugar
nas províncias do Maranhão, Piauí e Ceará, pelos anos de 1838, 1839, 1840 e 1841, escri-
tas em 1854 à vista de documentos oficiais. Revista do IHGB, n. 35, 1872.

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A Balaiada e as disputas de memória
das elites políticas no Piauí oitocentista

e de Gonçalves de Magalhães14, historiadores que fundam a temática da


Balaiada. Alencastre parece buscar a neutralidade, que, segundo sua com-
preensão, era a postura mais adequada a quem pretende assumir a função
de historiador. No artigo Notas diárias sobre a revolta civil que teve lugar
nas províncias do Maranhão, Piauí e Ceará pelos anos de 1838, 1839,
1840 e 1841, escritas em 1854, à vista de documentos oficiais, são des-
critos cronologicamente os acontecimentos da Balaiada, desde dezembro
de 1838, quando Raimundo Gomes15 ataca a cadeia pública da vila da
Manga, soltando os presos, até os eventos finais em abril de 1841, quando
a Balaiada é proclamada extinta também na província do Piauí.

Sobre o major Manuel Clementino, Alencastre relata burocratica-


mente sua participação nas lutas, como assumiu o comando das forças
legalistas do Piauí, os ataques aos rebeldes no Maranhão, assevera sobre
suas ações e de como, aparentemente, por seu perfil atilado e impiedoso
diante dos adversários, os rebeldes retrocediam certamente temerosos da
sua presença. No que se refere a sua morte, é econômico, afirmando que
“a morte de Clementino deixou nas fileiras da legalidade espaço bem di-
fícil de preencher”16.

Gonçalves de Magalhães, ao tratar da Balaiada no livro Memória


histórica e documentada da Revolução da Província do Maranhão – des-
de 1839 até 184017, faz referências, no lacônico capítulo 14, ao major
Manuel Clementino, às suas ações militares no Maranhão e à sua morte.

14  –  MAGALHÃES, Domingos José Gonçalves de. Memória histórica e documentada


da Revolução da Província do Maranhão. Desde 1839 até 1840. São Paulo: Siciliano,
2001.
15  –  RAIMUNDO GOMES foi vaqueiro e administrador do Padre Inácio Mendes no
sertão do Maranhão. Deu início ao movimento de Revolta conhecida como Balaiada ao
se colocar contra o recrutamento militar. No decorrer da luta, tornou-se um dos principais
líderes populares da rebelião.
16  –  ALENCASTRE, J. M. Pereira de. Notas diárias sobre a revolta civil que teve lugar
nas províncias do Maranhão, Piauí e Ceará pelos anos de 1838, 1839, 1840 e 1841, escri-
tas em 1884, à vista de documentos oficiais. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
do Brasil. Rio de Janeiro, n. 35, 1872.
17  –  Domingos José Gonçalves de Magalhães acompanhou Luís Alves de Lima e Silva
ao Maranhão no período da Balaiada, assumindo o posto de secretário do presidente da
província.

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Pedro Vilarinho Castelo Branco

Afirma ainda que suas ações militares, embora breves, trouxeram espe-
rança à legalidade, que, por onde se movimentou, sempre obteve vanta-
gem contra os rebeldes; entretanto, no combate no Morro Agudo, quando
já contava com a vitória, foi mortalmente ferido e acabou sua glória e
carreira18. Segundo Magalhães, a notícia da morte de Manuel Clementino
ensoberbeceu os revoltosos, fez com que ganhassem simpatias e apoios,
ao tempo em que muitos passavam a ver como duvidosa a vitória da le-
galidade no movimento.

O major Manuel Clementino também é alvo da escrita de autores


que, porta-vozes de outros interesses, procuram mostrar possibilidades
de descrever o personagem de forma diferente. Na obra A Balaiada, de
Clodoaldo Freitas19, e, em Conto histórico, artigo de Cruz Monteiro20,
publicado no Jornal Diário do Piauí, n. 224, no ano de 1912, aparecem
relatos que evidenciam o conflito de memórias.

As imagens construídas no texto de Clodoaldo Freitas atendem a


outros interesses, diferentes dos que informam as notícias e as memórias
retratadas em O Telégrafo. Dessa forma, para Clodoaldo Freitas21, grande
parte do prestígio de Manuel Clementino se deve às suas vinculações
familiares, mais especificamente ao fato de ser genro, sobrinho e afilhado
do Barão da Parnaíba. O autor declara, ainda, que, do ponto de vista mili-
tar, nada justificava a sua glorificação, pois não havia feito algo digno de
menção; assegura mesmo que sua carreira militar seria obscura se o cargo

18  –  MAGALHÃES, Domingos José Gonçalves de. Memória histórica e documentada


da Revolução da Província do Maranhão – desde 1839 até 1840. São Paulo: Siciliano,
2001.
19 – O livro A Balaiada, de Clodoaldo Freitas, foi escrito em 1894, esteve inédito até
a publicação, agora, dos originais, em trabalho organizado pela Profa. Dra. Teresinha
Queiroz.
20  –  MONTEIRO, Cruz. Conto histórico: o major Irineu Gomes Correia. Diário do
Piauí. Teresina, 1912, n. 24.
21  –  Clodoaldo Freitas assume posições políticas contrárias ao grupo dos herdeiros do
Visconde da Parnaíba e, assim, em alguns escritos, dá visibilidade a lideranças que fazem
oposição aos Sousa Martins, ao mesmo tempo em que procura questionar figuras emble-
máticas como Manuel Clementino e o próprio Visconde da Parnaíba entre outros.

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A Balaiada e as disputas de memória
das elites políticas no Piauí oitocentista

de comandante das tropas legalistas do Piauí, nos combates da Balaiada,


não viesse a “ensopá-lo de sangue e lágrimas”22.

Na continuidade do relato, Clodoaldo Freitas faz menção a alguns


eventos da missão militar das tropas legalistas comandadas por Manuel
Clementino, no Maranhão, à procura de combater os balaios, onde re-
trata a forma agressiva como enfrenta grupo de rebeldes no vilarejo de
Mirador, no Maranhão, e como, depois de fazer os adversários recuarem,
entram na povoação, realizando o saque de tudo o que encontraram de
valor no lugar23.

Clodoaldo afirma ainda que, pelo menos em duas situações, o co-


mandante legalista agrediu, violentamente, mulheres de proprietários de
fazendas, supostamente, envolvidos com os rebeldes. Sendo o fato mais
comentado o ocorrido na fazenda Melancias, onde o comandante das tro-
pas legalistas agrediu Dona Rosa da Costa Alvarenga, exigindo informa-
ções sobre o paradeiro de seu esposo, bem como dinheiro e joias, chegan-
do a segurá-la brutalmente pelos cabelos e a espancá-la, como forma de
coação para conseguir seus objetivos.

Na opinião de Clodoaldo Freitas, Manuel Clementino pagou caro


pelo erro de ultrajar senhoras honradas, pois o tiro que o abateu, em com-
bate, não teria partido das linhas de frente dos balaios, mas de um solda-
do engajado nas tropas comandadas por ele. João Raimundo, afilhado de
Dona Rosa da Costa Alvarenga, uma das senhoras ultrajadas, tomou para
si a deliberação de vingar a dita senhora. Alistou-se voluntariamente nas
forças legais, e, na primeira oportunidade, lavou com o sangue do coman-
dante as ofensas sofridas pela madrinha.

A construção discursiva do Major Manuel Clementino ganha tons


obscuros também no artigo de Cruz Monteiro publicado no Jornal Diário
do Piauí, em 1912, a pretexto de enaltecer a imagem do major Irineu

22 – FREITAS, Clodoaldo. A Balaiada, 1894, p. 6.


23 – Freitas, Clodoaldo. A Balaiada. 1894, p. 9.

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Pedro Vilarinho Castelo Branco

Gomes Correia, proprietário e chefe político ligado às elites da vila de


Marvão24, no Piauí.

Em determinado momento do conflito, o major Irineu Gomes Correia


recrutou e armou um pequeno exército de 200 homens e se engajou nas
forças governistas sob o comando de Manuel Clementino. O trecho do
relato de Cruz Monteiro que nos interessa diz respeito à sua versão sobre
o ataque à casa de Dona Rosa da Costa Alvarenga, assunto já tratado an-
teriormente, tendo como fonte os escritos de Clodoaldo Freitas.

Dessa feita, Cruz Monteiro afirma que a casa foi cercada durante
a noite, e a ordem era prender ou matar o proprietário tido como um
líder balaio. Ao amanhecer, a casa foi invadida pelas tropas legalistas e
o proprietário estava ausente. Ato contínuo, os soldados foram autoriza-
dos a saquearem a casa, em seguida a esposa do proprietário, Dona Rosa
Alvarenga, foi levada à presença do comandante, que a interrogou aspera-
mente, indagando sobre o paradeiro do esposo, insultando-a com palavras
grosseiras e mesmo dando-lhe bofetada na face.

Ao silêncio da mulher, Manuel Clementino ordenou que esta fosse


desnudada diante da soldadesca. A Senhora, olhando para o major Irineu
Gomes Correia, pediu que a livrasse de tal ofensa, no que o referido major
se posicionou à frente do comandante impedindo-o de continuar as ofen-
sas à honra daquela mulher.

Os relatos de Clodoaldo Freitas e de Cruz Monteiro nos ajudam a


compreender a complexidade dos interesses que cercam a construção da
memória de Manuel Clementino. O texto de Clodoaldo Freitas manteve-
-se na sua integralidade inédito até o presente, impossibilitando a análise
da recepção da obra sobre a Balaiada e das impressões provocadas por
sua definição de Manuel Clementino. O artigo de Cruz Monteiro, no en-
tanto, a despeito de ter inequivocamente dimensões inferiores, mas pela
particularidade de ter vindo ao conhecimento público quando editado no

24  –  A vila de Marvão foi criada ainda no Piauí colonial e tem hoje a denominação de
Castelo do Piauí.

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A Balaiada e as disputas de memória
das elites políticas no Piauí oitocentista

Jornal Diário do Piauí, no ano de 1912, foi veementemente combatido e


alvo de críticas.

É assim que o coronel Benedito de Sousa Brito, com o objetivo de


desqualificar as afirmações de Cruz Monteiro, parte em defesa da me-
mória de Manuel Clementino, em artigo intitulado A verdade histórica
e o bravo Major Manuel Clementino de Sousa Martins, um dos heróis
da Balaiada, escrito em Oeiras em 1 de janeiro de 1913, assinado sob o
pseudônimo – Um velho amigo da verdade. Ressalte-se que o referido
artigo foi republicado no ano de 1980, na Revista do Instituto Histórico
de Oeiras, n. 2, atestando seu valor na defesa de interesses e de memórias
que continuavam vivas.

No artigo, o coronel Benedito de Sousa Brito justifica sua escrita,


argumentando que se encontrava revoltado com as invencionices de pes-
soas que, como Cruz Monteiro, autor do Conto Histórico, que não hesita-
vam em deturpar a verdade. Diante do que considerava inverdade e mes-
mo ofensa à memória de Manuel Clementino, militar, cuja bravura, ho-
nestidade, energia e moralidade nunca foram postas em dúvida, a não ser
em 1903 pelo Jornal Pátria, e, agora, em 1913, pelo Sr. Cruz Monteiro25.

Em determinado momento do artigo, o mencionado autor afirma que


o Barão da Parnaíba, ao sentir o risco iminente da Balaiada ganhar vul-
to no território do Piauí, resolve arregimentar forças para a defesa da
província, e, naquele momento, o major Manuel Clementino se oferece
para participar da luta armada: “Voou ao apelo da pátria e imediatamente
apresentou-se ao seu ilustre sogro e tio, oferecendo-se para a guerra”26.
Fazendo isso, abdicava mesmo da tranquilidade da vida familiar, do con-
vívio doce da esposa e dos filhos, ainda na juventude ou na infância.

O artigo coloca Manuel Clementino diante de dilema afetivo moder-


no, do homem que se bate entre dois sentimentos elevados, dignificadores

25  –  BRITO, Benedito de Sousa. A verdade histórica e o bravo major Manuel Clementi-
no de Sousa Martins, um dos heróis da Balaiada. Revista do Instituto Histórico de Oeiras.
Oeiras, n. 2, p. 153-161, 1980.
26 – BRITO, op. cit., n. 2, p. 154, 1980.

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Pedro Vilarinho Castelo Branco

da masculinidade: o sentimento pátrio, de defesa da nacionalidade, e a


doce e necessária convivência familiar, na qual exerceria a vida conju-
gal e paternal. Falou mais alto o espírito patriótico, venceu o soldado-
-cidadão, que, ao defender a pátria, estaria defendendo também a família.

Outro traço de virilidade enaltecido, no personagem Manuel


Clementino, com o sentido de lustrar o seu valor masculino, é a capacida-
de de contagiar os outros homens com o exemplo de bravura:
O exemplo do bravo major Clementino converteu-se em incentivo à
ardorosa plêiade de moços piauienses residentes na capital. Estudan-
tes oriundos de boas famílias, artistas, agricultores de posição decente,
em grande parte parentes do Major, ofereceram-se para acompanhar
o destemido parente e heroico guerreiro na luta contra os balaios27.

A coragem é comunicativa. Assim, o perfil de Manuel Clementino,


montado por Benedito de Sousa Brito, como exemplo de fervor patrió-
tico, era capaz de incendiar os corações dos homens, de motivá-los para
lutar e para colocar a vida em risco diante de interesses e de valores ele-
vados que seriam o amor pátrio, o desejo generoso de ver os concidadãos
livres da opressão e da indignidade provocada por homens ditos como
infames, assassinos, cruéis.

Nas entrelinhas da escrita, Benedito de Sousa Brito faz referências


à família, vincula o prestígio e o poder do Barão da Parnaíba ao seu gru-
po, à sua potência familiar, em clara demonstração que os homens da
Balaiada não se moviam por interesses patrióticos, nacionais, mas sim
que colocavam a vida em risco, incendiavam os espíritos e se motivavam
para a guerra, muito mais por defenderem um socius tradicional, familiar,
que pela defesa do sentimento nacional28.

A escrita revela, assim, uma retórica moderna, cria imagens mas-


culinas que se fazem presentes em situações históricas mais diversas; e
podiam tanto expressar as motivações para a luta de um cavaleiro medie-

27 – BRITO, op. cit., Oeiras, 1980, n. 2, p. 155.


28  –  OLIVEIRA, Pedro Paulo de. A construção social das masculinidades. Belo Hori-
zonte: UFMG, 2004.

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A Balaiada e as disputas de memória
das elites políticas no Piauí oitocentista

val na Europa quanto as de um jovem soldado moderno, ou ainda estar


presentes nas construções discursivas de um homem sertanejo envolvido
na Balaiada. Essas articulações retóricas exprimem a essência emocional
da coragem marcial, caracterizada pelo abandono do egoísmo em meio
ao perigo de vida, pela comoção profunda diante da bravura do compa-
nheiro, pela volúpia da fidelidade e do sacrifício pessoal. Esse sentimento
primitivo seria a base a partir da qual o ideal de cavalaria evoluiu rumo a
um imaginário nobre de perfeição masculina, próximo ao anseio por uma
vida mais bela, mas também uma máscara, por trás da qual um mundo de
ganância e de violência podia ser discursivamente ocultado29.

Todas as ações efetuadas por Manuel Clementino e relatadas por


Benedito de Sousa Brito são fundamentadas nesse espírito de idealização
masculina, coladas ao personagem em tela30.

A construção discursiva de Manuel Clementino, elaborada por


Benedito de Sousa Brito, tem como ponto relevante a forma como trata do
incidente que envolve D. Rosa Alvarenga. A referida passagem, já trata-
da aqui, partindo de relatos de Clodoaldo Freitas e de Cruz Monteiro, nos
quais ganha cores deletérias e desqualificadoras de Manuel Clementino,
adquire, agora, cores suaves e filtradas de gestos grotescos e desabona-
dores. Diante da situação de confronto, o major mantém a fleuma, a res-
peitosa prudência digna de cavalheiro diante de uma dama. Uma mulher
honesta, mesmo que envolvida com os rebeldes, merecia respeito e até
relativa proteção.
Quando Manuel Clementino, porém, se aproximava do importante sí-
tio de lavoura de propriedade da respeitável viúva D. Rosa Alvarenga
foi bruscamente atacado por forças reunidas nesse sítio, e aí aquarte-
ladas, forças que, segundo então constou, eram alimentadas por essa
senhora que aderira à rebelião e acoitava rebeldes.
Indignado com a notícia, o Major avançou sobre o sítio, pondo em
retirada os atacantes, e, chegando à casa de D. Rosa verberou-a frente
a frente pelo seu procedimento, homiziando rebeldes; mas não prati-
29  –  HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosacnaify, 2010, p.
111.
30 – BRITO, op. cit., Oeiras, 1980, n. 2, p. 156.

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Pedro Vilarinho Castelo Branco

cou nenhuma violência material contra ela ou suas propriedades, não


autorizou o saque da propriedade, não deu bofetadas na mulher, não
rasgou suas vestes, muito menos a ofereceu nua aos soldados31.

Finalizando a análise dos discursos que retratam Manuel Clementino,


avaliamos oportuno apontar a forma como Odilon Nunes e José Expedito
Rêgo tratam, na segunda metade do século XX, o militar.

Na função de historiador, Odilon direciona a análise para o aspecto


que o interessa, enaltece o brilho do militar, evidencia o soldado, o co-
mandante hábil em movimentar as tropas na defesa de sua causa. As pa-
lavras finais parecem buscar o equilíbrio entre o reconhecimento do valor
do soldado e as facetas segredadas do homem. Aponta a bravura, como
sua principal qualidade, entretanto faz ressalvas às afirmações ufanistas32.
Ao finalizar sua análise, Odilon Nunes vagamente deixa pistas de coisas
não ditas quando afirma: “Clementino era incontestavelmente um bravo.
Teria sido sem máculas, se houvesse sabido ser generoso”, sem, porém,
dar justificativas à última afirmação33.

Outro relato que trata de Manuel Clementino e que favorece a cons-


trução da sua memória heroica é a obra denominada Né de Sousa, biogra-
fia romanceada do Visconde da Parnaíba, publicada em primeira edição
no ano de 1981 e de autoria de José Expedito Rêgo. Sobre as ações de
Manuel Clementino na Balaiada, trata particularmente do momento em
que é atingido mortalmente durante a batalha. Sua morte foi um choque
para a população de Oeiras, os boatos eram desencontrados, afirmavam
que os balaios tinham invadido o Piauí e que, agora, avançavam para
conquistar Oeiras.

José Expedito Rêgo reverbera as imagens heroicas de Manuel


Clementino, exaltando seus feitos. Reafirma o caráter do militar quando
o define como homem bravo, amante da ordem e que detestava o roubo
e a traição.
31 – Id. ibid.
32 – NUNES, Odilon. Pesquisas para a História do Piauí. Teresina: FUNDAPI, 2007.
v. 3, p. 64.
33 – NUNES, O. op. cit., 2007. v. 3, p. 64.

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A Balaiada e as disputas de memória
das elites políticas no Piauí oitocentista

Enfatiza, no entanto, aspectos que mostram outras facetas da per-


sonalidade de Manuel Clementino que poderiam ser percebidas como
máculas à imagem heroica, pois o define ainda como homem cruel. Essa
crueldade, contudo, era direcionada aos inimigos, aos traidores, o que, de
alguma forma, pode ser percebido como atenuante. E, assim, afirma que
ele comandou a destruição da vila de Mirador, no Maranhão, durante a
Balaiada, que mandou espancar os chefes militares rebeldes que caíam
sob seu poder. Entretanto, suas ações seriam justificadas e atenuadas, por
serem praticadas contra inimigos percebidos como perigosos, desuma-
nos, cruéis, capazes das piores atrocidades, pois, assim, os balaios eram
ditos pelas lideranças legalistas34.

Em outro momento, José Expedito Rêgo manifesta a forma como


Manuel Clementino puniu alguns soldados, que haviam praticado o saque
depois de determinado combate. Inconformados com a punição e, como
forma de vingança, planejaram um motim que teria como ápice o assassi-
nato do comandante. Descoberta a trama, os soldados são exemplarmen-
te punidos, amarrados e levados prisioneiros para Oeiras. Nesse caso, a
crueldade de Manuel Clementino também pode ser relevada na sua mácu-
la pelo fato de serem soldados traidores e assassinos em potencial.

Uma questão que merece menção é a forma épica como a morte


de Manuel Clementino é abordada nos vários relatos. Clodoaldo Freitas,
seu crítico mais ácido, aponta sua morte como única justificativa para a
construção discursiva do comandante das tropas governistas no patamar
de herói; “a carreira dele como militar seria completamente obscura se o
cargo que exerceu não viesse ensopá-lo de sangue e lágrimas”35.

Segundo José Murilo de Carvalho, os heróis são símbolos podero-


sos, encarnam ideias e aspirações, são referências, suportes de identifica-
ções coletivas. Dessa forma, a elevação de alguns à condição de heróis é

34  –  REGO, J. E., op. cit., 1981, p. 200.


35 – FREITAS, Clodoaldo. A Balaiada. Teresina, p. 6.

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Pedro Vilarinho Castelo Branco

instrumento eficaz para alcançar os corações dos cidadãos e convencê-los


a se colocarem a serviço de uma causa e para legitimar governos36.

A morte de Manuel Clementino é o ponto central dos relatos sobre


sua atuação na Balaiada. O Jornal O Telégrafo narra de forma épica o
acontecimento; o escritor José Expedito Rêgo também monumentaliza o
fato; Odilon Nunes, fundamentado na documentação oficial, assume na
escrita tom sóbrio, no entanto, ao relatar a morte do comandante legalista,
apropria-se do relato de Esmaragdo de Freitas que, de forma sensível,
descreve a morte do personagem:
Foi nessa conjuntura que a atenção dos combatentes triunfantes se
voltou para o vulto do chefe que se desmontara – e na estupefação,
que um pressentimento constante não dirimira, viram muitos deles o
corpanzil do homem bem-apessoado, que os conduzira até ali, baque-
ar, como uma arvore de grande porte, atingida por um raio da magia37.

Ainda citando Esmaragdo de Freitas, Odilon Nunes afirma que as


últimas palavras do comandante foram: “Avancem camaradas, que por
morrer um homem, não se abandona a causa: só vos peço que sejais cons-
tantes e vingai-me a morte, morro contente por haver empregado os meus
dias no serviço de minha pátria”. As últimas palavras de Clementino são
sempre as de um homem determinado, imbuído de uma causa, são pala-
vras modelares que procuram difundir a ideia de que, mais importante
que a própria vida, é o empenho por uma causa nobre, como era o amparo
da pátria, na defesa da qual o homem não deve sentir medo de entregar a
própria vida em sacrifício. Essa é a atitude de grandeza que se espera de
um homem inspirado por motivações sublimes.

Assinale-se que não há relatos de medo, de desespero diante da ine-


vitabilidade da morte, mas de coragem, de incentivo para que os com-
panheiros deem continuidade à luta e à defesa da causa. A morte monu-

36  –  CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993, p. 55.
37 – NUNES, Odilon. Pesquisa para a História do Piauí. Teresina: FUNDAPI, 2007,
p. 63.

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A Balaiada e as disputas de memória
das elites políticas no Piauí oitocentista

mentalizada, as palavras supostamente ditas devem servir para tocar os


companheiros; devem ser contagiantes e impulsionadoras da ação.

Manuel Clementino é, assim, discursivamente elevado ao panteão


de heróis. Sua morte, seu exemplo de militar determinado devem ser su-
ficientes para apagar qualquer mácula, qualquer gesto indevido. O co-
mandante, agora, morto, inerte, sem ação, deve continuar vivo, doravante
de forma idealizada, bela, como uma inspiração em favor da causa que
defendia.

Dando sequência à apreciação das figuras masculinas de elite, al-


çadas à condição de centralidade no movimento da Balaiada, passamos
a analisar a construção discursiva de Lívio Lopes Castelo Branco. Se
do lado das lideranças governistas ganhou relevância, a figura do ma-
jor Manuel Clementino, do lado dos rebeldes, o nome de Lívio Castelo
Branco é deliberadamente o escolhido. Os editores, no primeiro número
do Telégrafo, afirmam que não iniciariam a narrativa da Balaiada pelas
ações do líder popular Raimundo Gomes, mas pelos acontecimentos que
envolviam Lívio Lopes Castelo Branco e suas ações no movimento até à
sua fuga. A retrospectiva histórica termina na sexta edição, com o aviso
de recompensa pela captura de Lívio Lopes Castelo Branco.

Lívio Castelo Branco aparece, nos anos anteriores à Balaiada, como


liderança política emergente, advogado (sem formação), fazendeiro e po-
lítico, na região Norte do Piauí. Ainda jovem, com vinte e cinco anos de
idade, já havia exercido cargos eletivos e parecia ambicionar postos mais
elevados. Contudo, entendia que a força política hegemônica exercida
pelas elites concentradas na cidade de Oeiras e capitaneadas pelo Barão
da Parnaíba, era empecilho às suas ambições políticas. Percebendo no
movimento rebelde da Balaiada a possibilidade de desestabilizar politica-
mente o Barão da Parnaíba, e, assim, abrir espaço para que outros grupos
de mando acessassem o jogo de poder no Piauí, Lívio arma um exército
de 600 homens e parte para a cidade de Caxias, se engaja no movimento
rebelde, passando a se autodenominar de comandante e chefe das forças

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Pedro Vilarinho Castelo Branco

bem-te-vis na província do Piauí. A cidade sitiada caiu sob o domínio dos


balaios em 01 de julho de 1839.

Segundo Clodoaldo Freitas, Lívio Castelo Branco manteve-se como


um dos líderes rebeldes até 11 de setembro de 1839, quando resolveu sair
do campo de batalha, deixando os comandados e empreendendo fuga, até
chegar ao Recife, onde se dirigiu para o interior da província e se esta-
beleceu. Só voltou ao Piauí depois do Decreto de 22 de agosto de 1840.

Que razões teriam levado os editores de O Telégrafo a, deliberada-


mente, indigitar Lívio Castelo Branco como personagem central no en-
redo da Balaiada no Piauí? No cálculo político do Barão da Parnaíba, a
adesão de parte das elites piauienses à Balaiada, direcionando recursos
materiais, e a representatividade política e social que tinham na província,
e mesmo passando a organizar forças militares para reivindicar mudanças
políticas, era um risco que deveria ser evitado a qualquer custo. Diante
dessas possíveis circunstâncias, Lívio Lopes Castelo Branco aparecia
como um mal a ser eliminado.

A desqualificação de Lívio Lopes Castelo Branco vai se dando à


medida que se monta discursivamente o cenário desastroso, provocado
pela Balaiada. O ponto alto dos desastres seria a ocupação da cidade de
Caxias pelos rebeldes. Os relatos afirmam que inúmeros assassinatos fo-
ram cometidos, que os rebeldes promoveram o saque e a destruição de
grande parte da riqueza acumulada na cidade, que era, naquele momento,
o principal entreposto comercial de grande parte do Maranhão e do Piauí.

Lívio Castelo Branco é também construído como um homem sem


palavras, sem honra, o que significava grave falha de caráter. A prova
desse defeito era expressa no próprio Telegrafo, quando publica corres-
pondências do líder rebelde, em que afirma que as relações entre as for-
ças militares em confronto deveriam ser marcadas pela honra militar e
pelo direito de guerra. Lívio Castelo Branco aponta para a necessidade
de construção de um entendimento entre os dois lados para, assim, evi-
tar o derramamento de sangue. Esses escritos são contrapostos a relatos

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A Balaiada e as disputas de memória
das elites políticas no Piauí oitocentista

de supostos assassinatos e outras violências cometidas por Lívio Castelo


Branco no comando das forças rebeldes, o que seria a prova inconteste da
sua falta de idoneidade moral38.

Em outra correspondência, Lívio Lopes Castelo Branco solicita que


as tropas governistas comandadas pelo major Manuel Clementino não
avancem para a região de Caxias, onde se concentravam as forças rebel-
des; o pedido era justificado, pois havia, segundo ele, avançadas negocia-
ções com o Governo do Maranhão e o movimento poderia ser pacificado,
sem mais derramamento de sangue.

Os comentários do jornal, mais uma vez, questionam os verdadei-


ros interesses de Lívio Castelo Branco com a correspondência. Segundo
O Telégrafo, as verdadeiras razões do líder rebelde eram ganhar tempo
enquanto cuidava de colocar em segurança os bens havidos no saque pro-
movido na cidade de Caxias. Outrossim, é apontado ainda que, diante dos
desentendimentos que já se davam entre Lívio Lopes Castelo Branco e
outros líderes rebeldes, ele já estaria procurando articular a melhor forma
de se desvencilhar do envolvimento com a Balaiada, talvez pensando em
pedido de perdão, o que não tinha coragem de fazer abertamente ou ma-
quinando a saída do movimento, o que acabou por ocorrer em forma de
abandono das tropas sob seu comando ao empreender fuga39.

Diante da falta de acordo com o governo do Maranhão, somados aos


crescentes desentendimentos com lideranças do movimento e ainda os
deslocamentos estratégicos das forças legais do Piauí, em marcha para o
combate em Caxias, ele resolve, no dia 11 de setembro de 1839, deixar o
comando das tropas sob a responsabilidade de alguém de confiança e se
ausentar do conflito. O desfecho da participação de Lívio Lopes Castelo
Branco na Balaiada é também apontado pelos críticos como falha grave.
Havia envolvido pessoas na revolta, movimentado interesses e, em mo-
mento de dificuldades, empreende fuga40.

38  –  O Telégrafo. Oeiras do Piauí, 2 de dezembro de 1839, n. 5, p. 2.


39 – O Telégrafo. Oeiras do Piauí, 28 de novembro de 1839, n. 3, p. 2-4.
40 – FREITAS, Clodoaldo. A Balaiada. Teresina. p. 11.

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Pedro Vilarinho Castelo Branco

Se a participação de Manuel Clementino encerrasse com sua morte


em campo de batalha, de forma gloriosa para um soldado, fortalecendo
os elementos construtivos de sua imagem como herói, a participação de
Lívio recebe a mácula da deserção. Essa diferença o acompanhou durante
toda sua vida e será sempre uma marca de suas memórias, razão para ser
detraído.

A deserção, o abandono dos comandados, diante da ética militar, tão


reivindicada por Lívio Castelo Branco, nas cartas, são faltas graves. Ao
comandante, cabe a liderança, a definição das estratégias; os soldados
devem ser encorajados pelos gritos de guerra, que reclamam dos coman-
dados a coragem, o destemor diante do adversário41. A deserção é sempre
percebida como fragilidade, como motivo de desvirilização.

Os redatores do Telégrafo, que atendem aos interesses do grupo


político capitaneado pelo Barão da Parnaíba, constroem a imagem do
líder rebelde como um não vir a ser masculino: homem de elite, bem-
-nascido, inteligente, no entanto, deixa-se levar por ambições menores,
alia-se a homens desqualificados na promoção de desordens e de crimes.
Usam as atitudes como a fuga para desqualificarem seu caráter como ho-
mem e como militar. Apontam como razões para suas atitudes o medo
do confronto direto com as forças governistas, capitaneadas por Manuel
Clementino; a ambição de riquezas indevidas como os frutos dos saques
realizados em Caxias; a falta de firmeza de caráter, a não realizar na prá-
tica o que afirmava com palavras ditas ou escritas.

Clodoaldo Freitas, ao referir-se a Lívio Castelo Branco e às impli-


cações familiares de seu envolvimento na Balaiada, afirma que Miguel
Borges, seu filho, cresceu sob o signo do envolvimento do pai na rebelião:
“O pai vencido, foragido, preso, perseguido, longe do lar, curtindo as
amarguras e remorsos do seu crime, porque nas lutas civis, o criminoso é
sempre o vencido, o vencedor é sempre o herói”42.
41 – BONAPARTE, Napoleão. Sobre a guerra: a arte da batalha e da estratégia. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira. 2015, p.74-80.
42 – FREITAS, Clodoaldo. Vultos piauienses. 2° edição. Teresina: Fundação Cultural
Monsenhor Chaves, 1978, p. 143.

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A Balaiada e as disputas de memória
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A afirmação final é bastante elucidativa quanto às imagens que se


constroem sobre vencidos e sobre vencedores em qualquer pós-guerra.
No entanto, no livro A Balaiada, os comentários de Clodoaldo Freitas
assumem perfil mais ácido nas referências a Lívio Lopes Castelo Branco.
Ao tratar da sua participação no referido movimento, afirma que teve
efetivo início com o cerco de Caxias no Maranhão, correndo, assim, tam-
bém, sob sua responsabilidade, os horrores que se seguiram à tomada da
cidade, que, por ser rica e florescente, foi o alvo preferencial dos rebeldes.

Finalizando os comentários sobre a participação de Lívio Lopes


Castelo Branco na Balaiada, Clodoaldo Freitas o define como um homem
ambicioso, que se mostrou, na prática do conflito, um chefe de salteado-
res, que se aproveitaram da rebelião para se locupletarem com a desgraça
dos concidadãos, e conclui, afirmando: “A sua responsabilidade é imensa,
o seu crime maior, e, mais do que ambos, a sua fuga na hora em que ia
pôr-se frente ao inimigo, é uma vergonha de que nunca se lavará43.”

Miguel Borges Leal Castelo Branco, ao usar da escrita para retratar a


figura do pai, o faz elaborando uma biografia. Faz uso da história, talvez
com a intenção de dar força de verdade à argumentação. Na construção
discursiva, retrata Lívio como homem bem-intencionado, movido pelo
senso de justiça, pelo interesse de defender os mais fracos e guiado pela
força avassaladora do amor pátrio. São esses também os motivos nobres
que definem a personalidade de Lívio Lopes Castelo Branco no discurso
elaborado pelos companheiros do Partido Liberal quando de sua morte
em 1869.

A construção discursiva, que Miguel Borges faz, procura idealizar


o homem, lustrar sua imagem com motivações superiores. Envolve-se
em movimento de sedição, mas o faz por causas nobres: o senso de jus-
tiça, a defesa dos mais fracos, tendo como guia a força avassaladora do
amor pátrio. Os escritos de Miguel Borges sobre Lívio Castelo Branco
são claramente marcados por argumentação retórica moderna, centrada
na idealização de uma masculinidade guiada por motivações superiores.
43 – FREITAS, Clodoaldo. A Balaiada, p. 12.

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Pedro Vilarinho Castelo Branco

Porém, diferentemente das idealizações de Manuel Clementino, não são


feitas referências à coragem marcial, pois, a fuga, o abandono dos compa-
nheiros na proximidade da batalha, impedem esse tipo de argumentação.

Na ausência da coragem marcial, o biógrafo busca outros argumen-


tos para lustrar o biografado, quando afirma a suposta tentativa de Lívio
Castelo Branco em manter o controle sobre as tropas rebeldes. Constrói
sua imagem como homem capaz de ter a grandeza de se motivar pela
generosidade, pela vontade de minimizar os males aos outros cidadãos,
à medida que procurava conter os ânimos exaltados e os interesses infe-
riores, dos aliados e dos subordinados que queriam promover o saque e
o terror.

Na impossibilidade de lançar mão da força simbólica presente no


soldado capaz de sacrificar a própria vida pelos companheiros e pela pá-
tria, Miguel Borges constrói Lívio como homem superior, capaz de se
envolver no conflito para, nele, exercer a função de mediador, de conci-
liador, só se ausentando da luta ao perceber que seus esforços seriam em
vão. Essa é a saída retórica encontrada para enaltecer Lívio. A idealização
masculina moderna se faria presente pelo caminho da civilidade, da mo-
deração, do espírito de contenção44.

Quanto a esse último aspecto, podemos ainda fazer algumas ob-


servações. Se analisarmos a correspondência de Lívio Lopes Castelo
Branco, encaminhada ao comando das forças governistas e publicada no
Telégrafo, podemos perceber que o autor da correspondência procura abrir
canal de comunicação, apela para a palavra de honra militar, solicita que
alguma negociação seja aceita, afirma o caráter político do movimento e
indaga se havia a garantia dos correios, a fim de que se pudesse, debaixo
de boa-fé, corresponder. Esse pode ser um indício que, somado a outros,
fortaleceria a argumentação de Miguel Borges, quando quer construir a
imagem do pai como alguém que buscava a conciliação e o entendimento.

44  –  Sobre os padrões masculinos modernos, cf. o artigo de CASTELO BRANCO, Pe-
dro Vilarinho. Masculinidades plurais: a construção das identidades de gênero em obras
literárias. História Unisinos. Rio Grande do Sul, v. 9, n. 2, p. 85-95, 2005.

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A Balaiada e as disputas de memória
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No entanto, a participação de Lívio na Balaiada será majoritariamen-


te percebida como mácula. O próprio Miguel Borges, em sua biografia,
informa que a participação de Lívio na Balaiada acompanhou o pai por
toda a vida e foi sempre munição usada por adversários: “Lívio Lopes,
porém, a par de muitos dias de glória, como o que teve nas vezes em que
triunfou em eleições, jamais deixou de ter, também, uma estrela adversa,
que parecia querer anuviar o brilho de todas as suas ações”45.

A participação no movimento rebelde e as implicações desse envol-


vimento povoam também outras memórias familiares. Carlos Castelo
Branco, jornalista, em discurso de posse na Academia Piauiense de Letras,
no ano de 1984, ao mencionar seus antepassados, tece referências a Lívio
Lopes Castelo Branco, afirmando que o envolvimento do ascendente na
Balaiada ocasionou perda material à família.

No relato de Carlos Castelo Branco, a prosperidade da família, pelo


menos no ramo de sua origem, teria se mantido até meados do século
XIX, quando um de seus tetra-avós – Lívio Lopes Castelo Branco – ar-
mou pequeno exército e se envolveu na Balaiada, perdendo homens, ca-
valos e bens. Uma neta do caudilho, irmã de sua avó, contava-lhe, quando
menino, que, segundo a tradição familiar, Lívio fazia os filhos passearem,
nos fins de tarde, com sapatos bordados a fio de ouro, nos braços de mu-
camas vestidas de cetim amarelo. Nas palavras do próprio Carlos Castelo
Branco, o relato provavelmente não passe de lenda, mas assinala a sauda-
de pelos supostos perdidos dias de fausto que seguiram ao envolvimento
de Lívio na Balaiada46.

Outro descendente seu, Moisés Castelo Branco, ao tratar da Balaiada,


afirma que Lívio Lopes Castelo Branco se envolveu no movimento após
encontro que teve, em Campo Maior, com Raimundo Gomes e um grupo
de rebeldes. Moisés Castelo Branco assevera que o acerto entre os dois
seria lutar pelo afastamento do Barão da Parnaíba do governo do Piauí.
45  –  CASTELO BRANCO, Miguel Borges Leal. Apontamentos biográficos de alguns
piauienses ilustres. Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2016, p. 127.
46  –  CASTELO BRANCO, Carlos. Castelo na casa de Lucídio Freitas. Teresina: Aca-
demia Piauiense de Letras, 1984.

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Pedro Vilarinho Castelo Branco

Em síntese, afirma que a motivação era política: o afastamento do Barão


do poder47.

Em conclusão, afiançamos que as memórias referentes a Lívio Lopes


Castelo Branco misturam o brilho da rebeldia, a generosidade capaz de
sacrifícios pessoais em nome de valores superiores e certa percepção en-
vergonhada de carregar a mácula de um mau passo – o envolvimento com
movimento rebelde e ainda a fuga do campo de batalha.

O terceiro personagem escolhido para análise é Manuel de Sousa


Martins, o Barão da Parnaíba, personalidade que, independente de qual-
quer juízo de valor, ocupa espaço significativo na história do Piauí. Seu
envolvimento com o poder teve início no período colonial, quando par-
ticipou de juntas governativas e, depois, do processo de Independência
concluído em 1823, quando assumiu o governo da província e, nele, se
manteve como membro de juntas governativas ou como titular até 1843,
quando, contando com a idade de 76 anos, foi substituído. Manuel de
Sousa Martins se ausentou do governo, mas não da política, pois partici-
pou das tramas e das intrigas políticas do Piauí até os anos 1850, quando
vem a falecer, em 1856, aos 89 anos de idade.

Clodoaldo Freitas, no livro A Balaiada, descreve-o como pessoa


acessível, urbano no trato particular, desapegado de etiquetas e aparatos,
e ainda homem devoto que trazia consigo crucifixos e amuletos de prote-
ção pessoal. A descrição de Clodoaldo se aproxima dos relatos feitos pelo
naturalista inglês Georges Gardner, que tratou pessoalmente com o Barão
da Parnaíba nos anos 1840. No entanto, esse homem cordial, de bom trato
se transformava em personalidade de espírito agressivo, quando contra-
riado em suas vontades e em seus interesses.

Esse aspecto pessoal acabou por se reproduzir também no perfil do


governo por ele comandado, pois sua administração foi, segundo defini-
ção de Clodoaldo Freitas, caracterizada pelo despotismo e pela pessoa-

47  –  CASTELLO BRANCO, Moisés Filho. O Piauí na história militar do Brasil - 1759-
1984. Teresina, 1984.

64 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):41-70, set./dez. 2019.


A Balaiada e as disputas de memória
das elites políticas no Piauí oitocentista

lidade com que tratava os interesses do Estado, como bem expressa no


seguinte fragmento:
Durante o governo do Barão, a razão, e o direito, a justiça e a liberdade
se limitavam à norma traçada pela vontade onipotente do presidente,
que absorvia tudo. O imposto, o voto, a lei desciam enxovalhados do
santuário da divindade ao antro dos interesses inconfessáveis e dos
caprichos levianos do déspota... O trabuco certeiro do assassino venal
fez muita consciência calar-se na mudez terrível dos túmulos48.

Clodoaldo Freitas ainda o define como misto singular de virtudes e


de vícios, como homem fruto do seu tempo; que não favorecia o flores-
cimento do espírito de liberdade, de construção de cidadãos e no qual o
interesse público vivia em profunda simbiose com os interesses privados.
O Barão era o chefe maior do grupo político, que, concentrado em Oeiras,
se ramificava com aliados por toda a província, dominava o Piauí e usava
a estrutura do poder público e a autoridade de governante para beneficiar
e para fortalecer a si e aos aliados. Para o autor, a Balaiada teve grande
utilidade para as elites que comandavam a província, pois o Barão e os
seus aliados aproveitaram o evento para massacrar adversários e para tra-
zer para seu poder patrimônios ainda mais significativos.

É assim que, ao tratar das incursões militares do major Manuel


Clementino, no início da Balaiada, Clodoaldo Freitas dá conta do ocorri-
do com o Senhor José de Sousa Maranhão, dando a entender que Manuel
Clementino, ao sair de Oeiras no comando das tropas governistas, levou
ordens secretas do Barão da Parnaíba, para agir contra alguns adversários,
entre eles José de Sousa Maranhão, considerado inimigo do Barão49.

À espera por novas ordens vindas de Oeiras, Manuel Clementino


teria posto em ação alguns homens para fazerem diligências e efetuar a
prisão do referido homem. Mesmo alheio ao Movimento Balaio, o ho-
mem foi preso e conduzido à presença do comandante, que o recebendo
brutalmente, dirigindo-lhe inúmeras injúrias e ameaças, remeteu-o em se-

48 – FREITAS, Clodoaldo. A Balaiada, p. 21.


49 – FREITAS, Clodoaldo. A Balaiada, p. 66.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):41-70, set./dez. 2019. 65


Pedro Vilarinho Castelo Branco

guida para Oeiras, onde ficou detido muitos meses, sem outra culpa a não
ser a de ser inimigo do Barão50.

Clodoaldo Freitas, como já afirmado anteriormente, assume posição


contraria à Balaiada, não vendo no movimento motivação nobre que jus-
tificasse tamanho derramamento de sangue51. Em outro trecho, assevera
que a população foi a grande vítima do movimento, à medida que tanto
os balaios quanto as forças governistas praticaram o saque e a depredação
das propriedades52.

A Balaiada havia servido para reafirmar o poder do grupo político


concentrado em Oeiras, bem como para massacrar adversários e ainda
para aumentar fortunas particulares que se viram acrescidas com o re-
sultado de práticas de extorsão e de pilhagem. Se determinadas práticas,
como as referidas anteriormente, ferem as sensibilidades modernas, ci-
vilizadas, precisamos entender que elas se enquadram dentro de possibi-
lidades existenciais presentes do meio social no tempo e no espaço aqui
tratados.

Outro trabalho de caráter biográfico que trata do Barão da Parnaíba


e que nos dá pistas para entender a construção discursiva de Manuel de
Sousa Martins é o artigo do general Abimael Clementino Ferreira de
Carvalho. Ele afirma que o Barão da Parnaíba era homem capaz de com-
portamentos agressivos. Contudo, isso não era traço peculiar, mas sim
possibilidade existencial nas masculinidades do Piauí oitocentista.

Os biógrafos do Barão da Parnaíba citados apontam para a compre-


ensão de seu comportamento como inerentes ao meio social em que esta-
va inserido e diretamente relacionada à condição de potentado rural, em
situação de comando do poder provincial, devendo ser compreendido de
forma integrada com seu tempo e com sua situação social. Era época em

50  –  Clodoaldo Freitas também descreve as ações de um comandante das tropas gover-
nistas contra o Senhor José Pereira da Silva Mascarenhas, proprietário do sítio Buritizal,
às margens do Uruçuí. FREITAS, Clodoaldo. A Balaiada. p. 63-65.
51 – FREITAS, Clodoaldo. A Balaiada, p. 66.
52 – FREITAS, Clodoaldo. A Balaiada, p. 67.

66 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):41-70, set./dez. 2019.


A Balaiada e as disputas de memória
das elites políticas no Piauí oitocentista

que os escravos eram açoitados, os presos espancados nas cadeias, os sol-


dados chicoteados nos quartéis, os marinheiros vergastados nos navios,
as crianças castigadas nas escolas, os filhos surrados em casa pelos pais.

Essa compreensão do Barão da Parnaíba significa uma possibilidade


existencial, marcado pelo patriarcalismo, pela força da vontade mascu-
lina, pela legitimidade do uso da violência como forma de fazer e de
aplicar as penas aos que fossem considerados transgressores da ordem
estabelecida.

O Barão não se envolve diretamente nos campos de batalha, coman-


da toda a ofensiva contra os rebeldes, enviando aos subordinados ordens,
partindo de Oeiras. No entanto, com ordens suas, foram promovidas exe-
cuções sumárias de rebeldes vencidos, outros aprisionados, flagelados e
enviados para São Luís no Maranhão ou para Oeiras como prisioneiros
de guerra. Entre os torturados, nem mesmo escaparam os chefes rebeldes,
com vínculos familiares de elite, como foi o caso do Ruivo – Francisco
Lopes Castelo Branco – que foi açoitado, mas que conseguiu sobreviver,
diferentemente do líder rebelde Capitão Manuel de Figueiras Mascarenhas
Feitosa, “o Brasa viva”, que morreu em consequência dos açoites.

Os açoites e as punições físicas são justificados pela falta de reco-


nhecimento de qualquer valor no adversário, pois são percebidos como
“canalhas, bandidos, rebeldes”. E, assim, a eliminação física, é o caminho
a ser tomado. As punições dadas no próprio corpo são diretas. Acontecem
a partir da retirada da vida, da humilhação física e espiritual do adversá-
rio.

A documentação explicita ainda forte espírito revanchista por parte


do Barão. Quando a guerra já estava vencida, continuava a insistir para
que os rebeldes refugiados nas províncias vizinhas fossem presos e puni-
dos. É assim que Lívio Lopes Castelo Branco, mesmo beneficiado pela
anistia oferecida pelo Governo Imperial, é preso no Ceará e tem que pos-
tergar seu retorno ao Piauí.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):41-70, set./dez. 2019. 67


Pedro Vilarinho Castelo Branco

Outro traço marcante do Barão da Parnaíba é ser exemplo de uma


potência masculina ligada à cidade de Oeiras, capital do Piauí até 1852,
expoente maior do poder das elites do centro-sul do Piauí. Manuel de
Sousa Martins foi o responsável pelo maior brilho, pelos maiores feitos
que procuravam consolidar o poder e a força da cidade e de sua elite.

A vitória do Barão na Balaiada é também a vitória de Oeiras, de suas


oligarquias, de sua virilidade que, posta à prova de fogo, questionada por
outros homens, por outros interesses políticos, como os de Lívio Lopes
Castelo Branco e, por representantes das elites, de outros espaços de man-
do no território do Piauí provincial, venceu, triunfou, impôs sua força.

Nessa disputa de memórias, a que conclusões em construção pode-


mos chegar nesse momento? Indiscutivelmente, no campo de batalha, a
vitória coube ao projeto capitaneado pelo Barão da Parnaíba. Assumiu o
planejamento e as ações das tropas legalistas no Piauí, usou das energias
militares necessárias para promover a derrota e a humilhação aos adver-
sários, independente do estrato social.

Quanto às disputas simbólicas no campo das masculinidades de eli-


te, mais uma vez a vitória coube às elites de Oeiras. Enquanto o Barão e,
depois, Visconde da Parnaíba, é escrito em romances, em relatos historio-
gráficos ou em memorialísticos como a grande liderança do Piauí, no sé-
culo XIX, ou, ainda, enquanto Manuel Clementino de Sousa Martins tem
a defesa de sua honra e de sua memória, dos valores de sua masculinidade
marcial enaltecidos e registrados, os relatos sobre Lívio Lopes Castelo
Branco, seguem tímidos e concentrados nos escritos de familiares.

No entanto, a vitória do Barão da Parnaíba acabou, nos anos seguin-


tes, perdendo parte da energia. O governo imperial, que havia enviado
forças para conter o movimento da Balaiada e que estava progressiva-
mente pacificando o Império, agora, procurava impor nova ordem políti-
ca às províncias, estabelecer sua força, centralizar o poder de mando na

68 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):41-70, set./dez. 2019.


A Balaiada e as disputas de memória
das elites políticas no Piauí oitocentista

figura imperial e na estrutura burocrática a seu auxílio e limitar o poder


político dos grupos oligárquicos regionais53.

Manuel de Sousa Martins, agora, Visconde da Parnaíba, em 1843,


com 76 anos e marcado pelos sinais da decrepitude, frutos da idade avan-
çada, foi afastado do poder provincial.

O Visconde da Parnaíba e seu grupo continuavam detentores de


grandes fortunas e de grande prestígio político e social, no entanto, o jogo
do poder político na província ficara mais complexo, uma vez que novos
grupos oligárquicos aprendiam as regras do jogo político propostas pela
ordem imperial. O próprio Império impunha novas regras em que o acesso
ao cargo de presidente passava a ser uma indicação direta do Imperador e
uma função que seria ocupada por políticos de origem provincial diversa.

A segunda metade do século XIX trouxe consigo, do ponto de vista


político, a maturidade do governo imperial brasileiro, e a conjuntura eco-
nômica, influenciada pela ascensão do capitalismo na Europa, cobrava
um rearranjo das forças produtivas em âmbito nacional e regional54. O
Piauí precisava adaptar-se a esses novos modelos, e o fez em seu ritmo,
de forma lenta e gradual.

Entre as mudanças propostas e executadas, estava a transferência


da capital. Assim, um jovem político de origem baiana, José Antônio
Saraiva, contando com a força da indicação imperial, aliado às elites do
norte do Piauí, retira de Oeiras um de seus principais trunfos, o status de
capital provincial. A sede política e administrativa da província migra
para o norte, para Teresina55.

53  –  Sobre as reformas políticas do Estado Imperial brasileiro no final do período re-
gencial e no segundo reinado ver: CARVALHO, José Murilo de. A vida política. In: A
construção nacional: 1830-1889. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 83-130.
54  –  Sobre as novas propostas para a economia brasileira no início do Segundo Reinado,
cf.: PAULA, João Antônio de. O processo econômico. In: A construção Nacional. 1830-
1889. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 179-223.
55 – MONTEIRO, Carlos Augusto de Figueiredo. Tempo de Balaio. Florianópolis:
UFSC, 1993.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):41-70, set./dez. 2019. 69


Pedro Vilarinho Castelo Branco

As referidas perdas reais e simbólicas esvaziam a cidade de Oeiras


na sua potência, se transformam em sinônimo de saudade de um tempo
de brilho pretérito, a apelar constantemente para a história e a memória.
Logo, enaltecer a memória, a bravura, a habilidade guerreira e a capacida-
de estratégica das figuras masculinas da primeira metade do século XIX
são também formas de manter viva a potência da primeira capital.

É exatamente a necessidade de manter vivo o brilho e a autoestima


da cidade que faz com que a memória seja tão zelosamente cuidada, e que
seus personagens, seus feitos, particularmente, os ligados ao processo de
Independência e à Balaiada sejam lembrados e ciosamente defendidos
contra o esquecimento e contra os detratores.

Para os quadros políticos emergentes, que disputariam espaços de


poder no Piauí, na segunda metade do século XIX e no século XX, com
o grupo de herdeiros políticos do Visconde da Parnaíba, coube a tarefa
de construir e de valorar outras memórias. Aos poucos, outros feitos his-
tóricos foram valorizados, outras memórias enaltecidas. Assim, a cons-
trução da Batalha do Jenipapo, evento ocorrido em Campo Maior (norte
do Piauí), em março de 1823, como uma grande efeméride, ou ainda a
canonização do 19 de outubro, data ligada às elites do Norte, nos eventos
da independência do Piauí, são frutos de querelas simbólicas e resultados
efetivos das contendas pela memória. Nessa disputa, o dia 24 de janeiro,
data reivindicada pelas elites de Oeiras como principal data cívica do
estado, como marco fundador da sua independência e adesão ao Império
do Brasil, não é esquecida, mas fragilizada na sua importância e na sua
centralidade.

Texto apresentado em março de 2019. Aprovado para publicação em


outubro de 2019.

70 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):41-70, set./dez. 2019.


Conselhos ao Imperador:
Reflexões sobre as mensagens de Luiz Algusto May a D. Pedro II

71

CONSELHOS AO IMPERADOR: REFLEXÕES SOBRE AS


MENSAGENS DE LUIZ ALGUSTO MAY A D. PEDRO II
ADVICES TO THE EMPEROR: REFLECTIONS ON THE
MESSAGES OF LUIZ AUGUSTO MAY TO D. PEDRO II
Alessandra Bettencourt Figueiredo Fraguas1
Resumo: Abstract:
Este artigo tem como objetivo discutir o proces- This article aims to discuss the process of
so de construção da hegemonia do pensamento building the hegemony of conservative thinking
conservador nas primeiras décadas do Segundo in the first decades of the Second Reign in
Reinado, a partir do discurso de Luiz Augusto Brazil, from the speech of Luiz Augusto
May (1782-1850), importante publicista do May (1782-1850), an important publicist of
contexto da Independência e redator do jornal the Independence context and editor of the
A Malagueta, editado no Rio de Janeiro, entre periodical A Malagueta, published in Rio de
1821 e 1832. Para tal, analisaremos um recor- Janeiro, between 1821 and 1832. To do so,
te de sua trajetória, pouquíssimo conhecido, we will analyze an ill known fragment of his
que é de sua atuação como funcionário público trajectory, which is his performance as a public
e conselheiro de d. Pedro II (1825-1891) nos officer and advisor to d. Pedro II (1825-1891)
anos 1847 e 1848. As fontes privilegiadas são in the years of 1847 and 1848. The privileged
oitenta e duas mensagens escritas por May ao sources are eighty-two messages written by
May to the young emperor, which integrate
jovem imperador, que integram a documenta-
the private documentation of the Imperial
ção privada da Família Imperial - o Arquivo da Family - the Archive of the Imperial House
Casa Imperial do Brasil (POB) - pertencente ao of Brazil (POB) - belonging to the collection
acervo do Museu Imperial. Nestas mensagens, of the Imperial Museum. In these messages,
ao contrário do que se poderia esperar da pena instead of what one might expect from the pen
de um intelectual considerado pela historiogra- of an intellectual considered by historiography
fia como liberal exaltado, emergem pareceres as an exalted liberal, emerge opinions about
sobre a política interna e externa do Brasil e foreign and domestics policies and a discourse
um discurso cujos traços principais vinculam-se whose main features are linked to conservative
ao pensamento conservador. Portanto, preten- thinking. Therefore, we intend to inquire to
demos indagar até que ponto a cultura política what extent the political culture expressed by
expressa por May é reveladora do conservado- May is revealing of conservatism, represented
rismo, representado pela hegemonia do Projeto by the hegemony of the Saquarema Project, or
Saquarema, ou mesmo se teria influenciado a even if would have influenced the politics of
política da Conciliação, posteriormente. Conciliation, later on.
Palavras-chave: D. Pedro II; Luiz Augusto Keywords: D. Pedro II; Luiz Augusto May;
May; Conservadorismo. Conservatism.

Introdução
Ao nos dedicarmos à leitura dos documentos do Arquivo da Casa
Imperial do Brasil, formado pela documentação de caráter privado da

1  –  Pesquisadora do Museu Imperial/Ibram/Ministério do Turismo. Mestre do Programa


de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sob
a orientação da Professora Dra. Lucia Maria Paschoal Guimarães. Associada Titular do
Instituto Histórico de Petrópolis.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):71-94, set./dez. 2019. 71


Alessandra Bettencourt Figueiredo Fraguas

Família Real de Portugal e Imperial do Brasil, custodiado pelo Museu


Imperial, localizamos, entre os milhares de manuscritos guardados por d.
Pedro II, uma série de mensagens escritas por Luiz Augusto May entre
1847 e 18482.

Nestes pareceres, de antemão, chamaram-nos a atenção dois pontos


fundamentais: primeiro, evidenciava-se uma faceta praticamente desco-
nhecida da trajetória de May, jornalista que teve significativa atuação no
Primeiro Reinado; segundo, com relação ao conteúdo das mensagens,
causou-nos surpresa que um discurso que se coadunava com o pensamen-
to conservador pudesse ter saído da pena de uma personagem considerada
liberal, até mesmo radical, que era também um dos mártires da imprensa
nacional.

Porém, como o objetivo da nossa pesquisa, naquele momento, en-


tre 2010 e 2012, era identificar os documentos relativos às viagens de
d. Pedro II pelo Brasil e pelo mundo, visando à elaboração do dossiê de
candidatura ao Registro no Programa Memória do Mundo da UNESCO,
não houve tempo hábil para a análise mais aprofundada3.

Assim, a nossa proposta neste artigo é justamente recuperar a leitura


desses documentos que, se não são inéditos em sentido estrito, até onde
pudemos mapear, foram apenas mencionados por Hélio Vianna, um dos
primeiros a escrever sobre a história da imprensa no Brasil e, especifica-
mente, sobre Luiz Augusto May.
2  –  Documentos do Arquivo da Casa Imperial do Brasil (POB). II-POB-Maço 110 – Doc
5430 e II-POB-Maço 111 – Doc 5498. Museu Imperial/Ibram/Ministério do Turismo. São
82 mensagens manuscritas a tinta, em folhas duplas, com dimensões em torno de 40x26
cm.
3  –  Tratava-se de um projeto de pesquisa institucional, desenvolvido pela equipe do Ar-
quivo Histórico do Museu Imperial. Os documentos foram lidos por quatro pesquisadores,
coordenados por Neibe Machado da Costa, com o intuito de identificar aqueles relativos
às viagens de d. Pedro II, e que não poderiam ser recuperados pelo inventário sumário
existente. Como resultado desta leitura foi elaborado um catálogo com a descrição analíti-
ca de todos os documentos relativos às viagens de d. Pedro II e criada a Série Viagens do
Imperador (1840-1932) no Arquivo da Casa Imperial do Brasil, composta por 2.210 do-
cumentos. A candidatura dos Documentos relativos às viagens do imperador d. Pedro II
pelo Brasil e pelo mundo foi enviada à UNESCO, em 2012, e a documentação nominada
Patrimônio da Humanidade e inscrita no MOW-UNESCO, em 2013.

72 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):71-94, set./dez. 2019.


Conselhos ao Imperador:
Reflexões sobre as mensagens de Luiz Algusto May a D. Pedro II

Aprofundando o que foi aludido por Vianna4, pretendemos refletir


sobre a cultura política expressa nessas mensagens, segundo a nossa hi-
pótese, reveladora do conservadorismo que teria influenciado a constru-
ção da hegemonia do Projeto Saquarema (Conservador), assim como a
política da Conciliação, posteriormente.

O discurso conservador que emerge dos comentários de May, ende-


reçados ao jovem imperador, neste sentido, é de suma importância para
a nossa pesquisa atual, que visa à demonstração da complexidade da tra-
jetória de d. Pedro II, ajudando-nos a entender em que medida e sobre
quais pontos o monarca divergiria, enfaticamente, desse pensamento nas
décadas subsequentes.

Em outras palavras, as mensagens não só nos ajudam a entender o


processo de construção da hegemonia Saquarema – a partir de questões
que estavam latentes, nos idos da década de 1840 – mas nos permitem
refletir sobre o “espaço de experiência” vivenciado por d. Pedro II, logo
após a sua coroação e a sua sagração, em 18 de julho de 1841, assim como
sobre o seu “horizonte de expectativa”5, em tempos de profundas crises
enfrentadas pelas monarquias europeias.

Expondo os debates em torno da consolidação do Estado Nacional -


talvez, o principal desafio de d. Pedro II no início do seu reinado –, Luiz
Augusto May reforçou as suas teses em escritos ao imperador e, em certa
medida, corroborou o espaço de experiência, da maneira que os sujeitos
sociais que vivenciavam períodos de transição profunda – como a do Ab-
solutismo para o Liberalismo –, poderiam identificar.

Este exercício é importante para o nosso trabalho, porque, a partir


dos anos 1960, afloraram estudos, então devidamente institucionalizados
4  –  VIANNA, Helio. Achegas à biografia do Malagueta (I). In: Jornal do Commercio. Rio
de Janeiro. Ano 1960. Edição 00176 (1), de 29/04/1960. Disponível em: http://memoria.
bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=364568_15&pasta=ano%20196&pesq=achegas
Acesso em: 03. 01.18.
5  –  KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos his-
tóricos. Tradução Wilma Patrícia Maas; Carlos Almeida Pereira; revisão da tradução Cé-
sar Benjamim. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):71-94, set./dez. 2019. 73


Alessandra Bettencourt Figueiredo Fraguas

no mundo acadêmico, no nosso entender, inclusive apropriando-se da


narrativa construída no Oitocentos (em discursos de opositores ou em pe-
riódicos, por exemplo), que reforçaram o conservadorismo de d. Pedro II,
esboçando, em última instância, a imagem de um governante despótico.

Sergio Buarque de Holanda, por exemplo, em História Geral da


Civilização Brasileira, publicada em 1960, no tomo referente ao Brasil
Monárquico, e, especificamente, nos volumes sobre o Segundo Reinado,
delineia um imperador conservador, cuja concentração de poderes o colo-
caria em oposição aos liberais6.

O intento da nossa pesquisa, entretanto, é desconstruir este perfil a


partir da análise da documentação privada de d. Pedro II que, além dos
seus 44 diários, é composta por vasta correspondência, minutas de do-
cumentos oficiais, resumos das reuniões ministeriais e do Conselho de
Estado, cadernos de estudos, entre outros, pontuando aspectos inéditos ou
apenas tangenciados da sua trajetória.

A leitura intensa e extensa destes documentos nos permitiu vislum-


brar um ponto de inflexão na trajetória de d. Pedro II, demonstrando-nos
que, pelo menos a partir do final da década de 1850, cada vez mais o im-
perador se desconectaria do projeto político pensado pela elite.

Assim, sublinharemos os principais aspectos do pensamento con-


servador defendidos por May que, no nosso entender, representam os
argumentos nos quais se pautaram os ideólogos do projeto político he-
gemônico nas primeiras décadas do Segundo Reinado. Esta análise nos
dará subsídios para fundamentarmos a hipótese central do nosso trabalho,
defendendo que, paulatinamente, sobretudo após a sua primeira viagem
ao exterior, em 1871, d. Pedro II se afastou do conservadorismo e aderiu
às ideias que revolucionariam os últimos decênios do século XIX: o “ban-
do de ideias novas”, a que se referiu Silvio Romero.

6  –  HOLANDA, Sergio Buarque de. O Brasil monárquico: do Império à República. v. 7,


10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p. 304.

74 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):71-94, set./dez. 2019.


Conselhos ao Imperador:
Reflexões sobre as mensagens de Luiz Algusto May a D. Pedro II

Debates em torno da consolidação do Estado Nacional


Eu disse, Senhor! Que o nosso primeiro trabalho é o de sossegarmos
todos das agitações em que nos precipitarão os Escritores do décimo
oitavo Século: há dois raros casos excepcionarios; que formam na Po-
lítica do Século presente, um contraste curioso: A Rússia e os Estados
Unidos! E como há de correr, entre estas duas Paralelas, a terceira
Paralela, que é a Monarquia Constitucional que se acha na America?!7

Nas décadas de 1840 e 1850, a grande questão com a qual se depara-


va d. Pedro II era a consolidação do Estado Nacional, como evidenciam
as oitenta e duas mensagens de Luiz Augusto May escritas ao imperador,
entre 1847 e 1848, tratando de questões políticas internas e externas, es-
pecialmente, acusando a necessidade de uma revisão do Tratado de Inde-
pendência do Brasil.

Neste sentido, sobressaem análises sobre a formação e a integridade


do Império, quando a defesa da Monarquia Constitucional e da Cons-
tituição de 1824 entra em contradição com a ênfase em prol do uso do
Poder Moderador, e o discurso da legalidade torna-se argumento para a
defesa de um Leviatã, ou de um príncipe, segundo May, com pulsos nos
moldes de Nadhir Shah, ou Gengis Kham. Assim, escreve ao imperador,
em trecho de mensagem de 10 de fevereiro de 1848, que transcrevemos
livremente:
Senhor! Os Reis da Europa façam o que quiserem ou puderem: porém
o Imperador do Brasil haja de imperar; com a Constituição na Sua Im-
perial Cabeça, e a Chave do Poder Moderador na Mão, e com o Titulo
8º da Constituição perante os olhos; e isto tudo ‘sans desamparer’: e
Fora com as sutilezas e sofismas daqueles que pretendem que reinar
e dormir sejam sinônimos, e voltem tais doutrinas para essa França,
donde vieram.

O conselho ao imperador, então com 22 anos de idade e apenas sete


do seu longo reinado que duraria até 1889, parece soar paradoxal por ter
saído da pena de um dos mais importantes publicistas do período pós-

7  –  II-POB-Maço 110. Doc. 5430. Luiz Augusto May a d. Pedro II. Museu Imperial/
Ibram/Ministério do Turismo.

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Alessandra Bettencourt Figueiredo Fraguas

-Independência, um jornalista considerado ícone da imprensa nacional,


por conta do atentado sofrido em meados de 1823 em represália aos seus
posicionamentos políticos.

Luiz Augusto May foi um panfletário nascido em Lisboa, em 1782,


e residente no Brasil desde 1810, proprietário do jornal A Malagueta,
periódico que combatia ferozmente o que considerava a política centrali-
zadora de d. Pedro I, cuja primeira edição é de dezembro de 1821.

Após escrever duras críticas ao Ministério dos Andradas e ao im-


perador d. Pedro I, May teve a sua casa invadida por homens que ten-
cionavam matá-lo. Sem conseguirem, no entanto, fugiram, deixando-lhe
com sérios ferimentos, sobretudo nas mãos, cujas sequelas carregou para
o resto da vida. Segundo Isabel Lustosa, “[...] Na Assembleia, May foi
imediatamente elevado à mártir da imprensa amordaçada pelo repressivo
governo dos Andrada. [...]”8.

A importância de May na história da imprensa brasileira pode ser no-


tada pelas recorrentes referências feitas a ele e à sua produção jornalística
no período de 1821 a 1832, quando, ainda que de maneira intermitente,
circulou A Malagueta. Paralelamente, não podemos deixar de ressaltar
que May também exerceu funções públicas e, em especial, participou de
duas legislaturas do Império, ocupando uma cadeira de deputado geral.
Como registrado no Almanak Laemmert, na Primeira Legislatura (1826-
1829), pela Província de Minas Gerais, assumiu o cargo como suplente
de Estevão Ribeiro de Resende, marquês de Valença, nomeado senador
em 1826; na Segunda Legislatura (1830-1833), pela Província do Rio de
Janeiro, como suplemente de João Mendes Vianna, que falecera em 1830.

Entretanto, pretendemos evidenciar, neste trabalho, não a sua produ-


ção jornalística no conturbado contexto da Independência, no qual, aliás,
exerceu um papel considerável, sendo o único a dar cobertura ao “Fico”,
marcando posição contrária às Cortes de Lisboa, que haviam exigido o
retorno de d. Pedro, então príncipe regente, a Portugal. Esta atitude lhe
8 – LUSTOSA, Isabel. O nascimento da imprensa brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2004, p. 42.

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Conselhos ao Imperador:
Reflexões sobre as mensagens de Luiz Algusto May a D. Pedro II

renderia, nos atos comemorativos à Sagração e Coroação de d. Pedro I, o


agraciamento como Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro, condeco-
ração criada, nesta ocasião, como constatamos na relação dos despachos
publicados na Corte pela Secretaria dos Negócios do Império, no dia 1
de dezembro de 1822, e, na Gazeta do Rio de Janeiro, dois dias depois.

Neste artigo, visamos à recuperação de forma inédita das mensagens


que escreveu ao imperador d. Pedro II, na década de 1840, em um período
não menos conturbado que o mencionado anteriormente, quando se de-
senrolavam as revoluções liberais na Europa e, em especial, a deposição
do rei Luís Felipe, na França, com claras repercussões no Brasil, como na
Praieira, que eclodira em 1848, em Pernambuco.

Se para Nelson Werneck Sodré, já na década de 1830, “[...] a impren-


sa definia-se quanto à orientação, nos três campos, o dos conservadores
de direita, embalados no sonho de restauração, o dos liberais de direita,
que faziam papel de centro, e o dos liberais de esquerda [...]”9 – estes
representados pelos chamados exaltados –, após a morte do primeiro im-
perador do Brasil, em Portugal, em 24 de setembro de 1834, não havia
mais nada que opusesse os primeiros, que defendiam a soberania do rei
e o retorno de Pedro I ao Brasil, porém, com traços de despotismo, que
ainda os ligavam ao Antigo Regime, e os segundos, moderados, defenso-
res da nação, e que buscavam o equilíbrio político a partir de um Estado
forte e centralizador.

Portanto, apreendemos que, desta simbiose entre os dois partidos


políticos de viés ideológico mais à direita – o restaurador e o moderado
–, surgidos durante as Regências, e da fusão de suas proposições para
a consolidação do Estado Nacional e a manutenção da integridade do
Império, é que adviria o embrião do programa conservador que se torna-
ria hegemônico na política imperial, o Projeto Saquarema, assim como a
cultura política que embasou a Conciliação, ou o Gabinete que reuniu no

9 – SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4. ed. São Paulo: Livraria
Martins Fontes, 1999. 

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Alessandra Bettencourt Figueiredo Fraguas

governo políticos de ambos os partidos, o Liberal e o Conservador, entre


1853 e 1857.

Neste sentido, os pareceres escritos por May ao imperador são muito


reveladores. Embora os estudiosos da imprensa no Brasil ressaltem como
característica na trajetória de Luiz Augusto May a habilidade em mudar
suas ideias, sobretudo quando convinha a seus interesses pessoais, as mis-
sivas a d. Pedro II chamam-nos a atenção por mostrarem muitos pontos
em comum com o pensamento político conservador, ao qual alguns re-
levantes liberais, como ele próprio, não tardariam a aderir, coadunando-
-se com a máxima presente no chamado Ministério das Capacidades, de
1838, representado, sobretudo, pelo Ministro do Império e da Justiça,
Bernardo Pereira de Vasconcelos, para o qual, a fim de consolidar a Mo-
narquia e preservar o território, a autoridade seria condição sine qua non
como garantia da liberdade e do governo da casa.

Seguindo esta linha, May, dotado de expressivos conhecimentos ju-


rídicos, argumentava que a soberania da Nação passaria por um Estado
forte e centralizador, ou seja, pelo fortalecimento do Poder Executivo e,
em especial, do Poder Moderador, com o objetivo de combater a anar-
quia e a desordem, representadas por aqueles que defendiam a soberania
popular, a descentralização administrativa e, em última instância, o fede-
ralismo, que seria um dos pontos frágeis do governo imperial até os seus
momentos finais.

Se pensarmos sobre a linguagem política, por exemplo, podemos


aferir que, se os conceitos privilegiados nos debates que afloraram na
imprensa nos anos 1820 e 1830, antes e depois da abdicação de d. Pedro I,
em 7 de abril de 1831, eram “independência”10 e “liberdade”11, os termos
que ganharam força a partir do período regencial foram “ordem” e “equi-
líbrio”, inclusive com a construção de um discurso oficial que ressaltava
a ausência de conflitos e preconizava a aversão a rupturas, visando ao
10  –  NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Independência: Contextos e Conceitos.
História. Unisinos, v. 14, 2010, 5-15.
11  –  RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção. Identidade nacional e con-
flitos antilusitanos no Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: FAPERJ/Relume Dumará, 2002.

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Conselhos ao Imperador:
Reflexões sobre as mensagens de Luiz Algusto May a D. Pedro II

apagamento da violência social e política que havia marcado a década de


1830 no Brasil, palco de múltiplos movimentos políticos que sacudiram
várias províncias do Império, tanto no Norte quanto no Sul, e envolveram
heterogêneos grupos sociais e políticos.

Antecipada a Maioridade de d. Pedro II em 1840, seguiu-se um pro-


cesso político conturbado, permeado por embates políticos, muito bem
refletidos na documentação de caráter privado da Família Imperial12, em
cujo inventário é possível identificar o arrolamento de grande quantidade
de documentos, tratando do que May denominaria em uma de suas men-
sagens de “espírito de divisão”.

Sobressaem, nos papéis referentes às décadas de 1840 e 1850, as


questões políticas internas e externas, como a do Prata, a necessidade de
conhecimento, inclusive corográfico do território nacional, os assuntos
diplomáticos e militares, além, é claro, das costuras políticas que envol-
veram os principais nomes desta fase do Segundo Reinado, quer dizer, a
geração de políticos pós-Independência, responsável pela consolidação
do Estado Nacional, como os conservadores Eusébio de Queirós Cou-
tinho Matoso da Câmara; Honório Hermeto Carneiro Leão, marquês do
Paraná; Paulino José Soares de Souza, visconde do Uruguai, e Joaquim
José Rodrigues Torres, visconde de Itaboraí.

É neste contexto que se deu a primeira grande viagem do impera-


dor pelo Brasil, às províncias do Sul, entre 1845 e 1846, ao término da
Farroupilha (1835-1845), quando d. Pedro II deixou pela primeira vez a
Corte. Esta foi uma viagem claramente ligada ao que Ilmar Rohloff de
Mattos denomina de expansão para o interior, já que o império brasileiro
tinha a necessidade e a urgência de construir uma identidade nacional, o
que já vinha sendo enfatizado, no plano ideológico, desde a criação do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838.

12  –  INVENTÁRIO DOS DOCUMENTOS DO ARQUIVO DA CASA IMPERIAL DO


BRASIL EXISTENTES NO CATELO D`EU. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janei-
ro: Biblioteca Nacional, Ministério da Educação e Saúde, 1939. 2 v.

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[...] as políticas e práticas reveladoras que o Estado imperial empreen-


dia expansão diferente, como resultado de singular combinação entre
a impossibilidade de expansão territorial e a opção pela coexistência
da nação brasileira com outras “nações” no interior de um mesmo
território. Expansão diferente, mas permanente e constante, do Rio
de Janeiro em direção às províncias, atravessando a “roça” e os “ser-
tões”; expansão que ia ao encontro dos brasileiros que pretendia forjar
não mais como meros adeptos de uma causa política [...], e, sim, para
os inscrever na nação brasileira e imperial, como súditos e cidadãos a
um só tempo [...]13.

A presença do imperador nas províncias do Sul (São Paulo, Santa


Catarina e, especialmente, São Pedro do Rio Grande do Sul), neste sen-
tido, foi arquitetada de modo a atrelar a presença do Estado brasileiro,
representado pelo chefe da Nação, à integridade territorial e à unidade
política do Império.

Não à toa, às vésperas da Praieira (1848-1850), Luiz Augusto May


escrevia ao imperador, em mensagem de 16 de setembro de 1847, aconse-
lhando-o a realizar uma segunda grande viagem, dessa vez, às províncias
do Norte, especialmente Bahia e Pernambuco, começando por esta, que
não fora visitada por d. Pedro I e, portanto, onde o imperador nunca havia
sido visto pessoalmente.

Em seu texto, May fala de um “jogo manejado”, relacionado à cons-


trução de si e do seu Reinado,por meio do qual o monarca só poderia “dar
fé de tudo, indo em Pessoa visitar” as províncias, sobretudo em um con-
texto em que “todas as notabilidades de 1822 morreram ou escorregaram
para a nulidade”. Em outras palavras, entende-se que, quando a memória
das lutas pela Independência começava a se apagar, já nos idos da década
de 1840, mais do que nunca se fazia necessária a figura do imperador e os
fundamentos simbólicos a ela inerentes, como guardiã dos preceitos da
Constituição de 1824.

13  –  MATTOS, I. R. de. O gigante e o espelho. In: GRINBERG, K.; SALLES, R. (Orgs).
O Brasil Imperial: 1831-1870. v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 40.

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Conselhos ao Imperador:
Reflexões sobre as mensagens de Luiz Algusto May a D. Pedro II

Esta seria, portanto, a tônica do discurso de May. Por isso, ressalta-


mos aspectos dos seus “conselhos” que, no nosso entender, representam
de forma ímpar o embrião da hegemonia Saquarema, enquanto um pro-
jeto de direção política, capitaneado a partir de um pequeno grupo da
Província do Rio de Janeiro, que tinha como elementos norteadores os
princípios de ordem e civilização, levados a cabo por “homens de uma
nova espécie”, que, então, assumiriam o lugar de destaque na vida social
e política do Império, assim como o contexto da construção da Concilia-
ção, na década de 185014.

As mensagens ao Imperador: conselhos de um velho liberal


Como indicamos anteriormente, aqueles que se dedicaram a estudar
a história da imprensa no Brasil e a circulação dos primeiros periódicos
conferem a Luiz Augusto May (1782-1850) um papel de destaque. Tal-
vez, como já dissemos, por ter sido alvo de ataques advindos do próprio
d. Pedro I, como acreditam aqueles que atribuem a autoria de fortes e
chulas acusações sofridas por May à pena do imperador, ou, com mais
certeza, pelas graves represálias e os dois atentados que sofreu, compro-
metendo a sua integridade física.

Esses fatos seriam suficientes para torná-lo mártir, ou símbolo da


luta pela liberdade de imprensa, figurando, ao lado de Líbero Badaró, por
exemplo, já que foi o primeiro jornalista a ser fisicamente agredido no
Brasil em consequência do desempenho de sua atividade profissional, o
que lhe trouxe, desde 6 de junho de 1823, profundos “desgostos físicos e
morais”, como declararia mais tarde.

No entanto, parece-nos que as mensagens escritas por May ao im-


perador d. Pedro II, entre 1847 e 1848, já no final de sua vida, passaram
quase despercebidas, ou não despertaram o devido interesse desses estu-
diosos. Embora os manuscritos não sejam inéditos em sentido estrito, já
que constam do Inventário dos Documentos do Arquivo da Casa Imperial
do Brasil, organizado pelo historiógrafo Alberto Rangel e publicado pela

14  –  MATTOS, I. R.O Tempo Saquarema. São Paulo: HUCITEC, 1994.

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Biblioteca Nacional em 1939, e estão abertos à consulta dos pesquisa-


dores no Arquivo Histórico do Museu Imperial, instituição custodiadora
deste fundo, pensamos que este artigo será o primeiro a analisar mais
profundamente esta documentação, apenas mencionada pelo historiador
Helio Vianna, em texto publicado no Jornal do Commercio do Rio de
Janeiro, em 1960.

Até onde pudemos mapear, não há trabalhos que tenham realizado


uma leitura verticalizada destas fontes, embora Helio Vianna tenha se de-
dicado à biografia de Luiz Augusto May, como atestam suas obras sobre
a história da imprensa no Brasil, escritas na década de 1940, a série de ar-
tigos publicados no Jornal do Commercio, nos anos 1960, e o seu arquivo
pessoal, doado ao IHGB, onde se encontram, dentre a sua vasta produção
intelectual, as anotações de sua pesquisa sobre o redator de A Malagueta.

No inventário do Arquivo da Casa Imperial do Brasil, estão listados


dez itens documentais referentes a Luiz Augusto May, que se desdobram
em uma centena de documentos, a maioria do próprio punho de May,
produzidos entre 1824 e 1848. Durante o Primeiro Reinado, por exemplo,
veem-se missivas escritas pelo publicista a d. Pedro I, entre 1824 e 1830,
e até mesmo um número do Malagueta Extraordinário N. 4, com pará-
grafo destacado por seu redator, que está anexo a uma dessas cartas com
as devidas explicações.

No entanto, como dito, os manuscritos produzidos no contexto do


Segundo Reinado, na década de 1840, são privilegiados, não só pelo ine-
ditismo da abordagem por nós proposta, mas porque nos interessam como
fontes para que tracemos a complexidade da trajetória de d. Pedro II. As
mensagens escritas por May nos permitem perceber quais eram os temas
fundamentais enfrentados por d. Pedro II no início do seu reinado e, a
partir do paradigma indiciário como metodologia de trabalho, nos ajudam
a compreender as alternativas do imperador diante das preocupações com
as quais tinha que lidar.

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Conselhos ao Imperador:
Reflexões sobre as mensagens de Luiz Algusto May a D. Pedro II

Como salientou Hélio Vianna15, entre os anos 1840 e 1853, ou seja,


até que se instalasse o Gabinete da Conciliação, é possível observar o
amadurecimento político de d. Pedro II, a princípio, tímido, nas suas de-
cisões. Levando-se em consideração o contexto agitado politicamente da
década de 1840, devido às várias revoltas liberais, torna-se, então, impor-
tante levar-se em conta a atuação dos políticos mais experientes junto ao
monarca, influenciando a sua formação. A partir deste viés, nos propomos
a refletir sobre o papel de May como conselheiro do jovem imperador, se
não por um período muito extenso, de todo modo, em um cenário emble-
mático na política do Segundo Reinado.

Embora Vianna sublinhe que, além da atividade de jornalista, May


havia exercido, por duas vezes, o cargo de deputado na Assembleia Ge-
ral e tenha sido Oficial-maior do Ministério da Marinha, cargo imediata-
mente abaixo ao de Ministro16, aposentado em 1824, justamente após o
atentado que o comprometeu fisicamente, a nossa pesquisa nas edições do
Almanak Laemmert da década de 1840 mostrou que, pelo menos desde
1843, ano da primeira edição do almanaque, May havia sido reintegra-
do ao seu posto na Secretaria d’Estado dos Negócios da Marinha, como
Oficial-maior aposentado com exercício, mantendo-se nesta condição
até a sua morte. Portanto, é como funcionário público com incumbência
específica que escreve os pareceres a d. Pedro II, a quem tinha acesso,
como demonstra em várias ocasiões respondendo aos “quesitos” feitos
pelo imperador, escrevendo: “Senhor! Dignou-se V. M. I. autorizar-me a
examinar e dizer [...]”.

Aliás, na mensagem encaminhada, em 13 de julho de 1848, May


disse, logo no primeiro parágrafo, que suas considerações poderiam estar

15  –  VIANNA, Helio. D. Pedro II, da Maioridade à Conciliação. In: Jornal do Com-
mercio. Rio de Janeiro. Ano 1964. Edição 00180 (1), de 08/05/1964. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=364568_15&pasta=ano%20
196&pesq=da%20maioridade%20%C3%A0%20concilia%C3%A7%C3%A3o Acesso
em: 05.02.18.
16  –  Conforme o Guia da Administração brasileira: Império e Governo Provisório
(1822-1891), organizado por Angelica Ricci Camargo e Dilma Cabral, e publicado pelo
Arquivo Nacional, em 2017.

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ou não agradando ao imperador. No caso da primeira hipótese, completou


que podia continuar desenvolvendo os pareceres como “oficial antigo da
Secretaria de Estado”, marcando, assim, o caráter de suas mensagens,
que não eram meras especulações, mas um trabalho desenvolvido sob
encomenda.

Além disso, não era fortuito que d. Pedro II mantivesse guardado


entre os seus papeis pessoais, no seu arquivo privado, esses documentos.
A classificação dos manuscritos como mensagens, por Alberto Rangel,
inclusive, é um elemento a ser levado em consideração já que essa tipo-
logia documental se caracteriza, em uma das suas acepções, por ser uma
correspondência trocada entre os Poderes17.

Fato é que, a partir de 23 de julho de 1847, apenas três dias após o


restabelecimento do cargo de Presidente do Conselho de Ministros, May
iniciou a série de mensagens, escrevendo sistematicamente a d. Pedro
II até 14 de agosto de 1848. É possível notar claramente a questão que
perpassou todos os pareceres: a necessidade de um governo forte, con-
densador da diversidade de opiniões políticas representadas, nas palavras
de May, pelos “Saquaremas, Santa-Luzias, Praieiros e Venda-Grandes”.
Segundo a nossa hipótese, os argumentos de May evidenciaram, desde
então, o embrião da tese da Conciliação, que devia ser catalisada pelo
Poder Moderador.

Ou seja, a conciliação devia ser angariada entre as diferentes frações


das classes dominantes, via fortalecimento do Poder Moderador, como
um recurso para afastar a participação das massas populares, e visan-
do, sobretudo, à emancipação da tutela de potências europeias – seja de
Portugal, seja da Inglaterra –, a organização de um Estado soberano e a
reprodução da estrutura da sociedade, mantendo-se as hierarquias e tam-
bém a escravidão.

Antes de analisarmos alguns excertos dos textos de May, no entanto,


é importante ressaltarmos que este reiteradamente destacou o papel da
17  –  Esclarecimento prestado pela responsável pelo Arquivo Histórico do Museu Impe-
rial, a historiadora e arquivista Maria de Fátima Moraes Argon da Matta, em 25/01/2018.

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Conselhos ao Imperador:
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imprensa como motivadora e veiculadora dos debates políticos, “ainda


que um mal necessário”, como atestara em 1 de outubro de 1847. Talvez,
por isso mesmo, em 31 de julho de 1847, tenha mencionado um dos seus
últimos trabalhos, tratando da “Dissolução do Ministério de 5 de maio
ou A Facção Áulica” – opúsculo “anônimo”18 que gerou algumas impor-
tantes réplicas na imprensa – o que caracterizava a continuidade de suas
atividades como publicista.

Dito isso, elencaremos alguns argumentos que se repetem nas men-


sagens a d. Pedro II e que, no nosso entendimento, revelam muitos pontos
do pensamento conservador:
1. A defesa do “Príncipe” – Embora May houvesse escolhido como
epígrafe de A Malagueta uma citação de Jean-Jacques Rousse-
au, nas mensagens escritas duas décadas depois, em oposição
à soberania que devia estar na vontade geral, nos cidadãos, de-
fende a legitimidade do Príncipe, conclamando o Artigo 98 da
Constituição do Império, segundo o qual “o Poder Moderador é
a chave de toda a organização política”19. Neste sentido, critica-
va a influência da literatura francesa sobre os homens políticos
no Brasil, como o fez em documento de 29 de agosto de 1847.
Assim, completava: “Com a maioridade civil de V. M. I. a tarefa
de fazer observar a Constituição está nos Imperiais ombros”.
2. A soberania do Brasil – Em várias mensagens, May vaticinou:
“O Brasil é uma casa alugada com Escritura de Benfeitorias, e
debaixo de hipoteca, a todo mundo, menos a si mesmo”, com
isso, declarando enfaticamente a necessidade de revisão de al-

18  –  Segundo Helio Vianna, em artigo publicado no Jornal do Commercio (RJ), em


03/05/1960, o autor do panfleto é Firmino Rodrigues Silva (1815-1879). A mesma in-
formação pode ser verificada no site do IHGB. Disponível em: https://ihgb.org.br/perfil/
userprofile/FRSilva.html. Acesso em: 18.01.18.
19  –  Constituição Política do Império do Brasil, outorgada em 25 de março de 1824. Art.
98. O Poder Moderador é a chave de toda a organização Política, e é delegado privativa-
mente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para
que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia
dos mais Poderes Políticos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/consti-
tuicao/constituicao24.htm Acesso em: 30.01.18

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guns tratados que se seguiram à Independência, como o da ces-


são da Cisplatina e o da extinção do tráfico negreiro. Ressaltava
o incômodo de se ter como “Potência Medianeira” a Inglaterra,
defendendo que esta era uma questão americana, e não europeia.
Por isso, preconizava que, se os acontecimentos relacionados à
Independência estavam sendo traídos pela memória de muitos,
citando, por exemplo, discursos de importantes políticos, como
Bernardo Pereira de Vasconcelos que, segundo May, já andava
confundindo datas, a nova geração – a que não havia participado
dos eventos da Independência – era a mais apta a rever certos
tratados. Nesse caso, mais uma vez, não só reforçava com ve-
emência a defesa do Artigo 1º da Constituição20, ou seja, a so-
berania do Brasil enquanto Nação livre, mas também lembrava
ao imperador que ele não havia assinado o Tratado de Indepen-
dência, mas, sim, jurado a Constituição, a qual deveria proteger.
Aliás, este também era o “grande alicerce da nulidade e da an-
ticonstitucionalidade da Abolição do Tráfico de Escravos”, em
referência ao Tratado assinado por Pedro I com a Inglaterra, e
que devia ser contestado.
3. A Fala do Trono de 1845 – A leitura das breves palavras de d.
Pedro II dirigidas à Assembleia Geral, no dia 1 de janeiro de
1845, demonstra-nos que havia dois temas em destaque: primei-
ro, o apaziguamento e o “restabelecimento da ordem” na Pro-
víncia de Alagoas, após a revolta liberal que se desenrolara no
ano anterior, e que levava o imperador a agradecer os esforços
do Exército e da Armada, sem que se esquecesse da Farroupilha
ainda não vencida; segundo, a defesa da harmonia entre os Po-
deres políticos do Estado, que deveriam garantir a paz e firmar
as instituições. Já em 3 de maio, na abertura da segunda sessão,
mais uma vez, seriam reiterados os preceitos de paz e de justiça,
sobretudo com o fim da Farroupilha e a garantia da integridade
20  –  Constituição Política do Império do Brasil, outorgada em 25 de março de 1824. Art.
1. O IMPERIO do Brazil é a associação Politica de todos os Cidadãos Brazileiros. Elles
formam uma Nação livre, e independente, que não admitte com qualquer outra laço algum
de união, ou federação, que se opponha á sua Independencia. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm Acesso em: 30.01.18.

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do Império. Além disso, é remarcável o anúncio do nascimento


do príncipe herdeiro, o primogênito do imperador – d. Afonso
– garantindo, assim, a continuidade da Dinastia dos Bragança
(conforme o Art. 4. da Constituição), pois são estes preceitos da
Fala do Trono de 1845 que May recorrentemente usou, chaman-
do a atenção para o que denominou programa político estabele-
cido pelo imperador nesta ocasião.
4. Do Senado à choupana – No vocabulário político mobilizado
por May, ressaltamos a ideia de Nação, mais uma vez, coadu-
nando-se com o Art. 1º da Constituição, para o qual o Império é
a associação política de todos os cidadãos brasileiros, que for-
mam uma Nação livre. Por isso, reiterava: “Custará a dizer que
o artigo primeiro da Constituição deve ressoar desde o Senado
até a última choupana” (04/09/1847). A Nação, segundo May,
preconizava a “Conciliação”, “tarefa de todos os que falam de
direito a língua portuguesa”. Quanto à conciliação, dizia ao im-
perador: “No entanto terá V. M. I. de observar atentamente a
pronunciação mais ou menos tácita dos diversos grupos, distin-
guindo aqueles murmurinhos e sussurros dos que vivem e for-
migam nas calamidades públicas [...]”
5. Monarco-representativa-aristocrático-democrata – Assim, May
definia o sistema político no Brasil, em mensagem de 19 de ou-
tubro de 1847. Por vezes, chegou a ressaltar que os legislado-
res estavam preocupados apenas com questões internas, quando
não pessoais, descuidando-se das questões externas, relaciona-
das à soberania nacional. Em um segundo momento, enfatizava,
algumas vezes, que o Brasil é uma “Nação que vive e tem de
viver de escravos!”, coadunando-se, assim, com o discurso con-
servador, embora paradoxalmente fosse leitor de David Hume e
Adam Smith, citando-os inclusive para o imperador. Neste sen-
tido, unindo-se ao ponto anterior, a Nação imaginada era feita
pelos “homens bons”, amalgamados pela Língua, mantendo-se
a escravidão e, com isso, grande número de não cidadãos.

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6. A ação externa – “É tão absurdo esperar melhorar a ação inter-


na do Império sem a cooperação da ação externa, como vice-
-versa”. Esse pensamento, expresso em mensagem de 03 de
agosto de 1847, denotava a preocupação de May com a política
externa, sobretudo com o papel e com a hegemonia do Brasil
no cenário sul-americano. Por isso, ressaltava a importância de
reestruturação do Exército, traçando longas considerações sobre
o recrutamento obrigatório, como também preconizava a neces-
sidade de se formar uma Armada moderna, capaz de assegurar
a supremacia da navegação, sobretudo fluvial. Nesse sentido, as
Pastas da Marinha e do Exército deviam estar atreladas à Pasta
dos Negócios Estrangeiros, chamando sempre a atenção para
as questões do Prata e para a figura de Juan Manuel de Rosas,
percebendo argutamente o que se desenrolou nos anos seguin-
tes, entre 1851 e 1852, na Guerra contra Oribe e o governante
argentino.
7. A Constituição – Como em tantos outros momentos da história
do Brasil, na década de 1840, também se evidenciava, nas pa-
lavras de May, a defesa da legitimidade e da Constituição como
argumento para aceitação de um governo forte, pleno de autori-
dade e, no limite, autoritário e despótico, mas que estivesse apto
a conter as dissidências e a manter a ordem. Nesse sentido, sal-
tam no discurso de May as equivalências entre “Legítimo Mo-
narca” e legitimidade; entre “superioridade moral” e “Nação”,
enfim, entre Constituição e Ordem, Paz e Equilíbrio. Daí, o fato
de May ressaltar o “magnetismo moral” de d. Pedro II, capaz de
conter as divisões e consolidar o Estado Nacional.

Como é possível constatar, embora aqui a nossa intenção tenha sido


apenas enumerar alguns pontos que sobressaem no discurso de May,
evidenciam-se não só argumentos que remetem aos Regressistas, que de-
fendiam o fortalecimento da autoridade do Estado para garantir a manu-
tenção da Monarquia e da unidade territorial do Império, como também
elementos do discurso conservador, baseado em hierarquia e em exclu-

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Conselhos ao Imperador:
Reflexões sobre as mensagens de Luiz Algusto May a D. Pedro II

são, e que, a partir dos anos 1830, ganhavam espaço entre as ideias que
então passaram a circular21.

Assim, May escreveria ao imperador em 22 de março de 1848:


[...] Forçoso é dizê-lo, a V. M. I., e a V. M. I. sozinho, é que pertence
extremar não só as coisas como os homens, com o bem simples auxí-
lio da Constituição do Império de que se não parecem lembrar nem os
Poderes Políticos, nem suas subdivisões. Senhor! Será erro miserável
cuidar em discutir sobre concessões: Senhor! Semelhante lembrança
até seria maquiavelicamente feita de propósito! Constituição só! [...]

Sem perdermos de vista que a união dos ex-restauradores com os


ex-moderados pautou a criação do Partido Conservador, não era por mero
acaso que o discurso que preconizava a centralização política, tão pre-
sente nas mensagens de May, fosse a tônica do projeto Saquarema e da
ascensão dos conservadores em 1848, representados, sobretudo, por ho-
mens como Paulino José Soares de Souza, visconde do Uruguai, Joaquim
José Rodrigues Torres, visconde de Itaboraí (ambos sintomaticamente ti-
tulares a partir de 1854) e Eusébio de Queirós Matoso da Câmara.

O Malagueta e o Timandro: Posições trocadas à luz do baile


Monteiro Lobato, no âmbito das muitas ações que visaram à recu-
peração da memória do Segundo Reinado e, por extensão, de d. Pedro
II, defendeu as virtudes do segundo imperador do Brasil e do seu gover-
no, comparando-o, como o fez o escritor Victor Hugo, a Marco Aurélio.
Caracterizou-o como “à luz do baile”, na crônica escrita em 1918, e argu-
mentou que: “O fato de existir na cúspide da sociedade um símbolo vivo e
ativo da Honestidade, do Equilíbrio, da Moderação, da Honra e do Dever,
bastava para inocular no país em formação o vírus das melhores virtudes
cívicas [...]”22.

21  –  NISBET, Robert. As fontes do conservadorismo. In: O Conservadorismo. Lisboa:


Editorial Estampa, 1987, p. 15-43.
22  –  LOBATO, José Renato Monteiro. A Luz do Baile. Disponível em: http://solepro.
com.br/Artigos/Historia/A%20Luz%20do%20Baile.pdf Acesso em: 01.02.18.

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Alessandra Bettencourt Figueiredo Fraguas

Chama-nos a atenção, neste texto, escrito muitas décadas após as


mensagens de May, a defesa do poder pessoal, ainda que acentuando o
equilíbrio e a moderação, como uma resposta plausível aos desafios po-
líticos que têm permeado a história republicana no Brasil. Talvez fosse
viável indagar, como o fez Ilmar Mattos23, o quanto de saquarema ainda
permeia a estrutura social brasileira, ou qual porção de conservadoris-
mo teima em respaldar cada decisão política tomada. No âmbito deste
trabalho, no entanto, buscamos ressaltar a mudança de posição de dois
dos mais destacados publicistas do XIX, liberais exaltados que, embora
pertencentes a gerações diferentes e por circunstâncias diversas, não tar-
daram em se juntar aos conservadores.

Primeiro, nos referimos a Luiz Augusto May, a quem demos ênfase


neste estudo. Se Ivo Coser24, por exemplo, ao analisar as questões re-
ferentes à descentralização administrativa do Império, o colocou no rol
dos federalistas e liberais radicais, como intentamos aqui demonstrar,
causa-nos estranheza a leitura dos conselhos que escreveu a d. Pedro II,
os quais se coadunam perfeitamente às premissas do conservadorismo
expressas por Edmund Burke25, atrelando, antes de tudo, a liberdade à
defesa da autoridade.

Mas também pontuamos as posições de Francisco de Sales Torres


Homem (1812-1876), visconde com grandeza de Inhomirim por título
concedido muito mais tarde, em 1871, que, na contramão de Luiz Au-
gusto May, escreveria, em 1849, após a dura repressão aos Praieiros e a
dissolução da Câmara, naquele ano, o Libelo do Povo26, em que visava
claramente se opor à tirania, segundo ele, representada pela Dinastia Bra-
gantina.

23  –  MATTOS, I. R.O Tempo Saquarema. São Paulo: HUCITEC, 1994.


24 – COSER, Ivo. Visconde do Uruguai: centralização e federalismo. Brasil 1823-1866.
Belo Horizonte: Ed. UFMG/Rio de Janeiro: IUPERJ, 2008.
25  –  BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução em França (1790). Brasília: Ed.
UnB, 1997.
26  –  HOMEM, Francisco de Sales Torres. O Libelo do Povo. In: MAGALHÃES JÚ-
NIOR, R. Três Panfletários do Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de
Letras, 2009, p. 158-205.

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Conselhos ao Imperador:
Reflexões sobre as mensagens de Luiz Algusto May a D. Pedro II

Seguindo-se à Primavera dos Povos, à Era das Revoluções que, em


1848, culminava com a deposição do rei de França, Luís Felipe, Torres
Homem, sob o pseudônimo de Timandro, defendeu a liberdade e a de-
mocracia, o que implicava a participação das massas – do povo – e não
apenas, como havia ressaltado May ao imperador, a atuação dos “homens
bons”, quer dizer, os proprietários, os letrados, ou os ligados à aristocra-
cia e à nobreza.

Nesse sentido, o Timandro representou toda a radicalidade na defesa


dos ideais liberais da Revolução Francesa, até mesmo destoando de ou-
tros companheiros seus, como Domingos José Gonçalves de Magalhães
e Manuel de Araújo Porto-Alegre, respectivamente visconde de Araguaia
e barão de Santo Angelo, a partir de 1874, com quem na mocidade havia
criado a Revista Nitheroy, considerada a precursora do Romantismo no
Brasil.

Assim, se de um lado, nos idos de 1848, May defendia o uso do


Poder Moderador como guardião da ordem, das leis, da paz e da integri-
dade do Império, Torres Homem não hesitou em atrelar a imagem de d.
Pedro II ao absolutismo. O pseudônimo escolhido, o Timandro, não era
por mero acaso, mas uma clara referência a Timon de Atenas e à aversão
a todo tipo de tirania.

Sem nos alongarmos mais em detalhes da biografia de Torres Ho-


mem, visamos sublinhar a mudança de posições políticas que caracteri-
zou as trajetórias do Malagueta e do Timandro, ambos intelectuais que,
como os demais, seus contemporâneos, atrelaram a atividade jornalística,
panfletária, às funções públicas, seja como políticos em sentido estrito,
ocupando cargos eletivos, seja como funcionários públicos, integrantes
de uma rede de sociabilidade que em boa medida os irmanava.

A questão que pretendemos ressaltar é: se, em 1849, Torres Homem


podia ser considerado um claro opositor das ideias de May, o que expli-
cava a sua filiação ao Partido Conservador, pouco tempo depois? Em que
medida a cultura política, entendendo-se esta como um conjunto de repre-

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Alessandra Bettencourt Figueiredo Fraguas

sentações de caráter normativo27, que se tornou hegemônica nos primei-


ros decênios do Segundo Reinado, podia explicar, primeiro, a conversão
de liberais exaltados como May e, segundo, a aproximação de intelectuais
e políticos como Torres Homem com o pensamento conservador?

Nesse sentido, ao analisarmos mais atentamente os discursos de inte-


lectuais como Torres Homem e, particularmente, May, buscamos também
entender as relações entre cultura política, imprensa e poder. A princípio,
no âmbito limitado da elaboração de um artigo, podemos inferir que, na
simbiose entre a atividade panfletária e a atuação política, ambos tiveram
seu discurso alterado a partir da aproximação com as esferas do poder
estabelecido.

Nesse ponto, emerge uma das problemáticas: De que forma se dava a


construção das identidades políticas nesse contexto conturbado, ou como
o trânsito por diversos espaços e por uma extensa rede de sociabilidade
podia condicionar as tomadas de decisão política, em alguns casos, como
o de May e Torres Homem, com mudanças drásticas de posicionamento?

Recuperando neste ponto o texto de Monteiro Lobato, A Luz do Bai-


le, poderíamos nos indagar sobre o que seria a inoculação das melhores
“virtudes cívicas”, à medida que os “novos políticos” se aproximavam
da figura de d. Pedro II. A princípio, para May, esta construção passava
necessariamente por uma conciliação, capitaneada pelo imperador, via
Poder Moderador, que era um forte subsídio ao que denominava período
de transição entre o Antigo Regime e a Monarquia Constitucional; artifí-
cio e artefato político salutar para um momento histórico onde os lugares
de cada agente na sociedade em transformação ainda não estavam bem
definidos.

O Ministério da Conciliação, a partir de 1853, refletia, assim, não


só o advento da nova geração de políticos, mas a construção da ordem,
resguardando a unidade territorial e a centralização política, aliás, como
May havia preconizado. Significava também a exclusão do protagonismo
27  –  BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-
-François. Para uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998, p. 357.

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Conselhos ao Imperador:
Reflexões sobre as mensagens de Luiz Algusto May a D. Pedro II

popular e a consolidação da representação política dos interesses domi-


nantes; a íntima relação entre a construção do Estado Imperial e a consti-
tuição da classe senhorial, como analisado por Ilmar Mattos28.

Conclusão
De acordo com as nossas pesquisas, Helio Vianna foi o historiador
que mais se aprofundou no estudo sobre a vida de Luiz Augusto May e,
portanto, não nos passou despercebido o fato de ter minimizado a capaci-
dade política e até mesmo intelectual do redator de A Malagueta. Apesar
de Vianna, dentro das leituras que fizemos, não ter se dado conta de que,
aposentado em 1824, May havia sido reintegrado ao seu cargo de Oficial-
-maior na Secretaria d’Estado de Negócios da Marinha, e tenha subesti-
mado a sua relação com d. Pedro II, o debate dessa questão é secundário
para o nosso trabalho.

Nosso interesse recai, particularmente, nos elementos presentes no


discurso de um antigo liberal, mas que contém inequívocos argumentos
do pensamento conservador. O intento da nossa pesquisa foi o de refletir
sobre em que medida, se não diretamente, o discurso de May, mas outros
a ele equivalentes, poderiam ter influenciado d. Pedro II e, por conse-
guinte, a costura da política da Conciliação, mais tarde, consolidando a
hegemonia dos conservadores com o Projeto Saquarema.

Nesse sentido, buscamos entender o que se passou com as identi-


dades políticas, embora, como salientou Morel29, a filiação a um partido
político pudesse ter uma conotação muito diferente daquela estabelecida
pela Ciência Política clássica, devendo o historiador do período atentar-se
para as redes de sociabilidade e para a multiplicidade de espaços frequen-
tados pelos agentes sociais estudados, em sua maioria, intelectuais, jorna-
listas, funcionários públicos, que exerciam diversificadas funções dentro
da sociedade e do Estado, e não somente as pertinentes às Legislaturas e
ao âmbito eleitoral strictu sensu.
28  –  MATTOS, I. R.O Tempo Saquarema. São Paulo: HUCITEC, 1994.
29 – MOREL, Marco. O Período das Regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2003.

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Alessandra Bettencourt Figueiredo Fraguas

Por isso, destacamos o vocabulário político mobilizado por May, a


fim de entender como se deu a apropriação das ideias que então circula-
vam, como, por exemplo, os preceitos do conservadorismo que emergiam
da obra de Edmund Burke, a partir da década de 1830. Nesse aspecto,
pareceu-nos evidente a influência desse pensamento sobre uma parcela
significativa dos intelectuais brasileiros que, por motivos diversos, não
tardaram a usar suas penas para defendê-lo.

Assim, não é absurdo entender como e por quais processos, ou “es-


paços de experiência”, d. Pedro II se aproximou do conservadorismo nas
duas primeiras décadas do seu reinado. Se, no discurso de notáveis ex-li-
berais no Brasil, o pensamento conservador emergiu com bastante força,
intentamos mostrar como, apenas no final da década de 1850, ocorrereu o
ponto de inflexão na trajetória do imperador brasileiro que, paulatinamen-
te, começaria a se afastar do pensamento hegemônico e se aproximar de
novas ideias, da heterodoxia, ainda que não sem percalços.

Texto apresentado em dezembro de 2018. Aprovado para publicação


em agosto de 2019.

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A obra Combate Naval do Riachuelo
como lugar de memória da Guerra do Paraguai

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A OBRA COMBATE NAVAL DO RIACHUELO COMO LUGAR


DE MEMÓRIA DA GUERRA DO PARAGUAI
THE PAINTING COMBATE NAVAL DO RIACHUELO AS A
PLACE OF MEMORY OF THE WAR OF PARAGUAY
Guilherme Viertel1
Sandra P. L. de Camargo Guedes2
Resumo: Abstract:
A Pintura Histórica foi um gênero artístico bas- Historical Painting was an artistic genre
tante apreciado no Brasil durante o século XIX, widely appreciated in Brazil during the 19th
quando foi utilizada na construção da história century, when it was used in the construction
oficial e de uma identidade nacional, uma vez of the official history and of a national identity,
que, por meio dela, eram retratados eventos once through it were portrayed memorable
memoráveis tais como a Guerra do Paraguai. events such as the Paraguayan War. The
O conflito contra o Paraguai foi um embate de conflict against Paraguay was a clash of great
grande amplitude, merecendo ser representado magnitude, deserving to be represented through
a partir de pinturas, como a obra pictórica Com- paintings as the pictorial Combate Naval do
bate Naval do Riachuelo, de Victor Meirelles. Riachuelo, of Victor Meirelles. This article,
Este artigo busca verificar se essa obra pode seeks to verify if this work can be understood
ser entendida a partir do conceito de lugares de from the concept of places of memory, developed
memória, desenvolvido pelo historiador francês by the French historian Pierre Nora (1993). For
Pierre Nora (1993). Para tanto, foram realizadas such, a bibliographic review and an analysis of
uma revisão bibliográfica e uma análise da obra the pictorial work Combate Naval do Riachuelo
pictórica Combate Naval do Riachuelo, em que were carried out, and it was found that it can
se constatou que ela pode ser considerada como be considered as a place of memory since it was
um lugar de memória, já que fez parte daquele part of that process that sought to construct
processo que buscava construir visões favorá- visions favorable to the conflict. Furthermore,
veis ao conflito. Além disso, a obra foi repro- the work was reproduced in several textbooks
duzida em diversos livros didáticos, o que dá a which suggest that there was an interest in
entender que havia um interesse em difundir os spreading the ideals contained in the painting
ideais contidos na pintura ao longo do tempo. over time.
Palavras-chave: Lugares de Memória; Pintura Keywords: Places of Memory; Historical
Histórica; Guerra do Paraguai; Patrimônio Cul- painting; War of Paraguai; Cultural Heritage.
tural.

Introdução
A Guerra do Paraguai foi um conflito que marcou profundamente
a História brasileira e latino-americana, por isso, foi amplamente retra-
tado pelos diversos pintores da época, entre eles Victor Meirelles (1832

1  –  Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade da


Univille/SC.
2  –  Doutora em História, Pós doutora em Museologia, Docente do Departamento de
História e do Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade da Uni-
ville/SC.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):95-122, set./dez. 2019. 95


Guilherme Viertel
Sandra P. L. de Camargo Guedes

– 1903), cuja obra Combate Naval do Riachuelo é foco deste artigo e se


enquadra no gênero artístico denominado “Pintura Histórica”.

No século XIX, a Pintura Histórica foi um gênero de destaque no


Brasil, pois, por meio dela, pretendia-se evidenciar um passado glorioso
para a nação que estava se formando. Nesse período, a Academia Impe-
rial de Belas Artes (AIBA), no Rio de Janeiro, se torna uma das institui-
ções mais valorizadas do Império, pois formava os artistas responsáveis
por retratar a História Brasileira e, assim, contribuir com a criação de uma
“Arte Brasileira”3.

As obras pictóricas Combate Naval do Riachuelo, juntamente à Pas-


sagem de Humaitá, fazem parte da primeira encomenda oficial do Estado
Brasileiro ao pintor Victor Meirelles, em 1868, por pinturas sobre a Guer-
ra do Paraguai4. O interesse do Estado Brasileiro em patrocinar obras que
representassem o conflito se deu, pois, na época, a Guerra do Paraguai
estava sendo mal vista pela população, já que custava caro aos cofres
públicos e consumia uma grande quantidade de vidas. Era preciso criar
representações favoráveis ao conflito para controlar a situação5.

Este artigo procura problematizar o quadro Combate Naval do Ria-


chuelo como Lugar de Memória, a partir do conceito desenvolvido pelo
historiador francês Pierre Nora, em 1984, e das colocações de Jacques Le
Goff sobre o poder das pinturas na fixação de memórias6.

Tratar uma Pintura Histórica como Lugar de Memória é uma discus-


são pouco explorada pela historiografia, uma vez que existem trabalhos
que discutem a relação entre Arte e História a partir de Pinturas Histó-

3  –  MAKOWIECKY, Sandra; CHEREM, Rosangela. Fragmentos-construção I: acade-


micismo e modernismo em Santa Catarina. Florianópolis: Ed. da UDESC, 2010, p.121.
4  –  SILVA, Graziely Rezende. Combate Naval do Riachuelo: da história para a pintura.
Revista Virtú, Juiz de Fora: ICH, v.1, p. 1-7, 2008.
5  –  TORAL, André Amaral. Imagens em desordem: a iconografia da guerra do Paraguai
(1864-1870). São Paulo: Humanitas/FFLCH USP, 2001.
6  –  LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução. 4 ed. Campinas, SP: Ed. da Uni-
camp, 1992; NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista
Projeto História, São Paulo, v. 10, p. 7-28 1993.

96 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):95-122, set./dez. 2019.


A obra Combate Naval do Riachuelo
como lugar de memória da Guerra do Paraguai

ricas7 e outros que fazem uma análise do contexto de produção da obra


Combate Naval do Riachuelo durante o Império8, porém não discutem a
obra como Lugar de Memória.
Para alcançar os objetivos propostos, será feita, inicialmente, uma
análise da historiografia da Guerra do Paraguai, buscando entender a
importância do conflito e os motivos que o levaram a ser retratado por
meio de pinturas. Em seguida, será discutida a Pintura Histórica no Brasil
do século XIX, a biografia do pintor Victor Meirelles e detalhes sobre a
obra Combate Naval do Riachuelo. A seguir, será feita a discussão sobre
a possibilidade de se pensar a obra pictórica em questão enquanto um
monumento, mas muito mais como um Lugar de Memória, discutindo
os conceitos a partir dos historiadores Jacques Le Goff9 e Pierre Nora10.
Posteriormente, será discutida a difusão da obra em livros didáticos de
História, ao longo do século XX, a partir de análise feita em banco de da-
dos específico11. Os argumentos apresentados contribuirão para o enten-
dimento de que a obra pictórica em questão pode ser considerada como
Lugar de Memória, já que permitiu que os indivíduos tivessem maior
familiaridade e lembrassem a Guerra do Paraguai a partir dela.

7  –  Com essas características, podem-se citar: CASTRO, Isis Pimentel de. Pintura, Me-
mória e História: a pintura histórica e a construção de uma memória nacional. Revista de
Ciências Humanas, Florianópolis: n.38 p. 335-352, 2005. CASTRO, Isis Pimentel de. Os
Pintores de História: A relação entre arte e história através das telas de batalhas de Pedro
Américo e Victor Meirelles. Dissertação (Mestrado em História Social) Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
8  –  Sobre isso, ver SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. A batalha do Avaí. A beleza da bar-
bárie: a Guerra do Paraguai pintada por Pedro Américo. Rio de Janeiro: Sextante, 2013;
CUNHA, Luiz Carlos da. Representações em tempos de guerra: Marinha, Civilização e
o quadro Combate Naval do Riachuelo de Victor Meirelles (1868 – 1872). Dissertação
(Mestrado em História) Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009;SILVA, Graziely
Rezende. Combate Naval do Riachuelo: da história para a pintura. Revista Virtú, Juiz de
Fora, v.1, p. 1-7, 2008.
9  –  LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução. 4 ed. Campinas, SP: Ed. da Uni-
camp, 1992.
10 – NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Pro-
jeto História, São Paulo, v. 10, p. 7-28 1993, p.22
11  –  LEMAD - LABORATÓRIO DE ENSINO E MATERIAL DIDÁTICO, USP – Uni-
versidade de São Paulo disponível em < http://lemad.fflch.usp.br/> acesso em 21 de maio
de 2019

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Guilherme Viertel
Sandra P. L. de Camargo Guedes

A historiografia da Guerra do Paraguai


O conflito com o Paraguai ocorreu na América do Sul entre dezem-
bro de 1864 e março de 1870, e envolveu a tríplice aliança formada por
Argentina, Brasil e Uruguai contra o Paraguai. É considerado por muitos
historiadores como o maior conflito armado da América Latina sendo,
inclusive, comparada à Guerra de Secessão norte americana em termos
de extensão e de número de mortos12. Segundo a historiadora argentina,
especialista em História Cultural e Guerra do Paraguai, Maria Lucrecia
Johansson e o professor de Comunicação Social Luis Sujatovich, “La
Guerra de la Triple Alianza fue el enfrentamiento más destructivo y pro-
longado de la historia de América Latina, razón por la cual los orígenes del
conflicto han sido objeto de encendidas discusiones historiográficas”13.
Percebe-se que a historiografia da Guerra do Paraguai é bastante vasta,
não só no Brasil, como também nos demais países envolvidos, sendo pos-
sível encontrar diversas vertentes historiográficas que pretendem explicá-
-la.

Para o historiador e pesquisador brasileiro Mario Maestri14, as pri-


meiras obras produzidas no Brasil sobre a Guerra do Paraguai podem
fazer parte do que ele denominou de “historiografia de trincheira”, pois
foram produzidas, em geral, por militares ou por demais participantes do
conflito. Segundo o mesmo autor, as obras desse período possuíam uma
narrativa factual e memorialista, tendo como enfoque as ações militares.
Essa visão historiográfica culpava inteiramente o ditador paraguaio Sola-
no Lopez pelo conflito, sendo ele visto como um grande tirano.

12 – DORATIOTO, Francisco. O conflito com o Paraguai: A grande guerra do Brasil


São Paulo: Atica, 1996.
13  –  Tradução livre do espanhol: A Guerra da Tríplice Aliança foi o confronto mais des-
trutivo e prolongado da história da América Latina, razão pela qual as origens do conflito
foram objeto de discussões historiográficas acaloradas. JOHANSSON, María Lucrecia;
SUJATOVICH, Luis. Papeles de guerra: Causas de la Guerra de la Triple Alianza a través
de la prensa argentina y paraguaya (1862-1870). Universum, Talca: v.2, n.27, p. 99-111,
2012, p.74.
14  –  MAESTRI, Mário. A Guerra Contra o Paraguai: História e Historiografia: Da ins-
tauração à restauração historiográfica [1871-2002]. Estudios Históricos, Montevidéu, n.
2, 2009, p.1-29.

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A obra Combate Naval do Riachuelo
como lugar de memória da Guerra do Paraguai

Maestri15 aponta uma pequena mudança na historiografia sobre a


Guerra do Paraguai após a proclamação da república no Brasil, sendo
denominada por ele como “historiografia republicana”. As obras desse
período, segundo o autor, trazem uma narrativa nacionalista e patrióti-
ca, valorizando, principalmente, as Forças Armadas e reforçando a visão
anterior de Solano Lopez como um tirano responsável pela Guerra. Essa
vertente historiográfica perdurou até a década de 1960.

Já na historiografia paraguaia, segundo Johansson e Sujatovich16, as


primeiras visões do conflito tiveram influência brasileira e também culpa-
vam Solano Lopez como principal responsável pela Guerra. No final do
século XIX e início do XX, começou a surgir um movimento no Paraguai
chamado de lopizmo, que gerou um revisionismo na historiografia para-
guaia sobre a Guerra:
[...] trasformó la imagen del líder paraguayo, que pasó de ser un dic-
tador—cuya acción política desencadenó una guerra irresponsable—
a ser considerado un héroe, una víctima de la agresión de la Triple
Alianza. El movimiento adquirió tal fuerza que, a través de un decreto
de 1936, llevó al reconocimiento de Solano López como héroe nacio-
nal en ese país17.

Nas décadas de 1960 e 1970, ocorre um revisionismo historiográfi-


co nas produções brasileiras sobre a Guerra do Paraguai. Desse período,
se destaca a obra Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai18, escrita

15  –  MAESTRI, Mário. A Guerra Contra o Paraguai: História e Historiografia: Da ins-


tauração à restauração historiográfica [1871-2002]. Estudios Históricso, Montevidéu, n.
2, 2009, p.1-29.
16  –  JOHANSSON, María Lucrecia; SUJATOVICH, Luis. Papeles de guerra: Causas de
la Guerra de la Triple Alianza a través de la prensa argentina y paraguaya (1862-1870).
Universum, Talca: v.2, n.27, p.99-111, 2012, p.74.
17  –  Tradução livre do original em espanhol “[...]transformou a imagem do líder para-
guaio, que passou de ditador - cuja ação política desencadeou uma guerra irresponsável
- a ser considerado um herói, uma vítima da agressão da Tríplice Aliança. O movimento
adquiriu tal força que, através de um decreto de 1936, levou ao reconhecimento de Solano
López como herói nacional no Paraguai”. JOHANSSON, María Lucrecia; SUJATOVI-
CH, Luis. Papeles de guerra: Causas de la Guerra de la Triple Alianza a través de la prensa
argentina y paraguaya (1862 - 1870). Universum, Talca: v. 2, n. 27, p. 99-111, 2012. p.74.
18  –  CHIAVENATTO, Julio José.  Genocídio americano: a guerra do Paraguai.  2. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1979.

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Guilherme Viertel
Sandra P. L. de Camargo Guedes

pelo jornalista e historiador brasileiro Júlio José Chiavenato. O livro de


Chiavenato apresenta a Guerra do Paraguai sob uma perspectiva diferente
daquela abordada anteriormente, possuindo um viés marxista bastante co-
mum nos estudos daquele período que, nas palavras do autor, era a única
“visão exata” da Guerra e que foi, segundo ele, bastante criticada pela
falta de um viés nacionalista.
Enfim, todo livro que se propõe a contar a Guerra do Paraguai dentro
de um parâmetro mais precisamente econômico, o que significa pôr
a nu a Tríplice Aliança como testa-de-ferro do capital inglês é conde-
nado por crime à nacionalidade. O que tem desestimulado os estudos
que poderiam nos dar uma visão exata sobre a Guerra do Paraguai, sua
importância e suas conseqüências19.

Esse revisionismo historiográfico também foi realizado no Paraguai,


onde as narrativas de cunho nacionalista e patriótico foram substituídas
por produções de cunho marxista20. Essa nova visão, como é possível
observar na citação de Chiavenato, entendia que a Guerra do Paraguai
foi causada pelo imperialismo inglês, sendo que o Brasil, a Argentina
e o Uruguai entraram em Guerra contra o Paraguai, pois este estava se
desenvolvendo tecnológica e economicamente, sendo uma ameaça aos
interesses da Inglaterra.

A década de 1990 marca um novo revisionismo na historiografia


sobre a Guerra do Paraguai. Desse período, é o livro O Conflito com o
Paraguai: A grande Guerra do Brasil, de 1996, do historiador brasileiro
Francisco Fernando Monteoliva Doratioto, o qual apresenta a Guerra sob
uma nova perspectiva, que discorda tanto das primeiras visões quanto
do próprio revisionismo elaborado por Chiavenato, localizando “[...] as
origens da Guerra do Paraguai no processo histórico da formação dos
Estados nacionais da região”21. A visão sobre o conflito produzida nesse
19  –  CHIAVENATO, Julio José. Genocídio americano: a guerra do Paraguai. 2. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1979, p. 12.
20  –  MAESTRI, Mário. A Guerra Contra o Paraguai: História e Historiografia: Da ins-
tauração à restauração historiográfica [1871-2002]. Estudios Históricos, Montevidéu, n.2,
p. 1-29, 2009.
21 – DORATIOTO, Francisco. O conflito com o Paraguai: A grande guerra do Brasil
São Paulo: Ática, 1996, p. 10.

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A obra Combate Naval do Riachuelo
como lugar de memória da Guerra do Paraguai

período é ainda muito utilizada em pesquisas relacionadas à Guerra do


Paraguai, não só no Brasil, mas também no Paraguai. No entanto, a visão
marxista da Guerra ainda possui adeptos, mesmo com as novas interpre-
tações sobre o conflito22.

A partir da década 1990, a Guerra do Paraguai passa, então, a ser


vista como um conflito que não teve um único culpado, sendo motivado
por interesses de todos os envolvidos.
Para Solano López, la guerra representaba la oportunidad de ubicar a
Paraguay como potencia regional y lograr el anhelado acceso al mar,
gracias a la alianza con los blancos de Uruguay y con los federales
argentinos. Para el presidente argentino Bartolomé Mitre, la guerra
constituía una vía para la consolidación de su proyecto de centraliza-
ción del Estado, debilitando a los federales mediante la eliminación
de sus apoyos externos. Para los blancos uruguayos, la guerra era un
medio para afianzar la soberanía de su país, imposibilitando futuras
intervenciones de Brasil y Argentina en la dirección de su Gobierno.
Por último, para el Imperio del Brasil, la guerra era el medio para
poner fin al antiguo litigio fronterizo con Paraguay y así lograr defini-
tivamente la libre navegación de los ríos23.

A partir da segunda metade da década de 1990, a produção historio-


gráfica brasileira sobre a Guerra do Paraguai se direciona para novas pro-
blemáticas, como a participação das mulheres e dos escravos no conflito,
além de estudos que tenham como base a iconografia da Guerra24.
22 – DORATIOTO, Francisco. O conflito com o Paraguai: A grande guerra do Brasil
São Paulo: Ática, 1996.
23  –  Tradução livre do original em espanhol: Para Solano López, a guerra representou a
oportunidade de localizar o Paraguai como potência regional e alcançar o desejado acesso
ao mar, graças à aliança com os brancos do Uruguai e os federais argentinos. Para o presi-
dente argentino Bartolomé Mitre, a guerra constituiu um caminho para a consolidação de
seu projeto de centralização do Estado, enfraquecendo os federais por meio da eliminação
de seus apoios externos. Para os brancos uruguaios, a guerra era um meio de fortalecer a
soberania de seu país, impossibilitando futuras intervenções do Brasil e da Argentina na
direção de seu governo. Finalmente, para o Império do Brasil, a guerra foi o meio de aca-
bar com a velha disputa fronteiriça com o Paraguai e assim conseguir a livre navegação
dos rios. JOHANSSON, María Lucrecia; SUJATOVICH, Luis. Papeles de guerra: Causas
de la Guerra de la Triple Alianza a través de la prensa argentina y paraguaya (1862 -1870).
Universum, Talca: v. 2, n.27, p. 99-111, 2012, p.74.
24  –  São desse período estudos como: TORAL, André Amaral. Imagens em desordem: a

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):95-122, set./dez. 2019. 101


Guilherme Viertel
Sandra P. L. de Camargo Guedes

Guerra do Paraguai e Pintura Histórica


O Conflito com o Paraguai, além de vasta bibliografia, mereceu pa-
pel de destaque na produção artística nacional, ainda que tenham sido
produzidas poucas obras com essa temática no Brasil. Segundo André
Toral25, os únicos artistas brasileiros que se dedicaram a produzir obras
sobre a Guerra do Paraguai foram: Victor Meirelles (1832-1903), Pedro
Américo (1843-1905) e o escravo Domingos Teodoro Ramos26.

Todos os pintores brasileiros que retrataram a Guerra do Paraguai,


identificados por Toral27, buscaram diferentes meios para representar o
conflito. Alguns artistas como Domingos Teodoro Ramos e Victor Mei-
relles estiveram nas zonas de guerra, tanto lutando, como foi o caso do
primeiro, quanto acompanhando o desenrolar das batalhas que seriam re-
presentadas através de suas pinturas, no caso de Victor Meirelles. Já no
caso de Pedro Américo, mesmo não tendo visitado as zonas de conflito,
se valeu de seus contatos para fazer ampla pesquisa que o ajudou na pro-
dução das suas pinturas. Assim, antes da obra final, os artistas produziam
diversos estudos, ou rascunhos dos quadros, que eram cuidadosamente
examinados e reelaborados, até conseguirem aquilo que considerassem
“perfeito”. Dentro dessa lógica, temos vários estudos de autoria de Pedro
Américo e Victor Meirelles que vieram a dar origem a obras como Bata-
lha de Campo Grande e Combate Naval do Riachuelo, respectivamente,
entre outras28.
iconografia da guerra do Paraguai (1864-1870). São Paulo: Humanitas/FFLCH USP, 2001
e SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. A batalha do Avaí. A beleza da barbárie: a Guerra do
Paraguai pintada por Pedro Américo. Rio de Janeiro: Sextante, 2013.
25  –  TORAL, André Amaral. Imagens em desordem: a iconografia da guerra do Paraguai
(1864-1870). São Paulo: Humanitas/FFLCH USP, 2001.
26  –  Domingos Teodoro Ramos foi um artista negro que, enviado pelo seu proprietário
para a Guerra do Paraguai, produziu vasta obra sobre a mesma, sendo considerado por
Lopes “o único artista negro a documentar o conflito em uma série enorme de trabalhos”.
LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro,
2004, p. 558.
27  –  TORAL, André Amaral. Imagens em desordem: a iconografia da guerra do Paraguai
(1864-1870). São Paulo: Humanitas/FFLCH USP, 2001.
28  –  Além da obra pictórica Combate Naval do Riachuelo de Victor Meirelles, outros
quadros também retrataram a guerra do Paraguai, entre eles estão, a saber, “Passagem de
Humaitá”, 1872 de Victor Meirelles, “Batalha de Campo Grande”, 1871 de Pedro Améri-

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A obra Combate Naval do Riachuelo
como lugar de memória da Guerra do Paraguai

O gênero artístico Pintura Histórica pretendia retratar acontecimen-


tos memoráveis de modo a representar a História por meio da iconografia.
Apesar de ter tido muito sucesso na Europa desde o século XVII, a partir
da segunda metade do século XIX, entra em declínio. Isso se deu devido
às transformações econômicas e sociais que estavam ocorrendo naquele
continente, bem como ao advento da fotografia.

Foi apenas no início do século XIX que a Pintura Histórica chegou


ao Brasil, trazida na bagagem da Missão Francesa, de 1816, que visava à
implantação do ensino regular de artes a fim de superar a tradição barroca
de origem colonial29. A Missão Francesa deu origem à Escola Real de
Ciências e Artes que, mais tarde, em 1826, passou a se chamar Academia
Imperial de Belas Artes (AIBA).

A Pintura Histórica passou a ganhar notoriedade no Império a partir


de 1855 quando Manoel de Araújo Porto-Alegre (1808-1879), então presi-
dente da Academia Imperial de Belas Artes, realiza a Reforma Pedreira30.
Essa reforma buscava aproximar a Instituição do Estado, colocando-a em
conformidade ao projeto político idealizado pelo Império, que buscava
transformar o Brasil em uma “nação civilizada”. Surge, então, a ideia da
criação de uma arte brasileira, mas com inspiração europeia. Nesse sen-
tido, “a arte, a serviço da história, tornava-se instrumento fecundo ao es-
clarecimento e ao progresso da humanidade.”31. Neste contexto, a AIBA
teve papel fundamental, sendo que as obras de arte passam a ser usadas
para a transmissão de conhecimentos e de valores, pois se acreditava que
os conhecimentos transmitidos de forma visual seriam mais facilmente

co, “Batalha do Avaí”, 1879, também de Pedro Américo e “Batalha Naval do Riachuelo”,
1875 de Edoardo De Martino.
29  –  MAKOWIECKY, Sandra; Cherem, Rosangela. Fragmentos-construção I: acade-
micismo e modernismo em Santa Catarina. Florianópolis: Ed. da UDESC, 2010, p.121.
30  –  CASTRO, Isis Pimentel de. Os Pintores de História: A relação entre arte e história
através das telas de batalhas de Pedro Américo e Victor Meirelles. Dissertação (Mestrado
em História Social) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007, 181p.
31  –  CASTRO, Isis Pimentel de. Pintura, Memória e História: a pintura histórica e a
construção de uma memória nacional. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: n.38
p. 335-352, 2005, p. 338.

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absorvidos e permaneceriam na memória por mais tempo32. Além disso,


a pintura tinha objetivo civilizatório, visto que inspirava valores como
os de patriotismo, civilidade e ordem. O artista tinha como incumbência
educar moralmente e passar aos observadores, por meio da sua arte, as
virtudes da nação.

As Pinturas Históricas produzidas neste período seguiam um padrão


rígido ditado por órgãos do estado:
A concepção de história narrada nessas pinturas estava sob responsa-
bilidade do Instituto Histórico, na medida em que sua produção visava
solidificar os mitos de fundação por ele próprio definidos, ordenar
os “fatos históricos” de maneira linear e atingir uma homogeneidade
histórica de caráter evolutivo, épico e monumental33.

Assim, a Academia Imperial de Belas Artes e o Instituto Histórico


e Geográfico Brasileiro (IHGB) trabalhavam juntos, no sentido de que o
IHGB direcionava a visão de uma História Oficial e os pintores da AIBA
reproduziam–na a partir das obras de arte. É preciso destacar que, naque-
le período, ainda não existia a possibilidade de se compreender como par-
te da História os acontecimentos do tempo presente. Assim, pinturas que
retratavam episódios contemporâneos como a Guerra contra o Paraguai,
devido à proximidade temporal, não eram objeto de pesquisa dos histo-
riadores do século XIX, mas, mesmo assim, pode-se entender que a visão
que as obras de arte deveriam deixar para o futuro era aquela direcionada
a evidenciar os heróis militares e os grandes feitos da nação.

André Toral34 enfatiza que a arte produzida no Brasil, durante esse


período, deveria possuir conhecimento técnico, pois só assim seria reco-
32  –  Para o historiador Paulo Knauss, as imagens, ainda na atualidade, possuem um
impacto visual muito maior do que um texto escrito, possibilitando que pessoas analfa-
betas, ou em estágio inicial de alfabetização, consigam ter acesso ao conteúdo retratado.
KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer História com imagens: arte e cultura visual. ArtCul-
tura, Uberlândia, v. 8, n. 12, p. 97-115, jan.-jun. 2006.
33  –  CASTRO, Isis Pimentel de. Os Pintores de História: A relação entre arte e história
através das telas de batalhas de Pedro Américo e Victor Meirelles. Dissertação (Mestrado
em História Social) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007, p. 20.
34  –  TORAL, André Amaral. Imagens em desordem: a iconografia da guerra do Paraguai
(1864-1870). São Paulo: Humanitas/FFLCH USP, 2001.

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A obra Combate Naval do Riachuelo
como lugar de memória da Guerra do Paraguai

nhecida internacionalmente, o que conferiria civilidade à Nação. Nesse


sentido, a Pintura Histórica visava projetar o Brasil no cenário internacio-
nal enquanto uma nação moderna, algo que seria alcançado por meio da
formação de artistas que valorizassem a composição técnica.

Para Lilia Moritz Schwarcz35, o Império tinha profundo interesse na


formação de artistas. Assim, aos melhores alunos da Academia Imperial
de Belas Artes, eram oferecidas, na época, bolsas de estudo na Europa
para que tivessem a oportunidade de se especializar nas tradicionais aca-
demias localizadas, principalmente, em Paris e em Florença. Tanto Pedro
Américo quanto Victor Meirelles receberam esse auxílio. Os artistas que
estudassem na Europa gozavam de grande prestígio no Império e eram
constantemente requisitados pelo Estado para produção de obras memo-
ráveis.
D. Pedro II era nessa época conhecido por seu papel de mecenas das
artes e financiava diretamente os artistas da Academia de Belas Artes.
Por isso, a arte acadêmica produzida nesse contexto era grandiosa,
oficial e favorável ao império36.

Estudando em academias tradicionalmente conservadoras, os pinto-


res brasileiros acabavam aprendendo técnicas que também valorizassem
os gêneros mais tradicionais como, por exemplo, a Pintura Histórica,
interesse da Academia Imperial de Belas Artes. Muitos dos alunos que
estudaram na Europa acabavam se tornando professores na Academia,
o que fez com que aumentasse o número de docentes nascidos no Brasil
e propiciasse a criação de uma “arte brasileira”, de cunho nacionalista e
patriótico como era o objetivo idealizado por Araújo Porto-Alegre.

A produção de pinturas históricas tinha como um dos objetivos as


exposições de arte. Segundo Castro37, “a mensagem moralizadora da pin-
35  –  SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. A batalha do Avaí. A beleza da barbárie: a Guerra
do Paraguai pintada por Pedro Américo. Rio de Janeiro: Sextante, 2013.
36  –  SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. A batalha do Avaí. A beleza da barbárie: a Guerra
do Paraguai pintada por Pedro Américo. Rio de Janeiro: Sextante, 2013. p. 101.
37  –  CASTRO, Isis Pimentel de. Os Pintores de História: A relação entre arte e história
através das telas de batalhas de Pedro Américo e Victor Meirelles. Dissertação (Mestrado
em História Social) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007, p.10,

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tura histórica, pensada e criada para entrar em contato com o público, só


se completaria no momento das exposições”. Além de exposições ocor-
ridas no âmbito nacional, era comum que as pinturas históricas também
estivessem presentes nas Exposições Universais que passaram a ocorrer a
partir de 1851, sendo a primeira em Londres.

As Exposições Universais tinham função didática e pretendiam mos-


trar, principalmente, o desenvolvimento tanto da indústria como das artes,
sendo estes considerados símbolos do progresso. O Estado Brasileiro era
um dos grandes patrocinadores destas exposições, sendo que, nesses es-
paços, o Imperador era colocado como defensor das artes e da nação. O
interesse do Estado por essas exposições, além da questão econômica,
estava em mostrar aos outros países que o Brasil era uma nação soberana
e moderna. Além disso, a centralidade na figura do Imperador sugere le-
gitimação do poder monárquico, sendo este o responsável por fazer deste
território uma nação civilizada38.

Dessa forma, a pintura histórica fez parte do processo de construção


e de consolidação de um modelo de nação empreendido pelo Estado Bra-
sileiro, que pretendia construir uma história oficial pautada nos grandes
feitos realizados pelos heróis nacionais e mostrar aos estrangeiros que o
Brasil era moderno e civilizado.

Victor Meirelles e o Combate Naval do Riachuelo


Victor Meirelles (Figura 1) nasceu em 18 de agosto de 1832 na cida-
de de Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis, na então província
de Santa Catarina, cidade que se encontra a 952,5 km do Rio de Janeiro,
então capital do Império, onde se encontrava a AIBA, centro de formação
de artistas naquele período. Segundo Luiz Carlos da Cunha39, Meirelles
possuía, desde jovem, aptidão ao desenho, sendo que, com auxílio das
38  –  PEREIRA, Walter Luiz Carneiro de Mattos. Imagem, nação e consciência nacional:
os rituais da pintura histórica no século XIX. Cultura Visual, Salvador, n. 17, p. 93-105,
2012.
39  –  CUNHA, Luiz Carlos da. Representações em tempos de guerra: Marinha, Civiliza-
ção e o quadro Combate Naval do Riachuelo de Victor Meirelles (1868 – 1872). Disserta-
ção (Mestrado em História) Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009.

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A obra Combate Naval do Riachuelo
como lugar de memória da Guerra do Paraguai

autoridades locais, passou a frequentar aulas de artes com o engenheiro


argentino Marciano Moreno.

Figura 1 – Retrato de Victor Meirelles (1832-1903)


[Reprodução fotográfica por] A Pelliciari, 1915 58,5x48,1 cm.
Coleção: Museu Victor Meirelles, Florianópolis, SC.
Fonte:http://odiarioimperial.blogspot.com.br/2015/11/victor-meirelles.html Acesso 20 de Nov. 2017.

Com ajuda de políticos da região, Meirelles embarcou para o Rio de


Janeiro, onde se matriculou na Classe de Desenho, entre os anos de 1847
e 1848, na AIBA; em seguida, de 1849 a 1852, esteve matriculado na
Classe de Pintura Histórica da mesma instituição. Ainda no ano de 1852,
Victor Meirelles participou e venceu o 7º Prêmio de Viagem ao Exterior,
sendo assim, entre os anos de 1856 e 1861, o pintor esteve na Europa,
onde estudou nas cidades de Paris e de Roma, sendo, desse período, um
de seus quadros mais famosos A Primeira Missa no Brasil40.

No ano de 1862, Meirelles retorna da Europa e se torna professor


da AIBA, além de exercer a profissão de pintor. Em 1868, o Ministério
da Marinha, por meio do ministro Afonso Celso, Visconde de Ouro Pre-
to, realiza uma encomenda diretamente ao pintor Victor Meirelles para a
produção de dois quadros sobre a Guerra do Paraguai com temática que
40  –  CUNHA, Luiz Carlos da. Representações em tempos de guerra: Marinha, Civiliza-
ção e o quadro Combate Naval do Riachuelo de Victor Meirelles (1868 – 1872). Disserta-
ção (Mestrado em História) Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):95-122, set./dez. 2019. 107


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enfocasse as ações da Marinha, e foi dessa encomenda que resultaram as


pinturas Combate Naval do Riachuelo (Figuras 2) e Passagem de Humai-
tá. A escolha por Victor Meirelles se deu, segundo Graziely Rezende da
Silva41, pois, na época, ele gozava de certo prestígio na corte, sendo um
reconhecido pintor da AIBA.

Figura 2: Victor Meirelles, Combate Naval do Riachuelo, 1883,


Óleo sobre tela, 400 x 800 cm. Acervo Museu Histórico Nacional.
Fonte: http://museuvictormeirelles.museus.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/MHN-06219.jpg
Acesso em 21 mai. 2019.

Ao longo de sua carreira, Victor Meirelles produziu inúmeras telas,


entre elas a já citada A Primeira Missa no Brasil (1861), Batalha do Gua-
rarapes (1879), Moema (1866), o Panorama do Rio de Janeiro (1888),
além de retratos; ele também deixou várias obras inacabadas por diversos
motivos. Victor Meirelles faleceu em 22 de fevereiro de 1903.

O Combate do Riachuelo, representado na obra de Victor Meirelles,


foi um dos episódios mais intrigantes da Guerra do Paraguai. A bacia do
rio da Prata, onde a batalha ocorreu, é uma região muito importante, pois
liga boa parte do interior da América do Sul ao Oceano Atlântico, sendo
por meio dela o único contato que o Paraguai tinha com o oceano. Assim,
a conquista desse espaço era estratégica tanto para o Brasil quanto para
o Paraguai. O combate foi travado na manhã do dia 11 de junho de 1865,

41 – SILVA, Graziely Rezende. Combate Naval do Riachuelo: da história para a pintura.


Revista Virtú, Juiz de Fora, v.1, p. 1-7, 2008.

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A obra Combate Naval do Riachuelo
como lugar de memória da Guerra do Paraguai

quando oito navios paraguaios vindos da fortaleza de Humaitá, encontra-


ram a esquadra brasileira que bloqueava o rio Paraná, numa região distan-
te apenas 25 quilômetros da província argentina de Corrientes. Ao todo,
as forças brasileiras somavam nove navios comandados pelo almirante
Francisco Manuel Barroso da Silva. O fim do combate resultou numa
vitória do Brasil que impôs uma pesada derrota ao Paraguai que perdeu
sua saída para o oceano, ficando praticamente isolado42.

A obra Combate Naval do Riachuelo começou a ser pintada em agos-


to de 1868. Devido às suas dimensões, não pode ser pintada na AIBA, foi
então que o Ministério da Marinha enviou uma solicitação ao Convento
de Santo Antônio, localizado no Rio de Janeiro, pedindo um espaço onde
o pintor pudesse trabalhar. A pintura foi completamente finalizada em
meados de 187243.

A partir do momento em que a obra foi terminada, ela passou por


diversas exposições. Em 1876, foi mandada para a Exposição Universal
que aconteceu na Filadélfia, Estados Unidos, porém, Victor Meirelles não
teve a oportunidade de acompanhá-la. Nessa viagem, a primeira versão
do quadro Combate Naval do Riachuelo foi perdida. Segundo Graziely
Rezende da Silva44, “ao final da exposição, as telas haviam sido remetidas
de volta, envolvidas em cilindros de madeira que, devido ao tempo de
acondicionamento, cerca de alguns meses, ocasionou sua perda”. Victor
Meirelles ficou bastante incomodado com o acontecido e, em 1883, estan-
do em viagem pela Europa, iniciou a pintura de uma réplica do quadro. O
que se conhece hoje, portanto, é o quadro em sua segunda versão.

A famosa batalha é apresentada na obra pictórica Combate Naval


do Riachuelo com uma coloração bastante densa com destaque para tons
avermelhados e alaranjados que passam ao expectador um ar dramático,

42 – SILVA, Graziely Rezende. Combate Naval do Riachuelo: da história para a pintura.


Revista Virtú, Juiz de Fora, v.1, 2008, p. 1-7.
43  –  SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. A batalha do Avaí. A beleza da barbárie: a Guerra
do Paraguai pintada por Pedro Américo. Rio de Janeiro: Sextante, 2013, 169p.
44 – SILVA, Graziely Rezende. Combate Naval do Riachuelo: da história para a pintura.
Revista Virtú, Juiz de Fora, v.1, p. 1-7, 2008, p. 6.

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característica que remonta aos ideais românticos, como é possível obser-


var na Figura 2.

Num primeiro plano inferior à direita, situa-se uma embarcação pa-


raguaia quase completamente destruída, onde se pode ver soldados para-
guaios posicionados com armas apontadas para o navio brasileiro que se
aproxima vitorioso. Nas feições dos soldados derrotados, é possível ob-
servar a dúvida, o medo e a valentia. Na embarcação destruída, também
se encontram soldados mortos e feridos. Ao centro inferior da imagem,
ainda na mesma embarcação, encontra-se um marinheiro que, pelo ves-
tuário, faz parte do exército brasileiro. Este acaba de levar um tiro, mas,
apesar de toda a dor provavelmente sentida, demonstra gestualmente he-
roísmo e bravura. Um pouco atrás, se observa uma bandeira paraguaia
caída e, abaixo dela, há combatentes que demonstram muito cansaço e
que tentam se segurar na embarcação destruída.

Um pouco mais ao fundo da obra, num segundo plano, levemente à


esquerda, mas no meio do quadro e em maior tamanho, está representada
a fragata Amazona, que sai da nuvem de fumaça e avança em direção
ao espectador. Em pé, na proa, é possível observar o almirante Barroso,
com o braço esquerdo levantado, fazendo um gesto de vitória. A partir da
perspectiva como a embarcação foi retratada, ou seja, de baixo para cima,
é possível perceber a ideia de grandeza que se pretende passar, mostrando
toda força da Marinha Imperial Brasileira e do Almirante Barroso.

Ao fundo da obra, tanto à direita quanto à esquerda, partindo do


meio para a parte superior do quadro, observam-se, em meio à mistura de
névoa com fumaça, embarcações tanto brasileiras quanto paraguaias. Na
esquerda, se dá destaque a outras embarcações e também a personagens,
que se agarram às partes de embarcações destruídas. À direita, próximo
à fragata Amazona, encontra-se uma pequena embarcação paraguaia com
um canhão e alguns marinheiros. Ainda à direita, mas bem ao fundo, ob-
servam-se embarcações, finalizando o conflito em meio a bastante névoa.
Graziely Rezende da Silva45 afirma que: “Esta construção do quadro su-
45 – SILVA, Graziely Rezende. Combate Naval do Riachuelo: da história para a pintura.

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A obra Combate Naval do Riachuelo
como lugar de memória da Guerra do Paraguai

gere um ambiente imersivo, onde o espectador torna-se um contemplador


envolvido pelo evento”.
No quadro representado, podem-se notar algumas características que
são, de certo modo, peculiares ao artista. Uma delas é a forma como o
mesmo retrata os indivíduos que compõe a imagem, buscando dar dig-
nidade a todos os personagens envolvidos. Isso é possível observar na
forma como o artista retrata os brasileiros e paraguaios, já que nenhum
deles parece demonstrar fraqueza ou covardia.

Quando o Documento/Monumento se torna um Lugar de Memória?


Não há dúvidas, observando o contexto de produção da obra Com-
bate Naval do Riachuelo apresentado, que ela pode ser considerada um
monumento, no sentido que o historiador francês Jacques Le Goff dá a
esse conceito, ou seja, tudo aquilo que foi produzido no passado a partir
de uma intencionalidade de marcar um momento, transmitir uma deter-
minada memória. Segundo o autor, todo monumento é produzido com a
intenção de deixar um legado para a posteridade, ou seja, “o monumento
tem como característica o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou
involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva)
[...]”46.

No entanto, o mesmo autor, ao construir sua narrativa a respeito do


conceito de memória, nos alerta para a utilização de algumas obras de
arte como artifícios de memorização, desde a Idade Média. Para ele, essas
obras deveriam ser vistas como “lugares de memória”, que funcionariam
como uma espécie de “memória artificial” para que as pessoas não esque-
cessem aquilo que sempre deveria ser lembrado47.

Como exemplos de obras que mereceriam essa definição, Le Goff


nos apresenta os afrescos de Giotto di Bondone (1267-1337), que estão na
Revista Virtú, Juiz de Fora: ICH – UFJF, v.1, p. 1-7, 2008, p. 3.
46  –  LE GOFF, Jacques. Documento/ Monumento. In: LE GOFF, Jacques. História e
memória. Tradução. 4 ed. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1992.
47  –  LE GOFF, Jacques. Documento/ Monumento. In: LE GOFF, Jacques. História e
memória. Tradução. 4 ed. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1992, p. 453.

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Sandra P. L. de Camargo Guedes

capela dos Scrovegni, em Pádua, e o “Buon governo” e “Mal governo”,


de Ambrogio Lorenzetti (1290 – 1348), presentes no Palácio Comunal de
Siena, todos na Itália48. Para o autor, esses afrescos podem ser considera-
dos lugares de memória, já que aqueles que os vissem sempre lembrariam
da dicotomia – céu e inferno – e da necessidade de serem bons cristãos.
[...] a lembrança do Paraíso e do Inferno ou antes a “memória do Pa-
raíso” e a “memória das regiões infernais”, num momento em que a
distinção entre Purgatório e Inferno ainda não está completamente tra-
çada. Inovação importante que, depois da Divina Comédia, inspirará
as numerosas representações do Inferno, do Purgatório e do Paraíso,
que devem ser vistas na maioria das vezes como “lugares de memó-
ria”, cujas divisórias lembram as virtudes e os vícios49.

Foi essa colocação de Jacques Le Goff que nos levou a pensar que
a obra pictórica Combate Naval do Riachuelo foi concebida e tratada ao
longo do tempo para ser um lugar de memória da Guerra do Paraguai,
mesmo porque essa visão de que as obras de arte deveriam ajudar a en-
sinar e ter uma função moralizadora foi largamente utilizada pela AIBA,
como vimos neste artigo.

O conceito de Lugares de Memória foi formulado, inicialmente, pelo


historiador francês Pierre Nora durante seminários ministrados na École
Pratique dês Hautes Études, em Paris, nos anos de 1978 a 198150. Esse
conceito foi melhor desenvolvido no artigo Entre mémoire et histoire: La
problématique dês lieux, publicado originalmente em 198451.

Nessa obra, Nora buscava diferenciar história e memória a partir da


questão dos lugares. Ele então afirma que, naquele período (década de
1980), a memória estava passando por uma crise. A crise da memória,
na visão de Nora, era em decorrência da sociedade industrial que criou a
48 – Idem, Ibdem.
49  –  LE GOFF, Jacques. Documento/ Monumento. In: LE GOFF, Jacques.  História e
memória. Tradução. 4 ed. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1992, p. 453.
50 – ABREU, José Guilherme. Arte pública e lugares de memória. Revista da Faculdade
de Letras ciências e técnicas do património, Porto, v. IV, 2005, p. 215 – 234.
51  –  Utilizamos para este trabalho a tradução em português presente em NORA, Pierre.
Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto História, São Paulo:
PUC-SP, v. 10, p. 7-28 1993.

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A obra Combate Naval do Riachuelo
como lugar de memória da Guerra do Paraguai

História como disciplina e modificou a relação que as sociedades tinham


com a sua memória, sendo necessária a criação dos lugares de memória
para evitar que determinadas memórias sociais caíssem no esquecimento,
sendo que, a partir delas, seria construída a história oficial. Nesse sentido,
“Os Lieux já efetivavam a ruptura, mesmo que os objetos fossem os mes-
mos de uma história-memória bastante conhecida.”52.

Os Lugares de Memória são espaços onde a história se sobrepõe à


memória, sendo ela responsável pela existência deles53. Isso ocorre, pois a
memória presente nestes lugares não é espontânea, natural, mas uma me-
mória em história que é resultado de pesquisa e de construção, possuindo,
assim, objetivos determinados.

Para Nora, Lugares de Memória são espaços construídos, com a von-


tade de manter viva determinada memória, sendo que:
Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há
memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso man-
ter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres,
notariar atas, porque essas operações não são naturais54.

Nesses locais, a memória não seria espontânea, mas sim uma me-
mória-arquivo que seria relembrada “integralmente” no momento em que
fosse necessária, ou a memória artificial, como coloca Jacques Le Goff55.

Para Pierre Nora, os Lugares de Memória permitem que sejam vis-


lumbrados coisas e objetos de um tempo que não existe mais, mas que
permanece vivo, pois a razão de existência destes lugares é evitar o es-
quecimento, ainda que o presente dê novas funções e novos significados
ao que está ali preservado. Assim:

52  –  GONÇALVES, J. Pierre Nora e o tempo presente: entre a memória e o patrimônio


cultural. Historiae, Rio Grande, v.3, n.3, p. 27-46, 2012, p. 31.
53  –  NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Pro-
jeto História, São Paulo: PUC-SP, v. 10, 1993, p. 7-28.
54 – NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Pro-
jeto História, São Paulo: PUC-SP, v. 10, p. 7-28, 1993, p.13.
55  –  LE GOFF, Jacques. Documento/ Monumento. In: LE GOFF, Jacques.  História e
memória. Tradução. 4 ed. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1992, p. 453.

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Guilherme Viertel
Sandra P. L. de Camargo Guedes

[...] a razão fundamental de ser de um lugar de memória é parar no


tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de
coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial para – o ouro é
a única memória do dinheiro – prender o máximo de sentido num
mínimo de sinais, é claro e é isso que os torna apaixonantes; que os
lugares de memória só vivem de sua aptidão para a metamorfose, no
incessante ressaltar de seus significados e no silvado imprevisível de
suas ramificações56.

A concepção de Lugares de Memória é ampla e diversificada. Nesse


sentido, Abreu afirma que:
[...] enquanto cristalizações do passado, os lugares de memória podem
ser objectos, instrumentos ou instituições, não dependendo a sua defi-
nição da natureza concreta que os molda, mas apenas da realidade que
os habita: uma realidade de que os mesmos são, então, depositários,
enquanto condensações simultâneas do trabalho da História (sedimen-
tações) e afloramentos da perpetuação da Memória (reminiscências)57.

Essas considerações nos levam a propor que a obra Combate Naval


do Riachuelo, sendo construída com o objetivo de preservar uma determi-
nada versão da Guerra do Paraguai, também possa ter sido pensada para
ser algo semelhante a um lugar de memória, ainda que, naquele período,
não se tivesse o entendimento sobre esse conceito. Isso se dá, pois a obra
foi mantida e reproduzida, ao longo do tempo, para que pudesse ser vista
pelo maior número possível de pessoas e, assim, manter viva a memória
de um Brasil vitorioso e poderoso, evitando o esquecimento da Guerra.

A difusão da obra pictórica Combate Naval do Riachuelo


O filosofo e sociólogo alemão Walter Benjamin, no livro A obra de
arte na era de sua reprodutibilidade técnica58, ressalta a mudança ocor-
rida nos comportamentos e nas práticas relacionadas às obras de arte a

56 – NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Pro-
jeto História, São Paulo, v. 10, p. 7-28 1993, p. 22.
57  –  ABREU, José Guilherme. Arte pública e lugares de memória. Revista da Faculdade
de Letras ciências e técnicas do património, Porto: v. IV p. 215 – 234, 2005, p. 215.
58  –  BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto
Alegre: L&PM 2013.

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A obra Combate Naval do Riachuelo
como lugar de memória da Guerra do Paraguai

partir da invenção da fotografia, em meados do século XIX, e da impres-


são offset, no início do XX. Esses recursos influenciaram sobremaneira as
formas de divulgação e de disseminação das obras de arte. Se, no século
XIX, quando a obra em análise foi criada, ela só poderia ser vista em
exposições, como afirmou Isis Pimentel de Castro59, com esses novos re-
cursos, ela passou a ser vista por um número muito maior de pessoas, já
que foi reproduzida em diferentes suportes.

As primeiras reproduções de diferentes tipos de imagens em livros


didáticos somente foram possíveis a partir da criação da tecnologia de-
nominada offset que surge em 190460. Por esse meio, foi possível levar a
crianças e a adolescentes, para além do texto escrito, imagens que teriam
a função de ilustrar os assuntos tratados.

Em pesquisa no acervo de livros didáticos do Laboratório de Ensino


e Material Didático – LEMAD61, foi possível localizar 8 livros didáticos
que foram produzidos ao longo do século XX, em diferentes reedições e
nos quais a obra pictórica Combate Naval do Riachuelo foi reproduzida.
Trata-se de trabalhos que foram amplamente distribuídos em todo o país
contribuindo para a formação de conceitos e de valores acerca da história
do país até a década de 197062. Após esse período, a reprodução da obra
59  –  CASTRO, Isis Pimentel de. Os Pintores de História: A relação entre arte e história
através das telas de batalhas de Pedro Américo e Victor Meirelles. Dissertação (Mestrado
em História Social) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007, p. 10.
60  –  BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto
Alegre: L&PM 2013.
61  –  LEMAD – LABORATÓRIO DE ENSINO E MATERIAL DIDÁTICO, USP – Uni-
versidade de São Paulo disponível em < http://lemad.fflch.usp.br/> acesso em 21 de mai.
2019
62  –  Os livros analisados foram: LACERDA, Joaquim Maria de. Pequena História do
Brasil por Perguntas e Respostas. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves e Cia, 1907;
RIBEIRO, João. Rudimentos da História do Brasil. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves e
Cia, 1910;RIBEIRO, João. História do Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves e Cia,
1914; AZEVEDO, Esmeralda Masson de. Lições de História do Brasil. 2 ed. Rio de Janei-
ro: Papelaria Macedo, 1916; POMBO, José Francisco da Rocha. História do Brasil: com
muitos mapas históricos e gravuras. ed. Rio de Janeiro: Melhoramentos, 1925;RIBEIRO,
João. Rudimentos da História do Brasil. 14 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves e Cia,
1936; SILVA, Joaquim. História do Brasil para o quarto ano ginasial. 10 ed. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1944. e HERMIDA, Antonio José Borges. Compêndio de
História do Brasil. 53 ed. Rio de Janeiro, 1968.

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Guilherme Viertel
Sandra P. L. de Camargo Guedes

pictórica não foi mais localizada, fato que se deve, provavelmente, às


mudanças de paradigmas da historiografia a partir desse período63.

Isis Pimentel de Castro64 afirma que as Pinturas Históricas, com o


tempo, perderam sua dimensão simbólica, tendo adquirido outros signi-
ficados por meio de sua reprodução nos livros didáticos, sendo que, por
meio destes, “a pintura de história toma contornos de verdade única e
reforça o caráter unívoco do conhecimento histórico ali transmitido”65.

O primeiro livro encontrado em que aparece a reprodução da obra


Combate Naval do Riachuelo foi Pequena História do Brasil por Pergun-
tas e Respostas66, de Joaquim Maria de Lacerda, em sua segunda edição,
que foi publicada no ano de 1907 pela editora Francisco Alves e Cia. Este
livro teve ampla circulação, pois acabou sendo publicado por outras edi-
toras e distribuído em diversas partes do país67.

As produções Rudimentos de História do Brasil68 e História do Bra-


sil69, ambos escritos pelo professor João Ribeiro, também foram produ-
ções responsáveis por difundir a obra Combate Naval do Riachuelo. As
produções de João Ribeiro tiveram destaque e ampla circulação no país,
sendo que o livro História do Brasil foi editado até 1966, em sua décima

63  –  SQUINELO, Ana Paula. Revisões historiográficas: a guerra do Paraguai nos livros
didáticos brasileiros – PNLD 2011. Diálogos, Maringá, v. 15, n. 1, 2011.
64  –  CASTRO, Isis Pimentel de. Os Pintores de História: A relação entre arte e história
através das telas de batalhas de Pedro Américo e Victor Meirelles. Dissertação (Mestrado
em História Social) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007, 181p.
65  –  CASTRO, Isis Pimentel de. Os Pintores de História: A relação entre arte e história
através das telas de batalhas de Pedro Américo e Victor Meirelles. Dissertação (Mestrado
em História Social) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007, 181p,
p. 33.
66 – LACERDA, Joaquim Maria de. Pequena História do Brasil por Perguntas e Res-
postas. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves e Cia, 1907.
67  –  MOREIRA, Kênia Hilda. Livros didáticos de história no Brasil do século XIX:
questões sobre autores e editores. Educação e Fronteira, Dourados, v. 3, n. 5, jan./jun.
2010.
68  –  RIBEIRO, João. Rudimentos da História do Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves
e Cia, 1910 e 1936.
69  –  RIBEIRO, João. História do Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves e Cia,
1914.

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A obra Combate Naval do Riachuelo
como lugar de memória da Guerra do Paraguai

nona edição70, o que permite pensar que essa produção atingiu um grande
número de indivíduos ao longo de décadas.

Outros trabalhos foram os livros Lições de História do Brasil71, da


professora Esmeralda Masson de Azevedo, e História do Brasil72, escrito
pelo advogado e historiador José Francisco da Rocha Pombo. A produção
Lições de História do Brasil buscava ser um guia tanto para os professo-
res quanto para os alunos, sendo que, a partir dela, pretendia-se exaltar os
valores cívicos e o amor à pátria73. Já o livro História do Brasil, de Rocha
Pombo, também foi muito utilizado ao longo do século XX, sendo res-
ponsável por fornecer o primeiro contato da história do país para várias
gerações de estudantes, já que foi reimpresso até a década de 196074.

As duas últimas produções da amostra são os livros História do Bra-


sil para o quarto ano ginasial75, escrito pelo professor e membro do Insti-
tuto Histórico e Geográfico de São Paulo – IHGSP Joaquim Silva, e Com-
pêndio de História do Brasil76, do professor Antônio Borges Hermida. A

70  –  MENDONÇA, Joabe França. As adaptações de João Ribeiro em “História do Bra-


sil”. Epígrafe, São Paulo, v. 4, n. 4, 2017, p. 107-123.
71  –  MENDONÇA, Joabe França. As adaptações de João Ribeiro em “História do Bra-
sil”. Epígrafe, São Paulo, v. 4, n. 4, 2017, p. 107-123. AZEVEDO, Esmeralda Masson de.
Lições de História do Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Papelaria Macedo, 1916.
72  –  MENDONÇA, Joabe França. As adaptações de João Ribeiro em “História do Bra-
sil”. Epígrafe, São Paulo, v. 4, n. 4, 2017, p. 107-123. POMBO, José Francisco da Rocha.
História do Brasil: com muitos mapas históricos e gravuras. Rio de Janeiro: Melhora-
mentos, 1925.
73  –  MENDONÇA, Joabe França. As adaptações de João Ribeiro em “História do Bra-
sil”. Epígrafe, São Paulo, v. 4, n. 4, 2017, p. 107-123. MOREIRA, Kênia Hilda. Livros
didáticos de história do Brasil para o ensino secundário (1889-1950): procedimentos de
localização, seleção e acesso. Educação e Fronteira, Dourados, v. 7, n. 20, maio/ago.
2017, p.67-90.
74  –  MENDONÇA, Joabe França. As adaptações de João Ribeiro em “História do Bra-
sil”. Epígrafe, São Paulo, v. 4, n. 4, 2017, p. 107-123. OLIVEIRA, Renato Edson. O
Brasil imaginado em José Francisco da Rocha Pombo. 2015, 142 f. Dissertação (Pós
Graduação em História) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia.
75  –  MENDONÇA, Joabe França. As adaptações de João Ribeiro em “História do Bra-
sil”. Epígrafe, São Paulo, v. 4, n. 4, 2017, p. 107-123. SILVA, Joaquim. História do Brasil
para o quarto ano ginasial. 10 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944.
76  –  MENDONÇA, Joabe França. As adaptações de João Ribeiro em “História do Bra-
sil”. Epígrafe, São Paulo, v. 4, n. 4, 2017, p. 107-123. HERMIDA, Antonio José Borges.
Compêndio de História do Brasil. 53 ed. Rio de Janeiro, 1968.

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obra História do Brasil para o quarto ano ginasial foi publicada entre as
décadas de 1930 e 1970, tendo atingido um vasto número de indivídu-
os, pois esse foi um período marcado pela expansão do ensino primário,
principalmente no governo Vargas77. O livro Compêndio de História do
Brasil foi publicado entre as décadas de 1960 e 1970 cuja tiragem anual
girava entre 150.000 e 250.000 exemplares78.

Para ter noção do impacto dessas produções, no período em que elas


foram publicadas, é preciso saber a quantidade de indivíduos que frequen-
tava a escola e tinha acesso a esse tipo de material (Tabela 1). Segundo
Schwartzman e Brock79, em 1906, foram aprovadas leis que tornavam o
ensino primário mais eficiente. Os mesmos autores afirmam ainda que, no
período da República Velha, cerca de 25% da população era alfabetizada.
Tabela 1 - Evolução do crescimento populacional e da escolarização da população brasileira de 5 a 19 anos nas
décadas de 1920, 1940, 1950, 1960 e 1970.

Ano População de Matrícula Matrícula no Total de Taxa de Crescimento Cresci-


5 a 19 anos no ensino ensino médio Matrículas escolariza- populacional mento da
primário ção matrícula
1920 12.703.077 1.033.421 109.281 1.142.281 8,99 100 100
1940 15.530.819 3.068.269 260.202 3.328.471 21,43 122,26 291,28
1950 18.826.409 4.366.792 477.434 4.924.226 26,15 148,20 430,92
1960 25.877.611 7.458.002 1.177.427 8.635.429 33,37 203,71 755,70
1970 35.170.643 13.906.484 4.989.776 18.896.260 53,72 276,86 1.653,64

Fonte: Tabela adaptada do IBGE, séries estatísticas retrospectivas, 1970; INEP/MEC; Revista Brasileira de estu-
dos pedagógicos, n. 101 apud OEI, Sistema educativo nacional.

A partir do que foi mostrado na Tabela 1, é possível perceber que,


já na década de 1920, um número significativo de jovens tinha acesso
ao ensino, sendo que houve um crescimento até a década de 1970. Isso
permite pensar que, com o maior número de jovens na escola ao longo de

77  –  MOREIRA, Kênia Hilda. Livros didáticos de história do Brasil para o ensino se-
cundário (1889-1950): procedimentos de localização, seleção e acesso. Educação e Fron-
teira, Dourados, v. 7, n. 20, maio/ago. 2017, p. 67-90.
78  –  FERTIG, André Átila; THESING, Neandro. O processo de independência em li-
vros didáticos tradicionais: instrumentos a nação. Revista Latino-Americana de História
– UNISINOS, São Leopoldo, n. 6, v. 2, ago. 2013, p. 684-699.
79  –  SCHWARTZMAN, Sergio. BROCK, Cesar. (Org.) . Os desafios da educa-
ção no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, v. 1, 2005.

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A obra Combate Naval do Riachuelo
como lugar de memória da Guerra do Paraguai

décadas, mais indivíduos acabaram tendo contato com as reproduções do


quadro Combate Naval do Riachuelo.

Segundo Aline Praxedes de Araújo80, na medida em que a obra pictó-


rica Combate Naval do Riachuelo foi amplamente difundida a partir dos
livros didáticos, certamente ela viria a ser lembrada quando se pensasse
ou se ouvisse falar sobre a Guerra do Paraguai, mesmo que o indivíduo
não relacionasse a obra ao artista e ao contexto de sua produção.

A difusão da obra em livros didáticos durante o século XX mostra


que ela transcendeu o seu tempo, pois havia o interesse pela propagação
dos ideais nacionalistas e patrióticos e, por meio dessas produções di-
dáticas, seria possível que indivíduos das mais diversas regiões do país
tivessem contato com os conceitos e os valores ali contidos e que, assim,
pudessem ser entendidos e valorizados. Dessa forma, é possível que, a
partir do momento em que os indivíduos entrem em contato com a obra
Combate Naval do Riachuelo, ocorra a transmissão e a disseminação de
conhecimentos e de visões a respeito da Guerra do Paraguai. A possibili-
dade dessa obra pictórica ser vista muito além de seu tempo é o que nos
faz considerá-la um Lugar de Memória, pois ela foi um dos importantes
meios para se manter viva a memória sobre a Guerra do Paraguai.

Considerações Finais
A Guerra do Paraguai foi um conflito de grande magnitude e que
marcou profundamente a história de todos os envolvidos. Durante esse
período, o Estado brasileiro, por meio da Academia Imperial de Belas
Artes, buscava criar uma Arte Brasileira que contasse a História Nacional
oficial por meio da pintura e, ao mesmo tempo, contribuísse para constru-
ção da identidade nacional.

O presente artigo buscou analisar a obra Combate Naval do Riachue-


lo pintada por Victor Meirelles e afirmar que ela pode ser considerada um

80 – ARAÚJO, Aline Praxedes. Há tantas formas de se ver o mesmo quadro: uma leitura
de O Combate Naval do Riachuelo de Victor Meirelles (1872/1883). Dissertação (Mestra-
do em História) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2015.

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Guilherme Viertel
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monumento, pois foi produzida com a intencionalidade de preservar a


memória dos acontecimentos nela representados. No entanto, nos pare-
ce que o conceito de Lugares de Memória apresentado por Pierre Nora
(1993) é mais condizente com o contexto de criação e de reprodução da
obra pictórica em questão.

Os lugares de memória podem ser considerados como construções


de memória que pretendem estabelecer relação dos indivíduos com o pas-
sado. Assim, os lugares de memória se apresentam como um elo que per-
mite ao indivíduo ter acesso a um tempo em que não viveu e que chega
até ele por meio de fragmentos selecionados.

A partir do que foi apresentado neste trabalho, acreditamos ser pos-


sível que, ao propor a construção de um quadro com as características
de Combate Naval do Riachuelo, o Imperador Pedro II tenha procurado
obter algo semelhante ao que, hoje, chamamos de lugar de memória, sen-
do que, a partir do quadro, buscavam-se a disseminação de um discurso
específico sobre a Guerra do Paraguai e a perpetuação de uma memória
favorável à soberania nacional. A construção desse lugar de memória per-
passa tanto o Império como a República, em que se transmitiu o mesmo
discurso a partir da reprodução das imagens em larga escala.

A escolha da reprodução dessa obra, especificamente nos livros didá-


ticos, ainda que existissem outros quadros ou até mesmo fotografias que
retratassem a Guerra do Paraguai, revelam interesses em preservar aquela
visão sobre o conflito e a necessidade de se guardar essas memórias em
detrimento de outras. Então, é possível pensar que houve a iniciativa de
construção de um Lugar de Memória que envolveu tanto a figura do esta-
do como das elites políticas e econômicas do período.

Assim, no momento em que foi reproduzida em livros didáticos, a


obra pictórica Combate Naval do Riachuelo atingiu um grande núme-
ro de pessoas, difundindo as representações sobre a Guerra do Paraguai
nela presentes. Ao ter contato com a reprodução da pintura, os estudantes

120 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):95-122, set./dez. 2019.


A obra Combate Naval do Riachuelo
como lugar de memória da Guerra do Paraguai

acabam por construir representações a respeito do conflito, de modo a


adquirir maior familiaridade com algo que, até então, era desconhecido.

Os conceitos apresentados aqui ajudam a entender a dimensão ad-


quirida pela obra de arte ao longo do tempo na sociedade brasileira. Além
disso, a presente discussão permite perceber o quanto o conceito de Lu-
gares de Memória é amplo, oferecendo a possibilidade de relacionar di-
ferentes objetos a ele.

Dessa forma, é possível que se pense que a pintura histórica, sendo


um marco na produção artística nacional, acabou por construir obras pic-
tóricas, como o quadro Combate Naval do Riachuelo, que transcendeu
o seu tempo e pode ser visto como algo que remete a ideia de lugar de
memória sobre a Guerra do Paraguai.

Texto apresentado em fevereiro de 2019. Aprovado para publicação


em setembro de 2019.

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Homens do futuro, do presente e do passado
em comemorações históricas – Portugal e Brasil, século XIX

123

HOMENS DO FUTURO, DO PRESENTE E DO PASSADO EM


COMEMORAÇÕES HISTÓRICAS – PORTUGAL E BRASIL,
SÉCULO XIX
MEN FROM THE FUTURE, OF THE PRESENT AND FROM THE
PAST IN HISTORICAL CELEBRATIONS – PORTUGAL AND
BRAZIL, 19TH CENTURY

Gustavo Pereira1
Resumo: Abstract:
Busca-se refletir sobre como, em Portugal e no This paper is an attempt to understand how
Brasil, lidou-se no século XIX com comemo- celebrations of important individuals and
rações em torno de homens e de episódios de episodes of the past were perceived in 19th
relevo – maneira peculiar de narrar o passado. century’s Portugal and Brazil – a peculiar way
Remonta-se ao início da década de 80, quando of narrate the past. It takes in consideration
houve celebrações centenárias (como a pomba- the early 1880s, when centenaries celebrations
lina) nos dois lados do Atlântico, e recua-se às (such as the one commemorating Pombal), were
décadas de 20 e 30, quando se estabeleceram e held on both sides of the Atlantic, and goes back
atualizaram festividades relacionadas a D. Pe- to the 1820s and 1830s, when festivities were
dro (I do Brasil, IV de Portugal), apreciado, de established and continuously updated around
diferentes maneiras, ao longo do tempo. different perceptions regarding D. Pedro (I of
Brazil, IV of Portugal), a man appreciated in
diferent ways over time.
Palavras-chave: História; Memória; Comemo- Keywords: History; Memory; Celebrations.
rações.

Nós, os homens do futuro


[…] herdeiros e discípulos
De Camões e de Pombal
Empunhando a pena ou a espada
Honraremos Portugal.
Hino dos estudantes (1882)

Do passado, do presente
Ao longo do Oitocentos, discutiam-se, no Instituto Histórico e Geo-
gráfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838, parâmetros para a história
nacional que se pretendia afirmar para o Império do Brasil (1822-1889).

1  –  Assistente de Investigação. CHAM – Centro de Humanidades. Universidade Nova


de Lisboa.

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Gustavo Pereira

Abordava-se a história enquanto discurso crítico e disciplinado sobre


determinados acontecimentos pretéritos; enquanto discurso elaborado a
partir de vestígios do passado percebido como brasileiro – tornados do-
cumentos mediante suas seleção, recuperação e preservação (atividades a
que muito se dedicaram os homens do Instituto)2. No programa do IHGB
coetâneo, nota-se a importância da escrita biográfica como forma de res-
gatar e de preservar do esquecimento individualidades relevantes para a
narrativa nacional que se buscava consolidar3. Nota-se, também, a afirma-
ção do distanciamento temporal como condição para a justa apreciação
desse passado – o que implicava desconfiar de reflexões sobre temáticas
mais ou menos contemporâneas e polêmicas4.

Na Sessão Magna Aniversária do Instituto, celebrada em 1881,


Franklin Távora (1842-1888) discursou, homenageando seus consócios
recém-falecidos. Diferenciando o ato que protagonizava do “espetáculo
no seio da família por ocasião dos aniversários do falecimento das suas
2 – Ver os verbetes “história”, “memória” e “documento/monumento”. LE GOFF, J.
História & Memória. Campinas: Unicamp, 2014 [1990]. Considerando a polissemia da
palavra história, pode-se afirmar que se coligiam documentos que permitissem, nas condi-
ções e nos momentos devidos, avaliar criticamente a história (acontecimentos passados).
Buscava-se, ademais e como parte desse esforço, preservar memórias (recordação; narra-
tiva afetiva, mítica e eficaz do passado), que tanto poderiam ser objeto da história (crítica,
historiografia), quanto poderiam ser mobilizadas politicamente, pela via dos sentimentos
que evocavam (como nas comemorações). Para Lúcia Guimarães (que resgata a oposição
história-memória a partir de Pierre Nora), produziu-se no IHGB memória, e não história.
GUIMARÃES, L. M. P. “Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1828-1889)”, R.IHGB, n. 88, 1995. Ver ainda:
GUIMARÃES, M. L. S. “Nação e civilização nos trópicos: o Instituo Histórico e Geo-
gráfico Brasileiro e o projeto de uma História Nacional”, Estudos Históricos, n. 1, 1988.
3 – ENDERS, A. “‘O Plutarco Brasileiro’. A produção dos vultos nacionais no Segundo
Reinado”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 25, 2000; OLIVEIRA, M. G. “Brasilei-
ros ilustres no tribunal da posteridade: biografia, memória e experiência da história no
Brasil oitocentista”. Varia História, Belo Horizonte, v. 26, n. 43, 2010.
4 – Havia, no Instituto, demandas por uma escrita do presente, mas, a par de iniciativas
não-continuadas nesse sentido (armazenadas para a apreciação de historiadores futuros),
houve outras em sentido oposto, como a arca do sigilo (para arquivar de documentação
e temáticas cuja apreciação era considerada inconveniente no presente, sendo por isso
legadas ao tribunal da posteridade). Afirmou-se, assim, o preceito do distanciamento tem-
poral. MALEVAL, I, I. Entre a “arca do sigilo” e o “tribunal da posteridade”: o (não)
lugar do presente nas produções do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-
1889). Tese de Doutorado, História. Rio de Janeiro: PPGH-UERJ, 2015.

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Homens do futuro, do presente e do passado
em comemorações históricas – Portugal e Brasil, século XIX

pessoas caras”, ele aponta que, distintamente das ausências recordadas no


ambiente familiar, no IHGB
os evocados volvem às nossas relações como se entre eles e nós nunca
se tivesse interposto o verme sepulcral. […] Eles estão aqui no nosso
grêmio – eles, os nossos amigos, que andavam ausentes e pareciam
esquecidos de nós.
Desta vez, porém, não vêm conferir louros literários como era costu-
me antes desse longo apartamento. Vêm, ao contrário, recebê-los de
nossas mãos, porque são eles o objeto da nossa festa, são eles os lau-
reados e somos nós que os galardoamos, nós que representamos neste
momento a primeira entrância da posteridade5.
Alguns anos antes, Joaquim Manoel de Macedo (1820-1882) esta-
beleceu, na celebração de 1863, uma distinção elucidativa sobre como se
lidava no Instituto com algumas dessas questões:
o elogio acadêmico de um finado não pode ser uma biografia escri-
ta com a severidade dos preceitos da história, porque nessa somente
deve falar a justiça e naquela podem desafogar-se a estima e a sau-
dade; em uma, a imparcialidade sentencia, no outro, a gratidão paga
um tributo; sentença e tributo, porém, que são igualmente generosos
e nobres quando nascem da consciência e firmam-se na verdade. […]
A família que em vestes de luto visita a sepultura onde um dos seus
descansa dormindo o sono da morte, lembra saudosa os dotes e o me-
recimento do parente perdido e, ou não recorda seus erros, ou, se os
recorda, desculpa-os. A família não julga, louva.
E como a família, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, co-
memorando anualmente aqueles que passaram à eternidade, paga uma
dívida sagrada de reconhecimento e recordação das virtudes e dos
serviços desses beneméritos […]. No grande tribunal da história, os
contemporâneos dos varões notáveis são apenas testemunhas e o juiz
é somente a posteridade. […] Comemoremos, pois, os nossos finados.
Fale a verdade no elogio deles, e basta6.
Recuperando suas palavras, entende-se melhor a indicação de Távora
dos elogios/tributos fúnebres (metafórica ressurreição, resgatando recém-
-falecidos do esquecimento) como “primeira entrância na posteridade”.
5 – R.IHGB, Rio de Janeiro, t. 44, pt. II, 1881, p. 451-452. Grifos meus.
6 – R.IHGB, t. 26, 1863, p. 925-926.

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Gustavo Pereira

Para Macedo, dada a proximidade (afetiva e temporal) evocada, trata-se


de um testemunho ao tribunal da história (registrando sua recordação),
e ainda não de seu veredito (etapa futura). Se aos contemporâneos cabia
deixar depoimentos verdadeiros aos homens do futuro (preservando do
esquecimento indivíduos e acontecimentos), a esses caberia apreciar tais
declarações com distanciamento temporal e método, julgando-as “com a
severidade dos preceitos da história”.

Távora também pondera sobre a relação entre a crítica da posteridade


(de que resulta uma história-julgamento em constante reformulação) e as
diferentes apreciações/vereditos sobre personagens históricas (biografias,
não elogios) já operadas no país, revendo-se aspectos e protagonismos
de narrativas do passado nacional a partir de um esclarecimento sobre
acontecimentos pretéritos:
a crítica histórica, ainda que muito longe do lugar que lhe compete
em nosso meio literário, tem mudado velhos pontos de vista, de onde
até certo tempo foi apreciada a formação da nossa nacionalidade. […]
quanto mais nos adiantamos no estudo das nossas origens históricas,
quanto mais penetra na cripta do nosso passado político a luz indis-
creta, inconveniente, talvez, da crítica moderna, mais diminuem as
proporções de certos vultos que chegaram ao nosso tempo a modo de
envolvidos nos fumos da lenda.
Os nossos primeiros historiadores sofrem cada dia uma nova retifica-
ção. Os heróis que ostentam grandes estaturas nas páginas dos seus
livros mostram-se figuras banais, sem grandes paixões e movem-se
por pequenos caprichos e ambições vulgares nas páginas dos que va-
mos escrevendo. E por outro fenômeno paralelo, posto que contrário
àquele, individualidades que esses escritores deixaram esquecidas e
ocultadas nos recantos mais escuros dessa cripta insondável vão sur-
gindo à luz e avultam de dia a dia como os verdadeiros beneméritos,
os verdadeiros fundadores da nacionalidade [de] que desfrutamos.7
Quase à mesma altura, mas do outro lado do Atlântico, Jayme de Sé-
guier (1860-1932) publica, em um jornal republicano, uma crônica sobre
um tributo fúnebre em Lisboa:

7 – R.IHGB, t. 44, 1881, pt. II, p. 456-457. Grifos meus.

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Homens do futuro, do presente e do passado
em comemorações históricas – Portugal e Brasil, século XIX

ouvi na rua um clangor de clarins. Era um regimento de lanceiros


que passavam […]. A fanfarra entoava uma marcha de um movimento
marcial e ingênuo. A voz dos clarins cantava com uma vibração sinis-
tra […].
Logo em seguida, desfilaram dois regimentos de cavalaria. Saí e en-
contrei pelas ruas as longas tênias dos grêmios de instrução e dos asi-
los de beneficência. Os pequerruchos marchavam dois a dois, a carita
no ar, rindo de quem passava, completamente inconscientes da inten-
ção do ato que iam praticar […] fazia um singular contraste a ideia lú-
gubre daquela manifestação com a alegria ingênua e infantil de todos
aqueles rostos imberbes e rosados.
Quanto ao motivo do ritual, supostamente ignorado pelos infantes,
ele diz: “todo esse movimento indicara já a tarja preta do Diário do Go-
verno. É hoje o vigésimo aniversário da morte de D. Pedro V”. A cerimô-
nia recorda outro momento do calendário lúgubre português, dedicado a
um monarca homônimo: D. Pedro IV (de Portugal, I do Brasil), que “ain-
da arrasta à igreja todo o esplendor oficial um dia a cada ano. E não há
jornal monárquico que não tenha no seu alforje algum lugar-comum, com
perpétuas em bom estado, para depor sobre a capa do dador [da Carta de
1826], numa certa manhã de setembro”8.

À época, considerava-se feriado o dia que assinalava a morte do mo-


narca anterior ao corrente – no caso, D. Pedro V (1853-1861), irmão e
antecessor de D. Luís (1861-1889). O luto pelo aniversário fúnebre de D.
Pedro IV, contudo, manteve-se até fins do período monárquico-constitu-
cional/liberal (1820-1910), visando à conservação de sua memória como
afirmação do regime9. Entende-se, assim, que Ramalho Ortigão (1836-
1915), no mesmo ano, critique satiricamente defasagem de sentido no
referido rito, dada a passagem do tempo:
de cada vez que vem ao mundo o dia 24 de setembro, o país cobre-se
de crepes e arranca do seu peito um ai decretado no Diário [do gover-
no]. Encerram-se as repartições públicas. As tropas vestem o grande
uniforme e trazem as armas em funeral. O pavilhão nacional tremula
8 – A Folha Nova (1881-1888), Porto, 12/11/1881.
9 – ANDRADE, L. O. & CATROGA, L. R. Feriados em Portugal: tempos de memória
e de sociabilidade. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2012, p. 62.

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Gustavo Pereira

a meio pau nas fortalezas e nos navios de guerra. A corte, os fun-


cionários públicos, a nobreza e o corpo diplomático recolhem-se nos
templos a orar. Os órgãos das igrejas e os artigos de fundo dos jornais
entoam o De profundis e pregadores régios […] sobem aos púlpitos
tomados à hora para espargirem pitadas de latim e de rapé sobre a
memória do morto.
– Por que, oh céus, uma tão grande dor?
– Porque Pedro morreu.
[…] Essa saudade pungente que nos devora uma vez por ano recai
sobre um sujeito que morreu há cerca de meio século; que ninguém da
nossa geração teve a honra de conhecer pessoalmente e que ninguém
viu mais gordo.
Tudo quanto a retórica da indiferença, tudo quanto a ênfase da hipo-
crisia pode inspirar em nénias, em sermões e em artigos bombásticos
se tem atirado para cima da cabeça desse morto. Nenhuma outra me-
mória tem sido mais horrorosamente inundada de tudo quanto há de
mais pinga, de mais sarrafaçal – e de mais reles nas ejaculações da
literatura pelintra.
É talvez tempo de se pedir para Pedro o respeito do esquecimento, a
consideração do silêncio.
Basta de exéquias! Basta de discursos!
Como rei, Pedro merecia decerto que o enterrássemos um pouco mais
do que se enterra a outra gente. Como homem, ele começa, porém, a
ter direito à nossa piedade. Calemo-nos. Sejamos humanos!10.
D. Pedro IV morreu em 24 de setembro de 1834, aos 36 anos – pouco
após a assinatura, em Évora Monte, do documento que pôs termo à guer-
ra civil (1832-1834) que opôs liberais e miguelistas em Portugal, com a
vitória dos primeiros. Como liderança militar, associou-se fortemente ao
restabelecimento do regime monárquico liberal no país, afirmado na Car-
ta Constitucional por ele outorgada (no Brasil, para Portugal) em 1826 e
restaurada com o fim do intervalo absolutista sob D. Miguel (1828-1834).
Sua memória esteve, portanto, relacionada a uma heroicidade fundadora
e unificadora, reunindo correntes liberais divergentes.

10 – O António Maria (1879-1898), Lisboa, 29/09/1881.

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Homens do futuro, do presente e do passado
em comemorações históricas – Portugal e Brasil, século XIX

Morreu relativamente cedo e, ainda em vida, presenciou oposições,


mas a morte teve o efeito de poupar e de desculpar sua figura. Dado o que
seu histórico evocava em Portugal, entende-se o empenho em eternizar as
recordações a seu respeito. Empenho, contudo, que, afirmado o regime e
reavivadas as oposições no seio dos liberais (que incidiam sobre a apro-
priação e sobre a gestão de seu legado), paulatinamente, esmoreceu. Dis-
so, são demonstrações tanto os atrasos na inauguração de monumentos
em sua homenagem quanto a relativa indiferença a cerimônias fúnebres
em sua memória11.

Sobre seu neto D. Pedro V, diz Séguier, que dele ficou uma lembran-
ça “bem idealmente simpática”. Ele deixou “uma espécie de lenda que
envolve a sua recordação num adorável luar”. Morreu também prematu-
ramente, em 11 de novembro de 1861 (aos 24 anos), sendo logo objeto
de textos e de rituais laudatórios que excediam os do costume no libera-
lismo. Despertou um sentimento de perda, associado à idealização de sua
figura. Demarcando-se da ideia que se fazia da família real, conservou-se
sua imagem como inteligente e honesto, que se interessava por fazer o
país progredir12.

Daí as palavras do cronista, que podem soar contraditórias: “esse


homem excepcional teve uma única felicidade na terra – morrer cedo […]
entre saudades e bênçãos”. Tivesse sobrevivido por mais tempo,
veriam como o cristal se rachava de alto a baixo com a pedrada de
injúrias que ferve aí agora, pelas encruzilhadas da imprensa. Veriam
como o seu manto se mosqueava de nódoas obscenas […]. Veriam
como a lenda se transformava em paródia.
Justifica-se e critica-se o tributo ao monarca falecido: “sua figura
doce e poética vive decerto na saudade de muitos. É, todavia, um vulto
apenas esboçado, de linhas hesitantes e sem a robustez necessária para
resistir à luta pela existência histórica”. Seriam bem poucos “os nomes
que a história conserva”, mas muitos os que “se perdem no esquecimento
11 – CATROGA, F. “O culto cívico de D. Pedro IV e a construção da memória liberal”.
Revista de História das Ideias, Coimbra, n. 12, 1990.
12 – MÓNICA, M. F. D. Pedro V. Sintra: Temas e Debates, 2007, p. 07, 255-273.

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Gustavo Pereira

anônimo, essa segunda e mais irremediável morte”. Ao julgamento da


posteridade, portanto (e não a inócuas cerimônias oficiais em torno de
sua memória), caberia a sentença definitiva quanto à conservação e ao
esquecimento dos indivíduos na história13.

Às homenagens aos Pedros IV e V, Séguier opõe criticamente o fato


de que “o aniversário da morte de [Almeida] Garrett” (1799-1854), que
se daria em pouco tempo (nove de dezembro), “passa despercebido nas
regiões oficiais”, o que lhe permite concluir que, como não se viam pla-
nos para comemorações14, “o século XIX lega ao século XX a herança
de glorificar este nome no seu primeiro centenário. Acha que é bastante
celebrar estes grandes nomes de cem em cem anos”. Além disso, “o 1º e
o 2º aniversários [13 de setembro] da morte de [Alexandre] Herculano
[1810-1877] passaram também na mesma obscuridade e olvido”. O que
o leva a afirmar que
as glórias mais puras, as inteligências mais vastas, os corações de ouro
mais puro vão caindo pouco a pouco, fulminados pela morte, e o país,
que vive do patrimônio da sua glória, não tem manifestações de sau-
dade e de respeito senão para a memória dos seus reis15.
Ele não questiona o fato de haver manifestações em tributo aos mor-
tos. A recordação e o reconhecimento de grandes individualidades fale-
cidas são, para ele, um dever. Por isso, não os celebrando logo, legava-se
tal obrigação aos homens do futuro – que pagariam tal dívida, herdada do
século XIX, ritualizando efemérides16 centenárias. O que ele reprova é a
13 – O António Maria, 29/09/1881.
14 – As comemorações podem ser entendidas como ritualizações de aspectos do pas-
sado, cuja encenação visa à recordação e à educação (pela memória), enquanto rituais
cívicos relacionam-se à transferência de sacralidade. Se sua intenção inicial é unir a co-
letividade (memorar junto) em torno de uma mensagem/identidade, revelam-se foco de
uma série de disputas. COTTRET, B. & HENNETON, L. “La commémoration, entre
mémoire prescrite et mémoire proscrite”. Du bon usage des commémorations. Rennes:
PUR, 2010, p. 07-15.
15 – A Folha Nova, 12/11/1881.
16 – Efeméride enquanto fato importante ou grato que ocorreu em determinada data;
comemoração de um fato importante, de uma data etc. (Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001). Para uma reflexão histórica sobre a palavra:
BONALDO, R. B. Comemoração e efemérides: ensaio episódico sobre a história de dois
paralelos. Tese de Doutorado, História. Porto Alegre: UFRGS, 2014, p. 14. A aproxima-

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Homens do futuro, do presente e do passado
em comemorações históricas – Portugal e Brasil, século XIX

falta de critério adequado na avaliação quanto a quem seriam devidas as


consagrações realizadas pelo país e o registro na história nacional17.

Para Séguier, não se deveria homenagear/recordar/conservar a figura


histórica dos monarcas (irrefletidamente, por hereditariedade/tradição),
e sim a de cidadãos defuntos cujos méritos passados, avaliados pela crí-
tica histórica, assim o justificassem. Entre esses, ele destaca Garrett e
Herculano – grandes escritores e representantes do primeiro romantis-
mo liberal que lutaram contra os miguelistas ao lado de D. Pedro IV,
desempenhando relevante papel nos cenários cultural e político. Séguier
(republicano) opõe o vulto dos reis, “já meio indeciso e meio apagado na
bruma do tempo” (mas cujas memórias seguiam mobilizadas pela pompa
oficial, nas ruas e na imprensa, a despeito do que Ortigão aponta como
“retórica da indiferença”) ao semblante “clássico e escultural” de Garrett,
à figura “gigante e hercúlea” de Herculano. E pergunta: “qual dos quatro
se impõe mais à saudade vindoura? Qual […] merece mais magnificentes
exéquias?”, propondo:
celebremos as mansas e boas virtudes, mas não esqueçamos as vir-
tudes heroicas e fortes. Demos o nosso pensamento a um rei que foi
bondoso. […] Demos o nosso entusiasmo, o melhor grito do nosso
coração, a um plebeu que foi sublime.
Oponhamos a nossa iniciativa popular às manifestações oficiais. Se
a Sé se enche hoje de fardas bordadas e o ar se impregna de incenso,
vamos nós em outras datas saudosas, com o nosso humilde fato pre-
to, aos cemitérios onde dormem aqueles que o nosso espírito ama.
Deixemos que nas folhas oficiais desabrochem portarias, regulando a
festa fúnebre. Façamos nós sobre essas campas queridas desabrochar
montanhas de rosas!18.
ção dos dois termos enquanto “sinônimos imperfeitos” (e a possibilidade de se enunciar
a frase “comemorar efemérides”) se dá apenas no final do século XIX, datando do século
XX sua dicionarização enquanto sinônimos.
17 – Sobre comemorações à altura: CATROGA, F. “Ritualizações da História”, In:
TORGAL, L. R.; MENDES, J. A. & História da História em Portugal. Séculos XIX-XX.
Lisboa: Temas & Debates, 1998 [1996]; MARCELINO, D. A. “Rituais políticos e repre-
sentações do passado: sobre os funerais de ‘homens de letras’ na passagem do império à
república”. Tempo, Niterói, v. 22, n. 40, 2016.
18 – A Folha Nova, 12/11/1881. A peregrinação aos cemitérios era importante ritual (re-
publicano) em finais do século XIX. CATROGA, F. O céu da memória: cemitério român-

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Gustavo Pereira

O caso de D. Pedro é interessante para refletir sobre a mobilização


de memórias e de diferentes perspectivas acerca do passado em come-
morações no século XIX dos dois lados do Atlântico. Ele foi imperador
do Brasil: D. Pedro I (1822-1831) e rei de Portugal e Algarves: D. Pedro
IV (1826) – onde foi também regente: duque de Bragança (1831-1834).
Perpetuado em monumentos no Rio de Janeiro (1862), no Porto (1866) e
em Lisboa (1870), sua figura passou por atualizações historiográficas (re-
tificações e mudanças de ponto de vista, nas palavras de Távora) ligadas
ao constitucionalismo e ao nacionalismo nos dois países. Legou seu cora-
ção ao Porto, onde ainda hoje se preserva (na igreja de Nossa Senhora da
Lapa). Quanto ao restante de seu corpo, após um tempo em São Vicente
de Fora, em Lisboa (panteão dos Bragança), encontra-se, desde 1972, em
um monumento às margens do riacho do Ipiranga, em São Paulo, para
onde foi trasladado após negociações entre os governos português e bra-
sileiro quando da comemoração dos 150 anos da independência19.

No que diz respeito ao Brasil, importa pensar sua figura desde o pós-
-independência (1822). Na narrativa nacional que então se conformava,
afirmaram-se como marcos quatro episódios relacionados à trajetória do
príncipe herdeiro português proclamador da independência: o Dia do
Fico (nove de janeiro de 1822), o Grito do Ipiranga (sete de setembro de
1822), sua aclamação como D. Pedro I, imperador constitucional e prote-
tor perpétuo do Brasil (12 de outubro de 1822, também seu aniversário)
e a outorga da Constituição (25 de março de 1824). Inicialmente, não
havia definição sobre quando comemorar a fundação do Império, mas se
fixaram essas datas no calendário de festividades cívicas, ao qual ainda se
adicionou uma quinta: a abertura do parlamento (três de maio, segundo a
constituição)20. Tal calendário estabeleceu-se ainda na primeira sessão da

tico e culto cívico dos mortos em Portugal (1756-1911). Coimbra: Minerva, 1999, cap. V.
19 – O monumento foi inaugurado para o centenário da independência (1922), mas con-
cluído apenas em 1926. O traslado deu-se na efeméride seguinte, quando os restos fúne-
bres percorreram o país. CORDEIRO, J. M. Lembrar o passado, festejar o presente: as
comemorações do Sesquicentenário da Independência entre consenso e consentimento
(1972). Tese de Doutorado, História. Niterói: PPGH-UFF, 2012.
20 – KRAAY, H. Days of national festivity in Rio de Janeiro, Brazil, 1823-1889. Stan-
ford: Stanford University, 2013, p. 13-30.

132 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):123-152, set./dez. 2019.


Homens do futuro, do presente e do passado
em comemorações históricas – Portugal e Brasil, século XIX

primeira legislatura, em 1826. Contudo, o imperador, em 21 de dezembro


de 1822, havia decretado uma primeira listagem com dias de gala21.

A discussão no parlamento colocou em pauta diferentes perspec-


tivas acerca da narrativa nacional, das comemorações oficiais e de sua
função22. De acordo com o visconde de Nazaré (1774-1827), autor da
proposta, “todas as nações recomendaram sempre à posteridade os dias
notáveis de suas instituições; aqueles em que se praticaram certos fatos
de grandeza e heroísmo que as tornaram célebres à face do mundo”. O
senador ainda aponta que “nós também temos certos dias de igual nota-
bilidade”. Sendo já declarados dia de gala pelo referido decreto imperial,
fazia-se necessário declará-los “de festa nacional […] de regozijo público
em todo o império”.

Sua ideia contemplava sete dias e foi criticada pelo visconde de Bar-
bacena (1772-1842), para quem “se nós quisermos fazer um projeto de
festas nacionais de todos os acontecimentos memoráveis, teremos o in-
conveniente de, em pouco tempo, metade do ano ser toda de festas, além
de que todos os objetos mais estimáveis, quando se multiplicam, perdem
todo o seu valor”. Como quase todos os dias sugeridos eram “de um só
homem”, seria “melhor que reuníssemos todos em um só, que é o dia 12
de outubro, que deu ao mundo o imperador que declarou a independência
e efetuou a fundação do império”23.

Partindo de um rol comum de datas, debatiam-se seu número e a


qual/quais atribuir prioridade. Para alguns, como o visconde de Carave-

21 – O decreto estabelecia nove dias de grande gala e nove de pequena gala, sobretudo
de teor religioso e relacionados à família imperial – com exceção do dia da proclamação
do sistema constitucional (26 de fevereiro). Da listagem referida, constava apenas o 12
de outubro, sem menção ao sete de setembro. Collecção das leis do Imperio do Brazil de
1822, v. I, pt. II. Rio de Janeiro, 1887.
22 – O projeto foi apresentado no senado em 20 de junho, passou por três discussões e
foi aprovado em 17 de julho, sendo então remetido à câmara dos deputados – onde se deu
a inclusão do três de maio; “dia em que o Brasil viu pela primeira vez a nação reunida e
legitimamente representada” (Teixeira de Gouveia, Annaes do Parlamento Brazileiro, t.
III, 1826. Rio de Janeiro, 1874).
23 – Annaes do Senado do Imperio do Brazil… anno de 1826. t. II. Rio de Janeiro, 1878.
Sessão do dia 20 de junho.

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Gustavo Pereira

las (1768-1836), sem que se questionasse a centralidade do imperador,


deveria privilegiar-se o sete de setembro, em que ele “quebrou as nossas
prisões, as cadeias que nos ligavam a Portugal”. Travava-se uma disputa
em torno do aspecto do passado a destacar. Se sua figura se fazia central
na narrativa que se afirmava como oficial, a representação do rompimento
com Portugal também se impunha como evento fundador da nacionalida-
de24.

Na segunda discussão do projeto, Barbacena e o barão de Cairu


(1756-1835) propuseram que se comemorasse apenas o 12 de outubro25.
Não havendo acordo, adiou-se novamente a decisão. Retomando a pala-
vra no segundo dia da terceira discussão, Nazaré, reagindo a tal proposta,
afirma que havia
uma razão política em apoio dessas diversas festividades; é para que
nossos filhos e netos, geralmente falando, as futuras gerações, ou-
vindo as salvas, vendo embandeiramentos e mais demonstrações de
regozijo, próprias de semelhantes dias, se lembrem dos gloriosos fatos
que neles se passaram.
Tal aspecto se fazia ainda mais importante quando se considerava
que se lidava com um país de recente fundação. Determinar tais marcos
narrativos e celebrativos seria, para o Brasil, um dever – pensando no
interesse e na perspectiva da posteridade:
se nós já estivéssemos há séculos constituídos, não pugnaria tanto.
Mas nós principiamos agora; tratamos de uma monarquia nova; de
um novo império. É agora que nos constituímos e é impossível que as
gerações futuras nos não cunhem de ingratos […]. Com razão dirão
elas que fomos mesquinhos em deixar de marcar dias que deviam ser
assinalados com distintos e indeléveis caracteres da nossa gratidão26.
24 – Sendo reconhecido, em 1823, como momento fundador foi até 1831 considerado
menos importante que a aclamação de D. Pedro, entendida como dia da criação oficial do
império. KRAAY, H. “A invenção do Sete de Setembro, 1822-1831”. Almanak Brazilien-
se, São Paulo, n. 11, 2010.
25 – O dia apresentava um duplo aspecto em torno do imperador: se festejar sua aclama-
ção poderia reforçar a ideia da origem popular de seu poder, agradando aos mais radicais,
celebrar seu nascimento como data de fundação do império agradava mais aos conserva-
dores. KLAAY, H. Days of national… p. 41.
26 – Annaes do Senado… ano de 1826, t. III. Sessão do dia 17 de julho. Grifos meus.

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Homens do futuro, do presente e do passado
em comemorações históricas – Portugal e Brasil, século XIX

Tratava-se de uma espécie de obrigação de memória e de instrução


frente às gerações futuras (sempre julgadoras). O que retoma algumas das
questões apresentadas no início deste texto sobre a passagem do tempo
percebida como interação entre gerações; supondo-se que os homens do
presente/futuro tanto podem aprender com aquilo que os homens do pre-
sente/passado lhes legaram (memórias, patrimônio, benfeitorias), dando-
-lhes desenvolvimento crítico adequado (no caso da perspectiva históri-
ca), quanto sentenciá-los negativamente com base no que eles deixaram
de fazer ou fizeram de maneira indevida. Além da representação e da
instrução coetâneas, portanto, tinha-se em vista como tais celebrações,
reavivando a lembrança de aspectos do presente/passado, desempenha-
riam um papel na e para a posteridade, imbricando-se e fazendo dialogar
(idealmente) diferentes estratos de tempo sob a perspectiva de um juízo
da história.

Cairu, reagindo a uma proposição de Caravelas (que destacou a im-


portância educativa das festividades – dado que “a maior parte da na-
ção consta de homens que não folheiam livros”; homens que, em suas
palavras, não “têm a história”), mostra-se supostamente otimista acerca
da divulgação da narrativa mais tradicional, com base nos esforços das
políticas imperiais:
foi dito por um ilustre senador que a maior parte do povo não lê, nem
é capaz de ler a história da nação para se lembrar das referidas épo-
cas notáveis, porém que se recordará sempre de ver e ouvir as festas
nacionais. Digo que a constituição tem destinado a instrução pública
a todo o povo e não é impossível que a das primeiras letras chegue a
todas as classes.
Ele apresenta uma interessante ideia acerca da relação das popula-
ções com a narrativa histórica – em diferentes manifestações, densidades
e suportes –, sugerindo a noção de instrução também por rituais quotidia-
nos e por associação de ideias:
não se precisa que os indivíduos tenham livros in folio da historia
nacional. Os factos principais, e especialmente das recomendadas e
recomendáveis épocas, se podem todos os dias ler na cartilha religiosa

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e civil. Enfim, todas elas são subordinadas, ainda que pela associação
de ideias, reunidas na festa nacional de 12 de Outubro, que será a
nossa grande olimpíada27.
Numa altura em que se buscava afirmar a nação, concedia-se grande
relevo ao discurso que se construía sobre a consolidação de sua indepen-
dência, sobre a fundação de suas principais instituições e também sobre
os indivíduos que desempenharam papel importante em tempos preté-
ritos. O debate parlamentar em torno do calendário indicia a relevância
atribuída à preservação e à conformação da memória nacional. As festivi-
dades cívicas, para alguns, deveriam ter lugar cimeiro na pedagogia sobre
o passado nacional – visto que instruíam e reavivavam tal memória pela
via dos sentimentos. Para outros, contudo, a primazia caberia à história
in folio (narrativa escrita sobre esse passado), auxiliada quotidianamente
por práticas que transmitissem diferentes aspectos do discurso acerca do
percurso da nação.

Tais preocupações, a partir de finais da década de 30, são considera-


das e elaboradas de forma distinta no IHGB. No Instituto, com iniciativas
e suportes diferentes, selecionam-se, elaboram-se e preservam-se docu-
mentos para a futura escrita da história (para a qual também estruturam-se
parâmetros). Não se trata, pois, de mera narrativa sobre o passado nacio-
nal (um “testemunho”, diria Macedo), mas do almejado discurso crítico,
documentado e disciplinado sobre esse passado. Na instituição, ademais,
além de se destacarem mais as continuidades que os rompimentos na re-
lação passado-presente28, elabora-se uma espécie de panteão de papel re-
lativamente aos indivíduos cuja memória julga-se importante preservar29.
27 – Annaes do Senado… ano de 1826, t. III. Sessão do dia 17 de julho.
28 – Nas discussões sobre a narrativa da nacionalidade no IHGB, a independência só
gradualmente vai ser abordada, superando o território do presente. MALEVAL, I, I. Entre
a arca…, p. 18.
29 – “O ‘panteão de papel’ brasileiro, erigido pela Revista do IHGB e pelos numerosos
dicionários biográficos publicados durante o reinado de dom Pedro II, […] conforma-se
às leis gerais que orientam a história do Brasil, como sucessão de fatos e como narrativa,
e que foram definidas por Martius em nome do IHGB. O recenseamento dos grandes ho-
mens extrapola, além disso, o debate acadêmico. A administração da posteridade, por suas
implicações sociais, produz o encontro da história com a memória, mistura os campos
intelectuais e políticos”. ENDERS, A. “O Plutarco Brasileiro…”, p. 41-42.

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Homens do futuro, do presente e do passado
em comemorações históricas – Portugal e Brasil, século XIX

Quanto ao pós-1822, a definição de um calendário cívico imperial


(distinto daquele que regeu as festas coloniais) relacionava-se a diferen-
tes perspectivas sobre a imagem da nação, visando a ensinar/divulgar aos
brasileiros o passado e o presente do Império de que eles faziam parte.
Instaurado o regime parlamentar, os representantes incumbiram-se da ta-
refa de estabelecer marcos memorativos do passado selecionado do país,
sensíveis à relevância da memória para instruir e para mobilizar a popu-
lação em meio aos esforços para a conformação de uma identidade na-
cional. Com a ocorrência de mudanças políticas, contudo, determinados
episódios afixados no repertório comemorativo foram perdendo destaque,
sendo suprimidos ou substituídos seus festejos respectivos.

O imperador foi personagem central no calendário cívico durante o


Primeiro Reinado (1822-1831). Sua associação com a narrativa que se
afirmava relaciona-se à mobilização de sua figura como fonte de legiti-
mação, substituindo referências anteriores (com as quais, contudo, ele re-
presentava continuidades em termos familiares/dinásticos e cerimoniais).
A percepção que os brasileiros dele faziam, no entanto, foi aos poucos se
distanciando da de um herói da nacionalidade. A abdicação, legitimada
a partir de ideias de teor liberal (que se opunham a medidas autoritárias
tomadas por D. Pedro), pode ser percebida como o culminar de um pro-
cesso de reação a um governo que contrariava os interesses da maioria.
Processo esse que se associou à desvalorização da imagem do imperador,
com redução de seu impacto simbólico e reavaliação de seu papel histó-
rico.

No período que se seguiu, em oposição ao imperador que abdicou,


passou-se a se celebrar o sete de abril, data de sua abdicação. Apresentou-
-se o episódio, então, como uma espécie de revolução em que os bra-
sileiros, sem derramamento de sangue e desordens, puseram fim a um
governo despótico. Assim, em 1831, discutiu-se e se aprovou um novo
calendário nacional (decreto de 25 de outubro), em que se suprimia o 12
de outubro, adicionando-se, em contrapartida, o aniversário de D. Pedro

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II (dois de dezembro) e o próprio sete de abril30. Relembrada anualmente,


a abdicação mobilizava a população sem contar com o apelo ao impera-
dor31.

Já em Portugal, entretanto, D. Pedro afirmou-se como comandante


liberal, liderando, em favor de sua filha D. Maria II (1834-1853), tropas
militares contra os absolutistas capitaneados por seu irmão D. Miguel e,
com sua vitória, restaurando a Carta que ele mesmo outorgara. Bastante
intensos, os embates marcaram fortemente a política do país, com a der-
rota dos miguelistas e o início da segunda experiência liberal portuguesa,
que tinha no regente, o dador da Carta, uma figura fundadora32.

No Brasil, contudo, se no período inicial da Regência (1831-1840),


de teor liberal moderado (até 1837), afirmou-se forte oposição a sua ima-
gem enquanto uma espécie de déspota, as mudanças que caracterizaram
o Regresso conservador emprestaram diferentes sentidos aos festejos que
relembravam sua abdicação, ressignificando também sua imagem. Antes
foco de intensa disputa, tal celebração foi esmorecendo, em um processo
caracterizado pela alternância de grupo no poder33, em que também pesou
a morte de D. Pedro, desalentando a oposição a sua figura e facilitando
uma melhor apreciação daquela de seu filho/sucessor34.
30 – Annaes do Parlamento Brazileiro, t. II, 1831. Rio de Janeiro, 1878.
31 – Seus principais promotores eram os liberais moderados, organizados na Sociedade
Defensora da Liberdade e da Independência Nacional (1831). FERNANDES, G. S. R. 7
de Abril: usos políticos e representações na Regência (1831-1840). Dissertação de Mes-
trado, História. Juiz de Fora: UFJF, 2013.
32 – SILVA, A. M. “A vitória definitiva do Liberalismo e a instabilidade constitucional:
cartismo, setembrismo e cabralismo”. In: MATTOSO, J. (dir.) História de Portugal, v. V.
Lisboa: Estampa, 1998, p. 77-81.
33 – “[…] além da luta pelo controle simbólico do espaço público, estava em jogo a
construção de uma memória nacional acerca dos objetos alçados ao panteão cívico da pá-
tria – a Constituição, a Abdicação, a Independência e o imperador Pedro II –, eles próprios
eivados de controvérsias”. BASILE, M. O. N. C. “Festas cívicas na Corte regencial”.
Varia História, Belo Horizonte, v. 22, n. 36, 2006, p. 513-514.
34 – Inicialmente apresentado como um movimento popular que resultara na abdicação,
deixando o poder a cargo de uma regência ocupada por cidadãos, perdeu pompa, passando
a pontuar o dia em que o trono fora entregue a D. Pedro II (1840-1889), cujo aniversário
ganhou destaque. FERNANDES, G. S. R. 7 de Abril… Sobre a relação da narrativa do
passado no Segundo Reinado com o imperador (mecenas do IHGB) e a ideia de concilia-
ção com a herança portuguesa: GUIMARÃES, L. M. P. Debaixo da imediata…

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Homens do futuro, do presente e do passado
em comemorações históricas – Portugal e Brasil, século XIX

O processo de leitura e de releitura de episódios relacionados a D.


Pedro I/IV implicava a elaboração de diferentes visões sobre sua pessoa
e sobre seu legado. De herói da independência em favor dos brasileiros
liberais (o que, em Portugal, era percebido como uma espécie de traição),
ele passou a ser visto, no Brasil, como um déspota português cuja abdica-
ção se celebrava. Na antiga metrópole, entretanto, afirmava-se sobretudo
devido à liderança das tropas liberais, restabelecendo a Carta constitucio-
nal. Com o tempo e com as mais mudanças políticas, alterou-se também
a percepção sobre seu papel histórico. Destacando-se em sua trajetória
sobretudo que ele abdicara de duas coroas em favor de seus filhos, ou-
torgara duas cartas constitucionais e lutara contra tropas absolutistas em
Portugal (restaurando o liberalismo), sua imagem pôde ser recuperada e
novamente celebrada – ainda que tal recuperação enfrentasse questiona-
mentos e oposições nos dois países35.

De modo geral, tais festejos seguiam rituais conhecidos da população


nos dois lados do Atlântico. Envolviam iluminações, fogos-de-artifício,
tiros de canhão, hinos, representações teatrais e cerimônias religiosas.
Ocupando o espaço público e alterando a rotina quotidiana, imbricavam
manifestações políticas e religiosas. Além dos debates em torno de seu es-
tabelecimento, as comemorações repercutiam nos jornais da época – em
meio a conclamações, a críticas e a descrições. Tratava-se, portanto, de
disputas narrativas em torno da construção da mensagem que se esperava
afirmar tanto com celebrações quanto com os relatos a seu respeito (espé-
cie de memória das memórias então ritualizadas); relatos que se divulga-
vam à altura e que hoje são importante fonte para historiadores36.

Ainda nas primeiras discussões sobre o calendário cívico imperial,


expressaram-se diferentes formas de mobilizar discursos sobre o passado

35 – LAW, D. The legacy of Brazil’s Pedro I: memory and politics during the empire and
republic. Dissertation, Doctor of Philosophy. Baltimore: Johns Hopkins University, 2015.
Aborda-se como se lidou com o legado de D. Pedro no Brasil, incluindo sua reabilitação
no Segundo Reinado, atribuída em grande parte a seu histórico em Portugal. Para Portu-
gal: CATROGA, F. O culto…
36 – Para o Brasil: KRAAY, H. Days of national… E Portugal: ANDRADE, L. O. &
CATROGA, L. R. Feriados…

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– em livros, em festividades, em monumentos, em jornais. Valendo-se da


evocação de sentimentos, visava-se a cumprir expectativas quanto ao jul-
gamento de gerações futuras (relacionadas à preservação da memória e ao
registro de vestígios do presente e também de grandes homens e marcos
do passado). Ademais, relativamente ao momento em que viviam e a suas
demandas específicas, buscava-se instruir sobre o Império sua população
iletrada. Nas palavras de Caravelas:
disse o ilustre senador [Cairu] que a história fará a devida comemora-
ção deles [os episódios em disputa]; mas eu pergunto se pela história
se faz que, quando chegar o aniversário de um desses dias, a nação
se sensibilize e entusiasme, como sendo de festividade? Decerto que
não, porque não há um objeto que lhe desperte a memória desse dia,
nem dos fatos nele acontecidos. Pergunto mais: a nação toda compõe-
-se de homens que têm a história? Não; a maior parte da nação cons-
ta de homens que não folheiam livros, uns porque lhes falta o tempo,
outros porque não sabem ler. Os antigos, para eternizarem estes dias,
levantavam monumentos e até os gravavam em bronze, para não se
esquecerem. Nós não fazemos o mesmo, tão frequentes vezes, porque
temos a imprensa, com que suprimos esses monumentos e esses bron-
zes. Mas é necessário que haja a festividade nacional, porque o povo,
em geral, não lê a história, como já disse, mas vê a festividade e então
pergunta ao instruído na história o motivo dela, e este lho explica.
[…] É verdade que nossos vindouros não experimentarão nesses dias
os mesmos sentimentos que nós agora experimentamos. Entretanto,
sempre se conservará a lembrança deles.37
Nota-se seu otimismo quanto ao potencial dos impressos (monu-
mento em papel) na conformação da narrativa nacional (história in folio)
contra o esquecimento, o que, contudo, não descarta a percepção da im-
portância das festividades enquanto estratégia para despertar a memória,
sobretudo tendo em conta que a maior parte da população não conhecia
essa narrativa. De modo a mobilizar e a instruir civicamente tais indivídu-
os, as festividades apelariam para seus sentimentos, cabendo aos poucos
instruídos – que conheciam a história in folio –, explicar-lhes os motivos
por trás das cerimônias (que amplificavam e animavam essa mesma nar-

37 – Annaes do Senado… ano de 1826, t. II. Sessão do dia 17 de julho. Grifos meus.

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Homens do futuro, do presente e do passado
em comemorações históricas – Portugal e Brasil, século XIX

rativa). Ao se recuperarem e ao se reunirem discursos destoantes em torno


do estabelecimento de datas e de cerimônias comemorativas, busca-se
ressaltar as disputas acerca desses usos do passado (selecionado e encena-
do coletivamente)38 – indício de sua relevância para os envolvidos.

Do passado, do futuro
Mantendo o foco nas comemorações históricas, uma vez mais cruza-
-se o Atlântico, avançando no calendário até a década de 80 do século
XIX – “o ‘século da História’, porque foi igualmente o ‘século do culto
dos mortos’”39. Parte-se, neste passo do texto, de leituras sobre o cente-
nário da morte do marquês de Pombal (1699-1782), que agitou ruas e
impressos em Portugal e no Brasil em 188240. As mobilizações para fes-
tejar a efeméride iniciaram-se em 1881, sendo não apenas relatadas, mas
também apreciadas de formas diversas em periódicos coetâneos. Lê-se,
assim, em um jornal católico ainda em outubro:
nos custa revolver a história de Sebastião José de Carvalho e Mello e
apresentar à luz da publicidade as numerosas crueldades que o seu gê-
nio ou os costumes do seu tempo o levaram a praticar e mais nos custa
ainda por sabermos que os descendentes do marquês de Pombal cons-

38 – Para Marc Ferro (A História Vigiada. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1989 [1985],
p. 54-60), “a comemoração acusa os silêncios, desloca os fatos e os seleciona. Como a
narrativa histórica, ela é um ponto de conflitos”. De acordo com Oliver Ilh (“Commemo-
ratio”, L’Observaroire, n. 50, 2017, p. 12), pode-se falar de comemorações como mise en
scène; ritos, símbolos e manifestações evocando um passado reivindicado no presente.
Durval Muniz de Albuquerque Jr. (O tecelão dos tempos. São Paulo: intermeios, 2019, p.
179-189) entende que a comemoração é “atravessada e constituída por um enredo, é uma
forma de fazer ver e de dizer o passado. […] põe em cena, torna visível, materializa dadas
memórias, dadas versões e visões do passado […] como a narrativa histórica, cria efeitos
de real, apoia-se em vestígios, testemunhos, em outras narrativas que chegam do passado
para construir versões verossímeis sobre o que teria ocorrido […] é, por fim, um dos usos
que se pode fazer do passado”.
39 – CATROGA, F. O céu da memória… p. 315.
40 – Ver, deste autor: PEREIRA, G. “Passado em papel-jornal: Pombal, ‘A Folha Nova’
e ‘A Palavra’ – impressões em disputa no centenário do marquês (Porto, 1882)”. Tem-
poralidades – revista de história, v. 11, n. 2, 2019. Os embates em torno do centenário
pombalino de 1882, dos dois lados do Atlântico, são o ponto de partida da tese de dou-
torado (História, Universidade Nova de Lisboa) em elaboração, intitulada Os “homens
do futuro” e o passado pombalino: representações do marquês nas comemorações do
primeiro centenário de sua morte.

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Gustavo Pereira

tituem uma família das mais respeitáveis do nosso país […]. E seria
bastante o respeito que como católico devemos a essas nobilíssimas
pessoas, para deixarmos em paz, no silêncio do túmulo e na vida eter-
na, o corpo e a alma do homem de que nos temos ocupado em vários
artigos. Mas o cinismo com que a Revolução e os seus homens quer
fazer alarde do quanto adora o marquês de Pombal pelo fato único de
ser o algoz da Companhia de Jesus impele-nos a pena e obriga-nos a
apresenta-lo à luz pública com todas as suas crueldades, com todos os
seus despotismos41.
Em outro jornal católico, já durante os festejos, lê-se mais uma críti-
ca à recuperação da figura histórica do marquês:
se o horror que os demagogos professam à tirania e aos tiranos fosse
sincero e verdadeiro, deixariam esquecidos debaixo do pó dos séculos
o marquês de Pombal e diriam com muito bom senso: as tiranias e
prepotências daquele malvado, daquele déspota foram superiores, e
muito superiores, a algumas obras boas que fez e portanto o seu nome
deve ser esquecido e até detestado por aqueles que amam sinceramen-
te a liberdade42.
Diferentemente da reflexão sobre meios para se contornar o esque-
cimento – pela via da comemoração e por diferentes suportes para a nar-
rativa histórica –, tais críticos (católicos) da homenagem a Pombal (de
teor republicano) sugerem não só a interdição de uma temática polêmica
considerada ainda próxima do presente, mas também a conveniência de
se esquecer um passado percebido como assaz negativo.

Opondo-se à iniciativa sob justificativa diferente e abordando a pró-


pria apreciação e veiculação desse passado, o célebre Camilo Castelo
Branco (1825-1890) publica, em Portugal e no Brasil, uma obra crítica
a Pombal e a seus apologistas, acerca da qual afirma: “este livro pode-
ria ter aparecido antes dos festejos […]. Seria, então, um protesto contra
o entusiasmo dos propugnadores do marquês de Pombal”. No entanto,
abstém-se “dessa aspiração vangloriosa que teria uns ares desvanecidos
de querer atuar sobre convicções radicadas […]. Seria, sobre infrutífera,

41 – O Progresso Católico (1878-1925), Guimarães, 30/10/1881.


42 – A Palavra (1872-1911), Porto, 11/05/1882.

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Homens do futuro, do presente e do passado
em comemorações históricas – Portugal e Brasil, século XIX

ridícula a empresa”. Afinal, comparando seu esforço de mobilização e sua


estratégia de narrativa com os de seus opositores, pondera:

não se desfazem com os livros as persuasões que se fizeram com


locais de jornais baratos […]. A porção do povo que não aprende nada em
livros achou nos clubes a educação do discurso amoldado à sua capacida-
de, à sua dócil ignorância e à sua congenital necessidade de revolucionar-
-se com palmas e gritos […]. Crenças assim radicadas e cáusticas não se
acalmam com cataplasmas de livros43.

Trata-se tanto do contraste entre públicos, limitações e potenciais/


efeitos instrutivos da história in folio e da narrativa histórica ritualiza-
da em manifestações/festividades públicas quanto da diferenciação entre
suportes dessa escrita, nomeadamente livros (que, como jornais suposta-
mente mais sérios, disporiam de um público leitor seleto) e imprensa “ba-
rata” (bastante mais popular, e também depreciada). Quanto aos clubes,
foram os primeiros núcleos republicanos em Portugal, apenas lentamente
desenvolvendo-se formas próximas de organizações partidárias. Os re-
publicanos portugueses reuniam-se em associações que, proibidas de os-
tentar fins políticos, realizavam atividades de fundo cultural, instrutivo,
recreativo e de auxílio mútuo. Outra empresa a que dedicavam esforços,
abordando temáticas de teor histórico, político e cultural, era o jornalis-
mo, dado seu potencial de divulgação e de instrução44.

43 – Perfil do marquês de Pombal. Porto/Rio de Janeiro, 1882, proêmio. Ver: PEREIRA,


G. “O ‘Perfil do marquês de Pombal’ e as disputas em torno das impressões sobre o pas-
sado pombalino”. ANPUH. Anais do 30° Simpósio Nacional de História. Recife, 2019.
44 – CATROGA, F. O republicanismo em Portugal: da formação ao 5 de outubro de
1910. Lisboa: Casa das Letras, 2010 [1991], p. 18-20, 30-35. A história era assunto de
conferências e de colóquios republicanos; fonte de argumentação, mobilizada na con-
formação identitária. Com grande influência de ideais positivistas e cientificistas, o pen-
samento historiográfico republicano não foi uníssono; comportava leituras e referências
teóricas diversas. RIBEIRO, L. A popularização da cultura republicana, 1881-1910.
Coimbra: Universidade de Coimbra, 2010, p. 142-147. Sobre os centenários em Portugal:
JOÃO, M. I. Memória e Império: Comemorações em Portugal (1880-1960). Tese de Dou-
torado, História. Lisboa: Universidade Aberta, 1999.

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Gustavo Pereira

Em Portugal (e também no Brasil)45, na sequência de comemorações


na Itália (Petrarca, 1874) e na França (Voltaire, 1878), celebra-se, em
1880, o centenário de Camões, festejado enquanto herói da língua e da
nacionalidade portuguesas, sendo a memória a seu respeito politicamente
mobilizada em prol da revivescência nacional. Os festejos camonianos,
considerados um sucesso, servem de modelo aos pombalinos aqui em
pauta (muito mais polêmicos). Em ambos, pelas mobilizações e pelas ini-
ciativas, destacam-se os republicanos, que ganham visibilidade devido a
seu engajamento nessas comemorações (e também em outros protestos
nacionalistas), mobilizando memórias para sua crítica política.

Nesses festejos, relacionados ao calendário pela efeméride dos cem


anos de episódios selecionados (como a morte de grandes homens do
passado), nota-se a influência de um positivismo de matriz comtiana não-
-ortodoxa, concebendo-se as sociedades e seu desenvolvimento a partir
da ideia de um progresso determinado, informado pela sociologia positi-
va. Na comemoração dos centenários republicano-positivistas, apresen-
tam-se discursos sobre o passado em conferências, em publicações, em
cortejos cívicos e em outras manifestações, para homenagear indivíduos
que teriam desempenhado devidamente seu respectivo papel histórico
(concebido teleologicamente) – valendo-se de sua memória (reelaborada)
para a crítica política46.

45 – A colônia portuguesa contou com grande apoio dos brasileiros. Em Paris, os fes-
tejos foram conduzidos pelo brasileiro Miguel Lemos (1854-1917). PAREDES, M. M.
Configurações luso-brasileiras: fronteiras culturais, demarcações da história e escalas
identitárias (1870-1910). Sarbruque: Novas Edições Acadêmicas, 2013, pt. II.
46 – Não se pensava a exemplaridade inserindo-se os acontecimentos em totalidades
finitas, sem que uma lógica autossuficiente comandasse o devir universal – como nas
filosofias da história. Nessas, os grandes homens, emanações subjetivas da consciência
da nação/humanidade, são percebidos como quem (mesmo sem se dar conta dos efeitos
de suas ações) pôs em prática o “espírito de seu tempo”, atendendo a suas demandas.
Para julga-los devidamente, era necessário levar em conta o sentido do progresso. Para o
que aqui importa, remete-se à sistematização realizada por Auguste Comte (1798-1853)
e continuada por positivistas de diferentes matizes em Portugal e no Brasil. CATROGA,
F. “Ainda será a História Mestra da Vida?”, Estudos Ibero-Americanos, n. 2, 2006, p. 13,
25-26.

144 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):123-152, set./dez. 2019.


Homens do futuro, do presente e do passado
em comemorações históricas – Portugal e Brasil, século XIX

Se a comemoração camoniana evoca as glórias dos descobrimentos


(que o poeta cantou), potencializando críticas à decadência da antiga po-
tência colonial, a proposta dos festejos pombalinos relembra as medidas
reformistas do marquês (sobretudo em relação à instrução e às ordens
religiosas), potencializando demandas concretas por sua atualização, sen-
tido que o programa-manifesto da Academia de Lisboa (1878), iniciado-
ra das comemorações de Pombal, explicita. Os estudantes, afinal, após
exaltarem as reformas pombalinas do ensino, reforçam a continuidade
que desejavam estabelecer entre as políticas que reclamavam em 1882, o
liberalismo de 1834 (que, reivindicando a influência pombalina, atualizou
medidas anticongreganistas) e o pombalismo de 1759, pedem ao poder
executivo “o cumprimento exato dos decretos […] a respeito de todas as
ordens religiosas”47. Estabelecem-se relações entre diferentes passos do
passado e o presente corrente – visando à concretização de projetos polí-
ticos que informavam um futuro determinado.

No Brasil, onde se ecoou e se imprimiu o documento da Academia,


os estudantes da capital, entre iniciativas em outras localidades e confe-
rências que remontam a 1881, reúnem-se em um congresso deliberativo,
respondendo positivamente a um convite feito por seus congêneres portu-
gueses. Realizam subscrições públicas para remeter valores a Portugal e
também recolhem esmolas pela alforria de escravos. A maior iniciativa no
Rio de Janeiro, contudo, parte do Club de Regatas Guanabarense (1874),
que promove cerimônias formais, festejos e impressos de teor histórico.

Na cidade, a polêmica instaura-se sobretudo nos jornais, que di-


vulgam diferentes leituras sobre a influência do governo pombalino no
passado do país. Entre outros aspectos, os promotores do centenário es-
forçam-se por fazer ver um Pombal precursor de medidas abolicionistas
– como o que transparece no discurso de Rui Barbosa (1849-1923) no
sarau literário-musical realizado no teatro imperial Pedro II, ponto alto

47 – O programa foi referido em diversos periódicos na íntegra ou em trechos; elogiosa


ou criticamente, como no de maior circulação no país: Diário de Notícias (1864-presen-
te), Lisboa, 04/03/1882.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):123-152, set./dez. 2019. 145


Gustavo Pereira

das festas48. Quanto ao IHGB, o marquês, só em 1982, vai ser objeto de


homenagens póstumas na instituição, mediante a realização de uma série
de palestras acadêmicas49.

Em Portugal, as festas pombalinas, dadas as paixões do passado tra-


zidas à tona, estão bastante longe de um consenso50. A esse respeito, cita-
-se um relato da discussão na câmara dos deputados em 17 de abril51:
O sr. [José] Dias Ferreira [1837-1909] entende que o governo deve
prestar um subsídio aos festejos do centenário de iniciativa dos estu-
dantes, que o governo parece querer empalmar. O marquês de Pombal
nunca pode ser encarado como incolor em política52, porque a sua
principal feição foi o caráter político de que revestiu os seus atos. A
sua principal glória foi libertar o país e o rei da influência jesuítica,
que disseminava as trevas. Entre nós está determinada a expulsão dos
jesuítas e a extinção dos conventos das freiras, e contudo os jesuítas e
as freiras ainda continuam. […] Envia para a mesa uma proposta para
que se tenha em atenção a legislação pombalina acerca dos jesuítas.
O sr. Luciano Cordeiro [1844-1900] diz que a festa é nacional, mas
que só poder ser fazendo-se abstração de atribuir ao marquês de Pom-

48 – BARBOSA, R. Centenário do marquês de Pombal. Discurso pronunciado a 8 de


maio… Rio de Janeiro, 1882.
49 – Em 1980, Joaquim Veríssimo Serrão (sócio-correspondente do IHGB e presidente
da Academia Portuguesa da História) sugere a conveniência do festejo do bicentenário,
com uma possível parceria entre as instituições (R.IHGB, n. 329, p. 244). O assunto volta
à revista em 1981 (n. 333, p.179), quando se relata que Carneiro de Mendonça (1894-
1988) comunica em julho sobre futura comemoração no ano seguinte, e já em 1982 (n.
337, p. 249, 272), apontando-se que ele realizara uma série de palestras sobre Pombal
“cujo 2º centenário de morte vem sendo comemorado no decorrer deste ano”. Relata-se,
ainda, que o bicentenário “foi lembrado desde atrás em reuniões da CEPHAS, sobretudo
pela voz de seu presidente, Marcos Carneiro de Mendonça, para o qual o Brasil muito
ficou a dever à administração pombalina”.
50 – BEBIANO, R. “O 1º centenário pombalino (1882). Contributo para a sua com-
preensão histórica”. Revista de História das Idéias. Coimbra, v. 4, t. II, 1982.
51 – O envolvimento do governo regenerador oficializa-se em fins de abril. Dado o teor
republicano e crítico assumido do centenário camoniano, realizado sob um governo pro-
gressista, espera-se controlar e esvaziar o teor crítico dos festejos pombalinos. Os estu-
dantes tentam resguardar suas prerrogativas. Após polêmica, nomeia-se uma comissão
mista, com deputados, com membros do governo e com acadêmicos.
52 – Grifo meu. A expressão ecoa a forma como o lisboeta O Diário de Notícias se
apresentava. Seus opositores o apontavam ironicamente como o incolor, acusando não a
neutralidade política pretendida com a expressão, e sim suas parcialidades quotidianas.

146 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):123-152, set./dez. 2019.


Homens do futuro, do presente e do passado
em comemorações históricas – Portugal e Brasil, século XIX

bal a glória de expulsar os jesuítas. O marquês de Pombal tem muitos


títulos de glória, este é que não parece que o seja. Receia que os jesuí-
tas digam que somos ignorantes em história, pois que foi ele quem em
Portugal levou o absolutismo ao seu requinte, e que deu à inquisição o
caráter oficial Uma festividade não pode ser nacional logo que todos,
por qualquer circunstância nela, se não associem a ela.
O sr. [Emídio Júlio] Navarro [1944-1905] nota as contradições do dis-
curso do sr. Luciano Cordeiro [governo]. Ou o marquês de Pombal é
digno de merecer uma manifestação de respeito e admiração ou não
é. Se é, não é dado deturpar-lhe as feições. O fato mais saliente da sua
vida é a guerra pertinaz movida contra os jesuítas53.
Os deputados ocupam-se de estabelecer como conduzir a questão
e as releituras sobre o passado pombalino, debatendo, inclusive, o que
destacar ou o que abstrair – já que a iniciativa festiva, as conferências e
os textos já haviam levado sua memória para o debate público. A questão
entra no parlamento em quatro de março, quando Augusto Fonseca Couti-
nho (1857-1887) apresenta uma proposta para que o governo secundasse
os organizadores dos festejos, introduzindo-a com as seguintes palavras
(elucidativas sobre a ideia das apoteoses como dever cívico):
a antiguidade tornava deuses os seus heróis. Era uma consagração sob
uma forma sobrenatural e misteriosa. Mas o culto de ontem tem a
mesma significação que o culto de hoje, que se reveste de um aspecto
humano.
É sempre o respeito, é sempre a adoração pelos homens que foram
grandes, que baixaram ao túmulo estreito tendo enchido com seus no-
mes a eternidade dos séculos e que ainda lá do seu nada ensinam e
são glória para as nações, como Sebastião José de Carvalho e Mello,
o famoso marquês de Pombal, é título glorioso para a nacionalidade
portuguesa.
Todas as nações cultas celebram hoje em centenários a memória dos
seus imortais e nós já nos compenetramos desse dever cívico dando à
Europa, pela festa a Camões, um testemunho evidente da nossa vida
de progresso.
É mister, pois, que a nação que nós aqui representamos vá secundar
todos os beneméritos esforços que tão nobremente se estão manifes-
53 – O Século (1881-1983), Lisboa, 18/04/1882.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):123-152, set./dez. 2019. 147


Gustavo Pereira

tando, não deixando entregue exclusivamente à iniciativa particular


a comemoração do centenário do marquês de Pombal, porque é uma
festa de todos nós, da nação portuguesa54.
Na referida sessão de 17 de abril, quando o governo apresenta sua
proposta, Alberto de Almeida Pimentel (1849-1925) demarca-se da forma
como se conduz a questão:
não tenho um grande entusiasmo pelo centenário do marquês de Pom-
bal; […] acho ainda muitíssimo cedo para qualquer solenidade públi-
ca, para qualquer demonstração de aplauso nacional […] se os mortos
passam depressa, muitas vezes, para a nossa saudade, se desapare-
cem rapidamente na sua bailada fantástica a caminho da eternidade,
os legisladores vão devagar, vergados ao peso das suas próprias res-
ponsabilidades, como se lhes pesasse sobre os ombros o enorme lenho
da história, que é, ao mesmo tempo, uma cruz e uma glorificação.
E tanto isso é verdade, que eu entendo que as responsabilidades polí-
ticas do marquês de Pombal não estão ainda perfeitamente liquidadas.
[…]
Não posso afirmar à câmara se o dia 8 de maio irá ou não cobrir de
luto muitas famílias; mas a prova de que as paixões estão ainda muito
vivas e acesas é que alguns dos conferentes que se têm ocupado do
assunto do centenário do marquês de Pombal têm ouvido, por entre o
ruído das ovações, corajosas demonstrações de desagrado.
Evocando uma necessária distância temporal para melhor apreciar
o governo pombalino, ele considera prematura a iniciativa do parlamen-
to (que deveria reger-se por outro ritmo; de modo mais sensato, sob o
“lenho da história”) e acusa algumas das reações públicas contrárias à
homenagem póstuma. O deputado, ademais (em sentido parecido com
o das críticas do visconde de Barbacena, que em 1826 exageradamente
acusava o risco de as festividades ocuparem metade do calendário), de-
nuncia uma suposta profusão de centenários, apresentando uma lista de
futuras e hipotéticas apoteoses por efemérides que chegam a 1993. Para
ele, era preciso
pôr cobro a essa paixão pelos centenários e pelos monumentos, que
já se vai tornando demasiadamente extensa. […] Nós vamos ter cen-
54 – Diario da Camara dos Senhores Deputados. Sessão de 4 de março de 1882.

148 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):123-152, set./dez. 2019.


Homens do futuro, do presente e do passado
em comemorações históricas – Portugal e Brasil, século XIX

tenários por muitos anos. Até será fácil organizar um calendário sob
esse ponto de vista55.
Teófilo Braga (1843-1924), professor do Curso Superior de Letras
e um dos iniciadores do positivismo em Portugal, é uma boa referência
para compreender como os estudantes lisboetas (por ele influenciados),
ao apreciarem o governo pombalino, entendem poder a um tempo prever
o futuro e teleologicamente julgar o passado. Refletindo sobre os cente-
nários de Camões (de que foi promotor) e de Pombal, ele afirma que o
primeiro contava com a simpatia por sua personalidade, reconhecendo-se
facilmente sua contribuição histórica.

Quanto ao segundo, “se entramos nas circunstâncias da sua perso-


nalidade, na consideração dos meios de que se serviu para realizar as
grandes reformas, acham-nos sem simpatia por ele […] não o podemos
glorificar com amor”. Para Teófilo, contudo, “a justiça para com os vul-
tos históricos como Pombal não consiste em atenuar-lhes as ações com
sofismas retóricos, nem calar os meios mais ou menos duros com que
exerceram o domínio; basta simplesmente que os restituam à sua época
e que se ponha em evidência o seu destino”. A partir da ideia de que ele
desempenhou um papel histórico importante e necessário para o progres-
so do país, Teófilo aponta seu centenário como “o grande e imparcial
julgamento de um século”56.

Também positivista e professor na referida instituição, Consiglieri


Pedroso (1851-1940) concorda com a avaliação de Teófilo sobre o mar-
quês. Comparando os dois centenários, contudo, ele adia para a posteri-
dade seu devido julgamento – dados os necessários, mas violentos meios
de que Pombal se valera para desempenhar seu papel histórico, que ainda
despertavam paixões e ressentimentos. Quanto a Camões, ele já estava,
à altura,
demasiado longe e ao mesmo tempo demasiadamente alto para que
dele nos chegue outra coisa que não seja o que é imortal, o que é
55 – Diario da Camara... Sessão de 17 de abril de 1882. Grifos meus.
56 – BRAGA, J. T. F. Os centenários como síntese afetiva nas sociedades modernas.
Porto, 1884, p. 185-190.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):123-152, set./dez. 2019. 149


Gustavo Pereira

divino como cintilação do gênio. Quem se lembraria de ir hoje desen-


tranhar, da poeira dos arquivos, pequenos senões que podem lançar
uma leve sombra no caracter do poeta? Pelo contrário, Pombal, no
desempenho da sua espinhosa missão, teve de esmagar interesses que
são ainda de ontem; teve de abrir feridas que ainda hoje sangram;
teve de passar por cima de considerações que ainda neste momento se
levantaram para protestar.
[…] Pombal aparece-nos, por um lado, anda muito perto – apenas
a um século de distância – e, pelo outro, demasiadamente envolvido
na luta que ele travou com a sociedade do seu tempo, para que, com
a serenidade do julgador, todos nós possamos fazer-lhe a justiça que
lhe é devida.
[…] passe-se mais um século e quando todas as antipatias, todos os
ódios, todos os rancores tiverem caído perante uma critica mais im-
parcial e mais equitativa; quando a geração de então tiver aprendido
a ser mais justa com as gerações do passado que lhe prepararam o
advento, nós estamos certos de que Portugal, procedendo à revisão do
processo histórico do marquês de Pombal, há de, sem discrepância de
um único de seus filhos, saudar a memória do grande homem que,
nos fins do século XVIII, teve forças para abrir, com pulsos de ferro,
um luminoso parênteses no meio da profunda decadência da nossa
pátria57.
Castelo Branco, por sua parte, valendo-se de um exercício de previ-
são tão ao gosto dos positivistas, mas de modo sobretudo irônico, ques-
tiona a validade das iniciativas centenárias, pondo em dúvida a própria
ideia de se analisar e de se elogiar teleologicamente o passado. Ele afirma,
pois, criticamente:
daqui a pouco, nós e os nossos centenários e a estéril inanidade das
nossas solicitações ruidosas ao Futuro, iremos na ressaca da mesma
onda que virá colher o cisco da nossa Babel e bem pode ser que o jesu-
íta, renascido do seio de outra civilização, surja depois para rir de nós.
Se os ultraliberais de 1882 estão com o marquês de Pombal, quem nos
afirma que as confederações republicanas e ateístas de 1982 não hão
de estar com os jesuítas? As situações parecem-me equivalentes nas
paralelas do absurdo58.

57 – O Occidente (1878-1915), Lisboa, 05/08/1882. Grifos meus.


58 – BRANCO, C. C. Perfil do marquês…proêmio. Grifos meus.

150 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):123-152, set./dez. 2019.


Homens do futuro, do presente e do passado
em comemorações históricas – Portugal e Brasil, século XIX

Do futuro, do passado
Apontou-se, ao longo deste texto, como, no Oitocentos, considera-
va-se necessário um distanciamento cronológico e afetivo para a justa
apreciação do passado – o que implicava uma série de interditos à crítica
histórica, por se entender que apenas aos historiadores do futuro caberia
o julgamento de questões polêmicas/candentes. Apontou-se, ainda, como,
para contornar o esquecimento, coligiam-se vestígios e testemunhos do
passado (e também do presente) e se reavivam memórias sobre homens e
sobre episódios pretéritos – viabilizando a futura escrita/crítica da histó-
ria e também mobilizando e instruindo a população. Apontou-se, por fim,
como mudanças políticas e a crítica/escrita da história paulatinamente
conformavam diferentes pontos de vista sobre indivíduos e sobre acon-
tecimentos e como muitas cerimônias oficiais, mesmo passando por uma
série de revisões, foram perdendo sua eficácia, confrontadas por iniciati-
vas diversas.

Seja pelas diferentes perspectivas sobre seu histórico em Portugal e


no Brasil (expressas em narrativas e comemorações oficialmente estabe-
lecidas e atualizadas nas décadas de 20 e 30), seja pelo descrédito relati-
vamente à forma como se esperava mobilizar e reavivar sua memória (já
na década de 80, quando, além da crítica histórica concebida em termos
variados, propunham-se comemorações de um tipo diferente), o caso de
D. Pedro permitiu desenvolver algumas das reflexões propostas. O de
Pombal, por sua parte, levantou outras considerações. Cem anos após
sua morte, para alguns, ainda era demasiado cedo para apreciar e para
evocar seu histórico. Já para outros, seria melhor não reavivar sua memó-
ria – condenando-o ao esquecimento (essa “segunda e mais irremediável
morte”). Para os promotores do centenário, entretanto, mesmo que a pos-
sibilidade da devida compreensão de seu papel histórico se encontrasse
na posteridade (por isso muitos não lograriam avaliá-lo devidamente),
não se fazia necessário adiar ainda mais seu derradeiro julgamento. Im-
buídos de ideais positivistas, afinal, era a partir da posteridade que eles
apresentavam suas supostas credenciais de árbitros da história. Em sua

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):123-152, set./dez. 2019. 151


Gustavo Pereira

crítica futurante, julgavam o passado pombalino teleologicamente; em


função do futuro que entendiam prever e encarnar.

De modo a arrematar este percurso reflexivo sem pretensas conclu-


sões, retomam-se, sob nova luz, as palavras reproduzidas na epígrafe des-
te texto. São versos eloquentes; espécie de síntese entoada pelos estudan-
tes lisboetas nos festejos pombalinos por eles capitaneados. Imaginem-se,
pois, os rapazes. As principais ruas da capital, enfeitadas com flores, estão
apinhadas de gente curiosa. Com seu carro alegórico, com suas bandeiras
e com seus estandartes, os acadêmicos destacam-se em um grande cor-
tejo. Percorrendo a cidade em festa, eles cantam, orgulhosos, seu hino-
-manifesto, declarando a seus (arcaicos) contemporâneos:
Nós, os homens do futuro
[…] herdeiros e discípulos
De Camões e de Pombal
Empunhando a pena ou a espada
Honraremos Portugal59.
Texto apresentado em julho de 2019. Aprovado para publicação em
outubro de 2019.

59 – ALMEIDA, A. M. F. Hino dos estudantes adotado no programa do centenário do


Marquês de Pombal, reformador dos estudos, reedificador de Lisboa etc. etc. Lisboa,
1882.

152 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):123-152, set./dez. 2019.


A Constituição Castilhista de 1891 e as origens
do constitucionalismo autoritário na República Brasileira

153

A CONSTITUIÇÃO CASTILHISTA DE 1891 E AS ORIGENS


DO CONSTITUCIONALISMO AUTORITÁRIO NA
REPÚBLICA BRASILEIRA
THE 1891 CASTILHISTA CONSTITUTION AND THE ORIGINS
OF THE AUTHORITARIAN CONSTITUTIONALISM IN THE
BRAZILIAN REPUBLIC
Argemiro Cardoso Moreira Martins1
Francisco Rogério Madeira Pinto2
Resumo: Abstract:
O presente texto cuida de uma das matrizes do The present paper aims to deal with one of
discurso jurídico autoritário brasileiro. Identifi- the matrices of Brazilian authoritarian legal
ca, na obra de Júlio de Castilhos (1860-1903), discourse. It identifies in Júlio de Castilhos’
especificamente por meio de sua formulação da work (1860-1903), especially through the
Constituição do Estado do Rio Grande do Sul de formulation of the 1891 July Constitution
julho de 1891, a primeira manifestação de um of the State of Rio Grande do Sul, the first
projeto institucional com vistas a estabelecer a manifestation of an institutional project that
concentração de poderes na figura do chefe do intends to establish the concentration of
Executivo. Com base no texto constitucional, powers in the figure of the Executive’s chief.
nos argumentos de Castilhos e de seus defenso- Based on the constitutional text, in Castilhos’
arguments and of his defenders, it is stated that
res, afirma-se que a Constituição Gaúcha esta- the Gaucho Constitution laid the foundations
beleceu as bases de uma gramática jurídico-au- of a deeply anti-liberal legal-authoritarian
toritária profundamente antiliberal. O objetivo grammar. The objective is to analyze the main
é analisar as principais inovações institucionais institutional innovations that Castilhos fostered
castilhistas que estabeleceram um modelo cons- to create an authoritarian constitutional
titucional de caráter autoritário. A Constituição model. The Gaucho Constitution emptied the
Gaúcha esvaziou o Poder Legislativo por meio Legislative Power through the subtraction of
da subtração da própria função de elaborar as its own function of legislate, thus shifting the
leis, deslocando, assim, a própria representação political representation itself to the figure of the
política para a figura do Presidente. Em tudo, é President. In all, it´s completely contrasting with
contrastante com a noção liberal de representa- the liberal notion of representation, centered
ção, centrada nos debates parlamentares e na se- on parliamentary debates and the separation
paração dos poderes. Trata-se, portanto, de um of the powers. It is, therefore, a strongly anti-
pensamento político marcadamente antiliberal, liberal political thought, victorious in its
vitorioso em suas propostas autoritárias provin- provincial authoritarian proposals and one of
ciais e que foi uma das inspirações para as prá- the inspirations for the practices that the whole
ticas que o país, como um todo, vivenciaria no country would experience in the “Estado Novo”
Estado Novo (1937-1945). (1937-1945).
Palavras-chave: Júlio de Castilhos; Origens; Keywords: Júlio de Castilhos; Origins;
Constitucionalismo; Autoritário. Constitutionalism; Authoritarian.

1  –  Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UnB. E-mail: argemiromartins@unb.


br.
2  –  Professor voluntário da Faculdade de Direito da UnB. E-mail: rogeriomadeirapin-
[email protected].

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):153-186, set./dez. 2019. 153


Argemiro Cardoso Moreira Martins
Francisco Rogério Madeira Pinto

1 Introdução
O presente artigo trata de uma das matrizes do discurso jurídico au-
toritário brasileiro no contexto da Primeira República. Aponta, como uma
das principais referências para a formação e concretização desse discurso,
a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul promulgada em 14 de ju-
lho de 1891 sob a influência intelectual de Júlio de Castilhos (1860-1903).
Com base no próprio texto constitucional e nos argumentos de Castilhos
e de seus defensores, afirma-se que a Constituição Castilhista estabeleceu
as bases de uma gramática jurídico-autoritária que influenciou modelos
constitucionais ao longo de nossa história republicana.

Castilhos inova ao antecipar fórmulas institucionais que negam a es-


trutura constitucional do liberalismo, especialmente, quanto à autonomia
e à separação entre os poderes. No modelo que estabelece para o Rio
Grande do Sul, o Executivo absorve as funções legislativas do Parlamento
e a representação parlamentar é substituída por consultas diretas à popu-
lação3. Práticas estas que começariam no cenário político europeu apenas
a partir da segunda década do século XX e, no Brasil, na década de 1930.

Além de longevo, visto que durou de 1891 até 1935, o projeto cons-
titucional castilhista transcendeu seu contexto local, estabelecendo-se
como inspiração do vindouro projeto de Estado autoritário de Vargas4.
Mais do que a justificação teórica e intelectual de suas ideias, o propósito
do texto é destacar a gênese desse discurso voltado para a construção de
instituições jurídico-políticas, isto é, um discurso pragmático voltado à
institucionalização.

3  –  Cf. arts. 31 e 32 da Constituição Política do Estado do Rio Grande do Sul (1891). In:
A Constituição Federal e as Constituições dos Estados da Republica do Brazil. v. 1. Porto
Alegre; Pelotas: Livraria Universal; Echenique & irmão Editores, 1895. Disponível em:
www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/224222. Acesso em: 24.08.18.
4  –  Cf. nesse sentido as declarações do biógrafo de Getúlio Vargas, Leal de Souza, que
em livro publicado sob aprovação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP),
afirmava que Júlio de Castilhos seria não apenas a matriz ideológica do então Presidente,
como seu precursor na formulação de um sistema de governo coincidente com outros
regimes autoritários do período. NETO, Lira. Getúlio. Do Governo Provisório à ditadura
do Estado Novo (1930-1945). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 326.

154 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):153-186, set./dez. 2019.


A Constituição Castilhista de 1891 e as origens
do constitucionalismo autoritário na República Brasileira

O conceito de antiliberalismo adotado nesse contexto não se con-


funde com as concepções específicas do pensamento autoritário, que se
desenhou no país a partir das primeiras décadas do século XX, desen-
volvida por autores como Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e Francisco
Campos5. Antiliberalismo e autoritarismo não são, portanto, expressões
sinônimas. Antiliberal refere-se ao conjunto de críticas ao liberalismo em
sua forma política ou econômica. Nesse sentido, a crítica ao liberalismo
produzida durante final do século XIX e primeiras décadas do século XX
não se limita às experiências políticas que objetivam eliminar a organiza-
ção democrática da sociedade6. Já o autoritarismo pode expressar tanto a
experiência historicamente identificável de regimes políticos antiliberais
pautados pelo princípio da autoridade do chefe do Executivo, surgidos
durante as décadas de 1930 e 1940, como também seu entendimento mais
genérico retirado da teoria política, de governo autocrático que concentra
nas mãos de uma só pessoa ou um só órgão o poder político do Estado
em prejuízo das instituições representativas. É neste último sentido que o
projeto castilhista será abordado.

Como se estabelece um projeto constitucional de feições autoritá-


rias? Isto é, quais arranjos constitucionais foram capazes de, no lugar
de instituir limites aos poderes do Estado, fortalecer ainda mais suas
prerrogativas em detrimento dos direitos e das garantias individuais?
Denomina-se constitucionalismo autoritário o modelo que rejeita a sepa-
ração de poderes ao estabelecer a prerrogativa do Executivo sobre os de-
mais, que restringe ao máximo a representação política e que reduz as ga-
rantias dos cidadãos frente ao Estado. Por definição, o constitucionalismo
significa a imposição de limites ao Estado, isto é, seria a própria antítese
do autoritarismo. No entanto, a peculiaridade do pensamento constitucio-
nal de Júlio de Castilhos reside em seu oposto: a Constituição é, antes,
5  –  VIANNA, Oliveira. O idealismo da Constituição. 2ª ed. São Paulo: Companhia Edi-
tora Nacional, 1939; AMARAL, Azevedo. O Estado autoritário e a realidade nacional.
Brasília: Universidade de Brasília, 1981; CAMPOS, Francisco. O Estado nacional. Bra-
sília: Senado Federal, 2001.
6  –  LIMONCIC, Flávio; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Orgs.). Intelectu-
ais do antiliberalismo: alternativa à modernidade capitalista. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010, p. 10.

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um mecanismo de fortalecimento do poder estatal. O século XX é prolixo


em narrativas sobre os modos como se construíram formas autoritárias
de constituições e, no Brasil, na virada do século XIX para o XX, o Rio
Grande do Sul apresentou um dos primeiros modelos desse tipo de texto
com a Constituição de 1891.

Como fontes para a pesquisa, utilizaram-se obras que foram escritas


sob a influência castilhista e que se propuseram a analisar, bem como a
defender a Constituição do Rio Grande do Sul de 1891. Dentre os au-
tores, destacam-se Joaquim Luís Osório, Raimundo de Monte Arrais e
Victor Russomano7. Como fonte primária, têm-se os editoriais do jornal
A Federação, “órgão” do Partido Republicano Rio-Grandense e dirigido
pelo próprio Júlio de Castilhos. Em A Federação, a plataforma castilhista
apresenta sua linguagem de combate, afirmativa do projeto que se pre-
tendia estabelecer para o Estado8. Ao identificar o vocabulário político-
-jurídico utilizado, essa análise verifica como o discurso se articulou à
fundamentação de propostas legislativas de cunho autoritário.

Para essa análise, utiliza-se o conceito de “lance” criado por J. G. A.


Pocock9. Esse historiador descreve a situação em que um determinado
autor inova a linguagem política de seu tempo, ao introduzir uma palavra
ou um conceito novo que passa a ser compartilhado pelos demais atores,
alterando, assim. a própria estrutura do discurso político. A expressão,

7 – OSÓRIO, Joaquim Luís. Constituição política do Estado do Rio Grande do Sul:


comentário. Brasília: Universidade de Brasília, 1981; ARRAIS, Raimundo de Monte.
O Rio Grande do Sul e as suas Instituições Governamentais. Brasília: Universidade de
Brasília, 1981; RUSSOMANO, Victor. História Constitucional do Rio Grande do Sul
(1835 – 1930). 2ª ed. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Estado, 1976.
8  –  Júlio de Castilhos foi o principal “diretor de redação” do jornal A Federação, que
pertencia ao Partido Republicano Rio-Grandense. Por suas páginas, foram divulgados os
textos políticos e jurídicos de seu diretor. Após Júlio de Castilhos se consolidar no poder
do Estado, A Federação tornou-se uma espécie de Diário Oficial, onde se divulgavam leis,
decretos e comunicados oficiais de governo. A coleção parcial desse jornal está disponível
em: Biblioteca Nacional Digital (Hemeroteca Digital Brasileira). Disponível em: http://
bndigital.bn.br Acesso em: 26.09.18.
9  –  POCOCK, J. G. A. Introdução: o estado da arte. In: POCOCK, J. G. A. Linguagens
do ideário político. Tradução Fábio Fernandez. São Paulo: Universidade de São Paulo,
2003, p. 23-62.

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A Constituição Castilhista de 1891 e as origens
do constitucionalismo autoritário na República Brasileira

como diz Pocock, sugere um jogo e uma manobra tática e sua identifica-
ção depende da “nossa compreensão da situação prática na qual ele [um
autor] se encontrava, do argumento que ele desejava defender, da ação ou
norma que ele desejava legitimar ou invalidar, e assim por diante”10. No
caso específico da Constituição Castilhista, o “lance” é estabelecido sobre
a linguagem constitucional ao efetivar mudanças de sentido nos termos e
nos conceitos caros ao constitucionalismo liberal. Como assinala Pocock,
“esses lances podem ser retóricos e implícitos, executados sem alarde e
deixados produzindo seus efeitos, ou explícitos e justificados por meio de
alguma linguagem crítica, criada para justificar e elaborar seu caráter”11.
Quem promove esses lances são atores linguísticos conscientes de seus
atos de fala e de seus efeitos. Para o caso específico desse trabalho e em
razão das fontes utilizadas, a identificação do ator linguístico não se limi-
ta à figura de Júlio de Castilhos. De forma mais ampla, trabalha-se com
um discurso promovido e articulado por vários agentes a partir de uma
agenda de poder criada com a figura de Castilhos e que será denominado
pela expressão “castilhismo”. Nesse sentido, entende-se que a linguagem
não se restringe apenas a uma maneira de falar determinada, mas é essen-
cialmente “um tema de discussão prescrito para o discurso político”12 em
que se articulam vários agentes para promover o debate discursivo.

Busca-se analisar aqui os argumentos apresentados por Júlio de


Castilhos e por demais personagens vinculados ao Partido Republicano
Rio Grandense. Desse modo, não se cuidará do debate entre estes e seus
adversários do Partido Federalista a respeito da Constituição e do gover-
no castilhista. Aqui, se busca destacar o discurso legitimador utilizado
por aqueles que efetivamente obtiveram o poder, visando à identificação
de suas estratégias discursivas para validar as inovações autoritárias con-
tidas na Constituição. Nesse intuito, apesar da influência do positivismo
comtiano sobre Júlio de Castilhos, não se trata do estudo dessa filiação
intelectual13. Aqui, parte-se do entendimento de que a Constituição de
10  –  POCOCK, J. G. A. Introdução: o estado da arte..., p. 39.
11  –  POCOCK, J. G. A. Introdução: o estado da arte..., p. 41.
12  –  POCOCK, J. G. A. Introdução: o estado da arte..., p. 36-37.
13  –  Sobre a influência do pensamento de Auguste Comte na obra de Júlio de Castilhos,

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1891 tem um caráter original que espelha a concepção de seu idealiza-


dor. Por essa razão, concorda-se com o argumento de Gunter Axt de que
a Constituição de 1891 não espelhou uma correspondência automática
da filosofia Comtista14. Algumas inovações institucionais contidas na
Constituição, como a concepção de uma Assembleia esvaziada, corro-
boram essa tese. Enquanto, para Comte, a Assembleia deveria ser um
órgão independente, estruturado por eleições indiretas e representado por
estratos corporativos da sociedade; Castilhos, diferentemente, defendia
que a ação política é que deveria fomentar a renovação mental e moral na
sociedade e não o contrário. Por fim, ao aglutinar os poderes Legislativo,
Judiciário, bem como a educação pública, sob a órbita do Executivo, pro-
movia o favorecimento de uma doutrina estatal distante da perspectiva
comteana, a qual reservava à condução mais geral dos rumos da vida
social ao Poder Espiritual15. Ao assinalar essa apropriação da filosofia
positivista promovida por Castilhos, o artigo se propõe a analisar como
conceitos caros ao Direito Constitucional – tais como, tripartição dos po-
deres, representação política e procedimento de elaboração das leis –, são
reinterpretados, tendo em vista a perspectiva de poder unitário estabeleci-
do pela Constituição Estadual de 1891.

O presente artigo está dividido em cinco partes. Na primeira, trata-se


brevemente da centralidade da ideia de Constituição no pensamento cas-
tilhista e como tal percepção ganha vida, mesmo após a morte de seu au-
tor. Na segunda, cuidaremos da peculiar concepção organicista de poder
presente no discurso castilhista e seu papel na justificação do Executivo

ver: HENTSCHKE, Jens R. Positivismo ao estilo gaúcho: a ditadura de Castilhos e seu


impacto sobre a construção do Estado e da nação no Brasil de Getúlio Vargas. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2015; RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Castilhismo: uma filosofia da
república. Brasília: Senado Federal, 2000.
14  –  AXT, Gunter. Constitucionalidade em debate: a polêmica carta estadual de 1891.
Revista Justiça & História, Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do RS v. 2, nº. 03,
p. 12. Disponível em: www.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/historia/memorial_do_po-
der_judiciario/memorial_judiciario_gaucho/revista_justica_e_historia/issn_1676-5834/
v2n3/doc/13-Gunter_Axt.pdf. Acesso em: 28.07.18.
15  –  LACERDA, Gustavo Biscaia. Elementos estáticos da teoria política de Augusto
Comte: as pátrias e o poder temporal. Revista de Sociologia Política, Curitiba, nº. 23, p.
63-78, nov. 2004, p.74.

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A Constituição Castilhista de 1891 e as origens
do constitucionalismo autoritário na República Brasileira

hipertrofiado. Na terceira, analisaremos a estratégia argumentativa de


Castilhos para esvaziar o Parlamento representativo do Liberalismo. Na
quarta parte, cuidaremos do processo legislativo castilhista e de seu dis-
curso justificador de suas inovações constitucionais. Ao final, teceremos
considerações sobre esse arcabouço constitucional que foi capaz de legi-
timar o poder autoritário do presidente estadual.

2 A Constituição Estadual de 1891, uma obra de Júlio de Castilhos


que transcendeu o próprio autor
Após a proclamação da República, o Governo Provisório federal bai-
xou o Decreto nº 802, de 04 de outubro de 1890, que determinava a con-
vocação de assembleias legislativas nos Estados e o respectivo processo
de eleição para assembleias constituintes. No projeto de constituição do
Governo Provisório, elaborado pela chamada “Comissão dos Cinco”16,
foi prescrito que as constituições estaduais deveriam observar cinco de-
terminações17. Já na Constituinte Federal, essas propostas foram enca-
minhas para uma segunda comissão, a chamada “Comissão dos Vinte e
Um”, a qual, após os debates, suprimiu os referidos incisos, cuja retirada
se deu em razão da influência de Júlio de Castilhos, representante do Rio
Grande do Sul no colegiado18.

A comissão entendeu que os artigos feriam a autonomia dos esta-


dos ao estabelecer uma rígida simetria entre suas constituições e a da
República. De acordo com Assis Brasil, Júlio de Castilhos apresentou,
enquanto delegado da bancada rio-grandense, uma emenda supressiva
de todas as disposições relativas aos preceitos que deveriam guardar os
16  –  A “Comissão dos Cinco” foi nomeada pelo Governo Provisório por decreto em 3 de
dezembro de 1889 para fazer o primeiro projeto de constituição da República. RUSSO-
MANO, Victor. História Constitucional do Rio Grande do Sul..., p. 172, nota 31.
17  –  As determinações eram as seguintes: “1º – que os Poderes Executivo, Legislativo
e Judiciário fossem discriminados e independentes; 2º – que os governadores e membros
da legislatura local fossem eletivos; 3º – que não fosse eletiva a magistratura dos Estados;
4º – que os magistrados não fossem demissíveis senão por sentença; 5º – que o ensino
fosse leigo e livre em todos os seus graus e gratuito no primário.” apud RUSSOMANO,
Victor. História Constitucional do Rio Grande do Sul..., p. 172.
18 – RUSSOMANO, Victor. História Constitucional do Rio Grande do Sul..., p. 172-
173.

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estados em suas constituições, substituindo a detalhada especificação do


projeto por esta sucinta determinação: “Os Estados organizar-se-ão livre-
mente, sem ofender os preceitos da Constituição Federal” 19. Por essas
intervenções, a ideia federativa da bancada do Rio Grande do Sul é que
definiu a forma de organização dos estados na Constituinte, destacando-
-se, por meio dessas intervenções, o caráter autonomista do projeto de
Castilhos e que será posto em prática de maneira singular na Constituição
do Rio Grande do Sul de 1891.

Em 18 de Outubro de 1890, foi nomeada pelo governador em exer-


cício, General de Divisão Cândido Costa, a comissão encarregada de ela-
borar o projeto de Constituição do Estado do Rio Grande do Sul. A comis-
são formada para elaborar o projeto era composta por Ramiro Fortes de
Barcellos, Joaquim Francisco de Assis Brasil e Júlio Prates de Castilhos,
que, ao fim, foi o único redator do projeto. Os demais não chegaram a
colaborar: Ramiro de Barcellos estava na cidade do Rio de Janeiro e Assis
Brasil se recusou a assinar o projeto por desacordo com a doutrina ali
proposta20.

Castilhos iniciou a confecção do texto em fevereiro e o entrega no


dia 25 de abril de 1891 para o Vice-Governador em exercício Fernando
Abbot, que convocou a Constituinte estadual para 02 de junho e as elei-
ções para o dia 05 de maio. A disputa se deu entre o Partido Republicano
de Júlio de Castilhos e a oposição, coligada sob a legenda do Partido
Federalista. Nesse processo, as fraudes foram notórias e a máquina políti-
ca montada pelo Partido Republicano impediu qualquer possibilidade de
um pleito que oferecesse espaço de uma disputa justa para representantes
da oposição. Tal fato pavimentou o caminho para os movimentos insurre-
cionais que afligiriam o Estado nos anos seguintes21.

19 – Apud RUSSOMANO, Victor. História Constitucional do Rio Grande do Sul..., p.


174.
20 – ASSIS BRASIL, Joaquim Francisco. Ditadura, parlamentarismo, democracia. In:
ASSIS BRASIL, Joaquim Francisco. A democracia representativa na república (Antolo-
gia). Brasília: Câmara dos Deputados, 1983, p. 247-305, p.277.
21  –  Somente no ano de 1913, sob o governo de Borges de Medeiros, os federalistas con-
seguiram eleger um representante para a Assembleia Estadual. Em 1917, com a mudança

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A Constituição Castilhista de 1891 e as origens
do constitucionalismo autoritário na República Brasileira

As sessões preparatórias para a Constituinte do Estado começaram


no dia 17 de junho de 1891. A comissão responsável pela formulação do
parecer era composta por sete membros, dentre eles, quatro eram mé-
dicos, portanto, leigos em matéria constitucional. Foram apresentadas
pequenas modificações ao texto, prevalecendo o projeto de Castilhos pra-
ticamente em sua íntegra. Os debates foram céleres, iniciaram-se em 11
de julho e findaram com a promulgação da Constituição em 14 de julho
de 1891. Nessa mesma data, Castilhos foi eleito indiretamente presiden-
te do Estado pela própria Assembleia Constituinte, então convertida em
Assembleia ordinária22.

A partir daí, inicia-se um período conturbado para a vida do Rio


Grande do Sul. A contestação à Constituição de 14 de julho se deu den-
tro e fora do estado sulista. Em âmbito federal, foram várias as tentati-
vas da oposição no Congresso Nacional para deslegitimar a Constituição
Castilhista por não apresentar simetria com a Constituição Federal.
Internamente, essa objeção assumiu a forma de disputas armadas, o que
levou o estado a duas guerras civis, em 1893 e em 1923. Somente após
essa última que o projeto constitucional castilhista sofre mudança signi-
ficativa. Com o Pacto de Pedras Altas, que pôs fim ao conflito, o herdeiro
político de Castilhos, Borges de Medeiros, cede o poder por força de uma
reforma constitucional que suspendeu a reeleição indeterminada à presi-
dência do estado. Após as eleições estaduais de 1927, que levou Getúlio
Vargas à presidência estadual, o equilíbrio de forças na Assembleia foi
modificado com o aumento do número de deputados federalistas23.

do cálculo do quociente previsto em lei para garantir a representação das minorias, o Par-
tido Federalista elevou sua participação para três cadeiras. In: AXT, Gunter. Constitucio-
nalidade em debate: a polêmica carta estadual de 1891. Revista Justiça & História, Porto
Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do RS, v. 2, nº. 03, p. 12. Disponível em: www.tjrs.
jus.br/export/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_judi-
ciario_gaucho/revista_justica_e_historia/issn_1676-5834/v2n3/doc/13-Gunter_Axt.pdf.
Acesso em: 28.07.18, p. 16.
22  –  AXT, Gunter. Constitucionalidade em debate: a polêmica carta estadual de 1891...,
p. 10; RUSSOMANO, Victor. História Constitucional do Rio Grande do Sul..., p. 197.
23  –  AXT, Gunter. Constitucionalidade em debate: a polêmica carta estadual de 1891...,
p. 16-18.

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A Constituição de 1891 era pretensamente “científica”, isso é, tra-


tava-se de um modelo institucional sólido e bem articulado para perdu-
rar no tempo. Essa pretensão foi, de certa maneira, concretizada, pois
o Rio Grande do Sul teria uma nova Constituição somente no ano de
1935. A Constituição Gaúcha deveu muito de sua fama aos seus defen-
sores. Em 1911, Joaquim Luís Osório publicou seus comentários sobre
a Constituição, defendendo ponto a ponto o texto castilhista. Em 1925,
após a guerra civil que pôs fim às sucessivas reeleições do governador
Borges de Medeiros, Raimundo de Monte Arraes escreveu uma defesa
jurídica das “instituições governamentais” do Rio Grande do Sul. Em
1932, Victor Russomano, em História Constitucional do Rio Grande do
Sul, enaltece a obra de Castilhos por consagrar o “perfeito equilíbrio entre
a autoridade e a liberdade”, uma Constituição destinada a “perpetuar-se e
que recomendará eternamente o nome do seu autor à gratidão dos coevos
e ao respeito dos pósteros”24.

O que a disputa em torno da Constituição de 1891 revela é o reco-


nhecimento que a estrutura de poder que se estabeleceu no Rio Grande do
Sul não se assentava exclusivamente na personalidade do presidente do
estado, mas na própria Constituição. Era a partir dela que se estruturava
uma forma de organização que garantia ao chefe do Executivo os meca-
nismos adequados para o controle quase que completo da vida política
estadual. Apesar da inspiração terminológica advinda da ideia de uma
“ditadura” científica de matriz comteana, o projeto de poder castilhista
procurava se afastar do estigma de um governo ditatorial, no sentido de
que este é entendido basicamente como o arbítrio do governante. Para o
pensamento castilhista, a simples existência da Constituição e das leis é
o que diferenciaria uma ditadura de um governo despótico. Em suma,
Castilhos inaugura na República brasileira a justificação do autoritarismo
a partir da lei.

24 – RUSSOMANO, Victor. História Constitucional do Rio Grande do Sul..., p. 177.

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A Constituição Castilhista de 1891 e as origens
do constitucionalismo autoritário na República Brasileira

3 A unidade orgânica do poder em torno do Executivo estadual como


fundamento do governo
A principal marca da Constituição Gaúcha de 1891 é a ampla preva-
lência das prerrogativas do Executivo sobre os demais poderes, os quais,
ressignificados na linguagem constitucional castilhista, são apresentados
apenas como órgãos de um aparelho governativo unitário. No texto, não se
fala em poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, mas da Presidência do
Estado, da Assembleia dos Representantes e da Magistratura. Os termos
aqui utilizados destoam da predominante denominação da Constituição
Federal de 1891 acerca da existência de poderes independentes e autôno-
mos entre si, conformados para estabelecer o funcionamento harmônico
do Estado. Na versão castilhista de constituição, não se destaca o caráter
autônomo dos poderes, mas apenas suas funcionalidades dentro de uma
máquina governativa centralizada na figura da Presidência do Estado.

A prevalência das funções executivas sobre as demais pode ser veri-


ficada por uma simples contabilidade de artigos e na ordem espacial re-
servada a cada uma delas. A primeira seção é toda dedicada à Presidência
do Estado. Para definição do Executivo, foram reservados 27 artigos e 47
parágrafos. Dentre estes, somente o artigo 20, que trata das atribuições do
Presidente, possui 25 parágrafos, enquanto que, para a Assembleia dos
Representantes, foram reservados apenas 15 artigos com 12 parágrafos
localizados na seção segunda do documento. Dentre estes, destaca-se o
Capítulo II, que estabelece as atribuições da Assembleia (Art. 47), fixa-
das na forma de 7 itens relacionados à sua competência privativa. Para
o Judiciário, denominado como Magistratura, para o qual se reserva a
última posição espacial entre os “poderes”, são previstos na seção terceira
apenas 11 artigos e 11 parágrafos25.

Na construção do texto constitucional, Castilhos demonstrou grande


capacidade técnica ao estabelecer uma estrutura legal de viés autoritário

25  –  CONSTITUIÇÃO do Estado do Rio Grande do Sul de 1891. In: A Constituição Fe-
deral e as Constituições dos Estados da Republica do Brazil. v. 1. Porto Alegre; Pelotas:
Livraria Universal; Echenique & irmão Editores, 1895, p. 61-86. Disponível em: www2.
senado.leg.br/bdsf/item/id/224222. Acesso em: 24 ago. 2018.

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bem montada, na qual estão articulados os instrumentos legais que garan-


tiriam o controle, por parte do Presidente, de todas as estruturas de poder
do Estado. Na base dessa engrenagem autoritária, se encontra o artigo 6º,
que estabelece a centralidade do Executivo sobre os demais poderes.

Nas discussões da Constituinte estadual de 1891, o deputado


Francisco de Paula Lacerda destacava a centralidade do artigo 6º para
o projeto de poder castilhista, assinalando tratar-se de um texto funda-
mental para todo o sistema da Constituição e de sua “acepção ou rejeição
depende a aceitação ou não do plano constitucional”26. De fato, o artigo
6º foi o cerne do empreendimento constitucional de Castilhos e, a partir
dele, articulam-se os demais preceitos normativos. Em síntese, trata-se
da construção de uma república estruturada a partir da ideia de unidade e
personificada na figura do chefe do Executivo:
Art. 6° – O aparelho governativo tem por órgãos a Presidência do
Estado, a Assembléia dos Representantes e a Magistratura, que fun-
cionarão harmonicamente, sem prejuízo da independência que entre
si devem guardar, na orbita da sua respectiva competência, definida
nesta Constituição27.

Apesar de falar em “harmonia” e em “independência”, o artigo 6º


não adotava o princípio da separação de poderes. Pelo contrário, os “ór-
gãos” não são “poderes” e funcionam como um “aparelho governativo”.
Esse aparato unitário era presidido pelo Executivo estadual, graças ao
seu extenso rol de competências constitucionais. Antes da instalação
da Constituinte estadual, em uma série de editoriais publicados no jor-
nal A Federação – entre os dias 23 e 27 de Junho de 1891 – sobre a
“Constituição do Estado”, iniciou-se um ataque ao arranjo liberal de or-
ganização do Estado, tido como a “metafísica dominante”, propondo, em
seu lugar, uma nova “tecnologia” organizacional no modo de governar
as coisas públicas. Com isso, estabelecem-se uma inovação e, também,

26 – Apud RUSSOMANO, Victor. História Constitucional do Rio Grande do Sul..., p.


201.
27  –  CONSTITUIÇÃO do Estado do Rio Grande do Sul de 1891..., p. 64.

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A Constituição Castilhista de 1891 e as origens
do constitucionalismo autoritário na República Brasileira

uma diferenciação na linguagem constitucional do período adotada pela


Constituição da República brasileira. Destacava A Federação:
Para que a nova denominação? dizem; porque não manter a classifi-
cação adotada geralmente e até na Constituição Federal, que reconhe-
ce a existência dos três poderes executivo, legislativo e judiciário? A
tecnologia usual é defeituosa, daí a necessidade de reformá-la, para
impedir que se falseie a noção correspondente, por uma interpretação
literal. O que vulgarmente chamam de poderes nada mais são do que
órgãos de um mesmo poder. A sua divisão é ilusória e não se funda na
natureza das coisas28.

O emprego de metáforas corpóreas de inspiração comteana são aqui


utilizadas para descrever o funcionamento do Estado e de suas institui-
ções como um sistema fisiológico29. O uso das metáforas orgânicas de
um “corpo político” é antigo, estão presentes no pensamento platônico,
ganham vitalidade no período medieval e alcançam o pensamento polí-
tico moderno, especialmente a teoria contratualista de Thomas Hobbes.
No Leviatã, ele apresenta uma forma ainda sacralizada do corpo político,
destaca sua ordenação por meio de um soberano que está acima da so-
ciedade, uma concepção forte de soberania na organização da política30.

No entanto, as metáforas orgânicas são reelaboradas pelo discurso


castilhista. Esse fica no meio do caminho entre uma concepção republica-
na e outra soberanista da organização política. Em ambas as concepções,
o corpo político passa ser entendido como “res publica”, onde os órgãos
possuem seu próprio lugar e sua própria função dentro da constituição
política da república, porém apenas a sua “unidade” é capaz de governar.

28 – A Federação, nº 145, Porto Alegre, 23 jun. 1891, p. 01.


29  –  LACERDA, Gustavo Biscaia. Elementos estáticos da teoria política de Augusto
Comte..., p. 67.
30  –  Já na introdução do Leviatã encontra-se a alusão às metáforas corpóreas: “Do mes-
mo modo que tantas outras coisas, a natureza (a arte mediante a qual Deus fez e governa o
mundo) é imitada pela arte dos homens também nisto: que lhe é possível fazer um animal
artificial. […] Por último, os pactos e convenções mediante os quais as partes deste Corpo
Político foram criadas, reunidas e unificadas assemelham-se àquele Fiat, ao Façamos o
homem proferido por Deus na Criação”. HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e
poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz
Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 5.

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Ou seja, a concepção republicana ainda tem raízes em um modelo de


organização política que encontra sua forma no Leviatã. Apesar disso, a
proposta castilhista vai além ao rechaçar a existência de organismos que,
de algum modo, possam oferecer alguma alternativa ao poder unificado.
Qualquer corpo, por menor que fosse, seria uma ameaça e, nesse senti-
do, era necessário construir uma imagem do poder político constituído
como único, sem a necessidade de junção de outros para lhe darem subs-
tância. É esse o sentido da especialização dos “órgãos” na Constituição
Castilhista. Eles são elementos indiferenciados de uma unidade de poder
soberano, partes especializadas de um só “poder” e não “poderes” dota-
dos de autonomia tal como na doutrina liberal.

Na organicidade política de Castilhos, não deveria haver “corpos”


que conflitassem com a unidade do poder no Executivo. No lugar de cor-
pos, apenas “órgãos” que trabalhariam de forma funcional e não com-
petitiva dentro do Estado. O problema destacado pelo castilhismo é que
a divisão harmônica preconizada pela doutrina liberal seria frágil, bas-
tando que qualquer um dos poderes divergisse dos demais para se insta-
lar o conflito. Na perspectiva desse discurso fisiológico de organização
política, não há que se falar de metáforas mecanicistas, que, de alguma
forma, possam desnaturalizar o corpo do Estado e tratá-lo como “máqui-
na” administrativa. É esse o sentido da seguinte afirmação do governador
Borges de Medeiros contra a reforma da Constituição Castilhista em seu
discurso de posse em 1923, quando começava mais uma violenta guerra
civil no Rio Grande do Sul:
Pretendem reformar, mas esquecem que a verdadeira reforma é a que
melhora, conservando; quando não reformar será demolir e abrir ca-
minho à anarquia ou à retrogradação. Desconhecem a necessidade de
um órgão central em todo sistema político, com se o governo fosse
uma máquina e não um organismo vivo, em que os diferentes órgãos
se coordenam e cooperam para o fim comum submetendo-se a um
superior31.

31 – A Federação, nº22, ano XL, Porto Alegre, 25 jan. 1923, p.3.

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A Constituição Castilhista de 1891 e as origens
do constitucionalismo autoritário na República Brasileira

O resultado concreto da metáfora corpórea castilhista foi o fortaleci-


mento do chefe do Executivo. Isso está expresso no já mencionado con-
junto de textos sobre a “Constituição do Estado”, publicados no editorial
do jornal A Federação, em que se lê:
Os intitulados poderes legislativo e judiciário não são mais, portan-
to, do que braços de um só poder, que é aquele que manda, segundo
certos princípios, consagrados em uma Constituição [...] E como o
mais bem aparelhado para a luta é o intitulado poder executivo, este
sempre, como vemos em toda a parte, garante desde logo a sua supre-
macia, reduzindo a mero simulacro de poder o dos outros dois. O que
redunda no que sustentamos em nosso primeiro artigo: que o poder é
um, exercitando a sua função por órgãos diversos32.

Na visão organicista de Júlio de Castilhos não há espaço para o cor-


porativismo, no sentido de que essa concepção admite que o poder não
se concentra num polo único, pois a sociedade política seria parcelada e
dividida entre vários corpos33. É exatamente nesse ponto que ocorre uma
negativa por parte de projetos autoritários nacionais, como o de Castilhos
e, posteriormente, de Getúlio Vargas durante o Estado Novo. Tanto em
Castilhos, como em Vargas, estabelece-se uma visão orgânica de política,
pautada na ideia da unidade, mas afastada de uma concepção corporativa,
a qual poderia oferecer alguma fragmentariedade ao projeto monopolista
de poder. Havia, de fato, um discurso organicista do Estado. No entanto,
ele se afasta do corporativismo no ponto em que este defende a organi-
zação da sociedade por ordens ou por corpos com funções diferenciadas

32 – A Federação, nº 145, Porto Alegre 23 jun.1891, p. 01; A Federação, Porto Alegre,
nº 147, p. 01, 25 jun. 1891.
33  –  De modo sintético, o corporativismo do século XX defende que a ordem política,
social e econômica não pode ser atrelada nem ao indivíduo, como defende o liberalis-
mo, nem às classes sociais, como afirma o marxismo. A sociedade deveria se constituir
por agrupamentos profissionais organizados na forma de corporações, tuteladas por um
Estado autoritário. A representação dos vários interesses, por esse modelo, não se faria
por meio de partidos, mas por meio de grandes corporações profissionais que teriam suas
demandas reguladas pela mediação do Estado como forma para prevenir possíveis con-
flitos entre as partes. CODATO, Adriano. Corporativismo. In: TEIXEIRA, Francisco M.
P. (coord.) Dicionário Básico de Sociologia. São Paulo: Global Editora, 2012. Disponí-
vel em https://adrianocodato.blogspot.com/2012/10/verbete-corporativismo.html. Acesso
em: 15.04.19.

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uma das outras, na qual cada membro teria uma função autônoma e espe-
cializada, mas com um fim de organização do todo.

A perspectiva de um organicismo corporativo vai ser desenvolvida


nas décadas posteriores à Constituição Gaúcha, como maior intensidade a
partir dos anos 30 e, em especial, na obra de Oliveira Vianna34. Contudo,
essa autonomia não era contemplada no projeto castilhista. Por certo, em
razão da tensão estabelecida entre o poder concentrado no Executivo e
as formas de representação corporativa35. Essa representação, por mais
controlada que fosse, poderia ser uma ameaça à ideia de poder encarnado
na figura do Presidente.

Por essa razão, não há espaço no Leviatã castilhista para dissensões.


O corpo político já nasce unitário, numa forma harmoniosa e capaz de es-
tabelecer a ordem para evitar a perda de controle da política. Estabelece-
se, assim, uma perspectiva unificada de poder, a qual, mesmo se utilizan-
do da concepção antropomórfica da organização da sociedade, afasta-se
de uma perspectiva corporativista que lhe era, até então, correlata.

4 O esvaziamento do Parlamento representativo


Como visto acima, o artigo 6º da Constituição Gaúcha de 1891
introduziu a concepção de um republicanismo de caráter centralizado.
Tratava-se de pôr em prática a “unidade na variedade”, no dizer de Vitor
Russomano36. Desde sua participação na Constituinte da República,
Castilhos teve por objetivo precípuo estabelecer uma forte e segura auto-
nomia estadual. Castilhos, feroz crítico do centralismo do Império, agora
exigia a mesma concentração de poderes em âmbito regional. Em razão
dessa defesa enfática, a representação rio-grandense passou a ser identi-
ficada pelos republicanos ditos “moderados” como defensora de um “fe-
deralismo exagerado”37. A defesa do federalismo autonômico do Sul vi-
34  –  VIANNA, Oliveira. Problemas de Direito Corporativo. Rio de Janeiro: J. Olympio,
1938.
35 – FAUSTO, Boris. O Pensamento nacionalista autoritário (1920-1940). Rio de Ja-
neiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 58.
36 – RUSSOMANO, Victor. História Constitucional do Rio Grande do Sul..., p. 170.
37 – RUSSOMANO, Victor. História Constitucional do Rio Grande do Sul..., p. 169.

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A Constituição Castilhista de 1891 e as origens
do constitucionalismo autoritário na República Brasileira

sava estabelecer uma proteção política e financeira contra as intervenções


federais. Para isso, foi necessário estabelecer a independência financeira
dos estados frente ao governo central. Nesse sentido, Castilhos foi um
ardoroso defensor de uma melhor divisão das rendas provenientes de im-
postos, a chamada “descentralização de rendas” em prol dos Estados, no
nascente modelo federativo brasileiro38.

A novidade trazida por Castilhos, no início da República, foi o esta-


belecimento de um regime autoritário de forma constitucional. No lugar
de um Leviatã puramente despótico, coloca-se uma espécie de “despotis-
mo esclarecido” por meio da legitimação política em termos de razão, de
ciência, de progresso e de bem comum, próprios do positivismo da época.
É curioso observar que, nesta versão de ditadura republicana, a legitima-
ção do governo não ocorre em termos de vontade popular, mas de uma
eficiente organização burocrática capaz de garantir a paz social.
Em junho de 1890, o editorial do jornal “A Federação” publicou em
três partes um artigo denominado “A ditadura” com a seguinte afirmação:
A ditadura não é despotismo. O despotismo implanta-se como fato
ordinário sobre as consciências abatidas, sobre a dignidade enervada,
sobre o heroísmo destruído das populações desoladas pela maior das
desgraças. A ditadura, primeiro efeito da soberana consideração da
salvação pública, é a ação enérgica de alguns homens, que as circuns-
tâncias transformam em instrumentos dos destinos do povo, homens
em cujas almas se devem transfundir toda a grandeza da causa que
servem, toda a energia da corrente de aspirações e ideias que atravessa
o corpo social39.

Apesar da retórica passional empregada no texto, Castilhos faz uso


de uma noção política pejorativa própria dos regimes monárquicos para
afirmar uma noção positiva de “ditadura” na República. A tradição do
castilhismo que sobrevive ao seu autor desenvolverá esse raciocínio. Em
1925, Monte Arraes defendeu o mesmo ponto de vista ao discorrer sobre
38 – RUSSOMANO, Victor. História Constitucional do Rio Grande do Sul..., p. 170.
Sobre a atuação de Castilhos na constituinte da República ver: FRANCO, Sérgio da Cos-
ta. Júlio de Castilhos e sua época. 5ª ed. Porto Alegre: EDIGAL, 2013, p. 98-112.
39 – A Federação, nº 143, Porto Alegre, p. 01, 25 jun.1890.

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as características do governo “despótico” para concluir que a Constituição


do Estado gaúcho não merecia essa denominação. A lógica é simples e
formal: o governo “despótico”, onde existe o “mais alto grau possível de
arbítrio pessoal” requer, de um lado, que “ele se constitua de um único
órgão, depositário de todos os poderes” e, de outro, que o exercício do
despotismo não encontre “qualquer limite à sua autoridade, por meio de
regras e leis preestabelecidas”40. Após elencar os limites constitucionais
do governo estadual, Monte Arraes argumenta, em termos puramente for-
malistas, como se a simples existência de “órgãos” legislativos e judiciais
ou da legislação garantisse a idoneidade do regime castilhista. Ou seja, o
governo gaúcho não é despótico, porque não há concentração de poderes
em uma só pessoa. Diferentemente de Castilhos, Monte Arraes não despo-
sa uma noção positiva de ditadura. Castilhos, por sua vez, não teve receio
em afirmar que “Amanhã, constituída definitivamente, a República [...]
veremos que a semente plantada hoje pela ditadura continha o gérmen da
liberdade”41. Curiosamente, essa frase aparece na última parte do artigo
“A ditadura”, acima mencionado, publicado em junho de 1890 no jornal
A Federação juntamente ao projeto do próprio Castilhos que se tornou a
Constituição Estadual em julho de 1891. Em síntese, o léxico castilhista
muda a noção de governo ditatorial que passa a ser visto positivamente
graças a sua compleição harmoniosa, previamente definida e estruturada
em um texto constitucional. Quanto à antiga noção de despotismo, resta-
-lhe o contraponto negativo, o governo de um homem só, o governo do
“capricho pessoal”42.

Desde antes da proclamação da República, Castilhos direcionava sua


crítica ao Regime Parlamentar da Monarquia. Considerava que o Regime
Republicano não deveria aplicar os processos parlamentares do período
imperial: para ele, o problema residia basicamente no Regime Liberal de
separação de poderes centrado no Legislativo. Tal forma de representação
seria artificial, porque expressa um jogo de transações de caráter mera-
40 – ARRAIS, Raimundo de Monte. O Rio Grande do Sul e as suas Instituições..., p.
67-68.
41 – A Federação, nº 145, Porto Alegre, p. 01, 27 jun.1890.
42 – ARRAIS, Raimundo de Monte. O Rio Grande do Sul e as suas Instituições..., p. 68.

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A Constituição Castilhista de 1891 e as origens
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mente personalista, que tinha como único objetivo a luta pelo poder, em
prejuízo de um projeto que contemplasse os interesses do país. No já ci-
tado texto sobre a “Constituição do Estado”, lê-se uma crítica ao “sistema
inglês” de representação parlamentar:
A história sincera de todas as nações regidas pelo sistema inglês dirá
que esse é o grande móvel das resoluções parlamentares. Resulta disso
uma sistemática hipocrisia e a maior irresponsabilidade. Todos os er-
ros são imputados, ora pelo chefe de Estado ao parlamento, que votou,
ora por este aquele [sic], denunciando o poder pessoal que subjuga a
livre manifestação das câmaras etc. E neste jogo de empurra, como se
diz vulgarmente, que o anonimato consagrado pelo sistema favorece,
escapam-se os culpados, ficam sem punição os atos dos mais crimino-
sos, ludibriando o povo, a quem se prometem garantias43!

O Regime Parlamentar era visto como corrupto, uma simples disputa


egoísta de facções pelo poder político. Para Castilhos, a solução para tal
problema era estabelecer a ordem na forma de um poder centralizado.
Nesse sentido, as ideias de liberdade e a ordem passam a ser consideradas
contraditórias. É nesse sentido que se constrói o editorial de A Federação
sobre a “Constituição do Estado”. Nele, são elencados alguns dos países
representativos do modelo constitucional parlamentar para demonstrar
que, na prática, todos resultam em anarquia. Inglaterra, França, Bélgica,
Itália, Portugal e Estados Unidos são tidos como exemplos onde a incom-
patibilidade entre ordem e liberdade gerou apenas um estado de insegu-
rança que os levaram à pobreza, ao conflito ou ao despotismo.
A excelência de uma instituição deve ser comprovada pela prática;
teoricamente não há instituição má. Encarada sob esse critério, que
triste cópia de si tem dado o constitucionalismo da ponderação de po-
deres! Até hoje tem sido incapaz de resolver coisa alguma e as nações
que o adotaram lutam com as mesmas dificuldades, ainda agravadas,
que tentaram remediar com essa ilusória panacéia! A anarquia lavra
intensa como antes, a autoridade enfraquecida e desarmada não con-
segue às vezes nem garantir a ordem puramente material, os abusos
do regime absoluto continuando, a sociedade apavorada, porque não
enxerga a quem recorrer no meio da desordem crescente. [...] A ex-

43 – A Federação, nº 146, Porto Alegre, p. 01, 25 jun.1891.

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periência dolorosa de tantos povos não lhes basta, ainda decantam


as excelências da cerebrina divisão de poderes que em suas cátedras
doutoralmente qualificam de suprema garantia da ordem e da liberda-
de, enquanto na prática, a disparatada instituição gera conflitos, alenta
a anarquia, disfarça o despotismo, sistematiza o abuso: que fatal ilu-
são44!

Na perspectiva castilhista, os parlamentos são espaços de discussões


estéreis, pautados basicamente por interesses pessoais em detrimento do
interesse público. A partir daí, constrói-se um discurso para estabelecer
que o lugar adequado para a confecção de leis deveria ser o Executivo
que, segundo tal concepção, refletiria as necessidades da administração.
As Assembleias são descritas como espaços improdutivos e de levian-
dades, em que as “as leis são elaboradas no meio da balbúrdia inerente
a esses grêmios” e em que as discussões seriam “perturbadas pelo en-
trecruzamento dos apartes, onde uma mediocridade qualquer, audaz e
bem falante” poderia sobrepujar, em razão de sua oratória, um “pensa-
dor, jurisconsulto ou filósofo, profundo no saber, porém menos habituado
aos torneios tribunícios ou incapaz para eles”45. Com base na crítica ao
modelo constitucional liberal, o discurso castilhista buscava apresentar
suas propostas como algo eminentemente moderno, como resultado das
necessidades de seu tempo. A argumentação baseava-se no entendimento
de que o Executivo era o lugar apropriado para a ação legislativa por
concentrar-se em sua órbita um corpo técnico capaz de elaborar uma le-
gislação adequada às necessidades reais da administração. Uma vez que
o Legislativo é apenas uma função e não um poder, como visto acima,
resta fácil transferir suas funções a um outro órgão, como o Executivo. A
crítica castilhista à separação dos poderes e ao papel do parlamento visa
justificar apenas a função legislativa exercida pelo Executivo:
[...] é incontestável que o mais apto a pôr em prática uma coisa é a
própria pessoa que a concebeu. […] Só na arte política é que se quer
separar irracionalmente duas funções correlatas, privando a quem

44 – A Federação, n° 148, Porto Alegre, p. 01, 27 jun.1891.


45 – A Federação, nº 147, Porto Alegre, p. 01, 26 jun.1891.

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A Constituição Castilhista de 1891 e as origens
do constitucionalismo autoritário na República Brasileira

compete manter a ordem pública da faculdade de conceber os meios


de realizá-la, como são as leis46.

Nessa passagem, Castilhos inverte a lógica do constitucionalismo


liberal, segundo a qual a distinção entre as funções legislativa e executi-
va formam a base da separação dos poderes. No pensamento liberal, de
modo geral, dividem-se tais funções para se garantir a imparcialidade,
ao se negar, como diz John Locke, o poder de alguém ser “juiz em seu
próprio caso”47. Para Castilhos, o seu tempo exigia uma fórmula diferente
pela qual ambos os poderes se concentram em uma pessoa, pois a garantia
da “ordem pública” impõe que o chefe do Executivo tenha os instrumen-
tos aptos para tal, especialmente os legislativos. Para se evitar os conflitos
e a anarquia, a solução constitucional encontrada foi a de concentrar as
funções legislativas e executivas na figura do Presidente. Ironicamente,
foi essa concentração de poderes nas mãos do próprio Castilhos que de-
sencadeou a cruenta guerra civil de 1893-9548.

5 O processo legislativo autoritário


A Constituição Estadual de Castilhos, em seu artigo 46, atribuía à
Assembleia de Representantes basicamente atribuições orçamentárias
consistentes na votação de créditos financeiros e, no exame da aplica-
ção das rendas públicas, bem como proceder à apuração da eleição do
Presidente estadual49. Excluía-se do parlamento a própria função legis-
lativa50. Esse reduzido papel institucional da Assembleia foi uma das
46 – A Federação, nº 145, Porto Alegre, p. 01, 23 jun.1891.
47 – LOCKE, John. Two treatises of government. New York: New American library,
1965, p. 369.
48  –  A Constituição Castilhista estava no centro do embate político regional: “O novo
partido gasparista, com seu ideário de inspiração parlamentarista, entrará, a partir de
1893, em radical oposição com a ordem política republicana castilhista, fundada na Carta
Constitucional de 14 de julho de 1891. O recrudescimento do processo político regional,
provocado pelas posições inconciliáveis de republicanos e federalistas, desembocará na
Revolução de 93”. In: TRINDADE, Helgio; NOLL, Maria Izabel. Subsídios para a histó-
ria do parlamento gaúcho (1890/1937). Porto Alegre: CORAG, 2005, p. 38.
49  –  CONSTITUIÇÃO do Estado do Rio Grande do Sul de 1891..., p. 74.
50  –  Com ligeiras diferenças e adaptações necessárias, a ideia de um “ditador” legisla-
dor, assim como o legislativo reduzido ao controle orçamentário, eleito pelo voto a desco-
berto estão presentes nas Bases de uma Constituição Ditatorial Federativa, uma proposta

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realizações mais polêmicas da Constituição do Rio Grande do Sul. Tal


configuração do Legislativo contrariava a divisão dos poderes adotada
pela Constituição Federal de 1891, embora fosse a base da estrutura de
poder construída por Castilhos. Nos artigos 31º e 32º do texto constitu-
cional, articulam-se as peças fundamentais da engrenagem constitucional
castilhista:
Art. 31 – Ao Presidente do Estado compete a promulgação das leis, [...]
Art. 32 – Antes de promulgar uma lei qualquer, [...] o Presidente fará
publicar com a maior amplitude o respectivo projeto acompanhado de
uma detalhada exposição de motivos. § 1º. O projeto e a exposição se-
rão enviados diretamente aos intendentes municipais, que lhes darão a
possível publicidade nos respectivos municípios. § 2º. Após o decurso
de três meses, contados do dia em que o projeto for publicado na sede
do governo, serão transmitidas ao presidente, pelas autoridades locais,
todas as emendas e observações que foram formuladas por qualquer
cidadão habitante do Estado. § 3º. Examinando cuidadosamente essas
emendas e observações, o presidente manterá inalterável o projeto, ou
modificá-lo-á de acordo com as que julgar procedentes. § 4º. Em am-
bos os casos do § antecedente, será o projeto, mediante promulgação,
convertido em lei do Estado, a qual será revogada, se a maioria dos
conselhos municipais representar contra ela ao presidente51.

Após o final da guerra civil em 1895, Castilhos utilizou esse meca-


nismo constitucional para a consolidação do Partido Republicano gaúcho
no poder do estado. Até o fim de seu mandato, em 1898, foram promul-
gadas as leis de organização judiciária e policial, o Código de Processo
Penal e a Lei Eleitoral, com o polêmico voto a descoberto, dentre outras52.
Tal concentração de poderes foi justificada pela encarnação da virtude
pública no Presidente estadual, único capaz de concretizar o bem comum.
Com isso, uma nova forma de representação foi estabelecida. Para cons-

formulada pelo Apostolado Positivista do Brasil em janeiro de 1890 para a primeira cons-
tituinte da República. Isso demonstra a forte influência do positivismo no pensamento
político castilhista. In: PAIM, Antônio (org.) O apostolado positivista e a República. Bra-
sília: Universidade de Brasília; Câmara dos Deputados, 1981, p. 81.
51  –  CONSTITUIÇÃO do Estado do Rio Grande do Sul de 1891..., p. 71-72.
52  –  FRANCO, Sérgio da Costa. Júlio de Castilhos e sua época..., p. 180-191; RUSSO-
MANO, Victor. História Constitucional do Rio Grande do Sul..., p. 289-305.

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A Constituição Castilhista de 1891 e as origens
do constitucionalismo autoritário na República Brasileira

tituir essa representação, ancorada na mística de um líder virtuoso, foi


necessário estabelecer no texto constitucional um silêncio sobre o modelo
liberal de representação parlamentar. O artigo 1º da Constituição casti-
lhista menciona que o Estado “constituiu-se sob o regime republicano, no
livre exercício da sua autonomia”53, respeitados os limites da Constituição
Federal. No artigo, não há qualquer referência ao conceito de represen-
tação parlamentar. Tal omissão não passou despercebida. Ela foi debati-
da na Constituinte Estadual pelos escassos oposicionistas ao projeto de
Castilhos e prosseguiu nos anos seguintes com a crítica dos liberais e dos
federalistas. O debate ao tempo da Constituinte fundamentava-se em dois
pontos principais. O primeiro apontava a negação do caráter republicano
da Constituição ante a ausência do elemento representativo, uma vez que
o conceito de República estava ligado à ideia de governo popular eletivo.
O segundo, como consequência imediata do primeiro, assinalava a falta
de paralelismo entre a Constituição Estadual e a Federal. A controvérsia
perdurou e isso demonstra, simultaneamente, a constante oposição e a
resiliência do projeto constitucional castilhista, o qual foi objeto de dis-
cussões ao longo de sua existência de cerca de quarenta anos54.

Anos mais tarde, mais de vinte anos após a morte de Castilhos,


Monte Arrais retoma a questão, a ausência da expressão “representação”
na Constituição Estadual não era uma ausência propriamente dita, mas de
uma presença ficta, pois, ao se mencionar a “república”, em seu art. 1º, já
estaria incluída a ideia de representação. Os argumentos mudam e passam
a ter como base o reconhecimento da importância da representatividade
nos modelos constitucionais. O discurso em prol da ditadura ficou restrito
à época de Castilhos. Nesse ponto, a defesa da Constituição Castilhista
adapta seu discurso utilizando-se, inclusive, de argumentos retirados do
modelo liberal:

53  –  CONSTITUIÇÃO do Estado do Rio Grande do Sul de 1891..., p. 63.


54  –  Sobre o debate acerca da “representação” na Constituição Gaúcha de 1891, ver
AXT, Gunter. Constitucionalidade em debate: a polêmica carta estadual de 1891..., p.
305-344; OSÓRIO, Joaquim Luís. Constituição política do Estado do Rio Grande do
Sul..., p. 21-27; RUSSOMANO, Victor. História Constitucional do Rio Grande do Sul...,
p. 198-201 .

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Nesta transfusão de formas, a expressão “representativo” com a significação


que tem no sistema inglês, tornou-se imprópria por insuficiente para designar
a maior amplitude que assumiu, na América, o regime de representação, com
a adoção da forma republicana. E foi em virtude dessa evolução histórica que
a palavra republicano tornou-se nas Américas sucedânea da expressão repre-
sentativo no sentido britânico, e entrou a desempenhar, para exprimir a ori-
gem e organização dos poderes, o mesmo papel que esta última desempenhara
no organismo constitucional inglês. [...] Na América, a palavra “república”
inclui em si o princípio de representação inerente à estrutura política dos seus
governos. [...] Esclarecida assim a verdadeira acepção das palavras “represen-
tativo” e “republicano”, podemos afirmar que o constituinte rio-grandense se
conduziu com maior ciência e consciência, ao formular o art. 1º da sua carta
política, do que o constituinte federal ao redigir o artigo correspondente da
carta constitucional da República55.

Na turbulenta década de 1930, o discurso castilhista se readapta ao


novo contexto de crítica ao liberalismo. Em 1932, Russomano retoma
a defesa do modelo restritivo de representação proposto por Castilhos.
Nesse sentido, rebatia os argumentos de Rui Barbosa56 sobre a caracte-
rística principal da forma republicana, baseada não somente na existên-
cia dos três poderes, mas na obrigatoriedade da eleição popular para o
Legislativo e Executivo. Contra esse raciocínio, Russomano se utiliza do
argumento de Sampaio Dória que afirmava ser a “eleição do Chefe do
Estado pelo povo”57 o que constitui e singulariza o Regime Republicano.
Nesse ponto, Russomano retoma o argumento da unidade de poder. Para
ele, não desnaturava a forma republicana a ausência de uma divisão de
poderes, mas, ao contrário, seria da essência da República a existência de
um governo unificado representado pela figura do Chefe de Estado.

55 – ARRAIS, Raimundo de Monte. O Rio Grande do Sul e as suas Instituições..., p.


27-28.
56  –  Rui Barbosa foi um ferrenho adversário do Castilhismo, atacando-lhe em seus pro-
nunciamentos parlamentares, artigos de polêmica e até atuando na defesa de adversários
políticos de Castilhos no Supremo Tribunal Federal. Assim, ele se referiu à constituição
de Castilhos: “Essa constituição, pois, não é republicana. O que ela organiza não é a Re-
pública, na acepção liberal, democrática, moderna, constitucional da palavra: é a ditadura
de um homem, a perpetuidade de um partido, a imutabilidade de uma situação”. In: BAR-
BOSA, Rui. A Constituição Rio Grandense. In: BARBOSA, Rui. Obras completas. Vol.
XXII (1895), Tomo I (Discursos parlamentares, Trabalhos jurídicos), p. 210. Disponível
em: www.casaruibarbosa.gov.br/rbonline/obrasCompletas.htm. Acesso em: 07.11.18.
57 – RUSSOMANO, Victor. História Constitucional do Rio Grande do Sul..., p. 200.

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A Constituição Castilhista de 1891 e as origens
do constitucionalismo autoritário na República Brasileira

De acordo com o artigo 7º da Constituição, a “suprema direção” do


governo, caberia ao “Presidente” que a “exercerá livremente, conforme o
bem público, interpretado de acordo com as leis”58. A adjetivação estabe-
lecida para dar destaque às prerrogativas do chefe do Executivo revela a
estrutura fundamental da administração estadual: um poder supremo, em
nome do bem público, estabelecido a partir da lei. A gênese desse poder,
portanto, não se assentava, como no Constitucionalismo Liberal, a partir
do povo, da população, da nação ou de qualquer outra fórmula conceitual
que remetesse ao assentimento da maioria dos membros da comunidade
política. A Constituição Castilhista, portanto, não adotou o modelo de
poder soberano que se desenvolveu a partir de uma pressuposta vontade
popular. A fonte e a legitimidade de seu poder provinham de um pro-
cedimento formal, da própria produção das leis que institucionalizavam
uma autorreferida superioridade moral e intelectual de um líder capaz de
estabelecer o bem público. Essa argumentação, ora centrada na figura do
líder, ora na forma de uma elite, com maior ou com menor sofisticação,
será adotada pelo discurso autoritário brasileiro a partir de então, em es-
pecial durante o Estado Novo de Getúlio Vargas59.

A fundamentação da primazia do executivo na própria Constituição


ou lei produzida pelo presidente estabelece uma forma de legitimidade
58  –  CONSTITUIÇÃO do Estado do Rio Grande do Sul de 1891..., p. 64.
59  –  Em dois importantes ideólogos do Estado Novo, encontramos o mesmo argumento
circular de Castilhos onde o poder supremo do Executivo deriva, sobretudo, do arranjo
constitucional, legítimo por si só e com referência indireta ou lateral ao próprio povo.
Francisco Campos, disse que a Constituição de 1937 atendia às “transformações” dos
“ideais” e “instituições democráticas” de “nosso século”, ao conferir “poder supremo ao
presidente da República, coloca-o em contato direto com o povo, não sendo possível
ao presidente descarregar sobre outros órgãos do poder as graves responsabilidades que
a Constituição lhe dá”. In: CAMPOS, Francisco. O Estado nacional... p. 60. Oliveira
Vianna caracterizava o Estado novo varguista como “uma república democrática e repre-
sentativa” com “soberania do povo”. Nesse ponto, o regime varguista não se distinguia
dos regimes republicanos anteriores das Constituições de 1891 e de 1934. O que os dis-
tinguia era a “distribuição da competência privativa dos diversos órgãos da soberania,
coube ao Chefe da Nação um poder maior do que o que lhe era dado pelas Constituições
precedentes”. In: OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. O idealismo da constituição.
2ª ed. aumentada. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939, p. 121. Disponível em:
www.brasiliana.com.br/obras/o-idealismo-da-constituicao/preambulo/7/texto. Acesso
em: 17.10.18.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):153-186, set./dez. 2019. 177


Argemiro Cardoso Moreira Martins
Francisco Rogério Madeira Pinto

positivista. Não no sentido do positivismo filosófico de Comte, mas no


sentido do positivismo jurídico próprio do século XX. Nele, se estabelece
um tipo de legitimidade que se assenta não diretamente na vontade po-
pular, mas que se legitima por qualidades formais próprias, estabelecidas
por meio de um procedimento institucionalizado juridicamente60. No caso
castilhista, essa legitimação positivista se estruturava de forma circular ao
atribuir a formulação das leis à figura do Presidente. O percurso legisla-
tivo partia dele, seguia para as esferas consultivas municipais e retornava
para o próprio Presidente.

Como visto acima, Castilhos estabeleceu um processo sui generis de


criação de leis. Cabia ao Presidente do Estado a prerrogativa de elabora-
ção dos projetos de leis, excluída qualquer participação da Assembleia
dos representantes, segundo os citados artigos 31 e 32 da Constituição
Estadual. Os projetos de lei eram enviados diretamente aos intendentes
municipais, os quais eram responsáveis por recolher, durante três meses,
possíveis propostas dos cidadãos ao projeto. Ao chegar à esfera munici-
pal, o projeto encontrava um ambiente que lhe era amplamente favorável,
dada à manipulação que o governo do Estado exercia sobre as eleições
dos intendentes e dos conselhos municipais61. Não havia propriamente
uma análise das propostas enviadas pelo Presidente, sendo-lhes vedada
qualquer prerrogativa para suprimir qualquer artigo relativo aos proje-
tos de lei. Cabia à municipalidade apenas propor emendas ou observa-
ções aos projetos. Ao retornarem ao Presidente, ficava a cargo de sua
discricionariedade a aceitação ou não das propostas lançadas pelos ci-

60  –  Para Habermas, foi Max Weber quem introduziu um “conceito positivista do di-
reito, segundo o qual direito é aquilo que o legislador, democraticamente legitimado ou
não, estabelece como direito, seguindo um processo institucionalizado juridicamente”. In:
HABERMAS, Jürgen. Direito e moral (Tanner Lectures 1986) In: HABERMAS, Jürgen.
Direito e democracia: entre a facticidade e validade. v.2. Tradução de Fábio Beno Siebe-
neichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 193.
61  –  Sobre a fraude eleitoral no Rio Grande do Sul da República velha, ver AXT, Gun-
ther. Votar por quê? Ideologia autoritária, eleições e justiça no Rio Grande do Sul Bor-
gista. Revista Justiça & História, Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do RS, v.
1, nº 1 e 2, 2001, 31 p. Disponível em: www.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/historia/
memorial_do_poder_judiciario/memorial_judiciario_gaucho/revista_justica_e_historia/
issn_1676-5834/v1n1_2/doc/06._Gunter_Axt.pdf. Acesso em: 26.09.18.

178 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):153-186, set./dez. 2019.


A Constituição Castilhista de 1891 e as origens
do constitucionalismo autoritário na República Brasileira

dadãos. Passado o prazo para apresentação das propostas e do exame do


Presidente, o projeto era convertido em lei62.

Com esse processo, Castilhos buscava garantir racionalidade a um


processo legislativo estruturado sobre bases representativas extremamen-
te limitadas. Ao transferir para o ente municipal a possibilidade de algu-
ma margem de apreciação de seus projetos de lei e não a uma Assembleia
Legislativa estadual que lhe fosse comparada em estatura, Castilhos esta-
va apenas garantindo a publicidade de seus projetos legais. Desse modo,
suas propostas não ficariam sujeitas a qualquer tipo de interferência que
não dele próprio. Por esta razão, não se poderia falar em um dito caráter
plebiscitário do processo legislativo, dado que não se abria, sequer, a pos-
sibilidade de uma resposta negativa à consulta popular63. O projeto cons-
titucional de Castilhos não apresentava brechas que pudessem oferecer
aberturas em seus flancos institucionais. Nele, o líder, como corpo moral,
é a fonte do direito e circularmente se legitima por meio deste. E este se
constitui na forma de projetos de lei que circulam em meios consultivos
de reduzida capacidade de modificação e que retornam para o Presidente
juridicizar as propostas. Estabelecem-se, por esse mecanismo circular de
produção legal, duas exigências do Direito moderno: um procedimento
burocrático para a produção de leis e um mínimo de representação.

A Lei de Organização Judiciária, de 16 de dezembro de 1895, foi


a primeira aprovada por Castilhos nos termos de sua Constituição. No
dia seguinte, A Federação saudou a “primeira experimentação do sábio
processo constitucional para decretação das leis”. O texto, assinado por
Evaristo do Amaral, afirmava que o “povo rio-grandense, armado da fa-
culdade constitucional [...] enviou grande número de emendas”64. No en-
tanto, foram apresentadas 76 emendas pelos cidadãos gaúchos, das quais

62  –  CONSTITUIÇÃO do Estado do Rio Grande do Sul de 1891..., p. 71-72.


63  –  Embora a Constituição Castilhista ressalvasse, em seu art. 32, § 4, que a lei proposta
pelo presidente pudesse ser “revogada” caso a “maioria dos conselhos municipais” assim
o requeressem ao próprio chefe do Estado. A circularidade do processo legislativo auto-
crático é evidente e tornava esse mecanismo ocioso. CONSTITUIÇÃO do Estado do Rio
Grande do Sul de 1891..., p. 72.
64 – A Federação, nº 295, Porto Alegre, p. 1, 17 dez.1895.

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Argemiro Cardoso Moreira Martins
Francisco Rogério Madeira Pinto

apenas 06 foram acatadas pelo presidente Júlio de Castilhos. Além dis-


so, o número de proponentes era bem reduzido. Apenas um advogado de
Porto Alegre apresentou 28 propostas, um juiz de São Gabriel apresentou
13, duas comissões de advogados de Pelotas enviaram 10, dentre outras.
As justificativas do Presidente na apreciação das emendas dos cidadãos
eram, na maioria das vezes, lacônicas, apenas algumas propostas mere-
ceram uma resposta mais detida. Castilhos substituiu as discussões par-
lamentares por um procedimento burocrático sem debates, um pedido es-
crito sujeito à discricionariedade do Presidente, que o julgava no silêncio
de seu gabinete, longe do burburinho das assembleias representativas. Os
escassos cidadãos que propunham alguma coisa obtinham uma respos-
ta do presidente publicada no jornal A Federação, que passou a funcio-
nar como uma espécie de Diário Oficial da ditadura castilhista65. Nesse
contexto, justifica-se a crítica de Assis Brasil, para quem a Constituição
Estadual “é um código de ditadura política, vestido com aparências de
democracia exagerada, e nada mais”66. Assis Brasil parece se referir ao
caráter plebiscitário das leis castilhistas, o qual não passava de mera apa-
rência67.

Como foi visto acima, o discurso castilhista buscava afastar-se da


ideia de um governo tirânico, no sentido de reduzir o arbítrio do gover-
nante. Assinalava, nesse sentido, que suas decisões sofriam limitações, de
um lado, a restrição orçamentária da Assembleia de Representantes e, de
outro lado, a opinião pública. Segundo o jornal A Federação:

65 – A Federação, nº 294, Porto Alegre pp. 01-04, 16 dez.1895.


66 – ASSIS BRASIL, Joaquim Francisco. Ditadura, parlamentarismo, democracia...,
p.280.
67  –  Ricardo Véllez Rodríguez, embora reconheça o caráter autoritário do regime de
Castilhos, parece endossar a ideia de uma ditadura plebiscitária: “A valorização da consul-
ta popular a nível municipal, ao mesmo em que se desconhecia o papel da Assembléia dos
Representantes, mostra o peso que possuía para os castilhistas o conceito de democracia
não-representativa, muito adequado, como demonstrou a história rio-grandense durante
quatro décadas, ao exercício autoritário do poder.”. In: RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez.
Castilhismo: uma filosofia da república..., p. 139. Considerando o primeiro experimento
legal de Castilhos, não existiu propriamente uma “consulta popular”, mas apenas um si-
mulacro.

180 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):153-186, set./dez. 2019.


A Constituição Castilhista de 1891 e as origens
do constitucionalismo autoritário na República Brasileira

Por um lado, o poder limita-se, negando-se-lhe o arbítrio na aplicação


dos dinheiros públicos, não podendo gastar-se nem um ceitil sem per-
missão legal ou fora das verbas do orçamento; por outro lado, o poder
limita-se ainda, restringindo-se a faculdade de decretar os preceitos
que regulam a existência social, de jeito a impedir-se a menor tirania,
o estabelecimento de leis retrógadas ou em desarmonia com o pensa-
mento geral: fecham-se as duas únicas portas ao despotismo; é o ad-
vento do único governo possível dentro de tais condições, o governo
de opinião e do bem público68.

Tal discurso buscou justificar as inovações constitucionais com vistas


a fortalecer o Executivo e esvaziar o poder representativo do Legislativo
local. A Constituição formal se apresentava como uma garantia legalis-
ta para um manejo autoritário do Estado. Utilizando-se de uma fórmula
jurídica, afirmava-se que a centralização do poder contido no texto não
significaria uma execução arbitrária de poder, pois, na Constituição, es-
taria o essencial para o afastamento de um poder tirânico: a existência de
instrumentos institucionais de limitação de poderes, apesar de fortemente
controlados pelo próprio presidente e seu partido.

Por trás do autoritarismo, existia um argumento justificador: somen-


te o Presidente reunia as condições morais necessárias para gerir o bem
público. Tal moralidade é expressão de uma virtude pessoal do chefe de
Estado, sua capacidade intelectual e, sobretudo, o desinteresse pelo en-
riquecimento pessoal. Por reunir tais virtudes, o líder político é capaz de
estabelecer a representação dos valores públicos de determinada comuni-
dade69. Castilhos, bem como seu sucessor Borges de Medeiros, apresen-
tavam-se como detentores da virtude pessoal que os qualificavam para a
Presidência do Estado. Isso foi reconhecido até por seus adversários mais
ferrenhos, como Wenceslau Escobar, que, assim, se referiu ao próprio
Castilhos:
Apesar de deslustrar seu governo com uma orgia de crueldades, vio-
lências contra a liberdade e uma organização reacionária, além de ou-

68 – A Federação, nº 147, Porto Alegre, p. 01, 26 jun.1891.


69  –  Sobre a virtude e o bem público do castilhismo, ver RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez.
Castilhismo: uma filosofia da república..., p. 115-120.

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Francisco Rogério Madeira Pinto

tros senões de importância secundária, foi um administrador honesto,


[...] Ao findar o seu governo deixou o Tesouro do Estado com um
saldo de cinco a seis mil contos70.

Castilhos propunha que um arranjo político-constitucional autoritá-


rio seria capaz de estabelecer um “regime da virtude”. Nesse conserto, o
bem público seria alcançável por um líder virtuoso que, por intermédio de
um Estado forte, estabeleceria a sua completa reorganização político-ad-
ministrativa e promoveria a educação cívica moralizadora da população.
O progresso moral e intelectual seria alcançado por meio de uma ordem
ditatorial. A Federação assim expressou esse ponto de vista:
Já o dissemos e não nos cansaremos de repeti-lo: a plena regulariza-
ção da vida pública, como da privada, só é possível, com uma inteira
regeneração dos costumes, mediante uma educação nova, abraçan-
do todos os aspectos da vida humana. Só esta operação fundamental
trará a harmonia social que todos desejamos. Para isto é preciso que
exista um poder independente, que instrua e governe as consciências,
convencendo; para isto é preciso que uma cultura moral mais intensa
permita a intervenção do poder que apela e convida amavelmente, que
modifica a nossa conduta, que nos arrasta a proceder bem, movendo
os nossos bons sentimentos em favor daquilo que quer fazer vingar71.

É nesse esteio moral articulado a uma concepção de bem público que


Castilhos buscou estabelecer o primeiro fundamento de sua legitimidade.
Seria a virtude, mais do que a escolha pela eleição, que o habilitaria a go-
vernar de maneira quase imperial. Nas palavras da Constituição Estadual,
em seu já aludido artigo 7º: “A suprema direção governamental e admi-
nistrativa do Estado compete ao Presidente, que a exercerá livremente,
conforme o bem público, interpretado de acordo com as leis”72.

70 – ESCOBAR, Wenceslau. 30 anos de dictadura Rio-Grandense. Rio de Janeiro: Can-


ton & Beyer, 1922, p. 84.
71 – A Federação, nº 146, Porto Alegre, p. 1, 25 jun.1891.
72  –  CONSTITUIÇÃO do Estado do Rio Grande do Sul de 1891..., p. 64.

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A Constituição Castilhista de 1891 e as origens
do constitucionalismo autoritário na República Brasileira

6 Considerações Finais: o fechamento constitucional


A Constituição criada por Júlio de Castilhos, em 1891, para o estado
do Rio Grande do Sul apresenta-se como um instrumento institucional de
grande originalidade. Ela não foi precursora apenas de ideias, mas fun-
damentalmente de práticas antiliberais que ganhariam maior visibilidade
e concreção somente a partir da década de 1920 e que a alcançariam seu
auge no país durante a década de 1930. Poder-se-ia dizer que Castilhos
foi um antiliberal avant la lettre. Críticas ao liberalismo podem ser iden-
tificadas desde meados do século XIX. No entanto, a desaprovação ao
modelo era essencialmente de ordem econômica, relativa aos riscos que
gerava para toda a sociedade a autorregulação do mercado e a valorização
do individualismo como princípio social73.

A partir de uma leitura singular do pensamento de Auguste Comte,


voltada não às questões teórico-intelectuais da obra do pensador fran-
cês, e sim direcionada à solução dos problemas concretos que lhe foram
lançados com a autonomia do estado do Rio Grande do Sul após a pro-
clamação da República, Castilhos inovou ao estabelecer uma crítica ao
liberalismo não como sistema econômico, mas como sistema político. Ele
propõe uma reorganização institucional que superava o modelo liberal,
antes mesmo de essa ideia ganhar força na Europa. E isso na virada do
século XIX, quando liberalismo político estava no seu auge.

Por intermédio da Constituição do Rio Grande do Sul de 1891, direi-


to e política foram articulados de modo a formar uma concepção jurídica
que se afastava do paradigma liberal de organização do Estado e estabele-
cia as origens de uma modelagem autoritária para as instituições estatais
estruturadas nas seguintes práticas: hipertrofia do Executivo, retirada ou
limitação da função legislativa dos Parlamentos, diminuição, ou mesmo
negação, da representação política, fechamento institucional às oposições
ou aceitação de oposicionismo limitado, articulação de um discurso mo-

73  –  IAZZETTA, Osvaldo. Liberdade e regulação em uma sociedade de mercado: se-


melhanças de família em Durkheim e Polanyi. In: LIMONCIC, Flávio; MARTINHO,
Francisco Carlos Palomanes (Orgs.). Intelectuais do antiliberalismo: alternativa à moder-
nidade capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 13-47.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):153-186, set./dez. 2019. 183


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Francisco Rogério Madeira Pinto

ralizante e moralizador como forma de legitimação do ditador e o estabe-


lecimento de um processo legislativo autocrático.

Todos esses arranjos se encontram nos artigos que compõem a


Constituição Estadual. Os artigos 6º e 7º são a base desse sistema jurí-
dico que buscou transformar a linguagem constitucional, repudiando a
teoria da divisão de poderes de matriz liberal em prol da concentração
do poder político. Agiu-se de forma estratégica, primeiro construindo-se
uma nova gramática constitucional pautada na ideia de unidade para, com
isso, mudar as instituições governamentais. Aqui, a linguagem viria junto
da ação ao estabelecer um novo vocabulário político, constituído com a
ressignificação de conceitos já conhecidos, como ditadura, despotismo,
separação dos poderes e representação política. Verifica-se, no discurso
castilhista, a estratégia de proceder deslocamentos conceituais ao se “tor-
cer significados”, “alterar vocabulários” e “fazer associações incomuns
e se utilizar de artimanhas argumentativas” para tentar estabelecer uma
linguagem própria74.

O resultado mais claro do projeto castilhista foi a juridicização do


discurso político. Como assinala Pocock, ao tratar dos diversos contextos
linguísticos que a história política pode oferecer: “Algumas são lingua-
gens da prática profissional, que, por alguma razão, entraram na lingua-
gem da política e se tornaram idiomas nos quais o discurso político é co-
mumente realizado”75. A concepção castilhista incorpora o idioma jurídi-
co no seu discurso político de legitimação ao se apropriar, de forma muito
particular, da doutrina de Comte e adaptá-la aos seus objetivos políticos
por meio da positivação jurídica. Nesse sentido, procede a articulação de
duas versões de positivismo, o de matriz comteana e o jurídico. Esse últi-
mo foi traduzido por meio de um processo formalizado de produção das

74  –  JASMIN, Marcelo Gantus; FERES JÚNIOR, João. História dos conceitos: dois
momentos de um encontro intelectual. In: JASMIN, Marcelo Gantus; FERES JÚNIOR,
João. (Orgs.). História dos Conceitos: debates e perspectivas. Rio de Janeiro: Loyola;
PUC-Rio; IUPERJ, 2006, p. 21.
75  –  POCOCK, J. G. A. O conceito de linguagem e o métier d´historien: algumas consi-
derações sobre a prática. In: POCOCK, J. G. A. Linguagens do ideário político. Tradução
Fábio Fernandez. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2003, p. 63-82, p. 70.

184 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):153-186, set./dez. 2019.


A Constituição Castilhista de 1891 e as origens
do constitucionalismo autoritário na República Brasileira

leis como meio para garantir uma legitimidade circular e autorreferente:


o presidente autocrático é legítimo porque o direito por ele criado assim
o diz. Além disso, o discurso legitimador castilhista distorce a ideia de
representação liberal, em prol da imagem do Presidente como personi-
ficação da virtude pública. Em síntese, Castilhos constrói o fundamen-
to do constitucionalismo autoritário por meio da junção do formalismo
jurídico-normativo articulado a um discurso moralizador.

No entanto, tal discurso encobria o fechamento institucional estabe-


lecido pela própria Constituição com o intuito de não permitir qualquer
abertura que pudesse ameaçar o poder do Executivo. Para tanto, o projeto
institucional castilhista estabeleceu dois mecanismos. O primeiro foi o
esvaziamento do Poder Legislativo por meio da subtração da própria fun-
ção de elaborar as leis. O segundo foi o deslocamento da representação
política para o Presidente, fundada na virtude pessoal e no trato rigoroso
do bem público. Em tudo, foi contrastante à noção liberal de represen-
tação, centrada nos debates parlamentares e na separação dos poderes.
Trata-se, portanto, de um pensamento político marcadamente antiliberal,
vitorioso em suas propostas autoritárias provinciais; e que foi inspirador
para as práticas autoritárias que o país, como um todo, vivenciaria a partir
de 1930.

Texto apresentado em fevereiro de 2019. Aprovado para publicação


em setembro de 2019.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):153-186, set./dez. 2019. 185


O organizador e o planejador: Maurício Nabuco,
Roberto Campos e a transformação da diplomacia brasileira no século XX

187

O ORGANIZADOR E O PLANEJADOR: MAURÍCIO


NABUCO, ROBERTO CAMPOS E A TRANSFORMAÇÃO DA
DIPLOMACIA BRASILEIRA NO SÉCULO XX
THE ORGANIZER AND THE PLANNER: MAURÍCIO NABUCO,
ROBERTO CAMPOS AND THE RESHAPING OF BRAZILIAN
DIPLOMACY IN THE 20TH CENTURY
Rogério de Souza Farias1
Resumo: Abstract:
Este artigo apresenta uma comparação das traje- This article compares the professional and
tórias profissionais e do pensamento de Maurí- intellectual trajectories of Maurício Nabuco e
cio Nabuco e de Roberto Campos como forma of Roberto Campos in order to understand some
de compreender alguns aspectos da evolução da aspects of the evolution of Brazilian diplomacy
diplomacia brasileira no século XX. in the 20th Century.
Palavras-chave: Política Externa Brasileira; Keywords: Brazilian foreign policy, Diplomacy,
Diplomacia; Século XX. 20th century.

A política externa brasileira e a organização do serviço exterior do


país passaram por grandes transformações no século passado. O obje-
tivo deste artigo é comparar dois diplomatas – Maurício Nabuco e
Roberto Campos – como maneira de examinar algumas dessas mudan-
ças. Considera-se que, pelo fato de a literatura geralmente privilegiar a
análise de governos específicos ou de regimes políticos, existem naturais
limitações para compreender transformações que se processam de forma
mais lenta. A comparação dessas duas personalidades permite, dessa ma-
neira, maior transversalidade no exame da trajetória da diplomacia como
profissão e dos desafios da inserção internacional do país.

A escolha por esses diplomatas deve ser justificada. Do ponto de vis-


ta cronológico, Maurício Nabuco nasceu no final do século XIX e iniciou
sua carreira um ano após a morte do barão do Rio Branco. Poderia, assim,
em um primeiro momento, ser apresentado como diplomata da antiga es-
cola, representante da cultura dos salões do estertor da era vitoriana de

1  –  Pesquisador do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais da Fundação Ale-


xandre de Gusmão e Pesquisador associado ao Instituto de Relações Internacionais da
Universidade de Brasília. E-mail: [email protected].

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):187-218, set./dez. 2019. 187


Rogério de Souza Farias

fin de siècle. Atuou no Itamaraty até 1951, mas permaneceu sendo refe-
rência na área diplomática até a sua morte, em 1985. Roberto Campos
acedeu ao órgão em 1939, em um dos primeiros concursos promovidos
pelo Departamento Administrativo do Serviço Público, e se desligou, ofi-
cialmente, na década de 1980, falecendo em 2001. A vida funcional e a
atuação pública dos dois abrangem, em linhas gerais, quase todo o século
XX. Fator, igualmente, relevante é a disponibilidade de fontes. Os dois,
ademais, redigiram livros de memórias e deixaram acervo relevante de
pronunciamentos públicos, de correspondências e de textos publicados
em jornais e em revistas.

Ainda que tenham trajetórias predominantemente atípicas, afinal,


Nabuco teve ascensão meteórica e chegou a ocupar o cargo de Secretário-
Geral, enquanto Campos passou grande parte da carreira afastado do ór-
gão, há elementos que os tornam pertinentes como janelas de observação;
este estudo apresenta alguns desses paralelismos e dessas divergências.
Primeiro, indicamos como a formação, a entrada na carreira e as primeiras
atividades dos dois exemplificam as mudanças na forma de recrutamento
e na expansão dos serviços de apoio da burocracia diplomática. Segundo,
indicamos como os dois lidaram de forma distinta com a evolução do
tema econômico na diplomacia. Terceiro, os dois conceberam planos de
reforma arrojados para o Itamaraty, com Nabuco obtendo mais sucesso
do que Campos. Quarto, o exame das respectivas gestões em Washington
elucida como mudou a relação entre a Secretaria de Estado, no Brasil, e
os postos no exterior após a Segunda Guerra Mundial. A parte final lida
com as críticas à política econômica e à política externa formulada a par-
tir do governo Jânio Quadros. Constituem, nesse último caso, um grupo
minoritário que adotou o “liberalismo diplomático” como proposta de
inserção internacional do país.

Origens incomuns? Londres e Cuiabá


A primeira diferença entre Nabuco e Campos estava no berço. O pri-
meiro, do lado paterno, era neto de um dos grandes senadores do Império
e filho do político, abolicionista e diplomata Joaquim Nabuco; do lado

188 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):187-218, set./dez. 2019.


O organizador e o planejador: Maurício Nabuco,
Roberto Campos e a transformação da diplomacia brasileira no século XX

materno, descendia do latifundiário José Antonio Soares Ribeiro, barão


de Inoã. Ele nasceu em Londres e acompanhou a vida jornalística e diplo-
mática de seu pai. Residiu, depois, em Washington, quando passava o na-
tal com os Roosevelts e tinha contato com as grandes figuras da diploma-
cia da época. Teve seu primeiro aprendizado sobre a diplomacia brasileira
em sua residência, frequentada por figuras como Oliveira Lima, Domício
da Gama e Graça Aranha. Fez estudos preparativos para Harvard, mas
acabou iniciando seu ensino universitário na Universidade de Bonn, na
Alemanha, interrompido com a morte de seu pai. Com dezenove anos
incompletos, estabeleceu-se no Brasil, em Petrópolis, na avenida Koeler.

Roberto Campos, por sua vez, nasceu no “Beco do Meio”, em


Cuiabá, em abril de 1917, filho de um simples professor, falecido quan-
do tinha apenas cinco anos. O futuro diplomata passou a infância em
Nhecolândia, no Pantanal, e no interior de São Paulo. Sua mãe fora cos-
tureira e governanta, abrindo, posteriormente, uma academia de corte e
costura em Guaxupé, no interior de Minas Gerais. Foi nessa época que
Campos iniciou seu internato em um seminário, tornando-se excelente
latinista. Nesse estágio de sua vida, esteve longe de políticos e de figuras
nacionais. Tanto Campos como Nabuco atuaram profissionalmente em
outras áreas antes de entrar no serviço público. Nabuco trabalhara em
uma fábrica de juta em São Paulo, enquanto Roberto Campos atuou como
professor. A rota para a carreira diplomática, contudo, guarda diferenças
significativas, que ilustram a mudança geracional ocorrida nas duas déca-
das e meias entre as posses de cada um2.

A primeira questão a ser levada em conta é a origem dos servidores.


O local de nascimento de Campos pode, à primeira vista, ser considerado
pouco usual, mas a comparação dos que trabalharam no órgão em 1913,
1939 e 1982 indica que, nos primeiros dois momentos, o Itamaraty era re-
gionalmente mais diverso3. Isso pode ser visto pela proporção de pessoas
2 – Todas as informações foram retiradas das memórias. Ver CAMPOS, Roberto de Oli-
veira. A lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994; NABUCO, Maurí-
cio. Reflexões e reminiscências. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
3 – As duas primeiras datas refletem as datas e a posse de Nabuco e de Campos. A última
representa o ano oficial de desligamento de Campos do Itamaraty.

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nascidas no Rio de Janeiro – respectivamente 40,37%, 40,98% e 49,30%.


A explicação para a diferença, no último ano, está no método de recru-
tamento. Em 1913, o Itamaraty tinha 188 servidores efetivos divididos
em três carreiras: diplomática, consular e Secretaria de Estado. Desses,
só 13 (6,9%) haviam passado por algum tipo de seleção, de concurso ou
de habilitação. A forma de acesso mais comum era o “pistolão”, a rede
de patronagem ligada à satisfação de interesses políticos da cúpula do
Estado. Isso significou atender predominantemente membros do sistema
político, particularmente presidentes, deputados e senadores – a maioria
oriunda de estados mais distantes da federação. A definição do concur-
so de provas como único meio de acessão levaria a uma concentração
do sudeste – convém lembrar que 4,97% dos servidores, em 1913, eram
baianos, enquanto só 1,65% de 1982 nasceram nesse estado4.

A despeito de o concurso não ser a regra em 1913, em alguns ca-


sos, existiu um filtro anterior à posse — 99 (34%) só foram efetivados
nas carreiras após passarem por algum tipo de aprendizado preparatório
em posições precárias: na carreira diplomática, como adidos de legação;
na carreira consular, como vice-cônsules e auxiliares de consulado; na
Secretaria de Estado, como amanuenses, praticantes ou adidos. A media-
na de tempo entre a nomeação para essas posições e a posse definitiva
em um cargo de carreira foi de três anos. Essas atividades preliminares
serviam como estágio. Muitos eram eliminados antes da posse em cargo
efetivo; para os poderosos, contudo, foi artifício para “colocar um pé”
dentro do órgão até a abertura de uma vaga efetiva. O filho do presidente
José Linhares (1945), por exemplo, foi nomeado como arquivista interino
em 9 de outubro de 1945, sendo efetivado na carreira diplomática em 26
de dezembro do mesmo ano. Maurício Nabuco entrou no órgão por essa
via. Nomeado em 16 de maio de 1913 como adido à Secretaria, em 4 de
junho de 1914, foi efetivado como terceiro oficial.

Em 1939, ano da entrada de Campos no órgão, o Itamaraty já con-


tava com 328 servidores em uma única carreira, após um processo de
4 – Esses dados e os subsequentes foram levantados utilizando os relatórios anuais e os
anuários de pessoal publicados pelo Ministério das Relações Exteriores.

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O organizador e o planejador: Maurício Nabuco,
Roberto Campos e a transformação da diplomacia brasileira no século XX

fusão dos quadros que se processou em duas fases (em 1931 e em 1938).
A mudança mais significativa foi no número dos que acederam ao órgão
por intermédio de concurso ou de prova de habilitação: 72 (21,95% do
total). Isso fez toda a diferença para Roberto Campos. Quando chegou ao
Rio de Janeiro, contava só com uma carta de apresentação de um paren-
te para o político Filinto Muller, chefe do Departamento de Imprensa e
Propaganda, que recebia dezenas de cartas semelhantes de conterrâneos
do Mato Grosso5. Não era suficiente nem para um cargo de extranume-
rário. Sua experiência acadêmica naquele momento era nula, bem como
sua vivência no jornalismo – duas potenciais rotas de acesso ao Itamaraty.
Nem sua apresentação física era adequada. Gilberto Amado, que o conhe-
ceu anos depois, disse: “Eu achava que ele não tinha muito futuro, pois
usava roupa preta com sapatos amarelos”6. Foi, desse modo, o concurso
que lhe abriu as portas para seu brilhante futuro profissional. E isso, como
veremos, foi produto direto das ações de Maurício Nabuco. No ano da
aposentadoria de Campos, em 1982, só quatro diplomatas da ativa não
haviam acedido por concurso.

No momento da posse, tanto Nabuco como Campos faziam parte do


grupo de mais de um terço de servidores sem ensino superior. Isso, con-
tudo, não quer dizer que não apreciassem os grandes cânones da época.
Maurício Nabuco leu o livro The Principles of Scientific Management, de
Frederick Winslow Taylor, o qual o influenciou na forma de compreender
a administração pública7. Roberto Campos, em suas memórias, indica a
influência do clássico da Adam Smith, An inquiry into the nature and
causes of the wealth of nations8. As duas obras são ilustrativas dos in-
teresses distintos desses dois diplomatas. Nabuco preocupava-se com a
organização do Estado com uma visão tayloriana de meios e não de fins,
de eficiência e não de uma orientação global da qual se derivasse uma vi-
são estratégica; Campos seguiu uma via diversa, preocupando-se menos
com o “como” da ação estatal e mais com o “por que” e “para qual fim”,
5 – CAMPOS. A lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994, p. 28-29.
6 – Conversa afiada. O Cruzeiro. 17 de outubro de 1964.
7 – NABUCO. Reflexões e reminiscências. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 91.
8 – CAMPOS. A lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994, p. 1265.

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particularmente no que julgava o desafio central da sociedade brasileira


no século xx: a superação da pobreza e da desigualdade.

Início burocrático
O início da carreira dos dois diplomatas guarda algumas similari-
dades. Ambos desempenharam atividades entediantes. Nabuco, como
falava alemão, cuidava das cartas que o ministério recebia no idioma,
traduzindo-as e as resumindo9. Roberto Campos foi lotado na Divisão de
Material10. A diferença era que, no estertor da Belle Époque, o jovem ser-
vidor precisava, inevitavelmente, exercer atividades mundanas. Nas dé-
cadas de 1920 e 1930, houve uma explosão de contratação de cartógrafos,
arquivistas, bibliotecários, datilógrafos, calígrafos, contínuos, serventes,
redatores, contabilistas e outros profissionais. Foi só com a expansão dos
servidores de apoio que os jovens terceiros cônsules e secretários (a base
da carreira consular e diplomática) foram liberados do tédio administra-
tivo para atuar predominantemente como assessores das chefias em ativi-
dades mais analíticas.

O período em que Campos entrou no órgão foi de transição, em que


os recém-empossados servidores da carreira diplomática eram todos no-
meados para a área administrativa como primeira lotação não por neces-
sidade, mas em decorrência da diretriz de Oswaldo Aranha, o ministro
das Relações Exteriores, de início, terem o aprendizado da cozinha do
órgão. Após a década de 1950, essa realidade mudou significativamente.
A primeira lotação começou a ser feita para todos as áreas do órgão, com
a preferência para os mais bem colocados do Instituto Rio Branco. Isso
gerou experiência de formação diversa em cada turma – alguns já atuando
no gabinete do ministro, enquanto outros lotados em áreas periféricas.

9 – NABUCO, Maurício. Algumas reflexões sobre diplomacia. Rio de Janeiro: Irmãos


Pongetti Editores, 1955, p. 31; MAIA, Jorge. Um decênio de política externa. Rio de
Janeiro: Departamento de Imprensa e Propaganda, 1940, p. 106.
10 – CAMPOS. A lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994, p. 33
e 43.

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Roberto Campos e a transformação da diplomacia brasileira no século XX

Deve-se indicar que, mesmo no início de carreira, havia diferen-


ças. Enquanto o mato-grossense era ridicularizado pelo provincianismo,
Maurício Nabuco já era conhecido como jovem homem do mundo. Foi
escolhido pelo ministro Lauro Müller para assessorá-lo em sua viagem
oficial aos Estados Unidos em maio de 1913. Com cerca de cinco anos
no órgão, todavia, os dois estiveram “presentes na criação”, para usar o
termo de Dean Acheson11. Maurício Nabuco, então com 21 anos, foi des-
tacado para secretariar a delegação que participou da Conferência de Paz
de 1919. Ela contava com o futuro presidente Epitácio Pessoa e persona-
lidades como Raul Fernandes, Rodrigo Otávio, Armando Burlamaqui e
o general Malan d’Angrogne. O grupo era assessorado por Fernando de
Souza Dantas, Hélio Lobo, Francisco Pessoa de Queiroz, Hildebrando
Accioly e Joaquim Moniz de Aragão. Segundo familiares de Nabuco,
Calógeras escreveu ao Rio de Janeiro, afirmando que Maurício “valia por
todos os secretários reunidos”12. Após a Conferência, o diplomata acom-
panhou Epitácio Pessoa, passando por Itália, por Inglaterra e por Estados
Unidos. Já Roberto Campos esteve na Conferência de Bretton Woods
(1944), que criou o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. O
evento contou com a presença de John Maynard Keynes, um dos maiores
economistas do século XX, e lançou a arquitetura institucional que, até
hoje, sustenta a economia global. Na ocasião, o jovem diplomata de 27
anos privou da companhia de Valentim Bouças, Arthur de Souza Costa,
Eugênio Gudin e Octávio Gouvêa de Bulhões.

Foi distinta a maneira pela qual os dois diplomatas aproveitaram as


respectivas experiências. Nabuco, envolvido em atividades administrati-
vas da delegação, não teve aprendizado sobre a substância da Conferência
e tampouco foi ativo em temas relacionados à Liga das Nações – o Brasil,
alguns anos depois, abandonou a organização. Ademais, desgastou-se
com Epitácio Pessoa após o presidente ter dado o prometido cargo de
assessor na Presidência da República a um parente. Campos, por sua vez,
11 – ACHESON, Dean. Present at the creation: my years in the State Department. New
York: Norton, 1969.
12 – De Evelina para Maurício Nabuco. Petrópolis, 6 de abril de 1919. Recebido família.
1904-20. CPDOC/AMN.

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interessou-se pelos temas da Conferência, atuando nas próximas décadas


exatamente na diplomacia econômica. Os relacionamentos, que fez, fo-
ram de grande utilidade para seu futuro profissional. Valentim Bouças,
parceiro de golfe de Getúlio Vargas, ajudou em suas promoções na déca-
da de 1950, enquanto Gouvêa de Bulhões foi permanente patrocinador a
cargos de responsabilidade na tecnocracia governamental.

A “nova” diplomacia
As diferenças entre Roberto Campos e Maurício Nabuco são ainda
maiores quando examinamos o que cada um deles pensava sobre o pa-
pel do diplomata brasileiro. Nabuco, para iniciar, não acreditava que a
formação diplomática era a mais apropriada para “alargar o espírito” em
decorrência da alta probabilidade de seus membros serem sequestrados
pelo “brilho da alta investidura, a representação pecuniária vantajosa, as
instalações principescas”, despertando a vaidade e acanhando o espírito.
Para ele, era o político o tipo perfeito para atuar na condução da diploma-
cia, inclusive como ministro das Relações Exteriores13.

Mesmo reconhecendo a emergência da “nova diplomacia” pela área


econômica, Nabuco argumentou ser o comércio um tipo de diplomacia
“com d pequeno” – justificando aí a permanência da relevância política
na condução das relações exteriores. Em seu livro de memórias, demons-
trou ceticismo sobre os potenciais ganhos que o Brasil poderia auferir de
negociações tarifárias – “em geral, tais vantagens são conseguidas apenas
por países poderosos em relação aos mais fracos”. Sobre promoção co-
mercial, considerou que, ao Brasil, faltavam desenvolvimento de produ-
tos, padronização, volume e qualidade. Nessas condições, a propaganda
estava fadada a ser infrutífera. Para ele, “a melhor, senão a única forma
definitiva de conquistar mercados, é colocar o produto, bom e barato, no
cais. Feito isso, o consumidor virá buscá-lo”. Essa situação, em sua visão,
13 – NABUCO. Algumas reflexões sobre diplomacia. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti
Editores, 1955. A primeira versão do livro havia sido publicada em Roma, pela Tipografia
Poliglotta Vaticana, em 1945, em cerca de sessenta páginas. A edição de 1955 tinha quase
o dobro de páginas; O tratamento de assuntos econômicos no Itamaraty. Sem autor. Outu-
bro de 1968. CPDOC/AAS 1968.10.14 del. Pasta II.

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O organizador e o planejador: Maurício Nabuco,
Roberto Campos e a transformação da diplomacia brasileira no século XX

só podia ser alcançada pelo esforço interno de melhoramento de produ-


tos e pela sofisticação do sistema de transportes, dentro de um quadro
institucional e financeiro de equilíbrio. A conclusão para a diplomacia
era clara. Como afirmou logo após a saída do Brasil da Liga das Nações:
“As embaixadas comerciais nada adiantam”14. Em seu livro de memórias,
complementou: “Cada vez mais nos convencemos [...] de que, por muito
tempo ainda, todo nosso esforço deverá ser interior, fronteiras a dentro,
fronteiras continentais, quando muito”15.

Esse pensamento decorreu da experiência do diplomata durante a


crise da década de 1930. Mesmo com todo o esforço do governo brasilei-
ro, foram reduzidos os ganhos para a busca de mercados externos e para a
diversificação de exportações. O tópico das negociações comerciais tari-
fárias levou-o a considerar que não havia mais lugar para potências inter-
mediárias. O pessimismo de Nabuco não era exceção. Diplomatas de sua
geração presenciaram o fiasco do país na Liga das Nações, a crise política
doméstica que levou à Revolução de 1930, as incertezas econômicas da
Grande Depressão e a crescente rivalidade das grandes potências ao redor
do globo. A diplomacia, nesse ambiente perturbador, era naturalmente
contida, calculada, cautelosa e hesitante. Também havia a percepção de
irrelevância do Brasil no equilíbrio de poder mundial – foi somente na
primeira metade década de 1940 que muitos acreditaram na mobilidade
ascendente do país, na cooperação internacional para a resolução de pro-
blemas domésticos e em novas formas de atuação da diplomacia como
profissão.

A biografia de Roberto Campos é modelar e exemplifica as caracte-


rísticas transformadoras dessa nova fase. Quando entrou no Itamaraty, as
áreas mais nobres para se trabalhar eram a jurídica e a política. Ele acabou
indo para o almoxarifado e, posteriormente, para a Divisão Comercial,
na época apelidada de Secos & Molhados – segundo um contemporâneo,

14 – De Maurício Nabuco para Hildebrando Accioly. 18 de março de 1925. AHI/H.A


123.03.29.
15 – NABUCO. Algumas reflexões sobre diplomacia. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti
Editores, 1955, p. 12-47.

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“tinha um status que só levemente excedia o da Portaria”16. O apelido


era oportuno. As atividades da divisão eram enfadonhas e burocráticas,
lidando não com a política das relações comerciais brasileiras, mas com
a operacionalização de atividades de rotina. A Segunda Guerra Mundial
trouxe mudanças nesse cotidiano.

A mais sensível foi a introdução de sistemas mais rígidos para con-


trolar o comércio exterior. Foi nesse momento que Campos começou a
trabalhar com licenças de importação e de exportação. Como a economia
brasileira necessitava de insumos agora controlados por instituições dos
países desenvolvidos, aumentaram as interações diplomáticas bilaterais
no campo econômico. Campos logo foi removido para Washington, pe-
ríodo no qual circulou nas mais diversas repartições públicas da cidade
para conseguir aprovar o fornecimento de produtos estratégicos ao Brasil.
O que antes eram atividades meramente privadas, realizadas por intermé-
dio de casas comerciais e financeiras, agora, eram conduzidas pela via
diplomática17. Na área econômica da embaixada, o diplomata observou
uma miríade de problemas e de desafios que não conseguiam ser respon-
didos de forma simples com o instrumental teórico adquirido no dia-a-dia
funcional ou pela disciplina mais importante no Brasil – o direito.

Era época de crescente tecnificação da gestão do aparato estatal. As


universidades crescentemente ofereciam a legitimidade de um conhe-
cimento reputado como científico tanto para compreender a sociedade

16 – PENNA, José Osvaldo Meira. 'A diplomacia: pompa e circunstâncias de gloriosa


carreira', 2000. Disponível em: <http://www.meirapenna.org/publicacoes/conf/2000/di-
plomacia/pompa_e_circustancia.pdf>. Acesso: 10 de novembro de 2004.
17 – CAMPOS. A lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994, p. 33,
40, 47; GOUTHIER, Hugo. Presença. Brasília: FUNAG, 2008, p. 85. Um colega de tur-
ma de Campos deixou depoimento importante sobre os impactos de tal situação para o
Itamaraty: “[...] quando, depois da Guerra, iniciou-se no Brasil o controle do comércio
exterior, quando a interferência do governo tornou uma atividade constante em nossas
relações comerciais com o exterior houve uma provocação a que procuramos correspon-
der; diante desse fato novo era preciso ter uma compreensão nova do problema, não mais
aquela mentalidade dos “Twenties”. O Brasil saiu da última guerra com interesses novos
dentro do Continente e no mundo; os serviços do Itamaraty precisavam ter então sido
equacionados a essa realidade nova.” Grupo de trabalho para a reforma. Ata da 16ª reu-
nião. 16 de dezembro de 1959. CPDOC/AAS 1958.11.07 daII.

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O organizador e o planejador: Maurício Nabuco,
Roberto Campos e a transformação da diplomacia brasileira no século XX

como para transformá-la18. O caminho da superação dos problemas, desse


modo, exigia o uso de diversos instrumentos que deviam ser utilizados
com “clarividência”; ou seja, demandava-se uma elite administrativa ca-
pacitada e com meios à sua disposição para atuar na realidade – uma justi-
ficativa oportuna para a tecnocracia expandir-se19. Foi nesse contexto que
Campos tomou a iniciativa de frequentar os cursos noturnos de economia
da George Washington University, iniciativa que não contou com o estí-
mulo institucional do Itamaraty20. Sua decisão foi peculiar. Primeiro, era
incomum diplomatas em postos no exterior iniciarem estudos acadêmi-
cos. Após um dia de trabalhos exaustivos ou de missões telúricas, muitos
desejavam nada mais que o conforto do lar ou o lazer dos centros cos-
mopolitas em que viviam. Passar as noites e os fins de semana estudando
assuntos arcanos relacionados às atividades burocráticas era certamente
algo incomum. Segundo, Campos iniciava seus estudos em matéria aca-
dêmica ainda pouco conhecida pela elite brasileira.

A experiência acadêmica e profissional de Campos no contexto de


crescente intervenção estatal foi essencial para sua carreira. É interessan-
te observar como suas crenças sobre a política externa do Brasil diferem
das de seu superior na carreira na década de 1950. Para ele, as economias
domésticas estavam inseridas em sistemas de trocas internacionais, sendo
profundamente influenciadas pela interdependência das políticas monetá-
rias das nações, pelo fluxo de capital entre as fronteiras e pela estrutura
do crescimento do comércio internacional. As recorrentes flutuações eco-
nômicas, nesse contexto, decorriam, muitas vezes, das ações estatais dos
países centrais, que moldavam a estrutura de poder da economia política
internacional. De nada adiantava, em sua opinião, conceber a melhora
da economia brasileira fora desse contexto internacional. O esforço me-
ramente doméstico soçobraria diante de recorrentes crises. Observando
esse quadro, a atividade diplomática adquiria grande relevância. Isso de-

18 – ROSS, Dorothy. The origins of American social science. Cambridge, U.K.: Cam-
bridge University Press, 1991, p. Xiii.
19 – WATERBURY, J. The long gestation and brief triumph of import-substituting in-
dustrialization. World Development. v. 27, n. 2, p. 323-341, 1999, 324.
20 – CAMPOS. A lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994, p. 48.

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corria da necessidade de empreender “a coordenação contra-cíclica da


atividade de investimento internacional e um esquema para a estabili-
zação dos preços dos produtos primários por intermédio da concertação
internacional”21. Somente com a conformação dessa estrutura de gover-
nança da economia global que o receituário de Maurício Nabuco poderia
obter sucesso.

Repensando o Itamaraty
Maurício Nabuco definiu um estilo no corpo diplomático – o “orga-
nizacionista” e o “estilista” –, caracterizado por ausência de conteúdo po-
lítico substantivo22. Essa, contudo, é uma visão limitada ao velho Nabuco,
pois o jovem esteve muito além desses adjetivos e exerceu profunda influ-
ência na reestruturação institucional do órgão na década de 1920. Como
subchefe do gabinete do ministro Otávio Mangabeira, promoveu várias
causas de sucesso. A primeira foi a uniformização de materiais usando
fornecedores nacionais. O primeiro benefício, em sua opinião, era a dimi-
nuição dos custos; o segundo, o “estímulo à indústria brasileira”. Por fim,
estava a propaganda que tal mobiliário faria em consulados e em postos
diplomáticos no exterior. “A boa qualidade depende de boas especifica-
ções e boa fiscalização. Ambas fáceis de obter”. Esse era o modelo a ser
transplantado para o DASP23. Esse nacionalismo, contudo, era limitado
por uma visão de custos, daí sua preferência para que muitos materiais
fossem produzidos pela Harrison & Sons que, da Inglaterra, abastecia
todos os postos brasileiros a custos mais baixos24. Seu trabalho nesta área
introduziu o planejamento na área-meio, buscando superar soluções ad-

21 – CAMPOS, Roberto. Some inferences concerning the international aspects of eco-


nomic fluctuations. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004 [1947], p. 221 e 227.
22 – CHEIBUB, Zairo Borges. Diplomacia e construção institucional: o Itamaraty em
uma perspectiva histórica. Dados. v. 28, n. 1, p. 113-131, 1985, p. 128.
23 – NABUCO, Maurício. Uma inovação vantajosa. O Paiz. 18 de setembro de 1927.
Veja nota sem título de 21 de março de 1927 datilografada pelo diplomata em seu acervo
pessoal.
24 – De Maurício Nabuco a Moraes [Hugo Gouthier]. Rio de Janeiro, 15 de novembro
de 1963. Expedida. 1929-1977. CPDOC/AMN.

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-hocs e o personalismo existente de então. Para ele, “sem previsão não


pode haver administração”25.

Na sua posição, Maurício Nabuco defendeu um sistema de inspeção


dos postos para lidar com as várias falcatruas do setor. Sua opinião era
que esse serviço custava muito mais do que o roubo eventual de recursos
públicos no exterior. Mesmo assim, valia a pena tê-lo, pois, em setor da
burocracia tão disperso geograficamente, a inspeção poderia ajudar na
padronização de procedimentos no cotidiano da repartição26.

A geração de Nabuco também abriu espaço para a experimentação


na gestão administrativa. Uma das preocupações da Primeira República
era como a Secretaria de Estado podia não só acompanhar o resultado
do trabalho de seus representantes no exterior como compará-los, uma
necessidade premente diante do novo ordenamento de promoções e de
remoções que se tentava criar. Elaborou-se a iniciativa de, ao final de
todo ano, tabular as estatísticas de telegramas por posto. Ao apresentar
os resultados desse esforço, muitos julgaram que o número de telegramas
podia ser usado como uma proxy para mensurar a qualidade e o volume
de trabalho do chefe do posto. Muitos se insurgiram contra a iniciativa.
Para Maurício Nabuco, a métrica não podia ter “por finalidade provar
a capacidade intelectual dos empregados”, mas julgava inevitável seu
uso. Defendia, nesse contexto, que os dados fossem acompanhados pela
“comparação do valor moral das informações” para a análise quantitativa
ter alguma utilidade27.

No início da década de 1930, Nabuco identificou, corretamente,


uma “tendência geral da diplomacia moderna” de tornar o Ministério das
Relações Exterior o ator central da política externa, desequilibrando de
vez o lugar relativo dos postos no exterior. Lidar com esse quadro era
desafiador. No Rio de Janeiro, a maioria dos servidores nunca saíra do

25 – SANTORO, Maurício. Imprevidência. Correio da Manhã. 22 de dezembro de 1932.


26 – De Maurício Nabuco para destinatário desconhecido. Rio de Janeiro, 2 de outubro
de 1929. Textos, 1929-1934. CPDOC/AMN.
27 – De Maurício Nabuco para Pimentel Brandão. Rio de Janeiro, 16 de agosto de 1933.
Caso Pimentel Brandão. CPDOC/AMN.

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país; no exterior, os diplomatas ficavam, muitas vezes, anos sem retor-


nar ao Rio de Janeiro28. Foi nesse contexto que atuou em duas reformas
importantes. A primeira foi o princípio da “rotatividade de postos”, prin-
cipalmente nos escalões mais baixos. Isso permitia diversificar a expe-
riência profissional e gerar mais equidade diante da realidade de então,
que deixava um grupo em locais de sacrifício, enquanto um núcleo de
privilegiados deleitava-se nos grandes centros cosmopolitas29. A segunda
foi a execução do processo de unificação das três carreiras do Itamaraty.
Seu objetivo era criar “um espírito de classe” que pudesse fortalecer a
burocracia30.

A unificação foi conduzida em um período de crescente especializa-


ção das profissões. Nabuco considerava essa realidade generalizada em
todas as áreas, mas, em sua opinião, a diplomacia era uma das exceções.
Para ele, o diplomata moderno era “um homem [SIC] que entende cada
vez menos de cada vez mais”. Enquanto a cultura dos outros profissio-
nais era como um poço cada vez mais fundo, a do diplomata era “como
um lago que cada vez mais se espalha”. A defesa do papel generalista
estava associada à sua concepção do papel da diplomacia. A função do
diplomata era servir de nódulos em uma rede, ligando os especialistas e
os técnicos do governo e do setor privado. Era uma função de interme-
diação e não de criação31. Para ele, a profissão demandava “qualidades
de espírito”. Sendo uma arte, era um ofício não passível de ser ensinado
e aprendido: “o indivíduo nasce diplomata. As qualidades do diplomata
são intrínsecas”32.

O interessante de sua posição é que, na relação entre arte e compe-


tência, a despeito de apoiar a primeira tese, julgava essencial o concurso

28 – O Itamaraty e a sua reforma. Correio da Manhã. 26 de dezembro de 1930.


29 – Maurício Nabuco. A reforma do Itamaraty. 9 de janeiro de 1931. Textos. CPDOC/
AMN.
30 – Ibid.
31 – NABUCO. Reflexões e reminiscências. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, 30
e 55.
32 – NABUCO. Reflexões e reminiscências. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, 10
e 41.

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público como forma de moralização e de identificação de talentos. Esse


seria o epicentro de seu esforço reformista e talvez sua maior contribui-
ção para o Estado brasileiro. Como analisamos, em 1913, eram poucos os
servidores que haviam acedido ao Itamaraty por esse sistema de recruta-
mento. A despeito de Maurício Nabuco ter sido nomeado diretamente na
carreira, nos próximos vinte anos, foi um dos maiores defensores do con-
curso público, formulando suas propostas ao trabalhar como examinador
em cinco concursos do Itamaraty entre 1920 e 1927 e com base em suas
leituras sobre a experiência de outros países.

Em sua opinião, a administração pública brasileira funcionava com


grau de eficiência próximo a zero. Sua receita era duas reformas – a mate-
rial e a pessoal. A primeira, em sua opinião, poderia ser resolvida relativa-
mente fácil “com um pouco do Taylorismo”. A segunda, mais complexa,
era aplicar fórmulas já testadas nos Estados Unidos e no Reino Unido, em
especial a criação de uma comissão para conceder certificados para tomar
posse em cargo público mediante exame de qualificação, sem o qual seria
impossível alcançar a nomeação efetiva no serviço público33. Em 1930,
propôs novamente a criação de um órgão superior, “comissão ou indiví-
duo responsável”, cujo foco deveria ser o recrutamento, “a base de toda
a organização eficiente”, propondo a realização de um concurso anual de
forma automática, dando como exemplo a experiência do Itamaraty nos
últimos anos da década de 192034. Por intermédio de sua liderança na
Subcomissão de Reajustamento de Vencimentos da Comissão Mista de
Reforma Econômico-Financeira, lançou as bases para o Departamento
Administrativo do Serviço Público (DASP) introduzir o concurso de
provas como elemento central da transformação do Estado no Brasil35.

33 – NABUCO, Maurício. A administração pública no público. S.l. 1922. Reajustamen-


to. CPDOC/AMN.
34 – NABUCO, Maurício. A grande reforma. S. l. e s. d. Artigos (IV); De Maurício
Nabuco para destinatário desconhecido. Rio de Janeiro, 2 de outubro de 1929. Textos,
1929-1934. CPDOC/AMN.
35 – Texto de Luiz Simões Lopes em homenagem ao octagésimo aniversário de Mau-
rício Nabuco, destacando a atuação deste na área administrativa. CPDOC/LSL pi Lopes,
L. S. 1971.05.00. 

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Rogério de Souza Farias

Coincidentemente, um dos primeiros concursos do DASP foi exatamente


aquele no qual Roberto Campos obteria sucesso.

Roberto Campos, apesar de ter passado pouco tempo de sua carreira


no Itamaraty, sempre se interessou pelo funcionamento do serviço exte-
rior de outros Estados36. Suas opiniões, no entanto, comumente diferiam
daquelas defendidas por Maurício Nabuco. Seus colegas consideravam-
-no um “herege por discordar da sabedoria convencional da Casa”37.
Podemos observar isso pela sua atuação na comissão de reforma criada
pelo ministro Neves da Fontoura em 195238.

Naquele ano, já vigorava a exclusividade do concurso e 64,13% dos


diplomatas da ativa passaram por alguma forma de seleção (provas e/
ou títulos) como pré-requisito para a posse na carreira. Roberto Campos
tinha especial apreço pelo concurso público como método de recru-
tamento, tendo aplicado tal sistema na criação do Banco Nacional de
Desenvolvimento (BNDE): “as organizações tecnocráticas no Brasil que
melhor sobreviveram foram aquelas que desde o início adotaram o prin-
cípio do concurso público como método de ingresso”39. Tal mecanismo,
no entanto, gerava problemas. Campos identificou no concurso público
o enrijecimento de uma burocracia em uma situação de constantes trans-
formações políticas e sociais. Criava-se, nessa situação, um corpo de ser-
vidores com competências, muitas vezes, inadequadas para enfrentar os
desafios do futuro. Por essa razão, combateu o sistema fechado de recru-
tamento vitorioso no Itamaraty. Ao seu ver, o concurso era insuficiente e o
sucesso do órgão dependia de “transfusões de sangue”, com a introdução
de pessoas externas em níveis intermediários e avançados da hierarquia.
Além disso, combateu “o princípio da obediência estrita à hierarquia no
preenchimento das funções de comando na Secretaria de Estado”. Sua

36 – Tel 602 de Washington. Remuneração de funcionários diplomatas e administrativos


norte-americanos. Confidencial. 25 de setembro de 1963. Série telegráfica. AHI-BSB.
37 – CAMPOS. A lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994, p. 863.
38 – A maior parte das atas da Comissão foi publicada em CHDD. A Comissão de Es-
tudo e Elaboração Final do Projeto de Reforma do Ministério das Relações Exteriores
(1952-1953). Cadernos do CHDD. v. 16, n. 30, p. 389-597, p. 2017.
39 – CAMPOS. A lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994, p. 193.

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O organizador e o planejador: Maurício Nabuco,
Roberto Campos e a transformação da diplomacia brasileira no século XX

tese era que um secretário podia chefiar um ministro como um sistema


meritocrático pleno. Sem essas reformas, na sua opinião, haveria uma
“inércia no comando”40. Criticado severamente pelos seus colegas de car-
reira, Campos foi fragorosamente derrotado pelo espírito de corpo que
Nabuco teve tanto esmero em fomentar41.

Campos também examinou a questão da especialização da carrei-


ra diplomática. Em sua opinião, era uma necessidade, especialmente, na
área econômica. Ele propôs que os servidores do Itamaraty se tornassem
técnicos, lembrando que “era o diplomata chamado a participar de reu-
niões internacionais para as quais não tinha o suficiente preparo”. Ele
concebia a hipótese da especialização como uma “escolha voluntária”
dois anos após a entrada na carreira42.

Foi comum aos dois repetidas demonstrações de enfado com relação


à vida diplomática43. Em suas memórias, Nabuco criticou os que eram
atraídos pelo brilho das representações e adicionou que estavam prova-
velmente certos “os que dizem que boa parte do dinheiro e do esforço da
diplomacia brasileira são gastos em pleitear honrarias”. Em determinado
momento, afirmou estar “farto desta vida diplomática, pela qual, em al-
gumas de suas facetas, tenho o mais profundo desprezo; conheço-a desde

40 – Ata da 19ª reunião. 4 de dezembro de 1952. CPDOC/AAS 1952.05.22 daI. Pasta II.
41 – Em dezembro de 1952, Vasco Leitão da Cunha envia carta a San Tiago Dantas,
instando-o a participar da reunião que discutiria as sugestões de Campos. Segundo Leitão
da Cunha, se ela fosse aprovada e adotada, “aniquilaria a própria carreira diplomática”.
Ele buscava influenciar San Tiago a externar as “vantagens de preservar a hierarquia di-
plomática na ocupação das funções de chefia da Secretaria de Estado.” Carta de Vasco
Leitão da Cunha para San Tiago Dantas. 8 de dezembro de 1952. AN/Q8. Cx. 47 (31).
Pacotilha 4. Arquivo Nacional. Sobre Campos na reforma, ver FARIAS, Rogério de Sou-
za. O iconoclasta planejador: Roberto Campos e a modernização do Brasil in: ALMEIDA,
Paulo Roberto de (ed), O homem que pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto
Campos. Curitiba: Appris, 2017, p. 45-70.
42 – Ata da 5ª e 6ª Sessões da Comissão de Estudo do Projeto de Reforma do MRE. 25
e 28 de agosto de 1952. CPDOC/AAS 1951.05.22 DAI/1.
43 – NABUCO. Reflexões e reminiscências. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.
230 e 237; CAMPOS. A lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994,
p. 1124.

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criança”44. Campos também não estava longe em seu ceticismo. Em uma


famosa coluna do jornal O Globo, disse:
Perguntaram-me por que, sendo diplomata, raramente comento nossa
política externa. A razão é que é difícil falar sobre o inexistente. [...]
Nossa política externa tem sido uma política burra, feita por homens
inteligentes45.

Em suas manifestações públicas, principalmente após a aposentado-


ria, seguiria esse tom. Sempre explicitava o que julgava ser o atraso da
instituição – as fofocas perenes, a hierarquia rígida, a falta de incentivos
para seus servidores atuarem em outros setores da administração.

As carreiras de Nabuco e Campos coincidem com um período carac-


terizado por progressiva mudança da relação entre a diplomacia profis-
sional e a política. Até meados da Primeira República, poucos indivíduos
ousavam afirmar que os membros das carreiras do Itamaraty tinham por
formação e por treinamento o monopólio de uma expertise, eram inde-
pendentes do processo político e estavam em posição privilegiada para
interpretar o interesse nacional. Isso mudou. Progressivamente, ocorreu o
que Andrew Abbott definiu como processo sociológico de aquisição e de
manutenção de jurisdição. Para ele, as ocupações evoluem para organiza-
ções voltadas ao controle da competência de uma atividade especializada,
buscando, ao mesmo tempo, cercear a possibilidade de pessoas externas
atuarem em um determinado domínio do mercado de trabalho. Isso é feito
pela vinculação da expertise a um conjunto de valores que conferem legi-
timidade pela racionalidade, pela eficiência e por uma suposta imparciali-
dade, usando recursos de autoridade para definir, classificar, compreender
e solucionar problemas46.

A delimitação de jurisdição, no caso da diplomacia, foi conduzida


por intermédio da despolitização e do uso retórico e efetivo da capacita-

44 – NABUCO. Reflexões e reminiscências. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.


11, 26 e 237.
45 – CAMPOS, Roberto. Os órfãos da história. O Globo. 17 de setembro de 1989.
46 – ABBOTT, Andrew Delano. The system of professions: an essay on the division of
expert labor. Chicago: University of Chicago Press, 1988, 16, 40 e 53-54.

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Roberto Campos e a transformação da diplomacia brasileira no século XX

ção de seus membros. Progressivamente, o diplomata não mais dependia


da patronagem para aceder ao órgão. Ligava-se, assim, ao ideal da me-
ritocracia e, com isso, podia apresentar-se como imparcial e acima da
política interna. A criação do Instituto Rio Branco, em 1945, adicionou
outra camada ao vincular o argumento da excelência no domínio da polí-
tica externa à capacitação da qual só diplomatas tinham a oportunidade de
usufruir. Adicionalmente, a formação, que os servidores de órgãos tinham
no próprio cotidiano profissional, conferiu um verniz de legitimidade a
proteger contra intrusos externos. Quando Roberto Campos desligou-
-se do órgão, esse processo já estava em estágio avançado. O Itamaraty
projetava-se como “intérprete fiel” das aspirações brasileiras, como o di-
plomata Paulo Tarso Flecha de Lima afirmou sobre a área comercial47.
A política doméstica, portanto, passou a ter uma relação cada vez mais
complexa com a política externa.

Washington: a diplomacia em transição e em crise.


Maurício Nabuco e Roberto Campos atuaram na Embaixada do
Brasil em Washington. Campos era cônsul de 2a classe quando chegou
em 1944, permanecendo até março de 1947. Já Nabuco assumiu a chefia
do posto em maio de 1948. Campos retornaria em outubro de 1961, mas
como embaixador – exatamente uma década após Maurício ter se desliga-
do do posto. A análise das experiências dos dois é oportuna para examinar
o papel do diplomata nesse posto e, particularmente, os desafios da polí-
tica externa brasileira após a Segunda Guerra Mundial.

Vivia-se, durante o conflito mundial, uma era na qual as relações


com o governo americano eram crescentemente estruturadas de forma
a extrair recursos de cooperação internacional para o desenvolvimento
doméstico. Roberto Campos e outros diplomatas tiveram uma vivência
profissional e acadêmica no exterior que os posicionaram como atores
estratégicos desse processo.

47 – LIMA, Paulo Tarso Flecha de. Itamaraty, intérprete fiel das aspirações comerciais
brasileiras. Resenha de Política Exterior do Brasil. v. I, n. III, p. 51-54, 1974.

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Uma das principais atividades de Nabuco em Washington foi receber


representantes do governo brasileiro para prospectar financiamento públi-
co nos Estados Unidos. O diplomata notou que causava “má impressão
[...] os pedidos vagos de empréstimos que fizemos duas ou três vezes”
decorrentes da falta de preparo das autoridades brasileiras. Ele alertou:
sem “planos precisos” vindos do Brasil, não haveria sucesso48. Mesmo
com a criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, em
1952, que contou com a participação de Roberto Campos, Nabuco per-
maneceu desconfiado. Se quase todos os pedidos da burocracia brasileira
por financiamento eram “feitos com objetivos desonestos”, com o Banco
não seria diferente em sua opinião. Para ele, faltava ao Brasil “capacidade
para empregar satisfatoriamente somas [de recursos] tão grandes”49.

Essas opiniões devem ser analisadas no contexto da época, parti-


cularmente na transformação da diplomacia como profissão. Os chefes
de Estado, os ministros e os burocratas não mais permaneciam fixos em
suas capitais. Viajavam para encontrar suas contrapartes no exterior com
frequência cada vez mais crescente. Com isso, o diplomata acreditado na
capital perdia parte de seu poder de canal privilegiado de interação e de
fonte de informação. Isso, naturalmente, criou ruídos. Em 1948, quando
o ministro das Relações Exteriores João Neves da Fontoura, ao parti-
cipar de uma reunião em Bogotá, transmitiu várias informações a Raul
Fernandes sobre suas conversas com autoridades americanas, Nabuco fi-
cou indignado, pois elas geravam expectativas irrealistas. Para ele, não se
deveria “permitir que pessoas sem credenciais invadam o nosso campo de
ação já bastante difícil”. Era, no entanto, remar contra a maré50.

Igualmente grave, na sua opinião, era o constante tráfego de autori-


dades brasileiras na capital americana e suas ações junto ao governo local
sem a devida coordenação com a Embaixada. Ele relatou, em outubro
48 – De Maurício Nabuco para Eurico Gaspar Dutra. Washington, 5 de abril de 1949.
Corr. Gaspar Dutra. CPDOC/AMN.
49 – Nota manuscrita sobre artigo do Correio da Manhã de 22 de julho de 1953. Artigos.
CPDOC/AMN.
50 – De Maurício Nabuco para Hildebrando Accioly. Washington, 30 de junho de 1948.
Expedida, 1948-1951. CPDOC/AMN.

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Roberto Campos e a transformação da diplomacia brasileira no século XX

de 1951, que tanto Góes Monteiro como Horácio Lafer aparentemente


negociaram acordos militares e econômicos, mas não podia informar
nada ao Itamaraty, porque os dois nada lhe comunicaram – “Aqui estra-
nham isso; não é costume negociar assim, à revelia do chefe da missão
diplomática”51.

Ele não conseguia manter a autoridade nem na sua própria embai-


xada. Naquela época, havia a função de adido comercial e foi nomeado
para o posto, em julho de 1948, Walder de Lima Sarmanho. Ele era nada
menos que irmão de Darcy Sarmanho, esposa de Getúlio Vargas. O mi-
nistro da Fazenda, Corrêa e Castro, deu-lhe toda a autoridade, pois dese-
java “alguém que conhecesse o Plano Marshall”. O diplomata solicitou
ao Itamaraty que avisasse ao presidente Eurico Gaspar Dutra que, para
preservar sua autoridade à frente da Embaixada, não seria possível vigo-
rar o regime pelo qual o adido comercial era independente da autoridade
do chefe do posto52. Saiu derrotado.

Se não bastassem todos esses choques, muito da agenda bilateral e


até dos próprios pedidos de financiamento brasileiro dependiam da mo-
bilização de vários órgãos no Brasil. Em Washington, Maurício ficava
impaciente com a morosidade e, repetidamente, cobrava providências.
Neves da Fontoura, enquanto isso, tentava pacientemente informá-lo da
nova situação no governo:
[...] as respostas não dependem diretamente do Itamaraty, mas de ou-
tras repartições anexas ou de importantes órgãos do governo e cada
vez mais se revela o crescimento da administração pública, cresci-
mento desordenado que produz a descoordenação dos órgãos gover-
namentais53.

51 – De Maurício Nabuco para João Neves da Fontoura. Rio de Janeiro, 15 de outubro
de 1951. Expedida, 1948-1951. CPDOC/AMN.
52 – De Maurício Nabuco para Raul Fernandes. Washington, 2 de julho de 1948. Expe-
dida, 1948-1951; De Carolina para Maurício Nabuco. Rio de Janeiro, 30 de junho de 198.
Recebida, 1948 (junho-julho). CPDOC/AMN.
53 – De João Neves da Fontoura para Maurício Nabuco. Rio de Janeiro, 3 de julho de
1951. Expedida, 1948-1951. CPDOC/AMN.

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Um dos trabalhos de Maurício como Embaixador em Washington


– algo que Campos também teria de realizar – foi tentar convencer os
próprios brasileiros da relevância do relacionamento bilateral. A preocu-
pação com o tema vinha de sua juventude, havendo várias reflexões sobre
a questão em sua correspondência pessoal. Em uma carta de 1925 para
seu amigo Pedro Leão Velloso, futuro ministro das Relações Exteriores,
afirmou acreditar que o Brasil não podia prosperar sem um bom enten-
dimento com os Estados Unidos, mas nada ameaçava tanto essa amizade
“como permitir que nos coloquem na classe de Honduras”. O governo no
Rio de Janeiro conseguiu manter tal perfil diferenciado por décadas por
nunca ter “sacrificado a dignidade nacional”54.

Desde sua chegada no posto, na década de 1940, contudo, detec-


tou uma crise nessa interação. Em sua opinião, isso decorria de vários
motivos. O primeiro era a posição do governo americano com relação
ao hemisfério. O Departamento de Estado, em particular, não desejava
receber de países como Honduras a reclamação de que o Brasil tinha me-
lhor tratamento. O segundo e mais relevante estava no próprio gover-
no brasileiro. Nabuco criticou-o por “ocasionalmente pensar que seguir
[o governo americano] cegamente era o melhor serviço que poderíamos
oferecer”55. Maurício também enfrentou uma situação estrutural na qual
era impossível influir: a emergência da Guerra Fria e seus impactos sobre
a América Latina. Tal situação se agravara com a posse de Dean Acheson
no Departamento de Estado, que decidiu só receber regularmente os em-
baixadores da Inglaterra, da Rússia e da França – a primeira vez que isso
acontecia56.

Essa foi uma situação muito diferente na qual vivera durante a sua
adolescência. Seu pai, Joaquim Nabuco, convivia cotidianamente com
Elihu Root, então na chefia do Departamento de Estado. O próprio
54 – De Maurício Nabuco para Pedro Leão Veloso. Rio de Janeiro, 10 de março de 1925.
Expedida, 1926-1936. CPDOC/AMN.
55 – De Maurício Nabuco para Adolf Berle. Rio de Janeiro, 24 de julho de 1958. Expe-
dida. 1929-1977. CPDOC/AMN.
56 – De José para Maurício Nabuco. Washington, 2 de março de 1950. Correspondência
familiar, 1950-1951. CPDOC/AMN.

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Roberto Campos e a transformação da diplomacia brasileira no século XX

Maurício Nabuco, a despeito de sua idade, era convidado para eventos


sociais com o jurista. É compreensível, portanto, que tenha se tornado cé-
tico sobre a capacidade de influência da diplomacia brasileira no mundo:
No teatro mundial, o Brasil é apenas espectador – para não dizer acom-
panhador. Nestas condições, informações políticas satisfazem nossa
curiosidade e a vaidade de alguns dos que as enviam ou as recebem,
nada mais. Não tem nenhum fim útil. Exceto em questões latinas deste
continente, nunca vi deliberações tomadas pelo governo brasileiro em
virtude de informações políticas dos seus agentes no exterior57.

Roberto Campos chegou a Washington em outubro de 1961. O con-


texto, se comparado à gestão de Nabuco, por um lado, era mais favorá-
vel. A Revolução Cubana de 1959 elevou o interesse americano sobre a
América Latina; a ascensão da administração democrata, com a vitória de
John Kennedy, também trouxe benefícios por ser mais aberta às deman-
das por cooperação. Havia, contudo, aspectos negativos. As contas exter-
nas brasileiras estavam em frangalhos e a economia doméstica atacada
pela inflação e pelo déficit fiscal. Para completar, o quadro instável da
política doméstica dificultava a construção de uma abordagem coerente
no relacionamento bilateral – as crises foram recorrentes.

Nesse contexto, a demanda por cooperação financeira e econômica


perseguida por Campos tinha sentido bem mais urgente, especialmente a
intermediação junto a credores privados e a abertura de linhas de finan-
ciamento junto a organismos multilaterais. Se Nabuco enfrentou o de-
sinteresse da administração republicana em lidar com empréstimos para
investimento, seu sucessor estava com a corda no pescoço.

O fluxo de visitantes oficiais brasileiros a Washington, algo que,


como observamos, incomodou Nabuco, elevou-se consideravelmente
no início da década de 1960. Não há registro de incômodo por parte de
Campos sobre essa realidade, mesmo em suas memórias. Provavelmente
acreditava ser essa uma situação normal, na qual pouco poderia influir,
pois o Itamaraty e, em particular, a Embaixada do Brasil em Washington
57 – De Maurício para José Nabuco. Washington, 29 de agosto de 1951. Aposentadoria.
CPDOC/AMN.

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não conseguiriam se manter como janela única do governo brasileiro


para lidar com representantes de agências multilaterais e autoridades
governamentais americanas. O mato-grossense, no entanto, batalhou
para construir relacionamentos junto a estas autoridades para ser o in-
termediário incontornável do sucesso da missão desses brasileiros. Foi
ele que conseguiu um encontro com Dean Rusk para Franco Montoro,
ministro do Trabalho, apresentar seu projeto de construção de habita-
ções populares; que intermediou a ida do governador Carlos Lacerda ao
Banco Interamericano de Desenvolvimento; que recebeu o presidente do
Instituto do Açúcar de do Álcool, Edmundo Barbosa da Silva, em missão
para expandir a exportação do açúcar brasileiro aos EUA. Talvez o maior
sucesso de Campos foi ter levado um grupo de estudantes brasileiros para
conhecer e para fazer perguntas ao presidente americano. Sua relação
com os subordinados também era melhor. Poucos tinham independência
e contatos diretos com o Catete para subverter sua posição – problema
enfrentado por Maurício Nabuco. A verdade é que muitos tiveram grande
aprendizado com Campos, como Luiz Paulo Lindenberg Sette, Marcílio
Marques Moreira, Octavio Rainho da Silva Neves, Amaury Bier, Geraldo
Holanda Cavalcanti, Arnaldo Vasconcellos e Luiz Augusto Souto Maior
– a maioria com relevantes contribuições na diplomacia econômica nos
próximos anos.

A visita mais relevante na gestão de Campos foi a do presiden-


te Jango Goulart em abril de 1962. A comparação com a preparada por
Maurício Nabuco para Eurico Gaspar Dutra é importante para indicar a
transformação do relacionamento bilateral. A agenda de Dutra era mais
cerimonial, sendo menor a equipe precursora e a que preparou a docu-
mentação. Gerou escasso impacto, frustrando principalmente Nabuco e o
ministro das Relações Exteriores, Raul Fernandes. A viagem de Goulart
exigiu mobilização maior da embaixada em contexto adverso – foi rea-
lizada logo após a expropriação conduzida por Leonel Brizola, cunhado
do presidente, da International Telephone and Telegraph Company no
Rio Grande do Sul. A agenda bilateral, portanto, foi contaminada por esse
problema, discutido em vários momentos ao longo da visita. Além disso,

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O organizador e o planejador: Maurício Nabuco,
Roberto Campos e a transformação da diplomacia brasileira no século XX

a instabilidade política e social brasileira, associada à preocupação com o


comunismo, deixou as autoridades americanas mais sensíveis.

A despeito da grande rede de contatos de Maurício Nabuco, que re-


montava ao período no qual viveu com seu pai em Washington, Roberto
Campos conseguiu elevar a visita brasileira nas prioridades de quase toda
cúpula do governo americano. Isso fica patente pelos participantes do
jantar na Embaixada do Brasil em 4 de abril – John Kennedy, Robert
S. McNamara, Arthur Schlesinger, Robert Goodwin, John Kenneth
Galbraith, Lincoln Gordon e Theodore Sorensen. Parte dessa atenção de-
correu do posicionamento relativo do Brasil no período, mas o sucesso
certamente foi influenciado pelo ativismo de Campos58. Ao final, o evento
conseguiu diminuir temporariamente a desconfiança do governo america-
no sobre Goulart e destravou várias iniciativas.

A vitória decorreu do momento auspicioso que se abriu às relações


bilaterais no segundo semestre de 1961. A Aliança para o Progresso pro-
metia ser o tão sonhado programa de cooperação que Nabuco não viu
concretizar em sua gestão. Roberto Campos foi o principal arquiteto para
impulsionar os projetos de interesse do país. Com menos de um mês no
posto, liberou um empréstimo de cinquenta milhões de dólares. Em abril
de 1962, amealhou mais 276 milhões de dólares para um programa de de-
senvolvimento do nordeste. Tal performance nunca teria sido possível na
década de 1950. Mesmo assim, o ExImBank, tão criticado por Nabuco,
continuou com as portas praticamente fechadas para os interesses bra-
sileiros na gestão de Campos – a despeito do esforço de Kennedy em
intermediar o relacionamento.

A implementação da Aliança para o Progresso também repetiu os


problemas do final da década de 1940 e do início da década de 1950
no que concerne à organização do governo brasileiro. A administração
americana reclamou na época da carência de planejamento e organização

58 – Roberto de Oliveira Campos oral history interview – 5/29-30/1964. May 29, 1964.
JFKOH-RDOC-01. Disponível em: https://www.jfklibrary.org. Acesso em: 20/08/2018.

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no Rio de Janeiro59. A crítica era válida. A despeito da grande expansão


da tecnocracia brasileira nos anos anteriores, faltava capacidade técnica
para formular e para apresentar projetos, sem contar a grande ingerência
política sobre as iniciativas. As maiores dificuldades nasciam, no entanto,
do perfil indeciso de Goulart e de sua aparente falta de pulso para lidar
com aliados e com subordinados. Os fundamentos da gestão de Campos
ruíam progressivamente, o que levou eventualmente ao seu pedido de
exoneração: “Sempre fui um lutador de causas perdidas, porém não me
sinto capaz de ser um médico de situações agônicas...”60.

Liberalismo diplomático
Ao analisar a biografia intelectual dos dois diplomatas, é possível
observar claro vínculo entre a política interna e a proposta que apresen-
taram sobre as relações internacionais do Brasil. Havia a preponderân-
cia do que podíamos definir como cosmopolitismo liberal – uma verten-
te claramente minoritária no governo brasileiro na segunda metade do
século XX. Os dois sofreram o que Campos denominou de “solidão da
impopularidade”61.

As críticas dos dois diplomatas à ordem constitucional doméstica


decorreram das crenças liberais que tinham. Ambos criticariam as indús-
trias fundadas no protecionismo, além de defender o papel estratégico do
investimento externo no Brasil e a manutenção de um ambiente de negó-
cios receptivo a tais fluxos. Campos, contudo, por muito tempo, foi um
“planejador” intervencionista. Em 1961, por exemplo, ainda considerava
o liberalismo ingênuo e acreditava natural a intervenção estatal62. No final
de 1962, em discurso no Waldorf Astoria, afirmou que o Brasil deveria
privilegiar desenvolvimento em contraposição à uma estabilidade moral

59 – Ibid.
60 – CAMPOS, Roberto e DRUMMOND, Aristóteles. O homem mais lúcido do Brasil:
as melhores frases de Roberto Campos. São Luiz: Resistência Cultural, 2013, 43.
61 – CAMPOS, Roberto “marcarei este dia com pedra branca”. O Jornal. 29 de julho
de 1961.
62 – CAMPOS, Roberto “marcarei este dia com pedra branca”. O Jornal. 29 de julho
de 1961.

212 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):187-218, set./dez. 2019.


O organizador e o planejador: Maurício Nabuco,
Roberto Campos e a transformação da diplomacia brasileira no século XX

de sua moeda63. Já Nabuco sempre foi conservador – “nada há de mais


importante para a economia e estabilidade de um povo do que a questão
da moeda, sob qualquer dos seus aspectos”, afirmou na década de 196064.

Campos foi tachado, na década de 1950, de membro de um grupo


denominado de “entreguista” (ou “cosmopolita”), que se contrapunha aos
nacionalistas. O termo, que poderia ser igualmente aplicado a Nabuco,
sempre o incomodou. Em seu discurso de recebimento do prêmio Homem
de Visão em 1961, pouco antes de assumir a chefia da Embaixada em
Washington, indicou que a tipologia mais precisa seria “nacionalista prag-
mático”, em contraposição ao “nacionalismo romântico”. O último termo
decorria do que considerou ser uma contradição de objetivos – seus de-
fensores queriam mais consumo, mais investimento e, ao mesmo tempo,
reduzir ingresso de capital estrangeiro; queriam fortalecer o empresário
nacional, mas dificultavam sua sobrevivência com desmedida interven-
ção estatal; queriam o estímulo inflacionário para o crescimento, sem ter
as suas consequências negativas desestabilizadoras; queriam o desenvol-
vimento sem o “egoísmo capitalista”. Havia, também neste grupo, uma
predisposição a sobrestimar o investimento em máquinas com relação à
educação e à tecnologia. Seu lema, naquele momento, era desejar “que o
Estado não faça o que não pode, para fazer o que deve”65.

Maurício Nabuco concordava plenamente com essas teses, especial-


mente, sobre os perigos da expansão desmesurada do Estado. Em feve-
reiro de 1967, afirmou: “Estamos hoje em pleno nacionalismo misturado
com socialismo, mescla que me parece extremamente perigosa”66. Para
ele, era evidente que a construção de uma comunidade de nações envolvia
necessariamente a cessão da soberania nacional para um bem maior, o
que era uma característica do progresso – “the more we progress towards

63 – CAMPOS, Roberto: solução para o Brasil é o desenvolvimento e não estabilidade.


Correio da Manhã. 21 de dezembro de 1962.
64 – De Maurício Nabuco para Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 18 de maio de 1970.
Expedida. 1929-1977. CPDOC/AMN.
65 – CAMPOS, Roberto “marcarei este dia com pedra branca”. O Jornal. 29 de julho
de 1961.
66 – NABUCO, Maurício. Prefixos. Jornal do Commercio. 21 de fevereiro de 1967.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):187-218, set./dez. 2019. 213


Rogério de Souza Farias

a world community of nations, the more we lose our national powers”67.


Ele apresentou essa agenda de forma mais explícita em artigo publicado
em 1949. Sua tese era que os avanços da humanidade, principalmente no
domínio nas comunicações, levaram ao progressivo desaparecimento das
fronteiras políticas e à criação de um governo mundial. Essa instância
supranacional teve grande responsabilidade na manutenção de fluxos co-
merciais e financeiros abertos. Esse resultado era inevitável – “If man’s
political wisdom does not lead us to a free flow of goods, man’s practical
needs will”68. A defesa da abertura dos mercados e o desejo de manter,
no Brasil, um ambiente de negócios receptivo eram avaliados por mui-
tos como uma defesa dos Estados Unidos, o que não era preciso. Como
Nabuco afirmou ao próprio Roberto Campos, no início da década de 1970,
os EUA não mais ligavam para seu entorno: “Fomos abandonados”69.

Desde a década de 1950, Maurício Nabuco nutria pessimismo com


relação ao futuro do Brasil. Em sua opinião, em termos relativos, o país
retroagia70. Esse foi um diagnóstico que se chocava ao de seus contem-
porâneos, particularmente com jovens diplomatas, muitos amigos de
Roberto Campos, que ascendiam rapidamente na estrutura hierárquica
do Itamaraty e que ajudaram na formulação e na execução da Política
Externa Independente (PEI), o ímpeto modernizador lançado pelo presi-
dente Jânio Quadros e também adotado pelo seu sucessor.

A PEI foi severamente criticada por Nabuco em três planos: na ad-


ministração do Itamaraty, nas prioridades da diplomacia e no estilo de
liderança dos diplomatas. No primeiro aspecto, o já ancião diplomata
avaliou que as reformas, ao contrário daquelas que ajudou a implementar
na década de 1930, eram irrefletidas e executadas com açodamento. Eram

67 – NABUCO, Maurício. Notes for address at Woordrow Wilson School. Princeton,


10th Januray 1949. Discursos. CPDOC/AMN.
68 – NABUCO, Mauricio. World government as a goal. The Annals of the American
Academy of Political and Social Science. v. 264, n., p. 1-5, 1949.
69 –  De Maurício Nabuco para Roberto Campos. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1971.
Expedida, 1929-1977. CPDOC/AMN.
70 – De Maurício Nabuco para Adalgisa Nery. Roma, 26 de janeiro de 1946. Expedida,
1944-1951. CPDOC/AMN.

214 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):187-218, set./dez. 2019.


O organizador e o planejador: Maurício Nabuco,
Roberto Campos e a transformação da diplomacia brasileira no século XX

“alterações fundamentais e repentinas nas nossas tradições históricas e


diplomáticas”, movimentava “quase a totalidade do funcionalismo” e de-
mandava recursos em demasia. Do ponto de vista substantivo, considerou
as prioridades excessivamente ambiciosas, abalando a disciplina em uma
tentativa de “mudar de chofre nossas bases política, econômica e finan-
ceira”. Era um “vaidoso vendaval” que buscava implementar “planos tão
pretenciosos quanto levianos e impatrióticos”71.

Do ponto de vista das prioridades e do estilo de liderança, criticou a


inadequação do tom triunfalista e partidário. Para o diplomata, o Itamaraty
era um dos órgãos do Estado mais ingratos, pois deveria ser funcional-
mente o mais apagado. Enquanto seus colegas na administração são obri-
gados a abraçar o tom triunfalista, o sucessor do Barão deveria calar-se.
Não podia falar em vitórias, tampouco em vantagens sobre terceiros, pois
a sobeja e o triunfalismo arruinava as credenciais negociadoras externas.
Para ele, a atuação do então ministro das Relações Exteriores, Araújo
Castro, “porejava demagogia, sandice e até, em certo grau, boa intenção
ingênua”. Estava-se vivendo em um “irrealismo infanto-juvenil” que “fe-
chara ao Brasil muitas portas e não abrira nenhuma”72.

Ao contrário de Nabuco, Campos acreditava que o Brasil havia as-


cendido em termos relativos no sistema internacional. O termo utiliza-
do foi “maioridade”. Ele apontou “a interdependência entre a economia
interna e a externa” como aspecto central da política internacional. Isso
tinha implicações para o arcabouço de aliança do país, em especial com
os países do Terceiro Mundo. Ele observou haver três diferenças entre o
Brasil e o bloco. A primeira era a “postura de indeterminação ideológica”
da maioria dos países, muitos com “atitude socializante” incompatível
com a situação brasileira. A segunda era o perfil da economia da maioria,
ainda muito estruturada em produtos primários, enquanto o Brasil atuava
de forma mais diversificada no sistema econômico internacional. Por fim,
havia o propósito da maioria de criar “uma economia do tipo autarquizan-

71 – Tufas sobre o Itamaraty. [1961?]. Crítica à PEI. CPDOC/AMN.


72 – NABUCO, Maurício. Várias notícias. Jornal do Commercio. 8 de dezembro de
1965.

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Rogério de Souza Farias

te”, sem exposição a fluxos externos – algo convergente com a avaliação


de Nabuco.

Esse último aspecto era um dos principais componentes do atraso


do Terceiro Mundo. Ele concordava que, por muito tempo, as economias
capitalistas mais vigorosas exploraram suas relações assimétricas com os
países mais fracos. Campos era, no entanto, otimista em identificar que
o peso desse passado histórico de exploração havia deixado de ser deci-
sivo. Na situação contemporânea, existiam grandes benefícios para os
países em desenvolvimento em termos de inovações, técnicas e métodos
que poderiam ser importadas para acelerar o crescimento – um relaciona-
mento oposto ao de exploração. E qual a razão de essa realidade não ser
reconhecida pelos países mais atrasados?

Para o diplomata, a procura de culpados e a violência retórica da


diplomacia do Terceiro Mundo decorria, em parte, de uma busca de des-
locar para outros as responsabilidades próprias. Ele parafraseava, nesse
aspecto, o economista heterodoxo Gunnar Myrdal:
É mais fácil mobilizar apoio popular contra inimigos do que em favor
de políticas abstratas e sóbrias de maximização de eficiência, aumento
da taxa de poupança interna, austeridade nas importações, e assim por
diante.

Ele acreditava, no entanto, que o Brasil tinha “uma aceitável pro-


babilidade de chegar a padrões comparáveis com os das economias de-
senvolvidas”, mas para isso o país deveria seguir um curso de ação mais
ponderado, “sem posições radicais”. Seu relacionamento com o Terceiro
Mundo mais radical deveria portar-se por caráter mais técnico, de auxílio
na análise e pesquisa, sem a necessidade de tomar “posições menos razo-
áveis ou demagógicas”. Até pelo crescimento acelerado brasileiro, seria
inevitável um afastamento com relação ao bloco. Campos salientava a
necessidade de criar “uma ligação mais estreita” com organismos e ins-
tituições financeiras, como a OCDE, e a de “associar interesses privados
brasileiros na análise e formulação, em nível prático”, nas políticas seto-

216 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):187-218, set./dez. 2019.


O organizador e o planejador: Maurício Nabuco,
Roberto Campos e a transformação da diplomacia brasileira no século XX

riais73. Ele não titubeava em afirmar: “nossos reais interesses estão com o
Primeiro Mundo, pois, ali, se encontram os mercados e, dali, provêm os
investimentos e a tecnologia”74.

Conclusão
Este artigo apresentou uma comparação das trajetórias profissionais
de dois diplomatas (Maurício Nabuco e Roberto Campos) para compre-
ender algumas transformações da diplomacia no século XX. Inicialmente,
buscou-se inserir a origem regional e a formação acadêmica dos dois den-
tro do grupo de servidores do Itamaraty. O período que vai da entrada do
primeiro até a aposentadoria do segundo representa uma revolução no
órgão, com o uso consistente e exclusivo do concurso público de provas
como mecanismo de recrutamento. Demonstrou-se que as oportunidades
profissionais abertas a Roberto Campos foram bem mais aproveitadas,
em especial no âmbito do multilateralismo econômico – uma particula-
ridade do período pós-guerra. Os dois deixaram muitas reflexões sobre o
papel do diplomata no contexto da expansão de temas econômicos, com
Campos demonstrando a insuficiência de o país focar só em questões
domésticas ao lidar com o processo de desenvolvimento. A relevância
dos constrangimentos e das oportunidades no âmbito internacional era
essencial para expandir a diplomacia como profissão e colocar o ofício na
vanguarda da modernização nacional.

Os dois também apresentaram agenda de reformas no Itamaraty.


Maurício Nabuco focou predominantemente na organização, em especial
na padronização da burocracia e no reforço da hierarquia; Campos, por
sua vez, tentou elevar a especialização e promover um projeto arrojado
de meritocracia que solapava a estrutura hierárquica do órgão. O primeiro
foi mais bem-sucedido que o segundo. A atuação em Washington dos dois
é importante para examinar a crescente inviabilidade de a Embaixada bra-
sileira constituir a única janela do governo brasileiro para lidar com auto-

73 – CAMPOS, Roberto. Novas perspectivas da política externa brasileira. 1979/1985.


CPDOC/AAS mre ag 1978.08.30.
74 – CAMPOS, Roberto. Os órfãos da história. O Globo. 17 de setembro de 1989.

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Rogério de Souza Farias

ridades americanas. Roberto Campos conseguiu lidar com essa situação


de maneira melhor que Nabuco.

Pode-se dizer que o maduro Roberto Campos, após a superação de


sua fase intervencionista, convergiu para o que denominamos de “libe-
ralismo diplomático”. Esse foi um ramo minoritário da política externa
brasileira na segunda metade do século XX e era particularmente crítico
do intervencionismo estatal, do protecionismo comercial, da vinculação
a blocos do Terceiro Mundo e do excessivo ativismo por prestígio no
âmbito internacional. O posicionamento dos dois é muito relevante para
o debate contemporâneo sobre a política externa brasileira, especialmente
sobre a questão da soberania e a integração do país nos processos de libe-
ralização comercial e financeiros com os países desenvolvidos.

Texto apresentado em abril de 2019. Aprovado para publicação em


outubro de 2019.

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As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

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AS RAZÕES DO DIREITO ADMINISTRATIVO NA


DOUTRINA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX (1857-1884)
THE REASONS OF ADMINISTRATIVE LAW IN
19TH CENTURY BRAZILIAN LEGAL DOCTRINE (1857-1884)
Walter Guandalini Junior1
Resumo: Abstract:
O presente artigo pretende contribuir para a This article aims to contribute to the
compreensão da cultura jurídica brasileira, em- understanding of Brazilian legal culture, by
pregando o método de análise de conteúdo para employing content analysis method to examine
examinar as “razões” da doutrina administrati- the “reasons” of 19th century Brazilian
vista brasileira do século XIX. A investigação administrative doctrine. The investigation
do quadro de citações mobilizadas pelos juristas of Brazilian jurists’ quotations framework
brasileiros como instrumentos de fundamenta- allowed to observe which were the sources
ção de suas teses jurídicas permitiu observar of administrative law at the time, what type
quais eram as fontes do direito administrativo of dialogue the legal erudite knowledge
no período, que tipo de diálogo o saber jurídi- established with other fields of public law, what
co erudito estabelecia com outros campos de kind of relationship it had with foreign and
circulação do direito público, que padrões de pre-modern legal culture, and what differences
relação mantinha com a cultura jurídica estran- it had in relation to private law. At the end it
geira e pré-moderna, e que diferenças tinha em was possible to perceive that the main source of
relação ao direito privado. Ao final, foi possível Brazilian administrative law in the period was
perceber que a principal fonte do direito admi- positive legislation, which reflects the functions
nistrativo brasileiro no período era a legislação attributed to the discipline by a transitional
positiva, o que reflete as funções atribuídas à legal culture.
disciplina por uma cultura jurídica de transição.
Palavras-chave: história do direito adminis- Keywords: history of administrative law; 19th
trativo; século XIX; fontes do direito; cultura century; legal sources; legal culture.
jurídica.

1 Introdução
No atual estágio das pesquisas, há mais dúvidas que certezas acerca
das características da cultura jurídica brasileira2 do século XIX. Apesar
1  –  Professor adjunto de História do Direito – Universidade Federal do Paraná. Mestre
e doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná; Programa de De-
senvolvimento com Estágio no Exterior (doutorado-sanduíche) no Centro di Studi per
la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, Università di Firenze. Professor Adjunto de
História do Direito na Universidade Federal do Paraná. Professor no Mestrado em Direito
do Centro Universitário Internacional. E-mail: [email protected].
2  –  Toma-se a expressão “cultura jurídica” no mesmo sentido sugerido por Ricardo Fon-
seca, como “o conjunto de significados (standards doutrinários, padrões de interpretação,
marcos de autoridade doutrinária nacionais e estrangeiras, influências e usos particulares
de concepções jusfilosóficas) que, efetivamente, circulavam na produção do direito e eram
aceitos nesta época no Brasil” – FONSECA, Ricardo Marcelo. Os Juristas e a Cultura Ju-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019. 219


Walter Guandalini Junior

de diversos estudos já clássicos de história jurídico-institucional, nos-


sa compreensão específica da cultura jurídica oitocentista se restringe a
análises temáticas tão limitadas, quanto ao objeto e ao recorte temporal,
que impedem qualquer tentativa de construção de uma síntese mais geral
do pensamento jurídico nacional no período3. Diante desses obstáculos,
embora compreendamos razoavelmente bem o panorama intelectual das
escolas de pensamento jurídico na Europa do século XIX, temos muita
dificuldade em compreender qual foi sua real influência na construção de
um pensamento jurídico brasileiro.

Isso faz com que o olhar dirigido pelos historiadores sobre a cultura
jurídica brasileira do século XIX usualmente padeça de duas graves limi-
tações que tendem a eclipsar a adequada percepção de suas peculiarida-
des: por um lado, a carência de empiria, em abordagens exclusivamente
teóricas que, sem as necessárias mediações, limitam-se a transplantar ao
continente americano temas e preocupações típicos da Europa pós-re-
volucionária, e nem sempre compatíveis com os verdadeiros problemas
enfrentados por nossa cultura jurídica; e, por outro, a carência de juridi-
cidade, em pesquisas que, sem reconhecer a dimensão civilizacional do
fenômeno jurídico, reduzem-no a objeto inerte livremente manejado por
conservadores e por liberais como instrumento de disputa política4.

Desse modo, dispomos de algumas “hipóteses fundamentais” acer-


ca da cultura jurídica brasileira do oitocentos, mas pouquíssimas infor-
mações precisas sobre as suas características, influências, diálogos e de-

rídica Brasileira na Segunda Metade do Século XIX. In: Quaderni Fiorentini per la storia
del pensiero giuridico moderno, n. 35. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 2006, p. 339-371.
3  –  José Reinaldo Lima Lopes fornece uma síntese do panorama existente, ressaltando
a existência de estudos de história das ideias, sobre a profissão jurídica, sobre as escolas
de direito, sobre o papel dos bacharéis, sobre instituições, mas pouquíssimas análises em-
piricamente fundadas sobre os debates propriamente jurídicos do século XIX – LOPES,
José Reinaldo. O Oráculo de Delfos: o conselho de Estado no Brasil-Império. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. XIV.
4  –  Uma versão mais completa dessa crítica pode ser encontrada em GUANDALINI JR.,
Walter. O Poder Moderador: ensaio sobre o debate jurídico-constitucional no século XIX.
Curitiba: Prismas, 2016, p. 111; e GUANDALINI JR., Walter. Chave ou Fecho? O debate
jurídico erudito sobre a responsabilidade do poder moderador. In: Quaestio Iuris, vol. 09,
nº 02. Rio de Janeiro: UERJ, 2016, p. 1054.

220 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019.


As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

senvolvimentos. Sabemos, por exemplo, graças à importante síntese de


Ricardo Fonseca5, que o século XIX é, para a ordem jurídica brasileira,
um período de transição, de uma concepção de direito típica das socie-
dades de antigo regime (e, portanto, doutrinária e racionalista) para uma
concepção de direito tipicamente moderna (e, portanto, legalista e volun-
tarista); sabemos que essa transição se manifesta também na passagem
de uma teoria do direito escolástica e jusnaturalista para uma teoria do
direito evolucionista e positivista, marcada por uma razão laica de caráter
científico; sabemos que essa transição é marcada por uma relativa indis-
tinção entre a “ciência jurídica portuguesa” e a “ciência jurídica brasi-
leira”, especialmente nas primeiras décadas do século; por fim, sabemos
que a transição teórica dá origem a um perfil profissional de jurista fluido,
ora pautado por um modelo de atuação “eloquente” (literária, retórica,
política), ora orientado para uma prática profissional “científica” (técnica,
objetiva, teórica), o que levanta algumas questões importantes acerca do
modo como se compreendem as fontes de produção e os campos de cir-
culação do discurso jurídico no período.

Apesar de imprescindíveis como ponto de partida para a compreen-


são da cultura jurídica brasileira no século XIX, essas hipóteses teórico-
-metodológicas ainda são muito abstratas para fornecerem respostas mais
precisas a questões fundamentais como: quais são efetivamente os cam-
pos de circulação do pensamento jurídico brasileiro? Como tais campos
dialogam entre si? Quais são as fontes de produção do direito brasileiro?
Qual é a sua relação com o direito e a cultura jurídica estrangeira? Qual
é a sua relação com o direito pré-moderno? Em suma, quais são e como
circulam as “razões” do direito brasileiro no século XIX.
Buscando responder a algumas dessas questões, António Manuel
Hespanha analisou as fontes citadas por juristas portugueses e brasileiros
do século XIX em quatro obras selecionadas, de modo a identificar “qual
era o direito efetivamente aplicado, em Portugal, depois da promulgação
das primeiras constituições, mas antes da promulgação do [...] Código

5  –  FONSECA, Ricardo Marcelo. Os Juristas e a Cultura Jurídica Brasileira na Segunda


Metade do Século XIX. In: Quaderni Fiorentini per la storia del pensiero giuridico mo-
derno, n. 35. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 2006, p. 339-371.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019. 221


Walter Guandalini Junior

Civil”6. Usando o método de análise de conteúdo, o autor verificou uma


forte tendência, por parte da doutrina civilista portuguesa e brasileira do
século XIX, de encontrar na própria doutrina (e não na legislação) as prin-
cipais “razões” do direito civil no período, o que indica preliminarmente
a sobrevivência de estilos retóricos e argumentativos pré-modernos pelo
menos até a codificação.
O presente estudo pretende contribuir com os projetos de pesquisa
propostos por Fonseca e Hespanha, acrescentando uma pequena peça ao
grande quebra-cabeça incompleto que é a compreensão da cultura jurí-
dica brasileira do século XIX. Assim, empregará o método de análise de
conteúdo para a análise das “razões” do direito administrativo brasileiro
no século XIX, com o objetivo de examinar o quadro de citações mobi-
lizadas pelos administrativistas brasileiros para a fundamentação de suas
teses. O resultado permitirá identificar as fontes do direito administra-
tivo no período, o diálogo com outros campos de circulação do direito
público, a relação com a cultura jurídica estrangeira e pré-moderna, e as
diferenças em relação ao direito privado.
2 Análise de Conteúdo
Foram examinados todos os livros publicados7 sobre o tema no perí-
odo, exceto por obras de caráter menos doutrinário e mais prático, como
os Estudos Práticos sobre a Administração das Províncias no Brasil, de
6  –  HESPANHA, António Manuel. Razões de decidir na doutrina portuguesa e brasileira
do século XIX. Um ensaio de análise de conteúdo. In: Quaderni Fiorentini per la storia
del pensiero giuridico moderno, n. 39. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 2010, p. 109-151.
7  –  A lista de livros consultados foi produzida com base em pesquisa realizada nas bi-
bliotecas públicas do país, nas informações constantes de estudos já publicados sobre a
história do direito administrativo e nas indicações bibliográficas das obras publicadas
nos séculos XIX e XX. É possível dizer, com segurança, que foram examinados todos os
livros monográficos, gerais e de natureza exclusivamente teórica publicados no período
sobre o direito administrativo, a saber: Direito Público e Análise da Constituição do Im-
pério, publicada por José Antônio Pimenta Bueno (Marquês de São Vicente) em 1857;
Elementos de Direito Administrativo Brasileiro, publicada por Vicente Pereira do Rego
em 1857; Direito Administrativo Brasileiro, publicada por Prudêncio Giraldes Tavares da
Veiga Cabral em 1859; o Ensaio sobre o Direito Administrativo de Paulino José Soares de
Sousa (Visconde do Uruguai), publicados em 1862; o Excerto de Direito Administrativo
Pátrio de Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, publicado em 1865; o Direito
Administrativo Brasileiro de Antônio Joaquim Ribas, publicado em 1866; e a Epítome de
Direito Administrativo de José Rubino de Oliveira, publicada em 1884.

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As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

Paulino José Soares de Sousa, de 1865, e os formulários e as coletâne-


as práticas que circulavam entre advogados no Império; também foram
deixadas de lado obras de direito público ou constitucional que não en-
frentassem diretamente o direito administrativo, com a exceção pontual
da obra de Pimenta Bueno8, que, afinal de contas, foi o primeiro livro
brasileiro a tratar explicitamente do tema em seu Título Sexto, dedicado
ao exame do Poder Executivo.
A contagem de citações foi realizada manualmente, para a avaliação
qualitativa e contextual das referências encontradas, o que contribuiu para
a maior precisão dos resultados9. Assim, além da identificação completa
de cada referência citada e página em que se encontra, foi possível inserir,
na planilha de acompanhamento, também informações detalhadas acerca
do contexto temático em que a citação é empregada e da sua avaliação
positiva, neutra ou negativa por parte de cada autor. Da mesma forma,
foi possível também excluir citações repetidas da mesma fonte em um
mesmo contexto argumentativo, o que desequilibraria excessivamente as
citações em favor da legislação moderna (por sua estrutura textual em
artigos). As citações foram agrupadas em categorias gerais e específicas
da seguinte forma:
A) Legislação Moderna
a) Direito Constitucional: normas de natureza constitucional
1. Constituição Política do Império do Brasil (1824)
2. Ato Adicional (1834)
3. Lei Interpretativa do Ato Adicional (1840)
b) Legislação Brasileira Moderna: leis promulgadas no Brasil
após 1822.
c) Regulamentos do Executivo Brasileiro

8  –  PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito Público Brasileiro e Análise da Consti-


tuição do Império. Rio de Janeiro: Tipografia Imp. E Const. De J. Villeneuve E. C., 1857.
9  –  Segundo Hespanha (obra citada, p. 114), uma das limitações de seu trabalho foi jus-
tamente o fato de que, baseando-se na mera contagem de citações, não dava conta do seu
contexto. Assim, o resultado de sua pesquisa exprimia mais o “universo de referência do
autor” que as “fontes”, propriamente ditas, do direito civil. A análise qualitativa e contex-
tual aqui proposta corresponde a um esforço de superação das limitações apontadas pelo
autor em seu estudo.

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Walter Guandalini Junior

d) Legislação Estrangeira Moderna


B) Doutrina Moderna: produção doutrinária após 1822.
a) Doutrina Brasileira
b) Doutrina Estrangeira
C) Jurisprudência Moderna
a) Jurisprudência Brasileira
b) Jurisprudência Estrangeira
D) Direito Anterior a 1822: fontes normativas anteriores à inde-
pendência do Brasil.
a) Direito Comum: citações das fontes normativas que compu-
nham o ius commune da ordem jurídica medieval.
1. Direito Romano
2. Direito Canônico
3. Direito Natural
b) Legislação do Antigo Regime: legislação produzida em
Portugal antes de 1822.
1. Ordenações
2. Legislação de Antigo Regime: legislação portuguesa ante-
rior a 1808.
3. Legislação entre 1808 e 1822
E) Realidade: refere-se à “realidade” como fonte do direito admi-
nistrativo.
a) Natureza das Coisas: referências a ideias como a “ordem na-
tural das coisas”, a “razão natural”, o “bom senso” e outros
topoi argumentativos que pressupõem uma realidade objetiva
anterior à legislação e à doutrina apta a constranger a liberda-
de hermenêutica do aplicador e do intérprete.
b) Experiência Prática
c) Experiência Estrangeira
d) Ciência
e) Parlamento Nacional
f) Parlamento Estrangeiro
g) Imprensa Nacional

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As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

h) Imprensa Estrangeira
Passemos, então, à análise dos resultados.

a) José Antônio Pimenta Bueno – Direito Público Brasileiro e


Análise da Constituição do Império (1857)
José Antônio Pimenta Bueno é um dos mais importantes juristas do
Império. Nascido, em Santos, no dia 4 de dezembro de 1803, formou-
-se em Direito na primeira turma da Faculdade de Direito de São Paulo
(1832) e, poucos anos depois, ocupava a presidência da província do
Mato Grosso (1835-37). Em 1843, obteve o seu doutoramento e iniciou
sua carreira na magistratura, tendo exercido as funções de juiz, de che-
fe de polícia, de desembargador da Relação do Maranhão (1844-46), de
desembargador na Corte (1847) e de ministro do Supremo Tribunal de
Justiça. Paralelamente à bem-sucedida carreira jurídica, também teve
uma importante carreira política: atuou como deputado geral (1848), pre-
sidente da província do Rio Grande do Sul (1850-53), ministro da justiça
(1847-48), ministro de relações estrangeiras (1848; 1870-71), senador do
Império (1853), conselheiro de Estado (1859) e presidente do conselho
de ministros (1870-71). Foi feito Visconde em 1867, e Marquês de São
Vicente em 1872, tendo falecido no Rio de Janeiro em 19 de fevereiro de
1878, aos 75 anos de idade. É autor de extensa obra jurídica que abarca os
campos de processo civil, processo criminal, direito eclesiástico, direito
constitucional, direito internacional privado e direito financeiro. A obra
que consolidou, contudo, a sua reputação é o Direito Público Brasileiro e
Análise da Constituição do Império (1857).
A obra foi publicada em dois volumes, com um total de 568 páginas,
que abarcam uma análise aprofundada do texto da Constituição Política
do Império do Brasil em nove títulos. Embora seja um livro de direito
constitucional, o que a princípio o excluiria do universo examinado pela
pesquisa, o seu título VI sobre o poder executivo é a primeira obra ju-
rídica nacional a tratar explicitamente do direito administrativo, o que
justifica a sua presença na análise a ser realizada.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019. 225


Walter Guandalini Junior

O direito administrativo é definido no título preliminar, mais teórico


e conceitual, que o classifica ora como ciência “que estuda e proclama as
regras e condições gerais que são apropriadas para assegurar o melhor
desempenho do serviço administrativo, o bem-ser, a prosperidade social”,
ora como ramo do direito positivo que contém “o complexo dos princí-
pios e leis positivas de um Estado, que regulam a competência, direção ou
gestão do seu poder executivo quanto aos direitos, interesses e obrigações
administrativas da sociedade e dos administrados na esfera do interesse
geral”10. Assim são apresentadas as duas fontes principais do direito ad-
ministrativo brasileiro: a ciência e as leis positivas. Na sequência, o autor
indica uma breve “bibliografia de direito público e administrativo” com-
posta de 38 obras inglesas, americanas, francesas e portuguesas. Como
explica Hespanha11, contudo, a percepção subjetiva dos autores acerca
das fontes jurídicas que utilizavam deve ser controlada por processos que
nos informem sobre o que os próprios textos nos transmitem, o que nos
leva à análise de conteúdo proposta.
O referido título VI tem um total de 91 páginas, com 272 citações
(média de 2,98 citações por página), que se distribuem na seguinte pro-
porção:
Quadro 1 – Direito Público Brasileiro (Pimenta Bueno, 1857)
Categorias Gerais Categorias Específicas Citações Percentual Total
Constituição do Brasil 67 24,63%
Ato Adicional 0 0,00%
Lei Interpretativa 0 0,00%
Legislação Mo- 228
derna Legislação Brasileira Moderna 54 19,85% (83,82%)

Regulamentos do Executivo Brasileiro 96 35,29%


Legislação Estrangeira Moderna 11 4,04%
Doutrina Brasileira 0 0,00% 7
Doutrina Moderna (2,57%)
Doutrina Estrangeira 7 2,57%
Jurisprudência Jurisprudência Brasileira 0 0,00% 0
Moderna Jurisprudência Estrangeira 0 0,00% (0,00%)

10 – PIMENTA BUENO, op. cit., p. 11.


11 – HESPANHA, op. cit., p. 110.

226 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019.


As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

Direito Romano 0 0,00%


Direito Canônico 4 1,47%
Direito Natural 2 0,73% 32
Direito pré-1822 (11,76%)
Ordenações 1 0,36%
Legislação Antigo Regime 16 5,88%
Legislação 1808-1822 9 3,30%
Natureza das Coisas 3 1,10%
Experiência Prática 0 0,00%
Experiência Francesa 2 0,73% 5
Realidade (1,83%)
Ciência 0 0,00%
Parlamento 0 0,00%
Imprensa 0 0,00%
272
TOTAL (100%)

Apesar da importância atribuída pelo próprio autor à ciência e à dou-


trina como fontes do direito administrativo, é a legislação que se destaca
como principal referência citada. Nela, sobressai a importância do tex-
to constitucional, compreensível em face da natureza e dos objetivos da
obra, mas se verifica que a principal “razão jurídica” empregada pelo autor
para fundamentar as suas afirmações são os regulamentos emitidos pelo
Executivo brasileiro. As fontes específicas mais citadas são o art. 102 da
Constituição, que estabelece as atribuições do imperador (11% dos dispo-
sitivos constitucionais citados); a Lei 234/1841, que cria o Conselho de
Estado (31% das leis citadas); e o Regulamento 124/1842, que estabelece
o regimento do Conselho de Estado (37,5% dos regulamentos citados).
Tudo isso indica a importância dos debates sobre a atuação do imperador
para a visão do autor sobre o direito administrativo.

A legislação do antigo regime também tem importância considerá-


vel, mas não o suficiente para afetar a predominância da legislação mo-
derna. A doutrina é exclusivamente francesa: os únicos autores menciona-
dos são Alexandre-François Vivien, que havia publicado os seus Études
Administratives em 1853, e Jean-Jacques Gaspard Foelix, autor da Révue
Étrangère et Française de Législation, de Jurisprudence et d’Économie
Politique (1833-43). Não há participação da doutrina nacional, nem
quaisquer referências à jurisprudência. A “realidade” aparece com uma
participação insignificante, e concentrada na “natureza das coisas” e na

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019. 227


Walter Guandalini Junior

experiência francesa, sem quaisquer menções a debates parlamentares ou


à imprensa.

As referências são realizadas em contexto predominantemente neu-


tro ou positivo, o que indica que eram, de fato, consideradas “fontes” do
direito administrativo pelo autor. As exceções são as poucas referências
às fontes categorizadas como de “direito comum” (direito romano, canô-
nico e natural), citadas negativamente em 50% dos casos, quando se afir-
ma a impossibilidade de sua execução no império sem prévia aprovação
da assembleia geral12.

b) Vicente Pereira do Rego – Elementos de Direito Administrativo


Brasileiro (1857)

João Vicente Pereira do Rego nasceu em 3 de junho de 1812 no


Recife. Ali, se formou bacharel em Direito em 1840 e passou a advogar.
Em 1855, se tornou professor da Faculdade de Direito do Recife e as-
sumiu a recém-criada cadeira de “Direito Administrativo Pátrio”. Após
alguns anos de uso da doutrina francesa no ensino da disciplina, decide
publicar, em 1857, uma sistematização escrita das suas aulas, que intitula
Elementos de Direito Administrativo Brasileiro – primeira obra latino-
-americana sobre a matéria. Faleceu ainda em 1857, mas o seu compên-
dio foi formalmente aprovado para uso nas Faculdades de Direito pelo
Ministério dos Negócios do Império em agosto de 1864. Foi uma obra
importante para a formação dos juristas brasileiros apesar da crítica de
Paulino de Sousa, que o considerava excessivamente resumido e depen-
dente do modelo francês13.

A obra, aqui consultada na segunda edição de 1860, foi publicada


em um volume de 235 páginas, divididas em três partes que tratam da
estrutura administrativa do país, da administração contenciosa e das ma-
térias específicas de direito administrativo. O direito administrativo é
conceituado como “ciência da ação e competência do poder central, das
12 – PIMENTA BUENO, op. cit., p. 243.
13 – SOUSA, Paulino José Soares. Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de Janei-
ro: Typographia Nacional, 1862, p. XIII.

228 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019.


As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

administrações locais e dos tribunais administrativos em suas relações


com os direitos e interesses dos administrados, e com o interesse geral do
Estado”14, e o seu estudo compreende as “leis administrativas” e as “au-
toridades administrativas”, estendendo-se também às “leis sociais” – que
são, assim, consideradas as principais fontes do direito administrativo.

Nessas 235 páginas, o autor realiza 1269 citações – 5,4 citações por
página distribuídas na seguinte proporção:
Quadro 2 – Elementos de Direito Administrativo Brasileiro (Rego, 1857)
Categorias Gerais Categorias Específicas Citações Percentual Total
Constituição do Brasil 76 5,97%
Ato Adicional 30 2,35%
Lei Interpretativa 3 0,23%
Legislação Mo- 951
Legislação Brasileira Moderna 317 24,92%
derna (74,76%)
Regulamentos do Executivo Brasileiro 497 39,07%
Legislação Francesa Moderna 25 1,96%
Legislação de Outra Nacionalidade 3 0,23%
Doutrina Brasileira 7 0,55%
Doutrina Mo- 139
Doutrina Francesa 122 9,59%
derna (10,92%)
Doutrina de Outra Nacionalidade 10 0,78%
Jurisprudência Jurisprudência Brasileira 6 0,47% 7
Moderna Jurisprudência Estrangeira 1 0,07% (0,55%)
Direito Romano 4 0,31%
Direito Canônico 3 0,23%
Direito Natural 3 0,23% 116
Direito pré-1822 (9,11%)
Ordenações 18 1,41%
Legislação Antigo Regime 48 3,77%
Legislação 1808-1822 40 3,14%
Natureza das Coisas 10 0,78%
Experiência Prática 0 0,00%
Experiência Francesa 41 3,22%
59
Realidade Experiência Outros Países 5 0,39%
(4,63%)
Ciência 3 0,23%
Parlamento 0 0,00%
Imprensa 0 0,00%
1272
TOTAL (100%)

14 – REGO, Vicente Pereira. Elementos de Direito Administrativo Brasileiro, para uso


das Faculdades de Direito do Império. 2. ed. Recife: Tipografia Comercial de Geraldo
Henrique de Mira & C., 1860, p. 6.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019. 229


Walter Guandalini Junior

A tabela demonstra a predominância absoluta da “Legislação


Moderna” como fonte do direito administrativo, e ressalta a importância
dos regulamentos do executivo e da legislação brasileira, que respondem
por quase 64% do total de referências. Entre elas, se destacam a Lei de 1º
de outubro de 1828, que dá nova forma às Câmaras Municipais (9,46%
da legislação citada), e os Decretos 2343/1859, 736/1850 e 870/1851, que
reformam o Tesouro Público Nacional (7,64% dos decretos citados).

Quanto às referências doutrinárias, permanecem predominantemen-


te francesas. O autor mais citado é Paul Pradier-Foderé (Précis de droit
administratif, 1853 – 25,89% da doutrina citada), seguido por Louis
Antoine Macarel (Cours d’administration et de droit administratif, 1852
– 13,66%) e Louis Cabantous (Répétitions Écrites sur le droit administra-
tif – 12,94%). A referência à doutrina brasileira se limita a obras de direito
financeiro, com destaque para os Apontamentos de Direito Financeiro de
José Maurício Fernandes Pereira de Barros (1855), que recebe 4 citações
(2,87%). A França também é uma referência importante quando se trata
da experiência prática de administração pública, embora proporcional-
mente as referências à realidade não sejam tão relevantes na obra.

A análise contextual mostra pouquíssimas referências negativas, li-


mitadas a críticas pontuais à legislação francesa sobre caça e patentes15.
Mas 75% das citações de “direito comum” e 48,07% das citações de le-
gislação anterior a 1822 são empregadas em análises históricas dos pro-
cessos de formação dos institutos jurídicos analisados, o que contribui
para redimensionar o pequeno papel desempenhado pelas fontes pré-
-modernas. Novamente, não aparecem referências aos debates perante a
opinião pública no parlamento ou na imprensa.

c) Prudêncio Giraldes Tavares da Veiga Cabral – Direito


Administrativo Brasileiro (1859)

Prudêncio Giraldes Tavares da Veiga Cabral nasceu em Cuiabá no


dia 22 de abril de 1800. Estudou Direito na Universidade de Coimbra e

15 – REGO, Vicente Pereira. op. cit., p. 129 e 180.

230 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019.


As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

retornou ao Brasil em 1822, logo após a formatura. Atuou como juiz de


fora, ouvidor de Comarca, auditor geral do Exército, desembargador na
relação do Maranhão e conselheiro de Estado. Em 8 de abril de 1829,
assumiu a cadeira de Direito Civil Pátrio na Faculdade de Direito de São
Paulo e, por duas vezes, foi nomeado diretor da instituição. Faleceu em 9
de janeiro de 1862, um ano após o seu jubilamento.

O seu Direito Administrativo Brasileiro, publicado em 1859, foi


redigido com a intenção explícita de fornecer um plano de Código
Administrativo Brasileiro, com projetos de reformas para o melhoramen-
to das administrações provinciais e municipais16. Percebe-se o objetivo
declaradamente prático e reformador da obra, embora o autor se preocupe
também com a exposição dos “princípios e a legislação em que se coorde-
nam os elementos da ciência”17, afirmando que ela se dirige a estadistas,
a funcionários públicos, a alunos das Faculdades de Direito e a cidadãos
em geral. Para isso, redige 541 páginas divididas em quatro partes, que
tratam da ciência e da estrutura administrativa, do direito administrativo
nas suas relações com a conservação da sociedade, do direito administra-
tivo nas suas relações com o fim da sociedade e da administração local.
O direito administrativo é conceituado como aquele “que regula a ação e
competência da administração nas suas relações com os centros parciais
da população, ou os cidadãos individualmente para a execução de leis,
decretos e ordens expedidas por interesse geral ou local”, esclarecendo
que “compreende todas as leis sociais, à exceção daquelas que servem de
fundamento à organização constitucional, e as que entram no domínio do
poder judiciário”18. Aproxima-se, assim, da definição que havia sido apre-
sentada por Pereira do Rego (embora não o cite), tomando a legislação
como principal fonte jurídica.

Na obra de 541 páginas, o autor emprega 1284 citações, em uma


média de 2,37 citações por página, distribuídas na seguinte proporção:

16  –  VEIGA CABRAL, Prudêncio Giraldes Tavares. Direito Administrativo Brasileiro.


Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1859, p. V.
17  –  VEIGA CABRAL. op.cit, p. VI.
18  –  VEIGA CABRAL. op.cit, p. 12.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019. 231


Walter Guandalini Junior

Quadro 3 – Direito Administrativo Brasileiro (Veiga Cabral, 1859)


Categorias Gerais Categorias Específicas Citações Percentual Total
Constituição do Brasil 53 4,12%
Ato Adicional 25 1,94%
Lei Interpretativa 5 0,38%
1042
Legislação Moderna Legislação Brasileira Moderna 373 29,04%
(81,15%)
Regulamentos do Executivo Brasileiro 575 44,78%
Legislação Francesa Moderna 10 0,77%
Legislação de Outra Nacionalidade 1 0,07%
Doutrina Brasileira 1 0,07%
63
Doutrina Moderna Doutrina Francesa 52 4,04%
(4,90%)
Doutrina de Outra Nacionalidade 10 0,77%
Jurisprudência Mo- Jurisprudência Brasileira 4 0,31% 4
derna Jurisprudência Estrangeira 0 0,00% (0,31%)
Direito Romano 9 0,70%
Direito Canônico 7 0,54%
Direito Natural 1 0,07% 115
Direito pré-1822 (8,95%)
Ordenações 11 0,85%
Legislação Antigo Regime 47 3,66%
Legislação 1808-1822 40 3,11%
Natureza das Coisas 13 1,01%
Experiência Prática 21 1,63%
Experiência Outros Países 1 0,07% 60
Realidade (4,67%)
Ciência 21 1,63%
Parlamento 3 0,23%
Imprensa 1 0,07%
1284
TOTAL (100%)

Também aqui se percebe uma clara predominância da “Legislação


Moderna”, que corresponde a mais de 80% das referências citadas pelo
autor. Sobressaem a legislação brasileira e os regulamentos do executivo,
com destaque para a Lei de 1º de outubro de 1828, que regula o funcio-
namento das Câmaras Municipais (4,28% das referências legislativas),
e para o Decreto 124/1842, que estabelece o regimento do Conselho de
Estado (2,60% das referências regulamentares).

A pouca importância proporcional da doutrina não nos impede de


perceber também aqui a predominância da doutrina francesa, sem ênfase
em um autor determinado (a obra mais citada é o Traité du Domaine
Public, de Jean-Baptiste-Victor Proudhon, com apenas 6,3% do total).

232 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019.


As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

Quanto à doutrina brasileira, há uma citação pontual aos Elementos de


Direito Eclesiástico, de Manoel do Monte Rodrigues (1857), e mais nada.
As referências à realidade permanecem irrelevantes, e concentradas na
“natureza das coisas”, na “experiência prática” e na “ciência”, com pou-
quíssimas referências à imprensa ou ao parlamento. As poucas citações
de fontes anteriores a 1822 têm considerável relação com revisões his-
tóricas de institutos jurídicos (20,40% das citações classificadas como
“Legislação pré-1822” e 17,64% das citações classificadas como “Direito
Comum”).

d) Paulino José Soares de Sousa – Ensaio sobre o Direito


Administrativo (1862)

Paulino José Soares de Sousa é um dos maiores publicistas da histó-


ria do país e, sem dúvida, o maior administrativista do século XIX. Filho
de pai mineiro e mãe francesa, nasceu em Paris, em 4 de outubro de 1807.
Após a queda de Napoleão, em 1814, viajou com a família para Portugal
e, em 1818, retornou ao Brasil, fixando-se em São Luís do Maranhão.
Em 1823, ainda não havia faculdades de Direito no Brasil, o que o fez
retornar a Portugal para estudar em Coimbra. A revolta do Porto de 1828
interrompeu as aulas e forçou o seu retorno ao Brasil, onde concluiu o
curso em 1831, na Faculdade de Direito de São Paulo. No ano seguinte,
iniciou a vida pública na magistratura, tendo atuado como juiz de fora e
ouvidor da comarca de São Paulo. Em 1833, se transferiu para a sede da
Corte, onde foi Intendente Geral de Polícia e juiz. Elegeu-se deputado em
1836, mesmo ano em que foi nomeado presidente da Província do Rio
de Janeiro (1836-1840). Ao final da década de 30, participou da forma-
ção do Partido Conservador, de que foi líder. Como ministro da justiça
(1840, 1842-1843), fez aprovar as leis do Regresso e, como ministro dos
negócios estrangeiros (1843-1844, 1849-1853), desempenhou importante
papel na extinção do tráfico de escravos e na guerra do Prata. Foi sena-
dor (1849), desembargador da relação da Corte (1852) e conselheiro de
Estado (1853), tendo recebido o título de Visconde do Uruguai em 1854.
Após retornar de uma missão diplomática na França, decidiu se afastar
da luta política: aposentou-se como ministro do Supremo Tribunal de

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Walter Guandalini Junior

Justiça em 1857 e restringiu suas atividades ao Senado e ao Conselho de


Estado, dedicando-se mais à família e aos livros – quando publicou o seu
monumental Ensaio sobre o Direito Administrativo (1862) e os Estudos
Práticos sobre a Administração das Províncias no Brasil (1865). Faleceu
aos 58 anos de idade no Rio de Janeiro, em julho de 1866.

O Ensaio sobre o Direito Administrativo foi publicado em dois volu-


mes. O primeiro, com 322 páginas, é dividido em 26 capítulos dedicado a
questões teóricas gerais sobre o direito administrativo, como a sua auto-
nomia científica, as suas fontes e a estrutura geral da administração públi-
ca graciosa e contenciosa brasileira. Ali, o direito administrativo é defini-
do com base em Laferrière, como “a ciência da ação e da competência do
Poder Executivo, das administrações gerais e locais, e dos conselhos ad-
ministrativos, em suas relações com os interesses ou direitos dos adminis-
trados, ou com o interesse geral do Estado”19. Em seguida, são mencio-
nados conceitos produzidos por outros autores (Dégerando, Cabantous,
Blanche, Gandillot et Boileux, Chantagrel, Colmeiro, Foucart, Macarel,
Dalloz) que, na opinião do autor, não divergem da definição adotada. A
presença mais sólida da doutrina no texto de Sousa é acompanhada tam-
bém de outra novidade: um capítulo explicitamente dedicado à apresen-
tação das fontes do direito administrativo: a antiga legislação portuguesa,
a constituição, as leis do império, os regulamentos do governo e as reso-
luções imperiais tomadas a partir de consultas ao conselho de Estado20.

O segundo volume da obra, com 275 páginas, tem apenas 5 capítulos


e é dedicado ao exame do poder moderador e da questão de sua respon-
sabilidade, em polêmica direta com Zacarias de Góes e Vasconcellos21. O
livro conclui com dois apêndices, nos quais se encontram projetos de lei,

19  –  SOUSA, Paulino José Soares. Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de Janei-
ro: Typographia Nacional, 1862, p. 7 – grifos no original.
20  –  SOUSA, Paulino José Soares. op.cit, p. 42.
21  –  Sobre a polêmica ver GUANDALINI JR., Walter. O Poder Moderador: ensaio so-
bre o debate jurídico-constitucional no século XIX. Curitiba: Prismas, 2016; e GUAN-
DALINI JR., Walter. Chave ou Fecho? O debate jurídico erudito sobre a responsabilidade
do poder moderador, In: Quaestio Iuris, vol. 09, nº 02. Rio de Janeiro: UERJ, 2016, p.
1031-1059.

234 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019.


As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

emendas legislativas, debates parlamentares e discursos proferidos pelo


autor no Parlamento – elementos emblemáticos dessa mescla entre pro-
dução científica e atuação política, tão característica dos grandes juristas
do período.

Nas 597 páginas dos dois volumes, foram realizadas 1089 citações,
em uma média de 1,82 citações por página. A média é bastante inferior à
das demais obras analisadas, o que talvez se explique pelo tipo de fontes
predominante empregadas no seu texto: as citações de textos legislativos
tendem a se repetir em grande quantidade, em razão da necessidade de
referência explícita a diversos dispositivos de uma mesma norma, ou até
mesmo diversas normas que regulam um mesmo assunto; as referências
doutrinárias e contextuais, porém, são usualmente mencionadas apenas
uma vez e, a partir delas, se desenvolvem livremente os argumentos pro-
postos pelo autor. Estas últimas tem uma participação proporcional no
texto bastante superior à verificada em outras obras do período, como se
infere da tabela abaixo:
Quadro 4 – Ensaio sobre o Direito Administrativo (Sousa, 1862)
Categorias Gerais Categorias Específicas Citações Percentual Total
Constituição do Brasil 52 4,77%
Ato Adicional 13 1,19%
Lei Interpretativa 2 0,18%
Legislação Brasileira Moderna 83 7,62%
368
Legislação Moderna Regulamentos do Executivo Brasileiro 96 8,81%
(33,78%)
Legislação Francesa Moderna 65 5,96%
Legislação Portuguesa Moderna 21 1,92%
Legislação Americana Moderna 12 1,10%
Legislação de Outra Nacionalidade 24 2,20%
Doutrina Brasileira 9 0,82%
Doutrina Francesa 234 21,48%
322
Doutrina Moderna Doutrina Inglesa 37 3,39%
(29,56%)
Doutrina Espanhola 10 0,91%
Doutrina de Outra Nacionalidade 32 2,93%
Jurisprudência Mo- Jurisprudência Brasileira 21 1,92% 27
derna Jurisprudência Estrangeira 6 0,55% (2,47%)
Direito Romano 13 1,19%
Direito Canônico 0 0,00%
Direito Natural 3 0,27% 42
Direito pré-1822 (3,85%)
Ordenações 6 0,55%
Legislação Antigo Regime 17 1,56%
Legislação 1808-1822 3 0,27%

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019. 235


Walter Guandalini Junior

Natureza das Coisas 105 9,64%


Experiência Prática 11 1,01%
Experiência França 55 5,05%
Experiência Inglaterra 22 2,02%
Experiência Portugal 27 2,47%
Experiência Estados Unidos 15 1,37%
330
Realidade Experiência Espanha 14 1,28%
(30,27%)
Experiência Outros Países 18 1,65%
Ciência 4 0,36%
Parlamento Nacional 40 3,67%
Parlamento Estrangeiro 14 1,28%
Imprensa Nacional 1 0,09%
Imprensa Estrangeira 4 0,36%
1089
TOTAL (100%)

É impossível evitar a impressão de que a obra de Paulino de Sousa


é um ponto fora da curva na história do direito administrativo brasilei-
ro. Embora a Legislação Moderna permaneça uma importante referência
em seus escritos (33,78% do total), o autor não a considera mais im-
portante que a doutrina (29,56%) ou as referências à realidade (30,27%)
como fontes do direito administrativo. Talvez essa especificidade possa
ser explicada pelo caráter mais teórico do Ensaio, planejado como obra
introdutória a livro posterior que deveria se dedicar a uma análise mais
detalhada da legislação administrativa brasileira (mas que nunca chegou
a ser publicado).

Mas a verdade é que, mesmo no interior da categoria geral


“Legislação Moderna”, as fontes legislativas citadas por Sousa são muito
mais variadas e dispersas do que nas obras de seus contemporâneos, com
uma distribuição muito semelhante entre os diversos itens que compõem
a categoria – 6,14% para o direito constitucional, 7,62% para a legislação
brasileira, 8,81% para os regulamentos e 11,18% para a legislação es-
trangeira. Ressalte-se, especialmente, a enorme variedade de citações da
legislação estrangeira, que abrangem regras provenientes de países como
França, Portugal, Estados Unidos, Espanha, Inglaterra, Bélgica, Rússia,
Argentina, Áustria e Vaticano. Destacam-se, entre as fontes mais citadas,
a Lei 234/1841 (10,84% da legislação brasileira citada), que dispõe so-

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As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

bre a criação do conselho de Estado, e o Regulamento 124/1842 (12,5%


dos regulamentos citados), que estabelece o seu regimento. Confirma-se a
tendência já percebida anteriormente, de ênfase na atuação do imperador
e do conselho de Estado como instrumentos de compreensão do direito
administrativo brasileiro.

A mesma complexidade de referências textuais é percebida tam-


bém nas citações da doutrina, embora aí já se possa perceber uma nítida
predominância da doutrina francesa (72,66% do total de obras citadas)
– com especial destaque das obras de Adolphe Chaveau (Principes de
Compétence et de Juridiction Administratives, 1841; Code d’Instruction
Administrative, 1860 – 7,14% das obras citadas) e Louis Antoine Macarel
(Des Tribunaux Administratifs, 1828; Éléments de Droit Politique, 1833;
Cours d’administration et de droit administratif, 1852 – 4,96% das obras
citadas). Há referências também a obras provenientes da Inglaterra,
Espanha, Estados Unidos, Alemanha, Bélgica e Portugal. Quanto aos li-
vros brasileiros, o mais citado é o Direito Público Brasileiro e Análise da
Constituição do Império de Pimenta Bueno (1857), que recebe 4 men-
ções. As obras de Rego e Veiga Cabral são apenas mencionadas de pas-
sagem em uma nota de rodapé no preâmbulo, na qual Sousa as critica
com sutileza22. A pequena relevância das obras nacionais não pode nos
impedir de observar que, no Ensaio, começa a aparecer na nossa doutri-
na, pela primeira vez, algum diálogo efetivo com o pensamento jurídico
brasileiro.

Por fim, a terceira fonte digna de nota são as referências à Realidade


(30,27% do total). A sua importância no pensamento de Sousa talvez pos-
sa ser compreendida por sua intensa atuação política e administrativa,
mas esse fator sozinho não é suficiente para explicar a enorme diferença
entre a proporção de referências à realidade no seu pensamento e o de
Pimenta Bueno, por exemplo. A crítica se torna especialmente pertinente
22  –  A obra de Rego “não deixa de ter merecimento”, apesar de muito baseada no direito
francês e “bastantemente resumida”; quanto a Veiga Cabral, limita-se a informar que foi
seu lente de Direito Pátrio na Faculdade de Direito de São Paulo e, por esse motivo, pre-
fere delicadamente “[abster-se] de observações” – Sousa, Paulino José Soares. op. cit.,
p. XIII.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019. 237


Walter Guandalini Junior

quando se observa que a maior parte das citações não se refere à sua expe-
riência prática como administrador (1,01% do total) ou à sua atuação po-
lítica (5,40% do total, somando-se os debates parlamentares e na impren-
sa), mas ao conceito geral de “Natureza das Coisas” (9,64% do total) e à
experiência prática francesa (5,05% do total). Talvez, então, elas possam
ser melhor interpretadas como efeitos da influência do pensamento de
Montesquieu na teoria jurídica brasileira do século XIX, e da concepção
segundo a qual a interpretação do direito não deve se limitar à tradução
semântica do texto normativo, mas à explicitação da racionalidade objeti-
va que a fundamenta, na medida em que é compreendido como resultado
de relações objetivas derivadas da natureza das coisas23.

Também, no Ensaio, as referências às fontes citadas são predominan-


temente neutras ou positivas. As exceções relevantes são 17 citações da
experiência prática estrangeira (5,15% das referências à realidade), criti-
cadas como inadequadas ou incompatíveis à realidade jurídica nacional,
o que demonstra a preocupação do autor com a construção de um direito
administrativo ajustado às circunstâncias locais; e também 21 referências
ao “Direito Comum” e à legislação anterior a 1822 (50% das referências
ao direito pré-1822), que não os tomam como direito vigente, mas como
referências históricas para a compreensão do direito contemporâneo.

e) Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça – Excerto de


Direito Administrativo Pátrio (1865)

Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça nasceu em Luanda,


Angola, no ano de 1812. Foi nomeado professor da Faculdade de Direito
de São Paulo em 1839. Tornou-se, em seguida, delegado de polícia; em
1848, foi nomeado bibliotecário da Academia de Direito e, em 1850, pu-
blicou um Repertório Geral ou índice alfabético das leis do Império do
Brasil publicadas desde o começo do ano de 1808 até o presente. Em
1856, assumiu a cadeira de direito administrativo da Faculdade de Direito
de São Paulo e, poucos anos depois, publicava o seu Excerto de Direito

23  –  MONTESQUIEU, Charles Secondat. De L’Esprit des Lois. Paris: Gallimard, 1995,
p. 22.

238 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019.


As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

Administrativo Pátrio (1865), redigido “para servir de compêndio na aula


da 3ª cadeira do 5º ano da Faculdade de Direito da imperial cidade de São
Paulo”24. Aposentou-se em 1882 e faleceu em 1890.

O Excerto foi redigido em 191 páginas, que contêm 2857 citações,


média espantosa de 14,95 citações por página. O livro se divide em três
grandes partes, que abordam a ciência da administração, a teoria do di-
reito administrativo e a organização e as atribuições dos empregados ad-
ministrativos. O direito administrativo é conceituado como “o complexo
das leis que regulam a ação e competência da administração central e
local, em suas relações com os interesses e direitos dos administrados e
o interesse geral do estado, ou especial dos centros parciais de popula-
ção”, constituindo “uma ciência positiva, verdadeira e completa”25. São
identificadas como suas fontes as leis, os atos do poder executivo puro e
a jurisprudência administrativa26.
Quadro 5 – Excerto de Direito Administrativo Pátrio (Furtado de Mendonça, 1865)
Categorias Gerais Categorias Específicas Citações Percentual Total
Constituição do Brasil 152 5,32%
Ato Adicional 90 3,15%
Lei Interpretativa 24 0,84% 2257
Legislação Moderna (78,99%)
Legislação Brasileira Moderna 514 17,99%
Regulamentos do Executivo Brasileiro 1474 51,59%
Legislação de Outra Nacionalidade 3 0,10%
Doutrina Brasileira 0 0,00% 1
Doutrina Moderna (0,03%)
Doutrina de Outra Nacionalidade 1 0,03%
Jurisprudência Brasileira 298 10,43% 298
Jurisprudência Moderna (10,43%)
Jurisprudência Estrangeira 0 0,00%
Direito Romano 4 0,14%
Direito Canônico 17 0,59%
Direito Natural 0 0,00% 257
Direito pré-1822 (8,99%)
Ordenações 14 0,49%
Legislação Antigo Regime 187 6,54%
Legislação 1808-1822 35 1,22%

24  –  FURTADO DE MENDONÇA, Francisco Maria de Souza. Excerto de Direito Ad-


ministrativo Pátrio. São Paulo: Tipografia Alemã de Henrique Schroeder, 1865, p. 3.
25  –  FURTADO DE MENDONÇA. op. cit., p. 20.
26  –  FURTADO DE MENDONÇA. op. cit., p. 22.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019. 239


Walter Guandalini Junior

Natureza das Coisas 34 1,19%


Experiência Prática 0 0,00%
Experiência Outros Países 0 0,00%
Ciência 10 0,35% 44
Realidade (1,54%)
Parlamento Nacional 0 0,00%
Parlamento Estrangeiro 0 0,00%
Imprensa Nacional 0 0,00%
Imprensa Estrangeira 0 0,00%
2857
TOTAL (100%)

O quadro demonstra a continuidade da tendência brevemente in-


terrompida por Paulino de Sousa, de se tomar a “Legislação Moderna”
como principal fonte do direito administrativo – correspondem a quase
80% das fontes citadas. O destaque especial deve ser dado aos regula-
mentos do Executivo, que correspondem a 65,30% das fontes legislativas
mencionadas, seguidas, em um distante segundo lugar, pela legislação
brasileira (22,77% das fontes legislativas). As fontes mais citadas são o
Regulamento 124/1842, que contém o regimento do Conselho de Estado
(2,57% dos regulamentos), e o Código Criminal (8,36% da legislação
brasileira). Além de indicar a importância atribuída pelo autor, delegado
de polícia, à legislação penal, a baixa frequência de repetições e a disper-
são das citações demonstram também a sua erudição legislativa, que se
expande inclusive para a legislação do antigo regime (6,54% do total de
citações).
Mas, se a perspectiva do delegado pôde contribuir para a visão do
autor sobre as fontes do direito administrativo, a perspectiva do bibliote-
cário não foi tão influente. A erudição de Furtado de Mendonça é estrita-
mente legislativa, e o seu livro contém somente uma referência doutriná-
ria: ao Direito Civil de Portugal, publicado por Manuel Borges Carneiro
em 1851. As demais categorias de referências são igualmente irrelevantes,
exceto pelas citações da jurisprudência do conselho de Estado, que cor-
respondem a 10,43% do total de citações. A atenção especial à jurispru-
dência, todavia, não é suficiente para reduzir a importância avassaladora
da legislação como principal fonte do direito administrativo nacional. Por
fim, o contexto das citações é predominantemente neutro ou positivo, mas

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As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

mais da metade das referências ao direito anterior a 1822 se faz para a


reconstituição histórica de institutos (50,58% das citações da categoria).

f) Antônio Joaquim Ribas – Direito Administrativo Brasileiro (1866)

Antônio Joaquim Ribas nasceu no Rio de Janeiro em 23 de maio de


1818. Formou-se em Direito pela Faculdade de São Paulo em 1840 e,
no ano seguinte, ingressou como professor no Curso Anexo. Em 1849,
foi eleito deputado provincial, função que desempenhou continuamente
por mais de uma década. Tornou-se professor substituto da Faculdade de
Direito de São Paulo em 1854 e, no ano seguinte, assumiu a recém-criada
cadeira de direito administrativo. Na ocasião, substituía o primeiro pro-
fessor da disciplina, José Inácio Silveira da Mota que, por não ter encon-
trado um livro que pudesse servir à disciplina, havia decidido tomar como
compêndio o orçamento do império, para a indignação dos alunos27. Ao
enfrentar a mesma dificuldade, Ribas decidiu organizar apontamentos
para o acompanhamento dos estudantes que, depois se converteram no
Direito Administrativo Brasileiro, aprovado pela resolução imperial de
9 de fevereiro de 1861 para servir como compêndio nas Faculdades de
Direito do Recife e de São Paulo, e publicada no Rio de Janeiro em 1866.
Em 1856, Silveira da Mota requer a sua jubilação e Ribas perde a discipli-
na de Direito Administrativo, assumida por Furtado de Mendonça; passa a
lecionar as disciplinas de Direito Natural, Direito Administrativo, Direito
Público, Direito Eclesiástico, Economia Política e Direito Civil, até ser
nomeado lente catedrático desta última no ano de 1860. Em 1861, com-
pletou o seu último mandato como deputado provincial e mudou-se para
o Rio de Janeiro, onde passou a atuar como advogado. Foi um autor pro-
lífico: em 1865, publica o seu clássico Curso de Direito Civil Brasileiro
e, no ano seguinte, publica as suas já mencionadas anotações sobre o
Direito Administrativo Brasileiro (1866). Em 1871, é incumbido pelo go-
verno imperial de organizar uma compilação da legislação brasileira de
processo civil, que recebe força de lei pela resolução imperial de 28 de

27 – BARROS JÚNIOR, Carlos S. Antonio Joaquim Ribas (o conselheiro Ribas). In:


Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, vol. 69, nº 2. São Paulo:
USP, 1974, p. 242.

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dezembro de 1876 e é publicada, em 1878, sob o título Consolidação das


Disposições Legislativas e Regulamentares concernentes ao Processo
Civil. No ano seguinte, publica um comentário à sua própria consolidação
e, em 1881, é convidado a integrar uma comissão para avaliação do proje-
to de Código Civil, que abandona em 1883 – mesmo ano em que publica
o seu estudo Da Posse e das Ações Possessórias segundo o direito pátrio
comparado com o direito romano e canônico (1883). Publicou também
ensaios literários e poemas, entre os quais se encontram uma História dos
Paulistas (1850) e um texto sobre a Navegação do Paraná e seus afluen-
tes (1863). Faleceu em Petrópolis em 22 de fevereiro de 1890.

Quanto ao seu Direito Administrativo Brasileiro, foi redigido em


376 páginas, que contêm 1405 citações, média de 3,73 citações por pá-
gina. Preparado como obra introdutória28, destinava-se a ser o primei-
ro volume de um trabalho composto de cinco partes, nas quais seriam
sequencialmente examinadas as noções preliminares, a organização da
administração espontânea, os serviços administrativos relativos aos inte-
resses do estado, os serviços relativos aos interesses dos administrados e
a administração contenciosa. A obra se limita a uma discussão sobre as
categorias básicas do direito administrativo, dividida em três títulos: o
primeiro dedicado à ciência do direito administrativo; o segundo à estru-
tura da organização administrativa; e o terceiro aos administrados.

Após apresentar um panorama dos conceitos de direito administrati-


vo adotados por autores estrangeiros e nacionais (De Gerando, Laferrière,
Pradier-Foderé, Pereira do Rego, Furtado de Mendonça, Veiga Cabral,
Macarel, Pimenta Bueno), Ribas o define como a ciência que ensina a
organização administrativa e define os direitos e deveres recíprocos da
administração e dos administrados29. As fontes do direito administrativo
são classificadas em três categorias: atos do poder constituinte, atos do
poder legislativo ordinário e atos do poder executivo30 - justamente as ca-

28 – RIBAS, Antonio Joaquim. Direito Administrativo Brasileiro. Rio de Janeiro: F. L.


Pinto & C. Livreiros Editores, 1866, p. XI.
29 – RIBAS, Antonio Joaquim. op.cit., p. 17.
30 – RIBAS, Antonio Joaquim. op. cit., p. 37.

242 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019.


As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

tegorias básicas da “Legislação Moderna”, que correspondem a 74,09%


do total de fontes citadas:
Quadro 6 – Direito Administrativo Brasileiro (Ribas, 1866)
Categorias Gerais Categorias Específicas Citações Percentual Total
Constituição do Brasil 96 6,83%
Ato Adicional 17 1,20%
Lei Interpretativa 1 0,07%
1041
Legislação Moderna Legislação Brasileira Moderna 283 20,14%
(74,09%)
Regulamentos do Executivo Brasileiro 612 43,55%
Legislação Francesa Moderna 13 0,92%
Legislação de Outra Nacionalidade 19 1,35%
Doutrina Brasileira 25 1,77%
112
Doutrina Moderna Doutrina Francesa 58 4,12%
(7,97%)
Doutrina de Outra Nacionalidade 29 2,06%
Jurisprudência Jurisprudência Brasileira 4 0,28% 4
Moderna Jurisprudência Estrangeira 0 0,00% (0,28%)
Direito Romano 30 2,13%
Direito Canônico 6 0,42%
Direito Natural 1 0,07% 167
Direito pré-1822 (11,88%)
Ordenações 17 1,20%
Legislação Antigo Regime 94 6,69%
Legislação 1808-1822 19 1,35%
Natureza das Coisas 31 2,20%
Experiência Prática 0 0,00%
Experiência França 4 0,28%
Experiência Outros Países 28 1,99%
81
Realidade Ciência 14 0,99%
(5,76%)
Parlamento Nacional 3 0,21%
Parlamento Estrangeiro 0 0,00%
Imprensa Nacional 1 0,07%
Imprensa Estrangeira 0 0,00%
TOTAL 1405

Na categoria “Legislação Moderna”, sobressaem a legislação brasi-


leira (27,18% das citações na categoria) e os regulamentos do executivo
(58,77% das citações na categoria). As fontes mais citadas são o Código
Criminal (10,60% da legislação brasileira) e o Regulamento sobre a po-
lícia de 31 de janeiro de 1842 (2,45% dos regulamentos), reiterando as
tendências percebidas em Furtado de Mendonça, de ênfase no Direito
Criminal e ampla dispersão das referências aos regulamentos.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019. 243


Walter Guandalini Junior

Quanto às demais fontes, merecem destaque as referências à dou-


trina (7,97% do total) e ao direito anterior a 1822 (11,88% do total).
Na doutrina, há uma nítida predominância de obras francesas, mas o
autor mais citado é o brasileiro José Antônio Pimenta Bueno (9,82%
das referências doutrinárias). O segundo colocado é Joseph-Marie De
Gerando (7,14% das citações de doutrina são dos seus Institutes de Droit
Administratif Français, 1836). Além deles, há também referências a au-
tores da Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Estados Unidos, Inglaterra
e Portugal. As referências a normas jurídicas editadas antes de 1822 tam-
bém são relevantes, em especial da legislação portuguesa de antigo regi-
me e do direito romano. Deve-se ressaltar, no entanto, que 27,54% das
referências a essa categoria são realizadas em contexto histórico ou ne-
gativo, o que contribui para redimensionar sua importância na estrutura
argumentativa do autor. Por fim, merecem menção também as referências
à realidade (5,76% do total), com ênfase na “natureza das coisas”, na ex-
periência administrativa estrangeira e na ciência (administração, direito,
economia política e estatística). A jurisprudência é claramente irrelevan-
te, assim como o debate perante a opinião pública no parlamento ou na
imprensa.

g) José Rubino de Oliveira – Epítome de Direito Administrativo se-


gundo o programa do curso de 1884 (1884)

José Rubino de Oliveira nasceu em Sorocaba, em 24 de agosto de


1837. Tem uma trajetória profissional e intelectual diferente dos demais
autores de nossa coletânea: negro, proveniente de família pobre, cedo se
tornou órfão de pai e foi educado pelo padrasto, que comerciava arreios
na “cidade dos tropeiros” e lhe ensinou as primeiras letras. Adotou inicial-
mente a profissão de seleiro, mas se matriculou no Seminário Episcopal
de São Paulo em 1859. Ali, passou quatro anos estudando humanidades
e teologia, disciplinas que o prepararam para a Academia Jurídica de São
Paulo logo após a saída do seminário, em 1864 – estratégia largamen-
te utilizada por sujeitos pobres do século XIX31. Durante a graduação,

31  –  PORTES E CRUZ. op. cit., p. 161.

244 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019.


As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

sustentou-se como professor particular, o que o permitiu dar continuidade


aos seus estudos e se formar em 1868. Em 1871, abriu banca de advogado
em Atibaia, mas logo retornou a São Paulo. Na capital, foi reprovado em
oito concursos consecutivos para atuar como professor na Faculdade de
Direito, tendo sido aprovado somente na nona tentativa, em 1879, para a
disciplina de direito natural – quando se tornou o primeiro professor ne-
gro da história da Faculdade de Direito de São Paulo. A sequência de con-
cursos fracassados motivou a publicação das teses que apresentou às ban-
cas de avaliação, sobre direito tributário, direito de família, direito civil e
direito criminal. Em 1882, se tornou catedrático de direito administrativo
e, dois anos depois, publicou a sua Epítome de Direito Administrativo
segundo o Programa do Curso de 1884, redigida para servir como texto-
-base da disciplina. Faleceu em 4 de agosto de 1891, aos 54 anos de idade.

A Epítome de Direito Administrativo tem 243 páginas e 443 cita-


ções, com uma média de 1,82 citações por página. Dividida em cinco
grandes partes, a obra trata do estatuto e da posição científica do direito
administrativo; da ciência da administração; da estrutura da administra-
ção brasileira; dos administrados; e da justiça administrativa. O direito
administrativo é definido com base em Laferrière, para quem é “a ciência
da ação e da competência do poder executivo, das administrações gerais
e locais e dos conselhos administrativos, em suas relações com os interes-
ses ou direitos dos administrados, em face do interesse geral do Estado”32.
Quanto às suas fontes, são identificadas como “fontes próximas” as leis
que regulam as relações entre a administração e os administrados; as
leis concernentes à organização administrativa e às relações hierárqui-
cas entre os seus agentes; os atos regulamentares do poder executivo;
e a jurisprudência administrativa, composta das decisões dos tribunais
administrativos e dos pareceres dos órgãos de consulta da administração.
E são fontes remotas do direito administrativo as leis constitucionais, as
leis ordinárias em geral, os tratados com as potências estrangeiras e as

32  –  RUBINO DE OLIVEIRA, José. Epítome de Direito Administrativo Brasileiro se-


gundo o Programa do Curso de 1884. São Paulo: Leroy King Bookwalter, 1884, p. 5.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019. 245


Walter Guandalini Junior

concordatas com a Santa Sé33. A distribuição das referências pode ser


observada no quadro abaixo:
Quadro 7 – Epítome de Direito Administrativo (Rubino de Oliveira, 1844)
Categorias Gerais Categorias Específicas Citações Percentual Total
Constituição do Brasil 122 27,53%
Ato Adicional 68 15,34%
Lei Interpretativa 9 2,03% 339
Legislação Moderna (76,52%)
Legislação Brasileira Moderna 73 16,47%
Regulamentos do Executivo Brasileiro 67 15,12%
Legislação de Outra Nacionalidade 0 0,00%
Doutrina Brasileira 31 6,99%
55
Doutrina Moderna Doutrina Francesa 24 5,41%
(12,41%)
Doutrina de Outra Nacionalidade 0 0,00%
Jurisprudência Jurisprudência Brasileira 0 0,00% 0
Moderna Jurisprudência Estrangeira 0 0,00% (0,00%)
Direito Romano 0 0,00%
Direito Canônico 1 0,22%
Direito Natural 1 0,22% 5
Direito pré-1822 (1,12%)
Ordenações 1 0,22%
Legislação Antigo Regime 0 0,00%
Legislação 1808-1822 2 0,45%
Natureza das Coisas 31 6,99%
Experiência Prática 3 0,67%
Experiência Outros Países 1 0,22%
Ciência 8 1,80% 44
Realidade (9,93%)
Parlamento Nacional 1 0,22%
Parlamento Estrangeiro 0 0,00%
Imprensa Nacional 0 0,00%
Imprensa Estrangeira 0 0,00%
443
TOTAL (100%)

Percebe-se, em primeiro lugar, novamente, a clara predominância da


“Legislação Moderna” (76,52% do total de citações). Surpreendentemente,
nela, se destaca uma das “fontes remotas” do direito administrativo, já
que o conjunto das referências ao direito constitucional abarca 58,70%
da categoria. O restante é composto por referências à legislação brasilei-
ra (21,53% da categoria) e aos regulamentos do executivo (19,76% da
categoria), sem citações da legislação estrangeira. Os dispositivos mais
33  –  RUBINO DE OLIVEIRA. op. cit., p. 18.

246 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019.


As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

citados são o art. 102 da Constituição (10,61% das referências consti-


tucionais) e o art. 10 do Ato Adicional de 1834 (9,49% das referências
constitucionais), que tratam, respectivamente, das atribuições do Poder
Executivo e da competência legislativa das Assembleias Provinciais.
A lei mais citada é a de 1º de outubro de 1828, que regula as Câmaras
Municipais (24,65% das referências legislativas) e o regulamento mais
citado é o de 5 de fevereiro de 1842 (32,83% das citações de regulamen-
tos), que contém o regimento do Conselho de Estado.

A doutrina continua importante (12,41% do total), mas ainda mais


importante é o fato de que, pela primeira vez, a doutrina brasileira é mais
citada que a estrangeira, compondo 56,36% das referências doutrinárias.
O autor mais citado é Antônio Joaquim Ribas, cujo Direito Administrativo
Brasileiro (1866) corresponde a 25,45% de toda a doutrina. As obras es-
trangeiras se limitam à doutrina francesa, sem que predomine um autor
específico – o Cours de Droit Public et Administratif (1839) de Firmin
Laferrière corresponde a 10,90% da doutrina.

As referências à realidade também desempenham um papel impor-


tante na Epítome (9,93% do total), e se concentram principalmente na
“natureza das coisas” (70,45% da categoria) e na ciência (18,18% da ca-
tegoria). As citações do direito anterior a 1822 são insignificantes, assim
como o debate na imprensa e no parlamento.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019. 247


Walter Guandalini Junior

3 Conclusões
A análise dos dados coletados nos conduz a resultados gerais que
permitem traçar um panorama abrangente das fontes de produção do di-
reito administrativo brasileiro durante o século XIX, conforme o quadro
abaixo:

Quadro 8 – Fontes do Direito Administrativo Brasileiro (Média Geral)

Categorias Gerais Categorias Específicas Percentual Total

Direito Constitucional 14,79%

Legislação Brasileira Moderna 20,08%


Legislação Moderna 71,85%
Regulamentos do Executivo Brasileiro 34,03%

Legislação de Outra Nacionalidade 2,95%

Doutrina Brasileira 1,46%


Doutrina Moderna 9,75%
Doutrina de Outra Nacionalidade 8,30%
Jurisprudência Mo-
Jurisprudência 2,01% 2,01%
derna
Direito pré-1822 Direito pré-1822 7,94% 7,94%

Realidade Realidade 8,38% 8,38%

TOTAL 100%

Verifica-se uma clara predominância das fontes legislativas, em es-


pecial da legislação brasileira e dos regulamentos do executivo, embo-
ra haja uma participação significativa também do direito constitucional.
Percebe-se o nítido interesse da doutrina na análise das atribuições do im-
perador e de seus órgãos auxiliares, o que pode ser compreendido levan-
do-se em consideração as funções desempenhadas pela disciplina na cul-
tura jurídica brasileira do século XIX – de fundação e de estruturação do
Estado brasileiro pelo fortalecimento da posição política do Imperador,
como já se demonstrou anteriormente34. Chama a atenção também, con-
tudo, a importância atribuída às regras de direito criminal como fontes do
direito administrativo, o que talvez se explique pela importância da polí-

34 – GUANDALINI JR., Walter. História do Direito Administrativo Brasileiro: Forma-


ção (1821-1895). Curitiba: Juruá, 2016, p. 253.

248 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019.


As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

cia administrativa para as discussões da disciplina, ou pelo simples fato


de se tratar de direito codificado, diante da profusão de normas esparsas
em vigência no período (também não são poucas as citações do Código
de Processo Criminal e do Código Comercial).

A doutrina tem uma importância relativamente pequena, aparecendo


em um distante segundo lugar, apesar das transformações que aparecem
na análise diacrônica. A peculiaridade acentua as diferenças em relação
ao campo do direito privado, no qual Hespanha havia percebido a sua pre-
dominância como fonte jurídica35. Há um nítido predomínio da doutrina
francesa, mas não se verifica a preferência por uma obra em especial. É
possível que a influência francesa se justifique não somente pela impor-
tância e pela vanguarda da doutrina francesa na estruturação do direito
administrativo moderno, mas também pelo fato de o direito administrati-
vo ter sido incorporado à ordem jurídica brasileira essencialmente como
direito científico (e não jurisprudencial ou legislativo), a extrair seus prin-
cipais fundamentos justamente da doutrina de referência do período36. A
doutrina brasileira é pouco importante em face da doutrina estrangeira,
o que é compreensível diante da pequena quantidade de estudos sobre o
direito administrativo em circulação no país.

A pequena proporção de referências doutrinárias também reforça a


profunda influência das teorias francesas sobre o direito administrativo
brasileiro. Como explica François Burdeau37, as primeiras gerações de
administrativistas franceses se distinguiam pelo culto revolucionário à
lei como manifestação da soberania popular, nos termos do que então
propunha o prestigioso pensamento da Escola da Exegese. Incorporando
os padrões argumentativos e os estilos narrativos das suas inspirações
francesas, os autores brasileiros acabam incorporando também os seus

35  –  HESPANHA, António Manuel (2010). Razões de decidir na doutrina portuguesa e


brasileira do século XIX. Um ensaio de análise de conteúdo. In: Quaderni Fiorentini per
la storia del pensiero giuridico moderno, n. 39. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, p. 149.
36  –  A hipótese foi melhor desenvolvida em Guandalini Junior, Walter. A tradução do
conceito de direito administrativo pela cultura jurídica brasileira do século XIX. In: Revis-
ta da Faculdade de Direito da UFMG, nº 74. Belo Horizonte: UFMG, 2019, p. 473-498.
37 – BURDEAU, François (1995). Histoire du Droit Administratif. Paris: PUF, p. 111.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019. 249


Walter Guandalini Junior

pressupostos teóricos implícitos, que se manifestam nos interstícios de


seus estudos sobre a matéria.

A jurisprudência é pouquíssimo mencionada, e sempre está restrita


às decisões em consultas ao conselho de Estado. As atas das reuniões não
eram todas publicadas, e o acesso ao seu conteúdo não era simples; na im-
possibilidade de acesso estruturado às decisões do conselho não era pos-
sível tomá-las como fonte de um pensamento científico acerca do direito
administrativo. A doutrina da época se ressentia disso, como demonstra a
crítica de Paulino de Sousa a essa falta de organização38:
As Consultas das Seções e do Conselho de Estado não têm a força e
importância que têm, por exemplo, na França.
Não tem sido coligidos, nem se trata de coligir, as tradições e arestos,
que podem servir, como na França servem, de regra e guia, pelo que a
jurisprudência administrativa contenciosa é entre nós muito arbitrária
e obscura, e apenas acessível aos que têm entrada nas secretarias, e
coragem bastante para desempoeirar maços de papel enormes, onde
tudo jaz sepultado no pó do esquecimento.

As referências a normas jurídicas anteriores a 1822 podem parecer


importantes à primeira vista, mas são citadas em contexto negativo ou de
recuperação histórica, o que mostra que não eram tomadas como fontes
do direito administrativo.

Por fim, as referências à realidade aparecem em terceiro lugar, o


que é significativo, especialmente por ultrapassarem outras fontes de
produção usualmente consideradas mais relevantes pela cultura jurídica
contemporânea (como a própria jurisprudência); trata-se especialmente
de referências à “natureza das coisas”, à ciência e à experiência práti-
ca francesa, o que indica que a “realidade” a que os autores se referiam
era a realidade teórica correspondente às relações objetivas derivadas da
natureza das coisas de que falava Montesquieu39, e não propriamente a
realidade empírica da sociedade e da administração pública brasileira no

38  –  SOUSA, Paulino José Soares. Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de Janei-
ro: Typographia Nacional, 1862, p. 128.
39 – MONTESQUIEU, Charles Secondat. De L’Esprit des Lois. Paris: Gallimard, 1995,
p. 22.

250 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019.


As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

período. Nessa preocupação com a realidade, não há sociologia, que viria


a se tornar importante para o pensamento jurídico brasileiro somente ao
final do século; são recuperações, mais ou menos, sistematizadas de ex-
periências pessoais, abstraídas em reflexões filosóficas sobre as “relações
naturais” existentes entre os fenômenos observados. Essa interpretação
ajuda a compreender também a pequena importância atribuída pelos au-
tores examinados à opinião pública e ao debate político brasileiro como
instrumentos de compreensão de nosso direito administrativo, indicando
o baixo índice de circulação entre “alta” e “baixa” cultura jurídica para a
disciplina.

A análise diacrônica também conduz a algumas conclusões interes-


santes:
Quadro 9 – Razões do Direito Administrativo Brasileiro (1857-1884)

As normas constitucionais aparecem como referências importantes


para a disciplina somente no início e no final do período; uma hipótese
que pode explicar que a discrepância talvez seja, para o período inicial, a
necessidade de criação de um campo disciplinar autônomo para a matéria,
que a torna ainda bastante dependente do direito constitucional; e, para o
período final, as transformações por que vinha passando o direito público
brasileiro na crise final do império e na transição para a República, que
podem ter tornado necessário o retorno ao direito constitucional como
fundamento último da autoridade de governo.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019. 251


Walter Guandalini Junior

Quanto às referências à legislação nacional, têm uma tendência de-


crescente, aparentemente resultado de sua progressiva substituição pelos
regulamentos. A tendência parece indicar uma crescente especialização
da disciplina, que se torna cada vez menos dependente da legislação abs-
trata de direito público, e cada vez mais atenta às normas e regulamentos
especiais emitidos pelo executivo – e que constituem, afinal de contas, a
sua essência específica como campo disciplinar autônomo.

As referências à legislação estrangeira também têm tendência de-


crescente, a indicar a progressiva independência da doutrina nacional em
relação ao direito administrativo exógeno, o que se percebe igualmente
na proporção decrescente de referências à doutrina estrangeira e na pro-
porção crescente de referências à doutrina nacional. Vê-se que os dados
indicam, ao final do século XIX, a consolidação da doutrina brasileira
sobre o direito administrativo como saber científico autônomo em relação
aos demais campos de saber jurídico e à doutrina francesa que o havia
inspirado.

As referências à jurisprudência, ao direito anterior a 1822 e à realida-


de se mantêm, de modo geral, estáveis, apesar de variações pontuais em
obras de autores específicos.

Em síntese, a pesquisa realizada chegou às seguintes conclusões so-


bre as “razões” do direito administrativo brasileiro:
Razões do Direito Administrativo Brasileiro – Conclusões Gerais
Brasileiros
Formados em São Paulo
Membros da Alta Burocracia de Estado
Perfil dos Juristas Professores nas Faculdades de Direito
Divididos entre Políticos e Profissionais
Divididos entre Perfil Eloquente e Perfil Cientista
Especialistas
Obras de Maturidade
Características das Obras Obras Especializadas
Voltadas ao público acadêmico e profissional

252 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019.


As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

Fontes Legislativas
Predominância de Regulamentos do Executivo
Ênfase nas atribuições do imperador
Importância do direito constitucional no início e no final do período
Transição da doutrina francesa para a doutrina brasileira
Fontes do Direito
Irrelevância da jurisprudência
Direito anterior a 1822 como contexto histórico
Atenção à “natureza das coisas”
Sem diálogo com a “baixa cultura jurídica”
Influência da Escola da Exegese

Texto apresentado em maio de 2019. Aprovado para publicação em


outubro de 2019.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019. 253


Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

255

PODER E PUNIÇÃO ATRAVÉS DA CLEMÊNCIA:


O DIREITO DE GRAÇA ENTRE DIREITO PENAL E
CONSTITUCIONAL NA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA
(1824-1924)
POWER AND PUNISHMENT THROUGH MERCY: THE
RIGHT OF PARDON BETWEEN PENAL LAWS AND
CONSTITUTIONAL LAW IN THE BRAZILIAN JURIDICAL
CULTURE (1824-1924)
Arthur Barrêtto de Almeida Costa1
Resumo: Abstract:
A graça é um instituto que contraria frontalmente Pardon is an institute that frontally contradicts
o legalismo, por permitir a intrusão de um poder legalism, by allowing the intrusion of a
discricionário no direito penal. Entretanto, ela discretionary power in criminal law. However,
permanece em quase todos os países europeus it was kept in nearly all Latin-American and
e latino-americanos no século XIX. Este traba- European countries during the 19th century.
lho procura compreender como e por que isso This paper aims to understand how and why
ocorreu no Brasil. Analisamos obras de direito this happened in Brazil. We analyzed works
constitucional e penal, com o apoio de jornais e in constitutional and criminal law, with the
das atas do Conselho de Estado. Identificamos support of newspapers and registers from the
três argumentos que justificavam a existência da State Council. Three main arguments could be
misericórdia imperial: conciliar lei abstrata com identified as justification for the existence of
justiça do caso concreta; reconhecer a expiação imperial mercy: conciliation of the abstract law
da culpa do réu; e corrigir falhas no ordenamen- with concrete justice; atonement of convict’s
guilt and correction of legal flaws. There was
to. Um quarto e marginal argumento ainda pode
a forth and peripheral argument: rewards for
ser observado: a possibilidade de recompensar services to the State. Legal flaws corrected
serviços prestados ao Estado. As falhas legais through pardon were the harshness of the June
corrigidas pela graça foram a dureza da lei de 10th of 1835 act on slave crimes repression;
10 de junho de 1835 sobre repressão de crimes problems with the appeal review (recurso
cometidos por escravos; problemas no recurso de revista); and the delay in death penalty
de revista; e a demora na abolição da pena de abolishment. Criticism to pardon was minimum.
morte. As críticas ao instituto eram mínimas. With the emergence of the republic, some roles
Com a república, algumas funções da clemência of executive clemency were taken by parole and
executiva passam a ser feitas pelo livramento criminal review (revisão criminal). Criticism
condicional e pela revisão criminal. As críticas grew, but was still marginal. It is possible to
aumentam, mas ainda são minoritárias. É pos- see, throughout the 19th century, an increasing
sível identificar, ao longo do século XIX, um distance between pardon and constitutional
afastamento da graça do direito constitucional law and its approximation to criminal law.
e uma aproximação do direito penal. Também é It is also possible to say that executive mercy

1  –  Doutorando em Teoria e História do direito pela Università degli Studi di Firenze.


Bacharel e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do
Studium Iuris – Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica (CNPq/UFMG). E-
-mail: [email protected]. Esta pesquisa contou com financiamento da FAPEMIG
(Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais) por meio de bolsa de iniciação cien-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):255-304, set./dez. 2019. 255


Arthur Barrêtto de Almeida Costa

possível dizer que a graça se adapta bem à cul- suits Brazilian legal culture of the 19th century
tura jurídica brasileira oitocentista, por causa da well. Some reasons are: its connection to the
sua ligação com o poder moderador, o contexto pouvoirmoderateur, a favorable international
internacional favorável e a sua utilidade em cor- context and its usefulness in correcting
rigir falhas legislativas. legislative flaws.
Palavras-chave: Graça; Poder Moderador; Li- Keywords: Pardon; Moderating Power; Parole;
vramento Condicional; Perdão. Forgiveness.

The quality of mercy is not strain’d,


It droppeth as the gentle rain from heaven
Upon the place beneath: it is twice blest;
It blesseth him that gives and him that takes:
‘Tis mightiest in the mightiest: it becomes
The throned monarch better than his crown;
His sceptre shows the force of temporal power,
The attribute to awe and majesty,
Wherein doth sit the dread and fear of kings;
But mercy is above this sceptred sway;
It is enthroned in the hearts of kings,
It is an attribute to God himself;
And earthly power doth then show likest God’s
When mercy seasons justice.
William Shakespeare
The Merchant of Venice

1 Clemência e justiça: introdução


O perdão é um atributo que vai muito além do senso comum de jus-
tiça. Ele coloca fim em um ciclo de vingança e de violência. Vai contra a
noção de que a lei é dar a cada um o que lhe é devido: evita que o castigo
atinja a quem o merece. Daí a sua associação com o divino: a busca da
vingança é demasiado humana; ir além dela é um atributo que só pode
pertencer ao próprio Deus. Porque “it becomes the throned monarch bet-
ter than his crown”, como disse Shakespeare.

Essas são algumas verdades amplamente reconhecidas pela maioria


das pessoas quando se trata de virtudes morais, mas desconhecidas quan-

tífica, e faz parte do projeto, também financiado pela FAPEMIG, intitulado “História do
direito penal brasileiro em perspectiva comparada”, edital Demanda Universal n. 1/2017.

256 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):255-304, set./dez. 2019.


Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

do se pensa no direito. As cenas impressionantes do condenado ajoelhado


perante o monarca enquanto clama desesperadamente por misericórdia
parecem pertencer a um passado há muito esquecido; um passado medie-
val mesmo. Ainda assim, este não é o quadro que encontramos mesmo
nos tempos modernos: a misericórdia ainda é uma característica impor-
tante do poder, mesmo em questões jurídicas.

O século XIX é um tempo de certeza e de segurança na filosofia e na


sensibilidade pública. Em direito, isso se traduz na forma do conceito de
legalismo. Apesar disso, a graça – perdão concedido pelo poder público
em matéria criminal – continuou presente em quase todas as constituições
europeias e latino-americanas daquela época. Podemos perceber isso ob-
servando as constituições apresentadas no anexo deste artigo. Entre as
cartas analisadas, apenas as da França revolucionária (1791, 1793, 1795,
17992) aboliram a faculdade de perdoar as penas; e mesmo lá, esse po-

2 – FRANÇA. Constitution de l'An VIII - Consulat – 22 frimaire An VIII, 13 dé-


cembre 1799, http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/
laconstitution/les-constitutions-de-la-france/constitution-du-22-frimaire-an-viii.5087.
html. Acesso em: 11.10.2017; FRANÇA. Constitution de l'An X – Consulat à vie – 16
thermidor An X, 4 août 1802, http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitu-
tionnel/francais/la-constitution/lesconstitutions-de-la-france/constitution-du-16-termi-
dor-an-x.5088.html. Acesso em 10 de outubro de 2017; FRANÇA. Constitution de l'An
XII – Empire – 28 floréal An XII, 18 mai 1804, http://www.conseil-constitutionnel.fr/
conseil-constitutionnel/francais/la-constitution/lesconstitutions-de-la-france/constitu-
tion-de-l-an-xii-empire-28-floreal-an-xii.5090.html. Acesso em: 11.10.2017; France.
Charte de 1814 – 1ère Restauration - 4 juin 1814; FRANCE, http://www.conseilconsti-
tutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-constitution/les-constitutions-de-lafrance/
charte-constitutionnelle-du-4-juin-1814.5102.html. Acesso em: 11.10.2017; FRANÇA.
Acteadditionnel aux Constitutions de l'Empire – Cent-jours – 23 avril 1815, http://www.
conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-constitution/lesconstitu-
tions-de-la-france/acte-additonnel-aux-constitutions-de-l-empire-du-22-avril1815.5103.
html. Acesso em: 11.10.2017; FRANÇA. Charte de 1830, monarchie de Juillet – 14 août
1830, http://www.conseilconstitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-constitu-
tion/lesconstitutions-de-la-france/charte-constitutionnelle-du-14-aout-1830.5104.html.
Acesso em: 11.10.2017; FRANÇA. Constitution de 1848, IIeRépublique - 4 novembre
1848, http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-constitu-
tion/lesconstitutions-de-la-france/constitution-de-1848-iie republique.5106.html. Acesso
em: 11.10.2017; FRANÇA. Constitution de 1852, Second Empire – 14 janvier 1852,
http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-constitution/les-
constitutions-de-la-france/constitution-de-1852-second-empire.5107.html. Acesso em:
11.10.2017. FRANÇA. Lois constitutionnelles de 1875, IIIeRépublique – 24, 25 février

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):255-304, set./dez. 2019. 257


Arthur Barrêtto de Almeida Costa

der foi restaurado, após a ascensão de Napoleão I, e continuou a existir


nos tempos republicanos. O mesmo ocorreu no Chile após a abolição de
18223.

Como conciliar a aparente incompatibilidade entre graça e legalis-


mo com a sua presença constante nos ordenamentos jurídicos europeus
e latino-americanos? A graça foi realmente mantida, ou foi alterada para
transformar-se em algo novo?

O objetivo deste artigo é responder a algumas dessas questões.


Escolhemos o Brasil para discutir essas tendências. Aqui, uma circunstân-
cia crucial e particular torna o perdão ainda mais interessante: a recepção
do conceito de poder moderador, categoria desenvolvida por Benjamin
Constant, constantemente utilizada pelos publicistas da Europa do século
XIX. No entanto, foi apenas com a Constituição brasileira de 1824 – e
com a sua cópia quase literal, a Carta Portuguesa de 1826 – que essa no-
ção foi explicitamente estabelecida em um ordenamento jurídico. O poder
real foi, assim, reforçado, e a graça era uma de suas prerrogativas mais
frequentemente utilizadas. Para compreender o papel do Imperador, é in-
dispensável compreender a própria natureza do perdão do Estado. Mesmo
durante o primeiro período republicano brasileiro, de 1889 a 1930, a gra-
ça continuou a existir. Alterada de muitas maneiras, é bem verdade, mas
ainda amplamente aceita, a graça não foi aplicada apenas pelo presidente,
mas foi distribuída para vários outros funcionários públicos. Mesmo as-
sim, os juristas brasileiros têm uma grande estima pelo instituto.

Este artigo propõe uma análise relevante, uma vez que a historio-
grafia anterior nunca enfrentou diretamente esses problemas. Em relação
ao século XIX, há uma importante quantidade de estudos sobre a graça
em diversos países, mas nenhum outro autor trata especificamente de sua

et 16 juillet 1875, http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/


laconstitution/les-constitutions-de-la-france/constitution-de-1875-iiie-republique.5108.
html. Acesso em: 11.10.2017.
3 – CHILE. Constitución politica del estado de Chile sancionada y promulgada en 30 octub-
re 1822, https://www.leychile.cl/Consulta/m/norma_plana?idNorma=1005168&org=cch.
Acesso em: 11.10.2017.

258 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):255-304, set./dez. 2019.


Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

dimensão jurídica no Brasil4, com exceção de um trabalho que analisa a


graça no Conselho de Estado no fim do primeiro reinado e na regência5;
por isso, meu foco maior volta-se para o segundo reinado e a república.

4  –  BOER, Emile de. Les dossiers de grâce des auteurs d’attentats politiques dans la
France du XIXe siècle. La Révolution Française: Cahiers de l’Instituted’Histoire de
la RévolutionFrançaise, online, n. 1, v. 1, 2012, http://lrf.revues.org/416. Acesso em:
11.10.2017; DEVERAUX, Simone. Imposing the Royal Pardon: Execution, Transpor-
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590; NUBOLA, Cecilia. Giustizia, perdono, oblio: la grazia in Itália dall’età moderna
ad oggi. In: HÄRTER, Karl; NUBOLA, Cecilia (Org.), Grazia e giustizia: figure dela
clemenza fra tardo medioevo ed età contemporanea. Bologna: Il Mulino, 2011, p. 11-42;
PHILLIPS, J. The operation of royal pardon in Nova Scotia, 1749-1815, University of
Toronto Law Journal, n. 42, p. 401-449, 1992; PRAYER, K. Crime, the criminal law and
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p. 53-85, 1983; SALNKIN, B. The pardoning power in antebellum Pennsylvania. The
Pennsylvania Magazine of History and Biography, v. 100, n. 4, p. 507-520, Out., 1976;
STRONATI, Monica. Il più bel gioiello della corona: la grazia nella tradizione costitu-
zionale italiana. Giornale di storia costituzionale, n. 7, vol. 1, p. 259-179, Macerata, jan./
jun., 2004; STRONATI, Monica. Il governo della “grazia”: giustizia sovrana e ordine giu-
ridico nell’esperienza italiana (1848-1913). Milano: Giuffrè, 2009; STRONATI, Monica.
Legislazione, scienza giuridica e pratica del »perdono« tra Otto- e Novecento: continuità
e mutamenti. In: HÄRTER, Karl; NUBOLA, Cecilia (Org.). Grazia e giustizia: figure
dela clemenza fra tardo medioevo ed età contemporanea. Bologna: Il Mulino, 2011, p.
101-126; STRONATI, M. L’eccezione che conferma la regola. Grazia, potere giudiziario
e circolari ministerial tra XIX e XX secolo. In: COLAO, Floriana et al, Perpetue apendici
e codicilli alle legge italiane: Le circolari ministerial, il potere regolamentare e la politica
del diritto in Italia tra Otto e Novecento. Macerata: EUM, 2011, p. 669-682; STRONATI,
Monica. La grazia e la giustizia durante il fascismo. In: LACCHÉ, Luigi (Org.), Il diritto
del duce: giustizia e repression nell’Italia fascista. Roma: Donzelli, 2015.
5 – COSTA, Arthur Barrêtto de Almeida. Pardoning and Punishing in Times of Transiti-
on: The Pardon Appeal (Recurso de Graça) on the Brazilian Council of State (1828-1834).
Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 10, nº 4, p.2341-2366, set/dez 2019.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):255-304, set./dez. 2019. 259


Arthur Barrêtto de Almeida Costa

Alguns artigos e livros já traçaram as interseções do instituto com a his-


tória da escravidão, mas outros aspectos do problema permanecem obs-
curos6. Há alguns textos sobre o poder moderador, mas nenhum analisa
diretamente a graça7.

Além da graça em si, tratarei de instituições próximas a ela – ou me-


lhor, que se aproximaram da clemência estatal por circunstâncias especí-
ficas, seja do Brasil do século XIX ou de tendências mundiais de reforma.
Liberdade condicional, revisão criminal e abolição da pena capital foram
alguns dos problemas alcançados pela clemência real – nem sempre pelo
caminho mais óbvio, como veremos.

Meu objetivo não é fazer uma história administrativa da graça, mas


seguir a história do pensamento jurídico. É uma parte da cultura jurídica,
ou seja, como Cappellini, Fioravanti, Costa e Sordi definem, pretendo
analisar “uma classe de textos que são jurídicos enquanto assumem o
direito como seu objeto, refletem sobre ele ilustrando as suas caracterís-
ticas gerais ou as mais refinadas determinações e se apresentam como
lugares de elaboração e de transmissão de um saber específico”8. Utilizei,
portanto, como fontes especialmente as obras de constitucionalistas e cri-
6 – BROWN, A. “A Black Mark on Our Legislation”: Slavery, Punishment, and the Poli-
tics of Death in Nineteenth-Century Brazil. Luso-Brazilian Review, v. 37, nº. 2, pp. 95121,
2000; PIROLA, Ricardo. Escravos e rebeldes nos tribunais do império: uma história so-
cial da lei de 10 de junho de 1835. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2015; RIBEIRO,
João Luís. No meio das galinhas, as baratas não têm razão: a lei de 10 de junho de 1835:
os escravos e a pena de morte no Império do Brasil (1822-1889). Rio de Janeiro: Renovar,
2005.
7 – GUANDALINI JR, Walter. O poder moderador: ensaio sobre o debate jurídico-
constitucional do século XIX. Curitiba: Apris, 2016; LYNCH, Christian Edward Cyrill.
O discurso político monarquiano e a recepção do conceito de Poder Moderador no Brasil
(1822-1824), DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 48, no 3, pp.
611-654, 2005; SALDANHA, Nelson. A teoria do “poder moderador” e as origens do
direito político brasileiro. Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Mo-
derno, v. 18, pp. 253-265, jan./dez. 1989.
8  –  Original: “una classe di testi che sono ‘giuridici’ in quanto il diritto como loro ogget-
to, riffletono su di esso ilustrandone le caratteristiche generali o le più minute determi-
nazioni e si presentano come luoghi di elaborazioni oe di trasmissione di uno specifico
sapere”. CAPPELLINI, Paolo; COSTA, Pietro; FIORAVANTI, Maurizio; SORDI, Ber-
nardo. Introduzione. In: CAPPELLINI, Paolo; COSTA, Pietro; FIORAVANTI, Maurizio;
SORDI, Bernardo (Orgs.). Il pensiero giuridico italiano. Torino: Treccani, 2015, p. XX.

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Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

minalistas do século XIX, bem como as atas parlamentares. O Conselho


de Estado é um elemento fundamental para a compreensão do Direito
brasileiro no Império: é nele que se dão algumas das discussões mais re-
finadas dos juristas da nação recém-criada9. Escolhi acessar esse universo
sobretudo por meio da coletânea de José Próspero Caroatá10, publicada
em 1884. Trata-se de uma coletânea incompleta. Mas essa opção tem um
sentido: meu foco no “pensamento jurídico” enfatiza o saber circulante,
ou seja, as decisões que saíam das grandiosas salas do palácio e eram dis-
ponibilizadas no mercado editorial ou na grande imprensa. Trabalhar com
a série completa das decisões seria de uma importância extraordinária,
mas a ênfase desse trabalho é outra: procuro olhar para aquilo que estaria
à mão do jurista comum11 e que ele poderia compulsar para ter uma ima-
gem – ainda que pálida – a respeito do direito do seu tempo. Sabemos que
durante boa parte do século XIX “a administração se apresentava envolta
por uma ‘tradição do segredo’ que a tornava impenetrável não só aos
olhos do cidadão, mas também àqueles dos seus próprios operadores”12;
ora, foi justamente a obra de compiladores como Caroatá que tornou a
atividade administrativa inteligível tanto a funcionários públicos quanto
ao comum dos súditos, tanto no Brasil quanto na Europa13. Trabalhar com

9 – LOPES, José Reinaldo de Lima. O oráculo de delfos: o Conselho de Estado no Brasil


império. São Paulo: Saraiva, 2010. (Série Produção Científica. Direito, Desenvolvimento
e Justiça).
10 – CAROATÁ, José Próspero Jeová da Silva. Imperiaes resoluções tomadas sobre
consultas da Seção de Justiça do Conselho de Estado desde o anno de 1842: em que co-
meçou a funcionar o mesmo conselho, até hoje, coligidas em virtude de autorização pelo
Exmº. Sr. Conselheiro Manoel Pinto de Souza Dantas, ex-ministro e secretário de Estado
dos negócios da justiça. Rio de Janeiro: 1884.
11  –  Judá Leão Lobo já ressaltou justamente a respeito do Conselho de Estado a impor-
tância de se atentar às reflexões “banais”. Estendendo um pouco a reflexão dele, eu busco
mostrar aqui a importância das decisões “banalizadas” – o que abre espaço para se pensar
em trabalhos futuros sobre o próprio processo de “banalização”, ou melhor dizendo, de
vulgarização. LOBO, JUDÁ LEÃO. Estudo sobre “O oráculo de delfos”: o conselho de
estado no Brasil-Império, de José Reinaldo de Lima Lopes. Revista Direito e Práxis, v. 9,
p. 1363-1400, 2018.
12 – “L’amministrazione si presentava avviluppata in una “tradizione del segreto” che la
rendeva inpenetrabile non solo agli occhi del cittadino, ma anche a quelli die suoi stessi
operatori”. MANNORI, Luca; SORDI, Bernardo. Storia del diritto amministrativo. 5ª Ed.
Roma-Bari: Laterza, 2013, p. 280.
13 – Sobre o papel dos compiladores na França oitocentista, cf. BARENOT, Pierre-

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Arthur Barrêtto de Almeida Costa

essas fontes é trabalhar com um direito filtrado e mutilado; mas esse filtro
é o mesmo que se apresentava na época, e que constrangia o trabalho do
próprio jurista brasileiro oitocentista: é o espelho no qual a própria cul-
tura jurídica representava o seu objeto de trabalho – o direito14. Analisar
o direito “completo” – a série “total” das decisões, complementada por
outras fontes – seria valoroso, mas também seria um outro trabalho15.

Apesar de a maioria dos juristas tender a concordar com a existência


do perdão durante todo o século XIX, isso não é um obstáculo à presença
de críticas pontuais em algumas obras relevantes. Há também algumas
sutilezas nas várias posições, o que permitiu a identificação de diferentes
tendências de pensamento. E um marco importante a ser considerado é a
transição do império para a república.

2 A graça entre o ordinário e o extraordinário: da lei de 11 de


setembro de 1826 à lei de 10 de junho de 1835
Em 28 de junho de 1826, iniciou-se a discussão daquela que se tor-
naria a lei de 11 de setembro de 1826. A proposta era fazer com que todas
as sentenças de morte passassem pelo crivo do Imperador antes de sua
aplicação para uma eventual concessão de graça. Ainda faltavam alguns
anos para a promulgação do Código Criminal de 1830, e as Ordenações
Filipinas, então vigentes, eram muito duras para a sensibilidade liberal
- a graça poderia ser usada para suavizar as punições16. As discussões
-Nicolas. Entre théorie et pratique: les recueils de jurisprudence, miroirs de la pensée
juridique française (1789-1914). Tese (Doutorado em Direito). Université de Bordeaux.
Bordeaux: 2014.
14 – “Sono questi i testi che si offrono come specchio (più o meno fedele) di
quell’esperienza tanto familiare quanto sfuggente che chiamiamo diritto. La ‘cultura giu-
ridica’ (in senso stretto) è la rapresentazione more iudico che um ceto professionale offre
di una determinata società”. CAPPELLINI, Paolo; COSTA, Pietro; FIORAVANTI, Mau-
rizio; SORDI, Bernardo. Introduzione. In: CAPPELLINI, Paolo; COSTA, Pietro; FIO-
RAVANTI, Maurizio; SORDI, Bernardo (Orgs.). Il pensiero giuridico italiano. Torino:
Treccani, 2015, p. XX.
15 – Para um exemplo desse tipo de abordagem, cf: PIROLA, Ricardo Figueiredo. Car-
tas ao Imperador: os pedidos de perdão de réus escravos e a decisão de 17 de outubro de
1872. Almanack, Guarulhos , n. 13, p. 130-152, Aug. 2016.
16 – E sabemos que ela exerceria esse papel poucos anos depois. Cf. COSTA, Arthur
Barrêtto de Almeida. Pardoning and Punishing in Times of Transition: The Pardon Ap-

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Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

começaram no Senado Imperial, e a defesa do projeto coube ao barão


de Alcântara. Em sua visão, a proposta corrigiria uma desigualdade: os
réus presos no Rio de Janeiro, pela proximidade, veriam um trâmite mais
célere dos seus pedidos de perdão17, ao passo que aqueles internados nas
cadeias de outros pontos do Império poderiam ser mortos antes de ver seu
pleito apreciado pelo imperador18. Também houve uma série de discus-
sões sobre quais documentos deveriam ser remetidos ao imperador para
a apreciação da graça: se o processo completo, ou se apenas informações
do diretor do presídio a respeito do comportamento do preso19.

Por trás desse imbróglio está uma questão fundamental para a defi-
nição da natureza do recurso de graça: a sua natureza ordinária ou extra-
ordinária, ou, e outros termos, se ela é ou não um direito do réu. Se for
considerada um direito dos condenados, converte-se em procedimento or-
dinário20, e faz sentido – ao menos juridicamente – que o Imperador tenha
o compromisso de revisar absolutamente todas as causas – ele se converte
em “3ª instância”21; se, pelo contrário, é um procedimento extraordinário,
que deve levar em consideração questões de ordem superior, extrajurídi-
cas, não pode gerar um direito subjetivo ao cidadão que a procura. Nas
palavras do então Visconde de Caravelas, “essas razões não são para a

peal (Recurso de Graça) on the Brazilian Council of State (1828-1834). Revista Direito e
Práxis, Rio de Janeiro, v. 10, nº 4, p.2341-2366, set/dez 2019.
17 – BRASIL. Annaes do Senado Imperial. 1826. Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial
Instituto Artístico, 1874. Tomo 2, p. 148.
18  –  Tentou-se estender a obrigatoriedade da avaliação do poder Moderador para outros
tipos de sentença além da de morte, sob o argumento de que o problema da demora não se
restringia apenas aos condenados a pena capital. Cf. MEDEIROS, Luiz José de. Questão
jurídico-legal. A constituição, 21 de junho de 1866. Disponível em: http://memoria.bn.br/
DocReader/235334/1094. Acesso em: 3.05.2017.
19 – BRASIL. Annaes do Senado Imperial. 1826. Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial
Instituto Artístico, 1874. Tomo 2, p. 154.
20  –  Em 1854 foi regulamentado o procedimento para a petição de graças: Decreto nº
1458 – de 14 de outubro de 1854. Regula o modo por que devem ser presentes ao Poder
Moderador as petições de graça, e os relatorios dos Juizes nos casos de pena capital, e
determina como se devem julgar conformes as amnistias, perdões, ou commutaçoes de
pena. In: Coleção das leis do Império do Brasil (Atos do Poder Executivo) (T. XVIII, p.
II). Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1854.
21 – BRASIL. Annaes do parlamento brasileiro. 1826. Rio de Janeiro: Tipografia do
Imperial Instituto Artístico, 1874. Tomo 4, p. 296.

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Arthur Barrêtto de Almeida Costa

mesa da justiça, mas para a mesa da misericórdia”22. Perder a possibili-


dade de apreciação da graça em virtude da execução da sentença, por essa
segunda linha de raciocínio, não seria uma inconstitucionalidade, vez que
o réu não teria efetivo direito ao perdão: ele seria meramente um poder
do imperante. Executar a sentença sem que o monarca tenha passado os
olhos sobre ela não é restringir o direito do réu, e sim a prerrogativa do
Imperador. Um caminho que parece ter sido adotado inconscientemente
pela lei de 11 de setembro de 1826, sem nunca ser dito expressamente
pelos deputados.

O artigo segundo do texto permitia que o imperador, no exercício


do Poder Moderador, estabelecesse exceções à revisão obrigatória – e
D. Pedro I não perderia tempo em aplica-lo. Em 11 de abril de 1829, o
monarca editou decreto estabelecendo uma nova situação de excepciona-
lidade: quando as sentenças de morte envolvessem escravos que haviam
assassinado seus senhores, elas deveriam ser executadas de imediato23.
Apenas 6 anos depois, em 10 de junho de 1835, uma lei que se tornaria fa-
mosa estabelecia penas duríssimas e um procedimento abreviado para pu-
nir os escravos que matassem seus senhores. Em seu art. 4º, mandava que
as penas de morte fossem executadas sem recurso de qualquer tipo24, em
conformidade com o que estabelecia o decreto de 1829, fato esse que foi
confirmado pelo decreto de 9 de março de 183725. Entretanto, em consulta
de 17 de novembro de 185326, o Conselho de Estado acabou reconhecen-

22 – BRASIL. Annaes do Senado Imperial. 1826. Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial


Instituto Artístico, 1874. Tomo 2, p. 156.
23 – BRASIL. Decreto de 11 de abril de 1829 – ordena que sejam logo executadas as
sentenças proferidas contra escravos por morte feita aos seus senhores. In: Coleção das
leis do Império do Brasil, 1829 (Atos do poder executivo). Rio de Janeiro: Tipografia
Nacional, 1876.
24  –  BRASIL. Lei de 10 de Junho de 1835 – Determina as penas com que devem ser
punidos os escravos, que matarem, ferirem ou commetterem outra qualquer offensa phy-
sica contra seus senhores, etc.; e estabelece regras para o processo. In: Coleção das leis do
Império do Brasil de 1835. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1864.
25 – BRASIL. Decreto de 9 de março de 1837 – declarando o artigo 4º da lei de 10 de
junho de 1835, e o decreto de 11 de setembro de 1826, sobre a execução das sentenças de
pena capital. In: Coleção das leis do Império do Brasil de 1837. Rio de Janeiro: Tipografia
Nacional, 1861.
26 – Essa consulta já foi analisada em: RIBEIRO, João Luís. No meio das galinhas, as

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Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

do que deveria ser feita exceção para o “recurso ao poder Moderador” –


decisão externada sob a forma do decreto 1.310 de 2 de janeiro de 185427.

Essas hesitações e reviravoltas administrativas nos permitem per-


ceber que o poder Moderador (seguido pelo Conselho de Estado e pelo
legislativo) acompanhava de perto as vicissitudes do controle das revoltas
escravas no Brasil do século XIX. Era seu papel definir o que era uma
situação ordinária ou extraordinária28 – e, por isso, quando era aceitável
ou não postergar a execução da pena capital às expensas da rapidez da
intervenção penal. A graça foi o instrumento empregado para acelerar
essa pressão quando foi conveniente, mas depois, como veremos, tam-
bém para suavizá-la. A misericórdia funciona então como um instrumento
de política criminal nas mãos do imperador.

3 Do antigo ao moderno: os juristas legitimam a graça no Império


do Brasil
A cultura jurídica oitocentista brasileira apresenta importantes simi-
laridades com as suas correspondentes europeias. Uma dessas semelhan-
ças, apontada por Ricardo Marcelo Fonseca29, é a constante relevância
da oralidade. Esse historiador brasileiro baseia suas análises no mode-
lo desenvolvido para a Espanha por Carlos Petit30 e identifica dois tipos
de juristas: o primeiro é o prático eloquente, cujo papel profissional está
mais relacionado à performance oral em juízo; o segundo é o professor de

baratas não têm razão: a lei de 10 de junho de 1835: os escravos e a pena de morte no
Império do Brasil (1822-1889). Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 334.
27 – BRASIL. Decreto nº 1310 – de 2 de janeiro de 1854. Declara que o Artigo quarto
da Lei de 10 de Junho de 1835, que manda executar sem recurso as sentenças condemna-
torias contra escravos, compreende todos os crimes commettidos pelos mesmos escravos
em que caiba a pena de morte. In: Coleção das leis do Império do Brasil de 1854 (t. XVII,
p. II). Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1854.
28 – Carl Schmitt diria que justamente aí ele mostrava seu caráter de soberano – por
decidir a respeito da exceção.
29 – FONSECA, Ricardo Marcelo. Os juristas e a cultura jurídica brasileira na segunda
metade do século XIX. Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno,
Firenze, v. 35, pp. 339-371, 2006.
30 – PETIT, Carlos. Discurso sobre el discurso: oralidad y escritura en la cultura jurí-
dica de la España liberal. Madrid: Universidad Carlos III de Madrid, 2014.

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Arthur Barrêtto de Almeida Costa

direito, modelado de acordo com os principais atores das universidades


germânicas, cujo foco foi a profunda reflexão sobre as instituições do
direito. O primeiro estava ligado à cultura oral, e o segundo, à escrita.
Ambos coexistiram no século XIX brasileiro. No entanto, a importância
da fala é revelada por sua influência até mesmo no discurso escrito: por
exemplo, muitos dos livros publicados na época no Brasil reproduziam
discursos de seus autores no parlamento31.

Outra razão para a importância da fala é o pequeno tamanho do mer-


cado editorial brasileiro32. As prateleiras abrigavam poucos livros, prin-
cipalmente por causa da existência de apenas duas faculdades de direito
no Brasil. Ambas foram criadas em 182733, a primeira em São Paulo, e
a segunda em Olinda, depois transferida para o Recife. Por conseguin-
te, o público leitor só havia sido recentemente criado, e estava pouco
desenvolvido. A maioria dos livros publicados era de simples comentá-
rios sobre a lei positiva34. É, portanto, natural de se esperar que somen-
te assuntos de especial relevância estimulariam a publicação de títulos
monográficos, em função dos muitos problemas enfrentados por um au-

31  –  A relevância da cultura oral aparece também de outras formas. Sobre a obtenção
do título de doutor e os concursos de professor, ver: ROBERTO, Giordano Bruno Soares.
História do direito civil brasileiro: ensino e produção bibliográfica nas academias jurí-
dicas do Império. Belo Horizonte: Initia Via, 2016; VENANCIO FILHO, Alberto. Das
arcadas ao bacharelismo: cento e cinquenta anos de ensino jurídico no Brasil. São Paulo:
Perspectiva, 1977.
32 – DUTRA, Pedro. Literatura jurídica do império. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.
33 – BRASIL, Lei de 11 de agosto de 1827 – crea dous cursos de sciencias jurídicas e
sociaes, um na cidade de S. Paulo e outro na de Olinda. In: Colecção das leis do Império
do Brasil de 1827. Parte Primeira. Rio de Janeiro 1878. Verdadeiras universidades só
seriam criadas na década de 1920.
34 – Para uma lista e análise desses trabalhos, ver: cf. SONTAG, Ricardo. “Curar todas
as moléstias com um único medicamento”: os juristas e a pena de prisão no Brasil. Re-
vista do Instituto Histórico e Geográphico Brazuleiro, v. 177, p. 45-72, 2016. O primeiro
tratado da disciplina publicado no Brasil foi o “Tratado de Direito Penal”, de Franz von
Liszt, em tradução de José Hygino: LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão.
Traduzido e comentado por José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: 1899. Sobre essa
tradução, cf. SENA, Nathália N. E. de; SONTAG, Ricardo. The Brazilian Translation of
Franz von Liszt’s Lehrbuch des deutschen Strafrechts (1899): a History of Cultural Trans-
lation between Brazil and Germany. Max Planck Institute for European Legal History
Research Paper Series, v. 2019-17, p. 1-28, 2019.

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Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

tor e seus editores35. Era esse o caso da graça: durante a época impe-
rial, publicaram-se dois livros que tinham aquela prerrogativa imperial
como seu tema único e exclusivo. A primeira era O direito de graça36,
de José Antônio de Magalhães Castro. O outro era O recurso de graça37,
de Antônio Herculano de Souza Bandeira Filho, a principal fonte das in-
vestigações deste artigo. O primeiro texto tem um estilo mais genérico
e mais político. O segundo, uma obra de quase 130 páginas, lida com
uma grande quantidade de detalhes técnicos a respeito do instituto do
qual deriva o título. Sua centralidade e qualidade foram reconhecidas por
algumas publicações de sua época: o Jornal da Tarde, em 1º de fevereiro
de 1878, faz uma breve resenha da obra de Bandeira Filho, descrevendo-
-a como de “utilidade prática inegável”38. A única crítica dizia respeito à
falta de direito comparado. O Cruzeiro, no dia 18 do mesmo mês, também
publicou uma descrição elogiosa da obra39.

A graça era, portanto, um instituto de relevo que estimulou discus-


sões importantes. O Brasil vivia um momento de consolidação do Estado
recém-construído e de criação de seu próprio direito. Como os juristas
brasileiros justificaram a permanência da graça diante do legalismo?
Foram três os principais argumentos empregados ao longo do período, e
um quarto utilizado nos anos posteriores à independência, que logo caiu
em desuso.

35 – Outro exemplo é o debate sobre a responsabilidade dos ministros pelos atos do


poder moderador, que trataremos mais abaixo. Cf: GUANDALINI JR, Walter. O poder
moderador: ensaio sobre o debate jurídico-constitucional do século XIX. Curitiba: Apris,
2016.
36 – CASTRO, José Antônio de Magalhães. O direito de graça: Com um brado em favor
dos encarcerados. Rio de Janeiro: Typ. União de A.M. Coelho da Rocha, 1887.
37 – BANDEIRA FILHO, Antônio Herculano de Souza. O recurso de graça segundo a
legislação brasileira: contendo a indicação e análise das leis, decretos, avisos do gover-
no e consultas do Conselho de Estado sobre a matéria, Rio de Janeiro 1878. O livro era
tão relevante que chegou a ser citado em alguns debates no Senado Imperial. BRASIL.
Annaes do parlamento brasileiro. 1879. Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial Instituto
Artístico, 1874. Tomo 2, p. 210.
38  –  Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/748919/1107. Acesso em:
03.05.2017.
39 – Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/238562/405. Acesso em:
03.05.2017.

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Arthur Barrêtto de Almeida Costa

O primeiro argumento afirmava que a graça era útil para conciliar


a abstração da lei positiva com a justiça do caso concreto. Essa coloca-
ção era um lugar-comum em debates sobre o tema também na Europa40.
Bandeira Filho41 diz que alguns adversários dessa posição usavam o “o
célebre dilemma: – se a lei é justa não se deve impedir a sua execução, se
injusta deve ser mudada”. Mas o problema a ser resolvido não era uma
simples avaliação da maior ou menor qualidade da lei. Era uma proposi-
ção filosófica muito mais profunda: cada lei é projetada para lidar apenas
com casos gerais. Ela poderia tratar da vida cotidiana, não de circunstân-
cias especiais e extraordinárias. O lugar do perdão, portanto, seria levar
em conta algumas particularidades não pensadas pelo legislador no mo-
mento em que a lei positiva foi criada.

A graça poderia, por conseguinte, incorporar o conceito de justiça à


prática jurídica por meio de mecanismos extrajudiciais: “é pelo contrário,
para corrigir os erros e injustiças, que pódem commetter os Tribunaes,
para attender á circumstancias e á equidade, a que os Tribunaes, sujeitos
ás regras do direito stricto, não podem attender”42. É um conceito que não
poderia ser apreendido por meios jurídicos ordinários, pelas razões acima
mencionados. Ele deveria, em sentido diverso, ser deixado à discriciona-
riedade imperial: “o direito de fazer graça [...] só deixará de ser neces-
sário quando levadas á última perfeição as Leis humanas”43. De forma a
atingir esse intento, “no exercício da attribuição constitucional de perdoar
as penas, o Poder Moderador não conhece outro limite senão a sua cons-

40 – Na França, cf ROUX-DESSARPS, Gabriel. De la grace: thèse pour le doctorat.


Paris: Arthur Rousseau Editeur, 1898; LEGOUX, Jules. Du Droit de grâce en France
comparé avec les législations étrangères, commenté par les lois, ordonnances, décrets,
lettres patentes... depuis 1349 jusqu’en 1865. Paris: Cotillon, 1865.
41 – BANDEIRA FILHO, Antônio Herculano de Souza. O recurso de graça segundo a
legislação brasileira: contendo a indicação e análise das leis, decretos, avisos do governo
e consultas do Conselho de Estado sobre a matéria. Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial
Instituto Artístico, 1878, p. 8.
42 – BANDEIRA FILHO, Antônio Herculano de Souza. O recurso de graça segundo a
legislação brasileira: contendo a indicação e análise das leis, decretos, avisos do governo
e consultas do Conselho de Estado sobre a matéria. Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial
Instituto Artístico, 1878, p. 24-25.
43 – Fragmento publicado no jornal “A Voz do Bebiribi” (PE), em 14 de maio de 1835.

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Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

ciência” 44. Ao dizê-lo, o autor está tentando contrastar a graça brasileira


com aquela estabelecida na legislação portuguesa e romana. Nelas, ha-
via alguns limites estabelecidos sobre o direito de perdoar e moderar as
penas. No direito luso, por exemplo, o perdão de “crimes atrozes”45 era
vedado: aqueles cometidos com grande violência e desconsideração para
com o ser humano46 não poderiam ser agraciados com a clemência.

Mas nem todos concordavam com essa abordagem. Zacarias Gois


de Vasconcelos afirma que era necessário impor algum tipo de limite à
graça; do contrário, “o direito de graça, multiplicando-se sem regra e sem
medida, importaria nada menos que a aniquilação das leis penaes” 47, des-
truindo a certeza e a previsibilidade que são as pedras de toque de qual-
quer regime penal moderno: sem controle, apenas aqueles sem a proteção
do monarca seria condenados. Os amigos da coroa sempre teriam o per-
dão garantido; o direito penal se tornaria mero instrumento de vingança
utilizado pelo Imperador contra seus inimigos.

A importância da graça fica ainda mais clara quando levamos em


conta a rigidez do sistema de penas do código penal brasileiro de 1830.
Ao contrário do que se faz nos dias de hoje, as penas não eram estabele-
cidas em um intervalo, dentro do qual o juiz poderia decidir qual o valor
mais adequado para punir o réu. O código estabeleceu apenas um máxi-
mo, um médio e um mínimo para cada crime. Nos artigos 16º a 19º, são
definidas circunstâncias agravantes e atenuantes. Quando uma conduta é
agravada, a pena deve estar no seu máximo; quando há circunstâncias ate-
nuantes, deve ser levada ao seu mínimo; e quando há ambos ou nenhum, a

44 – BANDEIRA FILHO, Antônio Herculano de Souza. O recurso de graça segundo a


legislação brasileira: contendo a indicação e análise das leis, decretos, avisos do governo
e consultas do Conselho de Estado sobre a matéria. Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial
Instituto Artístico, 1878, p. 56.
45 – CABRAL, Antônio Vanguerve. Prática judicial muito útil, e necessária para todos
aquelles que principiaõ os officios de julgar, e advogar, e para todos os que solicitaõ cau-
sas nos Auditorios de hum, e outro foro. S. l.: 1730, p. 256.
46  –  Entretanto, mesmo durante o Antigo Regime havia uma série de exceções a essas
impossibilidades.
47 – VASCONCELLOS, Zacarias de Góis e. Da natureza e limites do poder moderador.
Rio de Janeiro: Typ. Universal de Laemmert,1862, p. 61.

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Arthur Barrêtto de Almeida Costa

pena deve ser média. Ao optar por este sistema, o Brasil estava seguindo
um movimento europeu por uma maior restrição ao poder dos juízes que
vinha ganhando força desde a instauração do iluminismo penal, como
discutido em alguns modelos apresentados, sobretudo, na França, sendo
o principal representante, porém, o pensador italiano Cesare Beccaria. O
Poder Judiciário francês era composto antes da revolução de alguns dos
mais notórios membros da nobreza, e seu despotismo permaneceu vívido
nas mentes dos legisladores logo após os eventos de 178948. Até o século
XVIII, os sistemas jurídicos seguiam as chamadas penas arbitrárias: os
juízes podiam impor praticamente qualquer punição por um crime sem
que houvesse um efetivo limite legal. Em reação a isso, o código francês
de 1791 estabeleceu o sistema de penas rígidas: para cada crime, uma
única punição possível. No entanto, algumas desvantagens vieram des-
sa estrutura: as injustiças tornaram-se claras e, muitas vezes, os juízes
decidiram contra o que ficara comprovado apenas para evitar uma con-
denação desproporcional. O código francês de 1810 criou o intervalo de
penas para evitar esta situação intolerável, que desafiava a legalidade49.
O Brasil escolheu um caminho intermediário entre esses modelos50 ao
restringir o poder dos juízes, mas não tanto quanto haviam ousado os
revolucionários51.
48  –  Nesse sentido, Lima Lopes afirma: “é também notável que a doutrina da separação
dos poderes não visse na administração a fonte do absolutismo, pelo menos não para al-
guns ilustres e ilustrados juristas. Antes, via-a na justiça”. LOPES, José Reinaldo de Lima.
O oráculo de delfos: o Conselho de Estado no Brasil império. São Paulo: Saraiva, 2010.
(Série Produção Científica. Direito, Desenvolvimento e Justiça), p. 219.
49  –  Sobre o Código de 1810, cf. CAVANNA, Adriano. Storia del diritto moderno in
Europa: le fonti e il pensiero giuridico, 2. Milano, 2005, p. 590-597.
50  –  Para uma análise mais ampla das fontes do Código Criminal de 1830, cf: COSTA,
Vívian Chieregati. Codificação e formação do Estado-nacional brasileiro: o Código Cri-
minal de 1830 e a positivação das leis no pós-independência. Dissertação (Mestrado em
Cultura e Identidades). Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo. São
Paulo: 2013.
51 – “Não deve haver arbitrio, quando se tem de avaliar circumstancias; por isto que
não ha neste codigo nada que o autorise, havendo perigo em pesal-as segundo o criterio
de cada um, muitas vezes sob a impressão do momento, que exclue toda a calma; sendo
verdade que a lei criminal deve basear-se em regras certas e fixas, no intuito de evitar
os abusos, que são sempre prejudiciais, quando se trata da applicacão da lei”. PESSOA,
Vicente de Paula. Código criminal do Império do Brasil: comentado e anotado com os
princípios do direito; legislação de diversos povos, leis do país, decretos, jurisprudência

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Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

O segundo argumento utilizado pelo pensamento jurídico brasileiro


para justificar a existência da graça afirmava que ela era uma forma de
reconhecer que o réu havia expiado sua culpa. Essa visão tinha duas di-
mensões: primeiro, uma pragmática, e, depois, uma teórica. Em relação
à primeira dimensão, a ausência de perdão seria um estímulo para o mau
comportamento dos presos nas penitenciárias. Sem qualquer esperança de
que suas penas pudessem um dia ser reduzidas, eles não teriam nenhuma
razão para manter a ordem nas prisões. A esperança deles seria, por outro
lado, um recurso inestimável para uma boa execução penal, ao mantê-los
disciplinados. Além disso, havia um motivo maior para acreditar nesse
ponto de vista. Se as penas eram uma tentativa de estimular a regeneração
das pessoas condenadas, não fazia sentido mantê-las presas depois que
elas efetivamente expressaram arrependimento pelo que fizeram. A ques-
tão era, uma vez mais, a da justiça. Seria cruel e sem sentido continuar a
impor sofrimento a alguém depois de cumprida a tarefa da punição. Além
disso, a sociedade não tem uma obrigação de punir, mas sim o direito
de fazê-lo. Não há injustiça na extinção de uma pena abstrata se, depois
de algum tempo, se demonstrar que ela deveria ter sido de muito menor
intensidade.

José Antônio de Magalhães Castro, autor do segundo grande livro


monográfico sobre perdão no Brasil, é um entusiasta desse argumento.
Mais do que simplesmente mantê-lo como tema entre outros, ele acha que
é o único que poderia realmente justificar a clemência real. Era uma for-
ma de demonstrar o caráter justo e não despótico do Império Brasileiro:
A impunidade aterra o Poder; é o pesadello dos Despotas, que só con-
fião, e tudo esperão da efficacia da intimidação, e d’aqui a reserva na
concessão das Graças, sem attender-se que a acção dos Tribunaes de
repressão dos crimes não relaxa-se com o perdão merecido, ao passo

dos tribunais, avisos do governo, interpretando, alterando ou revogando diversas das suas
disposições, até o anno de 1884, 2nd edition, Rio de Janeiro 1885, p. 62. Sobre arbítrio
judicial, cf. FARIA, Aléxia Alvim Machado. Peita, suborno e a construção do conceito
jurídico-penal de corrupção: patronato e venalidade no Brasil imperial (1824-1889). Dis-
sertação (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas
Gerais. Belo Horizonte: 2018, pp. 182-191

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Arthur Barrêtto de Almeida Costa

que negal-o aos que merecerem seria tirar-lhes o desejo da recompen-


sa52.

Mas a graça não era usada apenas com o propósito que ele recomen-
dava, desvio esse que estimulou críticas da parte de Magalhães Castro. O
principal problema era a incerteza na distribuição das graças53. Perdões
imerecidos eram frequentemente concedidos, enquanto outros que se-
riam de justiça ficavam retidos. Por exemplo, os imperadores brasilei-
ros frequentemente perdoavam os condenados com a única finalidade de
celebrar a paixão de Cristo54, sem nenhuma consideração pelos méritos
e pelas falhas de cada um deles. Ao mesmo tempo, certos condenados
esperavam longos anos enquanto seus justos pedidos pegavam poeira
nos arquivos da burocracia imperial: “Mas esta reserva na concessão das
Graças tão poucas para tão vasto Império é um grande mal; e tirando aos
condemnados a esperança da recompensa contrasta com o fim das peni-
tenciarias, revellando defeito de seo regimen”55. A pequena quantidade de
graças concedidas era mostra, em sua visão, da irracionalidade por trás
das concessões. O problema não estava no instituto em si, mas na forma
errônea com que ele era utilizado.

A degeneração da graça seria demonstrada pelo grande número de


documentos inúteis exigidos por lei para serem anexados aos pedidos de
52 – CASTRO, José Antônio de Magalhães. O direito de graça: Com um brado em favor
dos encarcerados. Rio de Janeiro: União de A.M. Coelho da Rocha, 1887, p. 40.
53  –  Essa crítica também aparece em Thomaz Alves Júnior: “Que importa o exercício
sublime do Poder Moderador quando vem perdoar os crimes, e com seu braço omnipoten-
te abrir as portas da prisão, que a lei para sempre fechou? O exercício desse poder não tem
regras, não tem princípios, e, se faz nascer alguma esperança, essa é tão fraca, tão estéril,
tão mesquinha emfim, que não dá forças para que se dê a correção moral do homem. [...]
existe uma crença fatal de que, embora a majestade nutra em seu peito sentimentos neu-
tros e impassíveis, e compassivos, impossíveis são as atribuições de seu poder; não pode,
como deseja, fazer sentir todo o efeito desse poder, porque seus olhos não podem ir a toda
parte em que geme a humanidade”. ALVES JÚNIOR, Thomás. Annothações teóricas e
práticas ao Código Criminal. Rio de Janeiro: 1864, p. 112-113.
54  –  É possível ver exemplos disso nas decisões do Conselho de Estado de 16 de abril de
1829, 9 de abril de 1830 e 1º de abril de 1831. RODRIGUES, José Honório (Org.). Atas
do Conselho de Estado. Disponível em: at: http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/
asp/AT_AtasDoConselhoDeEstado.asp. Acesso em: 09.04.2016. T. II, p. 68, 79 e 93.
55 – CASTRO, José Antônio de Magalhães. O direito de graça: Com um brado em favor
dos encarcerados. Rio de Janeiro: União de A.M. Coelho da Rocha, 1887.

272 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):255-304, set./dez. 2019.


Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

perdão. Se a clemência real deveria ser usada para refletir a expiação da


culpa, os papéis enviados ao imperador deveriam, por consequência, con-
ter apenas e exclusivamente algumas informações sobre o comportamen-
to do condenado na prisão. No entanto, isso não era o que a burocracia
brasileira exigia. Muito do que tinha que ser enviado era uma simples
repetição do processo penal56. A única exceção era um relatório a ser en-
viado pelo diretor da penitenciária no qual o condenado estava preso. Ao
estruturar-se dessa maneira, a própria legislação reconhecia aquilo que
Magalhães Castro via como uma distorção que o monarca havia criado
sobre o instituto.

Finalmente, havia uma terceira maneira de justificar a graça. Era a


ideia de que o instituto poderia corrigir lacunas na legislação brasileira.
Alguma falha na lei, uma legislação mal pensada, uma demanda excessi-
va: problemas na atuação do legislador que o perdão real poderia resolver
de forma justa. No entanto, isso não era reconhecido como uma forma na-
tural e adequada de pensar a graça. Pelo contrário, era considerado como
uma anomalia infelizmente necessária. O problema era que esse uso não
corrigia as injustiças com precisão: o perdão reconhece e valida a culpa
do condenado, mas não lava a mancha sobre a honra de quem foi julgado
erroneamente pela corte57. De fato, “pelo recurso de graça pede-se um fa-
vor ao soberano, quando a inocência tem direito à justiça dos tribunais” 58.

56  –  Essas eram, de acordo com a circular de 18 de junho de 1865: “1ºnome do peticio-
nario; 2º pena á que foi condemnado; 3º data em que foi imposta, por qual juiz ou jury;
4º o crime que commeteu, e em que tempo; 5º se foi condemnado a outras penas; 6º se
está preso ou solto, e desde que dia; 7º desde quando começou a cumprir sentença; 8º
informação do Juiz da condemnação; 9º informação do Director da Casa de Correção, ou
do carcereiro da Cadêa em que estiver preso”. BRASIL. Circular em 28 de Junho de 1865
– Indica quaes as informações que devem acompanhar as petições de graça. In: Coleção
das decisões do governo do Império do Brasil de 1865. Rio de Janeiro. 1866.
57 – PERDIGÃO, Carlos. Da condemnação do inocente. Gazeta jurídica: revista sema-
nal de legislação, doutrina e jurisprudência, Rio de Janeiro, Ano II, v. 5, n. 92, S. 121-129,
4th october 1874, S. 129.
58 – BANDEIRA FILHO. Antônio Herculano de Souza. O recurso de graça segundo a
legislação brasileira: contendo a indicação e análise das leis, decretos, avisos do governo
e consultas do Conselho de Estado sobre a matéria. Rio de Janeiro: Typographia do Impe-
rial Instituto Artistico, 1878, p. 49.

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Arthur Barrêtto de Almeida Costa

Essas eram as três principais razões invocadas pelo pensamento ju-


rídico brasileiro para justificar a graça: mediação entre direito abstrato e
justiça concreta; reconhecimento de arrependimento; e correção de falhas
legislativas. Eram tentativas de corrigir a imperfeição natural das obras
humanas. Brás Florentino Henriques de Souza afirma explicitamente esse
ceticismo sobre a Humanidade ao expor as razões pelas quais o perdão
ainda era importante:
1.º porque a intelligencia que faz as leis é essencialmente limitada, e
as pessoas e as cousas sobre as quaes as leis estatuem, estão longe de
ser immutaveis 2.° porque a intelligencia que applica as leis aos casos
occurrentes acha-se sempre sujeita aos enganos, e póde commeter er-
ros terriveis ainda com o auxilio das melhores leis59.

No entanto, para além dessa corrente que estabelecia três argu-


mentos, que existiu no Brasil desde meados do século XIX até o fim do
Império, havia um outro argumento, usado principalmente dos alvores do
Brasil independente. É a ideia de que a graça pode recompensar os bons
serviços prestados por alguém ao Estado. Seria quase que uma condeco-
ração, ou uma mercê60.

Essa visão foi expressa na doutrina apenas por Joaquim Inácio


Ramalho61; isso, entretanto, não significa que se tratava de uma perspecti-
va idiossincrática, já que nos começos do Império havia poucos livros ju-
rídicos e, portanto, a nossa amostra para esse período é restrita. Mas essas
ideias eram avançadas não apenas na doutrina: elas circulavam pelo me-

59 – SOUZA, Brás Florentino Henriques de. Poder Moderador: Ensaio de direito con-
stitucional, contendo a análise do tit. V, cap. I da constituição política do Brasil. Recife:
Tipografia Universal, 1864, p. 249.
60  –  Sobre esse conceito e a sua relação com a noção de graça: HESPANHA, Antônio
Manuel. As outras razões da política: a economia da “graça”. In: HESPANHA, Antô-
nio Manuel. A política perdida: ordem e governo antes da Modernidade. Curitiba: Juruá,
2010.
61  –  É o primeiro fundamento da graça que ele apresenta, em conjunto com os outros,
mais tradicionais: “quando o criminoso tem prestado relevantes serviços ao Estado, ou se
faz recomendável por suas qualidades eminentes; se certas circunstâncias fazem o crime
desculpável; se os criminosos são em grande número; se a razão particular da Lei não for
applicavel”. RAMALHO, Joaquim Inácio. Elementos do processo criminal: para uso das
Faculdades de Direito do Imperio. São Paulo: 1856, p. 146.

274 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):255-304, set./dez. 2019.


Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

nos 30 anos antes no parlamento brasileiro. O deputado Luiz Cavalcanti,


durante a sessão de 25 de maio de 1831 da Câmara dos Deputados, afir-
mou que: “o fim principal para que se concedeu ao poder moderador esta
atribuição de perdoar, o de atender os serviços prestados à pátria pela pes-
soa condenada, a quem o juiz não podia deixar de impor a pena da lei”62.
Aqui, se pode ver uma definição de graça que poderia ser assimilada à
de “mercê”; Rafael Bluteau, eu seu dicionário setecentista, nos mostra
que graça e mercê poderiam ser sinônimas63. Nesse sentido, mesmo as
considerações de justiça no mais alto grau, ou seja, para além da aplica-
ção do “direito estrito”, são colocadas de lado. A graça se mostra mais
como uma prerrogativa política e pessoal, orientada para a retribuição de
serviços oferecidos à nação, e as preocupações de caráter exclusivamente
criminal são quase esquecidas. Essa opinião não era sustentada apenas
por Cavalcanti: o deputado Rebouças também disse que a graça “se in-
truduzio para favorecer a um homem, que sendo benemerito da patria e
havendo feito grandes e relevantes serviços, tivesse a desgraça de com-
metter um crime” 64; para o senador Barroso, mesmo os talentos artísticos
poderiam justificar um perdão65.

4 A graça corrige a legislação


A graça foi uma ferramenta jurídica que muitas vezes influenciou
o direito e a justiça no Brasil imperial. Isso aconteceu principalmente
através do que eu chamei de terceira justificativa da misericórdia real: a
correção de erros legislativos. A intervenção do imperador sobre o orde-
62 – BRASIL. Annaes do parlamento brasileiro. 1831. Rio de Janeiro: 1874, v. 1, p. 89.
63 – BLUTEAU, Rafael, C.R. Vocabulario portuguez e latino, aulico, anatomico, ar-
chitectonico, bellico, botanico, brasilico, comico, critico, chimico, dogmatico, dialectico,
dendrologico, ecclesiastico, etymologico, economico, florifero, forense, fructifero... auto-
rizado com exemplos dos melhores escritores portugueses, e latinos... Lisboa: Officina de
Pascoal da Silva, 1721, p. 108 e p. 431: graça é “Favor. Mercê. Benefício”, enquanto que
mercê é “Mercê com perdão [...]. Fazer a alguém mercê da vida. Perdoar-lhe o crime, que
tem commetido”.
64 – BRASIL. Annaes do parlamento brasileiro. 1831. Rio de Janeiro: 1874, v. 1, p. 88.
65 – “pódem haver muitos motivos, além dos allegados nesses autos, por onde o réu se
faça digno de graça, quaes ter uma familia numerosa, ser um artista insigne, um homem
de talento raro, etc”. BRASIL. Annaes do parlamento brasileiro. 1826. Rio de Janeiro:
Tipografia do Imperial Instituto Artístico, 1874. Tomo 2, p. 154.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):255-304, set./dez. 2019. 275


Arthur Barrêtto de Almeida Costa

namento jurídico foi frequentemente profunda e teve impacto importante


na realidade normativa do país. Os principais temas em que isso se fez
presente foram três: a abolição da pena de morte, a revisão criminal e o
abrandamento da lei de 10 de junho de 1835 sobre a repressão dos crimes
de escravos.

A abolição da pena capital foi um dos principais tópicos de debates no


direito penal do final do século XVIII e início do século XIX66. Também
no Brasil essas discussões foram importantes67. No entanto, diferente do
que ocorreu em outros ordenamentos, a abolição da pena de morte nesse
país sul-americano ocorreu não por meio de uma lei, mas através da sis-
temática comutação de todas as sentenças capitais68. De 1876 em diante,
o imperador não permitiu que nenhuma execução ocorresse no Brasil69. A
situação se tornou tão fortemente consolidada que a aparente ausência de
um escravo condenado em uma lista de comutações em 1883 surpreendeu
e perturbou alguns jornais. A Gazeta de Notícias dizia, a 3 de dezembro
de 1883, que se tratava de um simples erro: na década de 1880, era im-
pensável que o imperador permitisse uma execução70. Isso foi confirmado
nos dias seguintes, quando a lista de comutação foi republicada com o
66 – Por todos, ver: COSTA, Pietro. La pena di morte, fra passato e presente, 2007.
Disponível em: http://www.juragentium.org/topics/rights/it/costa.htm. Acesso em:
27.07.2017.
67 – Para o tratamento desse problema na elaboração do Código Criminal de 1830, cf.
COSTA, Vívian Chieregati. Codificação e formação do Estado-nacional brasileiro: o Có-
digo Criminal de 1830 e a positivação das leis no pós-independência. Dissertação (Mes-
trado em Cultura e Identidades). Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São
Paulo. São Paulo: 2013, pp. 174-202.
68  –  Um fenômeno parecido ocorreu na Itália depois de 1877: STRONATI, Monica.
Il governo della “grazia”: giustizia sovrana e ordine giuridico nell’esperienza italiana
(1848-1913). Milano: Giuffrè, 2009. Na Bélgica do século XIX, também houve uma
abolição prática, que, no entanto, foi posteriormente revertida: DE BROUWER, Jérome.
Abolir? La peine de mort et l’avènement de l’abolition de fait en Belgique. Annales de
droit de Louvain. 69 (3). pp. 211-227, 2009.
69 – RIBEIRO, João Luís. No meio das galinhas, as baratas não têm razão: a lei de 10
de junho de 1835: os escravos e a pena de morte no Império do Brasil (1822-1889). Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 306.
70  –  Esse não foi o único jornal surpreso com o acontecimento. Também é possível
encontrar fortes reações na Gazeta da Tarde de 26 de dezembro de 1883. No ano anterior,
fatos semelhantes estimularam reações A Província do Espírito Santo em 30 de agosto
de 1882.

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Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

nome do condenado esquecido e o erro foi, por conseguinte, devidamen-


te esclarecido. No entanto, a simples necessidade de justificativa mostra
como uma execução se tornara antinatural, mesmo que os brasileiros ti-
vessem que esperar até 1890, com o código penal da primeira república
brasileira, para ver uma abolição formal 71.

Esse processo de comutações sistemáticas estimulou algumas críti-


cas. A maior parte delas vinha de grandes proprietários de escravos, os
quais acreditavam que o abrandamento da repressão poderia estimular
revoltas de escravos72. É possível observar essas reações no parlamento
desde o começo dos anos 1870, quando as intenções políticas do impera-
dor se tornavam mais claras, até os anos 1880, quando a consciência da
abolição prática da pena de morte já se havia estabelecido.

Desde pelo menos 1871 essas tendências podem ser percebidas. Na


Câmara dos Deputados, alguns diziam que a graça “tem sido excelente re-
curso para revoltar os escravos contra os senhores, para estabelecer a im-
punidade mais horrorosa que ha no paiz” 73. O deputado Teixeira Júnior,
no mesmo contexto, tentava legitimar o proceder do poder moderador
dizendo que a constituição não estabelecia nenhum limite para aquela
prerrogativa imperial74. Outro argumento utilizado era o procedimento
do Conselho de Estado, que era o responsável por recomendar todas as
comutações75. Isso significava, na visão de Teixeira Júnior, que não era

71  –  A última execução no Brasil ocorreu em 28 de abril de 1876. RIBEIRO, João Luís.
No meio das galinhas, as baratas não têm razão: a lei de 10 de junho de 1835: os escravos
e a pena de morte no Império do Brasil (1822-1889). Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p.
306.
72 – PIROLA, Ricardo. Escravos e rebeldes nos tribunais do império: uma história so-
cial da lei de 10 de junho de 1835. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2015, p. 143 ss.
73 – BRASIL. Annaes do parlamento brasileiro. 1871. Rio de Janeiro 1874, v. 1, p. 32.
74  –  No mesmo debate, alguns deputados afirmaram que o direito estatuía a pena de
morte e, por conseguinte, deixar de aplica-la seria ilegal. Teixeira Júnior respondeu que
“É a lei: mas é a primeira de nossas leis, a constituição, que outorga à corôa a atribuição
de comutar as penas” BRASIL. Annaes do parlamento brasileiro. 1871. Rio de Janeiro:
1874, v. 1, p. 130.
75  –  O Conselho de Estado foi um órgão composto por 10 cidadãos brasileiros respon-
sáveis por ajudar o imperador no exercício do poder moderador e na condução política
da nação.

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Arthur Barrêtto de Almeida Costa

correto culpar o Imperador, já que ele estava simplesmente seguindo os


pareceres de alguns dos mais ilustres jurisconsultos da nação76.

O problema para os críticos não era a graça em si, mas a forma sis-
temática com que ela vinha sendo empregada. No Senado, essa qualidade
“sistemática” era um mote para muitas disputas entre senadores, alguns
apontando o “sistema” por trás das comutações, e outros defendendo que
as comutações continuavam a ser uma mera medida excepcional. Em
1879, Silveira da Mota defendeu assim as suas posições:
Como não tem sido por systema, quando, salvo um ou outro caso ra-
rissimo, não se tem dado uma só execução? [...] como não hei de di-
zer que é systema do poder moderador, que é a influencia de Victor
Hugo, que tem dado logar á commutação em todos os outros casos de
pena ultima? O nobre senador não apresenta outros exemplos, é um no
meio de mil. Pois quando ha um exemplo no meio de mil, não posso
dizer que é systema? É systema, mas systema errado77.

A imprensa também discutia esses temas. Em 23 de outubro de 1878,


o Correio Paulistano publicou seu primeiro artigo78 sobre o medo que os
proprietários de escravos vinham sentido por causa dos constantes casos
de assassinatos de senhores. A causa de tudo isso, de acordo com o autor
do texto, era “da constante concessão da graça. Levado pelos impulsos de
seu bem formado coração, Sua Majestade o imperador tem, sem o saber,
sido a causa do aumento e reprodução de tais crimes”. Sugeria-se que o
Imperador parasse de comutar as penas “por sistema”, permitindo que a
lei de 10 de junho de 1835, relativa à repressão da criminalidade escrava,
fosse completamente aplicada e, portanto, que “os exemplos produzirão
76  –  Em 31 de março de 1871, o Ministro da Justiça Saião Lobato afirmou que “Ousou
levar a sua censura até este ponto eminente naquillo que mais essencial é da privada
prerrogativa do poder irresponsavel; foi até a censura-lo porque tem commutado penas de
morte em galés perpetuas; aceitando o conselho de seus conselheiros homens da lei [...].
Queria o nobre deputado qué, não obstante ó parecer da secção do conselho de estado,
quasi sempre unanime, aconselhar ao poder moderador de modificar na especie a cru-
eldade da pena de morte, elle inexoravel desprezasse-lhe o conselho”. BRASIL. Annaes
do parlamento brasileiro. 1871. Rio de Janeiro: 1874. V. 1, p. 145.
77 – BRASIL. Annaes do Senado Imperial. 1879. Rio de Janeiro: 1874. Tomo 3, p. 136.
78 – Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/090972_03/9927. Acesso em:
04.05.2016.

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Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

seus salutares efeitos”. O texto aponta também que: “não é seguramente


para realçar a magnanimidade imperial que o código criminal e a lei de 10
de junho de 1835 consagram aquela pena [de morte]”. O Imperador Pedro
II é acusado de “se pronunci[ar] invariavelmente pelos escravos contra os
senhores”. Jornais por todo o país mostravam casos de assassinatos de se-
nhores de escravos79 e relatavam histórias de petições contra a comutação
da pena de escravos que haviam matado seus proprietários80.

A lei de 10 de junho de 1835, citada em conjunto com o código


penal de 1830, é crucial para a compreensão dessas questões, e merece
uma análise mais profunda. A maioria dos escravos foi condenada com
base nas duras disposições desse documento. A flexibilização de suas rí-
gidas penas foi a segunda das reformas extraoficiais realizadas durante o
Império por meio da graça.

A lei de 1835 foi criada para reforçar a repressão contra levantes


escravos81. Ela continha normas de natureza tanto criminal quanto proces-
sual. No que se refere aos aspectos processuais, ela eliminou os recursos
contra as penas de morte impostas aos condenados segundo suas disposi-
ções, permitindo-os apenas contra absolvições. Quanto ao aspecto penal,
estabeleceu pena de morte para todos os escravos que mataram ou ten-
taram matar ou ferir o senhor, seus empregados ou suas famílias82. Essas

79 – O Correio Paulistano, de 12 de fevereiro de 1879.


80 – Jornal do Comércio, de 1º de fevereiro de 1878.
81 – RIBEIRO, João Luís. No meio das galinhas, as baratas não têm razão: a lei de 10
de junho de 1835: os escravos e a pena de morte no Império do Brasil (1822-1889). Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 306; PIROLA, Ricardo. Escravos e rebeldes nos tribunais
do império: uma história social da lei de 10 de junho de 1835, Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2015; ANDRADE, Marcos Ferreira de. A pena de morte e a revolta dos escra-
vos de Carrancas: a origem da“lei nefanda” (10 de junho de 1835). Tempo, Niterói, v. 23,
n. 2, p. 264-289, maio, 2017.
82  –  Texto complete da lei: “Art. 1º Serão punidos com a pena de morte os escravos
ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem
gravemente ou fizerem outra qualquer grave offensa physica a seu senhor, a sua mulher,
a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e
ás suas mulheres, que com elles viverem. Se o ferimento, ou offensa physica forem leves,
a pena será de açoutes a proporção das circumstancias mais ou menos aggravantes. Art.
2º Acontecendo algum dos delictos mencionados no art. 1º, o de insurreição, e qualquer
outro commettido por pessoas escravas, em que caiba a pena de morte, haverá reunião

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Arthur Barrêtto de Almeida Costa

disposições draconianas podiam levar a várias injustiças. Não restava es-


paço para tomar-se em consideração as circunstâncias dos assassinatos:
a consequência seria invariavelmente a forca. Como se pode imaginar, o
perdão foi útil para amenizar esta situação. Isto pode ser percebido por
meio da imprensa, bem como das opiniões do Conselho de Estado, de
onde tiro um exemplo83 para esclarecer o meu ponto de vista.

A resolução de 5 de outubro de 184484 trata de um recurso de graça85


proposto por dois réus escravos contra uma pena de morte86. Ambos foram
condenados pela morte do seu senhor. O assassinato foi cometido pelos
dois, mas apenas um deles confessou o crime. Este, porém, era um menor
de 21 anos, fato que era considerado como uma circunstância atenuante
extraordinaria do Jury do Termo (caso não esteja em exercicio) convocada pelo Juiz de
Direito, a quem taes acontecimentos serão immediatamente communicados. Art. 3º Os
Juizes de Paz terão jurisdicção cumulativa em todo o Municipio para processarem taes
delictos até a pronuncia com as diligencias legaes posteriores, e prisão dos delinquentes, e
concluido que seja o processo, o enviaráõ ao Juiz de Direito para este apresenta-lo no Jury,
logo que esteja reunido e seguir-se os mais termos. Art. 4º Em taes delictos a imposição
da pena de morte será vencida por dous terços do numero de votos; e para as outras pela
maioria; e a sentença, se fôr condemnatoria, se executará sem recurso algum. Art. 5º Ficão
revogadas todas as Leis, Decretos e mais disposições em contrario”. BRASIL. Lei de 10
de Junho de 1835 – Determina as penas com que devem ser punidos os escravos, que ma-
tarem, ferirem ou commetterem outra qualquer offensa physica contra seus senhores, etc.;
e estabelece regras para o processo. In: Coleção das leis do Império do Brasil de 1835.
Rio de Janeiro: 1864.
83 – Existem vários outros casos em que esse fenômeno pode ser observado. Dentre
outros, posso citar as resoluções do Conselho de Estado de 28 de junho de 1854, 7 de
julho de 1864, 13 de novembro de 1867. Cf. CAROATÁ, José Próspero jeová da Sil-
va. Imperiaes resoluções tomadas sobre consultas da Seção de Justiça do Conselho de
Estado desde o anno de 1842, em que começou a funcionar o mesmo conselho, até hoje,
coligidas em virtude de autorização pelo Exmº. Sr. Conselheiro Manoel Pinto de Souza
Dantas, ex-ministro e secretário de Estado dos negócios da justiça. Rio de Janeiro: 1884,
p. 479 e p. 1361.
84 – CAROATÁ, José Próspero jeová da Silva. Imperiaes resoluções tomadas sobre
consultas da Seção de Justiça do Conselho de Estado desde o anno de 1842, em que co-
meçou a funcionar o mesmo conselho, até hoje, coligidas em virtude de autorização pelo
Exmº. Sr. Conselheiro Manoel Pinto de Souza Dantas, ex-ministro e secretário de Estado
dos negócios da justiça. Rio de Janeiro: 1884, p. 34 ss.
85  –  Essa forma de se nomear o instituto era razoavelmente comum e é utilizada no
próprio título da obra de Bandeira Filho.
86 – Esse caso também foi comentado por PIROLA, Ricardo. lei de 10 de junho de
1835: justiça, escravidão e pena de morte. Tese (Doutorado em História). Universidade
Estadual de Campinas, 2005, p. 165 ss.

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Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

para o código penal, em seu artigo 18, § 10. Era obrigatório que a pena
imposta fosse a imediatamente inferior: prisão com trabalho vitalício. No
entanto, o juiz prescreveu a pena capital. O Conselho de Estado, após de-
liberar, recomendou a comutação. Pode-se ver aqui a correção de um erro
judicial por meio do perdão. O outro réu também recebeu uma comutação
para galés perpétuas87. A justificativa era que “supposto não exista outra
prova mais do que a confissão do réo Francisco Cassange, é ella comtudo
revestida de circumstancias taes, que, se não provam plenamente a quali-
dade de autor bem descobrem a complicidade daquelle réo”88; portanto, a
ausência de força das provas foi o motivo da redução da pena89. De fato,
a lei de 10 de junho de 1835 exigia que qualquer condenação por mais
de dois terços dos votos do júri resultaria em uma sentença automática
morte: após a definição de que um crime foi praticado, o resultado deveria
ser implacável. Distanciando-se da rigidez da lei, o Conselho de Estado
sugeriu a comutação: as provas pareciam indicar a culpa, mas não davam
suficiente segurança para levar à morte.

A graça foi uma forma de assegurar aos réus os recursos que a lei
de 1835 lhes negava. Era também uma maneira de fazer com que a pena
única fosse mitigada por outras considerações. Quanto à circunstância
atenuante da minoridade, uma interpretação mais tradicional negaria a
redução da pena, por exemplo. A lei era especial e criada após o código:
ela deveria prevalecer, segundo dois dos critérios tradicionais utilizados
para resolver conflitos entre normas jurídicas. No entanto, não foi isso
que aconteceu: O Conselho de Estado se esforçou para flexibilizar essa
lei escravista. Esse processo foi percebido pelas classes proprietárias de
escravos, como mostrado anteriormente. João Luís Ribeiro90 e Ricardo
87 – Galés eram um tipo específico de pena. Os condenados a ela eram obrigados a an-
dar acorrentados e ajudar nos trabalhos públicos.
88 – CAROATÁ, José Próspero jeová da Silva. Imperiaes resoluções tomadas sobre
consultas da Seção de Justiça do Conselho de Estado desde o anno de 1842, em que co-
meçou a funcionar o mesmo conselho, até hoje, coligidas em virtude de autorização pelo
Exmº. Sr. Conselheiro Manoel Pinto de Souza Dantas, ex-ministro e secretário de Estado
dos negócios da justiça. Rio de Janeiro: B.l. Garnier, Livreiro Editor, 1884, p. 34.
89  –  Algo parecido é amplamente observado para o antigo regime. Mais em ALESSI,
Giorgia. Il processo penale: profilo storico. Roma; Bari: Laterza, 2000.
90 – RIBEIRO, João Luís. No meio das galinhas, as baratas não têm razão: a lei de 10

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Arthur Barrêtto de Almeida Costa

Pirola91 demonstram que por todo o período de sua vigência, a lei de 10


de junho de 1835 sofreu de uma crescente porosidade, de tal forma a se
adequar melhor às sensibilidades jurídicas da época.

A questão dos recursos, por sua vez, não era um problema exclusivo
dos escravos. A legislação geral também tinha falhas que exigiam cor-
reção por meio da prerrogativa real. Quando todos os outros caminhos
para a reforma da sentença terminavam, a opção comum para quaisquer
réus era o recurso de revista. Ele tinha importantes semelhanças com a
graça: era um último recurso e sua função era manter o judiciário em bom
funcionamento92. É nesse sentido que Bandeira Filho reconhece à graça
o papel de cobrir as falhas do recurso de revista: “as sentenças criminaes
proferidas em ultima alçada, ainda que laborem em nullidade, só pódem
ser cassadas por meio das revistas, e quando succeda que a lei não admitta
a revista, ahi está o Poder Moderador para perdoar a pena a que fôr injus-
tamente condemnado” 93.

O recurso de revista era regulado pela lei de 18 de setembro de


182894. Todavia, existia uma série de limitações ao seu uso. A primeira
derivava do art. 90, § 2º, que proibia o seu uso “[n]as Sentenças proferi-
das no foro Militar, e no Ecclesiastico”. O jurista José Antônio Pimenta
de junho de 1835: os escravos e a pena de morte no Império do Brasil (1822-1889). Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 306.
91 – PIROLA, Ricardo. Escravos e rebeldes nos tribunais do império: uma história so-
cial da lei de 10 de junho de 1835, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2015.
92 – “É pois o grande expediente de que o governo, sem inyadir as attribuições e inde-
pendencia do poder Judicial, deve lançar mão para manter os Juizes no circulo de seus
deveres, fiscalizar a exacta e rigorosa observancia do direito” CAROATÁ, José Próspero
jeová da Silva. Imperiaes resoluções tomadas sobre consultas da Seção de Justiça do
Conselho de Estado desde o anno de 1842, em que começou a funcionar o mesmo con-
selho, até hoje, coligidas em virtude de autorização pelo Exmº. Sr. Conselheiro Manoel
Pinto de Souza Dantas, ex-ministro e secretário de Estado dos negócios da justiça. Rio de
Janeiro: 1884, p. 359.
93 – BANDEIRA FILHO, Antônio Herculano de Souza. O recurso de graça segundo a
legislação brasileira: contendo a indicação e análise das leis, decretos, avisos do governo
e consultas do Conselho de Estado sobre a matéria. Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial
Instituto Artístico, 1878, p. 53.
94 – BRASIL, Lei de 18 de setembro de 1828 – Crêa o Supremo Tribunal de Justiça e
Declara suas atribuições. In: Coleção das leis do Império do Brasil, 1828, parte primeira
(Atos do poder legislativo). Rio de Janeiro: 1878.

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Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

Bueno acrescentou os seguintes casos em que o recurso de revista não


se aplicava: decisões do Conselho de Estado e tribunais administrativos;
aquelas do Supremo Tribunal de Justiça; julgamentos do Senado; casos
de crimes policiais95; e as condenações pronunciadas em virtude da lei de
10 de junho de 1835. Ele, no entanto, ressalta que
É nossa opinião, porém, que ainda nestes cases ou outros quaisquer
cabe o recurso da revista, quando a questão versar em última alça-
da sobre competência, ou excesso de poder, pois que isso importa e
affecta gravemente a ordem publica; e o supremo tribunal de justiça é
o regulador das competências e dos conflictos de jurisdicção96.

Para além dessas limitações concernentes ao direito substantivo, ha-


via outras de natureza processual. O artigo 20 do decreto de 20 de de-
zembro de 1830 determinava que “Nao se poderá suprir no Tribunal as
faltas e omissões das solemnidades, que a lei exige para a interposição e
seguimento das revistas” 97. A própria natureza do instituto poderia evitar
a aplicação da justiça. O Supremo Tribunal de Justiça não voltava a jul-
gar os casos após a sua anulação, apenas os enviava a outro tribunal para
fazê-lo. A nova decisão poderia facilmente discordar do julgamento do
tribunal superior.

Em geral, a graça foi amplamente utilizada em muitas esferas para


racionalizar e adequar a repressão estatal e seus procedimentos. Não ape-
nas a justiça e a misericórdia foram levadas em conta, mas também – e
mais frequentemente – as nulidades processuais, os recursos e as inter-
pretações divergentes das leis estimularam discussões no Conselho de
Estado.

95  –  Crimes menores, comparáveis às atuais contravenções.


96 – PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito público brazileiro e análise da consti-
tuição do império. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e C., 1857, p.
221-222.
97 – BRASIL, Decreto de 20 de dezembro de 1830 – marca as declarações com que
deve ser cumprida a lei de 18 de setembro de 1828 da creação do Tribunal Supremo de
Justiça. In: Coleção das leis do Império do Brasil, 1830, parte primeira (Atos do poder
legislativo). Rio de Janeiro: 1876.

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Arthur Barrêtto de Almeida Costa

5 O quarto poder
Se a graça podia ser considerada frequentemente como um instituto
de natureza processual, por que não permitir que os próprios juízes resol-
vessem os problemas de que ela tratava?

O primeiro problema a ser enfrentado é a já referida aversão da cul-


tura jurídica do século XIX aos magistrados. Havia muitas maneiras de
exercer controle sobre eles, começando pelos crimes específicos de res-
ponsabilidade98, restrições à liberdade de julgamento etc. É o que Adriano
Cavann99 descreve como a ideologia antigiurisprudenziale (ideologia an-
tijurisprudencial).

Mas o problema é mais profundo. Não havia apenas uma certa de-
preciação do judiciário: a própria separação de poderes no Brasil era di-
ferente do tradicional esquema tripartido: no Império, ela era estruturada
com o acréscimo de um quarto poder, o moderador. Essa configuração foi
trazida da França100, a partir dos escritos de Benjamin Constant. De acor-
do com a noção originalmente elaborada por esse pensador, o monarca te-
ria direito a certos poderes específicos para controlar o campo de batalha
política do país. Seu princípio orientador seria a inércia do rei, ou seja, as
ações políticas nunca deveriam vir inicialmente dele. O Imperador sim-
plesmente poderia reagir aos abusos dos poderes executivo, legislativo ou
judicial, reprimindo ações que pudessem perturbar a ordem constitucio-
nal ou a separação de poderes. A pedra angular do sistema, originalmente,
seria a separação entre o poder moderador e o executivo, para evitar a
concentração excessiva de prerrogativas. No entanto, quando o projeto
constitucional foi posto em prática no Brasil, a redação do capítulo rela-
98 – FARIA, Aléxia Alvim Machado. Peita e suborno como delitos de corrupção no Bra-
sil Imperial (1824-1889). Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 131, ano
25, pp. 21-55, maio 2017.
99 – CAVANNA, Adriano. Storia del diritto moderno in Europa: le fonti e il pensiero
giuridico, 2. Milano: Giuffrè, 2005, p. 41.
100 – LYNCH, Christian Edward Cyrill. O discurso político monarquiano e a recepção
do conceito de Poder Moderador no Brasil (1822-1824), DADOS – Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 48, no 3, pp. 611 a 654; SALDANHA, Nelson. A teoria do
“poder moderador” e as origens do direito político brasileiro, Quaderni Fiorentini per la
Storia del Pensiero Giuridico Moderno, v. 18, pp. 253-265, jan./dez. 1989.

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Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

tivo ao quarto ramo do Estado inverteu essa afirmação, estabelecendo o


próprio poder neutro101 como o centro do sistema político brasileiro102. O
art. 98 da constituição de 1824, por conseguinte, estabelecia que “o poder
moderador é a chave de toda a organização política da nação, e é dele-
gado privativamente ao imperador, como chefe supremo da nação, e seu
primeiro representante”. Essa redação era suplementada pela conforma-
ção específica concedida ao poder executivo. Na teoria de Constant, esse
braço do Estado era separado do quarto pelo fato de ser composto por um
gabinete responsável perante a Câmara dos Deputados. No Brasil, por ou-
tro lado, o art. 102 da Constituição afirmava que “o Imperador é o chefe
do poder executivo, e o exercita por seus ministros de Estado”. A escolha
desses empregados públicos era um dever do monarca, e não havia qual-
quer tipo de responsabilidade do Imperador perante a Assembleia Geral.

A estrutura do poder imperial no Brasil era, portanto, bem mais cen-


tralizada do que aquela proposta por Constant. Ao imperador, confiava-se
a direção dos outros poderes, sem o estabelecimento de relações iguali-
tárias entre os quatro braços do Estado. A graça, por ser uma interferên-
cia em outros poderes, encaixa-se melhor as atribuições do moderador
do que nas de qualquer outro. Afinal, essa prerrogativa real é uma inter-
venção sobre o judiciário103 e o legislativo. No primeiro, revogando suas
sentenças e censurando certas interpretações. No segundo, afrouxando a
legalidade e a pena de morte, ou mesmo anulando-a. Não por acaso, no
ordenamento jurídico brasileiro, o perdão foi regulado pelo artigo 101 da
Constituição: o mesmo do poder moderador104.

101  –  Outro nome dado correntemente ao poder moderador.


102  – Algo já percebido por: GUANDALINI JR, Walter. O poder moderador: ensaio
sobre o debate jurídico-constitucional do século XIX. Curitiba: Apris, 2016.
103 – “A “graça” envolve uma condição á independência do poder judiciário emquanto
modifica, suspende e annulla sua acção”. FRANÇA E LEITE, Nicolau Rodrigues dos
Santos França e. Considerações políticas sobre a constituição do Império do Brasil. Rio
de Janeiro: Tipogrfia de J. M. A. A. de Aguiar, 1872.
104 – “Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador: I. Nomeando os Senadores, na
fórma do Art. 43; II. Convocando a Assembléa Geral extraordinariamente nos intervallos
das Sessões, quando assim o pede o bem do Imperio; III. Sanccionando os Decretos, e
Resoluções da Assembléa Geral, para que tenham força de Lei: Art. 62; IV. Approvando,
e suspendendo interinamente as Resoluções dos Conselhos Provinciaes: Arts. 86, e 87;

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Arthur Barrêtto de Almeida Costa

A natureza específica da separação dos poderes no Brasil e a aversão


aos juízes são, portanto, as razões pelas quais a graça não foi confiada ao
judiciário, ou a qualquer outro poder.

A concentração de tantas atribuições em uma só pessoa poderia pa-


recer excessiva na visão de alguns, daí a necessidade de haver algum tipo
de controle. A partir do art. 132 da constituição105, a publicística brasilei-
ra oitocentista considerava que todo ato do poder executivo deveria ser
assinado por um ministro que, com isso, se tornava responsável106; com
isso, o Imperador se livrava de responder por alguma ilegalidade, e se
preservava a ficção segundo a qual o monarca não pode fazer nenhum
mal. Mas não havia previsão semelhante para o Moderador, o que gerou
um dos mais amplos debates do direito público oitocentista brasileiro: a
responsabilidade ministerial por atos do Imperador se restringia às ações
do executivo, ou poderia ser estendida aos do moderador? Não cabe aqui
analisar em detalhes a discussão, coisa que já foi feita107. Basta apontar
que Zacarias Góis de Vasconcelos publicou uma das mais importantes
defesas da interpretação extensiva: argumentava que, sendo o país livre,
todo poder deveria ser responsável; do contrário, aparentaria estar acima

V. Prorogando, ou adiando a Assembléa Geral, e dissolvendo a Camara dos Deputados,


nos casos, em que o exigir a salvação do Estado; convocando immediatamente outra, que
a substitua.; VI. Nomeando, e demittindo livremente os Ministros de Estado; VII. Sus-
pendendo os Magistrados nos casos do Art. 154; VIII. Perdoando, e moderando as penas
impostas e os Réos condemnados por Sentença; IX. Concedendo Amnistia em caso urgen-
te, e que assim aconselhem a humanidade, e bem do Estado”. BRASIL. Constituição de
1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Constituicao/Constituicao24.
htm. Acesso em: 10.08.2015.
105 – “Art. 132. Os Ministros de Estado referendarão, ou assignarão todos os Actos do
Poder Executivo, sem o que não poderão ter execução”.
106 – Sobre os vários sentidos, inclusive de natureza criminal, que o termo pode ter,
cf: VELLOZO, Júlio César de Oliveira. Constituição e Responsabilidade no Império do
Brasil. Embates parlamentares sobre a responsabilização de ministros, magistrados e em-
pregados públicos em geral. Curitiba: Juruá, 2017; FARIA, Aléxia Alvim Machado. Peita,
suborno e a construção do conceito jurídico-penal de corrupção: patronato e venalidade
no Brasil imperial (1824-1889). Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito,
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: 2018.
107 – GUANDALINI JR, Walter. O poder moderador: ensaio sobre o debate jurídico-
constitucional do século XIX. Curitiba: Apris, 2016

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Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

da constituição108. Os adversários dessa posição se baseavam em uma lei-


tura mais literal da carta de 1824, e argumentavam que estabelecer uma
responsabilidade igual para ambos os poderes implicaria transformar exe-
cutivo e moderador em um só poder, sem qualquer distinção prática109.
Além disso, ela estimularia que os ministros interferissem no exercício
do moderador110, o que aniquilaria na prática a inviolabilidade do impe-
rador111.

A segunda posição parece ter prevalecido. Não sem razão, ela se


coadunava mais com o modo com que a graça era pensada, e aproximava
o perdão imperial do Poder Moderador. Na visão de autores como Brás
Florentino, a ausência responsabilidade ministerial pelos atos do poder
neutro era decorrência direta de uma elevação do Imperador e de uma
quase mística conexão entre a vontade do monarca e o interesse da na-
ção112. Essa vinculação exigia um poder que estivesse não acima, mas
para além da lei estrita, já que a Constituição de 1824 estabelecia que o
monarca e o legislativo eram os únicos titulares de soberania. A graça,
como já ressaltado, existe justamente para cobrir essas ocasiões em que
a lei estrita não era suficiente para resolver um caso concreto. Nada mais
justo, portanto, que a graça, como desconsideração da lei em prol de um

108 – VASCONCELLOS, Zacarias de Góis e. Da natureza e limites do poder modera-


dor. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1862, p. 21.
109 – URUGUAY, Paulino José Soares de Souza, Visconde do. Ensaio sobre o direito
administrativo. Rio de Janeiro: Thypographia Nacional, 1862, p. 21.
110 – SOUZA, Brás Florentino Henriques de. Poder Moderador: Ensaio de direito con-
stitucional, contendo a análise do tit. V, cap. I da constituição política do Brasil. Recife:
Tipografia Universal, 1864, p. 305
111 – SOUZA, Brás Florentino Henriques de. Poder Moderador: Ensaio de direito con-
stitucional, contendo a análise do tit. V, cap. I da constituição política do Brasil. Recife:
Tipografia Universal, 1864, pp. 433-434
112 – Em verdade, o bello, o sublime da forma monarchica consiste na persuasão geral
de que [...] ha no Estado uma vontade, que se pode sempre acceitar como pura, porque
identifica-se e deve necessariamente identificar-se com o interesse nacional.’ E note-se
que, não ha nisto nenhuma ficção de direito, como são as ficções dos nossos adversarios,
é um facto, uma regra geral, comprovada pela historia, e que nem por si, nem por suas
raras excepções pode autorisar a doutrina da responsabilidade dos ministros nos actos do
poder supremo. SOUZA, Brás Florentino Henriques de. Poder Moderador: Ensaio de
direito constitucional, contendo a análise do tit. V, cap. I da constituição política do Brasil.
Recife: Tipografia Universal, 1864, p. 507.

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Arthur Barrêtto de Almeida Costa

ideal maior de justiça, estivesse nas mãos de um poder que é paradoxal-


mente irresponsável perante a lei justamente porque tema função de fazer
com que o sistema político a cumprisse:
o direito positivo não é a esphera mais elevada, mas que existe um tri-
bunal interior diante do qual deve desapparecer o do direito exterior;
[...] essa jurisdicção e a graça que d’ella decorre, pertencem e devem
exclusivamente pertencer a aquelle, que nào é obrigado pelas leis, a
aquelle que é inviolavel, isto é, ao Imperador113.

E essa desvinculação entre moderador e executivo, afastando os mi-


nistros do exercício do primeiro poder, é que autorizava o Imperador a
perdoar também esses funcionários, ao contrário do que originalmente
estabelecia o projeto de constituição de 1823114. Não sem razão, a lei de
instituição da regência permanente repristina essa restrição115: quando
moderador e executivo parecem se confundir novamente em virtude da
ausência do Imperador, a graça precisa ser mais uma vez limitada.

6. Perdoando em novos tempos: mudanças com a república


As conexões entre a graça e o poder imperial foram esclarecidas. No
entanto, em 1889, o regime brasileiro foi alterado de uma monarquia para
uma república, mudança essa que foi seguida por uma alteração do códi-
go penal, em 1890, e da Constituição, em 1891. Apesar isso, a clemência
presidencial subsistiu, a despeito de algumas alterações.

113 – SOUZA, Brás Florentino Henriques de. Poder Moderador: Ensaio de direito con-
stitucional, contendo a análise do tit. V, cap. I da constituição política do Brasil. Recife:
Tipografia Universal, 1864, pp. 413-414.
114 – “Art. 142. São Atribuições do Imperador: [...] Agraciar os condemnados perdo-
ando em todo ou minorando as penas, excepto aos ministros de estado, a quem poderá
somente perdoar a pena de morte”. BRASIL. Annaes do parlamento Brazileiro. Assem-
blea Constituinte. 1823. Tomo quinto. Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial Instituto
Artístico, 1874 P. 12. Sessão de 1º de setembro de 1823.
115 – “Art. 19. A Regência não poderá: [...] Perdoar aos Ministros e Conselheiros de
Estado, salvo a pena de morte, que será comutada na imediata, nos crimes de responsa-
bilidade”. BRASIL. Lei de 14 de junho de 1831 – sobre a forma da eleição da regência
permanente, e de suas atribuições. In: BRASIL. Coleção das leis do Império do Brasil de
1831. Primeira parte. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1875.

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Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

Durante o império, havia um certo consenso entre os juristas sobre


a importância do instituto. Poucos foram os críticos que se opuseram a
ele, e estes visavam sobretudo casos específicos em vez da legitimidade
da própria clemência imperial. Por outro lado, na assembleia constitucio-
nal republicana, alguns políticos levantaram suas vozes exigindo a extin-
ção da prerrogativa. É o caso dos deputados Assis Brasil, Prado Júnior
e Ernesto Alves, que, na sessão de 7 de fevereiro de 1891, asseguraram
que era mais racional contar com o Supremo Tribunal Federal (STF) para
reverter erros judiciais116 do que confiar apenas no presidente. Não sem
razão, alguns juristas, como Rui Barbosa e Campos Sales, pensavam exa-
tamente no STF como o sucessor do poder Moderador117. Um dos mais
proeminentes adversários da graça foi o deputado João Vieira de Araújo,
professor de direito penal em Recife, que vinha trabalhando consisten-
temente com as ciências criminais e tentava se mostrar um seguidor da
escola positiva italiana no Brasil118. A sua posição era a de que não era
adequado que uma assembleia constitucional se ocupasse desses assun-
tos: o lugar certo para pensar em clemência executiva era o projeto de um
código penal, no qual o sistema repressivo pudesse ser estruturado de for-
ma completa119. Com esta avaliação, e a correspondente criação e recon-

116 – “Para corrigir os erros possiveis da justiça ordinaria, é preferivel investir os tribu-


naes superiores, ou Supremo Tribunal Federal, da àttribuição de rever os processos, me-
diante, pedido da parte, e nos casos e fórmas expressamente taxados em lei. O contrario é
injusto e perturbador da independencia a harmonia que deve reinar entre os tres poderes”.
BRASIL. Annaes do congresso constituinte da república. Rio de Janeiro: Imprensa Na-
cional, 1924. Tomo 3, p. 19.
117  –  LYNCH, Christian Edward Cyrill. O caminho para Washington passa por Buenos
Aires: a recepção do conceito argentino de estado de sítio e a construção do modelo re-
publicano-oligárquico brasileiro. In: FONSECA, Ricardo Marcelo. As formas do direito:
ordem, razão e decisão (experiências jurídicas antes e depois da modernidade). Curitiba:
Juruá, 2013, p. 388
118 – SONTAG, Ricardo. “Código Criminológico”? Ciência jurídica e codificação do
direito peal no Brasil (1888-1899). Rio de Janeiro: Revan, 2015.
119 – “que a Constituição não tivesse estatuído cousa alguma com relação a este as-
sumpto guardando sobre elle o mais absoluto silencio: porque nas legislaturas ordinarias,
quando se estivessem de organizar os nossos institutos penaes, poderiamos instituir um
exame serio sobre todos estes problemas, e, convenientemente, discutir com largueza to-
das as questões que a elles se prendem”. BRASIL. Annaes do congresso constituinte da
república. Rio de Janeiro: 1924. V. 3, p. 276-277.

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Arthur Barrêtto de Almeida Costa

figuração de outras instituições, como a liberdade condicional e a revisão


criminal, o perdão poderia até desaparecer sem mais problemas120.

No entanto, essas posições não prevaleceram, e o secular instituto da


clemência foi preservado na Constituição. Mas os tempos republicanos,
diferentemente dos imperiais, foram marcados no Brasil por muita frag-
mentação da soberania, em um federalismo com alto grau de autonomia
estadual. No plano nacional, o presidente poderia perdoar cidadãos con-
denados por crimes federais em geral, de acordo com o artigo 48, § 6º da
Constituição. O Congresso Nacional, por sua vez, tinha a faculdade de
perdoar crimes cometidos por servidores públicos federais, em conformi-
dade com o artigo 34, § 27. Em nível estadual, a constituição de cada um
dos 20 estados brasileiros regulamentava a questão de forma específica.
A maioria estabeleceu uma divisão similar àquela encontrada em nível
nacional121, mas ainda assim havia espaço para variedade. As leis funda-
mentais de Rio Grande do Sul e Piauí simplesmente extinguiram a graça,
por exemplo. Pouco depois da criação da constituição, surgiu um deba-
te sobre se a legislação criminal era de competência federal122. No fim,
decidiu-se que o direito substancial era matéria federal e o processual, de
caráter estadual. Brás Arruda123 sustentava que a graça deveria ter seguido
o direito substancial e ter ido para a esfera federal, mas, graças a falhas
na redação da constituição e a problemas na revisão do projeto, o modo
como o texto foi escrito acabou dando a entender que era um assunto
também afeito aos estados.
120 – “Sem sahir da esphera da organização judiciaria e, portanto, da alçada do mesmo
Poder Judiciario, a reforma e melhoramento da legislação pódem facultar a adopção de
institutos para suprir a abolição do direito de graça, como sejam o da sentença condicio-
nal, o do livramento condicional, o da revisão dos processos, de que trata o art. 58, n. 3, e
o art. 80 do projecto, em Summa; o mesmo se obterá pela organização de um systema de
repressão regular e racional”. BRASIL. Annaes do congresso constituinte da república.
Rio de Janeiro: 1924. V. 3, p. 289-290.
121 – FREIRE, Felisberto. As constituições dos estados e a Constituição Federal. Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional, 1898.
122 – SONTAG, Ricardo. Unidade legislativa penal brasileira e a escola positiva italia-
na: sobre um debate em torno do código penal de 1890, Justiça & História, v. 11, n. 21 e
22, S. 89-124, Porto Alegre 2011.
123 – ARRUDA, Brás de Souza. O instituto do perdão. Revista da Faculdade de Direito
de São Paulo, São Paulo, v. 21, pp. 362-367, 1913, p. 364.

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Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

Os últimos anos do século XIX assistiram ao surgimento da escola


positiva do pensamento criminal no Brasil. Essa tendência criminológica
italiana sustentava a centralidade da noção de defesa social. Afirmavam
que, ao contrário do que se fazia antes, o foco da repressão não deveria
ser o crime em abstrato, mas sim o agente criminoso. Este deveria ser
neutralizado ou recuperado. Desse ponto de vista, a forma como a graça
estava sendo conduzida parecia imperfeita, pois era apenas uma ferra-
menta para a realização de interesses políticos. O direito penal, segundo
os positivistas, era um dos principais instrumentos de defesa dos cidadãos
contra ameaças externas. Prejudicar a sua eficácia através da clemência
não seria uma boa ideia.

Aurelino Leal124, em seu livro Gérmens do Crime, descreve diversas


instituições e características do sistema repressivo brasileiro que seriam
responsáveis, do seu ponto de vista, por estimular o crime. Alguns exem-
plos dados por ele são o júri, a prescrição, algumas nulidades processuais
e, como esperado, a graça, a anistia e o perdão do ofendido. Os críticos
do perdão, como Leal, trouxeram de volta a antiga preocupação de que a
misericórdia presidencial pudesse comprometer a separação de poderes
tão cuidadosamente elaborada pela Constituição. Eles viam a clemência
como um mecanismo que colocava poderes de natureza judicial nas mãos
do executivo, erodindo erroneamente a certeza, elemento este que deve-
ria ser essencial para os atos jurisdicionais. Leal vai ainda mais longe ao
condenar o perdão: afirma que, de acordo com a escola positiva, o valor
das penas deve ser calculado de acordo com o tipo de agente crimino-
so envolvido. Essa operação já cumpria o tipo de particularização que
a graça pretendia realizar. Portanto, o perdão a criminosos congênitos,
incuráveis ou reincidentes deve ser proibido de antemão, exceto quando a
cura ainda fosse possível. Ele também lembrava que era possível para um
criminoso astuto simular seu arrependimento e obter perdão, mesmo que
não merecesse. Para Leal125, portanto, a misericórdia presidencial era pro-

124 – LEAL, Aurelino. Germens do crime. Bahia: Livr. Magalhães, 1896, p. 171 ss.
125 – LEAL, Aurelino. Germens do crime. Bahia: Livr. Magalhães, 1896.

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Arthur Barrêtto de Almeida Costa

fundamente ancorada no pensamento metafísico – de fato, em algumas de


suas bases mais abjetas, na opinião do jurista.

No entanto, nem ele nem os outros pensadores positivistas defen-


diam uma súbita e direta extinção do instituto. Viveiros de Castro, um
importante seguidor da escola positiva, ainda sustenta a permanência da
clemência estatal. A graça seria “um poderoso recurso na penalogia, um
medicamento eficaz na prophylaxia e therapeutica penal” 126. Seria, por-
tanto, uma ferramenta para se manter a sanidade dos condenado: “O per-
dão é a estrella polar que ainda brilha na tormentosa noite da sua alma, a
taboa de salvação a que se agarra este naufrago perdido. Sem esta espe-
rança a prizão é um túmulo, a vida um desespero sombrio”. Ademais, os
positivistas pensavam que a clemência presidencial ajudava a manter a
disciplina penitenciária, da mesma forma que sustentavam os criminalis-
tas imperiais: “o meio enérgico empregado pelos directores das penitenci-
árias para manterem a ordem e a disciplina, para conseguirem dos deten-
tos submissão e respeito”127. Ainda assim, estas vantagens do perdão não
impediram que estes mesmos pensadores lhe fizessem algumas críticas,
especialmente no que diz respeito à separação de poderes128. No entanto,
o contexto político do Brasil não permitia muitas reformas, e os ajustes
sugeridos na clemência executiva nunca foram feitos.

O contexto do final do século XIX e as suas reformas marcam o


auge de um processo de mudança na topografia disciplinar da graça que
começou logo após a independência, em 1822. A clemência sempre teve
uma dimensão dúplice, pertencendo simultaneamente ao direito constitu-
cional e ao criminal. No início dos oitocentos, a faceta constitucional era

126 – VIVEIROS DE CASTRO, Augusto Olímpio. Questões de direito penal. Rio de


Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1900, p. 167.
127 – VIVEIROS DE CASTRO, Augusto Olímpio. Questões de direito penal. Rio de
Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1900, p. 197.
128 – “Que o direito de graça perturba a divisão harmonica dos poderes públicos, sendo
uma manifesta intervenção do Poder Executivo nas deliberações do Poder Judiciário”;
“fere o principio da igualdade social, isentando da punição certos indivíduos, emquanto
outros por idênticos factos, em idênticas circumstancias, estão na cadeia”; “o direito de
graça é em regra mal exercido pelo Poder Executivo”. VIVEIROS DE CASTRO, Augusto
Olímpio. Questões de direito penal. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1900, p. 196.

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Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

a força dominante e a misericórdia era considerada um instrumento de


governança: a correção das agitações política e das imperfeições legais
eram as suas principais funções. Com o passar do tempo, o lado penal
torna-se cada vez mais relevante. O primeiro sinal disso é o facto de o
quarto argumento para justificar a graça – para recompensar os serviços
do Estado – ter sido abandonado por volta da década de 1860. Mais tarde,
em 1890, o perdão passou a ser regulado também pelo código penal, e
não apenas pela Constituição, como era o caso anteriormente129. Ademais,
o pensamento jurídico começa a espelhar essas mudanças: se, durante o
Império, a graça estava presente mais frequentemente em livros de direito
constitucional e em textos discutindo o poder moderador, ela começa a
partir das últimas décadas do século a ser mostrada também em livros
de direito penal. A obra de Viveiros de Castro, por exemplo, se chama
Questões de Direito Penal 130, e conta com um capítulo sobre o tema.
Galdino Siqueira, em seu projeto de código criminal de 1913, dizia que
as causas de extinção a ação penal, dentre as quais se contava a graça,
pertenciam ao direito penal substancial131, e não ao processual. Siqueira
sequer considera o direito constitucional como uma resposta possível.
É bem verdade que Brás Arruda, um constitucionalista da Faculdade de
Direito de São Paulo, escreveu um artigo132 defendendo a colocação da
graça no âmbito constitucional. Mas o fato de que Arruda é obrigado a
argumentar em prol dessa posição mostra que a questão era controversa.
129  –  Isso ocorre nos artigos 72, 74 e 76: “Art. 72. A condemnação extingue-se por estas
mesmas causas, e mais: [...] 2º Por indulto do poder competente”, “Art. 74. As incapaci-
dades pronunciadas pela condemnação cessam em consequencia do indulto de graça” e
“Art. 76. A amnistia e a remissão das penas por indulto de graça não eximem o agraciado
de satisfazer a indemnização do damno”.
130 – VIVEIROS DE CASTRO, Augusto Olímpio. Questões de direito penal. Rio de
Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1900.
131 – “O legislador foi levado a tratar neste título (6, ‘da extinção e suspensão da ação
penal e de sua condenação’) das causas da extinção da ação penal e da condenação, por-
que importando em tratar da extinção do direito de punir, a definição e enumeração de
cada uma dessas causas são do domínio do direito penal. Às leis do processo ficava deter-
minar os atos ou a forma por que em juízo deviam ser propostas, provadas e julgadas taes
causas”. SIQUEIRA, Galdino. Projecto de Código Penal Brazileiro. Rio de Janeiro:  Jor-
nal do Brasil, Revista da Semana, 1913, p. 673.
132 – ARRUDA, Brás de Souza. O projecto do Senador Herculano de Freitas. Revista da
Faculdade de Direito de São Paulo, São Paulo, v. 21, p. 368-372, 1913.

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Arthur Barrêtto de Almeida Costa

E uma análise mais ampla das opiniões dos juristas mostra que a posição
de Siqueira foi a que prevaleceu.

A república levantou muitas dúvidas e promoveu importantes mu-


danças sobre a misericórdia presidencial. Essas alterações incidiram não
apenas sobre a área em que a graça se inseria, mas tocava o próprio papel
que o instituo desempenhava no ordenamento jurídico brasileiro.

7 Reformas criminais republicanas: diminuindo o papel da graça


Entre os três papéis originais da graça, dois começaram a ser desem-
penhados por outros institutos, derivados de reformas feitas no final do
século XIX no Brasil. Isso é algo que até mesmo a doutrina reconheceu
na época133. Essas alterações foram, em primeiro lugar, a substituição do
recurso de revista pela revisão criminal e, em segundo lugar, a criação da
liberdade condicional.

133 – “No tempo do império não havia nem a revisão dos processos, nem o regimen
penitenciário. O perdão era o único recurso para o erro judiciário, para libertar o innocente
da pena injusta a que fora condemnado. Servia também de recompensa aos criminosos
regenerados pela pena, que na prizão tinhão por uma conducta exemplar dado sobejas
provas do seu arrependimento, de sua correcção. Foi por estes motivos que o decreto de
28 de Março de 1860 regularisou o modo da concessão do perdão. O poder moderador
precisava ser instruído sobre o processo, si tinha havido um erro na condemnação, si forão
preteridas formalidades essenciaes, si, finalmente, o criminoso pelo seu comportamento
na prizão merecia a graça que impetrava. Hoje, porém, o perdão não é mais um recurso
judiciário, como foi no tempo do império, e sim um acto de generosidade, de clemência
do Chefe do Estado. Para os erros judiciários ha a revisão perante o Supremo Tribunal
Federal, revisão que restabelece a innocencia do condemnado, que lava a mancha da con-
denação fazendo brilhar a verdade, e portanto de effeitos jurídicos muito mais latos do que
o perdão, que simplesmente affecta o cumprimento da pena. Para galardoar a regeneração
do criminoso ha hoje o livramento condicional estabelecido nos artigos 50 e seguintes do
Código Penal. [...] Mas hoje com a revisão, com o livramento condicional, o perdão é um
simples acto de clemência, uma attribuição do Presidente da Republica. Não é mais um
recurso judiciário, ê uma prerogativa do Chefe do Estado. E como tal não está sujeito a
formas e exigências, depende unicamente do critério e do bom senso da autoridade su-
prema que o confere e demittir livremente os seus ministros e secretários, assim também
pôde perdoar livremente os condemnados”. VIVEIROS DE CASTRO, Augusto Olímpio.
Questões de direito penal. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1900, p. 184-185.

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Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

A revisão criminal134 foi criada como substituto do recurso de revista


por meio do decreto 846 de 1890135. Foi o mesmo que instituiu o Supremo
Tribunal Federal, que igualmente substituiu o antigo Supremo Tribunal
de Justiça imperial. A revisão tinha um escopo mais amplo do que o re-
curso de revista e é exatamente por isso que não precisava de correção
por meio da graça. Suas principais vantagens eram que podia ser utilizada
a qualquer tempo, de acordo com o artigo 81 da Constituição de 1891;
e só podia reduzir ou anular a condenação – muito diferente da revista,
que só estava disponível até dois anos após a condenação e podia até
ampliar as penas. Além disso, o recém-criado Supremo Tribunal Federal
não estava simplesmente obrigado a enviar os casos que anulasse para um
tribunal inferior, como fazia o antigo Supremo Tribunal de Justiça: podia
decidir diretamente sobre eles. A Lei 211, de 20 de novembro de 1894,
esclarecia as hipóteses em que o recurso poderia ser protocolado136, que
eram mais amplas do que as da antiga revista. No entanto, essas vanta-
gens não significavam uma substituição total do perdão; afinal, a revisão
criminal não era perfeita. A anulação da sentença por falso testemunho,
por exemplo, só poderia ocorrer através de outro processo penal contra o
infrator. Quando a ação legal não era possível, a única esperança seria a
velha graça137.

A segunda grande reforma ocorrida no direito penal com profundos


impactos na clemência estatal foi a criação do livramento condicional138.

134  –  O principal livro sobre o assunto é: ARAÚJO, João Vieira de. A revisão dos pro-
cessos penaes, Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1899.
135 – BRASIL, Decreto n. 846 – de 11 de outubro de 1890. Organiza a Justiça fede-
ral. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d848.htm.
Acesso em: 20.08.2016
136  –  Contrariedade à lei; ausência de formalidades; suspeição ou incompetência do
juiz; contradição com outra sentença sobre o mesmo crime; sentença contrária às provas;
descoberta superveniente de prova da inocência do réu.
137 – “em todos esses casos, ficará ao direito de graça exercer sua influência bemfeitora,
mas não pode ter lugar a revisão” ARAÚJO, João Vieira de. A revisão dos processos pe-
naes. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1899, p. 62.
138 – Para uma descrição aprofundada dessas mudanças: QUEIROZ, Rafael Mafei
Rabelo de. A modernização do direito penal brasileiro: sursis, livramento condicional e
outras reformas do sistema de penas clássico do Brasil, 1924-1940. São Paulo: Quartier
Latin, 2007.

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Arthur Barrêtto de Almeida Costa

Ele era regulado no Código Penal de 1890139, e correspondia à possibi-


lidade de liberar o condenado mesmo antes do fim do cumprimento da
sentença. Sob certas condições, porém: o criminoso deveria estar sujeito
a uma vigilância policial especial, e só poderia ser solto depois de algum
tempo. Se o agente tivesse cometido um crime durante o período da sen-
tença, voltaria para a prisão e cumpriria a pena inteira. A instituição teve
que esperar por um decreto em 1924 para ser regulamentada e finalmente
aplicada140; é por isso que este estudo abrange apenas a doutrina escrita
enquanto a liberdade condicional era uma mera possibilidade. Este atraso
regulatório pode ser creditado a alguns limites práticos. O Código Penal
de 1890 exigia que, depois de algum tempo encarcerado, o interno fosse
transferido para uma penitenciária agrícola ou outras instituições espe-
ciais de cumprimento de sentença antes de ser finalmente liberado: um
processo gradual de abrandamento da pena. Por muito tempo, essas insti-
tuições não existiam; daí que o instituto não fosse aplicado.

Para alguns autores da época, o papel da liberdade condicional era


precisamente o de reconhecer o condenado que se arrependeu de seus
crimes e que foi efetivamente recuperado141. Portanto, seria compará-
139 – “Art. 50. O condemnado a prisão cellular por tempo excedente de seis annos e que
houver cumprido metade da pena, mostrando bom comportamento, poderá ser transferido
para alguma penitenciaria agricola, afim de ahi cumprir o restante da pena. [...] § 2º Si
perseverar no bom comportamento, de modo a fazer presumir emenda, poderá obter livra-
mento condicional, comtanto que o restante da pena a cumprir não exceda de dous annos.
Art. 51. O livramento condicional será concedido por acto do poder federal, ou dos Esta-
dos, conforme a competencia respectiva, mediante proposta do chefe do estabelecimento
penitenciario, o qual justificará a conveniencia da concessão em minucioso relatorio. Pa-
ragrapho unico. O condemnado que obtiver livramento condicional será obrigado a residir
no logar que for designado no acto da concessão e ficará sujeito á vigilancia da policia.
Art. 52. O livramento condicional será revogado, si o condemnado commetter algum cri-
me que importe pena restrictiva da liberdade, ou não satisfizer a condição imposta. Em tal
caso, o tempo decorrido durante o livramento não se computará na pena legal; decorrido,
porém, todo o tempo, sem que o livramento seja revogado, a pena ficará cumprida. [...]
Art. 73. A condemnação suspende-se: a) Pelo livramento condicional”.
140 – BRASIL. Decreto nº 16.665 – de 6 de novembro de 1924. Regula o livramento
condicional. In: BRASIL. Colecção das leis da República dos Estados Unidos do Brasil
de 1924. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1924. (Volume III. Actos do poder executivo.
Junho a novembro). Sobre esse assunto, cf. QUEIROZ, rafael Mafei Rabelo de. A moder-
nização do direito penal brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2007.
141 – ESCOREL, Manuel Clementino de. Código penal brasileiro: contendo leis, de-

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Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

vel à graça142. João Marcondes de Moura Romeiro143, no seu Dicionário


de Direito Penal, afirma que o fundamento do livramento condicional
era que “nada [é] mais justo que aliviar o castigo infligido, e até mesmo
fazê-lo cessar para sempre, uma vez reconhecida a emenda do culpado
e conseguido o resultado que a pena deveria produzir”. Esta descrição
assemelha-se, em muitos aspectos, à da graça, especialmente pelo uso da
expressão “correcção de condenados” (emenda do condenado), uma clara
lembrança dos os debates tardios do império.

A proximidade entre perdão e liberdade condicional não é uma par-


ticularidade brasileira. Ela faz parte de um contexto mundial de refor-
mas penais. Pelo menos na Finlândia144, Itália145 e Estados Unidos146 esse
fenômeno pode ser observado para a segunda metade do século XIX.
Por conseguinte, a misericórdia do Estado sofria alterações consideráveis
susceptíveis de pôr em causa as suas próprias bases. No entanto, elas não
eram suficientes para provocar a sua extinção, mas apenas para que se
repensasse o seu significado.

8 Uma acomodação e um movimento: Considerações finais


Há duas conclusões principais que podem ser extraídas do percurso
da graça pelo Brasil oitocentista.
cretos, avisos do governo, cálculos de penas, registrados todos os casos, jurisprudência
brasileira e estrangeira, e um índice alfabético no último volume, 3ª edição. São Paulo:
1905, p. 206-207; ROMEIRO, João Marcondes de Moura. Diccionário de direito penal.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905, p. 233-234; SOUSA, Oscar de Macedo. Código
penal da República dos Estados Unidos do Brasil comentado. Rio de Janeiro/Paris: Edi-
tora Garnier, 1910, p. 148.
142 – “pode permitir realizar uma grande parte da obra da graça”. ARAÚJO, João Vieira
de. Código penal commentado theorica e praticamente. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife:
J. Ribeiro dos Santos, 1897, p. 289. Grifo do autor.
143 – ROMEIRO, João Marcondes de Moura. Diccionário de direito penal. Rio de Jan-
eiro: Imprensa Nacional, 1905, p. 234.
144 – KOTKAS, Thomas. Pardoning in nineteenth century Finland: at the interface of
early modern and modern criminal law. Rechtsgeschichte, Frankfurt am Main, v. 5, n. 10,
S. 152-168, jul/dez, 2007.
145 – STRONATI, Monica. Il governo della “grazia”: giustizia sovrana e ordine giuri-
dico nell’esperienza italiana (1848-1913). Milano: Giuffrè 2009
146 – STRANGE, Carolyn. Discretionary justice: pardon and parole in New York from
the revolution to the depression. New York: NYU press, 2016.

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Arthur Barrêtto de Almeida Costa

A primeira é que a graça foi capaz de amoldar-se com surpreendente


facilidade à cultura jurídica do século XIX, apesar das críticas importan-
tes de figuras relevantes como Kant147 ou Beccaria148. Os desafios à legi-
timidade da graça no Brasil são amplamente periféricos e surgem no final
do século XIX, após o nascimento da República. Algumas observações
podem esclarecer essa situação. A primeira é um contexto internacional
com grande aceitação da graça. Países europeus considerados modelos
para o Brasil, como Itália, França, Estados Unidos, Reino Unido, Espanha
e Portugal (ver anexo) mantiveram a prerrogativa, independentemente de
serem repúblicas ou monarquias. Isso exigiria um ônus argumentativo
mais forte de qualquer um que tentasse atacar a graça - e poucos brasilei-
ros ousaram fazê-lo. Uma segunda razão para essa adaptação foi a íntima
conexão entre graça e poder moderador. Ela permitia o controle efetivo
sobre o Poder Judiciário e a vigilância, ainda que distante, sobre o legis-
lativo. Dessa forma, o Imperador poderia facilmente exercer sua tarefa
de supervisionar a separação de poderes. Criticar o perdão também sig-
nificava questionar a santidade do poder moderador. O terceiro e último
fator foi a possibilidade de resolver através de um meio não convencional
os problemas de algumas leis e suas reformas. Houve algumas falhas im-
portantes na aplicação da lei de 10 de junho de 1835 sobre a repressão de
crimes escravos, bem como no recurso de revista. A graça era capaz de
resolver todas elas com pouco esforço.

Ressalto que ao insistir na conexão entre o instituto da graça e o


poder Moderador, não pretendo afirmar que um depende do outro. Como
a análise comparativa das constituições oitocentistas demonstra, é ple-
namente possível haver o perdão imperial desvinculado do quarto poder.
Pretendo apenas ressaltar que as funções específicas do poder neutro no
Brasil, colocado acima dos outros três e com poder de supervisão sobre
147  –  Comentários sobre a posição kantiana em: KOTKAS, Thomas. Kant on the right
of pardon: a necessity and ruler’s personal forgiveness. Kant studien: philosophisch-
eszeitschrift der Kant-Gesellschaft, v. 102, n. 4, S. 413-421, 2011; MOORE, Kathleen
Dean. Pardons: justice, mercy and the public interest. New York: 1989.
148 – BECCARIA, Cesare Bonesana, maquis of. Dei delitti e dele pene [1764]. Dispo-
nível em: http://www.letteraturaitaliana.net/pdf/Volume_7/t157.pdf, pp. 115-116. Acesso
em: 10.01.2016.

298 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):255-304, set./dez. 2019.


Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

eles, permitia que a função de correção das falhas legislativas e judiciais


pela graça fosse vista com menos estranheza do que seria caso estives-
se nas mãos, por exemplo, do executivo. A comparação entre a época
imperial e a republicana permite esclarecer melhor o argumento. Com a
extinção do moderador, alguns propõem que as funções da graça sejam
transferidas ao STF, visto como uma espécie de novo poder neutro. No
período imperial, as falhas que deveriam ser corrigidas pelo perdão im-
perial eram maiores, mas o poder responsável pela sua concessão estabe-
lecia uma relação vertical com os outros. Na república, essa verticalidade
do Moderador dá lugar a uma relação horizontal do executivo com legis-
lativo e judiciário. Se o livramento condicional e a revisão criminal não
tivessem sido criados, nós talvez assistíssemos a debates mais agudos so-
bre a extinção da graça. Deixando o perigoso terreno do contrafactual de
lado, não é sem razão que justamente após a proclamação da República e
a recepção do positivismo criminológico que a graça vem a ser contestada
de forma mais contundente: ela não seria mais resguardada pela existên-
cia do poder moderador. Ou melhor, ela era atacada, como antes o próprio
moderador fora149, como uma ideia “metafísica”. É possível dizer, então,
que a graça não depende do moderador para existir, mas que floresce e é
aceita com mais naturalidade quando pode dividir o mesmo espaço com o
quarto poder – especialmente quando ele é irresponsável e pode, por meio
do perdão, flexibilizar a lei para alcançar a justiça.

A segunda grande conclusão é o movimento do perdão do direito


constitucional para o direito penal. A misericórdia estatal tem sempre
uma dupla natureza, pertencente a ambos os lados. Mas, com o passar
do século XIX, o foco mudou de um para o outro polo. Isso se verificou
por meio de um quase abandono da quarta justificativa do perdão (de
recompensar os serviços prestados ao Estado), através da incorporação
do instituto nos livros de direito penal e da sua posterior conexão com
o debate tardo-oitocentista sobre a liberdade condicional e a disciplina
penitenciária.

149 – BARRETO, Tobias. A questão do Poder Moderador. In: Estudos de direito. Rio de


Janeiro: Laemmert & C., 1892.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):255-304, set./dez. 2019. 299


Arthur Barrêtto de Almeida Costa

A graça foi um elemento crucial das reformas ao longo de todo o


século XIX, assegurando o equilíbrio e a coesão do ordenamento jurídico
em muitos domínios. Sobre ela, profundas reflexões foram desenvolvi-
das, motivadas pelo seu uso constante, colocando-a em contato com mui-
tos temas centrais, como escravidão, sistema de justiça, governo militar e
vários outros. São vários os usos deste “attribute to awe and majesty”, já
que “ mercy is above this sceptered way”.

Anexo – Constituições oitocentistas com a graça150


País Ano Disposição
Reino da Suécia1 1808 -
1812 Art. 171, 13
1837 Art. 47, 3º
Espanha2
1869 Art. 63, 3º
1876 Art. 54, 3º
Reino da Noruega3 1814 Art. 20
Reino de Nápoles4 1815 Art. 21
Grão-Ducado de Baden5 1818 Art. 15
Reino da Baviera6 1818 Art. 4
1818 Art. 22
1823 Art. 18, 15
Chile7
1828 Art. 46, 13
1833 Art. 37, 11
Grão-Ducado de Württenberg8 1819 Art. 97
1820 Art. 164, 13
Reino das Duas Sicílias9
1848 Art. 63
Reública da Colombia10 1821 Art. 55, 20
1822 Art. 123, 9
Reino de Portugal11 1826 Art. 74, 7
1838 Art. 82, 10

150  –  A constituição do Império Germânico de 1871 não dá ao imperador o poder de


perdoar as penas; isso não significa, entretanto, uma abolição daquele direito, já que a
Constituição da Prússia já garantia ao seu rei (constitucionalmente, o mesmo monarca
que o da Alemanha unificada) a possibilidade de exercer a misericórdia. Cf. IMPÉRIO
ALEMÃO. Gesetz Betreffemd di Verfassung des Deutschen Reichs vom 16. April 1871,
http://dircost.di.unito.it/cs/docs/GERMANIA%20IMPERO%201871.htm. Acesso em:
11.10.2017. Quanto aos outros territórios do império, seria necessário pesquisar a consti-
tuição de cada um dos 27 reino, grão-ducados, ducados, principados e cidades livres. As
evidências parciais colhidas apontam para a manutenção da graça, tal como acontece para
a Cidade Livre e Hanseática de Hamburgo (1879) ou os supracitados reinos da Bavária,
Württenberg, Saxônia e Prússia.

300 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):255-304, set./dez. 2019.


Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

1824 Art. 50, 25


1834 Art. 17, 26
Mexico12
1843 Art. 66, 15
1857 Art. 85, 15
Republica da Bolívia13 1826 Art. 43, 16
Reino da Belgica14 1831 Art. 91
Reino da Saxônia15 1831 Art. 52
Estados Papais16 1848 Art. 3
1848 Art. 74, 7
Suíça 17
1874 Art. 85, 7
Grão-Ducado da Toscana18 1848 Art. 19
Reino da Sardenha, depois Reino da Itália19 1848 Art. 8
Imperio Austríaco20 1848 § 13
1848 Art. 66
Reino dos Países Baixos21
1887 Art. 70
Prussia22 1850 Art. 49
República Argentina23 1853 Art. 86, 6
Cidade Livre e Hanseática de Hamburg24 1879 Art. 24

1 SUÉCIA. Costituzione del Regno di Svezia del 7 giugno 1809, http://dircost.di.unito.


it/cs/docs/svezia%201809.htm. Acesso em: 11.10.2017.
2 ESPANHA. Costituzione di Cadice (1812), http://dircost.di.unito.it/cs/docs/ca-
dice%201812.htm. Acesso em: 11.10.2017; ESPANHA. Constitucion De La Mo-
narquia Española (18 De Junio De 1837), http://dircost.di.unito.it/cs/pdf/spagna_
constitucion_1837_esp.pdf. Acesso em: 11.10.2017; SPAIN, Constitucion De La
Monarquia Española (1 De Junio De 1869), http://dircost.di.unito.it/cs/pdf/spag-
na_constitucion_1869_esp.pdf. Acesso em 11.10.2017; ESPANHA. Constitucion
De La Monarquia Española (30 De Junio De 1876), http://dircost.di.unito.it/cs/docs/
spagna%201876.htm. Acesso em: 11.10.2017.
3 NORUEGA. Costituzione del Regno di Norvegia del 17 maggio 1814,http://dircost.
di.unito.it/cs/pdf/18140517_norvegiaCostituzione_ita.pdf. Acesso em: 11.10.2017.
4 NAPLES. Costituzione del Regno di Napoli. http://dircost.di.unito.it/cs/docs/napo-
li1815.htm. Acesso em: 11.10.2017.
5 BADEN. Verfassungsurkunde für das Grossherzogtum Baden vom 22. August 1812,
http://dircost.di.unito.it/cs/pdf/18180822_germaniaGranducatoBaden_ita.pdf. Aces-
so em: 11.10.2017.
6 BAYERN. Verfassungsurkundefür das Königreich Bayern vom 26.Mai 1818, http://
dircost.di.unito.it/cs/pdf/18180526_germaniaCostituzioneBaviera_ita.pdf. Acesso
em: 11.10.2017.
7 CHILE. Proyecto de constitució provisória para el estado de Chile publicado em
10 de agosto de 1818, sancionado y jurado solemnemente el 23 octubre del mismo,
https://www.leychile.cl/Consulta/m/norma_plana?idNorma=1005251&org=cch.
Acesso em: 11.10.2017; CHILE. Constitución politica del estado de Chile, pro-
mulgada em 29 diciembre 1823, https://www.leychile.cl/Consulta/m/norma_
plana?idNorma=1005202&org=cch. Acesso em: 11.10.2017; CHILE. Constitución

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):255-304, set./dez. 2019. 301


Arthur Barrêtto de Almeida Costa

politica de la Republica de Chile, promulgada em 8 de agosto de 1828, https://www.


leychile.cl/Consulta/m/norma_plana?idNorma=1005225&org=cch. Acesso em:
11.10.2017; CHILE. Constitución politica de la Republica de Chile (1833), https://
www.leychile.cl/Consulta/m/norma_plana?idNorma=137535&org=cch. Acesso em:
11.10.2017.
8 WÜRTTENBERG. Verfassungsurkunde für das Königreich Württenberg (1819),
http://dircost.di.unito.it/cs/pdf/18190925_germaniaGranducatoWurttemberg_ita.
pdf. Acesso em: 11.10.2017.
9 DUAS-SICILIAS. Costituzione del Regno delle Due Sicilie (1821),http://dircost.
di.unito.it/cs/docs/sicilia182.htm. Acesso em 11 de outubro de 2017; TWO-SICI-
LIES. Costituzione del Regno delle Due Sicilie (1848),http://dircost.di.unito.it/cs/
docs/sicilie1848.htm. Acesso em: 11.10.2017.
10 COLOMBIA. Constitución de 1821, http://dircost.di.unito.it/cs/docs/Colombia%20
1821.htm. Acesso em: 11.10.2017.
11 PORTUGAL. Constituição do Reino de Portugal de 1822, Disponível em: http://
www.arqnet.pt/portal/portugal/liberalismo/const822.html. Acesso em: 11.10.2017;
PORTUGAL, Carta constitucional de 29 de abril de 1826, http://www.fd.unl.pt/
Anexos/Investigacao/1533.pdf. Acesso em: 11.10.2017; PORTUGAL. Constituição
do Reino de Portugal de 1838, http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1058.pdf.
Acesso em: 11.10.2017
12 MEXICO. Acta Constitutiva de la Federación de 1824, http://constitucion1917.gob.
mx/es/Constitucion1917/Constitucion_Federal_de_los_Estados_Unidos_Mexica-
nos1. Acesso em: 11.10.2017; MEXICO, Leyes Constitucionales de 1836, http://
constitucion1917.gob.mx/es/Constitucion1917/Leyes_Constitucionales1. Acesso
em: 11.10.2017. MEXICO. Bases de la Organización Política de la República Me-
xicana de 1843, http://constitucion1917.gob.mx/es/Constitucion1917/.Bases_de_
la_Organizacion_Politica_de_ la_Republica_Mexicana1; Acesso em: 11.10.2017.
MEXICO. Constitución Política de la República Mexicana de 1857, http://consti-
tucion1917.gob.mx/es/Constitucion1917/Constitucion_Politica_de_la_Republica_
Mexicana1. Acesso em: 11.10.2017
13 BOLÍVIA. Constitución Politica de 1826 (19 Noviembre 1826), http://dircost.
di.unito.it/cs/docs/Bolivia%201826.htm. Acesso em: 11.10.2017.
14 BELGIUM. Costituzione belga del 1831, http://dircost.di.unito.it/cs/docs/belgio%20
1831.htm. Acesso em: 11.10.2017.
15 SAXÔNIA. Verfassungsurkunde für das Königreich Sachsen 4. September 1831,
http://dircost.di.unito.it/cs/pdf/18310904_germaniaRegnoSassonia_ita.pdf. Acesso
em 11 de outubro de 2017.
16 ESTADOS PAPAIS. Estatuto fundamental do governo temporal dos Estados da Igre-
ja de 1848, http://dircost.di.unito.it/cs/docs/chiesa1848.htm. Acesso em: 11.10.2017.
17 SUÍÇA. Constitution Fédérale de la Confédération Suisse du 12 septembre 1848,
https://www.parlament.ch/centers/documents/de/Constitution1848.pdf Acesso em:
11.10.2017; SWITZERLAND. Constitution fédérale de la Confédération suisse du
29 mai 1874, https://www.bj.admin.ch/dam/data/bj/staat/gesetzgebung/archiv/bun-
desverfassung/bv-altf.pdf. Acesso em: 11.10.2017.
18 TOSCANA. Statuto del Granducato di Toscana (1848),http://dircost.di.unito.it/cs/
docs/Granduc_tosc1848.htm. Acesso em: 11.10.2017.
19 SARDENHA. Statuto Albertino, http://www.quirinale.it/qrnw/costituzione/pdf/Sta-

302 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):255-304, set./dez. 2019.


Poder e punição através da clemência: O Direito de Graça entre Direito Penal
e Constitucional na cultura jurídica brasileira (1824-1924)

tutoalbertino.pdf. Acesso em: 11.10.2017.


20 AUSTRIA, Allerhöchstes patent vom 25. April 1848 Verfassungs-urkunde des ös-
tereichischen Keiserstaates,http://dircost.di.unito.it/cs/docs/Allerhochstes%20pa-
tent%201848.htm. Acesso em: 11.10.2017.
21 PAÍSES BAIXOS. Costituzione del Regno dei Paesi Bassi dell’ 11 ottobre
1848,http://dircost.di.unito.it/cs/docs/Allerhochstes%20patent%201848.htm. Aces-
so em: 11.10.2017; PAÍSES BAIXOS. Costituzione del Regno dei Paesi Bassi del 30
novembre 1887, http://dircost.di.unito.it/cs/docs/Paesi%20Bassi%2030%20novem-
bre%201887.htm. Acesso em: 11.10.2017. Acesso em 02/07/2017.
22 PRUSSIA. Verfassungsurkundefür den Preussischen Staat 31. Januar 1850, http://
dircost.di.unito.it/cs/docs/Allerhochstes%20patent%201848.htm. Acesso em:
11.10.2017.
23 ARGENTINA. Constitución para la confederación Argentina (1ºde Mayo de 1853),
http://dircost.di.unito.it/cs/docs/ARGENTINA%20Nacion%201853.htm. Acesso
em 11 de outubro de 2017.
24 HAMBURGO, Verfassung der Freie und Hansestadt Hamburg (1879), http://dircost.
di.unito.it/cs/pdf/18791013_germaniaCostituzioneAmburgo_fra.pdf. Acesso em:
11.10.2017.

Texto apresentado em maio de 2019. Aprovado para publicação em


outubro de 2019

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):255-304, set./dez. 2019. 303


As três funções do Solar Góes Calmon: Residência da família, Museu do Esta-
do da Bahia e sede da Academia de Letras da Bahia

305

AS TRÊS FUNÇÕES DO SOLAR GÓES CALMON:


RESIDÊNCIA DA FAMÍLIA, MUSEU DO ESTADO DA BAHIA
E SEDE DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA
THE THREE FUNCTIONS OF THE GOES CALMON MANSION:
FAMILY RESIDENCE, MUSEUM OF THE STATE AND
HEADQUARTER OF THE ACADEMY OF LETTERS OF BAHIA
Edivaldo M. Boaventura1
Resumo: Abstract:
O artigo objetiva demonstrar a vocação cultu- This article intends to demonstrate the cultural
ral do Solar Góes Calmon em três momentos. vocation of the Goes Calmon mansion in
Como um exemplar da arquitetura eclética do three moments. As an example of the eclectic
início do século XX, foi, primeiramente, resi- architecture of the beginning of the XX century,
dência da família do governador Francisco Mar- it was primarily governor Francisco Marques
ques de Góes Calmon, advogado, financista e de Goes Calmon (lawyer, financier, and art
colecionador de arte, que governou a Bahia de collector who governed the Bahia from 1924
1924 a 1928. Depois do seu falecimento, o in- to 1928) family´s residence.. After his death,
terventor Renato Pinto Aleixo adquiriu o imóvel the intervener Renato Pinto Aleixo bought the
e a coleção de artes para ser a sede do Museu property as well as the art collection in order
do Estado e da Pinacoteca, inaugurado em 2 to be the headquarters of State Museum and
de julho de 1946. Funcionou como museu até of Pinacotheque Museum, inaugurated on July
os anos sessenta quando teve que ser fechado 2nd, 1946. It functioned as a museum up to the
pelo desgaste do tempo. No governo Luiz Viana 1960’s, when it had to be closed due to weary.
Filho, de 1967 a 1970, o Solar foi inteiramen- In Luis Viana Filho government, from 1967 to
te restaurado e aberto ao público em 6 de no- 1970, the mansion was entirely restored and
vembro de 1970, data natalícia do governador opened for the people on November 6th, 1970,
Góes Calmon. O seu acervo artístico foi defi- birth date of governor Goes Calmon. Its artistic
nido como Museu de Arte da Bahia (MAB) e, collection was named as Art Museum of Bahia
assim, funcionou até 1983, quando se mudou (AMB) and thus functioned up to 1983 when
para o Palácio da Vitória, na Avenida Sete de moved to Vitoria Palace on Sete de Setembro
Setembro, em Salvador. Em face da doação à Avenue, Salvador. Due to the donation to
Academia de Letras da Bahia, em 7 de março de Academy of Letters of Bahia on March 7th,
1983, passou a sediá-la, abrindo-se um novo ci- 1983, it became its headquarter with a new
clo de múltiplas atividades culturais com cursos, cycle of various cultural activities with courses,
concursos, seminários e conferências, acompa- competitions, seminars and conferences with
nhadas de doações pelos acadêmicos. A Acade- donations by academics. The Academy of
mia de Letras, sediada no solar Góes Calmon, Lettres, grounded in Goes Calmon Mansion,
presta serviço à comunidade, inclusive com uma provides services for the community, including
biblioteca com mais de 30 mil volumes e atende a library with more of 30 thousand books for
ao público leitor e pesquisador da literatura e da readers and literature researchers of Bahia´s
cultura baiana. culture.
Palavras-chave: Calmon; arquitetura eclética; Keywords: Calmon; eclectic architecture;
Museu de Arte; Academia de Letras; casas his- Art Museum; Academy of Letters; Historical
tóricas; escola baiana de pintura. Houses; Baiana School of painting.
1  –  Doutor e Docente Livre pela UFBA, Mestre e Ph.D. pela The Pennsylvania State
University. Sócio Emérito do IHGB, benemérito do IGHB, membro da Academia Por-
tuguesa da História, da Academia das Ciências de Lisboa, da Academia da Marinha de

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Edivaldo M. Boaventura

Introdução
O Solar Góes Calmon, sede da Academia de Letras da Bahia, foi
originalmente residência da família do governador Francisco Marques de
Góes Calmon (1897-1943), que imprimiu, com o bom gosto de colecio-
nador, o caráter cultural à moradia que permanece apesar das mutações e
das reformas. Anos após o seu falecimento, o imóvel e as coleções foram
adquiridos pelo governo estadual para sede do Museu do Estado e da
Pinacoteca, inaugurados em 2 de julho de 1946. Desde 7 de março de
1983, é a sede da Academia de Letras da Bahia.

Atento ao passado da habitação, tão logo assumiu o governo do


Estado, Luiz Viana Filho (1967-1971) decidiu reconstruí-la. Com o tem-
po, o belo solar se deteriorou, não permitindo mais funcionar como mu-
seu. O prédio parecia ter chegado ao seu ocaso. Em uma parte da área
verde, foi construída uma escola. Como secretário de Educação e Cultura,
acompanhamos de perto a atenção dada pelo governador Luiz Viana
Filho, que cuidou zelosamente da reconstrução e da definição do Museu
de Arte da Bahia. Dessa maneira, ligamo-nos ao solar não somente pela
gestão, como também pelo discurso oficial de inauguração, em 6 de no-
vembro de 1970 (BOAVENTURA, 1971).

Com a abertura do museu ao público, o governador Luiz Viana


Filho comemorava anos decorridos o natalício de Góes Calmon. Anos
depois, com a doação do solar pelo governo Antônio Carlos Magalhães à
Academia de Letras da Bahia, novas funções lhe foram atribuídas, confir-
mando o seu destino de casa de cultura. A partir de 1983, como sede do
sodalício, iniciou o funcionamento com programação literária de confe-
rências, seminários, cursos, concursos, lançamentos de livros e biblioteca
aberta ao público. Como acadêmico, passamos a ser um frequentador da
histórica casa.

Na reunião de depoimentos, de documentos e de fotos, encontramos


os referenciais do Solar Góes Calmon. Procuramos seguir a orientação de
Portugal, da Academia Brasileira de Educação e da Academia de Letras da Bahia. Faleceu
em agosto de 2018.

306 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):305-328, set./dez. 2019.


As três funções do Solar Góes Calmon: Residência da família, Museu do Esta-
do da Bahia e sede da Academia de Letras da Bahia

estudiosos de casas e de mansões históricas que mudaram de funções, a


exemplo de Pedro Calmon, que escreveu O Palácio da Praia Vermelha
(2002), o antigo hospital dos alienados que foi reitoria da Universidade
do Brasil, depois Universidade Federal do Rio de Janeiro; Escragnolle
Doria redigiu a Memória histórica do Colégio de Pedro Segundo 1837-
1997 (1997). De Portugal, nos vem alguns exemplos marcantes, como o
de Manuel Inácio Pestana, Cronistas da Sereníssima Casa de Bragança
(2001), isto é, o palácio ducal de Vila Viçosa, que abriga quadros, mobí-
lias, coleções de porcelana e de armas e, sobretudo, a coleção de livros
raros e raríssimos do último rei de Portugal, Dom Manuel II. Um bom
exemplar de um palacete que foi residência e se transformou, depois, na
reitoria da Universidade dos Açores foi o Palacete Porto Formoso e ou-
tras imagens oitocentistas de Ponta Delgada, monografado por Nestor de
Sousa (1997). É notório o trabalho de Jorge Pereira de Sampaio, Casas
com tradição em Portugal (1998). Essas e outras publicações sobre casas
famosas inspiraram a pesquisa sobre a sede da Academia de Letras da
Bahia.

Todo esse conjunto de circunstâncias conduziu a considerar três


sucessivas funções da casa: primeiramente, domicílio; em seguida, por
quase quarenta anos, Museu do Estado, para, finalmente, alcançar a atual
ocupação, sede da Academia de Letras da Bahia, um dos espaços privile-
giados da cultura. O enfoque do pretérito sugere a busca cronológica nos
períodos residencial (1897 a 1943), museológico, durante quase quarenta
anos (1946 a 1983) e, atualmente, sede da Academia de Letras da Bahia.

1 O período de residência da família Góes Calmon


O fio condutor desta busca prende-se ao passado marcante da man-
são, que projeta a tradição de cultura. O proprietário e colecionador
Francisco Marques de Góes Calmon imprimiu com determinação a arte
em sua residência, que se perpetuou mesmo mudando sucessivamen-
te de funções e de proprietários. As paredes guardaram emudecidas as
suas mensagens. Bem a propósito, a sua filha caçula, Ana Maria de Góes
Calmon (2001), em entrevista, confirmou: “ele tinha o sonho que a casa

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Edivaldo M. Boaventura

fosse transformada em museu”. Os silhares de azulejos e bancadas de


jacarandás bem recortados ornam a casa e dão a sensação de perene tra-
dição. Foi Museu do Estado e continua sendo museu pelo acervo, pelos
livros, pelas letras e pelas notáveis doações, a exemplo da coleção de
livros de Álvaro Nascimento e a coleção de louça brasonada, ofertada
por Jorge Calmon (MIRANDA, 2002). A hipótese condutora dessa in-
vestigação acerca das funções dessa moradia confirma o sonho do seu
proprietário colecionador.

Quanto ao seu estilo, para o arquiteto e acadêmico Francisco Senna


(2004), o solar é eclético e um dos poucos que sobrevive na cidade do
Salvador. As primeiras décadas do século XX demonstram uma arquite-
tura de padrão europeu de influência italiana. Os arquitetos registram tra-
ços do ecletismo reinante na época. Misturaram-se o classicismo greco-
-romano, o goticismo, o mourisco com alegorias do estilo art-nouveau e
do emergente art-decó. Ainda para Senna (2002, p. 19-20):
Os palacetes eram construídos em centro de terreno, com formosos
jardins e acesso predominantemente lateral, marcado por galerias e
escadarias que conduziam ao pavimento nobre, acima do porão alto
e, internamente, ao pavimento superior, reservado aos aposentos pri-
vados da família.

Em Salvador, o estilo do Solar Góes Calmon é semelhante à arquite-


tura dos Palácios da Aclamação e do Rio Branco.

A casa pertenceu a Inocêncio Marques de Araújo Góes Júnior (1839-


1897), advogado e político eminente que venceu Rui Barbosa em uma
das eleições para deputado geral. Era tio e pai de criação de Francisco
Marques de Góes Calmon a quem doou o imóvel, como presente de ca-
samento. Com precisão, acrescentou Ana Maria: “no dia do casamento,
meus pais vieram morar na casa do Caquende, em 19 de março de 1897.
Era uma casa de andar térreo”. Não soube dizer quem a construiu. De
1918 a 1919, foi reformada quando ganhou o segundo andar, encarre-
gando-se das obras Pedro Veloso Gordilho, bacharel em Direito, mas
que se tornara industrial e construtor de diversas casas, nos informa José

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As três funções do Solar Góes Calmon: Residência da família, Museu do Esta-
do da Bahia e sede da Academia de Letras da Bahia

Calasans (1991). Assim, foi reformada e ampliada com mais cômodos


para melhor acolher a família de dez filhos e com mais espaço para as co-
leções. Em 19 de março de 1919, foi solenemente aberta para as núpcias
de sua primogênita, Maria Julieta (Majú), com Jaime Vilas Boas. Nasceu,
por fim, em 26 de julho, a última filha, a quem devemos e agradecemos
essas vivas informações.

Casa de próspero advogado e financista, recepcionou o candidato à


presidência da República, Afonso Pena, na campanha de 1906. Em 1922,
foi a vez dos navegadores e aviadores portugueses Gago Coutinho e
Sacadura Cabral. Ano também das bodas de prata do casal. Dentre os inú-
meros frequentadores, inclui-se o jovem Luiz Viana Filho, amigo frater-
nal de Francisco Marques de Góes Calmon Filho (Achico), que conheceu
a moradia, então, no seu apogeu: “Tive a ventura, na minha adolescência,
de frequentar a grande casa do Caquende, em Salvador”, confirmou mais
tarde o biógrafo de Rui Barbosa, o que será muito importante para o pro-
jeto de reconstrução nos anos sessenta.

Se amplo é o solar, com boa testada de frente, não menor era o ter-
reno de fundo onde funcionava um campo de futebol, referido por Pedro
Calmon (1995, p. 64) em suas memórias: “Foi o período futebolístico”.
Segundo o depoimento de Ana Maria, suas irmãs Maria Constança (Tança)
e Maria dos Prazeres (Zeza) organizavam partidas e também praticavam
o novo esporte. Agregamos uma frase do depoimento: “nasci, me criei e
brinquei naquela casa”. A família Góes Calmon era vizinha dos Berbert
de Castro e Prisco Paraíso, pela parte posterior do prédio. Um segmen-
to desse terreno é onde, hoje, se ergue a atual Escola Estadual Eduardo
Bizarria Mamede, edificada no início da década de sessenta, onde deveria
ter sido o campo de futebol. Ainda no andar térreo, funcionava o gabinete
de Góes Calmon e, ao lado, havia uma sala de aula equipada com ba-
nheiro. Certamente, aí se reunia o grupo de amigos para discussões como
aquela que dissolveu a academia infantil, como nos conta Pedro Calmon.
O local também conta com jardim de frente e do lado esquerdo, que dá
acesso à entrada por uma imponente escada de mármore que nos leva à
agradável varanda lateral.

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Edivaldo M. Boaventura

1.2 A academia infantil


Em mais de uma vez, Pedro Calmon (1995, p. 63-66) se refere a
uma academia de jovens formada pelos filhos da casa, por colegas e por
companheiros. Não só nas suas indicativas Memórias, como também nos
discursos de inauguração do Museu de Arte da Bahia, em 6 de novembro
de 1970, e quando da inauguração da sede da Academia de Letras nesta
mansão. Nas referidas Memórias (1995, p. 65-66), dedica-lhe um capítu-
lo do qual segue o trecho:
Iniciou-se a discórdia quando Inocêncio chamou – para o pandeló.
Arnaldo Sant´Ana, o mais alentado do grupo, de cabelos cor-de-fogo
e propenso ao aparte, corrigiu: pão-de-lot. Estava certo; mas a emenda
beliscou os brios do anfitrião, que firmou a doutrina: pandeló, senho-
res! Insistiu Arnaldo nas sílabas escandidas; e Inocêncio encerrou a
dúvida com o ultimato. Só comeriam os que dissessem como ele; os
outros que fossem comer pão-de-lot lá fora. – A desavença desandou
em grito; e baixou à despedida. Os do pão-de-lot saíram em fila, os do
pandeló o retalharam, furiosos com a teimosia, a incompatibilidade, o
fim por tão miserenda causa do querido grêmio.

1.3 Góes Calmon, o colecionador


Não podemos nos ocupar da casa sem uma referência ao bom gosto
do colecionador do seu dono. Góes Calmon foi professor de geografia
do Ginásio da Bahia, advogado, financista, diretor-presidente do Banco
Econômico da Bahia. Em 29 de março de 1924, assumiu o governo do
Estado, tendo completado o quadriênio em 1928. O seu governo se des-
tacou pela regularização da vida financeira, pela ampliação da rede ro-
doviária, pelas obras públicas em Salvador, pela atenção especial dada à
educação com o apoio à reforma do ensino de Anísio Teixeira, diretor da
instrução pública.

Destacou-se como o primeiro governador que viajou exaustivamente


pelos sertões. Durante seu governo, em 1924, recepcionou o príncipe do
Piemonte, Alberto de Savoia, em sua visita à Bahia, que depois foi o últi-
mo rei (Alberto II) da Itália e por pouco tempo (BOAVENTURA, 2015,
p.189-206).

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As três funções do Solar Góes Calmon: Residência da família, Museu do Esta-
do da Bahia e sede da Academia de Letras da Bahia

Com a Revolução de 1930, Góes Calmon se exilou, em Portugal,


fazendo-se acompanhar da mulher e dos filhos menores, João Augusto
e Ana Maria. Acometido de acidente circulatório, regressou ao Brasil.
Tendo nascido em 6 de novembro de 1874, faleceu em 29 de janeiro de
1932. Na apreciação de Hermes Lima (1974, p. 32), em seu livro de me-
mória, Travessia, acrescentou:
No palco do Diário divisou-me para seu secretário o Dr. Francisco
Marques de Góes Calmon, candidato ao governo na sucessão de J.
J. Seabra. Gente alta, bonita, tradicional, a que presidia o mágico en-
canto de Dona Julieta, os Calmons enobreciam o panorama social de
Salvador. Professor do Ginásio da Bahia, lido e corrido, como se diz
por lá para significar homem culto e viajado, advogado, banqueiro,
conhecia o Dr. Góes Calmon a história da economia baiana, de que
deu excelente transunto em dois ensaios reunidos sob o título Vida
Econômica e Financeira da Bahia, o primeiro como prefácio às “Car-
tas Econômico-Políticas sobre a Agricultura e Comércio da Bahia”,
pelo Dr. João Rodrigues de Brito, deputado geral, o segundo denomi-
nado “Ensaio de Retrospecto Sobre o Comércio e a Vida Econômica
da Bahia de 1823 a 1900”, publicado em 1922, comemorativo do pri-
meiro centenário da Independência.

Se o dono era homem culto, ilustrado e refinado: “Mas, verdade,


quem dava o tom ao solar era a dona da casa, senhora Julieta Maia de
Góes Calmon” (CALASANS, 1991, p. 45). Complementa Afrânio
Peixoto (1980, p. 259): “Francisco foi o grande Góes Calmon, inveja-
do na mocidade porque casou com a Graça, isto é, tanto Bondade como
Beleza, a ‘roseira’, como lhe chamava, que lhe floriu o lar das mais belas
rosas humanas, coro de vida a sua Virtude, Santa Maria Julieta”.

Dentre os muitos depoimentos reunidos na poliantéia, organizada


em homenagem a Góes Calmon, Affonso de E. Taunay (1933, p. 15-27) o
aprecia bastante como um esteta, colecionador de arte:
Outra face da personalidade superior que era a de Góes Calmon veemente se
manifestava sob o influxo do apuro aristocrático de espírito e tendências, que
dele fazia verdadeiro esteta.

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Era, como raros, apaixonado das cousas do Belo. E, como entre nós, tinha a
intuição dos valores estéticos, em considerável número de ramos da ciência
do connaisseur.
Móveis e alfaias, pintura e cerâmica, o entusiasmavam. E a finura do bom
gosto lhe valeu a coleção admirável com que criou o belíssimo ambiente bra-
sileiro tradicional em sua esplêndida vivenda do Caquende, verdadeiro museu
das artes decorativas nacionais.
Era destes selecionadores que amam a volúpia da caçada, dos que sedimentam
, peça por peça, os seus acervos e não os conquistam a golpes de dinheiro,
dos que verdadeiramente sofrem quando concorrentes mais felizes acaso os
vencem numa disputa; dos que, inexprimivelmente gozam, ao realizarem des-
cobertas e aquisições inesperadas e valiosas.
Do seu tio e pai adotivo, o Dr. Inocência Marques de Araújo Góes Júnior,
outro colecionador finíssimo, fora discípulo.

Mais adiante, Taunay observou que “foi esse tradicionalismo ve-


emente que o levou a restaurar, e de modo soberbo, o velho forte de
Montserrat, tão pitoresco e situado em um dos mais lindos recantos da
cidade do Salvador onde há tanta opulência paisagística” (TAUNAY,
1933, p. 22). Além de Taunay, há outros aspetos da personalidade de Góes
Calmon: Afrânio Peixoto encarou as origens, Pedro Calmon, o homem,
Ubaldino Gonzaga, o administrador, Celso Spínola, o advogado, Braz do
Amaral, o sociólogo, Anísio Teixeira, o educador e Ricardo Palma, flor da
raça (GÓES CALMON, in memoriam, 1933)

Com o falecimento do proprietário, os herdeiros pensaram em se


desfazer do imóvel. Depois de muitas cogitações, o interventor Renato
Pinto Aleixo adquiriu o prédio e seu precioso recheio em 1943. O enge-
nheiro e colecionador Elísio de Carvalho Lisboa, então, prefeito da ca-
pital, teve decidida participação. Além da coleção das artes decorativas,
casa passou a abrigar a Pinacoteca e o Museu do Estado.

2 O período do Museu do Estado no Solar Góes Calmon


Como parte das comemorações do dia 2 de julho de 1946, foi inau-
gurado o Museu do Estado com a Pinacoteca pelo ministro da Educação
e Saúde, Ernesto Souza Campos, segundo informou o jornal A Tarde, em

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As três funções do Solar Góes Calmon: Residência da família, Museu do Esta-
do da Bahia e sede da Academia de Letras da Bahia

3 de julho de 1946. A solenidade se realizou às 10 horas, com a presen-


ça do ministro, do interventor interino, Altino Teixeira, do secretário da
Educação e Saúde, Álvaro Silva, na antiga residência da família Góes
Calmon, na Avenida Joana Angélica, 198, no bairro de Nazaré.

Salvaram-se, assim, o prédio e as coleções. Dessa maneira, o Solar


começou a exercer as funções museológicas. Complementou Sylvia
Athayde que: “Em 1943, o governo do Estado adquire uma coleção de
artes decorativas, compostas de peças notáveis do mobiliário baiano,
preciosas porcelanas orientais e europeias, cristais, ourivesaria e ou-
tras alfaias que pertencera ao Dr. Francisco Marques de Góes Calmon”
(ATHAYDE, 1997, p. 5). Ainda informou que o solar Pacífico Pereira, lo-
calizado no Campo Grande, onde hoje se encontra o Teatro Castro Alves,
tornou-se pequeno para comportar a nova coleção adquirida.

Há duas fases bem distintas nessa segunda função da casa Góes


Calmon. Da compra do prédio e do acervo, em 1943, até os anos sessen-
ta, quando funcionou como Museu do Estado; e de 1970 a 1983, período
em que operou como Museu de Arte da Bahia, conforme a especificação
definida pelo governador Luiz Viana Filho que, inclusive, chegou a criar
uma Fundação para os Museus.

Desta primeira fase, cabe salientar a singular gestão do historiador e


crítico de arte José do Prado Valladares. Desde 1939, dirigia a Pinacoteca
e o Museu do Estado da Bahia, que foram transferidos para o Solar Góes
Calmon. Em 1871, a Pinacoteca foi adquirida da família do médico inglês
e colecionador Jonathas Abbott, quando vice-presidente da Província da
Bahia, Francisco José da Rocha. A importante galeria Abbott compunha-
-se de quadros de pintores europeus e baianos, identificados e não iden-
tificados, com paisagens, naturezas-mortas, costumes, história sagrada,
mitologia e história romana, retratos e figuras, conforme pode ser apre-
ciada na monografia de Valladares (1951), sobre a Galeria Abbott, pri-
meira pinacoteca da Bahia. Alguns destes pintores pertencem à chamada
Escola Baiana de Pintura 1764-1850 (OTT, 1982), a exemplo de Antônio

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Joaquim Franco Velasco, autor dos retratos de D. Pedro I, do 8º Conde


dos Arcos, governador da Bahia e de outras pinturas.

Na casa Góes Calmon, juntaram-se as pinturas da antiga galeria


Abbott, que constituíam a Pinacoteca e a coleção Góes Calmon ao acervo
do Museu do Estado. José Valladares ficou à frente desse Museu por mais
de vinte anos, de 1939 a 1959. Projetou o museu com a organização do
seu acervo, da documentação e da catalogação das peças, enriqueceu a
biblioteca e abriu uma linha de publicações. Além da iniciativa do Salão
Baiano de Arte, que atraiu para a Bahia a atenção dos artistas plásticos
de todo o país, pondera Sylvia Athayde (1997, p. 10). Nas suas crônicas
no jornal Diário de Notícias, conhecedor do movimento modernista nas
artes plásticas, concorreu bastante para a sua disseminação na Bahia.

Ao Museu do Estado, se consagrou José Valladares, pela classifi-


cação das obras e dos objetos, como também pela aquisição de obras de
arte, principalmente pintura. Damos testemunho pessoal, quando acom-
panhamos, em 1952, a pintora húngara radicada em São Paulo, Yolanda
Mohalyi, a uma visita ao Museu, encontrando-se com Gizela do Prado
Valladares, mulher do diretor, antropóloga e professora. A conversa gi-
rou em torno das telas de Bonadei e de Flexor, adquiridas por Valladares
como diretor do museu. Sucedeu a José Valladares, em 1959, o profes-
sor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, Carlos
Eduardo da Rocha, que realizou um trabalho com os azulejos da casa de
Góes Calmon. Todavia, com o tempo, a ação deletéria arruinou as insta-
lações do imóvel, que obrigou a retirada do acervo nos meados dos anos
sessenta. As coleções só volveram ao solar Góes Calmon após a recons-
trução, em 1970.

No governo Lomanto Júnior, o Museu do Estado teve que deixar


o solar Góes Calmon, abrigando-se no Museu de Arte Sacra, seguindo,
depois, para o Convento do Carmo, que não dispunha de condições ade-
quadas. Coube ao governador Luiz Viana Filho a reforma total do pré-
dio. A inclusão da varanda com colunata no segundo andar, emprestando

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As três funções do Solar Góes Calmon: Residência da família, Museu do Esta-
do da Bahia e sede da Academia de Letras da Bahia

maior imponência ao velho e tradicional solar, foi uma sugestão do dire-


tor Carlos Eduardo da Rocha (1970).

Com a reconstrução do imóvel, no governo Luiz Viana Filho, a co-


leção foi ordenada por especialidades. O acervo antropológico, compos-
to de objetos indígenas e africanos, constituiu o Museu do Recôncavo
Wanderley Pinho que, depois, foi montado no Engenho Freguesia, no
município de Candeias, defronte da ilha de Maré. A coleção de pintura,
originária do antigo acervo do doutor Jonathas Abbott, formou o Museu
de Arte da Bahia, criado oficialmente por decreto de 1970. Conservaram-
se os quadros da antiga Pinacoteca e os modernos foram transferidos
para o Museu de Arte Moderna da Bahia, dirigido pela arquiteta italiana
Lina Bo Bardi, criado no governo Juracy Magalhães, por volta de 1961
(BOAVENTURA, 2001, p. 71-86).

O diretor Carlos Eduardo da Rocha permaneceu diretor do Museu


por dezoito anos, nos governos Juracy Magalhães, Lomanto Júnior, Luiz
Viana Filho, Antônio Carlos Magalhães e parte do governo Roberto
Santos, saindo em 1976. Ainda como diretor, implantou os azulejos
oriundos de uma igreja de São Gonçalo dos Campos.

2.1 A reforma do Solar Góes Calmon


Depois de empossado, o governador Luiz Viana Filho chamou o di-
retor de obras da Secretaria de Educação e Cultura, professor e enge-
nheiro da Escola Politécnica da UFBA, Hildérico Pinheiro de Oliveira,
que trabalhou com Anísio Teixeira, para abertura de concorrência a fim
de restaurar a casa Góes Calmon. Este professor da Escola Politécnica
desaconselhou que a obra fosse executada por concorrência por se tra-
tar de prédio construído com tantos requintes artísticos. O melhor seria
por administração direta. Contratou-se, então, o engenheiro e construtor
Aderbal Menezes, experiente e competente profissional, que conhecera a
casa quando pertencia à família Calmon. De fato, chefiou a reconstrução
com esmerado cuidado com as pinturas do teto, de autoria de Presciliano
Silva, com a feitura dos modelos neoclássicos para que se conservassem

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Edivaldo M. Boaventura

os desenhos primitivos do estuque a serem confeccionados em gesso.


Para tanto, incumbiu o professor e pintor Newton Silva, mestre da pers-
pectiva e discípulo do pintor Presciliano Silva para desenhar os ornatos e
os outros componentes da decoração.

Segundo fotografias retiradas antes e durante a reconstrução, todas


as paredes interiores foram reconstruídas. As anteriores, feitas de adobes,
foram removidas. Da antiga edificação, restou apenas a caixa exterior.
O projeto de reconstrução foi completo e complicado. Considerem-se,
sobretudo, que os afrescos pintados por Presciliano Silva, no teto, foram
mantidos com extremo cuidado. Acresceu-se uma varanda com colunas
no primeiro andar, por cima da entrada principal. A madeira do térreo, do
primeiro andar e do forro foi substituída por vigas de cimento e de alvena-
ria. O projeto conservava as linhas acadêmicas anteriores, mas procurou
criar espaços mais largos, pela retirada dos quartos e de outros cômodos
menores, substituindo-os por amplas salas mais apropriadas para a expo-
sição do acervo.

2.2 Definição do acervo


Foram selecionadas as obras de arte, nomeadamente, pintura, ce-
râmica, mobiliário antigo, imaginária, azulejaria, ourivesaria, escultura,
conforme podem ser vistas na publicação Museu de Arte da Bahia, guia
dos visitantes, de autoria de Carlos Eduardo da Rocha (1970). Compõe-
se, sobretudo, da coleção Góes Calmon e das pinturas da Pinacoteca. A
parte restante do acervo foi retirada para constituir o Museu do Recôncavo
Wanderley Pinho, no Engenho Freguesia, inaugurado no início de 1971,
pelo governador Luís Viana Filho.

Enquanto se reconstruía o prédio, o governador buscava uma defini-


ção para o acervo. A coleção de pintura que abrigava o Museu se iniciou
com José Joaquim da Rocha, a quem se deve a fundação da Escola Baiana
de Pintura, no século XVIII (OTT, 1982); compõe-se de trabalhos de dois
dos seus discípulos: José Teófilo de Jesus, o pintor das telas da Igreja do
Bonfim, e Antônio Joaquim Franco Velasco. Do século XIX, temos João

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As três funções do Solar Góes Calmon: Residência da família, Museu do Esta-
do da Bahia e sede da Academia de Letras da Bahia

Francisco Lopes Rodrigues. Chegamos aos pintores mais contemporâne-


os, como Manuel Lopes Rodrigues, Presciliano Silva, Alberto Valença e
Mendonça Filho.

O acervo e as coleções induziram definir o museu – Museu de Arte


da Bahia, o MAB. A sensibilidade do homem de letras, conjugada ao sen-
so de oportunidade do político, estimulou-o a procurar doadores. Assim,
conseguiu o governador Viana Filho que “O adeus”, de Lopes Rodrigues,
ficasse na Bahia. Certamente, é um dos mais belos rostos pintados por
um pintor baiano. De igual maneira, a senhora Regina Mendonça, viúva
do pintor Mendonça Filho, legou algumas marinhas. O governador con-
seguiu, também, que o quadro “Oração da tarde”, de Presciliano Silva,
propriedade do Banco do Brasil, retornasse à Bahia. Identificamos um
pastel de Presciliano Silva, no Colégio Central da Bahia, e o integramos
à coleção do Museu.

Prédio pronto, museu arrumado, Luiz Viana Filho decretou que a


bela residência do Caquende passasse a se chamar “Casa Góes Calmon”,
designação que consta do decreto de criação do MAB. A inauguração
ocorreu no dia 6 de novembro de 1970, natalício de Góes Calmon, um dia
depois da entrega da Biblioteca Central ao público. O ato contou com pre-
senças nacionais marcantes. Estiveram, por exemplo, inúmeros membros
da Academia Brasileira de Letras, como Gilberto Freyre e Pedro Calmon,
que contaram a vocação cultural do solar. Relembrou que, aí, se reuniu,
em 1918, na sala de trabalho de Góes Calmon, uma academia juvenil.

No momento exato de cortar a fita, um detalhe emblemático, uma


lembrança e uma ligação antiga não escaparam ao governador Luiz Viana
Filho, antigo frequentador da solarenga mansão. Presente a senhora Stella
Calmon de Wanderley Pinho, filha do governador Góes Calmon, foi ins-
tada a desatar a fita inaugural. Uniram-se, assim, dois momentos. O pas-
sado da nobre e requintada casa de Góes Calmon juntou-se ao presente
das novas instalações museológicas de acordo com os sonhos do colecio-
nador proprietário.

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O Museu funcionou com as novas instalações de 1970 a 1983. Depois


de Carlos Eduardo da Rocha, sucessivamente, foram seus diretores, en-
quanto funcionou na casa de Góes Calmon: Ana Lúcia Uchoa Peixoto
(1975-1979); José Pedreira (1979-1981); Emanuel Araújo (1981-1983),
que realizou a mudança do MAB para o Palácio da Vitória, na avenida
Sete de Setembro, na capital baiana. Complementa breve relato sobre a
casa, sede do Museu, o trecho do discurso de inauguração do Museu de
Arte da Bahia, em 6 de novembro de 1970:
Nesta centenária trajetória do acervo, destacamos alguns nomes. O
que restou da Galeria do Conselheiro Jonathas Abbott foi incorporado
ao Museu do Estado. Possibilitou o crescimento do Museu a Casa e a
Coleção Góes Calmon com a orientação do saudoso José Valladares.
Foi a interferência, entretanto, efetiva e afetiva, do governador Luiz
Viana Filho, que fez surgir o Museu de Arte com suas características
próprias e atuais. O seu empenho pessoal, fruto da sensibilidade de
um homem de letras, permitiu a restauração da Casa. O seu entusias-
mo estimulou os doadores, dando sua excelência alto e significativo
exemplo, legando um Lopes Rodrigues, retrato do seu venerando pai.
A sua vontade foi muito mais além, trouxe dos palácios governamen-
tais muitas obras e adquiriu quadros e peças valiosas. Acompanhou
com extremo carinho a reforma. Posso dizer como seu secretário da
Educação e da Cultura, que esta Casa é em grande parte obra sua, não
só pela decisão em criá-la, mas, sobretudo, pelo cuidado beneditino
em bem provê-la. Ah! Esforço governamental de fundar museus e de
reter neles o que ficou de verdadeiro, porque, “o que é falso morre,
sem criar raízes” (Claudel) (BOAVENTURA, 1971).

2.3 O Solar Góes Calmon sede da Academia de Letras da Bahia


A Academia sentiu, cada vez mais, que pioravam as condições da
sua sede, no Terreiro de Jesus. As chuvas do inverno de 1981 inundaram
o pavimento térreo, danificando enormemente a biblioteca. O jornal A
Tarde (12 maio 1981), assim, noticiou:
Problema da sede leva Academia a governador
O estado precário do velho casarão em que está instalada a Academia
de Letras da Bahia, no Terreiro, terminou por comprometer o funcio-

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As três funções do Solar Góes Calmon: Residência da família, Museu do Esta-
do da Bahia e sede da Academia de Letras da Bahia

namento da entidade e danificar, ainda mais o seu patrimônio. Com as


últimas chuvas, a biblioteca, embora localizada no pavimento térreo,
foi novamente inundada, sendo prejudicados livros e estantes. Repa-
ros extensos seriam agora necessários para que o prédio voltasse a ter
condições para abrigar a Academia, mas, ainda que executados, não
ofereceriam resultados duradouros a menos que representassem uma
restauração completa e altamente dispendiosa.
A busca de solução para esta emergência levou a Academia, incor-
porada ao governador Antonio Carlos Magalhães, que a recebeu na
Residência de Ondina, às 15 horas de ontem.
O acadêmico Cláudio de Andrade Veiga, presidente da Academia, fa-
lou em nome de todos, dizendo da situação material da instituição
e expressando a expectativa de que o governador desse solução ao
problema.

Em busca de uma solução de emergência, a Academia foi reunida em


visita ao governador Antônio Carlos Magalhães. Em vista da exposição do
presidente Cláudio Veiga e do memorial apresentado, o governador, em
resposta, deixou a critério da Academia a escolha da futura sede: o Solar
Pedro Sá, no Campo Grande, onde funcionava o Tribunal de Contas do
Estado da Bahia; ou o Solar Góes Calmon, onde se encontrava o Museu
de Arte da Bahia (EFEMÉRIDES, n.30, 1982, p.172). A preferência unâ-
nime dos acadêmicos foi pelo Solar Góes Calmon. Comunicada a esco-
lha, o governador enviou mensagem à Assembleia, propondo a doação.
Em 26 de outubro de 1981, a lei foi sancionada, na presença dos acadêmi-
cos, doando-se também o mobiliário para o funcionamento da Academia.

No agradecimento, o presidente Cláudio Veiga (1983, p.131-1934)


destacou o valor do prédio e residência de um líder político, esteta, do
porte de um Góes Calmon, e sede do Museu de Arte da Bahia (MAB).
O Solar passou a abrigar Academia de Letras da Bahia. Em todas as três
funções, porém, a mesma vocação cultural que lhe imprimiu o proprie-
tário-colecionador. O governo, ao doar o solar ao sodalício, confirmou o
vocacionado destino histórico do imóvel.

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Edivaldo M. Boaventura

O presidente Cláudio Veiga remanejou o espaço para o funciona-


mento da Academia. Seguem-se as providências para efetivar a mudança
da sede do Sodalício do Terreiro de Jesus para o Solar Góes Calmon, no
Caquende, no bairro de Nazaré. O apoio de Jorge Calmon e de Carlos
Cunha foi decisivo naquele momento de mudança. O número 30 da
Revista da Academia de Letras da Bahia é comemorativo das novas ins-
talações. Este número especial contou com a colaboração de dezenove
confrades e um convidado e veio a lume em setembro de 1982.

3.1 A inauguração da sede


A inauguração da nova sede ocorreu em 7 de março de 1983, quando
a Academia completou sessenta e seis anos. Na saudação, o presiden-
te Cláudio Veiga (1983, p. 132) evocou: “Ao construir sua casa, Góes
Calmon, lhe incorporou harmoniosamente relíquias de nossa arte, como
azulejaria, talha, escultura, bem como pinturas de Presciliano Silva.” Ao
falar, Pedro Calmon (1983, p.137) agradeceu o prêmio ganho no con-
curso sobre a vida e a obra de Simões Filho. Por fim, falou o governador
Antônio Carlos Magalhães: “é dizer que tudo isto se deve muito a Jorge
Calmon. Ele foi o artífice deste nosso trabalho [...]”. A placa comemora-
tiva de inauguração da nova sede foi descerrada pela senhora Maria dos
Prazeres Calmon de Sá (Zeza), filha de Góes Calmon (VEIGA, CALMON
e MAGALHÃES, 1983, p.131-139).

Uma vez inaugurada, a Academia promoveu um “Ciclo de


Conferências Comemorativas das novas instalações” pelo acadêmico
Edivaldo M. Boaventura, (BOAVENTURA, 1983, p. 29-40) presidente
Cláudio Veiga, professor Antônio Barros e o diretor da Fundação Cultural
Geraldo Machado (1985, n.32, p.218). O primeiro a tomar posse, na nova
sede, foi o acadêmico Luiz Navarro de Brito (1985, n.32, p.177-184), em
11 de agosto de 1983.

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As três funções do Solar Góes Calmon: Residência da família, Museu do Esta-
do da Bahia e sede da Academia de Letras da Bahia

3.2 O funcionamento das novas instalações


O problema inicial era como acomodar os serviços da Academia em
uma estrutura arquitetônica concebida para museu. Inicialmente, consi-
deremos os três andares da casa de Góes Calmon: o térreo, que vai tão
somente até a metade do prédio, consta de uma sala quadrada, que foi
destinada para diretoria e uma sala alongada de entrada que dá acesso
por escada e por elevador aos dois outros andares superiores. Consta por
tradição ter sido esta sala o gabinete de trabalho e a biblioteca de Góes
Calmon. Presentemente, a sala da diretoria chama-se Presidente Cláudio
Veiga, por iniciativa do acadêmico benfeitor Aramis Ribeiro Costa.

O primeiro andar, em realidade, é o andar térreo. Encontra-se no


nível do jardim, do pátio das viaturas e dos anexos. Divide-se em cinco
salas. A primeira é o salão da frente, o maior de todos e o mais imponente.
No tempo dos Calmon, era chamado Salão Dourado. Na parte central, se
encontra o retrato do fundador da Academia, Arlindo Fragosos. O teto é
uma alegoria de Presciliano Silva, manifestação do impressionismo tar-
dio. Um belo e largo sofá de jacarandá e palhinha do século XIX é a
peça central do salão. Tem, em volta, cadeiras de palinha e uma mesa
de jacarandá com mármore. O sofá está em comodato do Museu de Arte
da Bahia. No fundo, encontra-se a mobília legada pela acadêmica Edith
Mendes da Gama e Abreu. Os industrializados biscuits doados por Eliezer
Audíface perfilam uma ala do salão. O ambiente conta com um quadro de
Alberto Valença, dois Presciliano Silva e gravuras.

Passemos à sala seguinte com os retratos de Rui Barbosa por


Presciliano Silva, Xavier Marques, por Guttmann Bicho, Otávio Torres,
José Calasans e Luiz Viana Filho, por T. Pacheco. Os retratos em gravuras
de Godofredo Filho, Agrário de Menezes, José Luiz de Carvalho Filho e
Castro Alves. A antiga mesa de reunião da sede no Terreiro de Jesus foi
restaurada e faz um traço de união entre as duas casas. Todo o ambiente se
reveste de um ar de musealização, ou de preservação da história, prática
que vimos em Macau com a visão dos alicerces da extinta Igreja de São
Paulo, da qual restou apenas o frontal (BOAVENTURA,1998, p. 42).

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Edivaldo M. Boaventura

No vestíbulo, com o teto também pintado por Presciliano Silva, en-


contram-se os bustos do presidente Luiz Pinto de Carvalho e do gover-
nador e acadêmico Antônio Carlos Magalhães. Uma coleção de gravuras
sobre a Bahia guarnece a sala da escada. O cômodo seguinte aquece a
memória histórica com a galeria dos presidentes, além das medalhas e das
condecorações ofertadas pelos descendentes dos acadêmicos.

Enfim, alcançamos a nossa aconchegante sala de reuniões. É a anti-


ga sala de jantar da família Góes Calmon. Utilizamos a mesa, as cadei-
ras e os aparadores do tempo do governador. As paredes estão forradas
com os pratos brasonados da coleção Jorge Calmon. Explicita Victorino
Chermont de Miranda (2002) que: “No caso desta coleção de louça braso-
nada, é a presença de Jorge Calmon em cada uma de suas peças, com tudo
o que o seu nome significa de dignidade, de fidalguia e serviço à causa
da Bahia e do Brasil.” Seguem as salas para administração e para conta-
bilidade e o andar termina com o Arquivo Renato Berbert de Castro, que
funciona cada vez mais como um Centro de Documentação, respondendo
às consultas dos pesquisadores.

No último andar, o Auditório Magalhães Neto foi alargado e equipa-


do pelo secretário Paulo Gaudenzi, da Cultura e Turismo, nosso sócio be-
nemérito. O presidente Aramis Ribeiro Costa o ilustrou com as placas dos
patronos, dos fundadores, da Academia Basílica dos Esquecidos (1724)
e da Academia Brasílica dos Renascidos (1759). A Sala Pedro Calmon
reserva-se para palestras. Segue-se a Biblioteca Jorge Amado com mais
de 30 mil volumes compostas das bibliotecas de Álvaro Nascimento,
Waldir de Oliveira, Odorico Tavares, Wilson Lins. Em 1990, as constru-
toras Suarez e OAS ergueram o Pavilhão Jorge Calmon para a biblioteca.
Compõem o jardim as esculturas personalizadas de Jorge Amado, Jorge
Calmon, Otávio Mangabeira, Pedro Calmon, Arlindo Fragoso e Miguel
de Cervantes.

A sede tem proporcionado uma série de atividades acadêmicas como


tomadas de posses, conferências, cursos, seminários e lançamentos de
livros. A Academia é muito frequentada e está sempre aberta ao público.

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As três funções do Solar Góes Calmon: Residência da família, Museu do Esta-
do da Bahia e sede da Academia de Letras da Bahia

É um dos centros de cultura dos mais procurados e visitados graças às


boas condições de hospitalidade e de informatização. Os softwares de
utilização básica (operacionais e sistemas Office) foram atualizados por
nós por meio de doações conseguidas para a Academia. A biblioteca foi
agenciada pelos serviços de fornecedores LPG Soluções. As chamadas
do website com links colocou o Sodalício no amplo mundo digital. Por
sugestão do correspondente português Antônio Dias Farinha, a Academia
ingressou na União Acadêmica Internacional, com sede em Bruxelas, na
Bélgica.

Em suma, as três funções exercidas pelo solar estão, perfeitamente,


perfiladas pela destinação histórica que lhe imprimiu o proprietário. Mais
recentemente, foi posta na entrada a estátua do governador Góes Calmon,
obra do escultor Pasquale De Chirico, aumentando o vivo relacionamento
entre o histórico Solar e o seu construtor.

Os cem anos da Companhia acumularam bastante conhecimento.


Dos patronos, dos fundadores e dos titulares das cadeiras há muito a ser
pesquisado. Pela Academia, passaram muitos expoentes da literatura e da
cultura baiana que deixaram um rastro de luz e de saber a ser cada vez
mais pesquisado para disseminar o conhecimento.

Anexo 1
Resumo da entrevista de Ana Maria de Góes Calmon, filha caçula
de Góes Calmon, Salvador, 12 out. 2001.
No dia do casamento, os meus pais, Francisco Marques de Góes Cal-
mon e Julieta do Couto Maia, foram morar na casa do Caquende, em
19 de março de 1897. Era uma casa de andar térreo. Não sabe quem
a construiu. Foi reformada em 1918 e 1919, quando colocaram o se-
gundo andar. Em 19 de março de 1919, casou a filha Majú (Maria
Julieta Calmon Vilas Boas) com Jaime Vilas Boas. Ana Maria nasceu
em 26 de julho de 1919. O governador Góes Calmon morreu em 29 de
janeiro de 1931, tendo nascido em 6 de novembro de 1874. Em 6 de
novembro de 1970, dia, portanto, do seu natalício, o governador Luiz
Viana Filho inaugurou o Solar Góes Calmon, depois de inteiramen-
te reconstruído. O prédio foi vendido para ser Museu do Estado, em

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Edivaldo M. Boaventura

1943. Longo era o terreno do fundo, onde se ergue a Escola Eduardo


Bizarria Mamede. Eram vizinhos Epaminondas Berbert de Castro e
Prisco Paraiso. Em 1922, Góes Calmon recepcionou os navegadores
portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Ano também das bo-
das de prata do casal. Luiz Viana Filho frequentava muito a casa por
ser colega e amigo de Francisco Marques de Góes Calmon Filho, que
morreu moço e deixou dois filhos. Havia atrás um campo de futebol.
As suas filhas Tança e Zeza organizavam partidas de futebol. Pedro
Calmon se refere às partidas. Ana Maria: nasci, me criei e brinquei lá
na casa. A casa restaurada foi inaugurada em 6 de novembro de 1970,
dia do aniversário de Góes Calmon. A casa foi de Inocêncio Marques
de Araújo Góes Júnior, vida e morte. Venceu Rui em uma das eleições.
Gabinete de trabalho de Góes Calmon ficava no andar térreo, ao lado,
uma sala de aula com banheiro. E os pratos brasonados voltaram em
março de 2001, doação de outro Calmon (Jorge).Francisco Marques
de Góes Calmon governou a Bahia de 1924-1928. Tinha o sonho que a
casa fosse transformada em museu. Exilado, acompanhado de mulher
e dos filhos menores (Ana Maria e João Augusto) de 1930 a 1931,
quando foi acometido de derrame cerebral. Afonso Pena recebeu gran-
de apoio, elegeu-se e foi recepcionado na casa em 1906. Manuel Ber-
nardo Calmon du Pin Almeida, da idade de Afrânio Peixoto (Bilito),
morreu no dia da formatura em Medicina.

Anexo 2
Lei n. 3.928 de 26 de outubro de 1981
O governador do Estado da Bahia,
Faço saber que a Assembleia Legislativa decreta e eu sanciono a
seguinte Lei:
Art. 1º – Fica o Poder Executivo autorizado a doar à Academia de
Letras da Bahia o imóvel de propriedade do Estado da Bahia, situado
nesta Capital, à Avenida Joana Angélica n. 198 da porta e 21.643 da
inscrição municipal, também conhecido sob a denominação de “PRÉ-
DIO GÓES CALMON”, adquirido em 27 de março de 1944, confor-
me escritura pública lavrada nas Notas do Tabelião Marback sob o
número 1418, às fls. 21 v., 202 e registrada, em 10 de agosto de 1944,
no Cartório do 1º Ofício de Imóveis e Hipotecas desta Capital, sob. n.
8087, às fls. 150 do livro 3-k.

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As três funções do Solar Góes Calmon: Residência da família, Museu do Esta-
do da Bahia e sede da Academia de Letras da Bahia

1º – A donatária utilizará o prédio para instalação de sua sede, abri-


gando, também, nas dependências anexas, a biblioteca da Academia.
2º – A doação a que se refere este artigo efetivar-se-á com isenção
de tributos estaduais.
Art. 2º – No prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contados da data
da assinatura da escritura pública de doação, o imóvel referido no arti-
go 1º desta Lei deverá ser ocupado pela Academia de Letras da Bahia.
Parágrafo único – Se não for utilizado no prazo estabelecido neste
artigo ou na ocorrência, a qualquer tempo, de destinação diversa da
indicada nesta Lei, o imóvel doado reverterá ao patrimônio do Estado
da Bahia.
Art. 3º – As despesas decorrentes desta Lei ocorrerão à conta das
dotações consignadas no orçamento vigente.
Art. 4º – Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação revo-
gadas as disposições em contrário.
Palácio do Governo do Estado da Bahia, em 26 de outubro de
1981.
Antônio Carlos Magalhães

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Texto apresentado em janeiro de 2018. Aprovado para publicação


em agosto de 2019

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Manuel Bandeira e Gilberto Freyre:
um encontro singular

329

II – COMUNICAÇÕES
NOTIFICATIONS

MANUEL BANDEIRA E GILBERTO FREYRE:


UM ENCONTRO SINGULAR
MANUEL BANDEIRA AND GILBERTO FREYRE:
A PECULIAR MEETING
José Almino de Alencar1
Resumo: Abstract:
Este texto lida com alguns aspectos da relação This text deals with some aspects of the
intelectual entre dois grandes escritores brasi- intellectual relationship between two of the
leiros do século passado: o poeta Manuel Ban- major writers of the last century: the poet
deira e o sociólogo Gilberto Freyre. Ao tomar Manuel Bandeira and the sociologist Gilbert
conhecimento da poesia de Manuel Bandeira Freyre. In 1924, Gilberto Freyre read for
em 1924, Gilberto Freyre publica uma crítica the first time Manuel Bandeira’s poetry and
entusiasta no Diário de Pernambuco. Por sua published an enthusiastic review in the “Diário
vez, um artigo sobre a cozinha pernambucana de Pernambuco”. On the other hand, Bandeira
fez com que Bandeira escrevesse ao sociólogo. later sent a letter to Freyre commenting an
Freyre lhe respondeu, pedindo um poema sobre article by the sociologist on the culinary of
o Recife de sua meninice. Assim nasceria o fa- Pernambuco. Freyre wrote him back asking
moso poema “Evocação do Recife”, experiência for a poem on his childhood spent in Recife.
que talvez tenha possibilitado que a matéria da The famous poem “Evocação do Recife” was
born. The experience seems to have an effect
sua vida recifense viesse a se mesclar harmonio-
on Bandeira’ writing. The association between
samente com o que observava no seu cotidiano the humble surroundings and the daily life of
humilde do bairro de Santa Teresa, no Rio de Santa Teresa, a neighborhood of Rio de Janeiro
Janeiro, onde vivia, tornando-se um dos ele- and the memories of his early days in Recife
mentos ativos na sua poesia: uma empatia ativa, became an active element of his poetry, which
militante pelo mundo ordinário, pelo dia-a-dia, shows a vivid empathy for ordinary aspects
pelas surpresas contidas na fala brasileira. Des- of daily life and the surprises of the spoken
de então, sobrevieram aproximações sucessivas Brazilian Portuguese. Since then, successive
entre os dois, a elaboração de uma espécie de approximations came between them. The
“afinidade eletiva” que associaria as sensibilida- elaboration of an “elective affinity” associating
des e os interesses criativos de ambos. the creative interests and sensibilities of both
authors developed into a close friendship and
mutual intellectual influence.
Palavras-chave: Intelectuais; Manuel Bandei- Keywords: Intellectuals; Manuel Bandeira;
ra; Gilberto Freyre. Gilberto Freyre.

A tudo que outrora


Amaste. Sorri
tristemente...
Manuel Bandeira2

1  –  Fundação Casa de Rui Barbosa.


2  –  “Quando perderes o gosto humilde da tristeza”. Cf.: O ritmo dissoluto (1924). São

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):329-348, set./dez. 2019. 329


José Almino de Alencar

“Mando-lhe os versos que fiz a pedido do Gilberto Freyre, pernam-


bucano inteligentíssimo do Recife, para o álbum comemorativo do cen-
tenário do Diário de Pernambuco (o jornal mais antigo da América do
Sul. Mas há um jornal do Chile que disputa o título...). Saudades a você
e lembranças a Menina”; escreveu Manuel Bandeira a um amigo no final
de uma carta de 19253.

O amigo era Rui Esteves Ribeiro de Almeida Couto, o poeta Ribeiro


Couto que, à época, exercia o cargo de delegado de polícia em São Bento
de Sapucaí, município do Estado de São Paulo, na serra da Mantiqueira.
Couto casara-se no início daquele ano com Ana Pereira, a quem chamava
de “Menina”. Os “versos” eram o poema “Evocação do Recife”, publica-
do pela primeira vez a sete de novembro de 1925, no álbum comemorati-
vo mencionado, que ganhou o título de Livro do Nordeste.

Gilberto Freyre era então um jovem de 25 anos que voltara dois anos
antes ao Brasil de uma temporada de estudos nos Estados Unidos (segui-
da por uma breve passagem pela Europa). Reinstalara-se no Recife e es-
crevia regularmente artigos para o Diário de Pernambuco, onde divulgava
com desenvoltura o que aprendera no exterior e muito frequentemente
torcia o nariz diante da produção nacional impressa. Segundo o testemu-
nho de José Lins do Rego4:
Gilberto Freyre chegara da Europa e eu quis aproximá-lo da nova po-
esia brasileira. Não houve porém contato que satisfizesse o jovem que
chegava cheio de tantas prevenções contra a nossa pobre literatura.
Ele mesmo dissera, sobre Gonçalves Dias, que nós não havíamos tido
um grande poeta, mas pedaços de grandes poetas em Castro Alves,
Álvaro de Azevedo, Gonçalves Dias.

Paulo: Global, 2014.


3  –  Não é datada, mas, na sequência de cartas, pelos assuntos tratados e pelas referências
contidas, parece ter sido escrita em abril ou em maio de 1925.
4  –  REGO, José Lins do. “Manuel Bandeira mestre da vida” In: Homenagem a Manuel
Bandeira. Rio de Janeiro: Officinas Typographicas do Jornal do Commercio, 1936, p.
106. Apud: Vicente, Silvana Morelli. Cartas Provincianas: correspondência entre Gilber-
to Freyre e Manuel Bandeira. Tese de doutorado submetida ao Departamento de Teoria
Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007, p. 36.

330 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):329-348, set./dez. 2019.


Manuel Bandeira e Gilberto Freyre:
um encontro singular

Isto foi em 1923. [...] Um ano depois, Gilberto Freyre encontrara um


grande poeta no Brasil. E aparecia com um longo artigo de duas colu-
nas, falando de um Manuel Bandeira que eu ainda não conhecia. O ar-
tigo de meu amigo vinha banhado de um entusiasmo de quem houves-
se descoberto uma terra nova. O grande poeta já não era um esperado
ou um pedaço de grande poeta. O pequeno ensaio que Bandeira ins-
pirara ao seu conterrâneo valia para mim como uma descoberta real.

José Lins do Rego enganara-se sobre a data. O artigo de Gilberto


Freyre, “A propósito de Manuel Bandeira” foi publicado realmente no
Diário de Pernambuco, porém em 21 de junho de 19255, se dermos crédi-
to à datação de José Gonçalves de Melo, que incluiu o artigo na coletânea
Tempo de aprendiz6. Provavelmente7 os seus comentários críticos diziam
respeito ao volume Poesias, editado em 1924 e que reunia três livros pré-
vios de Bandeira: A cinza das horas, Carnaval e Ritmo dissoluto.

Nele, Gilberto já apresenta muitas das características de sua imagi-


nação ensaística, um ecletismo fértil onde combina o conhecimento lite-
rário, a ênfase retórica de uma prosa com traços românticos e imagísticos
e a visada do sociólogo. Procura associar os traços e os temperamentos do
poeta à sua enfermidade, a tuberculose – doença, muitas vezes, fatal que
então se arrastava crônica nos pacientes. Atravessara o século XIX; “mal
de época”, que impregnara igualmente o imaginário social, marcando de
maneira especial o pensar e o sentir do criador Manuel Bandeira. No arti-
go do Diário de Pernambuco:
Versos cheios da dolorosa coragem de ser doente, os versos do Sr.
Manuel Bandeira [...] Sente-se nos versos do poeta pernambucano,
como em certas páginas de Proust, um homem em que a emoção da
doença aproximou da alma. Daí talvez a sua voz baixa: por ser a de
um homem perto da alma. [...] Para o Sr. Manuel Bandeira a emoção
5  –  Este texto de José Lins do Rego foi escrito mais de dez anos depois, em 1936, por
ocasião do cinquentenário de Manuel Bandeira.
6  –  Artigos de Gilberto Freyre no Diário de Pernambuco, neste período, foram reunidos
em livro pelo historiador José Gonçalves de Melo. Cf.: FREYRE, Gilberto, Tempo de
aprendiz, IBRASA/Instituto Nacional do Livro, Ministério de Educação e Cultura, Bra-
sília, 1979, 2 volumes.
7  –  “Provavelmente”, porque o artigo não se apresenta como uma crítica do livro e não
menciona o seu título, embora todos os poemas citados pertencessem ao Poesias.

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José Almino de Alencar

da doença é antes uma cultura íntima. De “sua fina e doce ferida” lhe
escorre o fio da emoção por alguns versos nada mórbidos ou doentios.
Ninguém lhe vê a ferida [...] sua emoção.
conhece o pudor [...] é a emoção íntima da doença criando no poeta
um estado de alumbramento:
“Eu vi os céus! Eu vi os céus!
Oh, essa angélica brancura
Sem tristes pejos e sem véus!
... E vi a Via – Láctea ardente
Vi comunhões... Capelas... véus
Súbito... alucidamente”8.
Mas nesses aparentes olhos de meninos em dia de Primeira Comunhão
[...] ardem volúpias em torno de coisas da terra [...] em que ardem
também lúbricas pontas de dedos em busca de formas de mulher[...]
E entretanto são versos que por vezes terminam no desencanto da vo-
lúpia erótica:
“A volúpia é bruma que esconde
Abismos de melancolia”9.
Nunca se falou em voz tão baixa na poesia brasileira. Nunca, entre
nós, poeta nenhum cantou o amor por mulher nessa voz misticamente
grave...10

Olhos de menino em dia de Primeira Comunhão: a imagem denun-


cia o dedo do sociólogo que, nos seus livros, vez por outra, evoca a figura
da criança brasileira do século XIX, vestida com as roupas, a sisudez e a
tristeza dos adultos, criada entre as saias das mulheres, das parentas, das
escravas e das empregadas domésticas – sugerindo um erotismo possí-
vel ou reprimido – educada em um catolicismo beato, cheio de imagens
piegas de santos e de milagres. Essas enumerações imagéticas associadas
a traços de comportamento, a manifestações culturais, a especificidades

8  –  Versos do poema: “Alumbramento”, do livro de Manuel Bandeira Carnaval, publi-


cado em 1919.
9  –  Versos do poema “Pierrot místico”, do livro Carnaval.
10  –  Cf.: “A propósito de Manuel Bandeira”. In: FREYRE, Gilberto, Tempo de aprendiz,
op.cit. vol. 2, pp 177-179.

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Manuel Bandeira e Gilberto Freyre:
um encontro singular

históricas ou regionais constituíam parte do repertório narrativo de Gil-


berto Freyre.

O caráter fugidio da realidade social – o seu assunto – pediria a com-


binação dessas manifestações múltiplas da linguagem e o resultado, para
ele, poderia até ser incompleto, incerto, ambíguo. Convicção que vai se
refletir – não sem uma ponta de falsa modéstia – em alguns de seus títulos
e autodefinições, onde são utilizados termos como: “quase”, “apenas”,
“talvez” como em Quase política (1950), Talvez Poesia (1962), Como e
porque não sou sociólogo (1968), Além do apenas Moderno (1973); ou
no Dona Sinhá e seu filho padre (1964), caracterizado pelo autor como
semi-novela ou semi-romance.

Na verdade, como bem observa Maria Alice de Carvalho, tratava-se


de afirmar o valor literário do ensaio social ou
de defender explicitamente, a literatura contida em ensaios interpre-
tativos das experiências humanas, mediante a observação de aspectos
particulares, desordenados, de fragmentos descontínuos dessa experi-
ência. Uma literatura, pois, da experiência, apresentada sob a forma
do ensaio social e elaborada com base em uma aproximação empática
do autor para com a qualidade do vivido11.

Para Octavio Paz, em o O arco e a lira12, poesia era como uma metá-
fora do instantâneo, a conjunção entre um olhar que arruma, por analogia,
por contiguidade ou por diferenças certas imagens, sons ou palavras; e
encontra outro olhar, cúmplice e receptor que os receba, os compreenda
e os aprecie. “Forma natural de expressão dos homens”, “pertencendo
a todas as épocas”, ela é uma possibilidade permanente no mundo que
pode ser extraído ou suscitado a todo o momento. Fincada na linguagem
humana, “no fundo de cada homem”, “algo que se confunde com o pró-
prio tempo e também conosco, e que sendo de todos também é único e
singular”.

11  –  CARVALHO, Maria Alice. “A propósito de Vida, forma e Cor e do Perfil de Eu-
clides da Cunha”. Texto apresentado no Seminário Novo Mundo nos Trópicos, Fundação
Joaquim Nabuco, Recife, 2000, p.1.
12 – São Paulo: Cosac Naify, 2013.

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Por sua vez, a prosa, “primordialmente um instrumento de crítica e


de análise”, surge depois de longos esforços “destinados a domar a fala”,
quando esta dá lugar aos “procedimentos do pensamento”, à coerência e
à clareza. Portanto, contrariando o burguês de Molière, não é verdade que
se possa falar em prosa sem “ter plena consciência do que se diz”. No en-
tanto, mesmo na prosa, “obedecendo a uma misteriosa lei da gravidade”,
as palavras tenderiam a procurar naturalmente a poesia, como se ela fosse
o fulcro reanimador do pensamento e da comunicação.

Estabelecendo um paralelo, Gilberto Freyre procurou tecer a inte-


ração entre as duas linguagens na condução de seu argumento em uma
espécie de mimetismo dirigido, em que ele faz valer a força do analista e
do crítico e a força do criador literário. Nessa direção, o sociólogo teria
recebido inspiração e alento das novas tendências de expressão artística
das primeiras décadas do século XIX, em particular, de um movimento
poético de vanguarda em língua inglesa: o imagismo. O seu contato com
a poeta Amy Powell, personagem central desse movimento viria a se tor-
nar uma referência na sua memória de vida intelectual e afetiva.

A originalidade desse movimento, aos olhos de hoje e após tantas


vagas de modernismo, não é de fácil caracterização. Em um texto sobre
o imagismo, publicado em 1917, Amy Lowell13 identifica o que seriam
seis aspectos principais da poesia do movimento: 1) uso de linguagem
comum ou coloquial; 2) criação de novos ritmos, usando versos livres se
necessário, de modo a melhor expressar o “espírito” da época. 3) escolha
livre de temas e assuntos. Esses três primeiros atributos não podem ser
computados como originais, uma vez que todos eles já tendiam a se gene-
ralizar no universo da poesia moderna então emergente.

Os três últimos parecem mais pertinentes: 4) apresentação de uma


imagem. Não somos uma escolar de pintores, dizia Amy Lowell, mas
temos de dar conta dos pormenores e das especificidades. Não lidar com
generalidades vagas, mesmo se representadas por palavras ou por termos

13 – LOWELL, Amy. Tendencies in Modern American Poetry New York: MacMillan


Company, 1917, P. 239.

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Manuel Bandeira e Gilberto Freyre:
um encontro singular

magníficos e sonoros. 5) Produção de uma poesia dura e clara; nunca obs-


cura ou indefinida; 6) Finalmente, a concentração, a redução ao essencial
é o próprio da poesia.

Essa ênfase no uso de imagens para exprimir ideias, como se a pala-


vra não bastasse, marcou profundamente Gilberto Freyre e veio mesmo
a se tornar parte fundamental do seu estilo como escritor. Naquele vai
e vem entre a prosa e a poesia sugerida por Octavio Paz – uma espécie
de movimento de Sísifo da expressão e da comunicação humana – reco-
nheço semelhança com itinerário de construção do Gilberto escritor – a
montagem de grandes painéis plásticos, verdadeiras colagens cheias de
objetos nomeados, de descrição sintéticas de comportamento, de suges-
tões de sons, de ambientes e de cores associados a sentimentos vários
– erotismo, preguiça, melancolia – completavam e integravam as suas
grandes exposições de história social ou de sociologia. Dessa forma, po-
der-se-ia dizer que o poema “Bahia de todos os santos e de quase todos
os pecados” (1926), escrito pouco depois do “Evocação do Recife”, pode
ser lido como um texto sociológico, assim como Casa Grande e Senzala
pode ser considerada uma epopeia da História Social Brasileira.

Gilberto Freyre passou a alardear os méritos do imagismo entre os


amigos. Mais tarde, em seu Vida, forma e cor, assegurava
[...] posso falar, não de conversões literárias ou artísticas ao “imagis-
mo” anglo-americano que se tivesse realizado por meu intermédio,
mas de contatos que tornei possíveis entre brasileiros e ismos então de
todo ou quase de todo ignorados no Brasil: mesmo os “modernistas”
mais sofisticados do Rio e de São Paulo. [...] Digo-o um tanto ancho
de vaidade que por meu intermédio se aproximaram da new poetry
Manuel Bandeira e Ronald de Carvalho14.

Aparentemente, o primeiro contato de Manuel Bandeira com esses


poetas se deu por meio da The new poetry: an anthology, editada por Har-
riet Monroe e por Alice Corbin Henderson15, provavelmente, emprestada
por Gilberto Freyre em 1927, quando da passagem do poeta por Reci-
14 – VICENTE, Silvana Morelli. Cartas Provincianas, op.cit. pp. 384 e 385.
15  –  New York: The Macmillan Company, 1917.

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fe. Todos os poetas citados por Bandeira na correspondência do período,


tanto para Ribeiro Couto como para Freyre, referem-se a poemas dessa
Antologia. Em uma carta de 12 de julho de 1927, endereçada a Couto,
Bandeira expressa seu entusiasmo por um dos poemas, no qual se veem o
esforço de concentração e o senso de economia na linguagem que estive-
ram de mais a mais presentes na poesia de Bandeira:
Image
Like a gondola of green scented [cheirosa (acréscimo à lápis, acima do
vocábulo inglês)] fruits
Drifting [impelir / (deslizando) (acréscimo à lápis acima do vocábulo
inglês)] along in the dank [húmido (acréscimo à lápis]
canals at Venice
You, o esquisite one,
Have entered into my desolate city.
Robert Aldington16.

A influência dos imagistas na poesia de Bandeira dar-se-á, no en-


tanto, de maneira diversa aos efeitos que o movimento teve na prosa de
Gilberto. Diversa, mas não contraditória. Talvez simétricas e opostas, se
considerarmos os ofícios respectivos dos dois amigos: poeta e sociólogo.

A partir daquele artigo no Diário de Pernambuco em que Gilberto


Freyre registra sua surpresa e sua admiração pela poesia de Bandeira que
lhe era desconhecida, sobrevieram aproximações sucessivas entre os dois
e a elaboração de uma espécie de “afinidade eletiva” que associaria as
sensibilidades e os interesses criativos de ambos.

A expressão, como se sabe, é derivada da alquimia medieval, servia


para explicar a atração e a fusão dos corpos. Foi depois utilizada por Goe-
the e por Max Weber, designando um tipo especial de interação entre indi-
víduos, no caso de Goethe; ou entre configurações sociais ou culturais, no

16  –  Na verdade, Bandeira transcreveu errado o nome próprio: ALDINGTON, Richard


(Portsmouth, 8.7.1892 – Sury-en-Vaux, Cher, 1962). Poeta e romancista inglês, depois de
1935, viveu parte de sua vida nos Estados Unidos. O poema citado por Bandeira aparece
no livro Images: 1910-1915. London: Poetry Bookshop, 1915. É o primeiro volume de
poesia de Aldington. Note-se que, na transcrição do poema na sua carta, Bandeira introduz
a tradução para o português de alguns termos.

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Manuel Bandeira e Gilberto Freyre:
um encontro singular

caso de Weber, que não seriam redutíveis à determinação causal direta ou


à “influência” no sentido tradicional. Seria como que uma coincidência
feliz mutuamente reconhecida e que vingara e se autoalimentara.

A fórmula talvez sirva para sublinhar um fato comum na vida inte-


lectual nem sempre examinado com a atenção e a profundidade devidas:
o extraordinário emaranhado de influências recíprocas, de escolhas pes-
soais e afetivas, que culminam em fortes parcerias (explicitas ou implíci-
tas) carregadas de estímulo mútuo17.

Anos após18, Gilberto Freyre relatava o seu primeiro contato com o


poeta em um texto cujo título – “Manuel Bandeira, recifense” 19 – come-
morando, por assim dizer, o resultado dessas aproximações:
Nossa amizade começou por carta. Começou com a carta que um dia
recebi dele; que li com uma alegria enorme e que devo ter guardada
entre os meus papéis mais queridos. Era uma carta cheia de simpatia
por uns artigos meio líricos que eu andava escrevendo no DP20, num
português ainda mais perro do que o de hoje, português de quem tinha
saído daqui quase menino para voltar homem feito, depois de cinco
anos maciços de língua inglesa. Artigos sobre coisas de Pernambuco,
de Recife, do Norte. Sobre a paisagem, sobre os nomes de rua, sobre
a cozinha tradicional do Norte do Brasil.
Precisamente um artigo sobre a cozinha pernambucana sobre o mun-
guzá, o doce de goiaba, a tapioca molhada, é que fez que Manuel
Bandeira me escrevesse. Eu respondi afoito: pedindo-lhe o poema
sobre o Recife de sua meninice. Pedindo só, não: quase exigindo. Os
admiradores são quase sempre mais arrogantes que os indivíduos sim-
plesmente admirados.
Sucede, no caso – continua Gilberto, no mesmo texto – que o poema
em certo sentido mais brasileiro de Manuel Bandeira – “Evocação do
Recife” – ele o escreveu porque eu pedi que ele o escrevesse. O poeta

17  –  DIMAS, Antonio. “Joaquim Nabuco & Gilberto Freyre: Memorialistas que se en-
caixam e se continuam”, Revista Letras, Curitiba, n. 94 jun./dez. 2016, p. 127.
18  –  1936.
19  –  Cf. “Manuel Bandeira, recifense”. In: Perfil de Euclides e outros perfis. Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1944, p.175.
20 – Diário de Pernambuco.

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estranhou a princípio o pedido do provinciano. Estranhou que alguém


lhe encomendasse um poema para uma edição especial de jornal como
quem encomenda um pudim ou uma sobremesa para uma festa de bo-
das de ouro. Não estava acostumado – me escreveu de Santa Teresa –
a encomendas dessas. Parece que teve vontade de não escrever poema
nenhum para tal edição – que se tornou depois o Livro do Nordeste,
organizado em 1925 para comemorar o primeiro centenário do Diário
de Pernambuco. Mas um belo dia recebi “Evocação do Recife”.

Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho, Manuel Bandeira, nasceu


no Recife, em 19 de abril de 1886, na Rua da Ventura, atualmente Rua
Joaquim Nabuco. Em 1890, a família do poeta deixa o Recife e vai residir
no Rio de Janeiro, depois, em Santos, e novamente no Rio.  Em 1892, vol-
ta com a família para Pernambuco. Frequenta o colégio das irmãs Barros
Barreto, na Rua da Soledade e, depois, como semi-interno, o de Virgínio
Marques Carneiro Leão, na Rua da Matriz. Em 1896, a família muda-se
novamente do Recife para o Rio, onde se estabeleceu em Laranjeiras.
Manuel Bandeira fixa-se definitivamente no Rio de Janeiro até a sua mor-
te em 13 de outubro de 1968. O poeta só voltaria à sua cidade natal em
1927, aos 41 anos21.

Não saberia dizer se “Evocação do Recife” é o poema mais brasileiro


de Bandeira, mesmo quando aponho a qualificação “em certo sentido”
um tanto enigmática e tão “gilbertiana”22. Mas, posso afirmar, invocado o
testemunho do poeta no seu Itinerário de Pasárgada23, que o seu contato,
21  –  Em carta a Ribeiro Couto de dois de junho de 1926, Bandeira escreve: [Américo
Facó] está organizando uma agência jornalística de publicidade [Agência Brasileira] e me
convidou pra trabalhar à noite. Ora ele precisa de uma pessoa que vá ao norte até Pará pra
escolher correspondentes nas diversas capitais e me propôs a tarefa. Eu topei e se a coisa
for avante, como parece que vai, no fim de junho partirei – com todo o conforto, espero –
para Baía, Recife sem história nem literatura, etc., etc.
Que acha? Não faço bem? Estou animado com isso.
O poeta só viajaria em janeiro de 1927. Iria até Belém, parando em Salvador, Recife,
Paraíba (João Pessoa), Fortaleza, São Luís. Nessa correspondência, há dois registros so-
bre a passagem pelo Recife: uma recomendação de Gilberto Freyre para que, na Paraíba,
procurasse Antenor Navarro (jornalista do jornal União); e que viria a ser seria mais tarde
interventor na Paraíba, logo após a Revolução de 30. E uma nota pitoresca: No Recife
estive com Fédora do Rego Monteiro. Está noiva.
22  –  Dada a sua aversão ao assertivo e ao peremptório.
23  –  Cf. “Itinerário de Pasárgada”, de Manuel Bandeira. In Manuel Bandeira. Seleta de

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Manuel Bandeira e Gilberto Freyre:
um encontro singular

em 1925, com Gilberto Freyre – cuja sensibilidade tão pernambucana


muito concorreu para me reconduzir ao amor da província e a quem devo
ter podido escrever naquele mesmo ano a minha Evocação do Recife – e
a sua encomenda hajam, por assim dizer, evocado a “Evocação”. E mais:
espicaçada a memória do poeta, tenha possibilitado que a matéria da sua
vida recifense viesse a se mesclar harmoniosamente com o que observava
no seu cotidiano humilde de Santa Teresa, onde vivia, tornando-se um dos
elementos ativos na sua poesia.

Este período assistiu à formação do estilo humilde do poeta maduro,


forjado para dizer o sublime através do simples24. Bandeira viria, assim,
a desenvolver uma empatia ativa, militante pelo mundo ordinário, pelo
dia-a-dia, pelas surpresas contidas na fala brasileira, utilizando recursos
de construção poética os mais variados e os materiais mais diversos, [re-
conhecendo] a poesia em tudo, podendo repontar onde menos se espera e
fazendo do poeta o ser capaz de desentranhá-la no mundo25.

Datam de então, e, sobretudo da segunda metade da década de 1920,


os poemas de Libertinagem, livro publicado em 1930, que reúne trabalhos
bem característicos dessa fase, como “Profundamente”, “Porquinho-da-
-Índia”, “Irene no céu”, “Pensão familiar”, “Poema tirado de uma notícia
de jornal” e “Evocação do Recife”.

Mais tarde, ao refletir sobre a sua poesia, Bandeira sublinha a im-


portância da emoção particular (ou dessas reminiscências), fincada na
memória da infância e que ele vai identificar com outra – a de natureza
artística:
Desde esse momento, posso dizer que havia descoberto o segredo da
poesia, o segredo do meu itinerário em poesia. [...] o conteúdo emo-
cional daquelas reminiscências da primeira meninice era o mesmo de
certos raros momentos em minha vida de adulto: num e noutro caso

prosa, op. cit. p. 326.


24  –  ARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990, p. 140.
25  –  ARRIGUCCI JR., Davi. O cacto e as ruínas. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34,
2000, p. 141.

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alguma coisa que resiste à análise da inteligência e da memória cons-


ciente, e que me enche de sobressalto ou me força a uma apaixonada
escuta26.

O poeta não apenas situa o primórdio desse “segredo do seu itine-


rário poético”, mas também lhe atribui topografia, nomes e endereços,
associando-os a sentimentos e lhes dando, assim, concretude:
Dos seis aos dez anos, nesses quatro anos de residência no Recife, [...]
construiu-se a minha mitologia, e digo mitologia porque os seus tipos,
um Totônio Rodrigues, uma D. Aninha Viegas, a preta Tomásia [...]
têm para mim a mesma consistência heróica dos personagens homéri-
cos. A Rua da União, com os quatro quarteirões adjacentes limitados
pelas ruas da Aurora, da Saudade, Formosa e Princesa Isabel, foi a
minha Tróada; a casa de meu avô, a capital desse país fabuloso. Quan-
do comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros
quatro anos da minha vida de adulto, fico espantado do vazio destes
últimos em cotejo com a densidade daquela quadra distante.

A lírica moderna nos fala frequentemente de maneira enigmática ou


obscura 27. O encanto da palavra eventualmente atrai o leitor por sua in-
dicação de mistério, de profundidade ou o seduz pela musicalidade ou
por qualquer outro atributo que surpreenda a sua inteligência sensível. A
obscuridade do poema o fascina embora a compreensão, muitas vezes, o
desconcerte. A poesia comunicaria antes de ser compreendida28 é o que
nos diz T.S. Eliot, ou, na expressão mais desabusada de Eugene Montale,
Ninguém escreveria versos se o problema da poesia consistisse em fazer-
-se compreensível29.

No entanto, se o poema navega entre a incompreensibilidade e o fas-


cínio, o poeta busca a recepção e o acolhimento. No seu ofício, a operação
que transforma a apreensão de uma imagem ou de uma situação em sínte-
se verbal que atrai a cumplicidade do outro é próprio da criação literária.
26  –  “Itinerário de Pasárgada”, de Manuel Bandeira. In Manuel Bandeira. Seleta de pro-
sa. Org. GUIMARÃES. Júlio Castañon. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 295.
27 – FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978,
p. 15.
28 – Apud, FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna, op.cit.p. 15.
29 – Idem, p.16.

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Manuel Bandeira e Gilberto Freyre:
um encontro singular

E o exame das diversas maneiras de como esse circuito de cumplicidade


se estabelece – mais ou menos intenso ou prazeroso – é geralmente a fun-
ção da crítica. Por sua vez, o ensaísta social, usando a fórmula de Gilberto
Freyre, faz o percurso inverso: procura ir além da narrativa analítica, in-
cluindo recursos de expressão que possam aproximá-lo da complexidade
indomável do real.

Por vezes, o criador busca individualizar um assunto que marcaria


algum tipo de identificação universal entre os homens como, por exem-
plo, as temáticas da morte ou do amor, para citar talvez as duas mais
populares. Diferentemente, desses vastos tópicos que apreendem, diga-
mos tendências ou aspectos da “alma humana”, há os pequenos achados,
muitas vezes, idiossincráticos que elevam particularismos em verdadeiras
sínteses líricas, ao mesmo tempo em que motivam, estabelecem e alimen-
tam aquele circuito de cumplicidade entre o criador e o receptor.

Em Manuel Bandeira, esses pequenos milagres que podem surgir a


todo o momento são uma invenção deliberada, desenhada e perseguida
cuidadosamente. É o que se depreende de um trecho de carta a Ribeiro
Couto datada dos 27 de julho de 192730. É a propósito de seu conhecido
“Profundamente”, poema-reverberação do “Evocação do Recife” à época
ainda inédito31. Ali, Bandeira afasta-se radicalmente do simbolismo dos
seus inícios, com suas metáforas e com suas alusões; e toma o caminho da
memória pela reinvenção da infância em uma poesia onde se convocam
imagens concretas e personagens reais de sua história e de sua cidade:
[...] não falo da Rua da União, mas ela está ali tão presente quanto na
“Evocação do Recife”:
Meu avô
Minha avó
Totônio Rodrigues
30  –  In: Arquivo Museu de Literatura, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro.
31 – Refere-se aqui, mais precisamente, à parte final do poema: Quando eu tinha seis
anos / Não pude ver o fim da festa de São João / Porque adormeci / Hoje não ouço mais
as vozes daquele tempo / Minha avó / Meu avô / Totônio Rodrigues / Tomásia / Rosa /
Onde estão todos eles? / — Estão todos dormindo / Estão todos deitados / Dormindo /
Profundamente.

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Tomásia
Rosa
Fiquei satisfeitíssimo por ver que você o entendeu exatamente como
eu quis e trabalhei para que o sentido fosse entendido: a impressão
tranqüila e grandiosa da mor­te; o ciclo da vida. [...] Tive de corrigir
alterar [sic], procurar até achar “as vozes daquele tempo”; precisavam
ser vozes de afeto mas que não sugerissem nem de leve os meus lu-
tos pessoais. (O luto dos avós tem um sorriso de aposentadoria com
todos os vencimentos) Depois os avós datam. Escolhi a dedo Totô-
nio Rodrigues, Tomásia. (Você terá sentido que era a velha cozinheira
ex‑escrava?) e Rosa, a mulata magra ama seca [sic, sem hífen].

Portanto, aqui, a referência ao passado não é simples notação sen-


timental ou registro autocomplacente: trata-se de construção consciente
em que o traço confessional minimiza-se, procurando se anular; e, de tal
maneira que o enumerar de nomes próprios de pessoas desconhecidas
aos leitores (Totônio Rodrigues, Tomásia, Rosa), por assim dizer “puros
significantes”, adquire valor de representação de sentimentos, de obser-
vações críticas e de significados. Como se a realidade concreta fosse re-
cortada em poesia ou, o que vem ao mesmo, a poesia desenhasse sobre o
real. O conjunto dessas imagens singelas da infância – que lhe acende a
sensibilidade e atiça a inteligência como uma epifania – vem a ser presen-
ça efetiva na poesia de Manuel Bandeira e tem no A evocação de Recife,
longo e enumerativo poema visual um ponto de referência (talvez até um
ponto inicial) marcante.

Em Manuel Bandeira, recifense, Gilberto Freyre, a princípio, rea-


ge contra aqueles: Recife “sem história” e “sem literatura”, Recife “sem
mais nada” que se encontram o no“Evocação do Recife”, porque não se
evoca uma cidade sem fazer história. No entanto, logo vem a apreciação
certeira:
Cada palavra é um corte fundo no passado do poeta, no passado da
cidade, no passado de todo homem, fazendo vir desses três passados
distintos, mas um só verdadeiro, um mundo de primeiras e grandes ex-

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Manuel Bandeira e Gilberto Freyre:
um encontro singular

periências da vida. Não há uma palavra que seja um gasto de palavra.


Não há um traço que seja de pitoresco artificial ou de cenografia32.

Era como se Bandeira tivesse absorvido o Recife, primeiro, para uso


e para gozo próprio, e o devolvesse transformado em objeto poético e
universal. O que é, aliás, próprio do fazer lírico. Por sua vez, em Bahia de
Todos os Santos e de quase todos os pecados, o que temos é uma procla-
mação sofisticadamente poética de uma realidade sócio-histórica.

Mário de Andrade viria, na década seguinte, a proclamar que Liber-


tinagem [livro escrito entre 1924 e 1930, reunindo poemas da constelação
do “Evocação do Recife, como Profundamente”, “Porquinho-da-Índia”,
“Irene no céu”] é um livro de cristalização, não da poesia de Manuel
Bandeira, [...], mas da psicologia dele. É o livro mais indivíduo Manuel
Bandeira de quantos o poeta já publicou33.

Tenha-se em mente que aquele era um período de irradiação inten-


sa do movimento modernista. Anterior à telefonia interurbana, quando
a vida literária, antes concentrada quase que exclusivamente na Corte,
começava a tomar formas significativas em outros centros urbanos, os
modernos construiram uma vasta teia de correspondência. A partir dela,
circulam os manuscritos e suas respectivas correções, opiniões estéticas,
sugestões bibliográficas, colaborações para revistas, conspirações para a
publicidade de livros, de intrigas, de suspiros e de queixas. Um mar de
cartas, uma verdadeira ciranda de criatividade.

Muitas das cartas de Bandeira reforçam essas nossas observações so-


bre a sua poesia e nos dão elementos para melhor compreender o processo
de elaboração da sua lírica: a gênese dos repertórios temáticos, dos pro-
cedimentos de escrita e onde poderíamos discernir, recuperar a intencio-
nalidade (no sentido fenomenológico) da emoção [do poeta]: os aspectos
do real nela indicados34.
32 – Apud: VICENTE, Silvana Morelli. Cartas Provincianas, op.cit, p. 366.
33  –  ANDRADE, Mário de. “Nota Preliminar” em Libertinagem. In: Bandeira, Manuel.
Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p.199. Transcrita de “Tra-
dutores poetas”, Aspectos da literatura brasileira. Rio de Janeiro: América Editora, 1943.
34 – Cf. MERCHIOR, José Guilherme. Fragmentos história da lírica moderna. In For-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):329-348, set./dez. 2019. 343


José Almino de Alencar

Entre outros pontos, destaquemos que Bandeira fazia questão de


marcar uma distinção entre o registro emotivo e a criação literária, como
nesta carta a Ribeiro Couto:
Depois da palavra arte você pôs o parêntese criação emotiva: logo
para você arte é criação emotiva. Estou de acordo. Poderá sê-loquando
houver “criação emotiva”. [...]. No fundo (você inconscientemente)
você está com o Mário e eu acho que com razão: um poema é compo-
sição; quando não há composição, o que existe é um fragmento lírico.
Naturalmente há mais frescura no puro lirismo. Porém maior “gozo da
inteligência” na composição35.

Insiste na importância do anódino para a sua poética – o que o filó-


sofo Vladimir Jankélévitch chamaria de “presque rien” ou de “je ne sais
quoi”. Reagia, assim, aos impulsos doutrinários de Mário de Andrade36:
Não concordo com o Mário no preconceito de novidade: posso encon-
trar poesia em lugar-comum sentimental. Dai gostar de coisas suas que
ele acha sem importância. Posso eu achar também sem importância e
no entanto gostar. Você é justamente um desses poetas que chateiam
os outros com coisas sem importância. Creio que você entende bem o
sentido em que emprego a expressão “coisa sem importância”. Digo
isso porque o Mário faz diferença entre coisa sem importância com
interesse artístico e coisa sem importância mesmo. Pois pode me suce-
der que eu goste e me comova com a “coisa sem importância mesmo”.

Na elaboração da sua poesia, Bandeira dedicava-se, sobretudo, às


eliminações sistemáticas dos excessos, procedendo por aproximações
sucessivas à forma final do poema. Nele, é notável a predominância do
poema breve, aparentemente singelo, de caráter muitas vezes prosaico,
cuja força sintética tem o poder de singularizar a inspiração poética. No
lugar da expressão imediata da subjetividade, própria da lírica, tem-se a
notação epigramática da realidade objetiva, a descrição de um objeto, de

malismo e tradição moderna. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária: Editora da


Universidade de São Paulo, 1974, p.72.
35  –  Carta de 22.10.1926. In: Arquivo Museu de Literatura, Fundação Casa de Rui Bar-
bosa, Rio de Janeiro.
36  –  Carta de 28. 8.1926. In: Arquivo Museu de Literatura, Fundação Casa de Rui Bar-
bosa, Rio de Janeiro.

344 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):329-348, set./dez. 2019.


Manuel Bandeira e Gilberto Freyre:
um encontro singular

uma cena, em linhas despojadas, visando dar substrato a um sentimento,


uma idéia37.

Às vezes, o poema saía pronto e era extraído ao vivo de uma conver-


sa ou de um incidente. Em carta a Ribeiro Couto38, vê-se como um episó-
dio relatado por Gilberto Freyre, deu origem a versos (até hoje inéditos):
Tenho passado um mês divertido com o Gilberto [Freyre]; é um com-
panheiro excelente porque é meio fraquinho como eu, discretíssimo, e
dá uma perna ao diabo pra debochar os outros. Nós levamos uma vida
surrealística de mistificações.
Esta manhã ele me contou um episódio onde eu descobri incontinenti
o self-made põem [sic] . La vai:
Apresentação
Na sala da redação do grande matutino
O redator-secretário fez a apresentação:
“Fulano, uma glória nacional:
“Sicrano, esperança do norte.”
A esperança do norte não disse nada.
A glória nacional também.

Neste caso, o poema vai ao encontro do poema piada, forma aprecia-


da nos inícios do modernismo39.

Em outra carta, Bandeira ignora uma sugestão do amigo Ribeiro


Couto, e dá mostra também, pelo menos aos nossos olhos de leitores no
futuro, dessa habilidade criteriosa do poeta ao selecionar os elementos
mais explícitos, quase ingênuos na sua concretude que ele invariavel-
mente escolhia para um poema.

37  –  ARRIGUCCI JR., Davi. O cacto e as ruínas. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34,
2000, p. 37.
38  –  Carta de 10.01.1928. In: Arquivo Museu de Literatura, Fundação Casa de Rui Bar-
bosa, Rio de Janeiro.
39  –  Uma curiosidade: note-se a semelhança de “Apresentação”, com “Política Literá-
ria”, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em Alguma Poesia – Poemas (Belo
Horizonte, Edições Pindorama, 1930): Política literária / O poeta municipal / discute com
o poeta estadual / qual deles é capaz de bater o poeta federal. / Enquanto isso o poeta
federal / tira ouro do nariz. / “Política Literária” é oferecido a Manuel Bandeira.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):329-348, set./dez. 2019. 345


José Almino de Alencar

De Pouso Alto, Couto havia escrito40 os seguintes comentários ao


ainda inédito “O Anjo da Guarda”, poema que faria parte de Libertina-
gem:
O “Anjo da Guarda” tem um verso que quebra o poema: “Devia ter
sido assim”. Aquele verso – releia, serenamente [...], nem compreen-
do como lhe acudiu! Não ajunta nada de notável ao sentido; e cai. O
poema cai ali.

Tratava-se do poema escrito em memória a sua irmã, Maria Cândida


de Sousa Bandeira41:
O Anjo da Guarda
Quando minha irmã morreu,
(Devia ter sido assim)
Um anjo moreno, violento e bom,
– brasileiro
Veio ficar ao pé de mim.
O meu anjo da guarda sorriu
E voltou para junto do Senhor.

A observação de Ribeiro Couto era irritada, impaciente. A recomen-


dação era enfática. No entanto, o poema permaneceu inalterado. Ao relê-
-lo, penso que a quebra introduzida pelo verso (Devia ter sido assim)
– uma sentença no pretérito imperfeito, reforçada pela presença de um
parêntese, em meio a uma narrativa toda ela no pretérito perfeito – vem a
trazer um elemento novo e perturbador ao todo. Sem esse verso, o poema
seria uma manifestação da resignação triste, tingida pelo humor melan-
cólico de um irmão diante da morte da irmã. Ficaria talvez mais próximo
da maneira de Couto. E não seria mau. Com o verso criticado, que traz
uma conotação inconclusiva – algo que ficou por existir –, inclui-se ali
uma nota de meditação e de irresignação, como se o poeta manifestasse a
sua perplexidade e a sua insubmissão diante da morte. São pequenos tru-
ques sutis de um artesão primoroso que faz nascer do simples a surpresa
poética.
40  –  Carta de 21.09.1925. In: Arquivo Museu de Literatura, Fundação Casa de Rui Bar-
bosa, Rio de Janeiro.
41  –  Falecida em 1918.

346 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):329-348, set./dez. 2019.


Manuel Bandeira e Gilberto Freyre:
um encontro singular

Texto apresentado em junho de 2019. Aprovado para publicação em


outubro de 2019.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):329-348, set./dez. 2019. 347


As duras cadeias de hum governo subordinado:
poder e sociedade na Paraíba colonial

349

III – RESENHAS
REVIEW ESSAYS

O MAL QUE DESTRÓI O CORPO DA REPÚBLICA:


CORRUPÇÃO E MAU GOVERNO NA ÉPOCA MODERNA
(SÉCULOS XVI A XVIII)

ROMEIRO, Adriana. Corrupção e poder no Brasil: Uma história,


séculos XVI a XVIII. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
Marcos Arthur Viana da Fonseca1

Em um momento de reflexão da sociedade brasileira sobre a ética e


a moral na vida pública, Adriana Romeiro publicou um importante livro
sobre a temática da corrupção no período colonial: Corrupção e poder no
Brasil: Uma história, séculos XVI a XVIII. Professora do Departamento
de História da Universidade Federal de Minas Gerais, a autora já havia
abordado brevemente o tema em trabalhos anteriores, ao apontar os ru-
mores e as críticas que cercavam algumas autoridades régias nas Minas
Gerais. Em trabalhos mais recentes, a análise se aprofundou sobre os pas-
quins e as sátiras feitos no fim da administração de certo governador da
capitania que havia enriquecido, pública e notoriamente, ao se envolver
em ilicitudes2.

Ao longo do livro, a autora indaga-se sobre a pertinência e a possibi-


lidade de se estudar a corrupção, diante das inúmeras dificuldades concei-
tuais, semânticas e metodológicas que envolvem essa temática. Com base
em reflexões de uma historiografia internacional já consolidada e mu-

1  –  Doutorando em História Política – UERJ. Bolsista CAPES.


2 – ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: ideias, práticas
e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008; ROMEIRO,
Adriana. Vila Rica em sátiras: produção e circulação de pasquins em Minas Gerais, 1732.
Campinas: Editora da Unicamp, 2018.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):349-354, set./dez. 2019. 349


Marcos Arthur Viana da Fonseca

niciada de um extenso conjunto de fontes documentais coevas, Adriana


Romeiro acenou positivamente para a possibilidade de ampliação desse
campo de estudo pelos historiadores. O livro é dividido em quatro capí-
tulos e cada um deles aborda a questão da corrupção na América portu-
guesa, partindo de uma escala maior para uma menor, encerrando-se com
um estudo de caso.

No primeiro capítulo, a autora aborda a corrupção como uma proble-


mática conceitual e historiográfica. Como é possível que os historiadores
possam analisar a corrupção na época moderna sem se contaminar com
a visão atual sobre os desvios éticos e morais? Para resolver esse proble-
ma, Adriana Romeiro voltou-se para a análise conceitual e da evolução
semântica da palavra em dicionários de época. Longe de estar associada
somente à apropriação financeira ilegítima e ao enriquecimento ilícito por
parte de autoridades políticas, a corrupção era compreendida de forma
mais ampla no Antigo Regime, associada a uma grave falha moral da
própria comunidade política, a República. Assim, podia ser interpretada
como a própria corrosão do tecido social e político que unia os súditos e
o monarca. Dessa forma, contrastando o sentido coetâneo do termo cor-
rupção ao atual, Adriana Romeiro discutiu brilhantemente a problemática
na época moderna sem que seu estudo se contaminasse com anacronis-
mos do século XXI. Apesar desse esforço, deve-se notar que a escolha
de utilizar somente de dicionários de época não permite compreender de
forma ampla o significado que a sociedade moderna atribuía ao termo
corrupção. Os dicionários apenas reúnem os significados mais usuais e,
apesar de podermos considerar fidedignos os verbetes, é possível que ou-
tros conceitos e interpretações divergentes não fossem captados por esse
tipo de obra. Nesse sentido, a opção por analisar mais detidamente outras
fontes de época, como tratados morais, teológicos e jurídicos, poderia ter
contribuído para a expansão do significado do termo corrupção.

Em relação à análise historiográfica, a autora foi extremamente hábil


ao realizar uma ampla revisão e discussão sobre os autores e as obras que
abordaram a temática em relação ao Brasil colonial. Essa historiografia
representada por Caio Prado Júnior, em Formação do Brasil Contemporâ-

350 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):349-354, set./dez. 2019.


As duras cadeias de hum governo subordinado:
poder e sociedade na Paraíba colonial

neo (1942), e Charles Boxer, em O Império Marítimo Português (1969),


interpretava a corrupção como algo extremamente negativo e atrelado a
uma desorganização estrutural da administração portuguesa, bem como
um sintoma da lassidão moral da colonização ibérica. Rompendo forte-
mente com essa tradição historiográfica, Adriana Romeiro interpretou a
corrupção como um fenômeno político abrangente, presente em diversas
sociedades da época moderna, e associado a diversas conjunturas locais e
a alguns mecanismos estruturais da própria concepção da administração
portuguesa. Nesse capítulo, a autora propôs uma revisão historiográfica
do conceito de corrupção que incluiu uma reflexão sobre os autores clás-
sicos e uma análise das novas interpretações historiográficas produzidas
pelos especialistas que se propuseram a trabalhar com a temática entre
a década de 1970 e a segunda década do século XXI. Dentre os auto-
res, é possível destacar que a maioria pertence à historiografia espanhola,
evidenciando como a temática da corrupção já foi largamente explorada
por especialistas hispano-americanos, como Horst Pietschmann, Zacarías
Moutoukias e Keneth Andrien.

No segundo capítulo, a autora aprofundou-se no conceito moderno de


corrupção. Para realizar esta análise, Adriana Romeiro optou metodologi-
camente por selecionar seis obras ou fontes que abordassem densamente
o assunto: três alvitres (ou arbítrios) sobre a corrupção e a decadência
do Estado da Índia; um sermonário do padre Antônio Vieira; um espelho
de príncipe ou um arbítrio sobre a corrupção no Império português; e as
Cartas Chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga. Apesar da utilização de um
conjunto pequeno de fontes coevas, para além dos significados encontra-
dos nos dicionários, é possível afirmar, com certeza, que essa opção não
comprometeu a análise proposta.

Depois de examinar as referências citadas, Adriana Romeiro che-


gou à conclusão de que a corrupção possuía um significado muito mais
abrangente que o atual e maior do que um desvio ético e moral. Ela es-
taria atrelada às concepções de injustiça, de mau governo e de tirania,
além de transgressão da ordem e moral vigentes. Por isso, muito mais do
que apenas um enriquecimento ilícito, a corrupção significava um grande

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):349-354, set./dez. 2019. 351


Marcos Arthur Viana da Fonseca

desvio e uma ruptura na República. Ao adaptar uma expressão cunhado


pelo padre Antônio Vieira, in regionem longinquam (em região longín-
qua), Adriana Romeiro indicou de forma extremamente certeira como os
contemporâneos percebiam e aplicavam essa conceituação ampla de cor-
rupção, principalmente sobre os governantes ultramarinos, suscetíveis ao
longo de sua administração a cair em tirania, a corrupção política e moral
dos governos, por ações como: viver luxuriosamente, praticar o contra-
bando, enriquecer ilicitamente e concentrar os ofícios da República em
apaniguados. Diante dessas conclusões, é possível afirmar que o segundo
capítulo não somente cumpre o objetivo proposto, mas se torna o coração
do livro.

O terceiro capítulo segue o ritmo desenvolvido no anterior. Se, no


segundo, é feita uma análise das concepções de corrupção e das suas li-
gações com o governo e a tirania, no seguinte, o objeto principal da dis-
cussão são os atos de corrupção ocorridos nos governos coloniais. Apesar
do grande número de casos apresentados, a análise deixou um pouco a
desejar. Sem uma introdução explicativa ou um fio narrativo coerente que
pudesse fazer uma conexão ou uma transição melhor entre os capítulos
um e dois, construindo pontes entre as concepções coetâneas e os casos e
as denúncias concretas presentes nas fontes primárias, alguns momentos
do terceiro capítulo parecem uma grande coleção de histórias anedóticas.
Não obstante esse problema, o capítulo possui alguns méritos ao expor, à
luz da documentação, um conjunto de práticas dos governantes ultrama-
rinos associadas à corrupção e à tirania. Nesse grupo, é possível destacar
o mau governo, a tirania contra os súditos, a vida luxuriosa, a inépcia na
arte militar e os conflitos de jurisdição.

O quarto e último capítulo aborda, de forma localizada, por meio


de um estudo de caso, as diversas nuances da corrupção dos governantes
no período colonial. Ao debruçar-se sobre o perfil e a trajetória político-
-familiar de D. Lourenço de Almeida, Adriana Romeiro consegue anali-
sar magistralmente as dinâmicas que envolviam os rumores de enriqueci-
mento ilícito daquele administrador colonial. Ao comparar o patrimônio
de D. Lourenço de Almeida em dois momentos distintos da sua vida,

352 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):349-354, set./dez. 2019.


As duras cadeias de hum governo subordinado:
poder e sociedade na Paraíba colonial

antes e depois de ter assumido o governo de Minas Gerais, e consideran-


do os rumores sobre a origem da fortuna e o ostracismo político a que
foi submetido após retornar a Lisboa, Adriana Romeiro consegue ilustrar
perfeitamente os mecanismos em torno da utilização dos governos ultra-
marinos como forma de locupletamento. O destaque do capítulo está nas
riquíssimas fontes utilizadas, tais como os inventários, os testamentos, a
escritura de casamento, um rol dos devedores e uma ação judicial cível
impetrada pelos herdeiros de D. Lourenço, que permitiram tecer impor-
tantes considerações sobre o patrimônio do governador.

O livro de Adriana Romeiro, sem sombra de dúvida, adentra o rol


dos títulos obrigatórios da historiografia brasileira. Ao abordar o seu ob-
jeto de estudo de modo inovador e extremamente bem fundamentado em
fontes primárias, a historiadora abre caminhos para novas pesquisas em
uma área instigante e que ainda pode ser explorada. Para além da grande
contribuição historiográfica, Corrupção e poder no Brasil também dialo-
ga com o atual cenário político brasileiro. Ao destroçar os mitos sobre a
corrupção na história do país, sobretudo o mais recorrente de que o pro-
blema da corrupção surgiu somente nos anos 2000, o trabalho de Adriana
Romeiro torna-se um livro-símbolo da necessidade da construção de pon-
tes entre a sociedade brasileira e a historiografia.

Texto apresentado em abril/2019. Aprovado para publicação em ju-


lho/2019.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):349-354, set./dez. 2019. 353


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members of the Institute, as well as the contributions of historians, geographers, anthropologists,
sociologists, architects, ethnologists, archaeologists, museologists and documentalists in general. It
is published every for four, but the last publication of each year is dedicated to the registry of the
Institute's academic life and other institutional activities. The magazine's complete collection is
available for online consultation, at the site: http://www.ihgb.org.br/rihgb.php
The abbreviation of its title is R. IHGB. It has to be used in bibliographies, footnotes and
bibliographic references and subtitles.
Index sources
• Historical Abstract: American, History and Life
• Ulrich's International Periodicals Directory
• Handbook of Latin American Studies (HLAS)
• Brazilian Current Briefs
• Classification of the vehicles used by Brazilian post-graduate programs for the divulgation of
the intellectual production of teachers and students – QUALIS/Capes – grade B1.
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