A Paisagem Da Pesquisa Narrativa
A Paisagem Da Pesquisa Narrativa
A Paisagem Da Pesquisa Narrativa
Este texto surge de um encontro comum nos dias de hoje. O encantamento pelas
idéias da pesquisa narrativa e a dificuldade de trabalhar com os escritos sobre ela com
alunos do Programa de Pós-graduação em Educação Ambiental, da FURG, em razão da
dificuldade da compreensão da língua inglesa enquanto professora de Metodologia de
Pesquisa Qualitativa, fez com que eu pensasse na possibilidade de traduzir o livro seminal
de Pesquisa Narrativa de Clandinin e Connelly ou dele fazer uma síntese para discutir esta
abordagem de pesquisa em sala de aula. Mas traduzir significa ter autorização para, entrar,
de certa forma, no pensamento do autor e daí o primeiro encontro com a Dra. Clandinin que
prontamente respondeu da satisfação de poder contribuir para a compreensão da pesquisa
narrativa. Disso resultou a sugestão de um trabalho conjunto com Dilma, que já tinha
desenvolvido junto à professora algumas pesquisas nesta perspectiva. E assim o texto foi se
delineando e agora se apresenta como síntese do pensamento expresso especialmente na
obra Narrative Inquiry de Jean Clandinin e Michel Connelly.
Fiquei contente quando a Maria do Carmo entrou em contato comigo. Assim, como
ela, meu encantamento pela pesquisa narrativa também criava espaço e vontade de
construir algo a partir do texto de Clandinin e Connelly. Além disso, nossos trabalho em
parceria parecia uma proposta interessante já que eu poderia colaborar com a dificuldade
dela em relação à língua Inglesa, já que sou professora de Inglês e gosto de traduzir, sem
contar que havia vivido uma experiência muito interessante com a profa. Jean Clandinin, na
Universidade de Alberta e estava ansiosa para construir passos mais sólidos no caminho da
pesquisa narrativa. Também me encantava a oportunidade de trabalhar com uma professora
da área de Metodologia de Pesquisa, principalmente tendo em vista que sua atuação volta-
se para a área de Educação Ambiental, com a qual eu não tinha nenhuma familiaridade. O
desconhecido acenava e após trocarmos mensagens de e-mail, decidimos levar nossa
parceria adiante. Quando começamos a trabalhar juntas na construção deste texto, Maria do
Carmo já tinha trilhado um longo caminho, fazendo uma seleção de partes do livro de
Clandinin e Connelly a serem traduzidas e também tinha se aventurado no início de uma
primeira versão de tradução. Desse ponto em diante, iniciamos nosso trabalho juntas,
pensando e repensando a melhor forma de conduzi-lo.
Uma de nossas decisões foi não nos prendermos a uma tradução que apenas
buscasse expor em nossa língua as idéias sobre pesquisa narrativa desenvolvidas por
Clandinin e Connelly. Considerando que estávamos “traduzindo” ou fazendo uma releitura
de seu livro, com base em outras leituras sobre esses autores, decidimos que o texto a ser
construído não seria exatamente uma tradução, uma síntese ou tradução sintetizada, mas
talvez nossa leitura da obra.
E por que nossa intenção em fazer isso? Porque temos percebido na pesquisa
qualitativa a importância da reflexão por parte do pesquisador em relação à sua constituição
enquanto tal. Como veremos, na perspectiva desses autores, a pesquisa narrativa é uma
ferramenta poderosa como provocadora de reflexão. E porque esses e não outros autores
para falar sobre narrativa? Bem, a narrativa é um tema discutido teoricamente com muita
intensidade há muito tempo. Como afirma Hart (2003), narrativa é algo tão antigo quanto as
montanhas. Como veremos, as influências para os autores, cujos princípios serão discutidos
neste texto, vêm principalmente dos pressupostos sobre educação estabelecidos por Dewey
e nossa opção por sua abordagem deriva da importância que Clandinin e Connelly dão às
pesquisas na área de formação de professores. Nossa identificação com esse tipo de
pesquisa se dá porque somos professoras e assim nos motiva estudar a paisagem da sala de
aula, o que como pesquisadoras nos parece importante, imprescindível e também
encantador.
Inicialmente apresentamos as razões dos autores para optar por essa forma de fazer
pesquisa, situamos a pesquisa narrativa fazendo limites com a forma hegemônica de fazer
pesquisa, que eles denominam de narrativa de base tradicional (grand narrativa), e a seguir
procuramos responder a questão que os próprios autores fazem em forma de uma síntese
questionadora: O que o pesquisador narrativo faz?
Por que a narrativa?
Clandinin e Connelly trabalham com a pesquisa narrativa em diversas áreas de
conhecimento, tais como Ciências Sociais e Ciências da Saúde, entre outras, porém a
essência de seus estudos está na área da Educação, em cujo foco está o processo pelo qual
as pessoas ensinam e aprendem, visto a partir, por exemplo, de como questões sobre
temporalidade se relacionam com transformação e aprendizagem e como as instituições
influenciam as vidas de professores.
A opção pela pesquisa narrativa tem sua origem na forma como estes autores
entendem o mundo: o mundo pode ser entendido de forma narrativa e nessa perspectiva faz
sentido também estudar esse mundo de forma narrativa. A vida, segundo eles, é constituída
de fragmentos narrativos, encenados em momentos historiados no tempo e no espaço, que
podem ser entendidos em termos de unidades narrativas. Dentro dessa visão, a experiência
das pessoas se torna o ponto chave no desenvolvimento de estudo na pesquisa narrativa.
Com a compreensão de que a Educação e estudos nessa área são uma forma de experiência,
entendem a narrativa como a melhor forma para representá-la e compreendê-la. Ou seja, os
autores estabelecem que seu objeto de estudo é a experiência, estudada de forma narrativa
porque o pensamento narrativo é uma forma fundamental de experiência e também de
escrever e refletir sobre ela. Assim, a narrativa é considerada como um fenômeno das
Ciências Sociais e também o método pelo qual esse fenômeno é estudado.
Além da experiência, outro ponto central da pesquisa narrativa é a temporalidade.
Essa temporalidade não está apenas relacionada com o fato de que uma experiência ocorre
em um determinado tempo e espaço, mas também tendo em vista que a vida é vivida em
um contínuo. Ou seja, o que se pode dizer sobre a experiência de um indivíduo precisa estar
relacionado com o contexto mais amplo em que esse indivíduo vive e também considerar
que o significado dessa experiência pode mudar com o tempo.
Como se pode notar, essa visão de experiência aponta o autor que mais
influenciou/influencia os estudos de Clandinin e Connely, Jonh Dewey. Porém, na obra que
estamos usando como referência para elaborar a síntese do pensamento de Jean Clandinin e
Michel Connelly, os mesmos apontam como fundamentais para o desenvolvimento da
pesquisa narrativa como eles a formularam as colaborações advindas dos estudos de
Jonhson e Lakoff e MacIntyre, Geertz, Bateson, Polkinghorne, Coles e Czarniawska.
Em relação a Jonh Dewey destacam que a pesquisa narrativa tem como base os
conceitos de experiência, tanto social quanto individual, e é o critério de continuidade que a
define. Assim, ao considerar uma história, entendem que essa ocorre em um contínuo,
sempre sendo transformada e transformando e, portanto, é necessário olhá-la em termos de
passado (movimento para trás) e futuro (movimento para frente), além de compor
significados em termos pessoais (movimento para dentro) e sociais (movimento para fora)
pensando simultaneamente sobre o passado, o presente e o futuro.
De Mark Jonhson trazem a idéia da metáfora e de Alasdair MacIntyre a idéia da
unidade narrativa, considerando a narrativa tanto como fenômeno quanto como método de
estudo. O conhecimento de professores e as formas de ensinar são vistos como expressões
de histórias individuais e sociais incorporadas. Quando em pesquisas com professores é
narrativamente que se relacionam com eles e assim criam textos de campo e escrevem
relatos de vidas educacionais.
A idéia de transformação trazem de Clifford Geertz. Mudança no mundo, mudança
na pesquisa, mudança no pesquisador, mudança de pontos de vista. Desse autor assumem a
idéia de que o necessário e importante para fazer pesquisa narrativa não são os fatos obtidos
por meio de coleta de dados de campo, nos quais não se considera a influência interferência
das visões pessoais do pesquisador que tenta se por de forma mais objetiva possível. Em
sentido contrário, pensam que é fundamental que o pesquisador, como um narrador, esteja
incluído como participante nas histórias relatadas e interpretadas. A produção de
significados na pesquisa pode vir tanto de dados formais, como também (e talvez
preferencialmente) daqueles advindos de conversas informais, histórias e relatos ou mesmo
parábolas e fábulas utilizadas pelos participantes para relatarem suas experiências de vida.
Mary Catherine Bateson contribui a partir da idéia de aprendizagem, improvisação e
continuidade. Improvisação como respostas às incertezas da vida e continuidade porque
aprender é um empreendimento humano. No pensamento de Bateson, mudança e
continuidade estão sempre juntas e a improvisação e a adaptação à mudança permitem que
o passado seja considerado, assim como sua relação de continuidade com o futuro. Para
Bateson e Geertz, a ênfase está na transformação, no entanto, Geertz se atém às
transformações em termos do fenômeno estudado enquanto que Bateson tem como foco a
forma como as pessoas compreendem as transformações do mundo à sua volta. Com base
nesse pensamento de Bateson, Clandinin e Connelly incorporaram aos estudos na pesquisa
narrativa a importância da atitude do pesquisador para com os participantes, uma atitude
que busca promover a aprendizagem sobre o fenômeno estudado. Bateson também ofereceu
uma perspectiva sobre como podem ser os escritos de pesquisadores narrativos. O que nós
escrevemos em uma pesquisa narrativa é sempre uma tentativa, um trabalho em
desenvolvimento, sempre aberto a revisões e modificações. Uma outra contribuição em
relação ao trabalho de Bateson é o cuidado e o desafio que significa ouvir o outro e as
histórias que contam.
Geertz ofereceu a metáfora de uma parada/desfile e seu modo de capturar a
mudança ao longo do tempo. Para este autor é preciso prestar atenção ao modo como cada
indivíduo está posicionado nesta parada/desfile. Nós sabemos o que sabemos em razão do
lugar que ocupamos nesta parada/desfile, sem deixar de considerar que ele muda
continuamente e assim, nossas posições relativas também mudam.
Outra autora cujo estudo colaborou para a construção dos pressupostos da pesquisa
narrativa é Bárbara Czarniawska. Em sua forma de entender, a narrativa está em um plano
heurístico, é uma metáfora útil para compreender as organizações. Nessa perspectiva, o
pesquisador é como um crítico literário, prestando atenção à realidade, neste caso, a
realidade da vida nas organizações, onde o romancista está livre de seus limites. Para esta
autora não há diferença clara entre fato e ficção.
Donald Polkinghorne contribui trazendo para a pesquisa narrativa outros campos
teóricos, especialmente a história, teoria literária e algumas perspectivas da psicologia. Sua
teoria está baseada no que os práticos fazem. Para este autor a narrativa pode ser de dois
tipos: descritiva e explanatória. Na narrativa descritiva a idéia está em descrever
detalhadamente os relatos que indivíduos e grupos usam para fazer seqüências de eventos
em suas vidas ou organizações que tenham sentido. Na narrativa exploratória, o interesse
está em contar as conexões entre eventos em um sentido causal.
Assim, Czarniawska e Polkinghorne oferecem a possibilidade de trazer as teorias e
as metáforas de outros campos teóricos para dentro da narrativa enquanto Robert Coles, um
psiquiatra, tem seu trabalho como fonte de inspiração tanto pelo enfoque nas experiências
pessoais quanto pela importância em ouvir seus pacientes.
Em síntese, algumas características para delinear uma espécie de conceito de
trabalho são: a pesquisa narrativa é um modo de compreender a experiência. Ela é uma
colaboração entre pesquisadores e participantes, ao longo de um período, em um lugar ou
em uma série de lugares, em uma interação social considerando o contexto à sua volta. Um
pesquisador entra nesta matriz se pondo no meio/no limiar desses caminhos e progride com
o mesmo espírito, concluindo a pesquisa ainda como no meio desse viver, contar, reviver e
recontar, as histórias das experiências que dão sentido à vida de pessoas e instituições. A
pesquisa narrativa é histórias vividas e contadas.
Pensar narrativamente
Para tentar delinear as fronteiras da pesquisa narrativa, os autores tomam dois
critérios de experiência vindos de Dewey: continuidade e interação. Esses critérios são
identificados a partir de suas experiências em se constituírem pesquisadores tendo como
ponto de referência também os pressupostos estabelecidos pelos paradigmas de pesquisa
tradicionais, que denominam Grand narrativa.. Nesse sentido eles entendem que algumas
tensões podem ocorrer em termos do critério de continuidade, seriam elas relacionadas com
os seguintes aspectos: a temporalidade, as pessoas, as ações e a certeza. As tensões no
campo das interações estão no contexto, nas pessoas, nas ações e na certeza.
Pessoas: Outra das tensões está em entender qual o lugar das pessoas em uma
pesquisa. Na pesquisa formalista, as pessoas, quando identificadas, são consideradas
sujeitos de pesquisa, como se fossem um exemplar de uma forma, uma teoria, uma
categoria social. Na pesquisa narrativa as pessoas são vistas de forma holística como
constituidores de histórias vividas pelas quais também se constituem. O pesquisador
narrativo reconhece que seus participantes de pesquisa são pessoas que pertencem a uma
raça, uma classe ou um gênero, porém têm como foco de pesquisa a pessoa e sua
experiência pessoal ao invés de considerá-la como representante de uma categoria.
Voz
Em um sentido amplo, voz pode ser pensada como pertencendo aos participantes, ao
pesquisador ou outros participantes ou pesquisadores de quem o texto fala. Um dos dilemas
em compor textos de campo pode ser ilustrado pela analogia “viver no fio da navalha”, ao
se tentar manter o equilíbrio entre dar voz aos participantes e a si mesmo (o pesquisador) e
ao mesmo tempo tentar criar um texto de pesquisa que fala para e reflete as vozes da
audiência. O pesquisador está sempre falando parcialmente despido e precisa estar
genuinamente aberto às críticas legítimas de seus participantes e de sua audiência.
Além dos aspectos levantados, um ponto chave é a multiplicidade de vozes de
ambos, participantes e pesquisadores. Não se pode encarar os participantes como univocais,
não moldados por uma estrutura teórica ou um modo de comportamento que os deixaria
como se fossem unidimensionais. Quando o pesquisador procura capturar essa
multiplicidade de vozes dos participantes e dele próprio, precisa considerar não só as vozes
ouvidas, mas também as vozes silenciadas. É preciso atentar para o fato de que ao optar por
uma forma de construção do texto de pesquisa pode estar obscurecendo ou silenciando
aspectos importantes da voz dos participantes.. Como pesquisador precisa lutar para ter as
múltiplas vozes expressas em seu texto de pesquisa. O silêncio, tanto o escolhido como
aquele sobre o qual ainda não tem consciência, também é considerado uma voz em seus
textos de pesquisa.
Autoria
Voz e autoria estão intimamente conectadas no processo de escrita ao transformar
textos de campo em texto de pesquisa. Estar presente de forma especial no texto
distingue/caracteriza cada pesquisador como escritor que constitui a autoria de sua própria
pesquisa. Há, no entanto um dilema a ser enfrentado: saber como deve ser essa assinatura
ou autoria. Ao se estar muito presente no texto, corre-se o risco de obscurecer a experiência
de campo e seus participantes; por outro lado, com muita sutileza ou discrição corre-se o
risco de parecer que o pesquisador fala somente do ponto de vista de seus participantes.
Os riscos da autoria muito marcada são bem conhecidos na literatura e são
entendidos como abuso de subjetividade. De outro lado, a ausência do autor também é
preocupante. Um exemplo disso é quando são as teorias e outros textos que assinam o texto
de pesquisa, ou quando são os participantes a fazê-lo. Essas duas formas de assinatura
precisam ser evitadas. Ao ganhar voz e autoria, o pesquisador coloca sua marca na pesquisa
e seu texto ganha um determinado ritmo, cadência e expressão, que caracterizam sua
autoria, permitindo identificá-lo como seu ou de um conjunto de colaboradores. Tudo isso
cria/expressa também a identidade do autor.
No entanto, é necessário também considerar a relevância da assinatura dos
participantes no texto de pesquisa. A autoria é comumente pensada como sendo do
pesquisador, mas pode também se referir aos participantes. Quando na pesquisa narrativa
retorna-se aos participantes para mostrar a eles o texto de pesquisa, isso não é feito apenas
para que eles digam se o que foi construído é certo ou errado, mas sim para que tenham a
oportunidade ver se os textos de pesquisa os retratam da forma como desejariam ser
retratados e mesmo para ver se conseguem se reconhecer no texto construído A isso os
autores chamam de autoria participante.
Audiência
A audiência é normalmente esquecida pelos pesquisadores enquanto em campo de
pesquisa, mas aparece fortemente no momento de começar a escrever os textos de pesquisa.
Escrever com um sentido de compartilhamento entre os significados atribuídos pelo
pesquisador e pelos participantes é importante, mas não suficiente. O compromisso com a
audiência precisa estar presente enquanto o pesquisador escreve seus textos de pesquisa. É
desculpável julgar mal uma audiência e por isso escrever um texto que não seja relevante
ou compreensível para a mesma, mas não há desculpas quando se conhece para quem se
escreve e o que é relevante para essa audiência.
Como se pode notar, considerar a audiência, cria uma outra tensão, um outro
conflito. Algumas vezes, para atender a forma desejada pela audiência, os pesquisadores
seguem caminhos que o fazem sentir-se como se estivessem quebrando a confiança de seus
participantes. Aspectos sobre momentos compartilhados e segredos e o desejo de colocá-los
no texto de pesquisa também criam situações delicadas. A luta vivida pelo pesquisador está
no tentar respeitar as relações de trabalho com os participantes, dar um lugar para suas
vozes e autoria, que pode levar a conflitos com a audiência.
Tensões entre voz, autoria e audiência
A primeira audiência quase sempre é os próprios participantes de pesquisa. Depois
disso, quase toda a audiência está sempre na imaginação do pesquisador e em aspectos
externos à pesquisa. Textos frios, despersonalizados, sem autoria e sem voz estão presentes
na pesquisa nas Ciências Sociais e, mesmo atualmente, são considerados como bons ou
mesmo ideais no espaço da academia. Em textos construídos dessa forma o pesquisador é
“o pesquisador” e não um “eu” e os participantes são os “sujeitos” sem voz e sem nome. O
outro extremo é, também, inapropriado, pois o texto é escrito de modo a mostrar uma
fraterna intimidade entre pesquisador e participantes, causando no leitor uma sensação de
embaraço e intromissão, o que não constitui um bom texto de pesquisa narrativa.
Infelizmente, essa caricatura dos textos de pesquisa narrativa tem sido freqüentemente
criticada. Uma carga de solipsismo tem sido atribuída ao trabalho narrativo, e em algumas
vezes a crítica tem sido justa. O pesquisador precisa balancear autoria, voz e audiência. Em
alguns capítulos pode sobressair um dos aspectos, em outra parte da pesquisa outra, mas o
pesquisador precisa estar atento a isso.
Outra tensão presente ao serem escritos os textos de pesquisa está em escolher uma
forma de escrevê-los e pode ser sugestão escrever na forma que o pesquisador gosta de ler,
mas isso não diminui a tensão sempre existente entre voz, autoria e audiência. Além disso,
há também a tensão entre o pessoal – o que parece estar adequado com a experiência vivida
pelo pesquisador e os participantes, e o social – o que parece estar adequado aos diálogos
estabelecidos na pesquisa.
O que foi até aqui relatado é ainda parte do problema. Não é possível esquecer
alguns aspectos da audiência, como por exemplo, para quê revista pode ser encaminhado
um artigo da pesquisa e nesse sentido, é preciso pensar se a linguagem está adequada para
aquela determinada revista. É ao negociar estas tensões que aparecem as questões de forma.
Formato da narrativa
O formato da narrativa precisa ser imaginado pelo pesquisador. Em algumas vezes é
possível imaginar um formato específico, como pode ser exemplo, um documento que
tenhas as marcas de um texto de ficção. Outras vezes, o pesquisador tem uma vaga noção
de qual vai ser o estilo de sua dissertação. É possível imaginar capítulos ou somente pensar
em algumas das partes da dissertação, mas pensar sobre a forma de apresentação do texto
de pesquisa é uma das questões centrais na pesquisa narrativa. No entanto, é também
importante perceber que os textos vão naturalmente ganhando forma na medida que vão
sendo escritos, e muitas vezes não ficam claramente definidos antes de seu final, pois
enquanto o trabalho avança, os textos vão sendo modificados/transformadoss. A escrita
também vai mudando do início ao texto final.
Encontrar o formato para os textos de pesquisa é um processo de tentativas, erros e
acertos, insatisfações, um momento experimental. Alguns gêneros, como a literatura,
poesia, drama ou outros modos de expressão podem ser tentados e essas formas já têm sido
aceitas na pesquisa científica como uma possibilidade de apresentação dos resultados de
pesquisa. Mas ao escrever os textos de pesquisa, é preciso estar atento às tensões de
escrever dentro do espaço tridimensional de pesquisa narrativa.
Embora na literatura haja muitas estruturas – por exemplo, narrativa, descrição e
argumentos ou descrição, análise e interpretação – nenhum reflete a experiência dos autores
do que está envolvido em encontrar um formato para o texto de pesquisa narrativa e, para
melhor explicar. Clandinin e Connely utilizam a metáfora da sopa, da qual diferentes e
infinitos ingredientes podem fazer parte. Assim como podem ser diferentes os ingredientes
de uma sopa, também podem ser as partes de um texto de pesquisa narrativa. Partes da
pesquisa podem conter densos textos descritivos dos lugares, das pessoas e coisas; outras
partes podem ser de argumentos construídos cuidadosamente para defender compreensões
de relações entre pessoas, lugares e coisas e outras partes ainda podem ser tecidas como
narrativas de pessoas, tempo, cenas em um determinado lugar. Em síntese, um texto
narrativo precisa conter descrição, narrativa e argumentos. Sem algum desses ingredientes
não é um texto de pesquisa narrativa.
A metáfora da sopa faz pensar, também, sobre o recipiente na qual a mesma é
colocada. Em termos de texto de pesquisa, é preciso atentar para a forma estabelecida em
alguns locais para os quais vai ser encaminhada a pesquisa para publicação. Uma
determinada universidade, uma determinada revista podem ter recipientes diferentes dos
textos de pesquisa construídos. Mas, ao imaginar que os limites da pesquisa narrativa estão
nos pesquisadores, não é possível pensar em um formato único. Sempre que se escreve e se
trabalha sobre um texto há a possibilidade de que ele se torne outro, pois um texto
inevitavelmente é sempre uma etapa, uma versão, um texto que pode resultar em outras
pesquisas e, também, em outros textos de campo.
Como exposto por Clandinin e Connelly, encontrar formas diversas, diferentes e
criativas de escrever o texto de pesquisa narrativa pode ser importante. Os autores sugerem
que se busquem essas formas a partir da leitura de outras dissertações narrativas, de livros e
também buscando imagens ou metáforas que ajudem a pensar sobre a organização do
trabalho. No entanto, os pesquisadores que optarem por usar metáforas precisam ter alguns
cuidados, pois apesar da certeza de que a metáfora promova um certo tipo de liberdade por
parte do pesquisador que abre caminhos para busca da forma desejada, há alguns riscos.
Algumas vezes o pesquisador pode selecionar uma metáfora e ficar tão preso a ela que os
textos parecem artificiais e quando isso acontece a dissertação perde em termos de
construção de significados. No entanto, apesar do risco, as metáforas podem auxiliar na
criação do formato narrativo. Outra forma de encontrar sugestões para o formato da
narrativa a ser escrita é procurar e prestar atenção ao tipo de leitura que agrada ao
pesquisador. Assim ficção, jornais, diálogos e cartas podem se transformar em material que
sugerem formas de compor o texto de pesquisa.
Há que se ressaltar, no entanto, que uma pesquisa não se torna pesquisa narrativa
apenas por sua forma. A pesquisa narrativa caracteriza-se por uma postura historiada de ver
e compreender o mundo e as pessoas e essa postura precisa estar presente desde o início do
planejamento da pesquisa, mesmo antes de ir a campo, todos os aspectos aqui discutidos
precisam estar presentes.
Referências
CLANDININ, J.D; CONNELLY, M. Narrative Inquiry. San Francisco: Jossey-Bass
Publishers, 2000.