Fernando Pessoa-Ricardo Reis e O Ano Da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago

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Fernando Pessoa-Ricardo Reis e

O ano da morte de Ricardo Reis,


de José Saramago
Maurizio Perugi
Université de Genève (Suíça)

V amos iniciar a nossa análise do romance de Saramago com a


leitura do episódio que começa na p. 292, por ali se encontrarem
todos os principais elementos que constituem o núcleo
temático gerador da história, a saber:
a) The god of the labyrinth, título fictício do romance policial que Ricardo Reis,
regressando do Brasil, levou consigo na hora de desembarcar do navio;
b) a conhecida ode ricardiana Os jogadores de xadrez (é o poema n. 74
na edição crítica de Luís Fagundes Duarte);
c) um artigo do Diário de Notícias, em que Ricardo Reis lê a crônica da
conquista de Addis Abeba pelo exército italiano, em 1935. Acontece
que, ao ler uma frase desta crónica, o protagonista tem um sobressalto
(os itálicos são nossos):

Addis-Abeba está em chamas, as ruas cobertas de mortos, os


salteadores arrombam as casas, violam, saqueiam, degolam mulheres
e crianças, enquanto as tropas de Badoglio se aproximam, Addis-Abeba
está em chamas, ardiam casas, saqueadas eram as arcas e as
paredes, violadas as mulheres eram postas contra os muros caídos,
trespassadas de lanças as crianças eram sangue na rua.

De repente, Ricardo Reis apercebe-se do facto que a passagem


grifada não se encontra no artigo do jornal: o Diário de Notícias não fala
de mulheres postas contra os muros caídos nem de crianças trespassadas
de lanças, em Addis-Abeba não consta que estivessem jogadores de xadrez
jogando o jogo de xadrez. Em realidade, estas palavras correspondem aos

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Fernando Pessoa-Ricardo Reis e O ano ... MaurizioPerugi – p.45-61.

v. 15-20 da ode acima mencionada, aos quais vêm ajuntar-se, ademais, os


v. 23-24, com a menção dos jogadores de xadrez. Trata-se, evidentemente,
de uma imagem surgida na memória do próprio autor da ode:1 Uma sombra
passa na fronte alheada e imprecisa de Ricardo Reis, que é isto, donde
veio a intromissão. Tanto mais que a sombra alude, também, a outra
passagem do mesmo poema (v. 31-33, “Inda que, no momento que o
pensavam, /Uma sombra ligeira/Lhe passasse na fronte alheada e vaga”).
Na hora de estar a rememorar versos de que ele próprio é o autor,
Ricardo Reis não chega, contudo, a dar-se conta disso. A primeira associação
de idéias faz-se, na sua mente, com The god of the labyrinth, pois este romance
fictício começa com a descrição de um corpo que está alongado sobre o
tabuleiro. Só momentos depois é que abre uma das suas gavetas, e retira a
pasta que contém as odes manuscritas. Ricardo Reis folheia a maça de papéis,
percorrendo os incipit, até encontrar o poema de que está à procura:
[...] aqui está, Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia, esta é a página,
não outra, este o xadrez, e nós os jogadores, eu Ricardo Reis, tu leitor
meu, ardem casas, saqueadas são as casas e as paredes, mas quando
o rei de marfim está em perigo, que importa a carne e o osso das irmãs
e das mães e das crianças [=v.37-39], se carne e osso nosso em penedo
convertido,2 mudado em jogador, e de xadrez. Addis-Abeba quer dizer
Nova Flor, o resto já foi dito (p. 302).

A explicação etimológica do topónimo retoma, com técnica circular,


o início do episódio (p. 292): “Addis-Abeba, ó linguístico donaire, ó
poéticos povos, quer dizer Nova Flor. Addis-Abeba está em chamas”, etc.
Nestas páginas encontram-se, como dissemos, os três elementos
narratológicos essenciais, que estão na base do romance: o símbolo meio-
psicanalítico, meio-policial do labirinto; a leitura do jornal, que aparece em
repetidos episódios, como instrumento de documentação e reflexão histórica,
por parte de uma personagem que, de certa forma, acaba de voltar à vida
vivida, e isto poucos meses antes de deixá-la para sempre; finalmente, a
mentalidade apolítica, ou melhor, anti-política, do protagonista, que se
exprime com clareza inusual na ode dos jogadores de xadrez.

1
Note-se, entretanto, que já na p. 134 Ricardo Reis “viu jogar uma partida de
xadrez, ganharam as brancas”.
2
Citação de Os lusíadas, episódio de Adamastor, V, 59,1-2. Pela primeira menção
da estátua do Adamastor, cf. p.176-177.

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II
“Um barco escuro sobe o fluxo soturno”: é o Highland Brigade, que
traz de novo, e desta vez definitivamente, Ricardo Reis do Brasil para
Lisboa. O adjectivo soturno, muito frequente nos poemas do heterónimo
ricardiano, vai ser repercutido outras vezes ao longo do romance.3
Ao descer ao cais de Alcântara, Ricardo Reis, por engano ou
deslembrança, leva consigo um livro da biblioteca do navio, The god of
the labyrinth, do autor irlandês Herbert Quain: 4 o “deus labiríntico”
revela-se afinal “um simples romance policial” (p. 23), um “labirinto
doméstico” (p. 239), em que se fala de dois jogadores de xadrez (p.162,
233). Lisboa, sob a chuva, parece uma “entrada para o labirinto” (p. 17).
E a estátua de Camões, descrita pela primeira vez na p. 60, também
pertence à esfera do labirinto: “chegou ao Camões, era como se estivesse
dentro de um labirinto que o conduzisse sempre ao mesmo lugar, a este
bronze afidalgado e espadachim, espécie de D’Artagnan”. O romance,
aliás, principia e acaba com alusões ao poema camoniano (“Onde a terra
se acaba e o mar começa”; “Aqui o mar acaba e a terra principia… Aqui,
onde o mar se acabou e a terra espera”).5
O labirinto é um dos arquétipos literários que mais relação têm com
o barroco,6 e o mesmo se pode dizer do símbolo do espelho, que Saramago
utiliza aqui com regularidade metódica. Quanto ao hotel Bragança, com
a sua “porta dupla de painéis de vidro, monogramados com um H e um
B entrelaçados” (p. 24), trata-se de um “lugar neutro, sem compromisso,
de trânsito e vida suspensa” (p. 21);7 um limbo susceptível de se confundir
com um lugar simbólico frequente no universo pessoano: “O hotel está

3
Cf. p. 101: “Quando Ricardo Reis entrar na sala verá somente algumas pessoas
soturnas”; p. 214: “e ambos eram soturnos como insectos” (os dois velhos);
p. 255: “manhã...um pouco soturna”.
4
Pronuncia-se quem, e pode ser comparado com o nome do heterónimo Charles
Robert Anon (ou seja, “Anonymous”).
5
Cf. SILVA, 1989.
6
Cf. SANTARCANGELI, 1967; KERN, 1995; SCHMELING, 1987; BORGES, 1966
e 1990; GARCÍA MÁRQUEZ, 1994.
7
Também aponta para este passo MEDEIROS, 1998, p.1067.

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em grande silêncio, é o palácio da Bela Adormecida, donde já a Bela se


retirou ou nunca esteve” (p. 47). Depois de ter Ricardo Reis alugado uma
casa, no Alto de Santa Catarina,8 o hotel torna-se “o paraíso perdido” (p. 217):
as reflexões, algo triviais, que o narrador logo desenvolve em torno de
Adão e Eva, 9 perseguem, é claro, um objectivo de demistificação.10
Advirta-se, contudo, que estamos perante um erro histórico: o Hotel
Bragança já não existia em 1915,11 ano em que se instalaram naquele
edifício os escritórios das Companhias Reunidas Gás e Electricidade. A
chuva, que cai sobre Lisboa sem parar, parece um “grande dilúvio”
(p.44).12 O motivo insistente da chuva impregna, aliás, a maior parte dos
capítulos do romance. Ao primeiro episódio de leitura do jornal, p. 28-30,
associa-se a menção da cadela Ugolina, monstruosa presença na qual,
apesar do nome dantesco, temos que reconhecer uma personagem da
Demanda do Graal. Retomada mais uma vez na p. 60, logo desaparece,
sua função canibálica ficando direitamente atribuída a Salazar.
A incorporação sistemática, no romance, de artigos de jornais não
funciona apenas como suporte histórico da narração. Como dissemos, este
recurso também serve a conferir ao protagonista uma consistência social
que ele nunca antes possuira; só agora Ricardo Reis está a perceber este
défice de realidade, o que explica a sua tentativa, algo semiconsciente,
de fixar e prolongar, de qualquer maneira, a sua improvável existência
fictícia de heterónimo órfão do referente principal (p. 83-84):

8
Onde está a estátua do Adamastor: cf. acima, a nota 2.
9
“The humour becomes rumbustious, not to say risqué […], and there is a hint
of playful irreverence when he retells the story of Adam and Eve” (PONTIERO,
1994, p. 145).
10
Veja-se, como exemplo desta intermitente falta de bom gosto, o trocadilho
sobre o nome do heterónimo, o bolo-rei e o Dia do Reis (p. 71).
11
O Hotel situava-se na rua do Ferragial de Cima, hoje rua Vítor Córdon, n. 45.
12
“Embora Saramago nunca o afirme directamente, a visão de Lisboa que ele
apresenta é muito semelhante à morte. A cidade está quase sempre debaixo de
uma chuva persistente e de uma atmosfera cinzenta, desde que Ricardo Reis
desembarca até ao fim, com pequenos intervalos de desanuviamento”
(MEDEIROS, 1998, p. 1067).

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Minuciosamente, lia os jornais para encontrar guias, fios, traços de um


desenho, feições do rosto português, não para delinear um retrato do
país [o que é a função do narrador], mas para revestir o seu próprio rosto
e retrato de uma nova substância, poder levar as mãos à cara e reconhecer-
se, pôr uma mão sobre a outra e apertá-las, Sou eu e estou aqui.

Não por acaso, à medida que a morte se aproxima, Ricardo Reis


sente crescer em si o impulso de tocar com as próprias mãos os traços da
sua cada vez mais precária identidade:
e de manhã não conseguiria levantar-se se com as suas próprias mãos
não se identificasse, linha por linha, o que de si ainda é possível achar,
como uma impressão digital deformada por uma cicatriz larga e
profunda (p. 349-350).

III
“Saramago aproveita uma brecha deixada por Pessoa naquele jogo
das biografias” (Sílvio Elia). No plano meramente documentário, o Ricardo
Reis do romance corresponde perfeitamente à sua própria biografia, tal
como se encontra esboçada em páginas famosas do ortónimo. A partir do
capítulo inicial, a personagem vem constituindo-se pouco a pouco, na
sequência de uma dispersão sapiente de informações: a descrição física,
p. 15 (“seco de carnes, grisalho, e moreno, e de cara rapada”);13 a sua
origem, p. 42 (“no Porto, onde sabemos que nasceu”); o seu sotaque
brasileiro, p.17 (“pelo sotaque pensei que fosse brasileiro, diz o motorista;
Há dezasseis anos que não vinha a Portugal”),14 e p. 25 (“pela pronúncia
já se tinha visto que o hóspede viveu no Brasil”); enfim, os dados
pessoais declarados no livro das entradas, p.20: “parece o princípio duma
confissão, duma autobiografia íntima, tudo o que é oculto se contém
nesta linha manuscrita, agora o problema é descobrir o resto, apenas”.
Nesta última frase, que tem um forte valor metalinguístico, o narrador
aponta para seu alvo principal, isto é, a tentativa de decifrar o mistério
humano do protagonista (há mistério neste homem).

13
Cf. p. 211, “aquele homem moreno, de gabardina clara”.
14
Isto dos dezasseis anos é um pormenor que funciona como um Leitmotiv ao
longo do romance.

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Em paralelo com os dados físicos, esboça-se gradativamente o


retrato moral: o porte compassado, rígido, “sempre seguiu as suas regras
de comportamento, a sua disciplina […], o gume rigoroso dos modos e
das odes, ao ponto de se poder afirmar que sempre procura estar como
se sempre o estivessem observando os deuses” (p. 48); o fastio para com
os aspectos mais prosaicos da humanidade (“aborrece os odores nocturnos,
aquelas expansões do corpo a que nem poetas escapam”, p. 56); uma
tendência marcada a utilizar os recursos algo hipócritas que regram os
contactos com o próximo (“há pessoas que têm uma coragem gelatinosa,
não têm culpa disso, nasceram assim”, p. 201). Às vezes, o narrador serve-
se do fantasma de Fernando Pessoa 15 para estigmatizar os defeitos
humanos do heterónimo: “Você, Ricardo, nunca foi irónico”, p. 268; “Você
não é seminarista”, p. 274. As ideias monárquicas de Ricardo Reis,
motivo, outrora, do seu autoexílio para o Brasil, acabam por se
manifestarem na conversa com o notário Sampaio (p. 133): e antes da
sobremesa já tinha declarado não acreditar em democracias e aborrecer
de morte o socialismo. Está com a sua gente, disse risonho o doutor
Sampaio. Há, contudo, momentos em que Saramago se defronta com a
possibilidade de ser Ricardo Reis um indivíduo diferente do que as suas
atitudes sugerem: melindre aristocrata de quem não tem sangue azul,
diríamos nós, mas não é disso que se trata, apenas uma questão de
sensibilidade e pudor, para Ricardo Reis tais aplausos são, no mínimo,
indecentes, p. 105; contradição inesperada em homem que se diz tão
despegado do mundo, afinal ansioso porque o mundo o atropele, p.151.
No último capítulo, até se alude a uma possível “redenção” política (p. 397):
“É uma locura, mas é a própria voz que desmente as palavras, há nela um
tom que parece de esperança, foi ilusão nossa, seria absurdo, não sendo
esperança sua.” Repercutindo um lugar comum da crítica pessoana,
Saramago atribui a algumas prostitutas da rua a observação que as
mulheres, Ricardo Reis conhece-as de ouvir contar. O sujeito é tratado a
fundo nas p. 289-290:
Então Ricardo Reis explicaria, para prevenir eventuais ciúmes, que
aquelas mulheres de quem Marcenda irá ouvir falar não são mulheres
verdadeiras, mas abstracções líricas, pretexto, inventado interlocutor,

15
Sobre a maneira com que a dimensão fantástica é tratada neste romance, cf.
AMARAL, 1997.

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se é que merece este nome de interlocutor alguém a quem não foi


dada voz, às musas não se pede que falem, apenas que sejam, Neera,
Lídia, Cloe, veja lá o que são coincidências, eu há tantos anos a escrever
poesias para uma Lídia desconhecida, incorpórea, e vim encontrar
num hotel uma criada com esse nome, só o nome, que no resto não
se parecem nada.

A tarefa do narrador é dupla, pois também se prende no uso dos


nomes. O mesmo protagonista reflecte (p. 369) “à vaguidade dessas
curiosas palavras que são os nomes, as mais vazias de todas se não lhe
metermos dentro um ser humano”. E já no primeiro encontro o problema
é posto da inadequação do nome de Lídia à condição social dela (p. 55):
O pequeno almoço do senhor doutor, foi ensinada a dizer assim, e,
embora mulher nascida do povo, tão inteligente é que não esqueceu
até hoje. Se esta Lídia não fosse criada, e competente, poderia ser, pela
amostra, não menos excelente funâmbula, malabarista ou
prestigidadora, génio adequado tem ela para a profissão, o que é
incongruente, sendo criada, é chamar-se Lídia, e não Maria.

À origem fictícia, horaciana, de Lídia, já se alude de forma implícita,


e até poderiamos dizer alegórica, quando da sua primeira aparição (p. 46):
“Lídia, diz, e sorri. Sorrindo vai buscar à gaveta os seus poemas, as suas
odes sáficas, lê alguns versos apanhados no passar da folha”: seguem-se
seis incipit, cada um dos quais contém aquele nome, que Ricardo Reis
acaba de repetir num sussurro. Mas ainda mais significativa, no plano
metalinguístico, é a reflexão que acompanha a entrada de Lídia no quarto
do senhor doutor (p. 45):
e quando a criada abriu, mal a olhando, disse, A janela estava aberta,
não dei por que a chuva entrasse, está o chão todo molhado, e calou-
se repentinamente ao notar que formara, de enfiada, três versos de
sete sílabas, redondilha maior, ele, Ricardo Reis, autor de odes ditas
sáficas ou alcaicas, afinal saiu-nos poeta popular, per pouco não
rematou a quadra, quebrando-lhe o pé por necessidade da métrica,
e a gramática, assim, Agradecia limpasse, porém o entendeu sem mais
poesia a criada, que saiu e voltou com esfregão e balde.

A tendência, congénita à prosa, de por vezes gerar sequências


conformes aos ritmos poéticos, foi muitas vezes objecto de reflexão na
literatura européia do século XIX. O próprio romance nacional da
literatura italiana, I promessi sposi, começa por um novenário (“Quel ramo

51
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del lago di Como”). E Álvaro de Campos, em fragmentos de prosa finalmente


recolhidos e publicados por Teresa Sobral Cunha, debate, a par dos
poetas franceses e italianos do fim-do-século, a questão da proximidade
primordial entre prosa e poesia, ambas originadas a partir do ritmo. Em
nosso caso, as observações métricas sobre o diálogo entre Ricardo Reis
e a criada, por um lado aludem, de forma algo irónica, a uma espécie de
deformação profissional do protagonista; por outro lado, elas constituem
uma maneira discreta de apontar para a origem eminentemente literária
da personagem de Lídia, protagonista de odes requintadas, que se
inspiram de perto no modelo horaciano. Como bom intelectual
antiburguês que é, Saramago não gosta da métrica neoclássica. Veja-se,
p. 68, a comparação entre Camões, versificador fácil, e Ricardo Reis, que
só faz versos “com grande esforço, penando sobre o pé e a medida”. Mais
adiante, diz que Ricardo Reis arruma as vestes “como se estivesse
ordenando uma ode sáfica, laboriosamente lutando com a métrica
relutante”, p. 215.
De qualquer forma, a oposição implícita entre poesia e prosa,
importa, no caso de Lídia, muito menos do que a outra entre ficção e
realidade, com todas as implicações políticas e sociais que esta última
dimensão sugere. No começo da relação com Lídia, os escrúpulos
burgueses do protagonista é que prevalecem:
gesto delicado que há-de parecer impossível em pessoa de tão
humilde profissão, é o que estará pensando quem se deixe guiar por
ideias feitas e sentimentos classificados, come talvez seja o caso de
Ricardo Reis que neste momento se recrimina acidamente por ter cedido
a uma fraqueza estúpida, Incrível o que eu fiz, uma criada (p. 86).

homem afinal timorato, assustado com as consequências de um gesto


tão simples como ter posto a mão no braço de Lídia (p. 92-93).

Uma vez a relação travada,16 a distância de classe entre a criada e


o senhor doutor não faz, paradoxalmente, senão ampliar-se: “e que direitos
tinha ela, criada de hotel pela terceira vez metida em aventuras com um
hóspede, que direitos tinha de mostrar-se ciosa”, p. 144; “Tive ciúmes, Ó

16
A primeira noite de amor acontece na p. 95, as noites seguintes situando-se,
de preferência, no final dos capítulos (cf. p. 115, 135).

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filha, que ideia a tua, nunca seria uma conversa de iguais”, p. 145; “mas
primeiro deu-lhe um beijo na testa, teve esse atrevimento, uma serviçal,
uma criada de hotel, imagine-se, talvez tenha o direito, o dito natural, outro
não, assim ele lho não retire, que essa é a condição absoluta”, p. 165.
Contudo, afinal, um beijo na boca é o sinal de que a igualdade, se já não
foi completamente atingida, conseguiu tornar-se, pelo menos, num
objectivo possível (p. 231): “O meu salário é o seu bom trato, esta palavra
merecia realmente um beijo, e Ricardo Reis deu-o, enfim na boca.”
A arma mais eficaz de que Lídia dispõe, com vista a reduzir, ou até
a anular esta distância social é a sua maneira ‘justa’ de falar (p.169-170):
“Às vezes não sei bem quem tu és, Sou uma criada de hotel, Mas chamas-
te Lídia e dizes as coisas duma certa maneira.” Com efeito, Lídia, que encarna
o povo, a realidade, a vida vivida, costuma certificar-se do peso de cada
palavra: traduzir “repugnante” por “nauseabundo”, por exemplo, é a
prova de que Ricardo Reis, afeito ao léxico clássico e culto, é incapaz de
perceber as necessidades de um registo popular. Mais em geral, os traços
distintivos de Lídia são a sua carnalidade e o facto de ela representar, aos
olhos do narrador, uma encarnação natural, dir-se-ia cromosómica, do
povo. Para sublinhar esta materialidade vital de Lídia, Saramago recorre
à ironia, às vezes um bocado pesada, do fantasma pessoano: “Bravo, vejo
que você se cansou de idealidades femininas incorpóreas, trocou a Lídia
etérea por uma Lídia de encher as mãos, que eu bem a vi lá no hotel” (p.177);
“ó sátiro oculto, ó garanhão disfarçado” (p.178); “O que eu não esperava
era que você fosse tão persistente amante, para o volúvel homem que
poetou as três musas, Neera, Cloe e Lídia, ter-se fixada carnalmente em
uma, é obra, diga-me cá, nunca lhe apareceram as outras duas”, p. 266;17
“A Lídia é uma criada, E a Ofélia era dactilógrafa”, p. 324-325. A explicação
da alegoria político-social fica, como é costume, para o final do romance,
cf. p. 367: “O povo é isto que eu sou, uma criada de servir que tem um
irmão revolucionário e se deita com um senhor doutor contrário às
revoluções.” Trata-se, contudo, de um povo até certa forma idealizado,
intelectualizado, se é verdade que também é povo o “velho que não sabia
ler, por isso tem mais necessidade de fórmulas de sabedoria condensadas,
para uso imediato e efeito rápido, como os purgantes” (!), p.339.

17
Na resposta de Ricardo Reis, temos a explicação da escolha do nome feita pelo
narrador: “Não, nem é caso para estranhar, são nomes que não se usam hoje”.

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IV
Como é sabido, o nome de Marcenda foi sugerido a Saramago a
partir de uma passagem da Ode XVIII do Livro I das Odes ricardianas: “E colho
a rosa porque a sorte manda./Marcenda, guardo-a; murche-se commigo”.
Gerúndio do verbo latino marcere, a palavra não existe em português, que
só conhece o adjectivo márcido.18 A insistente reflexão onomástica começa
desde a presentação da personagem, p. 52-53, durante um colóquio com
Salvador, o proprietário do hotel: “ela tem um nome esquisito, chama-se
Marcenda […], É Marcenda o nome, É sim, senhor doutor, Estranha palavra,
nunca tinha ouvido, Nem eu”. Ricardo Reis não pode senão sucumbir ao
encanto sonoro deste nome classicíssimo: “pensou em Marcenda, disse
mesmo o nome dela em voz baixa” (p. 171). E, como de costume, o
fantasma de Pessoa é que se encarrega de apor uma glosa irónica,
metalinguística: “É um gerúndio bonito” (p. 266). Talvez o detalhe mais
curioso desta reflexão onomástica seja a relação estabelecida entre o
nome de Marcenda e uma passagem de um poema de Camilo Pessanha,
na qual vem intercalar-se outra, conhecidíssima, de Verlaine:
além do interessante caso clínico que é Marcenda, estranho nome,
nunca ouvido, parece um murmúrio, um eco, uma arcada de
violoncelo, les sanglots longs de l’automne, os alabastros, os balaústres,
esta poesia de sol-posto e doente irrita-o, as coisas de que um nome
é capaz (p. 98).

Que tem Ricardo Reis que ver com o simbolismo? É o Saramago,


claro está, que não quis perder a ocasião de ironizar sobre a lembrança
de poemas arraizados na cultura escolar tradicional. Marcenda, que é
aleijada da mão esquerda (esta mão que “está morta, ou adormecida, por
isso sonha, e no sonho relembra os movimentos que fez noutro tempo”,
p. 240), é, naturalmente, o contrário de Lídia, a partir duma oposição que se
situa, em primeiro lugar, no plano físico: “aquela mão castigada de trabalhos,
áspera, quase bruta, tão diferente das mãos de Cloe, Neera e a outra Lídia,
dos afuselados dedos, das cuidadas unhas, das macias palmas de Marcenda”.19
No plano social, o próprio Ricardo Reis é que explicita o contraste:

18
Além de outras criações cultas: marcescente, marcescência, marcescível.
19
Cf. já p. 26: “os dedos estendidos, pálidos, ausentes”.

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Sexta não, que vou ter a Lídia a fazer limpeza, Ora, que importância
tinha isso, juntava as duas, cada uma no seu lugar, a criada e a menina
de boas famílias, não havia perigo de se misturarem […], Acha que
uma menina como Marcenda, com a esmerada educação que recebeu,
o rigoroso código moral do seu pai notário, faz visitas a um homem
solteiro, na própria casa dele, sozinha (p. 232).

Até que, finalmente, a comparação acaba por resolver-se em favor


de Lídia, mulher-a-dias idealizada, “serva humilde, que passa as mãos
sobre as coisas e as deixa lustralmente limpas […], abençoada seja Lídia
entre as mulheres, Marcenda, se aqui vivesse como legítima senhora, nada
faria que se comparasse, de mais a mais aleijada” (p. 349).
Criação ricardiana, a par de Lídia, e, enquanto tal, ficção de outra
ficção,20 Marcenda tem, com respeito a Lídia, um destino oposto. Devido
à sua gravidez, Lídia acaba por ficar bem arraizada na realidade: o leitor
compreende que, mesmo após a morte do seu criador, Lídia continuará
a guardar a própria existência autónoma. Muito pelo contrário, seria difícil
adivinharmos um futuro para Marcenda, que volta finalmente a integrar-
se no universo poético donde nasceu: “Ricardo Reis tenta escrever um
poema a Marcenda, para que amanhã não se diga que Marcenda passou
em vão, Saudoso já deste verão que vejo” (p. 344); segue-se uma
reconstrução da gênese do texto, rematada por este comentário: “porque
este nome de Marcenda não o usam mulheres, são palavras doutro
mundo, doutro lugar, femininos mas de raça gerúndia, como Blimunda,
por exemplo”. Apresentada como irremediavelmente estranha à dimensão
prática da realidade, Marcenda é constantemente posta em relação com
o acto de escrever versos ou cartas de amor; entretanto, como recorda
Saramago, ecoando Pessoa, é preciso “não esquecer que todas as cartas de
amor são ridículas” (p. 261). Pouco antes de morrer, Ricardo Reis, preso
na sua própria ficção, escreve-lhe “uma longa missiva, de muitas páginas,
que punha de pé toda uma arqueologia da lembrança”; carta, logo,
cuidadosamente rasgada, “chuva de papelinhos, carnaval triste” (p. 392).
A faceta romântica da relação com Marcenda é ironizada desde o
começo, p. 176: “Uma donzela de Coimbra marca, em furtivo bilhete,
encontro com o médico de meia-idade que veio do Brasil, talvez fugido,
pelo menos suspeito, que quinta das lágrimas se estará preparando aqui”

20
Servimo-nos da expressão já utilizada por CAMPELO, 1985.

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Fernando Pessoa-Ricardo Reis e O ano ... MaurizioPerugi – p.45-61.

(cf. p. 315: “agora, meu amor, espero-te na Quinta das Lágrimas, se ainda
me quiseres”). O amor platónico para Marcenda é qualificado de lírica
história (p. 102: “e agora, para que tão lírica história tenha um final feliz”)
ou de romance (p. 129: “só num romance se aproveitaria esta coincidência
para estabelecer forçados paralelos entre uma laguna silente e uma
rapariga virgem”). Com efeito, um atributo típico desta personagem é um
sobrescrito… de um levíssimo tom de violeta (p. 258); uma carta, a
conhecida cor de violeta exangue (p. 287). O instrumento da ironia utiliza
vários registos, desde a hipocrisia do código social (p. 101: “tudo foi tão
perfeito que podemos augurar bem desta principiada relação”), até à
faceta algo improvável com que esta virgem louca se mostra aos outros
(p. 283): “se acreditarmos nas suas próprias palavras, pela primeira vez
foi beijada” (p. 258). O que, pelo contrário, parece o narrador tomar a
sério, é a imperfeição física dela, como afinal fica explicado num dos
colóquios com Fernando Pessoa, p. 376: “A mão esquerda de Marcenda,
que sentido terá, Ainda pensa nela, De vez em quando, Não precisava de
ir tão longe, todos somos aleijados”.21
Claro que, para além da condição burguesa e da poesia pós-
romântica, Marcenda encarna, acima de tudo, uma verdadeira doença do
espírito, a mesma que tem originado uma produção como aquela de
Ricardo Reis, poesia indeterminada no que, antes de mais, respeita à
relação com a natureza. Para Ricardo Reis, “poeticamente, as nuvens mal
existem, por uma vez escassas, outra fugidia, branca e tão inútil, se chove
é só de um céu que escureceu porque Apolo velou a sua face” (p. 212);
[…] o mais certo é que tenha do reino vegetal apenas o precário
conhecimento com que vem adornando as suas poesias, flores em
geral, e pouco mais, uns louros por virem já do tempo dos deuses,
umas árvores sem outro nome, pâmpanos e girassóis, os juncos que
na corrente da água estremecem, a hera do esquecimento, os lírios,
e as rosas, as rosas, as rosas (p. 336).

Ao leitor italiano, estes comentários não deixam de recordar as


críticas que Giovanni Pascoli, o principal responsável na obra de
renovação da linguagem lírica em Itália, dirigia, nos finais do século XIX,
contra a tradição petrarquista e, mais em geral, retórica, nomeadamente
personificada em Leopardi, para quem uma camponesa é uma donzelletta,

21
Cf. p. 382: “ser três vezes o aleijado que Fernando Pessoa diz que todos somos”.

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e rose e viole são as únicas flores conhecidas. Entretanto, no caso de


Ricardo Reis, a crítica do narrador está longe de alcançar o objectivo.
Poucos poetas tiveram, como ele, o gosto horaciano da palavra certa.
Aliás, a densidade semântica muitas vezes atinge, nas sua odes, níveis
excepcionais. O mais provável é ter Saramago ficado vítima, mais uma vez,
da sua irresistível confusão entre, por um lado, o classicismo ricardiano,
e, por outro lado, os resíduos da tradição pós-romântica e simbolista, que
o próprio Ricardo Reis combateu várias vezes, e em termos inequívocos.
Nem temos, aliás, de esquecer as alusões irónicas, frequentes no
romance, ao epíteto inúmero, a partir da p. 27 (“se tomássemos todas as
palavras à letra, passaria primeiro Ricardo Reis, porque é inúmero, segundo
o seu próprio modo de entender-se”). Trata-se, como é sabido, de um epíteto
tipicamente ricardiano, presente desde o poema inicial do Livro I das Odes:
“Nem temo o influxo innumero futuro/Dos tempos e do olvido”; onde,
conforme as leis da sintaxe ricardiana, innumero é aposição do sujeito.

V
A composição da ode, onde se encontra o nome de Marcenda, é a
etapa final duma série de episódios em que Saramago pretende
reconstruir, com grande escrúpulo documentário, o trabalho do poeta. O
primeiro aceno à maça dos manuscritos datados está na p. 23: “estas
folhas escritas com versos, datada a mais antiga de doze de Junho de mil
novecentos e catorze […], e a folha mais recente de todas tem a data de
treze de Novembro de mil novecentos e trinta e cinco, passou mês e meio
sobre tê-la escrito”. Segue-se, na p. 63, outra lista de versos isolados, que
Ricardo Reis vai “murmurando […] como se identificasse fósseis ou restos
de antigas civilizações”. Um pouco mais acima (p. 47-53), Saramago acaba
de reconstruir, a partir de “uma folha de papel com verso e meio escritos”,
a génese do poema “Aos deuses peço só que me concedam o nada lhes
pedir”, muito significativo pelas questões dos deuses e do paganismo,
que, logo a seguir, o escritor retoma várias vezes.
Mais em geral, todo o romance regurgita de citações de poemas
ricardianos, um trabalho que, de vez em quando, o fantasma de Pessoa
não deixa de ironizar: “Nenhum vivo pode substituir um morto, Nenhum
de nós é verdadeiramente vivo nem verdadeiramente morto, Bem dito,
com essa faria você uma daquelas odes” (p. 79).

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Fernando Pessoa-Ricardo Reis e O ano ... MaurizioPerugi – p.45-61.

Neste processo de reconstrução da personagem, e da sua mentalidade,


um dos instrumentos mais eficazes teria sido o emprego do discurso
indirecto livre. Disse: teria sido, porque nem sempre o narrador tira deste
recurso o proveito que era desejável. No geral, este tipo de discurso é
atribuído ao próprio Ricardo Reis; vejam-se, a título de amostras, as alusões
seguintes: “sibaritas prudentes” (p. 163, antes de uma autocitação); “para
Lídia, oh engano seu e mau olfacto, estou ungido de rosas” (p. 190: as
rosas, aliás, voltam outras vezes); “apesar de ser pagão confesso” (p. 340);
“ele próprio é monárquico” (p. 363, cf. p.364); “são imagens, metáforas,
comparações que não terão lugar na rigidez duma ode” (p. 375); “ouvi-
las num íntimo murmúrio” (p. 377); “chamar-lhes duques não passou de
gracejo de Ricardo Reis que já era tempo de acabar” (p. 378).
Uma categoria particular de discurso indirecto livre é constituída pelas
alusões a fragmentos ou versos de poemas ricardianos, p. ex. 283: “alguém
que se sentou na margem do rio”; “sábios deste outro espectáculo do
mundo” (p. 328, cf. p. 396, 403); “mais vale saber passar silenciosamente
e sem desassossegos grandes, isto escreveu um dia” (p. 371). O melhor
exemplo talvez se encontre na p. 74, na ocasião das celebrações pelo fim
do ano: “sempre a queixarem-se de serem curtas as vidas, deixando à só
memória um branco som de espuma”.
Afora deste recurso, acontece que Ricardo Reis fale numa linguagem
que não é a sua, 22 e até exprima traços daquela ironia pesada, que
Saramago lhe empresta de vez em quando, talvez no intuito de abaixá-lo:23
“E se este velho se chamasse Lázaro, e se aparecesse Jesus Cristo na curva
da estrada, ia de passagem para a Cova da Iria a ver os milagres” (p.
303).Também muito frequentes são as intervenções em primeira pessoa,
por parte do narrador “omnisciente”. Às vezes, Saramago chama a atenção
do leitor para o seu próprio emprego dos recursos linguísticos: “não
importa averiguar, considerando a insignificância da frase” (p.77); “e não
protestem que é inadequada a palavra” (p. 133); “ditério que aqui aparece
pela segunda vez” (p. 251); “repare-se na curiosa expressão” (p. 265). O
escritor até chega a discutir a qualidade das figuras retóricas empregadas:

22
Num plano mais geral, esta ambiguidade intrínseca à personagem, objecto da
recriação de Saramago, foi sublinhada por BRAGA, 1985. Há pouco, a questão
tem sido retomada por BUENO, 1999 (veja-se também BRAGA, 1996).
23
BUENO, 1999, também fala de “processo de rebaixamento”.

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“em alarde de triumfal desgraça, se faz sentido reunir palavras tão


contrárias num conceito só” (p. 152); “agitada e cautelosa, se há
contradição entre os dois estados ela a resolveu” (p. 229). Com efeito, ele
gosta dos oxímoros: “um entusiasmo triste” (p. 155); “Lisboa é um grande
silêncio que rumoreja, nada mais” (p. 215); e não apenas: o romance
transforma-se, às vezes, numa espécie de manual de retórica, onde se
aprende a utilizar a sinestesia (“este ruido é verdadeiramente escuro, tinha
razão quem o disse”, p. 195); a digressão (“aonde já nos leva a digressão
oratória”, p. 214); a comparação, mesmo “fatigadíssima” (p. 223). Em suma,
“quer queiramos, quer não, voltamos sempre às palavras” (p. 335).

VI
O ano da morte de Ricardo Reis não é só uma reconstrução
escrupulosa do heterónimo pessoano mais longevo. O seu carácter de
romance histórico fica declarado pelo próprio autor: “quem sabe se,
faltando-nos tudo, não teremos nós de inventar uma verdade, um diálogo
com alguma coerência, um Victor, um doutor-adjunto, uma manhã de
chuva e vento, uma natureza compadecida, falso tudo, e verdadeiro”
(p.193-194). Na verdade, o romance pretende ser um afresco de Lisboa
e Portugal naquele ano de 1936. Saramago fala de Sebastião e do
sebastianismo (p.74-75); do Quinto Império e do problema das colónias
(p.142-143); das relações tradicionalmente difíceis entre espanhóis e
portugueses. As cenas de massas abundam: o bodo dos pobres; o
carnaval nas ruas de Lisboa; a viagem a Fátima.
A história exige um comprometimento, e face a ela a impassibilidade
arcádica parece não ter mais lugar. O epicurismo professado por Ricardo
Reis equivale, no fundo, a uma forma de subterfúgio: “este longo fastídio
de existir, este fingimento de lhe chamar serenidade” (p. 363); e, de
qualquer forma, revela-se um instrumento inadequado para a
compreensão da realidade, na medida em que as coisas “perdem o seu
contorno como se estivessem cansadas de existir, será também o efeito
de uns olhos que se cansaram de as ver. Ricardo Reis nunca se sentiu tão
só” (p. 391-392). Finalmente, o neoclassicismo do protagonista parece a
Saramago uma manifestação reaccionária: “ainda que, reparando bem,
meu caro Reis, as suas odes sejam, por assim dizer, uma poetização da
ordem” (p. 325).

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Fernando Pessoa-Ricardo Reis e O ano ... MaurizioPerugi – p.45-61.

Com efeito, conforme se lê numa entrevista a O século, a ideia de


ordem é comum a Ricardo Reis e a Franco (p. 368). E, como é sabido,
Rockefeller é que financia a revolução franquista (p. 390-391). Quanto a
Miguel de Unamuno, o seu grito Viva la muerte “é como uma ferida
vergonhosa que se tapa” (p. 370-371). E tanto Unamuno como Ricardo
Reis, ao saírem de casa, fazem a mesma coisa: ambos aproveitam “as
fímbrias de sombra” (p. 374). A conclusão está prevista. Reis, não tendo
a coragem de saltar para dentro da vida, finalmente resolve, na ocasião
da última visita de Fernando Pessoa, seguir aquele fantasma caminho dos
Prazeres, acabando por mergulhar sózinho - porque Lídia o não
acompanha - na viagem sem retorno ao labirinto para sempre indecifrado.

Referências
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Ricardo Reis. In: Sentido que a vida faz. Estudos para Oscar Lopes. Porto: Campo
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1990.
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MEDEIROS, Paulo de. Fantasmas de Pessoa: Amat, Saramago, Tabucchi. In:


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SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. José Saramago entre a história e a ficção: uma
saga de portugueses. Lisboa: Dom Quixote, 1989.

Resumo
O assunto do artigo é uma reflexão em torno dos múltiplos aspectos
que diferenciam o Ricardo Reis autêntico, da personagem elaborada
por Saramago no seu romance. Pretende-se, além disso, esclarecer qual
a posição do escritor face à poesia e à personalidade deste heterônimo
de Fernando Pessoa.

Résumé
Quelle est la position de José Saramago vis-à-vis de la personnalité et de
l’oeuvre poétique de Ricardo Reis? C’est la question à laquelle cet article
se propose de répondre, en analysant les nombreuses différences existant
entre le Ricardo Reis authentique, et le personnage créé par l’écrivain
dans son roman.

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