Olavo de Carvalho - Aula 308 - COF - (Transcrição de Carla Farinazzi)

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Aula 308 – COF – transcrição

Boa noite a todos, sejam bem-vindos.

Ao longo destas aulas, tenho insistido que a raiz de todos os problemas


do Brasil atual é resultado da destruição da alta cultura no País. Nunca
será demais insistir nesse assunto porque a esfera da alta cultura é
aquele conjunto de pessoas que leram os mesmos livros, compreendem
as mesmas palavras, têm um domínio do vocabulário mais ou menos
similar, têm acesso ao mesmo corpo de fatos e conhecem as mesmas
correntes de idéias, os mesmos valores civilizacionais, os mesmos
critérios do certo e errado, do verdadeiro e falso etc., e, por isto
mesmo, podem ter uma discussão frutífera sobre qualquer assunto.
Quando os debates se transferem para a esfera propriamente política,
ou mais especificamente parlamentar, isso é um resumo, um recorte da
discussão mais geral que se desenrolou na esfera da alta cultura.

A partir do momento em que a alta cultura desaparece, podemos fazer


a seguinte comparação: Miguel Reale, quando reitor da USP, mandou
criar um obelisco e em volta colocou uma inscrição que dizia que a
cultura era como uma esfera cujos raios iam em todas as direções.
Quando não há essa referência a um centro da cultura — centro que é
composto de valores civilizacionais conhecidos por todos, ainda que
varie de civilização para civilização, o que não faz diferença — as
pessoas pegam idéias soltas, opiniões soltas, frases soltas, como se
abrissem um livro de Platão em qualquer página, lessem uma frase e
depois lessem uma frase de Nietzsche no meio de um outro livro e
começassem a querer tirar alguma conclusão. É exatamente assim que
as pessoas raciocinam hoje em dia no Brasil. Não há centro, não há
referência, não há mapa do território. É tudo tiro no ar, tudo chute, na
verdade.

Podemos comparar assim: em vez de se ter um centro com raios que


vão em todas as direções, onde um raio se comunica com outro através
do centro, não, você toma pontos quaisquer de um dos raios e um
outro ponto de um outro raio, um terceiro ponto de outro raio e cria
uma figura. E você acha que isso é realidade porque isso lhe dá a
impressão de realidade. Sobretudo, esta impressão de realidade, na
maior parte dos casos, advém do simples sentimento de concordância.
O gostar ou não gostar, o aprovar ou não aprovar alguma coisa torna-se
automaticamente critério de realidade: se aquilo ressoa em você como
alguma coisa que lhe é agradável, você acha que é realidade e se não
ressoa, você acha que é falso. É uma reação simplesmente emocional,
gustativa e no fim das contas lúdica, o pessoal está brincando.

Quando você lembra qualquer fato negativo a respeito de um partido


político, de uma religião, de um país, de uma nacionalidade ou de uma
cultura, há, automaticamente a tendência de as pessoas entenderem
que você está contra aquela entidade, aquela religião, aquela cultura,
aquele país etc. Se você diz uma coisa agradável, acham que você está a
favor. Quer dizer, no fim das contas você só tem estas duas categorias,
o contra e o a favor, isto é, gostei e não gostei. Isto ainda é norma geral
em toda discussão brasileira, inclusive da parte de pessoas que exercem
uma responsabilidade pública e teriam de ser um pouco mais sérias nas
suas discussões. Então vocês imaginam o que pode acontecer quando
alguém lê essas minhas notinhas no Facebook. Eu já expliquei que uso
o Facebook como uma espécie de diário: vou colocando ali
apontamentos que são impressões do momento. Estas impressões
podem, naturalmente, ser contraditórias porque as coisas têm vários
aspectos e estes aspectos não combinam entre si. À medida que se vai
acumulando notas, está-se seguindo mais ou menos o método
aristotélico das definições: você tem as várias notas, ou seja, aquilo foi
o que você notou. E você as articula de algum modo, de tal maneira que
reflita a estrutura do objeto. Na verdade, a estrutura de qualquer objeto
se compõe de feixes de contradições. Só quando você tem um sistema
de contradições montado em torno de um objeto (de uma questão, de
um fato) é que você sabe o de que se trata. As contradições, por sua
vez, podem surgir de pelo menos dois lados: a) a divergência entre os
pontos de vista dos vários observadores (olhando a coisa de vários
lados, tem-se impressões distintas); b) de aspectos contraditórios do
próprio fato ou situação. Se você não tem o feixe de contradições, você
não tem nada. É preciso que as contradições se acumulem e se
articulem até chegar a uma espécie de contradição intolerável: é tanta
contradição que você não aguenta mais. É só aí que o perfil do objeto
começa a aparecer; quando você nota que as contradições que você
repara começam a ser repetitivas. Assim, o conjunto de contradições
que forma aquele objeto e que o localiza no corpo geral do ser chegou
ao seu esgotamento; não há mais perguntas, não há mais dificuldades
que possam ser colocadas com relação àquele objeto. Aí você tem uma
certeza razoável de que você o conhece.

Quando se trata de uma situação complexa, por exemplo, uma situação


política, histórica, cultural etc., o número de notas pode se avolumar
indefinidamente. E eu sempre uso este método, vou colocando ali as
notas e aspectos que reparei, esperando que mais dia, menos dia, eles
comecem a se articular num todo coerente. Quando se articulam num
todo coerente, eu fecho isso num artigo. É muito simples. Isto quer
dizer que o que você leu no Facebook sobre isto ou sobre aquilo
NUNCA é a expressão da minha opinião terminal sobre algo. Se há
alguma coisa de que nós temos de abdicar é justamente de ter opiniões
pontuais sobre pontos soltos. Estes pontos soltos são sempre ilusórios,
são sempre só aparências. Isto quando não são meras palavras.

Por exemplo, quando surgiu a discussão pró e contra intervenção


militar, eu ficava espantado com o número de pessoas que ignorava
totalmente o que pudesse ser uma intervenção militar, e que, no
entanto, tinham uma posição contra e a favor. Bem, tentemos imaginar
o que é uma intervenção militar. Quando se pergunta se uma
intervenção militar constitucional seria um golpe, [eu digo que] você
está falando na esfera adjetiva, você está qualificando a coisa. Mas a
categoria da qualidade não é a mesma da substância. Se você diz que
uma coisa é boa ou ruim, que é legal ou ilegal, você ainda não disse o
que é substantivamente, realmente. Como se dá e o que é uma
intervenção militar na realidade? Por exemplo: já pararam para pensar
no número de discussões que é preciso haver no Estado-Maior antes de
que seja tomada uma decisão desse tipo? E já tentaram imaginar que
tipos de questões se levantam nestas discussões do Estado-Maior? Eu
vi que ninguém tinha nem pensado nisso. Só pensavam se uma
intervenção militar — qualquer que fosse ela — seria legal ou ilegal;
conveniente ou inconveniente. Como é que vou saber se é conveniente
se nem sei o que é? Nós temos alguns exemplos de intervenções
militares acontecidas neste e em outros países e temos alguma idéia da
complexidade da coisa. Em primeiro lugar, uma intervenção militar vai
desalojar os governantes e colocar outros. Porém, o governo não se
constitui de uma pessoa ou duas, ele é uma série de círculos
concêntricos — começa na Presidência da República e vai terminar no
último vereador do interior. Quantos destes você precisa remover para
criar uma mudança efetiva na situação? Foi o problema que apareceu
em 64, da lista dos cassados. Quando começou a lista acho que tinha
dez, terminou em três mil, quatro mil, cinco mil, dez mil. Há este
problema: quem vamos remover? Destes que vamos remover, vamos
simplesmente removê-los dos cargos ou vamos cassar seus direitos
políticos, ou seja, impedir o seu retorno à vida política? Por quanto
tempo?

Daqueles que foram cassados, que tiveram seus mandatos e direitos


políticos cassados em 1964, todos retornaram, mais dia, menos dia.
Todos retornaram, estão todos aí e são os “reis da cocada preta”. Isto
quer dizer que a suspensão de seus direitos políticos teve um efeito
temporário — e em grande parte um efeito negativo, porque se
espalharam pelo mundo e começaram a fazer uma tremenda
propaganda contra o governo local. Eu me lembro que no começo, nas
primeiras semanas, o governo mandou Carlos Lacerda para Paris, para
que desse umas entrevistas explicando o que havia acontecido, e ele
saiu-se muito bem naquele momento. Se formos pensar: quanto tempo
durou depois o esforço do governo militar para se explicar para o
mundo? Ele acabou ali mesmo, e a campanha contra ele continuou
aumentando e aumentando. Em parte pela divulgação de fatos reais, e
90% com lendas urbanas evidentemente.
Imagine só este aspecto: o que vamos fazer na escala internacional se
tomarmos o poder, ainda que seja por uma semana apenas? Vocês
viram o que aconteceu em Honduras. Tiraram o presidente e no dia
seguinte houve uma pressão internacional monstruosa, tiveram de
fazer novas eleições e nas eleições elegeu-se um adepto do presidente
anterior. Foi o golpe que não houve, o golpe foi neutralizado de alguma
maneira.

Penso assim: algum destes entusiastas ou inimigos da intervenção


militar chegou a pensar no que ela é concretamente? Não. Bastou a
palavra. É o famoso mecanismo brasileiro, no qual você tem uma
palavra e a palavra corresponde a uma emoção. O objeto a que a palavra
deveria se referir, não comparece de maneira alguma, apenas o efeito
emotivo imediato da palavra. Estão tomando posição a partir de meros
símbolos verbais, aos quais não corresponde absolutamente nada. E
pior, as pessoas tomam posições contra ou a favor a respeito destas
meras palavras e exigem que também tomemos. Eu digo a estas
pessoas que elas são uns gênios, conseguem tomar posição a favor e
contra a respeito de coisas que não sabem o que são: eu não consigo.
Eu preciso saber o que é. Então, o que eu faço? Vou meditando e
anotando os vários aspectos que a coisa parece. Este que estou
mencionando, por exemplo, as discussões no Estado-Maior, eu fiz uma
lista de doze itens, que coloquei faz tempo no Facebook. Doze questões
que surgiriam naturalmente num Estado-Maior.

Aliás, vocês sabem o que é Estado-Maior? Estado-Maior é o corpo de


oficiais que analisa os cenários possíveis e entrega para o comandante,
para que este, com base nos cenários, tome uma decisão. O Estado-
Maior não decide nada, ele apenas especula possibilidades, com base,
evidentemente, em dados, estatísticas etc. O Estado-Maior é o suporte
intelectual do comando, e ali se dão as discussões. Eu já dei aula na
Escola de Comando do Estado-Maior do Exército (dei várias), e via que
era um pessoal muitíssimo bem informado, muito mais do que
qualquer jornalista que eu conhecesse. E via também que ali dentro
havia alguns antagonismos. Eu, por exemplo, um dia tive uma
discussão (quase saí no tapa) com um coronel que era irmão do Aluísio
Mercadante. Ele estava lá, na Escola de Comando do Estado-Maior. Ele
naturalmente não era simpático a mim e a nada que eu pudesse
representar. Ele tinha boas informações sobre o estado de coisas, mas
tinha lá suas posições. Havia outras pessoas também com essas
posições ali. Se você me perguntar: dos oficiais que ouviram você,
quantos eram contra e quantos eram a favor? Eu não tenho a menor
idéia, porque eles não se pronunciavam. Podiam fazer uma pergunta ou
outra, mas nenhum levantaria para fazer um discurso.

A maior parte das pessoas que estão falando de golpe militar, nem sabe
o que é Estado-Maior, quanto mais ter uma idéia do que se discute ali.
E, no entanto, esta discussão a respeito do nada (a respeito de uma
bolha de sabão) despertou as maiores emoções positivas e negativas.
Teve pessoas que choraram. Uma vez escrevi umas coisas mostrando
que o golpe militar era inviável, teve uma moça que chorou, ela havia
apostado tanto naquilo.

Um dos dados da situação, que eu sempre levei em conta, é que,


evidentemente, a situação de desordem jurídica, moral, social etc.,
tinha chegado a um tal ponto que, de fato, uma intervenção militar era
a maneira mais rápida e fácil de resolver as coisas. Em princípio,
levando-se em conta apenas a situação nacional. Se digo isto,
automaticamente sou entendido como um adepto do golpe militar. Mas
no dia seguinte, faço a lista das dificuldades do Estado-Maior e pronto:
já virei contra o Estado-Maior. Ou seja, o procedimento científico
normal — levantar as hipóteses contraditórias e descrever uma por
uma — é totalmente desconhecido no Brasil. Eu vejo [isto] pelas
discussões que apareceram e que culminaram neste idiota do Fábio
Ostermann, dizendo que eu tenho posições contraditórias a respeito da
intervenção militar. Não são posições contraditórias, idiota, eu estou
anotando os vários aspectos, para depois poder articular o feixe de
contradições, se eu chegar a alguma conclusão. E também, se eu não
chegar à nenhuma: por acaso os milicos estão esperando o meu
pronunciamento para decidir se fazem intervenção ou não? Não estão,
não estão nem ligando para o que falei. Então, se eu não chegar à
conclusão nenhuma, dane-se, não fará diferença alguma. Mas, é assim
que eu procedo em todas as questões que estou examinando. Peguem
minha apostila Problemas de método nas ciências humanas e vejam que está
tudo lá.

Em primeiro lugar, há as pessoas dos agentes: agentes individuais e


grupais. Quem são eles, quem são os personagens que estão em jogo?
Segundo, delinear o horizonte de consciência de cada um. Horizonte de
consciência é o conjunto articulado e compreensível de informações a
que um sujeito tem acesso. O horizonte de consciência se delineia pelo
seu limite, não é positivamente, não é preciso fazer a lista de tudo o
que o sujeito sabe. Você pega os pontos que obviamente ele não sabe,
[e vai analisando] o que está fora do horizonte de consciência dele. E
partimos do princípio de que, onde o sujeito não enxerga, ele não age.
Se ele não age, aquelas ações possíveis, que seriam determinadas por
aquelas informações, estão excluídas do cenário — o que simplifica um
bocado a coisa. Em seguida, é preciso avaliar o peso relativo destes
elementos que estão fora do horizonte de consciência, ou seja: o que é
ignorância realmente? Existe a nesciência, que é não saber alguma
coisa e existe a ignorância, que é não saber alguma coisa que se
precisaria saber. [É preciso então descobrir] o que é ignorância mesmo;
os vários fatores de ignorância são, certamente, matrizes de ações que
não incidirão sobre a realidade, são ações ilusórias. A cada momento,
você tem, para cada personagem, individual ou grupal, um conjunto de
ações que são viáveis e um conjunto de ações que vão escapar da
realidade, não vão produzir nada ou vão produzir resultados
desastrosos para o próprio agente. Se você não fez este diagnóstico com
relação a uma ação política que você propõe (ou que você deseja), você
não sabe nada a respeito, zero. Você está lutando por palavras.

Quando alguém fala, por exemplo, que quer o impeachment. A palavra


impeachment significa muitas coisas diferentes, e no contexto atual,
concreto, pode ter resultados absolutamente desencontrados. A
primeira noção de impeachment — a primeira, mais popular e mais
imediata — é de que o impeachment é o primeiro passo para estourar o
balão do poder petista e do poder do Foro de São Paulo. Se você pegar
as massas que saíram às ruas, em março e em setembro, esta é a idéia
que queriam, pois todos gritavam “Fora PT”, “Fora Foro de São Paulo”
e não apenas “Fora Dilma”. E destes, havia uns 20 ou 30% que
clamavam por intervenção militar. Podemos dar por pressuposto que a
opinião das massas nestas duas manifestações era contra todo o
esquema comuno-petista que tomou conta do país, contra todo ele. E o
impeachment seria um aspecto disso. Logo em seguida, aparece uma
segunda versão do impeachment. É o impeachment como substituto do
conjunto de medidas. Ou seja, não falamos em fechar Foro de São
Paulo, não falamos em fechar o PT, não falamos em colocar o Lula na
cadeia e nos concentramos no impeachment: vamos nos livrar da
Dilma. Já é uma versão diminuída, evidentemente. Tendo-se em conta
que a eleição na qual a dona Dilma se elegeu foi feita pela Smartmatic
— com apenas 23 pessoas tendo acesso à contagem de votos,
obviamente uma eleição sem transparência, uma eleição 100% inválida
sob qualquer aspecto que se examine — já se tem um segundo divisor
no sentido do impeachment. Para algumas pessoas o impeachment é
um primeiro passo para invalidar tudo e eleger um novo governo. Para
outras pessoas, o impeachment é exatamente o contrário: uma maneira
de se livrar de uma governante incômoda, inepta e não fazer nada mais.

O impeachment é para derrubar o sistema ou para consolidá-lo?


Depende de quais são os agentes que estão em jogo. Quando surgiu a
idéia de pedir o impeachment, veio, logo em seguida, a idéia da tal da
Marcha para Brasília. Farei um parênteses aqui: quando estouraram as
manifestações de rua, eu já achei que aquilo era uma espécie de
“ejaculação precoce”, de cara. Mas pensei que teríamos de, de algum
modo, ajudar. Não poderia recusar a minha ajuda a isto, mas que é uma
ejaculação precoce, é. Porque não completamos a restauração da alta
cultura, portanto não temos uma liderança cultural, portanto não
temos uma liderança política. É muito simples. Primeiro você cria uma
elite cultural, esta elite cultural trabalha durante muito tempo e, aos
poucos, com sorte, vão surgindo verdadeiros líderes políticos, capazes,
informados, capacitados para uma ação efetiva. Mas não temos
liderança, não temos nada, não temos nem mesmo liderança cultural
ainda. Nós temos um projeto de liderança cultural, que são vocês
[alunos do COF]. Não há mais ninguém: ninguém mais está tentando
restaurar a alta cultura no Brasil, a não ser que seja o Renato Janine
Ribeiro e talvez a É Realizações, os grandes renovadores da cultura
brasileira. Na verdade, só tem vocês, não tem mais ninguém. E,
evidentemente, há uma série de cursos e blogs que apareceram em
torno deste curso e que têm um efeito multiplicador.

É só fazer a seguinte pergunta: quantos gênios existem em circulação


no Brasil atualmente? E comparar com o que havia nos anos 50. É uma
coisa horrível, sumiu tudo realmente.

Não tendo a liderança, pode ser um movimento caótico, mas não se


pode prejulgar que um movimento caótico seja ineficaz. Mesmo porque
estava crescendo muito, e eu mesmo recomendei aos candidatos a líder
que não liderassem nada e simplesmente seguissem a massa. Porque,
se não havia líderes conscientes e preparados, havia uma massa
consciente e preparada. Uma massa que estava entendendo tudo o que
estava acontecendo. Isto foi o que achei o fenômeno mais
extraordinário de todos os tempos. Qualquer “Zé Mané” na rua
entendia qual era a ligação existente entre a roubalheira e o Foro de São
Paulo; a roubalheira e o processo revolucionário; a roubalheira e o
bolivarianismo, todo mundo entendia isso. Estava claro para todo
mundo. Embora a mídia jamais falasse destas coisas. Nem na mídia,
nem no parlamento se falava, e pior: ninguém nas Forças Armadas
falava. Eu não vi um general sair para falar do Foro de São Paulo. No
máximo, falavam de corrupção, sem entrar em muitos detalhes, uma
corrupção genérica, como se fosse uma condenação geral à sociedade
brasileira: é uma sociedade corrupta. Isto foi o máximo que os generais
falaram, o máximo que os parlamentares falaram.

Depois de levar muitos chacoalhões, alguns senadores e deputados


começaram a falar um pouquinho de Foro de São Paulo. Mas é claro
que, se tirarmos o Foro de São Paulo da jogada, não se entende o que
está acontecendo: uma roubalheira de tão larga escala, não pode ser
para enriquecer dois ou três “Zés Manés”, não é possível. Há uma coisa
muito maior por trás disto. Pior ainda, existe um terceiro fator do qual
ninguém fala, que é o suporte internacional, mundial, dado ao Foro de
São Paulo e a esses governos corruptos: ONU, George Soros,
Rockefellers, Barack Obama. Este é um aspecto do qual nem mesmo eu
analisei ainda direito. Mas que, evidentemente, está presente e tem de
ser levado em conta.

Eu achei que aquilo era uma ejaculação precoce, mas não podia apostar
que daria errado ou que daria certo. Então, o que fazer? Ajudar, sem ter
ilusão de onde a coisa vai, sem emitir diagnósticos deprimentes para
não tirar o entusiasmo das pessoas, mas também sem se entusiasmar
muito. Quando vimos aquela massa de gente nas ruas e vimos as
pesquisas que davam 93% da população contra o governo — e dos 7%
restantes, 6% achando que o governo era apenas regular, reduzindo o
apoio a 1% —, o que temos nas mãos é uma revolução. A massa não
aceita mais as autoridades, o nível de desrespeito às autoridades
chegou ao supra-sumo (por exemplo, nos estádios, as pessoas xingando
a Dilma), é um fenômeno inédito na história do mundo: isto nunca
aconteceu. O governante pode ser vaiado, mas xingado dessa maneira?
Nunca aconteceu. E xingado por massa popular mesmo. Então,
estávamos com uma revolução brasileira nas mãos, o povo contra o
estamento burocrático, como diria Raymundo Faoro.

Em seguida, aparecem as mentes iluminadas dizendo que fariam uma


Marcha para Brasília para pedir o impeachment. Com isto, transfere-se
o protagonismo da situação, da massa para a classe política. Classe
política que a massa rejeitava e achincalhava, não deixavam políticos
nem subir no palanque. Até Bolsonaro foi rejeitado, até ele, não
queriam deputados. Não tinham nada pessoalmente contra Bolsonaro,
mas pelo fato de ser deputado não o queriam. Não queriam deputados,
nem senadores, nem governadores, nem PSDB ou político algum.
Estavam passando o protagonismo do movimento justamente àqueles
que o movimento rejeitou. E evidentemente já era um tiro no pé.
Segundo, não se reúne 2 milhões de pessoas na rua para dizer-lhes que
está indo até Brasília e já volta, não se faz isso. Isto também é um fato
inédito na história do mundo. Os auto-nomeados líderes das
manifestações não eram líderes de coisa nenhuma, ninguém jamais
tinha ouvido falar deles, apareceram no palanque pela primeira vez ali.
Se perguntarmos como se disseminou a palavra de ordem das
manifestações: disseminou-se por Internet, por mil e um canais que
ninguém podia controlar. A partir deste momento — quando houve a
Marcha para Brasília —, as ambições das classes políticas foram
despertadas; [como se as classes políticas dissessem que] elas pegariam
o protagonismo da situação, elas a resolveriam e sairiam todos bem. A
classe política em geral. Mas, dentro da classe política há um sub-setor,
que são os tucanos e boa parcela da esquerda, PSOL etc., que pensou
ser a chance deles agora. Que eles poderiam criar uma nova versão do
impeachment, onde reescreveriam a história do movimento, e, em vez
de vinculá-lo a uma revolta geral do povo contra PT e Foro de São
Paulo, o reinseririam historicamente na tradição esquerdista das
“Diretas Já”, do “Fora Collor” e assim por diante.

Vejam os discursos do sr. Miguel Reale Júnior e do FHC nos últimos


dias, que é exatamente isso. Eles estão criando uma modificação total
do panorama histórico e inserindo este movimento justamente na
tradição que ele abominou. Se pegarmos os agentes que criaram esta
situação, como por exemplo o sr. Fabio Ostermann e outros — não vou
nem falar de Kim, esqueça isto, isto é um mosquito; eu, no começo,
pedi que não falassem mal do Kim, embora ele estivesse errado,
defendi o rapaz, mas é caridade o que estou fazendo, apenas isso (no
Brasil está assim: você dá uma esmola a um sujeito e ele já acha que é o
“siô dotô”); então dei uma esmolinha para o Kim e ele começou a achar
que era importante, mas vamos esquecer o Kim, vamos nos concentrar
em pessoas que tenham um pouco mais de autoridade ou poder, como
o chefe do MBL, esse Fabio Ostermann — [e perguntarmos] este
homem está capacitado para fazer uma análise política? Obviamente
não. Porque é só ouvir os discursos do Miguel Reale, do Hélio Bicudo e
do FHC e perceber: colocar o movimento em uma outra retaguarda
histórica, que é contrária à dele, é evidentemente usurpá-lo e colocá-lo
a serviço dos inimigos, não há a menor dúvida nisso. Como é que um
sujeito não percebe isso? Como é que ele acha que se aliando ao Hélio
Bicudo ganharão publicidade? Sim, você vai ganhar publicidade para o
Hélio Bicudo. Ou ele acha que, amanhã ou depois, graças ao Hélio
Bicudo, vai aparecer todo mundo com cartaz na rua dizendo “Fabio
Ostermann tem razão”? Ninguém vai nem saber quem é Fabio
Ostermann.

O que há é a incapacidade de se fazer uma análise simples da situação,


e perceber que, por cima e por trás do movimento popular, houve uma
manobra para inverter o seu sentido histórico; se você não é capaz de
perceber isso, você não é capaz de perceber nada. De onde vêm estas
coisas? São pessoas que saem para estudar no exterior e voltam com
uns “titulinhos”, e todo mundo acha que o sujeito sabe alguma coisa, o
sujeito diz que estudou na George Washington University (eu lecionei
na George Washington University, eu só entro em universidade como
professor, nunca fui aluno destas porcarias), na Atlas Foundation (eu
dei aula na Atlas Foundation). Estas pessoas vêm com esta coisa e
acreditam que sabem alguma coisa. Estas pessoas tomam decisões que
são absolutamente desastrosas. Desastrosas para o povo, não
necessariamente desastrosas para elas e para os grupos beneficiados.
Porque amanhã ou depois, provavelmente vamos ver a Dilma
[renunciar], não vai chegar a haver impeachment, pois nenhum
governante suporta impeachment; um minuto antes de sofrer
impeachment o sujeito renuncia (como fizeram Collor, Nixon e todo
sujeito que sofre ameaça de impeachment), vai para casa e daí aparece
FHC, Miguel Reale Junior, Hélio Bicudo, “Zé” Serra, Aécio Neves,
todos batendo no peito e dizendo que o povo se reuniu em torno da
oposição e que libertaram o Brasil deste pesadelo petista. É isto que vai
acontecer, porém, todos os petistas vão continuar em seus postos, pois
o sr. FHC tem compromisso sério com o Foro de São Paulo, desde
1993. Isto não é brincadeira. Até hoje, nenhum jornalista perguntou a
ele o que ele estava fazendo naquela reunião de 5 de maio de 1993 —
uma reunião secreta com o pessoal do FHC —, que saiu no jornal
cubano Granma. Ninguém consegue nem perguntar isso a ele, e acham
que podem raciocinar e entender as coisas sem esta informação.

É um horizonte de consciência auto-castrado. É como Garcia Lorca


[disse] quando um toureiro amigo dele foi chifrado e morreu na arena:
“No, yo no quiero verlo”. Não quer ver porque, se vir, terá uma crise
hipertensiva, um infarte, vai passar mal, então não quer nem ver
(risos). O pessoal faz assim: não quer saber porque tem medo de saber.
Muitos escondem porque têm interesse em esconder, e são
espertalhões; os outros, os 99%, são aqueles sujeitos que têm medo de
ficar com medo. Como se dissessem que o marcapasso deles vai parar
de funcionar (risos); estes caras já são velhos caquéticos aos 20 anos.

Aliás, eu fico espantado: às vezes me chamam de velho gagá. Eu dei


algum sinal de gagazice até agora? Nenhum. É que eles acham que 68
anos é uma idade de se estar gagá. Eles acham mesmo, porque são de
uma geração muito fraca, que aos 50 anos tem infarte, aos 55 está
usando marcapasso e aos 60 morre. Então, esperam que o sujeito aos
68 anos esteja para acabar. É normal esta expectativa neles, porque é a
expectativa com que medem a si mesmos. Acham que quando tiverem
50 anos suas vidas acabaram. É uma medida de tempo humano que
reflete uma decadência física extraordinária, baseada na falta de
testosterona. A dose de testosterona na juventude de hoje é 50% do
que era no tempo que eu nasci. É só ouvir as pessoas falarem; para você
encontrar um homem com voz de homem, no Brasil, é uma raridade.
Está cada vez mais raro, isso não tem nada a ver com o sujeito ser gay
ou não. Pode ser aquele cara que só pensa em mulher 24 horas por dia,
mas fala como mulher, porque o corpo dele não tem força para produzir
uma voz de homem. Pessoas assim têm uma expectativa de vida curta
com relação a eles mesmos e a possibilidade de estarem ainda em ação
aos 68 anos nem lhes passa pela cabeça: naturalmente, ao verem
alguém com 68 anos, pensam que ele têm de estar gagá; mesmo que
não esteja, têm de estar, oficialmente será gagá. Isto é deplorável, a
gente fica deprimido ao ver esta juventude medindo as coisas com esta
escala diminutiva, deprimente e auto-castradora.

Sessenta ou setenta anos é a idade com que os filósofos produzem o


que tem de melhor. Todos foram assim. Mesmo em épocas em que a
duração da vida era menor. Pessoas que têm (até mesmo com suas
vidas biológicas) uma expectativa de vida diminuída e falsa — e que
não percebem que esta expectativa diminuída e falsa acontece porque
tomam a si mesmos como réguas e eles são diminuídos e falsos —, são
pessoas que não têm a menor idéia de sua situação na vida, estão
completamente alienadas, fechadas dentro de uma pequena ilusão e o
que quer que pensem sobre a política será igual.

Imagine um jovem destes aproximando-se de um sujeito de uma outra


geração, um político, que fala grosso, é homem e é um safado, uma
raposa velha. O político come esse rapaz no café-da-manhã e palita os
dentes com os ossinhos. Isto é óbvio.

Imagine a complexidade da cabeça de um FHC. Alguma coisa de ciência


política o FHC entende, ele é capaz de pegar uma situação, ver as
contradições ali e é capaz de jogar com as contradições. Pior ainda, até
o Lula é capaz de fazer isso. Mas essa molecada que está aí, bancando
líder, não é capaz de fazer isto de jeito nenhum. Eu fiquei muito
impressionado com esse negócio desse Ostermann dizer que eu dei
opiniões contraditórias sobre o golpe militar. Não foram duas opiniões
contraditórias, na verdade dei cinquenta: todas são contradições porque
são problemas. Eu estou tentando montar o quadro. Eu até agora não
tenho nenhuma conclusão sobre a questão de golpe militar. Se eu
tivesse, eu teria escrito um artigo fechando o diagnóstico, mas não
consegui fechar ainda, porque me faltam informações. Saber o que se
passa dentro do Estado-Maior é muito difícil, só quem está lá dentro é
que sabe. As discussões militares, às vezes, ecoam um pouco nas
discussões do Clube Militar, às vezes. Mas eu já estive nos dois lugares
e posso garantir que o que se pode falar dentro do Clube Militar é uma
coisa, e o que se pode falar dentro do Estado-Maior é outra coisa.
Dentro do Estado-Maior pode-se falar qualquer coisa, a discussão é
100% livre. No Clube Militar não, há certas coisas que não se deve
falar, não fica bem, já há um problema de opinião pública, não é uma
discussão científica; no Estado-Maior [a discussão] é pretensamente
científica pelo menos.

Nós estamos nas mãos de pessoas que não são capazes de articular um
problema. E isto é regra geral. Mas eles estão lidando com outras
pessoas, de outra geração, que sabem muito bem articular um
problema e sabem o que fazer. Eu penso: se eu fosse um tucano, o que
eu faria diante destas movimentações populares? Supondo-se que eu
chegasse lá e não me deixassem subir no palanque, cuspissem na
minha cara e me mandassem embora. Eu pensaria: eu vou sofrer tudo
isso por causa dessa Dilma? Não, de jeito nenhum, temos de nos livrar
dela e livrar o nosso. Como fazer isso? Não podemos manipular as
massas, mas existem pessoas que foram apontadas pela mídia como
líderes da manifestação ex post facto — ou alguém vai dizer que as
massas saíram às ruas convocadas pelo Fabio Ostermann ou pelo Kim
Kataguiri? Não, elas nem sabem quem as convocou, as palavras de
ordem se espalharam pela Internet, foi uma coisa de louco, muito
rapidamente. A pessoa mais popular que havia ali era o Lobão. O Lobão
chamava as pessoas a ir para a rua, todo mundo ia. O único sujeito que
poderia posar como líder, se quisesse, seria o Lobão, foi ele quem
convocou, foi a voz dele que chegou às pessoas. Os outros não, são
todos uns ilustres desconhecidos. Eu também não posso ser apontado
como líder, pois eu não gritei que fossem para a rua, eu só me limitei a
observar que se precisassem de alguma coisa, eu daria uma força, de
longe.

Além disso, disputar a liderança destas coisas seria um absurdo para


mim, porque política é uma atividade que você deve iniciar aos vinte ou
trinta anos, quarenta no máximo. Já houve casos de pessoas que
começaram suas carreiras políticas aos quarenta anos, mas depois dos
quarenta, ninguém — absolutamente ninguém. Para mim não está mais
na hora, eu já estou fora disso há muito tempo.
Uma coisa que me chamou atenção foi o seguinte: naquelas passeatas
havia milhares de pessoas com cartazes dizendo “Olavo tem razão”. Se
existe alguma pessoa que funcionou como símbolo — não como líder,
mas como símbolo — da manifestação, fui eu. Não havia mais
ninguém, não havia ninguém nem com um cartaz do Lobão, muito
menos um cartaz de Fabio Ostermann, nem Kim. Só havia uma figura,
que era eu. E a mídia vai entrevistar quem? Eu? Não, pegam um cara
chamado Kim, ou outras pessoas insignificantes e fazem deles os
líderes. Foi a mídia que fez isso, a população não os conhecia. Eles se
tornaram conhecidos depois do movimento, graças à mídia: foi um
efeito circular. Preparam, então, esses meninos, para que sejam
comidos pela elite tucana. E eles foram comidos.

O Paulo Ghiraldelli dizia que esse negócio de pedofilia não tinha


problema nenhum, porque eram os meninos que queriam dar para os
adultos. Esta teoria é falsa, mas na política ela é real: os menininhos
vão todos lá para Brasília oferecer as bundinhas para os políticos. Estou
mentindo? Para poder ser comidos por pessoas ilustres, como Hélio
Bicudo, Miguel Reale Junior, Fernando Henrique Cardoso, Zé Serra,
Aécio Neves. É uma coisa tão obviamente impotente, fraca, auto-
destrutiva e moralmente condenável, que nem precisa continuar
analisando, está na cara. E por que isto acontece? Acontece porque as
manifestações de março e setembro foram ejaculações precoces. Não há
líderes preparados, não há ninguém. Se aparecesse algum líder
verdadeiro ali no meio, a mídia não falaria dele de jeito nenhum.

Examine os jornais da mídia dos anos 1915/16/17, você não verá o


nome de Lênin, nunca aparecia. Apareceu só depois do fato
consumado, e no entanto era ele quem estava por trás de tudo. O
governo alemão sabia que era ele quem estava por trás. Por que o
governo alemão não foi contratar Trotsky ou outro qualquer? Porque foi
contratar o cara certo, sabia quem era que estava mandando. Agora
você acha que alguém no governo alemão era idiota de se guiar por
informações da mídia? Não, o governo tem seu próprio serviço secreto,
tem suas próprias informações e sabe quem está mandando.
Se houvesse [nas manifestações] um líder verdadeiro, ele estaria
desaparecido da mídia. Como estes meninos todos apareceram na
mídia, [é claro] que a mídia os fez ex post facto, para poder ter os
instrumentos de manipulação necessários, já que não pode manipular a
massa. Não se tem acesso à massa: se o Zé Serra convocar uma
passeata amanhã, quantas pessoas vão comparecer? Menos do que na
passeata do MST, e todos que forem, vão jogar tomates nele. Aécio
Neves quase chegou a ser um herói nacional, mas preferiu ser mais um
puxa-saco oficial, ele está queimado completamente. Todos estes estão
queimados. Eles não têm acesso à massa, mas podem pegar os líderes e
chamá-los para uma conversação, oferecer algumas vantagens e dar a
eles a ilusão de que, com uma certa facilidade tiram a Dilma do poder e
tudo fica resolvido. E foi exatamente isso que aconteceu.

O problema é justamente a falta uma elite cultural. Não surgirá uma


elite política capaz, sem uma elite cultural antes. Isto é impossível,
ainda que a situação se precipite, como de fato se precipitou, por efeito
do cansaço popular. O povo cansou disso, então tem-se de fato, uma
explosão espontânea, que se tivesse um líder para aproveitá-la, viraria
uma revolução. Como os líderes são esses que têm aí, o que era uma
revolução — o que parecia e tinha todos os meios para ser uma
revolução — virou um conchavo de gabinete, com o sr. Miguel Reale, o
sr. Hélio Bicudo etc., para salvar a tradição histórica dos movimentos
de esquerda. Como disse o próprio Miguel Reale, que eles lutaram
contra os fuzis da ditadura, lutaram pelas Diretas-Já, lutaram contra o
Collor, e agora estão novamente fazendo a mesma coisa.

Pergunte àquele povo que se reuniu nas ruas se eles estão, de fato, na
tradição das Diretas-Já, na tradição na luta contra [o Collor], na
tradição de todos os seus inimigos, na tradição dos ladrões, na tradição
do Foro de São Paulo: é isto que eles estão ali para aplaudir? Claro que
não. No entanto, veja a facilidade com que foi virado, porque tudo isto
não é testado perante a opinião pública, é tudo uma conversa de
gabinete.
Eu espero, eu rezo para que estas pessoas que fizeram isto, o tenham
feito por malícia. Porque se fizeram com boa intenção, são mais idiotas
do que eu mesmo poderia imaginar. Espero que o sr. Fabio Ostermann
seja um sujeito maquiavélico, maligno e que quis ferrar com tudo,
vendendo tudo aos tucanos. Se ele fez isto, então fez bem feito. Porém,
se ele acredita, se fez de boa intenção, se acha que isto vai libertar o
Brasil do PT e do Foro de São Paulo, sinto muito, então acabou a
conversa. Não dá pra conversar com um frango assado, realmente não é
possível.

Eu digo isto para ressalvar, pela milésima vez, a responsabilidade que


vocês têm. Este país só começará a tomar jeito, só haverá uma liderança
política séria, se amanhã ou depois vocês superlotarem as livrarias do
Brasil com livros bons, de sua autoria. Dar um curso, fazer um blog não
adianta. Vocês têm de começar a produzir, e produzir coisa muito séria
e coisa muito boa. Isto é urgente, urgente. Agora, quando eu digo que a
coisa urgente é um negócio de longo prazo, significa que a situação está
muito ruim. É preciso um tratamento já, mas o tratamento levará três
anos para chegar. É esta a situação. Enquanto isso você terá de fazer
uma coisa importantíssima, chamada sobreviver. Tem de ser como o
dramaturgo Gerhart Hauptmann: durante a guerra todo mundo fugia
da Alemanha e ele ficou lá dentro; ninguém tinha ouvido falar dele, ele
sumiu. Quando terminou a guerra, perguntaram o que ele havia feito
durante todo aquele tempo, e ele respondeu que havia sobrevivido. Isto
já é fazer alguma coisa.

Ou seja, onde você não pode agir, você pode sobreviver, e durante a
sobrevida você se fortalece, e se fortalece e se fortalece. E se fortalece,
sobretudo, preparando-se para enfrentar o pior com um sorriso nos
lábios. Vamos supor que venha amanhã um bando de petistas e digam
que vão me levar ao pelotão de fuzilamento. Eu apenas responderia que
é um prazer. Eu aceito isso, eu não tenho nenhum medo da morte, zero
de medo da morte. Se eu ainda tivesse medo da morte com 68 anos, eu
seria um idiota. Pode-se ter medo da morte aos 12 ou 13 anos, quando
[diz que] se tem ainda uma vida inteira para viver. Eu tenho uma vida
inteira para morrer. Você tem de estar preparado para isto, é aquilo dos
Founding Fathers, você tem de sacrificar sua vida, seus bens, sua
liberdade e sua honra; [quando digo isso me questionam] que a honra
não, ficam com medo de ser xingados e de rirem das suas caras. Mas
eles não riem da minha, qual o problema? Eu também rio da deles, isto
não dói.

Eu às vezes fico consternado por ver a burrice e a baixeza dessas


pessoas, mas que isto realmente me ofenda ou me magoe, não. Me
magoaria se a Roxane falasse essas coisas de mim, ou o Pedro falasse
essas coisas de mim, daí sim. Mas esses caras, não. O que se vai esperar
deles? E isto não tem nada a ver com a ideologia política, a burrice e a
ignorância não são monopólio da esquerda. É monopólio de qualquer
pessoa que presuma além de suas forças.

Durante vinte anos, fiz análise da situação política brasileira, e


invariavelmente fiz as previsões acertadas, invariavelmente. Às vezes
não dava certo exatamente no prazo, por exemplo: em uma das eleições
eu disse que o PT criaria um sistema de controle total da opinião
pública; passaram-se duas semanas e ele não criou, começaram a dizer
que eu estava errado; pedi apenas que esperassem. Saber o prazo exato,
só Deus sabe. Aliás, eu quero fazer um parênteses sobre isto. Nos
Estados Unidos, lemos muitas análises apocalípticas, o sujeito pega
algumas coisas na Bíblia e vê o que está acontecendo agora. Regra
geral, infalível, princípio de interpretação bíblica: qualquer semelhança
que você veja entre fatos da Bíblia e fatos do mundo corrente é somente
analógica, sempre. Uma analogia é uma mistura de semelhanças e
diferenças. Isto quer dizer que a analogia existe para despertar a nossa
inteligência, para fazer com que tenhamos mais imaginação e para
despertar novas intuições, é para isto que ela existe. A analogia nunca é
prova de nada, pois ela prova uma coisa e prova a coisa contrária. Aqui
[nos EUA], a mania de previsões apocalípticas chega a tal ponto que os
sujeitos já sabem em que capítulo do Apocalipse nós estamos. Para
saber em que capítulo estamos, é necessário saber quando a história vai
terminar, e [o próprio] Jesus Cristo disse que não sabia quando a
história iria terminar, que só Deus Pai sabia.

Eu sempre interpretei assim: como Jesus Cristo é o Logos Divino, a


Inteligência Divina, e Deus Pai é o Poder Divino, a Onipotência Divina,
o fim do mundo não será uma decisão lógica baseada no Logos, será
um ato livre de Deus Pai Todo Poderoso. É, por excelência,
imprevisível, acabará quando Ele quiser; Ele não tem satisfação a
prestar nem a Ele mesmo. Se é um ato livre e imprevisível, temos um
primeiro ponto (é uma regra de Eric Voegelin): não pode haver uma
teoria geral da história, porque não sabemos quando a história vai
terminar. Não existem leis gerais, se não sabemos como vai terminar,
tudo está em aberto. Pode-se raciocinar dentro de escalas temporais,
limitadas, sabendo que depois destas escalas vêm outras, outras e
outras. Isto é a premissa para que qualquer estudo sobre o movimento
histórico — do mundo em geral ou de um país em particular — seja um
estudo de tipo científico, portanto experimental, sempre “tentativo”.

Eu sei que no Brasil as pessoas não entendem ciência assim. Elas


entendem que ciência é um corpo de dogmas estabelecido de uma vez
por todas, e ao colocar algo em dúvida, a pessoa é um “herege”. É
assim que se faz ciência no Brasil. Outro dia eu disse que podia ser que
o petróleo não fosse um combustível de origem fóssil — isto é apenas
uma teoria, existem outras teorias. Como o pessoal no Brasil não
acompanha a discussão científica internacional, não fica sabendo disso.
Aparece um idiota [afirmando] que eu estou dizendo que o petróleo
não é combustível fóssil. É um caipira que ri daquilo que não sabe.

Teoria da Evolução: vocês já pararam para pensar no volume de livros


que se publicam a favor e contra a Teoria da Evolução? Isso é
inabarcável. Não está no poder humano chegar a uma conclusão sobre
isso, não está mesmo. Alguém pode ter lido quatrocentos livros [sobre
o assunto], mas é publicado o quadringentésimo primeiro e há uma
prova que ele não conhecia, que muda tudo. Ciência é isto — ou não é?
Ou ciência agora é um corpo de dogmas que está fixado de uma vez
para sempre? Claro que não, tudo que é científico pode continuar
sendo discutido eternamente. Pode-se, no máximo, dizer que há mais
probabilidade de que esta teoria esteja certa do que a outra, mas eu
confesso que nem isso sei. Tudo que eu lia a favor da Teoria da
Evolução, me parecia estar certo; eu lia contra, me parecia estar certo
também — e eu não sou nenhuma besta quadrada. Se eu estou em um
estado de inconclusividade, não há vergonha nenhuma você também
estar no inconclusivo.

O petróleo é um combustível fóssil? Até onde eu li, pode ser que seja e
pode ser que não seja. Portanto, nenhuma destas duas teorias é risível
em si mesmas; a risada não é um argumento científico. E assim por
diante. Eu estudo muito mais história do que filosofia, os livros de
filosofia que valem a pena ler são poucos, mas os de história são
muitos, toda hora aparece coisa nova; o sujeito não precisa ser um
grande historiador para descobrir algo que os outros não sabiam. Por
exemplo, Henry Kamen, que escreveu The Spanish Inquisition: A Historical
Revision, não é nenhum Leopold Von Ranke, não é nenhum Jacob
Burckhardt, ele é apenas um cara que descobriu algo importante sobre
a Inquisição Espanhola. Livros deste tipo existem de monte e de
monte. Não só na esfera histórica, na esfera científica também. Outro
dia caiu-me às mãos o livro A Teoria Lunar Esquecida de Newton[1]. O
autor descobriu todo um aspecto das investigações de Newton que
ninguém conhecia, nunca ninguém tinha ouvido falar, e no entanto
estava tudo nos escritos de Newton, ele fez estudos sobre o ano lunar.

Coisas como estas aparecem a toda hora. Sem contar aquelas que não
apareceram agora, mas que você só ficou sabendo agora. Eu sempre
soube, por exemplo, que tinha acontecido uma vasta campanha de
difamação anti-católica, e sobretudo anti-Inquisição, desde o tempo da
Reforma, sempre soube disso. Mas, nestes últimos dias, devido a uma
discussão que surgiu no Facebook, pensei em ler mais coisas sobre
isso, me informar mais. Eu quase caí de costas: descobri que a
campanha havia sido imensamente maior do que eu imaginava. Maior,
mais contínua e toda ela feita de lendas urbanas. Acho que não tem
uma pessoa no Universo, pelo menos no mundo Ocidental, que não
tenha visto no cinema máquinas de tortura usadas pela Inquisição.
Todos os historiadores que entraram no assunto afirmam que tais
máquinas nunca existiram. Mas só os historiadores o dizem, o cinema
continua mostrando as máquinas, o pastor protestante da esquina
continua falando das máquinas. Isto é um fator histórico tão relevante,
mas tão relevante, que praticamente, esse anti-Catolicismo foi a
espinha dorsal da cultura americana do século XIX. Era o único ponto
que havia em comum entre todas as igrejas protestantes, elas não
concordavam em nada, apenas neste ponto: este era o centro
unificador. E era uma força política tão extraordinária, que chegou a
haver processos, já no começo do século XX, para fechar a Igreja
Católica nos Estados Unidos, porque ela representava um risco
iminente para o regime democrático. Um risco inexistente, mas, tal
como aparecia na lenda urbana, o Papa não fazia outra coisa a não ser
conspirar contra a democracia americana — contra a qual ele não fez
nada, zero. Pior, há o livro (e foi o que mais me espantou) Anti-
Catolicismo na Ficção Americana do século XIX[2]. A literatura de ficção
americana foi inundada por esses mitos da Inquisição, o mito de que a
Igreja Católica foi fundada por Constantino e coisas desse tipo.

Isto penetrou tão fundo, mas tão fundo, que chegou a afetar grandes
escritores ingleses e americanos. Henry James caiu nessa, Anthony
Trollope caiu nessa, William Dean Howells — um dos maiores
escritores americanos de todos os tempos — caiu nessa. Na Inglaterra,
Benjamin Disraeli, que era um judeu simpático à Igreja Católica,
escreveu muita coisa a favor da Igreja Católica. Ele teve uma discussão
com o Cardeal Manning a respeito da Irlanda — o Cardeal era a favor
da independência da Irlanda —, e de repente [Disraeli] virou 180 graus
e escreveu um dos romances mais anti-católicos de todos os tempos,
que fez um sucesso mundial. Imaginem alguém que foi Primeiro-
Ministro da Inglaterra e escreve um romance: todos vão ler, ainda que o
romance não seja bom (era bom, na verdade, Disraeli era um excelente
escritor).

Imaginem, então, o prestígio que essa coisa adquiriu: Disraeli, Henry


James, Anthony Trollepe, os maiores. Quando se vai ver, toda esta coisa
era baseada em um único livro, de um historiador que desconhecia a
língua latina, nunca leu nada dos primeiros Padres da Igreja, e que por
sua vez só se baseava em literatura protestante. Vejam a força da lenda
urbana, que começa em mil quinhentos e pouco, e prossegue até agora.
Nunca houve uma campanha de difamação deste tamanho e a
contribuição dos iluministas a isso foi pouca. Os mitos que os
iluministas criaram não chegaram aos Estados Unidos, ficaram apenas
na França. Os mitos adotados pelo anti-Catolicismo americano são
todos de raiz protestante. Os comunistas, depois, não inventaram uma
campanha deste tamanho contra a Igreja Católica, nunca. Esta foi a
maior campanha de difamação de todos os tempos, modelo de todas
que se seguiram. Isto quer dizer que o protestantismo é falso? Claro
que não, quer apenas dizer que os líderes protestantes não prestam
— o que não impede que tenham razão neste ponto ou naquele. Isto,
evidentemente, não é uma discussão teológica, eu não estou discutindo
suas teorias, estou discutindo sua conduta política.

Não precisa nem dizer que coisas deste tipo são interpretadas
automaticamente como uma guerra anti-protestante. Os sujeitos
movem uma guerra publicitária de quatro séculos e pelo simples fato
que digo que isto aconteceu, sou eu que estou movendo a guerra. Aí, a
inversão já vira delírio completo. Que conclusão eu tirei disso? Não
tirei conclusão alguma ainda, por enquanto estou na fase de medir o
tamanho do problema.

Vamos supor que você seja católico e acredite na Santa Madre Igreja, na
doutrina etc.; você já parou para pensar: e se tudo isso for falso? E se a
Igreja Católica estiver 100% enganada? Se você nunca pensou nesta
hipótese, você não pode ter certeza de que a Igreja esteja certa. Se não
há confrontação com a dúvida, a sua fé não vale absolutamente nada. Se
você é apenas uma criancinha e a sua alminha precisa ser cuidada para
que você não tenha tentação, então vamos preservá-lo de todas as
objeções — é como manter um garoto na ilusão de que existe Papai
Noel, os ensinamentos da Igreja vêm junto com isto. Eu me lembro,
quando eu tinha uns 6 ou 7 anos, tudo isto na minha cabeça estava
sintetizado, era uma coisa só: Papai Noel, Jesus Cristo, a Igreja
Católica. Mas, se você já é uma pessoa adulta, quanto vale a sua fé?
Quando vemos a história dos Santos, a história da Igreja, toda doutrina
católica durante dez séculos foi feita no confronto com objeções.
Ninguém chegou e disse que ia formular a doutrina católica; essa idéia
apareceu só no tempo dos escolásticos, na verdade no século XII.
Antes, eram só respostas a objeções, respostas a dúvidas. Toda a
literatura patrística e boa parte da escolástica são discussões com ateus,
inimigos da fé, gente ligada à religião antiga, eles não tinham medo de
nada disso. Imagine se Santo Ambrósio diria que não ia se meter com
esses heréticos, pois eles colocariam dúvidas na cabeça dele. De forma
alguma, ele lia [as objeções], examinava seriamente tudo, queria saber
qual era o problema. Pode ser que o herético ou o ateu seja um sujeito
sincero, e pode ser até que ele revele algum lado da coisa que eu não
havia percebido. Outro dia coloquei este conselho no Facebook: depois
de adquirir os rudimentos do método filosófico e ter alguma cultura
filosófica, você se abrirá a tudo, sem medo de coisa alguma. Você ficará
em uma confusão durante algum tempo, mas é desta confusão que vão
aos poucos aparecendo os delineamentos de algumas certezas
fundamentais, as quais não vão cair mais. Algumas destas certezas são
o que chamo patamares da filosofia. Como por exemplo o
Ápeiron, quando Anaximandro diz que nós vivemos em um mundo
conhecido que boia dentro do desconhecido. Alguém é capaz de refutar
isso? Alguém viveu em algum outro mundo que não esse? Nunca,
ninguém: isso é a certeza final, acabou.

Às vezes, algumas conclusões filosóficas a que você chega


individualmente, também se assentam como pontes, falando que não
são mais derrubáveis, são as chamadas apodícticas — apo quer dizer
não e dêixis quer dizer destruir; então é o indestrutível. Eu acho,
pessoalmente, que um desses pontos é o que eu chamo o intuicionismo
radical. O que é intuição? É percepção de uma presença, percepção
imediata. Imediata é o que não tem intermediário. Dizer que suas
percepções sensíveis, percepções visuais por exemplo, têm um
intermediário que é o seu olho, como diria Kant, é não dizer nada.
Alguém pode dizer que vê através de seu olho, mas é seu olho mesmo
está vendo. O olho é parte de mim, assim como a mão é parte de mim.
A intuição é a percepção imediata de algo que está presente. Pode estar
presente fisicamente, como esta mesa está presente ou estas pessoas
aqui estão presentes; pode ser algo que está presente na sua mente, sob
a forma de um estado de ânimo. Por exemplo: você percebe que você
está triste, tem de haver algum intermediário, alguém tem de vir
informá-lo de que está triste? Você precisa fazer um raciocínio para ver
que está triste? Não. Então, a percepção do sentimento ou emoção é
imediata também. E pode ser a percepção de seu próprio pensamento.
O famoso “penso, logo existo”, de Descartes é isso: uma intuição
imediata que você tem do seu próprio pensamento. Não precisa de um
terceiro pensamento para mediá-lo. Claro, quando você expressa em
palavras, você então cria uma mediação. Mas, esta certeza que você tem
de que você existe enquanto está pensando é uma certeza imediata,
sem sombra de dúvida. Conclusões advindas daí podem ser duvidosas,
mas que isto é uma intuição certíssima, é. E pode ser a intuição de uma
relação entre pensamentos que você pensou. Quando você faz um
silogismo e percebe a identidade entre a premissa e a consequência,
você a percebe não através de um outro pensamento, mas é uma
percepção imediata. Resultado: todo e qualquer conhecimento é
intuitivo ou não é conhecimento de maneira alguma, é apenas a criação
do esquema de pensamento.

Este esquema de pensamento, em primeiro lugar, precisa ser ele


mesmo intuído; em segundo lugar, precisa ver se ele serve como lente
para através dele você perceber alguma coisa. Também tem isso, o
nosso pensamento é necessariamente dialético. Não sei se já
perceberam: você consegue crer numa coisa sem imaginar a coisa
contrária? Ninguém consegue. Se você nem imagina a coisa contrária,
que sentido faz crer? Quando você diz que Deus é bom, não lhe passa
pela cabeça a hipótese de que Deus seja mal? Então você não sabe o
que é ser bom. No momento [em que diz que Deus é bom], você faz a
hipótese gnóstica, o deus maligno (o gênio mal de que falava
Descartes); isto tem de passar pela sua cabeça para que você diga que
Deus é bom. A mente humana, quando pensa uma idéia, sempre pensa
a contrária. A contrária pode anular a primeira idéia ou pode ser
anulada por ela, mas tem de passar por essa dialética. A intuição não é
jamais dialética, para ela só existe o sim. Não existe a intuição do
ausente. Você pode ter a intuição da sua percepção do ausente, mas não
da própria ausência. Por exemplo, a Roxane está sentada na cadeira, de
repente eu olho e ela não está [mais] ali. O que eu intuo é a minha
percepção de ausência, e não a ausência dela. A percepção de ausência é
um pensamento, na verdade, não uma intuição. A intuição é sempre
intuição de presença, portanto todo conhecimento positivo é sempre
intuitivo. Eu acho que, dito isto, posso dizer: ponto final. Não tem
como voltar atrás, isto é uma conclusão a que eu cheguei, não li em
ninguém. Isto quer dizer que, até uma besta quadrada como eu, pode
chegar a alguma conclusão final.

Sim, cheguei a esta conclusão final. E que conclusões eu tiro daí para o
restante do universo do conhecimento? Por enquanto, nenhuma. Nós
podemos ter certezas, mas são sobre pontos definidos, em geral pontos
demasiado genéricos e abstratos. E a realidade concreta, em seu fluxo e
variedade constantes, continua sendo incerta, e o conhecimento dela
vai requerer sempre a mesma paciência, as mesmas contradições, a
mesma confusão interior etc.

Acontece que, na cultura brasileira, a sociedade brasileira é feita de


pessoas frágeis, não é de hoje que é assim. No Brasil não há a tradição
do self made man — que nos Estados Unidos está acabando também, leia
o livro de David Riesman A Multidão Solitária e verá que o self made man
é coisa de uma outra época; durou até os anos 50 e depois acabou,
virou o organization man: o homem que precisa estar dentro do
emprego, com regulamentos etc., apoiado em todo um aparato (é o
contrário do self made man) é um homem feito pelos outros, feito pelo
cargo. No Brasil, o self made man nunca existiu. Quando existia algum,
era um tipo como os bandeirantes ou os coronéis do sertão. Era um
sujeito fortão e muito mau, que dominava todo mundo e todo mundo
se encolhia perto dele. O povo não era constituído de self made men, a
população brasileira no século XIX era metade constituída de escravos,
que, quando veio a libertação, levaram 30 ou 40 anos para começar a
ter um empreguinho. Ou seja, viveram sempre esmagados, sempre no
fundo da sociedade e, evidentemente, com medo e com incerteza. Este
medo e esta incerteza ainda estão no coração do brasileiro, não por
culpa dele, mas as circunstâncias históricas fizeram dele isso.

Só há dois jeitos destas pessoas inseguras venceram a insegurança, [e


um deles é] começar a fazer uma por uma aquelas coisas das quais elas
têm medo, para vencer o medo. Eu fiz isso desde moleque. Se eu tenho
medo de alguma coisa, é lá mesmo que vou me meter, pois não quero
mais continuar com medo, quero vencer o medo. Para vencer o medo,
você tem primeiro de reconhecer que o tem. A outra maneira [de
vencer a insegurança] é se apegar a uma garantia externa. Esta garantia
externa pode ser uma religião, um cargo, um partido político, uma
ideologia, um grupo de amigos, um título universitário: pode ser
qualquer porcaria, mas não é você. E justamente por causa disto, as
crenças a que o sujeito adere no começo da vida são muletas
psicológicas. Não são coisas nas quais ele realmente crê, mas são coisas
das quais ele precisa para sentir que está de pé. Se você tira a muleta
dele, ele sente que vai cair. Na verdade não vai cair coisa nenhuma, vai
continuar em pé, o que há é o medo de cair.

As pessoas se apegam desesperadamente a coisas nas quais, no fundo,


elas não acreditam de jeito nenhum; das quais apenas precisam para
manter a sua segurança psicológica. Por isto, toda discussão fica muito
difícil e isto vai continuar assim enquanto não houver uma verdadeira
discussão de elite intelectual para dar exemplo às outras pessoas.
Exemplo de uma multidão de pessoas que não tem medo dos fatos
contraditórios, não tem medo da dificuldade, não tem medo de ter as
suas queridas idéias desmentidas, que já as teve desmentidas muitas
vezes e ainda terá outras. Não importa [ter as idéias desmentidas],
vamos continuar. É este exemplo que vocês terão de dar.
Outra característica do brasileiro é que, por ser um sujeito fraco,
considera-se um “zé-ninguém”, e por isto mesmo tem um terror pânico
de desempenhar um papel público maior. Quando tenta desempenhar
um é através de um cargo, uma posição oficial na sociedade que lhe dá
sustentação. Ora, a intelectualidade é feita de indivíduos isolados, que,
sem nenhuma base em partido, igreja ou panelinha, mostram a cara e
dizem o que estão vendo. As famosas impressões autênticas de que
falava Saul Bellow. O primeiro intelectual no sentido moderno foi
Dante Alighieri, que era um “zé-mané” qualquer, mas era um gênio da
língua italiana: escreveu um longo poema no qual colocava no inferno
meio dúzia de papas, príncipes e esculhambava com todo mundo. E ele
sozinho exerceu mais influência do que todos esses. Esta força é o que
se chama majestas veritatis, a majestade da verdade: o que o sujeito está
falando é simplesmente verdade, não interessa quem é ele. Ele se
impõe pela majestas veritatis. É isto que se vê quando se lê os grandes
clássicos da literatura. Alguém uma vez disse que ler Tolstói era como
se a própria vida falasse. Não é autoridade de Tolstói, é a autoridade da
vida, é a verdade que transparece mesmo. Ainda que Tolstói tivesse mil
idéias erradas, quando ele contava as coisas, era como se a própria vida
falasse.

O que nós fazemos tem de ser assim, tem de ter a autoridade da


verdade que passa através de nós. Ela pode passar de uma maneira
imperfeita, não tem importância. Enquanto não for restaurada esta
majestade da verdade no Brasil, não haverá também majestade da
moralidade, da honestidade, da santidade, nem coisa nenhuma. A falta
de grandeza moral no Brasil de hoje é uma coisa assustadora. Só se vê
mesquinharia, só baixaria, picuinha; isso em um país de 200 milhões
de habitantes.

A imagem da nação é vista através das classes falantes, [e com isto] não
estou querendo dizer que na massa popular não existam santos e
heróis. Claro que existem, só que não os conhecemos, só vemos as
classes falantes e é nelas que só vemos mesquinharia, mentira,
fingimento, teatrinho, a um ponto tal, que às vezes penso em desistir
da nacionalidade brasileira. Eu não quero ser isso. Não desisti ainda,
mas que dá vontade, dá e acho que muita gente sente isso. Você não
quer aparecer perante o mundo com este carimbo em você — o carimbo
daquela nação de ladrõezinhos, mentirosinhos, fingidos. O que é isto?
Cadê os seus heróis, cadê os seus santos? Cadê os seus gênios? Não
tem. Isto tudo acabou porque é só a alta cultura que gera isto. Então,
[vocês têm de] entender a sua missão.

[1] Newton’s Forgotten Lunar Theory: His contribution to the quest for
longitude, Nicholas Kollerstrom

[2] Anti-Catholicism and Nineteenth-Century Fiction, Susan M. Griffin

[intervalo]

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