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Eh

estudos históricos

69 Humanidades
Digitais

ISSN 2178-1494 | 2020


estudos históricos

EH69 Humanidades
Digitais

ISSN 2178-1494
Estudos Históricos, volume 33, número 69, jan.-abr. de 2020. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas, 1988
Quadrimestral
Resumos em português, inglês e espanhol
Editada e distribuída pela Editora Fundação Getulio Vargas
ISSN: 2178-1494.
1. História 2. Historiografia 3. Periódicos 4. Ciências Sociais 5. Economia e Sociedade.
I – : Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas
CDD 981.005
CDU 981(051)

E-mail: [email protected]
Endereço na internet: http://www.fgv.br/cpdoc/revista
Endereço postal: Fundação Getulio Vargas/CPDOC
Secretaria da Revista Estudos Históricos
Praia de Botafogo, 190, 14º andar, Rio de Janeiro 22.523-900 RJ
H estudos históricos 69|
Rio de Janeiro, vol. 33, n 69, p. 001-219, janeiro-abril 2020
o
Humanidades Digitais

Sumário

HUMANIDADES DIGITAIS 1
DIGITAL hUMANITIES
HUMANIDADES DIGITALES
Celso Castro

Entrevista

ENTREVISTA COM MATThEW CONNELLY | 3


INTERVIEW WITh MATThEW CONNELLY
ENTREVISTA CON MATThEW CONNELLY
Concedida a Arbel GrinerI e Celso Castro

Colaboração especial

DESAFIOS E RESPONSABILIDADES DAS hUMANIDADES DIGITAIS: PRESERVAR A MEMÓRIA, VALORIZAR O PATRIMÔNIO,


PROMOVER E DISSEMINAR O CONhECIMENTO. O PROGRAMA MEMÓRIA PARA TODOS | 19
ChALLENGES AND RESPONSIBILITIES OF DIGITAL hUMANITIES: PRESERVING MEMORY, VALUING hERITAGE, PROMOTING AND DISSEMINATING KNOWLEDGE.
ThE MEMORY FOR ALL PROGRAM 19
RETOS Y RESPONSABILIDADES DE LAS hUMANIDADES DIGITALES: PRESERVAR LA MEMORIA, VALORAR EL PATRIMONIO, PROMOVER Y DIFUNDIR EL CONOCIMIENTO —
EL PROGRAMA MEMORIA PARA TODOS

Maria Fernanda Rollo

Artigos

NARRATIVAS hISTÓRICAS EM DISPUTA:


UM ESTUDO DE CASO NO YOUTUBE | 45
HISTORICAL NARRATIVES IN DISPUTE: A YOUTUBE CASE STUDY
NARRATIVAS hISTÓRICAS EN DISPUTA: UN ESTUDIO DE CASO DE YOUTUBE
Odir Fontoura
HUMANIDADES DIGITAIS E DIÁSPORA AFRICANA: QUESTÕES ÉTICAS E METODOLÓGICAS NA ELABORAÇÃO DE UMA BASE DE
DADOS SOBRE A POPULAÇÃO ESCRAVIZADA DE MARIANA (SÉCULO XVIII) | 64
DIGITAL hUMANITIES AND ThE AFRICAN DIASPORA: EThICAL AND METhODOLOGICAL ChALLENGES IN DESIGNING A DATABASE ON MARIANA’S ENSLAVED POPULATION
(EIGhTEENTh CENTURY)
LAS hUMANIDADES DIGITALES Y DIÁSPORA AFRICANA: CUESTIONES ÉTICAS Y METODOLÓGICAS EN EL DISEÑO DE UNA BASE DE DATOS SOBRE LA POBLACIÓN ESCLAVIZADA DE
MARIANA (SIGLO XVIII)
Aldair Rodrigues

PORTUGAL BUILDS: UMA PLATAFORMA DIGITAL PARA A hISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO EM PORTUGAL NOS SÉCULOS XIX E XX | 88
PORTUGAL BUILDS: A DIGITAL KNOWLEDGE PLATFORM FOR ThE hISTORY OF CONSTRUCTION IN PORTUGAL 19Th-20Th CENTURIES
PORTUGAL BUILDS: UNA PLATAFORMA DIGITAL PARA LA hISTORIA DE LA CONSTRUCCIÓN EN PORTUGAL EN LOS SIGLOS XIX Y XX
João Mascarenhas Mateus e Ivo Veiga

NOVIDADES NO FRONT: ExPERIÊNCIAS COM hUMANIDADES DIGITAIS EM UM CURSO DE hISTÓRIA NA PERIFERIA DA GRANDE
SÃO PAULO | 111
NEWS ON ThE FRONT: ExPERIENCES WITh DIGITAL hUMANITIES IN A HISTORY COURSE IN ThE SUBURBS OF ThE GREAT SÃO PAULO AREA.
NOTICIAS EN EL FRONT: ExPERIENCIAS CON hUMANIDADES DIGITALES EN UN CURSO DE hISTORIA EN LAS AFUERAS DE LA GRAN SÃO PAULO
Luis Antonio Coelho Ferla, Luís Filipe Silvério Lima e Bruno Feitler

SER IMORTAL DIANTE DO FIM DO MUNDO: CORPO, CIBERUTOPIA E TRANSCENDÊNCIA | 133


BEING IMMORTAL BEFORE ThE END OF ThE WORLD: BODY, CIBERUTOPIA AND TRANSCENDENCE
SER INMORTAL ANTE EL FIN DEL MUNDO: CUERPO, CIBERUTOPÍA Y TRASCENDENCIA
Alana Soares Albuquerque

ExPLORANDO OS POTENCIAIS DA hISTÓRIA DIGITAL: A ExPERIÊNCIA DO CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E IMAGEM DA


UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO – CAMPUS DE NOVA IGUAÇU | 152
ExPLORING ThE POTENTIALS OF DIGITAL hISTORY: ThE ExPERIENCE OF ThE DOCUMENTARY AND IMAGE CENTER OF ThE FEDERAL RURAL UNIVERSITY OF RIO DE JANEIRO –
NOVA IGUAÇU CAMPUS
ExPLOTANDO LAS POTENCIALIDADES DE LA hISTORIA DIGITAL: LA ExPERIENCIA DEL CENTRO DE DOCUMENTACIÓN E IMAGEN DE LA UNIVERSIDAD FEDERAL RURAL DO RIO DE
JANEIRO – CAMPUS NOVA IGUAÇU
Felipe Augusto dos Santos Ribeiro, Jean Rodrigues Sales, Alvaro Pereira do Nascimento e Alexandre Fortes

AVATARES: O MARAVILhOSO E O ESTRANhO NO SECOND LIFE | 173


AVATARS: ThE WONDERFUL AND ThE WEIRD AT SECOND LIFE
AVATARES: EL MARAVILLOSO Y ExTRAÑO EN SECOND LIFE
Laura Graziela Gomes

HISTÓRIA DIGITAL: REFLExÕES A PARTIR DA HEMEROTECA DIGITAL BRASILEIRA E DO USO DE CAQDAS NA REELABORAÇÃO
DA PESQUISA hISTÓRICA | 196
DIGITAL HISTORY: REFLECTIONS FROM ThE BRAZILIAN DIGITAL HEMEROThEQUE AND ThE USE OF CAQDAS IN ThE RE-ELABORATION OF hISTORICAL RESEARCh
HISTORIA DIGITAL: REFLExIONES DE LA HEMEROTECA DIGITAL BRASILEÑA Y EL USO DE CAQDAS EN LA REELABORACIÓN DE LA INVESTIGACIÓN hISTÓRICA
Eric Brasil e Leonardo Fernandes Nascimento
Editorial

Humanidades digitais

Digital humanities
Humanidades digitales

Celso CastroI*
Editor convidado

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000300001

I
Escola de CIências Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV) – Rio de Janeiro – Brasil.

* Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV) e Editor convidado da Revista
Estudos Históricos ([email protected])

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 1-2, Janeiro-Abril 2020 1
Celso Castro

E ste número de Estudos Históricos tem por tema “Humanidades digitais”. Trata-se de um
rótulo recente, abrangente e pouco preciso. Nele, pode-se incluir tudo que signifique a
aplicação de computação e de tecnologias digitais ao universo das humanidades. O pano de
fundo é a expansão de big data, conjuntos de dados grandes demais para serem analisados
por formas tradicionais de pesquisa.
Não há uma visão consensual sobre o que é esse mundo. Para alguns, trata-se de um
novo campo de conhecimento; para outros, seria mais uma “comunidade” de práticas de pes-
quisa. De qualquer forma, podemos afirmar ao menos duas coisas com segurança: primeiro,
que se trata de um mundo profundamente multi e interdisciplinar; segundo, que a prática da
pesquisa de cientistas sociais e historiadores será, se já não o foi, profundamente alterada.
Temos, assim, tanto uma riqueza em termos de potencialidade criativa quanto um desafio em
termos de formação profissional. Não se trata de substituir o “artesanato intelectual” de que
tratou C. Wright Mills por computadores e inteligência artificial, mas de continuar existindo o
que ele chama de “imaginação sociológica” nesse admirável (?) mundo novo.
Os artigos selecionados para este número, bem como a entrevista com o professor Mat-
thew Connelly, permitem-nos, para além de seus objetos específicos, conhecer um repertório
variado de possibilidades de pesquisa, bem como alguns caminhos que os pesquisadores têm
utilizado. Esperamos que sirvam de inspiração para outras explorações.

Referências

MILLS, C. W. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1972. 

2 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 2-2, setembro-dezembro 2019
Entrevista com Matthew Connelly12
Interview with Matthew Connelly
Entrevista con Matthew Connelly

Concedida a

Arbel GrinerI

Celso CastroII

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942020000100002

1
Matthew Connelly is Professor of international and global history at Columbia University, New York.
I
Arbel Griner is a Postdoctoral Research Associate in Princeton University’s Global Health Program. New Jersey.

Celso Castro is full professor and the Dean of CPDOC, the School of Social Sciences of Fundação Getulio Vargas (FGV)
II

Rio de Janeiro (RJ), Brazil.

Entrevista concedida em 20 de maio de 2019, em Nova Iorque.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 3-18, Janeiro-Abril 2020 3
Arbel Griner e Celso Castro

CC: We would like to ask you about your family and the place you were raised, and
about your studies before the university.

MC: I come from a big family. I am the youngest of eight children. And all my family is
originally from Ireland. My mom was raised in Ireland. So, growing up, I had a bit of that kind
of second-generation immigrant experience, where I was often going back to Ireland with my
mother and had more relatives in Ireland than I did in the U.S. I think that background did – in
a way that I did not even realize at the time – influence the kind of History that I was interested
in. I read lots and lots of History. I was not necessarily a very good student [laughter]. It
was only when I got to only read History, as I started to do at university, that I started to do
better. And, I think, more even than being at Columbia, as an undergrad here, it was going to
Cambridge for a year in the U.K. that had a big impact. Whereas, growing up, as a second-
generation immigrant family, if you wanted to be successful, you wanted to become a lawyer,
like my father, or you would want to be a doctor or something. I did not know anybody who
was a professor. So, for the first time doing those one-on-one tutorials, I finally felt that I got
to know a historian, and I began to think maybe this is something I could do. So, it was only
then, and this was my third year at university, that I started to think I might want to become
an historian and not be a lawyer. Right after university, I worked for about a year and a half as
a journalist here in New York. I worked at a very small publication on a very obscure subject,
which was the health effects of electromagnetic radiation from things like powerlines, and
cellphones, and so on. So, it was interesting to have to write on deadline. I learned how to
write quickly when I had to, which is useful. And I learned a bit about the history of science
and regulation and such. But what I really wanted to do was to get back into university, and I
did that. I went to Yale. At that time, I was still not completely certain that I wanted to be an
academic. And so, I thought that, like some professors, it might be possible both to become an
historian but also, maybe, to have some role in foreign policy.

CC: Why is it you chose Yale, instead of staying at Columbia, for example?

MC: Because there is a professor at Yale named Paul Kennedy. And back when I was
figuring out where to go to graduate school, he had just written a best-selling book called Rise
and Fall of the Great Powers. It was striking, to me, how here was somebody who already had
had a very impressive career as an historian, but he was also having an impact in how people
were debating what was going to happen after the end of the Cold War. Would the United
States be the world’s only superpower, or were other powers already rising to challenge it?
And so I thought that would be the kind of career I would love to have: to be an historian but
also feel that I could have some impact in the world.
This was the 1990s. They were only then declassifying things from the 1950s. Whereas
we now think of it as the height of the Cold War, it was already a time in which even cold

4 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 4-18, Janeiro-Abril 2020
Entrevista com Matthew Connelly

warriors like John Foster Dulles and Dwight Eisenhower were starting to think of the world in
terms of North and South, especially when it came to a place like North Africa and France’s
colony in Algeria. It seemed that it did not really fit into this kind of Cold War framework. There
was an insurgency there. One that was not clearly communist inspired. But it was one that was
challenging America’s Cold War alliance with France. And it seemed, at times, that the whole
future of the Atlantic Alliance was at stake if France was to pull out of NATO because of the
way the U.S. was not supporting them in North Africa. So, for me, I thought it would be an
interesting project to do an international history of that war, as a way of understanding how,
even in the 1950s, the Cold War was becoming more complex as people were thinking about
North-South issues, like relations between poorer countries with rapidly growing populations
and declining powers, former colonial powers, like France.
I worked for several years at Yale to finish that dissertation. And I was fortunate because
I decided to do that right from the outset, and so I had a long time to think about it. By the
end of it, I was thinking about the Algerian war as a way of understanding other things, bigger
things like demographic trends, changes in new means of communications, and so on.

CC: At that time, were you already identifying yourself as a global historian? Or that
label came later?

MC: Yes. I was very struck when I was first doing my reading for orals, an exam where
you have to be able to talk about 200 different books and articles. I was reading up on the
literature on the history of U.S. foreign relations. And there was a long-running debate about
if you wanted to write about the history of American foreign policy, was it enough just to work
in American archives? And I thought it was ridiculous. Even if you were only interested in what
impact the U.S. has had in other parts of the world, you couldn’t do that by definition if the only
thing you knew about was what the Americans thought they were doing. Right? Because, as
we all know, sometimes the impact is different than what you imagined. So I was persuaded
by those like Charles Maier, Christopher Thorne, Sally Marks, who were arguing that the whole
field of the history of American foreign relations had stagnated because it had become isolated.
Not just from the work of scholars in other countries working in multiple languages, but also
because, within the American academy, people thought that diplomatic history was a very small
and parochial field, and a very unfashionable field. So early on – I think it was probably partly
because of Kennedy’s influence – I was committed to learning languages and doing multi-
archival research. And to be honest, I thought why wouldn’t I want to travel the world? And I
thought as a student one of the great things is to be able to go on long research trips where you
can live in a society for six months or a year and learn something about it firsthand.
So, yes, I started to identify the work I was doing as international history. And the book
that ended up coming out of this, called The Diplomatic Revolution, was very much a work of

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 5-18, Janeiro-Abril 2020 5
Arbel Griner e Celso Castro

international history. But because of another project that I did with [Paul] Kennedy, where we
imagined the future and we focused on the things that you think you can imagine when you
are looking 20 or 30 years out, even that book dealt with issues to do with demography and
changes in communications technology. And also changes in the way that politics is organized:
when we think about, in the case of the Algerian war, the role of the Red Cross, the United
Nations, and so on in the international media. I was very interested in the role of the so called
nonstate actors.
That’s what gave me the idea for my second book, a history of the population control
movement. So it is global in the sense that the people who try to control world population,
they were carrying out a project – actually, multiple projects that were meant to have a global
impact, whether it was about controlling numbers, or it was about controlling the quality of
populations, so called.
But I do not typically use the term global history because, when people hear it, they think
you are trying to write the history of everything. And in these fields, one of the big challenges
is to write history that allows you to grapple with things that move across borders and, in some
cases, circle the world, but without having to do the history of everything. Because the history
of everything would be the history of nothing. So, that [second] book, Fatal Misconception,
was one where I thought I should focus on some issue or set of issues where, if I want to
understand the role of international and nongovernmental organizations, I will pick something
where I know that they have had a big role, an important one.

AG: We would be interested in knowing how do you make global history today. What
is transnational history today and how do you go and where do you go, beyond the
archives? I am thinking of “The Freedom of Information Archive1”, where you ask
people to contribute with materials. So, what kind of materials are you trying to bring
together in doing this?

MC: Well, the way I have described it is I wanted to write a book about international
history where it was going to be about one time and one place [the war in Algeria in the Cold
War context], but it was going to allow me to address larger things happening all over the
world. And then I ended up writing this book about population control, which is, or at least
tries to be, a kind of global history. People sometimes ask me, how do you do that? So even if
I did not necessarily plan this out in advance, the way I understand how each of these projects
is related, including the one I am working on now, The Declassification Engine, is that they are
all about sovereignty. They are all about unaccountable power.
Government secrecy is, by definition, a kind of sovereign power because, as citizens, we
do not know what we do not know – we are not allowed to know. This is the power that

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Entrevista com Matthew Connelly

governments have, right, to keep us – all of us – in the dark as to what they are doing. And,
even in the United States – where we have a long tradition of thinking we know how to keep
government accountable –, in fact, secrecy has always presented a conundrum. Even if you go
back to the founding of the United States and the Constitutional Convention, it was not clear
how it is you could keep an Executive accountable if the Executive was going to be able to
withhold information from the public and even from Congress.
So, each of these projects is about sovereignty. It is about unaccountable power. The next
one I want to write is going to be a history of forecasting and future scenarios, and so, how
institutions use this claim to be able to see the future as a way of asserting their power in the
here and now. So, when you ask that question: “how do you do this kind of work?” Well, to
me, it helps if you have this idea in mind as to what it is you are doing. If you are not going to
just kind of do one thing and then the next. And I think that, over time – I am hoping, anyway
– I will have more of an impact. If I can, in fact, write the history of a concept, in this case, a
concept of sovereignty and the ways that it works in different times and different places. But,
in each case, each of these projects has required a different way of doing it. And so the first
two books, I felt I went as far as I could using what is already a very traditional method of
doing history, which is multi-archival and multilingual.
But I think there comes a time when there is no one person who can learn all of the
languages and go to all the archives, and so on. Further, I am also struck by the way – especially
because of the work I have been doing on secrecy – the conditions for doing archival research
are really changing. And it is coming to the United States, I think, earlier than it has in other
countries because the U.S. started using electronic records before other countries did. But, I
think, eventually, historians all over the world are going to find that there won’t be archives
for contemporary history, at least not in the way we understand them. There will not be finding
aids. There will not be archivists who will have curated these collections. Instead, we are going
to have databases. And maybe we will not even have databases. Maybe, if we are thinking
about using the archive of social media, we are going to be hard pressed to find any kind
of usable collection to do our research. And we will not know what to read, because the
volume is going to be so overwhelming, it is going to be difficult to know how do we apply
the methods that we have been trained to apply in this world in which the internet is the
archive. So, with these projects on secrecy, I am trying to develop a new set of methods to try
to do what I think of as multi-archival research, the same way I have been doing all along,
but doing it in a way that scales to the size of the archive, when the archive is millions, upon
millions of electronic records. Once again, I am picking – in each of these projects, I try to pick
something that I thought was doable but that was also going to be revelatory, it was going
to be able to reveal other things, bigger things. So, in this case, I picked secrecy. Because, I
think that, if you are an historian, you cannot not be interested in secrecy. This goes all the
way back to Thucydides, the first historian. He is the first historian because he was the first

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 7-18, Janeiro-Abril 2020 7
Arbel Griner e Celso Castro

one to talk about his sources. How did he know what he knew? And he talked about how he
talked to different people and tried to compare accounts, and so on. So, historians, I think – we
are not historians if we are not critical of our sources, if we are not understanding where this
information comes from. And if we do not, at some point, ask: what is missing? What is it that
we do not know, because someone or some government, maybe every government, does not
want us to know it? So, I thought that this would be a great question to use where you could
use computational methods. It is really hard to do traditional archival research on secrecy
because, by definition, what you really want to know is not there. And so, using algorithms,
you can figure out what is missing. You can figure out what are the patterns or the anomalies
in what is available and what is not available.

CC: Let me ask you about different labels that are in the market like “digital humani-
ties”, “data science”, “big data”, “social science computing”… Everything is related,
in some way, to this change you were talking about in the work of the historian. So,
how do you see these different labels? How do you describe your position?

MC: Of the things that you mentioned in history, in my discipline, digital humanities is
the one that people are most likely to recognize and understand, or at least they think they
do. Because digital humanities is already a pretty familiar concept. It has been around, I would
say, certainly, for more than 20 years. Going back to the early days of the Internet, people were
already talking about it. And some of the earliest projects were digital archiving projects. Typically,
what that meant was historians would do traditional archival research as they always had done.
But beginning when you could start to scan documents, and then when you could start to take
pictures of them, they would start to share their research. They would put these digitized images
online. And, early on, digital humanities in many cases meant, basically, sharing your research
and making it more accessible. There was a lot of hope and expectation as to how this was, in
itself, going to be transformative. In addition, certainly, it has been transformative in teaching.
So, for example, back when I was in graduate school, and I was teacher assisting classes, at best,
maybe a teacher would distribute a course pack where you would have maybe a few dozen
documents that they had copied for you and made part of your readings. And that was great,
right? Because they were already giving you some kind of direct access to the archival record.
With digital humanities, you can give your students access to hundreds of thousands
of documents, and you could let them explore. Instead of kind of choosing the curated
items that you think they should be interested in, you can give your students the ability to
explore themselves. That is fantastic. But the field of digital humanities is still largely seen
as a teaching field. And much of what it consists of, at least in terms of what people know
about, is the same kind of thing. It is more, right? It is more digitized images, more websites,
but featuring research that is still rather traditional. Because, for the most part, people doing

8 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 8-18, Janeiro-Abril 2020
Entrevista com Matthew Connelly

digital humanities are still doing archival research using traditional methods. It is just that they
are finding new ways to share that research. Where there has been more of a change, it has
been in the use of GIS – Geographic Information Systems. For certain kinds of projects, it is
really quite revealing if you can use geo data to show, spatially, how things change and evolve,
and so on. And there are many examples of that. In fact, many libraries now have librarians
whose job is, mainly, to provide GIS data and to help people use it.
Nevertheless, the problem with the digital humanities field, generally, is that, with few
exceptions, the people doing it, they try to do it all. Where they will both do the research and
then try to find ways to share that research with others, which now oftentimes means building
a website, sometimes building interactive tools that allow people to explore that research in
new ways. And, of course, they are still expected to publish, and publish not just online but to
publish in peer-reviewed publications and scholarly monographs. Now, when you think about
it, that is a lot of different skills. It is all the same skills that scholars would traditionally be
expected to have, and then, on top of that, you are expecting them, as well, to know how
to build websites, maybe even build interactive tools. Then, if you wanted them to actually
discover something through nontraditional means, you might even be expecting them to be
data scientists, to learn how to use algorithms to discover things, or at least explore data in
ways they could not do in the traditional manner.
That is one reason – I believe, the main reason, even – why it is that, as a field, digital
humanities has not had a bigger impact on the rest of the discipline. Because it does not
threaten anyone. I am half joking, but I feel like, if digital humanities was really having an
impact, there would be more people attacking it. And that is not happening because digital
humanists, for the most part, are not really challenging the way that other historians do their
work. They are not necessarily making entirely new discoveries using entirely new methods.
So, I think that one analogue, if you imagine how things could be different, would be how the
field of genomics developed. Genomics is basically the union of data science and biology. And
I was on a tenure review committee, some years ago, and we would look at a new case, like,
every week or two. Over time, what I was struck by was how when we had a case of somebody
working in genomics, they would talk about how this person is a really good data scientist, but
they are just a competent biologist. Or they would say: “well, this person is a brilliant biologist
but they are just kind of applying data science methods in a new domain”. And they said, the
people who knew better than me, that you do not typically find – in fact, it is rare, almost
impossible – somebody who is both a brilliant biologist and a brilliant data scientist, and do
innovative work in both of these different and very distinct kinds of disciplines. I then thought
to myself: “that is after it is been billions of dollars invested and decades of development in
the field of genomics”. So, people who are interested in doing data science and who want to
use data science to do history – I think it may be a long time, it may be forever, until we have
somebody who is both a brilliant historian and a brilliant data scientist.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 9-18, Janeiro-Abril 2020 9
Arbel Griner e Celso Castro

AG: Should we aspire to that?

MC: Well, I think if you think of history as a kind of data science, why not? I mean, we
are working with data. And we are going to be working with more and more of it, whether
we like it or not. Then, we should be using the best methods available to analyze that data,
right? Now that, again, does not mean that we all have to become data scientists. Because, in
fact, I think that we are more likely to make more rapid progress if historians are learning to
work with data scientists and to apply data science methods to historical questions. So, that is
the kind of work that I have been doing for the last five or so years. I have been working with
statisticians and computer scientists and, in some cases, applying new computational methods
to relatively old questions that come out of history or come out of other social sciences,
especially political science. However, it is also making it possible to ask different questions
than we normally could. Questions that might not have even occurred to us, otherwise.

CC: How was it to convince the students, colleagues, and funders for research of the
relevance of this new kind of work?

MC: Students are very excited about it. I have not had any trouble getting students
interested in this, if we are talking about undergraduates. There also has been interest among
some PhD students, but many PhD students in history have no interest in it whatsoever. And
it is striking to me because you would think that they would have the most to gain, over the
course of a career, of mastering a new set of methods that are still relatively rare. But I think
that PhD students, at least in the U.S. – and I think this is true in other countries, as well –, are
often quite conservative, in fact. They may not think of themselves this way. They may take risks
in terms of what they choose to study for their dissertations. And they are certainly taking a big
risk by going into a PhD program, which is going to be at least five years, and probably longer,
with no clear prospects of getting jobs as professors at the end. But I think it is for that reason
that they can be quite conservative in terms of using new methods. Unfortunately, I think, a lot
of PhD students who might benefit from using data science methods are not necessarily eager
to do that because they feel, perhaps, that they are already taking enough chances in joining
a PhD program and putting in the years to complete it.
Among other professors, I am finding that there is definitely interest in the field. In my
department, there is about a half dozen of us now who, in some way, are using computational
methods to do our work. And that did not happen according to any plan. I think it is just
because more and more of us realize there are opportunities here, and there are also risks if
we do not start rethinking our methods, and also if we do not start thinking about how we
can train our students to do this kind of work.

10 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 10-18, Janeiro-Abril 2020
Entrevista com Matthew Connelly

AG: I was interested in an example, if you could give us one. You talk about identi-
fying bursts or spikes. So, how do you construct an algorithm? What are you looking
for and what are the questions that come from history? And what did your partners
bring into this algorithm?

MC: In the past, I have sometimes organized workshops with other historians to see
how they would look at the potential for using these kinds of methods. And one of the things
I found was that they, like me, are particularly interested in some method or set of methods
that allow them to open up the black box when they have a very large collection of documents,
to know, in effect, what is in there. That could mean many different things, but one thing it
can mean would be, for example, events. My field, diplomatic history, is sometimes criticized
because we are often very interested in events. And if you go back all the way to Fernand
Braudel, the Annales School would hold that what you should really care about are the kind
of structural changes that are sometimes decades or centuries in development, and events are
just like the froth that ride the backs of these waves of change. Be that as it may, I do think
diplomatic historians are always going to be interested in events because some of these events
are really important, like war and peace. It is important to know when wars start and why they
happen, and also understand why they end and whether they might end sooner. So, one of
the things that I think you would want to know is, if we are going to begin to face millions of
electronic records and no finding aids, how do you identify events? How do you find things
happening that we would want to look at more closely?
As I work in this field, I become aware that there are huge fields of research on, for example,
traffic analysis. Traffic analysis is a technique that goes back more than 100 years. It starts with
espionage. Actually, in many cases you would not be able to decipher the communications of
another country, but you could at least measure the amount of communications, whether you
are intercepting telegraph lines or what have you. Therefore, traffic analysis is all about seeing
whether there are spikes where you might think that something is happening, just because
you see an acceleration in the rate of communications.
So, working with statisticians, first of all, you can say: look, I have a lot of data. I have, in
fact, really important data. Because you have, in this case, millions of State Department cables
over many years. And you could say: is there some way that we could use traffic analysis to
identify more important events? Not just the ones that we already know about, but potentially
the ones that we did not know about that might be worth exploring more closely. But the key,
I find, with finding a partner to work on an experiment like this, is you have to find something
that is going to allow the data scientist to innovate. That is, if all they are doing is applying a
known technique, then it is not very exciting for them because they are not really innovating.
They are interested if you have a lot of interesting data. Sometimes these conversations start
with “I have a lot of interesting data”. In this case, we started working with statistics professor

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 11-18, Janeiro-Abril 2020 11
Arbel Griner e Celso Castro

Shawn Simpson. And to start with, we were just applying a known technique, which was
actually derived from analysis of e-mail. E-mail and diplomatic communications are not so
different. There is a “from” and a “to”, and there is a date of transmission, and so on. So you
can basically take the same – it is called the Kleinberg Model – modeling traffic among people
exchanging e-mail. You can apply that to diplomatic traffic between different diplomatic posts.
And sure enough, you can find events. Some of those events are things that are well known
but it allows you to identify them more precisely, like when do we see this kind of beginning
and when does it end, and what formation does it take, and how do we begin to develop a
kind of taxonomy that allows you to distinguish between different kinds of events.
Soon enough, however, we found that we needed more and better models. So I worked
with another professor who is at MIT, Rahul Mazumder, and he, together with two of his
students, developed a new way and a better way of doing traffic analysis with a large volume of
communications like this. We are hoping to get this published, shortly, in a journal of statistics.
I find the way in which you can begin to do this kind of work is to start with, you could say, “I
have a lot of really interesting data and, even if we are applying a known technique, we might
have interesting conclusions”. Then, sometimes, it progresses from there to finding that there
are new ways you need to analyze that data to find even more interesting things. And then,
sometimes, you can innovate in a different discipline.

CC: Dealing with the State Department cables, and the governmental records etc,
you are entering in a sensitive and sometimes dangerous field, especially in times of
WikiLeaks and episodes like Hillary Clinton’s e-mails. Do you not fear that FBI or CIA
will come to your door to ask you what are you doing?

MC: Well, I have had to learn a lot. Yeah, I have learned a lot about how it is that there
actually are laws on the books that, if they were applied, would potentially be quite restrictive
in terms of what kind of research can be done. For example, you take the Espionage Act. It is
a World War I era law, but it is still the law that is used, in many cases, to prosecute people
for leaking information, for instance. If the espionage law was applied in every possible case,
there would be many journalists and professors who would be locked up right now. But, in
fact, over the years the law has only been applied in a more restricted way and courts have
established that if the work you are doing is meant to be in the public interest and if you are
a journalist or you are a professor, that you are given some latitude. Because, long ago, judges
recognized that if journalists and professors are too fearful to do research, then, really, we
are all in trouble. So, it would be different if, for example, I was doing work that was seen as
favoring a foreign power. But, in fact, all of the work that I have done has been very much
about trying to better understand the nature of American foreign policy in a way that I hope
will contribute to better policy. Or try to better understand what information the government

12 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 12-18, Janeiro-Abril 2020
Entrevista com Matthew Connelly

is not sharing with us, so that we can hold government accountable, to keep government
transparent. Therefore, it is very much consistent, I think, and most people would agree, with
the national interest, that people would be able to do this kind of research. And, to be honest,
we are a bunch of professors. And if we are doing this kind of research, you can be sure that
others are doing this work with more nefarious intentions. I sometimes think that what we are
doing is – we are a kind of a red team, to see what can be done. If we ever did find anything
that we thought was potentially going to create problems, then it would be our practice to
share that with people who could tell us whether there might be problems or issues with it. In
the same way that journalists do it sometimes when they discover things and they may think
that there might be a concern with sharing those discoveries publicly.
One other thing I will say about it, though, is that we only use declassified documents.
So, we have only ever done analysis on documents that have been duly released by the U.S.
government. We are not using WikiLeaks data or other leaked documents. The reason is not so
much the legal aspects, but that we cannot trust the provenance of leaked documents. It is hard
to do research people will believe if you do not know where your data came from, and also if your
data is very incomplete the way the WikiLeaks data is, for instance. They only have a relatively
small, perhaps five percent, non-random sample of U.S. State Department cables. That is not a
very useful data set to do research. Using declassified documents, therefore, allows us to look at
a much bigger and much more representative selection of the historical record. And so we are able
to ask questions and ask them more rigorously than we could if we were using leaked documents.

CC: How do you think more traditional historical research and computational me-
thods can relate to each other? Are they converging, complementing, or relatively
independent methodologies?

MC: When I work with data scientists on a project, I find that, first of all, data scientists
do not necessarily know what kind of question to ask of this kind of data. And so we often
have to talk with each other as to what would be interesting to find out. And, are these
things, these questions, tractable with the kind of data and the kind of methods that we have
available to us? So, my role in many cases is to identify what kinds of questions we want to
ask. Then, the other role that I play – I think, the biggest role – is to interpret the results that
we get. For example, the research I was talking about doing traffic analysis and identifying
historical events, it generated more than 500 different candidate events. That consists, basically,
of finding when you have bursts of communications. To understand what those events were
about you have to read a lot of those communications. And so I end up spending a lot of time
doing this research reading documents. Also, reading about those collections and how they
came to be. Many times, when we find things that seem anomalous or strange, I have to do
research on those anomalies.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 13-18, Janeiro-Abril 2020 13
Arbel Griner e Celso Castro

When I started out, for instance, I was not an expert on the history of the 1970s. But
because we have tons and tons of data from this period, when we began – the U.S. government
begins to produce electronic records – I had to learn a lot about the 1970s. So, really, I had
to combine the skills of doing algorithmic research, and the historian skills of close reading
and contextualization, not only looking at the individual documents, but looking at the archive
and understanding how it came to be. Further, also reading around once you find something
interesting and find out what other people have written about it and what we knew about
this before we made this new discovery. All those things require qualitative research of a very
traditional kind. I find these things absolutely go together. They do not always go together,
though. And, in fact, there is often – among data scientists, it is notorious that if – as an
engineer, – if you think of yourself that way – if all you are interested in is improving the
performance of your algorithm, in many cases, people do not read much further and they do
not necessarily look at what results they are really getting in looking more closely at the data.
That does not lead to very good science. And so, what we are doing is trying to do both. We
are both doing data science, but we are also doing qualitative research on those results. In that
way, I think, it leads both to better data science and to better history.

CC: Thinking about your students today, do you think that some specialized digital
method would be mandatory for them? And what impact it should have in the tea-
ching of history or social sciences, in general?

MC: Well, I think you would be hard pressed to find anybody doing any historical research
who does not use databases, who never uses a search function, anybody who has ever used
a database, or ever used Google Scholar, or ever tried to do keyword searching in a collection
of documents. I think, if you are going to do that, you need to understand something about
how databases work and how they are indexed. If you are going to use a search function that
ranks your results, you need to understand how that system operates and why it is ranking the
results in the way it is. If you are doing something that involves searching scanned documents,
ones that were not born digital but things maybe like newspapers or documents that have
been digitized, then you need to understand how text was extracted from those images. And
you need to understand how, typically, a lot of text is lost. So I think anyone who is going to be
doing any of these things really needs to understand a bit about how these systems are built
and how they are limited, and how the results can be quite misleading.
For example, I have often heard students and professors say: “well, I do not find any
references to human rights before 1968, and I have searched all the article databases from
ProQuest Historical Newspapers”. Well, you cannot prove that nobody was using that term
in any of those newspapers just because your search did not yield any results. Because
digitization is not perfect, and OCR results are often garbled. And, in fact, sometimes those

14 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 14-18, Janeiro-Abril 2020
Entrevista com Matthew Connelly

different newspapers might have been digitized at different times and they might have applied
OCR at different times, so you may not even be able to compare one to another in the way that
people like to do when they talk about numbers of hits that you have in one place or in one
period versus another. These questions might not even occur to you, unless you’ve had some
experience yourself in doing digitization and extracting text.
So I do think we are getting to the point where: yes, graduate students, at least, are going
to need to learn something about how the systems that they use are built and how it is they
work and sometimes do not work. That said, I think for a long time to come, certainly if you
are working in the period before the era of electronic records, you are not necessarily going to
have to learn how to do computational history. You can use these tools and understand how
not to misuse them, but without having to learn how to build them for yourself. Or, even as
I do, working on projects that are about tool building. But I think that students shouldn’t be
afraid of at least exploring what can be done. Because I have seen PhD students who have
had very little experience in coding, who, in a period of a few months, have been able to do
very sophisticated kinds of research like training machine learning algorithms to automatically
classify documents. These are students, again, with very little background in coding. But what
has happened is that, because more and more people are interested in using things like
machine learning, a lot of these techniques have been made easier. Where people have built
packages, as they call it, to let people, even novice programmers, use them with new data. And
so, I would encourage especially students just starting out to consider what is possible, and to
think about whether some of these methods might be useful for their own work.

CC: You have built, in the last years, a network of collaboration with other countries
like U.K. and Brazil. Has this networking affected your work?

MC: Absolutely. My project started out as exclusively one in which we were collecting
documents from the history of U.S. foreign relations. We are now building relationships in order
to make this a more international collection. And what that typically means is finding partners in
other countries to work collaboratively with us. When I first started doing this kind of work, I found
that there really was not another project like the one I was trying to build at Columbia, in the U.S.,
where you could find data scientists working with social scientists in large digitized corpora of
historical archives. Instead, I found that there was a project in Brazil, at FGV, and a project too in
the U.K., in project Abaca. There are still not a lot of examples of people doing this kind of work,
so it is all the more important, then, that we network amongst ourselves. And we have been
successful, both in the U.S. and in Brazil, in raising funds to make those kinds of collaborations
possible. But I think there is going to be more that we need to do. And a lot of times that means
being able just to work side by side. So, some of the most rapid progress we have been able to
make has been in those moments where we have been able to work in the same place.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 15-18, Janeiro-Abril 2020 15
Arbel Griner e Celso Castro

CC: Could you tell us about the FOIA, the Freedom of Information Archive, to which
you are a leader, as that was just launched by Columbia?

MC: This project started out where we were especially interested in understanding
secrecy, and declassification. In doing that research, we had a grant from the MacArthur
Foundation, and in the course of doing the work we had to aggregate many millions of
documents and structure them in databases. Once we had done that, it was clear that this
was a resource that others could use to do research, too. Therefore, we were able to get a
grant from the National Science Foundation in order to further develop this collection and to
collaborate with Columbia Libraries in order to make it accessible to anyone who wants to, for
instance, use the Columbia Library search interface. So, whereas, at the outset the project was
one where we were working on very fraught difficult kinds of policy and sometimes political
questions – like, how do you do this kind of research on secrecy in an ethical way, and a way
that is likely to have some impact on the public discussion and debate about secrecy –, more
and more the project became one in which we were trying to help others do research, Not just
on the history of secrecy, and different ways of doing policy on secrecy, better ways, but we
were also interested in allowing people to do research on a whole range of subjects.
So, the Freedom of Information Archive is a resource that we are making available to
everyone who gets online and wants to either go to the History Lab website or wants to
explore that collection through the Columbia Library’s website. Now we have an advisory
board made up of people from multiple university libraries, and we want to put together a
consortium where we can make this a collaborative project and that would serve multiple
functions not just to create a resource for researchers, but also to ensure the preservation of
these materials. So, in the United States there are many libraries now who see themselves as
data refuges where, especially if you think about data like declassified documents, you can
imagine, and it has sometimes happened in the past, that things can get reclassified. Things
that might have been provided by the government previously could be withdrawn. So we want
to serve as a data refuge for this kind of resource. And also, we want to continue innovating
and showing new ways that you can develop techniques for exploring this kind of data and
making it usable, not just for historians but for other researchers, as well.

AG: What is the role of the imagination in making history, still, with all these data?

MC: Yeah, the imagination. So, I feel like I have the best job in the world. I just love
being able to get up every day. I sometimes say to students that if you are an academic, a
scholar, and you are bored in your work, it is your own fault, because nobody is going to force
you to do boring work. The work you do is as interesting as you want it to be. I have been
very fortunate that I am at an institution that is very well resourced and we have not just a
great history department but we have great computer scientists and data scientists. We have a
great library. I have really been incredibly fortunate to have such amazing resources available

16 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 16-18, Janeiro-Abril 2020
Entrevista com Matthew Connelly

to me to do something really ambitious. For me, then, all the more reason then that I want to
attempt really ambitious things, challenging things. I cannot remember now who said this, but
somebody once said that you should try to work on the most important problems confronting
your discipline, right? And I feel like there is no more important problem facing historians than
the transformation of the historical record. The way that we have been trained to do our work
over many decades, even centuries now, is going to become obsolete in our lifetime. At least
for those of us who want to do contemporary history. So, I feel like, if not me, then who? I
mean, people like me should be working on this problem and we should be trying to come
up with ways of grappling with it that is going to make life easier for our students. Because if
we are not training them and preparing them to deal with this new kind of born digital world,
then there is nobody – I do not see anybody else doing it.
When you ask about the imagination, then, I try – as an historian, I think, even if we do
not admit it, we do imagine what things are going to be like down the road. It takes us five or
ten years to finish a book, so you have to imagine that people are still going to be interested
in whatever you are doing some years from now. But when it comes to training our students,
you have to imagine the work that they are going to be doing, not just 5 or 10 years from now
but 20 or 30 years from now. When I imagine, then, that world, and my students, and the work
they will be doing decades into the future, I cannot help but think that they are going to have
to be using, if not the techniques that I am working on now, then techniques that may be new
and improved and more advanced and perhaps even more imaginative versions of what I am
doing. So, to me, that is incredibly exciting. Even if I fail utterly, I will feel like it was worthwhile
just to make that effort. Because I do feel it is an urgent problem and it is becoming more
urgent the more we have to worry about the expansion of secrecy and the way it is getting
harder and harder, even to preserve the historical record for anyone to do research.
There is no more traditional or important question than asking: “how do we know what
we know?” And source criticism is the hallmark of good history, and it always has been. We
are now in a period where, I think, history is already half digital. Those historians – I think
practically every one of them who is using the internet to do research is using search engines
– are already doing digital history whether they know it or not. So the question is: are we
going to do it well? And how do we do it well? My father, when I was growing up, was always
telling me: “do not be narrow.” I did not really know what he meant at the time. But over the
years I have come to understand that – and I think it is completely true – one nice thing about
history is you can think broadly. History is as capacious as you want it to be, and it can be
many different things. One thing for sure it has to be is it has to be grounded in evidence, and
we have to know what that evidence is and where it comes from. So I absolutely agree that
we need to be imaginative. In the U.S., we have seen a now ten-year decline in the number of
students who are majoring in history. So, what we are doing is not working. We have to find
new ways to communicate the value of what we do to a new generation. And so I am hoping
I can be a part of that.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 17-18, Janeiro-Abril 2020 17
Arbel Griner e Celso Castro

‘Notas de fim’

1On The Freedom of Information Archive, see: https://www.indiegogo.com/projects/the-declassification-engi-


ne-saving-history-from-official-secrecy#/

Referências:

CONNELLY, Matthew. A Diplomatic Revolution: Algeria’s Fight for Independence and the Origins of the
Post-Cold War Era. Oxford and New York: Oxford University Press, 2002.
CONNELLY, Matthew. Fatal Misconception: The Struggle to Control World Population. Cambridge e Londres:
The Belknap Press of Harvard University, 2008.
CONNELLY, Matthew & KENNDY, Paul. “Must it be the Rest against the West?”. The Atlantic, 1994.
KENNEDY, Paul. Rise and Fall of the Great Powers. New York: Vintage Books, , [1987] 1989.
WRIGHT MILLS, C. The Sociological Imagination. Oxford and New York: Oxford University Press, [1959] 2000.

18 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 18-18, Janeiro-Abril 2020
Colaboração especial

Desafios e responsabilidades das


humanidades digitais: preservar a
memória, valorizar o patrimônio,
promover e disseminar o conhecimento.
O programa Memória para Todos
Challenges and responsibilities of digital humanities: preserving
memory, valuing heritage, promoting and disseminating
knowledge. The Memory For All program
Retos y responsabilidades de las humanidades digitales: preservar
la memoria, valorar el patrimonio, promover y difundir el
conocimiento — el programa Memoria para Todos

Maria Fernanda RolloI*

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-149420200001000003

I
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, Portugal.
([email protected]) , ORCID ID: http://orcid.org/ 0000-0002-2249-7279 Ciência ID F91D-2B9A-5767.

*Professora associada da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e investigadora do
Instituto de História Contemporânea.

Artigo recebido em 1º de agosto de 2019 e aprovado para publicação em 1º de agosto de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 19-44, Janeiro-Abril 2020 19
Maria Fernanda Rollo

Resumo
Para que servem e por que existem as humanidades digitais? Não existem “digitais” associadas a outras áreas
científicas. O que singulariza as humanidades digitais? Admitindo sua afirmação, salientam-se neste artigo seis
eixos fundamentais por meio dos quais sua contribuição é mais evidente e relevante para a atividade científica e
a sociedade em geral. O programa Memória para Todos, desenvolvido a partir do campo das humanidades, mas
intrinsecamente multidisciplinar, utilizador intensivo de ferramentas digitais, convoca os eixos referidos, ilustrando
as humanidades digitais para além da aplicação do digital na investigação na área científica das humanidades.

Palavras-chave: Humanidades digitais; Memória e patrimônio digital; Ciência aberta; Ciência cidadã;
Comunidades e herança cultural; Investigação colaborativa.

Abstract
Why do digital humanities exist and what are they for? There are no “digitals” associated with other scientific areas.
What singularizes the digital humanities? By admitting this statement, this article highlights six fundamental axes
through which the contribution of the digital humanities is most evident and relevant to scientific activity and society
in general. The Memory for All program, developed from the humanities field but intrinsically multidisciplinary, inten-
sive user of digital tools, summons the aforementioned axes, illustrating digital humanities beyond the application of
digital in scientific research of the humanities field.

Keywords: Digital humanities; Memory and digital heritage; Open science; Citizen science; Communities and
cultural heritage; Collaborative research.

Resumen
¿Para qué son y por qué son las humanidades digitales? No hay “digitales” asociados con otras áreas científicas.
¿Qué singulariza a las humanidades digitales? Admitiendo su declaración, este artículo destaca seis ejes fundamen-
tales a través de los cuales su contribución es más evidente y relevante para la actividad científica y la sociedad en
general. El programa Memoria para Todos, desarrollado desde el campo de las humanidades, pero intrínsecamente
multidisciplinario, usuario intensivo de herramientas digitales, convoca estos ejes, ilustrando las humanidades digi-
tales más allá de la aplicación de lo digital en la investigación en el área científica de las humanidades.

Palabras clave: Humanidades digitales; Memoria y patrimonio digital; Ciencia abierta; Ciencia ciudadana;
Comunidades y patrimonio cultural; Investigación colaborativa.

20 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 20-44, Janeiro-Abril 2020
Desafios e responsabilidades das humanidades digitais: preservar a memória, valorizar o
patrimônio, promover e disseminar o conhecimento. O programa Memória para Todos

P ara que servem e por que existem as humanidades digitais? Não existem “digitais” asso-
ciadas a outras áreas científicas. O que singulariza as humanidades digitais?
Admitindo sua afirmação, salientam-se neste artigo seis eixos fundamentais (sem a pre-
tensão de esgotar sua esfera de atuação) por meio dos quais a contribuição das humanidades
digitais é mais evidente e relevante para a atividade científica e a sociedade em geral: sal-
vaguarda e preservação do patrimônio digital; educação e formação; organização da infor-
mação; articulação com outras áreas científicas; acessibilidade, disseminação e partilha do
conhecimento; compromisso com a sociedade.
Assume-se que as humanidades digitais, para além da evidente utilização de ferramen-
tas digitais na área científica das humanidades e da adoção da componente do digital como
objeto de investigação, podem/devem desempenhar funções relevantes em vários domínios,
tomando-os como contribuição/responsabilidade perante a comunidade acadêmica/científica
e a sociedade em geral.
Comete-se às humanidades digitais uma missão transversal de interface ou de contri-
buição ativa de intermediação, quer no nível da dinâmica científica, interdisciplinar, quer na
relação com as comunidades e a sociedade.
A valorização, a preservação, a organização do patrimônio digital, abordadas neste ar-
tigo, constituindo uma área natural de atuação e singularização das humanidades digitais,
em que convergem vários eixos, representam uma dimensão vital para o conhecimento e a
salvaguarda da memória da humanidade.
O programa Memória para Todos, desenvolvido a partir do campo das humanidades, mas
intrinsecamente multidisciplinar, utilizador intensivo de ferramentas digitais, convoca os eixos
referidos, ilustrando as humanidades digitais para além da aplicação do digital na investiga-
ção na área científica das humanidades.

Não importa em que língua e em que parte do mundo

E m 17 de outubro de 2003, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência


e a Cultura (Unesco) adotou, na 32a sessão da Conferência Geral, a Carta sobre a con-
servação do patrimônio digital.
Ficou, então, definido o que se entendia por patrimônio digital: recursos únicos nos
domínios do conhecimento e da expressão humana, sejam eles de ordem cultural, educativa,
científica e administrativa, ou que contenham informações técnicas, jurídicas, médicas ou de
outros tipos, criadas digitalmente ou convertidas sob forma digital a partir de fontes analógicas

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 21-44, Janeiro-Abril 2020 21
Maria Fernanda Rollo

existentes (<http://portal.unesco.org>). Acrescentava que os documentos digitais podiam re-


vestir uma ampla e cada vez mais diversa gama de formatos eletrônicos, como textos, bases de
dados, imagens fixas e animadas, documentos sonoros e gráficos, páginas web, sendo muitas
vezes efêmeras, necessitando, por isso, de ações específicas de manutenção e de gestão desde
sua criação.
Salientava-se ainda que esse patrimônio, não deixando de aumentar, podia existir em
qualquer língua, qualquer parte do mundo, em qualquer domínio do conhecimento ou da
expressão humana.
Ainda uma referência ao preâmbulo da Carta, dando nota de três aspectos essenciais:
(i) o reconhecimento de como esses recursos em matéria de informação e expressão criadora,
cada vez mais produzidos, difundidos, obtidos e conservados sob forma digital, estavam a criar
um novo legado – o patrimônio digital; (ii) a consciência de que o acesso a esse patrimônio
ofereceria maiores possibilidades à criação, comunicação e partilha do conhecimento entre
todos os povos; e (iii) a compreensão de que esse patrimônio digital corria o risco de desapa-
recer e que sua conservação, no interesse das gerações presentes e futuras, era uma questão
urgente, que interessava ao mundo inteiro.
Em síntese, era tempo de assumir que a “memória do mundo” passara também a ser
digital.
Seis anos passados, em 2009, o diretor-geral da Unesco, Koïchiro Matsuura, enviou a
todos os ministros encarregados das relações de cada Estado-membro com essa instituição
(<https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000179529.page=2>) a mesma Carta sobre a
conservação do patrimônio digital, chamando a atenção para a indispensabilidade de sua
aplicação e recordando a responsabilidade de cada um — incluindo a própria Unesco, os
Estados-membros, as organizações intergovernamentais e não governamentais internacionais,
a sociedade civil e o setor privado.
A Carta evoca as questões essenciais que se apresentam hoje em dia. Ou, em outras
palavras, refere-se a tudo, ou quase tudo. Desde logo, (i) a questão do acesso e da promoção
da acessibilidade a esse patrimônio, em especial quando em domínio público, e a criação de
condições adequadas que garantam a proteção contra qualquer forma de intrusão em matéria
de informações sensíveis e pessoais; (ii) a indispensabilidade de encontrar um balanço ade-
quado e sensato entre a salvaguarda dos direitos legítimos dos criadores e outros titulares de
direitos e os interesses do público no que respeita ao acesso a esse patrimônio digital; (iii) a
ameaça de perda para a posteridade que impera sobre esse patrimônio e as razões principais
que o determinam, incluindo a obsolescência de equipamentos, a incerteza do financiamento,

22 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 22-44, Janeiro-Abril 2020
Desafios e responsabilidades das humanidades digitais: preservar a memória, valorizar o
patrimônio, promover e disseminar o conhecimento. O programa Memória para Todos

a inconsequência ou insuficiência das ações dos poderes públicos, nomeadamente em matéria


de legislação; e (iv) também, talvez previamente, as atitudes das pessoas e das instituições.
Atitudes que continuam a revelar-se, em muitos casos, resistentes ou incapazes de acompa-
nhar a perceção da ameaça de perda e a própria evolução da tecnologia e das potencialidades
e possibilidades que o patrimônio digital proporciona, nomeadamente no campo da investiga-
ção e para ampliar a criação e a difusão do conhecimento.
Por tudo isso, importava agir com urgência em 2003 e em 2009, e continua a ser impe-
rativo agir hoje em dia.
Entretanto, muita coisa se alcançou, nomeadamente no campo e graças às humanidades
digitais, mas muitíssimo permanece por alcançar.
A voragem avassaladora da revolução digital é implacável e imparável. Sobre ela man-
tenho, porém, a mesma serenidade e expectativa com que a história nos ensina a observar
“revoluções” passadas, sem, porém, desconsiderar a amplitude e a velocidade de sua ação,
potenciada pela tecnologia, pela disponibilidade cultural e mental (e também pelas suas resis-
tências) e pela quase plenitude da globalização.
Daí resultam também a compreensão da volatilidade que impera em todos os domínios
no tempo presente e a consciência de que a perda do patrimônio digital é demasiado rápida e
inelutável, requerendo, para sustê-la, antecipação, estratégias, conhecimento, infraestruturas,
enquadramento político, recursos financeiros e, não menos importante, consciência, empenho
e envolvimento de todos os atores que integram o ecossistema, alargando-o, sem dúvida, à
sociedade civil em geral.
Será esse, porventura, um dos desafios mais complexos e, simultaneamente, uma das
responsabilidades mais prementes que hoje se apresentam às humanidades digitais: a sal-
vaguarda da memória e a preservação e valorização do patrimônio digital em que, cada vez,
mais se “corporiza”. Complexo e premente porque, desde logo, trata-se de um patrimônio
extraordinariamente vulnerável e relativamente ao qual nem sempre existe a noção de se
tratar de um patrimônio. Além disso, a capacidade de atuação, seja no âmbito da consciencia-
lização, seja no que respeita à adoção de medidas no sentido de sua preservação, transcende
a comunidade das humanidades digitais, pressupõe a concertação com outas áreas científicas
e disciplinares e requer apoios e infraestruturas adequadas que, inexoravelmente, exigem uma
implicação institucional no nível do sistema científico e tecnológico e, em um nível mais lato,
dos poderes e das políticas públicas.
Importa que sejam definidos enquadramentos jurídicos e técnicos adequados, elabora-
dos com a colaboração dos diversos atores, que definam normas, procedimentos e boas prá-

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 23-44, Janeiro-Abril 2020 23
Maria Fernanda Rollo

ticas. É ainda indispensável que se assegure a existência de sistemas fiáveis de preservação,


desejavelmente no nível do sistema público, que garantam a autenticidade e a integridade da
informação, bem como a indispensável seleção do que exige conservação permanente, sua
preservação e curadoria e sua acessibilidade.
Se é válido em qualquer área, nesse caso é indispensável gerar uma rede de parcerias
e cooperação adequada e em sintonia, sob pena da frustração do propósito da preservação
digital, dadas sua abrangência, extensão e exigência técnica e de meios. Também por isso, se
deve acrescentar a indispensabilidade da definição e a utilização de ferramentas adequadas
de organização, classificação e partilha da informação, tendo sempre a consciência e, quanto
a mim o propósito, de sua máxima acessibilidade. Não esquecendo, portanto, de que se trata
de um patrimônio comum, virtualmente acessível a toda a humanidade. A organização do
patrimônio digital, universalmente reconhecida e acessível, amplia e reforça o interesse do
trabalho colaborativo e multidisciplinar, emergindo com cada vez maior premência e exigên-
cia, mas também possibilidades, o recurso a dinâmicas de trabalho relacionadas no plano da
semântica, das ontologias e da própria acessibilidade, desde logo linguística.
Deve-se ainda salientar em que medida o patrimônio digital, integrando tudo o que
ficou referido, requer um renovado papel das instituições que formam essa ampla galáxia do
conhecimento — para além das instituições públicas nacionais/regionais/locais, que têm a
missão da definição das políticas e das boas práticas; das instituições que tradicionalmente
compõem o sistema de preservação e curadoria de informação, como arquivos e bibliotecas;
e, de forma crescente, das instituições do sistema de ciência e tecnologia e de ensino superior.
Seu envolvimento perspectiva-se em vários níveis, não só acrescentando e desenvolvendo
conhecimento e proporcionando infraestruturas adequadas, mas no sentido de sua adaptação,
que, na verdade, poderá pressupor sua transformação.
Dito de outra forma, arquivos e bibliotecas verão seus conteúdos cada vez mais transfor-
mados e acrescentados em suportes digitais, crescentemente diversificados, devendo, para o
efeito, criar infraestruturas, formar pessoas (não só as que lá trabalham, mas seus utilizadores),
ampliando suas funções, constituindo repositórios digitais, sob pena de serem substituídos por
outras entidades ou de perderem parte do patrimônio cultural dos contextos que pretendem
representar. As instituições de ciência, tecnologia e ensino superior (para além dos arquivos
e das bibliotecas que integram) terão de operar no mesmo sentido, cumprindo-lhes, porém,
a missão de contribuir no plano científico e tecnológico e sobretudo no quadro da reflexão
cultural e intelectual. Deve-se salientar que essa contribuição é indispensável no plano da
organização da informação, e que essa missão transcende, cresce e amplia-se para tudo o que
tem a ver com a produção do conhecimento. Voltaremos a essa questão, mas as instituições

24 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 24-44, Janeiro-Abril 2020
Desafios e responsabilidades das humanidades digitais: preservar a memória, valorizar o
patrimônio, promover e disseminar o conhecimento. O programa Memória para Todos

de ciência e tecnologia (em particular no nível dos centros de investigação), bem como as
instituições de ensino superior, terão de assumir (e várias estão a fazê-lo) um papel cada mais
determinante na acreditação, na organização e na intermediação da informação, para suas co-
munidades e para a sociedade em geral. À medida que a quantidade de informação disponível
agiganta-se e generaliza-se, a missão dessas instituições torna-se mais premente e necessária.
As infraestruturas de investigação, em escala global e, nomeadamente na Europa (Esfri
<https://www.esfri.eu>), as que compõem os roteiros nacionais, bem como as diversas redes
que se têm estruturado em nível global, internacional e nacional, podem participar dessa
missão, estando-lhes reservado um papel vital na organização e na gestão de dados de inves-
tigação. O aumento, inimaginável há poucos anos, de produção e disponibilização de dados
de investigação e a indispensabilidade de sua preservação e organização ampliam e com-
plexificam tudo quanto temos referido, em vários vetores, nomeadamente na associação de
competências nos domínios da ciência e processamento e análise de dados. Não se pode dei-
xar de sublinhar o grau de vulnerabilidade dessa informação digital e o processo de perda de
que tem sido objeto, significando uma alienação grave do patrimônio digital, observado sob o
ponto de vista cultural e científico, mas também econômico. Apenas como exemplo, no campo
da ciência, Vines e outros autores (Vines et al., 2014) desenvolveram um estudo apontando
para a perda de 80% dos dados dos artigos científicos nos próximos 20 anos, microrrealidade
de um cenário muito maior de perda ou inacessibilidade de informação/patrimônio, mesmo se
reversível pelo paradoxo da informação em buracos negros, de Stephen Hawking.
A perda não se extingue em si; ou seja, toda essa massa descomunal de informação
digital tem um potencial de diálogo entre si e de criação de novo conhecimento, que impor-
ta alcançar no sentido de tornar o conhecimento realmente mais FAIR (findable, accessible,
interoperable, reusable) e democratizado. E esse deve ser, a par de sua preservação, um dos
propósitos a alcançar. Para tanto, para além das condições físicas, estando as tecnológicas dis-
poníveis, terão de existir vontade e empenho político no nível dos diversos atores. Sublinhe-se
que a conservação e a partilha dessa informação, organizada, expõem-na, desejavelmente, a
um cada vez maior escrutínio, contribuindo para o combate à fraude, ao plágio ou a qualquer
forma de transgressão e desrespeito pela propriedade intelectual.

Desafios e responsabilidades das humanidades digitais

A s humanidades, em estreita associação com as ciências sociais, em especial, e com ou-


tras áreas disciplinares, têm em sua missão o estudo do patrimônio cultural, e cumpre-
-lhes a formação das pessoas para seu conhecimento, valorização, salvaguarda e preservação.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 25-44, Janeiro-Abril 2020 25
Maria Fernanda Rollo

Têm, evidentemente, de incluir em seu âmbito a realidade digital, e assim o têm feito,
refletindo parcial ou totalmente essa assunção nas designadas humanidades digitais.
Em que medida podem fazê-lo e qual a amplitude de sua ação tem sido sucessivamente
questionado; daí, porventura, a profusão de definições que têm surgido e o amplíssimo deba-
te, que continua na ordem do dia.1
Compreendendo sua indispensabilidade e a afirmação como uma prática, um ethos,
tão transversal e generalizável quanto possível e necessário, é certo que as humanidades
digitais terão de participar na construção e no desenvolvimento dos diversos contextos de
sensibilização, consciencialização e formação nesses domínios. Começando pela educação/
formação básica, em que a perceção e a apetência das gerações mais jovens não significam,
evidentemente, consciência de valorização e até respeito intelectual pela herança e pelo patri-
mônio digital (a que têm acesso natural e facilitado), compreensão formal e utilização de suas
potencialidades/possibilidades ou, muito menos, necessidade de sua preservação. É certo, po-
rém, que se está a instalar, de forma cada vez mais ampla, a indispensabilidade de aquisição
e formação em matéria de competências digitais, bem como a noção de que as profissões do
futuro as exigirão crescentemente. No nível do ensino superior e no campo das humanidades
(e pode-se ampliar às artes e a vários domínios das ciências sociais), embora a formação
em humanidades digitais (para simplificar) comece a fazer parte de alguns currículos, ela é
ainda muito reduzida e sobretudo, em muitos casos, incompreendida pelos estudantes. Mais
relevante, no campo da formação avançada, pós-graduada, a presença dessas áreas é ainda
muito modesta. Mesmo começando a afirmar-se em alguns países como frequência possível
ou obrigatória nos cursos de humanidades, a consciência dos alunos e professores é ainda
limitada. Mais ainda, se considerarmos a comunidade de investigadores nas áreas das huma-
nidades, o cenário surge agravado. Naturalmente, têm de se distinguir as diversas dimensões
que as humanidades digitais compreendem/podem compreender, desde as competências para
utilizar ferramentas disponíveis, pesquisar informação, organizar ou depositar conteúdos ou,
em planos mais complexos, programar ou utilizar softwares de bases de dados, ou ferramentas
de computação em seu todo. Mas, genericamente, com maior ou menor peso, as apetências e
competências gerais no campo das humanidades digitais são escassas entre a própria comu-
nidade das humanidades.
Entre outros aspectos, as humanidades digitais, como campo de conhecimento e atua-
ção, e os profissionais associados às humanidades digitais, individualmente, em comunidade
ou organizados institucionalmente, representam a melhor intermediação, pelo menos a mais
disponível e apta, entre as humanidades e um mundo digital que se estende de forma cada

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Desafios e responsabilidades das humanidades digitais: preservar a memória, valorizar o
patrimônio, promover e disseminar o conhecimento. O programa Memória para Todos

vez mais inorgânica, sem fronteiras físicas e ajudando a esbater as barreiras culturais e linguís-
ticas, e cujas coordenadas futuras porventura nem conseguimos imaginar.
Não será demais chamar a atenção para a importância dessa intermediação, logo no
nível da valorização e da preservação do patrimônio digital, até porque os conteúdos digitais
ou aquilo que deles perdurar tenderá a constituir, cada vez mais, seu objeto de estudo, dire-
tamente ou porque seu suporte será digital. Importa ter presente que essa preservação, para
que os conteúdos conservem sua integridade, acessibilidade e valor científico e patrimonial,
para além do que foi já referido, decorre e só pode ser cumprida se abranger todo o seu ciclo
de vida. É absolutamente essencial que as pessoas, e muito em particular os investigadores/
produtores de conhecimento, compreendam que a informação que estão a reunir e a produzir
tem de ser cuidada desde que nasce.
Além disso, e essa perceção é intrínseca à comunidade científica das humanidades, o
patrimônio digital tem de ser compreendido em escalas diversas, nomeadamente no nível
das comunidades, coexistindo e requerendo práticas de conservação que transcendem os
enunciados e os entendimentos das legislações nacionais ou das convenções internacionais
e das boas práticas que adotam e recomendam. Acrescem o potencial e o alargamento de
oportunidades que o digital proporciona no sentido da ampliação do universo de conteúdos,
em especial imateriais, passível de ser registrado e preservado para as gerações vindouras. Ou
seja, o digital aumenta a possibilidade de captar o legado cultural, significando que o patrimô-
nio digital tende a aumentar exponencialmente. As pessoas, as comunidades estão cada vez
mais a usar instrumentos, ferramentas, tecnologias digitais para registrar suas práticas e seus
cotidianos, muitas vezes sem ter consciência de sua vulnerabilidade. Além disso, acrescenta-se
a informação gerada a partir da interconexão que as liga, envolvendo novas formas de ex-
pressão e de comunicação (começando pela própria internet), em si mesmo patrimonializáveis.
Nem tudo poderá/deverá ser preservado, mas, o que se quiser que perdure, terá de ser cuida-
do. Dentro do que se vislumbra, com a consciência das limitações no sentido de perspectivar
o mundo futuro que a inteligência artificial tenderá a moldar, deve-se também assinalar o de-
senvolvimento de ferramentas que vão escalar as comunicações multilinguagem e multilíngua,
o que replicará e aumentará ainda mais o patrimônio digital em escala global, abrangendo,
desejavelmente, comunidades, regiões, contextos linguísticos atualmente em desvantagem ou
marginalizados relativamente ao predomínio de algumas línguas, em especial o inglês.
Uma vez mais se convocam as humanidades e a aptidão das humanidades digitais no
sentido da intermediação e da colaboração com outras áreas disciplinares e diferentes reali-
dades tecnológicas.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 27-44, Janeiro-Abril 2020 27
Maria Fernanda Rollo

Sobrepõe-se, de qualquer forma, uma mudança cultural que tem de vingar, se quisermos
garantir a preservação do patrimônio digital. A longevidade desse conhecimento, a perenidade
desse legado dependem disso, e a comunidade acadêmica e científica não estará plenamente
consciente dessa inexorabilidade. Por outro lado, o universo digital permite cada vez mais
ampliar as possibilidades criativas e de produção de novo conhecimento, especialmente no
campo das humanidades, se, uma vez mais, existirem enquadramento e infraestruturas e dis-
ponibilizar-se formação, aquisição de competências, acessibilidade e, como condição vital, se
a comunidade o entender e quiser.
Em Portugal, têm-se afirmado várias dinâmicas, iniciativas, projetos, em qualquer uma
das dinâmicas evocadas, embora, como referido, persista algum deficit em termos de conhe-
cimento e utilização de recursos nos âmbitos disciplinares das humanidades. Embora com
algum atraso e de forma mais lenta e titubeante, recuando à década de 80, a área das hu-
manidades digitais tem se desenvolvido, procurando mesmo, sob contágio da realidade in-
ternacional, sua consagração disciplinar. À ação relativamente individual e voluntarista, em
alguns casos internacionalmente atualizada, de alguns investigadores, mais ou menos enqua-
drados institucionalmente, sucede hoje em dia, pode-se dizer, uma comunidade organizada,
com propósitos e objetivos comuns (Alves, 2016a: 91), tendo adquirido, entretanto, alguma
formalização com a criação da linha temática Humanidades Digitais e Investigação Histórica,
do Instituto de História Contemporânea (IHC) (<http://www.ihc.fcsh.unl.pt>), o Núcleo Pa-
trimónio e Humanidades Digitais, da Universidade de Coimbra (<https://www.uc.pt/iii/ceis20/
grupos_investigacao/Grupo7>), e, no universo mais amplo da língua portuguesa, a fundação
da Associação das Humanidades Digitais (<http://ahdig.org/>). Deve-se referir ainda a criação
de infraestruturas de investigação especificamente dedicadas às ciências sociais, artes e hu-
manidades (em particular o Rossio, <http://rossio.fcsh.unl.pt>), a participação portuguesa no
Dariah e, mesmo, a recente criação do nó português da RDA – Research Data Alliance. Todos
esses avanços são um sinal positivo, não significando, todavia, que as humanidades digitais
estejam generalizadas no âmbito da comunidade acadêmica e científica das humanidades.
Em uma perspetiva que não é excessivamente otimista, é natural e expectável que a
necessidade, a familiarização e a descoberta das possibilidades e do potencial que o mundo
digital proporcionam acabem por se instalar, e que a pressão no sentido de sua formação e de
sua procura venha a generalizar-se em ritmo mais acelerado. Porventura mais preocupante é
que, antecipando esse cenário, mas podendo ocorrer ao mesmo tempo, persistam ou mesmo
se instalem constrangimentos que impeçam o desenvolvimento das humanidades digitais.
Veja-se o artigo de Osinski (2019), dedicado precisamente a identificar e alertar para as bar-
reiras que existem no processo de formação e transformação de conhecimento científico na

28 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 28-44, Janeiro-Abril 2020
Desafios e responsabilidades das humanidades digitais: preservar a memória, valorizar o
patrimônio, promover e disseminar o conhecimento. O programa Memória para Todos

área das humanidades, chegando à conclusão de como a desconfiança e o deficit de interesse


e competências no campo das humanidades digitais o condicionam. Em outro plano, e com
outro tipo de abordagem, as conclusões a que se está a chegar no âmbito do projeto Desir2
a propósito da utilização da infraestrutura Dariah3 são também muito relevantes, apontando
para uma utilização muito modesta dos recursos e das possibilidades que proporciona. A essa
situação soma-se um potencial paradoxo: no inquérito desenvolvido, a percentagem de utili-
zadores de humanidades digitais é mais baixa nos investigadores com carreiras mais jovens.
Na verdade, pode-se até falar de distanciamento da comunidade acadêmica/científica dessas
infraestruturas, ou mesmo de desconhecimento de sua existência.
Ora, esse distanciamento opera em prejuízo do próprio desenvolvimento científico das
humanidades. Em todo caso, para os que frequentam progressivamente os recursos disponí-
veis, o que se verifica, tal como em outras áreas científicas/disciplinares, é que os resultados
são manifestamente positivos, devendo também acrescentar-se que as próprias dinâmicas
associadas à produção e à partilha do conhecimento, seja no nível da formação, seja no nível
da investigação, estão a atravessar um processo de profunda alteração. Dito de outra forma,
a revolução digital, para simplificar, as humanidades digitais, para focar o campo específico
das humanidades, estão a provocar e a ser acompanhadas de uma transformação no próprio
processo de aprendizagem e de produção de conhecimento, alterando mesmo alguns de seus
dogmas, pressupostos e paradigmas.4

Preservar a informação, partilhar o conhecimento,


democratizar o acesso – ciência aberta

A revolução digital tem composto uma oportunidade ímpar no sentido do alargamento


e da disseminação do patrimônio e da herança cultural compreendida em toda a sua
amplitude. Além disso, o potencial que representa para o avanço do conhecimento, incluindo
novas formas de aprendizagem e de participação da sociedade, e as possibilidades que pro-
porciona no sentido de sua democratização são verdadeiramente impressionantes e porventu-
ra ainda aquém do que podemos captar/imaginar à luz do que a inteligência artificial permite
perspectivar.
Mas, para tanto, é preciso que o acesso a essa realidade e o amplo conjunto de pres-
supostos que requer existam; se assim não for, em vez de oportunidade, poderá constituir
um fator de afastamento, acentuar constrangimentos e contribuir para o agravamento das
desigualdades de acesso ao conhecimento e à sua fruição.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 29-44, Janeiro-Abril 2020 29
Maria Fernanda Rollo

É indispensável a esta reflexão evocar a tendência, e as resistências que se têm apre-


sentado, no sentido da promoção do acesso à ciência e à cultura, ou, se se quiser, ao conhe-
cimento em geral. Antes de mais nada, cumpre não esquecer que estamos sempre perante
um mundo em mudança acelerada, de amplitude dificilmente apreensível e mensurável, que
não se esgota nas alterações no plano tecnológico; essa mudança contempla, reflete e arrasta
importantes alterações no campo cultural, mental, social, político, econômico, ambiental… e
estes estão também a atravessar processos de acentuada transformação.
No plano da ciência e do conhecimento, uma das tendências recentes, com potencial
expressivamente transformador, reside no que genericamente podemos designar de “ciência
aberta” — matéria em que, uma vez mais, encontramos um ponto fulcral de atuação das e
para as humanidades digitais, alargando a interconexão das humanidades à sociedade.

Ciência aberta

A atividade científica desenvolve-se em uma sociedade cada vez mais exigente relativa-
mente à responsabilidade das políticas, das instituições e mesmo dos cientistas, afir-
mando-se um contexto de acentuada vigilância pública referente tanto a grandes questões
científicas, que colocam profundos dilemas éticos, quanto à supervisão da utilização de re-
cursos públicos, acentuando-se quando nos reportamos a políticas e instituições públicas ou,
como vimos, a um legado e patrimônio comuns.
São justamente crescentes as expectativas que a sociedade em geral e cada um de nós
depositam na ciência (compreendendo todas as áreas disciplinares, incluindo o âmbito das
humanidades), procurando ou mesmo requerendo, também por isso, enquadramentos insti-
tucionais e regulatórios e o recurso a instrumentos, como a avaliação, dedicados a promover,
assegurar e dar conta desse cumprimento, mas também legitimar a afetação de recursos à
investigação e à atividade científica, procurando satisfazer, e prestar contas, a um conjunto
cada vez mais amplo de atores e forças para além da comunidade acadêmica e científica.
Essa dimensão colaborativa com a sociedade, com as comunidades pode ser determi-
nante na construção de novo conhecimento e em sua preservação presente e futura, e mesmo
instrumental na compreensão e na ampliação da utilização da realidade digital até no sentido
da salvaguarda e da valorização do patrimônio cultural e digital, em geral e especificamente
das comunidades. Para tanto, será essencial alguma extensão de formação e aquisição de
competências e, sobretudo, a cumplicidade entre a academia/a comunidade do conhecimento
“formal/científico” e as comunidades que compõem a sociedade em geral em um ambiente
de responsabilidade patrimonial partilhada.

30 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 30-44, Janeiro-Abril 2020
Desafios e responsabilidades das humanidades digitais: preservar a memória, valorizar o
patrimônio, promover e disseminar o conhecimento. O programa Memória para Todos

Refiro-me ao ecossistema da ciência aberta em seu sentido mais amplo, ampliando-se,


e é esse seu cerne, para além do sistema científico e tecnológico, na múltipla relação em que
se encontra com os diversos parceiros e dinâmicas sociais e políticas, cruzando-se em todas
as circunstâncias, com a afirmação da era digital em que se contextualiza. É que, para além
das dimensões em que se desenvolve e concentra, acesso aberto, inovação aberta, ciência
cidadã, entre outras, contempla-se precisamente o monumental desafio do arquivo/armaze-
namento, preservação, curadoria dos dados e informação digital que a sociedade produz em
um ritmo e quantidade absolutamente inéditos, compondo o patrimônio digital. Vimos como
é imperativo que se criem as condições indispensáveis à salvaguarda da produção científica
nos moldes em que é gerada, cumprindo a responsabilidade histórica e civilizacional no plano
da preservação e da valorização de nosso patrimônio e de nossa memória e herança cultural;
é minha convicção que será mais provável cumprir esse desafio de forma colaborativa com a
sociedade, compondo os argumentos deste artigo, com a cumplicidade ativa e a intermedia-
ção das humanidades digitais.
Se compreendermos a ciência aberta em sua dimensão holística, contemplando as di-
versas componentes e dinâmicas que a constituem/integram, então captaremos sua função
fertilizante e regenerativa, e ela passará a ser uma aliada/ferramenta poderosa e ímpar, por
sua capacidade, intrínseca, desinquietante e envolvente, de promover o conhecimento, sua
partilha e apropriação social e, assim, sua perpetuação e perenidade.
A amplitude da ciência aberta, integrando e convocando os diversos parceiros sociais
e a diversidade de sua rede colaborativa, confirma-a como ecossistema e afirma sua capaci-
dade regenerativa, convidando-nos a falar em ciência circular — harmonizando um sistema
persistente de renovação criadora, certamente de base científica, envolvendo as diversas co-
munidades, criando conhecimento com todos e para todos e garantindo sua sobrevivência e
passagem para as gerações vindouras. A dimensão criativa é intrínseca à produção de conhe-
cimento novo e à inovação, que em ecossistema de abertura convive com a participação da
sociedade, cidadãos e instituições, e contribui para a preservação e a valorização da herança
cultural, o reforço identitário e a construção de comunidade. Por fim, confirme-se o elogio da
indispensabilidade de uma ciência/investigação responsável — social, científica, econômica
e patrimonialmente responsável —, apostada em contextos de preservação, transparência,
reutilização, reprodutibilidade e valorização do conhecimento e da propriedade intelectual.
Entende-se a ciência aberta, em sintonia com o movimento global que tem advogado
tornar a investigação científica, os resultados, os dados e sua disseminação ao alcance de
todos, como um meio de promover a aproximação entre a ciência e a sociedade e a apropriação

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 31-44, Janeiro-Abril 2020 31
Maria Fernanda Rollo

da ciência/conhecimento pela sociedade, constituindo simultaneamente um veículo e um ca-


talisador para seu envolvimento direto (ciência cidadã, coprodução, coinovação…), criando
contextos de proximidade e evidência do recurso à ciência e estimulando sua apropriação por
parte dos cidadãos e das instituições, para além do diálogo, que deve ser persistente, com as
políticas públicas. Sua afirmação compreende, como pressuposto, a salvaguarda e a integrida-
de da informação, organizada, como argumentado, de forma adequada e visando à máxima
utilização e acessibilidade.
Salienta-se o percurso que tem acompanhado a afirmação da publicação em acesso
aberto, os impulsos e as resistências, os jogos de interesse político, econômicos/comerciais e
culturais, que têm composto a história recente e a tendência que se vislumbra no sentido da
cada vez mais expressiva publicação em acesso aberto.
Na sequência do que ficou enunciado, resulta claro que entendemos que ciência aberta
é mais do que a disponibilização em acesso aberto de dados e publicações; é a abertura do
processo científico como um todo e uma nova forma de encarar o processo de produção e
utilização do conhecimento.
Entende-se, assim, a defesa do argumento da atualidade da afirmação e até da centra-
lidade que as humanidades digitais podem deter na conjuntura atual, bem como do contexto
favorável de que se beneficia atualmente, desde logo por meio dos pilares que organizam a
ciência aberta e na intermediação entre ciência/humanidades e sociedade.

Pilares da ciência aberta


Acesso aberto: publicações e dados
•  Repositórios | Diretórios de repositórios
•  Infraestruturas partilhadas | Redes partilhadas
•  Redes comuns | European Open Science Cloud; La Referencia
Investigação aberta | Inovação aberta
Conhecimento participado e colaborativo | Cocriação e coprodução
•  Ciência cidadã
•  Corresponsabilização

•  Ciência para a sociedade


Fonte: <https://www.ciencia-aberta.pt>.

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Desafios e responsabilidades das humanidades digitais: preservar a memória, valorizar o
patrimônio, promover e disseminar o conhecimento. O programa Memória para Todos

A ciência aberta pressupõe, em suma, uma visão e um amplo compromisso político, so-
cial, econômico e cultural. Implica que se assumam mudanças, nos contextos de publicação e
comunicação de ciência, nos modelos de avaliação científica e de financiamento da atividade
científica, e, sobretudo, implica uma mudança cultural de todos os envolvidos no ecossistema
científico e de produção do conhecimento.
A defesa do acesso aberto e da democratização do conhecimento tem um percurso
histórico marcado por momentos e documentos fundamentais, prosseguindo seus propósitos
universais, incluindo ação persistente das organizações internacionais, designadamente a Or-
ganização das Nações Unidas (ONU), a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento
Econômico (OCDE), a Unesco ou a União Europeia. Mais recentemente, importa destacar a
ação do comissário europeu para a investigação, inovação e ciência, Carlos Moedas, na pro-
moção da ciência aberta, e o compromisso expresso do Conselho da União Europeia, em
2016, no qual os Estados-membros realizaram acordos relativos à ciência aberta. No caso de
Portugal, o compromisso foi precisamente assumido no sentido da assunção de uma Política
Nacional de Ciência Aberta (ver Resolução do Conselho de Ministros no 21/2016), propósito
consagrado recentemente na lei da ciência, que constitui objeto do Decreto-lei no 63, de 16 de
maio de 2019, e no qual se indica no artigo 8o que: “As instituições de I&D devem contribuir
para uma ciência aberta, de acordo com as melhores práticas internacionais, garantindo o
acesso livre e aberto do público ao conhecimento científico e promovendo o envolvimento e
interação com a sociedade.”
Vários países da América Latina, especialmente o Brasil, têm práticas enraizadas no cam-
po da ciência cidadã e da ciência colaborativa e têm tido uma ação notável no âmbito do aces-
so aberto, ampliado, no nível de toda a região, por meio da rede de repositórios La Referencia
(<http://www.lareferencia.info/pt/>), a que Portugal se associou recentemente. Portugal tem
sido pioneiro no movimento de acesso aberto no plano internacional e, liderando-o em vários
momentos, por meio de suas instituições de ensino superior, tem estado na linha da frente no
que diz respeito à implementação de práticas de disponibilização de publicações científicas
em acesso aberto, começando a introduzir referenciais e políticas/regulamentos institucionais
desde o início da década de 2000. A disponibilização de publicações científicas em acesso
aberto tem sido amplamente possibilitada pelo desenvolvimento de repositórios científicos (o
primeiro datado de 2003), consolidados em torno do projeto Repositório Científico de Acesso
Aberto de Portugal (RCAAP) (desde 2008) e de sua comunidade.
Os repositórios e as redes de repositórios são, hoje, determinantes para o desenvolvi-
mento das diversas dinâmicas que temos evocado, bem como para o desenvolvimento de

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 33-44, Janeiro-Abril 2020 33
Maria Fernanda Rollo

infraestruturas e redes de infraestruturas de investigação e outras ferramentas que permitem


e potenciam a partilha de conhecimento em meio digital.
É sobre todas elas, divulgando e promovendo sua existência e utilização, que as humani-
dades digitais têm também de se debruçar, contribuindo mesmo no sentido de sua organiza-
ção e classificação de conteúdos.

Inteligibilidade

E ntre os diversos eixos fundamentais de atuação das humanidades digitais, cumpre desta-
car uma dimensão cada vez mais vital, relativa à organização do próprio patrimônio digi-
tal, tal como tem sido evocado e pontuado ao longo do texto, mas que cumpre singularizar. As
humanidades e, em seu papel específico e de intermediação, as humanidades digitais desem-
penham papel fundamental na concepção e na reflexão intelectual, bem como por meio de
sua ação efetiva em todos os níveis, setores e vetores no plano da organização/inteligibilidade
da informação, contribuindo efetivamente para sua condição FAIR. Refiro-me, entre outros
aspectos, ao nível de formação, sensibilização, contribuição científica, desde a intervenção no
plano das ciências documentais e de como estas terão também de se adaptar às exigências da
realidade digital, da linguística, do conhecimento e da interpretação da cultura e sociedade,
ou, é claro, na articulação com outras áreas científicas. Sua intervenção, com essa abrangên-
cia, terá de ir acontecendo, acompanhando ou, desejavelmente, antecipando a explosão em
curso de produção de conteúdos digitais, que, sem inteligibilidade em sua organização, de
pouco servirão à comunidade acadêmica e à sociedade em geral.

Ciência e sociedade – responsabilidade e compromisso

P or fim, uma dimensão essencial, em que as humanidades digitais ocupam lugar central,
ocorre no contexto já evocado das relações e interface entre ciência e sociedade e na
compreensão intelectual e cultural de domínios em afirmação, como o da investigação res-
ponsável e inovação.
A investigação e os processos de inovação desenvolveram-se exponencialmente ao lon-
go do século XX, acompanhando  a necessidade e a tendência para a democratização do
acesso ao conhecimento e de seus benefícios para a sociedade; em suma, para a melhoria da
qualidade de vida das pessoas.

34 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 34-44, Janeiro-Abril 2020
Desafios e responsabilidades das humanidades digitais: preservar a memória, valorizar o
patrimônio, promover e disseminar o conhecimento. O programa Memória para Todos

Expressões como “responsabilidade  social”, “investigação responsável (RRI)”, “public


engagement”, “investigação colaborativa”, “cocriação” ou “ciência cidadã” constituem, hoje,
uma evolução na forma como a ciência é pensada, criada, comunicada e apropriada.
Essa evolução tem cristalizado a distinção entre a criação do conhecimento, a compreen-
são e a utilização do conhecimento, e a divulgação e a comunicação do conhecimento.
Há, porém, uma convergência no sentido de incluir e integrar os diferentes atores sociais
em contextos de participação ativa nos processos científicos e de inovação, de cocriação e
intervenção cívica na definição de agendas de investigação, traduzindo, no fundo, a neces-
sidade de articular e alinhar os processos e os resultados da ciência com as expectativas, as
necessidades e os desafios da sociedade.
Essa visão tem sido promovida e desenvolvida, recentemente, no âmbito da Comissão
Europeia, sobretudo plasmada no conceito de responsible research and innovation e na estra-
tégia Horizonte 2020, em programas como o “Ciência com e para a Sociedade”, mas que vai
adquirindo também características únicas e autonomizando-se por meio de práticas e projetos
de ciência cidadã ou de DIY  Science, em que os cidadãos assumem o papel de cientistas,
contribuindo  ativamente em projetos  científicos, nomeadamente pela recolha e análise  de
grandes quantidades de dados, com o objetivo de responder a problemas reais que decorrem
da identificação de necessidades e desafios da própria sociedade.
Refira-se como todas essas dinâmicas têm sido possibilitadas e ampliadas a partir do
desenvolvimento da realidade digital e como essas dinâmicas transformadoras no plano social
e cultural constituem terreno e observação das humanidades.
De resto, será oportuno referir, na sequência do que se tem defendido, a indispensabi-
lidade do envolvimento e a colaboração ativa das humanidades e das humanidades digitais
na assunção da Agenda 2030, para a superação de qualquer um dos 17 Objetivos de Desen-
volvimento Sustentável, ou, para um futuro próximo e mais específico ao enunciado da União
Europeia para os próximos anos, na prossecução das cinco missões projetadas para o próxi-
mo Programa-Quadro de Investigação e Inovação – Horizonte Europa (Alterações Climáticas,
Cancro, Oceanos, Cidades Inteligentes, Solo e Alimentação). Nenhuma das missões centra-se,
especificamente, em tópicos dos universos científicos das ciências sociais, artes e humanida-
des, embora todas, de alguma forma, evoquem o interesse de sua presença, e a Missão das
Alterações Climáticas afirme mesmo, em sua designação, incluir a transformação social.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 35-44, Janeiro-Abril 2020 35
Maria Fernanda Rollo

Memória para Todos

O programa Memória para Todos® (<https://memoriaparatodos.pt>) tem explorado al-


gumas das possibilidades decorrentes do encontro entre as humanidades e os recur-
sos digitais, sustentando e ilustrando simultaneamente o que se defendeu neste texto.
Memória para Todos é um programa de investigação empenhado na promoção do estu-
do, da organização e da disseminação do patrimônio histórico, cultural, tecnológico e digital
relativo a Portugal, desenvolvido em estreita relação com arquivos e bibliotecas, instituições
da administração pública, municípios e autarquias, entidades privadas, escolas e associações
locais. Está institucionalmente enquadrado pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa, pelo Instituto de História Contemporânea e pelo Centro
República. É, por natureza, um projeto colaborativo, sob a coordenação de uma equipe de in-
vestigação composta por Maria Fernanda Rollo, Maria Inês Queiroz, Filipe Silva, Inês Castaño,
Luisa Seixas, contando com uma vasta equipe de colaboradores da academia e da sociedade
em geral.
O programa registra, preserva e partilha histórias e memórias, incluindo testemunhos
orais, documentação e objetos pessoais e familiares, valorizando as histórias de vida e das
comunidades.
Os conteúdos reunidos (como objetos, fotografias, testemunhos em áudio e vídeo, sons
e outros registros), com a participação e o envolvimento dos cidadãos e das instituições, são
disponibilizados online, em acesso aberto.
As primeiras ações realizadas remontam a 2009-2010, no âmbito das Comemorações
para o Centenário da República,5 lançando o desafio à comunidade portuguesa para a par-
tilha de memórias, testemunhos, objetos que retratassem a implantação da República em
Portugal (5 de outubro de 1910) e a história da Primeira República (1910-1926), em efetivo
ambiente de ciência cidadã. Foi, então, possível apreender a riqueza e a extensão de objetos,
em especial de documentos e fotografias, que existiam na posse de particulares e, muito
especialmente, a(s) memória(s) que perduravam entre herdeiros, familiares de pessoas que
ainda viveram os acontecimentos de outubro de 1910 e nos anos seguintes. Ficou muito clara
a relevância desses contributos para o aprofundamento e o enriquecimento da história do
período da Primeira República. Importa assinalar que à Primeira República sucedeu, depois
de um período de ditadura militar/nacional, o Estado Novo, e, como esse regime autoritário
impôs um contexto de rejeição e censura da herança e do legado político e cultural do ideário
e da prática republicanos, tornaram-se assim mais preciosos os testemunhos físicos que então

36 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 36-44, Janeiro-Abril 2020
Desafios e responsabilidades das humanidades digitais: preservar a memória, valorizar o
patrimônio, promover e disseminar o conhecimento. O programa Memória para Todos

“reapareceram”. O legado dessa recolha, que ilustrou um conjunto muito vasto de exposições,
publicações, vídeos, performances, foi partilhado com várias instituições e acolhido, virtual-
mente, pelo Centro República (<https://www.centrorepublica.pt>).
A partir de então, e especialmente a partir do projeto Portugal 1914 (a que já faremos
referência mais detalhada), o programa formalizou-se e desenvolveu-se, assumindo como mis-
são a recolha, a partilha e a preservação de memórias e testemunhos, a democratização do
acesso às ferramentas da investigação histórica, a promoção de dinâmicas colaborativas de
investigação, a produção e a disseminação de conhecimento e a criação de novas fontes para
a investigação, centrando-se nas dinâmicas sociais da construção da memória como fator
essencial para a definição de identidade. O programa Memória para Todos assume ainda,
como propósitos, a promoção da educação patrimonial, a literacia e o desenvolvimento de
competências digitais, e a democratização do acesso às ferramentas da investigação histórica.
Memória para Todos inclui, atualmente, um amplo conjunto de projetos, constituindo
um programa interdisciplinar e colaborativo, distinguindo-se pelos métodos de envolvimento
das comunidades, pela aplicação de diagnósticos e soluções de base científica sobre desafios
sociais e pelo desenvolvimento de produtos em acesso aberto, partilháveis e reutilizáveis.
Nesse sentido, adota metodologias de registro, organização e divulgação de conteúdos
específicos, de acordo com a natureza de materiais, suportes e informação em causa, nomea-
damente testemunhos orais, histórias de vida, espólios e coleções privadas e familiares, por
meio da criação de bases de dados e de processos digitais de conservação e disponibilização
de dados. Convoca e aplica várias metodologias, associadas às ciências documentais, à histó-
ria, à museologia, ao patrimônio, às ciências sociais em geral, devendo-se salientar as práticas
de história oral, método biográfico, prosopografia, história local, georreferenciação, compondo
um ambiente evidentemente comum e frequentado pelas humanidades digitais.
No desenvolvimento do programa, os cidadãos têm sido convidados a partilhar suas me-
mórias pessoais e familiares relativas a determinados momentos e processos históricos e, em
muitos casos, desafiados a envolver-se e a fazer parte ativa do programa; as comunidades têm
sido convidadas e suscitadas no mesmo sentido, compreendendo e assumindo fazer parte e
contribuir para a história de sua própria comunidade (ver, em particular, os projetos Memórias
das Avenidas e Memórias das Aldeias).
Por tudo isso, e constituindo um programa de atividades, o Memória para Todos aplica
também metodologias específicas de envolvimento comunitário, dinamização social e produ-
ção de conhecimento, tendo em vista o registro, a sistematização e o mapeamento de infor-
mação e dados provenientes da população em geral.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 37-44, Janeiro-Abril 2020 37
Maria Fernanda Rollo

O leque de metodologias convocadas é ainda mais amplo, correspondendo às especi-


ficidades de cada projeto, incluindo domínios menos afins às áreas das humanidades e das
ciências sociais, nomeadamente no campo das ciências da vida.
Depreende-se sua natureza interdisciplinar e multidisciplinar, tanto no nível da concep-
ção e do desenvolvimento do programa em geral quanto no do quadro específico de cada
projeto que promove.
A dimensão multidisciplinar do programa amplia-se quando se trata de explorar os mate-
riais recolhidos e, em outro plano, captam-se, acompanham-se e exploram-se os conteúdos, as
relações e o enquadramento social em que se desenvolvem. Projetos como Memórias das Ave-
nidas, Memórias de São Domingos, Memórias das Aldeias, entre outros, convocam as áreas
das neurociências e da psicologia, especialmente a propósito do impacto da participação no
programa Memória para Todos de pessoas/comunidades específicas.

Faça história partilhando a sua

O projeto Portugal 1914 (<www.portugal1914.org>) foi lançado em 2012, compreen-


dendo um portal destinado a disponibilizar e a recolher informação sobre a história
e o impacto do envolvimento português na Primeira Guerra Mundial. Incluiu várias atividades
editoriais e exposições e uma forte componente de recolha de memórias e conteúdos, ampli-
ficada pelas redes sociais, e a organização de ações específicas de recolha de memórias, que
passamos a designar de Dias da Memória (períodos específicos em que as pessoas são convi-
dadas a deslocar-se a determinados locais para partilhar suas memórias e objetos associados
e onde são recebidas por uma equipe composta por vários especialistas, estando presentes
os recursos necessários para o registro de áudio e vídeo das entrevistas e a digitalização ou
fotografia dos diversos materiais). A ação de recolha de memórias decorreu à escala nacio-
nal e virtualmente na França. Os primeiros Dias da Memória realizaram-se na Assembleia da
República — Parlamento português, entre 17 e 19 de outubro de 2014, com a participação
de dezenas de pessoas, cujas contribuições foram registradas em áudio e vídeo e os materiais
que partilharam foram integralmente digitalizados ou fotografados. A descrição e a caracteri-
zação de todos esses conteúdos foram integradas em bases de dados relacionais. Seguiram-
-se iniciativas semelhantes em Tomar (fevereiro de 2015), Amadora (outubro de 2015), Vila
Franca de Xira (setembro de 2016), continuando o interesse e o convite de vários municípios.
Seus resultados integram o programa internacional Europeana 1914‐1918. Terá sido a pri-
meira iniciativa de crowdsourcing dessa envergadura realizada em Portugal, tendo contado
com a colaboração de várias entidades e a divulgação pela televisão nacional, que elaborou

38 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 38-44, Janeiro-Abril 2020
Desafios e responsabilidades das humanidades digitais: preservar a memória, valorizar o
patrimônio, promover e disseminar o conhecimento. O programa Memória para Todos

um vídeo promocional apresentando pela primeira vez a consigna do programa Faça história
partilhando a sua. O projeto foi um sucesso, pelo envolvimento que suscitou, pela dimensão,
riqueza e diversidade do patrimônio reunido (todo ele reproduzido e uma parte, por solicitação
de seus proprietários, doada a museus, arquivos e bibliotecas), e ainda sob o ponto de vista
historiográfico, permitindo aprofundar o conhecimento sobre a história do envolvimento na
Primeira Guerra nomeadamente pelo acesso a fontes até então inéditas. Envolveu uma vasta
equipe de investigadores e de voluntários, em Portugal e na França. Além disso, promoveu a
organização e a colaboração de várias escolas, bem como a participação de alunos, que de-
senvolveram projetos de recolha no âmbito de suas atividades escolares. O desenvolvimento
de Portugal 1914 envolveu já o desenvolvimento de um conjunto de ferramentas digitais de
gestão da recolha e organização e disponibilização da informação — bases de dados, edição
de conteúdos, análise de informação.
A partir de então, são diversos os projetos realizados por iniciativa do programa ou por
desafio de entidades. Destaquem-se, no contexto deste artigo, alguns aspectos que se rela-
cionam ou se inscrevem no quadro geral das humanidades digitais, ou, dito de outra forma, o
recurso às ferramentas digitais que têm acompanhado e, até de certa forma, contribuído para
o desenvolvimento e a sucessiva superação de objetivos e desafios no âmbito do programa
Memória para Todos.
Podemos, de certa forma, replicar o percurso deste artigo, começando por salientar o
patrimônio digital existente ou constituído a partir da recolha de memórias e testemunhos,
por meio do registro digital oral ou em vídeo, sua patrimonialização, registro, organização,
edição, compondo um renovado legado, cuja salvaguarda e preservação cumpre garantir. A
par desses testemunhos, a extensão, a diversidade e a riqueza de objetos associados, cujo
registro, organização e reprodução digital se tem realizado. Tudo quanto se tem recolhido,
incluindo a caracterização dos entrevistados, é registrado, descrito, classificado em bases de
dados relacionais, acrescentando-se ferramentas de classificação e organização relacionando
os registros em áudio e vídeo. Acrescente-se a articulação com a informação de contextua-
lização recolhida, cumprindo preceitos e procedimentos rigorosos de classificação, adotando
ontologias e semânticas normalizadas. O conjunto alargado de investigadores associados aos
diversos projetos partilha um contexto de formação científica e técnica adquirida previamente
ou no âmbito do programa em diversas áreas — bases de dados e edição digital, em par-
ticular. Em vários projetos, algum grau de formação ou aquisição de competências digitais
envolve intervenientes externos ao programa — incluindo estudantes de escolas secundárias
ou pessoas mais velhas e, em alguns casos, já aposentadas, como nos projetos Memórias das

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 39-44, Janeiro-Abril 2020 39
Maria Fernanda Rollo

Avenidas ou Memórias de São Domingos. Qualquer um dos projetos pressupõe uma articula-
ção dinâmica no nível da comunicação por meio digital.
Devem-se salientar também, constituindo um desafio permanentemente renovado e am-
pliado, as formas de colaboração a distância, por meio digital. Para além da submissão de
conteúdos, mediante formulários específicos cada vez mais elaborados, como ocorre nessa
fase com um dos projetos mais recentes, dedicado à recolha de testemunhos de emigrantes e
de trabalhadores portugueses, assumiremos em breve o desafio de, na fase mais precoce pos-
sível, envolver a comunidade acadêmica, os investigadores que estudem temas semelhantes a
participar em um cenário de investigação colaborativa.
Conforme referido, uma das condições essenciais do Memória para Todos é sua divulgação
em acesso aberto e a promoção da máxima acessibilidade, respeitando rigorosamente o
regulamento da proteção de dados e os princípios da propriedade intelectual, o que significa
o esforço permanente de atualização e adaptação aos normativos/procedimentos que
proporcionem sua integração e/ou interoperabilidade com um conjunto de plataformas, desde
logo portais das entidades parceiras e infraestruturas mais ou menos especializadas. Todas
as fases de desenvolvimento de qualquer um dos projetos, e o programa em geral, evocam
cenários de multidisciplinaridade nas áreas de arquivística e ciências documentais em geral,
informática, ciências da comunicação, design e o amplo conjunto de disciplinas diretamente
associadas a projetos específicos.
Vários projetos focam conjunturas relevantes da história contemporânea de Portugal, e
alguns, da iniciativa do Memória para Todos, têm sido desenvolvidos, como o Portugal 1914,
com o apoio de entidades de âmbito nacional. Refiram-se o projeto dedicado às memórias
da Revolução de Abril e da Descolonização (acompanhado pela RTP - Rádio e Televisão de
Portugal e articulado com um programa editorial de quase duas centenas de episódios tele-
visivos, organizando Dias da Memória no quartel histórico do Carmo, da Guarda Nacional
Republicana) e o projeto Memórias da Resistência e da Liberdade, em articulação com o
Museu do Aljube, recolhendo memórias e testemunhos de presos políticos durante o Estado
Novo e, é esse nosso propósito mais recente, de seus familiares. Destaque-se, a propósito, uma
das vertentes do programa, dedicada à promoção da utilização dos conteúdos recolhidos e
organizados por parte da comunidade acadêmica e da sociedade em geral. Nesse caso, para
além da contribuição para o conteúdo expositivo do Museu do Aljube, a disponibilização de
informação para trabalhos de investigação, nomeadamente teses e dissertações acadêmicas,
compondo o escopo de ferramentas digitais à sua disposição.

40 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 40-44, Janeiro-Abril 2020
Desafios e responsabilidades das humanidades digitais: preservar a memória, valorizar o
patrimônio, promover e disseminar o conhecimento. O programa Memória para Todos

Uma nota para referir o conjunto de projetos dedicados ao conhecimento e ao registro de


memórias associadas ao mundo do trabalho — Memórias da Fábrica de Sacavém, da Corta-
doria Nacional do Pelo, do Centro Fabril de São João da Madeira (envolvendo diversos setores
de atividade), ente outros, e sua articulação com o novo projeto Europe at Work, a apresentar
brevemente pela Europeana.
Alguns projetos têm tido como foco comunidades específicas, devendo-se destacar Memó-
ria das Avenidas, que conta com um grupo de colaboradores — os Maiores das Avenidas —,
muitos dos quais moradores desse bairro histórico da cidade de Lisboa, tal como acontece com
o projeto Memórias de São Domingos. Está em curso um projeto de recolha de Memórias das
Aldeias, a propósito do qual cumpre salientar a intenção do projeto no sentido da contribuição,
para além da identidade das comunidades, para a promoção e a valorização do desenvolvimento
e da coesão social e territorial. Nesse caso, acrescenta-se ainda a disponibilidade de reutilização
de conteúdos para enriquecer a promoção turística. Qualquer um desses projetos tem tido im-
pacto social em outros domínios, incluindo as áreas da saúde, contribuindo para o combate às
doenças da memória e ao isolamento ou o acompanhamento do envelhecimento ativo.
Por fim, cumprindo a missão definida e continuando com os objetivos apontados, os
projetos que constituem o programa Memória para Todos decorrem da estratégia, do percurso
de investigação e do compromisso social e científico prosseguidos. Assim, parte dos projetos
mais recentes prossegue como propósito à contribuição para a Agenda 2030 e para a supe-
ração de um dos desafios societais mais complexos que hoje se apresentam à humanidade,
associado às alterações climáticas. É nesse contexto que se enquadram projetos como o dedi-
cado à Lagoa de Óbidos, ao Parque da Gorongosa em Moçambique, às reservas da biosfera,
ou o projeto Living Rivers, procurando, a partir da recolha de memórias de tempos passados
e das perceções que persistem, contribuir para o conhecimento e a consciencialização das
alterações em curso.
O compromisso do programa Memória para Todos é, em suma, baseando-se na prática
científica, como é sua matriz, para com as pessoas e as comunidades e o contexto em que
habitam, envolvendo-as em diversos planos e procurando uma dinâmica colaborativa que
promova a preservação e a valorização da memória, a criatividade e a criação de novo co-
nhecimento, garantindo sua partilha e promovendo sua acessibilidade, constituindo, portanto,
uma interface e uma intermediação entre a academia e a sociedade.
O recurso às ferramentas digitais acontece, natural e inevitável, procurado e desenvolvi-
do, refletindo e apropriando-se do contexto digital pelas possibilidades que proporciona e pela
forma como molda e condiciona a produção do conhecimento e a sociedade em geral, como
oportunamente poderá ser percebido também por meio das Memórias do Digital.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 41-44, Janeiro-Abril 2020 41
Maria Fernanda Rollo

Conclusão

S e é certo que a revolução digital é impiedosa e deixará para trás todos os que não se pre-
pararem, é também verdade que o desenvolvimento científico e tecnológico que a produ-
ziu e alimenta e as transformações sociais e culturais que a refletem terão de encontrar forma
de conciliar e superar as diversas tensões que vão originando. Em todo caso, é imprescindível
que se reflita, se definam caminhos e se estruturem estratégias, que deverão ser, a benefício
de seu sucesso, cada vez mais colaborativas e contar com o empenho e a responsabilidade
dos diversos atores — incluindo os responsáveis pelas políticas públicas e pela criação de
estruturas adequadas aos cientistas e cidadãos em geral.
As humanidades digitais têm um papel a desempenhar, no nível das humanidades, da co-
munidade científica e nas diversas interconexões que podem potenciar. Parece-me imperativo
que as humanidades persistam na renovação de suas dinâmicas metodológicas e mesmo epis-
temológicas, no sentido de se adaptarem às mudanças em curso, contribuindo, em particular,
para a reflexão e a interpretação da transformação dos próprios processos de aprendizagem
e de investigação, compreendendo sua relação com as comunidades e uma sociedade em que
a realidade digital é cada vez mais dominante.
A afirmação das humanidades digitais tem ocorrido sem a indispensabilidade de sua
formalização ou institucionalização disciplinar, servindo aos investigadores e às diversas co-
munidades. A presença das humanidades digitais em determinadas esferas, eixos de atuação,
como os salientados, tem se revelado muito positiva, acentuando a relevância e até singulari-
dade de sua contribuição.
Programas como o Memória para Todos, projetos como os que o integram, refletem de
forma muito expressiva a importância e as possibilidades que o recurso a ferramentas digitais
ou às humanidades digitais proporciona. Programas dessa natureza podem realmente ser
determinantes e inspiradores para a promoção do conhecimento a partir das humanidades,
mas em ambiente de multidisciplinaridade, assumindo um claro compromisso com a socieda-
de e a sustentabilidade. Será porventura altura de incluir no escopo de suas próximas ações a
captação e o registro da(s) Memória(s) da Sociedade Digital.

42 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 42-44, Janeiro-Abril 2020
Desafios e responsabilidades das humanidades digitais: preservar a memória, valorizar o
patrimônio, promover e disseminar o conhecimento. O programa Memória para Todos

Notas

1 Não abordo ou desenvolvo, nem é propósito deste artigo, a definição de humanidades digitais ou a am-
pla problemática e profusão de questões que suscita. Existe uma vasta e atualizada bibliografia disponível
sobre o tópico, devendo-se destacar, pela consagração da temática, Susan Schreibman, Ray Siemens e John
Unsworth ([Ed.] Companion to digital humanities. Oxford: Blackwell, 2004). Dever-se-á ver, pela pertinência
das questões que apresenta e pelo conjunto de referências que contempla, o recente artigo de Osiski (2019).
2 O projeto Desir desenvolveu-se nos últimos três anos com o objetivo de reforçar a sustentabilidade do
Dariah, estabelecendo-o como um parceiro fundamental junto das comunidades acadêmicas, em particular
das artes e humanidades. O consórcio Desir é composto por vários membros do Dariah, por representantes
dos futuros membros e por especialistas externos, tendo sido desenvolvidos esforços para a inclusão de um
conjunto amplo de países, de modo a conferir-lhe uma escala verdadeiramente europeia. Portugal é represen-
tado pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa — Maria Fernanda Rollo
(coord.), Maria Inês Queiroz, Inês Castaño, Rosário Jorge, João Fernandes, Filipe Silva —, liderando a work
package que trabalha a dimensão da confiança e a fiabilidade da infraestrutura, tendo como objetivo principal
propor recomendações para seu desenvolvimento sustentável.
3 Dariah (Digital Research Infrastructure for Arts and Humanities) (<https://www.dariah.eu>) foi criado como uma
rede e uma infraestrutura pan-europeia. Em 2014, após sua expansão e consolidação, que envolveu a inclusão
do Dariah no roteiro Esfri, essa infraestrutura tornou-se uma Eric (European Research Infrastructure Consortium).
4 Veja-se o projeto Time Machine, financiado pela Comissão Europeia (<https://actu.epfl.ch/news/unleashin-
g-big-data-of-the-past-europe-builds-a-ti/>).
5 A Comissão para as Comemorações do Centenário da República foi nomeada pelo presidente da República
com a seguinte composição: Artur Santos Silva (presidente), Maria Fernanda Rollo (comissária executiva),
Francisco Sarsfield Cabral, Raquel Henriques da Silva e João Serra, substituído por Rui Vieira Nery.

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44 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 44-44, Janeiro-Abril 2020
Artigo

Narrativas históricas em disputa:


um estudo de caso no YouTube
Historical narratives in dispute: a YouTube case study
Narrativas históricas en disputa: un estudio de caso de YouTube

Odir FontouraI*

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942020000100004

I
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil.

*
Doutorando em História pela UFRGS ([email protected]). ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-0645-9766.

Artigo recebido em 16 de julho de 2019 e aprovado para publicação em 3 de dezembro de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 45-63, Janeiro-Abril 2020 45
Odir Fontoura

Resumo
Este artigo pretende tratar das diferentes narrativas que envolvem a disciplina da história na plataforma YouTube.
A partir de um mapeamento, foi analisada uma série de vídeos, e de uma análise quantitativa e qualitativa desses
materiais foi possível inferir, por um lado, uma inexpressividade das produções feitas por instituições públicas ou uni-
versitárias e, por outro, um grande número de vídeos que trazem uma visão revisionista ou contestadora da história
acadêmica. Concluiu-se, a partir dessas investigações, a respeito da necessidade de uma maior atuação da academia
e dos historiadores profissionais nesses espaços de produção e de discussão de narrativas, o que poderia responder
a uma demanda educacional identificada que ocorre tanto dentro do espaço físico e formal da sala de aula quanto
fora dele, em espaços online que, visando a se constituir em oposição à escola formal, oferecem-se como alternativas
nas disputas das narrativas da história.

Palavras-chave: História; YouTube; Narrativas.

Abstract
This article intends to deal with the different narratives that involve the discipline of history in the YouTube platform.
A series of videos was analyzed, and from a quantitative and qualitative analysis of these materials, it was possible
to infer, on the one hand, an inexpressiveness of the productions made by public or university institutions and, on
the other hand, a large number of videos that bring a revisionist view of academic history. It was concluded from
these investigations about the need for a greater action by academia and professional historians at these places
of production and discussion of narratives, which could respond to an identified educational demand that occurs
both within the physical space and formal of the classroom as well outside, in some online spaces where, in order
to constitute and show themselves in opposition to the formal school, they offer themselves as alternatives in these
disputes of the narratives of history.

Keywords: History; YouTube; Narratives.

Resumen
Este artículo pretende tratar las diferentes narrativas que involucran la disciplina de la historia en la plataforma de
YouTube. A partir de un mapeo, fue analizada una serie de videos, de los cuales fue posible verificar, por ejemplo:
la inexpresividad de las producciones realizadas por instituciones públicas o universitarias y una gran cantidad de
videos que brindan una visión revisionista o desafiante de la historia académica. Se concluyó a partir de estas inves-
tigaciones sobre la necesidad de una mayor acción por parte de académicos e historiadores profesionales en estos
espacios de producción y discusión de narrativas, que podrían responder a una demanda educativa identificada que
ocurre tanto dentro del espacio físico de la clase formal como fuera, en espacios online donde, para constituirse
en oposición a la escuela formal, se ofrecen y se muestran como alternativas en las disputas de las narrativas de la
historia.

Palabras clave: Historia; YouTube; Narrativas.

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Narrativas históricas em disputa: um estudo de caso no YouTube

Apresentação: sobre o lugar da educação

T radicionalmente, a escola e a universidade constituíram-se em espaços privilegiados e que


garantiam o monopólio do saber autorizado e legítimo. Hoje, quando usamos esses ter-
mos, rapidamente nos vem à mente a materialidade típica dessas instituições: parece difícil
pensar a “escola” sem imaginar o prédio que a constitui, com seus corredores, bibliotecas,
salas de aula, e assim por diante. O mesmo a respeito da universidade e seus campi, que
ocupam espaços significativos na malha urbana. É interessante notar, no entanto, que essa
“corporeidade” das instituições de ensino é algo relativamente novo na história da educação:
os gregos antigos, salvo poucas exceções, não viam a escola como a conhecemos hoje, e até
mesmo no período medieval, quando nasceram as universidades, elas não vieram junto, pelo
menos não de imediato, com os campi que hoje lhes são indissociáveis.
Existem indícios de que isso esteja novamente mudando. Há quase 20 anos, Pierre Lévy
(1999: 171) discutiu sobre o avanço da internet e a criação do que chamou “ciberespaço”,
destacando diversos pontos a respeito dessa renovação, em particular no âmbito da educação:
a internet facilitou o compartilhamento de informações, acelerou a rapidez na comunicação e
diluiu as barreiras físicas entre os estudantes e o conhecimento. Anos mais tarde, Anita Lucchesi
(2014: 49) assumiu que, apesar de seguirmos nessa “revolução dos meios digitais”, ainda não
desenvolvemos as competências necessárias para lidar criticamente com o mar de informações
e conteúdos que surgiram em consequência da realocação dessas fronteiras do saber.
Até agora, nada indica que a conclusão de Lucchesi esteja superada. Para além dos mu-
ros institucionais, estudantes — do ensino básico à pós-graduação — seguem consumindo
redes sociais, participando de grupos de discussão, ouvindo podcasts e assistindo a vídeos e
documentários sobre os mais variados temas, inclusive sobre assuntos que até então eram
tratados apenas nas salas de aula.1 Tendo em vista o que diversos autores têm chamado uma
ágora2 virtual, fazem-se necessárias algumas perguntas: Qual tem sido o lugar da escola, da
universidade ou do saber “acadêmico” nesse novo espaço público, em que os conhecimentos
(ou a oferta deles) parecem ser tão diversos e plurais? Existiriam disputas entre eles? Em ou-
tras palavras, e ainda mais especificamente: como a história tem sido apresentada em um dos
espaços mais populares desse universo, a saber, o YouTube?

O estudo de um espaço particular: o YouTube

P ara responder a esses questionamentos, foi feita uma investigação, ao longo de aproxi-
madamente dois meses, no site YouTube,3 entre o fim do ano 2018 e o começo de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 47-63, Janeiro-Abril 2020 47
Odir Fontoura

A partir do mecanismo de busca próprio da plataforma, foram realizadas buscas a partir da


palavra-chave “história”, seguindo o critério da “maior visualização”, ou seja, foram anali-
sados os vídeos por ordem decrescente de número de acessos. O recorte para essa pesquisa
deu-se entre os vídeos cuja faixa de visualizações foi de 7,6 milhões de acessos e os que
compreendiam a faixa das 50 mil visualizações, que o site entendia que pertenciam ao tema
da história.4
Dessa busca, foram selecionados 80 vídeos,5 catalogados, inicialmente, em dois grupos
principais: desse conteúdo, 51 produções (mais de 63%) parecem filiar-se a uma narrativa
acadêmica ou tradicional da história, e outros 28 vídeos (35%) parecem propor revisões,
questionamentos e críticas dessa historiografia. Os vídeos inseridos no primeiro grupo chega-
ram quase à marca de 50 milhões de acessos e foram inseridos nesse recorte por responder
positivamente aos seguintes critérios: 1) Têm uma preocupação com referências, citações ou
indicações de bibliografia durante ou no final dos vídeos, de modo a sustentar as afirmações
ali passadas? 2) Há uma preocupação em nível de currículo formal (preparação para provas
escolares, de vestibular ou aprofundamento de discussões universitárias) que tenha guiado a
produção do conteúdo? Já o segundo grupo ultrapassou a marca de 20 milhões de visuali-
zações. Os vídeos desse segundo recorte responderam positivamente à seguinte pergunta: o
conteúdo apresenta-se como resposta a uma crítica à instituição da escola ou da academia,
de modo a oferecer conteúdos que foram deliberadamente ignorados, escondidos ou desvir-
tuados pelos historiadores profissionais?
Este artigo tem por objetivo fazer uma análise, em primeiro lugar quantitativa, mas tam-
bém qualitativa, desses vídeos, com ênfase no segundo grupo em particular, que ocupa mais
de um terço do conteúdo do YouTube, no que diz respeito aos conteúdos históricos, e propor
uma dupla reflexão, sendo 1) tanto a respeito do lugar que a história tem ocupado na internet
quanto 2) sobre a autoridade que, comumente sendo atribuída à ciência ou à academia, tem
sido objeto de disputa, pelos mais diversos atores e narrativas, sob o viés dos conteúdos histó-
ricos. Isso ocorre em um espaço que se, por um lado, deu voz a um público imenso, que antes
da internet apenas consumia e era receptor de conteúdos (Pellegrini et al., 2009: 2), agora, por
outro, parece provocar a academia a repensar seu lugar nessas novas configurações políticas e
culturais e, portanto, públicas. Essa pesquisa pretende servir como aproximação inicial a esse
objeto, a saber, os vídeos que falam sobre história no YouTube, podendo servir, eventualmente,
como ponto de partida, em razão de seu mapeamento estatístico, para outras investigações
ou comparações futuras.

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Narrativas históricas em disputa: um estudo de caso no YouTube

A história da escola na (ou para a) internet

O primeiro grupo de vídeos e canais, que procura manter uma coerência com as narrativas
acadêmicas ou científicas, pode ser dividido em pelo menos outras seis subcategorias. Se
for levado em conta o número de acessos, surgem, em primeiro lugar, os canais de cultura pop
(1), como o canal Nostalgia[i], por exemplo, com seus vídeos que abordam a Segunda Guerra
Mundial[a][b], a guerra fria[c] e a história do Brasil[d][e], totalizando, pelo menos, 27 milhões de
acessos. Depois dele, o canal Nerdologia[ii] fala de temas como a história da imprensa[f], do
dinheiro[g] ou do voto[h], e totaliza, pelo menos, 678 mil visualizações. Apesar de os canais não
serem específicos da história (vídeos de história dividem espaço com outras produções, sobre
cultura pop, séries, jogos ou outras áreas do conhecimento), ambos os canais têm preocupa-
ção com referências bibliográficas, que ocasionalmente aparecem nas descrições dos vídeos,
e com validações acadêmicas a respeito das informações ali passadas. Por exemplo, em seu
vídeo sobre ditadura, Felipe Castanhari (Nostalgia), que não é historiador, aponta o auxílio
do professor Carlos Mattos, formado em história pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE) e pós-graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Já Felipe
Figueiredo, do canal Nerdologia, é formado em história pela Universidade de São Paulo (USP).
O alto número de acesso a esse tipo de conteúdo parece indicar-nos que existe procura e
interesse dos consumidores do YouTube por esse tipo de produção.6
Por outro lado, se formos levar em conta o número de vídeos selecionados na pesquisa, o
grupo que aparece com mais força é o de vídeos e canais voltados para preparação do Exame
Nacional do Ensino Médio (Enem) e de pré-vestibulares de forma geral (2). Aqui, somam-se
30 vídeos, sobre os mais diversos conteúdos, de “resumões” de história antiga até de história
do Brasil republicano, ao longo de 10 canais diferentes. Entre eles, os canais Débora Alladim[iii],
Aulalivre[iv], Pró-Universidade Online[v] e Se Liga Nessa História[vi], só para citar os que as cifras
de acesso, na pesquisa, chegaram a acima de 1 milhão cada um. A grande maioria desses
canais têm veículos alternativos, em que se vendem pacotes de vídeos mais completos e mais
aprofundados sobre as temáticas apresentadas no YouTube. Conforme já apontou Tarcísio
Queiroga Jr. (2018: 11), o fato de esse canal disponibilizar conteúdo gratuito para os internau-
tas “não o exclui da lógica de mercado onde o conhecimento é transformado em mercadoria”,
e o mesmo vale para as instituições que promovem esses cursos, que reciprocamente fazem
do YouTube também uma ferramenta de lucro. Essas narrativas seguem fiéis às discussões
formais, escolares, sendo guiadas por objetivos curriculares (preparação para exames, em nível
médio ou superior), até mesmo porque a grande maioria dos locutores das produções são
professores formados. Dito de outra forma, ainda não há aqui uma crítica deliberada à escola,

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 49-63, Janeiro-Abril 2020 49
Odir Fontoura

como será visto mais adiante, mas é o próprio currículo escolar que, tradicionalmente apresen-
tado, guia ou orienta a produção dos conteúdos desses vídeos.
Existe ainda um nicho pouco explorado, que é o dos canais de temática especificamente
acadêmica ou universitária (3). Aqui, é possível apontar o vídeo sobre história da Irlanda[i],
apresentado pelo youtuber chamado “Pirula”, do Canal do Pirula[vii], que, apesar de não ser
historiador de formação (sua especialidade é a biologia), procura manter-se fiel às discussões
acadêmicas específicas da história, criticando as visões mais nacionalistas de que a história
desse país poderia ser a história de um único povo, sem contribuições, misturas ou conexões
de diferentes civilizações. Na apresentação de seu canal, ele informa que se trata de um es-
paço voltado, entre outras coisas, para a divulgação da ciência. Nessa mesma direção vai o
canal ObrigaHISTÓRIA[viii], e aparece na pesquisa por seu vídeo sobre conceitos históricos entre
a direita e a esquerda política[j]. O objetivo do canal é claro, segundo sua descrição: “levar
conteúdo acadêmico a públicos mais amplos”. Muitos vídeos têm as referências bibliográ-
ficas na descrição, com links para acesso direto aos artigos. A disciplina histórica é uma das
especialidades do canal. Tanto o Canal do Pirula quanto o ObrigaHISTÓRIA têm o selo Science
Vlogs Brasil, que qualifica o cenário virtual de divulgação científica no país. Mas, comparado
com os outros grupos, a expressão é baixa: foram dois vídeos, que totalizaram pouco mais de
500 mil visualizações.
Um quarto grupo de conteúdo que segue preocupado com uma narrativa fiel às discus-
sões acadêmicas é o que abarca um conjunto de iniciativas de canais educacionais que, com o
tempo, foram descontinuadas (4). São os canais Vinicius Recanello de Almeida[ix], Preparação
Digital[x] e educabahia[xi]: apenas o primeiro tem conteúdo autoral e, propondo-se fazer um
“resumão” (sic) da história da educação brasileira[k], não atualiza a plataforma há três anos.
Os vídeos sobre o Brasil republicano[l][m] do canal Preparação Digital são de seis anos atrás, e
o conteúdo, também de história do Brasil[n], do canal educabahia está no ar há pelo menos
10 anos. Juntos, esses conteúdos chegam à marca de quase 1 milhão de visualizações. Parece
ser plausível supor que o fato de esses vídeos seguirem sendo visualizados, mesmo após a
descontinuação progressiva dos projetos, é um indício importante de que há interesse por esse
tipo de conteúdo histórico por parte dos usuários dessa plataforma online.
Mas, apesar dessa já comprovada demanda, a presença de canais institucionais e ofi-
ciais (5) segue baixa. Canais como o da revista homônima Nova Escola[xii], da TV Brasil[xiii] e
da Univesp[xiv] não produziram vídeos de conteúdo histórico que ultrapassassem a marca de
pelo menos 500 mil visualizações. Os canais da TV Brasil, rede de televisão pública do país,
e da Univesp (Universidade Virtual do Estado de São Paulo) foram os únicos canais oficiais

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Narrativas históricas em disputa: um estudo de caso no YouTube

públicos que apareceram na pesquisa. São vídeos sobre história da educação[o][p], que, em seus
respectivos canais oficiais, correspondem a pouco mais de 2% de todos os vídeos analisados.
A última categoria delimita os canais não autorais que colocam no ar conteúdos pro-
duzidos por outras instituições (6). É emblemático que um documentário sobre a história do
Brasil[q] produzido por Boris Fausto e pela própria TV Brasil tenha alcançado a marca de 2,4
milhões de acessos em um canal particular (Dylson)[xv]. Nessa mesma direção, o documentário
intitulado “A história do mundo em duas horas”, produzido pelo History Channel, chegou a
1,8 milhões de visualizações também em canais particulares não institucionais: Renato Reis
I[r] e Conhecimento[s].
Em suma, parece possível concluir, diante dessa primeira aproximação, que se, por um
lado, a força do mercado e a presença significativa das iniciativas privadas e particulares são
um aspecto fundamental desses conteúdos, por outro isso leva a uma dupla ausência: tanto
das universidades (pois, quando o conteúdo universitário aparece, é por parte de iniciativas
de estudantes e de grupos de estudantes, e não da instituição em si) quanto também de
iniciativas públicas, apesar da procura e do consumo desse tipo de conteúdo, que são feitos
a partir de outros canais.7 Esse mapeamento pode confirmar o que disse Lévy (1999: 174) a
respeito de uma transição, de uma educação “estritamente formalizada e institucionaliza-
da”, para uma situação diversa, em que haveria uma “troca generalizada de saberes” e um
“reconhecimento autogerenciado” das competências. Lévy insiste no papel público, nessa
regulação, da “nova economia do conhecimento”. Resta questionar, no sentido da provocação
de Roger Chartier (2009: 19), sobre o Homo academicus, se a disciplina histórica vai firmar-se,
buscando sua legitimidade, em detrimento dos outsiders da academia, ou se esses últimos
é que se firmarão no espaço público a partir da crítica da expertise acadêmica e do gradual
deslocamento de seus espaços tradicionais. Ou ainda: como seria possível uma realocação do
espaço acadêmico, de modo que esse espaço pudesse abarcar, ou pelo menos se aproximar,
desses saberes que estão sendo produzidos fora da academia?

A história que os professores não contam

A lguns dos estudos que anteriormente se propuseram pensar as relações entre internet
e educação precisam ser repensados. Denis Rolland (2004: 2), escrevendo a respeito de
pesquisas que fez no ano 2001, indicou que, nessa época, o nível de credibilidade científica
da rede ainda era desconhecido e que os textos, por exemplo, eram raramente identificados.
João Mattar (2009: 9), escrevendo já após a invenção e a popularização do YouTube,8 percebeu
que a produção dos vídeos ainda estava nas mãos daqueles que chamou “imigrantes digitais”,

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 51-63, Janeiro-Abril 2020 51
Odir Fontoura

a geração anterior à dos “nativos”. Mas, hoje, o problema coloca-se de forma diferente: em
vez de falarmos em incerteza da credibilidade científica, talvez seja mais preciso dizer que a
credibilidade já figura como objeto de disputa (como será visto a seguir) em espaços em que
esses “estrangeiros” são cada vez menos presentes. São quase todos “nativos”.
O segundo recorte dos 28 vídeos que representam mais de um terço de todos os vídeos
analisados trata dos conteúdos que se, na maioria das vezes, procuram questionar a legiti-
midade da história como ela tem sido contada na escola, na universidade ou na academia
como um todo, ocasionalmente procuram realocar e reivindicar essa autoridade para si. Todos
convergem para uma mesma direção: são produções que visam a trazer esclarecimentos como
resposta a uma “história” que, por diversas razões, seria ocultada, mascarada ou consciente-
mente desvirtuada. Eventualmente, para isso, reivindicarão para si um suposto método histo-
riográfico. São mais de 20 diferentes canais, que podem ser divididos, agora, em pelo menos
cinco subcategorias.
Seguindo o critério do número de visualizações, os dois primeiros subgrupos desse re-
corte abarcam vídeos de conteúdo bíblico ou religioso. O primeiro mistura histórias religiosas
com teorias da conspiração (1). Canais como o Canal do Braga[xvi], O Lado Escuro[xvii] e Mundo
Proibido[xviii], entre outros, propõem-se abordar a história de diversas grandes figuras religiosas,
como a do rei Salomão[t], do arcanjo Miguel[u], de Lúcifer[v] e de Jesus Cristo[w]. Essas narrativas,
no entanto, não se filiam apenas aos acontecimentos bíblicos e acrescentam, em suas abor-
dagens, repertórios de mitos e lendas urbanas. É muito comum que apareça nos títulos a ideia
de que se trata de uma história “oculta”[w], “proibida”[x] ou “que você não sabia”[t] desses
acontecimentos. Quase todos esses canais falam, para além da espiritualidade, de temas como
extraterrestres ou reencarnações. São cerca de sete vídeos, distribuídos em pelo menos cinco
canais, totalizando aproximadamente 12 milhões de acessos.
Um segundo nicho de conteúdo religioso aproxima-se das narrativas bíblicas. Esse, por
sua vez, tem pretensão ainda mais definida de fazer uma análise “factual” desses episódios
(2). As produções que mais se destacam são as apresentadas pelo pastor Rodrigo Silva, que
se intitula tanto como arqueólogo quanto como doutor.9 Silva apresenta um programa de
conteúdo evangélico na TV Novo Tempo, cujo cenário simula uma escavação arqueológica. No
vídeo em que fala sobre a história completa (sic) dos judeus[y], informa que pretende investigar
a “realidade histórica” da vida sagrada. No entanto, apesar da tentativa de incorporação do
discurso acadêmico, suas abordagens tendem a misturar as narrativas bíblicas com os fatos
verificáveis do passado: nesse mesmo vídeo, traz a ideia de que “a história dos hebreus come-
ça com a história de Abraão”, por exemplo. Esse vídeo está em um canal particular (Alberto

52 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 52-63, Janeiro-Abril 2020
Narrativas históricas em disputa: um estudo de caso no YouTube

Santos), e outro sobre a história de Sansão aparece no canal Sermões inteligentes[z], mas seus
vídeos também aparecem no canal oficial do programa, o canal Evidências NT[xix]. São pelo
menos cinco vídeos, que totalizam mais de 3 milhões de acessos.
Entre outros exemplos dessa mesma tentativa de incorporar o discurso histórico (e, nesse
caso, também a legitimação acadêmica e universitária), é possível apontar para o canal Do-
cumentários Bíblicos, que tem um vídeo intitulado “A história dos cristãos e da Bíblia”[aa]. No
início da apresentação, é informado que a mídia é baseada no documentário The indestructible
book, supostamente produzido pela Universidade de Cambridge, informação que não foi con-
firmada.10 Esses recursos narrativos não são uma inovação das mídias audiovisuais, tampouco
da internet; Chartier (2009: 28) já falou sobre como algumas “ficções” apropriam-se não da
“técnica da prova”, mas, antes disso, apenas da “ilusão do discurso histórico”, a fim de pro-
duzir o que chama “efeitos de realidade” entre seu público. Os vídeos que vão nessa direção
chegam, ao todo, a quase 4 milhões de visualizações.
Uma terceira categoria de vídeos sublinha de forma ainda mais explícita o quanto a
historiografia tradicional teria conscientemente suprimido certos temas (3). O canal Fatos Des-
conhecidos tem um vídeo muito popular, que se intitula “7 mentiras mais bem sucedidas da
história”[ab]. Em outra produção, o locutor lista uma série de coisas que o professor de história
“escondeu”[ac]. Ambos totalizam aproximadamente 1 milhão de visualizações. Nesse último,
o locutor fala que não sabemos (sic) como eram os egípcios antigos e que na escola “tudo
é simplificado”, e que, felizmente, hoje em dia a internet pode ser utilizada para descobrir a
versão verdadeira dos acontecimentos.
O canal Mundo Desconhecido tem dois vídeos que entraram na pesquisa, um deles sobre
os anglo-saxões[ad], apresentados como o exército “mais temido” da história, repleto de
generalizações, a exemplo do título. A ideia de que “muitos eventos da história não são com-
preendidos realmente” já aparece no começo da narrativa. Em outro vídeo, sobre momentos
em que a arqueologia supostamente “contradisse” a história[ae], o duplo exercício repete-se:
se, por um lado, desqualificam a história tal como ela tem sido trabalhada pela academia,
por outro reivindicam para si a autoridade para corrigi-la e aperfeiçoá-la.11 Esses últimos dois
filmes são compilações de outros vídeos, mas com uma narração e trilha sonora original. Tota-
lizam quase 2 milhões de visualizações.
Um quarto grupo de conteúdo que pode ser identificado é o de um conteúdo inteira-
mente autoral e que traz uma “história” que não é feita por historiadores acadêmicos, mas
por outro tipo de profissionais (4). Nessa categoria, entre os canais mais visualizados está
o Buenas Ideias, com dois vídeos, um sobre a primeira favela do Brasil[af] e outro sobre a

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Odir Fontoura

história por trás de Tiradentes[ag] (grifo nosso). Os vídeos são apresentados pelo jornalista
Eduardo Bueno, também conhecido como “Peninha”. Bueno propõe-se falar sobre o que não
vai cair no Enem: traz diversos vídeos de conteúdo histórico, profundamente marcados por
uma abordagem humorística, e sem se restringir necessariamente aos conteúdos tradicionais
de vestibular. Frequentemente sublinha, no final de seus vídeos, o fato de que suas falas estão
repletas de generalizações. Em seu canal, o jornalista também apresenta, em diversos vídeos,
o livro que coordenou, intitulado Brasil do Casseta: nossa história como você nunca riu, escrito
com humoristas.
Outro exemplo dessa tentativa de deslocamento da autoridade dos historiadores é visto
no canal Brasil Paralelo[xx] (grifo nosso). Nesse canal, estão os vídeos do Congresso Brasil
Paralelo, uma espécie de documentário que visa a repensar diversos aspectos do Brasil e de
sua história. No vídeo sobre a Terra de Santa Cruz, pretendem falar de uma “história não con-
tada”[ah]. Um dos locutores, Thomas Giulliano Ferreira dos Santos (formado em história pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul [PUCRS], mas também se apresentando
como “pesquisador freelancer e autodidata”12), em sua abordagem revisionista, questiona se
de fato o Brasil, um dia, foi uma colônia. Santos, que também é autor de um livro, intitulado
Desmistificando Paulo Freire, segue um viés ideológico nessa mesma direção, ao atacar o
marxismo. Rafael Nogueira, outro locutor, apresentando-se como historiador,13 também critica
o que chama ideologia comunista, que seria exaltada pela mídia brasileira, e lamenta a falta
de heróis no país. O intelectual Olavo de Carvalho também prega a necessidade de uma al-
ternativa, de uma memória nacional dos “grandes feitos”, no mesmo vídeo. Trata-se de uma
reconfiguração profunda, em um sentido conservador, na própria percepção da história: é
emblemático o fato de que a volta dos “heróis” nacionais, como um dos elementos que esses
intelectuais pretendem retomar, seja justamente uma das características mais notáveis da
historiografia positivista, hoje considerada superada e ultrapassada. Trata-se de um retorno
a uma forma de história que “não oferece um sistema de hipóteses, mas de certezas” (Sarlo,
2007: 15; e também Bispo e Barros, 2016: 858; Oliveira, 2014: 43), no sentido de que não são
debatidos métodos ou técnicas de como reinterpretar o passado, apesar da insistência de que
ele deve ser reinterpretado.
Em resumo, trata-se de um movimento que se por um lado, visa a fazer uma crítica
à forma como os historiadores profissionais têm desempenhado seu ofício, por outro, não
desqualificam a história totalmente. Ela continua sendo uma forma viável de conhecimento,
mas que deveria ser revisitada. Segundo os vídeos mencionados, haveria fatos do passado
conscientemente ocultados ou ignorados, de modo a construir uma narrativa mentirosa, o que
poderia ser revertido a partir de uma nova aproximação, a partir de um novo olhar, mesmo

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Narrativas históricas em disputa: um estudo de caso no YouTube

que não seja explicado como isso poderia ser feito. É por isso que alguns desses personagens,
independentemente de suas formações, sublinham seu lugar de fala como historiadores. Esse
é o caso de Rafael Nogueira, de Peninha e também do pastor Rodrigo Silva, que não reivindica
apenas uma titulação, mas toda uma linguagem simbólica e visual — que se dá, por exemplo,
por meio de seu cenário que imita escombros do passado — e que não tem outro objetivo
a não ser reforçar seu lugar de autoridade, quando está falando sobre a história. De forma
ampla, há aqui um alargamento no sentido do que seria um historiador. Mas, dito de maneira
mais precisa, o que existe é uma disputa sobre quem poderia falar em nome da história.
O canal História Economia (sic) Brasileira torna disponível uma série de vídeos, também
em forma de documentário, intitulada “A história contada por quem a fez”[ai] (grifo nosso).
O título já anuncia esse deslocamento de narrativa: dos aproximadamente 15 entrevistados
que se propõem falar da história do Brasil, apenas dois têm titulação acadêmica na disciplina,
sendo eles Alexandre Saes14 e Boris Fausto15. No entanto, a participação deste último não é
expressiva, pois, dos mais de 25 minutos de vídeo, a presença do historiador, somados os mo-
mentos em que aparece, não chega a 45 segundos. O protagonismo da narrativa é assumido
por ex-ministros (da Fazenda, do Planejamento, por exemplo) e por ex-presidentes do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), do Banco Central e da própria Re-
pública brasileira, como é o caso de José Sarney, que também aparece no documentário. Quem
tem certo destaque no documentário é Laurentino Gomes, que, apesar de ser apresentado
como jornalista e historiador, tem formação acadêmica apenas na área do jornalismo. Entre
algumas falas que podem não encontrar consenso entre os historiadores acadêmicos está a
ideia superficial de que, na África, a escravidão já era comum mesmo antes dos europeus; da
mesma forma, Jorge Caldeira, cientista político, fala de “alianças militares” que foram reali-
zadas entre indígenas e portugueses, mas não entra na questão do genocídio, por exemplo.
Quando a narradora fala que os bandeirantes, no século XVII, encontraram ouro e diamantes
no interior do Brasil, não explica que isso, em grande parte, foi feito tendo por base a mão
de obra escrava. Em suma, novamente se trata de uma reconfiguração do discurso histórico,
que, apesar de não se desfazer da história completamente, ressignifica e incorpora o ofício do
historiador dentro de outras lógicas discursivas. Juntos, os vídeos ultrapassam a marca de 1
milhão de acessos.
Uma última categoria identificada pode ser vista como uma extensão dessa última forma
de narrar os acontecimentos, com a diferença de que os vídeos postados nos canais não são
produções autorais, mas incorporações de outras fontes (5). O documentário “Gigantes do
Brasil – nossa história”[aj] (grifo nosso) é apresentado pelo canal Dark Documentários. Origi-

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Odir Fontoura

nalmente, trata-se de uma produção do History Channel e propõe-se fazer uma história das
“grandes” personalidades ou empreendedores do país. São interpretações e encenações a
respeito da vida dessas figuras, de modo que as atuações são intercaladas com comentários
de pesquisadores. Apesar da presença de historiadores como Zilda Iokoi16 e Clovis Bulcão17, a
grande maioria dos comentaristas são grandes figuras empreendedoras ou pesquisadores da
área econômica, como Jacques Marcovitch, por exemplo, que se apresenta como especialista
em história do empreendedorismo (sic) e ocupa diversos momentos da narrativa.
Um revisionismo mais acentuado é visto em outras duas produções, da mesma categoria:
o canal Daniel Mota disponibilizou uma produção em que Olavo de Carvalho18 fala, entre ou-
tros assuntos, sobre a história do Brasil[ak]. Entre suas críticas, estão os ataques ao que chama
um “imaginário esquerdista”, em que se produziram obras históricas ao longo do tempo, que
devem ser revistas e questionadas. Já o canal Leonardo Araujo apresenta uma entrevista[al],
de 2010, com Leandro Narloch, autor do Guia politicamente incorreto da história do Brasil,
e com o historiador Marco Antonio Vilas19. A fim de apresentar sua obra, o primeiro procura
fazer uma revisão das narrativas tradicionais. Entre suas opiniões, estão os argumentos de que
“os índios lucraram muitíssimo com a chegada dos portugueses”, por exemplo. Vilas diz que a
história atualmente consagrada nos livros didáticos é uma história “de esquerda”, e Narloch,
próximo ao fim da entrevista, argumenta que “a história da direita é tão ruim quanto a da es-
querda”, mas faz uma escolha: prefere “muito mais a da direita”, assume, sorrindo. Somadas
as visualizações desses conteúdos, a marca chega aos 700 mil acessos.
Sabemos que a luta por espaços de autoridade com a construção de narrativas como as
que hoje ocorrem no YouTube não é uma inovação dos meios audiovisuais ou mesmo da inter-
net. Antes disso, trata-se de uma longa duração na história da comunicação, da imprensa e da
literatura política como um todo (Briggs e Burke, 2006). Mais recentemente, Jurandir Malerba
(2014), à luz das discussões que envolvem a história pública, analisou como os historiadores,
no âmbito da escrita da história, têm perdido espaço para a produção jornalística a respeito
do passado. Alguns dos autores que apareceram nesta pesquisa, delimitado o espaço do
YouTube, já foram comentados por Malerba no recorte da literatura: a abordagem histórica de
Eduardo Bueno, “Peninha”, por exemplo, encontra problemas por fazer uma leitura caricata,
pitoresca, “quase no estilo capa e espada”, dos acontecimentos (Malerba, 2014: 35); o texto
de Laurentino Gomes, sob a perspectiva de uma história crítica, aparece com “fragilidades
gritantes” (Malerba, 2014: 37); o mesmo a respeito do também jornalista Leandro Narloch,
que, na opinião de Malerba, em sua escrita, mal esconde uma visão “altamente conservadora,
quando não reacionária, retrógrada, eurocêntrica e preconceituosa da/sobre a história do
Brasil” (Malerba, 2014: 38).

56 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 56-63, Janeiro-Abril 2020
Narrativas históricas em disputa: um estudo de caso no YouTube

Nucia Oliveira (2014), em outra direção, pesquisou sobre como a história estava sendo
tratada nos principais sites de pesquisa escolar, restringindo-se aos conteúdos escritos. Entre
suas conclusões: simplificação, narração conteudista, pouco provocativa e pouco problemati-
zadora das temáticas. A autora fala na repetição de “sentidos comuns” (Oliveira, 2014: 50),
que não ajudam no desenvolvimento de uma visão crítica, nem a respeito do passado e tam-
pouco a respeito do presente.
Levando-se em conta a convergência das conclusões de Malerba e Oliveira, é preciso
situar as conclusões desta pesquisa, a respeito das narrativas da história no YouTube, em uma
direção consonante, apesar da diversidade dos recortes. Por um lado, foi possível perceber
que esses discursos reducionistas, revisionistas ou que pelo menos visam a realocar o lugar
tradicional dos historiadores, e que aparecem em outros lugares, não são maioria no YouTube,
ainda que ocupem um espaço significativo na plataforma. Por outro lado, caberá às investi-
gações posteriores identificar se essa posição se manterá, dado que se trata de uma disputa
ainda em jogo.

Conclusões parciais: lugares em disputa

E studos que procuram entender as relações entre a história e a internet, ou entre a história
e o YouTube, em particular, têm insistentemente demonstrado os aspectos positivos do
uso, em sala de aula, das mídias audiovisuais. Adriana Dallacosta (2004), por exemplo, conta
sua experiência de trabalhar com o recurso dos vídeos do YouTube, tendo por base de sua
metodologia o uso da chamada linguagem hipertextual. Jonathan Rees (2008), no contexto
da sala de aula norte-americana, falou da experiência positiva dessa plataforma, dados o
tamanho dos vídeos e o fato de que os alunos normalmente não têm paciência para assistir a
vídeos longos, por exemplo. Luana Bispo e Kelly Barros (2016), após um mapeamento, listaram
vídeos de boa qualidade para serem trabalhados em sala de aula. Ocasionalmente, sugerem
também que os próprios alunos façam vídeos, em especial no contexto da história local, no
âmbito do Ensino Fundamental. A bibliografia é extensa nesse sentido (Mattar, 2009; Oliveira,
2014 etc.). Então, já tendo sido demonstrada a relação, pelo menos potencialmente positiva,
entre os estudantes e o YouTube, é preciso levar em conta o fato de que ela já não se restringe
apenas ao ambiente escolar. A educação, hoje, não se confina mais ao espaço físico da escola
ou na ocasião da sala de aula.
Essa demanda (que poderíamos chamar aqui de extraescolar) por conteúdos de cunho
histórico tem sido suprida no YouTube de diversas maneiras. Em primeiro lugar, por discussões
ainda fiéis a uma narrativa acadêmica, principalmente por iniciativas particulares, definidas

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 57-63, Janeiro-Abril 2020 57
Odir Fontoura

pelo mercado, em que o espaço do poder público ou da instituição universitária é quase nulo.
Em segundo lugar, por narrativas que visam a deslocar os historiadores de seus lugares de
autoridade — historiadores profissionais deixam de ser ouvidos, em detrimento de outros
profissionais: jornalistas, economistas e, inclusive, pastores evangélicos. Ocasionalmente, a
própria escola é vista como inimiga: ela esconderia ou ocultaria um conhecimento verdadeiro.
Parece plausível inferir que, em vez de o YouTube ser levado à sala de aula (a experiência
já se demonstrou positiva, mas talvez já seja insuficiente), um movimento contrário talvez
seja potencialmente frutífero: a ocupação do YouTube pelas instituições, pela academia, em
suma, pelos historiadores profissionais. Dilton Maynard (2016) alertou para os problemas da
confiabilidade das fontes e dos documentos históricos em tempos de compartilhamento e edi-
ções desenfreadas; mas, para além do problema da documentação, é preciso ser questionado
também qual tem sido a confiabilidade das próprias narrativas históricas (e de seus emissores)
em tempos de compartilhamento. Posto de outra forma: qual o lugar que os historiadores
profissionais têm ocupado, na disputa pela legitimidade da narrativa, na ágora virtual que se
tornou a internet?

Notas

1 Segundo estatísticas do próprio YouTube, para 31% dos consumidores do site, o espaço é usado como
fonte de aprendizado, de modo que 96% dos jovens de 18 a 35 anos acessam o site, e 88% dos que conso-
mem afinidades já têm o Ensino Médio ou superior. Ver: DE play em play. Think with Google. 2017. Disponível
em: <https://www.thinkwithgoogle.com/intl/pt-br/youtubeinsights/2017/de-play-em-play/>. Acesso em: 2
fev. 2019.
2 A referência é ao espaço público em que os gregos antigos exerciam a política. Posteriormente, o termo
passou a se referir ao espaço fisicamente delimitado da praça.
3 O site, atualmente pertencendo ao Google, é o segundo mais acessado no Brasil, perdendo apenas para
os acessos ao domínio da própria plataforma Google. Ver: ALEXA. Top sites on Brazil. 2019. Disponível em:
<https://www.alexa.com/topsites/countries/BR>. Acesso em: 2 fev. 2019.
4 A pesquisa ocorreu entre os dias 22 de outubro de 2018 e 22 de janeiro de 2019, e as estatísticas de visu-
alizações e acessos dizem respeito apenas a esse período, podendo variar até o momento da publicação deste
artigo. Foram ignorados, por exemplo, videoclipes musicais e conteúdo sobre histórias infantis ou celebridades
que apareceram na pesquisa por terem “história” no título e que não tinham, necessariamente, uma relação
com os temas ou conteúdos comumente associados à história acadêmica ou escolar, como os demais que
serão analisados na sequência desta investigação.
5 Por uma questão de espaço, aqui delimitado, os vídeos não serão analisados individualmente, mas agrupa-
dos em grandes (e pequenos) grupos e analisados de forma conjunta.
6 Ver nota 4.

58 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 58-63, Janeiro-Abril 2020
Narrativas históricas em disputa: um estudo de caso no YouTube

7 Sabemos que existem laboratórios e iniciativas acadêmicas empenhados nessas produções, mas essas
plataformas no YouTube não alcançaram um número de visualizações suficiente que enquadrasse esses con-
teúdos nesta pesquisa, em razão dos recortes quantitativos apontados na introdução do artigo.
8 O YouTube foi criado em 2005.
9 As informações confirmam-se no Lattes do autor. Ver: RODRIGO Pereira da Silva. Currículo Lattes. Disponível
em: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4210358Y6>. Acesso em: 12 dez. 2018.
10 O documentário em língua inglesa foi produzido pelo estúdio da International Baptist Missions.
11 Aqui, aparecem informações equivocadas, como a ideia de que a “a língua grega foi a primeira da histó-
ria”, por exemplo. Os autores da narrativa tratam de tom sensacionalista questões em aberto que ainda estão
em debate na academia, como a origem da agricultura no Peru.
12 Ver: THOMAS Giulliano Ferreira dos Santos. Currículo Lattes. Disponível em: <http://buscatextual.cnpq.br/
buscatextual/visualizacv.do?id=K8565048E5>. Acesso em: 2 jan. 2019.
13 Rafael Nogueira aparece no vídeo como professor e historiador, mas, de acordo com o site His-
tória expressa, tem graduação em filosofia, direito e pós-graduação em educação, sem men-
ção à formação na área de história. Ver: OS AUTORES. Desconstruindo Paulo Freire. Disponível em:
<https://historiaexpressa.com.br/desconstruindo-paulo-freire-livro/>. Acesso em: 2 jan. 2019.
14 Com atuação mais na área da economia do que na da história, Saes é doutor em história econômica e
professor do Departamento de Economia da FEA/USP.
15 Fausto publicou diversos livros sobre história do Brasil e é doutor em história social pela USP.
16 Doutora em história social pela USP e professora do Departamento de História da FFCH da USP.
17 Graduado em história e professor do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (Iserj).
18 O autor apresenta-se como filósofo, mas não tem formação acadêmica.
19 Professor de história da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 63-63, Janeiro-Abril 2020 63
Artigo

Humanidades digitais e diáspora africana:


questões éticas e metodológicas na
elaboração de uma base de dados sobre a
população escravizada de Mariana (século
XVIII)1
Digital humanities and the African diaspora: ethical and
methodological challenges in designing a database on Mariana’s
enslaved population (Eighteenth century)
Las humanidades digitales y diáspora africana: cuestiones éticas
y metodológicas en el diseño de una base de datos sobre la
población esclavizada de Mariana (siglo XVIII)

Aldair RodriguesI*

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942020000100005

I
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas (SP), Brasil.

* Professor do Departamento de História da UNICAMP e vice-diretor do Arquivo Edgard Leuenroth ([email protected]).


ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-5360-1120.

Artigo recebido em 31 de julho de 2019 e aprovado para publicação em 3 de dezembro de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 64-87, Janeiro-Abril 2020 64
Humanidades digitais e diáspora africana: questões éticas e metodológicas na
elaboração de uma base de dados sobre a população escravizada de Mariana (século XVIII)

Resumo
Adotando como estudo de caso a elaboração de uma base de dados sobre a população escravizada que viveu na
região de Mariana (Minas Gerais) no século XVIII, este artigo reflete sobre os desafios éticos e metodológicos subja-
centes às abordagens digitais sobre a diáspora africana. A análise enfoca as especificidades e os desafios envolvidos
no processo de transposição de informações históricas produzidas no contexto da escravidão para sistemas digitais.
Quais são as potencialidades e os riscos dessa tarefa em um país social e étnico-racialmente desigual como o Brasil?

Palavras-chave: Diáspora africana; Humanidades digitais; História digital; Base de dados; Ensino de história.

Abstract
This article addresses ethical and methodological challenges underlying the digital approaches to the African dias-
pora. It takes the process of building a database about the enslaved population that lived in the region of Mariana
(Minas Gerais) during the Eighteenth century as a case study. It analyzes the consequences of the insertion of histori-
cal information produced in a context marked by the asymmetrical power relations legitimized by slave ideology into
digital systems. What are the potentialities and risks of this task in a socially and racially unequal country like Brazil?

Keywords: African diaspora; Digital humanities; Digital history; Database; Teaching history.

Resumen
Tomando como caso de estudio el desarrollo de una base de datos sobre la población esclavizada que vivió en la
región de Mariana (Minas Gerais) en el siglo XVIII, este artículo reflexiona sobre los desafíos éticos y metodológi-
cos que subyacen a los enfoques digitales de la diáspora africana. El análisis se centra en los detalles y desafíos
involucrados en el proceso de transposición de información histórica producida en el contexto de la esclavitud a
los sistemas digitales. ¿Cuáles son las potencialidades y los riesgos de esta tarea en un país social y étnicamente
racialmente desigual como Brasil?

Palabras clave: Diáspora africana; Humanidades digitales; Historia digital; Base de datos; Enseñanza de la
historia.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 65-87, Janeiro-Abril 2020 65
Aldair Rodrigues

Introdução

A dotando como estudo de caso a elaboração de uma base de dados sobre a população
escravizada que viveu na região de Mariana (Minas Gerais) no século XVIII, este artigo
reflete sobre os desafios éticos e metodológicos subjacentes às abordagens digitais sobre a
diáspora africana. São enfocados os aspectos relacionados com as origens das pessoas escra-
vizadas e sua agência histórica.
O texto encontra-se articulado a partir de dois eixos principais. No primeiro, oferecemos
um panorama descritivo dos impactos das tecnologias digitais nos projetos que utilizam do-
cumentação produzida em contextos escravistas e, em seguida, expomos as principais carac-
terísticas e objetivos da base de dados sobre as origens dos africanos e africanas que viveram
na região de Mariana no século XVIII. No segundo eixo, desenvolvemos uma reflexão sobre
as dimensões éticas e epistemológicas que nortearam a construção dessa base de dados.
Ganham destaque nessa parte as discussões tocantes à inserção social do projeto e as conse-
quências de o processo de criação dos registros estar baseado no protagonismo das pessoas
escravizadas.
O fio condutor do artigo são as implicações da transposição de informações históricas
presentes em documentos produzidos em um contexto marcado pelas relações de poder es-
cravistas para sistemas digitais. Quais são as potencialidades e os riscos dessa tarefa em um
país social e étnico-racialmente desigual como o Brasil?
O enfrentamento desses desafios agrega contribuições ao campo das humanidades di-
gitais e da história digital, um de seus subcampos. Interessa compreender as transformações
contemporâneas no processo de produção do conhecimento nas ciências humanas e historici-
zar os efeitos da aplicação da informática na operação historiográfica. Stricto sensu, o conceito
de documento não sofre modificações em sua dimensão digital, porque, segundo Paes (2004:
26), “documento é o registro de uma informação, independente da natureza do suporte que a
contém”. Porém, acreditamos que as tecnologias digitais impactam os procedimentos envol-
vendo as buscas de informações em geral, as pesquisas em fontes primárias (digitalizadas), a
coleta, a organização e a análise de evidências históricas, bem como as relações sociais que
permeiam o trabalho do historiador (Lucchesi, 2014; Câmara e Benício, 2017).
O projeto tomado aqui como estudo de caso dialoga com reflexões centradas em outras
experiências que lidaram com a elaboração de recursos digitais, pois a área de estudos que
compreende a vida dos africanos e seus descendentes no mundo atlântico foi uma das mais
impactadas pela penetração das tecnologias digitais nas ciências humanas. Em parte, isso se

66 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 66-87, Janeiro-Abril 2020
Humanidades digitais e diáspora africana: questões éticas e metodológicas na
elaboração de uma base de dados sobre a população escravizada de Mariana (século XVIII)

explica pela natureza seriável dos documentos produzidos pela contabilidade comercial do
tráfico, pelas fontes cartoriais que registravam as transações envolvendo pessoas escravizadas
e pelos registros paroquiais de batismo e óbito. De acordo com Daryle Williams (2018), as in-
formações presentes naquelas tipologias, embora apresentassem algum grau de variabilidade
quanto aos contextos dos quais foram extraídas, compunham uma grelha básica de variáveis
separadas por vírgulas (quando não são preenchidas em tabelas impressas). Nos sistemas
informáticos, elas tendem a ser facilmente replicadas em planilhas, colunas e células de sof-
twares voltados para a recolha e o tratamento de grandes volumes de dados. Na apreciação
do autor, essa é uma das principais características dos estudos sobre o tráfico na era digital.
Podemos afirmar que o grande precursor da produção de conhecimento em torno da
aplicação da informática em metodologias quantitativas a respeito do tráfico transatlântico
foi o projeto Voyages – Slave Trade Database. Conforme entrevista de David Eltis a Leonardo
Marques (2019), o histórico de desenvolvimento do projeto confunde-se com a própria histó-
ria da penetração da computação nas ciências humanas. Primeiro, por testemunhar o esforço
coletivo para reunião dos dados seriados sobre o volume e os fluxos do tráfico que vinham
sendo compilados por pesquisadores dispersos por várias universidades desde as décadas de
1960 e 1970. Seu primeiro resultado foi publicado em 1999 em CD-ROM (Eltis et al., 1999).
Segundo, pela disponibilização dos dados online de maneira interativa, na medida em que a
internet se popularizava. O projeto tornou acessível para um vasto público o levantamento
mais completo que se conhece acerca dos números e das estatísticas do tráfico negreiro,
com as origens e os destinos das embarcações e o volume de pessoas transportadas. Em seu
website, é possível encontrar ainda uma série de artigos que orientam seus usuários sobre a
dinâmica da base, as metodologias e as práticas adotadas em sua construção e uma série de
recursos imagéticos que funcionam como ferramentas didático-pedagógicas.2
Nos últimos anos, notamos uma ampla diversificação das iniciativas relacionadas com
o passado escravista das Américas que vão muito além das estatísticas do tráfico. Jorge Fe-
lipe (2016) [Sim, consta], um dos editores da rede de pesquisadores que alimenta o fórum
H-slavery no portal Humanities and Social Science Online, computou um total de 54 projetos
(junto com seus respectivos links), que se encontram atualmente disponíveis na web ou em
andamento (Flores, 2016). Notamos importantes avanços nas relações entre os projetos e a
sociedade, mormente no que se refere à memória da experiência histórica das populações
negras das Américas. Os repertórios disponibilizam imagens e fontes visuais; entrevistas e
recursos audiovisuais; mapas; digitalização de fontes seriáveis e qualitativas; e bases de dados
de diferentes alcances e em diferentes estágios de desenvolvimento.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 67-87, Janeiro-Abril 2020 67
Aldair Rodrigues

Parte dessas iniciativas elencadas por Flores (2016) engajou-se em um esforço para su-
perar o peso excessivo das abordagens quantitativas que se expandiram na esteira do projeto
Voyages – Slave Trade Database. Alternativamente, elas tendem a privilegiar a reconstituição
de biografias e memórias vivenciadas em contextos escravistas do Atlântico. De alguma forma,
estariam em sintonia com a “virada biográfica” (biographical turn) que marcou a historiografia
do tráfico e da escravidão a partir dos anos 2000, conforme análise de Joseph Miller (2013).
O exemplo mais contundente do impacto da “virada biográfica” é o projeto interdiscipli-
nar Enslaved: Peoples of the Historic Slave Trade, liderado por Walter Hawthorne no Centro de
Humanidades Digitais e Ciências Sociais da Michigan State University. Seu foco é a compilação
e a disponibilização na web de uma série de bancos de dados que possibilitem a recuperação
de informações sobre as biografias de pessoas escravizadas.3 O projeto partiu, inicialmente, da
reunião dos dados cartoriais compilados pelos projetos anteriores de Gwendolyn Middlo Hall
sobre a população africana da Louisiana, Afro-Louisiana History and Genealogy (Hall, 2000),
e dos dados coletados por Walter Hawthorne em cartórios do Maranhão.
A reunião de dados e fontes digitalizadas oriundos dos múltiplos arquivos que contam
a história da experiência dos africanos e seus descendentes em grandes portais da internet
abre novos caminhos para a visualização e a interpretação da diáspora africana. Se, antes, os
documentos que testemunhavam sua história encontravam-se espalhados por inúmeras ins-
tituições, espelhando a própria violência da dispersão, as ferramentas digitais proporcionam
análises a partir do sentido inverso dessa história custodial. Em escala sem precedentes, é
possível localizar os vínculos entre as pessoas e os destinos de grupos que tinham a mesma
origem africana, sem ignorar os efeitos disruptivos do tráfico em milhares de trajetórias.
No entanto, em termos globais, quando analisamos o balanço dos 54 projetos elaborado
por Flores (2016), notamos que a maioria das iniciativas enfoca regiões específicas, sobres-
saindo os estados escravistas do sul dos Estados Unidos, sendo raras aquelas que privilegiam
outras territorialidades das Américas. No que toca especificamente ao Brasil, poucos projetos
realçam seu passado. As exceções são os dados disponibilizados por Hawthorne sobre o Ma-
ranhão e o projeto Slave Societies Digital Archives, coordenado por Jane Landers na Vanderbilt
University, que oferece milhares de imagens digitais de documentos referentes às vidas das
pessoas escravizadas que viveram no Brasil.4 Em linhas gerais, apesar de estarem sediados em
diferentes países, há uma predominância absoluta de projetos coordenados por instituições
anglófonas do hemisfério Norte.
No volume African Studies in the Digital Age, editado por Barringer e Wallace (2014),
essa mesma assimetria entre espaços acadêmicos do Norte e do Sul foi observada na área

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Humanidades digitais e diáspora africana: questões éticas e metodológicas na
elaboração de uma base de dados sobre a população escravizada de Mariana (século XVIII)

de estudos africanos, tanto no volume dos conteúdos acessíveis às bibliotecas dos países da
África quanto, ironicamente, no acesso a conteúdos sobre o continente disponíveis na web.
Tais disparidades refletem, em parte, a distribuição desigual da infraestrutura global de co-
municação na África subsaariana, segundo Sharath Srinivasan e Claudia Abreu Lopes (2016).
As autoras destacam a importância de considerarmos os impactos dessa realidade na vida
comunitária e nos projetos de desenvolvimento voltados para os países do continente.
Do ponto de vista epistemológico, o conjunto das desigualdades mencionadas pode po-
tencializar a projeção de imagens globais dos fenômenos contidos nas bases, sem contemplar
devidamente a diversidade de realidades históricas marcadas pela escravidão e seu legado,
por exemplo, nos mundos de colonização portuguesa, espanhola, holandesa e francesa.
Dessa forma, a base de dados que estamos desenvolvendo sobre as origens e as biogra-
fias dos africanos trazidos para Minas Gerais contribui para posicionar o interior da América
portuguesa e as dinâmicas do Atlântico Sul junto a outras iniciativas já em curso. O município
de Mariana concentrava a maior população escravizada da capitania, tornando-se um ângulo
privilegiado para a compreensão da diáspora africana no Brasil.5 Em síntese, com base no acú-
mulo de experiências metodológicas que vão desde o projeto Slave Voyages (e seu importante
legado) até às iniciativas recentes mais em sintonia com o biographical turn, oferecemos um
contraponto a partir do Sul.

Descrição e objetivos da base de dados

A base de dados que desenvolvemos é constituída por quatro núcleos principais de infor-
mações compulsadas em documentos de natureza cartorial, fiscal, carcerária e inqui-
sitorial. As tipologias produzidas pelos cartórios do primeiro e segundo ofício de Mariana
(conservadas no Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana [AHCSM]) constituem o
segmento mais denso dos registros. Englobam transações comerciais de compra e venda ou
formação de sociedades envolvendo a posse de escravizados ou a transmissão de propriedade
por meio das últimas vontades em testamento (etapa do trabalho já concluída) ou partilha em
inventários post mortem. Em todos esses casos, os africanos e seus descendentes são listados,
caracterizados (nome, idade, origem etc.) e avaliados. Os dados oriundos dessas descrições
permitem situá-los em um universo mais amplo, por meio da abordagem digital. O grau de
seriação, no entanto, oscila de uma tipologia para outra, como é o caso dos testamentos,
que oferecem informações sobretudo de natureza qualitativa, possibilitando compreender as
relações sociais entre os proprietários e os africanos, por exemplo.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 69-87, Janeiro-Abril 2020 69
Aldair Rodrigues

No caso dos documentos da Câmara Municipal de Mariana, temos a descrição de afri-


canos e seus descendentes na documentação da cadeia pública e nos registros das almota-
çarias, os quais fornecem a listagem daqueles que tinham vendas, mormente as africanas
escravizadas que foram trazidas da região da Costa da Mina. Além disso, dispomos também
dos róis das cobranças dos quintos, cujo valor era estabelecido pelo número de escravizados,
fornecendo seus respectivos nomes e “nações”.6
Os dados elaborados pelo Tribunal da Inquisição, por sua vez, são extraídos de denúncias
contra lideranças das comunidades africanas (normalmente sacerdotes) ou seus seguidores
envolvidos em práticas religiosas consideradas heréticas durante o violento processo histórico
de sua associação com o demônio. Parte dessas informações é facilmente seriável, como nome
do denunciado, idade, nação e proprietário. Ademais, tais fontes asseguram que o usuário lo-
calize os processos e as denúncias disponíveis no site da Torre do Tombo, sustentando, assim,
análises sobre suas cosmologias, vínculos sociais e políticos.7
No final do segundo semestre de 2019, a base está se aproximando de 10 mil entra-
das, compiladas principalmente a partir dos documentos cartoriais e inseridas em planilha do
programa Google Sheets. O planejamento do projeto prevê sua expansão nos próximos anos,
para abranger informações de outros arquivos da região mineradora, como os de Ouro Preto,
que em parte já foram fotografados pela coordenação desse projeto. E, nos dois casos, prevê
sua ampliação para registros paroquiais de batismo, óbito e casamento. A coleta de informa-
ções prevista para ser realizada nesses conjuntos seguirá as linhas gerais dos procedimentos
adotados em relação às tipologias já descritas. Ou seja, privilegiaremos os dados que permi-
tam reconstituir as trajetórias dos africanos e de seus descendentes.
O projeto é desenvolvido no âmbito do Departamento de História da Universidade Esta-
dual de Campinas (Unicamp) e, após a conclusão de sua primeira etapa, em 2021, estará dis-
ponível gratuitamente no site do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).8 O intuito
é contribuir para que esse se torne um polo de referência em abordagens digitais no campo
da história social, sobretudo no que toca à gestão de bases de dados e preservação digital.
Apostamos no desenvolvimento de metodologias de trabalho interdisciplinar e em equipe,
como será mais bem detalhado adiante.
Em resumo, os principais objetivos da construção e da disponibilização online da base
de dados sobre a população escravizada de Minas Gerais são: 1) conhecer as origens dos
africanos e de seus descendentes a partir de suas “nações”, tornando possível a localização
de novas rotas do tráfico no interior do continente africano com base nessa nomenclatura;
2) oferecer elementos sobre a experiência social de africanas e africanos que viveram na

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Humanidades digitais e diáspora africana: questões éticas e metodológicas na
elaboração de uma base de dados sobre a população escravizada de Mariana (século XVIII)

região mineradora; 3) ensejar abordagens biográficas por meio do rastreamento de uma mes-
ma pessoa em diversos momentos de suas vidas; 4) possibilitar que cidadãos brasileiros des-
cendentes de africanos possam traçar genealogias de seus ancestrais; e, por fim, 5) construir
atlas digitais interativos para serem utilizados em aulas dos Ensinos Fundamental e Médio,
contribuindo para a implementação da Lei no 10.639 (Brasil, 2003), que tornou obrigatório o
ensino de história da África e da cultura afro-brasileira.
Por terem sido elaborados com diferentes propósitos, os documentos compulsados pela
base permitem observar as trajetórias de vida dos escravizados a partir de múltiplos ângulos.
Por exemplo, é possível encontrar uma mesma pessoa sendo descrita no pagamento dos quin-
tos; no testamento do colono português que detinha sua posse; nos livros de alforrias; e nas
denúncias da Inquisição, quando podemos compreender seu papel de liderança nas comuni-
dades africanas que se organizavam em torno dos cultos a seus ancestrais. Portanto, os vieses
e filtros coloniais plasmados na feitura dos registros variam entre um documento e outro, o
que facilita também o trabalho de crítica documental e, evidentemente, propicia o cruzamento
de informações sobre uma mesma pessoa. Permitem verificar quem são os agentes históricos
que têm voz perante os escrivães e suas relações sociais com as pessoas escravizadas que
estão sendo descritas ou mencionadas. O Quadro 1 resume os principais tipos de documentos
compulsados.

Quadro 1 – Tipologias documentais

Arquivo Tipologias
AHCMS 1) Testamentos
Cartórios 1o e 2o Ofício 2) Inventários
3) Escrituras
4) Alforrias
5) Escrituras (de compra e venda, sociedade, alforrias etc.)
AHCMM 6) Cobrança de impostos – quintos
7) Almotaçarias
ANTT 8) Denúncias

Procedimentos metodológicos: ética e agência


histórica

O s emergentes debates sobre as relações entre ética e dados na produção do conheci-


mento envolvendo o emprego de tecnologias digitais vêm colocando em perspectiva
crítica as dicotomias sujeito/objeto e analógico/digital nos processos de digitalização e de

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 71-87, Janeiro-Abril 2020 71
Aldair Rodrigues

elaboração de bases de dados, sobretudo no que tange ao papel social e político de seus
coordenadores (Apurro, 2017). O debate ganhou mais urgência nos últimos anos, primeiro,
após os escândalos envolvendo as políticas de privacidade e o uso devastador de dados de
usuários das empresas gigantes de tecnologia, como o da Cambridge Analytica em 2018,[Não
se trata de referência, é apenas o ano do escândalo] e, mais recentemente, com a visibilidade
adquirida pelo impacto dos algoritmos do Google na reiteração e no realce de estereótipos
de gênero, classe e raça (Noble, 2018). Em ambos os casos, fica evidente que os processos de
intermediação entre os usuários e os conteúdos que buscam na internet não são neutros, mas,
sim, permeados por algoritmos que expressam interesses comerciais e os vieses constituídos
em meio a estruturas de poder desiguais da sociedade contemporânea.
No caso da história digital, o corolário das discussões sobre ética e big data é o de que as
bases de dados não são neutras, sobretudo porque o processo de produção das informações
históricas que compilamos foi atravessado por uma série de relações sociais no passado. Con-
sequentemente, não estamos apenas desenvolvendo ferramentas de mediação, mas também
produzindo significados e, por isso, devemos ser corresponsáveis pelas possibilidades de utili-
zação que se abrem com projetos dessa natureza. Na definição de Tiago Gil (2015: 11), “um
banco de dados é quase uma forma de narrativa histórica”. Por isso, devem ser sopesadas
a construção e a definição de seus campos; que tipo de informação será considerada uma
variável e qual sua natureza (codificável e seriável); o que é coletado e o que é deixado nos
documentos históricos; e, por fim, devem ser escrutinadas as decisões ligadas à disponibiliza-
ção da base na internet, como seu sistema de busca e sua interface.9
Em termos epistemológicos, outro cuidado prende-se ao fato de que as inúmeras pos-
sibilidades de cruzamento de grandes volumes de informações tendem a deslocar o foco das
pesquisas para a escala macroanalítica. Esta certamente tem o potencial de desvendar dimen-
sões ainda pouco conhecidas dos fluxos comerciais e lógicas do tráfico e da escravidão, das
tendências e características demográficas da população escravizada, entre outros aspectos
cruciais, que se tornam mensuráveis apenas em enquadramentos quantitativos e macroa-
nalíticos. Porém, junto com todas essas potencialidades, há o risco de paradigmas centrados
em ferramentas analíticas de big data dissiparem a visibilidade das experiências humanas
presentes nas entrelinhas das fontes, subestimando a ação histórica e as vozes de sujeitos
marginalizados (Williams, 2018).
No limite, a hiperfragmentação das trajetórias de vida por meio da criação de variáveis
codificáveis pode configurar uma plataforma de comodificação contemporânea da vida dos
africanos, podendo convertê-las em meros produtos acadêmicos a partir de lentes racializadoras.

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Humanidades digitais e diáspora africana: questões éticas e metodológicas na
elaboração de uma base de dados sobre a população escravizada de Mariana (século XVIII)

Kim Gallon (2016), em seu ensaio “Making a case for the black digital humanities”, sublinhou
a relevância das tecnologias de recuperação (technology of recovery) no campo das humani-
dades digitais como parte de estratégias de visibilização da experiência humana de grupos
marginalizados por meio de plataformas digitais, sobretudo na área de black studies. Em diá-
logo com Tara McPherson (2012), Gallon (2016) argumenta ainda que, sem uma apreciação
crítica do processo mais amplo em que se inserem, os projetos tendem a reproduzir, no campo
das humanidades digitais, estruturas desiguais de poder, entre elas a racialização de minorias.
Para lidar com essas questões, formulamos metodologias que permitem ao usuário en-
xergar as relações de poder assimétricas plasmadas nos documentos e, concomitantemente,
aproximá-lo das vozes e da experiência histórica das populações escravizadas da região de
Minas Gerais da forma mais densa possível.
O equacionamento desse desafio metodológico implica o exercício de crítica documental,
que começa com uma reflexão sobre as dinâmicas subjacentes à constituição dos arquivos em
contexto escravista. As lógicas que informaram a constituição do que hoje compreendemos
como fontes primárias são derivadas das relações sociais que buscavam legitimar e reiterar a
posse de pessoas. O próprio ato de descrever, avaliar e caracterizar as africanas e os africa-
nos era expressão do exercício do poder senhorial e colonial. Os cartórios e todo o aparato
burocrático que gerou a documentação arquivística utilizada no projeto tinham por função
normalizar a escravização daquelas pessoas. Daí emergiram as informações que se tornam
variáveis por meio do tratamento digital. Por exemplo, o nome português atribuído a cada
africano pode ser considerado um índice que encapsulava a violência simbólica do domínio
escravista. Haviam sido impostos contra suas vontades, sobrepondo-se aos nomes que haviam
recebido nos contextos africanos.10
Os catálogos dos arquivos reificam as lógicas de organização das informações que eram
centradas no protagonismo dos segmentos sociais possuidores de escravizados, pois os do-
cumentos são normalmente indexados pelos nomes dos proprietários. Exceções são os livros
paroquiais e as fontes sobre as alforrias. Ainda assim, tendencialmente registram os nomes
dos proprietários que forneceram as informações sobre os africanos para os escrivães.
Ao mesmo tempo, todas aquelas descrições dispostas nos códices, conforme a ideologia
senhorial, trazem dados biográficos importantes sobre a vida dos africanos e de seus descen-
dentes e, por vezes, suas redes familiares e sociais. Por isso, é importante o desenvolvimento de
metodologias que permitam sua compilação de forma crítica e, ao mesmo tempo, abrangente.
À luz da problematização realizada por Gallon (2016), já mencionada, adotamos uma
inversão estrutural do método de organização e disposição das informações históricas no

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 73-87, Janeiro-Abril 2020 73
Aldair Rodrigues

arquivo colonial durante o processo de recolha de seus dados e estabelecimento de sua repre-
sentação digital. Em vez de criar os registros na base em função do nome do senhor, optamos
por abrir um registro novo para cada pessoa escravizada descrita nos documentos. Por exem-
plo, se encontramos o testamento de um português que listava a posse de cinco pessoas afri-
canas acompanhadas de suas respectivas informações (nome, nação, idade e, por vezes, valor),
abrimos cinco novos registros na planilha Google Sheets, um para cada pessoa. Ou seja, o eixo
central da organização da base de dados é a singularidade e a agência histórica dos africanos
e de seus descendentes. Tal pressuposto é o que orienta a lógica de inserção e recuperação
das informações a partir do sistema de busca em linguagem SQL (Structured Query Language).
Não se trata de ignorar o nome do senhor ou de deturpar informações históricas. Na verdade,
essa variável é preservada em todos os cinco hipotéticos registros. Desse modo, ao mesmo
tempo que a relação de poder senhor–escravo continua sendo passível de análise, o usuário
poderá rastrear a vida da pessoa escravizada em outros documentos indexados pelo nome do
proprietário, flagrando uma mesma pessoa escravizada (ou forra) em uma cadeia maior de
informações com a qual estava relacionada. Sem o nome do proprietário, seria difícil realizar
com sucesso tal procedimento. Como veremos adiante, essa estratégia que envolve a retenção
do nome do proprietário ou do ex-proprietário é importante também para a desambiguação e
o despiste de homônimos no sistema de busca.

Padronização das variáveis: como preservar a


historicidade das vozes africanas presentes nas
variações ortográficas?

O segundo desafio a ser enfrentado na abordagem digital em relação a documentos do


século XVIII diz respeito à transposição da grafia daquele período para o sistema informa-
tizado de preenchimento dos registros e de recuperação de informações. Naquele contexto, a
língua ainda não tinha a relação que passou a ter com o Estado-nação no século XIX, quando
foi sendo codificada lexicalmente e subordinada a uma norma ortográfica fixa. No Antigo Re-
gime português, ainda que existissem manuais de caligrafia, a alfabetização, a escolarização
e a formação profissional não eram processos regulares. Os escrivães gozavam de relativa
liberdade quanto à forma de grafar as palavras, o que resultava em muitas variações. Por
exemplo, uma mesma pessoa poderia ter seu nome escrito de múltiplas formas ao longo de
sua vida: Joseph, Jozé, Jozeph etc. No tratamento digital, mesmo que a diferença na variação
de um termo seja de apenas um caractere, a depender do filtro da busca, cada variação pode
ser lida digitalmente como sendo referente a múltiplas pessoas, embora todas se refiram a um
mesmo personagem.

74 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 74-87, Janeiro-Abril 2020
Humanidades digitais e diáspora africana: questões éticas e metodológicas na
elaboração de uma base de dados sobre a população escravizada de Mariana (século XVIII)

Esse quadro impõe a necessidade de tomada de decisões sobre os processos de atualiza-


ção do português arcaico. A adaptação e a fixação das formas setecentistas para uma forma
estática contemporânea devem ser precedidas de uma reflexão sobre possíveis perdas das
dimensões históricas dos registros, caso sejam inseridos apenas em um campo por meio de
uma uniformização unilateral.
Essa discussão torna-se primordial, por exemplo, quando nos deparamos com o descritor
de origem dos africanos: “nação”. Trata-se de uma nomenclatura cujos usos e sentidos osci-
lavam intensamente, podendo significar topônimos das macroáreas da organização do tráfico
na costa africana; portos de embarque; unidades políticas; identidades que expressavam mi-
crofiliações políticas; metaetnônimos ou etnônimos que designavam identidades étnicas mais
específicas. Dependendo do momento de sua trajetória e do contexto em que uma pessoa era
descrita, a nação poderia oscilar de um subgrupo para o descritor genérico mais amplo criado
pelos agentes do tráfico, e vice-versa. Em todos esses casos, a solução encontrada na execu-
ção do projeto foi a transcrição da grafia original em um primeiro campo (exatamente como
aparece nos documentos) e a abertura de um segundo campo na planilha para padronizar a
grafia das nações, possibilitando seu tratamento estatístico por meio de seriação.
A justificativa metodológica para a manutenção das grafias originais da nomenclatura
no primeiro campo é sua relevância para a etnolinguística histórica. As nações, tal como foram
redigidas pelos escrivães, podem conter o encapsulamento de múltiplas dinâmicas forjadas
nas interações entre diversos agentes do tráfico e as narrativas dos próprios africanos sobre
suas origens (reinos, designação etnolinguística, linhagem, territorialidade etc.). Nesse último
caso, podem designar suas concepções sobre formas de pertencimento com base em ances-
tralidade e territorialidade. Vários termos claramente refletem pronúncias africanas do léxico
que descrevia suas origens. Considerando que eram palavras novas sendo incorporadas ao
mundo colonial, os escrivães muitas vezes tendiam a anotá-las conforme ouviam-nas, mas
adaptando-as à transcrição fonética portuguesa. Os termos específicos de origem africana
apareceriam concomitantemente ou sobrepostos a descritores mais genéricos atribuídos pelos
agentes do tráfico, como “Mina” significando Costa da Mina.
Além disso, o historiador Marcos Abreu Leitão Almeida (2012) argumenta que a grafia
de várias nações pode conter a transcrição portuguesa da pronúncia dos intérpretes africanos
que auxiliavam os escrivães durante os registros. Segundo o autor, as marcas fonéticas das
nações podem expressar a predominância demográfica dos grupos sobre quem aqueles que
atuavam como línguas tinham maior conhecimento. Eles apresentavam maneiras específicas
de nomear suas próprias procedências e a de outros grupos.11

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 75-87, Janeiro-Abril 2020 75
Aldair Rodrigues

Com base nessas considerações, buscamos criar condições para que pesquisadores de
diversas áreas desenvolvam pesquisas na base de dados que franqueiem a recuperação de
fragmentos das narrativas africanas que se encontram silenciadas nos arquivos coloniais.
É possível localizar vários descritores de origem influenciados por perspectivas africanas
a respeito de suas procedências na região do golfo do Benim. Por exemplo, é comum em
Minas Gerais a ocorrência da nação “Ladano”, que provavelmente é a transcrição de Alla-
dahonu (Coissy, 1955). Na área Gbe da África Ocidental, o termo significava “gente da casa
de Alada” (Pares, 2017 48), expressando, portanto, a filiação política dos súditos do antigo
reino de Aladá, que ficava no sudeste do território onde atualmente é o Benim (Law, 1997). Tal
região foi invadida pelo reino do Daomé em 1724 no contexto das guerras de sua expansão
política e militar sob a liderança do rei Agadja, resultando na escravização de milhares de pes-
soas, que acabaram sendo deportadas para o Brasil (Soares, 2007; Silva Jr., 2011; Maia, 2013).
Na documentação que compulsamos, o etnônimo relacionado com Alladahonu emerge
como “Ladano” e “Ladana”, indicando uma inflexão de gênero adaptada à língua portugue-
sa. Além disso, oscila também para as formas “de nação Ladá” ou “nação Ladá”. Todas essas
variações foram mantidas na base de dados no campo “nação”, a fim de capturar o processo
histórico que mediava sua difusão. Já no campo “nação atualizada”, as flutuações foram
padronizadas como “Aladá”, que é o nome africano da unidade política de onde as pessoas
daquele grupo eram oriundas.
Encontramos também uma grande volatilidade quanto ao termo utilizado na documen-
tação para descrever os povos de língua iorubá que foram escravizados e levados para a
área mineradora: “Nagô”, “Nagó”, “Anagô”, “Anagu”, “Anagonou” e “Nagouno”. No caso
em apreço, Nagô tornou-se a forma mais comum no Brasil contemporâneo. Possivelmente,
as formas originais de suas variações trazem as marcas fonéticas dos falantes de língua do
grupo Gbe (sobretudo Fon), predominantes em Minas Gerais (Castro, 2002; Maia, 2013; Lima,
2018). Portanto, as flutuações “Nagono”, “Naguno”, “Anagono”, “Anagô” podem ser evi-
dências da nomenclatura colonial permeável ao modo como os grupos Gbe da baía do Benim
descreveriam no cotidiano das vilas mineradoras do século XVIII os grupos iorubás seus vizi-
nhos situados a leste, que estavam presentes nas Minas em menor número.
Seguindo nossa opção metodológica, decidimos nesse caso e nos demais por: 1) manter
essas formas originais em um campo (“nação”) e, em um segundo campo (“nação padroni-
zado”), 2) estabilizar as variações, considerando os seguintes critérios, na ordem que segue:
a. padronizar as variações da nomenclatura para o termo, conforme formas africanas
atuais, quando é possível estabelecê-las;

76 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 76-87, Janeiro-Abril 2020
Humanidades digitais e diáspora africana: questões éticas e metodológicas na
elaboração de uma base de dados sobre a população escravizada de Mariana (século XVIII)

b. fixar, conforme a grafia contemporânea lusófona, quando essas palavras ainda são
usadas;
c. ou, não sendo possível as duas opções anteriores, padronizar as oscilações para o
termo mais recorrente na documentação.
Em resumo, as facetas da predominância demográfica Gbe podem ser compreendidas
pela forma como os descritores de origem aparecem nos documentos. Deixar de inserir na
base as grafias originais e sua instabilidade equivaleria a apagar digitalmente as evidências
históricas das dinâmicas de interação social referidas. Com efeito, à luz dos estudos sobre
as conexões entre África e Brasil, optamos por manter em dois campos a nomenclatura que
designava a origem das pessoas escravizadas, repetindo então: no primeiro, a versão original
dos documentos em todas as suas variações; e, no segundo campo, a versão fixa atualizada,
para que possa ser codificada, de modo a facultar que todo o grupo seja recuperável na busca.

Quadro 2 – Nomenclatura das origens africanas em Mariana

Original Atualizado
Ladá, Lada, Ladano, Ladanu, Ladana Aladá
Anagô, Anagó, Anago, Anagonu, Naguno, Nagono Nagô
Fom, Fono, Fona, Fon Fon
Sabarú, Sabará, Sabalu Savalou
Courá, Courano, Courana Courá

Quanto ao nome dos proprietários, optamos por padronizar a grafia já na entrada das
informações na base. Assim, aumentaríamos as possibilidades de rastrear os dados sobre os
escravizados com mais chances de chegarmos a todas as vezes em que aparecem nos docu-
mentos, pois, como vimos, as descrições das pessoas escravizadas sempre fazem referência
aos senhores. Abdicar das variações originais dos nomes dos proprietários, nesse caso, não
significa perdas relevantes, quando comparadas com as oportunidades de buscas abrangentes
que a padronização de seus respectivos nomes possibilita. Em síntese, a padronização viabiliza
que a busca recupere informações sobre uma pessoa de forma não fragmentada, conforme
cada variação ortográfica dos vocábulos. Por exemplo:

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 77-87, Janeiro-Abril 2020 77
Aldair Rodrigues

Quadro 3 – Variação onomástica

Versão original Versão padronizada


Joseph, Jozeph, Joze José

As demais variáveis e informações da base foram uniformizadas. Os números por extenso


(por exemplo, idade e datas) foram fixados em sua forma numérica. E nos campos formatados
para informações qualitativas (não codificáveis) sobre a vida dos escravizados e libertos trans-
crevemos as informações, adaptando a ortografia para o português contemporâneo.

Ambiguidade e estratégias de desambiguação de dados


nas buscas onomásticas

A opção metodológica por abrir um novo registro para cada pessoa escravizada que encon-
tramos nas diferentes tipologias documentais resultou em problemas operacionais que
configuram “ambiguidade de dados”. Por exemplo, ao realizar buscas pelo nome de uma pes-
soa escravizada, hipoteticamente Josefa Mina ou simplesmente Josefa, o usuário poderá depa-
rar-se com inúmeros registros, sem ter a garantia de que todos se referem à pessoa pesquisada.
O problema é agravado por três outros fatores. Primeiro, os nomes portugueses impostos
aos africanos em seus batismos não variavam tão significativamente. Segundo, as pessoas
escravizadas raramente tinham sobrenome, pois seus primeiros nomes eram acompanhados
apenas pelo descritor de suas origens: “nação”. A título de exemplo: Maria Angola, Maria de
nação Mina, José Mina, João de nação Sabarú. Terceiro, em locais onde havia grande con-
centração de povos de uma mesma região africana, como era Minas Gerais, a nação auxilia,
mas não necessariamente permite, desambiguar de imediato dados sobre as pessoas, porque
os descritores de origem tornam-se também comuns. É necessário, então, atrelá-la a outros
elementos.
Essas ambiguidades nas buscas onomásticas, aqui em análise, são geradas quando as in-
formações sobre os escravizados e libertos passam a ser representadas em células de planilha.
No contexto colonial do século XVIII, as características físicas e a inserção de cada pessoa nas
relações sociais das freguesias em que viviam poderiam facilmente singularizá-las, de modo
que proprietários, capatazes, vizinhos, companheiros de lida e companheiros diferenciavam
facilmente uma pessoa da outra. Poucos elementos dessas relações sociais ficaram registrados
nos documentos. É preciso estarmos conscientes, portanto, que uma base de dados possibilita
a recuperação apenas de fragmentos que caracterizavam uma pessoa naquele universo social
mais amplo em que viveram.

78 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 78-87, Janeiro-Abril 2020
Humanidades digitais e diáspora africana: questões éticas e metodológicas na
elaboração de uma base de dados sobre a população escravizada de Mariana (século XVIII)

Apesar de serem fragmentos, eles são absolutamente relevantes para a compreensão


daquelas realidades históricas. Acreditamos que o tratamento digital dos fios soltos e ras-
tros deixados por aquelas vivências potencializa as chances de aproximação das nuanças
daquele contexto. Mas avançar por esse flanco requer o enfrentamento metodológico dos
já enunciados casos de homônimos que abundam nas pesquisas onomásticas em uma base
de dados dessa natureza. Embora o problema pudesse emergir em toda a sua extensão no
funcionamento do sistema de busca e visualização das informações, é necessário encará-lo
e prever soluções já nessa fase da coleta dos dados, porque ela repercutirá nas saídas e nas
possibilidades de busca em linguagem SQL.
Como permitir, então, que os usuários possam saber se dois registros ou mais contendo,
por exemplo, dados sobre “Maria Mina” referem-se a uma mesma pessoa?
Mais uma vez, é o conhecimento da lógica da produção dos documentos no contexto
colonial que nos oferece subsídios para a superação desse desafio técnico. Nossa metodologia
para a desambiguação de nomes de pessoas escravizadas utiliza três variáveis. Conforme
já foi referido, a descrição dos escravizados obedecia a uma grade comum de informações
que diziam respeito à dimensão burocrática da legitimação ideológica da posse de pessoas.
O dado mais ubíquo que acompanharia as referências aos africanos e crioulos em todas as
tipologias seria o nome de seu senhor ou, no caso dos forros, ex-senhor, embora nesse último
caso com menos frequência. Portanto, ele é fundamental para o primeiro nível da estratégia
de desambiguação.
Outro dado que integrava a gramática básica do processo de comodificação dos escra-
vizados era, como vimos, a menção a suas origens: “nação”, a qual estaria sempre associada
ao nome que recebiam no batismo. Isso contribui para avançarmos na localização de uma
pessoa na base de dados, sobretudo se associada a outras variáveis. No caso dos percursos
em que uma pessoa emerge em alguns registros como escravizada e em outros momentos
como liberta, havia uma tendência (o que não era regra) de que a nação fosse abandonada e
substituída por “preta forra” ou “preto forro” e pela adoção do sobrenome do ex-senhor. Isso
ocorria em razão da influência do patronato romano na escravidão ibérica, que previa uma
série de obrigações e demonstrações de gratidão e lealdade dos libertos perante seus antigos
proprietários. Então, também nesses casos dos libertos, o nome do proprietário e ex-proprietá-
rio vai contribuir para rastrearmos a trajetória de vida de uma pessoa na base, possibilitando
que localizemos dados sobre suas vidas antes da alforria. Por exemplo, podemos localizá-las
nas listas dos impostos ou em escrituras de compra e venda, percebendo por onde transitaram
e por qual circuito do tráfico foram trazidas aos arraiais mineiros.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 79-87, Janeiro-Abril 2020 79
Aldair Rodrigues

Ainda que com muito menos frequência, outro elemento ao qual a sociedade colonial
escravista de Minas Gerais recorria para diferenciar uma pessoa da outra e, algumas vezes, dei-
xaram-nas registradas nos documentos, eram as marcas corporais. Aparecem nas fontes como
cicatrizes decorrentes de episódios violentos e conflitos diversos; sinais de varíola (“sinais de
bexiga”); e escarificações rituais que poderiam comumente ser descritas como “sinais de sua
nação” ou “sinais de sua terra”. Em alguns testamentos, os portugueses chegam a interpretar
os sinais no rosto dos africanos ao descreverem suas posses, buscando diferenciar uma pessoa
da outra, sobretudo quando tinham o mesmo nome. Em certas freguesias, os escrivães vão de-
senvolvendo um grau de interesse tão grande pelas escarificações que passam a descrever me-
ticulosamente os cortes na pele, suas formas, texturas e locais do rosto onde estavam inscritas.
Portanto, em razão de sua relevância no contexto setecentista, a estratégia de desam-
biguação onomástica (ou despiste dos homônimos) está estruturada a partir da recuperação
conjunta do a) nome do proprietário, da b) nação e das c) marcas corporais. Isso quer dizer
também que todos os resultados de buscas onomásticas (por meio de SQL) trarão, além do
nome da pessoa escravizada ou liberta, essas três variáveis, além das referências da fonte da
qual foram extraídas. A construção da interface que exibirá os resultados da busca por nome
também vai necessariamente evidenciá-las.
Havendo ainda dúvidas ou suspeitas de ambiguidade, o usuário poderá filtrar a busca
a partir de dados qualitativos mais específicos, descendo para outros níveis de informações
sobre as biografias e as dimensões sociais de suas vidas.

Visualidade e interface

A lém do funcionamento da busca e de sua interligação com o processo de recolha de


dados, a visualização das informações na interface é outra etapa relevante das metodo-
logias interdisciplinares adotadas nos projetos da área de humanidades digitais, em geral, e
da história digital, em particular (compreendida aqui como um subcampo das humanidades
digitais). Segundo Anne Burdick et al. (2012: 83), no quadro das transformações na materiali-
dade da informação nas tecnologias comunicacionais, “as mídias devem ser vistas como parte
do processo de criação de significados”. As escolhas tocantes à exibição das informações na
tela (ordem em que aparecem, seu design, escolha da fonte, cores, tamanho, disposição na
tela e configuração em geral) impactam sobremaneira as formas de produção de conheci-
mento mediadas pela tecnologia. Por isso, devemos considerar as inter-relações entre forma e
conteúdo na história digital, superando uma divisão rígida entre equipes dedicadas somente
à materialidade e profissionais dedicados unicamente aos conteúdos.

80 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 80-87, Janeiro-Abril 2020
Humanidades digitais e diáspora africana: questões éticas e metodológicas na
elaboração de uma base de dados sobre a população escravizada de Mariana (século XVIII)

No caso da base de dados em análise, ao deslocarmos as informações históricas dos


aparatos materiais em que se encontram inscritas nos arquivos coloniais e transformá-las em
variáveis, criamos inúmeras possibilidades de cruzamentos e combinação de informações em
novas escalas de análise. Por outro lado, criamos um obstáculo para que o usuário tenha cons-
ciência da integralidade dos documentos dos quais os dados foram compilados e do contexto
arquivístico em que se encontram inseridos. A experiência de pesquisa tende a ser marcada
pela fragmentação, em virtude de as buscas por variáveis nas bases de dados normalmente
serem realizadas por meio de palavras-chave.
Em sua discussão sobre os impactos e meandros dessas transformações, Joshua Sternfeld
(2011) enquadrou a problemática a partir de suas conexões entre a arquivística e a história.
Propõe que as soluções para a interface devem ser centralizadas na construção e na exibição
dos metadados que apontem a localização nos arquivos das informações históricas represen-
tadas digitalmente. Essa informação deve ser exposta na interface dos artefatos digitais que
lidem com dados históricos de todo tipo. O autor argumenta que, na produção do conheci-
mento historiográfico em contexto digital, tal medida é fundamental para o estabelecimento
de uma relação de confiança entre as práticas historiográficas, as instituições e os usuários de
sites, bases de dados e aplicativos que trabalham com informações históricas.
Destarte, nossa preocupação converge para a construção de uma base cuja interface do
sistema de busca e visualização das informações exiba, independentemente do filtro que o
usuário venha a adotar, a referência (códice, caixa, prateleira, estante, pasta, lata, livro, fólio
etc.) do documento no arquivo e a tipologia documental de que o dado foi extraído. Ou seja,
os resultados são mostrados por cada registro de pessoa escravizada. Disso depende não
apenas a relação de confiança entre o usuário e a base de dados, mas também a percepção
de que os registros foram abertos em função da agência histórica da população africana e de
seus descendentes.
No caso de usuários historiadores, haverá a possibilidade de aprofundamento das pes-
quisas em arquivos a partir da informação localizada na base. Com os documentos originais
em mãos, o pesquisador poderá familiarizar-se com a integralidade do suporte material em
que o fragmento encontra-se registrado, recuperar informações qualitativas que não foram
compiladas na base e conhecer a história custodial da fonte da qual os dados foram extraí-
dos. Ou seja, as bases de dados podem ser artefatos que criam pontes com os arquivos; não
necessariamente os substituem.
Em sua última etapa, utilizando ferramentas de georreferenciamento ArcGIS, o projeto
pressupõe a elaboração de um atlas interativo das principais localidades de procedência dos

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 81-87, Janeiro-Abril 2020 81
Aldair Rodrigues

africanos por meio da representação digital dos descritores de origem (“nação”) encontra-
dos na documentação. Isso facultará, por exemplo, que professores de Ensino Médio possam
dimensionar visualmente as rotas interioranas do tráfico que ainda são pouco conhecidas e
divulgadas em materiais didático-pedagógicos. Por trabalharmos com dados mais permeáveis
à autoidentificação e à experiência social dos africanos, é possível ir além dos pontos de em-
barque pela visualização dos caminhos que conectavam as regiões de origem aos portos na
costa. Tal estratégia contribui para implementação da Lei no 10.639 (Brasil, 2003), que tornou
obrigatório o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira nas escolas brasileiras.12
Os professores terão a opção de explorar esses recursos como material de apoio didático, para
historicizar a diversidade das origens africanas, evitando as armadilhas das imagens racializa-
das, estáticas e generalizadas do continente e de sua história.

História digital e itinerários da formação de quadros


em nível de graduação

A creditamos que as iniciativas na área de humanidades digitais devem preocupar-se com


a formação de quadros em nível de graduação aptos a lidarem com os recursos digitais
no campo da história e, ao mesmo tempo, fornecer-lhes subsídios para uma postura crítica no
processo de configuração das bases de dados e as implicações de suas escolhas metodoló-
gicas. Nesse sentido, o projeto aqui em discussão tem três interfaces principais com práticas
didático-pedagógicas.
A leitura das fontes e a alimentação do banco de dados é realizada com uma equipe
de alunos de graduação dos cursos da área de humanas da Unicamp que têm interesse em
abordagens digitais sobre a história do Brasil colonial e suas conexões com a história da África
e da diáspora.13
Após a seleção, o trabalho dos bolsistas inicia-se com um treinamento em leitura pa-
leográfica de documentos do século XVIII que foram digitalizados, familiarização com as ti-
pologias documentais e suas variações. Em seguida, passam a ter contato com a lógica dos
registros da base, seus campos e o processo de extração e inserção das informações que são
consideradas variáveis conforme eixo organizador do projeto. Toda essa etapa é compreen-
dida como um processo de produção de conhecimento interdisciplinar, e ela se aprofunda ao
ser entrelaçada com a segunda frente do trabalho de formação de quadros. Esta diz respeito
ao envolvimento concomitante dos bolsistas com o grupo de estudos “A diáspora africana
no interior do Brasil colonial”. Seu principal objetivo é franquear aportes para que os alunos
compreendam o contexto em que os documentos foram produzidos, suas potencialidades e o

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Humanidades digitais e diáspora africana: questões éticas e metodológicas na
elaboração de uma base de dados sobre a população escravizada de Mariana (século XVIII)

papel da base de dados para avanços na produção de conhecimento sobre a presença africana
na formação histórica do Brasil. A participação no grupo é institucionalizada por matrícula em
Estudos Dirigidos e oferece dois créditos por semestre, o qual é aberto a todos os alunos de
graduação da Unicamp; portanto, não é exclusiva dos bolsistas do projeto.
A partir desses subsídios, os alunos têm a oportunidade de se engajarem em projetos
de iniciação científica, formulando problemas de pesquisa com base no contato com a biblio-
grafia, fontes, metodologias de história digital, e, assim, prepararem-se para seguir a carreira
acadêmica em nível de pós-graduação.
Por meio das estratégias descritas, buscamos formar profissionais hábeis para o trabalho
crítico e interdisciplinar com as ferramentas digitais, desenvolvendo habilidades e, ao mesmo
tempo, uma perspectiva ética a respeito das questões subjacentes à história digital, abordan-
do suas implicações epistemológicas, políticas e sociais.

Considerações finais

O projeto analisado como um estudo de caso ao longo deste artigo engaja-se no esforço
de superação de uma imagem genérica e racializada do continente africano e de sua
história. Por muito tempo, as milhares de pessoas que foram escravizadas e trazidas para o
Brasil entravam nos livros didáticos e na memória coletiva apenas nos capítulos sobre o tráfico
e a escravidão. Mais do que escravos e descendentes de escravos, são pessoas escravizadas
e descendentes de pessoas escravizadas e, no contexto da escravização na África e de suas
vivências nas Américas, encontravam-se inseridas em múltiplas dinâmicas sociais e políticas.
Assim, uma abordagem digital de suas origens, à luz da história da África e da diáspora, con-
tribui para um esforço mais amplo de aproximação das complexidades e nuanças da história
do continente.
As opções metodológicas da iniciativa levaram em conta também o fato de o projeto
ser desenvolvido no país que foi o maior importador de pessoas escravizadas das Américas
(mais de 5 milhões de pessoas de um total de cerca de 12 milhões),14 o que marcou profun-
damente sua formação histórica, com consequências na constituição de desigualdades sociais
e étnico-raciais. Se um dos principais objetivos do trabalho é expandir o conhecimento sobre
as origens das africanas e dos africanos, consequentemente lidamos com a luta por cidadania
da população afrodescendente no que toca aos avanços nos estudos sobre a história do país
a partir de suas conexões com a África. Propiciar e incentivar a produção de conhecimento
histórico nessa área tornam-se, assim, uma potente estratégia de combate aos impactos do
racismo estrutural e de seus efeitos no campo epistemológico.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 83-87, Janeiro-Abril 2020 83
Aldair Rodrigues

Ao disponibilizar na internet informações de natureza genealógica e biográfica, o projeto


oferece elementos para processos de reparação por meio da promoção do direito à memória,
elaboração de identidade e pertencimento da população descendente de africanos. Tais fato-
res, de natureza ética, social e política, foram considerados nas metodologias que informam a
configuração da base e seu funcionamento em ambiente virtual.
A abordagem crítica aqui desenvolvida torna-se possível por entendermos que o per-
curso que envolve a construção da base de dados é também um processo de produção de
conhecimento, indo muito além de uma operação técnica com recursos digitais. Assumir essa
dimensão possibilita a superação da dicotomia entre o campo das “humanidades tradicio-
nais” e o das “humanidades digitais”, conforme crítica contundente formulada pelos autores
de “The dark side of the digital humanities” (Chun et al., 2016) — como se a primeira se
ocupasse de “fazer coisas”, e a segunda, de “criticar coisas”. Na verdade, acreditamos que
essa é uma falsa dicotomia, pois qualquer desenvolvimento de projetos na área de história
digital deve incluir o trabalho crítico do coordenador e de sua equipe, do início ao fim, deman-
dando a mobilização de conhecimento historiográfico aprofundado sobre o contexto a que a
base refere-se e uma ponderação sobre as metodologias a serem adotadas à luz da produção
recente sobre o campo. Portanto, argumentamos que o processo de concepção e execução dos
projetos em história digital deve ser encarado como uma instância de produção de conheci-
mento historiográfico dentro das humanidades digitais.

Notas

1 Sou grato às leituras críticas dos três pareceristas anônimos que avaliaram o artigo e também aos comen-
tários e sugestões de Ivana Stolze, Iara Schiavinatto, Natã Freitas e Diego Pereira.
2 No site Slave Voyages, além da base de dados, há múltiplos ensaios que comentam e analisam o processo
de construção da base de dados e uma infinidade de recursos didático-pedagógicos. Disponível em: <https://
www.slavevoyages.org/>. Acesso em: 8 jun. 2019.
3 Disponível em: <http://enslaved.org/about/>. Acesso em: 8 jun. 2019.
4 SLAVE SOCIETIES. Disponível em: <https://www.slavesocieties.org/>. Acesso em: 10 jun. 2019. O projeto
inclui em sua equipe Mariza Soares e outros pesquisadores brasileiros.
5 Em 1735, segundo o ouvidor Caetano da Costa Matoso, Mariana tinha 26.892 escravizados; era seguida
pelo termo de Sabará, com 24.284; Vila Rica, com 20.863; Rio das Mortes, com 14.400; e Serro Frio, com
10.102. Cf. CODICE Costa Matoso. Edição de Luciano Figueiredo e Maria Veronica Campos. Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro/Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999. p. 407.
6 O termo “nação”, no contexto do tráfico e da escravidão do século XVIII, não deve ser confundido com os
conceitos de Estado-nação ou nacionalidade forjados no século XIX. Como será mais bem discutido adiante,

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Humanidades digitais e diáspora africana: questões éticas e metodológicas na
elaboração de uma base de dados sobre a população escravizada de Mariana (século XVIII)

“nação” designa uma variada nomenclatura relacionada com as origens africanas. Podem significar tanto
grupos étnicos e identidades políticas quanto noções territoriais genéricas ligadas à geografia do tráfico.
7 ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO. Tribunal do Santo Ofício. Diponível em: <https://digitarq.
arquivos.pt/details?id=2299703>. Acesso em: 23 nov. 2019.
8 Disponível em: <https://www.ifch.unicamp.br/ifch/pesquisa/bases>. Acesso em: 15 dez. 2019. O trabalho
conta com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) por meio
do projeto “Os grupos étnicos africanos no Brasil colonial: rotas do tráfico e etnicidades (Minas Gerais, século
XVIII)”, AUXPE 0382/2016 (Grande Prêmio Capes de Teses/Humanidades, 2013). Os bolsistas que trabalham
na base são remunerados pelo Programa de Bolsas de Auxílio Social/Unicamp.
9 Esses aspectos serão retomados adiante nas seções sobre metodologia. Para uma perspectiva contemporâ-
nea (e mais otimista) sobre aspectos teóricos e metodológicos envolvendo os usos de inteligência artificial na
produção historiográfica, consultar Nicodemo e Cardoso (2019: 17-52).
10 Diferentemente do que acontece nos acervos de Minas colonial, documentos referentes a embarcações do
século XIX apreendidas no Atlântico podem conter os nomes africanos das pessoas a bordo. As possibilidades
metodológicas de uso dessas informações históricas por meio de banco de dados podem ser verificadas em
Anderson et al. (2013: 165-191). Para uma análise recente da experiência de pesquisa nos arquivos do tráfico
ilegal, ver Miki (2019: 87-105).
11 Almeida (2012). Sobre as possibilidades de identificação dos contextos de origem dos traficados a partir
de uma metodologia quantitativa, consultar Bukas-Yakabuul e Silva (2016: 34-43).
12 Essa lei foi ampliada em 2008, quando tornou obrigatório também o ensino de história indígena: Lei no
11.645 (Brasil, 2008).
13 Atualmente, a equipe de bolsistas do programa Bolsa de Apoio Social (BAS)/Unicamp é formada pelos gra-
duandos Caroline Cunha (história) e Natã Freitas (história). Desde 2016, já fizeram parte da equipe: Jefferson
Athaydes (história), Pedro Gericó (história – bolsista IC Faepex), Leonardo Leoz (ciências sociais), Franceline
Galdino (letras) e Victor Sampaio (ciências sociais). Além desses, William Carvalho desenvolveu um projeto
para a preservação digital dessa base e de outras que compõem o Centro de Pesquisa em História Social da
Cultura (Cecult), o que resultou em sua monografia de bacharelado e em seu projeto de mestrado em ciências
da informação na Universidade de São Paulo (USP) (Silva, 2018). A equipe de informática do IFCH da Unicamp
que auxilia no projeto é coordenada por Eduardo Rigato.
14 Durante toda a era do tráfico transatlântico, o Brasil era o destino, sozinho, de cerca de 5,8 milhões de
pessoas do total de cerca de 12,5 milhões de africanos deportados da África. Cf. Eltis e Richardson (2010).

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Aldair Rodrigues

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Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 87-87, Janeiro-Abril 2020 87
Artigo

Portugal Builds: uma plataforma digital


para a história da construção em
Portugal nos séculos XIX e XX
Portugal Builds: a digital knowledge platform for the history
of construction in Portugal 19th-20th centuries
Portugal Builds: una plataforma digital para la historia de la
construcción en Portugal en los siglos XIX y XX

João Mascarenhas MateusI*

Ivo VeigaII*

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942020000100006

I
Universidade de Lisboa, Portugal.

* Investigador principal FCT do Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design (Ciaud) da Faculdade de
Arquitetura da Universidade de Lisboa ([email protected]). ORCID ID: http://orcid.org/0000-0002-9910-6328.

II
Universidade de Lisboa, Portugal.

* Investigador auxiliar, Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa e membro associado do IHC, Nova FCSH
([email protected]). ORCID ID: http://orcid.org/0000-0001-8385-3030.

Artigo recebido em 31 de julho de 2019 e aprovado para publicação em 3 de dezembro de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 88-110, Janeiro-Abril 2020 88
Portugal Builds: uma plataforma digital para a
história da construção em Portugal nos séculos XIX e XX

Resumo
São apresentados os procedimentos da criação de uma plataforma digital de acesso gratuito destinada à disse-
minação dos resultados da investigação no campo da história da construção em Portugal, durante os séculos XIX
e XX. Depois da descrição das fontes das coleções digitais, procede-se à análise da metodologia usada em sua
estruturação e nas adaptações às singularidades desse campo de conhecimento de discussão recente. O estudo é
ilustrado com a primeira exposição virtual, avaliando potencialidades e limites da plataforma para diferentes níveis
de pesquisa no espaço e no tempo, relativas a atores individuais e coletivos e a objetos concretos e abstratos.

Palavras-chave: Coleções digitais; História digital; História pública; História da construção; Análise de
redes; Portugal.

Abstract
The study aims to discuss the procedures for the creation of an open access digital platform to the dissemination
of historical findings on construction history in Portugal, from 19th to 20th centuries. Digital collections description
is followed by the methodology used to set the platform structure and the adaptations introduced to consider the
singularities of this new field of knowledge. The paper is illustrated with the first virtual exhibition allowing an
evaluation of the platform’s potential and the limits at different levels of research in time and space, relating indivi-
dual and collective actors, as well as concrete and abstract objects.

Keywords: Digital collections; Digital history; Public history; Construction history; Social network analysis;
Portugal.

Resumen
Este artículo analiza los procedimientos de creación de una plataforma digital de acceso libre para diseminación de
resultados de pesquisa sobre la historia da la construcción en Portugal, en los siglos XIX-XX. A la presentación de
las colecciones digitales se sigue la discusión de la metodología usada en su estructuración y las adaptaciones a las
singularidades del nuevo campo de conocimiento. El estudio es ilustrado con la primera exposición virtual, evaluando
potencialidades y límites de la plataforma para diferentes niveles de pesquisa en el espacio y en el tiempo, relacio-
nando actores individuales y colectivos y objetos concretos y abstractos.

Palabras clave: Colecciones digitales; Historia digital; Historia pública; Historia de la construcción; Análisis
de redes; Portugal.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 89-110, Janeiro-Abril 2020 89
João Mascarenhas Mateus e Ivo Veiga

Introdução

N este tempo em que se abrem múltiplas possibilidades de obter e analisar dados históricos,
importa definir estratégias sustentáveis de investigação que exponham objetos digitais
de uma forma publicamente acessível e conceitualmente argumentada. Este texto pretende
discutir os principais procedimentos levados a cabo na disponibilização em linha de coleções
digitais e, assim, contribuir para a definição de projetos digitais de história pública. Todos os
argumentos são construídos a partir de um projeto de pesquisa sobre a história da construção
em Portugal nos séculos XIX-XX.1
O projeto enquadra-se no esforço internacional de dar corpo à história da construção e
torná-la uma disciplina autônoma. Assume-se que, para analisar a história do modo como se
construiu em Portugal em uma perspetiva histórica e espacialmente situada, importa recorrer
ao conceito de cultura construtiva proposto inicialmente por Jane Morley (1987: 19), retoma-
do e reajustado posteriormente por Howard Davis (2006: 5): “The culture of building is the
coordinated system of knowledge, rules, procedures, and habits that surrounds the building
process in a given place and time.” Nesse sentido, examinar a história das culturas construti-
vas em Portugal implica revisitar as principais fases da transformação do conhecimento, dos
processos e dos habitats a elas associadas, de forma a tornar compreensível as “transfor-
mações históricas ocorridas nos materiais, modos e gramáticas da construção no território
continental português” (Mascarenhas-Mateus, 2013).
O projeto PTBuilds, dedicado à criação de uma plataforma digital sobre a história da
construção em Portugal nos séculos XIX e XX,2 que se encontra em fase de elaboração, pro-
cura contribuir para a análise de novos dados empíricos desse campo do conhecimento, ainda
pouco explorado. A utilização de meios digitais permite potenciar a disseminação dos resul-
tados de investigação da história da construção, tal como as próprias humanidades digitais.
Pretende-se, assim, demonstrar que as ferramentas digitais são um instrumento heurístico útil
para o desenvolvimento de novas abordagens historiográficas. Para além disso, o recurso à
contribuição colaborativa, por meio do sistema de gestão de conteúdos Omeka,3 pode auxiliar
na integração de informação dispersa sobre os atores do setor da construção, que, na maior
parte das vezes, têm sua investigação histórica limitada a pequenos portfólios confinados no
espaço e tempo. Assim, a colocação de exposições temáticas na plataforma, nomeadamente
a primeira, que é dedicada à história das grandes empresas construtoras de obras públicas
ativas em Portugal no final do século XX,4 pretende servir como estímulo, ou provocação, a
um setor que produz conhecimento histórico de forma dispersa e fragmentada. Ficarão a ser
conhecidas com mais rigor as transformações de um setor de atividade que, em Portugal,

90 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 90-110, Janeiro-Abril 2020
Portugal Builds: uma plataforma digital para a
história da construção em Portugal nos séculos XIX e XX

contribui para uma percentagem significativa das emissões de gases com efeito estufa, que
tem um peso importante em seu produto interno bruto (PIB) e constitui parte significativa
de sua população ativa.5 Nesse sentido, a plataforma constitui-se em um repositório intera-
tivo útil à discussão do desenvolvimento sustentável do setor da indústria da construção, à
proteção do patrimônio cultural e às políticas de gestão do território e da paisagem. Estu-
dar a história da construção é também contribuir para o capital de conhecimento necessário
à implantação de estratégias de sustentabilidade, com a utilização de dados históricos por
parte de empresas, de investigadores, de educadores e de outros utilizadores diversificados. O
presente estudo é focado no processo de estruturação da plataforma digital (Figura 1), e, por
essa razão, a maioria das imagens da primeira exposição virtual, que é consequência direta
dessa formulação inicial aqui descrita em detalhe, só é colocada no fim do texto, de modo a
ilustrar a concretização da abordagem analítica.

Figura 1 – Página inicial da plataforma: <http:// www.portugalbuilds.org>.

Métodos e instrumentos digitais para a história da


construção

O modo de produzir o conhecimento histórico, como resultado da disseminação das fontes


e dos instrumentos digitais, está a transformar-se de forma acelerada. O uso da compu-
tação nos domínios disciplinares da história não é novo, nem é nova a mudança de escalas de

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 91-110, Janeiro-Abril 2020 91
João Mascarenhas Mateus e Ivo Veiga

análise que ela possibilita (Lemercier, 2015a). Contudo, a disponibilidade crescente de dados
massivos sob forma digital implica o desenvolvimento de ferramentas que otimizem seu uso.
Por essa razão, vários historiadores têm vindo a chamar a atenção para as oportunidades do
tratamento de dados históricos massivos (Guldi e Armitage, 2014; Krakauer et al., 2018).
Nesse sentido, a criação de novas infraestruturas tem tido, recentemente, um grande desenvol-
vimento. Para dar apenas alguns exemplos, são de referir o Seshat: Global History Databank6
ou a Europeana,7 a disponibilização de vastos arquivos digitais com instrumentos analíticos,
como o History Lab, da Universidade de Columbia,8 ou a utilização de dicionários históricos
biográficos com ampla informação (De Paiva et al., 2014). Com esses instrumentos, inves-
tigadores e usuários passaram a poder explorar objetos de estudo que cobrem décadas ou
mesmo séculos, relacionando-os sob diferentes tipos, formatos e suportes — imagens, vídeos,
gráficos, diagramas e mapas. As muitas técnicas digitais atualmente disponíveis permitem
também que informação ligada à micro-história esteja cada vez mais presente na investigação
de problemáticas complexas (Putnam, 2016).
Sem dúvida, os cruzamentos disciplinares, a utilização de novas metodologias para da-
dos interligados de grande dimensão (Bearman, 2015; Strausser e Edwards, 2017) e o uso
de diferentes escalas de análise são opções promissoras nas modalidades de investigação no
período historiográfico atual. Uma das nobres tarefas dos historiadores — “identificar unifor-
midades e diferenças na experiência humana por forma a fazer comparações significativas no
espaço e no tempo” (Boldizzoni, 2011) — fica também mais facilitada com as capacidades
atuais da digitalização. Por outro lado, essas novas metodologias de análise de dados digitais
permitem não só examinar invariantes como questionar as fronteiras comparativas. É o caso
da análise de redes sociais e da abordagem espacial.9
A análise de redes sociais e o movimento de espacialização da história transnacional
permitem colocar hipóteses, mudar escalas e prioridades, perspectivar erros e dar maior ro-
bustez e sistematização aos dados (Lemercier, 2015b; Struck, Ferry, e Revel, 2011). A aborda-
gem dessas problemáticas, que conduzem ao estudo das sociedades como redes de relações
multiescalares, encontra suas raízes em uma já venerável e antiga tradição de estudo, não só
nos exercícios de história transnacional propostos por autores como Max Weber (1978) ou
Fernand Braudel (1992), como também na análise de redes sociais desenvolvida por trabalhos
como os de George Simmel (1971). Se o mundo contemporâneo é tecido em uma rede com-
plexa de relações comerciais e intelectuais, se a história local está ligada à global, se as ideias
e os bens não estão confinados aos limites das nações, ou seja, se uma nova configuração dos
objetos históricos permite olhar para uma história global e transnacional, então essas trans-

92 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 92-110, Janeiro-Abril 2020
Portugal Builds: uma plataforma digital para a
história da construção em Portugal nos séculos XIX e XX

formações abertas pela tecnologia dilatam a amplitude do trabalho e atribuem-lhe uma forte
base empírica. Nesse âmbito, vários grupos de investigação internacionais que têm dados
digitalizados em larga escala têm aplicado essas metodologias. Mencione-se, por exemplo,
o projeto Mapping the Republic of Letters (Edelstein et al., 2017), desenvolvido em parceria
pela Universidade de Stanford. Entre vários estudos de caso, é possível constatar como muitos
projetos têm-se beneficiado das capacidades analíticas da análise de redes sociais, recorrendo
aos metadados e repensando os limites das histórias nacionais.
O setor da construção, por sua escala, processos de difusão tecnológica e técnica, en-
volvimento com os campos econômico, social e político, constitui um campo perfeito para
explorar a relação entre as escalas global, nacional e local, as múltiplas relações de atores in-
dividuais e coletivos e as complexas relações dos atores com os artefatos históricos. Para além
disso, transcendendo histórias nacionais e interpretações locais e regionais, é possível lançar
pontes para projetos futuros no âmbito das várias associações nacionais dedicadas à história
de como se construiu em determinado momento histórico e em dado lugar.10
Nos últimos anos, têm surgido muitas coleções digitais, ligadas a história, patrimônio ou
instituições culturais.11 A própria Europeana tem seguido esse princípio das coleções e expo-
sições.12 Nesse caminho digital, iniciado em outras áreas do conhecimento, junta-se agora o
projeto PTBuilds, dedicado à história da construção. Com base em um vasto levantamento de
fontes digitalizadas já iniciado em um projeto anterior,13 procura formular novas hipóteses e
estabelecer relações entre objetos históricos que anteriormente não foram feitas no campo
da construção. Para isso, desenvolve, com base no sistema de gestão de dados Omeka, várias
coleções destinadas à apresentação de exposições virtuais em linha. Nesse campo de conhe-
cimento, os dados obtidos poderão ser questionados de forma mais complexa e relacional.
Quem foram os atores mais proeminentes no campo da construção ao longo dos séculos XIX
e XX? Que relações estabeleceram entre si? Que relações se podem estabelecer entre obras
e atores? Quais foram os mecanismos responsáveis pelos vários processos de mudanças de
paradigmas técnicos e tecnológicos? Como essas redes de relações foram evolucionando no
espaço e no tempo?

As fontes das coleções de dados

A heterogeneidade dos dados passíveis de integrar um projeto no âmbito da história da


construção exige um critério de seleção das fontes e uma ponderação de suas con-
sequências no nível da análise. Os dados de base disponibilizados pelo projeto anterior, já
referido, e destinados à plataforma reúnem informação fundamental sobre as mais importan-

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 93-110, Janeiro-Abril 2020 93
João Mascarenhas Mateus e Ivo Veiga

tes transformações do setor da construção ocorridas em Portugal durante os séculos XIX e XX,
no campo do ensino da engenharia e da arquitetura, na organização das várias corporações
de profissionais, nos materiais, processos e máquinas usados nas construções, na legislação e
na divulgação periódica e generalista. Inclui a recolha sistemática de dados estatísticos, bio-
grafias de engenheiros, arquitetos e construtores e informação sobre as características físicas
e construtivas das principais obras públicas realizadas nesse período. Os dados consistem
em cerca de 28.444 imagens em formato digital e .pdf, que correspondem a cerca de 10 mil
artigos ou partes de artigos de periódicos, capítulos de livros e imagens, e a cerca de 2 mil
citações e verbetes. Todos esses dados ocupam cerca de 100 Gigabytes, que se encontram
armazenados em dois discos rígidos externos e em um disco em linha associado a uma conta
Google. Nesses dados, recolhidos durante três anos por uma equipe de dois investigadores,
estão incluídas também listas de hiperligações de arquivos em formato de vídeo. A importân-
cia desse volume de dados exige apenas ser completado pontualmente, quando necessário,
no presente projeto.
As coleções digitais que alimentam a plataforma tiveram origem em diferentes arquivos
e em diferentes formatos: documentos escritos, fotografias, filmes e registros de áudio. No
que se refere a documentos escritos, devem-se salientar os anúncios comerciais de materiais
de construção, as monografias científicas e de propaganda, os relatórios, as estatísticas, os
decretos-leis e regulamentos para o setor da construção civil e obras públicas produzidos por
instituições públicas e privadas (Ministério das Obras Públicas, Associação Industrial Portu-
guesa, Instituto Nacional de Estatística, Instituto de Propriedade Industrial), as monografias
e os periódicos de engenharia, como Técnica, Revista de Obras Públicas e Minas, Revista de
Engenharia Militar, revistas de arquitetura (A Construção Moderna, A Arquitectura Portugue-
sa, Revista Oficial do Sindicato Nacional dos Arquitectos, Binário), ou ainda a revista Indústria
Portuguesa e a Gazeta dos Caminhos-de-Ferro. Entre os arquivos consultados, mencionem-se
a Biblioteca e Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas (hoje integrado ao Ministério
da Economia), o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, as bibliotecas das Ordens dos Arquite-
tos e dos Engenheiros, o Sistema de Informação para o Património Arquitetónico, a Biblioteca
Nacional Digital, o Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, o Centro Português de Fotografia,
a Cinemateca Nacional, o Arquivo da Rádio Televisão de Portugal. Os documentos cartáceos
introduzidos na plataforma foram digitalizados com o recurso a scanners, e seus conteúdos
podem ser pesquisados beneficiando-se de OCR (Optical Character Recognition), ajudando,
por exemplo, a procurar referências a determinados atores ou objetos nas dezenas de milhares
de documentos à disposição.

94 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 94-110, Janeiro-Abril 2020
Portugal Builds: uma plataforma digital para a
história da construção em Portugal nos séculos XIX e XX

O projeto PTBuilds

O principal objetivo do projeto é a criação de uma plataforma digital de conhecimento de


acesso aberto dedicada à história do setor da construção em Portugal nos séculos XIX e
XX. Nos dois séculos de história portuguesa que nos interessam, assistiu-se a uma mudança
de paradigma entre as culturas construtivas milenares, baseadas na cal, e as novas culturas
construtivas do aço, cimento Portland e vidro (Mascarenhas-Mateus, 2016a; Tostões, 2015).
Esse câmbio iniciou-se por um período de experimentação e de otimização semi-industrial da
cultura das alvenarias de pedra e cal e dos sistemas mistos de madeira-ferro e alvenarias, que
foi muito sustentada pela necessidade urgente de reconstruir as zonas destruídas pelo grande
terramoto de Lisboa de 1755. A transformação prosseguiu com a institucionalização do ensino
no nível das academias e com a introdução do modelo politécnico, o controle de parte signifi-
cativa das indústrias produtivas e do comércio por parte do Reino Unido — como a fabricação
do vidro ou do ferro —, bem como com as primeiras importações de cimento Portland e a
construção da rede ferroviária. A esse período seguiu-se outro, de formato nacional, caracteri-
zado pelo controle da produção industrial dos materiais de construção, fundamentalmente na
primeira metade do século XX, com as primeiras obras que utilizaram o sistema Hennebique
de concreto armado, a implementação das cimenteiras portuguesas, a criação da rede elétrica
nacional, da Companhia Portuguesa de Fornos Eléctricos e, posteriormente, da Siderurgia Na-
cional, já na década de 1960. Convém sublinhar, todavia, que em resultado de uma industria-
lização débil e um desenvolvimento socioeconômico pouco robusto, as culturas construtivas
da pedra e cal das zonas rurais continuaram a coexistir com o betão armado das cidades e
zonas industriais (Mascarenhas-Mateus, 2016b). Só nas décadas de 1970-1980 a indústria
cimenteira portuguesa tornou-se dominante em todos os setores da construção, tornando
residual a cultura da cal.
Com a plataforma digital, procura-se cruzar esses processos históricos, que se movimen-
taram a diferentes ritmos, constituindo-se, assim, um instrumento fundamental para tornar
acessível a informação (estatísticas, mapas, gráficos, imagens fotográficas, vídeos e links) in-
dispensável para compreender a atuação de todos os agentes envolvidos na execução das
construções e em sua apresentação a públicos especializados ou ao grande público: indiví-
duos, empresas, instituições e associações.
Importa acrescentar que, para além de colocar em acesso aberto a história dos últimos
dois séculos de um dos mais importantes setores de atividade econômica portuguesa, o proje-
to relaciona não só atores, mas também objetos e processos históricos pouco explorados pela
comunidade acadêmica portuguesa. Considerando, em particular, o período em que o aço e

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 95-110, Janeiro-Abril 2020 95
João Mascarenhas Mateus e Ivo Veiga

o betão tornaram-se sistemas construtivos incontornáveis, a plataforma “Portugal Builds –


séculos XIX-XX/19th-20th centuries” mapeia diferentes objetos históricos georreferenciados
em diversos níveis de análise: indústrias extrativas e transformadoras de materiais de constru-
ção, grandes infraestruturas em ferro e aço (pontes, viadutos, gares e equipamentos vários de
ferrovias, estradas, barragens, portos, pavilhões industriais e núcleos urbanos), construções em
concreto armado de referência (cais de embarque, tanques, edifícios fabris, habitacionais etc.),
construções em concreto pré-esforçado, em concreto pré-fabricado etc.
Assim, cada objeto histórico é associado ao contexto de sua produção, relacionando
entre si os âmbitos local, regional e nacional, o que permite perceber o impacto das mudan-
ças tecnológicas e técnicas globais na cultura das comunidades em Portugal. Uma vantagem
analítica, que se traduz em uma melhor compreensão dos processos de transferência e troca.
A aplicação de diferentes níveis de análise é, para além disso, relevante para estudar as redes
sociais, ou seja, os padrões das interações entre os atores do setor da construção. Por exemplo,
pode ajudar-nos a compreender a posição de um ator no seio de uma rede complexa, ou, para
dar outro exemplo, ajudar a clarificar as relações entre múltiplas organizações de empresas e
de profissionais. De forma sintética, as unidades de análise são estabelecidas temporalmente
a várias escalas do território, de objetos e de atores, conduzindo a relações e padrões próprios
da história da construção.

A criação da plataforma digital e a classificação dos


dados

E xistem muitos textos dedicados à apresentação de plataformas digitais, mas não é comum
discutir os passos necessários para desenvolvê-las. A acessibilidade gratuita a essa plata-
forma constitui um critério fundamental para sua elaboração. Por outro lado, espera-se que o
tema não se esgote nos produtos de história pública digital previstos e que atinja não só es-
tudiosos acadêmicos e empresariais, como também decisores do próprio setor da construção.
Por esse motivo, como mais à frente será explicado, procurar-se-á entender sua recepção junto
a públicos diversos. No caso do projeto PTBuilds, a simplicidade de uso foi igualmente consi-
derada prioritária na arquitetura geral da plataforma, para garantir a máxima acessibilidade
e consulta da informação pelos diversos públicos. A escolha de duas línguas — português e
inglês — insere-se no objetivo do projeto de não se confinar às realidades nacionais e ser-
vir a propósitos comparativos com a história da construção internacional. A plataforma está
alojada nos servidores da empresa Reclaim Hosting,14 que é especializada nesses serviços nos
setores acadêmicos e da pesquisa, e permanecerá acessível mesmo depois de o projeto estar

96 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 96-110, Janeiro-Abril 2020
Portugal Builds: uma plataforma digital para a
história da construção em Portugal nos séculos XIX e XX

concluído, reduzindo o número de entidades intermediárias para garantir sua manutenção.


Com o servidor alojado no Reclaim Hosting, tornou-se mais ágil a instalação do sistema de
gestão de conteúdos Omeka, pois se passou a ter acesso ao software necessário para que ele
funcione — Linux, Apache, MySQL e PHP. Os ficheiros e pastas são alojados em uma diretoria
do servidor, no qual também se podem gerir os módulos de extensão (ferramentas que com-
plementam as funcionalidades nativas do sistema).
Existe uma vasta oferta de sistemas de gestão de conteúdos que poderiam, em potência,
servir aos propósitos desse projeto. No entanto, optou-se pela escolha de uma solução que
desse garantias de rigor e de manutenção e que ao mesmo tempo pudesse oferecer uma
personalização focada na apresentação de resultados de investigação científica nos campos
da história e das artes. Nesse âmbito, o Omeka é uma plataforma muito usada por instituições
culturais e museus, que permite colocar em linha coleções e exposições virtuais, baseando-se
na utilização funcional do esquema de metadados Dublin Core15 (Figura 2). O sistema consiste
em uma família de produtos — Omeka Classic, Omeka.net e Omeka S —, com diferentes
funcionalidades. Para o projeto, escolheu-se o Omeka Classic, que tem uma grande flexibili-
dade no nível da adoção de módulos de extensão e é mais dirigido a projetos individuais e
pequenas equipes, por oposição ao Omeka S, orientado ao uso de instituições.

Figura 2 – Exemplo do preenchimento das 15 propriedades do Dublin Core, no sistema


Omeka, para uma das empresas integradas na primeira exposição virtual da plataforma.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 97-110, Janeiro-Abril 2020 97
João Mascarenhas Mateus e Ivo Veiga

Em uma primeira fase, foram mapeados centenas de sítios de instituições acadêmicas e


culturais, com o objetivo de reconhecer boas práticas de utilização desse sistema na relação
com seus públicos. Com esse fim, optou-se por desenvolver os elementos gráficos a partir do
tema The Daily, recorrendo à programação nas linguagens CSS e PHP para personalizar alguns
dos aspectos da apresentação dos conteúdos oferecidos pelo Omeka.
Remetendo à estrutura de organização dos museus, na utilização do Omeka está sub-
jacente a ideia de criação de “coleções contextualizadas cuja curadoria é realizada por meio
do sistema” (Shintaku et al., 2018: 53). Um Item é a unidade digital de base do Omeka. Uma
Coleção é um conjunto de Itens. A Exposição, organizada por páginas, permite usar os Itens
das Coleções para fins temáticos e analíticos, embora não seja uma funcionalidade de origem
do Omeka e exija o módulo de extensão Exhibit Builder. Também é possível recorrer às etique-
tas (Tags) para categorizar os Itens.
Para além das possibilidades referidas, o Omeka foi escolhido também por permitir a
instalação de módulos de extensão desenvolvidos pela comunidade de usuários do sistema,
possibilitando uma gestão mais eficiente da plataforma e uma melhor flexibilidade e atuali-
zação das ferramentas de navegação acessíveis aos usuários. Para além do já referido Exhibit
Builder, foram igualmente instalados os seguintes módulos de extensão: Collection Tree, que
permite organizar as Coleções de forma hierarquizada; Item Relations, que permite estabe-
lecer relações entre Itens, usando o número de identificação do Item criado pelo sistema;
Geolocation, que possibilita a atribuição de uma localização aos Itens por meio de mapas;
Neatline e Storytelling, que garantem a georreferenciação, mostrando as mudanças espaciais,
tendo em conta a variação temporal e criando anotações de imagens.
Procurou-se, igualmente, que as possibilidades de navegação fossem ao encontro das
preferências dos usuários, oferecendo a exploração das coleções de Itens ou a orientação da
pesquisa para determinados Itens. Assim, para além de um vocabulário mais controlado ligado
à linguagem nativa, foi possível usar instrumentos interativos, como a análise de redes ou
cronologias de eventos com base em critérios espaciais e temporais.
Tendo em conta o exposto, e antes de se proceder à implementação da plataforma, foi
necessário desenvolver um trabalho conceitual, para ajustar as exigências dos objetos históri-
cos relacionados com a história da construção ao esquema de metadados considerados pelo
Omeka. Sem dúvida, alguns modelos de dados procuram captar toda a variação dos objetos
históricos e estão, simultaneamente, interessados em examinar sua representação. Um bom
exemplo é o projeto SyMoGIH – Système Modulaire de Gestion de l’Information Historique,
que desenvolveu um modelo genérico de armazenamento para garantir a interoperatividade

98 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 98-110, Janeiro-Abril 2020
Portugal Builds: uma plataforma digital para a
história da construção em Portugal nos séculos XIX e XX

de dados de diferentes projetos, com diferentes abordagens disciplinares (Beretta, 2017).


Contudo esses modelos mais genéricos, que têm sua raiz em um nível elevado de agregação
dos dados, implicariam um esforço excessivo no nível do tratamento dos dados em um projeto
com a escala e amplitude do PTBuilds. Por essa razão, a informação foi formalizada de maneira
sistemática, fiável e replicável no âmbito dos objetos e atores relacionados com a história da
construção. Assim, a plataforma PTBuilds foi estruturada em quatro grandes objetos de aná-
lise: 1) Atores Individuais; 2) Atores Coletivos; 3) Objetos Concretos; e 4) Objetos Abstratos,
que correspondem às quatro Coleções principais da plataforma. Essas quatro categorias de
objetos foram revistas e afinadas gradualmente, conduzindo a uma conformação estável de
subcategorias.

Atores e objetos no espaço e tempo

N aturalmente, uma história da construção é habitada por atores — sejam eles individuais
ou coletivos.

1) Atores Individuais

Engenheiros, arquitetos e acadêmicos, apenas para dar alguns exemplos, povoam o espaço
da história da construção. São eles que empreendem iniciativas, registram patentes e ensi-
nam nas escolas e universidades. Pode-se, na verdade, contribuir para uma história social das
elites a partir do estudo da atividade de atores como engenheiros e arquitetos. No entanto,
outros atores frequentemente deixados na sombra não podiam deixar de ser considerados na
plataforma PTBuilds (Figura 3). Assim, integrou-se também o contributo dos profissionais que
trabalham em contato direto com as obras, salientando os construtores e os mestres de obras
e considerando ofícios como os de pedreiro, carpinteiro, serrador ou forneiro. Essa abordagem
permite resgatar também aspectos menos conhecidos, como a importância do trabalho das
mulheres em certas atividades, tais como o transporte de argila para a indústria cerâmica
tradicional e de concreto para as primeiras pontes Hennebique realizadas em território por-
tuguês. Por essa razão, para os Atores Individuais, foram criadas as subcategorias: Empreen-
dedor, Político, Funcionário Público, Técnico (Engenheiro Civil/Militar, Arquiteto, Mestre de
Obras), Acadêmico (Professor, Investigador), Trabalhador (carpinteiro, mecânico, manual etc.).

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João Mascarenhas Mateus e Ivo Veiga

Figura 3 – Detalhe da árvore esquemática relativa à Coleção de Atores Individuais.

2) Atores Coletivos

A história da construção é também uma história das organizações que a compõem, e, nesse
sentido, a plataforma tem um perfil das empresas, das associações — empresariais e de
trabalhadores — e das instituições públicas de administração e de ensino que moldaram a
trajetória do setor durante os dois últimos séculos. De forma a considerar essa rede de influên-
cias, foram definidas as seguintes subcategorias de Atores Coletivos: Firmas (empreiteiros,
subempreiteiros, produtores, transformadores e vendedores de cal aérea, cal hidráulica, cimen-
to Portland, outros cimentos, ferro/aço, agregados, materiais tradicionais, novos materiais);
Instituições (públicas: administração pública, infraestruturas, educacionais; militares; privadas:
religiosas, civis e educacionais); Associações (associações e sindicatos).
Considerando apenas os Atores, o estudo da história da construção ficaria incompleto
sem a consideração dos artefatos por eles produzidos, sem o conhecimento das normas e dos
processos construtivos ou sem informação sobre os diferentes materiais empregados. Daí a
razão pela qual foi definido também o estudo de objetos concretos e objetos abstratos.

100 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 100-110, Janeiro-Abril 2020
Portugal Builds: uma plataforma digital para a
história da construção em Portugal nos séculos XIX e XX

3) Objetos Concretos

Para uma interpretação das transformações das culturas construtivas em Portugal durante
os séculos XIX e XX, a coleção digital tinha de incluir as obras construídas, os materiais e as
máquinas utlizados em sua execução. Nesse sentido, os Objetos Concretos foram classificados
nas seguintes subcategorias: Obras Públicas e Privadas (edificações, infraestruturas, cofragens
e andaimes); Materiais de Construção (cal aérea, cal hidráulica, cimento Portland, outros ci-
mentos, agregados, pedra, tijolo, madeira, vidro, derivados petróleo); Máquinas e Ferramentas
de Construção.
Desse modo, percorrendo os Itens, o usuário da plataforma pode conhecer melhor o
desenvolvimento do caminho de ferro e da rede de estradas; a localização das grandes infraes-
truturas (portos, pontes, barragens, empreendimentos urbanizados etc.) e das construções de
referência em alvenaria, aço ou concreto armado; a localização dos fornos de cal, de tijolo; a
localização das fábricas de cal hidráulica e de cimento Portland; as empresas de distribuição
ou, ainda, as características da maquinaria usada pela primeira vez em território português.

4) Objetos Abstratos

Com os metadados da plataforma e a facilidade de produzir visualizações que facilitam a


pesquisa, é possível olhar para os objetos de estudo da história da construção que remetem à
produção de conhecimento técnico e científico, à propaganda e à publicidade. Nesse sentido,
foram criadas as subcategorias: Publicações (ciência dos materiais, processos construtivos,
história da construção); Legislação (leis e regulamentos); Patentes; Processos Construtivos
(alvenarias, betão armado, betão pré e pós-esforçado, aço, estruturas mistas).
Para todas essas categorias e subcategorias, foram utilizados os seguintes tipos de Itens
já oferecidos de base pelo Omeka: Sound, Still Image, Video, Person, Text. Como complemen-
to, foram desenvolvidos novos tipos de Itens relacionados especificamente com a história
da construção, a saber: Construction Work, Building Material, Building Machine, Legislation,
Patent, Study, Firm, Institution, Association, Structural System. No tipo Study, foram incluídas
as várias subcategorias de publicações já mencionadas. Na respectiva página de gestão, cada
Item passou a conter várias abas: Dublin Core, Item Metadata Type (associa o tipo de Item ao
objeto digital), Files (aceita um número indefinido de ficheiros), Tags (etiquetas associadas a
assuntos), Maps (localiza o Item no espaço) e Item Relations (as relações entre Itens ou outros
já usados pelo vocabulário controlado). Refira-se, igualmente, que todos os Itens podem ter
quatro formatos — texto, som, imagem e vídeo.

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João Mascarenhas Mateus e Ivo Veiga

FERRAMENTAS DIGITAIS PARA A UTILIZAÇÃO E A GESTÃO


DA PLATAFORMA

N a plataforma, sobretudo por meio dos vários módulos de extensão, os dados podem ser
explorados pelo utilizador em uma ótica espacial interativa. A inclusão de linhas do tempo
(Timelines) permite sobrepor processos de macroescala, como as mudanças de regime, a pro-
cessos de microescala, como a produção de legislação relacionada com dado tema. É possível,
igualmente, sobrepor em diversas camadas as mudanças no interior do próprio campo, como
os momentos de inovação no nível da maquinaria ou dos materiais. Em simultâneo, os mapas
gerados e os instrumentos de visualização espacial possibilitam ainda uma exploração dos
dados em uma perspetiva temporal, ajudando a criar quadros, tabelas e textos de síntese das
mudanças na cultura construtiva.
Os dados recolhidos servem a várias tarefas depois de incluídos na plataforma. Por um
lado, as tabelas e os gráficos ajudam o utilizador a perceber as mudanças e continuidades
da história da construção em sua relação com os processos sociais e políticos. Por outro,
os dados podem também ser trabalhados externamente depois de exportados em formato
CSV,16 por meio do módulo de extensão CSV Export Format. A partir daí, é possível fazer sua
análise recorrendo a instrumentos de estatística ou usando a linguagem de programação R,17
por exemplo. Considerando sua capacidade para explorar relações por meio do módulo de
extensão Relations, os dados podem ser exportados para um programa de análise de redes
(Ucinet ou Gephi, por exemplo). Para além das representações das relações já produzidas au-
tomaticamente pela plataforma por meio do módulo de extensão Avant Relationships, com as
técnicas da análise de redes será possível produzir outros esquemas, para além dos diagramas
das principais relações entre Atores e Objetos oferecidos pela plataforma. Poderá ser o caso,
por exemplo, da análise de questões de gênero e de classe ou de perceber como os vários
Atores Individuais e Coletivos influenciaram a legislação e relacionaram-se com o campo do
ensino, da publicidade e do comércio externo. Todas essas ferramentas digitais têm, para além
de inegáveis virtudes heurísticas, a capacidade de desenvolver uma análise exploratória a uma
escala inédita, propícia a potenciar a cooperação internacional do projeto.

A primeira exposição disponível na plataforma

T endo em consideração os procedimentos de estruturação da plataforma que acabam


de ser descritos, é possível passar à apresentação da primeira exposição virtual, que se
encontra na fase final de sua versão beta. Dedicada a cerca de duas dezenas de grandes

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Portugal Builds: uma plataforma digital para a
história da construção em Portugal nos séculos XIX e XX

empresas de obras públicas em atividade em Portugal no final século XX (Building Contractors


in Portugal at the Turn of the Millennium), representativas da realização das infraestruturas
de Portugal durante todo o século XX, constitui um pretexto para explorações de natureza
diversa. É possível, assim, conhecer as grandes obras executadas por essas construtoras por
todo o território português, não só durante o Estado Novo como pelos vários governos após
o 25 de Abril, em particular as grandes construções realizadas com fundos da Comunidade
Europeia. Começando pelo perfil histórico de cada empresa, o usuário é convidado a explorar
uma seleção de obras que essa empresa executou. Para cada construção, é então possível
passar ao conhecimento das instituições que foram os donos dessa obra, os arquitetos, os
engenheiros e outros técnicos que nela trabalharam, assim como as publicações produzidas
em relação a essa construção. Esse primeiro produto disponibiliza ao utilizador um conjunto
de produtos muito diversificados:
1. gráficos com a cronologia de todas as obras realizadas por dada construtora (Figura 4);
2. imagens históricas e documentos digitalizados, registro de áudio e vídeo que carate-
rizam cada empresa (Figura 5);
3. textos com perfis históricos das empresas, biografias dos fundadores e colaboradores
das empresas e seleção representativa de obras realizadas por cada empresa (Figura 6);
4. gráficos interativos de redes de empresas, atores e obras (Figura 7);
5. mapas interativos georreferenciados, com a possibilidade de sequenciá-los no tempo
(Figura 8).
E ainda publicações científicas sobre o processo de construção das obras apresentadas e
hiperligações a outros arquivos digitais.
Essa primeira exposição permitiu avaliar as potencialidades da plataforma ao juntar fon-
tes de natureza muito diversa em uma mesma grelha de análise. Selecionaram-se fontes de
origens variadas e empregaram-se diferentes formatos e suportes, para assegurar o uso da
plataforma de um modo interativo por audiências especializadas e pelo público em geral. Os
instrumentos digitais possibilitaram também encontrar as referências a essas empresas entre
os mais de 100 Gigabytes de fontes digitalizadas, de forma mais sistematizada e eficiente no
nível da gestão do tempo. Apesar da importância das fontes digitais, é previsto um investi-
mento adicional no nível das fontes secundárias e o recurso, em um futuro próximo, a registros
de história oral.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 103-110, Janeiro-Abril 2020 103
João Mascarenhas Mateus e Ivo Veiga

Figura 4 – Gráfico com a cronologia das obras executadas por umas das
empresas construtoras que fazem parte da primeira exposição virtual.

Figura 5 – Página do menu das várias empresas construtoras


que o usuário pode consultar na primeira exposição virtual.

104 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 104-110, Janeiro-Abril 2020
Portugal Builds: uma plataforma digital para a
história da construção em Portugal nos séculos XIX e XX

Figura 6 – Página relativa a uma das empresas construtoras, em que o usuário pode
conhecer o perfil histórico da empresa e um grupo selecionado de obras por ela realizado.

Figura 7 – Gráfico da rede criada por uma construtora, por seu empresário e por um conjunto de obras selecionadas.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 105-110, Janeiro-Abril 2020 105
João Mascarenhas Mateus e Ivo Veiga

Figura 8 – Mapa interativo georreferenciado com a seleção de obras de cada empresa.

Desenvolvimentos futuros e algumas conclusões

D entro dos objetivos a curto prazo do projeto, inclui-se a criação da segunda exposição
virtual a disponibilizar na plataforma e para a qual já se está a trabalhar. Será dedicada
às redes de engenheiros, de empresas e instituições envolvidas na construção das linhas
de caminho de ferro, dos portos e dos faróis que foram realizados por todo o território de
Portugal durante a segunda metade do século XIX. No que toca a procedimentos de gestão,
para poder avaliar o impacto dos conteúdos digitais produzidos no âmbito do projeto e
disponíveis em linha, procede-se, atualmente, à implementação de rotinas de manutenção.
Para a avaliação do impacto e do desempenho, estão previstas as seguintes ferramentas:
métodos quantitativos, como o Google Analytics; inquéritos aos utilizadores a partir da
abertura de uma nova janela acessível ao usuário; o exame da localização, do tempo de uti-
lização e do número de visitas de páginas. Pretende-se adotar ainda métodos qualitativos,
como a realização de entrevistas, a caracterização do perfil dos utilizadores e a análise dos
conteúdos das citações. Por último, será testada a presença do projeto nas redes sociais,
como Facebook e Twitter, para avaliar o impacto do projeto em um espectro alargado ao
público em geral, e não apenas acadêmico.

106 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 106-110, Janeiro-Abril 2020
Portugal Builds: uma plataforma digital para a
história da construção em Portugal nos séculos XIX e XX

No fim deste estudo, integrado em um número da revista dedicado às humanidades


digitais, importa relembrar seu objetivo inicial, que era o de dar a conhecer e refletir sobre os
procedimentos adotados na criação de uma plataforma digital de história pública. Podem-se
encontrar muitos exemplos de plataformas em linha sobre os temas históricos mais diversos,
porém é mais difícil encontrar uma descrição dos vários passos necessários para sua concreti-
zação — e este texto é focado, precisamente, no processo de criação, ao explicitar a sequência
da metodologia seguida, guiada por critérios de sistematização e fiabilidade. Depois de apre-
sentar as potencialidades dos instrumentos digitais para a disseminação dos resultados de in-
vestigação histórica em geral, foram analisados as singularidades, as limitações e os aspectos
inovadores desses instrumentos ao serviço da história da construção, também ele um campo
de conhecimento ainda pouco estudado em Portugal. Depois da descrição das fontes das
coleções digitais a disseminar publicamente, passou-se à discussão aprofundada dos critérios
e da metodologia usados na estruturação da plataforma. Por fim, apresentaram-se a primeira
exposição virtual já produzida e os procedimentos de gestão em curso.
Essa sequência de exposição analítica de um projeto de humanidades digitais, apesar de
ainda não estar terminado, propõe-se como um formato de documento de discussão analítica
válida também para outros projetos de disseminação histórica em curso. Por essa razão, os
primeiros resultados que exploram os metadados e os conteúdos do projeto PTBuilds, que
aqui acabam de ser apresentados, pretendem servir como estímulo não apenas para conceber
novos projetos digitais internacionais no âmbito da história da construção, como também para
melhorar os procedimentos da criação de plataformas em linha de acesso público nos vários
campos de estudo da história.

Notas

1 O estudo em que se baseia o presente artigo é financiado por fundos de Portugal por meio da Fun-
dação para a Ciência e Tecnologia (FCT), I.P., no âmbito do projeto “Portugal Builds – plataforma di-
gital de conhecimento da história das culturas construtivas em Portugal, séculos XIX-XX”, Ref. PTDC/
ART-DAQ/28984/2017.
2 A expressão “Portugal Builds” inspira-se na força expressiva do título do livro Brazil builds: architecture new
and old, 1652-1942, de Philip Lippincott Goodwin, dedicado ao Brasil e publicado em Nova York, em 1943.
O projeto, iniciado operativamente em abril de 2019 e a concluir em setembro de 2021, é coordenado por
João Mascarenhas Mateus (Ciaud – Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa) e por Sandra M. G.
Pinto (Cham – Universidade Nova Lisboa), e envolve igualmente Daniel Ribeiro Alves, do Instituto de História
Contemporânea (IHC – Universidade Nova de Lisboa). A parte gráfica tem sido assegurada por Júlia Lyra, e a
investigação complementar de conteúdos, por Manuel Caiado.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 107-110, Janeiro-Abril 2020 107
João Mascarenhas Mateus e Ivo Veiga

3 Omeka é um recurso em acesso aberto disponível na internet que permite a publicação de plataformas
destinadas à partilha de coleções digitais e à criação de exposições online baseadas em repositórios de me-
tadados, desenvolvida pela Corporation for Digital Scholarship, pelo Roy Rosenzweig Center for History and
New Media e pela Universidade de George Mason, dos Estados Unidos (Disponível em: <https://omeka.org/>.
Acesso em: 16 dez. 2019).
4 O endereço eletrônico da plataforma é <https://www.portugalbuilds.org>. A primeira exposição virtual, de
que neste texto se apresentam imagens de ecrã em sua primeira versão testada (versão alfa), será liberada em
sua versão beta para divulgação pública até 31 de dezembro de 2019.
5 Segundo a Pordata (Base Dados Portugal Contemporâneo. Disponível em: <http://www.pordata.pt>. Aces-
so em: 16 dez. 2019), o setor da construção e das indústrias transformadoras contribuiu em 10,7% para o
total das emissões portuguesas de gases com efeito estufa. O valor mais recente (2018) do PIB da construção
em Portugal é de 1902,30 milhões de euros, segundo o sítio <https://pt.tradingeconomics.com>. Segundo
o relatório “O sector da construção em Portugal – 2019 – 1o semestre”, disponível no sítio do Instituto dos
Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção, o setor da construção contou com 306.100 indivíduos ,e
a população ativa de Portugal, com 5.245.000 indivíduos.
6 Disponível em: <http://seshatdatabank.info/>. Acesso em: 16 dez. 2019.
7 Disponível em: <https://pro.europeana.eu.do>. Acesso em: 16 dez. 2019.
8 Disponível em: <http://history-lab.org/analytics>. Acesso em: 16 dez. 2019.
9 Para a análise de redes aplicada à história, consulte-se o sítio da Historical Network Research (<histori-
calnetworkresearch.org>), que tem uma extensa lista bibliográfica. O interesse pelas questões do espaço na
história também tem conhecido um crescimento acentuado nos últimos anos — aqui, apenas nos interessa,
para já realçar, as possibilidades de visualização, sem recorrer a instrumentos analíticos como os Sistemas de
Informação Geográfica (SIGs).
10 Por exemplo, o sítio da Construction History Society, do Reino Unido (<http://www.constructionhistory.
co.uk>), e o sítio da Sociedade Portuguesa de Estudos de História da Construção (<http://www.spehc.pt>)
espelham bem essa nova dinâmica de pesquisa transnacional.
11 Consultem-se, entre muitos outros, Histories of the National Mall (<http://mallhistory.org>); DIY Histo-
ry (<http://diyhistory.lib.uiowa.edu/about-the-project>); Marshall M. Fredericks Sculpture Museum (<http://
omeka.svsu.edu>).
12 Disponível em: <https://www.europeana.eu/portal/en>. Acesso em: 16 dez. 2019.
13 O Projeto PTBuilds segue-se ao Projeto Exploratório Investigador FCT, denominado “From Lime to Portland
cement. Construction history and building cultures in contemporary Portugal” (Ref. IF/00792/2014/CP1259/
CT0001), coordenado por João Mascarenhas-Mateus no Ciaud – Faculdade de Arquitetura da Universidade
de Lisboa, entre janeiro de 2016 e janeiro de 2020, financiado pela FCT, de Portugal. Disponível em: <http://
ptbuilds20.fa.ulisboa.pt>. Acesso em: 16 dez. 2019.
14 Reclaim Hosting nasceu em 2013, com o objetivo principal de ajudar universidades a desenvolver seus
próprios projetos em linha, e encontra-se sediada em Fredericksburg, Virginia (<https://reclaimhosting.com>).
15 Os elementos centrais de metadados do Dublin Core formam um vocabulário genérico de 15 proprie-
dades, usado para descrever recursos (digitais, nesse caso), fazendo parte de um vocabulário de metadados

108 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 108-110, Janeiro-Abril 2020
Portugal Builds: uma plataforma digital para a
história da construção em Portugal nos séculos XIX e XX

mais amplo. Como referido no texto, o emprego desses elementos na plataforma contribui para a fiabilidade
da pesquisa e da análise. As 15 propriedades do Dublin Core são: Title, Subject, Creator, Description, Publisher,
Contributor, Date, Type, Format, Identifier, Source, Language, Relation, Coverage e Rights. Para a definição dos
elementos, consulte-se: <https://www.dublincore.org/specifications/dublin-core/dces/>.
16 O formato CSV (comma-separated values), que separa valores com vírgulas, é amplamente aceito em
programas de análise e de gestão de dados. O CSV usa-se não só em programas de estatística, folhas de
cálculo ou bases de dados, como também na análise de redes, motivo pelo qual os dados são apresentados
na plataforma com esse formato.
17 A linguagem de programação R, criada em 1993, é particularmente usada na análise estatística e na
manipulação de dados e de gráficos. Essa linguagem, de acesso gratuito, é amplamente usada nas ciências
sociais, na ciência de dados e na análise matemática.

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110 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 110-110, Janeiro-Abril 2020
Artigo

Novidades no front: experiências com


humanidades digitais em um curso de
história na periferia da Grande São Paulo
News on the front: experiences with digital humanities in a
History course in the suburbs of the great São Paulo area.
Noticias en el front: experiencias con humanidades digitales
en un curso de historia en las afueras de la gran São Paulo

Luis Antonio Coelho FerlaI*

Luís Filipe Silvério LimaII*

Bruno FeitlerIII*

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942020000100007

I
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), São Paulo (SP),Brasil.
* Professor Associado do Departamento de História e Coordenador do lab.hum – Laboratório de Humanidades Digitais da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) ([email protected]). ORCID ID: http://orcid.org/0000-0003-3617-2560.

II
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), São Paulo (SP),Brasil.
**Professor Associado do Departamento de História. Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ([email protected]).
ORCID ID: http://orcid.org/0000-0002-5924-5382.

III
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), São Paulo (SP),Brasil.
***Professor Associado do Departamento de História. Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ([email protected]).
ORCID ID: http://orcid.org/0000-0003-1468-5680.

Artigo recebido em 1o de agosto de 2019 e aprovado para publicação em 3 de dezembro de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 111-132, Janeiro-Abril 2020 111
Luis Antonio Coelho Ferla, Luís Filipe Silvério Lima e Bruno Feitler

Resumo
A partir das indefinições do que sejam as humanidades digitais e da concepção de que o compartilhamento de expe-
riências concretas pode enriquecer essa discussão, são apresentadas iniciativas levadas a cabo no Departamento de
História da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Para dar maior diversidade ao material apresentado, foram
escolhidos projetos de um grupo de pesquisas e de uma disciplina de graduação. Assim, com centros de gravidade
na pesquisa e na docência, os projetos analisados propõem um maior reconhecimento do papel do graduando nas
humanidades digitais. Da análise sai reforçado o paradoxo de que os trabalhos em humanidades digitais são insti-
tucionalmente subvalorizados, ao mesmo tempo que facilitam a colaboração e a livre circulação do conhecimento.

Palavras-chave: SIG histórico; Plataformas digitais; Ciência aberta; História de São Paulo; Wikipédia;
História moderna.

Abstract
Drawing on the vagueness of what digital humanities are, and the view that sharing concrete experiences enriches
that debate, the article offers an account of initiatives undertaken within the History Department of the Federal
University of São Paulo (Unifesp). To give greater diversity to the material presented, projects were chosen from a
research group and an undergraduate course. With centers of gravity in research and teaching, the projects analyzed
propose greater recognition of the student’s role in digital humanities. The analysis also reinforces the paradox that
digital humanities projects are institutionally undervalued, while facilitating the collaboration and the free circulation
of knowledge.

Keywords: Historical GIS; Digital platforms; Open science; History of São Paulo; Wikipedia; Modern history.

Resumen
Basándose en la vaguedad de las humanidades digitales y la visión de que compartir experiencias concretas puede
enriquecer esa discusión, el artículo ofrece una reseña de las iniciativas emprendidas en el Departamento de Historia
de la Universidad Federal de São Paulo (Unifesp). Para dar mayor diversidad al material presentado, se seleccionaron
proyectos de un grupo de investigación y una disciplina de pregrado. Con los centros de gravedad en la investigación
y la enseñanza, los proyectos analizados proponen un mayor reconocimiento del papel del estudiante en las huma-
nidades digitales. El análisis refuerza la paradoja de que el trabajo en las humanidades digitales está subvaluado
institucionalmente, al tiempo que facilita la colaboración y la libre circulación de conocimiento.

Palabras clave: GIS histórico; Plataformas digitales; Ciencia abierta; Historia de São Paulo; Wikipedia;
Historia moderna.

112 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 112-132, Janeiro-Abril 2020
Novidades no front: experiências com humanidades digitais
em um curso de história na periferia da Grande São Paulo

Quais humanidades digitais?

M uitas foram e têm sido as tentativas de definir o que sejam as humanidades digitais. Em
2004, a publicação Companion to digital humanities propôs, desde o título, um novo
conceito para dar conta das articulações entre humanidades e tecnologias digitais e substi-
tuir, assim, o mais antigo e supostamente mais restritivo expresso por “computing humanities”
(Schreibman et al., 2004). Em 2016, surge A new companion to digital humanities (Schreibman
et al., 2016), em uma tentativa de atualizar as discussões apresentadas em 2004. Entre uma
coisa e outra, teve grande impacto a obra Debates in digital humanities (Gold, 2012), também
atualizada por uma nova edição em 2016 (Gold e Klein, 2016). Faz todo sentido que coletâneas
que discutam temas associados à tecnologia digital sejam pressionadas a serem periodicamente
reapresentadas ao público, buscando maior conformidade com os novos contextos sociotécni-
cos, que se sucedem em velocidade desconcertante. Por outro lado, coletâneas referenciais como
essas, editadas e atualizadas após um tempo, constituem um corpus privilegiado para analisar
como uma comunidade constrói a imagem — ou várias imagens — de si mesma, que expectati-
vas de futuro são propostas e que transformações dessas perspectivas são reconhecidas.
Nesse exercício analítico, duas conclusões impõem-se ao leitor: o fortíssimo centro de
gravidade no mundo anglo-saxão das humanidades digitais e a persistência da falta de uma
identidade consensual ao “campo”. A primeira questão já foi reconhecida por várias das re-
flexões do corpus proposto, e iniciativas importantes vêm sendo tomadas para aumentar a di-
versidade do ecossistema das humanidades digitais.1 A segunda representa uma permanência
cada vez mais perturbadora, haja vista a expectativa de que o acúmulo de experiências e de
reflexões ao longo de cerca de duas décadas tivesse como legado, ao menos, uma definição
mais precisa do que seriam as humanidades digitais. Não foi o que se deu, e muitas das
perguntas e tentativas de respostas a essa questão, apresentadas na “obra inaugural” de
2004, subsistem até o presente. Mais do que isso, parecem ter se tornado mais frequentes e
problemáticas com o tempo.
Susan Schreibman, Ray Siemens e John Unsworth, no texto introdutório da coletânea de
2004, assumiam de saída uma visão disciplinar das humanidades digitais:

Esta coleção é um ponto de inflexão no campo das humanidades digitais: pela primeira vez uma
ampla gama de teóricos e de profissionais, tanto aqueles no campo há décadas quanto os mais
recentemente incorporados, especialistas da área, cientistas da computação e especialistas em
biblioteconomia e ciência da informação, uniram-se para pensar as humanidades digitais como
uma disciplina por si só, e para refletir sobre como ela se relaciona com áreas de humanidades
acadêmicas tradicionais. (Schreibman et al., 2004: xxiii)2

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 113-132, Janeiro-Abril 2020 113
Luis Antonio Coelho Ferla, Luís Filipe Silvério Lima e Bruno Feitler

Como se vê, não apenas os autores deixam claro sua posição, como sugerem certa acei-
tação geral dela. Essa perspectiva acaba dando o tom da obra, dedicada predominantemente
a apresentar as crescentes relações cotidianas e empíricas entre o mundo das humanidades e
as tecnologias digitais, sem muita preocupação em propor identidades e epistemologias. Mas,
na atualização do compêndio, publicada mais de uma década depois, os mesmos autores
iniciam a obra justamente relativizando e problematizando a afirmação que fizeram em 2004:
“Ainda é discutível se as humanidades digitais devem ser vistas como uma ‘disciplina por si
só’, e não como um conjunto de métodos afins, mas não se pode duvidar, em 2015, que se
trata de um campo de atuação vibrante e em rápido crescimento” (Schreibman et al., 2016:
xvii). O recuo entre uma concepção pretensamente unânime de afirmação disciplinar para
um “campo de atuação vibrante e em rápido crescimento” é patente. Ao longo da obra, nos
textos dos autores convidados, a questão reaparece diversas vezes, seja na forma explícita de
propostas para resolvê-la, seja em variações mais implícitas que a consideram já resolvida, de
uma forma ou de outra, mas sempre ajudando a compor um quadro geral de dissonância e
indefinição.
Por exemplo, Jennifer Edmond (2016: 256) considera que “as humanidades digitais
como um campo é essencialmente interdisciplinar e frequentemente intersetorial […]”. Já
Willard McCarty (2016: 79) afirma que as “[…] humanidades digitais estão particularmente
em perigo por carecerem de um forte senso de si”. Laura Hughes, Panos Constantopoulos e
Costis Dallas (2016: 151), por sua vez, contrapõem a grande difusão das humanidades digitais
com sua falta de identidade, sugerindo uma tensão crescente entre uma coisa e outra: “Essa
proliferação de conteúdo digital, sua disseminação, e uma maior colaboração interdisciplinar
levou ao florescimento das ‘humanidades digitais’, mas também levou a apelos para que se
fizesse uma melhor articulação e definição do que são ‘humanidades digitais’.” Os autores
não se isentam da tarefa que propõem e, em seguida, oferecem uma identidade claramente
metodológica às humanidades digitais. A ênfase na metodologia levou alguns autores a su-
gerir o conceito de “comunidade de práticas” ao universo das humanidades digitais, posição
assim sintetizada por William G. Thomas III:

Muitos acadêmicos nas humanidades digitais começaram a se ver, e a agir, como uma comuni-
dade aberta de práticas, incorporando a todos cuja energia, expertise e entusiasmo se alinhas-
sem aos deles. Ao invés de conceberem um projeto que demandasse uma disciplina ou campo
à parte, as humanidades digitais trabalharam dentro das disciplinas a partir de um conjunto
vagamente definido de métodos comuns, todos implicados num amplo reconhecimento: que
compreensão e pesquisa humanísticas estavam sendo reconstituídas em formato digital por
meio de tecnologias digitais. (Thomas III, 2016: 526-527)

114 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 114-132, Janeiro-Abril 2020
Novidades no front: experiências com humanidades digitais
em um curso de história na periferia da Grande São Paulo

A priorização da metodologia pode levar à atribuição de um caráter tático e provisório


às humanidades digitais, perspectiva que Andrew Prescott sintetiza desta forma: “[…] é mais
provável que técnicas digitais se tornem tão comuns em outras disciplinas, que se venha a
questionar a função das humanidades digitais em quanto [sic] atividade à parte”.3 Posição
diametralmente oposta a essa é a defendida por Patrik Svenson (2016: 79), que assume um
tom prescritivo e quase programático na direção da instituição disciplinar das humanidades
digitais, o que o aproxima de Claire Warwick (2016), que compara a trajetória a ser perse-
guida nessa direção com o percurso histórico de duas disciplinas tradicionais e amplamente
reconhecidas: história e “English studies”, que teriam enfrentado as mesmas ambiguidades,
contradições, inseguranças e falta de reconhecimento institucional que hoje afetam as huma-
nidades digitais.
Entre um Companion e outro, surgiu o já referido Debates in digital humanities (Gold,
2012). Se, em 2004, o primeiro Companion não trazia grandes problematizações identitárias,
o Debates, de 201278, já teve a necessidade de dedicar toda a primeira parte do livro à tentati-
va de definir as humanidades digitais.4 Ainda que boa parte dos artigos ali coligidos refletisse
a perspectiva pretensamente inclusiva das humanidades digitais, sintetizada na ideia de “big
tent”,5 as diversas posições não discrepavam, no conjunto, do que foi sintetizado a partir do
New companion, com direito a proposições mais extremas, como aquela contida no texto
“There are no digital humanities” (Hall, 2012). A nova edição dos Debates, de 2016, apenas
confirmou a impossibilidade do consenso. Já em sua introdução, Lauren Klein e Matthew Gold
(2012) resumem assim o que chamam de “dilema definitório”: “No que já foi chamado de ‘big
tent’ DH, pode por vezes ser difícil determinar de modo minimamente específico o que implica,
precisamente, o trabalho em humanidades digitais.”
Portanto, não se sabe ao certo o que sejam as humanidades digitais, e nada aponta para
que se saiba em futuro próximo. Por outro lado, se não há esse consenso, é forçoso reconhecer
que alguma “identidade operante” existe. Em outras palavras, a própria existência do debate,
assim como dos fóruns e dos veículos em que acontece, sem mencionar os diversos graus de
institucionalização que as humanidades digitais alcançaram, estão a indicar que o conceito é
capaz de um nível considerável de agregação de expectativas e de, por conseguinte, condicio-
nar muitas interlocuções produtivas, na academia e fora dela.
Este artigo não pretende responder à questão do que sejam as humanidades digitais,
nem mesmo trazer argumentos que corroborem ou questionem diretamente as várias posições
aqui reconhecidas. Mas isso não significa que estas linhas não busquem trazer elementos que
ajudem no debate. Ao oferecer o relato e algumas reflexões acerca de experiências desenvol-

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 115-132, Janeiro-Abril 2020 115
Luis Antonio Coelho Ferla, Luís Filipe Silvério Lima e Bruno Feitler

vidas no âmbito do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),


a pretensão é enriquecer o universo empírico sob análise. Se é verdade que “humanidades
digitais é o que fazem os humanistas digitais”, na formulação de tom kuhniana de R. Alvarado
(apud Robertson, 2016: 289), conhecer e debater as experiências concretas em salas de aula e
laboratórios, reconhecendo idiossincrasias e identidades, pode ser de grande ajuda. De resto,
ao fazê-lo no escopo de uma edição especial de uma revista brasileira de referência, pretende-
-se colaborar também para uma configuração menos eurocêntrica das humanidades digitais.
O que se escolheu apresentar aqui procura abarcar duas perspectivas diferentes no que
diz respeito ao lugar institucional a partir do qual as iniciativas foram realizadas: um grupo de
pesquisas e uma disciplina de graduação.

O grupo Hímaco

E m agosto de 2010, foi criado o grupo de pesquisas Hímaco – História, Mapas e Computa-
dores, junto ao Departamento de História da Unifesp, pelos professores Luis Ferla e Janes
Jorge.6 Seu objetivo era, e é, explorar as possibilidades das geotecnologias em investigações
históricas. A iniciativa pretendia responder à percepção de que as tecnologias digitais já re-
presentavam uma realidade incontornável para o historiador, e que sua presença no ambiente
acadêmico deveria dar-se de forma a mais precoce e refletida possível. Nesse sentido, o grupo
pretendia constituir uma base para incursões exploratórias mais sistemáticas ao território das
tecnologias digitais, ao mesmo tempo que buscava refletir sobre seus impactos metodológicos
e epistemológicos no trabalho do historiador. Em seus primeiros tempos, o grupo dedicou-se
muito mais ao segundo objetivo, dado que não tinha ainda capacitação e infraestrutura tec-
nológicas para projetos de pesquisa propriamente ditos que tivessem essa identidade. Mas é
evidente que a discussão teórica de impactos práticos da utilização da tecnologia digital em
investigações históricas apresentava um desequilíbrio incômodo.
Tratava-se, então, de buscar constituir um espaço dotado com equipamentos e softwares,
operado por uma equipe minimamente capacitada para tal. Em outras palavras, o Hímaco
necessitava de um laboratório e de conhecimento para utilizá-lo. Àquela época, o campus de
humanidades da Unifesp, criado em 2007 e localizado em Guarulhos, ainda era bastante pre-
cário, carente de muitas instalações básicas para seu funcionamento. O laboratório do Hímaco
não estava em suas prioridades. A solução estaria, portanto, na busca de cooperações com
órgãos afins de fora da universidade. Em 2011, foi estabelecida uma parceria com o Núcleo
de Acervo Cartográfico do Arquivo Público do Estado de São Paulo (Apesp). Em dezembro de
2012, a parceria foi oficializada com a assinatura de convênio respectivo (renovado sucessiva-

116 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 116-132, Janeiro-Abril 2020
Novidades no front: experiências com humanidades digitais
em um curso de história na periferia da Grande São Paulo

mente em 2016 e em 2018). A colaboração com o Apesp permitiu ao Hímaco não apenas um
espaço privilegiado de trabalho, como a interação com parte de seu pessoal técnico, dando ao
grupo um ganho de interdisciplinaridade que seria uma marca de seu percurso desde então.
A professores e graduandos em história da Unifesp juntavam-se geógrafos e graduandos em
geografia, funcionários e estagiários do Apesp.
O grupo enriquecia sua composição e conseguia um espaço para trabalhar. No entanto,
faltavam ainda software, hardware e capacitação para manuseá-los na direção dos objetivos
do grupo. Dessas carências, foi à primeira que se deu solução mais imediata, oferecida pela
alternativa das tecnologias livres. Os programas proprietários de sistemas de informações geo-
gráficas (SIGs) são caros e de reprodução restrita. Já com relação aos softwares livres, sabe-se
que, desde 1999, quando o software Grass adotou uma licença aberta, “seu aprimoramento
e sofisticação os têm colocado cada vez mais ao nível dos melhores softwares proprietários,
tanto no que se refere às potencialidades de seus recursos como ao caráter ‘amigável’ de suas
interfaces, com todas as vantagens inerentes à aquisição gratuita e à livre reprodução” (Ferla
et al., 2016: 86).
Por conta disso, foi feita a opção pelo gvSIG, software livre surgido em 2004 na Espanha
e que conta hoje com uma comunidade de usuários bastante difundida internacionalmente.
O grupo Hímaco utiliza o gvSIG desde 2011, e a experiência tem sido bastante satisfatória.
Registre-se que uma pretensa desvantagem referente à falta de uma estrutura de suporte que
o software proprietário fornece não existe de fato, pois a comunidade de usuários mantém
listas de discussões bastante ativas e eficientes para a resolução de problemas. Por outro lado,
há bastante identidade entre o grupo Hímaco e o projeto gvSIG, na ênfase da defesa da livre
circulação do conhecimento e do trabalho colaborativo. Por conta disso, foi feita a opção pelo
gvSIG, software livre surgido em 2004 na Espanha e que conta hoje com uma comunidade de
usuários bastante difundida internacionalmente. O grupo Hímaco utiliza o gvSIG desde 2011,
e a experiência tem sido bastante satisfatória. Registre-se que uma pretensa desvantagem re-
ferente à falta de uma estrutura de suporte que o software proprietário fornece não existe de
fato, pois a comunidade de usuários mantém listas de discussões bastante ativas e eficientes
para a resolução de problemas. Por outro lado, há bastante identidade entre o grupo Hímaco
e o projeto gvSIG, na ênfase da defesa da livre circulação do conhecimento e do trabalho
colaborativo.7 Foi também em conformidade com tais princípios que o grupo foi capacitado no
manuseio do software, em curso ministrado voluntariamente por um membro da comunidade
brasileira do gvSIG, em maio e junho de 2011.8 Posteriormente, e com mais experiência e
conhecimento, o grupo elaborou e publicou em seu site um “Tutorial de gvSIG básico aplicado

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 117-132, Janeiro-Abril 2020 117
Luis Antonio Coelho Ferla, Luís Filipe Silvério Lima e Bruno Feitler

a estudos históricos” (Moraes et al., 2014).9 Ainda que o programa tenha muitas versões de
manuais disponíveis na internet, essa é a primeira vez que aparece um material mais ade-
quado aos historiadores e às suas fontes. Ressalte-se também que o tutorial foi elaborado
com a participação de todo o grupo, mas com a coordenação sucessiva de alunos bolsistas
BIG (Bolsa de Incentivo à Gestão) da Unifesp. Ou seja, trata-se de um material em constante
aprimoramento e que teve, e tem, o principal suporte para sua elaboração na atuação de
alunos de graduação. Por fim, a publicação do tutorial não apenas auxiliou significativamente
na difusão da tecnologia junto às comunidades envolvidas, como permitiu uma considerável
economia de energia do grupo em atividades de treinamento.
Já com relação à aquisição dos computadores e equipamentos necessários, havia de se
buscar financiamentos junto às agências de fomento. E, para isso, fazia falta um projeto de
pesquisa.10 Em 2012 e 2013, o grupo conseguiu financiamentos junto ao Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (Fapesp) para o projeto “Implementação da tecnologia de sistemas de
informações geográficas (SIG) em investigações históricas”.
A opção pelos sistemas de informações geográficas, já dada com a capacitação no uso
do gvSIG, reforçava-se pelo suporte da bibliografia, que reconhecia, entre as várias tecnologias
crescentemente disponíveis às humanidades digitais, a primazia dos SIGs entre os historiado-
res (Gregory e Ell, 2007: 17-18). Tal preferência certamente tem relação com as possibilidades
que a tecnologia oferece para reconhecer uma posição mais privilegiada da dimensão espacial
nos estudos do passado.
Para atingir o objetivo colocado, foi proposto um estudo-piloto que permitisse a articu-
lação entre prática e teoria, fazendo as vezes de metodologia no projeto mais geral. Com o
suporte dos conhecimentos especializados de alguns dos professores envolvidos, chegou-se
ao projeto “As enchentes na cidade de São Paulo: abrangência espacial e impactos sociais
(1870-1940)”.11 Seu objetivo era identificar as principais enchentes da história da cidade em
seu período de urbanização e modernização industrial e produzir visualizações espaciais de
seu alcance. As enchentes mapeadas foram as de 1887 e de 1929. A primeira foi uma das
maiores que a cidade vivenciou (Kogan, 2013). As águas, que subiam periodicamente nos
meses mais quentes do ano, começaram a encontrar as ruas da cidade quando esta passou a
experimentar um crescimento urbano formidável, nas últimas décadas do século XIX. Nesse
sentido, essa enchente é um marco importante na história da cidade, pois pode ser considera-
da um emblema da transformação das “cheias” (elevação natural e cíclica do nível das águas)
em “enchentes” (encontro das cheias com a urbanização).

118 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 118-132, Janeiro-Abril 2020
Novidades no front: experiências com humanidades digitais
em um curso de história na periferia da Grande São Paulo

Já a enchente de 1929

[…] foi considerada pelos contemporâneos e, depois deles, pelos estudiosos da história urbana
paulistana a maior inundação que a cidade de São Paulo conheceu. Embora essa avaliação não
seja, em si mesma, polêmica, as suas causas foram objeto de divergência, tanto na época em
que ela ocorreu como nos dias de hoje. De todo modo, prevalece na bibliografia especializada
a interpretação de que […] a altura das águas não teria alcançado o nível que alcançou não
fosse a abertura das comportas da represa do Guarapiranga pela Light, Tramway & Power Ltd.,
com objetivos de aumentar seus ganhos econômicos. (Santos et al., 2014: 150)

Apesar dessa importância historiográfica indiscutível, a enchente de 1929 não tinha


ainda uma representação cartográfica de seu alcance espacial, o que o projeto do Hímaco
produziu e disponibilizou.12
No que diz respeito ao percurso do Hímaco, o projeto permitiu tanto a capacitação tec-
nológica do grupo no uso das geotecnologias em pesquisas históricas quanto a estruturação
material de seu laboratório no Apesp, por meio dos financiamentos obtidos.

O lab.hum

E m junho de 2016, os equipamentos do Hímaco foram transferidos do Apesp para o recém-


-criado lab.hum – Laboratório de Humanidades Digitais da Unifesp, nas novas dependên-
cias do campus Guarulhos da Unifesp, inauguradas naquele período. O lab.hum tem o objetivo
de congregar e viabilizar atividades de pesquisa, ensino e extensão que tenham relação com
as humanidades digitais e produzir reflexões acerca de seus impactos.
Por se tratar de um espaço interdepartamental daquele campus, participam outros quatro
grupos de pesquisa da unidade.13 Por sua vez, e em atendimento à renovação do convênio com a
Unifesp, o Apesp manteve o espaço destinado ao grupo e decidiu reequipá-lo com computadores
da instituição. A partir de então, o espaço no Apesp passou a priorizar a interlocução com pesqui-
sadores daquela e de outras instituições, ao passo que o lab.hum é utilizado principalmente para
as atividades cotidianas do grupo e para intensificar suas relações com o alunado da Unifesp.

O Projeto Pauliceia 2.0

H avendo encerrado de forma satisfatória seu primeiro projeto de pesquisa14 e tendo alcan-
çado um novo patamar de capacitação e de consolidação institucional e de infraestrutura,
o Hímaco desenvolveu, então, uma proposta mais ousada: o mapeamento colaborativo da
história da cidade de São Paulo, de 1870 a 1940. O caráter pioneiro e complexo do projeto15

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 119-132, Janeiro-Abril 2020 119
Luis Antonio Coelho Ferla, Luís Filipe Silvério Lima e Bruno Feitler

principalmente por envolver questões computacionais de monta, deixava claro desde o início
que as parcerias do grupo teriam de ser ampliadas. A oportunidade surgiu em 2015, quando foi
publicada a segunda chamada do Programa eScience, da Fapesp, destinado a fomentar pesqui-
sas que envolvessem as ciências da computação e outras áreas de conhecimento.16 Com o su-
porte desse edital, foi montada uma equipe multi-institucional e interdisciplinar para construir e
apresentar um projeto que viabilizasse o mapeamento colaborativo ideado pelo Hímaco.17 Aos
membros do Apesp e do campus Guarulhos da Unifesp juntaram-se pesquisadores do Instituto
de Ciência e Tecnologia do campus São José dos Campos da mesma universidade, do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e da Emory University, dos Estados Unidos.18 A coordena-
ção do projeto ficou sob a responsabilidade de Luis Ferla, da Unifesp, com a cocoordenação de
Karine Reis Ferreira, do Inpe. Em setembro de 2016, a proposta foi uma das cinco contempladas
pela chamada19, e o início da vigência do financiamento deu-se em fevereiro de 2017.
Em 4 de abril de 2017, o projeto foi apresentado em evento no auditório do Arquivo do
Estado. Em conformidade com os preceitos da chamada ciência aberta,20 a ideia era discutir
com a comunidade potencial de usuários da plataforma, pesquisadores da história de São
Paulo no período proposto, críticas e sugestões ao projeto, além de solicitar material empírico
de pesquisa para dar suporte aos testes no desenvolvimento dos códigos computacionais
necessários.21 Já em 30 de outubro de 2018, outro evento, no mesmo local, teve o objetivo de
apresentar a versão beta da plataforma (<www.pauliceia.dpi.inpe.br>) e convidar a comuni-
dade a ajudar a testá-la.22
O projeto encontra-se, atualmente, na fase de aprofundamento dos testes e de amadu-
recimento tecnológico, ao mesmo tempo que se busca o estreitamento da interlocução com
a comunidade-alvo. Além disso, a área espacial em que o geolocalizador da plataforma opera
está sendo ampliada, pois na primeira fase apenas uma área-piloto foi contemplada, corres-
pondente ao centro da cidade. Os resultados até aqui alcançados podem ser verificados na
própria plataforma, obviamente, e no artigo de Gomes et al. (2018).

Wikipédia na universidade e o ensino de história


moderna

S e a trajetória do grupo Hímaco demonstra um movimento da pesquisa em direção à exten-


são, as experiências da disciplina de história moderna com humanidades digitais o fazem
desde a docência. Segundo a Constituição de 1988 (artigo 207), a principal característica
das universidades, para além de “gozarem de autonomia didático-científica, administrativa
e de gestão financeira e patrimonial”, é a de obedecer “ao princípio de indissociabilidadade

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Novidades no front: experiências com humanidades digitais
em um curso de história na periferia da Grande São Paulo

entre ensino, pesquisa e extensão”. Se há muito que se regulamenta o quanto as instituições


públicas de ensino devem ministrar de carga horária, e se cobra, por meio dos programas de
pós-graduação, certos níveis de pesquisa acadêmica, até muito recentemente não houve uma
preocupação de regulamentar claramente a intensidade de atividades de extensão efetuadas
pelos docentes, apesar de estas serem objeto de avaliação das carreiras. A Unifesp adiantou-se
ao Ministério da Educação (MEC) e, em resolução de 11 de outubro de 2017, decidiu que seus
cursos de graduação deveriam assegurar um mínimo de 10% de sua carga horária total em
atividades de extensão.23 Essa resolução está ainda em fase de implementação, e existe pouca
clareza nos tipos de atividades que podem ser enquadrados nos parâmetros de curriculariza-
ção dos projetos de extensão no nível da graduação.
Tomando como exemplo experiências e reflexões a partir de projetos pioneiros sobre
o uso da Wikipédia como atividade de extensão e de ensino em cursos de graduação, como
o aplicado no curso de história antiga da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(Unirio) (Marques, 2013), bem como uma proposta mais ampla de “wikipedagogia”, levada
adiante no curso de jornalismo da Faculdade Casper Líbero (Moraes et al., 2016), a área de
história moderna da Unifesp começou um projeto, parcialmente financiado por meio de bol-
sas do Programa de Monitoria da Unifesp, para trabalhar com a Wikipédia em sala de aula.
Em fase de experimentação, desde o segundo semestre de 2018, a área tem utilizado como
método de ensino e avaliação a edição de verbetes da enciclopédia virtual Wikipédia nas duas
unidades curriculares semestrais (História Moderna I e II), nas quais a área se divide, cronolo-
gicamente, na matriz curricular do curso de história.
Desse ponto de vista, a atividade pretendeu ser uma interface entre as humanidades digitais
e a extensão e coadunar o interesse do aluno pelas plataformas digitais24 e sua visibilidade, com
as necessidades de atuação junto a setores extrauniversitários. Assim, mais do que a exatidão do
conteúdo (obviamente, essa era necessária), o que se buscou fomentar nos diferentes grupos de
alunos foi uma melhor forma de comunicação de conhecimento acadêmico e seu referenciamento
para o público geral. Houve o apoio imprescindível de um grupo de monitores, que atuou tanto no
segundo semestre de 2018 quanto no primeiro de 2019. Além disso, houve o suporte da equipe
brasileira ligada à Wikimedia Foundation, João Alexandre Peschanski, na formatação do projeto
inicial, e Célio Costa Filho, que, antes do começo das atividades, ministrou aos alunos palestra sobre
o que era a Wikipédia, mostrando igualmente os passos básicos de edição. Foi também por meio
da equipe Wikimedia que os docentes familiarizaram-se com o uso do outreach dashboard (painel
de controle externo) da Wikipédia, ferramenta de ensino que lhes permite acompanhar a atuação
das turmas em seu trabalho de edição dos verbetes, ao congregar em uma única página todos os
usuários e verbetes em edição de um projeto (Figuras 1 e 2).25

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Luis Antonio Coelho Ferla, Luís Filipe Silvério Lima e Bruno Feitler

Figuras 1 e 2 – Página de abertura e listagem dos grupos no dashboard de História Moderna I.

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Novidades no front: experiências com humanidades digitais
em um curso de história na periferia da Grande São Paulo

No segundo semestre de 2018, foi realizada uma primeira experiência com a Wikipédia
nas turmas de História Moderna II. Sendo uma primeira incursão, definiu-se com a turma do
vespertino que se trabalharia somente com quatro verbetes, editados por quatro grupos sob
supervisão dos monitores da turma, e com a turma do noturno que esta trabalharia coleti-
vamente com a criação de um verbete a ser criado. Isso permitiria testar duas modalidades
de uso e interação com a plataforma Wiki, a partir das indicações de experiências feitas nas
palestras da equipe da Wikimedia. Na turma da tarde, sob supervisão do professor Luís Filipe
S. Lima, os verbetes foram selecionados entre aqueles que estavam indicados como “esboço”
ou que precisavam de “revisão”, segundo a classificação da própria Wikipédia. Houve a preo-
cupação de não se fazer terra arrasada do que já havia, mas aproveitar o existente (mesmo
quando muito pouco), para a partir dali construir o verbete com o que se produziu e se discutiu
em sala de aula. Os verbetes do vespertino foram: Fronda, Guerra de Sucessão Espanhola,
Restauração, Revolução Gloriosa. Na turma da noite, sob supervisão do professor Maximiliano
Menz, os estudantes trabalharam com a criação do verbete (inexistente até então) sobre a
Crise Geral do Século XVII.26
Já na primeira experiência, os resultados foram bastante positivos, e a recepção das tur-
mas, também. Os verbetes, quando publicados, ainda não estavam perfeitos, especialmente no
que se referia à redação e à precisão de alguns termos, processos e informações. Entretanto,
alguns números mostram o trabalho realizado em termos bastante impressionantes (Figura 3):
foram mais de 127 mil caracteres editados (soma de tudo trabalhado ao longo do semestre),
o que resultou, somando os quatro verbetes, em mais de 22 mil palavras espalhadas em 60
laudas ou 61 páginas do Word. O maior verbete, aquele sobre a Restauração, tem agora 7 mil
palavras ou 23 páginas. Em termos de visitação, entre dezembro de 2018 (quando foram ao
ar) e 31 de janeiro de 2019 (quando o dashboard de Moderna II parou de computar os dados),
os verbetes tiveram mais de 59 mil visitas no total (variando de 1.138, verbete “Fronda”, até
32.809 visitas, verbete “Revolução Gloriosa”).

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Luis Antonio Coelho Ferla, Luís Filipe Silvério Lima e Bruno Feitler

Figura 3 – Página do dashboard de História Moderna II, com os dados referentes aos quatro verbetes trabalhados.

No caso dos alunos de História Moderna I (primeiro semestre de 2019), as turmas foram
divididas em grupos de 10 alunos, que deviam, cada um, criar no portal um login único, e
a cada grupo foi designado um verbete que estivesse em forma de esboço (como no caso
do “Ensaios10”, de Michel de Montaigne) ou em carência de referências (como “Inquisição
Portuguesa”).27 Durante três semanas, uma parte da aula era reservada para que o docente e
os monitores solucionassem dúvidas dos alunos quanto à escolha de bibliografia, à comparti-
mentação do texto no verbete ou ao modo de referenciar as fontes. Na última aula do semes-
tre, foi organizado um seminário, no qual os grupos apresentaram seus verbetes, não pelo con-
teúdo, mas do ponto de vista metodológico. Apresentava-se o estado inicial do verbete com os
problemas encontrados e as soluções que o grupo aplicou a cada caso específico, buscando-se
chamar a atenção para as necessidades de adequação de conteúdo, formato e vocabulário,
dependendo do suporte e do público-alvo. Foram poucos os alunos que se queixaram, no fim
do percurso, de dificuldades em manejar a inserção de dados ou referências na plataforma,
graças à mencionada palestra introdutória e à diligência dos já experientes tutores.
O interesse do ponto de vista da extensão vincula-se ao fato de a plataforma permitir
um rápido retorno do público, já que a Wikipédia é aberta à edição por todos, conforme de-
finido pelo terceiro de seus “cinco pilares” de funcionamento (Marques et al., 2013: 71-72).
Como a Wikipédia é uma plataforma dinâmica, aberta e colaborativa, os verbetes já recebe-
ram correções, edições, adições e, provavelmente, sofrerão modificações nos próximos tempos.
Isso é positivo do ponto de vista extensionista do projeto, pois significa que o trabalho dos

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Novidades no front: experiências com humanidades digitais
em um curso de história na periferia da Grande São Paulo

grupos não só será melhorado, mas também que levará a outro patamar as informações a
serem trabalhadas sobre esses tópicos. Mais do que isso, essa dinâmica colaborativa obriga
a pensar ensino e produção de conhecimento histórico em sala de aula e na universidade de
outras maneiras, refletindo sob a forma como se comunica e submetendo o que se produz a
um público mais amplo e variado, bem como a um escrutínio de uma legião de pessoas de
fora do meio acadêmico que frequenta, edita e contribui para a Wikipédia.28 Nesse sentido, é
também uma experiência de extensão, na medida em que não só “leva” o conhecimento para
além dos muros (aqui virtuais) da universidade, mas também faz com que se parta do que
já existe como conhecimento na plataforma, ao mesmo tempo que se coloca o produzido na
universidade à disposição de quem quiser retificá-lo, discuti-lo ou disputá-lo. Não se trata só
de corrigir algum conteúdo de verbete ou completar referências deficientes, mas de colaborar
com a produção de um conhecimento que será usado e ampliado de modo extensivo, e que
não obedece nem segue as lógicas de autoridade da academia.

Algumas reflexões e conclusões possíveis

C omo afirmado no início, a experiência que tal percurso proporcionou pretende ser um
estímulo à reflexão sobre a relação entre as tecnologias digitais e o ofício do historiador.
Assim, não é pretensão do artigo dar conta de responder ao que sejam as humanidades digi-
tais. Mas, se o exposto servir de suporte para a análise, é possível que saia reforçada a ideia
de que as humanidades digitais sejam uma comunidade de práticas, pois essa identidade pode
ser assumida por dois projetos de características, objetivos e origens diferentes. Se o grupo Hí-
maco sempre desenvolveu suas pesquisas buscando refletir prioritariamente sobre o papel das
tecnologias nelas, o projeto que trabalhou com a Wikipédia tinha o centro de sua preocupação
em otimizar o alcance do conhecimento produzido e capacitar os estudantes para fazê-lo. No
entanto, o que foi relatado pode colaborar para definir ou corroborar outras características
compartilhadas por tal comunidade, para além do uso das tecnologias em seu trabalho.
Uma contribuição que talvez seja algo original ao debate é o reconhecimento do papel
fundamental que podem ter os alunos de graduação nos projetos de humanidades digitais,
como se dá nas experiências aqui apresentadas. Tanto nas iniciativas do grupo Hímaco quanto
nos projetos da disciplina de história moderna com a Wikipédia, o ator central é o graduando.
Pode-se interpretar tal protagonismo não apenas pela maior familiaridade das novas gerações
com as tecnologias digitais, como também pelo fato, a princípio paradoxal, da pouca curricu-
larização das humanidades digitais, ao menos na grande maioria das universidades brasileiras
(Rodrigues, 2018). Se o primeiro fator favorece a aproximação dos alunos aos projetos mais

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 125-132, Janeiro-Abril 2020 125
Luis Antonio Coelho Ferla, Luís Filipe Silvério Lima e Bruno Feitler

tecnológicos nas áreas de humanas, o segundo diminui a presença neles de pós-graduandos.


Como a grande maioria dos alunos termina a graduação com muito pouca ou frequentemente
nenhuma interação mais dedicada às humanidades digitais, é natural que as pesquisas que
apresentam nos processos seletivos tratem de temas mais tradicionais da produção historio-
gráfica. Por outro lado, e assumindo mais uma vez uma perspectiva kuhniana, é razoável supor
que os alunos de graduação estejam menos condicionados por paradigmas estabelecidos e,
assim, mais afeitos a participar de projetos mais heterodoxos. O fato é que, pelas experiências
aqui compartilhadas, pode-se constatar que os alunos de graduação têm uma capacidade de
criação e investigação ainda subestimada nos ambientes universitários.
Por outro lado, os paradigmas de avaliação e valorização do trabalho docente seguem
bastante inflexíveis aos impactos das tecnologias digitais. Projetos de humanidades digitais,
justamente voltados à maior circulação do conhecimento produzido, como são aqueles aqui
discutidos, têm peso insignificante nos critérios avaliativos de produtividade em quase todas
as instâncias pertinentes, sejam aquelas internas às universidades, sejam aquelas ligadas a
agências de fomento e órgãos governamentais voltados à educação e à pesquisa. Ainda que a
interdisciplinaridade e a abertura científica associadas às humanidades digitais sejam reitera-
damente valorizadas nesses ambientes no plano discursivo, pouco disso se reflete nas avalia-
ções do que é produzido nas universidades. É evidente que essa situação tende a desestimular
os trabalhos na área. A bibliografia já acumula reflexões importantes sobre o problema, fazen-
do da experiência na Unifesp apenas mais um exemplo a reforçar o desconforto.29
Mas, se há dificuldades em valorizar institucionalmente os resultados concretos dos tra-
balhos em humanidades digitais, esses têm o potencial de dar à universidade ganhos signi-
ficativos em impacto social. Uma das conclusões possíveis da experiência aqui relatada não
destoa de certo consenso entre os estudiosos do tema: a afinidade entre os projetos de huma-
nidades digitais e as práticas colaborativas e de livre circulação do conhecimento. Aqui se im-
põe uma aproximação entre os conceitos de extensão universitária, história pública e ciência
aberta. Em comum, o questionamento das fronteiras tradicionais que separam o mundo dos
produtores de conhecimento de seus “consumidores”.30 Talvez o mais correto seja colocar tal
fenômeno em perspectiva histórica e associá-lo à própria afirmação da vida moderna, como já
apontava Walter Benjamin em texto clássico de 1936:

Durante séculos, houve uma separação rígida entre um pequeno número de escritores e um
grande número de leitores. No fim do século passado, a situação começou a modificar-se. (...)
Com isso a diferença essencial entre autor e público está a ponto de desaparecer. Ela se trans-
forma numa diferença funcional e contingente. A cada instante, o leitor está pronto a converter-
-se num escritor (Benjamin, 1996: 184).

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Novidades no front: experiências com humanidades digitais
em um curso de história na periferia da Grande São Paulo

Benjamin se referia às cartas de leitores de jornais de fins do século XIX. Mas, se esse
processo tem, portanto, uma longevidade bem maior do que o fascínio ou a perplexidade, com
as novas tecnologias digitais sugerem, há de se reconhecer que o novo século acelerou dra-
maticamente as possibilidades de autoria do cidadão comum. Muitos sintetizam essas novas
possibilidades no conceito de web 2.0, que se diferenciaria de sua versão anterior pelo caráter
bidirecional de seus fluxos, não mais apenas opondo os criadores de webpages a seus leitores
e consulentes, mas permitindo que estes também produzam conteúdo. As chamadas redes
sociais, e sua difusão explosiva desde a primeira década deste século, seriam a demonstração
emblemática do triunfo da web 2.0. É evidente que tal processo não teria como não impactar
fortemente o mundo acadêmico e os regimes de produção do conhecimento científico. Não
cabe aqui um inventário exaustivo desse impacto,31 mas deve ser destacada a enorme facili-
tação do trabalho colaborativo e da atuação de agentes e comunidades extrauniversitárias no
acesso e na produção do conhecimento científico. Por outro lado, e por consequência direta
do questionamento dessa fronteira tradicional, a universidade perde crescentemente o lugar
identificado com o monopólio da criação do saber legitimado. Antes que negar o fenômeno
e, assim, aprofundar seu isolamento social, alternativas mais inteligentes se oferecem à aca-
demia. Por exemplo, seu lugar permanece privilegiado para dirigir e organizar a interlocução
entre os “mundos de fora e de dentro da universidade”. Nesse sentido, sua atuação teria tam-
bém muito de curadoria, para além, evidentemente, de continuar produzindo conhecimento,
sem o que perderia grande parte da razão de sua existência. Os projetos aqui discutidos são
uma expressão característica desse fenômeno à escala de um campus de humanas de uma
universidade pública brasileira.

Notas

1 Ver, por exemplo, Gil (2016) e O’Donnell et al. (2016). Algumas iniciativas lidam com a questão com mais
prioridade, como é o caso do Global Outlook: Digital Humanities (Disponível em: <http://www.globaloutlook-
dh.org>. Acesso em: 6 fev. 2019), grupo ligado à Alliance of Digital Humanities Organisations (ADHO); e a
série de dossiês em idiomas latinos que a Digital Humanities Quarterly vem organizando (Disponível em:
<http://www.digitalhumanities.org/dhq>. Acesso em: 6 fev. 2019).
2 Desse e de outros excertos de obras em inglês, a tradução é dos autores, e todas as ênfases foram adicionadas.
3 Ainda que o autor admita que: “Sempre haverá necessidade de novos desenvolvimentos pioneiros na inter-
seção de humanidades e tecnologia da informação, e é sem dúvida neste tipo de trabalho científico pioneiro
que se encontra uma parte importante da futura missão das humanidades digitais” (Prescott, 2016: 473).
4 Entre os autores, reencontramos Patrik Svenson (2012), reapresentando as humanidades digitais como
“local de encontro” ou “zona de negociação”, conforme conceito de Peter Galison.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 127-132, Janeiro-Abril 2020 127
Luis Antonio Coelho Ferla, Luís Filipe Silvério Lima e Bruno Feitler

5 “Big tent digital humanities” foi o tema da Digital Humanities Conference, realizada em 2011 na Stanford
University (Disponível em: <http://dh2011.stanford.edu>. Acesso em: 5 fev. 2019).
6 Cadastrado junto ao CNPq desde 2011 (Disponível em:<dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/3777602011014869>).
7 Ao ponto de o Hímaco ser reconhecido como “sócio honorário” da Associação gvSIG (Disponível em:
<http://www.gvsig.com/pt/associacao-gvsig/membros-de-honra>. Acesso em: 29 jul. 2019). Além disso, o
Hímaco participou ativamente da organização de duas jornadas de usuários na cidade de São Paulo (III
Jornadas Brasileiras de gvSIG, em 2012; e 6as Jornadas Latino-Americanas e do Caribe de gvSIG, em 2014).
8 O instrutor convidado foi Guilherme Bagattini, da Secretaria de Meio Ambiente da Prefeitura de Guarulhos
e membro da comunidade brasileira do gvSIG. Realizado nas dependências da Unifesp e do Apesp, o curso
teve carga horária de 32 horas.
9 Disponível em: <http://www2.unifesp.br/himaco/pdf/Tutorial_Himaco_1_11_Branco.pdf>. Acesso em: 29
jul. 2019.
10 Aqui, reconhece-se uma idiossincrasia do grupo: ao contrário do que é mais corrente, não se tinha um
problema científico em busca da tecnologia para resolvê-lo, mas precisamente o oposto.
11 Os professores Janes Jorge e Fábio Alexandre dos Santos, membros da equipe do projeto, têm estudos e pu-
blicações acerca das relações entre corpos d’água e urbanização. Ver, por exemplo, Jorge (2006) e Santos (2011).
12 Esse e outros resultados do projeto, assim como toda a documentação que lhe deu suporte, encontram-se
disponíveis no site do grupo (<www.unifesp.br/himaco>) e no artigo Santos et al. (2014).
13 São eles: o CAPPH (Cidade, Arquitetura e Preservação em Perspectiva Histórica); o Gesua (Grupo de Es-
tudos Sociais, Urbanos e Ambientais); o Pimentalab (Laboratório de Tecnologia, Política e Conhecimento); e o
Visurb (Grupo de Pesquisas Visuais e Urbanas).
14 No mesmo período em que foi desenvolvido o projeto-piloto, alguns membros do grupo participaram
também do Projeto Pipag – Projeto de Inventário e Pesquisa Arqueológica de Guarulhos, coordenado pela
professora Cláudia Plens. A atribuição desses no projeto foi justamente fazer o mapeamento do patrimônio
inventariado. Os resultados encontram-se sintetizados e discutidos no dossiê do projeto, publicado na Revista
do Museu de Arqueologia e Etnologia, da USP (Ferla et al., 2016. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/
revmae/article/view/119013>. Acesso em: 20 mar. 2018).
15 Apesar de ter um recorte espacial e temporal bastante diverso do que aqui se apresenta, deve ser men-
cionando o projeto coordenado pelo professor Tiago Gil, da Universidade de Brasília (UnB), intitulado “Atlas
digital da América Lusa”, por se tratar de uma iniciativa referencial de SIG histórico realizada no Brasil e que
também valoriza o trabalho colaborativo e o compartilhamento do conhecimento (mais informações em:
<http://lhs.unb.br/biblioatlas/In%C3%ADcio>. Acesso em: 25 nov. 2019). Sobre a experiência do professor
Gil e de sua equipe no desenvolvimento do projeto, ver Gil (2019).
16 Sobre o Programa eScience/Fapesp, consultar: <http://www.fapesp.br/8436> (Acesso em: 11 jul. 2019).
17 A equipe do projeto contava com 30 pessoas, sendo cinco doutores em história; quatro doutores em com-
putação; um doutor em geografia; um doutorando em história; dois mestrandos em história; um mestrando
em computação; duas bacharéis em história; uma engenheira civil; uma bacharel em geografia; uma arquiteta
urbanista; seis graduandos em história; e cinco graduandos em computação.

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Novidades no front: experiências com humanidades digitais
em um curso de história na periferia da Grande São Paulo

18 A integração de pesquisadores da Emory no projeto foi um dos resultados de outro programa da Fapesp, o
Sprint – São Paulo Researchers in International Collaboration, que permitiu a viabilização de um intercâmbio
entre pesquisadores da Unifesp e daquela universidade em reuniões em Guarulhos e em Atlanta, alinhavando
a articulação entre os envolvidos na equipe do projeto (Disponível em: <http://agencia.fapesp.br/sprint-es-
timula-colaboracoes-internacionais-em-pesquisa/25035> e <https://global.emory.edu/support/news-events/
news/2017/february/fapesp-winners.html>. Acessos em: 13 jul. 2019).
19 Ver a lista de contemplados em www.fapesp.br/10487 acessado em 11 de julho de 2019).
20 Sobre o conceito de ciência aberta, ver Albagli et al. (2015).
21 Aqui, cabe um agradecimento especial às professoras Ana Lana e Sarah Feldman, da FAU/USP, que dispo-
nibilizaram à equipe do projeto seus dados de pesquisa.
22 Ambos os eventos tiveram transmissão ao vivo pelas redes sociais, e os vídeos respectivos podem ser
acessados em: <https://www.facebook.com/arquivoestado/videos/1361653267206845/> e <https://www.
facebook.com/arquivoestado/videos/704166923288544/> (Acessos em: 13 jul. 2019).
23 A Resolução no 139 do Conselho Universitário da Unifesp, de 11 de outubro de 2017, pode ser consul-
tada em: <https://www.unifesp.br/reitoria/proex/images/PROEX/Curriculariza%C3%A7%C3%A3o/Resolu-
cao139_curricularizacao.pdf> (Acesso em: 13 jul. 2019). A Resolução no 7, de 18 de dezembro de 2018,
da Câmara de Educação Superior do MEC, em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&-
view=download&alias=104251-rces007-18&category_slug=dezembro-2018-pdf&Itemid=30192> (Acesso
em: 13 jul. 2019).
24 Para uma discussão sobre os limites e as potencialidades dos recursos digitais no ensino de história e a
geração dos chamados “nativos digitais”, ver Rodrigues (2018: 149-155).
25 Os painéis de controle podem ser consultados em: <https://outreachdashboard.wmflabs.org/courses/Uni-
fesp/Hist%C3%B3ria_Moderna_II> e <https://outreachdashboard.wmflabs.org/courses/Universidade_Fe-
deral_de_S%C3%A3o_Paulo,_EFLCH,_Departamento_de_Hist%C3%B3ria/Hist%C3%B3ria_Moderna_I/
home> (Acessos em: 13 jul. 2019).
26 Os verbetes podem ser acessados por meio dos painéis de controle, ou digitando-se seus títulos dentro do
espaço de busca da plataforma da Wikipédia em português: <https://pt.wikipedia.org>.
27 Foram 12 os verbetes editados: Alegoria dos Continentes, Bartolomeu dos Mártires, Confraria, Corpora-
ções de Ofício, Cristão-novo, Devotio Moderna, Ensaios (de Montaigne), Inquisição Portuguesa, Jean Bodin,
Lorenzo Valla, Poggio Bracciolini, Santa Casa de Misericórdia de Lisboa; e apenas um criado: Sociedade de
Ordens.
28 Sobre algumas das implicações e dos limites da produção e divulgação do conhecimento histórico na
Wikipédia, ver Rosenzweig (2006: 136-138).
29 Ver, por exemplo, Ramsay e Rockwell (2012) e Fitzpatrick (2012). A American Historical Association che-
gou a publicar um Guidelines for the professional evaluation of digital scholarship by historians, em junho
de 2015 (Disponível em: <https://www.historians.org/teaching-and-learning/digital-history-resources/evalua-
tion-of-digital-scholarship-in-history/guidelines-for-the-professional-evaluation-of-digital-scholarship-by-his-
torians>. Acesso em: 28 nov. 2019).
30 Daí o neologismo “prosumer”, proposto em artigo de 2012 (Burdick et al., 2012: 135).

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 129-132, Janeiro-Abril 2020 129
Luis Antonio Coelho Ferla, Luís Filipe Silvério Lima e Bruno Feitler

31 Por exemplo, não é tratado aqui o tema do estado de hipervigilância que as novas tecnologias permitem,
em uma espécie de “lado escuro da lua” da web 2.0. Sob o impacto da atuação das grandes corporações de
tecnologia no mundo acadêmico, ver Parra et al. (2018).

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Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 131-132, Janeiro-Abril 2020 131
Luis Antonio Coelho Ferla, Luís Filipe Silvério Lima e Bruno Feitler

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132 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 132-132, Janeiro-Abril 2020
Artigo

Ser imortal diante do fim do mundo:


corpo, ciberutopia e transcendência
Being immortal before the end of the world: body, ciberutopia
and transcendence
Ser inmortal ante el fin del mundo: cuerpo, ciberutopía y
trascendencia

Alana Soares AlbuquerqueI*

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942020000100008

I
Universidade Federal do Rio Grande (UFRG) Rio Grande (RS), Brasil.

* Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Mestre e doutora em Pscicologia Social e Institu-
cional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). ([email protected]).
ORCID ID: http://orcid.org/0000-0002-8455-9180.

Artigo recebido em 1º de agosto de 2019 e aprovado para publicação em 3 de dezembro de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 133-151, Janeiro-Abril 2020 133
Alana Soares Albuquerque

Resumo
Este trabalho tem como objetivo analisar os atuais discursos em torno do problema da imortalidade tecnológica
presentes em algumas ficções científicas recentes. Essas ficções serão tomadas como ponto de partida para uma
discussão sobre as implicações filosóficas decorrentes da possibilidade do mind uploading, principalmente no que se
refere a uma ideia de transcendência e abandono do corpo. Por fim, questiona-se qual o lugar dos sonhos utópicos
de imortalidade em meio à crise de futuro que vivemos atualmente, relacionada principalmente com a discussão em
torno das mudanças climáticas e da insustentabilidade dos atuais modos de vida capitalistas.

Palavras-chave: Imortalidade tecnológica; Ficção científica; Corpo; Utopia; Futuro.

Abstract
This paper aims to analyze the current discourses about the problem of technological immortality in some recent
science fictions. These will be taken as a starting point for a discussion about the philosophical implications related
to mind uploading, especially with regard to an idea of transcendence and abandonment of the body. Finally, we
question the place of the utopian dreams of immortality in relation to the “crisis of the future” that we are currently
experiencing, mainly related to climate change and the unsustainability of current capitalist ways of life.

Keywords: Technological immortality; Science fiction; Body; Utopia; Future.

Resumen
El objetivo de este trabajo es analizar los discursos actuales sobre el problema de la inmortalidad tecnológica
presentes en algunas obras recientes de ciencia ficción. Estas ficciones se tomarán como punto de partida para
una discusión sobre las implicaciones filosóficas relacionadas con la posibilidad del mind uploading, especialmente
con respecto a una idea de trascendencia y abandono del cuerpo. Finalmente, cuestionamos el lugar de los sueños
utópicos de inmortalidad en medio de la crisis del futuro que estamos experimentando actualmente, relacionada
principalmente con la discusión sobre el cambio climático y la insostenibilidad de las formas de vida capitalistas.

Palabras clave: Inmortalidad tecnológica; Ciencia ficción; Cuerpo; Utopía; Futuro.

134 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 134-151, Janeiro-Abril 2020
Ser imortal diante do fim do mundo: corpo, ciberutopia e transcendência

O mito da imortalidade e suas atualizações

O problema da imortalidade habita o imaginário humano desde os mais primordiais mitos.


A iminência da morte é a mais derradeira das certezas, e, sem essa perspectiva, a própria
vida ganharia um sentido completamente diferente. Em uma espécie de jogo constante contra
a morte, preferimos mantê-la a distância; mesmo que saibamos de sua iminência, esperamos
que ela demore a chegar. A morte talvez nos cause tamanho sentimento de desconforto —
aquela angústia que Blanchot (2001) denominou a mais profunda de todas as questões, a
morte como a paradoxal impossibilidade de experiência, como o infinitamente desconhecido
—, porque nos parece como algo que vai contra a própria essência do ser, que, se é que existe
uma, é justamente perseverar em sua existência, como afirma Spinoza (2014). A morte é,
definitivamente, aquilo que nos subtrai à própria dimensão do futuro, pois, depois dela, já não
somos mais possíveis. Se insistimos, enfim, naquilo que Blanchot (2001) chamou de a grande
recusa (a de ficar junto ao enigma que é a estranheza do fim singular), é porque a morte se
apresenta a nós como algo que contradiz o próprio ser, pois lhe impede de projetar um futuro
no qual esse ser ainda persista.
O jogo que empreendemos contra a morte — por vezes representado também como
uma dança — assume a forma dos mais variados discursos ao longo da história, nas mitolo-
gias, nas religiões, na arte, na filosofia e, mais recentemente, nas ciências. Mas até hoje há um
fato que costuma predominar em todas essas variações do mito: sempre saímos perdedores.
Vencer o jogo da morte, que, na alegoria do filme de Bergman,1 é um jogo de xadrez, seria,
consequentemente, vencer o tempo. Como nos lembra Pelbart (2000), morrer é algo que
constantemente abre a vida para as dimensões não apaziguadas, não reconciliadas do tempo,
pois, colocando-nos diante da certeza de nossa futura não existência, faz-nos perceber que é
também o tempo, nesse jogo, que nos vence. Ir contra o tempo ou libertar-se dele significaria
ser imortal, estar fora ou acima do tempo e da história. Mas será que desejaríamos, em outro
extremo (no qual vencemos o jogo), ser imortais? Não seria a imortalidade, assim como a cer-
teza da morte, também uma espécie de fardo? Talvez a frase de um personagem de Godard2
resuma bem esse paradoxal dilema. Quando questionado em uma entrevista sobre qual seria
seu maior desejo, o personagem, um famoso escritor, responde: “ser imortal, e depois morrer”.
Se desejamos, de alguma maneira, vencer o tempo, talvez não seja por almejar algum tipo
de imortalidade, mas, sim, uma existência mais longa, que, por sua vez, tenta adequar-se aos
novos ritmos que o sentimento de aceleração do tempo e do mundo nos exige, sentimento
esse que chega a seu ápice nas últimas décadas com a velocidade em que os computadores
trocam dados de informação.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 135-151, Janeiro-Abril 2020 135
Alana Soares Albuquerque

O mito da imortalidade assume novas feições no mundo tecnologicamente reconfigu-


rado do século XXI. Se a morte já teve, algum dia, certo sentido romântico, ou até mesmo
amigável — a morte entendida como uma espécie de liberação da vida, de descanso, alívio
ou promessa —, hoje essa imagem vai desaparecendo e dando lugar a um novo tipo de
negação da passagem do tempo e da morte (Pelbart, 2000). Além disso, a ideia da morte
atravessa, nos últimos séculos, um processo de contínua desvalorização sociocultural, o que
progressivamente a desqualifica e a afasta da esfera da vida. Os mecanismos do biopoder,
ao enfocarem prioritariamente a vida em toda a sua extensão, atenuam o sentido da morte
ou seu interesse para a sociedade moderna. No mundo burguês, a morte torna-se algo a ser
escondido, algo privado e vergonhoso. Quando o poder exerce cada vez menos a função de
“fazer morrer” (como nos regimes de soberania) e cada vez mais o direito de intervir para
“fazer viver”, extraindo da vida o máximo de produtividade possível, a morte torna-se aquele
momento que lhe escapa (Foucault apud por Sibilia, 2002). Pelbart (2000) afirma que a versão
contemporânea dessa soberba (a negação e o afastamento da morte), devida em grande parte
aos avanços da tecnologia, é o anseio por uma espécie de imortalidade tecnocientífica.
As tecnologias da imortalidade estão na mira de várias pesquisas atuais, da inteligência
artificial à engenharia genética. O envelhecimento e a degeneração celular, por exemplo, são
processos que podem cada vez mais ser controlados geneticamente. Além disso, a bioinformá-
tica aspira hoje a uma conquista extremamente ambiciosa, antes reservada apenas à ficção
científica, mas que agora constitui uma das premissas mítico-filosóficas mais importantes
da tecnociência atual: transferir a mente do cérebro humano para um dispositivo inorgânico
(Sibilia, 2002).
Principalmente a partir dos anos 1990, a cibercultura, própria à era da informática, aden-
tra o imaginário da ficção científica, tornando possível uma série de especulações no que diz
respeito à inteligência artificial, às realidades virtuais, ou até mesmo a ideias de vida e morte.
Adotando, muitas vezes, um tom mítico e salvacionista, as ciberutopias sonham com certo
desprendimento do mundo terreno em direção a uma existência completamente digital, des-
vinculada da ação do tempo sobre as coisas, o que as leva, por sua vez, a se aproximarem de
um inusitado discurso em torno do problema da imortalidade.
Passamos cada vez mais a habitar os espaços digitais criados pela rede mundial de
computadores a partir de uma espécie de “presença desterritorializada”, que, dispensando a
movimentação do corpo orgânico e anulando as distâncias espaciais, alimenta o imaginário
sobre a vida digital dentro das simulações. Diante dos processos de digitalização total da vida,
autores como David Le Breton (2009), com seu emblemático título Adeus ao corpo — livro

136 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 136-151, Janeiro-Abril 2020
Ser imortal diante do fim do mundo: corpo, ciberutopia e transcendência

publicado pela primeira vez em 1999 —, e Paula Sibilia (2002), com seu Homem pós-orgâ-
nico, afirmam, em resumo, que o corpo material está ficando obsoleto. Para a antropóloga, o
protagonista das trocas comunicacionais, hoje em dia, é um corpo virtualizado, capaz de extra-
polar seus antigos confinamentos espaciais, um organismo conectado e estendido pelas redes
teleinformáticas. As redes globais de telecomunicação e suas diversas aparelhagens oferecem
acesso a experiências virtuais que dispensam “a organicidade do corpo, a materialidade do
espaço e a linearidade do tempo” (Sibilia, 2002: 58).
Se, hoje, no âmbito da ficção científica, costumam predominar as distopias e toda sorte
de futuros catastróficos, em detrimento dos espaços utópicos que, em decorrência de uma
série de acontecimentos que acometeram o século XX, estariam em baixa, o ciberespaço
causa tamanho fascínio (na mesma medida em que causa medo, não podemos esquecer) que
poderia ser considerado, como nos lembra Franco Berardi (2011), como a última das utopias.
Certamente, o ciberespaço ainda figura como um elemento distópico em diversas ficções,
mas, quando seu aspecto de realidade digital soma-se aos sonhos de transcender o corpo
biológico para viver como bits de informação, a rede das redes converte-se na perfeita utopia
do século XXI, que, como veremos em seguida, também pode receber o pretensioso nome de
transumanismo.

Pensando com a ficção científica

A postando em uma metodologia que se volta não apenas ao estado atualizado de coisas,
mas às potencialidades e virtualidades contidas no presente, voltamo-nos para o uni-
verso da ficção científica (FC) para extrair daí imagens com as quais possamos operar teori-
camente. As seguintes questões guiam esta discussão: Que tipo de leitura essas ficções estão
realizando do contemporâneo? Como a questão da imortalidade presente no âmbito da ficção
compõe-se, atualmente, com as ambições da ciência e seu aparato tecnológico? De que ma-
neira podemos relacionar os sonhos utópicos de imortalidade tecnológica com os discursos
atuais que giram em torno da crise de futuro provocada pela perspectiva do fim do mundo?
Afastando-nos de uma perspectiva representacional, apostamos em um tipo de pensamento
que valoriza o processo criativo do campo das artes, entendendo que a FC, ao mesmo tempo
que imagina diferentes futuros, também os cria, instalando-os no presente como futuridades,
ou seja, elementos de futuro que nos atraem para determinado horizonte.
Preferimos aqui não tomar as obras de ficção como simples objetos de análise teórica,
mas atentar para o que as imagens produzem como conceito. Não desejamos realizar interpre-
tações, mas criar interferências entre os planos de criação das artes e o plano conceitual filosó-

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 137-151, Janeiro-Abril 2020 137
Alana Soares Albuquerque

fico. Entendemos aqui a ficção não como o sinônimo de falso, ou como contrário de verdade,
mas, sim, como um processo, um princípio do mundo, uma espécie de elemento aberrante que,
extrapolando o plano das artes, infiltra-se inevitavelmente não apenas nos domínios da filo-
sofia e das ciências, mas também na formulação das ditas “verdades” históricas. Entendemos
que a FC, ao projetar futuros por vir, lida com rastros de possíveis, que, resgatados de um plano
virtual e trazidos à atualidade como imagem, chocam-se com seu tempo presente, realizando
uma espécie de leitura extemporânea dos atuais modos de existência.
Voltamo-nos, portanto, a esse tipo de ficção e seu imaginário sobre outros mundos e
outros tempos para extrair daí uma crítica a nosso presente, um tipo de crítica que, por ser
extemporânea, permite-nos conceber suas imagens como uma espécie de duplo distorcido de
nossa atualidade. Apostamos, enfim, na potência da FC, não apenas porque ela se apresenta
como uma forma de leitura do contemporâneo, mas também porque tem a capacidade de
moldar e transformar o horizonte de expectativas possíveis que se colocam diante de nós. É
em sua potência de dar realidade a determinados futuros, em detrimento de outros, que resi-
de sua principal função política: o futuro hipertecnológico imaginado pela FC, em sua versão
utópica ou distópica, é o que tem predominado no imaginário ocidental.
Problematizamos, em função disso, o papel da FC não apenas como gênero literário
ou cinematográfico, mas como modo de pensamento que perpassa, hoje, o campo político,
econômico e também propriamente científico, posto que a FC representa nada mais do que
os sonhos da própria ciência, ou seja, aquilo que ela projeta e que a empurra sempre para
frente. Reconhecendo o futuro hipertecnológico da FC como um produto dos ideais modernos
de progresso, apontamos para a colonização capitalística (Rolnik, 2018) do imaginário que
vem sendo realizada por esse modo específico de pensar, principalmente no que se refere à
invenção de novos mundos. No campo do desejo, são as próprias subjetividades que se veem
hoje capturadas por visões homogeneizantes de futuro, que, ao apontarem no sentido da
intensificação ou da extrapolação das tendências tecnocientíficas atuais, colocam o futuro do
próprio capitalismo como único futuro possível, provável ou desejável.

Imagens de transcendência na era digital

O problema da imortalidade tecnológica, que é o que desejamos analisar neste trabalho,


tem sido central em algumas obras de FC recentes. Uma delas é o filme Transcendence,
do diretor Wally Pfister, lançado em 2014. Nessa obra, um neurocientista da área da inteligên-
cia artificial (IA) consegue sobreviver depois de sua morte ao ter sua consciência mapeada em
bits de informação e transferida para uma máquina, a partir da qual pode conectar-se direta-

138 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 138-151, Janeiro-Abril 2020
Ser imortal diante do fim do mundo: corpo, ciberutopia e transcendência

mente à rede mundial de computadores, criando, a partir desse acoplamento, uma espécie de
hiperinteligência artificial. Graças às suas próprias pesquisas na área, o cientista acaba sendo
o primeiro ser humano a desfrutar de tal condição: a de continuar existindo após a morte de
seu corpo biológico, em uma espécie de sobrevida digital. Mas o que é exatamente que sobre-
vive aqui? Poderíamos dizer que o personagem continua sendo o mesmo?
Uma série de questões filosóficas, e até mesmo metafísicas, são levantadas por tal hipó-
tese, que vem sendo chamada na área da computação de mind uploading. A possibilidade de
realizar um “upload da mente”, extrapolando o campo da ficção, tem sido levada a sério por
autores transumanistas, como Hans Moravec (1988) e Ray Kurzweil (2006), que, considerando
o acelerado desenvolvimento da IA, apontam para o iminente surgimento da singularidade,
nome que se dá ao momento em que essa ultrapassará a inteligência humana em vários
níveis, causando transformações irreversíveis em nossa civilização. Não nos interessa aqui
explorar especificamente as possibilidades reais do campo da informática e da computação no
que se refere ao upload da consciência para uma máquina, nem esgotar todas as questões fi-
losóficas implicadas em tal hipótese, mas apenas esboçar brevemente algumas consequências
principais que surgem daí. A principal delas é que na ideia de mind uploading está implícita
uma antiga dicotomia há muito superada na filosofia, mas que agora retorna de forma inusi-
tada: a separação cartesiana entre corpo e mente. Como apontam Swan e Howard (2012), tal
hipótese desconsidera a necessária corporificação (embodiment) da mente, que há muito já
vem sendo apontada pelas ciências cognitivas. Acreditar que a consciência possa existir inde-
pendentemente de um corpo remonta ao platonismo e à sua crença na imortalidade da alma,
reformulada posteriormente nos moldes cristãos. Além disso, afirmar tal separação e a “salva-
ção” da consciência, em detrimento do corpo que morre, é afirmar que o indivíduo é, de fato,
sua consciência, que é isso o que define sua existência individual, como aponta Kellog (2015).
“Copiar” a consciência para um computador implica ainda um entendimento demasiado
simples do fenômeno da memória. A ideia de fazer uma cópia da consciência, assim como
se copia um arquivo de computador, supõe que nossas memórias funcionem como registros
estáticos, possíveis de ser integralmente reproduzidos. Hoje, sabemos que nossa memória
funciona de forma muito mais complexa, não podendo ser reduzida a simples registros arma-
zenados em algum lugar de nosso cérebro. Nossa mente não é algo estático, que pode ser
simplesmente copiado, mas, sim, algo dinâmico e sempre em movimento. Nossas memórias
estão constantemente se reinscrevendo; cada vez que evocamos uma lembrança ela nunca
retornará da mesma maneira, o que torna infinitamente difícil e complexa a transcrição desses
registros em dados de computador (Swan e Howard, 2012).

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Alana Soares Albuquerque

Voltando ao filme Transcendence, podemos identificar ainda nessa ficção que trata do
problema do mind uploading uma fantasia e um desejo de expansão da consciência, que, uma
vez transmutada em dados digitais, não se encontra mais limitada pelos entraves do tempo
e do espaço. É como se a consciência passasse a ser ubíqua, uma espécie de divindade que
ultrapassa todas as barreiras espaçotemporais (Felinto, 2002). Podemos identificar claramente
essa fantasia de expansão da consciência no filme, pois, além de ter sua mente copiada para o
computador, o protagonista (agora em formato digital) também se conecta à rede mundial de
computadores, transformando-se em uma hiperinteligência que acaba por adquirir uma forma
monstruosa e ameaçadora. Como dita a regra das FCs clássicas, o homem deve ser punido por
sua soberba em querer ultrapassar a condição humana (o típico “castigo” das lógicas distó-
picas), o que significa, em Transcendence, que o novo híbrido humano-máquina-informação
deverá ser destruído, em prol do bem geral da humanidade.
Diferentemente dessa ficção, na qual predomina o discurso mítico prometeico que sem-
pre impõe limites à soberba humana e à sua hybris, somos apresentados, em San Junipero,
episódio da série de TV Black mirror lançado em 2016, a outro tipo de imortalidade digital.
Nesse que poderia ser considerado um dos únicos episódios utópicos de uma série na qual
predominam as distopias, pacientes em estado terminal ou em coma vegetativo podem ter
suas consciências conectadas a uma espécie de simulação digital, na qual desfrutam a vida
na cidade fictícia de San Junipero. É nesse cenário de realidade artificial que as protagonistas
Yorkie e Kelly se conhecem e vivem uma história de amor. Na realidade exterior a esse mundo
simulado, Kelly é, na verdade, uma senhora que vive em uma casa de repouso, e Yorkie está há
mais de 40 anos em coma vegetativo, desde um acidente que sofreu quando adolescente. En-
tretanto, apesar de todos os entraves da doença e da velhice, por meio do sistema de realidade
artificial ao qual se conectam, ambas podem viver em San Junipero uma espécie de eterna
adolescência, pois habitam essa realidade com a forma de seu “eu” mais jovem.
A cidade fantasiosa é um paraíso artificial feito de bits de informação, um lugar que
existe em uma espécie de “não tempo”, pois seus visitantes podem optar por qual década
desejam visitar a cidade. Os habitantes desse não lugar são eternamente jovens, podendo
escolher se querem viver como um adolescente dos anos 1970, 1980, 1990, 2000… Além
disso, os pacientes internados que utilizam o serviço podem não só visitar o lugar esporadi-
camente, como escolher viver nele permanentemente depois de sua morte, a partir de um
processo chamado no episódio de “passagem” (o que equivaleria ao mind uploading, como
já citamos). Por meio desse processo no qual é produzida uma cópia digital da consciência
dos pacientes, estes, assim como o cientista de Transcendence, podem dispensar o corpo

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Ser imortal diante do fim do mundo: corpo, ciberutopia e transcendência

biológico para continuar existindo sob outra forma: como bits de informação. A novidade aqui
é que presenciamos, dessa vez, uma inusitada junção do discurso tecnológico com o discurso
religioso. E se o ciberespaço nos espiritualiza de alguma maneira, é porque, em primeiro lugar,
ele nos desmaterializa a partir do processo de digitalização do mundo, das coisas e dos corpos.
Esse é o argumento místico espontâneo lançado pelo imaginário da internet e que alimenta
facilmente a fantasia da imortalidade (Besnier, 2016). Como aponta Felinto (2002), proliferam
hoje representações culturais que veem o computador como uma tecnologia do espírito e a
internet como uma espécie de paraíso virtual para os cibernautas. Fazendo uma analogia com
o episódio recém-citado, podemos dizer que a cidade simulada de San Junipero é uma espécie
de novo céu tecnológico, um céu artificial feito de nostalgia.
Em um contexto dominado pelo que Sibilia (2002) chama de imperativo do upgrade
tecnocientífico, é interessante notar que a figura do homem-máquina, que alimentou muitas
metáforas nos últimos dois séculos, vai, aos poucos, decaindo, para entrar em cena a figura do
homem-informação. Entregue às novas cadências da tecnociência, o corpo humano parece ter
perdido sua definição clássica e a solidez que antes o constituía, pois se torna cada vez mais
permeável, projetável e reprogramável. Tendências “neognósticas”, que rejeitam o caráter or-
gânico e material do corpo, pretendem superá-lo, buscando um ideal ascético, artificial e virtual,
uma verdadeira transmutação dos átomos aos bits. Desde que se operou uma cisão conceitual
entre a informação e seu suporte físico, desqualificando este último e colocando a primeira em
evidência, a informação foi adquirindo uma relevância universal, tornando-se o denominador
comum a todas as coisas, vivas ou inertes (Sibilia, 2002). Ainda assim, o corpo humano, em sua
teimosia orgânica, encontra formas de resistir às modelagens desdobradas pelas tecnologias
da virtualidade, obrigando-nos a voltar à nossa condição terrena e mortal, fazendo com que o
sonho de transcender o corpo biológico — e estar, assim, como que fora do tempo — persista
no imaginário e se realize, pelo menos até agora, apenas no âmbito da ficção.

Corpo e utopia

S eria, portanto, a questão suscitada pelas tecnologias a da perda do corpo, a mesma pro-
movida pelo platonismo, pelo cristianismo ou pelo cartesianismo? Ou, por outro lado,
estaríamos falando, em vez disso, de novos corpos, incorporações ou encarnações possíveis?
Nessa segunda perspectiva, o deslocamento cibernético entre o self e o corpo não se inscre-
veria exatamente em uma dicotomia cartesiana, mas, ao contrário, anunciaria uma reviravolta,
“onde uma espécie de reencarnação virtual estaria em vias de reconfigurar o espaço corpóreo
e incorpóreo, reembaralhando corpo e mente ao mesmo tempo que desafia a unidade do self”

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Alana Soares Albuquerque

(Stone apud Pelbart, 2000: 18). Mas, por outro lado, não seriam todos os ideais utópicos de
transcendência do corpo algo que realiza exatamente esse mesmo movimento paradoxal: apa-
gar o corpo, ou voltar-se contra ele, mas ao mesmo tempo realizar uma transmutação desse
corpo em outra coisa? Não significaria o corpo, em seu formato indecifrável, desde sempre a
antítese e a origem de todas as utopias?
Há um belo texto de Michel Foucault (2013) — um texto que, sem dúvida, expressa a
vertente mais literária e poética de sua obra — que trata das relações paradoxais entre as
ideias de corpo e de utopia. Como de costume, Foucault remonta ao pensamento grego, mais
especificamente às ideias sobre a transcendência do corpo, ou à noção de imortalidade da
alma em Platão (1979), para nos lembrar que talvez a mais obstinada “dessas utopias pelas
quais apagamos a triste topologia do corpo nos é fornecida, desde os confins da história oci-
dental, pelo grande mito da alma” (Foucault, 2013: 9). A alma funciona em nosso corpo, mas
pode muito bem dele escapar e sobreviver depois de nossa morte. A alma é vista pelo pensa-
mento platônico como algo belo e puro, enquanto o corpo faz parte da dimensão mundana e
deve desenvolver virtudes (leiam-se, ascéticas) para fazer jus à pureza de sua alma. O corpo é
como um peso que carregamos, condenado às paixões e aos demais sofrimentos do mundo,
uma espécie de prisão para a alma. Nesse sentido, o corpo é visto justamente como o contrário
de uma utopia: ele é irreparavelmente aquilo que está sempre aqui, jamais em outro lugar, sob
outro céu, ele é uma topia implacável, um lugar sem recurso ao qual estamos condenados, e é
justamente contra ele e como que para apagá-lo que fizemos nascer todas as utopias.
Se, na primeira metade de seu texto, Foucault (2013) vê o corpo como a antiutopia por
excelência, na segunda metade o autor expressa uma virada em seu próprio pensamento, pois
passa a ver no corpo o ator principal de todas as utopias. “Afinal, uma das mais velhas utopias
que os homens contaram para si mesmos não é o sonho de corpos imensos, desmesurados, que
devorariam o espaço e dominariam o mundo”? (Foucault, 2013: 12). Nesse sentido, todos os
tipos de modificações corporais possíveis, a tatuagem, a pintura, a máscara, já são em si opera-
ções pelas quais o corpo é arrancado de seu espaço próprio e projetado em um espaço outro. Em
certo momento do texto, o próprio corpo passa a ser visto pelo autor como a verdadeira utopia,
pois ele é, no fundo, um enigma incompreensível, é aquilo que nunca poderemos, de fato, ver. O
corpo é uma espécie de fantasma que só aparece na miragem dos espelhos, sempre de maneira
fragmentária, e é por isso que necessariamente ele faz nascer nele uma utopia, uma projeção.
O corpo seria, enfim, o verdadeiro lugar da utopia, o lugar de onde todas elas partem, e
ao mesmo tempo para onde todas retornam. Pois não se trata, desde sempre, de um desejo
de estar fora do corpo, em outro lugar? Na ideia de uma alma imortal em Platão já há essa

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Ser imortal diante do fim do mundo: corpo, ciberutopia e transcendência

fantasia de desprendimento, que, devemos lembrar, só é possível com a morte. As utopias


do corpo estranhamente confundem-se com a ideia de morte. Mas trata-se de outra morte.
Deseja-se, de certa forma, a morte, para que depois dela se possa viver outro tipo de vida, que
dispensa a materialidade do corpo. É como o personagem do filme Vanilla sky (2001), que
precisa morrer (passar por uma espécie de primeira morte) para que seu corpo possa então
ser posto em estado de suspensão, e, enquanto isso, sua consciência desperte em uma espécie
de sonho simulado, uma realidade artificial na qual ele pode, enfim, vive, em outro corpo, com
outro rosto, a vida com que sempre sonhou.
Se o sonho utópico de desprendimento do corpo é tão antigo no pensamento ocidental,
o que teriam as atuais fantasias da FC, e da própria tecnociência, a acrescentar a essa utopia?
Uma das coisas que a FC faz, certamente, é tornar essa utopia mais palpável, pois, a partir de
seu método de especulação e de projeção de um futuro não apenas possível, mas provável,
pela primeira vez essa hipótese passa a ser realmente levada a sério, não só pelos escritores
de ficção, mas também por estudiosos da área da neurorobiologia, das neurociências, da
informática e, principalmente, da IA.
Frédéric Gros (2016) compara o texto O corpo utópico, de Foucault (2013), com as no-
vas utopias de transcendência do corpo do chamado movimento transumanista, vendo nessas
últimas uma proximidade com o movimento paradoxal apontado por Foucault, que se refere,
simultaneamente, a um desejo de apagamento do corpo e de uma modificação radical sua. O
autor define o transumanismo como um movimento que compreende uma série de discursos,
surgidos principalmente a partir dos anos 2000, “sobre as perspectivas abertas pelos progressos
tecnológicos para o aperfeiçoamento humano, possibilitado pela convergência das nanotecnolo-
gias, das biotecnologias, das ciências da informação e das ciências cognitivas” (Gros, 2016: 272).
Podemos notar claramente no pensamento transumanista certo discurso de desprezo
pelo corpo, que pode ser apreendido a partir de pelo menos três noções: a virtual, a conec-
tividade e a IA. Porém, Gros (2016) observa que esse aparente desprezo ou apagamento do
corpo se dá apenas de maneira marginal ou secundária, pois as utopias transumanistas tam-
bém são movidas pelo sonho de uma transformação do corpo: trata-se de conservá-lo, mas
eliminando dele tudo que é da ordem da limitação e da imperfeição, ou, o que poderíamos
chamar de suas três grandes dimensões: nascer, sofrer, morrer. O projeto evidente das utopias
transumanistas é fazê-las desaparecer. Há, portanto, nessas utopias, uma mistura de desprezo
e de exaltação do corpo; no fundo, elas realizam um mesmo movimento, como no texto de
Foucault: quer-se um novo corpo que não tenha mais esses elementos que fazem parte de sua
definição, de sua finitude.

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Alana Soares Albuquerque

Se as grandes utopias clássicas podiam ser lidas como reações de indignação diante
da injustiça de um estado do mundo, as utopias contemporâneas transumanistas parecem
ter a particularidade de surgir de outro sentimento, que seria um sentimento de vergonha.
Se o desejo que predomina nessas utopias é de melhoramento extremo ou de superação do
corpo, é porque sentimos vergonha de nosso desempenho limitado diante das capacidades de
uma máquina que nós mesmos criamos (máquinas que calculam e processam dados a uma
velocidade que jamais atingiremos, robôs androides com capacidades múltiplas etc.). Talvez o
transumanismo seja exatamente a expressão dessa vergonha (Gros, 2016).
Se as utopias que triunfam hoje representam, enfim, esse desejo de saída do humano,
ou de uma fuga de suas limitações, Jean-Michel Besnier (2016) lança as seguintes questões:
Como resistir a essas fantasias do digital que apostam na desmaterialização para engajar
a humanidade no caminho de sua desincorporação, isto é, de seu desaparecimento? Seria
possível uma espécie de reconciliação da humanidade consigo mesma, que a curasse desse
cansaço de si que a levou a preferir as máquinas ao humano? Como barrar as pretensões das
tecnologias que criam fantasias desmedidas como as de imortalidade? Para o autor, é preciso
trabalhar no front das políticas de pesquisa, pondo um freio à corrida das inovações, e prin-
cipalmente no front das mentalidades, opondo-lhes outro imaginário que não o das utopias
pós-humanas, um imaginário que valorize e preserve a vulnerabilidade e a consciência da
fragilidade como o verdadeiro privilégio do humano.
É importante esclarecer que não se trata, em outro extremo, de simplesmente assumir
uma posição tecnofóbica que demonize as tecnologias digitais ou de simulação, vendo nelas
algo que afasta o humano de sua humanidade ou do mundo, pois não consideramos que as
realidades digitais sejam “menos reais” por sua falta de materialidade, muito menos que exista
uma verdadeira essência do humano que possa ser apagada ou negada pelas tecnologias. Na
verdade, é justamente por reconhecer a realidade das simulações digitais e sua forma de
atuar no mundo que estamos voltando nosso olhar para elas. O que consideramos necessário,
em vez de condenar as tecnologias, é um olhar crítico não só sobre essas possibilidades
tecnológicas e sobre os caminhos que essas fantasias estão tomando, mas também sobre a
forma como essas fantasias se sobressaem e predominam sobre outras no imaginário futurista
em geral.
É precisamente para explorar essa possibilidade de reconciliação da humanidade consigo
mesma e com o mundo (não no sentido de reencontrar sua essência, mas no sentido de se
livrar do sentimento de vergonha imposto ao corpo pelas máquinas), como colocado por Bes-
nier (2016), que gostaríamos de contrapor, por fim, os discursos de imortalidade tecnológica a

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Ser imortal diante do fim do mundo: corpo, ciberutopia e transcendência

outro tipo de discurso predominante na atualidade, e que diz respeito a uma espécie de “crise
do futuro”. Quando falamos em contrapor esses discursos, é importante ressaltar que não se
trata exatamente de opor dois tipos de pensamento distintos sobre o futuro da Terra ou da
humanidade, um utópico e outro apocalíptico, mas de analisar de que forma eles podem — ao
invés de simplesmente representarem a negação um do outro —, compor, juntos, certa atitude
diante do fim do mundo.
Entre os fatores que levam à crise de futuro que mencionamos, está a evidência das
mudanças climáticas, o que alerta para a possibilidade de nosso planeta não sobreviver por
muitos séculos, caso continuemos sustentando os atuais modos de vida capitalistas, voltados
à exploração total dos recursos naturais. As perguntas que pairam no ar e que nos encami-
nham para o final de nossa discussão são as seguintes: Haverá um futuro no qual as fanta-
sias transumanistas de imortalidade tecnológica poderão ter lugar? Em que medida esses
discursos ora se aproximam, ora se afastam? As utopias transcendentalistas vão ao encontro
das distopias que nos ameaçam com a falta de um futuro, ou de encontro a elas? Tentando,
ao mesmo tempo, fugir das dicotomias entre o otimismo e o pessimismo que pairam sobre o
universo da FC, gostaríamos ainda, seguindo a sugestão de Besnier (2016), de explorar outro
imaginário que, saindo da lógica das inovações desenfreadas, possa, por outro lado, valorizar
a vulnerabilidade, a fragilidade e, até mesmo, a finitude.

O fim do mundo está próximo

A crença no futuro que animou os modernos durante alguns séculos parece passar, hoje,
por uma profunda crise. O futuro, para os modernos, tinha pelo menos duas qualidades
reconfortantes: ao mesmo tempo que podia ser conhecido — já que as tendências da história
humana podiam ser traçadas em direções lineares, e a ciência podia descobrir as leis da evo-
lução humana, prevendo, assim, certo caminho a seguir —, o futuro podia ser transformado
pela vontade humana, pela indústria, pela técnica, pela economia e pela ação política. Porém,
a partir da segunda metade do século XX, certo esgotamento parece pairar sobre o horizonte
das práticas políticas, esgotamento esse que não tinha lugar no imaginário moderno pro-
gressista, que visava apenas à acumulação. A partir dos anos 1970, várias correntes culturais
underground começam a sinalizar para esse novo horizonte de exaustão, ou para esse lento
processo de cancelamento do futuro (Berardi, 2011). Ao final dessa década, o movimento
punk na Inglaterra entoa seu emblemático slogan por meio de um refrão da banda Sex Pistols,
sintetizando o sentimento que pairava no ar: no future.

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A proliferação das distopias ao longo do século XX aponta justamente para essa reversão
na ideia de futuro identificada por Franco Berardi (2011), realizando uma crítica às mesmas
técnicas e tecnologias que outrora eram exaltadas e fetichizadas pelo movimento futurista.
Afinal, os sonhos de utopia foram se transformando, aos poucos, no pesadelo dos regimes
totalitários, o processo civilizatório traduziu-se como colonização, extermínio e escravidão, o
avanço tecnológico culminou nas duas grandes guerras e, sobretudo, na construção das armas
de destruição em massa, sem falar na exaustão total da superfície terrestre pelo avanço das
indústrias de “tecnologia de ponta”. Retomando a expressão de Susan Buck-Morss (2018), o
sentimento é o de que a história falhou conosco, ou de que os sonhos utópicos de progresso
foram todos estilhaçados.
Gostaríamos, enfim, de abordar o problema do fim do mundo — que talvez seja melhor
formulado como um possível fim da humanidade como a conhecemos —, problema colocado
hoje não só pela ficção, mas por uma série de pensadores que se dedicam a escrever sobre a
“crise de futuro” pela qual passamos atualmente, a partir dos discursos atuais sobre a crise
ambiental, que apontam para o esgotamento dos recursos do planeta e para a insustentabi-
lidade dos modos de vida capitalistas. Consideramos que esse é o principal tipo de discurso
que hoje dá maior consistência ao problema do fim do mundo, fazendo com que esse deixe
de ser um problema metafísico ou ficcional, para se tornar objeto de discussão nos campos da
ciência e da política, como apontam Danowski e Viveiros de Castro (2014).
Na segunda metade do século XX, os efeitos da expansão capitalista tornam-se cada
vez mais perceptíveis, não só na biosfera, como também na precariedade da vida social (de-
semprego, desigualdade, miséria etc.), o que faz com que protestos contra o capitalismo e a
globalização emerjam em várias partes do mundo, sendo um dos mais significativos o movi-
mento de Seattle em 1999. Os ativistas pelo mundo tinham uma mensagem clara: se nós não
pararmos a máquina de exploração, débito e consumo compulsivo, habitar este planeta se tor-
nará impossível (Berardi, 2011). Na concepção moderna do capitalismo, não havia lugar para
pensar os limites do crescimento; porém, em certo momento, tanto essa visão progressiva do
futuro, que assume a forma da acumulação de riquezas, quanto a crença de que o poder das
tecnologias é sem limites entram em crise, pois o planeta começa a responder à exploração
que vem sofrendo, pondo em questão, não podemos esquecer, a própria concepção moderna
da natureza como algo que estava à disposição do ser humano, passiva e inerte.
As notícias não param de anunciar o aumento no nível dos oceanos, a erosão dos solos,
o derretimento das calotas polares, a ameaça de extinção de milhares de espécies, a elevação
da temperatura global a cada ano. É o que a imprensa em geral chama de viver em uma era

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Ser imortal diante do fim do mundo: corpo, ciberutopia e transcendência

de “crise ecológica”. Ao apontar para a forma como a grande mídia trata a atual situação em
que nos encontramos, Latour (2017) sugere que talvez um termo melhor para esse momento
seja “mutação”, pois “crise” dá ideia de algo temporário, que uma hora vai passar. Em vez
de crise, o autor pensa que deveríamos chamar esse momento de uma profunda mutação em
nossa relação com o mundo. Vivemos, hoje, no Antropoceno, nome que se dá à era geológica
que sucede o Holoceno, período que durou mais de 11 mil anos.3 Não há um consenso sobre
quando exatamente o Antropoceno tenha começado; na verdade, não há nem mesmo um
consenso sobre a ideia de que realmente estaríamos em uma nova era geológica. Seu início
pode remeter, de forma mais geral, ao advento da Revolução Industrial, ou, de forma mais es-
pecífica, à década de 1950, quando o teor de CO2 liberado na atmosfera terrestre atinge níveis
consideráveis, causando transformações irreversíveis no meio ambiente, como o efeito estufa.
O Antropoceno, período em que o ser humano se reconhece como força geológica, reve-
la-se como um presente sem porvir, no qual a temporalidade da crise ecológica entra em res-
sonância catastrófica com a da crise econômica. Um presente passivo, portador de um karma
geofísico que está fora de nosso alcance anular e no qual aquela aceleração do tempo vista
usualmente como uma condição existencial e psicocultural de uma época acaba por extrava-
sar da história social para a história biogeofísica. É como se pela primeira vez as escalas da
finitude coletiva e da finitude individual entrassem em uma trajetória de convergência. Mesmo
que já saibamos da dura verdade de que “o mundo começou sem o homem e terminará sem
ele” (Lévy-Strauss apud Danowski e Viveiros de Castro, 2014: 29), agora ela se torna difícil de
administrar. Uma coisa é saber que a Terra e o universo vão desaparecer daqui a bilhões de
anos, outra coisa bem diferente é imaginar a situação que o conhecimento científico coloca
hoje no campo das possibilidades: a de que as próximas gerações tenham de sobreviver em
um planeta empobrecido e desértico (Danowski e Viveiros de Castro, 2014).
Se, antes, o sentimento de sermos pequenos demais perante a natureza causava-nos
certa angústia, hoje essa angústia se manifesta em descobrirmos que agora temos o mesmo
tamanho, pois influímos diretamente em como a Terra se comporta. Como afirma Latour em
entrevista recente ao jornalista Marc Bassets (2019), todas as posições políticas parecem estar
marcadas hoje por essa angústia. Se, antes, o sentimento de perder o mundo era um problema
dos artistas ou dos poetas, agora é um sentimento coletivo. Se Latour (apud Bassets, 2019)
está afirmando que essa é uma preocupação que afeta todas as posições políticas hoje, não
podemos deixar de pensar imediatamente nas reações contrárias a esse posicionamento que
estão ocorrendo hoje no mundo, como a atitude do presidente Donald Trump de desacreditar
os relatórios científicos sobre a mudança climática e, mais concretamente, de deixar o Acordo

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Alana Soares Albuquerque

de Paris em 2017, ameaça também feita, inclusive, pelo presidente brasileiro Jair Bolsonaro,
mas que não chegou a se concretizar. Para Latour, não é que tais posicionamentos não sejam
afetados por essa angústia, mas o que existe, de fato, é uma espécie de negacionismo, que
pode ser resumido em um desejo de abandonar as obrigações. Trata-se de dizer “vamos em-
bora”. O abandono das obrigações com relação à preservação do planeta é a versão Trump
desse tipo de atitude, “mas existe outra variante high tech que diz: ‘nós também vamos, mas
rumo a um futuro tecnófilo extremo’. É o projeto californiano, pós-humano, Marte, a inteli-
gência artificial, os robôs…” (Latour apud Bassets, 2019, s.p.). A ordem digital despede-se
definitivamente do nomos da Terra: se esta costuma ser vista como sinônimo de fundamento,
de firmeza, pois sempre permite demarcações e distinções claras, o espaço do digital (ou o
ciberespaço), ao contrário, está mais do próximo do mar, no qual não se pode traçar nenhuma
linha firme, apenas navegar (Han, 2018).
Parece que aqui começamos a responder à pergunta que nos colocamos anteriormente, a
respeito de como podem os discursos de transcendência e imortalidade tecnológica sobreviver
em um mundo cujo fim é constantemente anunciado. Haveria um futuro no qual essas tec-
nologias poderiam desenvolver-se? Se, em um primeiro momento, as fantasias de um futuro
hipertecnológico, que nos permitiria viver como fluxos de informação, parecem ir contra os dis-
cursos sobre o fim do mundo, a partir de um olhar mais atento podemos entendê-las, em vez
disso, como um resultado desses mesmos discursos, pois remetem à atitude de “abandono”
que Latour menciona, além de serem uma resposta possível à própria ideia de devastação da
vida no planeta, já que propõem um modo de existência descolado dos processos vitais que
dependem da organicidade da natureza. Trata-se de um futuro no qual voltamos, enfim, ao
cenário desolador do filme Matrix (1999): um planeta devastado e deserto habitado apenas
por máquinas, cuja única realidade que resta aos humanos é a simulação artificial gerada por
elas — a não ser para aqueles que, como o protagonista Neo, aceitam tomar a pílula vermelha
para sair da simulação Matrix e encarar de frente o deserto que se tornou a realidade. Porém,
a diferença entre o filme e os novos discursos transumanistas reside no fato de o primeiro ser
uma assustadora distopia, enquanto esses últimos representam uma inusitada utopia trans-
cendentalista de abandono não só do corpo, mas de certa forma também do planeta.
Ao mesmo tempo que os humanos, no Antropoceno, são reconhecidos como força geo-
lógica que tem causado impactos significativos no equilíbrio metaestável do planeta, a própria
Terra emerge diante de nós como um organismo vivo, demandando-nos novas formas de nos
conectarmos e nos relacionarmos com ela e com suas forças, formas essas mais horizontais e
menos antropocêntricas (Stengers, 2015; Latour, 2017; Grosz, 2017). Enquanto os discursos
transumanistas tendem a nos separar não só da Terra e de seus processos vitais, como tam-

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Ser imortal diante do fim do mundo: corpo, ciberutopia e transcendência

bém da organicidade de nossos próprios corpos, outro tipo de discurso, que nos alerta para a
insustentabilidade de nossos atuais modos de relação com a Terra, incentiva-nos, ao contrário,
a criar novas formas de conexão com esse sistema vivo e complexo. Elizabeth Grosz (2017)
fala sobre a necessidade de levarmos em conta o que ela chama de geopoder (geopower), ou
seja, as próprias forças da Terra que permitem que a vida sobreviva. Para a autora, essas forças
referem-se não àquele tipo de energia que os humanos podem extrair da dimensão geológica
da Terra, mas ao tipo de poder que emana independentemente de nossa vontade, forças
impessoais que atravessam nossas ações e sustentam a possibilidade de qualquer política,
forças não humanas que não são, por isso, o oposto ou a superação do humano, mas o pró-
prio excesso dentro dele. Já Latour (apud Bassets, 2019) usa expressões como “aterrissar” ou
“regressar ao plano terrestre” para se referir a essa necessidade de reconexão com a Terra.
Diante do desejo de “ir embora”, deve-se responder colocando os pés no chão. O autor fala
em aterrissar porque acredita que os modernos viviam em uma Terra muito utópica, imaginan-
do que ela era sem limites. Mas o sonho de que o planeta se desenvolveria indefinidamente
nunca foi verificado, e há uma angústia geral por esse desajuste entre o sonho e a realidade.
Mas, antes de pensarmos em nos engajarmos com as forças terrestres, o que é visto por
autores como Grosz e Latour como requisito para uma nova ecologia e uma nova estética que
nos reconecte com o não humano que nos atravessa, não deveríamos estar pensando em nos
engajarmos primeiro com a organicidade de nossos próprios corpos? Como colocar o corpo
humano de volta entre os seres do mundo? Talvez a questão não seja exatamente a de res-
gatar uma perspectiva orgânica, mas uma perspectiva vitalista, ligada à vida, esse “contínuo
aproximar-se e afastar-se da Terra e de suas forças” (Grosz, 2017: 133). Não se trata também
de “retornar” a uma suposta natureza, ainda intocada pela técnica (até porque não acredita-
mos que exista uma), mas, em vez disso, de inventar novas formas de compor com as tecnolo-
gias, formas híbridas de vida que não excluam ou diminuam o corpo e sua relação com o meio.
Diante das fantasias de digitalização total da vida e do corpo, seria preciso desenvolver,
enfim, outro tipo de relação com a Terra, um que não seja de extração, de colonização ou de
possessão. Isso exige inventar novos modos de “pensar com”, ou uma nova estética, um tipo
de estética que finalmente colocaria o corpo em conexão com a Terra e suas forças, incluindo
aí os processos de vida e morte, entendendo essa última não como algo contra o qual devería-
mos lutar ou superar, mas como uma causa necessária que determina que o corpo se submeta
a outros tipos de relação. É hora de o ser humano descer de seu pedestal antropocêntrico,
livrando-se da ideia megalomaníaca de viver para sempre. Infelizmente, não somos tão espe-
ciais quanto pensamos, mas não deixemos que isso nos desanime. O que nos resta, enfim, em
nossa curta passagem por este planeta, é inventarmos novas formas de agenciamento com

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 149-151, Janeiro-Abril 2020 149
Alana Soares Albuquerque

os seres da Terra, formas que nos coloquem em contato com outros devires, orgânicos ou
inorgânicos, animais ou maquínicos, não só como indivíduos, mas também como humanidade
que certamente ainda quer durar por mais alguns séculos nessa rocha solitária que vaga pelo
cosmos e que chamamos de lar.

Notas

1 O sétimo selo (1956).


2 No filme Acossado (1960).
3 O Antropoceno foi considerado, oficialmente, como uma possível era geológica na declaração feita em 2012
pela Comissão Internacional de Estratigrafia, durante o 34o Congresso Geológico Internacional (Latour, 2017).

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150 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 150-151, Janeiro-Abril 2020
Ser imortal diante do fim do mundo: corpo, ciberutopia e transcendência

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Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 151-151, Janeiro-Abril 2020 151
Artigo

Explorando os potenciais da história digital:


a experiência do Centro de Documentação e
Imagem da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro – campus de Nova Iguaçu
Exploring the potentials of digital history: the experience of the
Documentary and Image Center of the Federal Rural University
of Rio de Janeiro – Nova Iguaçu campus
Explotando las potencialidades de la historia digital: la experiencia
del Centro de Documentación e Imagen de la Universidad Federal
Rural do Rio de Janeiro – campus Nova Iguaçu

Felipe Augusto dos Santos RibeiroI*


Jean Rodrigues SalesII*
Alvaro Pereira do NascimentoIII*
Alexandre FortesIV*

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942020000100009

I
Universidade Estadual do Piauí (Uespi), Teresina (PI), Brasil.
* Professor-adjunto da Uespi ([email protected]). ORCID ID: http://orcid.org/0000-0002-1258-6550.

II
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Nova Iguaçu (RJ), Brasil.
* Professor-associado da UFRRJ, campus de Nova Iguaçu, e membro do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação
em História na mesma instituição ([email protected]). ORCID ID: http://orcid.org/0000-0003-1178-2039.

III
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Nova Iguaçu (RJ), Brasil.
* Professor-associado III do curso de Graduação em História da UFRRJ (campus de Nova Iguaçu), do Programa de
Pós-Graduação em História e do Programa de Pós-Graduação em Humanidades Digitais da mesma universidade
([email protected]). ORCID ID: http://orcid.org/0000-0001-7938-9095.

IV
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Nova Iguaçu (RJ), Brasil.
* Professor-associado da UFRRJ na área de história contemporânea ([email protected]).
ORCID ID: http://orcid.org/0000-0002-3728-2318.

Artigo recebido em 1º de agosto de 2019 e aprovado para publicação em 3 de dezembro de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 152-172, Janeiro-Abril 2020 152
Explorando os potenciais da história digital: a experiência do Centro de Documentação
e Imagem da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – campus de Nova Iguaçu

Resumo
Este artigo analisa as perspectivas abertas pela história digital para a renovação da produção historiográfica a partir
da experiência do Centro de Documentação e Imagem (Cedim) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ). Destaca a contribuição da disponibilização de acervos digitais para a autoestima coletiva dos moradores da
Baixada Fluminense, superando os estigmas tradicionalmente associados à região, como no caso da documentação
da Cúria Metropolitana de Nova Iguaçu, de grande relevância para o estudo dos movimentos sociais locais. Por fim,
analisa o Cedim como locus de cooperação entre historiadores e cientistas da computação, que originou o Mestrado
em Humanidades Digitais da UFRRJ.

Palavras-chave: História digital; Centro de Documentação; Baixada Fluminense; Diocese de Nova Iguaçu;
Movimentos sociais.

Abstract
This article analyses the perspectives open by digital history for the renewal of the historiographic production de-
parting from the experience of UFRRJ’s Documentary and Image Center (CEDIM). It highlights the contribution of
making available digital holdings for the collective self-esteem of Baixada Fluminense dwellers, overcoming stigmas
traditionally associated to the region, as in the case of the documents of the Nova Iguaçu Metropolitan Curia, of
great relevance for the study of local social movements. Finally, it analyses CEDIM as a locus of cooperation between
historians and computer scientist, that originated UFRRJ’s Masters in Digital Humanities..

Keywords: Digital history; Documentary Center; Baixada Fluminense; Diocese of Nova Iguaçu; Social
movements.

Resumen
Este artículo analiza las perspectivas abiertas por la historia digital para la renovación de la producción historiográfi-
ca partiendo de la experiencia del Centro de Documentación e Imagen (CEDIM), de la UFRRJ. Destaca la contribución
de la disponibilización de acervos digitales para la autoestima colectiva de los moradores de la Baixada Fluminense,
superando los estigmas tradicionalmente asociados a la región, como en el caso de los documentos de la Curia
Metropolitana de Nova Iguaçu, de gran relevancia para los estudios sobre los movimientos sociales locales. Por fin,
analiza el CEDIM como un locus de cooperación entre historiadores e científicos computacionales, que originó la
Maestría en Humanidades Digitales de la UFRRJ.

Palabras clave: Historia digital; Centro de Documentación; Baixada Fluminense; Diócesis de Nova Iguaçu;
Movimientos sociales.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 153-172, Janeiro-Abril 2020 153
Felipe Augusto dos Santos Ribeiro | Jean Rodrigues Sales
Alvaro Pereira do Nascimento | Alexandre Fortes

Introdução

P oucas afirmações sobre a realidade histórica atual seriam tão consensuais quanto a de
que a difusão das tecnologias digitais exerce influência crescente sobre as mais variadas
dimensões das sociedades humanas em escala global. Embora não seja possível definir uma
data precisa de início desse processo, o nascimento da World Wide Web, há cerca de 25 anos
— intervalo de tempo que já pode ser considerado historicamente significativo —, pode ser
apontado como um marco de mudanças qualitativas que desde então seguem se aprofundan-
do continuamente (Brügger, 2018: 5). É crescente a percepção de que a “revolução digital”
gera também profundas transformações no âmbito da produção e circulação do conhecimento
histórico.
Sistematizando reflexões sobre “promessas e perigos da história digital” em 2006,
Cohen e Rosenzweig relembravam a polarização estabelecida nos anos 1990 entre os “profe-
tas” que viam na internet o início de mudanças sociais tão profundas quanto as trazidas pela
descoberta do fogo e os tecnocéticos “neoludditas”, como a conservadora Gertrude Himmel-
farb, que alertava para os riscos de uma rede global que “não distingue entre o verdadeiro e
o falso, o importante e o trivial, o duradouro e o efêmero” (Himmelfarb, 1996). Descartando
essas posições extremadas, Cohen e Rosenzweig identificaram sete qualidades das mídias
digitais e das redes que “potencialmente nos permitem fazer as coisas melhor”: capacidade,
acessibilidade, flexibilidade, manipulabilidade, interatividade e hipertextualidade. Ao mesmo
tempo, reconheceram cinco perigos a serem evitados: qualidade, durabilidade, legibilidade,
passividade e inacessibilidade (Cohen e Rosenweig, 2006: 3).
Mais recentemente, em The history manifesto, Jo Guldi e David Armitage dedicaram o
capítulo “Big questions, big data” à análise de como os historiadores, ao se apropriarem das
ferramentas analíticas geradas pela tecnologia digital, podem desempenhar papel fundamen-
tal no enfrentamento da “sobrecarga de informação” que ameaça a capacidade de pensa-
mento de longo prazo no mundo contemporâneo. Os historiadores, argumentam os autores,
são profissionais treinados para o exercício crítico da curadoria que envolve problematizar
simultaneamente múltiplas bases de dados quanto ao contexto e aos vieses relativos a seu
processo de produção. Além disso, a perspectiva processual inerente ao olhar do historiador
oferece um poderoso antídoto às abordagens deterministas de curto prazo, a partir das quais
outras disciplinas tendem a interpretar as grandes massas de dados atualmente disponíveis.
Para evitar que o monopólio de ferramentas de mineração de dados aumente as assimetrias
no processo de produção do conhecimento histórico, entretanto, é fundamental que o histo-
riador se engaje em projetos interdisciplinares que gerem soluções tecnológicas abertas dispo-

154 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 154-172, Janeiro-Abril 2020
Explorando os potenciais da história digital: a experiência do Centro de Documentação
e Imagem da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – campus de Nova Iguaçu

nibilizadas a qualquer pesquisador, como ocorreu com Guldi no desenvolvimento do aplicativo


Paper Machines (Guldi e Armitage, 2014: 88-117).
O fato é que os impactos das transformações tecnológicas sobre o ofício do historiador
são inevitáveis. Como destaca Bolick, a criação de arquivos digitais “alterou as dinâmicas do
fazer da pesquisa histórica ao mudar quem é capaz de conduzir a pesquisa e como ela é feita”.
O autor destaca o caráter gratuito do acesso à maioria dos arquivos digitais cuja disponibiliza-
ção na internet se amplia vertiginosamente, além da oportunidade de “interação com recursos
de forma não linear que eles oferecem aos usuários” (Bolick, 2006: 122). Trabalhar nessa nova
realidade, porém, desafia o historiador a lidar com o que Brügger denomina “dupla dualidade
da digitalidade”. De um lado, a dualidade entre a linguagem digital “imaterial”, que não pode
ser lida diretamente pelos seres humanos, e os artefatos materiais (mídias) nos quais ela é
armazenada. De outro, a dualidade entre os diversos tipos de textos (palavras, imagens etc.)
gerados por meios digitais da forma como se apresentam aos usuários e as várias camadas
de linguagem computacional por detrás deles, que definem suas características e atributos
(Brügger, 2018: 19-20). Fontes digitalizadas, destaca Pons, demandam formas específicas de
conservação, reprodução e leitura (Pons, 2011: 44). Para Gallini e Noiret, a história digital
2.0, caracterizada pela interação e pela interdisciplinaridade, com o envolvimento ativo dos
pesquisadores na construção de soluções tecnológicas, visando a ampliar o impacto de seu
trabalho, convida-nos a “revisar comportamentos epistemológicos de numerosas disciplinas
humanísticas, incluindo a história, no contexto do que agora se definem como as humanida-
des digitais” (Gallini e Noiret, 2011: 31).
Sem menosprezar os desafios e a cautela necessários, Cohen e Rosenzweig conclamam
os historiadores profissionais a se juntarem ao “eclético mas disseminado esforço de base
para colocar o passado online”, que se estende desde as iniciativas pontuais de colocar uns
poucos documentos online até os esforços para de captação de recursos para “projetos mais
ambiciosos para criar arquivos públicos livres”. Para os autores, do mesmo modo como os
cientistas da computação mobilizam-se em favor do “software livre” (open source), cabe aos
“historiadores e acadêmicos populares” defender o potencial democratizante das “fontes li-
vres” (open sources) (Cohen e Rosenzweig, 2006: 13).
O impacto da história digital também se faz sentir no âmbito da educação. Refletindo
sobre o conservadorismo ainda reinante na metodologia de trabalho docente, Kelly alerta que
“o futuro do ensino de história depende da nossa habilidade e disposição para nos ajustar-
mos” a esse “ciclo de mudanças rapidamente acelerado, tecnologicamente determinado” e a
seus impactos sobre todas as dimensões da prática profissional do historiador (Kelly, 2013: 3).

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 155-172, Janeiro-Abril 2020 155
Felipe Augusto dos Santos Ribeiro | Jean Rodrigues Sales
Alvaro Pereira do Nascimento | Alexandre Fortes

Relatando o caso de um aluno que alterou a trilha sonora de cinejornal sobre o julgamento
de Nuremberg apresentado em sala de aula para nele inserir uma música que considerava
“mais adequada”, o autor reflete sobre as transformações correntes nas concepções sobre
“originalidade” e “autenticidade”, fundamentais para o trabalho do historiador. Kelly conclui
que a iniciativa do aluno e a reação positiva da turma diante dela não revelam apenas “uma
forma divertida de abordar o passado”, mas também mudanças na “forma de pensar sobre a
natureza da evidência e como a evidência pode e deve ser usada para fazer sentido de eventos
passados” (Kelly, 2013: 3-4). Trata-se de uma geração que não se limita mais ao papel de con-
sumidora de conteúdo online, mas que já nasce exercendo o papel de “criadora agressiva de
conteúdo digital”, algo que precisa ser considerado ao se planejar “o uso da mídia digital para
ensino e aprendizagem” (Kelly, 2013: 11-12). Um exemplo dessa relação da atual geração
de estudantes com a tecnologia digital é o sucesso alcançado pelo perfil “História no Paint”,
criado por Leandro Marin, aluno de licenciatura em história do Instituto Multidisciplinar (IM),
campus de Nova Iguaçu, da UFRRJ. Partindo da produção diária de memes irônicos e criativos
(atualmente estendida para outras mídias como podcasts), Marin construiu uma audiência
que já se aproxima dos 300 mil seguidores em redes sociais, como o Twitter e o Instagram
(Verly, 2019).
O IM-UFRRJ também é cenário de experiências que buscam explorar os potenciais da
história digital na criação de condições para a democratização do acesso à produção e à
circulação de conhecimento histórico, como é o caso do Centro de Documentação e Imagem
(Cedim). Conforme destacam Guldi e Armitage (2014: 108), “questões sobre como preservar
vozes subalternas por meio da integração de microarquivos no conjunto dos registros digita-
lizados da longa duração formam uma fronteira acadêmica nova e vitalmente importante”. O
imenso trabalho e o pensamento crítico envolvido nesses esforços, argumentam os autores,
merecem ser recompensados com financiamento, premiações e canais de publicação espe-
cíficos. Iniciativas dessa natureza, destacam, terão cada vez mais impacto na historiografia,
“ampliando os horizontes do que o pesquisador individual é capaz de enxergar” (Guldi e
Armitage, 2014: 109).
Analisaremos a seguir a trajetória do Cedim na construção de um dos “arquivos invisí-
veis”, que, como destacam Guldi e Armitage, oferecem uma contribuição fundamental para
a inserção das vozes subalternas suprimidas nas novas narrativas de longa duração tornadas
viáveis pela tecnologia digital. Antes disso, e até mesmo para contextualizar a relevância desse
trabalho e dos resultados já alcançados, é necessário abordar, ainda que rapidamente, alguns
elementos peculiares à realidade sócio-histórica da Baixada Fluminense.

156 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 156-172, Janeiro-Abril 2020
Explorando os potenciais da história digital: a experiência do Centro de Documentação
e Imagem da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – campus de Nova Iguaçu

A Baixada Fluminense para além dos estereótipos

O cineasta Nélson Pereira dos Santos inicia em janeiro um filme que vai despertar curiosidade
geral: trata-se de uma história das antigas lutas políticas na Baixada Fluminense. As cenas prin-
cipais são passadas em [Duque de] Caxias, e nelas aparece um personagem inspirado na figura
do ex-deputado Tenório Cavalcanti. (Jornal do Brasil, 19 jan. 1971: 10)

Lançado em 1974, o filme O amuleto de Ogum, dirigido por Nelson Pereira dos Santos,
foi um importante marco na produção cinematográfica brasileira — recebendo indicação ao
prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes e conquistando o Kikito de melhor filme
no Festival de Gramado. Como demonstra a citação, o fato de a produção ser ambientada
na cidade de Duque de Caxias (Simões, 2006; Silva, 2013; Silva, 2017)1 causou surpresa e
curiosidade. O enredo de O amuleto de Ogum mobiliza uma série de estereótipos associados
à imagem da Baixada Fluminense, que, de um lado, estão embasados em processos históricos
característicos da região, mas, de outro, reproduzem e amplificam os estigmas a ela atribuídos.
À época do lançamento, o diretor afirmou à imprensa que escolheu uma cidade da Bai-
xada como cenário “porque aqui as pessoas vivem sua própria realidade”. A obra conta a
história de uma família da região, na qual o pai e um dos filhos haviam sido assassinados. A
pedido da mãe, o filho sobrevivente resolve “fechar o corpo” em um terreiro de umbanda,
passando a utilizar um amuleto de Ogum. Mais tarde, ao se envolver em crimes e se relacionar
com a amante de um bicheiro, o protagonista é jurado de morte e sua proteção espiritual é
posta à prova.
O destaque atribuído na película às relações entre contraventores e lideranças políticas
locais inspira-se, sobretudos na trajetória de Tenório Cavalcanti, uma espécie de “mito políti-
co” da Baixada Fluminense. Tendo migrado do estado de Alagoas para os subúrbios cariocas,
fixando-se posteriormente na Baixada, Tenório estabeleceu-se inicialmente como líder político
local, mas gradualmente conquistou proeminência regional e nacional. Eleito vereador na
década de 1930, participou da campanha pela emancipação de Duque de Caxias, consumada
em 1943, o que lhe garantiu a lealdade da maioria do eleitorado da nova localidade. Foi eleito
deputado estadual em 1947, deputado federal em pleitos consecutivos entre 1950 e 1960 e
candidatou-se aos governos do estado da Guanabara, em 1961, e do Rio de Janeiro, em 1962,
ficando em segundo lugar em ambas as ocasiões. Também se lançou como pré-candidato à
Presidência da República no fim do governo de Juscelino Kubitschek, em 1960, sem sucesso
(Beloch, 1986: 43-61, 97 e 136; Ralston, 2013: 134-145).
Sobre a trajetória de Tenório muito já se produziu, entre livros jornalísticos, filmes e pesqui-
sas acadêmicas. Foi um personagem controverso, cujos posicionamentos políticos oscilaram em

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 157-172, Janeiro-Abril 2020 157
Felipe Augusto dos Santos Ribeiro | Jean Rodrigues Sales
Alvaro Pereira do Nascimento | Alexandre Fortes

diferentes momentos do liberalismo udenista ao socialismo, mas sempre se apresentando como


um justiceiro, um “advogado do povo”, ou um “pistoleiro vingador das multidões”, acompa-
nhado de sua inseparável metralhadora “Lurdinha”. Sua biografia conquistou as telas do cine-
ma, em 1986, com O homem da capa preta, dirigido por Sérgio Rezende. Assim como ocorrera
com O amuleto de Ogum 11 anos antes, o filme de Rezende também se sagrou vencedor do
prêmio de melhor filme no Festival de Gramado (Beloch, 1986; Grynszpan, 1990; Silva, 2012).2

Figura 1 – Localização da Baixada Fluminense e da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.


Fonte: Disponível em: <https://journals.openedition.org/espacoeconomia/1677?lang=en>. Acesso em: 1o maio 2018
(imagem adaptada por Felipe Ribeiro).

O pano de fundo pouco explicitado nos filmes de Nelson Pereira dos Santos e Sérgio
Rezende é o processo de intensa efervescência política vivido pela Baixada Fluminense no pe-
ríodo do pós-guerra. Nos anos 1970 e 1980, enquanto a região atraía a atenção de cineastas
e da imprensa principalmente pelos altos índices de violência, ela despontava como um impor-
tante centro político do estado do Rio de Janeiro, por dois motivos. De um lado, a Baixada vivia
o auge da “explosão demográfica”, que a tornava decisiva nas disputas eleitorais estaduais.
De outro, os movimentos sociais, incluindo aí sindicatos de trabalhadores urbanos e rurais,

158 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 158-172, Janeiro-Abril 2020
Explorando os potenciais da história digital: a experiência do Centro de Documentação
e Imagem da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – campus de Nova Iguaçu

associações de bairro, entidades de defesa da cultura africana e afrodescendente, além das


próprias Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica, assumiam protagonismo
cada vez maior na região.
O Cedim-UFRRJ, por meio da geração e da disponibilização de seus acervos digitais, tem
influenciado, catalisado e desenvolvido variados estudos sobre a história da Baixada Flumi-
nense, resgatando as experiências dos trabalhadores urbanos e rurais entre as décadas de
1940 e 1980. Desse modo, pretende contribuir para a superação de estereótipos altamente
disseminados, como aqueles reproduzidos por filmes como os citados, que reduzem a imagem
da região a características como violência e pobreza, dificultando a formação de identidades
coletivas positivas entre seus habitantes.

A inserção da UFRRJ na Baixada Fluminense

A criação do Instituto Multidisciplinar (IM) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro


(UFRRJ) em Nova Iguaçu, em 2006, ocorreu no contexto da primeira fase da expansão
das universidades federais durante o governo Lula. Herdeira da Escola Superior de Agronomia
e Medicina Veterinária (ESAMV), fundada em 1910, desde os anos 1970 a UFRRJ já vinha di-
versificando o perfil dos cursos de graduação oferecidos no campus de Seropédica, para além
das ciências agrárias e correlatas, à medida que seu entorno se urbanizava e se integrava à
Região Metropolitana do Rio de Janeiro. A expansão ocorrida na primeira década do século
XXI, contudo, deu-se em ritmo incomparavelmente mais acelerado. Em cerca de cinco anos, a
universidade passou de 5 mil para 20 mil alunos, distribuídos em 58 cursos, espalhados em
uma nova estrutura multicampi, com sedes nos municípios de Seropédica, Três Rios e Nova
Iguaçu. Fruto desse processo, o IM-UFRRJ constitui a maior unidade de ensino superior criada
no período sem ser uma nova universidade, com 11 cursos de graduação, cerca de 3.200 alu-
nos e atuação dos docentes em oito programas de pós-graduação, seis deles em modalidade
multicampi (aulas realizadas também em Seropédica).3
Foi, portanto, em um contexto de ampliação do acesso ao ensino superior, com a criação
de um curso de história localizado no coração da Baixada Fluminense, que surgiu, em 2013,
o Centro de Documentação e Imagem (Cedim), com o objetivo reunir, sistematizar, preservar e
disponibilizar documentação histórica digitalizada. É importante ressaltar que, em que pesem
os esforços de historiadores e memorialistas locais, a região carece de arquivos públicos. Em
função disso, apesar de sua recente trajetória, o Cedim já está se constituindo em uma das
poucas instituições voltadas para a disponibilização de fontes históricas sobre a Baixada Flu-
minense ao público mais amplo, sobretudo por meio da internet.4

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 159-172, Janeiro-Abril 2020 159
Felipe Augusto dos Santos Ribeiro | Jean Rodrigues Sales
Alvaro Pereira do Nascimento | Alexandre Fortes

Diante da própria ausência de condições para a manutenção de um acervo físico, o


Cedim vem se notabilizando na digitalização, catalogação e disponibilização de acervos re-
lacionados, prioritariamente, com a história da Baixada Fluminense.5 Na maior parte dos ca-
sos, esses acervos digitais são produzidos a partir de parcerias com instituições (órgãos de
imprensa, cartórios, Prefeitura Municipal, Cúria Diocesana etc.) e movimentos sociais locais.
As condições de acesso a esses acervos são negociadas caso a caso com os detentores de di-
reitos sobre a documentação, em geral resultando em transferência temporária e gradual dos
acervos para o Cedim, a fim de que seja processada sua digitalização e catalogação. O Centro
funciona também como laboratório de pesquisa e ensino aberto aos vários cursos existentes
no Instituto, ainda que, por sua natureza, esteja ligado mais diretamente à graduação e à
pós-graduação em história.
A geração e a disponibilização de um crescente acervo digital têm contribuído para mi-
nimizar uma carência latente, que sempre prejudicou, em muito, o trabalho dos pesquisadores
da região. A expansão da busca de acesso a esses acervos começou rapidamente a sobrecar-
regar a limitada estrutura física do Cedim. Funcionando em uma sala de 25 metros quadrados
aproximadamente, empregando bolsistas e voluntários de graduação nas diversas atividades
cotidianas, como as de digitalização do material, transcrição de entrevistas, identificação do
material, catalogação, além de disponibilizar dois terminais de vídeo para pesquisa dos consu-
lentes, o espaço foi se tornando cada vez mais exíguo.
As limitações do espaço disponível para os pesquisados somou-se às preocupações com
a ampliação do acesso à documentação e com a importância de divulgação do trabalho rea-
lizado pelo Centro, o que levou a equipe à busca de informações sobre os potenciais abertos
pela disponibilização de acervos digitais online. A partir daí, começamos a analisar outras
plataformas utilizadas por diversos centros de pesquisa, arquivos e bibliotecas no Brasil e
em outros países. Incorporamos a concepção de ciência aberta (open science), pautada pela
disponibilização não apenas dos produtos finais, mas das bases de dados e fontes geradas no
processo de pesquisa.
O projeto de criação de um Centro de Referência em História do Trabalho, coordenado
pelo professor Alexandre Fortes, obteve financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). O objetivo inicial era constituir um conjunto de acervos
e instrumentos de referência sobre a história do trabalho no Brasil (acervos textuais, orais e
bibliografia comentada), visando a contribuir para o desenvolvimento de pesquisas históricas
sistemáticas e abrangentes nessa área, e seu produto final seria a criação de uma plataforma
digital online para difundir os acervos reunidos. A proposta acabou se expandindo para uma

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Explorando os potenciais da história digital: a experiência do Centro de Documentação
e Imagem da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – campus de Nova Iguaçu

plataforma que abrigasse gradualmente todos os acervos do Cedim, além da produção aca-
dêmica do IM-UFRRJ. Daí surgiu o Repositório do Instituto Multidisciplinar e Acervos (Rima),
disponível em <http://rima.im.ufrrj.br:8080/jspui/>, construído com a assessoria técnica de
Ricardo Campos, que opera baseado no software DSpace.
A criação do Rima contribuiu também para a construção da política institucional de
acervos da UFRRJ e para o estabelecimento de parcerias de capacitação com o Instituto de
Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT-Fiocruz), visando a tornar
a universidade autônoma no domínio tecnológico e na regulamentação do uso do DSpace,
também utilizado no repositório de teses e dissertações (<https://tede.ufrrj.br/?locale=pt_
BR>). Nesse sentido, o projeto inclui o fortalecimento do Cedim, e a construção de um novo
Laboratório de Digitalização e Conservação no campus de Seropédica foi aprovado no edital
CT-Infra da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), em 2018.
O processo de implantação do repositório gerou ainda uma colaboração interdisciplinar
entre as áreas de história e ciência da computação, com foco em tecnologias de mineração
de dados aplicada à pesquisa histórica, e desdobrou-se na elaboração de uma proposta de
mestrado em humanidades digitais, aprovado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pes-
soal de Nível Superior (Capes) em 2018. A expertise adquirida pela UFRRJ por meio do Cedim,
no que diz respeito à digitalização e à disponibilização de acervos, vem sendo reconhecida
externamente, o que gera demandas que extrapolam o alcance originalmente previsto. Um
exemplo significativo foi a parceria firmada com um grupo de docentes especializados em
história da América Latina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) para a digitalização da coleção completa da revista Cader-
nos do Terceiro Mundo, realizada com apoio do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia
do Maranhão (Iema).
Exemplificaremos o potencial das coleções de documentos históricos disponibilizadas
pelo Cedim, analisando a parceria estabelecida entre o Centro e a Cúria Metropolitana de
Nova Iguaçu. Para compreender a relevância dessa documentação, entretanto, é necessário
traçar um breve panorama das lutas sociais na segunda metade do século XX na região e da
atuação da Igreja junto a esses movimentos.

Apontamentos sobre a efervescência política entre as


décadas de 1950 e 1980 e a presença da Igreja Católica

A Baixada Fluminense, atualmente com uma população em torno de 4 milhões de habitan-


tes (a depender da definição dos municípios que compõem a região), sofreu um intenso

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Felipe Augusto dos Santos Ribeiro | Jean Rodrigues Sales
Alvaro Pereira do Nascimento | Alexandre Fortes

processo de crescimento demográfico, mudanças na ocupação do solo e na produção econô-


mica na segunda metade do século XX. A partir de meados dos anos 1950, a região viveu o
declínio da agricultura, com destaque para a crise da citricultura, e o crescimento paulatino
de algumas indústrias de pequeno e médio porte (Geiger e Santos, 1954; Rodrigues, 2006;
Pereira, 1977; Soares, 1962; Souza, 1992).

Tabela 1 – Dados populacionais (1940-1970)

Censos demográficos
Municípios
1940 1950 1960 1970
Nova Iguaçu (1) 142.021 145.649 356.645 727.140
Duque de Caxias 28.328 92.459 241.026 431.397
Magé 23.401 36.761 59.076 113.965

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).


(1) Ao longo da década de 1940, o território de Nova Iguaçu foi sucessivamente desmembrado
para a formação de novos municípios: Duque de Caxias (1943), Nilópolis (1947) e São João de
Meriti (1947). Desse modo, os dados referentes aos novos municípios não foram contabilizados.

Ao mesmo tempo, a inauguração da Rodovia Presidente Dutra, que liga o Rio de Janeiro
a São Paulo, e a expansão da malha ferroviária tornaram-na atrativa para migrantes que bus-
cavam trabalho na capital do estado, mas não tinham condições de arcar com os custos da
moradia na cidade do Rio de Janeiro. Em poucas décadas, o número de moradores da Baixada
Fluminense dobrou. Nova Iguaçu, maior cidade da região, passou de 145 mil habitantes, nos
anos 1950, para 727 mil, nos anos 1970, conforme observamos na Tabela 1.
O crescimento desordenado transformou a Baixada Fluminense em um local de extrema
pobreza e exclusão social. Nessas circunstâncias, as violações de direitos básicos de cidadania
ganharam contornos assustadores na região. A falta de moradia e saneamento básico, a au-
sência de equipamentos mínimos de saúde e educação, os assassinatos massivos cometidos
à sombra dos poderes políticos local e policial passaram a se associar fortemente à imagem
da Baixada (Alves, 2003).
Mas a região também foi cenário de importantes lutas sociais desde a década de 1940.
Na área rural, destacaram-se os conflitos pela posse da terra em localidades como Pedra Lisa,
em Nova Iguaçu, e Xerém, em Duque de Caxias.6 Na área urbana, as greves e os conflitos
fabris em indústrias têxteis da região, na Fábrica Nacional de Motores (FNM) e na Refinaria de
Duque de Caxias (Reduc). As lutas aprofundaram-se na resistência à ditadura, capitaneada por
movimentos apoiados pelos chamados “bispos progressistas” da Igreja Católica na região,

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Explorando os potenciais da história digital: a experiência do Centro de Documentação
e Imagem da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – campus de Nova Iguaçu

entre eles Dom Adriano Hypólito, da Diocese de Nova Iguaçu. Tendo chegado à região na dé-
cada de 1960, Dom Adriano notabilizou-se por fomentar as CEBs, que deram origem ao Movi-
mento de Amigos de Bairro (MAB). Essas experiências contribuíram também para a formação
de uma base social militante por organizações de esquerda na Baixada, desembocando na
criação do Partido dos Trabalhadores (PT), na década de 1980 (Cantalejo, 2008; Silva, 2004;
Pinheiro Jr., 2007; Sótenos, 2013).
Durante o regime militar, a Baixada Fluminense, por ser uma região com significativo e
variado processo de industrialização e com histórico de conflitos agrários e urbanos, chegou a
atrair diversos grupos de resistência à ditadura, que passaram a atuar junto aos movimentos
sociais locais (Carvalho, 2015; Costa, 2009; Grinszpan, 1987; Mendonça, 2017; Ramalho,
1989; Ribeiro, 2015). Um exemplo disso foi o Partido Comunista do Brasil – Ala Vermelha (PC-
doB-AV), dissidente comunista que abandonou a guerrilha para atuar em táticas de inserção
junto aos trabalhadores e trabalhadoras na região durante a ditadura. Uma das principais fer-
ramentas de mobilização utilizadas pelo grupo foi o Jornal da Baixada, periódico que circulou
entre os anos 1979 e 1980 (Ribeiro, 2013).7
Por outro lado, setores conservadores e ligados ao regime militar também procuram
mobilizar-se tanto para evitar a atuação de movimentos sociais quanto para se beneficiar
das políticas econômicas do regime militar. Nos pleitos de 1972, 1974 e 1976, o município
de Nova Iguaçu ocupava a oitava colocação entre os maiores colégios eleitorais do país, o
maior sem ser capital de estado. Duque de Caxias vinha em 11o lugar, São João de Meriti, em
20o, Nilópolis, em 66o, e Magé, na 70o colocação (Jornal do Brasil, 21 nov. 1976: 24). Por seu
peso eleitoral, a região tornou-se alvo dos interesses do partido de sustentação dos governos
militares, a Aliança Renovadora Nacional (Arena). Deputados arenistas chegaram a propor —
nas discussões que culminaram no estabelecimento legal da Região Metropolitana do Rio de
Janeiro, em 1974 — a formação de uma superintendência para o desenvolvimento da Baixa-
da Fluminense. Esse debate gerou tensões entre os próprios políticos locais, alguns alegando
que a proposta só valeria a pena se fosse “totalmente desapegada de qualquer movimento
demagógico, visando uma compensação eleitoral” (Correio da Manhã, 2 jun. 1970: 10).
Um exemplo da relação entre os interesses locais e o regime militar pode ser exemplifica-
da pela trajetória da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis. Contraventores do jogo do bicho
ocupavam cargos estratégicos na escola e mantinham estreitas relações com os governos mi-
litares. Desfilando “sambas de exaltação ao regime”, no início da década de 1970, a Beija-Flor
sagrou-se como a primeira campeã do Carnaval carioca com sede fora da cidade do Rio de
Janeiro, em 1976, tendo como enredo o próprio jogo do bicho (Bezerra, 2010).

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É nesse contexto que precisamos situar a atuação política da Diocese de Nova Iguaçu,
sob Dom Adriano Hypólito, que assumiu o cargo em novembro de 1966 e teve seu episcopado
marcado pela aproximação da Igreja com os pobres e pelo profundo engajamento nas causas
sociais. Por meio das CEBs, das Pastorais Operária e Camponesa, a Diocese de Nova Iguaçu
deu suporte a movimentos de ocupações de terra rurais e urbanas, movimentos de bairro e aos
militantes de direitos humanos. Também disponibilizava espaço para que diversos movimentos
pudessem realizar reuniões em suas dependências e criou a Escola de Líderes, voltada para a
formação política de leigos (Silva, 2014). Em função de sua atuação, Dom Adriano Hypólito
chegou a ser sequestrado por agentes da repressão, em 1976, sendo espancado e abando-
nado nu, com o corpo pintado de vermelho, em um matagal na cidade do Rio de Janeiro,
enquanto seu carro foi destruído em uma explosão. Três anos depois, uma bomba foi detonada
em pleno altar da Catedral da Diocese de Nova Iguaçu (Gomes, 2012; Serafim, 2014).8

A parceria do Cedim e a Cúria Metropolitana de Nova Iguaçu

D urante o bispado de Dom Adriano Hipólyto, entre 1966 e 1996, a diocese acumulou um
número expressivo de documentos relativos tanto às atividades eclesiais quanto à luta
dos trabalhadores rurais e urbanos, além de diversos outros conflitos sociais. Em uma região
carente de equipamentos públicos, a Cúria Metropolitana tem o maior acervo documental
sobre a história dos trabalhadores da Baixada Fluminense (Conselho Nacional de Arquivos
(Conarq – Parecer no 16/2011).
Por outro lado, a Igreja não tem condições materiais e de pessoal para disponibilizar re-
gularmente ao consulente o acesso a essa documentação. A partir desse diagnóstico, o Cedim
estabeleceu, em maio de 2015, seu primeiro termo de cooperação institucional, por meio do
qual se comprometeu a digitalizar e a disponibilizar na internet os documentos guardados no
arquivo da Cúria. Diante dos poucos recursos disponíveis para o desenvolvimento do trabalho,
optou-se por iniciar essa digitalização a partir de documentos de maior interesse para pesqui-
sadores e em melhor estágio de organização.
Até o momento, entre outros documentos digitalizados e disponibilizados, destacamos
os seguintes fundos documentais da Cúria Metropolitana:9
1) Apóstola da Baixada – Irmã Filomena Lopes Filha (1946-1990) – A freira
Filomena Lopes Filha integrou o Instituto de Educação Santo Antônio (Iesa), em
Nova Iguaçu, e organizou grupos de sem-teto para a construção de casas em bair-
ros como Itaipu, em Belford Roxo. Com seu envolvimento na questão das moradias,
foi assassinada em 1990;

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Explorando os potenciais da história digital: a experiência do Centro de Documentação
e Imagem da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – campus de Nova Iguaçu

2) Dossiê Dom Adriano Hypólito – Compõe um conjunto de 13 pastas de docu-


mentos sobre a vida de Dom Adriano Hypólito como bispo de Nova Iguaçu (1966-
1994). A documentação versa principalmente sobre o sequestro sofrido pelo bispo,
em 1976, e o atentado à bomba na catedral da cidade Nova Iguaçu, em 1979. Esses
dois episódios foram uma retaliação à atuação do bispo junto aos movimentos
sociais e ao movimento de direitos humanos;
3) Juventude Operária Católica (JOC) – Movimento de formação de jovens traba-
lhadores, fundado pelo cardeal Joseph Cardijn, em 1925. O Fundo tem documentos
sobre a presença da JOC na Baixada Fluminense, bem como sobre sua atuação
no Brasil;
4) Pastoral Operária (PO) – Documentação sobre a atuação da Pastoral Operária
em Nova Iguaçu e no Brasil, com destaque para a inserção dos participantes ligados
à Igreja em diversos movimentos de trabalhadores na região;
5) Ocupações urbanas – Baixada Fluminense – Reúne documentos a respeito de
ocupações urbanas na Baixada Fluminense, com reflexões bem interessantes sobre
a participação da Igreja junto aos movimentos de ocupação;
6) Reforma agrária e trabalhadores rurais – Reúne documentação relativa à
questão agrária na Baixada Fluminense e em nível nacional;
7) Direitos humanos e a Diocese de Nova Iguaçu – Conjunto de documentos
relacionados com a participação da Diocese de Nova Iguaçu em movimentos pelos
direitos humanos no Brasil e nas denúncias sobre assassinatos na Baixada Flumi-
nense.

Outras parcerias celebrada pelo Cedim

A lém da documentação proveniente da Cúria Metropolitana, o Cedim, por meio de diver-


sos acordos e doações, tem outros fundos que possibilitam a pesquisa sobre a história
dos movimentos sociais na Baixada Fluminense.10 Entre outros materiais, podemos destacar:
1) Correio da Lavoura – É o jornal mais antigo da cidade de Nova Iguaçu e do
Rio de Janeiro, ainda em circulação. Fundado em 22 de março de 1917 por Silvino
Hipólito de Azeredo, tem periodicidade semanal. A análise de seus exemplares pos-
sibilita pesquisas de mais variados matizes sobre a inserção dos trabalhadores na
história da região;

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Alvaro Pereira do Nascimento | Alexandre Fortes

2) Jornal da Baixada – Circulou entre os anos 1979 e 1980. Foi um periódico da


chamada imprensa alternativa, que nasceu do esforço de moradores e trabalha-
dores da Baixada Fluminense, com a colaboração de um grupo de jornalistas. Está
ainda relacionado com militantes da Ala Vermelha, uma dissidência do PCdoB, que
atuavam na Baixada Fluminense durante a ditadura militar;
3) Entrevistas – Reúne depoimentos concedidos por militantes de diversos movi-
mentos sociais da Baixada Fluminense, como de trabalhadores que participaram da
greve da empresa Bayer S.A. em 1989, na cidade de Belfort Roxo;
4) Livros de escrituras e procurações do 2o Ofício de Justiça de Nova Igua-
çu – Registro de Imóveis da 1a Circunscrição – Fontes produzidas entre 1834
e 1894, agrupando dados acerca de personagens expoentes da região, como o
comendador Soares e o barão de Tinguá. Essa documentação também aglomera
informações sobre escravos e pequenos comerciantes, especialmente nos distritos
que compuseram o que atualmente é o município de Nova Iguaçu. Sua análise pos-
sibilita, entre outras abordagens, a discussão sobre trabalho livre e trabalho escravo
na região da Baixada Fluminense;
5) Livros de atos oficiais de Nova Iguaçu – A coleção contempla decretos e re-
soluções emitidas pelo poder municipal de Nova Iguaçu, entre 1948 e 1974. Além
de temas mais amplos da administração da cidade, a documentação possibilita
pesquisas sobre a demanda dos trabalhadores à Câmara Municipal.

A partir dessa ampla gama documental, os pesquisadores associados ao Cedim têm


desenvolvido projetos mais amplos, para sistematizar os esforços e as reflexões a respeito
da história dos trabalhadores. Entre essas iniciativas, destacam-se a criação do Centro de
Referência em História da Baixada Fluminense (CRHBF), do Centro de Referência em História
do Trabalho (CRHT) e do Grupo de Estudos Mundos do Trabalho e o Pós-Abolição (Gemtrapa).
A primeira iniciativa aglutina diversos projetos de pesquisa sobre a história da Baixada
Fluminense que vêm sendo realizados desde 2006 e que têm gerado tanto trabalhos autorais
quanto instrumentos de pesquisa voltados ao fomento de novas investigações. O segundo
projeto pretende constituir, no âmbito do IM-UFRRJ, um conjunto de acervos e instrumentos
de referência sobre a história do trabalho no Brasil que contribuam para o desenvolvimento de
pesquisas históricas sistemáticas e abrangentes nessa área tanto na UFRRJ e em instituições
parceiras no projeto quanto no país como um todo. O terceiro busca analisar os mundos do
trabalho e sua relação com o processo histórico que aboliu jurídica e politicamente o trabalho

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Explorando os potenciais da história digital: a experiência do Centro de Documentação
e Imagem da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – campus de Nova Iguaçu

escravo e no qual surgiram formas diversas de trabalho compulsório e livre no país, tendo es-
pecial atenção àquelas decorrentes das migrações de nordestinos e gerações descendentes de
escravos do Vale do Paraíba para a Baixada Fluminense. Além desses, destaca-se o Grupo de
Estudos Históricos da Baixada Fluminense (GEHBAF), no qual estão incluídos pesquisadores
especializados em diferentes momentos, desde a antiga Iguassu até o que denominamos hoje
Baixada Fluminense.
A partir das pesquisas realizadas por esses grupos e por pesquisadores individuais, va-
lendo-se amplamente dos acervos digitais disponibilizados pelo Cedim, a visibilidade historio-
gráfica da Baixada Fluminense vem se ampliando, e a diversidade e a riqueza da história da
região passam a ser gradualmente reconhecidas.11

Conclusões

A implantação da UFRRJ na Baixada Fluminense e a criação de seus cursos de gradua-


ção e pós-graduação em história estão influenciando de forma significativa a produção
historiográfica e a mobilização de setores da sociedade em torno da memória e da história
local. Por sua vez, a criação do Cedim vem ajudando a catalisar diversos projetos individuais e
coletivos voltados à pesquisa histórica na região, alguns dos quais já existentes tanto dentro
quanto fora dos muros da universidade.
É significativo dessa mobilização em torno da história regional o fato de um número
crescente de alunos de história do IM-UFRRJ escolherem como tema de seus trabalhos de
conclusão de curso aspectos relativos à história da Baixada Fluminense, conforme pode ser
verificado nos 165 trabalhos já disponibilizados na comunidade criada com essa finalidade
no Rima.12 Gradualmente, essa tendência de produção de pesquisas empíricas originais sobre
diversos temas da história regional também começa a se refletir nas teses e dissertações
produzidas no Programa de Pós-Graduação em História da UFRRJ. Os resultados gerados por
essas novas pesquisas representam uma expansão bastante expressiva do corpo de estudos
acadêmicos sobre a história local, sobretudo no que tange aos trabalhadores e movimentos
sociais, contribuindo para a superação do preconceito que estigmatiza a Baixada Fluminense
como um local marcado apenas pela violência, pela pobreza e pela precarização e para a
valorização do protagonismo de um amplo leque de sujeitos sociais, todos portadores de ricas
experiências históricas.
A criação do Cedim tem possibilitado também o fortalecimento da articulação entre di-
versos atores sociais e políticos unidos em torno da causa da valorização da história da região.
Um momento relevante dessa aproximação deu-se em junho de 2015, quando foi realizado,

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no campus de Nova Iguaçu, o lançamento do Rima, que tornou possível a disponibilização


online do acervo do Cedim.13 Na ocasião, foi lançada a coletânea A Baixada Fluminense e a
ditadura militar, que viria a ser premiada com Menção Honrosa no XV Prêmio Baixada 2016
– segmento Produção Acadêmica, em evento organizado pelo Fórum Cultural da Baixada
Fluminense.
Como vimos, na década de 1970 a imprensa e os cineastas mobilizaram estereótipos
para despertar a “curiosidade geral” da opinião pública dos grandes centros do país pela
Baixada Fluminense. Hoje, iniciativas como as do Cedim vêm proporcionando os meios para
que a história da região comece a ser conhecida em pé de igualdade com a de áreas mais
privilegiadas do país. Não mais apenas um objeto exótico sujeito a olhares condescendentes,
a Baixada resgata seu protagonismo próprio, outrora silenciado por preconceitos.
Flórez salienta as tensões inerentes ao caráter eminentemente global da história digital.
De um lado, ela expressa a dominação da língua inglesa e o poder das grandes corporações
tecnológicas (que dominam o desenvolvimento dos equipamentos computacionais). De ou-
tro, proporciona uma “acumulação de histórias locais”, na qual “as histórias subalternas, as
memórias ocultas e ocultadas” emergem, desafiando as narrativas tradicionais estabelecidas
(Flórez, 2011: 84).
Como destacam Guldi e Armitage, a superação desses riscos passa pela criação de “es-
truturas microarquivísticas para a narrativa macro-histórica”, a partir de projetos de história
digital com foco nas vozes de atores sociais subalternos. A implementação dessas iniciativas,
destacam os autores, constitui um desafio fundamental, de natureza inerentemente colabora-
tiva e interdisciplinar, que redesenha o próprio padrão de atuação profissional do historiador,
habilitando-o, a partir do diálogo com arquivistas, bibliotecários e profissionais de computa-
ção, a se inserir na “vanguarda do design informacional” (Guldi e Armitage, 2014: 109).
O trabalho do Cedim do IM-UFRRJ no campo da história digital, em seus poucos anos
de atuação, é um exemplo claro da possibilidade de realização desses potenciais mesmo em
contextos particularmente adversos.

Notas

1 Tem sido bastante debatida no meio universitário a noção de Baixada Fluminense, que não foi uma deno-
minação estabelecida formalmente. Há diversas tensões para se definir quais os municípios que compõem a
região. Consideramos Baixada Fluminense o território que reúne os municípios derivados das Vilas de Iguaçu
e Estrela, estabelecidas no século XIX, ou seja, os atuais municípios de Belford Roxo, Duque de Caxias, Japeri,
Magé, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Queimados e São João de Meriti. Em definições mais abrangentes, os
municípios de Guapimirim, Itaguaí e Seropédica também fariam parte da Baixada.

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Explorando os potenciais da história digital: a experiência do Centro de Documentação
e Imagem da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – campus de Nova Iguaçu

2 Entre as produções que buscam explicar o fenômeno Tenório Cavalcanti, destacamos os trabalhos de Israel
Beloch, que investe na categoria “coronelismo urbano”; Mário Grynszpan, que, diversamente de Beloch,
utiliza os conceitos de “patronagem” e “clientelismo”; e Claudio Silva, que, dialogando com as noções de
“populismo”, caracteriza o “tenorismo” como uma espécie de “udenismo popular”.
3 UFRRJ. História do campus. Disponível em: <http://r1.ufrrj.br/im/wp/historia-do-campus/>. Acesso em:
8 maio 2018.
4 Convém registrar importantes iniciativas, visando ao estabelecimento de arquivos públicos na Baixada
Fluminense. A Fundação Educacional de Duque de Caxias (Feuduc), por exemplo, chegou a organizar um im-
portante Centro de Memória, Pesquisa e Documentação da História da Baixada Fluminense (Cempedoch-BF),
mas a iniciativa não teve prosseguimento. Já a Câmara Municipal de Duque de Caxias mantém, desde 1973,
um Instituto Histórico, que reúne importantes acervos físicos sobre a cidade e a Baixada de forma geral. Em
todos os casos, porém, faltam estruturas tecnológicas e pessoal capacitado, necessários à preservação e à
disponibilização dos acervos.
5 Disponível em: <http://r1.ufrrj.br/cedim/index.php/acervo/> e <http://rima.im.ufrrj.br:8080/jspui/handle/
1235813/2>. Acessos em: 21 dez. de 2018.
6 A Associação de Pedra Lisa, chamada Sociedade dos Lavradores e Posseiros de Pedra Lisa, em Nova Iguaçu,
foi fundada por Bráulio Rodrigues em 1948, constando como a primeira organização de lavradores da Baixada
Fluminense. Em 1949, José Pureza organizou a criação de uma comissão de lavradores em Xerém, que seria
o embrião da Associação dos Lavradores Fluminenses (ALF).
7 A coleção completa do Jornal da Baixada, digitalizado pelo Cedim, pode ser acessada em: <http://rima.
im.ufrrj.br:8080/jspui/handle/1235813/83>.
8 Os dossiês originais produzidos pela Diocese de Nova Iguaçu sobre a repercussão dos atentados cometi-
dos pela extrema direita contra Dom Adriano Hypólito, digitalizados pelo Cedim, podem ser acessados em:
<http://rima.im.ufrrj.br:8080/jspui/handle/1235813/8>.
9 O conjunto da documentação digitalizada até o momento a partir da celebração do convênio pode ser
acessado em: <http://rima.im.ufrrj.br:8080/jspui/handle/1235813/3>.
10 Os acervos comentados adiante, entre outros, podem ser acessados na comunidade Cedim do Rima,
disponível em: <http://rima.im.ufrrj.br:8080/jspui/handle/1235813/2>.
11 Até novembro de 2019, a comunidade Cedim do Rima recebeu 3.376 acessos, sendo 18% de internautas
de outros países (Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, Argentina, Costa Rica, Espanha, Países Baixos, Portugal
e Arábia Saudita).
12 Disponível em: <http://rima.im.ufrrj.br:8080/jspui/handle/1235813/31>. Acesso em: 13 dez. 2019.
13 Estiveram presentes, entre outros convidados, o então bispo da Diocese de Nova Iguaçu, Dom Luciano
Bergamine; o padre Luigi Costanzo Bruno e o coordenador do Arquivo da Diocese de Nova Iguaçu, Antônio
Lacerda, compondo uma mesa sobre as memórias e histórias de Dom Adriano Hypólito. Além dos professores
e pesquisadores do Cedim, compareceram ainda o professor José Ricardo Ramalho, autor de uma importante
obra sobre a luta dos trabalhadores na Baixada Fluminense, e a professora Dulce Pandolfi, que estudou temas
relacionados com a história da Igreja e também sobre a ditadura militar.

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Referências bibliográficas

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172 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 172-172, Janeiro-Abril 2020
Artigo

Avatares: o maravilhoso e o estranho no


Second Life 1
Avatars: the wonderful and the weird at Second Life
Avatares: el maravilloso y extraño en Second Life

Laura Graziela GomesI*

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942020000100010

I
Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói (RJ), Brasil.

* Departamento de Antropologia (GAP/UFF). Programa de Pós-Graduação em Antropologia ([email protected]).


ORCID ID: http://orcid.org/0000-0002-0044-5259.

Artigo recebido em 1o de agosto de 2019 e aprovado para publicação em 3 de dezembro de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 173-195, Janeiro-Abril 2020 173
Laura Graziela Gomes

Resumo
O artigo tem como objetivo discutir o maravilhoso e o estranho no mundo virtual Second Life, bem como as relações
de engajamento e de cuidados que os usuários humanos dispensam às suas criaturas, os avatares. Desde 2007,
venho me dedicando a observar e a acompanhar o desenvolvimento desse mundo e seus modos de vida possíveis
sob diferentes aspectos, bem como as premissas lógicas, simbólicas e subjetivas sobre as quais se desenvolve e se
sustenta toda a existência, especialmente a economia desse mundo virtual, fazendo do Second Life uma das mais
antigas e bem-sucedidas plataformas digitais imersivas conhecidas em funcionamento.

Palavras-chave: Second Life; Mundos virtuais; Avatares.

Abstract
The article aims to discuss the wonderful and the strange in the Second Life virtual world, as well as the engagement
and care relationships that human users bestow on their creatures, the avatars. Since 2007, I have been dedicating
myself to observe and follow the development of this world and its possible ways of life in different aspects, as well
as the logical, symbolic and subjective premises on which all existence develops and sustains, especially the economy
of this virtual world, making Second Life one of the oldest and most successful digital platforms in operation.

Keywords: Second Life; Virtual worlds; Avatars.

Resumen
El artículo tiene como objetivo discutir lo maravilloso y lo extraño en el mundo virtual Second Life, así como las
relaciones de compromiso y cuidado que los usuarios (humanos) dedican a sus criaturas, los avatares. Desde 2007,
me he dedicado a observar y seguir el desarrollo de este mundo y sus posibles formas de vida en diferentes aspectos,
así como las premisas lógicas, simbólicas y subjetivas en las cuales se desarrolla y se sostiene toda la existencia, en
especial la economía de este mundo virtual, haciendo de Second Life una de las plataformas digitales más antiguas
y exitosas en funcionamiento.

Palabras clave: Second Life; Mundos virtuales; Avatares.

174 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 174-195, Janeiro-Abril 2020
Avatares: o maravilhoso e o estranho no Second Life

Introdução

O Second Life, ou SL, como será chamado daqui por diante, foi criado em 2003 por Philip
Rosedale, então CEO da empresa Linden Lab, sediada nos Estados Unidos. Com alguns
intervalos de interrupção, desde 2007, tenho me dedicado a observar e a acompanhar o
desenvolvimento desse mundo e de seus modos de vida possíveis sob diferentes ângulos.
Destacarei aqui aquele que considero um dos mais importantes e pouco discutidos nos traba-
lhos já publicados sobre o SL, a saber, o estatuto do maravilhoso e do estranho nesse mundo
virtual, em grande parte propiciado pelos vínculos de amor e afeto (laços fortes) entre os
usuários humanos e seus respectivos avatares, como condição necessária para as formas de
imersividade e as relações de engajamento com esse mundo para que ele exista. Trata-se de
um fato naturalizado, mas que considero relevante, para entendermos as premissas lógicas,
simbólicas e subjetivas sobre as quais se desenvolve e se sustenta toda a existência nesse
mundo, especialmente sua economia, fazendo dele uma das mais bem-sucedidas plataformas
digitais imersivas conhecidas em funcionamento.
De fato, não por acaso, o SL tem um mito de origem que remete sua criação à possibilida-
de de seus usuários defrontarem-se com “monstros” e um ambiente “maravilhoso”. Wagner
James Au, ciberjornalista norte-americano que, desde 2003, dedica-se a escrever crônicas e
reportagens sobre o SL em seu blog New world notes,2 concedeu uma entrevista ao G1, publi-
cada em 19 de março de 2008 por ocasião do lançamento no Brasil de seu livro Os bastidores
do Second Life: notícias de um novo mundo,3 na qual narra como surgiu o SL.
Segundo Au, em 2002, a Linden Lab desenvolveu um projeto chamado Linden World,
embora não soubesse muito bem o que fazer com ele. Uma primeira mudança importante do
projeto em direção a seu produto final foi quando se enfatizou a liberdade de criação de con-
teúdo, deixando-o bem próximo daquilo com que Philip Rosedale sempre sonhara, isto é, criar
um “lego virtual, onde você pode construir coisas — e até mesmo vendê-las”. No entanto,
isso ainda não era suficiente. Era preciso saber para que serviria exatamente esse mundo
virtual. Au relata que um momento marcante foi quando

Eles [Linden Lab] receberam a visita de um grupo de investidores, que ficou assistindo aos
funcionários usarem o programa. Em determinado momento, um deles criou um grande boneco
de neve. De modo espontâneo, os outros usuários criaram versões pequenas do monstro e se
ajoelharam em frente dele, começando a adorá-lo como se fosse um deus. Os investidores viram
aquele esforço colaborativo e disseram: “É isso! É para isso que ele serve!” Foi nesse momento
que o Second Life ganhou sua cara atual…

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 175-195, Janeiro-Abril 2020 175
Laura Graziela Gomes

Como em vários outros ambientes imersivos, para ingressar no SL, além de um equipa-
mento4 potente, é necessário um navegador próprio para acessar o sistema. Ao abrir sua conta
e conectar-se pela primeira vez, o próprio usuário é apresentado a algumas opções de avatares
genéricos para escolher uma delas, poder completar seu login e, finalmente, “nascer” naquele
mundo. Esse “nascimento” implica a aparição do avatar escolhido do outro lado da tela e que,
doravante, ficará vinculado ao perfil do usuário em caráter permanente. Assim, todas as vezes
que se conectar ao SL, o usuário terá diante de si seu avatar, seu “outro”, “do outro lado de
lá” da tela, com o qual terá de estar conectado para poder fazer qualquer coisa “lá dentro”
(do SL). Mas isso não é ainda suficiente, pois, em seguida ao nascimento, será preciso construir
um vínculo forte com sua criatura, que se inicia com o processo de singularização do avatar,
para modificar a aparência genérica dele (Gomes, 2015). Assim, em pouco tempo fica evidente
que a maior parte das interações realizadas, conversas, conflitos e dramas não dizem respeito
diretamente aos usuários humanos que estão do “lado de cá” da tela, mas, como observa Au,
dizem respeito, sobretudo, às criaturas das quais eles dependerão para “estarem lá dentro” e
com as quais esses humanos se ocuparão boa parte do tempo em que estiverem conectados.
Muito embora a conexão e a relação com os próprios avatares tendam a ser tratadas
tecnicamente, com o passar do tempo é possível observar que essas relações entre humanos e
seus próprios avatares apresentam algo “excedente”, “enigmático”, enfim, “prodigioso”, de
tal modo que acaba afetando/contagiando todas as demais interações feitas no SL. Mesmo se
omitindo ou se negando o lado problemático dessa relação, esses “excedentes enigmáticos”
não deixam de ser motivo de inquietação e acabam gerando muitos dramas, até mesmo con-
flitos, para os humanos implicados, muitos deles pela intensidade das emoções e afetos que
passam a manter em relação a seus próprios avatares e aos demais avatares com os quais se
envolvem a partir de seus avatares. Analisando melhor esses “sentimentos” e emoções, fica
patente que eles não se devem somente à proeminência sociotécnica do avatar, mas também
decorrem dos investimentos subjetivos feitos pelos usuários humanos sobre suas criaturas,
o que acaba reafirmando a centralidade do avatar no sistema e na relação com os demais
humanos pelo poder de agência que essas criaturas adquirem. De fato, uma vez lá dentro, o
avatar impõe-se, pois é a partir dele que o usuário vê, escuta, existe e adapta-se àquele mun-
do, enfim, é amado ou rejeitado. Temos, então, uma criatura que não é uma imagem apenas.
Além de ser uma plataforma 3D, o SL tem uma física própria, produzida por um motor de física
chamado havoc, feito para jogos eletrônicos, que faz parte do sistema com o objetivo de simu-
lar a física newtoniana e os movimentos básicos dos objetos.5 Tal fato confere uma qualidade
surreal muito grande, que impõe o caráter maravilhoso e prodigioso desse mundo, que pode
ser também associado à magia toda vez que o usuário humano “se vê transportado” para o

176 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 176-195, Janeiro-Abril 2020
Avatares: o maravilhoso e o estranho no Second Life

outro lado da tela, naquela criatura que se movimenta, anda, corre, pula, voa,6 cai, esbarra em
outros objetos,7 conforme faz os movimentos com seu mouse.
Desse modo, na condição de residentes daquele mundo, nossa percepção é, obrigatoria-
mente, alterada, para que possamos “permanecer lá dentro”, no sentido de podermos criar
e experimentar outra realidade, relacionarmo-nos com nossas criaturas, criarmos conteúdos
e objetos. Nesse caso, uma vez conectado a seu avatar, é fundamental o usuário desenvolver
uma perspectiva êmica, para poder criar sua “outra” vida lá dentro. Esta, aliás, não precisa
ter relação alguma de continuidade com sua vida real (doravante RL). Chegamos, assim, a um
ponto importante: podemos tomar o SL como um ambiente “intradiegético” (Meudal, 2005)
e, ao nos depararmos com aquele ambiente “extraordinário”, “maravilhoso”, “prodigioso” e
até “monstruoso” que se impõe a nós, precisaremos, tal como Alice (Carroll, 2010),8 aprender
a lidar com sua lógica interna própria e assimilarmos e/ou construirmos a perspectiva daquela
criatura estranha e muitas vezes bizarra, abdicando de nosso racionalismo humanista para nos
deixar guiar pela criatura.9 Nesse sentido, todo residente do SL sabe, em alguma medida, que
terá de flertar com o irracional para continuar sua aventura de conquistar, colonizar e habitar
aquele mundo. Segundo Meudal, muitas vezes é preciso abrir mão de explicações e tomar
esse mundo como óbvio. Só assim “uma coerência autêntica se instala entre a personagem e
o novo universo onde essa evoluirá” (Meudal, 2005: 9). É esse acordo tácito que nos jogos,
mas, sobretudo, nos mundos virtuais, estimula e facilita o engajamento entre humanos, ava-
tares e plataformas. Caso esse engajamento não ocorra, nada acontece, e nenhum daqueles
ambientes ou objetos passa a fazer sentido para o humano, que, nesse caso, não desenvolve
interesse pelo ambiente e retira-se. Além disso, é preciso ter em mente que o SL tem uma
economia própria.10 São números bastante significativos, sobretudo se entendermos que esse
dinheiro e tempo gastos estão diretamente envolvidos com a existência dessas criaturas, com
os cuidados a elas dispensados, correspondendo à criação de conteúdos e objetos destinados
à manutenção dos avatares, visando a modificá-los, aperfeiçoá-los, singularizá-los. Gastos e
atividades econômicas estão também diretamente relacionados com as formas de sociabilida-
de praticadas e desenvolvidas por meio e a pretexto dos avatares.
Diante do exposto, meu principal argumento é que a relação entre humanos e avatares
no SL forma seres compósitos, híbridos, mas que não devem ser tratados como meros substitu-
tos do usuário. Esse hibridismo deve-se ao componente sociotécnico, mas que ao mesmo tem-
po propicia uma existência material autônoma e própria, já que não deixa de ser um “outro”,
uma vez que se encontra localizado em um mundo que tem uma física alternativa, diferente
daquela onde vive seu usuário humano. É importante destacar que essa relação híbrida de

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 177-195, Janeiro-Abril 2020 177
Laura Graziela Gomes

ambos não resulta em uma mistura coalescente. Enquanto está conectado ao SL, o humano
encontra-se também conectado a seu avatar, humanizando-o, mas em troca também sofre as
agências deste e daquele ambiente, sendo, portanto, “avatarizado” por sua criatura. Contudo,
ao se desconectarem, ambos se separam, ainda que o humano possa manter-se intensamente
afetado. Esse é um aspecto fundamental e, ao mesmo tempo, “inquietante” desse híbrido,
dessa forma de conexão e relação, que não pode ser naturalizada. Nesse sentido, enquanto
estão conectados, o avatar também não se torna uma simples extensão, ou repetição, do self
de seu humano, da mesma forma que aquilo que o humano vai viver e experimentar junto
com seu avatar não terá continuidade em sua vida real, embora possa afetá-la por sua sub-
jetividade. De todo modo, as relações do usuário consigo mesmo, estando conectado ou não
a seu avatar, não serão as mesmas. São afecções distintas, aquela que se leva para a RL na
forma de memória, qualidade da experiência e aquela outra que faz parte do engajamento
no aqui e agora com o avatar, naquele mundo, durante a imersão. Finalmente, a qualidade
da experiência das imersões não se repete jamais, não é estável ou coerente, muito menos o
humano dominará/controlará totalmente sua criatura e aquele mundo. Como na vida offline,
há situações únicas, inesperadas, mas as imersões não se sucedem na mesma escala e ritmo
da temporalidade da vida offline. De meu ponto de vista e de meus interlocutores com quem
pude conversar ao longo do tempo a respeito das relações com seus avatares, o que se impõe
nessa relação é justamente a “estranheza”, a diferença, uma vez que cada imersão é distinta
das demais, em todos os sentidos. Assim, a questão de “quem controla quem na relação de
engajamento e conexão”, seja entre humanos, a máquina, o sistema e o próprio avatar, é
muito variável. De toda forma, o híbrido formado pelo humano e seu avatar apresenta outra
situação que merece ser destacada e também constitui um dos elementos da estranheza, pelo
fato de o avatar apresentar uma resiliência própria em razão de sua natureza maquínica, mas
que surpreende muitas vezes esse humano por causa dos investimentos afetivos realizados
sobre a criatura. É como se fosse uma traição. Quando se imagina que o avatar está comple-
tamente domesticado, eis que ele surpreende seu humano. Esse lado não previsível para o
usuário humano pode ser pensado como um enigma, e a ele caberá, “do lado de cá” da tela,
o trabalho de decifrar.
Outra questão que se impõe é sobre o próprio desenvolvimento do trabalho de campo
em um ambiente como esse. Enquanto as redes sociais reforçam o que Ramos (2015: 59-75)
identificou como “convergência identitária”, isto é, uma continuidade entre a vida civil offline
e o perfil online dos usuários, tal não ocorre necessariamente em ambientes imersivos. No
caso dos games, é até possível jogadores apresentarem-se em redes sociais e fóruns com seu
apelido de jogador ou de seus “personagens”. Entretanto, no SL a identidade civil, ou RL, é,

178 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 178-195, Janeiro-Abril 2020
Avatares: o maravilhoso e o estranho no Second Life

por princípio, mantida em total anonimato no SL, prevalecendo a “divergência identitária”.


Nada obriga um avatar dar a conhecer em seu perfil a identidade de seu usuário humano,
bem como informações sobre sua vida offline ou RL, mesmo para um pesquisador. Da mes-
ma forma, usuários podem vetar a divulgação para fora do SL de imagens de seus avatares,
ou ainda, tal como ocorre nas pesquisas de campo offline, presenciais, podem exigir que os
nomes de seus avatares não sejam divulgados para fora do SL. O mesmo pode ser dito do
que é conversado em chats privados ou mesmo em chats públicos do SL, que não devem ser
reproduzidos para fora do SL sem autorização dos residentes. A Linden Lab tem como política
proteger completamente o direito ao anonimato de seus usuários, e somente ela tem acesso
às informações e às suas identidades civis. Nesses termos, toda a minha pesquisa de campo
vem sendo realizada respeitando essas regras. Em todo esse tempo, mantive contatos fora do
SL apenas com interlocutores que se dispuseram a isso, por livre e espontânea vontade. Nesse
caso, meu trabalho de campo tem a peculiaridade ou a estranheza de ter sido feito somente
com e entre avatares no SL, sem conhecer as identidades das pessoas dos usuários, o que
implicou observação participante, já que, para “entrar lá”, precisei permanecer conectada a
um avatar que também desenvolveu uma reputação social dentro do mundo, teve uma vida
social e foi identificado como residente daquele mundo. Só assim, interagindo no mundo como
“nativa” (residente), pude realizar minhas observações, manter conversações no chat, fazer
registros fotográficos e audiovisuais de situações que considerei relevantes para poder explo-
rar futuramente em artigos. Isso significa dizer que todas as situações registradas e descritas
por mim foram observadas e testemunhadas durante minhas imersões com meu próprio ava-
tar. Disso resulta que nunca foi meu objetivo conversar sobre suas vidas offline para compa-
rá-las com suas vidas no SL, porque uma de minhas premissas metodológicas, desde o início,
foi entender o SL a partir de seus próprios termos, enfatizar esse investimento subjetivo na
“divergência identitária” daqueles que lá vivem com suas criaturas e seus modos de habitar
aquele mundo, salvo quando eles tomavam a iniciativa de fazê-lo, Quando alguns quiseram
falar comigo sobre suas vidas e identidades RL, não me recusei, mas tal fato não constituiu o
foco de minha atenção. Finalmente, todos os interlocutores e residentes com os quais interagi
sabem que sou antropóloga e pesquiso aquele ambiente.
Como afirmei antes, o avatar — e não o usuário — é que tem proeminência no SL, e,
para tanto, ele precisa despertar o interesse dos demais, o que inclui uma relação de muitos
cuidados, afeto e amor. Como observou Au (2008), trata-se de um vínculo que depende de
“dedicação e devoção” dos humanos em relação a seus avatares. Os atributos necessários
para ser famoso, além de atraente, ter carisma e causar forte impressão nos demais. É esse

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 179-195, Janeiro-Abril 2020 179
Laura Graziela Gomes

detalhe que confere toda singularidade à “segunda vida”, tornando-a complexa e com muitos
incidentes de percurso. Portanto, a “estranheza” da situação não está apenas na criatura em
si, mas no fato de que, embora inicialmente ela não faça parte de nós e seja exterior a nós,
acaba por tornar-se um duplo, sem se confundir ou se misturar totalmente conosco, mas nos
“encantando” e nos “enfeitiçando”, conforme argumenta Alfred Gell (2005)11 em seu ensaio
“A tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia” quando “propõe que a antropologia da
arte considere a arte um componente da tecnologia, e seu produto, resultado de um arranjo
de técnicas – o conjunto de todas as artes formando a tecnologia do encanto”.

O retorno do “maravilhoso” e sua eficácia simbólica

A utores que discutiram a questão do “maravilhoso”, “estranho”, “inquietante”, “prodi-


gioso”, “monstruoso” sempre o fizeram em relação às narrativas míticas e à literatura.
Nada existe nesse sentido sobre o caráter ambíguo dos “avatares” no SL, ou dirigido ao
contexto contemporâneo das plataformas digitais, especialmente as imersivas, como parte de
sua lógica e eficácia simbólica. Em meu caso, tal aproximação partiu da compreensão de que,
afinal, “estranho” e “familiar”, dois termos aparentemente opostos, estão, na verdade, inter-
ligados (Freud, 2010), o que, para mim, é importante, tendo em vista alguns desdobramentos
testemunhados por mim no SL. Não entrarei nessa discussão neste artigo, mas plataformas
imersivas e interativas são diferentes e têm objetivos também diferentes no que se refere às
influências que exercem sobre a modelagem da realidade social. Assim, enquanto plataformas
digitais interativas tendem a ser desenvolvidas para uso massivo, as imersivas são desen-
volvidas para nichos de usuários específicos, voltadas para propiciar e estimular habilidades
diferentes em seus usuários. Isso explica meu objetivo de investigar as plataformas imersivas e
sustentar que a divergência identitária, ou o processo de dividuação (Gomes & Leitão, 2011)12
é um investimento feito também pelos desenvolvedores de games e mundos virtuais, e não
um acontecimento casual ou investimento e interesse somente do usuário, apesar de que este
tem papel fundamental, como explicarei mais adiante.
Em um artigo, Nodari (2015) destacou a presença da obliquação na escrita de Clarice
Lispector. Em meu caso, argumento que a tecnologia digital vem cada vez mais proporcionan-
do essas experimentações de si, ou formas de tergiversações de si em um caminho traçado,
que se imagina controlado, mas que, de acordo com Rose (2011), vai formando “dobras” ou
“pregas” nas subjetividades. Tal fato pode parecer contraditório, caso apliquemos a noção de
“estranho” exclusivamente ao campo dos eventos extraordinários apenas. Na maior parte das
vezes, é somente quando classificamos o estranho como alteridade radical que conseguimos

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Avatares: o maravilhoso e o estranho no Second Life

aceitar a estranheza. Contudo, tanto na tradição ocidental quanto em muitas outras, não é
incomum as narrativas míticas e literárias recorrerem ao insólito e apresentarem-no junto com
o familiar, dois termos aparentemente contraditórios, mas interligados, ao mesmo tempo que
tratam do tema da metamorfose. Na literatura ocidental, tanto a mitologia/literatura clássica
quanto as narrativas medievais, a literatura romântica (gótica) e a cultura de massas mos-
tram-nos seres e criaturas “maravilhosas” e “monstruosas”, ao mesmo tempo que narram as
relações de proximidade estabelecidas por elas com indivíduos humanos ou grupos humanos
inteiros. Mais ainda, conhecemos muitas narrativas que dão ênfase às relações de afinidade e/
ou de parentesco, ou mesmo de extrema familiaridade (muitas vezes de intimidade), estabele-
cidas entre esses “seres maravilhosos” e os humanos.
Entretanto, essas estranhezas podem ocorrer sem grandes alardes, mas de forma insidio-
sa, porém não menos contundente, como afirma Nodari em relação à escrita de Clarice Lispec-
tor. Como afirmei anteriormente, o SL, para existir, depende do engajamento de seus usuários
com os avatares para que a plataforma exista. Disse também que, no caso do SL, o acesso a
essa plataforma é assimilada a um deslocamento, muitas vezes percebido pelos usuários como
uma viagem e até mesmo uma forma de migração, próximo ao que Ghassan Hage (2005: 470)
chama de “mobilidade existencial”: “We do not engage in existential mobility in order to ex-
perience physical mobility. The contrary is true: we engage in the kind of physical mobility that
defines us as migrants because we feel another geographical space is a better launching pad
for our existential selves.”13 Nesse caso, é possível dizer que o “deslocamento” não é neces-
sariamente físico, mas se apresenta na forma de um deslizamento subjetivo, que é percebido
por todos os usuários. Foucault (1984) escreveu sobre esse outro sentido dos deslocamentos
quando falou das heterotopias. Para ele, a noção de “lugar” recobre também os espaços e am-
bientes com outros sentidos, sentimentos e experiências, como refúgio, conforto, acolhimento,
segurança e liberdade. Para o SL, tornar-se um lugar para onde se deseja ir continuamente,
o engajamento e os vínculos formados pelas relações de devoção e amor do usuário por seu
avatar é a condição necessária; quanto mais esse amor realiza-se, mais aumenta o interesse
pelo ambiente, fazendo com que a relação com suas criaturas aumente igualmente o dese-
jo de nele permanecer e dedicar grande parte de seu tempo criando e construindo objetos
dentro desse mundo, povoando-o de coisas igualmente maravilhosas, que estão igualmente
impregnadas de subjetividade, memórias, já que todos os objetos trazem consigo a marca
de seus criadores (Gomes, 2015). Portanto, quanto mais cuidada, maiores são o apego e o
interesse pela criatura, da mesma forma que mais possibilidade de ela criatura poder afetar
bastante seu dono e por meio deste criar coisas que, de muitos modos, afeta e, assim, faz
com que outros se afetem, constituindo uma communitas imaginária baseada na divergência

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Laura Graziela Gomes

identitária, ambiguidade e liminaridade subjetivas, isto é, nas formas de obliquação que levam
e estimulam novas percepções de si naquele ambiente.
Diante do exposto, creio que torna mais fácil entender a razão pela qual a Linden Lab
aposta nessa divergência: ela é a razão de toda a economia do SL. Ao contrário dos games, o
SL não tem missões ou objetivos a serem cumpridos e não tem mapas e gráficos criados pela
empresa desenvolvedora. Todos os ambientes por onde se circula nesse mundo são resultado
do trabalho criativo de seus residentes (acessar link para o vídeo na nota 1). Além disso, as
condições para que eles sejam criados e produzidos exigem muita dedicação e tempo de
imersão, além de muitas competências em diferentes domínios do design gráfico, o que supõe
saber usar softwares de edição de imagens (Photoshop e similares), softwares de modelagem
de objetos em 3D, conhecimentos específicos de programação para fazer scripts, além de
saber lidar com as próprias ferramentas do sistema para fabricação de determinados objetos e
materiais, como a terraplanagem de um terreno, por exemplo. Trabalha-se muito para que esse
mundo virtual tenha tudo o que nele existe. A expansão do SL nesses 16 anos de existência é
prova disso. De algumas poucas ilhas, em 2003, hoje o SL é equivalente, em pixels e prims, ao
tamanho de Manhattan, apresentando uma concentração equivalente de avatares e os mais
variados objetos de diferentes procedências, como a grande metrópole. Não é pouca coisa
para apenas 16 anos de existência, se imaginarmos que, em 2003, não existia quase nada,
como destacou Au. São milhares e milhares de “ilhas”,14 onde o residente encontrará tudo
de que precisa para viver junto à sua criatura, da maneira como quiser, e ainda podendo criar
cada vez mais conteúdos para si, para vender e/ou doar.
Assim, criação e construção de objetos constituem-se na atividade principal dos resi-
dentes, começando pela singularização do avatar. Em muitos momentos de meu trabalho de
campo, pude acompanhar diferentes processos criativos naquele mundo, desde a criação de
criaturas específicas e um modo de vida para elas, mas também a criação de uma variedade
enorme de objetos. Certa vez, morei próximo a uma ilha habitada por sereias. Grande parte da
ilha era submersa, para formar o ambiente propriamente marinho onde elas habitavam. Tudo
foi construído pelos próprios residentes sereístas. Avatares que não fossem sereias podiam vi-
sitar a ilha, mas precisavam anexar caudas fornecidas pelos nativos para circular no ambiente.
Não havia chances de andar nele com pernas. Em meu caso, classifiquei o ambiente com uma
“instalação”, porém essa não era a percepção daqueles que ali viviam. Perguntei a um avatar
sereia como ele se sentia performando uma sereia, e a resposta foi imediata: “Mas eu sou
uma sereia.” Olhei para ela e tive de concordar: “Sim, você é uma sereia.”

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Avatares: o maravilhoso e o estranho no Second Life

Como observa Au, boa parte do tempo em que se está imerso é dedicado aos vários
rituais de cuidados, que envolvem muitas manipulações, sendo o objetivo as modificações da
aparência do avatar, ao mesmo tempo que se fica junto e conectado a ele, “interagindo”15
com ele no ambiente e junto aos demais avatares, e isso inclui explorar o mundo com ele,
fazer coisas com ele, para ele e os demais. Nesse sentido, a exibição e a interação do avatar
em “lugares públicos” dentro do SL, frequentados por outros avatares, são de suma impor-
tância para que ele seja visto pelos demais (já que é necessário ver e ser visto), mas também
para poder exibir suas habilidades, como foi o caso da ilha das sereias. Além de o ambiente
marinho ter sido criado pelo grupo, cada uma das sereias era totalmente singularizada. Essa
sucessão de cuidados, criações, exibições, performances e interações é o que chamo processo
de enraizamento na plataforma, mas que só é possível a partir do engajamento do humano
com seu avatar, de forma que este possa desenvolver uma biografia social (Appadurai, 2008).
Quanto mais o avatar circula, quanto mais se torna visível no mundo, quanto mais cria con-
teúdos e interage, maior será sua reputação social e, portanto, maior será sua popularidade
e seu mana (Mauss, 1974). Ora, não é possível tratar essa experiência como algo puramente
utilitário, técnico, ou mesmo uma forma menor de entretenimento. Ao contrário, para que tudo
ocorra de acordo com as expectativas desejadas, e as recompensas imaginárias e simbólicas
ocorram, a socialização na lógica desse mundo, bem como com as ferramentas do sistema,
torna-se fundamental. Nada disso ocorre sem essa singularização, e o avatar será identificado
apenas como um noob (novato), podendo ser evitado pelos demais. Como no caso das se-
reias, os cuidados implicam modificações corporais que exigem um sentido e projeto estético
combinados à habilidade técnica, para fazer o que se deseja, na busca de um resultado satis-
fatório e gratificante. Para tanto, além das manipulações corporais no avatar, existem vários
acessórios fundamentais, capazes de tornar essa criatura compósita “maravilhosa” (mirabilia),
que vão desde as formas corporais, como shapes, skins, cabelos, olhos, roupas, movimentos e
gestos, que serão conectados ao avatar, até o próprio ambiente onde ele vai viver no SL, como
acidentes geográficos, praias, rochas, montanhas, pedras, terra, flora e fauna, casas e prédios
os mais diversos.16 Como é possível perceber, todo esse processo de singularização implica
investimentos na ordem da produção de bens e serviços, levando a uma relação de devoção,
sem a qual a eficácia simbólica da relação entre humanos e avatares inexiste, tampouco o
próprio mundo. Nesse sentido, o avatar é um fetiche e um ídolo, e não exatamente um ícone
do usuário. Portanto, trata-se de uma criatura excessiva, que ostenta algo para além de ser a
metáfora de seu dono, algo que pode produzir estranheza.
Dito isso, todo residente do SL é profundamente afetado pelas relações que mantém com
seus avatares, com os quais experimenta múltiplas experiências de si, possibilidades de obli-

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Laura Graziela Gomes

quação, metamorfoses e dividuações.17 É o “estar afetado” que se torna a condição necessária


para o humano adquirir a perspectiva êmica da plataforma, de forma a sentir-se nativo e ter seu
pertencimento reconhecido pelos demais em termos intradiegéticos, como coautor da trajetória
de seu avatar, narrador e coadjuvante da própria personagem naquele mundo. Disso dependem
a expansão desse ambiente digital e a própria experiência de imersividade de seus habitantes.
É importante destacar ainda que a aquisição dessa perspectiva êmica só é possível se
vier acompanhada da continuidade dessa experiência imersiva, isto é, não apenas o tempo
investido, mas a qualidade da experiência dessas imersões para que deixe de ser meramente
um espectador (visitante) e torne-se verdadeiramente um residente. Ser residente é, assim,
permitir deixar-se “ficar e permanecer afetado” pelo avatar e converter-se, subjetivamente,
a essa condição de “metamorfose ambulante” por meio dele e naquele mundo, de tal forma
que a estranheza de toda a situação transforme-se em algo familiar — não necessariamente
naturalizado, mas conscientemente assumido como tal. Essa afirmação é fundamental, por-
que, quando me refiro aos aspectos “monstruosos”, “maravilhosos”, “prodigiosos” e “estra-
nhos” que essas criaturas e relações de engajamento com elas apresentam e propiciam, não
estou me atendo somente às formas dos avatares, por mais bizarras que sejam e por mais
que reconheça a agência delas nessa relação, mas, sim, que esse processo de dividuação pode
ser bastante ampliado, quanto mais o usuário dedicar seu tempo àquele mundo. É nesse mo-
mento que retomo a narrativa apresentada por Wagner James Au a propósito dos investidores
observando os Lindens fazerem seus pequenos bonecos de neve ajoelharem-se e “adorarem”
o boneco de neve maior, um “monstro”, segundo suas próprias palavras, para rememorar um
pouco a história da antropologia, da literatura ocidental e da psicanálise.
Em “Esboço de uma teoria geral da magia”, Marcel Mauss (1974) buscou distinguir os fatos
mágicos de outros fatos sociais com os quais costumam ser confundidos — os atos jurídicos, as
técnicas e os ritos religiosos. Para o autor, fatos mágicos seriam fatos da tradição, portanto atos
que se repetem, que são transmissíveis, sendo as práticas mágicas “sancionadas pela opinião” e
de forma alguma “atos estritamente individuais, como as práticas supersticiosas dos jogadores”
(Mauss, 1974: 48). Ao destacar as relações entre magia e técnica, Mauss chamou a atenção
também para o fato de que ambas são “criativas”, por envolverem gestos, procedimentos que
precisam ser corretamente desempenhados, a fim de obterem a eficácia desejada, não apenas
simbólica, mas também prática e material. Elas tomam, muitas vezes, a forma de um artefato
ou de procedimentos físicos que têm como objetivo intervir na natureza para lhe produzir uma
mudança de estado, como ocorre, por exemplo, com as técnicas agrícolas. Para Mauss (1974:
49), “a série de gestos do artesão é tão uniformemente regulada quanto a série de gestos do
mágico”, e é nesse sentido que técnica e magia muitas vezes são confundidas.

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Avatares: o maravilhoso e o estranho no Second Life

Segundo Kappler (1994), a Idade Média forneceu-nos um exemplo no âmbito da própria


cultura europeia a respeito de como o cristianismo, ao desenvolver uma desconfiança em
relação às técnicas e aos conhecimentos antigos (pré-cristãos), confundiu a magia com a he-
resia. O fato de a repetição de certos gestos ou procedimentos ser eficaz em certos domínios,
isto é, ter uma relação de causalidade previsível e bem-sucedida, passou a ser suspeito de
ser feitiçaria, portanto heresia, apostasia, tanto no âmbito da produção artesanal quanto no
das práticas de cura. Um exemplo disso foi a relação direta estabelecida pela Igreja entre o
uso terapêutico de infusões preparadas à base de plantas e ervas e a cura de certas doenças
com a magia. Até então, tratava-se de um saber tradicional, sancionado coletivamente pelas
sociedades pré-cristãs da Europa. O fato de tais saberes serem profundamente enraizados e
transmissíveis constituía a base de sua própria autoridade. Nesse sentido, a Inquisição não foi
apenas o combate aos infiéis, mas, sobretudo, um dispositivo jurídico e político criado para
desautorizar e destruir todo esse patrimônio cultural, em grande medida preservado pela po-
pulação não letrada, por meio da repetição ritualizada de saberes técnicos e práticos.
Do ponto de vista deste artigo, o “Esboço de uma teoria geral da magia” (Mauss, 1974)
mostra como no SL existe um conjunto de saberes sancionados coletivamente a respeito de
certas técnicas que o usuário deve aprender antes de pretender tornar-se um desenvolvedor
de conteúdo, dar sua contribuição a partir de suas habilidades próprias. Um exemplo é o co-
nhecimento básico de editar o shape do próprio avatar para que sua aparência fique melhor,
dependendo da skin ou da roupa. É uma técnica que se aprende desde que se entra no SL, e,
apesar de básica, pode surpreender com os efeitos que proporciona. A aquisição e a transmis-
são desse saber ou expertise (técnica) mesmo de ordem prática têm sido fundamentais para
a construção daquele mundo, algo que não se confunde com um saber formal, mas que se
refere a um saber prático, que todos os usuários da plataforma precisam saber e compartilhar
para poderem acessar o SL, conectarem-se às suas criaturas e manipularem os objetos. O fato
mesmo de não considerarmos nossos avatares um bem ou um serviço é um pressuposto do
engajamento afetivo com a máquina e com a própria rede, fator primordial para termos acesso
às experiências naquele mundo e entrarmos em sintonia com eles. Se é assim, o deslocamento
supõe a desistência e a renúncia aos pressupostos lógicos que estão na base da ciência da
computação, para deixar prevalecer o pensamento mágico e tudo o que é característico dele,
como a bricolagem, formas de associação e participação — além daquele sentimento de
sintonia profunda — com os fenômenos maquínicos, como sendo parte deles. De fato, é inte-
ressante observar que o engajamento com a tecnologia digital, para além do uso tecnológico
e formal, é responsável por uma subcultura cujo imaginário está estreitamente vinculado ao
pensamento mágico. Tal imaginário é bastante visível nos ambientes imersivos, nos games e

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nos mundos virtuais, nos quais, sobretudo, retoma-se o maravilhoso, não apenas como parte
de uma aparência visual, ou paisagem, mas como parte da experiência de “estar lá”, isto é, de
“ser” e de se fazer as coisas “ali dentro”, de se tomar a técnica em outros termos. Como já ob-
servado no caso do SL, embora o avatar seja um objeto técnico produzido pelo próprio sistema
da plataforma, ao ser manipulado de muitas maneiras, as combinações podem ser infinitas,
podendo produzir efeitos os mais diversos, do ponto de vista seja negativo — inquietação, es-
tranheza, alteridade —, seja positivo — maravilhamento, encantamento, paixão, amor etc. A
arte de fazer um avatar e de torná-lo interessante, belo, original, bizarro ou horripilante exige
manipulações técnicas que, no entanto, não são percebidas sempre como tais, mas como atos
mágicos, que podem ser repetíveis e transmissíveis.
Nesse sentido, importa dizer que a monstruosidade não incide apenas sobre as apa-
rências e formas naquele mundo. Para Corrado Bologna (1997), no mundo greco-romano, o
“monstro” foi, sobretudo, relacionado com o enigma (ainigma), isto é, a uma forma de saber
considerada prodigiosa, diretamente proveniente da origem dos tempos, mas também relacio-
nada com o devir, os novos tempos que virão. Nesse sentido, o “monstro” é aquela criatura
que “mostra”, “apresenta” uma verdade, faz uma revelação ou aponta um “problema”, dá
a conhecer algo importante por meio de um enigma que deverá ser resolvido (interpretado),
para se chegar ao conhecimento desejado.
Ainda em relação ao “monstro”, cabe considerar que, do ponto de vista da aparência,
ele nem sempre esteve associado à feiura, ao medonho (àquilo que inspira medo e terror). Ao
contrário, na Odisseia, Ulisses precisa tapar seus ouvidos para não se deixar seduzir pelo canto
suave das sereias, elas próprias percebidas como “seres maravilhosos”, belas, sedutoras, parte
mulheres, parte peixes ou pássaros. No pensamento grego antigo, a Esfinge é um monstro que
representa de forma emblemática o teras — a maravilha e o monstro em termos de criatura
compósita, em uma escala de grandeza muito elevada — em sua relação com o enigma, a
verdade e o conhecimento (profético), especialmente no que se refere à condição humana. No
entanto, como se verá no mito de Édipo, trata-se de uma verdade que não é transparente ou
não se dá a revelar imediatamente, mas que necessita de um intermediário, representado pela
atitude hermenêutica de Tirésias, o velho sábio.
Apoiando-se nos ensaios de Emile Benveniste, Bologna argumenta ainda que, de to-
dos os termos teratológicos latinos, como miraculum, omen, monstrum, ostentum, portentum,
prodigium, somente a palavra monstrum adquiriu uma especialização, perdendo a conotação
originária de mostrare algo ou fenômeno que pretende “ensinar uma conduta, prescrever
a via a seguir” (Bologna, 1997: 321). Contudo, embora tenha decaído, tenha sido jogado

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Avatares: o maravilhoso e o estranho no Second Life

aos infernos ou reduzido a um fóssil do pensamento, o monstrum não foi extinto. Como
personagem literária e figura de retórica, ele permaneceu, continuando a jogar luzes em di-
reção aos recônditos da imaginação. O advento de uma cultura audiovisual de massas, bem
como da literatura também de massas, na esteira de um processo de mudanças sociotécnicas,
trouxe-o de volta à vida como alegoria e mesmo como fato social onipresente, parte da pró-
pria realidade, conforme escreveu Donna Haraway (2000) a respeito dos ciborgues e (Latour,
2012) a respeito dos híbridos, agentes e agenciamentos em sua teoria TAR. Nesse sentido,
falar do avatar como monstrum não é, de forma alguma, pretender reduzi-lo à sua aparência
ou mesmo à negatividade, mas, sim, por meio de uma pesquisa atenta acerca de seu campo
semântico, retomar seu sentido original de “mostrar algo”, “apresentar algo” que até então
não estava devidamente revelado ou explicitado, por exemplo, a própria condição híbrida do
sujeito contemporâneo. De acordo com Haraway (2000: 36), “o ciborgue é um organismo
cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também
uma criatura de ficção”.
Paralelamente à percepção do avatar como monstrum e ciborgue, torna-se necessário
dar conta do próprio significado do termo avatar e de seu uso corrente na cultura digital,
especialmente em ambientes imersivos. Esse uso não elimina a ideia do “maravilhoso”, do
“prodígio”, tampouco a noção original do termo: uma forma encarnada, uma manifestação
corporal de um deus. Entretanto, há de se considerar a hipótese de que exista uma diferença
de significado entre monstrum e avatar, conforme o híbrido formado. Assim, enquanto no
avatar prevaleceria a noção de uma representação icônica, uma “encarnação ou substituto do
usuário” naquele mundo, entendida de forma totalizada, o monstrum diz respeito a uma rela-
ção mais complexa, na medida em que já implica a desconstrução dessa representação icôni-
ca, não fraturada. Insisto em afirmar que, quanto mais o usuário singulariza seu avatar, ele se
torna um residente mais experiente e, como consequência, passa a ter mais de um avatar, com
os quais mantém relações diferentes, em que cada avatar “encarnaria” ou se “especializaria”
em uma das muitas dobras subjetivas do usuário humano, algo que nos remete à noção de
heterônimos. É nesse contexto que as experiências nesses mundos tendem a ser percebidas
como “maravilhosas”, “prodigiosas”, imaginativamente mais densas.
Dito isso, meu argumento é que, por causa dessas transformações e surpresas, o avatar
nunca é uma mimese estável e segura do usuário humano real, mas uma mimese precária e
provisória de nossas idealizações, demonstrando o quanto nossa subjetividade é um devir
constante que colapsa a própria ideia de uma identidade igualmente estável e coerente. As-
sim, o caráter mimético reside justamente naquilo que pode parecer ao usuário como sendo

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Laura Graziela Gomes

seu lado mais estranho e surpreendente, a ponto de desestabilizá-lo, não porque ele vê diante
de si uma criatura compatível com as aspirações e representações que faz de si próprio na
RL, mas como uma transposição de seus desejos, fantasias e até mesmo seus fantasmas
mais angustiantes. Nesses casos, o “amor” e os vínculos estabelecidos entre o usuário e seus
avatares não são produzidos exclusivamente pela semelhança, pelo que já é conhecido por
ele a respeito de si, mas pelo fato de ser surpreendido pela constatação da diferença que
emerge a partir de imagens ou percepções dissidentes de si. A surpresa reside, então, no fato
de o usuário deparar-se com uma versão digital de si ou de outra criatura avatar que pode
encarnar ou deixar evidente algo que habita seus sonhos, suas fantasias, seus medos e pe-
sadelos. Esses eventos recorrentes são responsáveis não apenas por várias “baixas” (saídas
do SL), mas afetam profundamente e de muitas formas os usuários que ali permanecem. Em
geral, eles não são inicialmente percebidos como normais, mas, sim, como eventos “estra-
nhos” e “singulares”, “mágicos”, “extraordinários”. Dependendo dos usuários envolvidos,
podem produzir tanto um sentimento de inquietação, angústia quanto de prazer e realização.
No primeiro caso, como já assinalado, muitas pessoas desistem do ambiente, e seu discurso
invariavelmente deixa transparecer o mal-estar por não terem conseguido entender-se com a
“estranheza” daquele mundo e do avatar, muitas vezes culminando em uma série de acusa-
ções ao ambiente virtual. Segundo Anne-Marie Meudal (2005), não por acaso a “maravilha” e
o ato de “maravilhar-se” remetem ao vocábulo latino mirabilia (do verbo mirari, que significa
“ver”), da mesma forma que o termo remete a algum tipo de

[…] conflito entre a percepção das coisas e sua compreensão, mas são além disso frequente-
mente marcadas por uma ambiguidade inquietante: como saber se trata-se de uma manifes-
tação do bem ou do mal? Para compreendermos, é necessário recordar que o imaginário com
frequência recorreu ao corpo.

Essa citação faz lembrar alguns exemplos literários de metamorfoses em que o corpo
assume um lugar central na produção da ambiguidade e da inquietação. Temos o exemplo da
novela escrita por Robert Louis Stevenson, em 1876, intitulada The strange case of Dr. Jekyll
and Mr. Hyde, conhecida em português como O médico e o monstro (Stevenson, 2012). Na
história, a personagem Richard Enfield narra a um amigo, o advogado Utterson, as desventu-
ras do dr. Jekyll, um médico londrino que, após inventar uma fórmula em seu laboratório par-
ticular e experimentá-la em si mesmo, passa a ter um “segundo eu” e uma “segunda vida”,
ambos secretos, por meio de uma criatura medonha que irrompe de suas entranhas. Outro
caso igualmente conhecido é a novela de Franz Kafka (1998) A metamorfose, cuja introdução
produz uma profunda inquietação no leitor por conta da forma como o autor introduz o tema

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Avatares: o maravilhoso e o estranho no Second Life

da metamorfose ou da repetição e da diferença, para usar uma referência a Deleuze (1988),


ao afirmar que a diferença sobrepõe-se à mesmidade/identidade, embora ambas andem de
mãos dadas. Assim, Gregor Sansa, em “uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes,
[…] deu por si na cama transformado num gigantesco inseto” (Kafka, 1998). Estranhamente,
Gregor, em vez de ficar apavorado, passa a tecer considerações prosaicas sobre sua condi-
ção. A cultura de massas contemporânea também utiliza à exaustão esse jogo de repetição/
diferença com os “super-heróis” que habitam o interior dos mesmos personagens aparente-
mente comuns, ordinary people (identidade, mesmice). Essa criatura extraordinária, dotada de
superpoderes, não raro surge mediante algum incidente. É recorrente o tema do laboratório,
das experiências técnico-científicas “malsucedidas” que produzem efeitos de mutação e me-
tamorfose. Uma versão relativamente recente, inspirada na novela de Stevenson, é a persona-
gem dos quadrinhos O incrível Hulk, uma gigantesca criatura verde (Gigante Esmeralda) que
jaz escondida nas células atingidas pelos raios gama do corpo do cientista dr. Robert Bruce
Banner. Diferentemente de seu sucedâneo vitoriano, Hulk é um pouco menos maniqueísta,
mais contraditório e fraturado. Toda vez que Banner fica colérico, o que é bastante comum, a
criatura reorganiza-se no interior de seu corpo e irrompe para o mundo. Quanto mais cólera
sente, mais poderoso Hulk torna-se. Eis o enigma de Banner. Em todos os casos ilustrados, o
“estranho” apresenta-se realmente como “aquilo que se afasta do curso ordinário das coisas”
(Meudal, 2005), embora, como afirma Deleuze, ande lado a lado com a mesmice e, finalmente,
de acordo com Freud, faça parte da própria noção de familiar (unheimlich e heimlich).
Em seu artigo intitulado “O inquietante”, Freud (2010) apresenta subsídios para seguir
adiante na compreensão das experiências que procuro narrar e discutir neste trabalho, per-
mitindo-me fazer ainda uma conexão com a psicanálise e com a filosofia (Deleuze). Segundo
Freud, a palavra “estranho”, em alemão, é “unheimlich”, e seu oposto é “heimlich” (“do-
méstico”). Citando Jentsch, Freud observa que este atribuiu à incerteza intelectual o fator
essencial para a origem do sentimento de estranheza: “Quanto melhor a pessoa se orientar
em seu ambiente, mais dificilmente terá a impressão de algo inquietante nas coisas e eventos
dele” (Freud, 2010: 200). Essa citação adquire especial importância quando pensamos nas
experiências imersivas em mundos virtuais, ou mesmo nos games. De modo geral, quando
ingressamos pela primeira vez nesses ambientes — pelo menos aqueles que o fizeram em
uma idade mais adulta —, ainda não estamos suficientemente orientados. Não por acaso,
utiliza-se a expressão “nascer”, da mesma forma que a categoria noob, para designar todos
aqueles que são recém-chegados. Em uma primeira aproximação, os mundos virtuais apre-
sentam-se povoados por situações inquietantes e, como destaca Freud, seres ambíguos, que
nos fazem experimentar ideias e sentimentos contraditórios, pois, ao mesmo tempo que nos

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Laura Graziela Gomes

causam estranheza, tornam-se, por questões sociotécnicas, nossos “companheiros” e afins


mais próximos, com os quais teremos de nos conectar, interagir e desenvolver relações de
familiaridade, de afinidade, de colaboração e de intimidade. Portanto, trata-se de criaturas e
objetos inquietantes e estranhos — em todos os sentidos — que terão de tornar-se próximos,
familiares, íntimos, para que possamos frequentar, colonizar e habitar aquele ambiente.
Prosseguindo em sua análise, Freud chega ao ponto que nos interessa para este trabalho.
Novamente citando Jentsch, faz referência às situações mencionadas pelo autor, capazes de
“despertar em nós um sentimento de estranheza”. Jentsch aborda os contos de Hoffmann e
os artifícios por ele utilizados, capazes de deixar seu leitor na incerteza “de que determinada
figura seja uma pessoa ou um autômato, e isso de modo que tal incerteza não ocupe o centro
da sua atenção, para que ele não seja induzido a investigar a questão e esclarecê-la, pois assim
desapareceria o peculiar efeito emocional”, como foi dito. Em um desses contos de Hoffmann,
“The Sand Man” (O homem da areia) conta a história de um homem que roubava os olhos das
pessoas. Ao destacar os pontos altos dessa narrativa, Freud descreve o amor que Nathaniel,
protagonista do conto, desenvolve, em dado momento, por uma boneca chamada Olímpia18,
que parece ter vida. Segundo Freud, Jentsch acreditava que sentimentos de estranheza existem

[…] quando há uma incerteza intelectual quanto a um objeto ter ou não vida […] bonecas são
intimamente ligadas com a vida infantil. […] de modo algum as crianças distinguem nitida-
mente objetos vivos de objetos inanimados, e gostam particularmente de tratar as suas bonecas
como pessoas vivas. (Freud, 2010: 2006)

Não é preciso dizer que avatares podem ser incluídos na categoria dos objetos e das
criaturas citadas. Não deixam de ser autômatos digitais, mas, dada a tecnologia, a qualidade
gráfica de muitos, eles podem confundir outras pessoas, produzir uma incerteza intelectual
quanto à sua condição de criaturas de ficção. Segundo Freud, todos esses temas dizem res-
peito ao fenômeno do “duplo”, que aparece em praticamente todas as narrativas, desde os
mitos aos contos populares, na literatura, no cinema etc. Assim, nas narrativas, temos de con-
siderar alguns personagens conjuntamente, porque são semelhantes e/ou porque apresentam
funções complementares. Não restam dúvidas de que o avatar é um “duplo técnico”, mas
também um “estranho” do usuário humano, e, como procurei salientar, a condição de “duplo”
não se confunde, de forma alguma, com uma réplica digital de uma representação de si previ-
sível, estável, como se fosse uma totalidade. Além disso, como desenvolvi anteriormente, essa
criatura “estranha” pode converter-se em uma figura familiar, até mesmo em função de suas
possíveis conexões com lembranças e reminiscências do próprio usuário, que, surpreso, pode
um dia constatar ou dar-se conta de que seu próprio avatar pode lembrar-lhe uma pessoa com

190 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 190-195, Janeiro-Abril 2020
Avatares: o maravilhoso e o estranho no Second Life

a qual tenha convivido na infância, alguém por quem nutriu algum tipo de sentimento especial
ou mesmo teve algum tipo de envolvimento forte. São muitas as situações e razões pelas quais
os usuários podem encantar-se com ou mesmo sentir medo e terror de suas criaturas.

Considerações finais

A o pretender fazer uma discussão sobre as relações entre usuários e seus avatares no
mundo virtual Second Life, tive como objetivo refletir sobre a existência da possibilidade
cada vez mais presente de podermos habitar e viver vidas alternativas, específicas, a partir da
tecnologia digital, por meio de avatares em um ambiente imersivo. Não é a mesma experiência
de um robô ou de um ciborgue, mas guarda com eles o fato de escaparmos de nossa condição
exclusivamente biológica e orgânica. No entanto, ao realizar essa investigação e deparar-me
com essas criaturas chamadas avatares, percebi que não podem ser consideradas uma exten-
são, uma continuidade e muito menos uma metáfora icônica desses humanos, mas alguma
coisa que excede essa condição. Nesse sentido, a criatura não pode ser pensada como uma
representação estável, unívoca da “pessoa” que se conecta a ela, pois tem uma resiliência
em razão de sua condição e seu modo próprio de existência como um objeto técnico gerado
nas entranhas de um sistema. Embora seja objeto de um processo de singularização contínua,
em função dos diferentes projetos, desejos e fantasias de seu usuário humano, nem sempre
essa domesticação ou humanização do avatar acontece, mas ocorre exatamente o contrário.
Dessa forma, mesmo que existam continuidades e convergências, elas não ocorrem de forma
previsível e controlável como a personagem de um jogo, porque, em última instância, em
função de seu caráter imersivo, ele é um ambiente intradiegético e, nesse sentido, haverá
sempre uma fratura ou um deslizamento que favorece a produção da diferença e do estranho.
Portanto, independentemente das intenções de se fazer uma cópia de si, o próprio processo de
singularização afasta essa possibilidade e acaba impondo uma criatura que pode “ostentar”
“mostrar” outras possibilidades inesperadas, que certamente causarão estranheza, mas que
não deixarão de ser também familiares e encantadoras.
A partir dessa ambiguidade, liminaridade estranho/familiar, considerada por mim como
algo rotineiro e constitutivo das relações sociais nessa plataforma, procurei fazer reflexões a
partir de Freud, sem a pretensão de realizar uma psicanálise dos ambientes imersivos ou de
seus frequentadores, menos ainda patologizar essas relações entre os usuários e seus ava-
tares. Ao contrário, procurei demonstrar como a emergência desses territórios ou ambientes
imersivos digitais torna-se propícia ao acolhimento e à objetivação de material subjetivo, que
de modo algum se desloca para lá completamente sob o signo da “vontade livre”, consciente

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 191-195, Janeiro-Abril 2020 191
Laura Graziela Gomes

e racional dos humanos. Embora escolhas e decisões sejam tomadas pelos usuários durante
o processo de singularização de seus próprios avatares, considero que essas singularizações
são realizadas quando eles já se encontram afetados pelo ambiente digital, ao mesmo tempo
que continuam sob a influência dos afetos que trazem de suas RL. O resultado desse encontro
não é uma soma zero ou uma mistura coalescente. Nesse sentido, ao recorrer a Freud, meu
intento foi relacionar seu artigo sobre o “estranho” e o fenômeno do “duplo” com esse ma-
terial literário citado anteriormente sobre o “maravilhoso”, o “prodigioso” e o “monstro”.
O fato de o artigo de Freud também fazer referências à literatura vem ao encontro de meus
argumentos. Do ponto de vista etnográfico, é possível sustentar que as premissas literárias e
estéticas românticas encontram-se muito presentes no SL, e, como essas premissas também
influenciaram a própria teoria antropológica e a própria psicanálise, acredito que elas possam
dar sustentação às reflexões que venho desenvolvendo sobre esse aspecto pouco investigado
que são as relações entre humanos e suas criaturas digitais como imagens de si, mas também
heterônimos, portanto estranhos. Em termos desse mundo virtual, quanto maior o enraiza-
mento nessa plataforma, mais esse fraturamento e o deslocamento de porções de nosso mate-
rial subjetivo ocorrem, fato que coloca em xeque nossas próprias “representações integradas
e coerentes de si”. Como afirmou Sherry Turkle (1996: 11), “in the culture of simulation, we
aren’t alone with the self but with many others — some of whom are our own avatars”.19 Para
a autora, esses múltiplos “eus” seria uma forma de experimentarmos “um momento histórico
liminar, quando o velho está começando a morrer e o novo ainda não chegou” (Turkle, 1996:
2). Esses “outros” objetificados em nossos próprios avatares seriam também os “duplos” de
que fala Freud, e, nesse sentido, afasto-me de uma interpretação do avatar e de seu processo
de singularização como totalmente consciente e controlado por seu humano, respectivamente.
Imaginação, literatura de horror, romances góticos, roteiros e filmes de sci-fi e psicanálise
à parte, como antropóloga, eu sabia que era necessário chegar, em termos etnográficos, o
mais próximo possível da experiência que procura situar os avatares menos como “meios” e/
ou meros “suportes” que são conectados por um sujeito humano que vai controlar um “objeto
técnico” e desconsiderar a possibilidade inversa. Supondo que a criatura também tem agência
sobre seu humano, era preciso compreender como se dava a construção desse híbrido, que
não se trata exatamente de uma mistura, mas supõe o “estranho”, no sentido da diferença,
para não cair, eu mesma, em uma postura ingênua do conceito de híbrido. Desse modo, era
importante “estar lá” e usar minha condição de residente para observar que existe uma ló-
gica própria desse mundo, e que o investimento feito sobre o avatar faz sentido, bem como
a proeminência adquirida por ele, justamente para promover essa diferença como condição
necessária para a existência desse mundo virtual.

192 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 192-195, Janeiro-Abril 2020
Avatares: o maravilhoso e o estranho no Second Life

Notas

1 Um primeiro contato com esse mundo virtual pode ser feito acessando a página oficial do Second Life, em:
<https://secondlife.com/?lang=pt-BR>. No final da página principal, há um vídeo que dá uma ideia do visual
desse ambiente, colocando em evidência a questão a ser tratada no presente artigo. O vídeo também está
disponível em: <https://www.youtube.com/watch?time_continue=15&v=3-LB-FeJlc4&feature=emb_logo>.
2 Link para acessar o blog: <http://nwn.blogs.com/>. Acesso em: 25 jul. 2019.
3 Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Tecnologia/0,MUL356692-6174,00-PARA+JORNALISTA+-
VIRTUAL+SECOND+LIFE+NAO+MORREU.html>. Acesso em: 25 jul. 2019.
4 As configurações do equipamento podem ser variadas, porém ele precisa ter bastante memória RAM e uma
boa placa de vídeo, além de estar conectado a uma internet com alta velocidade.
5 Veja-se a discussão proposta por Santos (2011) em O Second Life como plataforma para micromundos
físicos para o ensino de física, quando denomina essa física “surreal”. Meu argumento é de que essa “surrea-
lidade” é um dos fatores que conferem o efeito “maravilhoso” e que não deixam de afetar os humanos que
interagem nesse mundo por meio de seus avatares.
6 Um acessório muito importante dos avatares são os huds (heads up displays), com scripts de movimentos
corporais. Um hud completo tem uma variedade grande de movimentos corporais subdivididos em: stand,
walk, seat, run, jump, dance, fly e outros, que conferem um realismo impressionante.
7 Aprender a andar no SL constitui um aprendizado importante e difícil no início.
8 O trabalho de Meudal versa sobre a adaptação para o cinema do livro de Lewis Carroll feita pelo diretor
tcheco Jan Svankmajer (1988), conforme é mostrado no trailer oficial acessível no YouTube, o SL pode ser ex-
perimentado como um “país das maravilhas”. Assim como acontece com Alice, personagem de Lewis Carroll,
os recém-chegados surpreendem-se com o mundo que encontram.
9 O SL não é um game, como WoW (World of Warcraft), mas se insere na categoria de um MMORPG (Multi
Massive Online Role-Playing Game), portanto um mundo virtual aberto, no qual usuários/avatares, proceden-
tes de vários países, interagem na mesma plataforma.
10 Cujos valores chegam a ser da ordem de 3,2 bilhões USD, com 57 milhões de contas criadas e um total
de 482 anos em que seus usuários mantiveram-se logados, tudo isso ao longo de seus 15 anos de existência,
completados em junho de 2018, de acordo com dados de 2018. Disponível em: <http://techtrends.tech/
tech-trends/infographic-15-years-of-second-life/>. Acesso em: 29 jul. 2018.
11 Segundo Gell, “o objeto de arte personifica os processos técnicos, e aí reside seu poder de fascinação; a
tecnologia do encanto fundada no encanto da tecnologia” (Gell, 2005: 41). Não por acaso, o SL atrai artistas
e designers. São conhecidas as instalações feitas por estes artistas. Um dos casos mais famosos é o do artista
estadunidense, AMRadio que por vários anos fez muitas instalações no SL, tendo sido tema de artigos e capas
de revistas de arte nos Estados Unidos. A esse respeito ver: https://www.youtube.com/watch?v=_4AQAxhDRGc
12 Como argumentamos neste artigo, o SL permite e facilita “experiências de si” divergentes e dissidentes,
além de alternativas. Não há obrigatoriedade jurídica ou moral do usuário se apresentar no SL com sua iden-
tidade civil offline. Esta pode ser mantida no mais completo anonimato. Em resumo, não existem perfis fakes
no SL. Todos são considerados verdadeiros. Essa discussão não se coloca nesses termos – se um avatar é mais
verdadeiro que outro, mesmo sendo de um mesmo usuário.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 193-195, Janeiro-Abril 2020 193
Laura Graziela Gomes

13 “Não nos envolvemos em mobilidade existencial para experimentar a mobilidade física. O contrário é
verdade: envolvemo-nos em algum tipo de mobilidade física que nos define como migrantes, porque sentimos
que outro espaço geográfico é um ponto de partida melhor para nosso eu existencial.”
14 “Ilhas” é o termo para se referir à unidade mínima de território no SL. Elas têm uma medida-padrão,
podem ser divididas em terrenos, podem ter as mais diferentes formas, com diferentes topografias, acidentes
geográficos, tudo isso criado pelos usuários junto ao seu avatar (este é quem tem as ferramentas que permi-
tem fazer as modificações). Ver vídeo disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Gbu2HN_aY7w>.
Acesso em: 15 dez. 2019.
15 É importante frisar que o usuário interage com seu próprio avatar e com os demais. Como residente, am-
bos, usuário e avatar, não formam um bloco monolítico. Como disse, o avatar permanece com sua diferença.
16 As exigências de cuidados, singularizações e modificações criaram um mercado amplo e sofisticado
de acessórios para avatares. Em artigo publicado, descrevi com detalhes essas modificações (Gomes 2015:
97-123).
17 Um usuário pode ter mais de uma conta, ou seja, mais de um avatar, podendo desenvolver várias vidas
com cada um deles. Esses outros avatares são chamados alternativos e podem servir para diferentes finalida-
des. É praticamente certo que todo residente tenha pelo menos mais de um avatar. A própria Linden Lab tem
conhecimento dessa prática e a autoriza.
18 Em sua conhecida ópera fantástica intitulada “Os contos de Hoffmann”, Jacques Offenbach, compositor
francês (1819-1880) dedicou uma área à boneca Olimpia, a mesma que, no conto de Hoffmann é “confun-
dida” com uma pessoa pelo personagem Nathanael. Ver https://www.youtube.com/watch?v=mVUpKIFHqZk.
19 “Na cultura da simulação, não estamos sozinhos com o self, mas em companhia de muitos outros –
alguns dos quais são nossos próprios avatares.”

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Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 195-195, Janeiro-Abril 2020 195
Artigo

História digital: reflexões a partir da


Hemeroteca Digital Brasileira e do uso
de CAQDAS na reelaboração da pesquisa
histórica
Digital History: reflections from the Brazilian Digital Hemerotheque
and the use of CAQDAS in the re-elaboration of historical research
Historia digital: reflexiones de la Hemeroteca Digital Brasileña y el uso
de CAQDAS en la reelaboración de la investigación histórica

Eric BrasilI*

Leonardo Fernandes NascimentoII*

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942020000100011

I
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab/Malês) Bahia (BA), Brarsil.

* Professor de História da América da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, Campus dos
Malês (UNILAB/Malês) ([email protected]). ORCID ID: http://orcid.org/0000-0001-5067-8475.

II
Universidade Federal da Bahia (ICTI/UFBA), Bahia (BA), Brasil.

* Professor do Instituto de Ciências, Tecnologia e Inovação da Universidade Federal da Bahia (ICTI/UFBA), Brasil.
Coordenador do Laboratório de Humanidades Digitais da UFBA (LABHD/UFBA) ([email protected]).
ORCID ID: http://orcid.org/0000-0003-2929-1115.

Artigo recebido em 1º de agosto de 2019 e aprovado para publicação em 3 de dezembro de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 196-219, Janeiro-Abril 2020 196
História digital: reflexões a partir da Hemeroteca Digital Brasileira
e do uso de CAQDAS na reelaboração da pesquisa histórica

Resumo
O presente artigo pretende discutir o papel do uso de ferramentas digitais na pesquisa e na escrita da história,
refletindo sobre as transformações e os desafios no modo de produção do conhecimento na prática de investigação
da ciência histórica, abordando dois aspectos fundamentais: a) o progressivo uso de fontes de pesquisa provenientes
de acervos ou repositórios digitais, por meio da análise da Hemeroteca Digital Brasileira (HDB) da Biblioteca Na-
cional (BN); e b) a maneira como os aplicativos de análises de dados qualitativos — CAQDAS, acrônimo do inglês
computer assisted qualitative data analysis software — podem servir para minimizar os problemas e as limitações
gerados pelo uso inadvertido e com pouco rigor metodológico das ferramentas digitais. Aqui, utilizaremos o programa
ATLAS.ti como exemplo. Concluímos que a busca e a análise digital transformam não apenas a pesquisa histórica,
mas possibilitam novas perguntas, problemas e respostas, impactando tanto a teoria quanto o método da disciplina.

Palavras-chave: História digital; Hemeroteca Digital Brasileira; ATLAS.ti.

Abstract
This paper aims to discuss the role of the use of digital tools in the research and writing of history, reflecting on the
transformations and challenges in the mode of knowledge production in the practice of historical science research,
addressing two fundamental aspects: a) the progressive use of research sources from digital collections or reposito-
ries, through the analysis of the Brazilian Digital Newspaper Library (HDB); and b) The way qualitative data analysis
applications (CAQDAS) can serve to minimize the problems and limitations that are generated by inadvertently using
and little methodological rigor in digital tools. Here we will use the program ATLAS.ti as an example. We conclude
that digital search and analysis not only transforms historical research, but enables new questions, problems and
answers, impacting both the theory and the method of the discipline.

Keywords: Digital history; Brazilian Digital Newspaper Library; ATLAS.ti.

Resumen
Este documento tiene como objetivo discutir el papel del uso de herramientas digitales en la investigación y escri-
tura de la historia, reflexionando sobre las transformaciones y desafíos en el modo de producción de conocimiento
en la práctica de la investigación científica histórica, abordando dos aspectos fundamentales: a) el uso progresivo
de fuentes de investigación de colecciones o repositorios digitales, a través del análisis de la Hemeroteca Digital
Brasileña (HDB) de la Biblioteca Nacional (BN); y b) la forma en que las aplicaciones de análisis de datos cualitativos
(CAQDAS) pueden servir para minimizar los problemas y limitaciones generados por el uso inadvertido y metodológi-
camente inexacto de las herramientas digitales. Aquí usaremos el programa ATLAS.ti como ejemplo. Concluimos que
la búsqueda y el análisis digital no solo transforman la investigación histórica, sino que permiten nuevas preguntas,
problemas y respuestas, impactando tanto en la teoría como en el método de la disciplina.

Palabras clave: Historia digital; Hemeroteca Digital Brasileña; ATLAS.ti.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 197-219, Janeiro-Abril 2020 197
Eric Brasil e Leonardo Fernandes Nascimento

Introdução

O presente artigo pretende discutir o papel — cada vez mais preponderante — do uso de
ferramentas digitais na pesquisa e na escrita da história. Mais especificamente, a ideia é
investigar as transformações e os desafios no modo de produção do conhecimento na prática
de investigação da ciência histórica, abordando dois aspectos fundamentais: a) o progressivo
uso de fontes de pesquisa provenientes de acervos ou repositórios digitais (a partir do caso
da Hemeroteca Digital Brasileira [HDB] da Biblioteca Nacional [BN]); e b) a maneira como os
aplicativos de análises de dados qualitativos podem servir para minimizar os problemas e as
limitações gerados pelo uso inadvertido e com pouco rigor metodológico dos dados desses
repositórios.
A seção seguinte descreve alguns aspectos relacionados com a questão da digitalização
da vida e das práticas de pesquisa, proporcionando, especificamente, alterações na maneira
da ciência histórica e no aparecimento do campo da história digital. Em seguida, detalharemos
as fontes digitais de pesquisa e as modificações que elas apresentam. Na penúltima parte,
vamos considerar, de maneira mais aprofundada, uma pesquisa historiográfica que foi reali-
zada utilizando a HDB-BN. Por fim, encerramos, apresentando, ainda que de maneira breve, o
aplicativo ATLAS.ti para o tratamento de fontes históricas no formato digital.

História digital como problema

Q uando o primeiro autor deste artigo viu a chamada para o dossiê sobre humanidades
digitais, ele compartilhou o hiperlink e convidou o segundo autor por meio de um aplica-
tivo de mensagens. Em seguida, o mesmo aplicativo serviu para estabelecerem uma reunião
de organização da proposta. Ao longo de alguns meses, eles compartilharam, por um serviço
pago, uma pasta de trabalho com os mesmos arquivos entre seus computadores pessoais e
que atualizava em ambos qualquer alteração. Duas dezenas ou mais de e-mails foram envia-
dos entre eles, e foram realizadas incontáveis buscas na World Wide Web. Por fim, a própria
forma como escreveram o artigo deu-se por meio de um editor de texto em um computador
ou, como se tornou lugar-comum dizermos, em um “meio digital”.
O leitor provavelmente já deve conhecer todos ou a maioria dos serviços e aplicativos a
que nos referimos. No entanto, para podermos apresentar o problema que vamos tratar neste
artigo, decidimos começar “desnaturalizando” alguns dos chamados fenômenos digitais. É
comum que a grandeza ou a magnitude de uma mudança seja diretamente proporcional à
dificuldade de pensarmos o mundo que antecedeu essa mesma mudança. Em outras palavras,

198 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 198-219, Janeiro-Abril 2020
História digital: reflexões a partir da Hemeroteca Digital Brasileira
e do uso de CAQDAS na reelaboração da pesquisa histórica

as gerações contemporâneas que cresceram sob a égide das tecnologias digitais de informa-
ção e comunicação (TDICs) são cada vez menos capazes de imaginar como era o mundo que
antecedeu o advento dos computadores e da internet.
Isso ocorre porque as novas formas de localização no espaço, de buscar informações, de
nos relacionarmos, de ler livros, de ouvir música, de viajar, de fazer compras etc. proporcionam
um mundo bastante diferente do que havíamos construído anteriormente. Concordamos com
Fish (2011: 8), quando retoma Marcel Mauss e considera o digital como um “fato [ou fenôme-
no] social total”, querendo sugerir que nenhum aspecto da vida contemporânea permaneceu
incólume diante das transformações ocasionadas pelas TDICs.1 A prática da pesquisa científica,
por seu turno, nunca se furtou a tais mudanças. Ao contrário, desde seus primórdios — pen-
semos, por exemplo, em Galileu e sua luneta —, a ciência sempre esteve na dianteira da
utilização de diferentes tecnologias. Se isso é bem evidente nos campos científicos mais experi-
mentais, o que podemos dizer sobre as humanidades? Atualmente, já temos algumas reflexões
importantes na área de sociologia, geografia e ciência política sobre a utilização de recursos
digitais, digitalização de fontes, utilização de softwares de análise qualitativa de grandes bases
de dados, georreferenciamento e seus impactos nos resultados da pesquisa. Os debates sobre
as TDICs e os diferentes campos das ciências humanas propiciaram o surgimento de campos
híbridos como o das humanidades digitais (Berry, 2012; Gold, 2012; Schreibman, Siemens e
Unsworth, 2008), que vêm ganhando terreno em diferentes espaços acadêmicos. Trata-se, an-
tes de tudo, de um campo transdisciplinar em desenvolvimento, pois agrega métodos, dispositi-
vos e perspectivas analíticas das ciências humanas e sociais, ao mesmo tempo que mobiliza as
ferramentas e abordagens singulares abertas pela tecnologia digital.
Tais discussões ainda estão bastante incipientes no campo da história. No Brasil, há
algumas iniciativas e reflexões importantes que indicam a possibilidade de crescimento e
fortalecimento de um campo de estudos sobre a história digital sendo produzidos nos últimos
cinco anos: trabalhos sobre história oral, história pública, memória e patrimônio, história do
tempo presente, assim como pesquisas sobre videogames, cinema, georreferenciamento e
ensino de história.2 Entretanto, a produção ainda é muito pequena, e os esforços de reflexão
teórica e metodológica são ainda menores. Muitas pesquisas atuais na área de história têm
utilizado recursos digitais sem que o pesquisador empenhe-se em realizar um debate apro-
fundado sobre as especificidades teórico-metodológicas de sua utilização. Segundo Hitchcock
(2013: 12), os historiadores têm menosprezado o impacto das novas tecnologias. Para ele, a
história como disciplina “em grande parte não está envolvida na produção de recursos digi-
tais e, aparentemente, não está interessada em mudar a forma como o seu conhecimento se

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 199-219, Janeiro-Abril 2020 199
Eric Brasil e Leonardo Fernandes Nascimento

acomoda ao digital, colocou sua cabeça na areia e tentou ignorar toda a questão”. Em artigo
mais recente e bastante crítico sobre como historiadores vêm encarando a “virada digital”,
Laura Putnam (2016: 388) afirma que as práticas digitais de pesquisa comumente utilizadas
(buscas no Google, utilização de repositórios de fontes digitalizadas, e-mails, aplicativos de
edição de textos, planilhas etc.)

[…] caem no reino do método invisível, a caixa-preta onde, por consenso, deixamos muito do
trabalho pesado de nossa disciplina. A extensa discussão da digitalização em andamento nos
periódicos de ciência da informação está em nítido contraste com o silêncio sobre esse tema nas
principais publicações de historiadores.

Embora atualmente tal panorama esteja sendo progressivamente alterado — e o pre-


sente dossiê constitui um esforço nesse sentido —, ainda permanece uma urgente tarefa
levantarmos as seguintes questões: Existem diferenças substanciais entre as fontes digitais e/
ou digitalizadas e as fontes “tradicionais”, em papel? O uso de ferramentas digitais na prática
de pesquisa é capaz de modificar os processos, a percepção, a intuição e a interpretação da
história? Por fim, estariam as tecnologias digitais proporcionando algum tipo de mudança na
prática de pesquisa do historiador e de sua imaginação e escrita historiográfica? Se, ainda que
parcialmente, respondemos positivamente a essas questões, resta-nos delinear as característi-
cas dessas transformações e suas limitações.

As fontes digitais de pesquisa

P ara além da produção dos documentos primários digitais exclusivos que todos nós esta-
mos produzindo neste exato momento, por meio de e-mails, redes sociais, plataformas de
busca etc., a história precisa refletir também sobre a digitalização das fontes e os impactos
das ferramentas digitais no trabalho do historiador. Nesse sentido, William Thomas III (Cohen
et al., 2008: 454) define história digital da seguinte maneira:

A história digital é uma abordagem para examinar e representar o passado que funciona em
conjunto com as novas tecnologias de comunicação computadorizadas, a rede da Internet e os
sistemas de software. Em um nível, a história digital é uma arena aberta de produção e comu-
nicação acadêmica, abrangendo o desenvolvimento de novos materiais didáticos e coleções
de dados acadêmicos. Por outro lado, trata-se de uma abordagem metodológica enquadrada
pelo poder hipertextual dessas tecnologias em fazer, definir, consultar e anotar associações no
registro humano do passado. Fazer história digital, então, é criar uma estrutura, uma ontologia,
através da tecnologia para as pessoas experimentarem, lerem e seguirem uma discussão sobre
um problema histórico.

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História digital: reflexões a partir da Hemeroteca Digital Brasileira
e do uso de CAQDAS na reelaboração da pesquisa histórica

Quando um registro histórico — seja ele um manuscrito, uma carta, uma edição de
jornal, uma foto, um livro etc. — converte-se, por meio de algum processo computacional, em
um documento digital, ocorre aí uma mudança que dificilmente poderia ser considerada trivial.
Apesar de a informação contida na fonte continuar “sendo a mesma” — no sentido de que
a digitalização não alteraria substancialmente o conteúdo do registro histórico —, podemos
dizer que a modificação na “materialidade” da fonte histórica nos conduz, inevitavelmente, a
uma nova condição em relação ao modo de lidarmos com a informação ali contida. Se concor-
darmos que, no “setor da informática, não há nada de virtual” (Vinck, 2016: 37) — pois os
arquivos digitais “ocupam espaço” em servidores, cabos, antenas, hard disk drives etc. —, a
desmaterialização não é senão uma rematerialização (Vinck, 2016: 36).
É possível, desse modo, considerarmos essa rematerialização em um duplo aspecto. O
primeiro deles, ainda que seja um pleonasmo, é que a cópia digitalizada — diferentemente
dos documentos nativamente digitais, isto é, aqueles já surgem em formato digital — é uma
cópia de um objeto real. E toda cópia, para que seja considerada “verdadeira” — no sentido
de semelhante ou fidedigna ao original —, exige uma forma relativamente fixa, em termos de
um conteúdo estável, uma procedência e um contexto que assegurem que a digitalização foi
bem-sucedida: a inteireza do conteúdo necessita de fato estar presente na cópia digitalizada,
aquilo que os arquivistas denominam cadeia de custódia. Em outros termos, qualquer tipo de
erro, negligência ou até mesmo má-fé no processo computacional pertinente à digitalização
será determinante no trabalho historiográfico. Além disso, a rematerialização envolve o de-
saparecimento parcial ou total de uma considerável gama de propriedades organolépticas (a
cor, o brilho, a luz, o odor, a textura, a maciez, o som, o sabor etc.) que, de fato, podem ser
determinantes na descrição de determinadas fontes históricas.
Por fim, a cópia digital, decaída ou elevada à condição da “nova materialidade digital
dos bits”, adquire o conhecido caráter de reprodutibilidade. Em outras palavras, assim como
ocorre com todo “arquivo” de computador, é possível fazer cópias do registro histórico digital
— em certa medida e asseguradas algumas condições — indefinidamente. Com isso, a pos-
sibilidade de acesso ao registro histórico amplifica-se, ou, para usarmos um termo muito em
voga, ele “viraliza”. Isso nos conduz ao segundo aspecto da mudança de materialidade: ao ser
digitalizada, a fonte torna-se dataficável. Um documento de texto, por exemplo, converte-se
em uma base de dados de strings, termo que, na programação de computadores, representa
uma cadeia ou sequência de caracteres: as fotos ganham regiões medidas em pixels; os regis-
tros, em áudio, diferentes comprimentos de onda.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 201-219, Janeiro-Abril 2020 201
Eric Brasil e Leonardo Fernandes Nascimento

Além do “dado” referente ao conteúdo da fonte, a digitalização instaura a presença


de metadados, isto é, “dados sobre os dados”. Os metadados são constituídos por aquelas
informações complementares sobre o conteúdo da informação (qual tipo de informação os
objetos contêm), o contexto da informação (indica quem, o quê, por que, onde e como estão
associados à informação) e a estrutura da informação (a relação entre os diferentes tipos
de informações) (Baca, 2008). São os metadados que explicam, contextualizam, conferem
veracidade ao documento. No caso especifico de documentos de texto, ocorre algo ainda mais
peculiar e que constitui o cerne do processo de dataficação: os dados e metadados podem
vir a se tornar pesquisáveis. Qualquer documento textual que passe por um scanner e pelo
tratamento por softwares de reconhecimento óptico dos caracteres3 permite ao historiador a
busca de ocorrências de palavras-chave ao longo de toda a sua extensão.
A dataficação (Mayer-Schönberger e Cukier, 2013), possibilitada pela digitalização das
fontes históricas, não é, de modo algum, um fenômeno novo (Ayers, 2001; Bolick, 2006). De
maneira similar, os livros digitais e o hipertexto já haviam instaurado uma nova relação entre o
leitor e o texto, segundo aquilo que foi descrito pelo historiador Roger Chartier (2002: 23-24)
como uma tríplice ruptura: “assim, quanto à ordem dos discursos, o mundo eletrônico provoca
uma tríplice ruptura: propõe uma nova técnica de difusão da escrita, incita uma nova relação
com os textos, impõe-lhes uma nova forma de inscrição).”.
Primeiramente, vejamos a questão da difusão das fontes históricas. A possibilidade de
cópia digital dos arquivos, o surgimento de gigantescos repositórios, em diversos idiomas e
com diferentes tipos de acervo, descortinariam um mundo de pesquisas e achados que até
então era difícil imaginar.

Esses projetos [de arquivos digitalizados], exibindo coleções de dados numéricos, textos, ima-
gens, mapas e sons, criam grandes repositórios[,] proporcionando espaços nos quais os usuários
fazem conexões e descobertas por si mesmos. Tais arquivos aproveitam a massa, a multiplici-
dade, a velocidade, a reiteração, a reflexividade e a precisão oferecidas pelos computadores.
(Ayers, 2001: 6)

Entretanto, a possibilidade da criação de cópias idênticas pode gerar um impacto pro-


fundo na primeira tarefa básica do método histórico mais elementar: a heurística. A análise
crítica do conteúdo da fonte é fundamental no fazer historiográfico. Segundo Bresciano, a
crítica heurística pressupõe fazer a história da própria fonte, de sua criação até o momento
da análise, passando pela reflexão sobre as características do suporte, sua estrutura formal,
o perfil do discurso e do léxico utilizado, e a “coerência entre os dados que apresenta e as
informações contextuais disponíveis” (Gil e Bresciano, 2015: 37).

202 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 202-219, Janeiro-Abril 2020
História digital: reflexões a partir da Hemeroteca Digital Brasileira
e do uso de CAQDAS na reelaboração da pesquisa histórica

Por outro lado, Bresciano também chama a atenção para a necessidade de uma heurís-
tica digital e usa o trabalho de Chaudhuri para caracterizá-la. É preciso investigar os metada-
dos, verificar a existência de marcas d’água; revisar na internet a existência de modelos que
poderiam ter sido usados para fraudar os documentos; comprovar se os conteúdos podem
ser sustentados ou verificados por outras fontes; confirmar os conteúdos gerais em buscas
online; avaliar a congruência de dados específicos, como datas e lugares; detectar erros de
transcrição de nomes próprios e de instituições públicas e privadas (Chaudhuri, 2007 apud
Gil e Bresciano, 2015: 38). O trabalho do historiador diante do arquivo digital, portanto, não
é tão diferente do trabalho diante do arquivo físico, pois exige tanto rigor metodológico no
tratamento da fonte quanto o tratamento de uma fonte não digital. Entretanto, esse cuidado
muitas vezes é escamoteado ante a profusão de fontes, a agilidade da busca, a velocidade do
acesso e a facilidade do armazenamento.
Além da difusão, haveria uma nova relação com a informação contida na fonte digital,
especialmente nos documentos textuais. nteDe modo semelhante ao que ocorreu com os livros
digitais e com o advento do hipertexto, o documento histórico textual também se converte,
como dissemos, em uma base de dados de strings. A possibilidade de buscas, intradocumento
e interdocumentos, por meio de massivos acervos de dados e metadados digitais, apresenta
diferenças na maneira de condução da pesquisa. A possibilidade de localizarmos — e, de
certo modo, quantificarmos — a ocorrência de determinados termos em um vasto material
textual permite acelerar o foco da atenção do historiador em relação a temas e assuntos de
seu interesse de pesquisa.
Entretanto, a vantagem de tratar o “documento como string” pode tornar-se uma fonte
de erros na pesquisa. O encontro de um termo de interesse pode vir a fragmentar a relação
com o documento histórico, pois a busca automática subtrai a compreensão acerca do contex-
to de aparição da própria palavra. De modo semelhante ao que ocorreu com os livros digitais,
podemos perder a noção do todo, ou, como sublinha Roger Chartier (2002: 23), “num certo
sentido, no mundo digital todas as entidades textuais são como bancos de dados que procu-
ram fragmentos cuja leitura absolutamente não supõe a compreensão ou percepção das obras
em sua identidade singular”.
Além disso, a lógica da pesquisa parece inverter-se, pois já deveríamos saber, em certo
sentido, aquilo que desejaríamos encontrar. Ou seja, a própria escolha do termo de interesse
ou das “palavras-chave” implica a existência de um conhecimento ou interpretação prévia
daquilo que é possível de ser encontrado no(s) documento(s). Se considerarmos que tal busca
seria apenas um momento inicial, para filtrarmos o que deve ou não ser analisado por uma

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 203-219, Janeiro-Abril 2020 203
Eric Brasil e Leonardo Fernandes Nascimento

leitura atenta, os problemas ainda assim persistem em no mínimo três aspectos. O primeiro é
que a digitalização sempre pode comportar erros nos caracteres de documentos que não são
nativamente digitais. Segundo, a linguagem tem a incrível capacidade de nos permitir falar
das coisas sem que necessariamente mencionemos o nome delas. Por fim, e não menos grave,
o horizonte de possibilidades daquilo que sabemos que vamos encontrar sempre pode ser
surpreendido por algo que sequer imaginávamos que poderia ser encontrado.

A leitura diante da tela é geralmente descontínua, e busca, a partir de palavras-chave ou


rubricas temáticas, o fragmento textual do qual quer apoderar-se (um artigo em um perió-
dico, um capítulo em um livro, uma informação em um web site), sem que necessariamente
sejam percebidas a identidade e a coerência da totalidade textual que contém esse elemento.
(Chartier, 2002: 23)

Entretanto, para além dessas limitações, que retornaremos a discutir adiante, as novas
modalidades de produção e transmissão dos textos e das fontes, que Chartier chama revolu-
ção, também são “uma mutação epistemológica fundamental” (Chartier, 2002: 108). As novas
possibilidades abertas pela digitalização das fontes, sua disponibilização online, o desenvolvi-
mento de ferramentas de busca textual e aplicativos de análise computadorizada têm impacto
ainda não conclusivo e estimulante no trabalho hermenêutico do historiador.
Nos próximos tópicos, buscamos indicar caminhos possíveis de análise e reflexão sobre
esses impactos no trabalho do historiador por meio do uso da HDB-BN.

O caso da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

H istoriadores das mais variadas filiações teóricas e de diferentes gerações vêm utilizando
com enorme frequência as ferramentas de busca disponibilizadas pela Hemeroteca Digital
Brasileira da Biblioteca Nacional (HDB-BN),4 sobretudo a busca por palavra, nominativa. Entre-
tanto, o uso da HDB não é acompanhado de uma necessária discussão teórico-metodológica
acerca de seus impactos, transformações, possibilidades e limites no fazer do historiador. Na
verdade, poderíamos afirmar que há, até certo ponto, uma negligência — quando não uma
omissão intencional —, passando a falsa noção de que o pesquisador chegou aos resultados
finais de sua pesquisa utilizando o tradicional método de leitura corrente.
Essa percepção fortalece-se quando realizamos uma análise em um banco de dados
de revistas do repositório Scielo com classificação A1 na área de história pelo sistema de
avaliação de periódicos Qualis Capes. De 1997 a 2017, em mais de 2.300 artigos disponíveis,
realizamos uma busca automatizada pelo termo “Hemeroteca Digital”, utilizando o software

204 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 204-219, Janeiro-Abril 2020
História digital: reflexões a partir da Hemeroteca Digital Brasileira
e do uso de CAQDAS na reelaboração da pesquisa histórica

de análise qualitativa ATLAS.ti.5 Surpreendentemente, não foi encontrada nem sequer uma
referência à Hemeroteca Digital. Essa ausência constitui um indício importante para nossa
reflexão: mesmo se computarmos apenas os artigos publicados a partir da disponibilização da
HDB para o público, no ano 2008, não encontramos nenhuma referência nos artigos publica-
dos nas mais importantes revistas de história do Brasil.
Buscamos, neste tópico, elencar alguns problemas, estratégias e caminhos metodológi-
cos de uma prática historiográfica digitalizada, colocando em destaque as novas possibilida-
des de resultados de pesquisa oriundos da utilização da HDB.
Essa ferramenta digital tem ampliado de maneira exponencial a possibilidade de fazer-
mos novas perguntas e responder a elas com o auxílio dessa tecnologia. Sem a busca nomi-
nativa por palavras-chave disponibilizada pela HDB, os pesquisadores alcançariam os mesmos
resultados por métodos analógicos? Essa questão é fundamental para uma reflexão sobre os
impactos dessa ferramenta específica em nossa imaginação histórica.
Nos anos 1940, a BN iniciou o processo de microfilmagem dos periódicos, mas apenas
em 1978 foi criado o Plano Nacional de Microfilmagem.6 Durante décadas, pesquisadores
dedicaram horas a fio, girando e rebobinando os microfilmes, lendo minuciosamente cada pá-
gina, cada coluna, cada sessão dos periódicos. Anotavam à mão o que interessava. Depois, os
computadores portáteis facilitaram o trabalho da transposição da fonte do suporte do micro-
filme para o suporte digital. Os pesquisadores passaram a ter a oportunidade de transcrever
imediatamente para um editor de texto o que interessava. Para preservação do original, aces-
so, mobilidade e velocidade da pesquisa, a mudança do suporte, do papel para o microfilme,
foi uma transformação significativa no fazer historiográfico.
Entretanto, a partir de 2006, a mudança de suporte, associada à tecnologia digital, impli-
caria transformações na imaginação histórica em uma ordem sem precedentes. Nesse ano, a
BN iniciou o trabalho de digitalização de parte de seu acevo. O projeto, que englobaria livros,
partituras, fotos, revistas e periódicos, daria origem à BN Digital. Segundo o site da instituição,
os objetivos da digitalização seriam a difusão das coleções, “diversificando sua esfera social e
enriquecendo as possibilidades de acesso e uso”, e a salvaguarda do acervo original.
O acervo total da BN é de uma magnitude impressionante, e a seleção para a digitaliza-
ção precisou considerar diversos fatores, como o valor e a importância históricos, a raridade,
“assim como a relevância de coleções”, a demanda dos usuários, itens de efemérides, fragi-
lizados etc. Atualmente, a BN Digital conta com 2.078.154 — dois milhões e setenta e oito
mil, cento e cinquenta e quatro — documentos digitalizados para livre acesso, sem contar os
periódicos.7

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 205-219, Janeiro-Abril 2020 205
Eric Brasil e Leonardo Fernandes Nascimento

Como parte da BN Digital, temos acesso à Hemeroteca Digital Brasileira (HDB), um re-
positório de jornais, revistas, almanaques, anuários, boletins com acesso livre de qualquer
equipamento conectado à internet. Nela, encontramos desde as primeiras publicações da
imprensa brasileira no início do século XIX até os jornais impressos extintos do século XX.
Além de ser livre e gratuita, com acesso de qualquer lugar do mundo, o diferencial da HDB é
sua ferramenta de busca, avançada e bastante eficaz. Ao acessarmos o site <http://bndigital.
bn.gov.br/hemeroteca-digital/>, encontramos a seguinte tela (Figura 1):

Figura 1 – Print screen da página de busca da HDB. Disponível em: <bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>.


Acesso em: 25 jul. 2019.

As três abas de pesquisa são Periódico, Período e Local. Cada uma delas apresenta espe-
cificidades, servindo para objetivos distintos de cada pesquisador. Na aba Periódico, a busca
está centrada em determinado periódico, o que possibilita analisar como um jornal aborda
determinado assunto em um período específico: como a Gazeta de Notícias abordou a Lei do
Ventre Livre e a Lei Áurea, por exemplo. Essa aba também é fundamental para aqueles que
têm o próprio periódico como objeto de estudo: uma pesquisa sobre o Jornal do Commercio
durante o Segundo Reinado, por exemplo.
A segunda aba, Período, é mais indicada para pesquisas sobre temas com marcos cro-
nológicos ou recortes de tempo muito delimitados, em que o pesquisador deseje encontrar
as representações e análises em um período específico. Nessa opção, ele pode selecionar um
recorte temporal, adicionar um recorte geográfico ou optar por todas as regiões que o período
contempla no acervo. O mesmo serve para o periódico. Por exemplo, você pode selecionar o
período de 1880-1889, o local CE e buscar nos 57 periódicos disponíveis o termo desejado.
Por fim, a terceira aba: Local. Essa é a opção que mais abre possibilidades de busca para
quem estuda trajetórias de indivíduos, as ações de grupos e associações, quem busca nomes,

206 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 206-219, Janeiro-Abril 2020
História digital: reflexões a partir da Hemeroteca Digital Brasileira
e do uso de CAQDAS na reelaboração da pesquisa histórica

títulos, temas e assuntos em local e período delimitados. Com essa ferramenta de busca,
podemos, por exemplo, colocar o nome de um sujeito que apareceu em uma fonte policial e
delimitar a região, o período e o periódico.
Buscando esmiuçar uma possibilidade de método de pesquisa, vamos utilizar o exemplo
de um personagem histórico, cuja trajetória, redes sociais e estratégias de ação política só
se tornaram passíveis de reconstrução histórica a partir das possibilidades abertas pela HDB.
Buscaremos na aba Local o nome de Moyses Zacharias da Silva.
Durante pesquisa anterior de um dos autores do artigo, o método utilizado para construir
trajetórias, redes sociais e formas de mobilização política de sujeitos negros durante o pós-
-Abolição no Rio de Janeiro foi o seguinte: leitura e transcrição dos pedidos de licença envia-
dos pelas associações carnavalescas para o chefe de polícia; em seguida, foi criado um banco
de dados com as informações desses pedidos de licença (títulos das associações, endereços
das sedes, nomes, profissões e endereços dos membros e das diretorias, tipos de pedidos,
despachos etc.); depois, os nomes de associações e sujeitos foram utilizados na busca textual
na HDB. Esse método foi complementado pela leitura corrente dos principais jornais e revistas
que abordavam o carnaval nas duas primeiras décadas do século XX e pela busca em outras
bases de dados (principalmente os Diários Oficiais da União, disponíveis para pesquisa online
no site JusBrasil8 por meio de busca nominal de indivíduos já encontrados tanto nas fontes
policiais do Arquivo Nacional quanto nos periódicos da Biblioteca Nacional) (Brasil, 2016).
Essa metodologia tornou possível o acompanhamento de reconstrução das experiências,
escolhas e redes de inúmeros indivíduos negros durante a Primeira República no Rio de Janei-
ro. A ferramenta de busca textual da HDB e o novo suporte das fontes possibilitaram elaborar
novas perguntas, novos objetivos, encontrar novas respostas, que seriam impensáveis de outro
modo. Para o estudo das trajetórias, o peso das novas tecnologias é muito promissor. Segundo
Laura Putnam:

A relevância da digitalização em massa para esses objetivos analíticos deveria ser óbvia. Fon-
tes de texto pesquisável possibilitam rastrear pessoas individuais (ou músicas, panfletos ou
frases), permitindo-nos observar no nível micro os processos que geram, no agregado, fluxos e
conexões de nível macro. À medida que os repositórios digitalizam e carregam fontes cada vez
mais cotidianas, as possibilidades de usar a pesquisa de termos on-line para o que os histo-
riadores costumavam chamar de vinculação de registro nominal expandem-se e expandem-se.
(Putnam, 2016: 386)

Por meio da busca digital, encontramos Moyses Zacharias da Silva como presidente de
clubes carnavalescos, participando de greves, de sindicatos, de comissões, da inauguração de

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 207-219, Janeiro-Abril 2020 207
Eric Brasil e Leonardo Fernandes Nascimento

escolas noturnas, como membro da Guarda Nacional, como eleitor e mesário e discursando
para o presidente Hermes da Fonseca, com quem posou ao lado para uma fotografia em 1911
(Brasil, 2018). Assim, a ferramenta digital possibilitou uma reflexão profunda sobre as expe-
riências de sujeitos negros na cidade do Rio de Janeiro, demonstrando suas complexas leituras
políticas do presente e seus projetos de cidadania. Não seria possível atingir tais resultados
pela leitura de cada uma das milhares de edições dos 17 periódicos divididos em 27 pastas
de períodos cronológicos em que encontramos registros sobre tal personagem, ao longo das
décadas de 1900, 1910, 1920 e 1930. No interior dessas pastas, o número total de páginas
digitalizadas pesquisadas com esses parâmetros de busca atinge a marca impressionante de
um 1.028.620 (milhão, vinte e oito mil, seiscentas e vinte) páginas. Entretanto, a busca com-
pleta foi realizada no conjunto total de páginas no acervo, que atualmente tem mais de 11
milhões de páginas digitalizadas. O uso da tecnologia digital alterou, portanto, profundamen-
te a hermenêutica e a epistemologia da história, possibilitando novos resultados de pesquisa.

Figura 2 – Print screen com a busca por Local, utilizando o termo “Moyses Zacharias” para o Local RJ, todos os
períodos e todos os periódicos.

E, por isso mesmo, é importante entender o funcionamento da HDB. Após clicar em “pes-
quisar”, uma nova página abre-se com os resultados gerais da busca. A ferramenta de busca
digital apresentará todas as ocorrências encontradas em uma listagem, contendo as seguintes
informações: o título do periódico, as páginas totais digitalizadas, o número de ocorrências e as
opções de “ir para a primeira página” do periódico e “ir para a primeira ocorrência” (Figura 3).

208 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 208-219, Janeiro-Abril 2020
História digital: reflexões a partir da Hemeroteca Digital Brasileira
e do uso de CAQDAS na reelaboração da pesquisa histórica

Figura 3 – Print screen da página de resultados da busca realizada.

Após selecionar o periódico desejado, uma nova página se abrirá. Por exemplo, clicamos
em “A União (RJ) – 1905 a 1950”. Como podemos ver na imagem da Figura 4, podemos
navegar de três modos em cada periódico selecionado: 1) navegar por ocorrências — a ferra-
menta passará para a próxima página em que o termo procurado foi encontrado, que estará
sempre destacado em verde no corpo do texto; 2) navegar por páginas da edição — assim,
é possível ler toda a edição de cada ocorrência; c) abrir todo o acervo daquele periódico e
navegar por todas as edições livremente.

Figura 4 – Print screen da página com a busca. O termo pesquisado é destacado em verde (A União, edição
199, de 19 de julho de 1905, p. 5. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/799670/844>. Acesso em:
26 jun. 2019).

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 209-219, Janeiro-Abril 2020 209
Eric Brasil e Leonardo Fernandes Nascimento

A soma dessas três possibilidades de navegação e leitura disponibilizadas pela HDB cria
condições de superação da principal crítica feita a seu uso: de que a busca nominativa levaria
a uma quase inevitável leitura e análise fragmentada, sem a compreensão do todo que forma
esse tipo de fonte.
Muitos jornais permitem que o leitor salve a página como imagem (.jpeg) em seu compu-
tador. Outros podem ser acessados (com busca e leitura), mas sem a opção de salvar — como
o Jornal do Brasil e o Jornal do Commercio. Outras ferramentas importantes disponíveis são o
zoom in e out; salvar o hiperlink da página atual, o que possibilita formas mais eficazes de ca-
talogação e acesso posterior; acessar as informações detalhadas sobre o acervo do periódico
específico (Figura 5) e acessar todas as pastas dos anos do acervo (Figura 6). O hiperlink, as
informações detalhadas e o acesso às pastas com todas as edições digitalizadas permitem-nos
demonstrar os caminhos metodológicos realizados durante a pesquisa.

Figura 5 – Print screen das “Informações do acervo” Figura


Figura 5 – Print
referentes screen das“A
ao periódico “Informações do acervo”
União (RJ)”. Figura 66 –– Print
Print screen dalista
screenda listadas
das“Pastas”
“Pastas”
referentes ao periódico “A União (RJ)”.
referentes ao periódico “A União (RJ)”. referentes ao periódico “A União (RJ)”.

É importante destacar que as ocorrências a que temos acesso não correspondem à


totalidade das vezes que o termo aparece no periódico, mas, sim, às vezes que a
ferramenta de busca foi capaz de encontrar o tal termo pelo Reconhecimento Ótico de
Caracteres (Optical Character Recognition – OCR). Na edição de 19 de julho de 1905 do
210 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 210-219, Janeiro-Abril 2020
jornal A União, a ferramenta encontrou o nome de Moyses Zacharias da Silva assinando
como um dos representantes dos operários uma carta sobre uma greve dos operários
História digital: reflexões a partir da Hemeroteca Digital Brasileira
e do uso de CAQDAS na reelaboração da pesquisa histórica

É importante destacar que as ocorrências a que temos acesso não correspondem à totali-
dade das vezes que o termo aparece no periódico, mas, sim, às vezes que a ferramenta de bus-
ca foi capaz de encontrar o tal termo pelo Reconhecimento Ótico de Caracteres (Optical Cha-
racter Recognition – OCR). Na edição de 19 de julho de 1905 do jornal A União, a ferramenta
encontrou o nome de Moyses Zacharias da Silva assinando como um dos representantes dos
operários uma carta sobre uma greve dos operários estivadores. Entretanto, não foi capaz de
encontrar o mesmo nome na mesma página no corpo da carta que Moyses assinou (Figura 7).

Figura 7 – Recorte da p. 5 da edição 199, de 19 de julho de 1905, do jornal A União. O nome de Moyses
Zacharias não foi encontrado e marcado em verde pela busca da HDB. Disponível em: <http://memoria.bn.br/
DocReader/799670/844>. Acesso em: 26 jun. 2019.

Outro exemplo das limitações do OCR pode ser encontrado na edição 305 da Revista
da Semana. Nela, encontramos uma página contendo cinco fotografias de presidentes de
associações carnavalescas do Rio de Janeiro no ano 1906. Entre eles encontramos nosso
personagem. No entanto, a ferramenta de busca não reconheceu “Moyses Zacharias da Silva”
como uma ocorrência. Sua foto, fundamental para a pesquisa que um dos autores do artigo
vinha desenvolvendo, não seria encontrada apenas pela busca nominativa (Figura 8).

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 211-219, Janeiro-Abril 2020 211
Eric Brasil e Leonardo Fernandes Nascimento

Figura 8 – Detalhe da p. 20 da edição 305, de 18 de março de 1906, da Revista da Semana. Disponível em: <http://
memoria.bn.br/DocReader/025909_01/4313>. Acesso em: 26 jun. 2019.

Isso quer dizer que devemos deixar de usar a busca textual? Segundo Tim Hitchcock
(2013: 14), a busca por palavras é, ao mesmo tempo, libertadora e perigosa, pois também
resultou em um substancial desenraizamento do conhecimento. Para Laura Putnam (2016:
377), tais tecnologias explodiram o alcance e a velocidade das descobertas, porém nossa
habilidade “para ler com precisão as fontes que encontramos e avaliar seus significados não
pode ser magicamente acelerada”, e com isso corremos o risco de criar um retrato parcial do
passado do mundo inteiro.
Essas limitações apontadas por Hitchcock e Putnam não devem inibir-nos ao uso da
busca textual na HDB. Devem servir como um alerta constante para qualquer pesquisador
que se debruce sobre a al.história digital. Porém, gostaríamos de argumentar que, no próprio
escopo da HDB, encontramos os subsídios para escapar dos problemas apontados: a leitura
fragmentada, que perde os significados contextuais, e o conhecimento parcial da fonte e seu
conteúdo. Por meio da HDB, podemos, além da busca nominativa, buscar e navegar pelos

212 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 212-219, Janeiro-Abril 2020
História digital: reflexões a partir da Hemeroteca Digital Brasileira
e do uso de CAQDAS na reelaboração da pesquisa histórica

acervos completos dos periódicos. Podemos, portanto, realizar as leituras diárias, como era
feito nas máquinas de microfilme décadas atrás. Podemos (e devemos) também registrar as
informações detalhadas sobre cada periódico estudado, o acervo, o volume de digitalizações,
o período de publicações, seus donos, redatores, editores, jornalistas, suas imagens, gravuras,
colunas, preço, circulação, etc., inclusive confrontando com demais fontes e com a bibliografia.
Portanto, os problemas metodológicos são responsabilidade do historiador, que muitas vezes,
por descuido ou desconhecimento técnico, usa a tecnologia como mera forma de confirmar
seus desejos e hipóteses.
Uma crítica mais importante, em nossa concepção, recai sobre a escrita da história. His-
toriadores que utilizam a HDB, e qualquer outro método digital, não têm dedicado a devida
atenção e espaço na escrita às reflexões metodológicas de seu uso. Acreditamos que é funda-
mental explicitar o método, as ferramentas tecnológicas utilizadas durante a pesquisa e sua
experiência no processo, para corroborar sua contextualização e interpretação final das fontes.
Gibbs e Owens (2013: 159) afirmam que

[…] novos métodos usados para explorar e interpretar dados históricos exigem um novo nível
de transparência metodológica na escrita histórica. Exemplos incluem discussões de consultas
de dados, fluxos de trabalho com ferramentas específicas e a produção e interpretação de
visualizações de dados. No mínimo, as publicações de pesquisa dos historiadores precisam
refletir novas prioridades que explicam o processo de interfacear, explorar e, em seguida, com-
preender as fontes históricas de uma forma fundamentalmente digital — ou seja, a herme-
nêutica dos dados.

Essas críticas são fundamentais e apontam para os limites do uso da HDB, mas também
da história digital como um todo. Entretanto, apesar de sua pertinência, elas não devem ser
entendidas como uma barreira intransponível para o uso de ferramentas, fontes e métodos
digitais. Pelo contrário, devem servir como impulso para a reflexão mais aprofundada sobre
seus aspectos teórico-metodológicos. Para tanto, propomos um breve mergulho nas possibi-
lidades oferecidas pelos CAQDAS, por meio da análise da utilização do aplicativo ATLAS.ti na
pesquisa, tratamento, análise e escrita da história e na superação das limitações apontadas.

CAQDAS: o ATLAS.ti e novos caminhos metodológicos


para a história

A pesquisa nas ciências humanas vem, desde a década de 1990, passando por alterações
relacionadas com o uso das tecnologias (Rioufreyt, 2019; Lage, 2011; Wynn, 2009). Nos
últimos anos, parte significativa dessas alterações está associada ao uso de uma classe de

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Eric Brasil e Leonardo Fernandes Nascimento

aplicativos agrupados sob o nome de CAQDAS, acrônimo de língua inglesa para computer
assisted qualitative data analysis, ou análise de dados qualitativos assistida por computador.
Uma vez que o material que será analisado tenha sua origem em dispositivos digitais ou te-
nha sido convertido para o formato digital, é possível efetuarmos, dentro do ambiente digital
desses programas, a totalidade das etapas da pesquisa qualitativa. Existem aplicativos com
diversas funcionalidades e que são capazes de tratar dados nos mais variados formatos, seja
em áudio, texto, vídeo ou imagem.
O ATLAS.ti9 — ao lado do NVivo10 e do MAXQDA11 — é um dos CAQDAS comerciais
de código fechado12 mais antigos disponível no mercado. Comum a todos esses aplicativos
está a possibilidade de analisarmos livros, artigos, entrevistas, músicas, filmes, quadros, fotos,
websites, em suma, praticamente todo e qualquer material de pesquisa e/ou trabalho nos
mais diversos campos ou áreas. Resumidamente, uma vez inseridos documentos digitais no
aplicativo, temos de criar rótulos ou códigos. Em seguida, à medida que vamos analisando
o material — lendo os textos, ouvindo os áudios, assistindo aos vídeos, vendo as imagens
etc. —, devemos ir selecionando os trechos dos documentos relacionados com os rótulos ou
códigos (codes) que foram criados. Como resultado, teremos um conjunto de trechos do do-
cumento (denominados quotations) grifados ou sublinhados segundo as categorias que foram
criadas. Uma metáfora bastante útil é imaginarmos um livro cheio de grifos e anotações nos
cantos das páginas — ou em post-its coloridos —, só que no formato digital.13
As quotations, nas palavras de Konopásek (2007: 283), são as unidades elementares de
análise, não apenas porque seus sentidos estão razoavelmente contidos e, portanto, acessíveis
para nossas mentes e processo mental, mas porque elas também são de um tamanho físico
razoável para serem selecionadas e processadas de um modo material — por olhos, mãos,
listas, boxes, telas de computador. As quotations, por sua vez, estão conectadas aos códigos
(codes), ou representam “as categorizações destes trechos através de processos interpretati-
vos” (Alves e Nascimento, 2018: 243). Ou, em uma definição mais abrangente: “uma palavra
ou frase curta que atribui simbolicamente um atributo que resume, salienta, captura a essência
e/ou evoca uma porção de dados visuais ou baseados na linguagem” (Saldana, 2015: 3).
Uma vez que o(s) material(is) tenha(m) sido lido(s) e codificado(s), ele é capaz de gerar
relatórios com o conteúdo dos documentos (com as quotations), além de redes (networks) —
que são representações gráficas — da estrutura dos códigos (codes), juntamente com os trechos
grifados correspondentes. É possível ainda criar grupos de documentos (por exemplo, todas as
revistas de determinado ano, todas as imagens de um pintor, todos os áudios de um entrevista-
do) e grupos de códigos (por exemplo, códigos para análise de elementos das imagens de jornais

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História digital: reflexões a partir da Hemeroteca Digital Brasileira
e do uso de CAQDAS na reelaboração da pesquisa histórica

carnavalescos do século XIX). Essas duas funcionalidades básicas permitiriam ao historiador ter
uma visualização e uma organização dos documentos de modo inteiramente digital.
No caso específico de documentos textuais, há ainda outra funcionalidade: a possibili-
dade de busca e codificação automatizada de trechos, denominada autocoding. Em outras
palavras, o programa permite fazer buscas por palavras-chave em todo o material em formato
texto (.txt, .doc, .docx, .pdf etc.), desde que os documentos (especialmente os que estão em
formato .pdf) tenham passado por um reconhecimento óptico de caracteres, ou OCR. Uma vez
realizada essa codificação automatizada, é possível, da mesma maneira, produzir um docu-
mento com todos os trechos codificados. Além de “ler” os textos — ou, mais adequadamente,
processar as strings —, o autocoding fornece uma visualização de todas as ocorrências do
termo buscado dentro do contexto do documento.
As possibilidades de análise qualitativa abertas pelo uso do ATLAS.ti potencializam so-
bremaneira a pesquisa realizada na HDB. Com o exponencial aumento, com a abundância das
fontes acessadas e arquivadas digitalmente (Fickers, 2012), o pesquisador encara a urgência
de maior velocidade, maior organização e maior capacidade de recuperar as informações
(Nascimento, 2016: 229). Por exemplo, ao buscarmos nos 204 periódicos cariocas, entre 1910
e 1919, disponíveis na HDB o termo “Flor do Abacate” — título de uma famigerada associa-
ção carnavalesca carioca na primeira metade do século XX —, encontramos 1.272 ocorrên-
cias. Ainda que todas elas sejam armazenadas e minimamente catalogadas pelo pesquisador
— por mais que tenham significados em si, pela maneira fragmentada como foram seleciona-
das e arquivadas e, sobretudo, por conta de seu volume —, pode ser que o enorme potencial
gerado pela prática de pesquisa na HDB seja perdido. O historiador pode “ser afundado em
informações” (Konopásek, 2007: 283).
A codificação das fontes digitais pelo ATLAS.ti permite-nos criar relevância e significação
em um manancial de informações. Isso é fundamental para as pesquisas que têm utilizado
a HDB, pois o volume e a fragmentação dos dados obtidos tornam a análise tradicional,
analógica, limitada e arriscada. É cada vez mais difícil fazer visível o corpo documental. Con-
sequentemente, a análise e a escrita da história tendem a esbarrar em uma interpretação
parcial e fragmentada. Esse problema metodológico afeta diretamente as operações mais
básicas da historiografia: selecionar a fonte, criticá-la — interna e externamente — e inter-
pretá-la. Como afirma Konopásek (2007: 293), pelo ATLAS.ti podemos agir transversalmente,
por exemplo, construindo conexões entre jornais, leis, artigos científicos, imagens, formando
um “texto multivocal”, que expressa fisicamente nosso movimento progressivo do contexto e
sentidos originais para o argumento histórico.

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Eric Brasil e Leonardo Fernandes Nascimento

Considerações finais

O s historiadores têm utilizado tantas ferramentas digitais em tão variadas etapas do pro-
cesso de pesquisa, análise, escrita, assim como na elaboração de cursos, aulas, palestras,
workshops, que talvez a pergunta correta a fazer seja qual história hoje não é digital. Por
isso mesmo, acreditamos na necessidade de um “upgrade” teórico-metodológico entre os
historiadores, tanto na pesquisa quanto na formação de novos pesquisadores e professores de
história, que enfrentarão as salas de aula repletas de estudantes imersos no “mundo virtual”.
Ao longo do artigo, buscamos apresentar as limitações do uso do sistema de busca
da HDB inseridas em reflexões teórico-metodológicas que nos possibilitem utilizar o melhor
dessa ferramenta, atingindo todas as suas potencialidades na transformação epistemológica
do trabalho do historiador. A busca textual em milhões de páginas de periódicos cria o risco
da leitura superficial, parcial, fragmentada. Entretanto, qualquer pesquisa sem rigor metodo-
lógico, mesmo que debruçada diante de um jornal em papel, sempre terá esse mesmo risco.
Desse modo, a ferramenta de busca da HDB oferece-nos os caminhos para superar tais
limitações, visto que podemos não apenas buscar palavras, mas também acessar todo o acer-
vo digitalizado, lê-lo página por página, dia a dia, ano a ano, assim como podemos acessar
os metadados e analisar o escopo do acervo disponível. É possível, portanto, realizar a crítica
heurística da fonte digitalizada, tanto quanto da fonte no suporte material anterior. Mas agora
com novas características, elementos, possibilidades e limitações.
Para ampliar essas possibilidades analíticas, propomos aqui a utilização crítica de ferra-
mentas CAQDAS, em nosso caso o ATLAS.ti, como ferramenta de suporte ao trabalho do his-
toriador, especialmente no cenário da abundância das fontes digitais. Por meio do aplicativo,
podemos minimizar os riscos de uma leitura e interpretação fragmentada e superficial. É pos-
sível recuperar e conectar os dados com velocidade, organização e rigor científico, ao mesmo
tempo que podemos tornar visíveis os argumentos, redes, estruturas conceituais e analíticas.
O conjunto volumoso de fontes digitais que poderia nos soterrar passa a ser controlável e
acessível na tela do computador.
Por fim, é importante encerrar o artigo com a afirmação de que nenhuma dessas fer-
ramentas substitui o trabalho minucioso, dedicado e paciente do historiador. Nem a HDB,
nem o ATLAS.ti substituem a leitura da fonte, a elaboração das perguntas e dos problemas, a
construção conceitual analítica e a erudição e o conhecimento de contextos e bibliografia. As fer-
ramentas potencializam nossas habilidades analíticas, possibilitam que novas perguntas sejam
formuladas, e novas respostas, atingidas. Mas com muito trabalho e rigor diante do computador.

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História digital: reflexões a partir da Hemeroteca Digital Brasileira
e do uso de CAQDAS na reelaboração da pesquisa histórica

Notas

1 Essa e as demais traduções presentes no artigo foram feitas pelos autores.


2 Cf. Almeida (2011), Bello e Vasconcelos (2017), Câmara e Benício (2017), Cavalcanti (2017), Henriques
(2017), Lucchesi (2014), Silva (2017), Soares (2017), Soares et al. (2017), Villa (2015), Worcman e Henriques
(2017).
3 Não podemos desdobrar os detalhes técnicos do OCR, que é um acrônimo para o inglês Optical Character
Recognition. Obviamente, podem ocorrer erros na “busca automatizada” de palavras-chave que dependem
da qualidade do reconhecimento do texto. Atualmente, os algoritmos de OCR, como o Tesseract (cf. <https://
github.com/tesseract-ocr>. Acesso em: 27 jul. 2019) têm espantosa capacidade de acerto. Com o tempo,
muito provavelmente a tendência é que o grau de acerto aumente ainda mais.
4 Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 27 jul. 2019.
5 “[…] a principal e mais fundamental característica do ATLAS.ti é a possibilidade de codificarmos livros,
artigos, entrevistas, músicas, filmes, quadros, fotos, websites, em suma, praticamente todo e qualquer ma-
terial de pesquisa e/ou trabalho nos mais diversos campos ou áreas. Tudo aquilo que fazíamos através de
lápis, canetas coloridas e papel — anotações de leituras, grifos, fichamentos, comentários, insights, etc. […]
agora pode ser realizado dentro deste software” (Alves e Nascimento, 2018: 243). Para mais informações,
cf. Friese (2014).
6 Informações retiradas do site da BN Digital. Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/sobre-a-bndigital/>.
Acesso em: 27 jul. 2019.
7 Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/>. Acesso em: 23 jul. 2019.
8 Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br>. Acesso em: 24 jun. 2019.
9 Disponível em: <https://atlasti.com/>. Acesso em: 22 jun. 2019.
10 “NVivo é um software que suporta métodos qualitativos e variados de pesquisa. Ele é projetado para
ajudar você a organizar, analisar e encontrar informações em dados não estruturados ou qualitativos como:
entrevistas, respostas abertas de pesquisa, artigos, mídia social e conteúdo web.” Disponível em: <http://
www.qsrinternational.com/nvivo-portuguese>. Acesso em: 22 jun. 2019.
11 “MAXQDA é um pacote de softwares líder mundial em pesquisa de métodos mistos e qualitativos. Ele
analisa todos os tipos de dados — de textos a imagens e arquivos de áudio/vídeo, sites, tweets, discussões
em grupos focais, respostas a pesquisas e muito mais.” Disponível em: <https://www.maxqda.com/>. Acesso
em: 22 jun. 2019.
12 O software proprietário de código fechado é um software para computadores licenciado com direitos
exclusivos para o produtor e que não permite aos usuários alterar a estrutura algorítmica do código-fonte
(a linguagem de programação de que é feito o aplicativo). Ou seja, ao usarmos tais aplicativos, ficamos
impossibilitados de consertar os erros e/ou ficamos dependentes de “bugs”, que precisam de novas versões
corrigidas pelos proprietários.
13 Para uma descrição pormenorizada do aplicativo ATLAS.ti e de suas funções, cf. Alves e Nascimento (2018:
241-265).

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 33, nº 69, p. 217-219, Janeiro-Abril 2020 217
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