Charles Sheffield - Maré de Verão22

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MARÉ DE VERÃO
Faltava pouco tempo para a Maré de Verão, o momento em que
os planetas gêmeos Opala e Tremor estariam mais próximos do seu sol, o
que submeteria ambos — Tremor, em particular — a gigantescas marés.
E aquela seria a mais violenta Maré de Verão da história, graças à Grande
Conjugação de estrelas e planetas do sistema, algo que acontecia apenas
uma vez a cada 350.000 anos.
As visitas a Tremor naquela época do ano eram proibidas, mas al-
gumas pessoas muito insistentes estavam decididas a fazer a viagem. A
professora Darya Lang, que dedicara a vida a estudar os artefatos dei-
xados por alienígenas há muito desaparecidos, conhecidos como Cons-
trutores, tinha o palpite que durante a Maré de Verão poderia encontrar
a pedra fundamental de sua pesquisa; Lois Nenda e a cecropiana Atvar
H’sial tinham seus próprios interesses em Tremor e estavam dispostos a
tudo para chegar lá; e o conselheiro Julius Graves estava na pista de duas
assassinas. Se elas estivessem escondidas em Tremor, não precisaria da
autorização de ninguém para ir até lá prendê-las.
A Hans Rebka e Max Perry, funcionários do governo local, não res-
tava opção a não ser viajarem também para Tremor, arriscando a própria
vida para proteger a dos visitantes... e descobrir, talvez, o segredo dos
Construtores e da Maré de Verão...
Um dos mais importantes escritores de ficção científica da atuali-
dade, Charles Sheffield é cientista-chefe da Earth Satellite Corporation.
Nascido e educado na Inglaterra, tem os graus de bacharel e mestre em
matemática e doutorado em física teórica.

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Charles Sheffield

MARÉ DE VERÃO

Tradução de
Ronaldo Sergio de Biasi

Editora Record

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Prólogo

Ano 1086 da Expansão (3170 d.C.)

Um silêncio de noventa e sete anos estava terminando.


Durante quase um século, o interior da nave não ouvira nenhuma
voz de humanos nem sentira qualquer pegada humana. O veículo seguira
seu caminho por entre as estrelas, enquanto os passageiros hibernavam,
sem sonhos, próximo ao zero absoluto. Uma vez por ano, seus corpos
eram aquecidos até a temperatura do nitrogênio líquido, enquanto as
mesmas experiências eram implantadas em todos os cérebros a partir do
banco de dados central da nave: memórias de cem anos de viagem inte-
restelar, para corpos que envelheceriam menos de um dia.
Nas semanas finais de desaceleração, chegou a hora de iniciar o
processo de despertá-los. Quando chegassem ao destino, talvez fosse ne-
cessário tomar decisões que estivessem além da capacidade das máqui-
nas de bordo... uma idéia que o computador principal da nave, o primeiro
do seu tipo a ser equipado com os circuitos emocionais de Karlan, consi-
derava ao mesmo tempo ridícula e insultuosa.
Primeiro, os corpos foram aquecidos. Sensores internos captaram
o ruído tranquilizador dos corações que voltavam a bater, os suspiros e
murmúrios dos pulmões que voltavam a funcionar. A equipe de emergên-

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cia seria acordada primeiro, de dois em dois, na ordem inversa daquela
em que haviam entrado em hibernação; só com a aprovação deles os ou-
tros seriam despertados.
A primeira dupla recuperou a consciência com uma única pergunta
no cérebro: tinham chegado ao destino... ou algo inesperado ocorrera?
O computador havia sido programado para acordá-los apenas em
três circunstâncias. Seriam chamados se a nave estivesse se aproximando
do objetivo, Lacoste-32B, uma estrela anã da classe G-2, situada a três
anos-luz de distância do farol estelar rosado que era Aldebarã. Seu sono
seria interrompido se ocorresse algum desastre no interior da gigantesca
nave elipsoidal de meio quilômetro de comprimento, um problema sério
demais para que o computador pudesse resolvê-lo sem intervenção hu-
mana.
A última possibilidade era de que um dos sonhos mais antigos dos
astronautas se tornasse realidade:
T/l — Transferência Imediata; Transição Interestelar; Transporte
Instantâneo; o sistema de propulsão superluminal que revolucionaria a
exploração do espaço.
Havia mais de mil anos que as naves de exploração e colonização
vagavam pelo espaço, ampliando a esfera de influência da Terra. O milê-
nio resultara em quarenta colônias, distribuídas em um globo com centro
no Sol e setenta anos-luz de diâmetro. Entretanto, cada centímetro da-
quela esfera tinha sido percorrido a menos de um quinto da velocidade da
luz. E todas as colônias, mesmo as menores e mais isoladas, possuíam um
programa de pesquisa que buscava a propulsão superluminal...
As primeiras duas pessoas a serem acordadas foram um homem
e uma mulher. Eles lutaram contra a lassidão de um século, examinaram
os relatórios do computador sobre o estado da nave e compartilharam o
alívio que sentiram. Não ocorrera nenhum desastre. Não havia qualquer
mensagem de emergência, nenhuma notícia de um invento revolucio-
nário. Não haveria um grupo de viajantes superluminais para esperá-los
quando chegassem a Lacoste.
À frente da nave, o disco da estrela-alvo já era visível a olho nu.
A existência de pelo menos dois grandes planetas havia sido deduzida
muito tempo atrás, a partir de medidas da perturbação gravitacional da
estrela. Agora, a existência desses planetas podia ser confirmada por ob-
servação direta, juntamente com cinco planetas menores e mais próxi-
mos da estrela.
A mulher estava se recuperando com maior rapidez que o homem.
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Foi ela que deixou primeiro a unidade de hibernação Schindler, pôs-se
de pé com dificuldade no campo de um décimo de g e foi examinar os
monitores. Deixou escapar um som grave, um grunhido de satisfação emi-
tido por cordas vocais que fazia muito não eram usadas, seguido por um
pigarro.
— Conseguimos! Lá está ela.
E estava mesmo. O disco dourado de Lacoste ocupava o centro do
monitor. Dois minutos depois, o homem estava ao seu lado, ainda lim-
pando do rosto os restos de geléia protetora. Ele tocou o braço da com-
panheira, em um gesto de congratulações, alívio e amor. Os dois eram
companheiros permanentes.
— Hora de acordar os outros.
— Daqui a alguns minutos — disse a mulher. — Lembre-se de Kap-
teyn. Primeiro vamos ver se vale a pena.
O exemplo da estrela de Kapteyn estava na memória de todos os
exploradores: oito planetas, todos aparentemente com um potencial ma-
ravilhoso; todos, quando examinados mais de perto, totalmente inabitá-
veis. A primeira nave de colonização a visitar o sistema não tivera recursos
suficientes para alcançar nenhum dos alvos secundários.
— Estamos a apenas dois dias-luz de distância — prosseguiu a mu-
lher. — Podemos iniciar a investigação. Vamos procurar atmosferas com
oxigênio antes de acordar mais alguém.
O computador de bordo recebeu o comando e respondeu quase
imediatamente. Um planeta com oxigênio, disse, com sua voz suave. A
probabilidade de vida é de 0,92. A imagem no monitor foi ampliada e
deslocada, de modo que Lacoste cresceu rapidamente a princípio e de-
pois desapareceu na parte superior da tela, enquanto um novo ponto lu-
minoso aparecia no centro da tela e aumentava até preenchê-la quase
totalmente.
É o quarto planeta, disse o computador. Figura de mérito global
para isomorfismo com a Terra, 0,86. Distância média, 1,22; faixa de tem-
peraturas médias, de 0,89 a 1,04; inclinação do eixo...
— Que diabo é isso?
O computador interrompeu o que estava dizendo. A pergunta do
homem era incompreensível.
No centro da tela estava um planeta, uma esfera azul-acinzentada
vista com ampliação suficiente para mostrar as largas faixas e vórtices as-
sociados aos padrões de circulação atmosférica. Entretanto, também era
visível uma rede de linhas finas e espirais luminosas que envolvia todo o
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planeta.
— Alguém chegou aqui na nossa frente... — A mulher não termi-
nou a frase. Os planetas habitados estavam em constante comunicação. A
velocidade dos sinais era limitada à velocidade da luz, mas mesmo assim
ela não podia acreditar que uma nave de exploração pudesse ser enviada
a Lacoste sem que eles tomassem conhecimento. E se outra nave tivesse
mesmo chegado ali, a escala do que estavam vendo ia além do que qual-
quer expedição colonizadora poderia fazer em alguns anos.
Ou mesmo em alguns séculos.
— Vista panorâmica.
O computador ouviu as palavras da mulher e ajustou a imagem. O
planeta diminuiu para o tamanho de uma ervilha, tornando-se um peque-
no ponto luminoso no centro da tela. As estruturas espaciais que o cerca-
vam foram reveladas em toda a sua majestade, um emaranhado de fios
nacarados no qual o planeta se aninhava como uma pérola em uma ostra.
Frágeis tentáculos artificiais se estendiam em todas as direções, cada vez
mais finos, até atingirem o limite de resolução dos sensores da nave.
— Não são gente como nós, Tamara — murmurou o homem. —
Não são da nossa espécie.
Nenhuma obra humana, nem as cidades em forma de anel que cer-
cavam a Terra, sequer se aproximava daquilo em tamanho e complexida-
de. Alguns dos filamentos que envolviam o planeta deviam ter mais de
quatrocentos mil quilômetros de comprimento e vários quilômetros de
diâmetro. Deveriam ter sido feitos em pedaços pelas forças gravitacio-
nais do planeta, pelas suas próprias interações. No entanto, estavam ali,
intactos.
— Hora de acordar os outros — disse Tamara.
— E depois?
— Depois... — ela suspirou — ...depois, não sei o que vamos fazer.
Aconteceu, afinal, Damon. Encontramos outra espécie inteligente. E tec-
nologicamente muito avançada. Mas se eles puderam construir aquilo —
apontou para a fantástica estrutura mostrada na tela, e sua voz se tornou
rouca —, por que não foram eles que nos encontraram e não nós a eles?
Bem, acho que saberemos a resposta daqui a alguns dias.

Três semanas depois, os módulos de desembarque estavam se


aproximando das veias e artérias do artefato espacial. Durante quinze
dias, a nave-mãe se mantivera a cinco milhões de quilômetros de distân-
cia, esperando que os habitantes do planeta respondessem de alguma
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forma aos sinais de rádio e de laser. Entretanto, o silêncio havia sido total.
Por fim, decidiram aproximar-se e começar a exploração direta.
Vistos de perto, os filamentos nebulosos se transformaram em
estruturas sólidas que se ligavam para formar uma rede de proporções
colossais. Eles se estendiam até a superfície do planeta, um mundo desa-
bitado aparentemente propício à colonização humana, mas os tentáculos
também se prolongavam até as profundezas do espaço, com objetivos
que seria impossível adivinhar.
E não podiam contar com quem construíra tudo aquilo para expli-
car esses objetivos; assim como o planeta, o artefato também era desa-
bitado.
Tamara e Damon Savalle fizeram o seu módulo se mover paralela-
mente a um dos filamentos, um tubo de polímero e metal de três quilô-
metros de diâmetro e cinquenta mil de comprimento. Máquinas de ma-
nutenção se deslocavam ao longo da superfície interna, movendo-se tão
lentamente que seu movimento era quase imperceptível. As máquinas
ignoraram totalmente o pequeno módulo.
Tamara estava no painel de comunicações, em contato com a nave­
-mãe.
— O computador confirma: nossas análises baseadas nos danos
causados por meteoros estavam corretas — disse ela. — A estrutura tem
pelo menos dez milhões de anos e está desabitada há mais de três mi-
lhões de anos. E não vejo nenhum motivo para você estar sorrindo.
— Sinto muito — disse Damon, com ar de quem não estava sendo
sincero. — Eu pensava no velho paradoxo de antes da Expansão. Se os
alienígenas existem, onde estão! Vinte dias atrás, achávamos que sabía-
mos a resposta: os alienígenas não existem. Agora, temos que repetir a
pergunta. Onde eles estão, Tammy? Quem terá construído tudo isto? E
onde está quem construiu?
A moça deu de ombros. A pergunta de Damon continuaria sem res-
posta por mais de três mil anos.
Enquanto eles olhavam maravilhados, uma fraca transmissão esta-
va chegando à nave-mãe, vinda de uma colônia pequena mas combativa
em Eta de Cassiopeia A. A mensagem falava de uma teoria física nova e
curiosa, baseada na estatística de Bose-Einstein, e também de uma expe-
riência sutil e complexa, que só poderia ser realizada no espaço e estava
muito além dos recursos limitados da pequena colônia.
Como a atenção de todos em Lacoste se achava voltada para os
Construtores, a mensagem foi totalmente ignorada.
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Entretanto, os Construtores já não existiam havia muito tempo, e
as viagens superluminais estavam para se tornar uma realidade.

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ARTEFATO: CASULO
N0 de série: 1
Coordenadas galácticas: 26.223,489/14.599,029/+ 112,58
Nome: Casulo
Conjunto estrela/planeta: Lacoste/Savalle
Nó de Bose mais próximo: 99
Idade estimada: 10,464 ± 0,41 megaanos
História da exploração: O Casulo ocupa um lugar especial na história da
humanidade, como primeiro artefato a ser descoberto por exploradores hu-
manos, assim como Cúspide (N.° 300) foi o primeiro a ser descoberto pelos
cecropianos. O Casulo foi descoberto em 1086 E. por uma nave colonizadora
que estava à procura de planetas habitáveis no sistema de Lacoste.
Descrição: A forma do Casulo é uma extensão para três dimensões das
cidades em forma de anel encontradas nas vizinhanças de muitos mundos ha-
bitados. Entretanto, vai bem além das montagens usuais no plano equatorial,
tanto em extensão quanto, presumivelmente, em funcionamento. O artefato
utiliza quarenta e oito Pilares Principais, que ligam o Casulo à superfície do
planeta ao longo do equador e sustentam um anel circular a uma altitude
constante. Quatrocentos e trinta e dois mil filamentos exteriores se estendem
a quinhentos mil quilômetros do planeta. Não existem dois filamentos iguais,
mas os tubos cilíndricos ocos têm um raio exterior de dois a quatro quilôme-
tros. Vista de vários pontos, a superfície de Savalle apresenta-se totalmente
oculta pelo Casulo. Os corredores do interior do Casulo são patrulhados por
fagos (N0 1.067). Os exploradores devem estar conscientes deste perigo.
Estrutura: O Casulo é feito dos mesmos polímeros de alta resistência
usados na maioria dos artefatos dos Construtores. A ausência de um segundo
satélite natural de Savalle, embora os dados arqueológicos indiquem clara-
mente que ocorreram marés causadas por dois satélites até doze milhões de
anos atrás, é uma indicação de que a lua hoje desaparecida foi a fonte princi-
pal de matérias-primas para a construção do Casulo.
Os filamentos do Casulo são mantidos em posição estável pelo equi-
líbrio entre a força gravitacional, a força centrífuga e a pressão de radiação.
Não é necessário imaginar nenhum mecanismo desconhecido para explicar
essa estabilidade, mas o projeto do sistema exige a solução de problemas de
otimização que estão além da capacidade dos melhores computadores conhe-
cidos nos dias de hoje. O problema foi submetido ao Elefante (NP 859), que
chegou a uma solução parcial (o chamado Problema Restrito do Casulo) em
quatro anos-padrão de computação.
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Finalidade: O Casulo tem poucos segredos; um deles é a necessidade de
um sistema tão grande. Os Pilares Principais permitem transportar materiais
da superfície do planeta para o espaço e vice-versa a um custo insignificante;
com o auxílio dos Filamentos Exteriores, é possível transferir uma carga para
qualquer ponto do sistema estelar de Lacoste, usando o princípio da transfe-
rência de momento. A capacidade do Casulo é gigantesca: em princípio, seria
possível transferir anualmente um cinquenta mil avos da massa de Savalle
para o espaço, o suficiente para reduzir apreciavelmente a velocidade de rota-
ção e alterar em dois segundos a duração do dia de Savalle.,

— Do Catálogo Lang Universal de Artefatos


Quarta Edição.

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Capítulo 1

Ano 4135 da Expansão (6219 d.C.)

ONDE ESTOU?
Um homem que conhecia cinquenta planetas e tivera uma cente-
na de empregos difíceis, saindo-se bem em todos, devia ser como um
gato, girando instintivamente o corpo para aterrissar de pé em qualquer
situação. Recentemente, porém, ele se sentia exatamente o oposto, mais
desorientado a cada nova tarefa.
Hans Rebka acordou e ficou de olhos fechados, esperando que a
memória do lugar e do que tinha a fazer tomasse conta do seu cérebro.
Quando isso aconteceu, a confusão foi substituída pela irritação.
Uma semana antes, estivera em órbita em torno do Paradoxo, pre-
parando-se para uma das missões mais delicadas de sua vida. Ele e três
companheiros tinham que entrar na esfera do Paradoxo, levando com
eles um novo tipo de blindagem e um modelo totalmente novo de sensor.
Se fossem bem-sucedidos, conseguiriam pela primeira vez extrair infor-
mações do interior do Paradoxo. Talvez descobrissem até mesmo alguma
coisa sobre os Construtores.
Para Rebka, o Paradoxo constituía-se na mais enigmática de todas
as estruturas dos Construtores. Era fácil entrar na escura esfera de cin-

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quenta quilômetros de diâmetro, mas impossível sair dela sem que todas
as memórias, orgânicas e inorgânicas, fossem apagadas. Os computado-
res emergiam com todos os registros zerados. Os humanos que haviam
entrado na estrutura tinham voltado com as mentes de recém-nascidos.
Depois de algum tempo, as tentativas de exploração haviam sido
abandonadas. Ultimamente, porém, aqueles que visitavam a região do
Paradoxo tinham observado algumas alterações. A aparência externa da
esfera havia mudado; talvez o mesmo tivesse ocorrido com o estado in-
terno. Valia a pena tentar mais uma vez.
Era uma missão perigosa, mas Hans Rebka estava ansioso para co-
meçar. Tinha se apresentado como voluntário e fora escolhido para chefe
da missão.
Foi então que chegou a mensagem, um dia antes da data marcada
para entrarem no Paradoxo.
— O senhor foi designado para uma outra missão... — A voz era
fina e sibilante, reduzida em seu espectro de frequências pela passagem
através do sistema de comunicações de Bose. — ...no sistema de dois
planetas de Dobelle. Deve partir sem demora...
A voz artificialmente aguda não tinha nada de autoritária, mas o
comando partia do mais alto nível de governo do Círculo de Phemus. E
era uma missão apenas para Rebka; os companheiros partiriam no dia
seguinte para explorar o Paradoxo. A princípio, soou como uma honra,
um privilégio, que ele tivesse sido o único escolhido para a nova missão.
Entretanto, quando lhe explicaram o que teria que fazer, Rebka sentiu-se
confuso.
Ele conhecia os próprios talentos. Era um homem prático, acostu-
mado a fazer e consertar coisas; nisso, era muito bom. Sabia pensar com
os pés no chão e improvisar soluções para problemas difíceis em tempo
real; era um produto típico do seu planeta natal, Teufel.
“Que pecados deve um homem cometer, em quantas vidas passa-
das, para nascer em Teufel?” Metade do braço da espiral conhecia aquele
ditado. Como todos os planetas do Círculo de Phemus, Teufel era muito
pobre de recursos naturais. Habitado em última instância quando os sis-
temas vitais de uma velha nave de colonização começaram a falhar, era
também um planeta maldito, excessivamente quente, pequeno demais,
com uma atmosfera quase irrespirável. A expectativa de vida dos huma-
nos que chegavam à maturidade em Teufel — a maioria não chegava —
era de menos da metade da média do Círculo de Phemus e inferior a um
terço da dos habitantes de qualquer mundo da Quarta Aliança. As pesso-
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as nascidas e criadas em Teufel desenvolviam um forte instinto de auto-
preservação antes mesmo de começarem a falar... ou não viviam tempo
suficiente para aprenderem a falar.
Rebka era um homem franzino, cabeçudo, com mãos e pés grandes
demais para o corpo. Tinha a aparência abatida, ligeiramente deforma-
da, de alguém que sofrera de desnutrição e falta de vitaminas durante
a infância. Entretanto, as privações não haviam afetado a capacidade do
seu cérebro. Aprendera cedo a compreender a realidade da vida, pois
tinha oito anos quando vira pela primeira vez um vídeo sobre os mundos
abastados da Aliança que faziam fronteira com o Círculo de Phemus. As
imagens o deixaram furioso. Então aprendeu a usar a raiva que sentia, a
canalizá-la e controlá-la para que se tornasse a força propulsora do seu
progresso, ao mesmo tempo que aprendia a esconder os sentimentos
atrás de um sorriso. Aos doze anos, já conseguira sair de Teufel e estava
em um programa de treinamento do governo do Círculo de Phemus.
Rebka se orgulhava do seu passado. Começando praticamente do
nada, progredira continuamente durante vinte e cinco anos. Dirigira gran-
des projetos de terraformação, tomando os corpos celestes mais áridos
e pouco hospitaleiros e transformando-os em verdadeiros paraísos (um
dia faria a mesma coisa com Teufel); comandara perigosas expedições ao
coração da região de cometas de antimatéria, longe de qualquer possibi-
lidade de socorro se alguma coisa desse errado; voara tão perto da super-
fície de uma estrela que as radiações haviam tornado a comunicação im-
possível e a nave voltara da missão totalmente imprestável. E comandara
um grupo de exploração em uma visita quase legendária ao Zirkelloch, a
singularidade toroidal do espaço-tempo que ficava na terra-de-ninguém
entre os mundos da Quarta Aliança e os da Federação de Cecrópia.
Tudo isso. E de repente... — quando pensou no assunto, a confusão
foi substituída pela raiva; a raiva ainda era sua aliada — ...de repente, ha-
via sido rebaixado. Tinham-lhe retirado, sem nenhuma explicação, todas
as responsabilidades e fora enviado a um mundo distante, sem impor-
tância, para servir de babá ou confessor de alguém dez anos mais moço.
— Afinal, quem é esse Max Perry? Por que ele é importante?
Rebka fizera essa pergunta durante a primeira entrevista, assim
que o sistema duplo de Dobelle se tornou mais do que um nome para
ele. Porque Dobelle era um lugar insignificante. Os dois planetas, Opala
e Tremor, que giravam em torno de uma estrela de segunda classe, lon-
ge dos grandes centros daquele braço da espiral, eram quase tão pobres
quanto Teufel.
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Escaldante, Desolado, Teufel, Estige, Caldeirão... às vezes Rebka ti-
nha a impressão de que a pobreza era a única coisa em comum entre eles,
a única coisa que os mantinha unidos entre si e separados dos vizinhos
mais ricos. E, de acordo com os registros, Dobelle merecia pertencer ao
grupo.
Os dados a respeito de Perry também lhe foram transmitidos, para
que pudesse examiná-los com calma. Como era típico do seu tempera-
mento, Hans Rebka tratou de estudá-los sem perda de tempo. Não faziam
muito sentido. Max Perry tivera uma infância tão pobre quanto Rebka. Era
um refugiado de Escaldante, e, como Rebka, subira rapidamente na vida.
Aparentemente, estava destinado a um alto posto no governo do Círculo.
Como parte do processo de formação dos futuros líderes, tinha sido des-
tacado para passar um ano servindo em Dobelle.
Sete anos depois, ainda não havia voltado. Quando lhe ofereceram
promoções, recusara. Quando tentaram pressioná-lo para sair do sistema
de Dobelle, ignorara as pressões.
— Ele representa para nós um grande investimento — murmurou
a voz distante. — Nós o treinamos durante muitos anos. Queremos que
ele nos pague pelo investimento... como o senhor nos pagou. Descubra
a causa dos seus problemas. Convença-o a voltar, ou pelo menos a nos
dizer por que se recusa a fazê-lo. Ele ignorou uma ordem direta. Opala e
Tremor precisam desesperadamente de mão-de-obra qualificada, e a lei
de Dobelle não permite a extradição.
— Ele não vai me dizer nada. Por que o faria?
— O senhor está indo para Dobelle como supervisor de Perry. Con-
seguimos que fosse criada uma nova posição na oligarquia, um nível aci-
ma da dele. O senhor irá ocupar essa posição. Também achamos que um
simples interrogatório não fará Perry revelar seus motivos. Isso já foi ten-
tado. Use as suas qualidades. Use a sua sutileza. Use a sua iniciativa. — A
voz fez uma pausa. — Use a sua raiva.
— Não estou com raiva de Perry.
Rebka fez outras perguntas, mas as respostas não o ajudaram em
nada. A missão inteira não parecia fazer sentido. O comitê central do Cír-
culo de Phemus podia desperdiçar seus recursos, se assim quisesse, mas
era um erro primário desperdiçar os talentos de Rebka — ele não era um
adepto da falsa modéstia — em um caso que parecia mais apropriado
para um psiquiatra. Ou será que eles também já tinham tentado usar um,
sem sucesso?
Hans Rebka colocou as pernas para fora da cama e foi até a janela.
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Olhou para cima. Depois de uma viagem de três dias, passando por cinco
nós da Rede Bose, e de um trecho final em velocidade subluminal, ha-
via finalmente pousado no hemisfério estrelado de Opala. Mas falar de
hemisfério estrelado era apenas uma piada de mau gosto; embora fosse
noite, não havia uma só estrela no céu. Naquela época do ano, perto da
Maré de Verão, era raro aparecer uma brecha nas nuvens que envolviam
o planeta. Ao se aproximar de Opala, não vira nada a não ser um globo
uniformemente branco. O mundo inteiro era coberto pela água, e quando
Dobelle atingia o máximo de aproximação de sua estrela companheira,
Mandel, as Marés de Verão chegavam ao auge e os oceanos de Opala
nunca viam a luz do sol. A segurança estava apenas nas Fundas, jangadas
naturais de terra e vegetação que vagavam na superfície de Opala, ao
sabor dos ventos e das marés.
As maiores Fundas tinham centenas de quilômetros de largura. O
espaçoporto estava localizado em uma delas. Mesmo assim, Rebka imagi-
nou o que aconteceria com ele durante a Maré de Verão. Para onde iria?
Conseguiria resistir à força das águas?
Se Teufel, seu mundo natal, tinha sido Fogo, Opala sem dúvida era
Água.
E Tremor, o outro planeta do sistema de Dobelle?
O Inferno, pelo que sabia. Em tudo que Rebka lera ou ouvira a res-
peito de Tremor, não havia uma única palavra favorável. O que acontecia
em Opala durante a Maré de Verão podia ser assombroso, assustador...
mas havia maneiras de sobreviver. Em Tremor, isso era impossível.
Olhou de novo para o céu e ficou sobressaltado ao perceber que
já era dia claro. Opala e Tremor estavam em ressonância gravitacional e
giravam em torno do centro de massa comum com uma velocidade es-
pantosa. Um dia no sistema de Dobelle tinha apenas oito horas-padrão.
Enquanto pensava, o dia amanhecera. Teria tempo apenas para um rápi-
do desjejum; depois, um carro aéreo o levaria para o outro lado do plane-
ta... e para a missão mais estúpida e improdutiva de toda a sua carreira.
Rebka praguejou baixinho, amaldiçoando o nome de Max Perry, e
se dirigiu para a porta. Ainda não conhecia o homem, mas tinha certeza
de que iria antipatizar com ele.

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ARTEFATO: PARADOXO
N° de série: 35
Coordenadas galácticas: 27.312,443/15.917,902/135,66
Nome: Paradoxo
Conjunto estrela/planeta: Darien/Kleindienst
Nó de Bose mais próximo: 139
Idade estimada: 9,112 ± 0,11 megaanos
História da exploração: Não se sabe quantas vezes o Paradoxo foi desco-
berto para logo depois todo o conhecimento a respeito ser perdido. O que se
sabe é que, em 1379 E., Ruttledge, Kaminski, Parzen e Lu-lan organizaram
uma expedição de duas naves para investigar a anomalia da retração de luz
hoje conhecida como Paradoxo
Chegando primeiro, Ruttledge e Kaminski registraram no computador
principal da nave a intenção de entrar na esfera do Paradoxo usando o mó-
dulo de exploração, deixando a nave-mãe a uma distância segura. Cinco dias
depois, Parzen e Lu-lan chegaram e encontraram a outra nave e seu módulo,
ambos em perfeitas condições. Ruttledge e Kaminski estavam no módulo,
vivos mas seriamente desidratados e desnutridos. Não podiam falar nem exe-
cutar movimentos simples, e exames posteriores revelaram que suas memó-
rias não continham mais informações que a de um bebê recém-nascido. Os
bancos de dados e a memória principal do computador do módulo tinham
sido totalmente apagados.
Depois de examinarem os registros da outra nave, Parzen e Lu-lan tira-
ram a sorte para ver quem faria a segunda viagem ao interior da esfera. Lu-lan
ganhou e foi. Depois que ele entrou no Paradoxo, Parzen não recebeu mais
nenhuma comunicação, embora tivesse ficado combinado que Lu-lan man-
daria uma mensagem a cada quatro horas. Lu-lan voltou, em boas condições
físicas, depois de três dias Sua memória não continha nenhuma informação
aprendida, embora os conhecimentos somáticos (instintivos) permanecessem
intactos
Em 1557 E., o Paradoxo foi considerado zona proibida para todos,
exceto os investigadores especialmente treinados.
Descrição: O Paradoxo é uma região esférica, com cinquenta quilôme-
tros de diâmetro. A superfície externa apresenta variações de cor tipo “bolha
de sabão”, refletindo ou transmitindo radiações de diferentes comprimentos
de onda de forma aparentemente aleatória.
A esfera é opaca em certas regiões do espectro (1,2 a 223 metros) e
perfeitamente transparente em outras (5,6 a 366 micrometros) Nada se sabe
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a respeito do interior do Paradoxo
O tamanho e aparência do Paradoxo não são imutáveis. Mudanças de
tamanho e coloração foram observadas nove vezes desde que o artefato foi
descoberto
Estrutura: Com base em observações feitas do exterior, acredita-se que
o Paradoxo tenha uma complexa estrutura interna. Entretanto, jamais foi ob-
tida qualquer informação direta a respeito do seu interior. Muitos analistas
acreditam que o Paradoxo é uma extrusão quadridimensional no espaço-tem-
po de um corpo pertencente a uma dimensão muito maior, talvez a variedade
com nós vinte/três/sete de Ikro e H’miran.
Finalidade: Desconhecida. Entretanto, Scorpesi acredita que o Parado-
xo seja um “recipiente de limpeza” para grandes artefatos inteligentes dos
Construtores, como o Elefante, permitindo sua reutilização. É preciso ob-
servar, porém, que esta sugestão é incompatível com as dimensões (4.000
x 900 quilômetros) do Elefante, a menos que objetos desse tipo possam ser
submetidos a múltiplas passagens através do Paradoxo.

— Do Catálogo Lang Universal de Artefatos


Quarta Edição

21
Capítulo 2

Maré de Verão menos trinta e seis.

Embora o segundo turno do dia de trabalho mal estivesse come-


çando, já era claro para Birdie Kelly que as coisas não iriam correr bem.
O novo supervisor podia ainda estar a meio mundo de distância, no lado
das estrelas, mas o chefe já se queixava da chegada iminente do homem.
— Como é que alguém que sequer visitou este sistema pode ter
competência para controlar as viagens entre Opala e Tremor? — Max Per-
ry olhou para Birdie com uma expressão de infelicidade no rosto. Birdie
olhou de volta, viu a saliência macilenta da mandíbula de Perry e pensou
no bem que o outro homem faria a si próprio se comesse uma boa refei-
ção e descansasse um dia ou dois.
— O tráfego para Tremor é nosso trabalho — prosseguiu Perry. —
Estamos nisso há seis anos. Que é que esse Rebka, um perfeito estra-
nho, sabe a respeito? Absolutamente nada. Será que eles pensam, lá no
quartel-general do Círculo, que é coisa fácil, que qualquer idiota pode
entender Tremor? Nós sabemos que é importante proibir o acesso a Tre-
mor. Especialmente agora, tão perto da Maré de Verão. Mas será que eles
sabem?
Birdie escutou o rosário de queixas de Max Perry e fez que sim com

22
a cabeça. Uma coisa era certa: Perry era um bom homem e um chefe
consciencioso, mas tinha suas obsessões. E o capitão Hans Rebka, quem
quer que fosse, certamente tornaria mais difícil a vida do próprio Birdie
também.
Birdie suspirou e se recostou na cadeira de vime. O escritório de
Perry ficava no último andar do mais alto edifício de Opala do lado de
Tremor, uma estrutura experimental de quatro andares que tinha sido
construída de acordo com as especificações de Perry. Birdie Kelly ainda se
sentia pouco à vontade no interior do prédio. Os alicerces atravessavam
uma grossa camada de lama e um emaranhado de raízes vivas e mortas se
projetavam abaixo da Funda, mergulhando nas águas salobras do oceano
de Opala e terminando em uma câmara oca, pouco abaixo da superfície,
cujo empuxo sustentava a maior parte do peso da estrutura.
Mesmo um prédio baixo como aquele não lhe parecia seguro. As
Fundas eram delicadas, não permitiam a construção de alicerces sólidos,
e por esse motivo a imensa maioria das edificações em Opala tinham ape-
nas um ou dois andares. Durante os últimos seis meses, aquela Funda
estivera amarrada no mesmo lugar, mas com a aproximação da Maré de
Verão isso podia ser perigoso. Perry dera ordens para que dali a oito dias
a Funda fosse deixada ao sabor das correntes marinhas... mas não seria
tarde demais?
O comunicador começou a tocar. Max Perry ignorou-o. Estava re-
costado na cadeira, olhando para o teto. Birdie alisou o paletó branco
surrado, inclinou-se para a frente e olhou para a tela.
Deu um muxoxo. Aquela mensagem não contribuiria em nada para
melhorar o humor de Max Perry.
— O capitão Rebka está mais próximo do que pensávamos, chefe.
Na verdade, deixou o lado das estrelas há algumas horas. Seu carro aéreo
estará pronto para pousar daqui a alguns minutos.
— Obrigado, Birdie — disse Perry, sem mudar de posição. — Peça
para nos manterem informados.
— Vou fazer isso, comandante. — Kelly sabia que tinha sido dispen-
sado, mas fingiu que não percebera. — O senhor devia ler isto aqui antes
que ele chegue.
Kelly colocou uma pasta sobre a mesa de tampo de vime que esta-
va entre eles, recostou-se na cadeira e esperou. No estado de espírito em
que Max Perry se encontrava no momento, era inútil tentar apressá-lo.
O teto do aposento era transparente, mostrando o céu normal-
mente nublado de Opala. A localização tinha sido escolhida com cuida-
23
do. Estavam perto do centro do lado de Tremor, em uma região onde os
padrões de circulação atmosférica aumentavam a probabilidade de que
houvesse brechas nas nuvens. No momento, o céu apresentava-se par-
cialmente limpo, de modo que Tremor estava visível. Com a superfície a
apenas doze mil quilômetros do ponto mais próximo de Opala, a esfera
crestada ocupava mais de trinta e cinco graus do céu, como uma grande
fruta murcha, roxo-acinzentada, madura demais, pronta para cair. Visto
daquela distância, parecia relativamente tranquilo, mas a borda escura
do planeta já mostrava limites indefinidos que falavam de tempestades
de areia.
Faltavam apenas trinta e seis dias para a Maré de Verão, menos de
duas semanas-padrão. Daí a dez dias, Perry ordenaria que a superfície de
Tremor fosse evacuada e supervisionaria pessoalmente essa evacuação.
Em todos os êxodos dos últimos seis anos ele havia sido a última pessoa a
deixar Tremor, e o primeiro a voltar depois da Maré de Verão.
Para Perry, era uma compulsão. E, independentemente do que Re-
bka pudesse pensar ou querer, Birdie Kelly sabia que Max Perry tinha in-
tenção de continuar da mesma forma.
A noite já estava avançando sobre a superfície de Opala. A sombra
do planeta em breve criaria a curta falsa noite do eclipse de Mandel sobre
Tremor. Entretanto, Perry e Kelly não poderiam ver o eclipse. A brecha
nas nuvens estava se fechando, obstruída por torvelinhos nebulosos que
se moviam rapidamente. Houve um último brilho prateado, quando a Es-
tação de Meio Caminho e a parte inferior do Cordão Umbilical refletiram
a luz de Mandel; em seguida, Tremor desapareceu totalmente. Minutos
depois, o teto acima deles começou a mostrar as formas estelares dos
primeiros pingos de chuva.
Perry suspirou, inclinou-se para a frente e pegou a pasta. Kelly não
ignorava que o outro homem havia registrado suas palavras sem realmen-
te ouvi-las. Mas Perry sabia que, se o seu braço direito achava que era
melhor que examinasse a pasta sem demora, havia uma boa razão para
isso.
A pasta verde continha três longos requerimentos, todos pedindo
permissão para visitar a superfície de Tremor. Não havia nada de estranho
nisso. Birdie estava a ponto de conceder a aprovação de rotina, condicio-
nando a aprovação final à apresentação de um plano detalhado de via-
gem, quando viu quem havia assinado os pedidos. Nesse momento, teve
certeza de que Perry precisava vê-los e examiná-los de perto.
O comunicador tocou de novo quando Perry estava começando a
24
folhear o conteúdo da pasta. Birdie Kelly leu a nova mensagem e deixou
discretamente o escritório. Rebka estava chegando, mas Perry não pre-
cisava ir até a pista de pouso para recebê-lo. Birdie podia fazer isso no
lugar dele. Era melhor deixar que Perry se ocupasse dos pedidos de visita.
Todos vinham de fora do sistema de Dobelle. Na verdade, de fora dos
planetas que constituíam o Círculo de Phemus. Um era da Quarta Aliança,
outro de uma região remota da Comunidade dos Zardalus, tão distante
que Birdie Kelly nunca ouvira falar dela; e o terceiro, o mais estranho de
todos, tinha sido mandado pela Federação de Cecrópia. Aquilo era sem
precedentes. Pelo que Birdie sabia, nenhum cecropiano havia jamais che-
gado a uma distância menor que anos-luz de Dobelle.
Mais estranho ainda: todos os visitantes queriam estar na superfí-
cie de Tremor durante a Maré de Verão.
Quando Birdie Kelly voltou, fez uma coisa que reservava para emer-
gências. Bateu à porta antes de entrar. Isso garantiu a atenção imediata
de Perry.
Kelly estava carregando outra pasta, e não se achava sozinho. Ao
lado dele havia um homem magro, mal vestido, que olhava em volta com
olhos castanho-escuros, muito vivos, e estava aparentemente mais inte-
ressado na mobília modesta e surrada do escritório do que na pessoa de
Perry.
Suas primeiras palavras pareceram confirmar essa impressão.
— Comandante Perry, é um prazer conhecê-lo. Meu nome é Hans
Rebka. Sei que Opala não é um planeta rico, mas sua posição aqui certa-
mente justificaria algo melhor do que isto.
Perry colocou a pasta sobre a mesa e acompanhou os olhos inqui-
sitivos do outro enquanto varriam o aposento. Era uma combinação de
escritório e quarto de dormir. Continha apenas uma cama, três cadeiras,
uma mesa e uma escrivaninha, todos muito gastos e em mau estado de
conservação.
Perry deu de ombros.
— Sou um homem simples. Isto é mais do que eu preciso.
O recém-chegado sorriu.
— Concordo. Acho, porém, que somos minoria.
Fossem quais fossem os outros sentimentos que aquele sorriso pu-
desse esconder, parte da aprovação de Rebka era sincera. Nos primeiros
dez segundos que passou com Max Perry, pôde descartar uma idéia que
lhe ocorrera depois de ler a história do outro. Mesmo o planeta mais po-
bre podia oferecer um luxo considerável para algumas pessoas, e certos
25
homens e mulheres ficavam em um planeta porque haviam conquistado
uma posição de riqueza e alto padrão de vida, que não podiam transferir
para nenhum outro lugar. Entretanto, aquele não era evidentemente o se-
gredo de Perry. Ele vivia com a mesma simplicidade que o próprio Rebka.
Poder, então?
Dificilmente. Perry controlava o acesso a Tremor, e pouco mais que
isso. As permissões para visitantes de outros mundos passavam por ele,
mas qualquer um que não fosse um pé-rapado completo podia recorrer a
uma autoridade mais alta no conselho do sistema de Dobelle.
Nesse caso, qual seria a sua motivação? Tinha que haver uma; sem-
pre havia. Qual seria?
Durante as apresentações oficiais e a troca de cortesias em nome
do governo de Opala e do escritório do Coordenador Geral do Círculo de
Phemus, Rebka voltou sua atenção para o próprio Perry.
Fez isso com interesse genuíno. Preferiria estar explorando o Pa-
radoxo, mas, apesar de desprezar a nova missão, não podia deixar de se
sentir curioso. O contraste entre o passado de Perry e sua posição atual
era gritante. Com apenas vinte anos de idade, Perry tinha sido coordena-
dor setorial de uma das regiões mais perigosas do Círculo. Lidara com os
problemas de forma sutil, mas sem perder a firmeza. A missão final, de
passar um ano em Opala, era quase uma formalidade, a última têmpera
do metal antes que Perry fosse considerado pronto para trabalhar no es-
critório do Coordenador.
Ele tinha chegado a Opala. E ficara ali, ocupando um posto medí-
ocre, durante todos aqueles anos, recusando-se a partir, renunciando a
todas as ambições do passado. Por quê?
A figura do homem não fornecia nenhuma pista quanto à causa do
problema. Era pálido e ativo, mas Rebka poderia ver a mesma palidez e
atividade olhando-se no espelho. Ambos tinham passado a infância em
planetas onde a sobrevivência era um desafio e o conforto uma impossi-
bilidade. A papeira no pescoço de Perry falava de um mundo carente de
iodo, e as pernas finas, ligeiramente arqueadas, sugeriam um caso anti-
go de raquitismo. Poucas espécies vegetais cresciam em Escaldante. Ao
mesmo tempo, Perry parecia estar em excelente saúde, algo que Rebka
ainda teria que confirmar. Entretanto, o bem-estar físico apenas tornava
mais claro que devia haver problemas mentais. Esses seriam mais difíceis
de localizar.
A inspeção não era unilateral. Enquanto trocavam saudações for-
mais, Rebka sabia que Perry estava fazendo sua própria avaliação.
26
Será que ele tinha esperança de que o novo supervisor fosse um
homem desgastado pelos cargos anteriores que ocupara, ou talvez o pro-
tegido de algum figurão? O governo do Círculo tinha sua cota de funcio-
nários em busca de sinecuras, preguiçosos dispostos a deixar Perry e pes-
soas como ele dirigirem a operação da forma que quisessem, contanto
que o chefe não tivesse que fazer nenhum tipo de trabalho.
Aparentemente, Perry queria saber com quem estava lidando, e
não descansaria enquanto não soubesse, pois assim que acabaram de
trocar as gentilezas de praxe pediu a Kelly para sair e, com um gesto, con-
vidou Rebka a sentar-se.
— Suponho que não levará muito tempo para assumir suas novas
funções, capitão.
— Tem razão, comandante. Na verdade, minhas funções em Opala
e Tremor já começaram. Ao que me consta, assumi o cargo no momento
em que a nave pousou na base do lado das estrelas.
— Ótimo. — Perry mostrou-lhe a pasta verde e o quarto e último
documento que Kelly lhe entregara. — Quando o senhor chegou, eu es-
tava examinando estes papéis. Gostaria que desse uma olhada e me dis-
sesse o que pensa.
Em outras palavras, quer saber se eu sou esperto. Rebka pegou os
documentos e folheou-os em silêncio por um minuto ou dois. Ele não sa-
bia exatamente qual era o teste, mas não queria ser reprovado.
— Parecem estar no formato correto — observou, afinal.
— Não observa nada de incomum?
— Bem, talvez a diversidade dos solicitantes. Vocês recebem mui-
tos pedidos de fora do sistema de Dobelle?
— Não, isso é muito raro — respondeu Perry, fazendo que sim com
a cabeça, em sinal de respeito. — E agora recebemos quatro desses pe-
didos, capitão, em um único dia. Todos querem visitar Opala e Tremor.
Indivíduos dos três grupos principais de planetas, mais um membro de
um conselho da Aliança. Sabe quantos visitantes por ano costumamos
receber aqui em Dobelle? Uns cinquenta... e todos vêm de planetas do
nosso sistema, mundos do Círculo de Phemus. E ninguém nunca quer ir
a Tremor.
Max Perry pegou de novo a pasta. Aparentemente, Rebka havia
atendido a algum critério inicial de aceitação, pois a atitude de Perry se
tornara um pouco menos impessoal.
— Olhe para este requerimento. É de uma cecropiana, pelo amor
de Deus! Ninguém em Dobelle jamais viu um cecropiano de perto! Eu
27
mesmo nunca vi um. Ninguém aqui seria capaz de se comunicar com um
cecropiano.
— Não se preocupe — disse Rebka, apontando para os papéis à
sua frente. — Ela certamente vai trazer um intérprete. Mas tem razão. Se
recebem apenas cinquenta turistas por ano, quatro em um único dia está
fora de todos os limites estatísticos. — E você não mencionou o fato, pen-
sou Rebka, mas na verdade foram cinco no mesmo dia, não foram? Esses
pedidos chegaram no mesmo dia que eu. Para você, sou apenas outro
estrangeiro. — Mas o que é que eles todos querem, comandante? Não li
o suficiente para conhecer os seus motivos.
— Coisas diferentes. Este aqui — Perry apontou para a página com
um dedo emaciado — acaba de chegar. Já ouviu falar de um homem cha-
mado Julius Graves? Ele representa o Conselho de Ética da Quarta Alian-
ça, e de acordo com este requerimento quer vir a Opala para investigar
um caso de assassinatos múltiplos, que de algum modo envolvem duas
gêmeas de Shasta.
— Um planeta rico, Shasta. Está muito longe de Dobelle, em vários
sentidos.
— Mas se eu conheço bem o regulamento, ele pode passar por
cima de qualquer coisa que dissermos a respeito de sua vinda.
— Ele pode passar por cima de nós e de qualquer outra autorida-
de de Dobelle — concordou Rebka, tomando o documento das mãos de
Perry. — Nunca ouvi falar em Julius Graves, mas os conselhos de ética são
muito influentes. Não deve ser fácil contrariá-lo.
— E ele não explica por que está vindo para cá?
— Não precisa explicar. — Rebka olhou de novo para o requerimen-
to. — Neste caso, o requerimento é uma mera formalidade. Se ele quer
vir, nada pode impedi-lo. E os outros? Por que querem visitar Tremor?
— Atvar H’sial (este é o nome da cecropiana) diz que sua especia-
lidade é o estudo da evolução de organismos submetidos a uma pressão
ambiental extrema. Tremor certamente satisfaz a essa condição. Ela diz
que quer ir até lá para ver como as formas de vida nativas se comportam
durante a Maré de Verão.
— Está viajando sozinha?
— Não. Com alguém ou alguma coisa chamada J’merlia. Um
lo’tfiano.
— Muito bem, então deve ser o intérprete. Os lo’tfianos são outra
forma de vida da Federação de Cecrópia. Quem mais?
— Outra fêmea, Darya Lang, da Quarta Aliança.
28
— Humana?
— Acho que sim. Diz que está interessada em ver artefatos dos
Construtores.
— Pensei que houvesse apenas um no sistema de Dobelle.
— É só o que há. O Cordão Umbilical. Darya Lang quer conhecê-lo.
— Não precisa ir até Tremor para isso.
— Ela diz que quer saber como o Cordão Umbilical está preso do
lado de Tremor. E sua curiosidade é justificada. Ninguém jamais compre-
endeu como os Construtores conseguiram fazer com que ele fosse reco-
lhido para o espaço durante a Maré de Verão. A história dela é plausível.
Acredite se quiser.
O tom de voz de Perry deixou claro que ele não acreditava. Ocorreu
a Rebka que pelo menos uma coisa os dois tinham em comum: o ceticis-
mo.
— Depois vem Louis Nenda — prosseguiu Perry. — Da Comunidade
dos Zardalus. Quando foi a última vez que ouviu falar deles!
— Quando tiveram a última escaramuça com a Aliança. Que é que
ele quer fazer em Tremor?
— Não se dá ao trabalho de explicar com detalhes, mas tem algo a
ver com o estudo de novas forças naturais. Ele quer investigar as marés
terrestres em Tremor durante a Maré de Verão. Há também uma nota de
pé de página falando da teoria da estabilidade das biosferas e da forma
como pode ser aplicada a Tremor e Opala. Oh, e Nenda pretende tra-
zer um himenopt com ele, como animal de estimação. Isso é mais uma
novidade. Os únicos himenopts que existem em Opala são os espécimes
empalhados do Museu de História Natural. Juntando isso tudo, capitão, o
que é que nós temos?
Rebka não respondeu. A menos que todos os registros a respeito
de Perry fossem falsos, havia uma inteligência sutil escondida atrás da-
queles olhos tristes e sem vida. Rebka não acreditou por um momento
sequer que Perry estivesse pedindo sua opinião porque precisasse dela.
O que estava fazendo era tentar avaliar sua intuição e senso de equilíbrio.
— Quando pretendem chegar?
— De acordo com o que está escrito aqui, Darya Lang passou pelo
último Nó de Bose há três dias. Isso significa que está percorrendo o últi-
mo trecho subluminal. A qualquer momento pode pedir permissão para
pousar. Os outros devem estar a alguns dias de distância.
— Que acha que devemos fazer?
— Vou lhe dizer o que acho que não devemos fazer. — Pela primei-
29
ra vez, uma emoção apareceu no rosto magro de Max Perry. — Podemos
deixá-los visitar Opala, embora isso não vá ser brincadeira durante esta
Maré de Verão, mas não devemos, em circunstância alguma, permitir que
ponham os pés em Tremor.
O que significa, pensou Rebka, que meu instinto, quando eu estava
no lado das estrelas, acertou em cheio. Para descobrir o que prende Max
Perry a Dobelle, provavelmente terei que fazer exatamente isso: visitar
Tremor durante a Maré de Verão. Afinal, não pode ser mais perigoso que
a expedição ao Paradoxo. Mas vamos testar as coisas mais um pouquinho
antes de irmos mais longe.
— Seus argumentos não me convenceram — replicou, e viu um
lampejo de preocupação nos olhos de Perry. — As pessoas estão vindo
de longe para ver Tremor. Estarão dispostas a pagar uma boa soma a Do-
belle pelo privilégio, e este sistema precisa desesperadamente de todo
o dinheiro que puder conseguir. Antes de respondermos que não, quero
ter uma conversa pelo menos com Darya Lang. E acho que gostaria de ir
pessoalmente à superfície de Tremor perto da Maré de Verão.
Tremor perto da Maré de Verão. Quando ele disse essas palavras,
uma nova expressão apareceu no rosto de Max Perry. Tristeza. Culpa. Ou
seria saudade? Poderia ser qualquer uma delas. Rebka gostaria de conhe-
cer melhor o outro homem. A fisionomia de Perry certamente continha
as respostas para uma centena de perguntas... para alguém que soubesse
interpretá-la.

30
Capítulo 3

Maré de Verão menos trinta e três.

Hans Rebka tinha chegado a Dobelle desorientado e aborrecido.


Já em Darya Lang, que seguira o mesmo caminho subluminal apenas três
dias depois em seu trajeto do último Ponto de Transição de Bose até o
espaçoporto de Opala, não havia lugar para aborrecimento.
Ela estava nervosa. Mais do que nervosa; estava assustada.
Passara mais de metade da vida trabalhando como cientista, uma
arqueóloga que se sentia mais à vontade quando estava pensando no
passado remoto. Realizara o levantamento mais completo dos artefatos
dos Construtores, localizando, compilando, comparando e catalogando
todos os objetos descobertos até o momento em território da Quarta
Aliança e anotando as datas precisas de qualquer mudança de aparência
ou funcionamento. Entretanto, fizera aquilo tudo passivamente, na tran-
quilidade do seu escritório no Portal da Sentinela. Podia saber de cor as
coordenadas dos mil duzentos e poucos artefatos espalhados por todo o
braço da espiral, e era capaz de recitar sem hesitação tudo que se sabia a
respeito de cada um deles. Mas fora da Sentinela, cuja estrutura volumo-
sa podia ser observada da superfície do seu planeta natal, jamais havia
visto qualquer um deles.

31
Agora, porém, estava se aproximando de Dobelle... contrariando os
conselhos de todos.
— Por que não deveria ir? — perguntou, quando a Comissão da
Quarta Aliança em Miranda mandou uma representante falar com ela.
Estava trêmula de tensão e contrariedade. — Se a anomalia pertence a
alguém, é a mim que pertence. Fui eu que a descobri.
— É verdade. — A legada Pereira era uma mulher pequena e pa-
ciente, de pele castanha e olhos dourados. Não tinha um aspecto intimi-
dador, mas mesmo assim Darya Lang achava difícil encará-la. — E desde
que a senhora observou o fenômeno, tivemos ocasião de confirmá-lo
em todos os artefatos. Ninguém está tentando negar-lhe o crédito pela
descoberta. E todos nós admitimos que é a nossa maior especialista nos
Construtores, quem melhor conhece a sua tecnologia...
— Ninguém conhece bem a tecnologia dos Construtores! — Mes-
mo no estado de espírito em que se encontrava, Darya não podia deixar
aquilo passar sem resposta.
— Melhor é um termo comparativo. Ninguém na Aliança conhece
mais do que a senhora. Como, repito, a senhora é quem melhor conhece
a tecnologia dos Construtores, é obviamente a pessoa mais qualificada
para explicar o significado da anomalia. — A voz da mulher ficou mais
suave. — Mas, ao mesmo tempo, professora Lang, deve admitir que sua
experiência em viagens interestelares é bastante limitada.
— Minha experiência nessa área é nula, e a senhora sabe disso.
Mas todo mundo, da senhora até o tio Matra, meu senhorio, me diz que
os riscos de uma viagem interestelar são desprezíveis.
A legada suspirou.
— Professora, não é a viagem que estamos discutindo. Olhe em
torno. O que a senhora vê?
Darya levantou a cabeça e percorreu o jardim com os olhos. Flores,
trepadeiras, árvores, passarinhos, os últimos raios do sol da tarde se fil-
trando pela treliça do caramanchão... uma cena perfeitamente normal. O
que a outra esperava que ela visse?
— Tudo parece em ordem.
— Tudo está em ordem. A senhora passou toda a sua vida no Portal
da Sentinela, e este mundo é um jardim. Um dos planetas mais hospita-
leiros, mais ricos, mais bonitos que conhecemos... muito mais agradável
que Miranda, onde moro. Mas a senhora pretende ir a Tremor. Ao fim dos
mundos. Um planeta sombrio, sujo, triste, perigoso, na esperança remota
de que possa encontrar lá novas informações a respeito dos Construtores.
32
Pode me dar alguma razão para pensar que encontrará algo de interes-
sante em Tremor?
— A senhora sabe a resposta. A razão está na minha descoberta.
— Uma anomalia estatística. Quer passar por momentos extrema-
mente desconfortáveis apenas por causa de uma estatística?
— Claro que não. — Darya teve a impressão de que a mulher a
estava tratando como uma criança, e isso era uma coisa que não podia to-
lerar. — Ninguém quer passar por momentos desconfortáveis. Legada Pe-
reira, a senhora admite que ninguém na Quarta Aliança conhece melhor
os Construtores do que eu. Suponha que eu não vá, e que alguma outra
pessoa o faça, e que a pessoa que for no meu lugar seja mal sucedida por
falta de conhecimento. Acha que eu jamais me perdoaria?
Em vez de responder, a outra foi até a janela e, com um gesto, con-
vidou Darya Lang a ir também. Apontou para o céu, que começava a escu-
recer. A Sentinela brilhava perto do horizonte, uma esfera estriada de um
milhão de quilômetros de diâmetro, a duzentos milhões de quilômetros
de distância.
— Suponha que eu lhe dissesse que conheço um meio de atraves-
sar a blindagem protetora da Sentinela e explorar a Pirâmide que existe
no centro. A senhora estaria disposta a ir comigo?
— Naturalmente. Venho estudando a Sentinela desde criança. Na
minha opinião, a Pirâmide pode conter uma biblioteca das ciências dos
Construtores... talvez da história deles, também. Mas ninguém consegue
atravessar a blindagem. Estamos tentando há mil anos.
— Mas suponha que eu conhecesse um meio.
— Então eu faria questão de também ir.
— Mesmo que isso envolvesse perigo e desconforto?
— Mesmo assim.
A legada concordou com a cabeça e ficou em silêncio por alguns
segundos, enquanto a escuridão se acentuava.
— Muito bem — falou, afinal. — Professora Lang, dizem que a se-
nhora é uma pessoa lógica, e gosto de pensar que eu também sou. Se está
disposta a correr o risco de penetrar na Sentinela, o que seria um risco
desconhecido, então tem o direito de enfrentar o risco menor de visitar
Tremor. Quanto a viajar até o sistema de Dobelle, nós, humanos, cons-
truímos o Sistema Bose e sabemos exatamente como funciona. Sabemos
operar a Rede Bose. A experiência é um pouco desagradável a princípio,
mas os riscos são mínimos. E talvez, se puder usar a Rede para explorar a
anomalia estatística que a senhora mesma descobriu, isso nos forneça fi-
33
nalmente as informações de que necessitamos para desvendar o segredo
da Sentinela. Não posso negar essa cadeia de raciocínio. A senhora tem o
direito de fazer a viagem. Vou aprovar o seu requerimento.
— Obrigada, legada Pereira. — Com a vitória, Darya sentiu um ar-
repio que não era causado pelo frio da noite. Estava passando de uma
fantasia agradável para a realidade.
— Mas há uma outra coisa. — A voz da legada se tornou mais ten-
sa. — Acredito que não tenha contado a ninguém fora da Aliança a respei-
to da descoberta da anomalia...
— Não. Não contei a ninguém. Enviei a informação apenas através
dos canais regulares. Não havia ninguém mais que estivesse interessado,
e eu queria...
— Ótimo. Que continue assim. Para sua informação, a anomalia
de agora em diante será considerada como um segredo oficial da Quarta
Aliança.
— Segredo? Mas qualquer um poderia realizar a análise que eu fiz!
Por que... — Lang interrompeu o que estava dizendo. Se insistisse em que
qualquer um chegaria à mesma conclusão, poderia colocar em risco seu
direito de descobridora da anomalia... e sua viagem a Tremor.
A legada olhou para ela, muito séria, e finalmente assentiu.
— Lembre-se de que vai partir em uma viagem de mais de sete-
centos anos-luz, para além das fronteiras da Aliança. De certa forma, eu
a invejo. Jamais fiz uma viagem tão longa. Não tenho mais nada a dizer,
exceto que lhe desejo boa viagem e sucesso em sua missão.
Darya mal podia acreditar que houvesse vencido, depois de sema-
nas de burocracia e evasivas por parte das autoridades da Quarta Aliança.
E os perigos do Sistema Bose realmente tinham parecido muito menores
depois de iniciada a viagem. A primeira Transição foi desconcertante, não
pelo que sentiu, mas pelo que não sentiu. A Transição foi instantânea e
imperceptível, e isso não parecia certo. O cérebro humano precisava de
alguma indicação de que ele e a nave que o transportava tinham acabado
de transpor cem anos-luz ou mais. Talvez um pequeno choque, pensou
Darya; uma leve náusea, ou uma sensação de desorientação.
Na segunda e terceira Transições, todo o receio desapareceu, como
a legada Pereira havia previsto. O Sistema Bose não tinha mais mistérios
para Darya.
O que não diminuiu, porém, foi a sua apreensão. Ela não sabia
mentir; sempre fora assim. O sistema de Dobelle continha apenas uma
estrutura do tempo dos Construtores: o Cordão Umbilical. E se tratava de
34
um artefato de importância secundária, cujas operações eram evidentes,
embora os controles que o governavam permanecessem misteriosos. Ela
jamais faria uma viagem tão longa apenas para ver de perto o Cordão
Umbilical. Ninguém faria. No entanto, era o motivo oficial apresentado
pela Aliança para a sua visita.
Alguém acabaria por lhe perguntar a razão pela qual procedera de
forma tão estranha; tinha certeza disso. E nada, em sua carreira de pes-
quisadora, a preparara para ser dissimulada. Sua expressão certamente a
trairia.
A visão de Dobelle serviu para tranquilizá-la um pouco. Em um uni-
verso que, do seu ponto de vista, achava-se coalhado de milagres dos
Construtores, ali estava uma maravilha natural que nada lhes ficava a de-
ver. Quarenta ou cinquenta milhões de anos atrás, os planetas Tremor
e Opala haviam girado em torno de Mandel em uma órbita quase cir-
cular. A órbita permanecera estável durante bilhões de anos, resistindo
às atrações gravitacionais do companheiro menor de Mandel no sistema
binário, Amaranth, e dos dois gigantes gasosos que giravam em torno de
Amaranth em suas órbitas excêntricas, a quinhentos e setecentos milhões
de quilômetros de distância. O ambiente fora tranquilo para os dois mem-
bros do par planetário de Dobelle até que uma aproximação maior entre
os dois gigantes gasosos fizera com que um deles fosse arremessado na
direção de Mandel. Esse planeta sem nome passara raspando pela estrela
e assumira uma nova trajetória que o levava para fora do sistema estelar.
Esse teria sido o final da história... exceto pelo fato de que Do-
belle estava bem no caminho do planeta desgarrado. O gigante gasoso
executara uma dança complexa nas proximidades da dupla de planetas,
fazendo com que Tremor e Opala se aproximassem e ao mesmo tempo
aumentando a excentricidade da órbita dos dois planetas, com um perias-
tro muito mais próximo de Mandel do que antes. Em seguida, o planeta
desgarrado desapareceu para sempre. Ficaram apenas Dobelle e o outro
gigante gasoso, chamado Gargântua; os parâmetros orbitais do sistema,
que ainda estavam mudando, permitiam uma reconstituição precisa do
que ocorrera.
Faltavam apenas algumas semanas para a Maré de Verão, o ponto
em que Dobelle estaria mais próximo de Mandel. Se a análise de Darya
Lang estivesse correta, seria uma ocasião de grande importância para o
braço espiral da galáxia. E também para sua própria vida. Afinal, poderia
verificar que suas teorias eram verdadeiras.
Ou falsas.
35
Darya foi até a escotilha e ficou olhando enquanto a nave se apro-
ximava de Dobelle. Opala e Tremor giravam um em torno do outro em
uma dança frenética, completando três voltas em um único dia-padrão.
Ela podia ver os planetas se moverem. Entretanto, a velocidade era toda
relativa. O encontro da nave com o campo de pouso, no lado estrelado de
Opala, podia parecer difícil, mas era um problema trivial para os compu-
tadores de navegação que fariam os cálculos necessários.
O problema não estava no pouso, mas nos humanos que a espera-
vam lá embaixo. O tom da mensagem que autorizara seu desembarque
em Opala não era nada animador. “Forneça uma identificação completa
do seu financiador. Informe o tempo que pretende ficar. Faça uma descri-
ção pormenorizada do que pretende encontrar. Explique por que a visita
tem que ser feita nesta época. Diga por que deseja visitar Tremor. A taxa
de permanência deve ser paga com antecedência e não será devolvida
em hipótese alguma. Assinado, Maxwell Perry, Comandante.”
Será que os funcionários da imigração de Opala tratavam todos os
visitantes de forma tão hostil? Ou sua paranóia não seria na verdade ne-
nhuma paranóia, e sim uma preocupação legítima?
Ainda estava de pé em frente à escotilha quando a nave começou
a aproximação final. Estavam chegando da direção de Mandel e ela teve
uma boa visão da dupla de planetas. Sabia que Opala era apenas ligei-
ramente maior que Tremor (tinha um raio médio de 5.600 quilômetros,
enquanto o raio médio de Tremor era de 5.100), mas seus olhos insistiam
em fornecer uma informação bem diferente. A bola iridescente de Opala,
envolvida por nuvens, com uma forma levemente oval e o eixo mais com-
prido apontando permanentemente na direção do seu planeta irmão,
parecia bem maior que o ovóide sombrio de Tremor. Opala tinha uma
superfície uniforme, mas a de Tremor era marcada por grandes manchas
roxas e verdes. Darya tentou localizar o Cordão Umbilical, mas ele era
invisível àquela distância.
Não havia opções para entrar no sistema de Dobelle. O único espa-
çoporto ficava quase no centro do hemisfério de Opala, do lado das estre-
las. Tremor não tinha nenhum espaçoporto. De acordo com o que lera nos
livros, o único acesso seguro a Tremor era através de Opala.
Acesso seguro a Tremor?
Uma idéia agradável, mas Darya lembrou-se do que lera a respeito
de Tremor e da Maré de Verão. Talvez os livros devessem ter usado uma
palavra diferente... pelo menos naquela época do ano.

36
Os arquivos da Quarta Aliança tinham ainda menos coisas boas
para dizer do que a legada Pereira a respeito dos mundos controlados
pelo Círculo de Phemus. “Provincianos... pobres... atrasados... quase de-
sertos... bárbaros.”
As estrelas do Círculo ficavam em uma região que fazia fronteira
com os três grandes impérios daquele braço da espiral. Entretanto, nem
a Quarta Aliança, nem a Comunidade dos Zardalus, nem a Federação de
Cecrópia se haviam interessado pelo Círculo de Phemus. Não havia nada
ali que valesse a pena comprar ou roubar... nada, pelo menos, que justi-
ficasse uma visita.
A menos que a pessoa estivesse atrás de problemas. Era fácil en-
contrar problemas nos mundos controlados pelo Círculo.
Darya Lang saltou da nave no chão esponjoso do espaçoporto de
Opala e olhou em torno, apreensiva. As construções eram baixas e aca-
chapadas, feitas, ao que parecia, de barro e bambu. Ninguém a esperava.
Opala era descrito como um planeta com poucos metais, pouca madeira,
poucos habitantes. O que mais tinha era água.
Quando o sapato afundou um centímetro ou dois na superfície ma-
cia, sentiu-se ainda menos à vontade. Nunca havia estado num mundo
aquático, e sabia que em lugar de pedras duras e solo compacto debaixo
dos pés, tinha apenas a crosta fraca e pouco substancial da Funda. Abaixo
dessa crosta, não existia senão água salgada, até uma profundidade de
alguns quilômetros. Havia uma boa razão para os prédios serem baixos e
largos. Se fossem altos e pesados, a Funda não resistiria.
Um pensamento irrelevante lhe ocorreu: nem ao menos sabia na-
dar.
A tripulação da nave que a trouxera ainda estava ocupada com os
últimos detalhes da rotina de pouso. Darya começou a caminhar em dire-
ção à construção mais próxima, de onde dois homens estavam finalmente
saindo para recebê-la.
Não era uma visão animadora. Os dois eram baixos e magros; Darya
Lang devia ser pelo menos dez centímetros mais alta que ambos. Estavam
usando uniformes idênticos, sujos e remendados, e à distância podiam
ser tomados como irmãos, um aproximadamente dez anos mais velho
que o outro. Só quando se aproximaram foi que as diferenças começaram
a aparecer.
O homem mais velho tinha um ar amistoso e uma maneira confian-
te de caminhar. A divisa surrada de capitão no ombro revelava que, além
de mais velho, ocupava um posto superior ao do outro.
37
— Darya Lang? — perguntou, assim que a distância diminuiu o sufi-
ciente para que não tivesse que gritar. Sorriu e estendeu a mão, mas não
para apertar a mão da moça. — Pode me entregar o formulário. Sou o
capitão Rebka.
É melhor acrescentar “rudes” às palavras usadas para descrever os
habitantes do Círculo de Phemus, pensou Darya. E também acrescentar
“sujo” e “maltratado” à descrição de Rebka. O rosto do homem tinha uma
dúzia de cicatrizes; a maior ia da têmpora esquerda até a ponta do queixo.
Entretanto, o efeito global não era desagradável... pelo contrário. Para
sua surpresa, Darya sentiu o formigamento indefinido da atração mútua.
Ela entregou os papéis ao capitão e desculpou-o mentalmente pe-
las cicatrizes e pelo uniforme em mau estado. A sujeira era apenas super-
ficial, e talvez Rebka tivesse sofrido um grave desastre.
Só que o homem mais moço parecia igualmente sujo e também
exibia suas cicatrizes. Era evidente que o pescoço e um lado do rosto ti-
nham sofrido sérias queimaduras, e aquele arremedo de cirurgia repara-
dora jamais teria sido aceito no Portal da Sentinela.
Talvez as cicatrizes das queimaduras também lhe tivessem tirado a
flexibilidade da pele do rosto. Pelo menos, sua expressão era muito dife-
rente da de Rebka. Enquanto o capitão tinha uma certa leveza e revelava
uma atitude simpática, apesar da sujeira e da falta de tato, o outro pare-
cia distante e reservado. Seu rosto era duro e sem expressão, e ele mal
parecia se dar conta da presença de Darya, embora a moça estivesse a
menos de dois metros de distância. E enquanto Rebka se mostrava visi-
velmente em boa forma física, o outro tinha uma aparência doentia, o ar
de quem não faz refeições regulares nem se importa com a própria saúde.
Os olhos dele não combinavam com o rosto jovem. Tristes e de-
sinteressados, eram os olhos de alguém que se retirara do universo. Era
pouco provável que viesse a causar qualquer problema a Darya.
No momento em que a moça chegou a essa conclusão confortado-
ra, o rosto diante dela voltou à vida e o homem disse:
— Meu nome é Perry. Comandante Maxwell Perry. Por que deseja
visitar Tremor?
A pergunta a fez perder totalmente a compostura. Formulada sem
as cortesias preliminares e tradicionais das apresentações da Aliança,
convenceu Darya Lang de que essas pessoas sabiam... sabiam a respeito
da anomalia, sabiam do seu papel na descoberta da anomalia, sabiam o
que viera procurar em Dobelle. Sentiu-se enrubescer.
— O... o Cordão Umbilical. — Teve que lutar para encontrar as pa-
38
lavras certas. — Eu... eu fiz um estudo especial dos artefatos dos Constru-
tores; tem sido o trabalho da minha vida. — Ela parou para pigarrear. — Li
tudo que já foi escrito sobre o Cordão Umbilical, mas preciso vê-lo de
perto e verificar como está preso a Opala e a Tremor. E descobrir como a
Estação de Meio Caminho controla o Cordão Umbilical durante a Maré de
Verão. — Ela perdeu o fôlego.
Perry continuou impassível, mas o capitão Rebka estava com um
leve sorriso no rosto. A moça teve certeza de que ele havia enxergado por
trás de cada palavra que ela dissera.
— Professora Lang. — Ele estava lendo o formulário. — Não desen-
corajamos visitas. Dobelle precisa do dinheiro dos turistas. Entretanto,
esta é uma época perigosa do ano, tanto em Opala quanto em Tremor.
— Eu sei. Li a respeito das marés oceânicas de Opala e das marés
terrestres de Tremor. — A moça pigarreou novamente. — Não gosto de
correr riscos desnecessários. — Pelo menos aquilo era verdade, pensou.
— Prometo que serei cautelosa e tomarei todas as precauções que forem
necessárias.
— Então a senhora leu a respeito da Maré de Verão. — Perry vol-
tou-se para Rebka, e Darya Lang detectou uma tensão entre os dois ho-
mens. — Como o senhor, capitão Rebka. Entretanto, ler e experimentar
algo são coisas diferentes. E nenhum de vocês dois parece se dar conta de
que esta Maré de Verão vai ser diferente das anteriores.
— Deve ser diferente todas as vezes — replicou Rebka calmamente.
Estava sorrindo, mas Darya Lang podia sentir o conflito. Rebka era mais
velho e ocupava uma posição superior, mas na questão da Maré de Verão
o comandante Perry não aceitava a autoridade do outro.
— Estamos falando de um acontecimento excepcional — insistiu
Perry. — Vamos tomar precauções extraordinárias, mesmo aqui em Opa-
la. Quanto ao que pode acontecer em Tremor, não consigo nem imaginar.
— Mesmo depois de ter passado por meia dúzia de Marés de Ve-
rão?
Rebka tinha parado de sorrir. Os dois homens se encararam em si-
lêncio, enquanto Darya os observava. Ela pressentiu que a sorte de sua
missão dependia da discussão em curso.
— A Grande Conjunção — declarou Perry, depois de alguns segun-
dos. Afinal, Darya ouvia algo que fazia sentido para ela como cientista.
A moça estudara em detalhes a geometria orbital do sistema de
Mandel enquanto preparava o seu catálogo de artefatos. Sabia que Ama-
ranth, a companheira anã de Mandel, normalmente estava tão longe da
39
primária que, vista de Dobelle, parecia uma estrela como as outras. En-
tretanto, uma vez a cada poucos milhares de anos, chegava muito mais
perto, a menos de um bilhão de quilômetros de Mandel. Gargântua, o
gigante gasoso que ficara no sistema, movia-se no mesmo plano orbital e
também ele de raro em raro passava muito perto de Mandel.
A Maré de Verão de Dobelle ocorria geralmente em uma ocasião
em que Gargântua e Amaranth se encontravam bem afastados de Man-
del. Entretanto, as três órbitas estavam em ressonância. Em raras oca­
siões, Amaranth e Gargântua se aproximavam juntos de Mandel, em um
momento que coincidia com a Maré de Verão para Opala e Tremor. En-
tão...
— A Grande Conjunção — repetiu Perry. — Quando todos os astros
se alinham e as marés em Opala e Tremor são as maiores possíveis. De
que tamanho, não sabemos. A Grande Conjunção ocorre apenas uma vez
a cada trezentos e cinquenta mil anos. A última foi muito antes de os hu-
manos colonizarem Dobelle. Mas a próxima vai ser daqui a apenas trinta e
três dias... menos de duas semanas-padrão. Ninguém sabe o que a Maré
de Verão vai fazer a Opala e Tremor nesse dia, mas eu sei que as forças
que desencadeará serão devastadoras.
Darya olhou para o solo macio debaixo dos seus pés. Estava com a
sensação terrível de que a frágil jangada de plantas vivas e mortas já es-
tava se desfazendo sob o assalto de monstruosas marés. Por maiores que
fossem os perigos em Tremor, certamente seria preferível enfrentá-los a
permanecer em Opala.
— Nesse caso, vocês todos não estariam mais seguros em Tremor?
— perguntou.
Perry fez que não com a cabeça.
— Opala tem uma população permanente de mais de um milhão
de pessoas. Isso pode não parecer nada para alguém como a senhora,
que vem de um mundo da Aliança, mas é muito para um planeta do Cír-
culo. Meu planeta natal tinha menos de um quarto desse número.
— E o meu, menos de um oitavo — interveio Rebka. Ninguém fica-
va em Teufel se pudesse ir para outro lugar.
— Mas vocês sabem qual é a população permanente de Tremor?
— Perry ficou olhando para os dois, enquanto Darya se perguntava como
pudera ter a impressão de que ele era calmo e desapaixonado. — A po-
pulação permanente de Tremor é zero — declarou, depois de uma pausa.
— Zero! Que é que isso lhes diz a respeito da vida em Tremor?
— Mas existe vida em Tremor — observou a moça. Ela havia estu-
40
dado o catálogo planetário. — Vida permanente.
— É verdade. Mas não é vida humana, nem poderia ser. É vida nati-
va. Nenhum ser humano conseguiria sobreviver em Tremor durante uma
Maré de Verão... mesmo uma Maré de Verão normal.
Perry estava ficando cada vez mais veemente. Darya perdeu a es-
perança de conseguir uma permissão para visitar Tremor. Ele certamente
negaria o seu pedido. No momento em que chegava a essa conclusão, o
socorro veio de uma direção inesperada.
Rebka voltou-se para Max Perry e apontou com um dedo magro
para o céu nublado de Opala.
— Provavelmente tem razão, comandante Perry. Suponha, porém,
que as pessoas estejam vindo para Dobelle por causa da Grande Conjun-
ção. Não consideramos essa possibilidade quando estávamos analisando
os pedidos. — Olhou para Darya Lang. — É esta sua verdadeira razão para
estar aqui?
— Não. Decididamente, não. — A moça estava aliviada por poder
dar uma resposta franca. — Eu nem sabia a respeito da Conjunção até o
comandante Perry mencionar o assunto.
— Acredito na senhora. — Rebka sorriu, e a moça teve a impres-
são de que ele estava sendo sincero. Lembrou-se, porém, das palavras
da legada Pereira: “Não confie em ninguém do Círculo de Phemus. Eles
praticam técnicas de sobrevivência que nós da Aliança nunca fomos força-
dos a aprender.” — Na verdade, não faz muita diferença que razões essas
pessoas encontraram para nos visitar Elas não tornam Tremor um planeta
mais seguro.
Voltou-se para Perry.
— E tenho certeza de que não está exagerando quanto aos perigos
em Tremor durante a Maré de Verão. Por outro lado, tenho a responsa-
bilidade de maximizar a receita de Dobelle com o turismo. É o meu tra-
balho. Não é nossa responsabilidade proteger os visitantes, embora seja
nosso dever preveni-los. Se preferem correr os riscos, o direito é deles.
Não são crianças.
— Eles não fazem idéia de como é Tremor durante a Maré de Ve-
rão. — O rosto de Perry estava malhado de branco e vermelho Parecia a
ponto de explodir. — O senhor não faz idéia.
— Ainda não. Mas pretendo saber como é. — A atitude de Rebka
mudou de novo. Ele se tornou um chefe dando ordens a um subordinado.
— Concordo com o que diz, comandante. Seria uma irresponsabilidade
deixarmos a professora Lang visitar Tremor... até conhecermos os riscos.
41
Por outro lado, se os perigos forem analisados e considerados aceitáveis,
não devemos ser superprotetores. De modo que nós dois vamos a Tre-
mor, enquanto a professora Lang permanece aqui em Opala. Voltou-se
para Darya:
— Quando voltarmos... e só então, professora Lang, tomarei uma
decisão

42
ARTEFATO: SENTINELA
N° de série: 863
Coordenadas galácticas: 27.712,863/16.311,031/761,157
Nome: Sentinela
Conjunto estrela/planeta: Ryders-M/Portal da Sentinela
Nó de Bose mais próximo: G-232
Idade estimada: 5,64 ± 0,07 megaanos
História da exploração: A Sentinela foi descoberta no ano 2649 da Ex-
pansão por colonizadores humanos na região transoriônica. Primeira tentati-
va de entrada em 2674 E., por Bernardo Gullemas e a tripulação da nave de
exploração D-33, da classe Ciclope. Não houve sobreviventes. Novas tenta-
tivas de entrada em 2682 E., 2695 E., 2755 E., 2803 E., 2991 E. Não houve
sobreviventes.
Transmissor de sinais de advertência instalado em 2739 E.; base de ob-
servação construída no planeta mais próximo (Portal da Sentinela) em 2762
E.
Descrição: A Sentinela é uma região inacessível de forma quase esférica,
com pouco menos de um milhão de quilômetros de diâmetro. Embora não
possua nenhuma fonte interna visível de energia, a Sentinela brilha fracamen-
te com luz própria (magnitude absoluta +25) e é visível de qualquer ponto
do sistema de Ryders-M. A superfície da Sentinela permite a passagem de luz
e radiação de qualquer comprimento de onda, mas reflete todos os objetos
materiais, incluindo partículas atômicas e subatômicas. O fluxo proveniente
do interior é constituído exclusivamente por fótons. O interior pode ser ilu-
minado com um laser, o que revela uma variedade de estruturas no centro
da esfera, das quais a mais notável é a “Pirâmide”, uma estrutura tetraédrica
regular que absorve toda a luz que a atinge. Se as distâncias no interior da
Sentinela têm o mesmo significado que no exterior (existem indícios de que
isso não é verdade; veja mais adiante), a Pirâmide mede aproximadamente
noventa quilômetros de lado da base. Nenhum aumento na temperatura da
Pirâmide é observado, mesmo quando a estrutura está absorvendo uma po-
tência da ordem dos gigawatts
Medidas do percurso de raios luminosos, usando lasers, mostram que
o interior da Sentinela não é topologicamente simples; o tempo mínimo que
a luz leva para atravessar a esfera é de 4,221 minutos, maior portanto que o
tempo geodésico de 3,274 segundos para uma distância equivalente no espa-
ço vazio, longe de qualquer massa. No caso de um raio de luz perpendicular
ao “equador” da Sentinela, o tempo de percurso é infinito, ou pelo menos
43
maior do que mil anos. O deslocamento para o vermelho e os resultados de
medidas com raios laser de baixo ângulo indicam que não existe nenhuma
massa no interior da Sentinela, um resultado incompatível com a observação
de uma estrutura interna.
A Sentinela se mantém a uma distância precisa de 22,34 u.a. da estrela
primária do sistema Ryders-M, mas não está em órbita em torno da estrela.
As forças gravitacionais e as forças da pressão de radiação são compensadas
exatamente por algum mecanismo desconhecido ou simplesmente não agem
sobre a estrutura.
Estrutura: De acordo com Wollaski’i e Drews, a Sentinela foi cons-
truída sobre uma anomalia natural do espaço-tempo e está acoplada apenas
fracamente ao resto do universo. Nesse caso, este é um dos únicos trinta e
dois artefatos dos Construtores que foram criados com o uso de substâncias
naturais.
A topologia da Sentinela parece ser a de um nó de Ricci-Cartan-Penro-
se no espaço de sete dimensões.
Finalidade: Desconhecida. Entretanto, supõe-se (por analogia com ou-
tros artefatos dos Construtores, veja os nos 311, 465 e 1.223) que a Pirâmide
possua uma capacidade quase infinita de armazenar informações. Assim, foi
sugerido (Lang, 4130 E.) que a Pirâmide, e possivelmente toda a Sentinela,
seja uma biblioteca dos Construtores.

— Do Catálogo Lang Universal de Artefatos,


Quarta Edição

44
Capítulo 4

Maré de Verão menos trinta e um.

A primeira parte da viagem até Tremor foi executada em silêncio


total. Depois que se tornou claro que Hans Rebka insistia em conhecer o
planeta e não podia ser demovido da idéia, toda a energia de Perry havia
desaparecido. Ele mergulhou em uma estranha letargia, sentado ao lado
de Rebka no carro aéreo, olhando fixamente para a frente. Levantou-se
quando chegaram à base do Cordão Umbilical, mas apenas por tempo su-
ficiente para mostrar o caminho até uma cápsula de passageiros e iniciar
a sequência de comandos para a subida.
Visto do nível do mar, o Cordão Umbilical impressionava, mas não
chegava a deslumbrar. Para Rebka, parecia uma torre alta e fina, de largu-
ra uniforme, com talvez uns quarenta metros de diâmetro, estendendo-se
da superfície do oceano de Opala até a base da camada de nuvens. A linha
principal da estrutura era um trilho prateado, ao longo do qual passagei-
ros e carga podiam ser transportados em grandes carros. O sistema de
propulsão e sustentação era eletromagnético, alimentado por motores
lineares síncronos. Os detalhes do projeto podiam ser diferentes, mas Re-
bka tinha visto o mesmo princípio ser usado em uma dúzia de planetas,
transportando pessoas e materiais para o alto de edifícios de muitos qui-

45
lômetros de altura ou colocando-os em órbita. O fato de que havia mais
de dois quilômetros do Cordão Umbilical abaixo do nível do mar, chegan-
do até o ponto de fixação no fundo do oceano, podia ser surpreendente,
mas não era difícil de aceitar.
O mais difícil de ser aceito (pelo menos para Rebka) era o fato de
que havia mais doze mil quilômetros do Cordão Umbilical acima das nu-
vens, estendendo-se até a superfície crestada e turbulenta de Tremor. O
observador que embarcava em uma cápsula estava vendo menos de um
décimo milésimo de toda a estrutura. Como a velocidade máxima dos car-
ros era de mil quilômetros por hora, o sol nasceria duas vezes em Tremor
antes que a viagem terminasse.
E agora estavam a caminho.
A cápsula era da altura e largura das maiores construções de Opala.
Do jeito que os Construtores a haviam deixado, o interior era um grande
espaço vazio. Os humanos tinham acrescentado divisões internas, desde
um depósito de carga na parte de baixo até uma câmara de controle e
observação na extremidade superior.
Os motores do carro eram silenciosos. Tudo que se podia ouvir
quando começaram a subir suavemente, atravessando a camada de nu-
vens, era o assobio do ar e o murmúrio da turbulência atmosférica. Mais
cinco segundos e Hans Rebka teve sua primeira visão de Tremor. Ouviu
Max Perry resmungar a seu lado.
Talvez Rebka também tivesse resmungado. Porque de repente a
camada permanente de nuvens que cobria Opala parecia uma bênção
dos céus. Ainda bem que o outro planeta não era visível da superfície de
Opala, pensou.
Tremor ocupava uma boa parte do céu, uma bola malhada, ilumi-
nada pelo sol, que parecia pronta para esmagar Rebka. O instinto lhe dizia
que nenhuma força do universo poderia suportar um peso tão grande,
que jamais se acostumaria com uma visão como aquela. Ao mesmo tem-
po, a razão fez um cálculo rápido das velocidades orbitais e do equilíbrio
entre as forças centrífuga e gravitacional e assegurou-lhe que tudo estava
em perfeito equilíbrio dinâmico. As pessoas poderiam se sentir pouco à
vontade com a imagem ameaçadora de Tremor no céu por um dia ou
dois, mas depois passariam a ignorá-la.
Daquela distância, não era possível ver detalhes, mas era evidente
que estava olhando para um mundo sem grandes mares ou oceanos. Re-
bka pensou imediatamente em terraformação; não de Tremor ou Opala
isoladamente, mas dos dois em conjunto. Era a combinação perfeita. Tre-
46
mor tinha os metais e minerais, Opala tinha a água. Seria um trabalho di-
fícil, mas já enfrentara desafios maiores. Pelo menos, já havia um sistema
de transporte ligando os dois planetas.
Olhou para o Cordão Umbilical à sua frente. Conseguiu acompa-
nhar a linha por uns cem quilômetros antes de perdê-la de vista. A Esta-
ção de Meio Caminho, a quatro mil quilômetros de distância, no centro
de massa do sistema Opala-Tremor, aparecia como uma pequena conta
dourada em uma linha invisível. Levaria metade do dia para chegar lá.
Tinha muito tempo para pensar.
E muitas coisas em que pensar.
Rebka fechou os olhos e passou em revista as coisas que o preocu-
pavam.
Começando com Max Perry. Tinham bastado alguns dias de con-
vivência com o homem para convencê-lo de que havia na verdade dois
Max Perry. Um era um burocrata tímido e desinteressado, do tipo que
Rebka esperaria encontrar em um emprego sem futuro em um planeta de
terceira do Círculo de Phemus. Mas por baixo dessa personalidade havia
uma outra, a de uma pessoa inteligente e cheia de vida, com idéias pró-
prias. Esse segundo Max Perry parecia despertar apenas em raras oca­
siões, sem razão aparente.
Não, não era bem assim. O segundo Max acordava quando Tremor
era mencionado, e apenas quando isso acontecia. E Max II devia ser o ho-
mem arguto e determinado que Perry havia sido o tempo todo sete anos
antes... quando fora nomeado para aquele cargo em Dobelle.
Rebka recostou-se no assento, fisicamente relaxado mas mental-
mente ativo. Está bem. Aceite o fato de que existe um mistério em Max
Perry. Mas pergunte se esse mistério justifica tirar um homem experiente
e produtivo como Hans Rebka de um projeto importante envolvendo a
exploração do Paradoxo para transformá-lo em psicólogo amador no re-
moto planeta Opala.
Não fazia sentido. Se os homens e mulheres que administravam o
Círculo de Phemus eram bons em alguma coisa, era na conservação de
recursos; e os recursos humanos constituíam-se nos mais preciosos de
todos.
Precisava procurar outro motivo, outra razão para ter sido manda-
do para ali.
Rebka não era ingênuo a ponto de pensar que os superiores lhe
contariam tudo a respeito das missões para as quais era destacado. Podia
ser que eles nem conhecessem a história completa. Descobrira aquilo da
47
maneira mais difícil, em Pelicano. Um enviado especial devia ser capaz de
cumprir bem sua missão com um mínimo de informações, e Rebka funcio-
nava melhor quando era forçado a descobrir as coisas sozinho.
A terraformação de Tremor e Opala?
Os superiores deviam saber que a idéia lhe ocorreria assim que
visse a dupla de planetas. Seria esse o verdadeiro motivo pelo qual fora
requisitado? Para iniciar um projeto de terraformação?
Não, não parecia provável.
Nesse caso, tinha que considerar outras variáveis. Quatro grupos
estavam interessados em visitar Tremor durante a Maré de Verão. Um
deles poderia ser uma coincidência genuína (o Conselho da Aliança não
era dado a práticas tortuosas), mas quatro de uma vez era demais.
E a Maré de Verão que estava para acontecer seria a maior de todos
os tempos. Talvez fosse isso. Achavam-se ali para aquela Maré de Verão
especial.
Mais uma vez, a explicação não lhe pareceu satisfatória. Darya Lang
lhe dissera que não sabia que seria uma Maré de Verão especial até Perry
comentar a respeito.
Rebka acreditava nela. Mas isso também era suspeito. Deixara uma
companheira na estação em órbita em torno do Paradoxo. Independen-
te do que o cérebro lhe dissesse, suas glândulas estavam provavelmente
procurando uma substituta. Nos primeiros dois minutos que passara com
Darya, percebera que havia uma atração mútua. Devia ser muito cautelo-
so ao lidar com a moça, porque queria acreditar nela.
Darya não sabia da existência de uma Maré de Verão gigante pro-
gramada para breve. Ótimo. Mas mesmo que Rebka acreditasse nisso,
não queria dizer que a moça fosse quem alegava ser; Darya poderia ter
um papel diferente, mais complexo, a desempenhar na trama.
Seria ela quem alegava ser? Isso podia ser verificado. Antes de dei-
xar o lado das estrelas, Rebka enviara uma mensagem cifrada pela rede
de comunicações de Bose, pedindo que o serviço de informações do Cír-
culo confirmasse que Darya Lang era uma especialista em artefatos dos
Construtores. A resposta estaria à sua espera quando voltasse de Tremor.
Até então, era melhor pôr de lado as perguntas relativas a Lang.
Mas restavam muitas outras a serem respondidas. Hans Rebka foi
interrompido por um leve toque no braço. Abriu os olhos.
Max Perry estava apontando para cima, na direção do Cordão Um-
bilical. Tremor estava lá, uma vez e meia maior que no início da viagem.
No momento, porém, refletia apenas a soturna luz vermelha de Amaran-
48
th. Mandel estava escondido atrás do planeta, e, com a proximidade da
Maré de Verão, seu companheiro menor estava chegando cada vez mais
perto. Em pouco tempo não haveria mais noite, nem em Tremor, nem em
Opala.
Perry apontou de novo, e Rebka percebeu que não era Tremor que
ele mostrava. Estavam quase chegando à Estação de Meio Caminho, e,
surpreendentemente, o Cordão Umbilical parecia terminar ali. Rebka po-
dia ver uma interrupção, uma região em que a estrutura cilíndrica ter-
minava em um ponto azul brilhante. Estavam se movendo rapidamente
em direção a esse ponto; pouco depois, o próprio Tremor começou a ser
ocultado pela esfera dourada da Estação de Meio Caminho.
— Que está acontecendo? — perguntou Rebka. — Pensei que o
Cordão Umbilical continuasse até Tremor. — Ele devia estar um pouco
nervoso, porque do lado de fora do carro só havia o vácuo do espaço;
mas Perry tinha um sorriso no rosto, e certamente não parecia à beira do
desastre.
— E continua — respondeu. — Estamos nos aproximando do Guin-
cho. Vamos ter que fazer um desvio e tornar a nos ligar ao Cordão Umbili-
cal do outro lado da Estação de Meio Caminho. Os viajantes podem entrar
na estação, se quiserem. Ela é bem equipada. Comida, acomodações etc.
Mas acho melhor seguirmos em frente. Se quiser, podemos visitar a Esta-
ção de Meio Caminho na volta.
Enquanto Perry falava, o carro em que estavam viajando se desli-
gou do cabo principal e passou por uma série de portões e trilhos. Tremor
desaparecera de vista. A Estação de Meio Caminho estava à direita. Re-
bka podia ver uma fila de aberturas, todas suficientemente grandes para
receber a cápsula. Olhou para trás, para o lugar onde o cabo principal do
Cordão Umbilical desaparecia em uma luminosidade azul, apenas para
reaparecer alguns quilômetros adiante.
— Não estou vendo nenhum guincho.
— Nem vai ver. — O segundo Max Perry estava de volta, alerta e
entusiasmado. — É apenas um nome. Acontece que Opala e Tremor estão
em uma órbita mútua quase circular, mas a distância entre eles varia con-
tinuamente, desde um valor muito pequeno até cerca de quatrocentos
quilômetros. Seria impossível instalar um Cordão Umbilical permanente
se não houvesse um dispositivo para aumentar e diminuir o tamanho do
cabo, de acordo com as necessidades do momento. É isso que o Guincho
faz.
— Aquele buraco no espaço?
49
— Certo. Funciona muito bem, e, durante a Maré de Verão, puxa
ainda mais o cabo, de modo que ele se desprende da superfície de Tre-
mor. E é suficientemente “esperto” para deixar intacta a ligação com
Opala. Mas é tudo tecnologia dos Construtores. Não fazemos idéia de
para onde vai o cabo, ou de como “sabe” o que fazer. Os humanos não se
importam, contanto que possam levantar ou baixar o Cordão Umbilical
usando as sequências especiais de controle.
A relutância de Perry em visitar Tremor havia desaparecido assim
que deixaram Opala. Estava olhando para a frente no momento em que
contornaram a Estação de Meio Caminho, tornando a ver Tremor no céu.
A cápsula manobrou para engatar no segundo trecho do Cordão
Umbilical e eles começaram a ganhar velocidade. Logo depois, passaram
pelo centro de massa do sistema de Dobelle e houve uma clara sensa-
ção de queda em direção a Tremor, com a força centrífuga se somando
à gravidade de Tremor. O planeta escuro crescia visivelmente no céu, de
minuto a minuto. Começaram a ver os detalhes da superfície.
E Rebka observou outra mudança em Perry. Sua respiração se ace-
lerou. Olhava fixamente para a superfície de Tremor. Rebka podia apostar
que o coração também estava batendo mais depressa.
Que haveria lá embaixo? Rebka daria muita coisa para ver Tremor
através dos olhos de Max Perry.

Tremor não tinha mares nem oceanos, mas possuía muitos rios e
pequenos lagos. Era em volta deles que crescia a vegetação característica,
verde-escura e cor de ferrugem. As plantas eram em sua maioria duras
e espinhentas, mas em certos lugares o solo estava coberto por exube-
rantes samambaias, macias e flexíveis. Uma dessas áreas era a margem
do maior dos lagos, não longe da base do Cordão Umbilical — um lugar
natural para uma pessoa se deitar e descansar. Ou para duas pessoas
encontrarem outros prazeres.
Amy estava falando no ouvido dele, com sua voz melodiosa.
— Você é a maior autoridade neste planeta, não é?
— Não exagere. — Ele estava se sentindo preguiçoso, relaxado. —
Mas acho que sei mais a respeito de Tremor do que qualquer um.
— É a mesma coisa. Então por que não quer me trazer mais aqui?
Nada o impede, Max. Você controla o acesso.
— Eu não devia ter trazido você aqui nem uma vez.
A sensação de poder. Da primeira vez, fizera aquilo para se mostrar,
mas depois que chegara ao planeta encontrara razões ainda melhores.
50
Tremor continuava sendo um lugar seguro, pois faltava muito tempo para
a Maré de Verão, mas já havia poeira vulcânica na atmosfera. Os poentes,
que ocorriam a cada oito horas, eram de uma beleza indescritível, feitos
de vermelhos, roxos e dourados. Não havia visto nada parecido em todo o
universo... nem tinha conhecimento de que existisse. Mesmo com os olhos
fechados, ainda podia ver aquelas cores gloriosas.
Estivera se mostrando para Amy... mas agora ele próprio não queria
parar de olhar, ainda não. Ficou deitado de costas, desviando os olhos do
deslumbrante pôr-do-sol para admirar o disco brilhante de Opala. A seu
lado, Amy tinha arrancado uma das folhas de samambaia e fazia cócegas
com ela no seu peito nu. Depois de alguns momentos, deitou-se sobre ele,
bloqueando a visão de Opala e fitando o rapaz com olhos muito sérios.
— Você vai, não vai? Claro que sim. Diga que vai.
— Vou o quê? — Ele fingiu que não havia entendido.
— Trazer-me aqui de novo. Perto da Maré de Verão.
— Não vou, não. — Ele rolou a cabeça de um lado para outro na ve-
getação macia, preguiçoso demais para levantá-la totalmente. Sentia-se
como se fosse o rei do mundo. — Seria perigoso, Amy. Procure entender.
— Mas você virá.
— Não durante a Maré de Verão. Vou sair daqui muito antes disso.
Ninguém fica em Tremor durante a Maré de Verão.
— Então eu posso ir embora quando você for. Está bem assim?
— Não. Não quero que você esteja aqui quando faltar pouco tempo
para a Maré de Verão.
Amy aproximou o corpo do do rapaz, enquanto o último raio de luz
deixava a superfície de Tremor. Ele não podia mais ver o rosto da moça;
estava mergulhado na sombra.
— Eu podia ficar. — Os lábios de Amy estavam a um centímetro dos
seus. — Diga que posso. Diga que sim.
— Não — repetiu Perry. — Não quando a Maré de Verão estiver
para chegar.
Amy não disse mais nada. Estava ocupada com outros argumentos.

51
Capítulo 5

Maré de Verão menos trinta.

Darya Lang estava se sentindo terrivelmente frustrada. Viajar para


tão longe, preparar-se para enfrentar desafios, perigos, experiências no-
vas e emocionantes... e depois ter que ficar dias e dias sem nada para
fazer, enquanto outros decidiam se teria permissão para executar a parte
final e mais importante da jornada!
Ninguém na Aliança dissera que sua missão seria simples. Entre-
tanto, ninguém a prevenira de que, uma vez no sistema de Dobelle, po-
deria ter dificuldade para chegar a Tremor. Até o momento, não pudera
nem mesmo ver o planeta, a não ser do espaço. Estava retida no lado das
estrelas de Opala por um tempo indefinido, sem a menor idéia do que
ocorreria em seguida.
Perry lhe reservara um prédio inteiro, perto do espaçoporto, e lhe
assegurara que estava livre para ir aonde lhe aprouvesse, conversar com
quem quisesse, fazer qualquer coisa que tivesse vontade.
Muita gentileza dele. Exceto pelo fato de que não havia mais nin-
guém no prédio, e não havia nada no prédio além de quartos de dormir...
e ele lhe dissera que queria falar com ela assim que voltasse. Ele e Rebka
certamente passariam vários dias viajando. Para onde poderia ir? Que

52
poderia fazer para passar o tempo?
Decidiu examinar alguns mapas de Opala na tela do computador.
Para alguém acostumado aos continentes fixos e aos litorais imutáveis do
Portal da Sentinela, os mapas eram curiosamente insatisfatórios. O relevo
submarino dos oceanos de Opala era mostrado como uma característica
permanente do planeta, mas parecia ser a única constante geográfica.
No caso das Fundas, não conseguiu encontrar mais que a posição atual
e a velocidade de deslocamento de algumas centenas das maiores delas;
mais (e para ela era uma informação preocupante) a espessura e tempo
estimado de vida de cada uma. No momento, ela se encontrava em uma
placa com menos de quarenta metros de profundidade, cuja espessura
variava de ano para ano de forma imprevisível.
Desligou o computador, sentou-se e esfregou os olhos. Não se sen-
tia bem. Talvez isso se devesse em parte à gravidade reduzida, que ali no
lado das estrelas de Opala correspondia a apenas quatro quintos da gra-
vidade-padrão. Talvez se devesse à desorientação produzida pela viagem
interestelar. Os cientistas insistiam em que o Sistema Bose não produzia
nenhum efeito nos humanos. Entretanto, Darya se lembrou dos habitan-
tes das velhas Arcas, que se recusavam a fazer viagens superluminais e
afirmavam que a alma humana era incapaz de viajar mais depressa que
a luz.
Se os habitantes das Arcas estavam certos, sua alma ainda levaria
muito tempo para alcançá-la.
Darya foi até a janela e olhou para o céu nublado de Opala. Sentia­
-se solitária e muito longe de casa. Gostaria de poder olhar para Rigel,
a supergigante mais próxima do Portal da Sentinela, mas a camada de
nuvens era contínua. Sentia-se também muito irritada. Hans Rebka podia
ser um tipo interessante, e estava claramente interessado nela (o brilho
nos seus olhos era inconfundível), mas não tinha vindo de tão longe para
ver seus planos frustrados pelos caprichos de um burocrata.
No estado de espírito em que se encontrava, era melhor dar um
passeio pela Funda do que continuar confinada naquela construção baixa
e claustrofóbica. Saiu para o ar livre e descobriu que tinha começado a
chover. Explorar a Funda a pé nessas condições podia ser difícil; a super-
fície era constituída por moitas irregulares de juncos e samambaias em
um solo friável, mantido no lugar por um emaranhado escorregadio de
plantas rasteiras.
Por outro lado, estava acostumada a andar descalça, e seus dedos
dos pés conseguiriam um bom apoio nas duras raízes. Curvou-se e tirou
53
os sapatos.
O piso era ainda mais irregular fora da área controlada do espa-
çoporto. Caminhar tornou-se difícil, mas estava precisando do exercício.
Tinha andado pouco mais de um quilômetro e estava disposta a continuar
o passeio quando ouviu um som sibilante vindo de uma grande moita de
samambaias alguns metros à frente. A parte superior das plantas se en-
curvou, pressionada por alguma coisa muito grande e pesada.
Darya abriu a boca e pulou para trás, estatelando-se no solo mo-
lhado. De repente, passear a pé lhe pareceu ter sido uma péssima idéia.
Correu de volta para o espaçoporto e requisitou um carro. O veículo tinha
um alcance de vôo limitado, mas a levaria até a margem da Funda, permi-
tindo que desse uma olhada no oceano de Opala.
— Não precisava se preocupar — disse o mecânico que lhe entre-
gou o carro. Ele estava insistindo em mostrar-lhe como funcionavam os
controles, embora a moça tivesse certeza de que conseguiria operá-los
sozinha. — Os animais terrestres de Opala são inofensivos e os colonos
não trouxeram para cá nenhum bicho carnívoro. Também não existem
plantas venenosas. A senhora não corria nenhum perigo.
— O que era, então?
— Uma velha tartaruga — esclareceu o mecânico, um homem alto,
de pele clara, com um macacão encardido, um sorriso franco e jeito ex-
tremamente informal. — Deve pesar meia tonelada e passa o tempo todo
comendo. Mas só se alimenta de samambaia, grama, essas coisas. A se-
nhora poderia montar nas costas dela que nem iria ligar.
— Uma forma de vida nativa?
— Nada disso. — A explicação a respeito do uso do carro havia
terminado, mas ele não parecia ansioso para ir embora. — Não havia ver-
tebrados em Opala. A maior forma de vida que os colonos encontraram
em terra foi uma espécie de caranguejo de quatro patas.
— Existe alguma forma de vida perigosa nos oceanos?
— Não para mim e a senhora. Quero dizer, não diretamente. Quan-
do sair para passear de barco, fique de olho para não chegar muito perto
do que parece uma ilha verde, com mais ou menos um quilômetro de
largura. Os rabdomantes são assim. Às vezes eles afundam um barco, mas
é totalmente sem querer.
— E se um deles se meter debaixo de uma Funda?
— Por que faria uma besteira dessas? — protestou o mecânico. —
Eles sobem à superfície em busca de ar e luz, e essas coisas não existem
debaixo das Fundas. A senhora não deve ir embora sem ver um rabdo-
54
mante... é uma experiência e tanto. Nesta época do ano, eles aparecem
com frequência. Teve sorte de encontrar aquela tartaruga, sabe? Mais
alguns dias e elas vão dar o fora. Provavelmente, vão partir ainda mais
cedo que de costume.
— Para onde vão?
— Para o oceano, claro. Sabem que a Maré de Verão vem aí e que-
rem estar num lugar bem sossegado quando ela chegar. Devem saber que
a deste ano vai ser especial.
— Estarão seguras no mar?
— Bem seguras. Esses bichos não gostam de passar muito tempo
longe da água. Quando a maré baixa, tratam logo de voltar para perto do
mar.
O mecânico saiu do carro pela porta da esquerda.
— Se quiser descobrir o caminho mais curto para a borda da Fun-
da, é só observar para onde estão apontando as cabeças das tartarugas.
— Limpou as mãos com um pano imundo, deixando-as tão sujas quanto
antes, e dirigiu a Darya um olhar de admiração. — Alguém já disse que
a senhora tem um corpo muito bonito? É verdade. Se quiser companhia
quando voltar, estarei aqui. Moro aqui perto. Meu nome é Cap.
Darya Lang levantou vôo pensando nos mundos do Círculo de Phe-
mus. Ou seria apenas o ar de Opala que fazia os homens olharem para
ela daquele jeito? Em doze anos de vida adulta que passara no Portal da
Sentinela, tivera apenas um caso de amor, recebera talvez quatro cumpri-
mentos e observara meia dúzia de olhares de apreciação. Ali, arranjara
dois admiradores em dois dias.
Bem que a legada Pereira lhe dissera para não se surpreender com
o que quer que acontecesse fora do território da Aliança. E o tio Matra
fora ainda mais explícito ao saber o seu destino: “Todos nos mundos do
Círculo são loucos por sexo. Têm que ser, ou estariam extintos.”
As grandes tartarugas não eram visíveis da altitude que escolhera
para o vôo, mas assim foi mais fácil localizar a margem da Funda. Sobre-
voou o oceano por algum tempo e ficou satisfeita ao ver o dorso verde
e monstruoso de um rabdomante emergir das águas. Visto à distância,
poderia ser confundido com uma Funda pequena, perfeitamente circular,
até o momento em que o dorso inteiro se abriu em dez mil bocas, que
deixaram escapar jatos sibilantes de vapor branco. Depois de dez minu-
tos, as aberturas se fecharam lentamente, mas o rabdomante continuou
a lagartear na água morna da superfície.
Darya se deu conta pela primeira vez da importância ecológica das
55
Fundas em um mundo aquático como Opala. As marés eram uma força
de destruição em mundos como o Portal da Sentinela, onde a subida e a
descida das águas dos oceanos iam de encontro aos litorais fixos dos con-
tinentes. Ali, porém, tudo podia se mover livremente, pois as Fundas flu-
tuantes acompanhavam o niveladas águas. Na verdade, embora a Funda
que continha o espaçoporto devesse estar, naquele exato momento, se
movendo para cima ou para baixo, em resposta à atração gravitacional de
Mandel e Amaranth, encontrava-se totalmente em repouso em relação à
superfície do oceano. As únicas forças a que estava submetida se deviam
a efeitos de terceira ordem, consequência de sua grande superfície.
As formas de vida estavam igualmente seguras. A menos que um
rabdomante tivesse a desventura de se encontrar em uma região na qual
a maré extraordinariamente baixa deixasse descoberto o fundo do ocea-
no, o animal nem tomaria conhecimento da Maré de Verão.
Darya conduziu o carro até um ponto próximo da margem da Fun-
da, longe o suficiente do oceano para poder pousar em segurança. Ali
não estava chovendo, e havia mesmo uma sugestão de que o disco de
Mandel poderia mostrar o seu rosto através das nuvens. Desceu do veí-
culo e olhou em torno. Era estranho estar em um mundo tão desabitado
que não havia ninguém à vista de horizonte a horizonte. Entretanto, não
era uma experiência desagradável. Caminhou em direção à margem da
Funda. As plantas de caules macios e folhas compridas que orlavam o
litoral estavam carregadas de frutas amarelas, do tamanho do seu punho
fechado. A acreditar em Cap, eram comestíveis, mas aquilo lhe pareceu
um risco desnecessário. Embora sua fauna e flora intestinais tivessem
sido substituídas no dia da chegada por espécies adaptadas a Opala, os
microrganismos provavelmente ainda deviam estar discutindo quem faria
o quê. Aproximou-se da margem tortuosa da Funda, tirou os sapatos e
inclinou o corpo para pegar um pouco de água salgada nas mãos em con-
cha. Esse risco estava disposta a correr.
Bebeu alguns goles. A água tinha um gosto salgado, mas que não
lembrava sal de cozinha. Era mais como se estivesse provando seu próprio
sangue.
O complexo equilíbrio químico em um planeta como Opala a fez
sentar-se de cócoras e pensar. Em um mundo sem continentes, os rios
não podiam remover sais e bases das rochas expostas e depositá-los nos
oceanos. Por outro lado, o metano primordial e outros hidrocarbonetos
mais pesados deviam infiltrar-se no fundo do mar, através de microfis-
suras, e difundir-se na massa líquida. Todo o equilíbrio terra-mar tinha
56
que ser radicalmente diverso do que existia em seu planeta natal. Seria
essa uma situação realmente estável? Ou Opala e Tremor ainda estavam
mudando quando ocorrera o episódio traumático, quarenta e poucos mi-
lhões de anos atrás, que os fizera assumir uma órbita totalmente nova em
torno de Mandel?
Caminhou uns cem metros para longe do litoral e sentou-se de per-
nas cruzadas em uma saliência coberta de vegetação verde-escura.
Mandel era uma mancha luminosa nas nuvens. Ainda estava alto
no céu. Faltavam pelo menos duas horas para o anoitecer. Agora que co-
nhecia melhor o planeta, sabia que era um lugar tranquilo e hospitaleiro,
nada parecido com o mundo hostil e inóspito que imaginara. Certamente
os humanos tinham todas as condições para viver ali, mesmo durante a
Maré de Verão. E se Opala era tão agradável, poderia seu irmão gêmeo,
Tremor, ser muito diferente?
Mas teria que ser diferente para que suas conclusões estivessem
corretas. Olhou para o horizonte cinzento, no qual não se viam embarca-
ções ou outras Fundas, e repassou pela milésima vez a cadeia de raciocí-
nio que a levara a Dobelle. Quão convincentes eram aqueles resultados
de uma análise por mínimos quadrados? Para ela, era impossível que os
dados pudessem se encaixar tão perfeitamente por mera coincidência.
Mas, se os resultados lhe pareciam tão claros e indiscutíveis, por que ou-
tros estudiosos não tinham chegado à mesma conclusão?
Só havia uma resposta. Seu raciocínio fora auxiliado pelo fato de
que era uma sedentária, uma pessoa que jamais viajara pelas estrelas. A
humanidade e seus vizinhos alienígenas estavam acostumados a pensar
em espaço e distâncias em termos do Sistema Bose. Para as viagens inte-
restelares, usavam uma rede de Nós de Bose. A velha medida de distância
geodésica entre dois pontos não tinha mais importância; o que contava
era o número de Transições de Bose. Apenas os habitantes das Arcas, ou
talvez os velhos colonizadores que continuavam a viajar em naves sublu-
minais, seriam capazes de imaginar que uma mudança em um dos artefa-
tos dos Construtores fosse capaz de gerar um sinal, um sinal que se pro-
pagaria em todas as direções a partir do ponto de origem, viajando com a
velocidade da luz. E apenas alguém como Darya Lang, que se interessava
por tudo que dizia respeito aos Construtores, poderia se perguntar se ha-
veria alguns lugares e tempos onde todas essas frentes de onda esféricas
se interceptavam.
Os elos da cadeia de raciocínio eram fracos, se tomados isolada-
mente, mas em conjunto tinham deixado a moça totalmente convencida.
57
Sentiu-se novamente irritada. Ela estava no lugar certo... ou estaria, se
pudesse sair de Opala e ir para Tremor! Em vez disso, porém, achava-se
impedida de deixar aquele paraíso sonolento.
Paraíso sonolento. No momento em que as palavras se formaram
em sua mente, ouviu um zumbido desagradável às suas costas. Uma for-
ma saída de um pesadelo cruzou o ar e pousou bem à sua frente, com as
seis patas articuladas totalmente estendidas.
Se Darya não gritou, foi apenas porque a garganta se recusou a
funcionar.
A criatura tirou do chão duas das patas castanho-escuras e levan-
tou o corpo. A moça viu um ventre segmentado, vermelho-escuro, e um
pescoço curto, envolvido por pregas vermelhas e brancas. Mais acima,
uma cabeça branca, sem olhos, duas vezes maior que a sua. Não havia
boca, mas uma fina tromba se projetava do meio do rosto e se encurvava
para baixo, enfiando-se em uma bolsa logo abaixo do queixo.
Darya ouviu uma série de guinchos curtos e muito agudos. Chifres
ocos e amarelos no meio da cabeça se voltaram para examiná-la. Acima
deles, um par de órgãos castanho-claros, desproporcionalmente compri-
dos mesmo para aquela cabeça enorme, se desenrolou para formar an-
tenas de dois metros de comprimento, que balançavam suavemente no
ar úmido.
A moça gritou e pulou para trás, tropeçando no montículo em que
estivera sentada. Nesse momento, uma segunda figura aproximou-se com
um salto gracioso e colocou-se ao lado da primeira. Era outro artrópode,
quase da mesma altura, mas com um corpo bem mais fino, da largura do
braço de Darya. A pequena cabeça da criatura era dominada por olhos
compostos cor de limão, sem pálpebras. Eles giraram em seus pedúnculos
para observá-la.
Darya sentiu um cheiro doce, complexo e pouco familiar mas não
desagradável, e um momento depois a boca da segunda criatura se abriu.
— Saudações de Atvar H’sial — disse uma voz suave, em uma lin-
guagem humana distorcida mas compreensível.
A outra criatura continuou calada. O primeiro choque começou a
passar e Darya voltou a pensar racionalmente.
Tinha visto algumas fotografias. Nos retratos não dava para ter
idéia do tamanho e do aspecto apavorante, mas a primeira criatura só po-
dia ser uma cecropiana, um membro da espécie dominante da Federação
de Cecrópia, que controlava oitocentos planetas. O segundo animal devia
ser um intérprete, um membro da espécie inferior a que os cecropianos
58
invariavelmente recorriam para se comunicar com os humanos.
— Meu nome é Darya Lang — disse a moça, devagar. Os outros dois
eram tão diferentes dela que provavelmente não compreenderiam suas
expressões faciais. Mesmo assim, esforçou-se para sorrir.
Houve uma pausa e novamente ela sentiu o cheiro pouco familiar.
Os chifres amarelos da cecropiana se voltaram para ela. Pôde ver que o
interior continha um arranjo delicado de tubos em espiral.
— Atvar H’sial pede desculpas através do outro. — Um dos braços
articulados da cecropiana apontou para o animal menor. — Achamos que
talvez tenha se assustado conosco.
Ela devia estar brincando. Era desconcertante ouvir palavras cria-
das pela mente de uma criatura saírem da boca de outra. Entretanto, Da-
rya sabia que o mundo de origem da raça dos cecropianos, seu planeta­-
mãe, como a Terra era o planeta-mãe de todos os humanos, era um globo
coberto de nuvens que girava em torno de uma anã vermelha. Naquele
ambiente sombrio, os cecropianos jamais haviam desenvolvido o sentido
da visão. Em vez disso, “enxergavam” através da ecolocalização, usando
pulsos sônicos de alta frequência emitidos por um órgão localizado abaixo
do queixo. O sinal de retorno era recebido pelos chifres amarelos. Uma
das vantagens desse método é que os crecropianos podiam conhecer não
só o tamanho, forma e distância de cada objeto no campo de visão, mas
também podiam usar o deslocamento Doppler do sinal de retorno para
determinar a velocidade com que o objeto estava se movendo.
Mas havia desvantagens. Como a audição era usada para “ver”, os
cecropianos tinham que se comunicar por outros meios. Eles o faziam
quimicamente, “conversando” através de feromônios, mensageiros quí-
micos cuja variedade de composições lhes proporcionava uma linguagem
rica e fluente. Um cecropiano não sabia apenas o que os companheiros
estavam dizendo; os feromônios também lhe permitiam sentir, conhecer
diretamente as emoções dos que o cercavam. As antenas, quando de-
senroladas, eram capazes de detectar e identificar uma única molécula
correspondente a milhares de diferentes odores.
Para um cecropiano, um ser que não emitisse os feromônios apro-
priados simplesmente não existia como ser racional. Podiam “vê-lo”, é
verdade, mas não podiam senti-lo. Os humanos estavam nessa categoria.
Darya sabia que os primeiros contatos entre cecropianos e humanos ti-
nham sido totalmente improdutivos até que os cecropianos encontraram,
dentro de sua federação, uma espécie que ao mesmo tempo era capaz de
falar e se comunicar através de feromônios.
59
A moça apontou para a outra criatura, que posicionara os olhos
amarelos de forma desconcertante, um voltado para Darya e outro para
a cecropiana, Atvar H’sial.
— E quem é você?
Houve um longo silêncio. Finalmente, a pequena boca, com seus
longos bigodes que eram na verdade antenas, tornou a se abrir.
— O nome do intérprete é J’merlia. Seu nível de inteligência é mui-
to baixo e seu papel neste encontro é irrelevante. Ignore sua presença,
por favor. É Atvar H’sial que deseja conversar com você, Darya Lang. Pre-
cisamos falar a respeito do planeta Tremor.
Aparentemente, Atvar H’sial usava o outro da mesma forma que os
mundos mais ricos da Aliança empregavam robôs. Entretanto, seria preci-
so um robô muito sofisticado para fazer um trabalho de tradução como o
que J’merlia estava fazendo... mais sofisticado do que todos os robôs que
Darya conhecia, a não ser os da própria Terra.
— Que há com Tremor?
A cecropiana baixou o corpo, colocando as duas patas dianteiras no
chão, de modo que a cabeça sem olhos ficou a pouco mais de um metro
de Darya. Graças a Deus que ela não tem presas nem mandíbulas, pensou
Darya, caso contrário eu não conseguiria me controlar.
— Atvar H’sial é especialista em dois campos — disse J’merlia. —
Em formas de vida que se adaptam para viver em condições de extrema
pressão ambiental, e também nos Artífices, a raça desaparecida que os
humanos chamam de Construtores. Chegamos a Opala há poucas unida-
des de tempo. Faz muito que pedimos permissão para visitar Tremor na
época da Maré de Verão. A permissão ainda não foi concedida, mas no
espaçoporto de Opala conversamos com um humano que afirmou que
você também pretende visitar Tremor. É verdade?
— Não é bem assim. Eu quero visitar Tremor. — Darya hesitou. — E
quero estar lá na época da Maré de Verão. Mas como foi que vocês me
encontraram?
— Foi fácil. Seguimos o transmissor de emergência do seu carro.
Não foi isso que eu quis dizer, pensou Darya. Como foi que vocês
descobriram que eu existo!
Mas a cecropiana prosseguiu.
— Diga-me, Darya Lang. Pode conseguir uma permissão para que
Atvar H’sial também visite Tremor?
Será que o intérprete tinha compreendido mal suas palavras?
— Não está entendendo. Eu quero visitar Tremor, mas não tenho
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nenhuma influência sobre as pessoas que concedem as permissões.
Quem vai decidir são dois homens que no momento se encontram em
Tremor, avaliando as condições do planeta.
Os raios de Mandel apareceram brevemente através de uma bre-
cha nas nuvens. Atvar H’sial, ato reflexo, abriu os élitros negros, revelando
quatro delicadas asas vestigiais, decoradas com manchas circulares ver-
melhas e brancas. Tinha sido por causa dessas manchas, do pescoço pre-
gueado e da fantástica sensibilidade a odores que os zoólogos que exami-
naram os primeiros espécimes os chamaram de cecropianos, embora não
tivessem mais em comum com a mariposa cecrópia da Terra do que qual-
quer outra espécie terrestre. Darya sabia que nem mesmo eram insetos,
embora compartilhassem com eles um esqueleto externo, uma estrutura
de artrópode e uma metamorfose da forma juvenil para a forma adulta.
As asas escuras vibravam lentamente. Atvar H’sial parecia perdida
no prazer sensual do calor. Houve alguns segundos de silêncio até que a
brecha nas nuvens se fechou e J’merlia disse:
— Mas os homens são machos. Não estão sob as suas ordens?
— Não estão sob as minhas ordens. Absolutamente.
Darya imaginou de novo se ela e Atvar H’sial estariam conseguindo
entender uma o que a outra dizia. O processo de conversão parecia extre-
mamente precário, passando de sons para mensageiros químicos através
de um intermediário alienígena que provavelmente não compartilhava da
cultura de nenhum dos interlocutores. Além disso, ela e Atvar H’sial não
tinham muitos pontos de referência culturais em comum para se apoiar.
Atvar H’sial era fêmea, sabia disso, mas qual o papel dos machos na cultu-
ra cecropiana? O de zangões? O de escravos?
J’merlia deixou escapar um zumbido, mas não disse nada.
— Os homens que vão tomar a decisão não estão sob minhas or-
dens — repetiu Darya, falando devagar, o mais explicado possível. — Se
recusarem meu pedido para visitar Tremor, não há nada que eu possa
fazer.
O zumbido aumentou de volume.
— Isso não é satisfatório — disse J’merlia, afinal. — Atvar H’sial pre-
cisa visitar Tremor durante a Maré de Verão. Viajamos muito para chegar
aqui. Desistir agora seria impensável. Se não pode conseguir permissão
para nós e para você mesma, será preciso recorrer a outros métodos.
A grande cabeça sem olhos se aproximou ainda mais, de modo que
Darya pôde ver cada pêlo, cada poro. A tromba se estendeu para tocar­-
lhe a mão. Era morna e ligeiramente pegajosa. A moça se forçou a ficar
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onde estava.
— Darya Lang — disse J’merlia —, quando dois seres têm um obje-
tivo em comum, devem trabalhar em conjunto para atingir esse objetivo.
Se nos assegurar sua cooperação, há uma forma pela qual Darya Lang e
Atvar H’sial poderão visitar Tremor. Juntas. Com ou sem permissão oficial.
Será que J’merlia estava interpretando mal as idéias de Atvar H’sial,
ou Darya não entendera direito a proposta da cecropiana? Porque, ao
que parecia, a moça estava sendo convidada por aquela exótica alieníge-
na para participar de um projeto secreto.
Ficou desconfiada, mas à cautela se misturava uma ponta de emo-
ção. Era como se a cecropiana estivesse lendo seus pensamentos de horas
atrás. Se Rebka e Perry concordassem em deixá-la visitar Tremor, muito
bem. Se não... poderia haver outro projeto em andamento.
E não seria um projeto qualquer, mas um plano destinado a levá-la
ao objetivo... durante a Maré de Verão.
Darya podia ouvir o ruído do ar que era aspirado continuamente
pelos espiráculos da cecropiana. A tromba de Atvar H’sial deixava pingar
um fluido castanho-escuro; o rosto sem olhos parecia tirado de um pesa-
delo infantil. Ao lado de Darya, a silhueta negra e esguia de J’merlia fazia
parte do mesmo pesadelo.
Mas os humanos tinham que aprender a ignorar as aparências. Se
dois seres eram racionais e tinham objetivos em comum, não podiam ser
totalmente estranhos um ao outro.
Darya inclinou-se para a frente.
— Muito bem, Atvar H’sial. Estou interessada em ouvir o que tem
a dizer. Prossiga.
Não estava certa de que fosse concordar com a proposta; que mal,
porém, havia em ouvi-la

62
Capítulo 6

Maré de Verão menos vinte e nove.

O Cordão Umbilical e as cápsulas de transporte que o utilizavam


tinham sido instalados havia pelo menos quatro milhões de anos quando
os humanos colonizaram Dobelle. Como todos os artefatos dos Constru-
tores, tinham sido feitos para durar. O sistema funcionava com perfei-
ção. Fora estudado exaustivamente, mas, embora as análises revelassem
muita coisa a respeito dos métodos de fabricação dos Construtores, nada
diziam a respeito da sua fisiologia ou dos seus costumes.
Será que os Construtores respiravam? Os carros eram abertos, fei-
tos de materiais transparentes e não dispunham de nenhum tipo de ve-
dação.
Será que os Construtores dormiam? Será que faziam exercícios?
Não havia nada que pudesse ser reconhecido como cama, lugar para des-
cansar ou equipamento de recreação.
Pelo menos, os Construtores tinham que comer e evacuar. Acon-
tece que, embora a viagem de Opala até Tremor levasse muitas horas,
não havia instalações para armazenar ou preparar alimentos, nem para
recolher dejetos.
A única conclusão provisória a que os engenheiros humanos che-

63
garam foi a de que os Construtores eram grandes. Cada cápsula era um
monstro, um cilindro de mais de vinte metros de comprimento e quase o
mesmo de diâmetro; o interior era totalmente vazio. Por outro lado, não
havia provas de que os carros fossem usados pessoalmente pelos Cons-
trutores... talvez funcionassem exclusivamente para transportar carga.
Se isso fosse verdade, porém, por que estavam também equipados com
controles internos que permitiam mudar a velocidade durante a viagem?
Enquanto os historiadores discutiam a respeito da aparência física
e os costumes dos Construtores e os cientistas se preocupavam com os
aspectos inexplicáveis da sua tecnologia, mentes mais práticas se dispu-
seram a colocar o Cordão Umbilical a serviço dos colonos. Tremor tinha
minérios e combustíveis. Opala não dispunha de matérias-primas, mas o
clima era bem mais ameno. O sistema de transporte entre os dois mun-
dos era útil demais para ser desprezado.
Começaram com os equipamentos necessários para uma viagem
confortável entre os componentes do par de planetas. Não podiam mu-
dar o tamanho e a forma das cápsulas; como a maior parte dos produ-
tos dos Construtores, os carros eram módulos integrados, quase indes-
trutíveis e impossíveis de modificar. Entretanto, não foi difícil vedá-los e
instalar um sistema de pressurização. Cozinhas simples foram montadas,
juntamente com toaletes, enfermarias e áreas de recreação. Finalmente,
reconhecendo o fato de que muitos humanos se sentiam pouco à vontade
a grandes alturas, enormes painéis tinham sido instalados sobre o casco
transparente. Esses painéis podiam ser polarizados até se tornarem trans-
lúcidos. Nesse caso, restava apenas uma grande janela de observação na
extremidade superior da cápsula.
Rebka estava lamentando esta última modificação quando a cáp-
sula em que se encontrava se aproximou de Tremor. Enquanto subiam
para a Estação de Meio Caminho, e mesmo depois de passarem pela es-
tação, estivera apreciando uma vista admirável do planeta para o qual se
dirigiam... tão admirável que não se importara de deixar para conhecer
a Estação de Meio Caminho em outra oportunidade. Supusera que con-
tinuaria a ver Tremor até pousarem. Em vez disso, a cápsula inexplicavel-
mente girara cento e oitenta graus quando ainda se encontravam a algu-
mas centenas de quilômetros do planeta. Em lugar de Tremor, teve que
se contentar com uma vista pouco interessante das nuvens que cobriam
perpetuamente a superfície de Opala.
Voltou-se para Max Perry.
— Pode fazer a cápsula girar de volta? Não estou vendo nada.
64
— Posso, mas nesse caso vamos levar horas para chegar. — Perry
já estava alerta, preparando-se para a chegada. — Devemos entrar na
atmosfera de Tremor a qualquer momento. O carro tem que estar nesta
posição para manter a estabilidade aerodinâmica, caso contrário tería-
mos que reduzir a velocidade quase a zero. Na verdade... — Interrompeu
o que estava dizendo e sua expressão se tornou tensa. — Escute.
Rebka levou alguns momentos para perceber. De repente, seus ou-
vidos captaram um assovio agudo do lado de fora das paredes da cápsula.
Era o primeiro indício de que haviam entrado na atmosfera de Tremor, o
som que o ar rarefeito fazia ao resistir à passagem da cápsula. A velocida-
de de descida já devia estar diminuindo.
Cinco minutos depois, o ruído mudou. Já se achavam a uma alti-
tude suficientemente pequena para começar a equalizar as pressões, e
o ar do planeta estava sendo injetado no interior da cápsula. Um cheiro
vagamente sulfuroso impregnou o ambiente. Ao mesmo tempo, a cápsula
começou a estremecer sob o impacto dos ventos. Rebka sentiu que uma
força crescente o comprimia contra o assento.
— Três minutos — anunciou Perry. — Estamos na desaceleração
final.
Rebka olhou para ele de soslaio. Estavam para descer em um plane-
ta que Perry supostamente considerava perigoso, mas não havia nenhum
sinal de medo na voz de Perry nem em sua expressão. Talvez estivesse um
pouco nervoso, mas parecia mais a ansiedade e emoção de um homem
que volta para casa depois de passar muito tempo viajando.
Como podia se sentir assim, pensou, se considerava Tremor uma
armadilha mortal?
O carro parou e a porta se abriu sem ruído. Rebka, seguindo Per-
ry, viu suas suspeitas se confirmarem. Desceram em uma planície azul­-
acinzentada, esparsamente coberta de arbustos verde-escuros e líquens
cor de tijolo. O clima era realmente seco e quente, e o cheiro de enxofre
era forte no ar do meio da tarde; entretanto, a menos de um quilômetro
de distância Rebka podia ver o reflexo da água, com plantas maiores na
margem, e perto delas um bando de animais pequenos e lerdos, que pa-
reciam herbívoros, pastando calmamente.
Não havia vulcões em erupção, nem terremotos, nem qualquer vio-
lência subterrânea. Tremor era um planeta pacífico, sonolento, cujos ha-
bitantes se preparavam para enfrentar as altas temperaturas que acom-
panhavam a Maré de Verão.
Antes que Rebka pudesse dizer alguma coisa, Perry olhou em torno
65
e sacudiu a cabeça.
— Não sei o que está acontecendo. — Sua expressão era de espan-
to. — Eu disse que iríamos ter problemas, e não estava brincando. Está
tudo calmo demais. E faltam menos de trinta dias para a Maré de Verão,
a maior de todos os tempos.
Rebka deu de ombros. Se Perry estava fazendo algum tipo de ence-
nação, não conseguia entender por quê.
— Para mim, tudo parece em ordem.
— É verdade. E é disso que não estou gostando. — Fez um gesto
abrangente. — Não devia ser assim. Já estive aqui nesta época do ano,
muitas vezes. Devíamos estar vendo terremotos e erupções. Devíamos
estar sentindo os tremores, bem debaixo dos nossos pés. Devia haver dez
vezes mais poeira no ar. — Ele parecia realmente confuso.
Rebka assentiu e depois fez com o corpo uma volta de trezentos e
sessenta graus, observando com calma a paisagem que os cercava.
Bem à frente deles estava a base do Cordão Umbilical. Ela tocava
a superfície, mas não era mantida em posição por nenhum dispositivo
mecânico. O acoplamento realizava-se eletromagneticamente, através
do manto de Tremor, rico em metais. Perry lhe explicara que tal procedi-
mento era necessário por causa da instabilidade da superfície do planeta
durante a Maré de Verão. Isso era plausível, e compatível com a decla-
ração de Perry a respeito da violência do evento. Por que outra razão os
Construtores teriam evitado usar um acoplamento mecânico? Entretanto,
a simples plausibilidade não tornava a explicação verdadeira.
Atrás do Cordão Umbilical, na direção do disco de Mandel, que
estava quase no poente, havia uma cadeia de montanhas às quais o ar
poeirento emprestava uma tonalidade arroxeada. Os picos eram todos da
mesma altura e tinham um espaçamento estranhamente regular. As bor-
das escarpadas e as vertentes abruptas sugeriam uma origem vulcânica,
mas Rebka não viu nenhum penacho de fumaça nem qualquer indício de
um fluxo recente de lava. Olhou para baixo. O chão sob seus pés era liso
e contínuo, sem nenhum claro na vegetação rasteira que indicasse uma
possível fenda.
Então este era Tremor, o planeta aterrorizante? Rebka dormira com
facilidade em ambientes dez vezes mais ameaçadores. Sem dizer uma
única palavra, começou a caminhar na direção do lago. Perry saiu corren-
do atrás dele.
— Aonde vai? — Parecia nervoso, e Rebka não acreditava que es-
tivesse fingindo.
66
— Quero dar uma olhada naqueles animais. Se é que é seguro fazê­
-lo.
— Deve ser. Mas deixe-me ir na frente. — A voz de Perry soava ten-
sa quando ele tomou a dianteira. — Conheço o terreno.
É muita gentileza sua, pensou Rebka. Só que não vejo a necessida-
de de conhecer este terreno. O solo era marcado aqui e ali por afloramen-
tos ígneos e pedras basálticas de todos os tamanhos, um sinal seguro de
atividade vulcânica antiga. Nem sempre o caminho era fácil, mas Rebka
não teria mais dificuldade para chegar ao lago do que Perry.
Na verdade, o chão ia se tornando menos irregular à medida que se
aproximavam do lago. Perto da água, o solo estava coberto por uma vege-
tação rasteira, verde-escura, que conseguira se estabelecer no meio das
rochas. Pequenos animais, todos invertebrados, correram para se escon-
der dos estranhos que se aproximavam. Os herbívoros os ignoraram até
que estivessem a poucos metros de distância; depois, afastaram-se sem
pressa, abrindo caminho para eles. Eram criaturas de dorso arredondado
e simetria radial, com muitas pernas e bocas ao longo de toda a periferia.
— Sabe o que está me preocupando, não sabe? — perguntou Re-
bka, súbito.
Perry negou com a cabeça.
— Tudo isto. — Rebka fez um gesto circular, indicando as plantas
e animais à volta deles. — Você insiste em que os humanos não devem
visitar Tremor pouco antes da Maré de Verão. Afirma que é muito perigo-
so. Aconselha-me a negar permissão a Julius Graves e aos outros, mesmo
que isso implique um prejuízo financeiro considerável para o sistema de
Dobelle. No entanto, eles estão aqui. — Apontou para os animais que
caminhavam lentamente em direção à margem do lago. — Vivem aqui,
e aparentemente sem problemas. Que é que eles fazem que nós não po-
demos fazer?
— Duas coisas. — Tinham chegado à margem do lago, e por algu-
ma razão Perry parecia bem mais calmo. — Em primeiro lugar, evitam a
superfície de Tremor durante a Maré de Verão. Os animais que vivem em
Tremor podem ser divididos em duas categorias: os que morrem antes
da Maré de Verão, e seus ovos só chocam quando o verão termina, e os
que passam o verão dormindo em algum lugar seguro. Esses herbívoros
que está vendo são todos anfíbios. Daqui a alguns dias, vão entrar nos
lagos, cavar tocas na lama do fundo, e dormir até que seja seguro sair.
Não podemos fazer isso. Pelo menos, nós dois não podemos. Talvez os
cecropianos possam.
67
— Bem que poderíamos fazer algo parecido. Construir habitações
no fundo dos lagos.
— Está bem, seria possível, mas duvido que Darya Lang e os outros
concordassem. Seja como for, isto é apenas parte da história. Eu disse
que eles fazem duas coisas. A segunda coisa que fazem é reproduzir-se
depressa. Uma grande ninhada a cada ano. Podemos copular quanto qui-
sermos, todo dia, que não conseguiremos a mesma fertilidade. — O sor-
riso de Perry não tinha nenhum humor. — Aqui, é um imperativo natural.
A taxa de mortalidade dos animais e plantas em Tremor é de mais de
noventa por cento ao ano. As pressões ambientais são enormes, e eles
se adaptaram o mais que puderam; mesmo assim, nove em cada dez vão
morrer durante a Maré de Verão. Está disposto a correr um risco seme-
lhante? Permitiria que Darya Lang e Julius Graves corressem tal risco?
Era um forte argumento... se Rebka estivesse disposto a acreditar
que a Maré de Verão fosse tão violenta quanto Perry estava afirmando. E
até o momento não via nenhuma prova disso. A proximidade de Mandel
faria com que Tremor fosse submetido a grandes forças de maré. Nin-
guém duvidava. Entretanto, não estava claro até que ponto essas forças
afetariam a superfície do planeta. A flora e a fauna de Tremor existiam
havia mais de quarenta milhões de anos. Durante esse período, deviam
ter passado por dezenas de Grandes Conjunções, embora não houvesse
seres humanos para observá-las. Por que não sobreviveriam a outra com
facilidade?
— Vamos. — Hans Rebka tomara uma decisão. Mandel estava qua-
se se pondo, e queria deixar o planeta antes que tivessem que depender
da luz mortiça de Amaranth. Estava convencido de que Perry não lhe con-
tara tudo; que o homem tinha suas próprias razões para tentar impedir
que as pessoas visitassem Tremor. Contudo, mesmo que Max Perry esti-
vesse certo, Rebka não tinha argumentos para proibir o acesso a Tremor.
Não dispunha de provas suficientes de que o planeta era perigoso para
convencer o governo do Círculo de Phemus.
Todos os argumentos pareciam apontar no sentido oposto. Os ani-
mais nativos podiam passar por dificuldades durante a Maré de Verão,
mas eles não dispunham dos mesmos recursos que os humanos. Com
base no que estava vendo, Rebka tinha vontade de passar, ele próprio, a
Maré de Verão em Tremor.
— Temos o dever de prevenir os visitantes — prosseguiu. — Mas
não somos responsáveis por eles. Se insistirem em vir aqui, conhecendo
os perigos, não poderemos impedi-los.
68
Perry não parecia estar escutando. Olhava em todas as direções,
franzindo a testa para o céu, o chão e a cordilheira distante.
— Isto não podia acontecer, sabe? — disse ele. Parecia perplexo. —
Para onde está indo?
— Para onde está indo o quê? — Rebka estava pronto para voltar.
— A energia. As forças de maré estão mandando energia para cá...
energia que vem de Mandel, Amaranth e Gargântua. Acontece que esta
energia não está sendo liberada. Isso quer dizer que deve haver um mons-
truoso acúmulo interno...
Foi interrompido por um clarão vermelho vindo do oeste. Os dois
homens olharam naquela direção e viram que entre eles e o disco de
Mandel tinha aparecido uma série de chafarizes de fogo, cuja base ficava
nas montanhas distantes.
Segundos depois, chegou a onda sonora; a onda de choque levou
ainda mais tempo para chegar, mas os animais não esperaram. O primeiro
clarão os fez sair correndo na direção da água, movendo-se muito mais
depressa do que Rebka imaginara que fosse possível.
— A coisa começou! Daqui a pouco as pedras vão começar a voar!
— gritou Perry, lutando para fazer-se ouvir no meio de um barulho pareci-
do com trovoada. Apontou para as múltiplas erupções. — Algumas delas
vão estar incandescentes, e estamos bem no caminho. Venha!
Começou a correr na direção do Cordão Umbilical, enquanto Rebka
hesitava. A linha de erupções era curiosamente regular; as fontes de lava
tinham aparecido exatamente de três em três picos. Olhou rapidamente
na direção oposta (a água não seria um refúgio mais seguro?) e depois
seguiu Perry. O chão começou a tremer; balançava tanto de um lado para
o outro que quase perdeu o equilíbrio. Reduziu a marcha até que uma
pedra semiderretida do tamanho de um carro aéreo caiu do céu a menos
de vinte metros de onde se encontrava.
Perry já estava na cápsula, na base do Cordão Umbilical, segurando
a porta para ele.
Rebka jogou-se lá dentro de cabeça, trocando a compostura pela
rapidez.
— Pronto, estou aqui. Vamos!
Perry subiu correndo as escadas que levavam à sala de controle e
observação, e o carro começou a subir antes que Rebka tivesse tempo de
se levantar e verificar se estava ferido. Em vez de seguir Perry, abriu ligei-
ramente a porta e olhou para fora.
Blocos de pedra e bolas de lava continuavam a bombardear o local
69
onde tinham estado momentos antes. Podia ver as chamas nos lugares
onde os ejetos incandescentes haviam incendiado a vegetação e ouvir o
barulho que um ou outro fragmento fazia ao se chocar com o Cordão Um-
bilical, acima e abaixo da posição do carro. Não causariam nenhum dano,
a não ser que um deles entrasse pela abertura. Entretanto, teria tempo
suficiente para vê-lo e fechar a porta.
Lembrou-se dos carros aéreos que estavam estacionados perto da
base do Cordão Umbilical. Eles tinham sido construídos pelos humanos
em Opala e levados a Tremor para servirem como meio local de trans-
porte. Enquanto Rebka observava, uma pedra fumegante mergulhou em
direção à capota de um dos carros. Quando ricocheteou sem chegar a
tocar na capota, ele percebeu que os carros estavam protegidos por uma
cobertura feita do material transparente usado pelos Construtores, cani-
balizada, provavelmente, da Estação de Meio Caminho.
Olhou para o horizonte. Da altitude atual de duzentos ou trezentos
metros, podia ver até uma distância considerável. A superfície estava coa-
lhada de pequenos incêndios, que se estendiam até os picos distantes. A
fumaça levou um odor pungente a suas narinas, resinoso e aromático; o
calor fazia o solo abaixo tremeluzir, e a poeira tornava-o indistinto.
Era evidente que as erupções se restringiam a uma única linha de
vulcões localizada entre o Cordão Umbilical e o disco de Mandel, que se
achava a oeste, próximo ao horizonte. Um pico a cada três estava dei-
xando escapar uma coluna de fumaça preta. Entretanto, o fenômeno já
ia amainando. As nuvens de fumaça não brilhavam mais com lampejos
vermelhos e alaranjados, e o número de pedras que cortavam o ar em
direção ao carro já era bem menor. Os herbívoros tinham desaparecido
havia muito tempo. Provavelmente estavam escondidos nas profundezas
do lago. Saberiam quando fosse seguro sair de novo da água.
Perry tinha largado os controles e se encontrava agora agachado ao
lado de Rebka. O carro não estava mais se movendo.
— Muito bem. — Rebka preparou-se para fechar a porta. — Estou
convencido. Não gostaria de assumir a responsabilidade de permitir que
aquelas pessoas venham para cá durante a Maré de Verão. Vamos dar o
fora daqui e voltar para Opala.
Mas Perry estava mantendo a porta aberta e sacudindo a cabeça
em negação.
— Eu gostaria de descer de novo — disse.
— O quê? Quer morrer?
— Claro que não. O que eu quero é dar uma boa olhada e ver se
70
compreendo o que está acontecendo.
— Está chegando a hora da Maré de Verão, comandante. É isso que
está acontecendo. Os terremotos e erupções estão começando, como ha-
via previsto.
— Não é bem assim. — Perry parecia mais perplexo do que alarma-
do. — Algo de misterioso está ocorrendo. Não se esqueça de que já estive
em Tremor nesta época do ano. Muitas vezes. O que acabamos de ver
não é nada. Meros fogos de artifício, de efeito apenas local. Devíamos ter
encontrado mais atividade, muito mais. A superfície estava calma quando
chegamos; devia estar tremendo sem parar. As erupções podem ter sido
impressionantes, mas os terremotos foram desprezíveis. — Apontou para
fora. — Dê uma olhada. As coisas já estão se aquietando.
— Não sou geólogo, mas acho que isso seria de se esperar. — Re-
bka não conseguia entender o que estava se passando na cabeça de Perry.
Afinal, ele queria ou não que os visitantes fossem autorizados a visitar
Tremor? Agora, que estava disposto a concordar com Perry, este parecia
haver mudado de idéia. — As tensões se acumulam e são aliviadas. As
forças internas aumentam durante algum tempo, atingem um valor críti-
co e depois caem a zero. Períodos de agitação se alternam com períodos
de calmaria.
— Não aqui. — Perry finalmente fechou a porta. — Não durante
a Maré de Verão. Pense um pouco, capitão. Não se trata do vulcanismo
planetário usual. Opala e Tremor giram um em torno do outro uma vez a
cada oito horas. As forças de maré de Mandel e Amaranth comprimem e
dilatam o interior dos dois planetas a cada revolução. Em uma Maré de
Verão normal, essas forças já são grandes; na Grande Conjunção, elas se
tornam gigantescas... centenas de vezes maiores do que no resto do ano.
Ele se sentou no chão do compartimento de carga e ficou olhando
para a parede. Depois de alguns momentos, Rebka subiu até a sala de
controle e colocou o carro em movimento. Quando voltou, Perry continu-
ava no mesmo lugar.
— Vamos, acalme-se. Acredito em você; as forças de maré podem
ser muito grandes. Mas isso também se aplica a Opala, não é?
— É. — Perry finalmente saiu do torpor em que se encontrava e
levantou-se. — Em Opala, porém, os efeitos são atenuados. A superfície
do oceano se deforma livremente e atinge um máximo ou mínimo de al-
tura a cada quatro horas. As mudanças do fundo do mar, terremotos e
erupções, são amortecidas pela água. Em Tremor não existem oceanos
para reduzir os efeitos das marés terrestres. Nesta época do ano, Tremor
71
devia estar ativo o tempo todo. Mas nós vimos que não está. É esse o
problema. Para onde está indo toda essa energia?
Perry tornou a sentar-se e ficou parado, olhando para o vazio.
Enquanto a velocidade de ascensão do carro aumentava e o sibilar
da atmosfera de Tremor começava, Rebka se sentia estranhamente in-
satisfeito. Tinha estado em Tremor e observado pessoalmente os fatos.
Pelo aspecto, o lugar era tão perigoso quanto Perry afirmara. No entanto,
Perry não parecia ter medo de Tremor. Absolutamente. Tinha proposto
que voltassem... no meio de uma erupção vulcânica!
Rebka chegou a uma conclusão. Para compreender Perry, precisa-
ria de mais informações. Sentou-se de frente para o outro.
— Muito bem, comandante Perry. Tremor não está se comportan-
do como o senhor esperava. Não posso opinar quanto a isso. Diga-me, en-
tão: como é que Tremor normalmente se comporta nesta época do ano?
Mas aquela foi exatamente a pergunta errada. O ar pensativo desa-
pareceu do rosto de Perry e foi substituído por uma expressão de tristeza.
Rebka ficou esperando por uma resposta até perceber, minutos depois,
que o outro não diria nada. Em vez de tirar Max Perry do seu devaneio, a
pergunta contribuíra para prolongá-lo. O homem estava longe dali, perdi-
do em recordações.
Recordações de quê? Certamente de Tremor durante a Maré de
Verão.
Rebka não disse mais nada. Em vez disso, fez uma promessa a si
mesmo, olhou para a silhueta distante da Estação de Meio Caminho e
admitiu uma verdade desagradável. Não pedira para ser designado para
aquela missão, um trabalho de babá que interrompera o projeto mais im-
portante de sua carreira. Estava furioso por ter sido mandado para longe
do Paradoxo, por ter que trabalhar em Dobelle e por ter que se preocupar
com a carreira interrompida de um burocrata obscuro.
Entretanto, o orgulho profissional não permitiria que desistisse an-
tes de saber com certeza o que destruíra aquele homem. Porque Perry
tinha sido destruído, mesmo que isso não aparecesse na superfície.
Uma outra coisa era clara. O que quer que tivesse destruído Perry
estava em Tremor na época da Maré de Verão.
O que queria dizer que Rebka teria que voltar lá, teria que estar em
Tremor em uma ocasião na qual, de acordo com todas as indicações, a
sobrevivência de um ser humano no planeta seria impossível.

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ARTEFATO: CORDÃO UMBILICAL
N° de série: 269
Coordenadas galácticas: 26.837,186/17.428,947/363,554
Nome: Cordão Umbilical
Conjunto estrela/planeta: Mandel/Dobelle (duplo)
Nó de Bose mais próximo: 513
Idade estimada: 4,037 ±_ 0,15 megaanos
História da exploração: Descoberto por sensores remotos durante um
vôo não tripulado às proximidades de Mandel em 1446 E. Primeira inspeção
detalhada executada durante um vôo tripulado em 1513 E. (Dobelle e Hin-
chcliffe). Visitado pela primeira vez por uma nave de colonização em 1668 E.
(classe Skyscan, Wu e Tanaka). Usado pela primeira vez por colonos em 1742
E. Usado rotineiramente como sistema de transporte desde 1778 E.
Descrição: O Cordão Umbilical é um sistema de transporte que liga
os planetas gêmeos do sistema de Dobelle, Opala (originalmente chamado
de Ehrenknechter) e Tremor (originalmente chamado de Castelnuovo). Com
doze mil quilômetros de comprimento e quarenta a sessenta metros de largu-
ra, o Cordão Umbilical forma um cilindro que está permanentemente fixado
à superfície de Opala (através de uma ligação mecânica no fundo do oceano)
e eletromagneticamente acoplado a Tremor. A ligação à superfície de Tre-
mor é desfeita quando o sistema duplo, cuja órbita é muito excêntrica, está
para chegar ao ponto de máxima aproximação da estrela principal do sistema,
Mandel. Este fenômeno ocorre uma vez a cada 1,43 ano-padrão.
A variação da distância entre Opala e Tremor é compensada através do
“Guincho”, um dispositivo que utiliza uma singularidade no espaço­-tempo
(presumivelmente artificial) para modificar o comprimento do Cordão Um-
bilical. O Guincho também remove automaticamente o Cordão Umbilical da
superfície de Tremor no período de máxima aproximação de Mandel (“Maré
de Verão”). A técnica de controle é conhecida a nível operacional, mas ainda
não se conhece o tipo de sinal usado para comandar o início da manobra (ou
seja, não se sabe se se trata de um sinal de tempo, um sinal de força ou outro
tipo qualquer). A Estação de Meio Caminho (localizada a 9.781 quilômetros
do centro de massa de Opala e a 12.918 quilômetros do centro de massa de
Tremor) permite introduzir ou remover do Cordão Umbilical cargas recebi-
das do espaço ou a serem lançadas no espaço.
Nota: O Cordão Umbilical é um dos artefatos mais simples e fáceis de
compreender; por esse motivo, não é de muito interesse para os estudiosos
da tecnologia dos Construtores. Mesmo assim, tem a sua parcela de misté-
73
rio, pois, embora simples, foi um dos últimos artefatos a serem construídos
(idade estimada: menos de cinco milhões de anos). Alguns arqueoanalistas
acreditam que este fato revela o começo de um declínio na sociedade dos
Construtores, declínio esse que culminou com o colapso de sua civilização e
seu desaparecimento total da Galáxia há mais de três milhões de anos.
Estrutura: Cabos de sustentação de hidrogênio sólido extremamente
puro, com emendas de muônio estabilizado. A resistência dos cabos é com-
parável à dos ganchos espaciais construídos pelos humanos e cecropianos.
Os carros usados no transporte são impulsionados por motores sín-
cronos lineares. A técnica utilizada para fixar os cabos é desconhecida, mas
parece ser semelhante à empregada para fixar os filamentos do Casulo (N°1).
Também não se conhece com segurança a origem do Guincho, mas
trata-se provavelmente de um artefato dos Construtores e não de um fenô-
meno natural do sistema de Dobelle.
Finalidade: Sistema de transporte. Até a chegada dos humanos, o siste-
ma permaneceu sem uso durante pelo menos três milhões de anos. No mo-
mento, está sendo usado regularmente. Não existem indicações de que tenha
sido empregado para outras finalidades.

— Do Catálogo Lang Universal de Artefatos,


Quarta Edição.

74
Capítulo 7

Maré de Verão menos vinte e sete.

Tremor estava mudando. Não da forma que Max Perry previra,


transformando-se, com a aproximação da Maré de Verão, de um mundo
quente mas pacífico em um inferno de lava derretida e terremotos devas-
tadores. Não. Naquele ano da Grande Conjunção, Tremor havia ficado...
imprevisível.
E Opala talvez também estivesse mudando, à sua maneira. Mais do
que os habitantes do planeta desconfiavam.
A idéia ocorreu a Rebka enquanto sobrevoavam Opala, viajando da
base do Cordão Umbilical para o espaçoporto, onde Darya Lang estaria à
espera.
Seis dias antes, a viagem em torno do planeta até o Cordão Umbi-
lical tinha sido monótona, sem turbulência e com muito pouca coisa para
ver a não ser um cinza uniforme acima e abaixo do carro aéreo. Agora,
faltando ainda vinte e sete dias para a Maré de Verão, o carro era sacu-
dido por ventos violentos. Rajadas súbitas golpeavam as superfícies de
sustentação e a fuselagem. Max Perry foi forçado a fazer o aparelho subir
cada vez mais para escapar à chuva torrencial, às nuvens escuras e aos
vórtices ameaçadores.

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Então os habitantes de Opala se achavam convencidos de que não
corriam perigo, mesmo com marés muito maiores que o normal?
Hans Rebka não estava tão certo.
— Está tirando uma conclusão apressada — disse a Perry, quando
começaram a descer para pousar no espaçoporto, enfrentando de novo
a tempestade. — Acha que este ano as marés em Opala vão ser como as
outras Marés de Verão, só que mais fortes.
— Está exagerando. — No momento em que a perpétua camada
de nuvens que envolvia Opala os fez perder Tremor de vista, a outra per-
sonalidade de Perry tornara a aparecer: frio, formal e indiferente. Não
queria discutir o que haviam visto na superfície de Tremor nem a sua per-
plexidade diante do que estava acontecendo lá. — Eu não disse que nada
de diferente vai acontecer em Opala — prosseguiu. — Entretanto, não
acredito que esteja muito longe da verdade. Pode ser que algumas das
Fundas maiores não resistam e se partam em pedaços. Entretanto, não
vejo nenhum perigo para a população. Se necessário, toda a população
de Opala pode abandonar as Fundas e passar a Maré de Verão no mar.
Rebka ficou em silêncio, segurando com força os braços do assento
enquanto enfrentavam um vácuo que deixou os dois em queda livre por
alguns segundos.
— Pode não ser bem assim — disse, logo que o coração parou de
tentar sair pela boca.
Mais de uma vez tivera vontade de espicaçar Max Perry e observar
suas reações. Era como na teoria dos sistemas de controle: aplicar sinais
conhecidos à entrada de uma caixa-preta e monitorar a saída. Se isso fos-
se feito de modo correto, dizia a teoria, seria possível descrever perfeita-
mente o funcionamento da caixa, mesmo que não se conhecesse o seu
conteúdo. No caso de Perry, porém, parecia haver duas caixas diferentes.
Uma delas era habitada por um indivíduo capaz, atencioso e simpático; a
outra continha um molusco, que se retirava para o interior de sua casca
protetora sob o efeito de certos estímulos.
— Esta situação me faz lembrar Pelicano — prosseguiu Rebka. —
Ouviu falar do que aconteceu lá, comandante?
— Se ouvi, não me lembro mais. — Não era o tipo de reação que
Rebka estava esperando, mas desta vez Max Perry tinha uma desculpa.
Sua atenção concentrava-se no sistema automático de estabilização, que
lutava para conduzir o carro aéreo para um pouso seguro.
— A situação deles não era muito diferente da de Opala — conti-
nuou Rebka —, exceto pelo fato de que envolvia a relação de massa entre
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vegetais e animais, e não marés oceânicas.
“Quando os colonos chegaram ao planeta pela primeira vez, tudo
estava em perfeita ordem. Acontece que a cada quarenta anos Pelicano
passa por dentro de uma nuvem de cometas. Pequenos corpos feitos de
materiais voláteis, a maioria suficientemente pequenos para se vapori-
zarem na atmosfera e jamais chegarem à superfície. A umidade e a tem-
peratura sofrem uma pequena elevação abrupta. O número de animais
aumenta em relação ao número de plantas, a quantidade de oxigênio na
atmosfera diminui um pouco, mas em menos de um ano está tudo de
volta ao normal. Nada de chamar a atenção.
“Era o que todos pensavam. E continuaram a pensar desse jeito,
mesmo depois que os astrônomos previram que, na passagem seguinte
pela nuvem, Pelicano pegaria trinta por cento mais material que de cos-
tume.
— Acho que agora estou me lembrando. — Perry demonstrava um
interesse distante e polido. — É um caso que estudamos antes que eu
viesse para Dobelle. Algo saiu errado e eles quase perderam toda a colô-
nia, certo?
— Depende de quem estiver contando a história. — Rebka hesitou.
Quanto deveria revelar? — Nada pôde ser provado, mas minha opinião
coincide com a sua. Eles escaparam por pouco. Mas o que eu estava que-
rendo dizer era o seguinte: o que aconteceu de errado não poderia ter
sido previsto pelos modelos tradicionais de circulação. O aumento do in-
fluxo de material proveniente da evaporação dos cometas fez a biosfera
de Pelicano atingir um novo estado de equilíbrio. O oxigênio passou de
quatorze para três por cento em três semanas, e continuou nesse valor
até a equipe de terraformação chegar e fazer as coisas voltarem ao nor-
mal. A mudança súbita teria matado muita gente, porque simplesmente
não haveria tempo de remover toda a população do planeta.
Max Perry fez que sim com a cabeça.
— Eu sei. Só que um homem em Pelicano resolveu evacuar o pla-
neta muito antes que se aproximassem da nuvem de cometas. Ele tinha
estudado os fósseis e chegado à conclusão de que haveria um cataclisma,
certo? É um exemplo clássico... o homem que estava no local sabia mais
do que uma equipe de especialistas a anos-luz de distância. Ele desobe-
deceu às ordens do governo e acabou virando herói.
— Nada disso. Ele foi repreendido pelos superiores.
O carro havia pousado e estava taxiando em direção ao prédio do
espaçoporto; Rebka preferiu deixar o assunto morrer. Não era o momento
77
apropriado para revelar a Max Perry a identidade do homem. E, embora
tivesse sido admoestado em público, fora parabenizado em particular por
sua decisão de contrariar as ordens por escrito do Coordenador Setorial.
O fato de que seus superiores imediatos tinham-lhe ocultado delibera-
damente a existência daquelas ordens por escrito não chegou nem a ser
mencionado. Parecia ser parte da filosofia do governo do Círculo de Phe-
mus: os agentes especiais trabalhavam melhor quando não sabiam de-
mais. Cada vez tinha mais certeza de que não lhe haviam contado todos
os fatos antes de mandá-lo para Dobelle.
— Tudo que estou dizendo é que vocês poderiam se encontrar em
uma situação semelhante em Opala — prosseguiu. — Quando um siste-
ma é perturbado por uma força periódica, o aumento da força pode não
resultar em uma perturbação maior do mesmo tipo. O sistema pode che-
gar a uma bifurcação e passar para um estado totalmente diferente. Su-
ponha que as marés em Opala se tornem suficientemente intensas para
levar o sistema ar-mar a um estado caótico. Vocês teriam turbulência em
toda parte: furacões e maremotos. Sólitons monstruosos, talvez, ondas
isoladas com mais de um quilômetro de altura.
“Nenhum barco sobreviveria a uma catástrofe dessas. Nem as Fun-
das. Vocês seriam capazes de evacuar toda a população, se fosse necessá-
rio, durante a Maré de Verão? Não estou falando de levá-los para o mar...
e sim de tirá-los do planeta.
— É pouco provável. — Perry desligou o motor e sacudiu a cabeça,
negando. — Posso ser mais categórico que isso. Não, não podemos. Além
do mais, para onde os levaríamos? Gargântua tem quatro satélites quase
tão grandes quanto Opala, e dois deles possuem atmosfera. Entretanto,
são atmosferas de metano e nitrogênio, não de oxigênio... e além disso
são muito frios. O único outro lugar seria Tremor. — Olhou para Rebka.
— Acho que já se convenceu de que não é um planeta exatamente hos-
pitaleiro!
A chuva torrencial que os castigara durante a descida havia amaina-
do, e o carro parou perto do prédio que Perry reservara para Darya Lang.
Hans Rebka levantou-se com esforço e esfregou os joelhos. Darya
Lang devia estar à espera deles e não podia ter deixado de ouvir o ruído
do carro. Só que não havia sinal da moça no prédio. Entretanto, um ho-
mem alto, esquelético, com uma cabeça muito grande, totalmente calva,
estava com metade do corpo para fora da marquise, olhando para o car-
ro. Segurava um espalhafatoso guarda-chuva acima da cabeça. O branco
cintilante do seu terno, com dragonas douradas e atavios azul-celeste, só
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podia vir da seda de um casulo de ditron.
Visto de longe, parecia elegante e imponente, embora o rosto e
o couro cabeludo mostrassem queimaduras vermelho-escuras, de radia-
ção. Quando chegou mais perto, Rebka pôde ver que seus lábios e so-
brancelhas tremiam incontrolavelmente.
— Sabia que ele estaria aqui? — Rebka apontou com o polegar
abaixo do nível da janela do carro, para que o recém-chegado não per-
cebesse. Não havia necessidade de mencionar a identidade do estranho.
Os membros dos conselhos da Aliança raramente eram vistos em público,
mas o uniforme era conhecido em todos os mundos de todas as raças
daquele braço da espiral.
— Não. Mas não estou surpreso. — Max Perry manteve aberta a
porta do carro para que Rebka saltasse. — Estamos viajando há seis dias,
e ele estava mesmo para chegar nesse ínterim.
Quando Perry e Rebka saltaram do carro e correram para se abri-
gar debaixo da marquise, o homem continuou onde estava. Ele fechou o
guarda-chuva e ficou parado durante meio minuto, ignorando a chuva.
Finalmente, voltou-se para cumprimentá-los.
— Bom dia. Mas não bom tempo. E acho que está piorando. — A
voz combinava com o homem, forte e sonora, com um toque de agres-
sividade superposto ao sotaque sofisticado de um nativo de Miranda.
Mostrou o pulso esquerdo, onde estava indelevelmente gravada a sua
identificação. — Meu nome é Julius Graves. Devem ter recebido um ofício
comunicando a nossa chegada.
— Recebemos, sim — confirmou Perry.
Ele parecia pouco à vontade. A presença de um membro do Con-
selho era suficiente para forçar a maioria das pessoas a fazer um exame
de consciência ou levá-las a compreender os limites da sua autoridade.
Rebka imaginou se Graves teria uma segunda agenda para sua visita a
Opala. Uma coisa era certa: os membros do Conselho eram extremamen-
te ocupados e não gostavam de perder tempo com coisas irrelevantes.
— O ofício não informava a respeito da razão da sua visita — disse,
estendendo a mão. — Sou o capitão Rebka, a seu dispor, e este é o co-
mandante Perry. Por que está visitando o sistema de Dobelle?
Graves nem se mexeu. Continuou imóvel e em silêncio por outros
cinco segundos. Afinal, cumprimentou os dois homens com a cabeça e
deu um violento espirro.
— Talvez seja melhor responder à sua pergunta lá dentro. Sinto-me
gelado. Estou aqui desde o nascer do sol, esperando os outros voltarem.
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Perry e Rebka trocaram olhares. Os outros? Voltarem de onde?
— Eles partiram há oito horas — prosseguiu Graves. — Na mesma
hora em que cheguei. A previsão de tempo indica que uma... — os olhos
assumiram uma expressão preocupada e ele interrompeu o que estava di-
zendo por alguns momentos — ...que uma tempestade nível cinco está a
caminho do espaçoporto. Para estrangeiros que não estão familiarizados
com o sistema de Dobelle, tempestades como essa podem ser perigosas.
Estou preocupado e gostaria de falar com eles.
Rebka assentiu. Uma das perguntas tinha sido respondida. Outros
visitantes de fora do Círculo de Phemus haviam chegado para se juntar a
Darya Lang. Mas quem eram eles?
— É melhor dar uma olhada nos papéis de chegada — disse baixi-
nho para Perry. — Ver o que temos.
— Faça isso, se quiser — disse Graves, olhando para ele; Rebka teve
a impressão de que aqueles olhos azuis estavam lendo os seus pensamen-
tos. O conselheiro se sentou em uma cadeira de vime, fungou e prosse-
guiu: — Mas não precisa olhar. Posso lhe informar que, além de Darya
Lang, da Quarta Aliança, Opala recebeu a visita de Atvar H’sial e J’merlia,
da Federação de Cecrópia. Depois de conhecê-los, verifiquei suas fichas.
Os três são exatamente o que afirmam ser.
Rebka fez o cálculo mentalmente e começou a abrir a boca, mas
Perry se antecipou.
— Isso é impossível!
Graves arregalou os olhos e suas sobrancelhas tremeram ainda
mais.
— O senhor disse que se passou um dia desde a sua chegada —
declarou Perry. — Se tivesse mandado uma mensagem através do Nó de
Bose mais próximo no momento em que chegou aqui, e essa mensagem
tivesse viajado através do Sistema Bose e sido respondida instantanea-
mente, mesmo assim o tempo total decorrido seria de mais de um dia­-
padrão, ou seja, três dias de Opala. Eu sei, porque estou acostumado a
usar o sistema.
Perry tem toda a razão, pensou Rebka. Seu raciocínio é mais rápido
do que eu pensava, mas está cometendo um erro tático. Os conselheiros
não mentem jamais; acusar um conselheiro de mentir só vai nos causar
problemas.
Mas Graves estava sorrindo pela primeira vez.
— Obrigado, comandante Perry. Tornou mais fácil minha próxima
tarefa. — Tirou do bolso um lenço imaculado, enxugou a cabeça calva
80
com ele e deu um tapinha na testa. — Como posso conhecer a ficha de-
les, você me pergunta. Sou Julius Graves, como afirmei. Em certo sentido,
porém, também sou Steven Graves. — Recostou-se na cadeira, fechou os
olhos por alguns segundos, piscou e prosseguiu: — Quando fui convidado
para fazer parte do Conselho, explicaram-me que precisaria conhecer a
história, biologia e psicologia de todas as espécies inteligentes e poten-
cialmente inteligentes de nosso braço da espiral. Esse volume de dados
excede a capacidade da memória humana.
“Ofereceram-me duas opções. Eu podia aceitar o implante de uma
memória inorgânica de alta densidade, tão pesada e volumosa que minha
cabeça e pescoço precisariam de um suporte permanente. Essa solução
é adotada pelos membros do Conselho da Comunidade dos Zardalus. Ou
eu podia desenvolver um irmão gêmeo mnemónico interno, um segundo
par de hemisférios cerebrais criado a partir dos meus próprios tecidos ce-
rebrais e usado exclusivamente para armazenar informações. Este tecido
encefálico adicional poderia ser acomodado no interior do meu crânio,
atrás do córtex cerebral, bastando para isso aumentar ligeiramente o vo-
lume do crânio.
“Escolhi a segunda opção. Fui advertido de que, já que os novos
hemisférios seriam parte integrante do meu organismo, sua eficiência
seria afetada pelas minhas condições físicas. Em outras palavras: se eu
ficasse muito cansado, ou tomasse estimulantes de qualquer tipo, minha
memória seria afetada. Estou contando isso para que não me julguem
anti-social se me recusar a tomar um drinque, ou pensem que sou hipo-
condríaco porque me preocupo com a minha saúde. Tenho que tomar
cuidado para não prejudicar minha interface mnemónica. Steven não fi-
caria nada satisfeito.
Ele sorriu e expressões conflitantes cruzaram o seu rosto, no mo-
mento em que uma súbita rajada de vento fez tremer as paredes de fibra
do prédio.
— Porque o que eles não me disseram — prosseguiu — foi que
meu gêmeo interior mnemónico poderia desenvolver uma consciência...
tomar conhecimento da própria existência. Como disse, sou Julius Gra-
ves, mas sou também Steven Graves. Foi ele quem me forneceu as fichas
de Darya Lang e da cecropiana, Atvar H’sial. Muito bem. Agora podemos
prosseguir?
— Steven é capaz de conversar conosco? — quis saber Rebka. Max
Perry parecia estar em estado de choque. Ter um membro do Conselho
bisbilhotando já era muito... agora estavam com dois. E será que Julius
81
Graves sempre detinha o controle? Pelas suas expressões, era como se os
gêmeos estivessem empenhados em uma disputa interminável.
Graves sacudiu a cabeça.
— Não, Steven não pode falar. Nem sentir, ver ou ouvir, a não ser
quando envio meus dados sensoriais para a região da memória, através
de um corpo caloso suplementar. Entretanto, Steven é capaz de pensar.
Na sua opinião, pensa melhor do que eu. Como ele diz, tem mais tem-
po para isso. E ele me envia mensagens, seus próprios pensamentos, em
forma de recordações. Posso traduzir essas recordações com fluência su-
ficiente para que as pessoas tenham a impressão de que estão conversan-
do diretamente com Steven. Por exemplo...
Ficou em silêncio por alguns momentos. Quando falou de novo, sua
voz era visivelmente mais jovem e animada:
— Olá! Estou muito satisfeito de estar aqui em Opala. Ninguém me
disse que faria um tempo tão horroroso, mas uma das vantagens de ser
quem sou é que não me molho quando chove.
A voz se tornou de novo mais grave e mais séria.
— Mil desculpas. Steven tem um péssimo senso de humor. E con-
fesso a vocês que me tornei excessivamente dependente dos conheci-
mentos dele. É Steven, por exemplo, quem dispõe de quase todas as in-
formações sobre este planeta. Meus conhecimentos pessoais a respeito
são praticamente nulos. Eu me envergonho da minha preguiça. — Fez
uma rápida pausa. — Bom, agora podemos prosseguir? Estou aqui em
Dobelle para tratar de um assunto que não combina com piadas.
— Assassinato — murmurou Perry, depois de um longo silêncio.
A tempestade estava chegando ao auge; à medida que o barulho
do vento aumentava, a agitação de Perry crescia. Não conseguindo mais
ficar sentado, começou a passear em frente à janela, olhando para as sa-
mambaias e para o capim alto, ou para as nuvens que passavam no céu
em disparada e eram tingidas de vermelho pela luz de Amaranth.
— Assassinato — repetiu Perry. — Vários assassinatos. Era isso que
dizia no seu requerimento para visitar Opala.
— É verdade. Isso porque não achei prudente mencionar em públi-
co uma acusação ainda mais séria. — Era evidente que agora Julius Graves
não estava brincando. — Uma palavra muito mais precisa seria genocídio.
Se preferir, posso reduzir a acusação para suspeita de genocídio.
Olhou calmamente em volta, enquanto a chuva recrudescia, casti-
gando as paredes e o teto. Os outros dois homens pareciam paralisados,
Max Perry diante da janela e Hans Rebka sentado na beirada da cadeira.
82
— Genocídio. Suspeita de genocídio. Qual a diferença? — pergun-
tou Rebka, afinal.
— Depende do ponto de vista. — Os lábios cheios não paravam de
tremer. — Nos dois casos, não existem limitações legais de tempo ou de
espaço para a investigação. Entretanto, dispomos apenas de provas cir-
cunstanciais. Não temos uma prova decisiva nem uma confissão. Foi isso
que vim procurar em Opala.
Graves enfiou a mão no bolso do paletó e tirou dois cubos de ima-
gem.
— Por estranho que pareça, estas são as acusadas. Elena e Geni
Carmel, de vinte e um anos-padrão de idade, nascidas e criadas em Shas-
ta e, como podem ver, gêmeas idênticas.
Mostrou os cubos para os outros dois homens. Rebka viu apenas
duas jovens de pele bronzeada, olhos grandes e feições regulares, usando
trajes idênticos, castanho-esverdeados. Entretanto, Max Perry aparente-
mente vira alguma coisa mais naquelas imagens, pois soltou uma excla-
mação de reconhecimento, arrancou os cubos da mão do conselheiro e
ficou olhando fixamente para eles. Vinte segundos se passaram antes que
a tensão se dissipasse e ele levantasse os olhos.
Julius Graves estava observando os dois. Rebka de repente teve a
intuição de que aqueles olhos azuis não perdiam nada. A impressão de
excentricidade tanto podia ser genuína quanto apenas uma fachada, mas
por trás dela havia uma inteligência estranha e poderosa. Os incapazes
não se tornavam membros do Conselho.
— Parece conhecer essas moças, comandante Perry — disse Gra-
ves. — Conhece? Porque, se já as viu alguma vez, é vital que eu saiba
quando e onde.
Perry negou com a cabeça. Estava ainda mais pálido do que de cos-
tume.
— Não. Só que, por alguns momentos, logo que vi os cubos, achei
que se tratava de... outra pessoa. Alguém que conheci faz muito tempo.
— Alguém? — Graves esperou, e depois, quando se tornou claro
que Perry não iria dizer mais nada, prosseguiu: — Não pretendo esconder
coisa alguma de vocês e peço encarecidamente que não escondam nada
de mim. Se não se importam, vou deixar que Steven conte o resto da
história. Ele dispõe de mais informações do que eu, e acho difícil falar do
assunto sem que a emoção me embargue a voz.
Os tremores pararam. O rosto de Graves assumiu a expressão de
um homem mais moço e mais feliz.
83
— Muito bem, aqui vai — disse. — A triste história de Elena e Geni
Carmel. Shasta é um mundo rico, onde os jovens podem fazer pratica-
mente tudo que quiserem. Quando as gêmeas Carmel completaram vinte
e um anos, ganharam de presente um pequeno iate espacial, o Sonho de
Verão. Entretanto, em vez de se contentarem com as viagens locais, como
a maioria dos adolescentes, convenceram a família a instalar um Siste-
ma Bose na nave. Depois, partiram em um cruzeiro pelo universo: nove
mundos da Quarta Aliança, depois três da Comunidade dos Zardalus. No
último planeta, decidiram conhecer a vida “como ela é”. Pelo menos, foi
isso que disseram nas mensagens que enviaram para casa. Na prática,
significava que queriam viver confortavelmente mas observar um mundo
atrasado.
“Desceram em Pavonis Quatro e montaram uma tenda luxuosa.
Pavonis Quatro é um planeta pobre, pantanoso, da Comunidade dos
Zardalus. Pobre agora, é bom notar; era bem rico antes de os humanos
chegarem. Durante a fase de colonização, uma espécie anfíbia nativa, co-
nhecida como bércias, era um estorvo para os humanos. Eles foram quase
exterminados, mas àquela altura o planeta já não tinha nada para ser
explorado, e os colonizadores foram embora. Os bércias sobreviventes (os
poucos que restavam) receberam a classificação provisória de inteligência
em potencial. Foram protegidos. Finalmente.
Graves fez uma pausa. Seu rosto se tornou uma mistura de expres-
sões. Já não era mais possível saber se era Julius ou Steven que estava
falando.
— Os bércias eram inteligentes? — perguntou, retoricamente, em
voz baixa. — O universo jamais saberá. O que sabemos é que eles hoje
estão extintos. Seus dois últimos refúgios foram arrasados dois meses
atrás... por Elena e Geni Carmel.
— Mas não de propósito, é claro! — Perry ainda estava segurando
os cubos e olhando para eles. — Deve ter sido um acidente.
— Pode ser que tenha sido. — Pela maneira séria de falar, Julius
Graves havia reassumido o controle. — Não sabemos, porque, depois que
tudo aconteceu, as irmãs não ficaram para prestar esclarecimentos. Inex-
plicavelmente, fugiram. Continuaram a fugir, até que, uma semana atrás,
fechamos a Rede Bose para elas. Agora não têm mais para onde ir.
A tempestade chegara com toda a força. Do lado de fora do prédio
veio o som agudo de uma sirene, perfeitamente audível apesar do ge-
mido do vento e do tamborilar da chuva no telhado. Rebka ainda estava
prestando atenção na história, mas Perry, não. Assim que ouviu a sirene,
84
saiu correndo para a porta.
— Um pouso! A sirene quer dizer que alguém está com problemas.
São malucos, se vão tentar pousar no meio de uma tempestade nível cin-
co, sem nenhuma experiência...
Desapareceu porta afora. Julius Graves fez menção de levantar-se,
mas Hans Rebka segurou-o pelo braço.
— Elas fugiram — propôs Rebka. Olhando pela janela embaçada
pela chuva, podia ver as luzes de um carro aéreo, oscilando loucamente
à mercê dos ventos. Estava a apenas alguns metros do solo; era melhor ir
até lá também. Mas antes tinha que confirmar uma coisa. — Elas fugiram.
E vieram... para Opala?
Graves fez que não com a cabeça.
— Mas foi isso que também pensei — disse. — E foi essa a razão
que me fez vir para cá. De acordo com os cálculos de Steven, o iate se
dirigia para o sistema de Dobelle. Mas a primeira coisa que fiz depois de
chegar foi consultar os funcionários do espaçoporto. Eles me assegura-
ram que ninguém poderia ter pousado neste planeta usando uma nave
equipada com o Sistema Bose sem que eles soubessem.
O alarme voltou a soar do lado de fora e um facho de advertência
vermelho-alaranjado iluminou o céu. Ouviram o som de vozes gritando.
Olhando pela janela, Rebka viu o carro pousar, tornar a subir alguns me-
tros e capotar. Correu para a porta, mas foi seguro por Graves.
— Quando o comandante Perry voltar, pretendo fazer-lhe uma nova
solicitação — disse Graves, calmamente. — Não estou mais interessado
em Opala. Sei que as gêmeas não estão aqui. Mas elas se encontram no
sistema de Dobelle. Isso só pode significar uma coisa: estão em Tremor. —
Inclinou a cabeça, como se só agora tivesse ouvido as sirenes e os sons de
metal se rompendo. — Preciso viajar para Tremor, e quanto mais depres-
sa, melhor. No momento, porém, acho que há problemas mais urgentes.

85
Capítulo 8

Maré de Verão menos vinte e seis.

O momento da morte. A vida inteira desfilando diante dos seus


olhos.
Darya Lang viu o vento lateral atingir o carro no momento em que
as rodas tocavam no solo pela segunda vez. Viu a asa direita se chocar
com o piso, sentiu a máquina deixar a pista, percebeu que estava capo-
tando. O teto do veículo afundou.
De repente, o chão escuro estava passando rapidamente, meio
metro acima da sua cabeça. As luzes se apagaram, deixando-a em total
escuridão.
Quando o cinto de segurança apertou-lhe o peito com força, a dor
a fez pensar com clareza. Sentiu-se roubada.
Aquela vida que desfilava diante dos seus olhos tinha sido toda a
sua vida? Nesse caso, levara uma vida extremamente pobre. Tudo em que
podia pensar era a Sentinela. E em como jamais conseguiria compreendê­
-la, jamais chegaria a decifrar o seu mistério, jamais saberia o que acon-
tecera com os Construtores. Todos aqueles anos-luz de viagem, para ser
esmagada como um inseto em um planeta de terceira!
Como um inseto. Pensar em insetos a fez sentir-se vagamente cul-

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pada.
Por quê?
Lembrou-se de repente, ainda pendurada de cabeça para baixo
pelo cinto de segurança. Era difícil pensar, mas tinha que fazê-lo. Estava
viva. O líquido que escorria pelo seu nariz e entrava nos olhos ardia terri-
velmente, mas era frio demais para ser sangue. Que teria acontecido com
os outros dois, Atvar H’sial e J’merlia, nos assentos de passageiros? Não
são insetos, pensou. Na verdade, são menos insetos do que eu. São seres
racionais. Que vergonha, Darya Lang!
Será que os matara, pilotando tão mal?
Darya virou a cabeça e tentou olhar para trás. Havia alguma coi-
sa errada com o seu pescoço. Um choque de puro calor queimou-lhe a
garganta e o ombro antes mesmo que pudesse voltar-se para olhar. Não
conseguiu ver nada.
— J’merlia? — Não adiantava chamar por Atvar H’sial. Mesmo que
a cecropiana pudesse ouvi-la, não teria como responder. — J’merlia?
Nenhuma resposta. Mas estava escutando vozes humanas do lado
de fora do carro. Chamando por ela? Não, falando uns com os outros...
era difícil entender o que diziam, por causa do vento.
— Não podemos entrar por aqui — disse uma voz de homem. — O
teto está rachado. Se aquela viga ceder, eles vão ser esmagados.
— Duvido que estejam vivos. — Uma voz de mulher. — O choque
foi muito violento. Quer esperar pelo guindaste?
— Não. Ouvi alguma coisa. Segure a lanterna. Vou entrar. A luz!
Darya entrou de novo em pânico. A escuridão diante dela era total, mais
escura que qualquer meia-noite, escura como a pirâmide que ficava no
centro da Sentinela. Naquela época do ano, não havia noite em Opala; a
luz de Mandel era substituída pela de Amaranth. Por que não conseguia
ver?
Tentou piscar os olhos sem sucesso. Levantou a mão direita para
esfregá-los. A mão esquerda desaparecera... não conseguia senti-la, não
havia nenhuma resposta, a não ser uma dor aguda no ombro, quando
tentava movê-la.
Esfregar os olhos só contribuiu para fazê-los arder ainda mais. Con-
tinuou sem enxergar.
— Puxa, que bagunça! — O homem, de novo. Houve um leve clarão
à sua frente, como a chama de um maçarico vista com os olhos fechados.
— Allie, eles são três, ao que parece. Dois são alienígenas, e estão enro-
lados um no outro. Há sangue de inseto por toda parte. Não sei o que é
87
o que, e não tenho coragem de tocá-los. Mande um chamado de emer-
gência; veja se encontra alguém perto do espaçoporto que conheça um
pouco de anatomia. Houve uma resposta distante e ininteligível.
— Droga, eu não sei! — A voz estava mais próxima. — Não vejo
nenhum movimento... pode ser que todos estejam mortos. Não posso
esperar. Estão cobertos de óleo da cabeça aos pés. Uma fagulha e vão
virar carvão.
Vozes distantes, difusas: mais de uma pessoa.
— Não importa. — Agora a voz estava muito perto. — Temos que
tirá-los daqui. Alguém entre para me ajudar.
As mãos que seguraram o corpo de Darya não tinham intenção de
machucá-la. Mas quando tocaram no seu ombro múltiplas galáxias de dor
rodopiaram na escuridão à sua frente. Deu um grito, um uivo de desespe-
ro que soou como um débil miado.
— Ótimo! — As mãos a apertaram com mais força. — Esta aqui está
viva. Voltou a si. Segure.
Darya foi arrastada de cabeça para baixo por um campo lamacento
cheio de raízes e folhas de samambaia quebradas. Um bolo de musgo
visguento e malcheiroso entrou pela sua boca aberta. Começou a tossir.
Quando um toco penetrou violentamente em sua clavícula quebrada, um
pensamento lhe ocorreu: não preciso ficar acordada no meio de tanta
humilhação!
A escuridão a envolveu. Era hora de parar de lutar; hora de descan-
sar; hora de escapar para aquele negrume reconfortante.

Darya levara um dia para descobrir, mas finalmente sabia que, em-
bora o diálogo entre humanos e cecropianos fosse impossível sem a ajuda
de J’merlia ou outro intermediário lo’tfiano, a comunicação era possível e
podia envolver uma quantidade considerável de informações.
O rígido exoesqueleto dos cecropianos tornava impossível qual-
quer expressão facial. Entretanto, as duas espécies usavam uma lingua-
gem corporal. Era questão apenas de uma entender o que significavam
os gestos da outra.
Assim, por exemplo, quando Atvar H’sial achava que sabia qual
seria a resposta de Darya a uma pergunta, inclinava o corpo um pouco
para trás. Na maioria das vezes, também levantava uma ou as duas patas
dianteiras. Quando não sabia a resposta e estava ansiosa para ouvi-la,
contraía e dilatava a tromba... só um pouquinho. E quando estava real-
mente animada (ou preocupada, era difícil perceber a diferença) com um
88
comentário ou uma pergunta, os pêlos das suas antenas se eriçavam.
Como acontecera quando Julius Graves entrara.
Darya sabia a respeito do Conselho — todos sabiam —, mas estava
preocupada demais com os próprios interesses para dar atenção ao as-
sunto. E não sabia muito bem o que o Conselho fazia, embora tivesse a
impressão de que envolvia questões de ética.
— Mas é natural que as pessoas não saibam exatamente o que faz
o Conselho, professora Lang — disse Graves. Dirigiu-lhe um sorriso que
aquela cabeça desproporcionalmente grande, esquelética, tornava posi-
tivamente ameaçador. Não sabia quanto tempo fazia que o conselheiro
chegara ao planeta, mas certamente escolhera uma hora inconveniente
para visitá-la. Ela e Atvar H’sial tinham concluído as discussões prelimina-
res e estavam prontas para acertar os detalhes: quem faria o que, por que
e quando.
— As pessoas não sabem exatamente o que o Conselho faz — pros-
seguiu Graves —, exceto aquelas cujos atos tornam necessária a existên-
cia do Conselho.
Darya tinha certeza de que sua expressão facial a estava traindo de
novo. O que estava se preparando para fazer com a cecropiana não era
assunto do Conselho; não havia nada de eticamente censurável em curto­-
circuitar a burocracia por uma boa causa científica, mesmo que essa cau-
sa não tivesse sido totalmente revelada às autoridades locais. Que mais
os membros do Conselho faziam?
Mas Graves a fitava com aqueles olhos azuis, e a moça teve certeza
de que ele podia ver o sentimento de culpa em seus olhos.
Se não desconfiasse de nada olhando para ela, bastaria olhar para
Atvar H’sial! As antenas da outra estavam mais eriçadas do que nunca, e
até mesmo J’merlia atropelava as palavras em sua ansiedade para livrar­-
se do conselheiro.
— Estimado conselheiro, teremos o maior prazer em conversar
com o senhor em outra ocasião. No momento, porém, temos que atender
a um compromisso urgente.
Atvar H’sial chegou ao extremo de tomar a mão de Darya Lang em
uma de suas patas articuladas. Enquanto a cecropiana a arrastava para a
porta — para fora do prédio, onde estava caindo uma chuva torrencial —,
Darya notou pela primeira vez que a extremidade da pata era coberta de
pêlos negros, que se pareciam com pequenos ganchos. Darya não conse-
guiria livrar-se da outra, mesmo que quisesse fazer uma cena na frente de
Julius Graves.
89
Era outro vestígio de um remoto ancestral alado de Atvar H’sial,
que talvez precisasse agarrar-se a árvores e pedras.
Ora, nenhum de nós saiu diretamente da cabeça dos deuses, não
é mesmo?, pensou. Todos temos resíduos deixados pela evolução. Darya
olhou automaticamente para as próprias unhas. Estavam sujas. Talvez es-
tivesse se deixando contagiar pela atmosfera de Opala e Tremor.
— Para onde estamos indo? — perguntou, baixinho. Julius Graves
precisaria ter uma audição fantástica para entender qualquer coisa que
ela dissesse no meio de todo o barulho da chuva, mas tinha certeza de
que estava olhando para elas naquele exato momento. Imaginando, sem
dúvida, aonde estariam indo com um tempo daqueles e por quê. Sentiu­-
se muito melhor longe dele.
— Vamos conversar a respeito daqui a pouco. — J’merlia, sob os
efeitos dos nervosos feromônios de Atvar H’sial, começou a pular, como
se o piso molhado do pátio onde se encontrava o carro aéreo estivesse
em brasa. — Entre no carro, Darya Lang. Entre!
Os dois pareciam dispostos a carregá-la para dentro do veículo!
Ela se desvencilhou dos companheiros.
— Vocês querem que Graves desconfie que estamos fazendo algu-
ma coisa irregular? — perguntou para Atvar H’sial. — Calma!
A reação da outra a estava fazendo sentir-se um pouco superior.
Os cecropianos tinham fama de ser frios e calculistas. Muitos (incluindo
todos os cecropianos) afirmavam que sua inteligência e sangue-frio eram
bem maiores que os dos humanos. No entanto, ali estava Atvar H’sial,
nervosa como se estivessem planejando assaltar um banco.
Os dois alienígenas entraram no carro depois dela, empurrando-a
para a frente.
— Não entendeu ainda, Darya Lang. — Enquanto Atvar H’sial fe-
chava a porta, J’merlia apontava na direção do assento do piloto. — Este
é o seu primeiro encontro com um membro do Conselho. Não se pode
confiar neles. Teoricamente, deveriam dedicar-se apenas a questões de
ética, mas não é isso que acontece! Eles não têm respeito por ninguém.
Acham que podem meter-se em tudo, mesmo no que não lhes diz respei-
to. Não podíamos conversar na presença de Julius Graves! Ele certamente
desconfiaria das nossas pretensões e faria tudo para nos impedir. Temos
que nos afastar dele. Depressa!
Enquanto J’merlia falava, Atvar H’sial gesticulava freneticamente
para que Darya decolasse... mesmo que isso implicasse enfrentar as nu-
vens de tempestade que ocupavam metade do céu. Darya apontou para
90
as nuvens, mas se deu conta de que o sentido de eco-localização da cecro-
piana não “veria” nada a uma distância tão grande. Mesmo com aqueles
ouvidos incríveis, o mundo de Atvar H’sial devia estar restrito a uma esfe-
ra de não mais que uns cem metros de diâmetro.
— O tempo está horrível... daquele lado, a leste.
— Então voe para oeste — disse J’merlia. — Ou para o norte, ou
para o sul. Mas saia daqui. — O lo’tfiano estava agachado no fundo do
carro, enquanto Atvar H’sial se sentava com a cabeça apoiada na janela
lateral, o rosto cego voltado para o vazio.
Darya subiu rapidamente, procurando uma brecha nas nuvens. Se
conseguisse colocar-se acima delas, poderia voar durante horas.
Quantas? Não estava ansiosa para descobrir. Seria melhor conti-
nuar subindo, livrar-se totalmente da tempestade e procurar um lugar
tranquilo para pousar, perto da borda da Funda.
Duas horas depois, teve que mudar de planos. A zona de turbulên-
cia se estendia interminavelmente e o vento não amainara. Tinham voado
até a borda da Funda e procurado um local para pousar, sem sucesso. Pior
ainda, a massa escura de nuvens de tempestade as perseguia. Uma sóli-
da parede cinzenta ocupava três quartos do horizonte. O rádio do carro
anunciara uma tempestade “nível cinco”, mas não se dera ao trabalho de
definir o que isso significava. Mandel havia se posto; o céu assumira a cor
avermelhada de Amaranth.
Voltou-se para Atvar H’sial.
— Não podemos ficar aqui em cima para sempre, e não gosto de
deixar as coisas para o último minuto. Vou subir mais, até ficarmos acima
da tempestade. Depois, voltarei ao ponto de partida. O melhor local para
pousar é aquele de onde decolamos.
Atvar H’sial concordou de má vontade quando a mensagem lhe foi
transmitida por J’merlia. A cecropiana não estava preocupada com a tem-
pestade, talvez porque não pudesse ver as nuvens negras. Sua principal
preocupação ainda era Julius Graves.
Durante o vôo, Atvar H’sial lhe contara o plano completo. Assim
que o capitão Rebka voltasse, ficariam sabendo da decisão oficial quanto
à viagem a Tremor. Se a permissão fosse negada, iriam imediatamente
para o lado de Tremor do planeta, em um carro aéreo cujo aluguel já es-
tava pago. O carro se achava à espera delas, em um pequeno campo de
pouso de outra Funda, não muito longe do espaçoporto. Para chegar até
lá, alugariam um carro local, cujo alcance era tão limitado que Rebka e
Perry jamais desconfiariam que pretendiam ir tão longe.
91
Atvar H’sial, com J’merlia como intérprete, não tivera muita dificul-
dade para tomar todas essas providências. O que não podia fazer, a tarefa
para a qual Darya Lang era absolutamente essencial, era requisitar uma
das cápsulas do Cordão Umbilical.
Ela explicou seus motivos, enquanto Darya Lang escutava e enfren-
tava a tempestade ao mesmo tempo. Atvar H’sial era a primeira cecropia-
na a visitar Opala. Sua presença no lado de Tremor, tentando usar uma
cápsula do Cordão Umbilical, certamente despertaria suspeitas. Não lhe
dariam permissão para subir a bordo sem verificar se estava autorizada, o
que queria dizer que acabariam por consultar Rebka e Perry.
— Mas com você não haverá nenhum problema. Nós dispomos de
documentos de autorização com o seu nome — disse J’merlia. — A trom-
ba de Atvar H’sial se contraiu ligeiramente. A cecropiana inclinou-se na di-
reção de Darya, juntando os membros dianteiros de tal modo que parecia
estar rezando. — Você é humana... e é uma fêmea.
Como se isso ajudasse. Darya suspirou. Talvez uma comunicação
perfeita entre as espécies fosse impossível. Já explicara três vezes, mas a
cecropiana parecia incapaz de compreender que, no caso dos humanos,
as fêmeas não eram o sexo dominante.
Darya fez a nave subir. Aquela tempestade estava sendo um trans-
torno. Precisava colocar-se acima das nuvens antes de começar a viagem
de volta. Apesar da estabilidade e da potência do carro aéreo, estava ten-
do dificuldade para controlá-lo.
— Nós conhecemos as sequências de controle necessárias para
operar o Cordão Umbilical — prosseguiu J’merlia. — Se você conseguir
nos colocar a bordo de uma cápsula, nada nos impedirá de chegar à su-
perfície de Tremor.
Aquelas palavras tinham sido ditas com o intuito de tranquilizar Da-
rya. Curiosamente, tiveram o efeito contrário. A moça começou a pensar.
A cecropiana chegara a Opala depois dela... e no entanto já dispunha de
documentos falsos com o seu nome? E conhecia as sequências de contro-
le do Cordão Umbilical? Quem as fornecera?
— Diga a Atvar H’sial que preciso pensar um pouco antes de tomar
uma decisão.
Pensar, e tentar descobrir mais alguma coisa antes de se compro-
meter a viajar para Tremor com Atvar H’sial. A alienígena parecia estar
muito bem informada a respeito de tudo que acontecia no sistema de
Dobelle.
A não ser, talvez, a respeito dos perigos das tempestades de Opala.
92
Começaram a descer e a turbulência se tornou assustadora. Darya
podia ouvir e sentir a força do vento sobre o carro. Rezou para que o sis-
tema automático de estabilização e aproximação soubesse pilotar melhor
do que ela. Não se considerava uma superpiloto.
Atvar H’sial e J’merlia estavam muito calmos. Talvez seres que des-
cendiam, ainda que remotamente, de espécies voadoras, encarassem as
viagens aéreas com mais naturalidade.
Darya, por outro lado, jamais se sentiria totalmente à vontade no
ar. Sentiu um nó no estômago. Haviam mergulhado nas nuvens e estavam
no meio de uma tempestade mais violenta do que jamais vira no Portal da
Sentinela. Com uma visibilidade de menos de cem metros e sem nenhum
ponto de referência adequado, tinha que se colocar nas mãos do sistema
automático de pouso do espaçoporto.
Se estivesse funcionando, com uma tormenta daquelas.
Não adiantava olhar pelo pára-brisa; a visibilidade era zero. Já es-
tavam descendo havia muito tempo... tempo demais. Olhou para o pai-
nel de instrumentos. Altitude, trezentos metros. Distância da pista, dois
quilômetros. Deviam faltar alguns segundos para o pouso. Onde estava a
pista?
Darya levantou os olhos do painel e viu as luzes do campo de pouso
por alguns segundos. Estavam no rumo certo. Reduziu a força, procuran-
do manter o carro alinhado com as luzes. De repente, um vento lateral
sacudiu o veículo, levantou-o, virou-o de lado.
Tudo estava acontecendo em câmera lenta.
O carro tornou a descer. A moça viu quando uma das asas tocou
no chão...
...viu quando fez um sulco no solo, antes de entortar...
...ouviu o ruído, quando a asa se partiu em duas...
...pressentiu a capotagem...
...e reconheceu, sem sombra de dúvida, que a parte melhor da
aterrissagem terminara.

Darya não chegou a perder a consciência. Estava tão convencida


deste fato que depois de algum tempo seu cérebro forneceu uma explica-
ção para o que estava acontecendo. Era simples: cada vez que fechava os
olhos, mesmo que por apenas um momento, alguém mudava a paisagem.
Primeiro, a agonia e humilhação de ser arrastada na lama. Não ha-
via nenhuma paisagem, porque seus olhos não estavam funcionando.
(piscadela)
93
Estava deitada de barriga para cima, enquanto alguém passava
uma esponja na sua cabeça.
— Queixo, boca, nariz — disse alguém. — Olhos. Uma dor terrível.
— Parece fluido de transmissão. — Ele não estava falando com ela.
— Não há problema, não é tóxico. Pode cuidar dos outros?
— Posso — disse outro homem. — Mas o maior está com a casca
rachada. Está pingando sangue e não podemos costurar. Que vamos fa-
zer?
— Que acha de usarmos uma fita adesiva? — Uma silhueta afastou-
-se da moça. Frias gotas de chuva martelaram-lhe os olhos doloridos.
(piscadela)
Paredes verdes, um teto bege, o ruído de bombas. Uma sonda in-
travenosa controlada por computador espetada no seu braço esquerdo
e ligada a um recipiente sustentado por um cabide metálico. Sentia-se
aquecida, confortável, maravilhosamente bem.
Neomorfismo, disse uma voz desconhecida em um canto do seu
cérebro. Está sendo alimentada por um computador sempre que a te-
lemetria revela que você está com fome. Um método eficaz. Que vicia
rapidamente. De uso controlado no Portal da Sentinela. Utilizado apenas
em condições restritas, com a possibilidade de reverter os efeitos usando
epinefrina.
Vá para o inferno!, respondeu. Estou me sentindo muito bem. O
Círculo de Phemus é que sabe usar remédios. Um viva a eles.
(piscadela)
— Está se sentindo melhor?
Uma pergunta idiota. Estava se sentindo muito mal. Os olhos
doiam, os ouvidos doiam, os dentes doiam, os dedos dos pés doiam. A
cabeça estava girando, e também havia pontadas de dor que começavam
perto do ouvido esquerdo e iam até as pontas dos dedos da mão. Mas
conhecia aquela voz.
Darya abriu os olhos. Um homem aparecera à sua cabeceira, como
que por encanto.
— Conheço você. — Ela suspirou. — Mas não sei seu primeiro
nome. Coitadinho. Você não tem um primeiro nome, não é mesmo?
— Tenho, sim. Meu nome é Hans.
— Capitão Hans Rebka. Está bem, você tem um nome. Você é mui-
to simpático, sabia? Só que devia sorrir um pouco mais. Mas você devia
estar em Tremor.
— Já voltamos.
94
— Quero conhecer Tremor.
Maldita droga, pensou. Era a droga, tinha que ser, e agora sabia por
que era ilegal. Tinha que calar a boca antes de dizer alguma coisa que a
comprometesse.
— Posso ir até lá, Hans Rebka? Gostaria muito de ir. Estou falando
sério.
Ele sorriu e fez que não com a cabeça.
— Está vendo? Você fica muito melhor quando está sorrindo! E en-
tão? Vai me dar permissão para conhecer Tremor? Que é que me diz,
Hans Rebka?
Darya piscou antes que ele tivesse tempo de responder. Rebka de-
sapareceu.
Quando ela abriu os olhos de novo, o quarto estava diferente. Do
lado direito, havia uma armação de tubos pretos de metal, formando uma
estrutura cúbica. No centro, estava uma rede, pendurada nos vértices do
cubo por grossas cordas. Nessa rede, tendo agora o tronco esquelético
envolvido por ataduras, com a cabeça baixa e os membros finos estendi-
dos verticalmente e para os dois lados, estava J’merlia.
A posição contorcida do corpo enfaixado lembrava a agonia do es-
pasmo final de um moribundo. Darya olhou automaticamente em torno,
à procura de Atvar H’sial. Não havia nenhum sinal da cecropiana. Seria
possível que a simbiose das duas criaturas fosse tão forte que o lo’tfiano
não podia sobreviver sem a outra? Teria Atvar H’sial morrido quando os
dois foram separados?
— J’merlia?
Darya havia falado sem pensar. Se as palavras de J’merlia não eram
mais que uma tradução das mensagens de Atvar H’sial, era tolice esperar
uma resposta independente.
Um olho cor de limão se voltou na sua direção. Quer dizer que pelo
menos sabia que ela estava ali.
— Pode me ouvir, J’merlia? Você parece estar sentindo dores hor-
ríveis. Não sei por que está nessa rede. Se está me entendendo e precisa
de ajuda, fale comigo.
Houve um longo silêncio. É inútil, pensou Darya.
— Obrigado pelo seu interesse — disse finalmente uma voz familiar.
— Mas não estou sentindo dor. A rede foi montada a meu pedido, para
que eu ficasse mais confortável. Você não estava consciente na ocasião.
Será que era mesmo J’merlia quem estava falando? Darya olhou
novamente em torno.
95
— É você quem está falando ou Atvar H’sial? Onde está ela? Está
viva?
— Está viva, sim. Infelizmente, está mais ferida do que você. O seu
exoesqueleto foi submetido a uma operação delicada. Você quebrou um
osso e sofreu várias contusões. Estará recuperada em três dias de Dobel-
le.
— E você?
— Não sou nada; meu estado não tem importância.
A atitude servil de J’merlia parecera normal quando Darya o con-
siderava como pouco mais que um porta-voz para os pensamentos da
cecropiana. Agora, porém, estava diante de um ser racional, com suas
idéias, suas emoções.
— Conte-me, J’merlia. Quero saber.
— Perdi dois segmentos de um membro posterior (não tem impor-
tância, vão crescer de novo) e sangrei um pouco no pedúnculo. Nada de
sério.
Suas emoções... e seus direitos?
— J’merlia...
Fez uma pausa. Será que devia se intrometer? Havia um membro
do Conselho no planeta. Na verdade, a causa principal do desastre tinha
sido a tentativa de fugir desse conselheiro. Se havia alguém que devia
estar preocupado com a situação dos lo’tfianos, esse alguém era Julius
Graves, e não Darya Lang.
— J’merlia. — Resolveu falar de qualquer maneira. Quanto tempo
seu organismo levaria para eliminar a droga? — Quando Atvar H’sial está
presente, você não diz o que pensa. Não diz nada.
— É verdade.
— Por que não?
— Não tenho nada a dizer. E não seria correto. Antes mesmo que
eu assumisse minha segunda forma, quando eu era pouco mais que uma
larva, Atvar H’sial foi nomeada minha dominatrix. Quando ela está pre-
sente, sirvo apenas para transmitir aos outros suas idéias. Não tenho
idéias próprias.
— Mas tem inteligência, tem conhecimentos. Está errado. Você
devia defender os seus direitos... — Darya interrompeu o que estava di-
zendo. O lo’tfiano ajeitou o corpo na rede, de forma a voltar os dois olhos
compostos para a humana.
Cumprimentou a moça com um gesto de cabeça.
— Professora Darya Lang, a senhora e todos os humanos estão
96
muito acima de mim, acima de todos os lo’tfianos, e não me atreveria a
discordar da senhora. Mas, se estiver interessada, gostaria de contar-lhe
nossa história, e também a dos cecropianos. Posso?
Darya fez que sim com a cabeça. Aparentemente, isso não era o
bastante, porque ele esperou até a moça dizer, finalmente:
— Está bem. Conte-me.
— Obrigado. Vou começar por nós, não porque sejamos impor-
tantes, mas para fins de comparação. Nosso planeta natal é Lo’tfi. É um
mundo frio e sem nuvens. Como pode ser deduzido pela minha aparên-
cia, temos uma visão excelente. Víamos as estrelas todas as noites. Por
milhares de gerações, fizemos uso dessa informação apenas para saber
em que época do ano certos tipos de alimentos estariam disponíveis. Isso
era tudo. Quando fazia mais frio ou mais calor do que o normal, muitos de
nós morriam de inanição. Podíamos falar uns com os outros, mas éramos
animais primitivos, que não sabiam nada a respeito do futuro e muito
pouco acerca do passado. Provavelmente, teríamos continuado assim até
hoje.
“Pense agora em Atvar H’sial e sua raça. Eles se desenvolveram
em um mundo escuro, coberto de nuvens... e eram cegos. Como usam
um sistema de ecolocalização para enxergar, a visão para eles está liga-
da indissoluvelmente à presença de ar. Assim, seus sentidos não podem
receber informações a respeito de nada que fique fora da atmosfera. Só
sabem que o sol deles existe porque sentem sua fraca radiação como uma
forma de calor. Tiveram que desenvolver instrumentos especiais que lhes
revelassem a simples existência da luz. E depois construíram aparelhos
sensíveis à luz e outras formas de radiação eletromagnética, para pode-
rem detectá-la e medi-la.
“Isso foi apenas o começo. Precisaram voltar esses aparelhos para
o céu e deduzir a existência de um universo além do seu planeta natal e
além do seu sol. Finalmente, tiveram que reconhecer a importância das
estrelas, medir as distâncias e construir naves para viajar até elas e explo-
rá-las.
“Eles fizeram isso, tudo isso, enquanto nós, lo’tfianos, ficávamos no
nosso canto, vivendo a nossa vida simples. Somos uma raça mais antiga,
mas, se eles não tivessem encontrado nosso mundo e nos ensinado o que
sabiam sobre o universo, ainda estaríamos lá, como animais.
“Comparados com os cecropianos, ou com os humanos, os lo’tfianos
não são nada. Comparado com Atvar H’sial, eu não sou nada. Quando a
luz dela está brilhando, a minha não deve ser vista. Quando fala, tenho a
97
honra de ser o instrumento que transmite seus pensamentos à senhora.
“Está me ouvindo, professora Darya Lang? Para mim, é uma honra.
Professora? Está me ouvindo?
A moça estivera escutando com muito interesse. Entretanto, seus
ferimentos estavam começando a doer, e a sonda endovenosa controlada
por computador não podia permitir que isso acontecesse. A droga come-
çara a ser novamente injetada. Tentou manter os olhos abertos.
Não sou nada! Que complexo de inferioridade racial! Não deviam
permitir que os lo’tfianos fossem uma raça escrava... mesmo que eles es-
tivessem satisfeitos com a situação. Teria que conversar com ele a respei-
to, para que tomasse uma providência.
Com ele.
Ele, quem?
Tinha olhos azuis, mas a moça não conseguia se lembrar do nome.
Tinha medo dele? Certamente que não.
Teria que conversar a respeito com...
(piscadela).

98
Capítulo 9

Maré de Verão menos vinte.

— Ela não está morta, nem está morrendo. Está se curando. A rea-
ção dos cecropianos a um traumatismo grave é a inconsciência.
No meio da curta noite de Opala, Julius Graves e Hans Rebka esta-
vam de pé ao lado da cama que continha o corpo imóvel de Atvar H’sial.
Parte da carapaça vermelho-escura tinha sido revestida com uma espessa
camada de gesso e aglutinante, que endurecera para formar uma casca
branca e reluzente. A tromba estava dobrada e enfiada na bolsa do quei-
xo, enquanto as antenas, enroladas, se mantinham junto à larga cabeça.
O ruído do ar passando pelos espiráculos era quase inaudível.
— E essa cura é incrivelmente rápida, pelos padrões humanos —
continuou Graves. — Se o cecropiano não morre na hora, em dois ou três
dias, no máximo, está novo em folha. E Darya Lang e J’merlia acham que
Atvar H’sial está suficientemente recuperada para solicitar novamente
uma permissão para visitar Tremor. — Sorriu, um sorriso sem humor. — O
comandante Perry não vai gostar de saber da novidade, não é? Ele lhe
pediu para segurar todos os pedidos até passar a Maré de Verão?
Hans Rebka escondeu sua surpresa... ou tentou fazê-lo. Estava se
acostumando à idéia de que Julius Graves possuía conhecimentos ilimita-

99
dos a respeito de todas as espécies que habitavam aquele braço da espi-
ral. Afinal de contas, o gêmeo mnemónico havia sido implantado exata-
mente com essa finalidade, e desde o momento em que chegara à cena
do desastre Steven Graves se encarregara de dirigir o tratamento dos feri-
mentos de Atvar H’sial: o casco devia ser calafetado, as pernas engessadas
e o élitro quebrado precisava ser amputado (nasceria outro em seu lugar).
Quanto às antenas e os chifres auditivos, esmagados na queda, não havia
nada a fazer a não ser esperar; eles se curariam sozinhos.
Mais difícil, porém, era aceitar o conhecimento que Graves mostra-
va ter a respeito dos humanos.
Ocorreu a Rebka que ele e Julius Graves deviam trocar de posição.
Se alguém era capaz de descobrir o que transformara Max Perry de futuro
líder em burocrata acomodado, esse alguém era Graves. Por outro lado,
Rebka se sentia capaz de explorar a superfície de Tremor e encontrar as
gêmeas Carmel, por mais que elas tentassem se esconder.
— Gostaria de saber o que pensa, capitão — prosseguiu Graves. —
O senhor esteve em Tremor. Devemos permitir que Darya Lang e Atvar
H’sial visitem o planeta, depois que se recuperarem dos ferimentos? Ou
devemos recusar o pedido?
Era exatamente o que Rebka estivera se perguntando. Desneces-
sário dizer que Graves estava disposto a viajar para Tremor, fossem quais
fossem as circunstâncias. Perry o acompanharia, como guia. E, embora
Rebka não dissesse nada, ele também pretendia ir. Seu trabalho tornava
isso necessário, e de qualquer forma não confiaria em Max Perry em nada
que tivesse algo a ver com Tremor. Mas que dizer dos outros?
Viaja mais depressa quem viaja sozinho.
— Eu sou contra. Quanto mais gente, maior o perigo, mesmo que
sejam pessoas muito instruídas. Isso se aplica tanto aos humanos quanto
aos cecropianos.
Mais ainda aos cecropianos, pensou. Olhou para a alienígena in-
consciente, teve um arrepio e caminhou para a saída do prédio.
Não tinha nenhum problema com J’merlia, com seu jeito humilde
e olhos suplicantes. Mas ficava nervoso só de olhar para Atvar H’sial. E se
considerava um homem culto, sofisticado. Havia algum traço oculto dos
cecropianos que achava difícil de tolerar.
— Os cecropianos ainda o incomodam, capitão. — Era Graves, se-
guindo-o até a porta e lendo de novo seus pensamentos. Era uma afirma-
ção, não uma pergunta.
— É verdade. Mas não se preocupe. Eu acabo me acostumando
100
com eles.
E se acostumaria... aos poucos. Mas não era fácil. O milagre era
que os cecropianos e os humanos não tivessem entrado em guerra total
pouco depois de as duas espécies se encontrarem.
E teriam feito isso, pensou Rebka, se tivesse havido algum motivo
para lutar. Os cecropianos pareciam demônios. Se não tivessem procu-
rado planetas que girassem em torno de anãs vermelhas, enquanto os
humanos procuravam estrelas parecidas com o Sol, as duas raças teriam
se encontrado ainda no período de expansão. Entretanto, as sondas não
tripuladas e as vagarosas Arcas das duas espécies tinham sido dirigidas a
tipos bem diferentes de sistemas estelares, e não se encontraram durante
mil anos. Quando os humanos descobriram o Sistema Bose e viram que os
cecropianos estavam usando a mesma Rede em todo o braço da espiral,
as duas espécies já tinham experiência com outros organismos alieníge-
nas; o suficiente para coexistir com outras raças cujas necessidades vitais
eram tão diferentes das suas, embora ainda não se sentissem perfeita-
mente à vontade na presença de representantes dessas raças.
— O preconceito dos vertebrados é muito comum. — Graves co-
meçou a caminhar ao seu lado. Ficou em silêncio por um momento e
depois deu uma risada. — De acordo com Steven, que se considera im-
parcial, já que não tem nem coluna vertebral, nem exoesqueleto, somos
nós os forasteiros. Dos quatro mil duzentos e nove mundos conhecidos
que possuem vida, Steven afirma que esqueletos internos podem ser en-
contrados em apenas novecentos e oitenta e seis. Por outro lado, três
mil trezentos e onze são habitados por artrópodes invertebrados. Em um
concurso de popularidade em escala galáctica, Atvar H’sial, J’merlia ou
qualquer outro artrópode ganharia facilmente de você, de mim ou do
comandante Perry. E até de sua amiga, a professora Lang.
Rebka apressou o passo. Não adiantaria nada dizer a Julius Graves
que Steven às vezes o deixava irritado com sua mania de citar números.
Ele podia saber tudo que havia nos registros a respeito das raças do uni-
verso, mas precisava ficar se exibindo daquela forma?
Rebka não estava querendo admitir para si mesmo a verdadeira
causa do seu aborrecimento. Detestava estar com alguém que soubesse
muito mais do que ele, mas pior ainda era estar com um homem capaz
de ler seus pensamentos sem nenhum esforço. Ninguém devia saber que
ele estava começando a gostar de Darya Lang. Afinal, o próprio Rebka só
percebera isso quando a retirara do carro acidentado. Ela era mais do que
um incômodo, mais do que um agravante para os seus problemas com
101
Tremor e Max Perry.
Por que tinha vindo para Opala, complicando a vida de todos? Era
evidente que ali estava fora do seu elemento. Era uma cientista; devia ter
ficado no laboratório, fazendo pesquisas. Teriam que tomar conta dela.
Ele teria que tomar conta dela. E a melhor forma de fazer isso seria man-
tê-la em Opala enquanto ele visitava Tremor.
A tempestade nível cinco tinha passado e havia uma brecha nas
nuvens. Era quase meia-noite, mas não estava escuro. Amaranth se en-
contrava ainda mais próximo de Mandel. Estava alto no céu, suficiente-
mente grande para aparecer como um disco alaranjado. Mais dois dias e
o companheiro anão de Mandel começaria a projetar sombras.
Do outro lado do céu, perto do horizonte, estava Gargântua, come-
çando seu próprio mergulho em direção à fornalha de Mandel. Ainda era
pouco mais que um ponto rosado, mas já estava mais brilhante que todas
as estrelas. Em mais uma semana, o gigante gasoso revelaria a sua face,
um disco listrado de castanho e amarelo.
Rebka caminhou para um dos quatro prédios principais do espaço-
porto. Graves continuou a segui-lo.
— Está indo falar com Louis Nenda? — perguntou o conselheiro.
— Espero que sim. Que sabe a respeito dele? — Se Rebka não podia
se livrar de Graves, então talvez pudesse usar seus vastos conhecimentos.
— Apenas o que está no requerimento — respondeu Graves. —
Mais o que sabemos a respeito dos membros da Comunidade dos Zarda-
lus... que é menos do que gostaríamos. Os mundos da Comunidade não
são conhecidos pela sua cooperação.
O que podia ser considerado como um eufemismo, pensou Rebka.
Doze mil anos atrás, muito antes de os humanos começarem a
Expansão, os cefalópodes terrestres chamados zardalus tinham tentado
criar algo que nem os humanos nem os cecropianos haviam sido sufi-
cientemente tolos para tentar: a Comunidade dos Zardalus, um verda-
deiro império, mil planetas governados com mão de ferro por Genizee,
o planeta natal da raça dos zardalus. Tinha sido um fracasso retumbante.
Entretanto, talvez esse fracasso tivesse sido a lição necessária para que
humanos e cecropianos não cometessem o mesmo erro.
— Louis Nenda é basicamente humano — prosseguiu Graves —,
mas possui alguns implementos dos zardalus.
— Físicos ou mentais?
— Não sei. Seja o que for, não deve ser importante. Não há men-
ção de olhos na nuca ou nas pontas dos dedos, nem de hermafroditis-
102
mo, remoção dos ossos ou implante de membros. Nada de gigantismo
nem compactação. De acordo com o que diz no requerimento, ele é do
sexo masculino e tem peso e estatura normais. Naturalmente, existem
centenas de possíveis modificações que não apareceriam nesse tipo de
descrição.
“Quanto ao animal de estimação que está trazendo com ele, posso
lhe dizer ainda menos. É um himenopt, que, como certamente sabe, é
outro tipo de artrópode, embora não guarde muita semelhança com os
himenópteros da Terra. Mas se se trata de um brinquedo, um parceiro
sexual ou mesmo de um alimento para Nenda... acho que vamos ter que
esperar para ver.
Não vamos ter que esperar muito, pensou Rebka. A nave estava
na pista do espaçoporto e os ocupantes já tinham sido levados para um
dos prédios, para a inspeção sanitária. Como os testes para detectar en-
doparasitas e ectoparasitas levavam apenas alguns minutos, logo teriam
oportunidade de ver os recém-chegados.
Rebka e Graves se encaminharam para o local onde Max Perry e
três funcionários da Imigração já estavam à espera.
— Quanto tempo ainda vai levar? — perguntou Rebka.
Em vez de responder, Perry apontou para as portas duplas do setor
de descontaminação, que estavam começando a ser abertas.
Depois do que Graves dissera e do que o próprio Rebka havia imagi-
nado, Louis Nenda parecia surpreendentemente normal. Baixo, moreno e
musculoso, poderia se fazer passar por habitante de um dos mundos mais
densos do Círculo de Phemus. Caminhava com uma certa instabilidade,
provavelmente em consequência de meia dúzia de mudanças de gravida-
de nas últimas horas, mas parecia confiante e cheio de energia. Ao sair do
setor de descontaminação, olhou em torno, arrogantemente, com olhos
injetados. Trotando a seu lado, imitando seus movimentos de cabeça, ia
um pequeno alienígena. Ele parou quando viu o grupo de humanos.
— Kallik! — Louis Nenda puxou a coleira que estava presa do abdo-
me do himenopt. — Sente.
Em seguida, sem olhar para ninguém exceto Perry, disse:
— Bom dia, comandante. Tenho certeza de que meus testes vão
dar negativos. Os de Kallik também. Aqui estão meus papéis.
Os outros homens ainda estavam olhando para o himenopt. Julius
Graves já havia visto um em suas viagens aos planetas da Comunidade
dos Zardalus, mas os outros os conheciam apenas através de fotografias
e espécimes empalhados.
103
O alienígena não combinava com a reputação dos himenopts de
serem animais ferozes. Tinha menos da metade da altura de Louis Nenda;
a cabeça, pequena e lisa, era dominada por fortes mandíbulas e múlti-
plos pares de olhos, negros e brilhantes, ao longo de todo o perímetro.
Estavam em constante movimento, acompanhando independentemente
vários objetos.
O corpo do himenopt tinha forma de barril e estava coberto por
pêlos negros e curtos, com um centímetro ou dois de comprimento. Era a
valiosa himantel, uma pele muito dura, impermeável e resistente ao calor.
O que não estava visível era o ferrão amarelo, recolhido a sua bai-
nha, na extremidade do abdome. Ele era capaz de injetar neuro-toxinas,
cuja potência e composição o himenopt podia variar à vontade. Nenhum
dos soros usuais funcionava como antídoto. Também não estava visível
o sistema nervoso que proporcionava aos himenopts uma velocidade de
reação dez vezes maior que a dos humanos. Oito finas patas podiam fazê­
-lo percorrer cem metros em alguns segundos ou saltar a mais de quinze
metros em gravidade-padrão. A himantel era rara demais para ser muito
usada como peça de vestuário dos humanos, mesmo antes que os hime-
nopts fossem considerados uma espécie protegida.
— Bem-vindos ao sistema de Dobelle. — A voz de Perry dizia o
oposto de suas palavras. Estendeu a mão e pegou os documentos de
Louis Nenda. Folheou-os rapidamente. — O requerimento original pouco
dizia a respeito dos seus motivos para visitar Tremor. Vou encontrar maio-
res detalhes aqui?
— Afirmativo. — Os modos de Nenda eram tão afetados quanto
sua maneira de andar. — Estou interessado em ver de perto uma grande
maré terrestre, e isso quer dizer Tremor. Durante a Maré de Verão. Não
há nenhum problema, há?
— É arriscado ficar em Tremor durante a Maré de Verão. Mais ain-
da este ano, com Amaranth tão próximo.
— Meu amigo, não me venha falar em riscos. — Nenda inflou o
peito. — Eu e Kallik adoramos o perigo. Estávamos em Rocambole quan-
do houve aquela erupção estelar. Passamos nove dias em um carro aé-
reo, mantendo-nos na sombra de Rocambole para não sermos assados.
Saímos de lá sem uma queimadura. Antes disso, estávamos a bordo da
penúltima nave a sair de Castelinho. — Ele riu. — Sorte a nossa. A última
nave não tinha suprimentos e levou quarenta dias para chegar a um Nó
de Bose. Metade dos passageiros teve que comer a outra metade para so-
breviver. Mas, se quer ouvir falar de perigo de verdade, deixe-me contar­-
104
lhe o que aconteceu em Toca de Rato...
— Depois que tivermos oportunidade de examinar o seu pedido —
interrompeu Perry, olhando para o outro de cara feia. Embora conhecesse
Nenda havia apenas um minuto, tinha certeza de que ele não aceitaria
facilmente um não como resposta. — Vou lhe mostrar seus alojamentos
temporários. Depois, alguns de nós vão se reunir para discutir o assunto.
Ele precisa de uma alimentação especial? — perguntou, apontando para
o himenopt.
— Ela. Kallik é fêmea. Não, ela é onívora. Como eu. — Nenda riu
novamente. — Ei, espero ter entendido errado. Que história é essa de “se
reunir para discutir o assunto”? Vim de muito longe para ver esse fenô-
meno. Longe demais para voltar de mãos abanando.
— Vamos ver o que é possível fazer. — Perry olhou de soslaio para
Kallik. Quando o tom de voz de Louis Nenda se tornara mais agressivo,
alguns centímetros de ferrão amarelo tinham se projetado para fora da
bainha. — Estou certo de que concordamos em uma coisa: o senhor não
quer ir a Tremor para morrer em um acidente.
— Não se preocupe com a nossa segurança. Não somos fáceis de
matar. Limite-se a aprovar meu pedido, que de Tremor cuido eu.
Talvez ele estivesse certo. Rebka ficou olhando enquanto Perry se
afastava com o recém-chegado. Tremor era perigoso, quanto a isso não
havia dúvida, mas, se ter autoconfiança ajudava em alguma coisa, Louis
Nenda voltaria de lá são e salvo. Talvez fosse Tremor que precisava de
proteção.

— Gostaria de ouvir a sua recomendação, comandante.


Mas Perry se recusa a me olhar nos olhos, pensou Rebka. Ele acha
que já sabe qual vai ser a minha decisão. Mas está errado... porque nem
eu mesmo sei.
— Sou contra qualquer visita durante a Maré de Verão, o senhor
sabe. — Perry estava muito pálido, e falava tão baixo que o outro quase
não conseguia ouvi-lo.
— Qualquer visita?
— Isso mesmo.
— Sabe que Graves não está obrigado a acatar nossas decisões? Ele
tem autoridade para ir caçar as gêmeas Carmel em Tremor na hora que
quiser.
— Ele tem autoridade para ir, e nós dois achamos que acabará indo
de qualquer maneira. Mas a autoridade não servirá para proteger-lhe a
105
vida. Durante a Maré de Verão, Tremor se torna um planeta assassino. —
Perry levantou a voz para pronunciar a última palavra.
— Muito bem. E quanto aos outros? Estão dispostos a pagar uma
soma considerável ao nosso governo pelo privilégio de visitar Tremor.
— Posso aprovar essas visitas... mas só para depois da Maré de
Verão. Darya Lang pode estudar o Cordão Umbilical sem descer à super-
fície do planeta; Atvar H’sial terá o resto do ano para estudar o efeito das
tensões ambientais sobre as espécies.
— Eles não vão concordar. Proíba-os de visitar Tremor durante a
Maré de Verão e irão embora imediatamente, sem pagar nada. E que me
diz de Louis Nenda? — Perry finalmente encarou Rebka, e sua voz assu-
miu um tom diferente. Chegou a sorrir. — Ele está mentindo, não está?
— Acho que sim.
— E não está sendo muito convincente.
— Está pouco ligando para isso. Deveria ter escolhido uma história
mais plausível. Ele me parece o último homem neste braço da espiral que
se interessaria por marés terrestres. Sinto-me tentado a pedir que Steven
Graves lhe faça algumas perguntas técnicas a respeito. Mas isso não resol-
veria nada. Ele viajou muito para chegar aqui, quase novecentos anos-luz,
a não ser que esteja mentindo quanto a isso também. Pelo menos, não há
dúvida de que vem da Comunidade dos Zardalus, e isso quer dizer quatro
Nós de Bose, no mínimo. Tem algum palpite quanto aos seus verdadeiros
motivos?
— Não faço a menor idéia. — Perry havia se aquietado de novo e
estava olhando para o vazio. — Por outro lado, não acho que seja o único
que está mentindo. O serviço de informações do Círculo confirmou que
Darya Lang é uma especialista em artefatos dos Construtores, mas isso
não é razão para ela querer visitar a superfície de Tremor. Poderia fazer o
seu trabalho aqui em Opala ou no Cordão Umbilical. Entretanto, o fato de
estar ou não dizendo a verdade não tem nenhuma influência sobre minha
opinião. O senhor pediu uma recomendação, e eu a estou fornecendo:
negue o pedido de Lang, negue o pedido de Atvar H’sial, negue todos os
pedidos. Não permita que ninguém visite Tremor até a Maré de Verão
passar. E se Graves insistir o problema será dele.
— Você deixaria que ele visitasse Tremor sozinho?
— Claro que não! — Perry parecia genuinamente chocado. — Seria
o mesmo que assassiná-lo. Eu iria com ele.
— É o que eu imaginava. Eu também vou.
Rebka tinha chegado a uma decisão. E pelos motivos errados, pen-
106
sou. Se eu permitir que visitem Tremor, talvez descubra por que todos
estão tão ansiosos para ir lá. Mas se proibir as visitas terei uma boa idéia
do quanto isso lhes é importante. Provavelmente, forçarei alguns deles a
agir. E este é o tipo de situação que estou preparado para enfrentar.
— Comandante Perry, minha decisão está tomada — declarou. —
Concordo com a sua recomendação. — A expressão de surpresa no rosto
de Perry o fez sorrir internamente. — Vamos proibir o acesso a Tremor até
passar a Maré de Verão.
— Tenho certeza de que esta é a decisão correta. — Perry tinha um
excelente autocontrole, mas era impossível esconder o alívio que estava
sentindo.
— O que nos deixa ainda uma decisão pela frente — disse Rebka.
— Talvez devêssemos tirar a sorte. Quem vai dar as más notícias a Darya
Lang e a Atvar H’sial? Pior ainda, quem vai contar a Louis Nenda?

107
ARTEFATO: LENTE
N° de série: 1.023
Coordenadas galácticas: 29.334,229/18.339,895/-831,22 Nome: Lente
Conjunto estrela/planeta: Nenhum; situada no espaço vazio
Nó de Bose mais próximo: 108
Idade estimada: 9,138 ± 0,56 megaanos
História da exploração. A história da Lente talvez jamais venha a ser per-
feitamente conhecida. Como fica em território da Comunidade dos Zardalus,
todos os registros mais antigos foram perdidos com o colapso do Império
dos Zardalus. Entretanto, como os zardalus sempre se interessaram mais pe-
las ciências biológicas do que pelas ciências físicas, é pouco provável que
tenham tentado explorar a Lente de forma sistemática
A história conhecida da Lente começa com sua descoberta, em 122 E.,
mas por muito tempo foi considerada como um objeto extra-galáctico. Em
388 E., através de uma análise dos efeitos de paralaxe, os cientistas verifica-
ram que estava muito mais próxima do que se pensava, em nosso braço da
galáxia. A Lente foi visitada pela primeira vez por Kusra, em 2101 E. (em uma
viagem apenas de ida), mas ele não conseguiu obter nenhuma prova palpável
de sua existência Em 2377 E., Paperl e Ula H’sagta mediram a mudança de
polarização de um feixe de laser ao passar pela região da Lente, confirmaram
sua localização e estimaram o seu tamanho
Descrição: A Lente é uma região focalizadora do espaço com 0,23 ano­
-luz de diâmetro e espessura praticamente nula (medidas realizadas para
grandes ângulos de incidência estabeleceram um limite superior de um mi-
crômetro). O efeito de focalização ocorre apenas para raios luminosos com
comprimentos de onda entre 0,110 e 2,335 micrometros e ângulos de inci-
dência com um desvio menor que 0,077 radianos em relação à incidência
normal ao plano da Lente. Existem porém, alguns indícios de que a Lente
interage fracamente com radiações de comprimento maior que 0,1 ano-luz
(a baixa energia dessas radiações torna difícil separá-las da radiação cósmica
de fundo) As ondas gravitacionais, as partículas e objetos e todas as outras
ondas eletromagnéticas aparentemente atravessam a Lente sem serem afeta-
das. A focalização é perfeitamente acromática para todos os comprimentos
de onda na faixa mencionada acima. Nessa faixa, a Lente se comporta como
um dispositivo focalizador limitado por difração com uma abertura efetiva
de 0,22 ano-luz e uma distância focal de 427 anos-luz. Com sua ajuda, foi
possível observar a superfície de planetas em galáxias localizadas a mais de
cem milhões de parsecs.
108
Estrutura: Infelizmente, quanto à estrutura, só é possível dizer de que
materiais a Lente não é feita. A ciência e a tecnologia de hoje não fornecem
nenhuma indicação quanto à sua possível composição.
A Lente não é feita de nenhuma partícula conhecida. Não se trata de
uma singularidade no espaço-tempo, já que uma singularidade afetaria todos
os comprimentos de onda da mesma forma, além de agir também sobre a
matéria. Pela mesma razão, não pode ser feita de grávitons. Também não
pode possuir uma estrutura de superfibras, pois não são observadas emissões
espontâneas ou induzidas.
Finalidade: Desconhecida. A Lente representa a macroengenharia dos
Construtores em sua forma mais espetacular e misteriosa. O fato de agir
apenas sobre uma faixa de comprimentos de onda levou alguns estudiosos a
especular que esta faixa corresponderia à faixa de sensibilidade espectral dos
olhos dos Construtores. Como não existem provas de que os Construtores
possuíam órgãos equivalentes a olhos, esta conjectura não deve ser levada
muito a sério.
Também foi sugerido por alguns que a Lente modula a luz que a atra-
vessa, de uma forma ainda desconhecida. Se for esse o caso, o fato de focali-
zar a luz seria apenas um subproduto acidental do seu verdadeiro propósito.

— Do Catálogo Lang Universal de Artefatos


Quarta Edição

109
Capítulo 10

Maré de Verão menos dezoito.

— Entre — gritou Darya automaticamente quando ouviu alguém


bater à porta.
Viu quando a porta começou a se abrir.
— Entre — repetiu. Então se deu conta de que o visitante já havia
entrado, pelo menos parcialmente. Apenas trinta centímetros acima do
chão, uma cabeça negra, com um círculo de olhos muito vivos, olhava
para ela.
— Ela não entende a sua língua — disse uma voz impaciente. —
Conhece apenas algumas palavras de comando na linguagem humana.
Em frente.
Um homem moreno e atarracado, de cara amarrada, entrou na sala
com passos largos, precedido por um pequeno ser alienígena. Um cabres-
to que envolvia o tórax da criatura estava amarrado a um chicote na mão
do homem.
— Meu nome é Louis Nenda. Esta aqui — ele apontou para baixo
com o chicote — é Kallik. Ela me pertence.
— Olá. Sou Darya Lang.
— Eu sei. Precisamos conversar.

110
Ele era ainda pior do que os outros. Darya estava começando a se
aborrecer com a falta de modos dos habitantes do Círculo de Phemus.
Mas aquilo era contagioso.
— Pode ser que você precise conversar — disse ela. — Eu, não.
Passe bem.
Inesperadamente, ele sorriu.
— Espere aí. Onde podemos conversar?
— Aqui mesmo. Vá falando.
Ele fez que não com a cabeça e apontou para J’merlia. O lo’tfiano
tinha se recuperado o suficiente para sair do hospital, mas ainda preferia
dormir em uma rede.
— E o inseto?
— Não há problema. — Ela se curvou para examinar a membrana
ocular. — Está descansando. Não vai nos incomodar.
— Não me interessa o que ele está fazendo. O que tenho a dizer
não pode ser dito na frente desse inseto.
— Então não estou interessada em ouvir. J’merlia não é um inseto.
É um lo’tfiano, e é tão racional quanto você.
— O que não quer dizer muita coisa. — Nenda sorriu novamente.
— Há quem diga que sou mais louco que um varniano. Seja boazinha,
precisamos conversar.
— Pode me dar alguma razão para isso?
— Claro. Se quiser, eu lhe dou mil duzentas e trinta e sete razões.
Darya olhou para ele, surpresa.
— Está falando dos artefatos dos Construtores? Só foram descober-
tos até hoje mil duzentos e trinta e seis.
— Eu disse razões. Aposto que nós dois podemos pensar em uma
razão muito boa para conversarmos que não seja um artefato.
— Não sei o que está querendo dizer. — Mas Darya sentiu que,
como sempre, seu rosto traidor a denunciara.
— Kallik, fique. — Louis Nenda acrescentou uma série de assovios
e rosnados a suas palavras. Voltou-se para Darya. — Você entende hime-
nopt? Eu achava que não. Disse a ela para ir até ali e ficar de olho no inse-
to. Vamos lá para fora. Ela nos chamará se ele acordar e precisar de você.
Ele soltou o chicote do cabresto de Kallik e saiu porta afora, sem ao
menos olhar para trás para ver se a moça o estava seguindo.
Que é que ele sabia? Que é que ele podia saber? Pela lógica, ab-
solutamente nada. Mesmo assim, Darya se viu caminhando ao lado do
homem na superfície úmida da Funda.
111
O serviço de meteorologia estava prevendo outra grande tempes-
tade para o dia seguinte, mas no momento o vento se limitava a breves
rajadas quentes e úmidas. Mandel e Amaranth estavam juntos no céu,
manchas indistintas no céu nublado. O brilho aparente de Amaranth au-
mentava com rapidez. As plantas verdes haviam assumido uma tonalida-
de avermelhada. Louis Nenda internou-se confiantemente no mato. Ele
não sabe das tartarugas gigantes, pensou Darya. Mas no momento elas já
deviam se achar todas no mar, prontas para enfrentar a Maré de Verão.
— Já estamos bem longe — gritou Darya, afinal. — Diga-me o que
quer.
Ele se voltou e caminhou até onde a moça estava.
— Tem razão, aqui está bem. Só não queria que ninguém escutasse
a nossa conversa. Acho que concorda comigo.
— Por mim, tanto faz. Não tenho nada a esconder.
— É mesmo? — Inclinou a cabeça a fim de sorrir para a moça, que
era meia cabeça mais alta que ele. — Engraçado, pensei que tivesse. Você
é Darya Lang, da Quarta Aliança, especialista na história e na tecnologia
dos Construtores.
— Não sou uma especialista, mas me interesso pelos Construtores.
Isso não é segredo.
— Claro que não. E é tão famosa que os especialistas nos Cons-
trutores da Comunidade dos Zardalus sabem de tudo a respeito do seu
trabalho e do Catálogo Lang. Vivem convidando você para comparecer
a congressos e conferências, não é mesmo? Mas você nunca aceitou os
convites. Pelo menos, foi assim durante uma dúzia de anos. Quem quises-
se falar com Darya Lang tinha que viajar até o Portal da Sentinela. Só que,
de repente, você saiu de lá. Veio para Dobelle.
— Quero examinar de perto o Cordão Umbilical.
— Claro. Só que, de acordo com o Catálogo Lang, número de série
279...
— Número de série 269 — corrigiu Darya, automaticamente.
— Desculpe. Número de série 269. Seja como for, o que está es-
crito no catálogo é o seguinte: “O Cordão Umbilical é um dos artefatos
mais simples e fáceis de compreender; por esse motivo, não é de muito
interesse para os estudiosos da tecnologia dos Construtores.” Lembra-se
de ter escrito isso?
— Claro que me lembro. E daí? Não tenho o direito de mudar de
idéia? Não tenho o direito de viajar para onde quiser?
— Tem. Acontece que os seus chefes, lá em Miranda, cometeram
112
um erro. Deviam ter dito a todo mundo que você havia partido para co-
nhecer o Tântalo, o Casulo, o Archote ou qualquer outra das obras real-
mente grandes dos Construtores. Ou simplesmente que estava viajando
de férias.
— Que foi que eles disseram? — Sabia que não devia fazer a per-
gunta, mas precisava saber. Que é que aqueles idiotas no governo central
haviam aprontado?
— Não disseram nada. Fecharam-se em copas e informaram ape-
nas que você ficaria ausente por alguns meses. O tipo da coisa que só
serve para despertar suspeitas.
Darya estava se sentindo aliviada. O homem, embora intrometido,
não sabia de nada, e não era por culpa dela que ele estava ali.
— Então vocês me seguiram até aqui. Muito bem. O que deseja?
— Eu não disse que nós a seguimos, professora. — Ele transformou
o título em um insulto. — Não, senhora. Viríamos para cá de qualquer
maneira. Mas, quando descobrimos que também estava aqui, achei que
tínhamos que nos entender. Venha comigo.
Louis Nenda segurou Darya pelo braço e entrou com ela no meio
do mato. Chegaram a um emaranhado de cipós que formavam uma espé-
cie de banco comprido. Apertou-lhe o braço com mais força, obrigando-a
a sentar-se. As pernas da moça tremiam.
— Tínhamos que nos entender — repetiu. — E você sabe por que,
não sabe? Não adianta fingir, Darya Lang. — Sentou-se ao lado dela e co-
locou a mão no seu joelho. — Vamos, está na hora das confissões. Você e
eu temos coisas para contar um ao outro, querida. Coisas muito íntimas.
Quer que eu seja o primeiro?
Se os resultados são tão óbvios para mim, por que outros não che-
garam à mesma conclusão?
Darya lembrou-se de que tivera esse pensamento, muito antes de
viajar para Dobelle. E finalmente estava em condições de responder. Ou-
tras pessoas haviam chegado à mesma conclusão. O único mistério era
que uma dessas pessoas fosse alguém tão inculto, grosseiro e desprepa-
rado como Louis Nenda.
Ele não era homem de fazer rodeios.
— Artefatos dos Construtores, espalhados por todo o braço da
espiral. Alguns no seu território, lá na Aliança, outros na Federação de
Cecrópia, outros na região em que vivo, na terra dos zardalus. E um aqui
mesmo, o Cordão Umbilical.
— O seu catálogo fala de todos eles. E você usa um calendário ga-
113
láctico universal para indicar a ocasião em que houve uma mudança em
algum dos artefatos. Mudança de aparência, de tamanho, de função etc.
— Fiz o melhor que pude. — Darya não estava admitindo nada que
não se achasse escrito no catálogo. — Algumas datas não estavam regis-
tradas com a precisão necessária. Tenho certeza de que outros eventos
simplesmente não foram observados por ninguém. E desconfio que algu-
mas supostas mudanças na verdade não ocorreram.
— Mas você relata uma média de trinta e sete mudanças por arte-
fato durante um período de observação de três mil anos... nove mil anos
para os artefatos situados em território cecropiano, porque eles come-
çaram a observar os artefatos muito antes das outras raças. E não existe
nenhuma correlação entre as datas.
— É isso mesmo. — Darya não estava gostando daquele sorriso.
Desviou os olhos.
A pressão dos dedos de Nenda sobre o seu joelho aumentou, Ele
tinha uma mão pesada e cabeluda.
— Estou quase tocando no ponto crucial, não é mesmo? Não fique
aflita, querida. Chego lá num minuto. Não havia correlação entre as da-
tas... mas em um dos seus artigos você abordou uma hipótese ousada.
Lembra-se?
Por quanto tempo conseguiria protelar o inevitável? As instruções
da legada Pereira tinham sido bem claras: não devia contar a ninguém
fora da Aliança o que havia descoberto... mesmo que a pessoa aparente-
mente já soubesse de tudo.
Empurrou a mão de Nenda para longe da sua perna.
— Fiz muitas hipóteses ousadas nos meus artigos.
— Foi o que me disseram. Também me disseram que tem uma ex-
celente memória. De qualquer forma, vou reavivá-la. Você disse que a
maneira correta de examinar possíveis correlações entre as ocasiões em
que ocorreram mudanças nos artefatos não era através do exame das da-
tas dos eventos segundo o calendário galáctico universal, e sim pensan-
do nessas mudanças como os efeitos de uma onda que se propagasse
radialmente a partir de um ponto de origem, viajando, como uma onda
eletromagnética, com a velocidade da luz. Assim, dez anos-luz depois que
algo acontecesse a um artefato, informações a respeito dessa mudança
estariam disponíveis em todos os pontos da superfície de uma esfera com
o centro na posição do artefato e dez anos-luz de raio. Lembra-se de ter
escrito isso?
Darya deu de ombros.
114
— Duas dessas esferas continuam a se expandir até se encontrarem
— prosseguiu Louis. — Primeiro, elas se tocam em apenas um ponto. De-
pois, a interseção se transforma em uma circunferência, cujo raio cresce
sem parar. No caso de três esferas, o resultado é diferente. Quando as três
esferas crescem e se encontram, só existem dois pontos que pertencem
simultaneamente à superfície das três esferas. Quatro ou mais esferas
geralmente não possuem pontos em comum. E quando você chega a mil
duzentos e trinta e seis artefatos, com uma média de trinta e sete mu-
danças para cada um, está falando de quase cinquenta mil esferas, todas
com centro em um dos artefatos e se expandindo com a velocidade da
luz. Qual é a probabilidade de que mil duzentas e trinta e seis superfícies
esféricas, uma para cada artefato dos Construtores, se encontrem em um
único ponto? Deveria ser desprezível, pequena demais para ser conside-
rada. Mas se as superfícies se encontrassem, desafiando as probabilida-
des, que aconteceria?
“Parece uma pergunta irrelevante, concorda? Mas não é difícil pro-
gramar um computador para calcular as interseções. Sabe qual foi a res-
posta do computador, professora Lang?
— Por que deveria saber? — Ela sabia que era inútil, mas estava
disposta a negar até o fim.
— Porque está aqui. Droga, chega de fingimento! Quer que eu lhe
explique o que está farta de saber?
A mão dele estava na coxa da moça, mas foi o seu tom de voz que
finalmente a deixou suficientemente irritada para reagir.
— Não precisa me explicar nada, seu... seu anãozinho indecente!
Pode ter me seguido até aqui, mas isso foi tudo que fez... seguir-me! A
idéia foi toda minha! E tire essa mão suja da minha perna!
Ele estava sorrindo, triunfante.
— Eu não disse que não tinha sido idéia sua. E se não quer ser mi-
nha amiga, paciência. Mas as superfícies todas se encontram, não é mes-
mo? Até o último algarismo significativo! No mesmo lugar, exatamente na
mesma hora. E nós dois sabemos qual é o lugar. A superfície de Tremor,
durante a Maré de Verão. É por isso que você está aqui, é por isso que
estou aqui, é por isso que H’sial e todos os outros estão aqui!
Levantou-se.
— E agora os idiotas dizem que não podemos ir até lá! Nenhum de
nós!
— O quê? — Darya pôs-se de pé de um salto.
— Ainda não sabia? Aquele cabeça-dura do Perry me contou faz
115
uma hora. Nada de Tremor para você, nada de Tremor para mim, nada de
Tremor para os insetos. Viajamos mil anos-luz para ficar aqui sentados e
perder o espetáculo.
Bateu com o chicote preto no tronco de um grande bambu.
— Eles dizem que não podemos ir. Para o inferno com eles! Agora
você compreende por que temos que nos entender, Darya Lang. Precisa-
mos juntar nossos conhecimentos... a menos que você queira deixar que
aqueles idiotas nos digam o que fazer!
A matemática é universal. Entretanto, não se pode dizer o mesmo
da maioria das coisas.
Darya chegou a essa conclusão depois de mais meia hora de con-
versa com Louis Nenda. Ele era um homem detestável, alguém que a faria
mudar de caminho para evitar. Mas depois de compararem o que sabiam
(cautelosamente, de má vontade, cada um tentando receber mais do que
oferecia), chegaram à conclusão de que a concordância era impressio-
nante. Era também inevitável. Partindo do mesmo conjunto de eventos
e do mesmo conjunto de localizações dos artefatos, só havia um ponto
no tempo e no espaço que satisfazia a todos os dados. As pequenas di-
ferenças no cálculo da hora e lugar do evento final podiam ser atribuídas
aos diferentes critérios usados para minimizar os erros do ajuste, ou às
diferentes tolerâncias na convergência dos cálculos não-lineares.
Haviam adotado uma abordagem quase idêntica e usado tolerân-
cias e fatores de convergência semelhantes. Os resultados da moça e de
Louis Nenda concordavam até o décimo quinto algarismo significativo.
Ou, por outra, pensou Darya depois de mais quinze minutos, os
seus resultados concordavam com os da pessoa que fizera os cálculos
para Nenda. Ele não podia ter feito o trabalho sozinho. Tinha apenas uma
vaga idéia dos métodos utilizados. Podia ser o chefe, mas outra pessoa
analisara os dados para ele.
— De modo que concordamos quanto à hora, e coincide com a da
Maré de Verão — disse Nenda. Parecia aborrecido. — E tudo que sabe-
mos é que fica em algum ponto da superfície de Tremor? Por que não
pode definir o local com maior precisão? Era isso que eu esperava quando
propus que comparássemos nossos resultados.
— Espera que eu faça milagres? Estamos falando de distâncias de
milhares de anos-luz, quatrilhões de quilômetros, e de períodos de mi-
lhares de anos. E acabamos com uma incerteza de menos de duzentos
quilômetros quanto ao local e de menos de trinta segundos quanto à
hora. Acho que é um bom trabalho. Pensando melhor, acho que já é um
116
milagre.
— Talvez tenha razão. — Ele bateu com o chicote na própria perna.
— E decididamente vai ocorrer em Tremor, e não aqui em Opala. O que
responde a outra dúvida que eu tinha.
— A respeito dos Construtores?
— Os Construtores que se danem! Estou falando dos insetos. Que
razão alegaram para quererem visitar Tremor?
— Atvar H’sial diz que pretende estudar o comportamento de for-
mas de vida quando submetidas a pressões ambientais extremas.
— Hum! Pressões ambientais, uma ova! — Começou a caminhar de
volta para o alojamento. — Acredite nisso, e daqui a pouco estará acre-
ditando em contos de fadas. Ela está atrás da mesma coisa que nós. Está
atrás dos Construtores. Não se esqueça de que também é uma especia-
lista neles.
Louis Nenda podia ser um tipo nojento, mas Darya se viu forçada a
concordar com ele. Atvar H’sial chegara a Dobelle com um plano alterna-
tivo, como se soubesse de antemão que os pedidos de autorização para
visitar Tremor seriam recusados.
— E Julius Graves? Ele também sabe?
Nenda negou com a cabeça.
— O velho cabeção? Não. Ele é um mistério. Normalmente, eu teria
dito: claro, ele está aqui pela mesma razão que nós. Mas ele é um conse-
lheiro, e mesmo que você não acredite em metade do que dizem sobre
eles (eu, pessoalmente, não acredito), nunca consegui pegar um conse-
lheiro numa mentira. E você?
— Nunca. E ele não esperava ter que ir a Tremor, quando veio ao
sistema de Dobelle. Pretendia ficar em Opala. Pensava que as gêmeas que
procura estivessem aqui.
— Então é provável que esteja dizendo a verdade. Seja como for,
não precisamos nos preocupar com ele. Se quiser viajar para Tremor, não
haverá como impedi-lo. Os palhaços daqui não têm autoridade sobre ele.
— Estavam de volta ao alojamento e Nenda parou do lado de fora da
porta. — Muito bem, tivemos nossa conversinha. Agora vamos à pergun-
ta mais importante. O que vai acontecer em Tremor durante a Maré de
Verão?
Darya olhou para ele. Será que esperava que ela respondesse?
— Não sei.
— Vamos, não adianta vir de novo com evasivas. Você deve saber...
caso contrário, não viria de tão longe.
117
— Você está enganado. Se eu soubesse o que está para acontecer,
ou pelo menos tivesse alguma idéia plausível, jamais deixaria o Portal da
Sentinela. Gosto muito de lá. Você também veio de longe. Que é que você
acha que vai acontecer?
Nenda parecia frustrado.
— Sei lá. Ei, você é que é a especialista. Se você não sabe, pode ter
certeza de que eu também não sei. Está falando sério? Não faz a menor
idéia?
— Tenho apenas algumas idéias vagas. Vai ser alguma coisa grande.
Vai acontecer em Tremor. E vai nos revelar muito a respeito dos Constru-
tores. É tudo.
— Droga! — Ele bateu com o chicote na terra molhada. Darya teve
a impressão de que, se Kallik estivesse ali, receberia aquela chicotada. —
E agora, que vamos fazer, professora?
Darya Lang estava se fazendo a mesma pergunta. Nenda parecia
disposto a colaborar, e a moça se deixara atrair pelo desejo de conhecer
novos fatos e teorias a respeito dos Construtores. Entretanto, o homem
parecia não ter nada de novo... ou, pelo menos, nada que estivesse dis-
posto a revelar. E ela já havia mais ou menos se comprometido a trabalhar
com Atvar H’sial e J’merlia. Não podia trabalhar com ambas as partes.
Mesmo que não tivesse concordado com nada de definido, não podia
contar a Louis Nenda a conversa que tivera com a alienígena.
— Está propondo que trabalhemos em conjunto? Porque, se está...
Ela não precisou terminar. Nenda jogou a cabeça para trás e deu
uma sonora gargalhada.
— Menina, por que eu faria uma coisa dessas? Você acaba de me
dizer que não sabe de nada!
— Ora, pelo menos trocamos informações.
— É verdade. Nisso você é muito boa. Foi isso que a fez famosa. In-
formações e teorias. Mas sabe mentir e trapacear? Sabe agir? Aposto que
não. Pois é disso que vai precisar para chegar a Tremor. E, pelo que sei, a
ida a Tremor não vai ser nenhum piquenique. Vou estar muito ocupado
lá. Acha que teria tempo de cuidar de você? Não, obrigado, queridinha.
Nesse jogo, vai ser cada um por si.
Antes que a moça tivesse tempo de responder, ele saiu andando
na frente, entrou no prédio e foi para a sala de onde haviam saído. Kallik
e J’merlia ainda estavam lá, deitados no chão, com as pernas múltiplas
entrelaçadas, trocando rosnados e assovios.
Louis Nenda puxou a himenopt bruscamente pelo cabresto, que
118
amarrou ao chicote.
— Vamos andando. Eu lhe disse para não brigar! Temos trabalho a
fazer. — Voltou-se para Darya. — Prazer em conhecê-la, professora. Vejo­
-a em Tremor?
— Claro que sim, Louis Nenda. — A voz de Darya estava trêmula de
raiva. — Pode contar com isso.
Ele deu uma risada irônica.
— Ótimo. Vou reservar um drinque para você lá. Se Perry estiver
com a razão, vamos precisar de um.
Puxou o chicote, arrastando Kallik para fora do aposento. Fumegan-
do, Darya aproximou-se de J’merlia, que começava a se levantar.
— Como está Atvar H’sial?
— Muito melhor. Estará totalmente recuperada em mais um dia de
Dobelle.
— Ótimo. Diga a ela que decidi aceitar a proposta. Farei tudo que
discutimos. Estou pronta para viajar para o lado de Tremor assim que ela
puder.
— Vou contar a ela. É uma boa notícia. — J’merlia chegou mais
perto, estudando a expressão no rosto da moça. — Parece que você teve
uma experiência desagradável, Darya Lang. Aquele homem tentou ma-
chucá-la?
— Não. Pelo menos, não fisicamente. — Mesmo assim, me ma-
chucou, pensou. — Ele me deixou zangada e triste. Sinto muito, J’merlia.
Ele queria conversar em particular, por isso fomos lá para fora. Pensei
que você estivesse dormindo. Não podia imaginar que seria atacado por
aquele animal horroroso.
J’merlia olhou para ela e sacudiu a cabeça de louva-a-deus, em um
gesto que aprendera com os humanos.
— Atacado? Por quem? — Apontou para a porta. — Pela himenopt?
— Isso mesmo.
— Não fui atacado. Kallik e eu estávamos começando uma proto-
conversa... tentávamos aprender a língua um do outro.
— Língua? — Darya pensou no cabresto e no chicote. — Está me
dizendo que aquela coisa pode falar! Que não é um simples animal?
— Professora Lang, Kallik certamente é capaz de falar. Ela nunca
teve oportunidade de aprender outras línguas além da que é falada pelos
himenopts, porque não teve muito contato com outras raças e o dono
nunca a encorajou. Mas está aprendendo. Começamos com menos de
cinquenta palavras em comum; agora temos mais de cem. — J’merlia
119
dirigiu-se para a porta, ainda puxando da perna ferida. — Com licença,
professora. Preciso ir agora. Atvar H’sial pode estar precisando de mim. É
uma pena que Kallik esteja de partida, mas talvez a gente tenha a oportu-
nidade de conversar de novo quando eles chegarem.
— Chegarem? Para onde estão indo?
— Para o mesmo lugar que todo mundo, ao que parece. — J’merlia
parou na porta. — Para Tremor. Não sabia?

120
Capítulo 11

Maré de Verão menos treze.

A resistência violenta pode ser um problema, mas a resistência


não-violenta às vezes é mais difícil de enfrentar.
Hans Rebka se sentia como um lutador de boxe, preparado para
se defender de um soco que não vinha. Inconscientemente, ainda estava
esperando.
— Eles não protestaram? — perguntou.
Max Perry fez que sim com a cabeça.
— Claro. Pelo menos, Louis Nenda protestou. Mas depois disse que
estava cheio do sistema de Dobelle, que nós podíamos pegar o reque-
rimento e enfiar você sabe onde e que daria o fora daqui o mais cedo
possível. Já foi embora.
— E Darya Lang? E Atvar H’sial?
— Darya não disse nada. E é difícil saber o que Atvar H’sial está
pensando, mas as palavras de J’merlia não foram muito contundentes.
Eles foram curtir a decepção em outra Funda. Há dois dias que não os
vejo. Para ser franco, não tive tempo para me ocupar com eles. Acha que
devíamos estar preocupados?
Os dois homens esperavam enquanto a cápsula que os levaria a

121
Tremor era acoplada ao Cordão Umbilical. Estavam levando a própria ba-
gagem, uma pequena mala de mão cada um. Julius Graves achava-se ao
lado do carro aéreo que os trouxera do lado das estrelas, pegando duas
pesadas malas.
Rebka refletiu a respeito da pergunta que Perry lhe fizera. Sua mis-
são em Dobelle envolvia apenas a situação de Max Perry. Em princípio,
não tinha nada a ver com membros de outras raças ou a forma como
eram tratados. Entretanto, do ponto de vista da população de Opala, ele
era um funcionário graduado e tinha as obrigações inerentes ao seu car-
go. Recebera uma mensagem em código do quartel-general do Círculo
pouco antes de deixarem o lado das estrelas, mas não tinha muita espe-
rança de que a mensagem o auxiliasse, fosse qual fosse o seu teor. Em
geral, conselhos e instruções vindos de longe serviam mais para agravar
os problemas do que para resolvê-los.
— Eles deviam ter protestado com mais veemência — disse, afi-
nal. — Especialmente Louis Nenda. Acha que ele poderia partir de Opala
e tentar pousar em Tremor sem permissão? Afinal, chegou aqui na sua
própria nave.
— Não podemos impedi-lo de tentar. No entanto, a menos que sua
nave tenha sido projetada para dispensar espaçoportos, vai ter proble-
mas. Pode ser até que consiga descer em Tremor, mas não sairá mais de
lá.
— Que me diz de Darya Lang e Atvar H’sial?
— Impossível. Elas não dispõem de uma nave e jamais conseguirão
alugar um modelo para viagens interplanetárias. Podemos esquecê-las.
Perry hesitou. Não estava muito seguro do que acabara de dizer.
Havia aquela sensação no ar, a sensação de calma antes de uma grande
tempestade. E não eram só as nuvens de chuva que ameaçavam Opala
nas próximas vinte e quatro horas.
Era a Maré de Verão, pendendo sobre tudo. Faltando apenas treze
dias de Dobelle, Mandel e Amaranth estavam muito grandes e brilhantes.
A temperatura média já subira cinco graus e as nuvens pareciam feitas de
cobre derretido. A atmosfera de Opala havia mudado nas últimas doze
horas. Estava carregada de um gosto metálico que combinava com a cor
do céu. A poeira no ar deixava os lábios secos, os olhos ardendo, o nariz
irritado. Enquanto a maré fazia o fundo do mar aproximar-se da super-
fície, terremotos submarinos e erupções despejavam gases e poeira na
atmosfera.
Julius Graves finalmente conseguira levar as duas malas para o de-
122
pósito de bagagem que ficava no piso inferior do carro do Cordão Umbili-
cal. Aproximou-se dos outros dois homens e olhou para o céu.
— Outra tempestade vem aí — disse. — Uma boa hora para sair-
mos de Opala.
— Mas uma hora péssima para visitarmos Tremor — observou Per-
ry.
Entraram no carro. Perry usou seu cartão de identificação e digitou
uma complexa sequência de comandos.
Os três homens mantiveram uma formalidade incômoda enquan-
to a subida começava. Quando Perry informara a Graves que o acesso a
Tremor estava proibido até passar a Maré de Verão, o outro reagira fa-
zendo valer a autoridade do Conselho. Ninguém o impediria de viajar até
Tremor.
Perry observou que nesse caso Graves teria que ser acompanhado
por dois funcionários do planeta. Eles tinham a responsabilidade de zelar
pela sua segurança.
Graves concordou. Todos tinham sido muito polidos, mas nenhum
deles estava satisfeito com a situação.
A tensão diminuiu quando a cápsula emergiu da camada de nuvens.
Agora, os três homens tinham outra coisa para ocupar seus pensamentos.
O carro havia sido equipado com painéis deslizantes no andar superior,
além de uma grande janela de observação no teto. Os passageiros tinham
uma visão excelente do espaço. Quando Tremor apareceu no meio das
nuvens, ninguém mais pensou em puxar conversa com os outros.
Julius Graves ficou olhando para fora de boca aberta. Max Perry
parecia entregue aos próprios pensamentos. Hans Rebka tentou ignorar a
paisagem e pensar na missão que tinha pela frente. Perry podia conhecer
tudo a respeito de Tremor, e Graves podia ser uma fonte de informações
acerca de qualquer assunto em mil sistemas planetários, mas Rebka es-
tava com o pressentimento de que os dois homens dependiam dele para
escapar do perigo.
Que perigo? Olhou em torno, procurando um panorama que afas-
tasse as preocupações de sua mente. Fizera a mesma viagem poucos dias
antes, mas tudo parecia diferente. Mandel, muito aumentado, estava do
lado esquerdo. A parede do carro, feita de um material desenvolvido pe-
los Construtores, filtrava as radiações perigosas, transformando o disco
da estrela em uma imagem escura coberta de fáculas, manchas e erup-
ções gigantescas. O disco era tão grande que Rebka teve a impressão de
que poderia estender a mão e tocar-lhe a superfície revolta.
123
Amaranth, que deixara de ser uma estrela-anã, estava na mesma
direção que Tremor. A companheira de Mandel parecia diferente. Até a
cor havia mudado. Rebka percebeu que se tratava de uma ilusão. Quando
as paredes do carro modificavam sua transparência para proteger os ocu-
pantes da radiação de Mandel, também modificavam o espectro da luz de
Amaranth. O vermelho-alaranjado se transformara em roxo.
Até mesmo Gargântua estava se preparando para o grande encon-
tro. Refletindo simultaneamente a luz de Mandel e de Amaranth, o gigan-
te gasoso se transformara de um ponto distante em um disco alaranjado
do tamanho de um polegar.
Os participantes haviam chegado; a força de gravidade os chama-
ra e a dança cósmica estava para começar. Nas horas finais da Maré de
Verão, Mandel e Amaranth passariam a menos de cinco milhões de qui-
lômetros um do outro, a espessura de um fio de cabelo, em termos astro-
nômicos. Gargântua se alinharia com as duas estrelas, com Mandel entre
ele e Amaranth. E o pequeno sistema de Dobelle, colhido por tal sizígia de
gigantes, atravessaria, indefeso, aquela imensa distorção do campo gra-
vitacional.
A órbita do sistema de Dobelle era estável; não havia perigo de
que Opala e Tremor se separassem, ou de que os dois planetas fossem
arremessados para o infinito. Entretanto, isso era a única coisa que os
astrônomos podiam garantir. Não havia como prever o que ocorreria na
superfície dos dois planetas durante a Maré de Verão.
Rebka olhou para cima, para Tremor. Aquela bola azulada era a
única coisa que não havia mudado desde a última viagem que fizera no
Cordão Umbilical.
Ou teria mudado? Olhou com mais atenção. A borda do planeta
não estava um pouco mais indistinta? Provavelmente, era consequência
do aumento da quantidade de poeira na atmosfera.
Não havia nada para distrair a atenção dos viajantes da paisagem.
Estavam subindo com velocidade constante, de modo que não existia sen-
sação de movimento. Apenas um observador muito atento notaria que o
ponto dourado da Estação de Meio Caminho aumentava gradualmente
de tamanho, enquanto a gravidade aparente no interior da cápsula dimi-
nuía de forma também gradual. A viagem não ocorria em queda livre. A
força da gravidade estava diminuindo, mas só desapareceria totalmente,
por alguns instantes, dois mil quilômetros além da Estação de Meio Cami-
nho, quando todas as forças centrífugas e gravitacionais se equilibrassem.
Depois disso, viria a descida rumo a Tremor, quando a cápsula estaria re-
124
almente caindo em direção ao planeta.
Rebka suspirou e levantou-se. Seria fácil permitir que a paisagem
o hipnotizasse, como Tremor hipnotizara Max Perry. E não apenas Perry.
Olhou de lado para Graves. O conselheiro estava totalmente mergulhado
em um devaneio só seu.
Rebka foi até a rampa e desceu para o andar inferior. A cozinha
era rudimentar, mas não tivera tempo de comer nada desde que deixara
o lado das estrelas. Estava com fome e qualquer coisa serviria, de modo
que digitou o pedido sem olhar. Não estava interessado no sabor da sopa
que pedira.
Com suas paredes opacas, o andar inferior da cápsula era depri-
mentemente monótono. Rebka foi até a mesa e escolheu uma peça mu-
sical para ouvir em particular. Música do período pré-Expansão, complexa
e polifônica, cujos acordes soavam-lhe dentro da cabeça. O jogo de vozes
lembrava a dança cósmica que Mandel e seu séquito estavam para iniciar.
Durante dez minutos, Rebka comeu e escutou, apreciando dois dos praze-
res mais básicos e mais antigos da humanidade. Pensou consigo mesmo:
será que os cecropianos haviam desenvolvido uma forma de arte seme-
lhante à música, só que baseada em feromônios?
Quando a música terminou, ficou surpreso ao perceber que Julius
Graves estava de pé ao seu lado, observando-o.
— Posso? — O conselheiro sentou-se à mesa e apontou para o pra-
to vazio. — Você recomenda?
Rebka deu de ombros. O que quer que Julius Graves desejasse dele,
não era uma opinião a respeito de sopas.
— Já lhe ocorreu — disse Graves — como é estranho que sejamos
capazes de comer e digerir os alimentos de mil mundos diferentes? Os
ingredientes dessa sopa foram produzidos em Opala, mas seu estômago
não vai estranhar nem um pouco. Nós, os himenopts e os cecropianos
temos organismos totalmente diferentes. As células deles nem ao menos
contêm DNA. No entanto, com a ajuda de umas poucas espécies de bac-
térias unicelulares em nossos intestinos, podemos comer exatamente os
mesmos alimentos. Não acha curioso?
— Acho.
Rebka detestava conversar com Graves a sós. Aqueles olhos azuis o
intimidavam. Mesmo quando se tratava de uma conversa sobre assuntos
gerais, tinha a impressão de que o outro estava tentando descobrir algo.
Para complicar as coisas, nunca sabia até que ponto o conselheiro estava
sendo influenciado por seu gêmeo mnemônico. Steven gostava de fatos
125
intermináveis e de piadas sem graça; Julius preferia a sutileza e a ambigui-
dade. A conversa que estavam tendo no momento podia ser uma simples
especulação por parte de um, ou um interrogatório disfarçado por parte
do outro. Graves estava sorrindo consigo mesmo.
— Estou vendo que você não dá importância ao fato de podermos
comer a comida de Opala ou de Tremor. Mas isso tem muitas implica-
ções. Ajuda, por exemplo, a pôr por terra uma teoria popular a respeito
da razão pela qual humanos e cecropianos não entraram em guerra logo
que se encontraram. As pessoas dizem que eles evitaram o confronto di-
reto porque não estavam competindo pelos mesmos recursos. Isso não
faz sentido. Não só estão interessados nos mesmos recursos inorgânicos,
como metais e outras matérias-primas, mas também podem comer os
mesmos alimentos. Um humano poderia comer um cecropiano, se fosse
necessário. Ou vice-versa. E isso introduz um novo mistério.
Rebka fez que sim com a cabeça para mostrar que estava escutan-
do. Era melhor concordar com o outro do que falar demais.
— Olhamos para um cecropiano, para um lo’tfiano, para um hi-
menopt — prosseguiu Graves — e dizemos: “Como eles são diferentes
de nós!” Mas o mistério está exatamente no contrário. Deveríamos nos
perguntar: Por que eles são tão parecidos conosco? Como é possível que
seres com origens diferentes, que se desenvolveram em mundos diferen-
tes, aquecidos por sóis de diferentes classes estelares, com uma biologia
totalmente diversa e uma história sem pontos em comum com a nossa...
como podem ser tão parecidos conosco que são capazes de comer os
mesmos alimentos? Que tenham uma forma tão parecida com a nossa
que podemos usar analogias com espécies terrestres (cecropianos, hi-
menopts, crisêmides) para designar seres que se originaram nas estrelas
mais distantes. Que sejamos capazes de conversar, de uma forma ou de
outra, e compreender muito bem o que o outro está dizendo. Que nossos
padrões de comportamento sejam semelhantes. Tanto assim que um úni-
co conselho de ética pode desenvolver regras que se apliquem a todas as
raças deste braço da espiral. Como explica isso?
— Nosso braço da espiral está cheio de mistérios...
Graves estava tentando chegar a algum lugar. Rebka tinha certeza
disso. No momento, porém, parecia mergulhado em uma mera digressão
filosófica.
— Os mistérios são muitos — concordou Graves. — Por exemplo:
os Construtores. Que fim levaram? Qual era sua fisiologia, sua história,
sua ciência? Para que servem a Lente, o Paradoxo, o Archote, os Fagos?
126
De todos os artefatos dos Construtores, os fagos são sem dúvida os mais
inúteis. Steven seria capaz de discursar várias horas sobre o assunto.
Rebka concordou de novo com a cabeça, rezando em silêncio para
que Steven não tomasse a palavra.
— Existem outros mistérios mais recentes, que me deixam muito
intrigado. Pense nos zardalus. Há alguns milênios, controlavam mais de
mil mundos. As espécies que foram escravizadas por eles dizem que eram
tirânicos, cruéis, implacáveis. Mas quando seu império desmoronou essas
mesmas espécies se rebelaram e exterminaram os zardalus até o último
indivíduo. Genocídio. Não foi um ato muito mais bárbaro que os pratica-
dos pelos próprios zardalus? Além disso, por que os zardalus governavam
seus mundos daquela forma? Será que eram regidos por princípios éticos
totalmente diversos dos nossos? Nesse caso, a diferença entre humanos
e zardalus era muito maior do que, digamos, a que existe entre humanos
e cecropianos. Como poderia um conselho de ética lidar com uma raça
assim?
...um único conselho de ética pode desenvolver regras... Rebka viu
a súbita agonia no rosto de Graves e se lembrou do comentário anterior.
Levantando a possibilidade de que o código de ética dos zardalus fosse
diferente, estaria Graves questionando as regras elaboradas pelo seu pró-
prio conselho? Estaria se preparando para desobedecer às instruções que
recebera?
Graves evitou o olhar de Rebka.
— Às vezes imagino se a ética que praticamos não é tão local e limi-
tada quanto a forma de nossos corpos e nossos padrões de pensamento.
A ciência dos Construtores era totalmente diferente da nossa. Ela não faz
sentido para nós. Não sabemos como eles construíram os artefatos nem
por que os construíram. Entretanto, os cientistas nos dizem que existe
apenas um conjunto de leis físicas em todo o universo... da mesma forma
que os filósofos nos dizem que existe uma ética universal! Imagino se a
ética dos Construtores não seria tão exótica para nós quanto sua ciência.
Ou se eles, ao ver como tratamos nossas várias espécies, não ficariam
revoltados com a nossa insensibilidade às diferenças.
“Acho que existe uma lição nisso tudo, capitão, e ela é simples: as
regras impostas por qualquer conselho devem ser dinâmicas. Seja qual
for o modo como forem encaradas pelo cidadão comum, não podem per-
manecer imutáveis, como se tivessem sido talhadas em pedra. Devemos
examiná-las constantemente, e nos perguntar até que ponto podem ser
aperfeiçoadas.
127
Graves olhou subitamente para Rebka, levantou-se e seguiu pela
rampa que levava ao andar superior da cápsula.
Rebka continuou onde estava. Tinha havido um contraponto nas
últimas frases, quase como se duas vozes se alternassem. Seria possível
que Julius e Steven Graves estivessem discutindo, com Rebka como es-
pectador? Talvez Julius quisesse uma coisa e Steven, outra.
Parecia ridículo, mas não era mais impossível do que o gêmeo mne-
mónico desenvolver uma consciência própria. Se a perspectiva de traba-
lhar com Julius Graves na superfície de Tremor já era desagradável, a de
trabalhar com uma mistura instável de Julius e Steven seria simplesmente
impensável.
Dois gêmeos lutando pelo controle de um único corpo? Rebka se
pôs de pé, observando ao fazê-lo que o piso oferecia muito menor resis-
tência às solas dos seus sapatos. Seu peso estava reduzido a uns poucos
quilos. Deviam estar chegando à Estação de Meio Caminho. Encaminhou­-
se para a rampa, imaginando se Max Perry ainda estaria sentado no mes-
mo lugar, contemplando Tremor. Sentia-se cada vez mais como o guardião
de um bando de lunáticos talentosos.
Na sua primeira viagem a Tremor, Rebka tivera vontade de conhe-
cer de perto a Estação de Meio Caminho. Os humanos a haviam modifica-
do e canibalizado, mas mesmo assim era uma amostra da tecnologia dos
Construtores, o que a tornava extremamente interessante. Entretanto,
quando Max Perry decidira passar por ela sem parar, Rebka, que estava
mais curioso ainda para conhecer Tremor, concordara com ele.
Agora, a pressa para chegar a Tremor tornara-se maior; faltavam
treze dias de Dobelle para a Maré de Verão, ou seja, apenas cento e dez
horas! Não havia tempo a perder! Entretanto, dessa vez Perry insistiu em
parar na Estação de Meio Caminho.
— Dê uma olhada você mesmo. — Perry apontou para o monitor
da cápsula. — Está vendo o consumo de energia? Está muito maior que
o normal.
Rebka olhou e não chegou a nenhuma conclusão. Nem Graves. Se
Perry estava dizendo que havia algo de errado com o sistema, tinham que
acreditar nele. Nesse caso, nada podia substituir a experiência. Quando
estavam no Cordão Umbilical, era Perry que ditava as regras.
— Estamos correndo perigo? — perguntou Graves.
— Não há nenhum perigo imediato. — Perry coçou o nariz, pensa-
tivo. — Mas não podemos correr o risco de descer até Tremor antes de
sabermos o que está causando este consumo excessivo de energia. Uma
128
perda de potência durante a fase final de descida poderia ser fatal. E os
controles centrais estão todos na Estação de Meio Caminho. Vamos ter
que parar lá e descobrir o que está acontecendo.
Obedecendo aos seus comandos, a cápsula já havia deixado os tri-
lhos invisíveis e começava a se aproximar da estranha estrutura que ocu-
pava metade do céu.
Quando os humanos a haviam descoberto, a Estação de Meio Ca-
minho era um imenso galpão aberto nas duas extremidades, com três
quilômetros de largura, quase vazio. As paredes eram transparentes. Um
homem usando um traje espacial podia voar até o lado voltado para Opa-
la e descobrir que estava caindo lentamente naquela direção; para entrar
na estação, bastava tomar impulso na borda da parede. Começaria então
a deslocar-se em direção à parede oposta, cada vez mais devagar, até o
movimento cessar totalmente. A estação estava no local exato do centro
de massa do sistema Tremor/Opala.
Não se sabia qual havia sido a utilidade da Estação de Meio Cami-
nho para os Construtores. Para a maioria dos humanos, isso não era im-
portante. Eles haviam instalado uma série de compartimentos pressuriza-
dos no interior da estrutura, transformando-a em alojamento temporário
e depósito para objetos de todos os tipos, desde botas térmicas até ali-
mentos congelados. Respondendo a um velho instinto animal que exigia
lugares fechados, também haviam coberto as paredes externas com uma
camada de material opaco. Mesmo depois de quatro mil anos de Expan-
são, os humanos ainda se sentiam pouco à vontade ao contemplarem o
espaço infinito.
A cápsula passou por uma primeira comporta e se enfiou em um
corredor cuja largura era apenas suficiente para permitir-lhe a passagem.
Dois minutos depois, chegou a uma câmara cilíndrica cujas paredes esta-
vam cobertas por mostradores, monitores e painéis de controle.
Perry esperou alguns minutos, até que as pressões interna e ex-
terna se igualassem; em seguida, abriu a porta da cápsula e flutuou para
fora. Quando os outros o alcançaram, já estava examinando um dos mo-
nitores.
— Aqui está. — Apontou. — É muito simples. Um outro carro esta-
va viajando no Cordão Umbilical ao mesmo tempo que o nosso.
— Onde? — Rebka olhou para os monitores de TV. Eles mostravam
vários trechos do Cordão Umbilical. Não viu nada.
— Não, você não vai ver nada. — Perry notara para onde Rebka
estava olhando. — O consumo de energia caiu para zero. Isso significa que
129
a outra cápsula não está mais no Cordão Umbilical.
— Onde está, então? — perguntou Graves.
Perry deu de ombros.
— É o que temos que descobrir. Deve haver alguém aqui de plan-
tão. Vou mandar uma mensagem de emergência. — Dirigiu-se para uma
unidade de comunicações e digitou alguma coisa.
Menos de vinte segundos depois, o rosto de Birdie Kelly apareceu
na tela. Estava ofegante e com o cabelo em desalinho.
— Max? Comandante Perry? O que houve?
— É o que queremos saber, Birdie. Verifique o consumo de energia
nas últimas horas. Duas cápsulas foram usadas ao mesmo tempo.
— É verdade, mas não precisa se preocupar. O consumo de energia
ficou longe do valor máximo permitido.
— Pode ser, mas o problema é diferente. O outro carro não estava
autorizado.
Uma expressão de surpresa apareceu no rosto de Birdie.
— Claro que estava. A mulher me mostrou uma autorização conce-
dida pelo senhor. Pessoalmente. Espere um momento.
Desapareceu da tela e tornou a aparecer, depois de alguns instan-
tes, com uma folha de papel na mão.
— Aqui estão sua assinatura e o seu carimbo. Está vendo? Bem
aqui.
— Você preparou um carro para ela?
— Claro. — O tom de voz de Birdie passou de defensivo para irri-
tado. — Ela tinha autorização e devia conhecer os códigos de comando
do Cordão Umbilical. Se não conhecesse, eles não conseguiriam sair de
Opala
— Eles?
— Sim, eles. O senhor não está sabendo? O nome da mulher é...
— Birdie Kelly olhou para a folha. — Darya Lang. E dois alienígenas. Um
cecropiano e uma outra forma de vida que não pude identificar. Qual é o
problema?
— A autorização era falsa, Birdie. Alguém imitou minha assinatura.
— Perry olhou para outro painel de controle. — Os instrumentos mos-
tram que eles não estão mais no Cordão Umbilical.
— Certo. Devem estar em Tremor. Espero que o tempo esteja me-
lhor lá do que aqui. — A parede atrás de Kelly começou a balançar e suas
últimas palavras chegaram misturadas com o barulho do vento. Ele des-
viou o olhar da tela por um momento. — Comandante, a menos que te-
130
nha mais alguma pergunta, vou ter que desligar.
— Outra tempestade?
— E das grandes. Recebemos uma mensagem há cinco minutos. A
Funda Macaco-Aranha está começando a se desfazer. Mandamos um car-
ro aéreo para lá, mas ele está tendo dificuldades para pousar e recolher
os moradores.
— Vá ajudar. Já sabemos o que queríamos. E boa sorte.
— Obrigado. Vamos mesmo precisar. Para vocês também.
Birdie Kelly saiu correndo.
Perry fez o mesmo. Quando Rebka e Graves o alcançaram, já estava
na cápsula.
— Ainda temos nove horas de viagem pela frente — disse ele. — E,
com a Maré de Verão tão próxima, não sei se vamos chegar a tempo de
salvá-los.
Digitou uma última sequência de comandos e a cápsula começou a
se mover de marcha à ré no estreito corredor.
Hans Rebka se deixou cair no assento e ficou olhando para a frente,
à espera da primeira visão de Tremor quando emergissem da Estação de
Meio Caminho.
Sentia-se tenso, mas estranhamente satisfeito. O instinto não o
abandonara. O golpe que estivera esperando desde que Max Perry infor-
mara aos outros que não teriam permissão para visitar Tremor tinha sido
desferido.
Pelo menos, um dos golpes.
A sensação de que haveria novidades pela frente não passara total-
mente. A velha voz interior lhe assegurava que muita coisa ainda estava
para acontecer.

131
ARTEFATO: FAGO
N° de série: 1.067
Coordenadas galácticas: Não aplicável
Nome: Fago
Conjunto estrela/planeta: Não aplicável
Nó de Bose mais próximo: Não aplicável
Idade estimada: Varia de 3,6 a 8,2 megaanos
História da exploração: Os primeiros fagos foram observados pelos hu-
manos durante a exploração do Archote, em 1233 E. Subsequentemente, foi
descoberto que os fagos vinham sendo observados e evitados pelos explo-
radores cecropianos durante pelo menos cinco mil anos. O primeiro relato
humano de um digestor dos fagos foi em 1234 E., durante o conflito de
Maelstrom (não houve sobreviventes).
Sistemas para evitar fagos entraram em uso corrente em 2103 E. e hoje
fazem parte do equipamento-padrão para explorar os artefatos dos Constru-
tores.
Descrição: Todos os fagos têm a mesma aparência externa e provavel-
mente apresentam uma estrutura interna semelhante, embora funcionalmen-
te variável. Nenhum sensor (ou explorador) jamais foi recolhido do interior
de um fago.
Um fago tem a forma de um dodecaedro regular, de cor acinzentada,
com quarenta e oito metros de lado. A superfície é irregular, com sensores
de massa em todas as arestas. Digestores podem aparecer no centro de cada
face e ingerir objetos com até trinta metros de raio e comprimento aparen-
temente ilimitado. (Em 2238 E., Sawyer e S’kropa introduziram uma peça de
sílica, de seção reta cilíndrica e vinte e cinco metros de raio, em um fago do
artefato Dendrita. Quatrocentos e vinte e cinco quilômetros de material, cor-
respondentes ao comprimento total do fragmento, foram absorvidos a uma
velocidade de um quilômetro por dia. Não foi observada nenhuma mudança
de massa no fago, nem qualquer alteração dos seus outros parâmetros.)
Os fagos podem mover-se de forma independente, mas o fazem com
extrema lentidão. Sua velocidade média é da ordem de um ou dois metros por
dia-padrão. Jamais foi observada uma velocidade maior do que um metro por
hora em relação ao sistema de referência local.
Finalidade: Desconhecida. Se não fosse pelo fato de que os fagos foram
encontrados nas proximidades de mais de trezentos dos mil e duzentos arte-
fatos conhecidos, e apenas nas proximidades de artefatos, sua relação com os
Construtores poderia ser posta em dúvida. Eles são menores e mais numero-
132
sos que todos os outros artefatos.
Alguns estudiosos acreditam que os fagos funcionassem como um
sistema geral de limpeza para os Construtores, já que aparentemente são ca-
pazes de ingerir e decompor qualquer material fabricado pelos Construtores
e pelas raças que habitam o braço da espiral, com exceção dos cascos e pa-
raformas dos artefatos (como, por exemplo, a parede externa do Paradoxo, a
superfície da Sentinela e os tubos ocos concêntricos do Maelstrom).

— Do Catálogo Lang Universal de Artefatos,


Quarta Edição

133
Capítulo 12

Maré de Verão menos onze.

Darya Lang estava com a terrível suspeita de que desperdiçara me-


tade da sua vida. Quando a família lhe dissera que morava no melhor
lugar do universo, acreditara piamente. “Portal da Sentinela, a meio passo
do paraíso”, dizia o adágio. E com boas instalações de pesquisa e um exce-
lente sistema de telecomunicações, não via necessidade de viajar.
Entretanto, primeiro Opala e depois Tremor a haviam feito mudar
de idéia. Estava adorando a nova experiência, o contato com um mundo
onde tudo era novo e excitante. No momento em que saltou da cápsula
e pisou na superfície seca e poeirenta de Tremor, percebeu que todos os
seus sentidos haviam sido aguçados por um fator de cem.
Um deles era o olfato. O ar de Tremor continha uma notável mis-
tura de odores. Havia o perfume das flores, certamente, mas ali elas não
estavam presentes com a mesma abundância que no Portal da Sentinela.
Teve que procurá-las... e lá estavam, a menos de cinco passos, pequenas
flores lilás e lavanda, em forma de sino, que enfeitavam os galhos de mo-
destos espinheiros verde-acinzentados. As plantas cobriam as vertentes
de uma ravina longa e estreita, pequena demais para ser chamada de
vale. As flores exalavam um perfume intenso, totalmente desproporcio-

134
nal ao seu tamanho. Era como se a floração, a fertilização e a formação de
sementes não pudessem esperar mais nem uma hora.
Talvez não possam, pensou Darya. Porque, superposto àquele odor
adocicado, havia um toque sinistro, sulfuroso, de distante vulcanismo: o
bafo de Tremor, ao se aproximar a Maré de Verão. Parou, respirou fundo
e teve certeza de que jamais se esqueceria daquela mistura de cheiros.
De repente, espirrou, e tornou a espirrar. Havia uma poeira fina no
ar, partículas irritantes, que faziam cócegas no nariz.
Levantou a cabeça. Depois do vale em miniatura, com seu tapete
de pequenas flores, vinha uma vasta planície, que terminava em um ho-
rizonte enfumaçado, a quinze quilômetros de distância. Ali era mais fácil
observar os efeitos da poeira. Enquanto a superfície mais próxima era
dominada por tons de castanho, à distância um manto cinzento desbotara
a paleta do artista, pintando tudo com tons pastel. O horizonte propria-
mente dito estava invisível, a não ser a leste, onde o olho podia distinguir
(ou imaginar) uma linha tênue de picos vulcânicos cor de canela.
Mandel estava alto no céu, e, enquanto a moça observava, come-
çou a se esconder atrás de Opala. O crescente luminoso encolheu rapi-
damente. O eclipse era apenas parcial, mas suficiente para mudar a to-
nalidade da luz. Os raios mais avermelhados de Amaranth passaram a
dominar. Parecia que a superfície de Tremor estava sendo iluminada pelas
chamas de um incêndio.
Foi então que Darya ouviu pela primeira vez a voz da Maré de Ve-
rão. Um ruído surdo encheu o ar, como o ronco de um gigante adorme-
cido. O chão começou a tremer. Sentiu um formigamento agradável nas
solas dos pés.
— Professora Lang — disse J’merlia, atrás dela —, Atvar H’sial pede
para lembrar-lhe que temos um longo caminho a percorrer e o tempo é
curto. Podemos prosseguir?
Darya percebeu então que sequer completara um único passo na
superfície de Tremor. Atvar H’sial e J’merlia ainda estavam esperando na
escada da cápsula. Quando Darya chegou para o lado, a cecropiana des-
ceu também e ficou parada, com a cabeça balançando de um lado para
outro. J’merlia se colocou atrás dela.
Darya viu os ouvidos em forma de trombeta varrerem a paisagem.
Que será que Atvar H’sial “via” quando escutava os sons de Tremor? Que
será que aqueles estranhos órgãos olfativos “ouviam”, quando cada mo-
lécula no ar podia contar uma história?
Haviam conversado a respeito da forma como o mundo era per-
135
cebido através do sentido de ecolocalização, mas a explicação tinha sido
pouco satisfatória. A melhor analogia que ocorreu a Darya foi a de um
homem de pé no fundo do mar, em um local onde a água era turva e a
iluminação deficiente. As imagens eram todas monocromáticas, com um
alcance de apenas algumas dezenas de metros.
Entretanto, a analogia era inadequada. Atvar H’sial era sensível a
uma ampla faixa de frequências sonoras, e certamente podia “ver” o ru-
gir distante dos vulcões. Aqueles sinais não tinham a mesma resolução
espacial que o seu sonar, mas certamente contribuíam para aumentar sua
percepção.
Além disso, havia outros fatores, talvez mesmo outros sentidos, que
Darya conhecia apenas vagamente. No momento, por exemplo, a cecro-
piana acabava de levantar um dos membros dianteiros e apontá-lo para
um ponto situado a uma certa distância de onde se encontravam. Estaria
analisando a brisa oriunda de locais afastados, com um sentido de olfato
tão apurado que cada traço de aroma tinha seu próprio significado?
— Existe vida animal aqui — traduziu J’merlia. — Criaturas aladas.
Isto sugere outra forma de sobreviver à Maré de Verão que não foi men-
cionada pelo comandante Perry. Permanecendo o tempo todo no ar e se
mantendo na sombra de Tremor, essas criaturas estariam seguras.
Forçando a vista, Darya conseguiu ver ao longe os animais voado-
res. Tinham meio metro de comprimento, corpos escuros e delicados,
asas diáfanas; muito frágeis, certamente, para sobreviver à turbulência da
Maré de Verão. Era mais provável que já tivessem posto seus ovos e que
fossem morrer nos próximos dias. Entretanto, em um aspecto Atvar H’sial
estava certa: havia muitas coisas a respeito de Tremor que os humanos
não conheciam, ou que Max Perry não lhe contara.
A idéia lhe ocorreu novamente: aquele era um planeta inteiro, um
mundo com um complicado equilíbrio ecológico; centenas de milhões de
quilômetros quadrados de terra e pequenos lagos, destituídos de vida
inteligente, humana ou não, abertos à inspeção dos visitantes. Ali era
possível uma diversidade infinita, mas seria preciso uma vida inteira para
estudá-la e conhecê-la.
Certo, disse o seu lado mais prático, mas nós não temos a vida in-
teira. Daqui a oitenta horas, se tanto, estará na hora de voltar.
Deixando Atvar H’sial entregue ao seu próprio reconhecimento do
terreno, Darya contornou a base do Cordão Umbilical e foi até o estacio-
namento dos carros aéreos. Havia oito deles, debaixo de uma cobertura
protetora de material dos Construtores. A plataforma onde se encontra-
136
vam estava presa ao Cordão Umbilical por cabos de fibra de silício e seria
levantada junto com ele durante a Maré de Verão.
Darya entrou em um dos carros e examinou os controles. Como
informara Atvar H’sial, o veículo era de fabricação humana e idêntico ao
que havia usado para viajar em Opala. Estava abastecido e Darya poderia
pilotá-lo sem problemas, contanto (o pensamento a fez estremecer) que
não tivesse que enfrentar uma tempestade tão violenta quanto na última
vez.
Levantou a mão aberta para verificar o vento. No momento, não
passava de uma brisa constante, nada que preocupasse. Mesmo levando
em conta os redemoinhos de poeira, a visibilidade chegava a três ou qua-
tro quilômetros. Era mais do que o suficiente para o pouso, e poderiam
voar muito acima de qualquer tempestade de areia.
Atendendo ao seu chamado, Atvar H’sial e J’merlia entraram no car-
ro e se prepararam para o vôo. Darya decolou e subiu rapidamente para
uma altitude que os deixasse a salvo de qualquer turbulência. J’merlia
estava encolhido ao lado da moça, no banco da frente do carro. Darya lhe
ensinara a manejar os controles quando estavam voando em Opala; em
caso de necessidade, saberia pilotar a nave. Entretanto, não sonharia em
fazê-lo, a não ser para obedecer a uma ordem explícita de Atvar H’sial.
Darya tentou puxar conversa com ele, sem sucesso. Imaginara que
J’merlia se comportaria de forma diferente depois de passarem tanto
tempo juntos enquanto se recuperavam do desastre. Estava enganada.
Quando Atvar H’sial se achava presente, ele se recusava a fazer qualquer
coisa por conta própria. Durante as três primeiras horas de vôo, falou ape-
nas para traduzir o que Atvar H’sial dizia.
Na quarta hora, porém, J’merlia disse alguma coisa espontanea-
mente. De repente, endireitou o corpo no assento e apontou.
— Ali. Acima de nós.
Estavam viajando com o piloto automático ligado, a vinte mil me-
tros de altura, acima da maior parte da atmosfera de Tremor e fora do
alcance das tempestades. Darya não estava olhando para cima, mas exa-
minando o terreno à frente, usando os sensores do carro. Colocando a
ampliação no máximo, podia observar uma grande variedade de formas
de vida. No solo montanhoso, semeado de lagos, grandes rebanhos de
animais de pêlo branco se moviam, afastando-se das regiões mais eleva-
das e dirigindo-se para a água, de forma tão constante e inexorável quan-
to uma onda em movimento. Viu a massa compacta se dividir e se desviar
de picos íngremes e volumosos rochedos. Alguns quilômetros adiante,
137
o relevo se tornava menos acidentado, e Darya viu linhas sinuosas ver-
de-escuras ladeando e definindo o curso dos leitos úmidos dos rios. Os
rios secos terminavam em densos bolsões de vegetação, impenetráveis
quando vistos de cima, que revestiam o fundo de bacias de profundidade
desconhecida.
Quando Darya ouviu as palavra de J’merlia e levantou os olhos, o
alienígena inclinou-se e apontou com um braço fino para o céu quase
negro.
Atvar H’sial se remexeu no assento.
— Outro carro — traduziu J’merlia. — Alguém nos seguiu até aqui,
mais depressa do que esperávamos.
O pontinho luminoso estava bem acima deles, seguindo mais ou
menos o mesmo curso, mas a uma altitude muito maior. Estava também
deixando-os rapidamente para trás. Darya deixou que o piloto automático
continuasse a controlar o carro enquanto ajustava o sensor telescópico
para ver de perto o recém-chegado.
— Não — declarou, depois de alguns momentos. — Não é um carro
aéreo. — Usou o pequeno computador de bordo para calcular a trajetó-
ria. — Está muito alto e andando depressa demais. Vejam... está ficando
cada vez mais brilhante. O que estamos vendo não são as luzes de um
carro aéreo.
— Que é, então?
— Uma espaçonave. E o aumento do brilho significa que está en-
trando na atmosfera de Tremor. — Darya olhou para a tela do computa-
dor, que acabara de fornecer uma estimativa preliminar da trajetória final
da nave. — É melhor nós pararmos para pensar no que vamos fazer.
— Não! — Os pensamentos de Atvar H’sial se transformaram em
uma exclamação de protesto por parte de J’merlia.
— Eu entendo. Também não quero parar — disse Darya. — Mas
não temos opção, a menos que você saiba alguma coisa que eu não sei. O
computador precisa de mais alguns pontos para ter certeza, mas já pode
nos fornecer um resultado provisório. Não sei quem está a bordo, mas
essa nave vai pousar exatamente onde não queríamos que pousasse... a
poucos quilômetros do nosso destino.
Crepúsculo em Tremor... se um anoitecer tão súbito e sinistro, ver-
melho como sangue de dragão, justificasse essa descrição.
Mandel nasceria dali a três horas. Amaranth estava baixo no hori-
zonte, o disco vermelho obscurecido por nuvens de poeira. Gargântua,
por outro lado, brilhava em total esplendor, uma bola de gude com faixas
138
laranja e salmão.
O carro aéreo pousara em uma área plana, pronto para decolar ra-
pidamente. Darya Lang escolhera um local situado entre dois pequenos
lagos, em uma região que, de acordo com o mapa, estava coalhada de
lagos de água doce.
O mapa estava errado pelo menos em uma coisa. Atvar H’sial, aga-
chada na margem de um dos lagos, bebera ruidosamente com o auxílio
da tromba. J’merlia declarara que a água era potável. Darya, porém, ao
tentar beber também, cuspira o líquido e ficara imaginando como seria
o metabolismo dos cecropianos. A água do lago era amarga, carregada
de íons alcalinos. A moça não conseguiu bebê-la e teve que recorrer ao
suprimento da nave.
Darya voltou para as vizinhanças do carro e preparou-se para dor-
mir. Mesmo com a ajuda do piloto automático, a viagem tinha sido muito
cansativa. Por mais inofensivo que parecesse o planeta no momento, não
se atrevera a relaxar senão por alguns instantes, e agora, que estava livre
para fazê-lo, sentia-se mais tensa do que nunca.
Havia muito para ver, muito para especular.
De acordo com Perry, àquela altura, faltando tão pouco tempo para
a Maré de Verão, Tremor devia estar parecendo um inferno. A crosta de-
via estar toda rachada, a superfície em chamas, as plantas ressequidas, o
ar quente e irrespirável. Os animais deviam ter desaparecido havia muito
tempo, alguns mortos, outros escondidos muito abaixo da superfície.
Em vez disso, podia caminhar, respirar e sentar-se em relativo con-
forto. Além do mais, havia sinais de vida em toda parte. Darya instalara
o colchão de ar ao ar livre, perto de um lago, à sombra de uma moita
de cavalinhas. Ouvia animais passarem para lá e para cá, ignorando sua
presença. Perto da água, o solo estava coalhado de buracos de diferentes
tamanhos, obra de uma variedade de criaturas. Quando o rugir distante
dos trovões ou dos vulcões diminuía, podia ouvir esses pequenos operá-
rios aprofundando seus túneis na terra dura.
Mas fazia calor, isso tinha que admitir. O desaparecimento de Man-
del do céu não fizera muita diferença. O suor manchava sua roupa e lhe
escorria pelo rosto.
Deitou-se de costas no colchão de ar. Embora não parecessem cor-
rer perigo imediato, estava preocupada com o que fariam em seguida. A
espaçonave devia ser de Opala e provavelmente tinha vindo para ali com
a missão de levá-los de volta. Se prosseguissem, poderiam ser capturados
e forçados a deixar Tremor. Mas, se ficassem onde estavam, jamais che-
139
gariam ao destino.
Enquanto pensava a respeito, Atvar H’sial aproximou-se e ofereceu­
-lhe algumas frutas de Opala e uma garrafa com água. Darya aceitou e
agradeceu com um gesto de cabeça. Era um gesto que as duas raças ti-
nham em comum. A cecropiana imitou-a e voltou para o interior do carro
aéreo.
Enquanto Darya comia, pensava nos dois companheiros de viagem.
Nunca tinha visto um deles comer. Talvez, como os habitantes de alguns
mundos da Aliança, tivessem vergonha de ser vistos ingerindo alimentos.
Ou, quem sabe, fossem como as tartarugas de Opala, que, de acordo com
os funcionários do espaçoporto, eram capazes de sobreviver durante um
ano apenas bebendo água. Nesse caso, porém, por que Atvar H’sial se
lembraria de oferecer-lhe comida?
Ajeitou-se na cama, puxou o lençol impermeável até o pescoço e
olhou para o céu. As estrelas se deslocavam tão depressa... No Portal da
Sentinela, onde o dia tinha trinta e oito horas, o movimento da abóbada
celeste era quase imperceptível. Em que direção do espaço estava o seu
planeta natal? Observou as constelações pouco familiares. Para lá... ou
para lá... Sua mente flutuou em direção às estrelas. Teve que usar de toda
a sua força de vontade para concentrar-se no presente. Precisava tomar
uma decisão.
Deviam prosseguir até o lugar que seus cálculos apontavam como
ponto focal das atividades durante a Maré de Verão? Podiam ir, sabendo
que outros também estariam lá. Ou seria melhor ficarem onde estavam?
Ou talvez devessem se aproximar aos poucos, cautelosamente...
Tinham que ser cautelosos...
Darya Lang mergulhou sem sentir em um sono profundo, um sono
sem sonhos tão pesado que os ruídos e vibrações em torno não a acorda-
ram. Chegou a alvorada. Passou o dia, anoiteceu, amanheceu novamente.
Os sons dos animais cessaram. Opala e Tremor deram duas voltas com-
pletas um em torno do outro antes que Darya despertasse.
A moça acordou lentamente à luz mortiça de Amaranth. Um mi-
nuto se passou antes que se lembrasse de onde estava, outro até que se
sentisse em condições de sentar-se e olhar em torno.
Atvar H’sial e J’merlia não estavam à vista. O carro aéreo desapare-
cera. Uma pequena pilha de suprimentos tinha sido colocada debaixo de
uma lona, perto do colchão de ar. Nada mais, de horizonte a horizonte,
sugeria a presença de humanos ou alienígenas.
A moça se pôs de joelhos e revolveu a pilha, em busca de uma men-
140
sagem. Não havia nenhum bilhete, nenhuma gravação, nada. Nada que
pudesse ajudá-la, a não ser uns poucos recipientes de comida e bebida,
um pequeno transmissor de emergência, uma pistola e uma lanterna.
Darya olhou para o relógio. Faltavam apenas nove dias de Dobelle.
Em setenta e duas horas, ocorreria a pior Maré de Verão de todos os tem-
pos. E ela estava sozinha na superfície de Tremor, a seis mil quilômetros
da segurança do Cordão Umbilical...
O pânico que sentira ao deixar o Portal da Sentinela tomou conta
de novo do seu coração.

141
Capítulo 13

...o brilho alaranjado no horizonte era contínuo, o solo em chamas


se refletindo nas nuvens de poeira do céu. Enquanto olhavam, uma nova
explosão escarlate teve lugar a não mais de um quilômetro de onde se
encontravam. Tentáculos de fumaça se projetaram em todas as direções.
Em pouco tempo, o fogo se estendia da terra até o céu. Enquanto a lava
borbulhava até o topo da cratera, voltou-se para Amy.
Apesar das suas advertências, ela ainda estava fora do carro. Quan-
do o clarão da explosão foi substituído pelo brilho da lava incandescente,
bateu palmas, fascinada pelas cores e formas. O som da onda de choque
ecoou nas colinas distantes. O rio de fogo chegou à borda do cone e come-
çou a rolar na direção deles, tão fluido e veloz como se fosse feito de água.
Nos lugares onde tocava a terra mais fria, fazia saltar fagulhas.
Max observou a expressão da jovem. Não viu nenhum sinal de
medo, apenas um deslumbramento de criança em festa de aniversário.
Era assim que Amy se sentia. Para ela, aquilo não passava de uma
exibição de fogos de artifício. A cautela teria que partir dele. Inclinou-se
para fora do carro a fim de puxá-la pela manga da blusa.
— Entre. — Teve que gritar para se fazer ouvir. — Está na hora
de voltarmos para o Cordão Umbilical. Sabe que é uma viagem de cinco
horas.
Amy olhou para ele e recuou. Max conhecia muito bem aquele bei-
cinho.
142
— Agora, não, Max. — Leu as palavras nos lábios da moça, mas
não conseguiu ouvi-la. — Quero ver o que acontece quando a lava atingir
a água.
— Não! — Max estava gritando. — De jeito nenhum! É muito pe-
rigoso! Está quente como o diabo aí fora, e está ficando quase igual aqui
dentro do carro.
Amy estava se afastando, sem lhe dar ouvidos. Ele estava sentindo
um calor opressivo, apesar da refrigeração interna do carro. Era um efeito
puramente psicológico, sabia disso... a fornalha ardente de suas preocu-
pações, que o consumia. Entretanto, o calor fora do carro era bem real.
Saltou do veículo e correu atrás dela pela superfície fumegante.
— Pare de me apressar. Só mais um pouquinho. — Amy tinha se
voltado para contemplar a paisagem infernal. Não havia (graças a Deus!)
nenhum sinal de uma nova erupção, mas a qualquer momento isso po-
deria mudar. — Max, você precisa relaxar. — Ela estava gritando no seu
ouvido. — Aprender a se divertir. Todo o tempo que passamos aqui, você
parecia uma estátua. Solte o corpo. Seja mais descontraído!
Max segurou-a pela mão e começou a puxá-la na direção do carro.
Depois de um momento de resistência, a jovem permitiu que ele a condu-
zisse. Caminhava às cegas, com os olhos ainda fixos na fúria flamejante
do vulcão.
Quando estavam a apenas alguns metros do carro, desvencilhou-se
do rapaz e saiu correndo, às gargalhadas, pela superfície rochosa. Max
correu atrás dela, mas era tarde demais.

Maré de Verão menos dez.


Graves e Perry faziam a coisa parecer muito simples. Rebka afirmou
que era impossível.
— É uma questão de aritmética — disse, enquanto a cápsula do
Cordão Umbilical chegava suavemente à superfície de Tremor. — Temos
um raio planetário de cinco mil e cem quilômetros e uma superfície da
qual menos de três por cento estão cobertos de água. Isso nos dá mais de
trezentos milhões de quilômetros quadrados de terra firme. Trezentos mi-
lhões! Pensem em quanto tempo vamos levar para revistar um quilôme-
tro quadrado. Poderíamos procurar durante anos e jamais encontrá-las.
— Não temos tanto tempo — disse Perry. — Sei que é uma área
muito grande. Mas você parece supor que vamos fazer uma busca aleató-
ria, e é claro que não será assim. Podemos deixar de lado uma boa parte
143
do planeta logo de saída.
— Podemos partir do princípio de que as gêmeas Carmel vão evitar
os espaços abertos — acrescentou Graves.
— Como pode saber disso? — perguntou Rebka.
— Shasta, o planeta natal das gêmeas, dispõe de um sistema orbi-
tal de rastreamento — explicou Graves, sem se deixar abalar pelo ceticis-
mo do outro. — Uma bateria de satélites artificiais esquadrinha continu-
amente a superfície, com altíssima resolução.
— Mas não existe nada parecido em Tremor!
— Acontece que elas não sabem disso. Vão tentar se esconder de
tal forma que não sejam vistas do espaço.
— Acontece — interveio Perry — que isso simplifica muito o nosso
problema. Existem apenas três lugares onde um ser humano em seu juizo
perfeito buscaria abrigo em Tremor. Vamos começar por eles... e terminar
por eles, também.
— Se as gêmeas não estiverem lá — começou Graves —, podemos
ampliar a busca para...
— Não, não podemos — interrompeu Perry. — A Maré de Verão
está chegando, conselheiro. Atingirá o máximo de intensidade daqui a
menos de oitenta horas. É melhor não estarmos aqui na ocasião. Nem o
senhor, nem eu, nem as gêmeas.
Max Perry enumerou as três regiões mais prováveis: as florestas do
planalto de Morgenstern, a margem (ou, mais provavelmente, o interior)
de um dos Mil Lagos e um dos bolsões de vegetação da depressão de
Pentacline.
— O que limita consideravelmente a área de busca — declarou.
— Mas deixa ainda dezenas de milhares de quilômetros quadrados
para serem examinados — replicou Rebka. — Minuciosamente. E não se
esqueça de que este não é um problema clássico de busca e salvamento.
Em geral, as pessoas desaparecidas querem ser encontradas. Elas cola-
boram com a equipe de busca. As gêmeas, porém, não vão se comunicar
conosco, a não ser que estejam correndo risco de vida. Caso em que, pro-
vavelmente, a mensagem chegará tarde demais.
Se os seus argumentos haviam impressionado Julius Graves, era di-
fícil dizer. Enquanto Max Perry estava ocupado verificando os carros aére-
os, Graves puxou Rebka na direção da linha de colinas vulcânicas.
— Preciso conversar a sós com o senhor, capitão — disse, em tom
conspiratório. — Não vai demorar.
A cinza quente caía do céu como se fosse neve, sujando as cabe-
144
ças e os ombros dos recém-chegados. O solo já estava coberto por uma
camada de um centímetro de espessura. Das plantas e herbívoros da pri-
meira visita de Rebka a Tremor, não havia nem sinal. O próprio lago de-
saparecera, escondido por uma camada espumante de cinza vulcânica.
Em lugar dos esperados roncos e rugidos da violência sísmica, o planeta
mantinha um silêncio quente e opressivo.
— O senhor compreende que não há necessidade de ficarmos jun-
tos? — prosseguiu Graves. — Temos carros aéreos de sobra.
— Sei que poderíamos cobrir três vezes mais território se nos se-
parássemos — respondeu Rebka. — Mesmo assim, não tenho certeza de
que seria uma decisão acertada. Perry conhece Tremor profundamente,
enquanto o senhor nunca esteve aqui antes.
— Ah-ah! Sua linha de pensamento é parecida com a minha. —
Graves tirou um floco de cinza da ponta do nariz. — A maneira lógica de
agir está bastante clara. Perry identificou as três regiões de Tremor onde
uma dupla de fugitivas provavelmente tentaria se esconder. Essas regiões
ficam muito longe umas das outras, mas nós somos três e dispomos de
um número suficiente de carros aéreos para visitá-las simultaneamente.
Assim, cada um de nós deve pegar um carro e partir em uma direção
diferente. É isso que diz a lógica. Mas o que eu digo é: bolas, quem está
interessado em lógica! Nem eu, nem você. O que queremos é resultados.
— Inclinou-se na direção de Rebka. — E, francamente, eu me preocupo
com a estabilidade emocional do comandante Perry. Quando ele ouve al-
guém falar em “Tremor” ou em “Maré de Verão”, seus olhos quase rolam
nas órbitas. Não é prudente deixá-lo sozinho. O que pensa?
Acho que tanto o senhor quanto Perry não devem ser deixados so-
zinhos, é isso que penso, mas não me atrevo a dizer. Rebka sabia o que o
outro estava aprontando. Ficaria encarregado de tomar conta de Perry (a
mesma missão estúpida que, em princípio, o levara ao sistema de Dobel-
le) enquanto Graves enfrentava sozinho os perigos de Tremor e provavel-
mente acabava por se matar estupidamente.
— Estou de acordo, conselheiro. Perry não deve ir sozinho. Mas
também não quero perder o meu...
— Então está decidido que eu vou com Perry — prosseguiu Graves,
ignorando Rebka. — Se ele perder o controle, poderei ajudá-lo. Sou o
único em condições de fazê-lo. De modo que eu e ele vamos para o pla-
nalto de Morgenstern, enquanto o senhor examina os Mil Lagos... Perry
diz que é a região mais próxima e mais fácil de investigar. Se nenhum de
nós encontrar as gêmeas, quem terminar primeiro vai para a depressão
145
de Pentacline.
Que é que se faz quando um louco apresenta uma sugestão razo-
ável? Por mais preocupado que se esteja, não há como discordar. Fosse
como fosse, Graves não parecia disposto a discutir o assunto. Quando
Rebka observou de novo que, em sua opinião, era pouco provável que
conseguissem encontrar as gêmeas, o conselheiro afastou tal idéia com
um gesto.
— Bobagem. Eu sei que vamos encontrá-las. Pense positivamente,
capitão Rebka. Seja otimista. É a maneira certa de viver.
E a maneira certa de morrer, pensou Rebka. Mas desistiu de argu-
mentar. Graves já havia tomado sua decisão, e talvez ele e Perry mereces-
sem um ao outro.
Era também uma das regras básicas da vida, algo que Rebka apren-
dera quando tinha seis anos de idade, nas cavernas quentes e salinas de
Teufel. Quando alguém lhe dá alguma coisa que você quer, caia fora...
antes que ele tenha tempo de mudar de idéia e tomá-la de volta.
— Muito bem, conselheiro. Partirei assim que um dos carros esti-
ver pronto.

Rebka levava meia hora de vantagem sobre os outros dois. O baga-


geiro dos carros mais rápidos não tinha capacidade suficiente para malas
pesadas e volumosas, e Julius Graves passou um tempo considerável re-
mexendo na bagagem até resolver deixar tudo para trás, a não ser uma
pequena valise. Guardou o resto na cápsula do Cordão Umbilical. Final-
mente, declarou-se pronto para começar a viagem.
Depois da decolagem, Max Perry ligou o piloto automático e fixou o
rumo para o planalto de Morgenstern. Quando se aproximaram da área,
os dois homens começaram a observar os monitores.
— Que equipamento primitivo! — observou Graves. Seu rosto esta-
va contraído com o esforço de decifrar as imagens que apareciam na tela.
A observação visual era um processo lento e tedioso. — Se este fosse um
carro da Aliança, não precisaríamos nem olhar... o sistema nos diria quan-
do localizasse as gêmeas. Neste carro, é o oposto. Tenho que ficar aqui
observando e informar ao sistema o que é que ele está vendo. Primitivo.
— É o melhor que temos em Dobelle.
— Acredito. Mas já parou para se perguntar por que todos os mun-
dos deste braço da espiral não são tão ricos quanto a Terra e outras regi-
ões antigas? Por que nem todos os planetas dispõem da tecnologia mais
moderna? Por que nem todos os mundos contam com mais robôs do que
146
pessoas, como a Terra? Por que não são todos ricos, todos os habitantes
de todas as colônias? Sabemos como fabricar equipamentos avançados.
Por que eles não estão disponíveis em todos os planetas, e não apenas
em uns poucos?
Perry não tinha respostas, mas fez um ruído gutural para mostrar
que estava prestando atenção.
Na realidade, não estava. Com Julius Graves ocupado olhando para
as imagens, aquele tagarela só podia ser Steven. E Perry também estava
ocupado, cuidando do equipamento de rádio. Graves não acreditava que
as gêmeas Carmel enviassem um pedido de socorro. Perry discordava.
Com a chegada da Maré de Verão, as irmãs ficariam ansiosas para serem
localizadas e presas.
— Na verdade, é fácil explicar a pobreza de Dobelle — prosseguiu
Graves. — Ela tem a ver com a natureza básica do ser humano. Uma espé-
cie racional trataria de assegurar que um planeta estivesse perfeitamen-
te desenvolvido antes de partir para colonizar o próximo. Nós, porém,
somos diferentes! Não conseguimos ficar quietos por muito tempo no
mesmo lugar. Antes que um planeta esteja totalmente colonizado, lá se
vão novas espaçonaves, prontas para explorar o seguinte. E muito pouca
gente diz: “Ei, espere um pouco, vamos terminar o que começamos, antes
de seguir em frente.”
Aproximou o rosto da tela para examinar mais de perto um par de
alarmes falsos na imagem e depois sacudiu a cabeça, desapontado.
— O problema é que somos muito irrequietos, comandante —
prosseguiu. — A maioria dos humanos tem um pouco menos de paciência
do que devia e um pouco mais de curiosidade do que seria aconselhável.
Sob esse aspecto, os cecropianos não são melhores do que nós. Assim,
quase todo o dinheiro deste braço da espiral, e toda a riqueza, acaba indo
parar nas mãos dos que ficaram em casa. É o velho paradoxo, que já exis-
tia antes mesmo da Expansão: os grupos que não fazem nada para gerar
a riqueza são aqueles que acabam por desfrutá-la. Enquanto isso, aqueles
que trabalham duro para criar alguma coisa acabam a vida na pobreza.
Talvez um dia isso venha a mudar. Talvez daqui a uns dez mil anos...
— Uma transmissão de rádio — interrompeu Perry. — Muito fraca,
mas inconfundível.
Graves ficou imóvel e não olhou para o outro.
— Não é possível — disse, secamente. Julius Graves estava de vol-
ta. — Elas não revelariam sua presença em Tremor. Não depois de fugi-
rem durante tanto tempo.
147
— Veja o senhor mesmo. Graves esticou o pescoço.
— A que distância?
— Muito longe. — Perry examinou as coordenadas. — Na verdade,
o sinal não vem das proximidades do planalto de Morgenstern. A fonte
está pelo menos quatro mil quilômetros além do horizonte. O que esta-
mos recebendo é uma reflexão ionosférica, caso contrário nem estaría-
mos detectando o sinal.
— Pode estar vindo dos Mil Lagos?
— Acho que sim. A direção é um pouco diferente, mas o sinal está
muito ruidoso. A distância coincide em cheio.
— Então é Rebka. — Graves deu um tapa na própria perna. — Só
pode ser. Aquele incompetente! Agora vamos ter que socorrê-lo, em vez
de...
— Não é Rebka.
— Como pode saber?
— Não é um dos nossos carros aéreos. — Perry estava analisando
o sinal com o auxílio do computador. — A frequência é diferente. A forma
do sinal, também. Parece uma unidade portátil, de baixa potência.
— Então são as irmãs Carmel! Devem estar passando por sérias
dificuldades, para pedirem ajuda. Pode nos levar até lá?
— Sem problemas. Basta seguir o sinal.
— Quanto tempo vamos levar?
— Seis ou sete horas, à velocidade máxima.
Enquanto falava, Perry estava olhando para o relógio do carro.
— Quanto tempo falta? — Graves acompanhara o seu olhar.
— Pouco mais de oito dias de Tremor para a Maré de Verão. Ses-
senta e sete horas, para ser exato.
— Sete horas até Mil Lagos, mais oito para chegar ao Cordão Um-
bilical. Vamos ter tempo de sobra. Estaremos longe de Tremor antes que
o pior aconteça.
Perry sacudiu a cabeça.
— O senhor não entende. Tremor tem uma estrutura interna muito
heterogênea. Os terremotos podem começar em qualquer lugar, muitas
horas antes da Maré de Verão. Não estamos vendo muita atividade aqui
no planalto, mas a região dos Mil Lagos pode ser um pesadelo.
— Você está parecendo Rebka. A coisa não pode ser tão séria as-
sim, se as gêmeas Carmel ainda estão vivas.
— Tem razão. Se elas ainda estão vivas. — Perry já estava começan-
do a fazer a volta com o carro. — Está se esquecendo de uma coisa, conse-
148
lheiro. Os transmissores de rádio são resistentes... muito mais resistentes
que os seres humanos.

149
Capítulo 14

Maré de Verão menos nove.

Os sensores das armas estavam seguindo o carro havia muito tem-


po. Quando ele chegou ao alcance visual, Louis Nenda colocou o arsenal
secreto da espaçonave em Alerta Máximo.
O carro aéreo reduziu a velocidade, como se tivesse conhecimen-
to do poder de destruição que o aguardava alguns quilômetros à frente.
Moveu-se de lado e depois pousou verticalmente em uma plataforma de
pedra, a uma certa distância da espaçonave.
Nenda manteve as armas prontas para serem disparadas, enquan-
to observava a porta do carro se abrir.
— Quem será? — perguntou, em voz baixa, no dialeto da Comu-
nidade, mais para si próprio do que para Kallik. — Façam suas apostas,
senhoras e senhores. Digam quem são os visitantes.
Dois vultos familiares saltaram na plataforma fumegante, coberta
de detritos. Ambos usavam máscaras, mas mesmo assim era fácil reco-
nhecê-los. Louis Nenda sorriu, satisfeito, e passou as armas para o modo
de espera.
— Tudo bem. Abra a escotilha, Kallik. Mostre um pouco de hospi-
talidade.

150
Atvar H’sial e J’merlia estavam se aproximando, escolhendo cau-
telosamente o caminho por entre matacões azul-acinzentados e subindo
uma rampa cheia de pedras soltas. Louis Nenda escolhera com cuidado
o local do pouso, optando pela superfície com aspecto mais firme e per-
manente que conseguira encontrar, mas mesmo assim havia poeira no
ar e sinais de abalos recentes. Uma fenda profunda atravessava em zi-
guezague a plataforma onde o carro aéreo acabara de descer, chegando
a meio caminho da espaçonave. Atvar H’sial estava andando ao longo da
fissura, olhando de vez em quando para o fundo, avaliando a profundida-
de. Aquela fenda era o único refúgio possível. Não havia nenhuma forma
de vida naquela região de Tremor, e ela não tinha nenhum lugar para se
esconder em um raio de dez quilômetros. As armas da nave, na cúpula a
trinta metros de altura, proporcionavam uma cobertura de trezentos e
sessenta graus.
Atvar H’sial entrou pela escotilha, dobrando o corpo ao meio ao
fazê-lo, não como sinal de respeito por Louis Nenda, mas porque estava
usando uma passagem projetada para alguém com metade da sua altura.
Depois de entrar, tirou a máscara do rosto. J’merlia entrou logo depois,
cumprimentou Kallik com um silvo curioso e agachou-se na frente da
dona.
A cecropiana endireitou o corpo e olhou para Nenda.
— Decidiu não atirar em nós — traduziu J’merlia. — Foi uma sábia
decisão.
— Do seu ponto de vista? Estou certo de que sim. Mas que história
é essa de atirar? — A voz de Nenda tinha um tom zombeteiro. — Não vai
encontrar armas aqui.
— É provável que esteja certo — disse Atvar H’sial, com o auxílio de
J’merlia. — Se os inspetores de Opala não conseguiram localizá-las, pode
ser que também não as encontremos. — Olhou para cima. — Entretanto,
se permitir que eu examine por meia hora o seu convés superior...
— Oh, isso não será possível. — Louis Nenda estava sorrindo. —
Talvez fosse divertido, mas não temos tempo a perder. A Maré de Verão
vem aí. Que tal deixarmos de brincadeiras? Não vou perguntar que fer-
ramentas e armas vocês levam, se pararem de se preocupar com a carga
desta nave. Temos coisas mais importantes para discutir.
— Ah, está sugerindo uma trégua. — As palavras foram ditas por
J’merlia, mas foi Atvar H’sial que estendeu um dos membros dianteiros.
— De acordo. Mas por onde começamos? Como vamos discutir nossa
cooperação sem revelar tudo que sabemos?
151
— Para começar, podemos mandar esses dois para fora — disse
Nenda, apontando para J’merlia e Kallik.
Atvar H’sial girou os chifres amarelos para examinar a himenopt e
depois se voltou para o lo’tfiano, que ainda estava agachado à sua frente.
— Aqui é seguro? — traduziu J’merlia.
— Não especialmente. — Nenda levantou as sobrancelhas espes-
sas. — Ei, que é que você esperava, um piquenique em Primavera? Ne-
nhum lugar em Tremor é seguro atualmente, e você sabe disso. O seu
inseto é muito sensível à luz e ao calor? Não quero que ele morra cozido.
— Não particularmente sensível — traduziu J’merlia, sem sinais de
emoção. — Se dispuser de água suficiente, J’merlia pode sobreviver ao
calor por um longo período. Mas a comunicação entre você e eu...
— Confie em mim. — Nenda apontou de novo para J’merlia e Kallik
e fez um gesto com o polegar em direção à escotilha. — Fora. Vocês dois,
— Mudou para o sotaque da Comunidade. — Kallik, leve bastante água
com você para dar a J’merlia. Nós avisamos quando estiver na hora de
vocês voltarem.
Esperou até que os dois alienígenas deixassem a nave e a escoti-
lha estivesse fechada. Depois, sentou-se à sombra da carapaça de Atvar
H’sial. Respirou fundo e abriu a camisa, revelando um peito totalmente
coberto por nódulos cinzentos e profundas bexigas. Fechou os olhos e
esperou.
— Tenha um pouco de paciência. — Os feromônios se difundiram
lentamente no ar. — Não é fácil... estou... sem prática.
— Ah. — Atvar H’sial fez que sim com a cabeça e apontou os re-
ceptores para o peito do outro. — Uma prótese dos zardalus, suponho. Já
tinha ouvido falar, mas é a primeira vez que vejo uma. Posso perguntar se
é muito doloroso para um humano se comunicar desta forma?
— É, sim. — O rosto de Louis Nenda se contraiu em um esgar. —
Mas isso não vem ao caso. Com o tempo, vai melhorar. Se não se importa,
vou continuar falando no estilo humano. Isso me ajuda a coordenar os
pensamentos.
— Mas não precisava recorrer a isso! — Além do sentido literal, os
receptores de feromônios no peito de Louis Nenda captaram o desdém e
o desprezo divertido de Atvar H’sial. — J’merlia é totalmente leal a mim,
e suponho que você possa dizer o mesmo de Kallik. Os dois morreriam
antes de revelar a alguém o teor da nossa conversa.
— Concordo com você. — Louis Nenda conseguiu dar uma risada.
— Eu cuidaria para que isso acontecesse. Mas não confio na inteligência
152
de J’merlia. As coisas podem sempre vazar por acidente, especialmente
se alguém sabe fazer perguntas capciosas. A única forma de garantirmos
o segredo é não permitirmos que eles nos escutem. — O riso se transfor-
mou em um gemido de dor. — Muito bem, vamos acabar logo com isso.
Estou ficando cansado.
— Precisamos de um protocolo para troca de informações.
— Eu sei. Aqui está minha sugestão. Vou afirmar uma coisa. Você
pode concordar, discordar ou afirmar outra coisa, mas ninguém está obri-
gado a responder a nenhuma pergunta. Vamos lá. Fato: você não tem o
menor interesse pelas formas de vida de Tremor e o modo como reagem
à pressão ambiental. Tudo isso é balela. Está aqui porque é uma especia-
lista nos Construtores.
— Para você, não vou negar. — Atvar H’sial empertigou-se. As pre-
gas vermelhas e brancas do seu pescoço se dilataram. — Sou mais que
uma especialista. Sou a especialista nos Construtores da Federação de Ce-
crópia. — Os feromônios transmitiram a idéia de orgulho mais fielmente
do que seria possível com palavras. — Fui a primeira a resolver o mistério
do Tântalo; a primeira e única cecropiana a sobreviver a uma passagem
pelo Archote. Percebi o significado da Maré de Verão antes que Darya
Lang fosse suficientemente tola para publicar o resultado de suas investi-
gações. Se não fosse por mim...
— Está bem. Reconheço que você é inteligente. — Nenda estava
começando a respirar com mais facilidade. — Diga-me uma coisa que pre-
ciso saber, ou vamos ficar aqui até a Maré de Verão e morrer assados.
— Muito bem. Você está aqui porque quer saber o que vai acon-
tecer durante a Maré de Verão. Mas eu sei que a idéia não foi sua. Você
conhece muito pouco de ciência e história. Uma outra pessoa compre-
endeu o significado da descoberta de Darya Lang e lhe contou a respeito
da importância desta hora e lugar. Seria interessante saber quem foi essa
pessoa.
— Para mim, isto está soando como uma pergunta, embora não
tenha sido formulado como tal. Mas não tem importância. Vou respon-
der. — Nenda apontou com o polegar para a escotilha da nave. — Kallik.
— A sua himenopt? Uma escrava! — Atvar H’sial estava mais que
surpresa; estava indignada. — Não é correto que uma espécie subalterna
execute este tipo de trabalho de alto nível.
— Ah, deixe disso! — Nenda estava sorrindo. — Ela é muito es-
perta... eu seria um tolo se não me aproveitasse disso. Além do mais, ela
adora ler e fazer contas nas horas de folga. Kallik tomou conhecimento
153
do trabalho de Lang e fez pessoalmente todos os cálculos. Descobriu que
este era o lugar e esta era a hora. Ficou entusiasmada, queria contar a
todo mundo. Eu disse a ela que de jeito nenhum. Que, em vez de contar-
mos aos outros, viajaríamos até Tremor. E aqui estamos. Mas o que eu
quero discutir com você é algo mais específico. Vamos conversar sobre o
que vai acontecer aqui durante a Maré de Verão.
— Isso me parece uma pergunta. Prefiro não responder.
— Então vamos abordar o assunto de outra forma. Vou lhe contar
o que Kallik pensa, com base na sua análise da situação, e você pode co-
mentar a respeito, se quiser. Ela acha que os Construtores vão voltar. Que
eles vão aparecer aqui, durante a Maré de Verão. O segredo da sua tec-
nologia e a razão pela qual desapareceram de forma tão misteriosa serão
revelados a todos que estiverem presentes. Que tal?
— Isso também é uma pergunta, não uma afirmação, mas vou res-
ponder. A idéia de Kallik parece plausível. Mas não existem provas concre-
tas de que os Construtores estejam prestes a aparecer.
— Mas a possibilidade não pode ser descartada. E o que Kallik não
disse, mas me ocorreu assim que ela me contou sua teoria, e certamen-
te ocorreu também a você, é que aquele que dominar a tecnologia dos
Construtores terá nas mãos um poder quase ilimitado.
— Concordo. No fundo, o que está em jogo neste caso é a tecno-
logia.
— Para algumas pessoas. Mas não é a única razão pela qual está
aqui. — Nenda espetou o indicador no abdome de Atvar H’sial. — Fato:
você é tão fanática pelos Construtores quanto Lang e Kallik. Vocês três
acham que vão conhecer os Construtores daqui a setenta horas. Sabe
como Kallik está chamando esta Maré de Verão? A Epifania... a hora em
que os deuses vão aparecer.
— A expressão que eu uso é Despertar. Concorda que será um
acontecimento “memorável”?
— Não sei, não sei... Que quer dizer com “memorável”? De uma
coisa estou certo: nenhum deus vai aparecer. A coisa toda está muito ne-
bulosa, mas tenho alma de jogador. Não me incomodo de correr riscos,
quando os possíveis resultados são compensadores.
— Está errado. Não há nada de nebuloso. Alguma coisa muito im-
portante vai acontecer.
A convicção de Atvar H’sial era inconfundível na mensagem de fe-
romônios. Nenda sabia que as sutilezas daquela forma de comunicação
estavam além do seu entendimento. Imaginou se os cecropianos domina-
154
vam a arte de mentir com os seus mensageiros químicos.
— As provas são insofismáveis — prosseguiu Atvar H’sial. — Em
todo o braço da espiral, os artefatos estão inquietos. E apontam para cá.
— Ei, você não precisa me convencer! Viajei oitocentos anos-luz
para chegar a este fim de mundo... e não ligo a mínima para os artefatos.
Pode ficar com todos eles... você é pior do que Kallik. Eu me contento
com algumas migalhas da tecnologia dos Construtores. Mas tenho outra
pergunta a lhe fazer. Por que veio até aqui me procurar, sabendo que eu
poderia atirar em você? Tenho certeza de que não foi apenas para com-
parar anotações comigo e Kallik.
— Tem razão. Estou aqui porque você precisa de mim. E também
porque preciso de você. — Atvar H’sial apontou pela janela para a super-
fície árida de Tremor. — Se você e eu fôssemos as únicas pessoas neste
mundo, seríamos os únicos a conhecer as novas técnicas dos Constru-
tores. Mais tarde, poderíamos disputar a primazia na exploração dessas
técnicas. Eu aceitaria uma competição desse tipo.
— Estaria cometendo um grande erro. Mas ainda não entendi por
que veio me ver.
— Porque hoje não somos os únicos presentes em Tremor. Existem
outras pessoas aqui, gente disposta a disseminar os novos conhecimen-
tos em nome da ciência. Acontece que você não é um cientista, e sim um
aventureiro. Está aqui para ganhar dinheiro.
— Acertou na mosca. E você também está aqui para isso.
— Talvez. — A mensagem de Atvar H’sial tinha um toque de hu-
mor, agora que Louis Nenda sabia como interpretá-la. — E não queremos
dividir com mais ninguém os poderes dos Construtores. Rebka, Graves e
Perry estão em Tremor. Eles entraram no Cordão Umbilical logo depois
de nós. Duvido que sejam capazes de guardar segredo. Poderíamos fazer
alguma coisa a respeito, mas primeiro temos que descobrir onde estão.
— Achei que eles nos seguiriam. E Darya Lang? Ela veio com você.
— Não há problema. Eu... eu já cuidei dela.
Uma certeza cruel nos feromônios. Houve uma longa pausa.
— Muito bem — disse Louis Nenda, afinal. — Você é uma filha da
mãe, sabia?
A tromba da cecropiana estremeceu.
— Faço o que posso.
— Está se arriscando, contando-me isso.
— Acho que não. — Atvar H’sial ficou em silêncio por um momen-
to. — Não há perigo. Não para alguém que leu os autos da investigação
155
do que aconteceu em Lascia Quatro. Posso reavivar sua memória? Uma
cápsula de suprimentos médicos foi roubada a caminho de Lascia Quatro.
Jamais chegou ao planeta, e, sem os inibidores virais que transportava,
trezentas mil pessoas morreram. Um humano e um himenopt foram os
responsáveis pela tragédia. O himenopt morreu, mas o humano escapou
e está livre até hoje.
Louis Nenda ficou calado.
— Acontece que não consegui localizar os outros humanos — con-
tinuou Atvar H’sial. — Estou preocupada especialmente com Graves.
— Ele é louco.
— Verdade. E é capaz de adivinhar o que a gente está pensando. É
um homem muito perigoso. Precisamos livrar-nos dele. Precisamos livrar­
-nos de todos três.
— Concordo. Mas também não sei onde eles estão. Que é que você
propõe?
— Vão querer sair de Tremor antes da Maré de Verão. Para isso,
terão que usar o Cordão Umbilical. Eu também estava pensando em usá­-
lo, até ver sua nave chegar e perceber que estava equipada para viagens
espaciais.
— Até os confins da galáxia, se for preciso. Compreendo que isso
seria conveniente para você, sair de Tremor sem correr o risco de esbarrar
em Graves. Mas o que tem a me oferecer? Não quero parecer grosseiro,
mas não sou sua fada madrinha. Por que lhe daria uma carona? Eu disse
a Kallik que nós daríamos uma boa olhada no local, mas antes da Maré
de Verão. Quando a Maré de Verão chegar, nós já estaremos em órbita.
Quando digo nós, me refiro apenas a nós dois. Minha nave não é um
transporte coletivo. Por que eu ajudaria você?
— Porque conheço os códigos de controle do Cordão Umbilical. Os
códigos completos.
— Mas por que eu estaria interessado... — Louis Nenda interrom-
peu o que estava dizendo e levantou os olhos para a cecropiana, ao mes-
mo tempo que a cabeça sem olhos se aproximava dele.
— Está entendendo? — Os feromônios transmitiram uma mensa-
gem mais forte e no entanto mais sutil que quaisquer palavras: prazer,
triunfo, o toque da morte.
— Estou. É mais do que óbvio. Mas que vamos fazer com eles? —
Nenda apontou para a janela. J’merlia e Kallik estavam encolhidos no solo
quente, tentando abrigar-se dos raios de Mandel na sombra da espaçona-
ve. Os dois tremiam, e J’merlia parecia estar tentando confortar a hime-
156
nopt. — Vou aceitar a sua proposta, mas me recuso a levá-los conosco.
— De acordo. Não precisamos deles. Tudo que exija a sensibilidade
que J’merlia possui a radiações de meio micrômetro, você poderá fazer
no lugar dele.
— Eu enxergo, se é isso que está querendo dizer. — Nenda já estava
com a cabeça para fora da escotilha, chamando Kallik. — Escute, também
me recuso a deixá-los em minha nave. Na verdade, prefiro não deixar mi-
nha nave aqui. Podemos voar nela até as proximidades do Cordão Umbi-
lical. J’merlia e Kallik ficariam aqui, à nossa espera.
— Acho que não é uma boa idéia. — Atvar H’sial esticou as pernas,
ficando muito mais alta que Louis Nenda. — Não queremos que eles te-
nham acesso ao carro aéreo, queremos?
— Kallik não chegará perto dele se eu a proibir de fazê-lo. — Nenda
esperou enquanto a cecropiana se limitava a olhar para ele. Não detectou
feromônios no ar. — Está bem, está bem, concordo com você. Não vamos
deixá-los aqui. Seria um risco desnecessário... não sei se poderíamos con-
fiar no seu lo’tfiano. Que é que você propõe?
— É muito simples. Vamos fornecer a eles um transmissor de rádio
e alguns suprimentos e deixá-los em um ponto conveniente entre o lugar
onde estamos e a base do Cordão Umbilical. Depois de terminarmos nos-
so trabalho, iremos buscá-los, esperaremos o Despertar e daremos o fora
antes que as condições na superfície fiquem insuportáveis.
— E se o lugar que escolhermos para deixá-los sofrer grandes aba-
los nas próximas horas? Perry disse que nenhum lugar neste planeta será
seguro, e acho que não estava mentindo.
— Se os abalos ocorrerem antes do previsto, será uma pena — dis-
se Atvar H’sial, enquanto J’merlia e Kallik esperavam do lado de fora da
escotilha. Os dois escravos tremiam de medo e tensão. — Mas você sem-
pre pode encontrar outra himenopt. E, embora J’merlia tenha sido um
servo eficiente (mais que eficiente; detestaria me ver privada dos seus
serviços), este pode ser o preço a pagar... por um grande sucesso.

157
Capítulo 15

Maré de Verão menos oito.

Darya Lang fez a coisa mais natural: sentou-se no chão e começou


a chorar. Mas, como o tio Matra lhe dissera havia muitos anos, chorar não
resolvia nenhum problema. Depois de alguns minutos, parou.
A princípio, ficara apenas surpresa. Que razão Atvar H’sial teria para
drogá-la e abandoná-la naquele lugar deserto, em uma região de Tremor
que tinham escolhido apenas porque parecia um bom local para pousar?
Não conseguia imaginar nenhuma explicação para o desaparecimento da
cecropiana.
Darya estava a milhares de quilômetros de distância do Cordão
Umbilical. Tinha apenas uma idéia vaga da direção. Não dispunha de ne-
nhum meio de transporte. A conclusão era simples: Atvar H’sial queria
que ela ficasse em Tremor e morresse com a chegada da Maré de Verão.
Nesse caso, porém, por que lhe deixara provisões, uma máscara e
um filtro de ar, e um primitivo purificador de água? Mais estranho ainda,
por que deixara um transmissor de rádio, que poderia ser usado para en-
viar um pedido de socorro?
Sua perplexidade tinha sido substituída pela aflição e depois pela
raiva. Era uma sequência de emoções que a moça jamais teria imaginado

158
antes de deixar a tranquilidade do Portal da Sentinela. Sempre se conside-
rara uma pessoa equilibrada, uma cientista, uma cidadã de um universo
lógico e organizado. A raiva não era uma reação positiva; prejudicava o
raciocínio. Entretanto, seu mundo mudara, e Darya tinha sido forçada a
mudar com ele. A intensidade dos próprios sentimentos a surpreendeu.
Se tinha que morrer, não morreria sem lutar.
Acocorou-se no solo macio, à margem do lago mais próximo, e
examinou minuciosamente os recursos de que dispunha. O purificador
era uma pequena unidade de evaporação, capaz de produzir água pura,
cristalina, a partir da água mais salobra. Funcionando com a capacidade
máxima, o aparelho podia fornecer cerca de um litro de água por dia.
Os alimentos, apesar de simples e sem gosto, eram nutritivos e durariam
várias semanas. O gerador de sinais, ao que parecia, estava funcionando
perfeitamente. E a cobertura de plástico usada para embrulhar todos es-
ses itens serviria para protegê-la do calor, do frio e da chuva.
Conclusão: se morresse, não seria de fome, de sede ou de exposi-
ção às intempéries.
O que não adiantava grande coisa. A morte seria muito mais rá-
pida e violenta. O ar estava quente e esquentava cada vez mais. De vez
em quando, podia sentir a terra se mexer sob seus pés, como uma pes-
soa adormecida que não conseguisse encontrar uma posição confortável.
Pior que tudo, uma brisa constante mantinha no ar um fino pó branco
que fazia os olhos arderem e dava aos alimentos um desagradável gosto
metálico. A máscara e o filtro de ar proporcionavam apenas uma proteção
parcial.
Caminhou de volta até a margem do lago e viu o reflexo fantasma-
górico de Gargântua nas águas escuras. O planeta estava ficando mais
inchado e brilhante a cada hora que passava. Ainda estava longe do ponto
de máxima aproximação de Mandel, mas olhando para cima já podia ver
suas três maiores luas, girando em torno do planeta em órbitas exóticas.
Podia quase sentir as forças que Gargântua, Mandel e Amaranth exerciam
sobre esses satélites, puxando-os em diferentes direções. E as mesmas
forças gravitacionais agiam sobre Tremor. O planeta em que a moça se en-
contrava estava sendo submetido a uma tensão insuportável. A superfície
se desintegraria a qualquer momento.
Nesse caso, por que Atvar H’sial a abandonara, deixando-lhe ali-
mento e proteção, quando a Maré de Verão se encarregaria de acabar
com ela, no final. Tinha que haver uma explicação para o que acontecera.
Precisava pensar.
159
Agachou-se à beira d’água, procurando um lugar parcialmente pro-
tegido da poeira. Se Atvar H’sial quisesse matá-la, poderia tê-lo feito facil-
mente enquanto dormia. Em vez disso, optara por deixá-la ali. Por quê?
Porque Atvar H’sial precisava dela. A cecropiana não a queria por
perto no momento, mas precisaria dela mais tarde. Talvez para algo que
soubesse a respeito de Tremor, ou a respeito dos Construtores. Mas o
quê? Nada que Darya pudesse imaginar.
Era melhor mudar a pergunta. O que Atvar H’sial podia pensar que
ela soubesse?
A moça não sabia a resposta, mas isso no momento não era im-
portante. A nova Darya insistia em que os motivos para certos atos eram
menos importantes que os atos em si mesmos. O que sabia era que tinha
sido deixada ali “em conserva” por um período indeterminado; alguém,
um dia, talvez viesse buscá-la. E, se não fizesse nada, morreria em pouco
tempo.
Mas sua vida não terminaria daquele jeito. Não permitiria que ter-
minasse.
Darya levantou-se e olhou em torno. Tinha se deixado ludibriar
por Atvar H’sial uma vez, concordando em viajar com ela até Tremor. Pois
bem, não se deixaria enganar de novo.
O lago perto do qual se encontrava era o mais alto de meia dúzia
de lagos interligados, cujos tamanhos variavam de menos de cem metros
até uns quatrocentos metros de largura. A água do lago mais próximo
passava para o seguinte através de uma pequena queda de um ou dois
metros de altura.
Varreu a margem com o olhar, em busca de algum tipo de refúgio.
A julgar pela forma como o tempo estava piorando, iria precisar de abrigo
com urgência. O vento ia ficando mais forte e a areia fina se infiltrava em
todos os espaços abertos... incluindo os seus espaços abertos; a sensação
não era nada agradável.
Onde? Onde poderia se abrigar? A vontade de sobreviver era cada
vez maior.
Removeu com as mãos o pó fino que começava a se acumular nos
braços e no corpo. Os terremotos podiam ser um perigo maior a longo
prazo, mas no momento a maior ameaça era aquela poeira irritante, car-
regada pelo vento. Precisava proteger-se contra ela.
Que é que os animais nativos fazem?
A pergunta lhe ocorreu quando estava olhando para a margem do
lago, coalhada de pequenos buracos que pareciam ter sido cavados por
160
animais. Naquela época do ano, as formas de vida de Tremor não perma-
neciam na superfície. Procuravam abrigo sob a terra ou debaixo d’água.
Lembrou-se dos grandes bandos de animais herbívoros dirigindo-se deci-
didamente para os lagos.
Poderia fazer a mesma coisa? O fundo de um lago alcalino não era
um lugar acolhedor, mas pelo menos estaria a salvo da poeira.
Exceto pelo fato de que não poderia sobreviver no fundo de um
lago. Precisava respirar. Não dispunha de nenhum tanque de oxigênio.
Entrou no lago até ficar com água pelos joelhos. A água estava agra-
davelmente morna; a temperatura aumentou um pouco quando se afas-
tou da margem. A julgar pela inclinação do fundo, perderia o pé antes de
chegar ao meio do lago. Se continuasse a andar até ficar com água pelo
pescoço, os selos da máscara e do filtro de ar ficariam abaixo da superfí-
cie da água e apenas sua cabeça ficaria de fora. Isso a deixaria a salvo da
poeira.
Quanto tempo, porém, conseguiria aguentar naquela situação?
Muito menos que o necessário.
Era uma solução que não resolvia nada.
Começou a acompanhar o curso da água, passando de um lago
para o seguinte. A primeira catarata descia dois metros através de meia
dúzia de pequenos rápidos, correndo por um leito de pedras lisas até fi-
nalmente desembocar no maior dos lagos. Ali parecia haver ainda mais
poeira no ar.
Prosseguiu. Aquele lago tinha uma forma aproximadamente elípti-
ca, com pelo menos trezentos metros de largura e talvez quinhentos de
comprimento. A saída de água também era maior, uma catarata cujo som
podia ouvir quando ainda se encontrava a bem uns cinquenta metros de
distância.
Quando se aproximou da ruidosa catarata, encontrou uma parede
de água de três metros de altura, que caía quase verticalmente no lago
seguinte da cadeia. Os respingos embaçaram sua máscara, mas pelo me-
nos ali não havia tanta poeira no ar. Se não achasse nada melhor, talvez
aquele fosse um bom local para permanecer.
Estava pronta para passar ao lago seguinte quando viu que havia
uma pequena concavidade atrás da cachoeira. Se conseguisse chegar até
lá sem ser arrastada pela força da água, estaria em um espaço fechado,
protegido da poeira por uma parede de pedra de um lado e pela água
corrente do outro.
Darya aproximou-se da queda-d’água, colou-se o máximo possível
161
à parede de pedra e começou a andar de lado em direção ao centro da
cachoeira. No momento em que seu corpo foi envolvido pela espuma
branca, teve certeza de que iria conseguir. O grosso da água estava pas-
sando por cima da sua cabeça; apenas o barulho e os respingos chegavam
ao lugar onde se encontrava. Como imaginara, havia um espaço atrás da
cachoeira.
O problema era que o espaço era muito pequeno. Não podia ficar
de pé sem enfiar a cabeça na torrente. Não podia deitar-se, pois o chão
era irregular, cheio de altos e baixos. Não havia um centímetro quadrado
seco, fosse na parede, fosse no piso.
Começou a desesperar-se, mas reagiu. Que estava esperando, um
apartamento de luxo da Aliança? Aquilo não era questão de conforto, e
sim de sobrevivência.
Podia agachar-se com as costas apoiadas na pedra, usando a co-
bertura de plástico para proteger-se da água. Deixaria a maior parte da
comida e da água do lado de fora; quando fosse necessário, poderia sair
do abrigo por alguns minutos para buscar alimento ou esticar as pernas.
Lavaria a máscara e o filtro de ar, para mantê-los livres de poeira. Embora
nunca fosse estar totalmente seca ou repousada, tinha certeza de que
não morreria de frio nem de cansaço. Se necessário, poderia sobreviver
durante vários dias naquela situação.
Voltou e fez três viagens ao seu depósito de suprimentos. Nas duas
primeiras, carregou até à queda-d’água tudo que possuía, exceto o trans-
missor de rádio. Passou muito tempo resolvendo quais os objetos que
levaria para o interior da caverna e quais deixaria do lado de fora, na mar-
gem do lago.
Na terceira viagem, teve que tomar a decisão mais difícil.
Podia carregar o transmissor até um ponto mais elevado, nas pro-
ximidades do lago. Podia colocá-lo sobre um monte de pedras, para au-
mentar o seu alcance. Podia ligá-lo na potência máxima. Mas será que
devia fazê-lo?
Depois de muito pensar, chegou a uma decisão. Se e quando Atvar
H’sial voltasse, Darya ainda estaria à sua mercê, para ser usada, socorrida
ou descartada, de acordo com as conveniências da cecropiana. Dois me-
ses antes, a moça teria aceitado aquela situação como inevitável; agora,
porém, isso era inconcebível.
Embrulhou o transmissor no plástico e carregou-o para a caverna.
Depois, ajeitou o plástico para que ela e o transmissor ficassem protegi-
dos dos respingos. Mandel estava perto do zênite, de modo que a quan-
162
tidade de luz que atravessava a queda-d’água era suficiente para manter
o local bem iluminado.
Trabalhando com calma, desligou o transmissor e desmontou-o
parcialmente. Não queria correr o risco de estragar alguma coisa, e tempo
parecia ser uma das poucas coisas de que dispunha em abundância. Sabia
quais eram os circuitos necessários, mas teria que improvisar para con-
seguir uma impedância adequada. Tomou os fios de alimentação de alta
tensão e ligou-os em paralelo com o estágio de RF, através do transforma-
dor, ao circuito de codificação. Depois, foi uma questão de memória e de
cursos de eletrônica neural que fizera num passado remoto. O modulador
de que necessitava era pouco mais que um oscilador não-linear, e havia
resistores e capacitores no gerador de sinais que podiam ser aproveita-
dos. Não pôde testar o aparelho depois de modificado, mas as mudanças
que introduzira eram relativamente simples. Devia funcionar. O maior pe-
rigo era que fosse potente demais.
Mandel se pôs antes que Darya terminasse o trabalho. Ela levou o
transmissor adaptado para fora, para a luz avermelhada de Amaranth e
para a tempestade de poeira cada vez mais forte, colocando-o sobre um
monte de pedras. Ligou-o e sorriu, satisfeita, quando a lâmpada piloto
acendeu para mostrar que o sinal estava sendo transmitido novamente.
Voltou com esforço para a caverna da cachoeira, embrulhou-se no
plástico e sentou-se, encolhida, na estreita plataforma. Saliências na pe-
dra machucavam-lhe as costas. O ruído da água era quase ensurdecedor.
Debaixo do corpo, podia sentir uma vibração que aumentava a cada ins-
tante, à medida que o subsolo do planeta era submetido a forças de maré
de intensidade crescente.
Ninguém teria esperanças de conseguir dormir em tais circunstân-
cias. Darya começou a mordiscar um biscoito, fechou os olhos e concen-
trou a mente em um único pensamento: estava lutando para sobreviver.
O que fizera era pouco, mas era tudo que podia fazer.
No dia seguinte, inventaria alguma coisa para melhorar sua situa-
ção.
Com aquele pensamento e o biscoito ainda nas mãos, mergulhou
no sono mais repousante que tivera desde que deixara o Portal da Senti-
nela.

Hans Rebka tinha outra razão para querer ficar sozinho. Pouco an-
tes de deixarem Opala, outra transmissão em código havia chegado do
Círculo de Phemus. Na pressa da partida, não tivera tempo de examiná­-
163
la, mas, enquanto a cápsula estava descendo pelo Cordão Umbilical em
direção a Tremor, dera uma olhada rápida no texto. Quando saltaram em
Tremor, decifrara o suficiente para ficar preocupado. Enquanto voava
para o norte, em direção ao lado das estrelas de Tremor, o pedaço de
papel queimava-lhe o bolso da camisa. Ligou o piloto automático, ignorou
o cenário que desfilava lá embaixo e começou a trabalhar na mensagem
de forma sistemática.
O serviço de informações deixara de basear os códigos em números
primos e aritmética modular, e passara a empregar uma técnica de em-
butimentos invariantes. As mensagens eram supostamente quase indeci-
fráveis... e muito mais difíceis de ler, mesmo para quem conhecia a chave.
Rebka requisitou a maior parte do computador de bordo e começou a
traduzir a mensagem, caractere por caractere. Não ajudava em nada o
fato de haver interrupções ocasionais da transmissão nas Transições de
Bose, o que introduzia lacunas no texto.
O sinal recebido continha três mensagens independentes. A pri-
meira, decifrada após três quartos de hora de trabalho paciente, o fez ter
vontade de jogar o papel para fora do carro.

...O MEMBRO DO CONSELHO DA ALIANÇA QUE ESTÁ A CAMI-


NHO DE DOBELLE USA O NOME DE JULIUS GRAVES, OU, MENOS FRE-
QUENTEMENTE, STEVEN GRAVES. ELE FOI SUBMETIDO AO IMPLANTE
DE UM GÊMEO MNEMÓNICO INTERNO, COM O OBJETIVO DE AUMEN-
TAR A CAPACIDADE DA SUA MEMÓRIA, MAS ESSA UNIÃO NÃO ESTÁ
SEGUINDO OS PADRÕES NORMAIS. NOSSOS ANALISTAS SUGEREM A
POSSIBILIDADE DE UMA INTEGRAÇÃO INCOMPLETA, QUE PODERÁ
LEVAR A UM COMPORTAMENTO ERRÁTICO E IMPREVISÍVEL. SE, AO
CHEGAR A DOBELLE, GRAVES SE COMPORTAR DE FORMA ESTRANHA,
PROCURE COMPENSAR ESSAS TENDÊNCIAS E NEUTRALIZAR AS DECI-
SÕES ILÓGICAS QUE ELE VENHA A TOMAR. NÃO SE ESQUEÇA DE QUE
OS PODERES PESSOAIS DE UM MEMBRO DO CONSELHO SÃO MAIO-
RES QUE OS DE QUALQUER GOVERNO PLANETÁRIO. DEVE LEVAR EM
CONTA ESSE FATO EM TODAS AS SUAS ATITUDES...

— Obrigado, rapazes. — Rebka fez uma bola com o pedaço de pa-


pel e jogou-a por cima do ombro. — Ele é louco e pode fazer o que bem
entender... mas estou encarregado de controlá-lo e impedir que cometa
desatinos. Se não conseguir, é minha cabeça que vai rolar! Maravilhoso!
Era mais um exemplo de ação à distância, do governo tentando
164
controlar o que estava acontecendo a uma centena de anos-luz de distân-
cia. Rebka começou a trabalhar na segunda mensagem.
Levou mais uma hora para decifrá-la. Não parecia muito útil, mas
pelo menos era informativa e não lhe pedia que fizesse nada impossível.

...TALVEZ ISSO NÃO TENHA NENHUM REFLEXO DIRETO NA SUA


SITUAÇÃO, MAS FOMOS INFORMADOS DE QUE ESTÃO OCORREN-
DO ALTERAÇÕES NOS ARTEFATOS DOS CONSTRUTORES EM TODO O
BRAÇO DA ESPIRAL. ESTRUTURAS QUE PERMANECERAM ESTÁVEIS
DESDE QUE FORAM DESCOBERTAS PELOS HUMANOS, CECROPIANOS
OU ZARDALUS ESTÃO SOFRENDO ESTRANHAS MUDANÇAS EM SUAS
FUNÇÕES E PROPRIEDADES FÍSICAS. ESTE FATO ESTÁ ENCORAJANDO
MUITAS EQUIPES DE EXPLORAÇÃO A REEXAMINAREM A POSSIBILI-
DADE DE INVESTIGAR O INTERIOR, ATÉ HOJE DESCONHECIDO, DE VÁ-
RIOS DESSES ARTEFATOS...

— Não me diga! — Rebka olhou de cara feia para a tela do compu-


tador, que mostrava a tradução da mensagem. — E eu, que estava pronto
para explorar o Paradoxo antes de receber esta missão ridícula! Antes que
vocês me tirassem de lá, seus palhaços!

...ENQUANTO ESTIVER CUMPRINDO SUAS OUTRAS MISSÕES,


DEVE OBSERVAR DE PERTO O ARTEFATO DO SISTEMA DE DOBELLE
CONHECIDO COMO CORDÃO UMBILICAL E VERIFICAR SE OCORRE-
RAM MUDANÇAS SIGNIFICATIVAS NO SEU FUNCIONAMENTO OU
ASPECTO EXTERIOR. NÃO RECEBEMOS ATÉ O MOMENTO NENHUMA
COMUNICAÇÃO NESSE SENTIDO...

Rebka olhou para trás. Já perdera o Cordão Umbilical de vista havia


muito tempo. Tudo que viu foi uma linha interrompida no terminador do
planeta, como se fossem as contas alaranjadas de um colar. Estava ocor-
rendo uma grande erupção vulcânica naquela região. Olhou para baixo,
para a região que estava sobrevoando no momento. Verificou que tudo
parecia tranquilo, e passou para a terceira mensagem.
Que compensava as outras duas, Era a resposta a uma pergunta de
Rebka.

...UMA CECROPIANA QUE CORRESPONDE À SUA DESCRIÇÃO. ELA


SE INTERESSA PELA EVOLUÇÃO DE FORMAS DE VIDA QUANDO SUBMETI-
165
DAS A PRESSÕES AMBIENTAIS, MAS TAMBÉM É CONHECIDA COMO ESPE-
CIALISTA NA TECNOLOGIA DOS CONSTRUTORES...
...A CECROPIANA USA DIVERSOS NOMES (AGTIN H’RIF, ARIOJ H’MI­
-NEA, ATVAR H’SIAL, AGHAR H’SIMI) E VÁRIOS DISFARCES. ESTÁ SEMPRE
ACOMPANHADA POR UM INTÉRPRETE DA ESPÉCIE DOS LO’TFIANOS. É
PERIGOSA, TANTO PARA HUMANOS COMO PARA CECROPIANOS. FOI RES-
PONSÁVEL PELA MORTE DE PELO MENOS DOZE INDIVÍDUOS PERTENCEN-
TES A ESPÉCIES INTELIGENTES E VINTE E SETE PERTENCENTES A ESPÉCIES
POSSIVELMENTE INTELIGENTES.
OBSERVAÇÃO SUPLEMENTAR: LOUIS NENDA (HUMANO, PROVA-
VELMENTE SUBMETIDO A UMA PRÓTESE), CIDADÃO DO PLANETA KA­-
RELIA, DA COMUNIDADE DOS ZARDALUS, TAMBÉM ESTÁ A CAMINHO DE
DOBELLE, ACOMPANHADO POR UMA ESCRAVA HIMENOPT. NÃO DISPO-
MOS DE INFORMAÇÕES PRECISAS, MAS NOSSO CONTATO EM KARELIA
ACREDITA QUE NENDA TAMBÉM SEJA PERIGOSO.
NEM A CECROPIANA NEM O KARELIANO DEVEM RECEBER PERMIS-
SÃO PARA POUSAR NO SISTEMA DE DOBELLE..

Rebka não jogou a mensagem impressa para fora do carro (não po-
dia abrir a janela, naquela altitude e na velocidade em que estava viajan-
do), mas amassou o papel e jogou-o por cima do ombro, para fazer com-
panhia aos outros dois. Passara mais de três horas decifrando aqueles
comunicados do quartel-general do Círculo, e tudo que continham eram
más notícias.
Levantou a cabeça e olhou pela janela. Amaranth estava atrás dele,
escondido pelo teto do carro. Olhou para oeste, a tempo de ver o último
raio de Mandel antes que ele desaparecesse no horizonte.
Seus olhos se ajustaram à mudança da iluminação. E, enquanto o
faziam, captaram uma pequena luz vermelha que piscava em um canto do
painel. No mesmo instante, um bip insistente começou a tocar.
Sinal de emergência.
Sentiu um frio na espinha. Faltavam apenas sessenta horas para a
Maré de Verão, e alguém ou alguma coisa lá embaixo, na superfície escu-
ra de Tremor, estava passando por sérias dificuldades.

O sinal estava sendo transmitido de um local nas proximidades da


região dos Mil Lagos, perto de onde Max Perry achava que as gêmeas
Carmel poderiam estar escondidas. Rebka verificou as reservas de com-
bustível do carro. Eram mais que suficientes; os carros aéreos eram capa-
166
zes de dar a volta completa ao planeta com um tanque de combustível.
Quanto a isso, não precisava se preocupar. Enviou uma curta mensagem
a Perry e Graves, aumentou a velocidade e mudou o curso sem esperar
pela aprovação dos outros.
Mandel ainda não nascera novamente, mas Gargântua estava alto
no céu e sua luz era suficiente para a aterrissagem. Rebka olhou à frente.
Estava sobrevoando uma série de lagos circulares, cuja superfície turbu-
lenta combinava com o modo como se sentia no momento. Em nenhum
lugar, de horizonte a horizonte, havia qualquer sinal de vida. Os animais
deviam estar todos no fundo dos lagos ou nas partes mais baixas da de-
pressão de Pentacline. Ou talvez mais fundo ainda... as formas de vida
mais persistentes cavavam túneis na superfície torturada de Tremor. Será
que as gêmeas Carmel tinham feito a mesma coisa?
Talvez estivesse chegando tarde demais. As gêmeas não eram es-
pecialistas em sobrevivência no deserto, e a cada segundo que passava
as forças de maré que agiam sobre o planeta se tornavam mais intensas.
Rebka aumentou mais ainda a velocidade do carro, fazendo-a che-
gar quase ao limite. Não havia mais nada que pudesse fazer. Sua mente se
perdeu em divagações.
A gravidade é a força mais débil da natureza. A interação forte, a
interação eletromagnética e até mesmo a interação “fraca”, que governa
a desintegração beta, são ordens de grandeza mais poderosas. Dois elé-
trons a cem anos-luz de distância um do outro se repelem com uma força
elétrica igual à força de atração gravitacional entre dois elétrons a meio
milímetro de distância.
Há que considerar, porém, a força gravitacional que produz as ma-
rés. Ela é ainda mais fraca. É causada por uma diferença entre forças gravi-
tacionais, a diferença entre a atração sofrida por um lado de um corpo e a
atração sofrida pelo outro lado. Enquanto a gravidade varia com o inverso
do quadrado da distância — ao dobro da distância corresponde uma força
quatro vezes menor —, a força das marés varia com o cubo da distância:
ao dobro da distância corresponde uma força oito vezes menor; ao triplo
da distância, uma força vinte e sete vezes menor.
A força das marés devia ser desprezível.
Devia, mas não é. As marés agem sobre um bilhão de luas em toda
a galáxia, forçando-as a apresentar sempre a mesma face para os plane-
tas-mestres. Elas afetam continuamente o interior dos planetas, apertan-
do e puxando, liberando tensões geológicas e mudando a face do planeta
a cada ciclo. Elas desintegram qualquer astro que se aproxime de um bu-
167
raco negro, reduzindo-o a partículas subatômicas.
Porque a variação com o cubo da distância também ocorre no sen-
tido contrário: à metade da distância corresponde uma força oito vezes
maior; a um terço da distância, uma força vinte e sete vezes maior; a um
décimo da distância...
No momento da maior aproximação de Mandel, o sistema de Do-
belle estava a um onze avos da sua distância média em relação ao astro.
Em consequência, seus componentes eram submetidos a uma força mil
trezentas e trinta e uma vezes maior que a média.
Era a Maré de Verão.
Hans Rebka tinha sido informado por Max Perry a respeito desses
fatos básicos, e pensava neles enquanto sobrevoava a superfície de Tre-
mor. A cada quatro horas, a grande mão invisível da gravidade de Man-
del e Amaranth apertava e puxava Opala e Tremor, tentando transformar
suas formas quase esféricas em elipsóides alongados. Perto da Maré de
Verão, uma energia equivalente à de uma dúzia de guerras nucleares era
introduzida no sistema... não apenas uma vez, mas duas vezes a cada dia
de Dobelle.
Rebka visitara mundos que haviam sofrido recentemente uma
guerra nuclear. Com base nessa experiência, esperava ver um planeta em
frangalhos, um caos tão completo que a existência da vida seria impossí-
vel.
Entretanto, não era o que estava acontecendo.
Havia erupções localizadas, isso era inegável. Mas quando olhava
para a superfície que desfilava lá embaixo, não podia ver nada que se
assemelhasse nem de perto ao que imaginara.
Que havia de errado?
Rebka e Perry tinham se esquecido de um fato que era conheci-
do desde a época de Newton: a gravidade é uma força global. Nenhuma
substância conhecida é imune aos seus efeitos; toda partícula, onde quer
que se encontre no universo, está sujeita à força gravitacional de todas as
outras partículas.
Assim, enquanto a guerra nuclear limita sua fúria à atmosfera, aos
oceanos e às primeiras dezenas de metros da superfície terrestre de um
planeta, as forças das marés comprimem, tracionam e retorcem cada cen-
tímetro cúbico do astro. São forças distribuídas, que se fazem sentir desde
o alto da atmosfera até o núcleo denso e superaquecido do planeta.
Rebka examinava a superfície e não via nenhum sinal de uma catás-
trofe iminente. Seu erro era natural e elementar. Devia estar procurando
168
muito mais fundo. Nesse caso, talvez tivesse pela primeira vez uma idéia
da verdadeira natureza da Maré de Verão.
Quando o carro pousou, a superfície estava sendo castigada por
uma tempestade de areia. Rebka colocou o carro diretamente contra o
vento, confiando nos sensores de microondas para desviar o veículo de
rochas suficientemente grandes para causar danos. A aterrissagem foi
suave, mas ele logo se viu diante de um problema. O sistema de busca
e salvamento lhe informava que a fonte do sinal de emergência estava
menos de trinta metros à sua frente, mas o detector de massa dizia que
não havia nenhum objeto do tamanho de um carro aéreo ou de uma es-
paçonave em um raio de trezentos metros. Olhar pela janela era inútil. O
mundo à frente do carro terminava em um véu de areia a menos de dez
metros do nariz do veículo.
Rebka consultou novamente o sistema de BES. Não havia dúvida
quanto à localização do transmissor. Calculou a direção e a distância da
porta do carro. Forçou-se a sentar-se e esperar cinco minutos, escutan-
do a tempestade de areia que açoitava o carro e torcendo para que o
vento amainasse. Ele continuou, mais forte do que nunca. A visibilidade
também não estava melhorando. Finalmente, equipou-se com um par de
óculos e um respirador, vestiu uma roupa resistente ao calor e abriu ligei-
ramente a porta. Pelo menos, aquela combinação era familiar. O vento
cortante, a atmosfera opressivamente quente, o ar malcheiroso... parecia
que estava em casa. Tivera que conviver com tudo aquilo durante a infân-
cia, em Teufel.
Saltou do carro.
A areia que estava no ar era incrível, tão fina que a menor abertura
no seu traje se tornava uma porta de entrada. Ela também fustigava-lhe o
corpo. Em poucos segundos, estava sentindo um gosto estranho na boca;
de alguma forma, a areia conseguira vencer a barreira do respirador. Mi-
lhões de dedos invisíveis puxavam o seu traje, tentando arrancá-lo. Sentiu
um profundo desânimo. As condições ali eram piores do que em Teufel.
Sem a proteção de um carro, como alguém poderia sobreviver a tal casti-
go por uma hora que fosse? Era uma faceta de Tremor que Perry, com sua
preocupação com vulcões e terremotos, se esquecera de abordar. Se a
perturbação atmosférica fosse suficiente, não seria necessária nenhuma
atividade interna do planeta para torná-lo inabitável; as tempestades de
areia se encarregariam disso.
Rebka certificou-se de que o cabo-guia estava firmemente amar-
rado à fuselagem do carro aéreo. Em seguida, começou a caminhar. O
169
transmissor finalmente apareceu quando estava a menos de quatro me-
tros de distância. Não admira que os sensores de massa não o houvessem
localizado. Era muito pequeno... uma unidade portátil, a menor que já
vira. Não podia ter mais que trinta centímetros de lado e alguns centíme-
tros de espessura. Havia uma curta antena na parte superior, e o aparelho
estava apoiado em um monte de pedras, que ficava em uma elevação do
terreno. Alguém tivera o cuidado de assegurar que as transmissões, por
fracas que fossem, tivessem o máximo alcance possível.
Alguém. Mas quem, e onde? Se quem quer que fosse tivesse deixa-
do o transmissor onde estava e fugido a pé para buscar abrigo, era pouco
provável que estivesse vivo. Um humano desprotegido não conseguiria
caminhar mais do que uma centena de metros naquela tempestade de
areia antes de morrer sufocado.
Mas talvez houvesse alguma informação quanto ao seu destino.
Todos os transmissores de emergência dispunham de um compartimento
para mensagens, localizado na base. Se o viajante tivesse deixado aquele
lugar apenas alguns minutos atrás...
Não era provável, disse Rebka para si mesmo, enquanto retirava
a luva e estendia a mão para a placa deslizante na base do transmissor.
Estava recebendo o sinal de emergência fazia mais de uma hora. Provavel-
mente, as transmissões haviam começado muito antes.
Enfiou a mão na estreita abertura. Quando as pontas dos dedos to-
caram o fundo, uma onda de dor subiu pela sua mão até tomar conta do
corpo inteiro. Seus músculos se enrijeceram tão depressa que não teve
nem tempo de gritar. Não conseguiu retirar a mão. Tombou, indefeso, por
cima do transmissor.
Um modulador neural, pensou, um momento antes que um novo
choque, ainda mais forte que o primeiro, o atingisse. Não podia mais
respirar. Segundos antes de perder a consciência, a raiva se apossou de
Rebka. Raiva daquela missão estúpida, raiva de Tremor... mas, mais que
tudo, raiva de si mesmo.
Cometera um erro incrivelmente estúpido, um erro que lhe cus-
taria a vida. Atvar H’sial era perigosa e estava à solta na superfície de
Tremor. Sabia disso antes de pousar. Mesmo assim, comportara-se como
uma criança em um piquenique, deixando de tomar as precauções mais
elementares...
Mas eu estava tentando ajudar.
E daí? Seu cérebro rejeitou aquela desculpa no momento em que a
descarga elétrica fez o seu corpo se contorcer pela terceira e última vez.
170
Foi você mesmo quem disse: as pessoas que são suficientemente tolas
para se deixar matar não estão em condições de ajudar ninguém...
E agora, infelizmente, jamais saberia como Tremor se comportava
durante a Maré de Verão. O planeta vencera; ele havia perdido...
O vento carregado de areia gritou, triunfante, em torno do seu cor-
po inconsciente.

171
ARTEFATO: ELEFANTE
N° de série: 859
Coordenadas galácticas: 27.548,762/16.297,442/-201,33
Nome: Elefante
Conjunto estrela/planeta: Cam H’ptiar/Emsenn
Nó de Bose mais próximo: 1.121
Idade estimada: 9,223 ± 0,31 megaanos
História da exploração: Descoberto por observação remota em -4553
E., visitado por uma expedição cecropiana em -3227 E. Membros da mesma
expedição penetraram pela primeira vez no seu interior e mediram seus parâ-
metros (veja mais abaixo). Equipes subsequentes de exploração atravessaram
o Elefante pela primeira vez (-2068 E.), tentaram comunicar-se com o Ele-
fante (-1997 E., -1920 E., -1883 E., sendo que nenhuma dessas tentativas teve
sucesso) e removeram e examinaram várias amostras do seu material (-1882
E., -1551 E.). Pequenas mudanças no aspecto e nos parâmetros do artefato
foram observadas a cada visita, e uma estação permanente de observação (a
Estação do Elefante) foi instalada pelos cecropianos em Emserin, a quatro
minutos-luz de distância, no ano de -1220 E. Observadores humanos visita-
ram pela primeira vez a Estação do Elefante 2.900 anos depois, em 1668 E.
Este artefato vem sendo observado continuamente já há mais de cinco mil
anos-padrão.
Descrição: O Elefante é uma massa gasosa de forma irregular, com uma
largura máxima de aproximadamente quatro mil quilômetros e uma largura
mínima de novecentos quilômetros. Na realidade, não se trata de um gás, mas
de uma massa muito rarefeita de fibras poliméricas e dutos de transferência.
O interior é um excelente condutor de calor e eletricidade, comportando-se
em muitas regiões como um supercondutor.
Os resultados da aplicação de estímulos sugerem que a massa reage a
qualquer influência externa, mas tende a voltar ao estado original após cer-
ca de vinte anos. Os reparos são feitos através da duplicação de estruturas
já existentes; os materiais incidentes (fragmentos de cometas, por exemplo)
são utilizados, catabólica e anabólicamente, para sintetizar os componentes
necessários. Mudanças de temperatura localizadas são rapidamente corrigidas
para a temperatura média de 1,63 kelvin, compatível com o uso de He II
como fluido para transferência de calor. O mecanismo de refrigeração que
mantém as subunidades do Elefante a uma temperatura de menos de 2 kel-
vins ainda é desconhecido.
Qualquer buraco que seja perfurado no Elefante (incluindo a retirada
172
de fragmentos de até vinte quilômetros de profundidade e testemunhos lon-
gitudinais completos) é tapado a partir do interior, com uma pequena redução
no volume global. A forma externa se mantém constante, e a impressão de
um corpo amorfo é obviamente errônea. A menos que se retire ou acrescente
material, tanto o tamanho como a forma do Elefante se mantêm invariantes
com uma precisão de menos de um milímetro em qualquer direção.
Finalidade: O Elefante está vivo? O Elefante é inteligente? Essas dúvi-
das perduram até hoje. A maioria dos pesquisadores acredita que o Elefante
seja um artefato ativo, com uma limitada capacidade de regeneração. Vagaro-
samente, as amostras retiradas se tornam inertes, sua condutividade diminui,
e o sistema perde o seu caráter homeostático. Se o Elefante está vivo, seu
tempo de resposta a estímulos externos é muito grande (centenas de anos), o
que sugere um metabolismo extremamente lento.
Qualquer que seja o grau de inteligência do artefato, é inegável que o
Elefante pode funcionar, no todo ou em parte, como um computador para
aplicações gerais. Depois do trabalho pioneiro de Demerle e T’russig, o Ele-
fante tem sido muito usado em aplicações que exigem grandes quantidades
de memória e uma velocidade moderada de processamento.
Se o Elefante é uma entidade inteligente, a própria noção de finalidade
é inaplicável. Entretanto, novos testes serão necessários para esclarecer esta
questão.

— Do Catálogo Lang Universal de Artefatos,


Quarta Edição.

173
Capítulo 16

Maré de Verão menos sete.

— É como uma caça ao tesouro — disse Graves. Estava caminhan-


do na frente, devagar, mas com decisão. Com as mãos atrás das costas e
sua maneira descontraída, parecia um esqueleto no meio de um passeio
matutino. — A velha brincadeira de salão. Lembra-se?
Max Perry olhou para ele. Crescera em um mundo muito pobre
para se permitir o luxo de festas e brincadeiras. Costumava considerar a
comida o maior de todos os tesouros. E o único jogo que lhe ocorria no
momento era o da sobrevivência.
— Você recebe algumas pistas — prosseguiu Graves. — Primeiro,
o sinal de rádio. Depois, as setas. Em seguida, as cavernas misteriosas.
Finalmente, se tiver sorte... o tesouro!
O carro pousara em um planalto que ficava entre os Mil Lagos e a
depressão de Pentacline. Naquela terra-de-ninguém, a erosão abrira uma
série de túneis e buracos no solo macio, como argila que um gigante idoso
tivesse moldado com dedos artríticos.
Os buracos, de vários metros de largura, estavam espalhados ao
acaso, formando ângulos variados com a superfície. Alguns eram quase
verticais; em outros, a inclinação era tão pequena que se tornava muito

174
fácil caminhar até o fundo.
— Tome cuidado! — Perry detestava a atitude casual de Graves. —
As bordas desse buraco podem ceder a qualquer momento... e a gente
não sabe o que existe no fundo! Toda esta área é usada como refúgio
pelos animais de Tremor durante o verão.
— Calma. Sei o que estou fazendo. — Graves deu mais um passo
em direção à borda de um dos buracos, mas teve que pular para trás
quando o chão começou a ceder sob seus pés. — Sei o que estou fazen-
do — repetiu. — Este não é o buraco que estamos procurando. Siga-me.
Tomou de novo a dianteira, contornando a região perigosa. Perry
seguiu-o a uma distância que esperava que fosse segura. Como a expec-
tativa deles havia sido encontrar outro carro, talvez acidentado, no local
de onde vinha o pedido de socorro, os dois tinham ficado surpresos ao
deparar apenas com um transmissor de rádio. Ao lado do transmissor,
desenhada em preto em uma pedra branca de calcário, havia uma flecha.
Ela apontava diretamente para o túnel escuro e inclinado em cuja boca
Graves se encontrava no momento. Em cima da flecha alguém havia ra-
biscado as palavras “Ali Dentro”.
— É fascinante. — Graves inclinou-se para observar o interior do
túnel. — Ao que me parece...
— Não chegue tão perto! — exclamou Perry. — Se o solo aqui for
como na borda daquele outro...
— Oh, bobagem! — Graves bateu no chão com o pé. — Está vendo?
Sólido como a Aliança. E eu li o relatório antes de viajar para Dobelle...
não existem animais perigosos em Tremor.
— Você pode ter lido o relatório, mas fui eu que escrevi aquela
porcaria. Existe muita coisa que não sabemos a respeito de Tremor. —
Perry avançou cautelosamente até a entrada do túnel e olhou para baixo.
A rocha parecia firme e muito antiga. Em Tremor, aquilo era bom sinal.
Naquele local, a superfície pelo menos era razoavelmente estável, já que
resistira às últimas Marés de Verão. — Seja como for, não são apenas os
animais. Areias movediças podem ser igualmente perigosas. Não sabe-
mos nem qual é a profundidade deste buraco. Antes de começar a desci-
da, seria prudente fazermos uma sondagem.
Pegou um pedaço de pedra do tamanho de um punho cerrado e
jogou-o no interior do túnel. Os dois homens se inclinaram para a frente,
à espera do barulho que a pedra faria ao chegar ao fundo. Houve um si-
lêncio de dois segundos, e depois um ruído surdo, um grito de protesto e
um assovio de surpresa.
175
— Ah-ah! Isso não foi o barulho de uma pedra caindo em areia
movediça. — Graves estalou os dedos e começou a descer para o fundo
do buraco. Estava com uma lanterna, que usava para iluminar o caminho
à frente. — As gêmeas Carmel estão lá embaixo. Eu lhe disse que estáva-
mos na pista certa, comandante. O sinal de rádio, a flecha, a caverna, e
depois as... — Parou. — E depois... ora, ora, ora. Estávamos errados.
Perry, alguns passos atrás, esticou a cabeça para olhar. O feixe es-
treito de luz da lanterna revelava uma série de olhinhos brilhantes. En-
quanto Graves mantinha a lanterna parada, um pequeno animal, cujo
pêlo escuro estava coberto por uma camada de pó, começou a subir len-
tamente a ladeira. A himenopt estava esfregando o corpo arredondado
com uma das patas dianteiras. Enquanto os dois a observavam, surpresos,
ela se sacudiu como um cachorro molhado, levantando uma nuvem bran-
ca de poeira.
Ouviram outro assovio e em seguida um clique-clique-clique de
membros articulados.
— Kallik oferece seu respeito e obediência — disse uma voz fami-
liar, sibilante. J’merlia apareceu na curva do túnel. Ele também estava to-
talmente coberto pelo pó branco. — Ela é uma serva leal e obediente.
Quer saber por que jogaram pedras nela. Foi ordem do seu amo?
O rosto estreito do lo’tfiano não estava equipado para demonstrar
emoções humanas, mas sua voz tinha um tom espantado e preocupado.
Em vez de responder, Graves continuou em frente e foi dar em uma pe-
quena caverna, cujo chão estava coberto de gesso em pó. Olhou para a
pequena pilha de objetos que havia no meio da caverna.
— Estavam aqui no escuro?
— Não. — Os olhos compostos de J’merlia brilharam à luz da lan-
terna. — Não está escuro. Nós dois podemos enxergar muito bem aqui.
Precisam da nossa ajuda?
Perry, que seguira Graves de longe, entrou também na caverna e
ficou na ponta dos pés para alcançar o teto.
— Está vendo? Rachaduras. São recentes. Isto pode desabar a qual-
quer momento. Que estão fazendo aqui embaixo, J’merlia?
— Esperando nossos amos. — O lo’tfiano dirigiu uma série de as-
sovios rápidos a Kallik e prosseguiu: — Eles nos trouxeram para cá e nos
disseram para esperar até que voltassem para buscar-nos. É o que esta-
mos fazendo.
— Está falando de Atvar H’sial e Louis Nenda?
— É claro. Os amos não mudam nunca.
176
— Quer dizer que Nenda não voltou para casa, afinal. Há quanto
tempo eles partiram?
— Dois dias. A princípio, ficamos na superfície, mas não estávamos
nos sentindo bem. Muito calor, muita poeira no ar. Mas aqui, debaixo da
terra, está mais confortável...
— Com o teto prestes a cair na cabeça de vocês? Quando eles dis-
seram que voltariam?
— Não disseram. Por que o fariam? Temos comida; temos água
para beber; estamos seguros aqui.
— Não perca tempo com ele, comandante. — Graves, depois de
examinar o interior da pequena caverna, agachou-se e começou a esfre-
gar os olhos, irritado com a fina poeira que se levantava cada vez que se
mexia. — Atvar H’sial e Louis Nenda certamente não contaram seus pla-
nos a J’merlia. Por que o fariam, como diz J’merlia? Para facilitar a nossa
vida? Não. — Sua voz se transformou em um sussurro. — Não sei nem se
pretendem voltar! Talvez estes dois tenham sido abandonados aqui. Mas
este também não é o ponto. A pergunta certa, que faço a mim mesmo e
de cuja resposta não gosto, é: para onde eles foram! Para onde foram,
faltando tão pouco tempo para a Maré de Verão, que não puderam levar
J’merlia e Kallik com eles?
Como que em resposta à pergunta, houve um tremor na caverna. O
teto resistiu, mas todos ficaram cobertos de poeira.
— Não interessa para onde eles foram! — Perry teve que parar
para tossir. — Estou preocupado é conosco e com o que vamos fazer em
seguida.
— Vamos procurar as irmãs Carmel. — Graves esfregou os olhos de
novo. Estava parecendo um palhaço de circo.
— Claro. Mas onde? E quando? — perguntou Perry. Graves podia
ter perdido a noção de tempo, mas ele, não. — Faltam apenas cinquenta
e cinco horas para a Maré de Verão.
— Tempo suficiente.
— Não. Você pensa que as coisas só vão começar a acontecer daqui
a cinquenta e cinco horas? Está redondamente enganado. Quem estiver
na superfície de Tremor faltando cinco horas, ou mesmo quinze, para a
Maré de Verão provavelmente não vai escapar. Se não encontrarmos as
gêmeas nas próximas dez a doze horas, teremos que desistir da busca e
voltar para o Cordão Umbilical.
Perry estava finalmente conseguindo fazer o conselheiro compre-
ender a situação. Graves se levantou e deu um suspiro.
177
— Está bem. Não temos tempo para discutir. Vamos procurar as
gêmeas.
— E quanto a esses dois? — perguntou Perry, apontando para Kallik
e J’merlia.
— Eles vêm conosco, naturalmente. Atvar H’sial e Louis Nenda po-
dem decidir não voltar, ou chegar tarde demais, ou não conseguir en-
contrar o local... Você disse que a bateria do transmissor estava quase
esgotada.
— E está mesmo. Concordo com o senhor. Não podemos abando-
nar os alienígenas. O ar do carro será suficiente para todos nós. — Perry
voltou-se para J’merlia e Kallik. — Venham. Vamos dar o fora daqui.
Vendo que os dois permaneciam imóveis, estendeu a mão para um
dos finos membros dianteiros de J’merlia e puxou-o em direção à entrada
do túnel. Surpreendentemente, o lo’tfiano resistiu.
— Com todo o respeito, comandante Perry. — J’merlia firmou-se
em seis dos seus pés e baixou o corpo até o abdome tocar no chão. — Os
seres humanos são muito mais sábios que eu e Kallik, sabemos disso, e
gostaríamos de fazer o que nos pede. Mas Atvar H’sial e Louis Nenda nos
deram ordens explícitas para ficar aqui até que retornassem.
Perry voltou-se para Graves, frustrado.
— E agora? Não querem me obedecer. Acha que atenderiam a uma
ordem sua?
— É provável que não. — O conselheiro olhou calmamente para
J’merlia. — Você me atenderia?
O lo’tfiano estremeceu e encolheu-se ainda mais. Graves fez que
sim com a cabeça.
— A resposta é clara. Entenda, comandante, nós os colocamos
diante de um dilema. Embora tenham sido treinados para nos obedecer,
não podem desobedecer às ordens dos seus amos. Também têm um forte
instinto de conservação, mas não se consideram em perigo aqui. Entre-
tanto, eu tenho uma proposta alternativa, que talvez considerem aceitá-
vel. Podemos deixá-los aqui...
— Não podemos! Eles vão morrer!
— Não estou falando em deixá-los indefinidamente. Estamos perto
da depressão de Pentacline. Podemos ir até lá em busca das gêmeas. Se
instalarmos uma bateria nova no transmissor, poderemos voltar para cá,
com ou sem as gêmeas. A essa altura, talvez Nenda e Atvar H’sial já te-
nham voltado. Se não, a superfície de Tremor provavelmente estará ainda
mais agitada e pode ser que os alienígenas concordem em partir conosco.
178
Perry ainda hesitava. Afinal, sacudiu a cabeça, negando.
— Acho que podemos fazer melhor do que isso. — Voltou-se para
J’merlia. — Atvar H’sial e Louis Nenda não disseram a vocês para não sair
do lugar onde foram deixados?
— Isso mesmo.
— Mas vocês já saíram... para se abrigar nesta caverna. Isso mostra
que devem ter uma certa liberdade de movimento. Que distância você e
Kallik estariam dispostos a se afastar?
— Um momento, por favor. — J’merlia deu as costas a Perry e man-
teve um diálogo sibilante com a himenopt, que se mantivera sentada no
chão, imóvel, durante toda a discussão. Finalmente, fez que sim com a
cabeça.
— Não é tanto uma questão de distância, mas de tempo. Uns pou-
cos quilômetros não seriam problema; Kallik e eu estamos em condições
de percorrer essa distância a pé. Mas, se nos assegurarem que podere-
mos voltar para cá em três ou quatro horas, estamos dispostos a percor-
rer uma distância maior de carro.
Graves negou com a cabeça.
— Quatro horas é pouco. Qual o tamanho da depressão de Penta-
cline, comandante?
— Ela tem uns cento e cinquenta quilômetros de extensão.
— Se as gêmeas estiverem lá, pode ser que estejam na parte mais
afastada. Tenho certeza de que podemos encontrá-las, mas a busca pro-
vavelmente levará mais do que algumas horas. Vamos fazer a coisa do
meu jeito: deixar esses dois aqui e depois voltar para buscá-los.
Kallik emitiu um assovio e uma série de cliques agitados.
— Mas a necessidade de voltarmos diminuirá o tempo de busca. —
Perry ignorou a himenopt. — Se os alienígenas concordarem...
— Com todo o respeito, capitão — interveio J’merlia. Era a primeira
vez que interrompia um humano. — Desde que eu e Kallik nos conhece-
mos em Opala, venho ensinando a ela a linguagem humana. Já compre-
ende alguma coisa, embora ainda não saiba falar. Agora está me pergun-
tando se ouviu o que pensa ter ouvido. É verdade que estão procurando
outros humanos aqui na superfície de Tremor?
— Claro que estamos! Ou, por outra, devíamos estar! De modo que
chega de conversa, temos que...
Dessa vez foi a própria Kallik que o interrompeu. A himenopt se
aproximou de Perry, colocou-se na ponta dos pés e emitiu uma série de
assovios.
179
— Com todo o respeito — traduziu J’merlia, antes que Perry tivesse
tempo de prosseguir —, ela quer que saibam que existe uma espaçonave
na superfície de Tremor.
— Nós sabemos. Aquela que Kallik e Louis Nenda usaram para che-
gar aqui.
— Não está se referindo a essa. Antes de pousarem, o amo de Kallik
investigou a área, com medo de cair em uma armadilha. Ele captou sinais
do Sistema Bose de uma espaçonave. Kallik está dizendo que era uma
nave da Aliança, capaz de viajar pela Rede Bose. Ela acha que talvez tenha
trazido os humanos que estão procurando.
Kallik assoviou de novo. J’merlia assentiu.
— Ela está dizendo que a espaçonave se acha a apenas cem qui-
lômetros daqui. Usando o carro aéreo, chegariam lá em alguns minutos.
Kallik quer saber se estão interessados em conhecer a localização exata.

180
Capítulo 17

“Que pecados deve um homem cometer, em quantas vidas passa-


das, para nascer em Teufel?”
O trabalho de aguadeiro para meninos de sete anos era preciso e
implacável.
Vestir o traje, verificar o tanque de ar, selar o respirador, caminhar
até a comporta. Atenção: As comportas são abertas quando o vento na
superfície diminui de intensidade, cinco minutos e meio antes do alvore-
cer, depois que os predadores noturnos retornam para suas tocas. Se não
estiver lá na hora, perderá o direito a sua cota diária de alimento.
Do lado de fora. Esvaziar os dejetos da véspera (tempo previsto:
24 segundos); subir os vinte e quatro degraus de pedra até a nascente na
encosta do rochedo (33 segundos); lavar os recipientes de plástico (44 se-
gundos); lavar os filtros (90 segundos); encher os recipientes de água (75
segundos); descer os degraus (32 segundos); entrar e fechar a comporta
(25 segundos).
Margem de erro: sete segundos. Se você se atrasar mais do que
isso, será pego pelo Remouleur, o Triturador, o temido vento da alvorada
de Teufel. E você estará morto.
Rebka sabia disso. De repente, percebeu que se atrasara. Não po-
dia acreditar. Em geral, quando chegava sua vez de buscar água, sempre
chegava antes da hora. Era o único com tempo e confiança suficientes
para ficar de pé, diante da comporta aberta, e contemplar por alguns se-
181
gundos a paisagem árida e a vegetação espinhenta de Teufel. Os estratos
na encosta do rochedo ainda estavam muito escuros para ser vistos, mas
ele sabia que eram de um tom arroxeado, intercalado com cinza e um
vermelho pálido. A faixa de céu acima do desfiladeiro já mostrava sinais
da alvorada que se aproximava. O brilho das estrelas começava a diminuir
e as nuvens mais altas se tingiam de rosa. Era uma visão de beleza indes-
critível. Deixava-o excitado.
Mas não naquele dia. O filete de água da nascente estava mais fra-
co, e as latas se recusaram a encher com a rapidez habitual. Quase cinco
minutos já se haviam passado. Ainda estava no último degrau e a máscara
começava a ficar embaçada. Tinha que voltar, embora os recipientes ain-
da não estivessem cheios. É agora ou nunca.
Tempo de descida, 32 segundos; tempo para entrar e fechar a com-
porta, 25 segundos.
Desceu correndo os degraus, arriscando-se a tropeçar e cair. Pelo
que acontecera a outros meninos, sabia o que esperar. Se o Remouleur o
pegasse no topo da escada, seria carregado para fora do desfiladeiro como
uma folha seca e ninguém jamais o veria novamente. Isso acontecera com
Rosamunde. A meio caminho, o vento era mais fraco, mas arrancava as
vítimas da escada, arremessando-as contra as chaminés de pedra. Era lá
que haviam encontrado o corpo de Joshua, ou, por outra, o que restara
do corpo depois que os predadores diurnos terminaram seu serviço. Se
estivesse quase chegando à comporta, e o vento o alcançasse nos últimos
três ou quatro degraus, não teria força suficiente para carregá-lo. Mesmo
assim, rasgaria o respirador, faria com que perdesse o equilíbrio, por mais
que se agarrasse às pedras ou ao corrimão, e o derrubaria no lago de
águas ferventes que havia ao lado da comporta. O corpo de Lee flutuara
no lago durante nove horas antes que pudessem recuperá-lo. Partes do
cadáver da menina tinham sido perdidos para sempre. A carne cozida se
desprendera dos ossos e escapara das redes.
Ainda faltam doze degraus. E o Remouleur está chegando. Em vinte
segundos estará aqui. Os remoinhos de vento tomaram conta do desfila-
deiro. Já é possível ouvir o ruído distante da chuva torrencial. Os degraus
estão escorregadios.
Se o vento o surpreendesse já do lado de dentro da comporta, você
tinha alguma chance de escapar. Diziam os mais antigos que se você jo-
gasse fora os recipientes de água e se deitasse no chão, talvez conseguis-
se manter o respirador intacto e sobreviver até que a comporta de fechas-
se totalmente. Entretanto, Rebka jamais conhecera alguém que houvesse
182
conseguido fazer isso. E o castigo por voltar sem água (ou, pior ainda, sem
os recipientes) era muito severo.
Mas não tão severo quanto a morte.
Ainda faltam seis degraus.
O tempo havia se esgotado. Deixou cair os recipientes.
Ouviu um grito estranho; seu corpo foi levantado e arrastado em
uma superfície pedregosa. A água fria encharcou seus braços e pernas. O
respirador foi-lhe arrancado do rosto. Pelo menos, a morte seria rápida.
Mas não queria morrer. Resistiu à força que o imobilizava, tentando
segurar o respirador e colocá-lo de novo no lugar.
Seus dedos crispados encontraram mãos humanas. O choque foi
tão grande que durante alguns segundos não pôde fazer nada.
— Hans! Hans Rebka! — O grito se repetiu, e desta vez conseguiu
entender as palavras.
Abriu os olhos para contemplar pela última vez o céu de Teufel. Em
vez dos fiapos róseos de nuvens dilaceradas pelo vento, o que viu foi o
brilho faiscante de água corrente. E no centro daquela torrente, de boca
aberta, ofegante, havia um rosto molhado e sujo de poeira.
Era Darya Lang.
Quando percebeu o que havia feito, Darya teve vontade de sentar­-
se no chão e começar a chorar.
A primeira coisa que fizera depois de acordar tinha sido ir verificar
o transmissor. Quando viu alguém caído sobre o aparelho, a primeira re-
ação foi de regozijo. Isso ensinaria uma lição a Atvar H’sial! A cecropiana
devia saber que não era correto deixar uma pessoa abandonada num lu-
gar deserto sem ao menos explicar-lhe por quê.
Quando Darya se aproximou, percebeu que não se tratava da ce-
cropiana. Era um humano... um homem... meu Deus, era Hans Rebka!
Darya deu um grito e saiu correndo. A poeira de Tremor era tão le-
tal para ele quanto seria para ela. Se estivesse morto, jamais se perdoaria.
— Hans. Oh, Hans, desculpe...
Ele estava inconsciente, não podia ouvi-la. Mas não estava morto.
Darya teve forças para colocá-lo nos ombros (pesava menos do que ela) e
carregá-lo para a cachoeira. Enquanto o pousava na plataforma de pedra,
seus olhos se abriram. Aquele olhar de surpresa foi a expressão mais ali-
viada que jamais havia visto em um rosto humano.
Durante vinte minutos, teve o prazer de cuidar dele, de vê-lo pra-
guejar, cuspir poeira e fungar um pó cinzento. Era maravilhoso, simples-
mente porque estava vivo. E então, antes mesmo que pudesse acreditar
183
que ele estava recuperado, Rebka se pôs de pé e apontou para cima.
— Você não está segura aqui, mesmo que pense o contrário. —
Ainda movia a mão e o braço com dificuldade, por causa da dor que o
modulador neural deixara nos seus nervos. — Mais algumas horas e a
água dessa cachoeira pode virar vapor. A Maré de Verão está chegando,
Darya, e existe apenas um caminho para a segurança. Venha.
Conduziu-a para a superfície árida. Chegando ao carro aéreo, fez
uma rápida inspeção. Depois de alguns minutos, sacudiu a cabeça e sen-
tou-se no chão.
— Não importa aonde foi Atvar H’sial ou se vai voltar. Não iremos
muito longe nessa coisa. — Inclinou o corpo para passar a mão pelas en-
tradas de ar, na parte de baixo do carro. — Veja você mesma.
A tempestade de areia havia amainado, mas as entradas de ar ain-
da estavam entupidas. Pior ainda, no lugar onde Rebka removera a cama-
da superficial de poeira a moça pôde ver que o metal estava brilhante e
desgastado.
— Isso foi de pousar aqui. — Ele colocou a grade de volta no lugar.
— Acho que dá para fazer mais uma viagem sem uma revisão completa,
mas não mais do que isso. E não podemos nos arriscar a enfrentar outra
tempestade de areia. Se encontrarmos alguma no caminho, vamos ter
que subir o mais que pudermos. Nosso combustível também é crítico. Se
pegarmos um vento de proa muito forte, estaremos perdidos.
— E as irmãs Carmel? Você devia estar procurando por elas. — Da-
rya Lang continuava agachada debaixo da nave. Ela explicara a Rebka por
que montara uma armadilha e a forma como Atvar H’sial a abandonara.
Ele parecera aceitar sua história, sem dar muita importância aos detalhes.
Entretanto, a moça se sentia envergonhada.
Sabia por quê. A armadilha tinha sido mais que um desejo de se
proteger quando Atvar H’sial voltasse. Estava querendo se vingar da ce-
cropiana. Mas seu míssil perdera o rumo e atingira a pessoa errada.
— Não podemos fazer nada para ajudar as gêmeas — replicou Re-
bka. — Pode ser que Graves e Perry tenham tido mais sorte do que eu.
Talvez eles as tenham encontrado, ou talvez a espaçonave que você e
J’merlia viram possa ajudá-las. Não estou contando muito com isso, po-
rém, se for quem penso que é.
— Louis Nenda?
Rebka fez que sim com a cabeça e desviou os olhos. Tinha suas pró-
prias razões para tentar parecer calmo e senhor da situação. Em primei-
ro lugar, caíra na armadilha de Darya Lang com tanta facilidade que até
184
agora estava envergonhado de si mesmo. Ele, que por sua própria pro-
fissão tinha que ser atento e cauteloso, havia se mostrado imprudente e
irresponsável. Cinco anos antes, teria verificado o transmissor inteiro, em
busca de armadilhas. Em vez disso, deixara-se enganar como uma criança.
Em segundo lugar, a experiência mostrava que os sonhos a respeito
de sua infância em Teufel eram uma indicação valiosa. Tratava-se do in-
consciente tentando dizer-lhe alguma coisa. Experimentava sonhos desse
tipo apenas quando se achava em uma situação difícil.
Em terceiro lugar, e talvez a causa principal das duas outras preocu-
pações, estava o fato de que Tremor havia mudado desde que ele pousara
para investigar o transmissor de rádio. Superficialmente, era uma mudan-
ça para melhor. O vento havia amainado, a areia estava reduzida a não
mais que uma camada de meio centímetro, que cobria tudo, e mesmo o
rugido distante dos vulcões não era mais o mesmo.
Mas isso era impossível. Faltavam menos de quarenta horas para
a Maré de Verão. Amaranth estava no zênite, um grande olho vermelho,
ocupando cinco graus do céu; Mandel, a oeste, achava-se ainda maior, e
Gargântua estava tão brilhante que podia ser visto ao meio-dia de Man-
del. As energias que as marés estavam acumulando no interior de Tremor
e Opala eram prodigiosas, suficientes para produzir abalos sísmicos vio-
lentíssimos.
Nesse caso, por que os abalos não estavam ocorrendo?
A energia tinha que ser conservada, mesmo em Tremor, mas po-
dia assumir outras formas. Estaria se acumulando no interior do planeta,
através de algum processo desconhecido?
— Acho que devíamos ficar aqui mesmo — estava dizendo Darya
Lang. — As coisas se acalmaram bastante. Se continuarem assim...
— Não vão continuar. Vão piorar muito.
— Quanto?
— Não tenho certeza.
Na verdade, não fazia muita diferença. Temos que sair de Tremor,
uma voz estava dizendo no seu ouvido, ou morreremos. Ainda bem que
Darya não podia ouvir aquela voz, mas ele aprendera a não ignorá-la.
— Temos que ir embora — insistiu. — Assim que você estiver pron-
ta.
— Para onde vamos?
— Para o Cordão Umbilical, e depois para a Estação de Meio Ca-
minho. Lá estaremos seguros. Mas não podemos esperar. O Cordão Um-
bilical está programado para se manter afastado da superfície de Tremor
185
durante a Maré de Verão.
A moça entrou no carro e consultou o cronômetro.
— O Cordão Umbilical se levanta doze horas antes da Maré de Ve-
rão. Faltam, portanto, vinte e sete horas. Podemos chegar lá em um dia
de Dobelle. Temos tempo de sobra.
Rebka fechou a porta do carro.
— Eu gosto de ter tempo de sobra. Vamos.
— Está bem. — Darya sorriu para ele. — Mas você conhece Tremor
melhor do que eu. Que acha que vai acontecer aqui quando a Maré de
Verão chegar?
Rebka respirou fundo. A moça estava tentando puxar conversa,
mas, pior que isso, parecia pensar que ele estava nervoso e precisava ser
acalmado. O problema é que tinha razão. Ele estava nervoso. Não podia
explicar por quê. Talvez porque tivesse sido pego de surpresa por uma
armadilha idiota e não quisesse que o fato se repetisse. Todos os nervos
do corpo lhe diziam para dar o fora de Tremor o mais depressa possível.
— Darya, eu gostaria muito de trocar opiniões com você a respeito
da Maré de Verão. — Não estava aborrecido com a moça por tê-lo apa-
nhado em uma armadilha, repetiu para si mesmo; a culpa tinha sido toda
sua. — Mas prefiro fazer isso quando estivermos no Cordão Umbilical,
viajando para a Estação de Meio Caminho. Pode me chamar de covarde,
mas este lugar me assusta. Por isso, se você chegar um pouquinho para lá,
para eu ajustar os controles...

186
Capítulo 18

Maré de Verão menos cinco.

O Sonho de Verão estava bem escondido.


A depressão de Pentacline era o maior acidente geográfico na su-
perfície de Tremor. Com cento e cinquenta quilômetros de diâmetro, co-
berta de vegetação, podia ser vista do espaço, a meio milhão de quilôme-
tros de distância, como uma mancha esverdeada na superfície cinzenta
de Tremor. Ali ficava também o ponto mais baixo do planeta. Os cinco
vales, que se irradiavam como braços estendidos da depressão central,
tinham que subir mais de oitocentos metros para chegar ao nível da pla-
nície vizinha.
A pequena espaçonave pousara quase no meio do braço que apon-
tava para o norte, em um ponto no qual a vegetação densa era interrom-
pida por uma pequena ilha de basalto negro. Contudo, estava no momen-
to escondida debaixo das árvores. Pouco maior que um carro aéreo, o
Sonho de Verão estava vazio, com todos os sistemas desligados. Apenas a
radiação residual do Sistema Bose traía sua presença.
Max Perry entrou na nave abandonada e olhou em torno, surpreso.
Sua cabeça quase encostava no teto, e o espaço interno tinha menos de
três metros de largura. Um passo bastou para levá-lo da escotilha princi-

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pal para a minúscula cozinha; mais um e estava diante do painel de con-
trole.
Examinou os instrumentos simples do painel, com seus botões e
mostradores, e sacudiu a cabeça.
— Isto parece um brinquedo. Não sabia que era permitido entrar
na Rede Bose com uma nave tão pequena.
— E normalmente não é. — Graves havia recuperado o controle.
Não parecia perfeitamente equilibrado, mas as mãos tremiam menos e
o rosto ossudo não revelava mais um turbilhão de emoções. — Trata-se
de um pequeno iate de turismo, construído para viagens locais. Os proje-
tistas não imaginavam que um Sistema Bose fosse instalado mais tarde,
e certamente ninguém pensou que viesse a passar por tantas Transições
de Bose. Mas Shasta é assim mesmo... as crianças fazem o que querem.
As gêmeas Carmel convenceram os pais a instalar o Sistema Bose... —
Voltou-se para J’merlia. — Quer pedir a Kallik para parar com isso, antes
que ela faça alguma bobagem?
A pequena himenopt tinha se aproximado da unidade de propulsão
da nave. Removera a tampa e estava examinando o interior. Voltou-se ao
ouvir as palavras de Graves.
— Não há perigo — traduziu J’merlia, depois de ouvir uma série de
cliques e assovios. — Com todo o respeito, Kallik está dizendo que não
vai fazer nenhuma bobagem. É claro que alguém tão ignorante como ela
não pode saber muita coisa a respeito de algo tão complicado quanto
o Sistema Bose, mas Kallik está convencida de que o combustível desta
nave praticamente se esgotou. Ela não poderá deixar o planeta. Talvez
nem ao menos consiga entrar em órbita. Ela já suspeitava disso, porque
o sinal que o amo recebeu ao fazer um levantamento da superfície era
muito fraco.
— Isso explica por que as gêmeas ainda não foram embora. — Per-
ry tinha ligado o computador e estava examinando os arquivos de bor-
do. — Também explica por que vieram parar aqui. De acordo com estes
registros, elas usaram a Rede Bose para chegar ao sistema de Dobelle
e pretendiam seguir daqui para o território dos zardalus, em mais duas
transições, mas o combustível do Sistema Bose se esgotou. Poderiam con-
seguir um novo suprimento na Estação de Meio Caminho, mas não havia
maneira de saberem disso. O único outro lugar para onde poderiam ter
ido neste sistema seria Opala, mas sua chegada teria sido imediatamente
descoberta.
— O que, infelizmente, não se aplica a este planeta. Como vamos
188
encontrá-las? — Graves foi até a porta e olhou para fora, fazendo estalar
as juntas dos dedos. — O erro foi meu. Imaginei que, no momento em
que encontrássemos a nave, minha missão estaria cumprida. Jamais me
ocorreu que fossem suficientemente estúpidas para abandonar a nave e
sair vagando pela superfície do planeta.
— Posso ajudá-lo a encontrá-las. Mas, se conseguir, como pretende
detê-las?
— Deixe isso por minha conta. Está na minha esfera de competên-
cia. Somos criaturas fáceis de condicionar, comandante. Achamos fácil o
que conhecemos e misterioso o que não nos é familiar. — Graves gesti-
culou com o braço magro em direção à depressão de Pentacline. — Tudo
isso é misterioso para mim. Elas estão escondidas aí fora, em algum lugar.
Mas por que trocariam esta nave, e a relativa segurança, por aquilo?
O que podia ser visto da nave era uma massa verde de vegetação,
sombria e impenetrável, que os tremores de terra faziam agitar-se conti-
nuamente, dando a ilusão de um único organismo entregue a movimen-
tos convulsivos.
— Elas saíram porque acharam que era seguro e ninguém poderia
encontrá-las. Mas eu posso. — Perry olhou para o relógio. — Temos que
agir depressa. Já se passou muito tempo desde que partimos da caverna.
J’merlia. — Voltou-se para o lo’tfiano, que olhava para ele, preocupado.
— Prometemos que levaríamos vocês dois de volta em quatro horas. E
vamos cumprir a promessa. Venha comigo, conselheiro. Sei onde elas de-
vem estar... vivas ou mortas.
Fora da nave, a atmosfera era ainda mais opressiva. Devia estar
fazendo no mínimo dez graus a mais do que na planície. O basalto negro
vibrava sob os pés dos dois humanos, quente e pulsante como a pele lisa
de um gigantesco animal. Perry caminhou ao longo da borda da platafor-
ma de pedra, examinando-a minuciosamente.
Graves o seguiu, enxugando o suor da testa.
— Se está procurando pegadas, detesto desapontá-lo, mas..
— Não. Marcas de erosão. — Perry ajoelhou-se. — Produzidas por
água corrente. A superfície de Tremor está coalhada de pequenos lagos.
Os animais nativos não têm nenhum problema, mas a água que bebem
é imprópria para o consumo humano. As irmãs Carmel vão precisar de
água doce.
— Pode ser que tenham um purificador.
— Devem ter, e vão precisar dele... Água doce, em Tremor, é um
termo relativo. Eu e você não conseguiríamos bebê-la, nem Geni e Elena
189
Carmel. — Perry passou a mão por uma depressão na pedra. — Se es-
tão vivas, vão se manter perto de um curso d’água. E não importa qual
a direção que tomaram inicialmente, se partiram desta pedra (e devem
ter partido, porque o Sonho de Verão ainda está aqui), vão acabar nas
proximidades de uma das linhas de escoamento da água. Aqui está uma
delas. Há outra mais adiante, mas esta plataforma de pedra é inclinada e
estamos no lado mais baixo. Vamos seguir esta primeiro.
Deixou-se cair cautelosamente da plataforma de pedra. Graves o
seguiu, apertando os olhos quando suas mãos tocaram o basalto. A ro-
cha estava quente, quase o suficiente para queimar-lhe as mãos. Perry ia
se afastando rapidamente, descendo por uma rampa de trinta graus que
mergulhava em uma cortina de cipós de veios arroxeados.
— Espere por mim! — Graves levantou uma das mãos para prote-
ger os olhos. Folhas com bordos serreados cortaram-lhe as costas da mão
e arranharam-lhe o couro cabeludo desprotegido. De repente, estava do
outro lado, debaixo da cúpula de vegetação que assinalava o primeiro
nível da depressão de Pentacline.
Ali, a luz de Mandel e Amaranth se limitava a uma sombra azul­
-esverdeada. Pequenas criaturas levantaram vôo. Julius Graves pensou
a princípio que fossem insetos ou pássaros, mas uma consulta a Steven
revelou que se tratava de pseudocelenterados, mais parecidos com me-
dusas voadoras do que com qualquer outra forma de vida da Terra ou de
Miranda. As criaturas deram gritinhos de medo e voaram para longe de
Graves, mergulhando na escuridão. Ele continuou a seguir Max Perry. De-
pois de mais alguns metros, a temperatura debaixo das copas das árvores
havia caído vários graus.
Perry estava acompanhando o leito seco de um regato que serpen-
teava por entre troncos amarelos e cogumelos de dois metros de altura.
Nuvens de minúsculas criaturas aladas saíam das folhas das árvores e vo-
avam de encontro ao seu rosto.
— Eles não mordem — disse Perry, por cima do ombro. — Continue
andando.
Mesmo assim, Graves agitou a mão na frente do rosto, para impe-
dir que os insetos entrassem nos seus olhos. Imaginou por que Perry não
havia trazido máscaras e respiradores para eles. Estava tão distraído que
se esqueceu de olhar para a frente e esbarrou nas costas do outro.
— Encontrou alguma coisa?
Perry fez que não com a cabeça e apontou para baixo. Dois passos
adiante, o leito terminava em um buraco vertical. Graves se inclinou para
190
a frente mas não conseguiu ver o fundo.
— Espero que não estejam lá embaixo. — Perry já dera meia-volta.
— Venha.
— E se o outro regato também terminar do mesmo jeito? — Graves
estava estalando de novo as juntas.
— Azar o nosso. Vamos precisar de novas pistas, mas não teremos
tempo de segui-las. Estará na hora de cuidar da nossa própria segurança.
Em vez de voltar para a plataforma de pedra, contornou-a, cami-
nhando em direção ao segundo regato. Longe dos regatos, a vegetação
rasteira era mais densa. Rijos bambus cresciam até a altura dos joelhos,
arranhando as botas e rasgando as pernas das calças. A seiva irritante das
folhas partidas criava vergões vermelhos nas barrigas das pernas. Perry
praguejou, mas não reduziu o passo.
Depois de mais vinte metros, parou e apontou.
— Ali está o outro leito. Alguma coisa passou várias vezes por aqui.
— As plantas da margem do regato estavam amassadas e partidas. Sobre
os caules esmagados havia uma camada castanha de seiva seca.
— Animais? — Graves inclinou-se para esfregar as canelas e as bar-
rigas das pernas, que tinham começado a coçar desesperadamente.
— Talvez. — Perry levantou o pé direito e pisou em um caule intac-
to, tentando avaliar sua resistência. — Mas eu duvido. Seria preciso um
animal que pesasse tanto quanto uma pessoa para deixar essas marcas.
Pelo que sei, nunca foi visto um animal tão pesado nesta região. Pelo me-
nos, os rastros são fáceis de seguir.
Começou a caminhar ao longo da margem, seguindo a trilha de
plantas esmagadas. Estava ficando cada vez mais escuro, mas os rastros
eram bem visíveis. A princípio, seguiam paralelamente ao leito seco do
rio, mas, a partir de um certo ponto, penetravam no leito. Trinta metros
adiante, este penetrava em um denso bosque de samambaias.
Graves colocou a mão no ombro de Perry.
— Se você estiver certo, daqui por diante é comigo. Deixe-me ir na
frente, sozinho. Quando precisar de você, eu chamo.
Perry hesitou por um momento e depois permitiu que Graves pas-
sasse. Nos últimos cinco minutos, o outro mudara. Todos os sinais de ins-
tabilidade haviam desaparecido do seu rosto, dando lugar a uma expres-
são de força, calor humano e compaixão. Era a postura de outro homem...
de um conselheiro.
Graves avançou cautelosamente até ficar apenas a alguns passos
do bosque de samambaias. Parou, escutou e depois de alguns segundos
191
fez que sim com a cabeça e voltou-se para Perry. Piscou para o compa-
nheiro, afastou as samambaias com as mãos e desapareceu no escuro
interior do bosque.
Eram as irmãs Carmel, tinham que ser; haviam sido finalmente lo-
calizadas, embora Perry tivesse considerado isso altamente improvável
quando ele, Graves e Rebka haviam deixado Opala. Mas que estaria Gra-
ves conversando com elas, protegido pela escuridão?
Uns poucos minutos na depressão de Pentacline, faltando tão pou-
co tempo para a Maré de Verão, pareciam uma eternidade. O calor e a
umidade eram quase insuportáveis. Perry olhou várias vezes para o re-
lógio, recusando-se a crer que o tempo estivesse passando tão devagar.
Embora fosse dia claro, e Mandel ainda não tivesse chegado ao zênite, a
visibilidade estava ficando cada vez menor. Haveria uma tempestade de
areia na atmosfera? Perry olhou para cima, mas nada pôde ver por causa
das várias camadas de vegetação. Sob os seus pés, porém, havia indícios
de sobra da atividade sísmica de Tremor. O chão da floresta vibrava con-
tinuamente.
Trinta e cinco horas para a Maré de Verão.
O relógio continuava andando na cabeça de Perry, juntamente com
uma pergunta. Tinham prometido levar J’merlia e Kallik de volta para o
local onde os haviam encontrado. A promessa fora feita de boa-fé e sem
reservas. Teriam, porém, coragem de fazer isso, mesmo sabendo que em
breve Tremor se tornaria uma armadilha mortal para todos os seres vivos,
exceto alguns organismos locais, já adaptados?
Uma luz forte assustou Perry. A cortina de samambaias tinha sido
afastada. Graves apareceu na abertura e fez um gesto para que ele se
aproximasse.
— Venha. Quero que escute isto e sirva de testemunha.
Max Perry abriu caminho por entre as frondosas samambaias. Ilu-
minado por dentro, o bosque se revelou menor do que parecia. As sa-
mambaias formavam apenas uma cerca viva, uma proteção conveniente
no interior da qual tinha sido instalada uma tenda flexível, sustentada por
longarinas pneumáticas. Graves estava mantendo aberto um painel da
porta, e quando Perry entrou ficou surpreso com o tamanho do interior.
O chão era um quadrado com pelo menos dez metros de lado. Mesmo
levando em conta o fato de que as paredes se inclinavam para dentro, o
cômodo tinha um volume considerável. E o mobiliário era surpreenden-
temente completo, incluindo tudo que fosse necessário para uma vida
confortável. Algum tipo de aparelho de refrigeração e controle da umi-
192
dade devia estar funcionando, pois o ambiente no interior da tenda era o
mais agradável possível. E ela estava tão bem escondida que jamais seria
descoberta em uma busca superficial. Não admira que as gêmeas prefe-
rissem ficar ali, onde dispunham de muito mais espaço do que no interior
acanhado do Sonho de Verão.
A tenda devia ser também totalmente à prova de luz, ou então ti-
nham acabado de acender as luzes. Mas Perry teve tempo apenas para
olhar ligeiramente para os cilindros luminosos nas paredes, antes que sua
atenção fosse atraída para as ocupantes da tenda.
Elena e Geni Carmel estavam sentadas perto da parede dos fundos,
lado a lado, com as mãos nos joelhos. Usavam macacões castanhos, e os
cabelos lisos, praticamente da mesma cor que os macacões, caíam em
franja quase até os olhos. A primeira impressão de Perry foi a de duas pes-
soas idênticas, com a mesma semelhança com Amy que o fizera perder
a respiração a primeira vez que as vira nos cubos de imagem, em Opala.
Ao vê-las em carne e osso, porém, na tenda bem iluminada, a ilu-
são durou pouco tempo. Se as gêmeas se assemelhavam a Amy, era por-
que usavam o mesmo tipo de roupa e o mesmo penteado. Elena e Geni
Carmel pareciam cansadas e deprimidas, não lembrando em nada o jeito
alegre e confiante de Amy. O bronzeado que vira nos cubos tinha sido
substituído por uma palidez cadavérica.
Além disso, as gêmeas eram diferentes uma da outra. Embora tives-
sem feições parecidas, as expressões eram bem diversas. Uma delas era
claramente a gêmea dominante. Nascida alguns minutos antes, talvez, ou
ligeiramente maior e mais forte?
Era ela que estava encarando Max Perry. A outra mantinha os olhos
baixos, dirigindo apenas um olhar tímido e disfarçado para o recém-che-
gado. Entretanto, parecia à vontade com Graves, voltando-se para ele en-
quanto o conselheiro fechava o painel da tenda e se sentava em frente a
elas.
Com um gesto, Graves convidou Perry para sentar-se a seu lado.
— Elena — apontou para a gêmea dominante — e Geni passaram
por momentos difíceis. — Sua voz era suave, quase carinhosa. — Minhas
queridas, sei que se trata de recordações penosas, mas quero que re-
pitam para o comandante o que acabaram de me contar... e desta vez
vamos fazer uma gravação.
Geni Carmel endereçou a Perry outro olhar furtivo e olhou para a
irmã, procurando uma orientação.
Elena apertou os joelhos com mais força.
193
— Desde o começo? — Sua voz era grave para uma pessoa tão es-
belta.
— Não precisa ser do começo. Não é necessário nos contar como
começou a viagem. Isto está nos nossos registros. Quero que comece com
a chegada a Pavonis Quatro. — Graves estava com um pequeno gravador
na mão. — Quando estiver pronta, podemos começar.
Elena Carmel assentiu sem muita convicção e pigarreou várias ve-
zes.
— Ia ser o último planeta — começou, afinal. — O último antes de
voltarmos para Shasta. Antes de voltarmos para casa. — Sua voz falhou
quando disse a última palavra. — Por isso, decidimos ficar na superfície,
longe das pessoas. Compramos equipamentos especiais — fez um ges-
to abrangente — para podermos viver com conforto, longe de tudo. E
levamos o Sonho de Verão para um lugar seco no meio de um pântano.
Pavonis Quatro está cheio de pântanos. Desejávamos ficar afastadas da
civilização e queríamos acampar longe da nave.
Fez uma pausa.
— A culpa foi minha — disse Geni Carmel, com uma voz cansada,
um pouco mais aguda que a da irmã. — Conhecemos tanta gente, em
tantos planetas, e nossa nave era tão apertada... Eu estava precisando de
mais espaço.
— Nós duas estávamos — disse Elena, defendendo a irmã. Acam-
pamos a uns trinta metros da nave. Quando anoiteceu, achamos que era
uma boa idéia fazer alguma coisa realmente primitiva, como se estivés-
semos na Terra, dez mil anos atrás, e acendemos uma fogueira. O tempo
estava excelente, sem uma nuvem no céu. De modo que decidimos dor-
mir ao ar livre. Depois que escureceu totalmente, entramos nos sacos de
dormir e ficamos deitadas, olhando para as estrelas. — Franziu a testa.
— Não me lembro sobre o que conversamos.
— Eu me lembro — disse Geni. — Comentamos que aquela seria
nossa última parada e que depois teríamos que voltar para a monotonia
do nosso colégio em Shasta. Tentamos ver o nosso sol, mas as constela-
ções eram pouco familiares e não sabíamos em que direção olhar... — In-
terrompeu o que estava dizendo e olhou para a irmã.
— Pouco depois, adormecemos. — Elena estava falando com me-
nos facilidade. — E enquanto dormíamos eles chegaram. Eles... os...
— Os bércias? — perguntou Julius Graves.
As gêmeas fizeram que sim com a cabeça.
— Espere um momento, Elena — prosseguiu o conselheiro. —
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Quero que fiquem registrados alguns fatos sobre os bércias. Esses fatos
são bem conhecidos e fáceis de comprovar. Os bércias eram vertebrados
grandes e morosos. Como anfíbios noturnos, encontrados apenas em Pa-
vonis Quatro, tinham horror à luz. Seu estilo de vida era parecido com o
dos castores da Terra, hoje extintos. Como os castores, eram sociáveis,
gostavam da água e construíam represas. A principal razão pela qual se
considerou possível que fossem inteligentes era a complexa estrutura
dessas represas. Para fazê-las, usavam lama e os troncos da única espécie
de árvore de Pavonis Quatro. Essas árvores só cresciam em lugares secos.
Por isso, era quase inevitável que os bércias aparecessem à noite perto do
local onde as irmãs estavam acampadas.
Ele se voltou para Elena.
— Alguém já tinha lhe falado a respeito dos bércias antes de vocês
acamparem? Quem eles eram, qual o seu aspecto físico...
— Não.
— E quanto a você? — perguntou, olhando para Geni Carmel. A
jovem sacudiu a cabeça.
— Não — respondeu, em voz quase inaudível.
— Então eu gostaria de acrescentar uma descrição dos bércias a
este registro. Tudo indica que eles eram inofensivos e totalmente herbí-
voros. Contudo, para poderem roer o tronco das árvores, os bércias eram
equipados com fortes mandíbulas e dentes muito grandes. — Fez um si-
nal com a cabeça para Elena Carmel. — Prossiga, por favor. Descreva o
resto da noite de vocês em Pavonis Quatro.
— Não me lembro a que horas fomos dormir nem quanto tem-
po dormimos. — Elena Carmel olhou de lado para a irmã. — Só acordei
quando ouvi Geni gritar. Ela me disse...
— Quero ouvir diretamente de Geni. — Graves apontou com o
dedo para a outra irmã. — Sei que isto é penoso, mas conte-nos exata-
mente o que viu.
Geni Carmel parecia apavorada. Graves inclinou-se para a frente e
tomou-lhe as mãos entre as suas. Esperou.
— Pavonis Quatro tem uma grande lua — disse Geni, afinal. — Não
tenho o sono tão pesado quanto Elena, e o luar me acordou. Era noite
de lua cheia. A princípio, não olhei em torno. Fiquei ali, deitada no meu
saco de dormir, olhando para a lua. Lembro-me de que tinha uma mancha
escura, como se fosse uma faixa arredondada no vértice de um triângulo.
De repente, alguma coisa enorme se colocou entre mim e a lua. Achei que
devia ser uma nuvem; não percebi que se achava tão próximo até ouvir
195
sua respiração. Estava debruçado sobre mim. Vi uma cabeça escura e uma
boca cheia de dentes pontudos. Foi então que gritei chamando Elena.
— Antes de continuarmos — disse Graves —, gostaria de registrar
outro fato de fácil comprovação. O planeta Shasta, mundo natal de Elena
e Geni Carmel, não tem carnívoros perigosos. No passado, porém, eles
existiram. O maior e mais feroz desses animais era um quadrúpede in-
vertebrado conhecido como skrayal. Embora anatomicamente ele não
se pareça de modo algum com um bércia, existem certas semelhanças
superficiais e os dois animais tinham aproximadamente o mesmo peso e
altura. Elena Carmel, quando foi que você se deu conta de que havia um
bércia debruçado sobre sua irmã e vários outros em volta de vocês?
— Eu pensei... pensei que fosse um skrayal. Quer dizer... no começo
eu pensei. — Hesitou, e depois as palavras jorraram. — Claro, depois que
vi melhor o bicho e tive tempo de pensar, compreendi que não era pos-
sível, e de qualquer maneira nunca havíamos visto um skrayal... quando
nascemos eles já estavam extintos. Mas existem muitas histórias sobre
eles, algumas ilustradas, e logo que acordei nem sabia onde estava... tudo
que vi foram aqueles animais enormes, e um deles estava mostrando os
dentes para Geni.
— Que foi que você fez?
— Dei um grito, peguei a lanterna e acendi-a com intensidade má-
xima.
— Sabia que os bércias sofriam de fotofobia extrema e que morre-
riam de choque se submetidos a uma luz muito forte?
— Não fazia idéia.
— Sabia que os bércias eram possivelmente inteligentes?
— Já lhe disse que nunca tinha ouvido falar dos bércias. Só ficamos
sabendo disso depois, quando consultamos os dados sobre o planeta no
computador do Sonho de Verão.
— Você também não tinha meios de saber que aqueles bércias
eram os últimos membros adultos da espécie? E que os filhos não conse-
guiriam sobreviver sem o cuidado dos pais?
— Não sabíamos de nada disso. Só descobrimos quando voltamos
à Cidade de Capra e ouvimos dizer que estavam à nossa procura para nos
prender.
— Conselheiro — interrompeu Perry. Ele estava olhando de novo
para o relógio. — Já faz três horas que partimos. Precisamos voltar.
— Muito bem. Podemos parar por aqui. — Graves guardou o gra-
vador no bolso e voltou-se para Elena e Geni Carmel. — Haverá um pro-
196
cesso e julgamento em Shasta, em condições controladas, e também um
inquérito em Miranda. Mas eu posso assegurar a vocês que o que con-
taram é suficiente para demonstrar a inocência de ambas. Vocês mata-
ram por acidente, sem saber que estavam matando. Além disso, estavam
aterrorizadas e semi-adormecidas. Só não entendo uma coisa... por que
vocês fugiram. Mas a explicação para isso pode esperar. — Levantou-se.
— Agora preciso tomá-las sob minha custódia. Deste momento em dian-
te, considerem-se presas. E precisamos sair logo deste lugar.
As gêmeas se entreolharam.
— Não queremos ir — disseram, em uníssono.
— Vocês precisam. Estão em perigo. Estamos todos em perigo.
— Preferimos ficar e correr o risco — declarou Elena.
Graves olhou para elas de cara feia.
— Vocês não estão entendendo. O comandante Perry pode contar
os detalhes, mas vou resumir o que se passa: vocês podem se sentir se-
guras no momento, mas não conseguirão sobreviver à Maré de Verão, se
ficarem em Tremor.
— Deixem-nos, então. — Elena Carmel estava quase chorando. —
Vamos ficar. Se morrermos, será uma punição suficiente para contentar
a todos.
Graves suspirou e sentou-se,
— Comandante Perry, deve ir agora. Volte para buscar os outros e
deixe o planeta. Eu vou ter que ficar.
Perry continuou onde estava, mas tirou uma arma do cinto e apon-
tou-a para as gêmeas.
— Esta pistola pode matar, mas também pode ser ajustada para
deixar as pessoas apenas inconscientes. Se o conselheiro quiser, podemos
levá-las sem sentidos para o carro aéreo.
As jovens olharam apreensivas para a arma, mas Graves sacudiu a
cabeça.
— Não, comandante — disse, com ar cansado. — Isso não é so-
lução. Jamais conseguiríamos carregar as duas até o carro, e o senhor
sabe disso. Vou ficar. O senhor precisa ir e contar a J’merlia e Kallik o que
aconteceu. — Inclinou-se para trás e fechou os olhos. — Vá logo, antes
que seja tarde demais.
Suas palavras foram sublinhadas por um rugido distante de trovão.
Perry olhou para cima, mas ficou onde estava.
— Expliquem-me por quê — prosseguiu Graves. Ele abriu os olhos,
levantou-se devagar e começou a andar de um lado para outro da tenda.
197
— Expliquem-me por que não querem ir comigo. Acham que sou inimigo
de vocês... ou que os governantes da Aliança são todos monstros cru-
éis? Pensam que todo o sistema de justiça existe apenas para atormentar
e torturar jovens indefesas? Que o Conselho permitiria que sofressem
maus-tratos? Se isso ajudar, posso dar a vocês minha palavra de honra
de que estarão perfeitamente a salvo se vierem comigo. Mas, por favor,
digam-me o que é que tanto as assusta.
Elena Carmel olhou interrogativamente para a irmã.
— Posso? — Quando a irmã fez que sim com a cabeça, continuou.
— Haveria um tratamento para nós. Reabilitação. Não é verdade?
— É, sim. — Graves parou de andar e olhou para ela. — Mas apenas
para ajudá-las. Tiraria de vocês a dor das recordações. Não querem passar
o resto da vida revendo aquela noite em Pavonis Quatro, querem? Reabi-
litação não é castigo. É terapia. Vocês não vão sentir nada.
— Não pode ter certeza — disse Elena. — A reabilitação não é usa-
da em pessoas com problemas mentais... com vários tipos de problemas
mentais?
— Bem, ela sempre se concentra em um determinado incidente ou
dificuldade, mas ajuda em todas as áreas.
— Mesmo no caso de um problema que não consideramos como
problema. — Geni Carmel tomou a iniciativa pela primeira vez.
— A reabilitação nos deixaria mais “normais”. Mas nós não somos
normais, não pela definição que o senhor e o Conselho adotam.
— Geni Carmel, não tenho a menor idéia do que está tentando di-
zer, mas ninguém é totalmente normal. — Graves suspirou e coçou o alto
da cabeça calva. — Muito menos eu. Mas eu me submeteria à reabilita-
ção de bom grado, se isso fosse considerado necessário.
— Suponha que o senhor tivesse um problema que não quisesse
curar — propôs. — Algo que fosse mais importante para o senhor que
qualquer coisa no mundo.
— É difícil para mim imaginar uma tal situação.
— Está vendo? E o senhor representa a opinião do Conselho — dis-
se Geni. — A opinião da espécie humana.
— Vocês também são humanas.
— Mas somos diferentes — disse Elena. — O senhor já ouviu falar
de Mina e Daphné Dergori, do nosso planeta Shasta?
O conselheiro pareceu surpreso.
— Não. Por quê? Devia?
— Elas são irmãs — explicou Elena. — Irmãs gêmeas. Nós as co-
198
nhecemos desde pequenas. São da nossa idade e temos muitas coisas
em comum. Um dia, estavam viajando com a família em uma espaçonave
e houve um acidente. Quase todos morreram. No último momento, um
tripulante jogou Mina, Daphné e três outras crianças em uma nave de
salvamento e elas escaparam. Quando chegaram em casa, foram subme-
tidas à reabilitação. Para esquecerem o acidente.
— Procedimento correto. — Graves olhou para Perry, que estava
apontando de novo para o relógio. — Tenho certeza de que funcionou,
não funcionou?
— Elas esqueceram o acidente. — Geni estava pálida e suas mãos
tremiam. — Mas o senhor não entende? Nunca mais foram as mesmas
uma para a outra.
— Nós as conhecíamos muito bem — disse Elena. — Sabíamos
como se sentiam. Eram como nós; entre as duas existia um relacionamen-
to especial. Depois da reabilitação, porém, quando tornamos a vê-las...
não havia mais nada. Era como se fossem duas estranhas.
— E os senhores fariam isso conosco — acrescentou Geni. — Não
entende que seria pior do que nos matar?
Graves ficou imóvel por alguns momentos e depois se deixou cair
em uma cadeira.
— Foi por isso que fugiram de Pavonis Quatro? Porque achavam
que nós separaríamos vocês?
— E não é verdade? — perguntou Elena. — Não tentariam fazer
com que levássemos vidas “normais” e “independentes”? Isso não estaria
incluído no programa de reabilitação?
— Meu Deus do Céu! — O rosto de Graves voltou a ser agitado por
contorções espásticas. Ele o cobriu com as mãos. — Será que nós tería-
mos feito isso? Teríamos? Teríamos, sim, teríamos!
— Porque nossa relação de dependência mútua é “antinatural” —
observou Elena, com amargura. — Os senhores tentariam nos curar. A
idéia nos deixa apavoradas. É por isso que preferimos morrer a ir com o
senhor. De modo que é melhor ir agora e nos deixar em paz. Não quere-
mos a cura que nos oferece. Se temos que morrer, pelo menos morrere-
mos juntas.
Graves não parecia estar escutando.
— Cego — murmurou. — Cego durante anos, cego pela minha ar-
rogância. Convencido de que possuía um dom, certo de que era capaz de
compreender qualquer ser humano. Mas como pode um indivíduo enten-
der perfeitamente um ser composto? Existe tanta empatia assim? Duvido.
199
Levantou-se, aproximou-se das duas jovens e juntou as mãos, como
se estivesse rezando.
— Elena e Geni Carmel, prestem atenção. Se vierem comigo agora
e concordarem com um programa de reabilitação para tirar da memória
de vocês o que aconteceu em Pavonis Quatro, não serão separadas. Nun-
ca. Ninguém tentará “curar” a necessidade que sentem de estar juntas,
nem interferir de alguma forma no relacionamento entre vocês. Poderão
continuar a viver como sempre viveram. É um juramento que faço com
todos os átomos do meu corpo, investido da autoridade de membro do
Conselho da Aliança.
Baixou as mãos e deu meia-volta.
— Sei que estou pedindo que confiem em mim mais do que é ra-
zoável. Mas, por favor, acreditem na minha sinceridade. Podem discutir
o assunto à vontade. Eu e o comandante Perry vamos esperar do lado de
fora. Pensem na minha proposta... e digam que sim.
As gêmeas Carmel sorriram pela primeira vez desde que Perry en-
trara na tenda.
— Conselheiro — disse Elena —, estava certo quando disse que não
podia compreender os gêmeos. Não percebe que não há necessidade de
sair e que não precisamos conversar? Nós duas sabemos o que a outra
está pensando.
As jovens se levantaram simultaneamente e falaram em uníssono.
— Nós vamos com o senhor. Quando partiremos?
— Imediatamente. — Perry tinha sido um espectador silencioso,
alternando seus olhares entre o conselheiro, as gêmeas e o relógio. Pela
primeira vez, aceitou o fato de que Julius Graves tinha um dom para lidar
com as pessoas que ele próprio jamais viria a possuir. — Já estamos atra-
sados. Peguem apenas o que for absolutamente necessário. Ficamos aqui
mais tempo do que planejávamos. Faltam menos de trinta e três horas
para a Maré de Verão.
O carro aéreo levantou vôo da plataforma de basalto.
Está muito lento, disse Max Perry para si mesmo. Lento e difícil de
manobrar. Qual será o limite de peso deste carro? Aposto que estamos
próximos dele.
Não disse nada aos outros, mas só relaxou um pouco quando es-
tavam a uma altitude segura, viajando de volta para o local onde haviam
recolhido os dois alienígenas.
Aparentemente, os outros não compartilhavam sua preocupação.
Elena e Geni Carmel pareciam exaustas, sentadas na parte de trás do car-
200
ro e olhando fixamente pela janela. Graves mostrava-se muito animado,
conversando com J’merlia e Kallik a respeito dos zardalus e do planeta na-
tal de Kallik. Perry chegou à conclusão de que Steven devia ter assumido
o controle e estava simplesmente tratando de colher novas informações
para o seu banco de dados.
Perry não tinha muito tempo para observar os outros ou para con-
versar. Estava cansado também (fazia mais de vinte e quatro horas que
não dormia), mas a energia nervosa o mantinha bem acordado. Nas úl-
timas horas, a atmosfera de Tremor passara por uma transição. Antes,
estava carregada de poeira, mas praticamente não havia nuvens; agora,
o céu tinha sido tomado por densas nuvens negras e cor de ferrugem. A
viagem seria mais confortável se voassem acima daquelas nuvens, mas
Perry não ousara correr o risco de enfrentar tesouras de vento de força
desconhecida. Mesmo na altitude em que se encontravam, bem abaixo
da camada de nuvens, a turbulência era grande. Não era prudente viajar
a uma velocidade maior que metade da velocidade máxima. Relâmpagos,
que a poeira no ar tornava avermelhados, cortavam o céu com frequência
cada vez maior. A cada minuto, a base da camada de nuvens se aproxima-
va mais do solo.
Perry olhou para baixo. Podia ver uma dúzia de lagos fumegantes.
Estavam devolvendo à atmosfera a água que haviam acumulado. Tremor
iria precisar da proteção daquela camada de vapor d’água para se defen-
der dos raios diretos de Mandel e Amaranth.
Entretanto, não podia se defender da força das marés. O solo em
volta dos lagos estava começando a rachar. Quando o carro se aproximou
do local onde haviam encontrado J’merlia e Kallik, as condições pioraram
ainda mais.
Estava ficando cada vez mais difícil controlar o veículo. Perry co-
meçou a ficar preocupado. Um pouso naquelas condições seria muito
arriscado. Quanto tempo levaria para deixar J’merlia e Kallik e decolar
novamente? Se não houvesse sinal de Atvar H’sial e Louis Nenda, teria
coragem de abandonar os dois escravos na superfície?
Estavam quase chegando. Teria que tomar uma decisão nos dez
minutos seguintes.
Faltavam apenas trinta horas para a Maré de Verão. Arriscou-se a
aumentar ligeiramente a velocidade.
Um clarão avermelhado surgiu no céu, à frente do carro. Perry
olhou para ele com olhos cansados.
Seria Amaranth, que estava aparecendo através de uma brecha nas
201
nuvens? Acontece que não havia nenhuma brecha nas nuvens. Além dis-
so, estava muito baixo no céu.
Olhou de novo, reduzindo a velocidade até certificar-se do que era.
Quando teve certeza, girou o corpo no assento.
— Conselheiro Graves! J’merlia! Querem vir até aqui, por favor?
Gostaria de ouvir a opinião de vocês.
Era uma simples formalidade. Perry não precisava da opinião de
ninguém. Nas últimas horas, a atividade vulcânica naquela região tinha
sido intensa. No ponto exato onde J’merlia e Kallik haviam sido apanha-
dos, um brilho alaranjado se estendia de horizonte a horizonte. Rios de
lava fumegante cortavam o terreno enegrecido e sem vida, e em nenhum
lugar, de horizonte a horizonte, havia um só ponto onde um carro aéreo
pudesse pousar.
Perry estremeceu ao ver aquela cena de destruição... mas também
sentiu um profundo alívio.
Afinal de contas, não teria que tomar uma decisão. Tremor a toma-
ra por ele. Podiam seguir diretamente para a segurança do Cordão Um-
bilical.
Já estava fazendo as contas. O tempo de vôo, partindo do local
onde se encontravam no momento, seria de sete horas. Acrescentando
umas três horas para o caso de terem que se desviar das tempestades
piores ou reduzir a velocidade de cruzeiro, chegariam no máximo em dez
horas. E ainda faltavam dezoito horas para o Cordão Umbilical se desligar
da superfície de Tremor.
A margem de segurança era de oito horas. Tinham tempo de sobra.

202
Capítulo 19

Maré de Verão menos dois.

Ruído queria dizer baixa eficiência. Vibrações mecânicas, também.


Quando os motores de um carro aéreo estavam bem regulados, quase
não faziam barulho. Além disso, o vôo costumava ser extremamente su-
ave.
Darya Lang ouviu um chocalhar na parte de trás do carro e o piso
começou a tremer debaixo dos seus pés. Não havia dúvida: as vibrações
estavam aumentando. E aumentando depressa.
— Quanto falta? — Teve que gritar para se fazer ouvir. Hans Rebka
não levantou os olhos dos controles, mas sacudiu a cabeça, desanimado.
— Quatorze quilômetros. É muita coisa. Vai ser apertado. Estavam
voando a menos de mil metros de altitude, apenas o suficiente para não
aspirar mais poeira pelas tomadas de ar do veículo. O solo estava quase
invisível, oculto debaixo de uma nuvem de partículas de pó.
Darya levantou os olhos. À distância, avistou uma fina linha vertical,
bem à frente. Gritou:
— Já estou vendo, Hans! Lá está o Cordão Umbilical! Ao mesmo
tempo, Rebka gritou:
— Não adianta. Estamos perdendo sustentação.

203
O motor do carro começou a tossir e engasgar. Períodos de fun-
cionamento quase normal se alternavam com segundos de vibração em
que o veículo perdia altitude. Entraram na camada de poeira, e a linha
prateada do Cordão Umbilical desapareceu do campo de visão de Darya.
— Faltam seis quilômetros. Estamos a quatrocentos metros de al-
tura. — Rebka agora estava voando por instrumentos. — Não vou poder
escolher o local de pouso. Aperte bem o cinto e verifique se a máscara e o
respirador estão no lugar. Não sei como vai ser a aterrissagem.
Os carros aéreos eram veículos robustos. Tinham sido projetados
para funcionar em condições extremas. Uma coisa, porém, que não po-
diam assegurar era um pouso suave com um motor reduzido a ferro velho
por uma poeira abrasiva. A última falha ocorreu quando os instrumen-
tos mostravam uma altitude de vinte metros. Rebka mudou o ângulo dos
flaps para aumentar a sustentação e pousou com uma velocidade duas
vezes maior que a normal. No último momento, gritou para que Darya se
segurasse. Bateram com força no chão, tornaram a subir, passando por
cima de uma rocha suficientemente grande para rasgar o carro de ponta
a ponta, e deslizaram até parar.
— Chegamos! — Rebka abriu o fecho do cinto e correu para ajudar
Darya antes mesmo que o veículo parasse totalmente. Consultou o sensor
de microondas e deu um sorriso de triunfo. — Vamos, já sei a direção.
Estamos a menos de meio quilômetro do Cordão Umbilical.
As condições em terra eram muito melhores do que Darya espe-
rava. A visibilidade estava realmente reduzida a algumas dezenas de me-
tros, e o ruído do vento se misturava aos estrondos de explosões distan-
tes, mas o solo apresentava-se calmo e o caminho era fácil, a não ser no
lugar onde matacões do tamanho de casas se enfileiravam como dentes
quebrados. Passou entre dois deles logo atrás de Rebka, pensando que
tinha sido uma sorte o motor falhar quando falhara. Se tivesse funciona-
do por mais alguns segundos, o carro bateria de frente naquelas pedras.
Ainda não estava convencida de que Tremor fosse tão perigoso
quanto Perry afirmava, e sentia uma vontade quase irresistível de ficar e
explorar o planeta. Entretanto, depois de voar de tão longe para chegar
ao Cordão Umbilical, o mais lógico era usá-lo. Olhou para a frente. Certa-
mente haviam caminhado pelo menos meio quilômetro.
Sem olhar onde estava pisando, escorregou em uma grossa camada
de pó, lisa e traiçoeira como óleo. Rebka, logo à sua frente, caiu no meio
de uma nuvem de poeira, rolou no chão e levantou-se com dificuldade.
Em vez de continuar andando, parou e apontou para cima.
204
Tinham emergido em uma área protegida do vento. A visibilidade
melhorara por um fator de dez. Bem acima deles, um disco cujo contorno
era pouco nítido por causa da poeira, ocupava uma boa parte do céu.
Enquanto olhavam, o tamanho aparente do disco diminuiu rapidamente,
à medida que ele subia cada vez mais.
No momento em que Rebka gritou, a moça tinha acabado de com-
preender o que estava vendo.
— É o Cordão Umbilical! Está subindo!
— Mas chegamos aqui mais cedo do que esperávamos!
— Eu sei. Isso não devia estar acontecendo. Ele está subindo antes
da hora!
O Cordão Umbilical já estava quase desaparecendo no meio das
nuvens. Em volta da sua base, a plataforma usada para estacionar os car-
ros aéreos ainda era visível. Darya conhecia o tamanho da plataforma e
tentou avaliar a altitude. Calculou que já devia estar a quase um quilôme-
tro da superfície.
Voltou-se para Rebka.
— Hans, o nosso carro! Por que não o usamos para...
— Não adianta nem tentar. Mesmo que ele funcionasse, não tería-
mos onde pousar no Cordão Umbilical. Sinto muito, Darya. A culpa é toda
minha. Trouxe você para cá e agora estamos perdidos.
Estava falando mais alto que o necessário; como que para fazer
pouco das suas palavras, o vento havia cessado totalmente. A poeira no ar
começou a diminuir, a superfície ficou calma e Darya pôde ver até o carro
aéreo. Acima deles, o Cordão Umbilical parecia tentadoramente próximo.
Era a pior hora possível para um pensamento daqueles, mas Darya
achou que um pouco de tensão na voz de Hans Rebka o tornava ainda
mais sedutor. A autoconfiança e a competência eram virtudes... mas o
mesmo não se podia dizer da dependência mútua.
Apontou para o alto.
— Parou de subir, Hans. Quem o está controlando?
— Ninguém, talvez. — Ele não estava mais gritando. — As se­
quências de controle podem ser pré-programadas. Mas também pode ser
que Perry e Graves tenham acionado o mecanismo apenas para afastar o
Cordão Umbilical da superfície. Talvez o estejam mantendo ali enquanto
esperam para ver se aparecemos. Mas não podemos chegar até eles!
— Temos que tentar. — Enquanto Rebka ainda olhava para o Cor-
dão Umbilical, Darya já estava correndo em direção ao carro aéreo. —
Venha. Se pudermos fazer o carro planar perto da plataforma que existe
205
na base do Cordão Umbilical, talvez seja possível pular para a plataforma.
Escutou as próprias palavras com admiração. Seria realmente Da-
rya Lang que estava propondo aquilo? No Portal da Sentinela, sempre
evitara lugares altos, dizendo aos amigos e parentes, com um arrepio, que
a deixavam apavorada. Aparentemente, tudo no universo era relativo. No
momento, a perspectiva de pular de um carro aéreo danificado para o
Cordão Umbilical, um quilômetro ou mais acima do solo, não a deixava
nem um pouco preocupada.
Hans Rebka a seguiu, mas apenas para segurá-la pelo braço e fazê­-
la dar meia-volta.
— Espere um pouco, Darya. Olhe.
Outro carro aéreo estava se aproximando, vindo de noroeste, vo-
ando pouco abaixo da camada de nuvens. Estava perdendo altura até que
o piloto aparentemente viu o Cordão Umbilical. Depois disso, o carro mu-
dou de rumo e começou a subir em espiral.
Mas o Cordão Umbilical tinha começado de novo a subir, e mais
rapidamente desta vez. Darya e Rebka ficaram olhando, sem poder fa-
zer nada, enquanto o Cordão Umbilical desaparecia no meio das nuvens,
ainda perseguido pelo carro aéreo. Quando perderam os dois de vista,
parecia que o carro estava perdendo a corrida.
Darya voltou-se para Hans Rebka.
— Se Graves e Perry estão no Cordão Umbilical, quem está pilotan-
do o carro aéreo?
— Só pode ser Max Perry. Eu devo ter me enganado quanto à pre-
sença dele e de Graves no Cordão Umbilical. O Cordão Umbilical está sen-
do recolhido automaticamente, como sempre acontece durante a Maré
de Verão, só que desta vez o processo começou mais cedo. Deve ter sido
reprogramado. — Sacudiu a cabeça. — Não, pensando melhor, isso tam-
bém não faz sentido. Perry é a única pessoa que conhece os códigos de
controle. — Ele percebeu que a moça não concordara com a última afir-
mação. — Não é?
— Não. — Darya desviou os olhos, recusando-se a encará-lo. —
Atvar H’sial também conhece os códigos. Todos eles. Já lhe disse, foi assim
que viemos para cá. A culpa é toda minha. Jamais deveria ter concordado
em ajudá-la. Agora estamos encalhados aqui e ela está no Cordão Umbi-
lical, sã e salva.
Hans Rebka olhou para o céu nublado.
— Agora entendo. Maldita cecropiana! Enquanto voávamos para
cá, imaginei se ela ainda estaria em Tremor. J’merlia deve estar com ela.
206
Nesse caso, os passageiros daquele carro aéreo devem ser Perry e Graves.
— Ou talvez as irmãs Carmel.
— Não. Elas não teriam acesso a um carro aéreo. Seja como for,
podemos parar de especular. Aí vêm eles.
O carro surgiu do meio das nuvens, procurando um lugar para pou-
sar. Darya correu em sua direção, agitando os braços. O piloto a viu e
mudou de rumo. O carro pousou a não mais que cinquenta metros de
distância, criando uma pequena tempestade de areia com o deslocamen-
to de ar.
A porta do carro se abriu. Hans Rebka e Darya Lang ficaram olhan-
do, atônitos, enquanto dois humanos idênticos e usando trajes iguais sal-
tavam, seguidos por um lo’tfiano e um himenopt coberto de poeira. Os
últimos a saltar foram Julius Graves e Max Perry.
— Pensamos que vocês estivessem mortos!
— Pensamos que eram vocês que estavam no Cordão Umbilical!
— Onde os encontraram?
— Como vieram parar aqui?
Perry, Rebka, Lang e Graves estavam todos falando ao mesmo tem-
po, formando um pequeno círculo ao lado da porta do carro aéreo. Os
dois alienígenas e as irmãs Carmel ficaram à parte, olhando para a paisa-
gem de desolação que os cercava.
— Não há ninguém transmitindo... nosso receptor ficou ligado du-
rante todo o trajeto para cá — disse Graves. Olhou para Darya Lang. —
Tem alguma idéia do que aconteceu a Atvar H’sial?
— Não posso garantir, mas acho que está lá em cima, no Cordão
Umbilical.
— Não, não está. Ele está vazio. Não conseguimos alcançá-lo, mas
pudemos ver que nenhuma das cápsulas está sendo usada. E no momen-
to está fora do alcance dos carros aéreos. E você? Pensei que Atvar H’sial
a tivesse abandonado na superfície,
— Foi o que ela fez. Hans Rebka me salvou. Mas acho que Atvar
H’sial pretendia voltar para me buscar, porque me deixou suprimentos e
um transmissor de rádio.
— Negativo. Isso foi obra de J’merlia. — Graves apontou para o
lo’tfiano. — Ele me disse que Atvar H’sial não o proibiu de ajudar você,
de modo que se sentiu autorizado a fazê-lo. Ele estava muito preocupado
com a sua segurança. Disse que você não estava equipada para sobreviver
sozinha. Mais tarde, ele pensou que você tivesse morrido, porque não
conseguimos captar os sinais do seu transmissor. Tenho certeza de que
207
Atvar H’sial não pretendia voltar para buscá-la. Queria que você morresse
em Tremor.
— Onde está Atvar H’sial, então? — quis saber Rebka.
— Acabamos de perguntar isso a vocês — observou Perry. — Ela
deve estar com Louis Nenda.
— Nenda!
— Ele veio para cá na sua própria espaçonave — disse Graves.
— E você sabia que ele é capaz de conversar diretamente com os
cecropianos? Kallik contou a J’merlia que Nenda tem um implante feito
pelos zardalus que lhe permite usar feromônios para comunicar-se. Ele
e Atvar H’sial deixaram J’merlia e Kallik para trás e foram sozinhos para
algum lugar.
— Achamos que eles teriam vindo para cá. Atvar H’sial teve ajuda
de dentro. Alguém lhe forneceu as sequências de controle e ela progra-
mou o Cordão Umbilical para abandonar mais cedo a superfície de Tre-
mor. — Hans Rebka endereçou a Darya Lang um olhar do tipo “não diga
mais nada” e prosseguiu: — Ela queria que nós todos morrêssemos aqui
em Tremor, com a chegada da Maré de Verão. Foi por isso que deixou
também J’merlia e Kallik... não queria testemunhas.
— Mas nós captamos o sinal de emergência e fomos buscá-los.
— Perry fez um sinal com a cabeça para os alienígenas, que se man-
tinham em silêncio. — Acho que Nenda e H’sial pretendiam voltar para
buscá-los, mas teriam chegado tarde demais. O local estava coberto pela
lava. Tivemos que conservar J’merlia e Kallik conosco.
— Mas se Nenda voltou para a nave dele — disse Graves —, ele e
Atvar H’sial podem deixar o planeta quando quiserem.
— O que, infelizmente, não podemos fazer. — Depois de um pe-
ríodo de depressão, Rebka tinha reagido e estava cheio de energia. — O
Cordão Umbilical foi embora e só voltará depois da Maré de Verão. Só
dispomos de um carro aéreo... o nosso enguiçou quando estávamos che-
gando aqui. E, de qualquer maneira, eles não podem mesmo deixar o
planeta, de modo que não resolvem nada. Comandante Perry, precisamos
de um plano para sobreviver aqui. Teremos que permanecer em Tremor
até a Maré de Verão terminar.
— Quer que eu repita mais uma vez? Isso é impossível. — Perry
falou sem levantar a voz, mas seu tom amargo tinha mais impacto do que
se estivesse gritando. — Tenho tentado lhe explicar uma coisa desde o
dia em que chegou a Dobelle. Os humanos não podem sobreviver à Maré
de Verão na superfície de Tremor. Nem mesmo à Maré de Verão normal,
208
quanto mais a esta. Diga o que disser, não existe nenhum “plano de so-
brevivência” que possa nos salvar se ficarmos em Tremor. As coisas ainda
estão muito calmas aqui, não sei bem por quê. Mas isso não pode durar.
Todas as pessoas que estiverem na superfície de Tremor durante a Maré
de Verão vão morrer.
Como se o planeta tivesse escutado, um rugido distante e o gemi-
do de rochas sendo trituradas seguiram suas palavras. Momentos depois,
uma série de choques fez o chão tremer. Todos olharam em volta e depois
correram instintivamente para o interior do carro e uma ilusão de segu-
rança.
Darya Lang, a última a entrar, examinou com os olhos os sete que
a haviam precedido.
Não era um grupo promissor para um plano de salvamento de úl-
tima hora. As irmãs Carmel pareciam pessoas derrotadas. Já haviam so-
frido muito em Tremor; dali em diante, limitar-se-iam a cumprir ordens.
Graves e Perry estavam sujos e desgrenhados, com as roupas rasgadas
e cobertas de poeira e suor. Ambos tinham arranhões inflamados nas
pernas, e Graves estava também machucado na cabeça. Pior que isso:
comportava-se estranhamente, sorrindo para todos, como se a totalida-
de dos seus problemas tivesse terminado. E talvez isso fosse verdade. Se
havia alguém capaz de salvá-los, esse alguém era Max Perry e não Julius
Graves. Mas, depois de sua previsão pessimista, Perry mergulhara em um
silêncio taciturno, introvertido, contemplando alguma coisa que os ou-
tros não podiam ver.
J’merlia e Kallik pareciam relativamente normais, mas apenas por-
que Darya não sabia observar em seus corpos alienígenas os sinais de
tensão e sofrimento. J’merlia estava removendo meticulosamente a poei-
ra branca das pernas, usando as pontas macias dos membros dianteiros.
Não parecia preocupado com nada, a não ser a higiene pessoal. Kallik, de-
pois de sacudir o corpo algumas vezes, produzindo uma nuvem de poeira
que despertou protestos dos companheiros, estava esticando o corpo e
olhando para tudo com olhos arregalados. Se alguém ainda se mostrava
otimista, talvez fosse a pequena himenopt. Infelizmente, apenas J’merlia
era capaz de se comunicar com ela.
Darya olhou para Hans Rebka. Estava obviamente exausto, mas ain-
da era o mais capaz do grupo. Tinha feias marcas vermelhas no rosto,
produzidas pela máscara e pelo respirador, e havia círculos brancos de po-
eira em volta dos olhos. Quando viu que a moça estava olhando, porém,
conseguiu sorrir e piscar o olho.
209
Darya entrou e o espaço mal foi suficiente para fechar a porta. Ela
jamais esperara ver tantos seres, humanos ou alienígenas, em um peque-
no carro aéreo. A capacidade teórica era de quatro pessoas. As gêmeas
Carmel tinham se sentado no mesmo banco, mas J’merlia estava agacha-
do no chão, de onde podia ver e ouvir muito pouco, e Darya Lang e Max
Perry não tinham lugar para sentar.
— Que horas são? — perguntou Rebka, inesperadamente. — Que-
ro dizer: quanto tempo falta para a Maré de Verão?
— Quinze horas. — A voz de Perry não tinha nenhuma emoção.
— Que vamos fazer agora? Não podemos ficar aqui parados, es-
perando a morte. Qualquer coisa é melhor do que isso. Vamos examinar
nossas opções. Não podemos chegar até onde está o Cordão Umbilical,
mesmo que ele não suba mais. E não há nenhum lugar seguro na superfí-
cie de Tremor. E se levantarmos vôo e passarmos a Maré de Verão no ar?
Kallik deu uma série de gritinhos que soaram para Darya Lang como
um acesso de riso, enquanto Perry despertava do seu devaneio e sacudia
a cabeça, discordando.
— Já pensei nisso há muito tempo — disse, de cara feia. — O tan-
que do carro tem combustível apenas para oito horas, e isso com a lota-
ção normal. Se decolarmos agora (supondo que seja possível decolar com
tantas pessoas a bordo), teremos que descer de novo antes da Maré de
Verão.
— E se esperarmos até faltarem apenas quatro ou cinco horas para
a Maré de Verão — sugeriu Rebka —, e só então decolarmos? Nesse caso,
estaríamos fora da superfície durante o período crítico.
— Infelizmente, isso também não vai funcionar. — Perry olhou para
Kallik, que estava dando pulinhos e emitindo cliques e assovios. — Jamais
conseguiríamos nos manter no ar. Os vulcões e terremotos transformam
a atmosfera em uma massa de turbulência. — Voltou-se para o lo’tfiano.
— J’merlia, diga a Kallik para ficar quieta. Já é difícil pensar sem aquele
barulho.
A himenopt começou a pular ainda mais alto, e assoviou fazendo
um ruído diferente.
— Kallik está me pedindo para dizer — traduziu J’merlia —, com
todo o respeito, que estão se esquecendo da espaçonave.
— A espaçonave de Louis Nenda? — perguntou Rebka. — Aquela
em que Kallik chegou? Não sabemos onde está. De qualquer maneira,
Nenda e Atvar H’sial não nos receberiam a bordo.
Kallik emitiu outra série de assovios e começou a balançar o corpo,
210
aflita.
— Não, não. Kallik explica humildemente que está falando do So-
nho de Verão, a nave das irmãs Carmel. Sabemos exatamente onde ela
está.
— Mas o combustível acabou — argumentou Perry. — Lembra-se?
Kallik examinou o tanque logo que nós encontramos a nave.
— Um momento, por favor. — J’merlia esgueirou-se entre Julius
Graves e as gêmeas Carmel e foi se agachar perto da himenopt. Os dois
assoviaram e grunhiram durante meio minuto. Finalmente, J’merlia fez
que sim com a cabeça e levantou-se.
— Kallik pede desculpas a todos por sua incompetência. Ela não
soube se expressar com clareza quando relatou o resultado do exame que
fez do tanque da nave. Ela certamente não tem combustível suficiente
para fazer funcionar o Sistema Bose. Entretanto, talvez seja possível colo-
car a nave em órbita com o que resta no tanque.
Antes que J’merlia acabasse da falar, Rebka já estava se dirigindo
para o assento do piloto.
— A que distância está a espaçonave, e em que direção? — pergun-
tou, enquanto examinava o painel de instrumentos.
— A sete mil quilômetros de distância, em um grande círculo que
passa pela depressão de Pentacline. — Perry saíra do seu torpor e estava
empurrando as gêmeas Carmel para o lado a fim de ir se juntar a Rebka.
— Mas, com a Maré de Verão tão próxima, teremos que enfrentar um
vento lateral muito forte. Isso nos desviará pelo menos mil quilômetros
da rota.
— Então nossa margem de segurança é praticamente zero. — Re-
bka estava fazendo alguns cálculos mentais. — Temos combustível sufi-
ciente para uns oito mil quilômetros, mas não se viajarmos à velocidade
máxima. E, se formos mais devagar, as condições podem ficar piores, com
a proximidade da Maré de Verão.
— É a nossa melhor opção — disse Graves. Era a primeira vez que
abria a boca desde que entrara no carro. — Mas será que conseguiremos
decolar com tanto peso? Chegamos aqui com dificuldade, e havia menos
duas pessoas a bordo.
— E será que vamos conseguir viajar até lá, com a Maré de Verão
tão próxima? — acrescentou Perry. — Teremos que enfrentar ventos for-
tíssimos.
— E, mesmo que Kallik esteja certa — disse Graves — e ainda exista
um pouco de combustível no tanque da espaçonave, será suficiente para
211
colocar o Sonho de Verão em órbita?
Mas Rebka já estava ligando o motor.
— Não é a nossa melhor opção, conselheiro — disse, quando os
jatos levantaram uma nuvem de poeira branca que cobriu as janelas. — É
nossa única opção. Que está querendo, uma garantia por escrito? Agora
é melhor cruzar os dedos. A menos que alguém apareça com uma idéia
melhor nos próximos cinco segundos, vou exigir deste carro tudo que ele
pode dar. Segurem firme e vamos torcer para que o motor não nos deixe
na mão.

212
Capítulo 20

Maré de Verão menos um.

Quando o carro decolou com dificuldade e ganhou o ar, Darya Lang


estava se sentindo uma inútil. Era uma carga adicional, um peso morto
incapaz de ajudar o piloto ou o navegador à sua frente. Sem ter o que
fazer e sem conseguir relaxar, deu uma nova olhada nos companheiros
de viagem.
Aquele era o grupo destinado a viver ou morrer em conjunto... e
muito breve, antes que Tremor e Opala completassem mais uma volta em
torno do seu centro de massa.
Examinou-os enquanto o carro ganhava altitude. Eram uma visão
deprimente. A situação fizera o tempo andar para trás, revelando-os a
Darya como deviam ter sido em um passado já remoto, antes que Tremor
se intrometesse em suas vidas.
Elena e Geni Carmel, sentadas lado a lado, eram garotinhas perdi-
das. Incapazes de encontrar a saída da floresta, esperavam que alguém
as salvasse ou, mais provavelmente, que um monstro as devorasse. Em
frente a elas, Hans Rebka estava debruçado sobre os controles, um meni-
no pequeno, preocupado, tentando jogar um jogo que era adulto demais
para ele. Ao seu lado estava sentado Max Perry, perdido em algum pesa-

213
delo pessoal que não se dispunha a compartilhar com ninguém.
Apenas Julius Graves, à direita de Perry, não correspondia à ima-
gem do tempo andando para trás. O rosto do conselheiro, quando se vol-
tou para a parte traseira do carro, nunca tinha sido jovem. Milhares de
anos de sofrimento estavam marcados naquelas rugas; história humana,
cheia de ódio e desespero.
Olhou para ele, assustada. Aquele não era um membro do Conselho
da Aliança. Onde estavam a bondade, o otimismo, a energia exuberante?
A moça conhecia a resposta: a exaustão acabara com essas virtu-
des.
Pela primeira vez, Darya se deu conta da importância da fadiga nos
negócios humanos. Havia notado a sua gradual perda de interesse pelos
mistérios de Tremor e dos Construtores, e a atribuíra à necessidade de
se concentrar na luta pela sobrevivência. Agora, porém, culpava mais os
venenos do cansaço e da tensão.
A mesma queda de energia estava afetando a todos. Em uma oca-
sião em que o raciocínio rápido e a pronta ação podiam representar a
diferença entre a vida e a morte, sentiam-se mental e fisicamente incapa-
zes. Todos (ela, certamente, não era exceção) pareciam zumbis. Poderiam
permanecer alerta durante alguns segundos, como acontecera com a pró-
pria Darya no momento da decolagem, mas, assim que o pânico tivesse
passado, voltariam ao estado de letargia. Os rostos que se voltavam para
ela, mesmo depois de removida toda a poeira branca, eram pálidos e dis-
tantes.
Sabia como estavam se sentindo. Suas próprias emoções pareciam
haver desaparecido. Não experimentava mais medo, amor ou ódio. Aque-
la era a mudança mais assustadora, o modo indiferente com que encarava
a própria sobrevivência. Não se importava com o que pudesse acontecer
em seguida. Durante os últimos dias, Tremor não a golpeara com violên-
cia, mas a exaurira, roubara-lhe todas as paixões humanas.
Até os dois alienígenas pareciam ter perdido sua vivacidade habi-
tual. Kallik tirara da bagagem um computador de bolso e estava ocupa-
da com cálculos obscuros. J’merlia parecia perdido e confuso sem Atvar
H’sial. Olhava em todas as direções, como que à procura da sua domina-
trix, e esfregava as mãos compulsivamente na carapaça.
Perry, Graves e Rebka haviam se amontoado na parte da frente do
carro, em um assento projetado para apenas duas pessoas. As gêmeas e
J’merlia estavam sentados logo atrás, provavelmente em uma situação
mais confortável que todos os outros passageiros, enquanto Darya Lang e
214
Kallik ocupavam o compartimento de bagagem na parte de trás do veícu-
lo. A altura era suficiente para a himenopt, mas Kallik adquirira o hábito
reflexo de se sacudir como um cachorro molhado para remover a poeira
dos seus pêlos curtos e negros, o que fazia Darya espirrar o tempo todo,
além de ter que inclinar a cabeça para a frente para não esbarrar no teto
curvo do veículo.
Pior que tudo, os que viajavam na parte de trás podiam ver apenas
uma nesga do céu pela janela dianteira. As informações a respeito do pro-
gresso da viagem ou de possíveis problemas tinham que ser transmitidas
pelos passageiros da frente.
E às vezes chegavam tarde demais.
— Desculpe — disse Perry, dois segundos depois que o carro virou
de lado e caiu cinquenta metros ao ser atingido por uma lufada de vento.
— Essa foi de mau jeito.
Darya concordou, esfregando a nuca. Batera com a cabeça no teto
duro de plástico do compartimento de bagagem. Ficaria com um feio he-
matoma... se vivesse o suficiente para isso.
Inclinou-se para a frente e colocou a cabeça entre os braços. Ape-
sar do barulho, do perigo e do balanço do carro, seus pensamentos co-
meçaram a divagar. A vida que levara até bem pouco tempo, trabalhando
como arqueocientista no Portal da Sentinela, agora lhe parecia totalmen-
te artificial. Quantas vezes, ao escrever seu catálogo dos artefatos, usara
tranquilamente a expressão “não houve sobreviventes” para se referir a
expedições inteiras? Era uma frase simples e clara, que não exigia maio-
res explicações. Entretanto, não dava idéia da tragédia do evento nem do
tempo subjetivo, talvez infinitamente longo, que levara para acontecer. A
expressão “não houve sobreviventes” sugeria um fim limpo, um grupo de
pessoas desaparecendo de forma tão rápida e imparcial quanto uma vela
que se apagasse. Muito mais prováveis eram as situações como aquela
em que se encontravam: uma extinção gradual da esperança, com o gru-
po se agarrando a cada chance de sobrevivência e vendo cada uma delas
desmoronar.
Darya se sentiu ainda mais desanimada. A morte raramente era
limpa, rápida e indolor, a menos que chegasse de surpresa. Quase sempre
era lenta, dolorosa, humilhante.
Uma voz calma a arrancou da depressão em que se encontrava.
— Vocês, aí atrás, é bom se prepararem. — Hans Rebka não soa-
va nem um pouco como um homem abatido ou derrotado. — Estamos
voando baixo demais e devagar demais. Desse jeito, ou o combustível
215
acaba, ou chegamos atrasados. De modo que vou ter que subir acima
das nuvens. Segurem-se e se preparem para umas boas sacudidelas nos
próximos minutos.
Segurar-se em quê? Mas as palavras de Rebka e o tom descontraí-
do com que as pronunciara eram prova de que nem todos haviam desis-
tido de lutar.
Envergonhada de si mesma, Darya encolheu-se em um canto do
compartimento de bagagem no momento em que o carro começava a
penetrar na camada de nuvens. Os raios de sol que entravam pela jane-
la dianteira foram substituídos por uma iluminação difusa. A turbulência
começou imediatamente, sacudindo o veículo sobrecarregado como se
fosse uma folha de papel. Por mais que Rebka e Perry se esforçassem, o
carro estava pesado demais para obedecer aos controles.
Darya não sabia mais se estavam subindo, descendo ou caindo em
parafuso. O teto do carro parecia ir de encontro a sua cabeça, vindo de
todas as direções. No momento em que teve certeza de que a próxima
pancada a deixaria inconsciente, quatro braços articulados a seguraram
firmemente pela cintura. Estendeu as mãos para segurar um corpo macio,
rechonchudo, agarrando-se desesperadamente a ele enquanto o carro fa-
zia piruetas no céu.
Kallik a empurrou contra a parede. Darya enterrou o rosto no pêlo
aveludado, dobrou as pernas para o lado direito e empurrou de volta.
Apoiadas uma na outra e nas paredes do carro, ela e Kallik encontraram
uma nova posição de equilíbrio. A moça empurrou com mais força. Os
solavancos pareciam não ter fim.
— Estamos quase chegando. Protejam os olhos. — A voz de Rebka
se fez ouvir no interfone um momento antes de cessar a turbulência. De
repente, uma luz cegante invadiu o carro.
Darya ouviu uma série de rosnados à sua direita. J’merlia se virou
no assento para olhar para ela.
— Kallik quer lhe oferecer suas humildes desculpas pelo que fez
— traduziu para a moça. — Em circunstâncias normais, jamais tocaria no
corpo de um ser superior. Ela também quer saber se não acha que está
na hora de soltá-la.
Darya percebeu que ainda estava agarrada à himenopt em um abra-
ço de tamanduá, empurrando-a de encontro à parede do carro. Largou­-a
imediatamente, sentindo-se envergonhada. A alienígena era educada de-
mais para dizer alguma coisa, mas não podia ter deixado de perceber que
a moça ficara em pânico por alguns momentos.
216
— Diga a Kallik que ela fez muito bem em me segurar. Não precisa
me pedir desculpas por isso.
E se eu sou um ser superior, pensou Darya, detestaria saber como
se sente um ser inferior.
Envergonhada ou não, a moça estava começando a se sentir um
pouco melhor. O vôo tinha ficado bem mais suave, embora o barulho do
vento mostrasse que estavam viajando muito mais depressa. Mesmo as
dores no corpo e o cansaço pareciam ter diminuído.
— Nossa velocidade praticamente dobrou, e aqui em cima está
tudo tranquilo.
As palavras de Rebka pelo intercomunicador pareceram justificar
sua mudança de humor.
— Mas não foi fácil atravessar a camada de nuvens — prosseguiu.
— E o comandante Perry recalculou o nosso consumo de combustível.
Dada a distância que ainda precisamos percorrer, estamos no limite. Va-
mos ter que economizar. Vou diminuir um pouco a velocidade e desligar
o sistema de ar condicionado. O calor aqui na frente não vai ser fácil.
Preparem-se para fazer um rodízio e bebam bastante água.
Até aquele momento, não ocorrera a Darya Lang que estar longe
da janela podia ser uma vantagem. Quando, porém, a temperatura no
interior do carro começou a subir, alegrou-se por estar na parte traseira.
Além de terem que suportar o mesmo ar sufocante, os passageiros da
frente estavam expostos aos raios diretos do sol.
Algum tempo depois, porém, chegou a hora de trocarem de lugar.
A mudança de posição foi um trabalho para contorcionistas. Quando ter-
minou, Darya estava no banco da frente, perto da janela. Pela primeira
vez desde a decolagem, teve uma boa visão do exterior.
Estavam voando pouco acima da camada de nuvens. Aqui e ali,
picos isolados espalhavam a luz em tons deslumbrantes de vermelho e
dourado. Mandel e Amaranth estavam quase no zênite, bombardeando o
carro com uma fúria nunca vista nas superfícies protegidas pelas nuvens
de Opala e Tremor. As duas estrelas haviam se transformado em globos
gigantescos, cegantes, em um céu quase negro. Mesmo com o sistema de
filtragem da janela no máximo, era impossível olhar diretamente para o
par de astros.
O suor escorria pelo rosto de Darya e empapava suas roupas. En-
quanto a moça olhava, as posições de Mandel e Amaranth mudaram no
céu. As coisas estavam acontecendo cada vez mais depressa. Podia sentir
que o ritmo dos eventos se acelerava à medida que as duas estrelas e
217
Dobelle se dirigiam para o ponto de máxima aproximação.
E não eram os únicos personagens.
Darya olhou para o lado. Gargântua estava ali, uma sombra pálida
de Mandel e sua companheira anã. Mas aquilo também iria mudar. Em
breve Gargântua seria o maior objeto no céu de Tremor, aproximando-se
mais do que qualquer outro astro do sistema e rivalizando com Mandel e
Amaranth na força de suas marés.
Olhou para baixo, imaginando o que estaria se passando abaixo da
camada de nuvens. Em breve teriam que descer, mas talvez a superfície
oculta já estivesse rachada demais para permitir uma aterrissagem. Ou
quem sabe a nave que procuravam já tivesse desaparecido, tragada por
uma fissura gigantesca.
Darya deu as costas para a janela e fechou os olhos doloridos. A
claridade do lado de fora era excessiva. Além disso, não aguentava mais
o calor.
Só que não tinha como fugir dele.
Olhou para a esquerda. Kallik estava a seu lado, agachada-no chão.
Mais adiante, no assento do piloto, Max Perry segurava um quadrado de
plástico translúcido na frente do rosto para se proteger da claridade.
— Quanto tempo falta? — A pergunta foi feita com uma voz rouca
e tão fraca que era praticamente inaudível.
Darya quase não reconheceu a própria voz. Não sabia ao certo o
que estava querendo dizer. Queria saber quanto tempo faltava para troca-
rem de novo de lugar? Para chegarem ao destino? Para morrerem todos?
Não fazia diferença. Perry não respondeu; limitou-se a passar-lhe
uma garrafa de água morna. A moça bebeu um gole e fez Kallik imitá-la.
Depois, não havia mais nada a fazer a não ser ficar quieta e aguentar fir-
me, até chegar a hora de trocar novamente de lugar.
Darya perdeu a noção do tempo. Sabia que tinha estado no assen-
to da tortura, na frente do carro, pelo menos três vezes. Depois do que
pareceram várias semanas, Julius Graves estava finalmente sacudindo-a
e avisando:
— Prepare-se para a turbulência. Vamos entrar na camada de nu-
vens.
— Chegamos? — murmurou a moça. — Então vamos pousar. Ela
mal podia esperar. Acontecesse o que acontecesse em seguida, pelo me-
nos estaria livre da tortura dos dois sóis. Sonharia com eles pelo resto da
vida.
— Não. Não chegamos. — O tom de voz de Graves combinava mui-
218
to bem com o modo como a moça se sentia. Ele estava enxugando o suor
da cabeça calva. — Nosso combustível está acabando.
Isso despertou a atenção de Darya.
— Onde estamos?
Mas Graves estava olhando para o outro lado. Foi Elena Carmel, no
banco de trás, quem se inclinou para a frente e respondeu:
— De acordo com os instrumentos, estamos muito perto. Quase
chegando.
— A que distância?
— Dez quilômetros. Talvez até menos. Eles dizem que tudo depen-
de de quanto combustível resta para viajarmos no solo.
Darya não disse mais nada. Dez quilômetros, cinco quilômetros,
que diferença fazia? Não conseguiria andar um quilômetro, mesmo que
fosse para salvar a própria vida.
Mas uma voz interior acordou e disse: se for para salvar sua vida,
você encontrará forças; se a jovem e imatura Elena Carmel ainda tem uma
reserva de energia, você não pode ficar para trás.
Antes que pudesse argumentar consigo mesma, entraram nas nu-
vens. Um segundo depois, não podia se dar ao luxo de continuar a dis-
cussão.
Hans Rebka estava decidido a poupar o combustível ao máximo, de
modo que não fez nada para suavizar a descida. Em queda rápida, o carro
foi jogado de um lado para outro como uma rolha de cortiça no meio do
oceano. Mas aquilo não durou muito. Em menos de um minuto, estavam
saindo das nuvens.
Todos esticaram o pescoço para olhar. O que quer que encontras-
sem lá embaixo, não havia mais como recuar.
Será que a espaçonave ainda estava lá? Será que existia uma super-
fície sólida para pousarem? Ou haviam escapado dos raios causticantes
de Mandel e Amaranth apenas para morrer em um lago de lava?
Darya ainda não tinha como responder a essas perguntas. O solo
estava coberto por uma espessa camada de fumaça. Deviam estar perto
da depressão de Pentacline, mas não havia como saber ao certo.
— Meus amigos — disse Rebka, com toda a calma —, a boa notícia
é que não precisamos tomar nenhuma decisão. Olhe para o indicador de
combustível, Max. Está no vermelho. Vamos ter que descer. — Levantou a
voz. — Coloquem os respiradores.
De repente, estavam flutuando na fumaça azul-acinzentada que ro-
dopiava em torno do carro, impelida por ventos tão fortes que a voz de
219
Rebka se fez ouvir de novo.
— Estamos voando de marcha à ré. Vou descer o mais depressa que
puder, antes que o vento nos empurre de volta até o Cordão Umbilical.
— Onde está a nave? — perguntou Julius Graves, sentado atrás de
Darya no apertado compartimento de bagagem.
— Dois quilômetros à frente. Não podemos vê-la, mas acho que
ainda está lá. Estou captando um eco anômalo no radar. Não podemos
chegar ao local onde estava a nave, de modo que vou descer na encosta
da depressão. Preparem-se. Vinte metros de altitude... quinze... dez. Es-
tou pousando.
De repente, o vento parou. A fumaça que os envolvia ficou mais
tênue. Darya pôde ver o solo de um dos lados do carro. No momento, es-
tava imóvel, mas nuvens de vapor escapavam, como o bafo de um dragão,
de dezenas de pequenas aberturas localizadas na encosta da depressão
de Pentacline. A densa vegetação que Darya esperava ver na depressão
tinha desaparecido. Não havia nada a não ser cinzas e um ou outro tronco
retorcido.
— Um quilômetro e meio. — A voz de Rebka parecia calma e distan-
te. — Altitude, cinco metros. Estamos perdendo força. Parece que vamos
ter que andar um pouquinho. Três metros... dois... um. Vamos, belezinha.
Não nos deixe na mão.
Faltavam apenas três horas para a Maré de Verão. O carro aéreo
pousou na encosta fumegante da depressão de Pentacline, tão suave-
mente quanto uma borboleta.

220
Capítulo 21

Três horas para a Maré de Verão.

Hans Rebka não estava feliz, mas seria justo dizer que nas últimas
horas se sentira mais animado.
Desde que fora enviado a Dobelle, sentira-se inseguro com relação
a si próprio e seu trabalho. Sua missão era descobrir o que havia de erra-
do com o comandante Maxwell Perry e reabilitar o homem.
No papel, parecia fácil. Que esperavam, porém, que ele fizesse! Era
um homem de ação, não um psicólogo. Nada em sua experiência anterior
o preparara para uma tarefa tão vaga.
Agora, as coisas eram diferentes. No Cordão Umbilical, tinha sido
jogado no meio de um grupo indefeso (todos alienígenas, desajustados
ou inocentes, em sua opinião) e recebera a missão de pilotar um carro
aéreo superlotado e quase sem combustível até o outro lado de Tremor,
em busca de uma espaçonave de brinquedo que os tiraria do planeta an-
tes que fosse tarde demais.
Podia ser uma tarefa impossível, mas pelo menos estava bem de-
finida. As regras para o seu desempenho eram bastante claras. Ele as
aprendera ainda criança, em Teufel: Seja bem-sucedido ou morra tentan-
do. Não descanse até conseguir o seu objetivo. Não desista enquanto ain-

221
da lhe restarem forças.
Estava cansado, todos estavam, mas o que Darya interpretara como
um surto de energia era a súbita liberação de um monte de frustrações
acumuladas. Isso o ajudara a chegar até ali e o ajudaria a suportar a Maré
de Verão.
No momento em que o carro aéreo parou, Rebka pediu a todos que
saltassem. Por mais perigosa que estivesse a superfície do lado de fora, o
carro não lhes serviria mais para nada.
Apontou para a encosta calcinada da depressão.
— É para lá que temos que ir. A espaçonave estava naquela direção.
— Depois, gritou para fazer-se ouvir por Max Perry, que estava olhando
em volta, com uma expressão ausente. — Comandante, seu grupo esteve
aqui há poucos dias. O local parece familiar?
Perry fez que não com a cabeça.
— Quando estivemos aqui, havia muita vegetação. Mas estou re-
conhecendo aquela plataforma de basalto. — Apontou para uma grande
rocha negra, de quarenta metros de altura, cuja parte superior estava par-
cialmente oculta pela fumaça. — É ali que deve estar a espaçonave.
Rebka assentiu.
— Alguma surpresa desagradável à nossa espera?
Perry, fossem quais fossem os seus defeitos, ainda era quem mais
entendia de Tremor.
— Difícil dizer. Tremor é cheio de surpresas. — Perry curvou-se para
colocar a palma da mão no solo pedregoso. — Está quente, mas suportá-
vel. Pode ser que o fogo tenha queimado as plantas em volta da platafor-
ma. Nesse caso, será mais fácil chegar lá do que da última vez. Isto aqui
ficou bem diferente sem a vegetação. E bem mais quente também.
— Então vamos — disse Rebka, sublinhando as palavras com um
gesto. Os trovões estavam cada vez mais fortes e era difícil manter uma
conversa prolongada. — Você e Graves vão na frente. Depois vocês duas
— apontou para as gêmeas. — Eu sigo por último, atrás dos outros.
Não deu tempo para que ninguém protestasse. A viagem de car-
ro aéreo tinha sido exaustiva para todos, mas Rebka achou melhor não
perguntar se aguentariam caminhar um quilômetro ou dois em terreno
acidentado. Se algum do grupo desmaiasse, ele decidiria o que fazer em
seguida.
A superfície estava tranquila no momento em que pousaram, mas,
quando Perry e Graves começaram a descer a encosta, um novo espasmo
de atividade sísmica sacudiu a região. O chão à frente se dividiu em do-
222
bras longitudinais, que se propagaram até o fundo da depressão.
— Continuem andando! — gritou Rebka, fazendo-se ouvir com difi-
culdade por causa dos estrondos. — Não temos tempo a perder!
Perry havia parado e colocado a mão no braço de Graves para detê­
-lo. Voltou-se para Rebka e fez que não com a cabeça.
— Vamos esperar um pouco — disse. — Estamos chegando a uma
confluência. Observe.
Ondas de choque de diferentes amplitudes e comprimentos esta-
vam convergindo para um ponto cinquenta passos à frente. Quando as
ondas se encontraram, escumas de rocha e terra foram lançadas para o
ar. Uma fenda de profundidade desconhecida surgiu, durou alguns segun-
dos e depois tornou a fechar-se sem deixar vestígios. Perry esperou, até
ter certeza de que o abalo principal havia passado, e depois continuou a
descida.
Rebka sentiu-se aliviado. Fossem quais fossem os problemas de
Perry, ele não perdera o instinto de sobrevivência. Se conseguisse aguen-
tar assim mais um quilômetro, o pior estaria feito.
Continuaram em frente. O chão tremia debaixo dos seus pés. Va-
pores quentes saíam de mil fissuras na rocha fraturada, e o céu acima se
tornou um inferno de cinzas e relâmpagos. O ruído dos trovões se mis-
turava com os rugidos dos terremotos. Uma chuva morna, carregada de
enxofre, começou a cair, transformando-se imediatamente em vapor ao
tocar o solo quente.
Rebka examinou com olhar crítico o grupo à sua frente. As gêmeas
Carmel caminhavam lado a lado, logo atrás de Graves e Perry. Depois de-
las vinha Darya Lang, entre os dois alienígenas e com uma das mãos no
tórax de J’merlia. Todos estavam bem. Graves, Geni Carmel e Darya Lang
mancavam, e o grupo todo cambaleava de cansaço, mas isso era apenas
um detalhe.
Precisavam descansar. Sorriu ironicamente para si mesmo. Dali a
algumas horas, de uma forma ou de outra, estariam descansando.
O maior problema era o aumento de temperatura. Mais dez graus
e teriam que reduzir a marcha para não perder as forças de pura prostra-
ção. A chuva, que teria ajudado um pouco, estava ficando tão quente que
chegava a queimar. À medida que o grupo se internasse na depressão de
Pentacline, parecia inevitável que o calor aumentasse.
Entretanto, tinham que continuar a descida. Se diminuíssem a mar-
cha ou parassem para descansar, seriam destruídos pelas forças da Maré
de Verão.
223
Incitou-os a prosseguir, olhando ao mesmo tempo para a frente
para examinar o acesso à plataforma de basalto. Faltando apenas algu-
mas centenas de metros, o caminho parecia relativamente fácil. Mais cem
passos e o terreno irregular, cheio de pedras soltas, que estava tornando
a caminhada tão penosa, daria lugar a um solo castanho mais plano do
que qualquer coisa que Rebka encontrara até o momento na depressão
de Pentacline. Parecia o fundo seco de um lago, o que restara de um lago
estreito e comprido que evaporara totalmente com o calor dos últimos
dias. Poderiam atravessá-lo rapidamente. Do outro lado, o terreno subia
gradualmente até a base da plataforma de pedra sobre a qual devia estar
a nave.
Os dois que iam na frente estavam a menos de vinte passos da pla-
nície quando Max Perry parou, indeciso. Enquanto Rebka olhava de longe
e praguejava, Perry apoiou-se em um enorme matacão e ficou olhando,
pensativo, para o terreno à frente.
— Ande logo, homem!
Perry fez que não com a cabeça, levantou o braço para fazer os
outros pararem e se pôs de joelhos a fim de examinar o chão. Nesse mo-
mento, Elena Carmel gritou e apontou para o topo da plataforma de pe-
dra.
O céu tinha ficado negro, mas os relâmpagos quase contínuos for-
neciam luz suficiente para enxergar à distância. Rebka não conseguiu ver
nada de especial no lugar para onde Perry estivera olhando, a não ser
uma ligeira distorção causada pelo calor e uma perda de foco no fundo
do lago seco. Mais adiante, porém, seguindo o dedo apontado de Elena
Carmel até o alto da plataforma de basalto, avistou uma forma inconfun-
dível: a silhueta de uma pequena espaçonave. Achava-se a uma distância
segura da beira da plataforma e aparentava estar intacta. A subida parecia
fácil. Poderiam estar lá em cima em menos de cinco minutos.
Elena Carmel se voltou e gritou alguma coisa para a irmã. Rebka
não pôde ouvi-la por causa do barulho, mas leu seus lábios.
— É o Sonho de Verão! — exclamou a jovem. Foi com uma expres-
são de triunfo no rosto que assumiu a dianteira, passando por Graves e
Perry.
Já tinha entrado na planície e estava correndo na direção da plata-
forma quando Perry levantou os olhos e a viu.
Ficou paralisado por um segundo e depois deu um grito agudo de
advertência que chegou a Elena apesar do barulho. Ela se voltou, e nesse
momento a crosta de barro cozido, com menos de um centímetro de es-
224
pessura, cedeu ao seu peso. Jatos de vapor envolveram-lhe o corpo. Ela
gritou e levantou os braços, tentando manter o equilíbrio. Sob a superfí-
cie frágil, a lama borbulhante não oferecia mais resistência que melado.
Antes que alguém pudesse fazer alguma coisa, Elena estava enterrada até
a cintura. A jovem gritava de agonia enquanto a lama fervente se fechava
em torno de suas pernas e quadris.
— Incline-se para a frente! — Perry se jogou no chão para distribuir
melhor o peso e começou a rastejar em direção à moça.
Mas Elena Carmel estava sofrendo demais para atender ao seu gri-
to. Perry levou muito tempo para chegar, e ela estava afundando muito
depressa. Ainda se encontrava a três passos de distância quando a lama
borbulhante chegou ao pescoço da jovem. Ela gritou pela última vez. Um
grito de agonia.
Perry esticou o corpo, em um esforço desesperado, e conseguiu
agarrá-la pelos cabelos e um dos braços. Entretanto, não pôde aguentar
o seu peso.
A jovem afundou mais um pouco. Em estado de choque, por causa
das queimaduras, não fez nenhum ruído quando a lama entrou na sua
boca, nariz e olhos. Um momento depois, havia desaparecido. Um pe-
queno remoinho se formou na superfície líquida, mas durou menos de
um segundo.
Perry arrastou-se mais um pouco para a frente e mergulhou os bra-
ços até os cotovelos na lama fervente. Gritou de dor, mas não encontrou
nada.
Os outros membros do grupo assistiam à cena, paralisados. De re-
pente, Geni Carmel deu um grito lancinante e saiu correndo. Julius Graves
correu atrás dela e conseguiu agarrá-la no momento em que ia pisar na
areia movediça.
— Não, Geni! Não! Você não pode fazer mais nada. Ela se foi. —
Segurou-a pela cintura, tentando puxá-la para lugar seguro. A jovem re-
sistia com a força do desespero. Rebka e Darya Lang se aproximaram e a
seguraram pelos braços.
Geni, que ainda estava tentando chegar ao local onde Elena de-
saparecera, arrastou-os até a margem da região segura. Quando virou o
corpo, Darya perdeu o equilíbrio e enfiou a perna esquerda na lama, até
a canela. Deu um grito e quase perdeu os sentidos. Rebka teve que deixar
Geni aos cuidados de Graves para ajudar Darya.
Geni tentou mais uma vez entrar na areia movediça. No lugar onde
Elena havia sido tragada, a superfície borbulhava. Perry, com o rosto con-
225
torcido pela dor, rastejara de volta para a segurança da margem. Não po-
dia usar as mãos, mas levantou-se e usou o peso do corpo para empurrar
Geni para trás.
Cambalearam juntos para longe da areia movediça. Geni estava se
acalmando. Pouco depois, colocou o rosto entre as mãos e começou a
chorar.
Rebka conservou o braço nos ombros de Darya Lang e olhou para
o grupo. Estavam todos chocados com a morte de Elena, mas ele ainda
tinha que se preocupar com outras questões. Em trinta segundos, a situ-
ação passara de difícil a desesperadora. O ar estava quase irrespirável, o
calor aumentava e a superfície não parava de tremer. Não podiam perder
mais tempo.
O que fazer?
Fez uma rápida análise da nova situação. Os trovões tinham dimi-
nuído um pouco, mas em vez de oito humanos e alienígenas, todos em
boas condições, estavam reduzidos a apenas quatro seres válidos: ele
próprio, Graves, J’merlia e Kallik. Era difícil saber como os alienígenas se
comportariam em um momento de crise, mas até então não deixavam
nada a dever aos humanos.
E quanto aos outros?
Perry estava em choque profundo (mais psicológico do que físico,
ao que tudo indicava) e parecia mais um robô. Mas era um homem forte,
poderia caminhar sem problemas. Entretanto, não se podia contar com
ele para ajudar os outros, e sem a ajuda das mãos teria dificuldade para
chegar ao alto da plataforma. Seus braços pendiam ao longo do corpo,
queimados até os cotovelos. Ao passar o primeiro choque, sentiria dores
lancinantes. Quando isso acontecesse, porém, já deveriam estar a bordo
do Sonho de Verão.
Darya Lang certamente precisaria de ajuda. Seu pé não se encon-
trava mais escaldado que os antebraços de Perry, mas ela estava muito
menos habituada ao sofrimento físico. Não parava de chorar de dor e de
choque. As lágrimas lhe escorriam pelo rosto sujo de poeira.
Finalmente, havia Geni Carmel. Ela não sofrera nenhum ferimento,
mas emocionalmente tinha sido destruída. Parecia alheia a tudo; dificil-
mente poderia contar com a sua cooperação.
Rebka distribuiu automaticamente as tarefas.
— Conselheiro Graves, o senhor se encarrega de Geni Carmel. Eu
fico com o comandante Perry. J’merlia e Kallik, a professora Lang vai pre-
cisar da ajuda de vocês, especialmente quando começarmos a subida.
226
E agora vamos ver como Perry se comporta, pensou.
— Comandante, não podemos atravessar a areia movediça. Existe
outro meio de chegarmos ao lugar onde está a nave?
Perry voltou à vida. Estremeceu, olhou para os braços queimados
e experimentou levantar a mão direita. Apontou para o lado esquerdo da
plataforma, movendo o braço como se o membro tivesse se tornado um
apêndice artificial.
— Da última vez que estivemos aqui, acompanhamos um regato.
O leito era de pedras, com uma superfície bem firme. Se conseguirmos
encontrá-lo, talvez consigamos segui-lo no sentido inverso.
— Ótimo. Vá na frente.
Enquanto contornavam a traiçoeira areia movediça, Rebka olhou
na direção da plataforma de basalto. Não estava a mais que quarenta me-
tros acima deles, mas parecia uma distância impossível. A encosta não era
íngreme, um homem ou mulher em boa forma física poderia escalá-la em
meio minuto. Mas Perry levaria o mesmo tempo para subir apenas um
metro. E o tempo de que dispunham estava terminando.
Rebka aproximou-se de Perry e colocou as mãos nos seus quadris.
— Continue andando. Não tenha medo de cair. Estou atrás de você.
Se precisar de um empurrão, é só me dizer.
Deu uma olhada para trás. Julius Graves estava tomando conta de
Geni Carmel e os dois pareciam bem. J’merlia e Kallik tinham desistido de
ajudar Darya Lang a caminhar. Em vez disso, haviam-na colocado sentada
nas costas peludas de Kallik, e a himenopt estava subindo a encosta en-
quanto J’merlia a empurrava e encorajava com uma série de grunhidos e
assovios.
A superfície além da plataforma estava tremendo com renovada
violência. Rebka viu o carro aéreo em que haviam chegado virar de lado e
afundar. Uma nuvem de fumaça negra o engoliu e depois se moveu lenta-
mente na direção deles.
Uma coisa de cada vez, disse para si mesmo. Não olhe para trás
nem para cima.
Rebka concentrou sua atenção em ajudar Max Perry. Se o outro
caísse, todos cairiam com ele.
Continuaram a escalada, tropeçando e escorregando nas pedras
soltas. Houve um momento crítico em que Perry perdeu o equilíbrio e
caiu para a frente, de encontro à pedra. Ele deu um grito de dor quando
as mãos queimadas tocaram a superfície áspera. Rebka segurou-o antes
que escorregasse para trás. Segundos depois, estavam de novo subindo
227
pelo leito tortuoso do regato.
Assim que Perry chegou à plataforma, Rebka se virou para ver o
que estava acontecendo com os outros. Graves caminhava com dificulda-
de, apoiado em Geni Carmel. Os outros três ainda estavam no meio da es-
calada e progrediam lentamente. Rebka podia ouvir Kallik assoviar com o
esforço. Teriam que se arranjar sozinhos. A prioridade de Rebka tinha que
ser a espaçonave. Estaria ainda em condições de voar? Haveria combustí-
vel suficiente no tanque para entrarem em órbita? Perry se aproximara do
Sonho de Verão, mas estava parado, de pé, ao lado da escotilha fechada.
Levantou as mãos, frustrado, quando Rebka foi até ele. No estado em que
suas mãos se encontravam, não tinha como destrancá-la.
— Diga aos outros para se apressarem... especialmente Kallik. —
Rebka abriu a escotilha e de repente se deu conta de como aquela nave
era pequena. Perry lhe dissera que era mais um brinquedo do que uma
espaçonave, mas ainda assim ficou chocado. O espaço interno não era
muito maior que o do carro aéreo.
Foi até a frente examinar os controles. Nesse ponto, pelo menos,
não teria problemas, mesmo sem a ajuda de Kallik ou Geni Carmel. O pai-
nel era extremamente simples.
Ligou os indicadores. O nível de combustível estava assustadora-
mente baixo. E se não fosse suficiente para entrarem em órbita?
Olhou para o cronômetro. Faltava menos de uma hora para a Maré
de Verão. Isso acabava com todas as dúvidas. Teriam que arriscar. En-
quanto os outros se comprimiam no interior da espaçonave, preparou-se
para levantar vôo.
Darya Lang e Geni Carmel foram as últimas a entrar.
— Fechem a escotilha — disse Rebka, antes de voltar-se para os
controles. Não esperou para ver se sua ordem tinha sido obedecida, nem
havia tempo para a longa série de verificações que normalmente prece-
deria a decolagem. Pela janela dianteira, podia ver um mar de chamas
varrendo a plataforma em direção a eles. Mais alguns segundos e a nave
seria envolvida.
— Segurem-se. Vou subir com uma aceleração de três g.
Se tudo estiver funcionando, pensou. Se não... Hans Rebka aplicou
toda a força aos motores. A nave começou a tremer.
Durante um tempo que pareceu interminável, nada aconteceu.
Então, quando o mar de fogo já ameaçava tragá-los, o Sonho de Verão
rangeu, estremeceu e levantou vôo em direção ao céu negro e turbulento
de Tremor
228
Capítulo 22

Maré de Verão.

Dez segundos depois que o seu pé afundara na lama negra e bor-


bulhante, Darya Lang entrara em animação suspensa. A partir de então,
tornara-se incapaz de sentir dor, preocupação ou tristeza.
Sabia, abstratamente, que as queimaduras de Max Perry eram pio-
res que as suas e que mesmo assim ele estava comandando a escalada da
encosta, mas sentia-se incapaz de uma proeza semelhante. Se permane-
cia consciente, era porque não sabia como perder os sentidos. E se chega-
ra à espaçonave com os outros, tinha sido apenas porque Kallik e J’merlia
não lhe haviam deixado outra opção. Tinham-na levantado e carregado,
tomando cuidado para que o seu pé não esbarrasse em nada.
O torpor desapareceu, infelizmente, no momento em que se apro-
ximaram da escotilha. Quando Kallik a pousou cuidadosamente no chão,
foi como se centenas de agulhas penetrassem no seu pé e tornozelo.
— Mil desculpas — disse J’merlia, aproximando as mandíbulas do
seu ouvido. — A passagem para o interior da nave é estreita. Só há lugar
para um de cada vez.
Então queriam que caminhasse, logo agora que a dor se tornara
intolerável! Teria que apoiar o pé queimado no chão. Tentou argumentar

229
com os alienígenas, explicar a eles que não estava aguentando a dor. Tar-
de demais. Viu-se equilibrada em uma perna só, diante da escotilha.
— Depressa! — exclamou Perry, do lado de dentro. Darya olhou
para ele, furiosa. Foi então que viu suas mãos e antebraços, cheios de bo-
lhas e abertos até o osso pelo esforço da escalada. Devia estar se sentindo
ainda pior do que ela. A moça trincou os dentes, tirou o pé esquerdo do
chão, segurou-se nos dois lados da escotilha e saltitou para dentro da
espaçonave. O espaço interno já estava quase todo tomado. Esgueirou-se
até uma das janelas laterais e ficou ali parada, apoiada em uma perna só.
Que faria? Não podia ficar ali indefinidamente e não podia nem
pensar em permitir que alguém esbarrasse no seu pé.
O aviso de Rebka de que levantaria vôo com uma aceleração de três
g a pegou de surpresa. As palavras a deixaram apavorada. Mal conseguiria
ficar de pé com uma aceleração de um g. Teria que se deitar, e nesse caso
os três g comprimiriam o pé queimado contra o piso duro da nave.
Antes que pudesse dizer alguma coisa, o corpo rechonchudo de
Kallik estava a seu lado. A himenopt colocou o abdome macio perto do pé
ferido de Darya e deu meia dúzia de assovios.
— Não! Não toque nele! — exclamou Darya, assustada.
Quando tentou retirar a perna, o ferrão amarelo apareceu no corpo
de Kallik. Darya sentiu uma fisgada na barriga da perna, deu um grito e
caiu de costas, batendo com a cabeça na caixa de ferramentas atrás do
assento do piloto.
Antes que pudesse se mexer de novo, a espaçonave decolou.
Darya se viu comprimida contra o chão, com o pé em contato com a
superfície metálica. O pé queimado! Tinha que gritar. Abriu a boca e per-
cebeu de repente que as únicas partes do corpo que não estavam doendo
eram o pé e a barriga da perna esquerda. A ferroada de Kallik anestesiara
totalmente o local.
Relaxou o corpo e virou a cabeça para apoiar o rosto no chão. O
piso estava coberto por um emaranhado de corpos. Podia ver Kallik, bem
à sua frente, acolchoando a cabeça de Geni Carmel em seu abdome pelu-
do. Julius Graves estava logo ao lado, mas só podia ver a sua cabeça calva,
lado a lado com o crânio negro e reluzente de J’merlia. Rebka, pilotando a
nave, e Max Perry, no assento do co-piloto, estavam escondidos pela caixa
de ferramentas e as costas dos assentos.
Darya fez um grande esforço e virou a cabeça para o outro lado. Po-
dia ver o exterior através da escotilha lateral. Surpreendentemente, pois
já estavam subindo havia vários minutos, a nave ainda estava abaixo da
230
camada de nuvens de Tremor. Teve uma visão vívida da superfície ilumi-
nada por relâmpagos; achava-se coberta de rachaduras, sobre as quais
ondas de lava incandescente passeavam como vagas de um oceano enca-
pelado. O planeta inteiro estava em chamas. De repente, a nave penetrou
em nuvens negras, tão densas que a extremidade das curtas superfícies
de controle, a apenas alguns metros da escotilha, ficou invisível.
A turbulência e os solavancos aumentaram consideravelmente. Da-
rya rolou na direção de Kallik e as duas escorregaram pelo chão até se
chocarem com Julius Graves. Outro solavanco e os três escorregaram na
direção oposta, esmagando Darya contra a parede. A moça ainda esta-
va naquela posição, aguentando o peso de todos exceto Rebka e Perry,
quando o Sonho de Verão emergiu inesperadamente das nuvens de Tre-
mor. A escotilha admitiu um raio de sol de intensidade intolerável antes
que o sistema de filtragem entrasse em operação.
Darya teve sorte. Ela estava de costas para a escotilha, com a ca-
beça debaixo do abdome de Kallik, quando a claridade invadiu a cabine.
Todos os outros ocupantes do compartimento traseiro ficaram cegos por
alguns segundos.
Rebka e Perry, nos assentos dianteiros, não sofreram os efeitos do
clarão, mas estavam olhando para a frente, tentando colocar a nave em
órbita em condições para as quais não tinha sido projetada. Assim, Darya,
virando o corpo para olhar para trás e para baixo, foi a única a presenciar
o que ocorreu em seguida.
O Sonho de Verão estava sobrevoando o hemisfério de Tremor
oposto a Opala. Os discos de Mandel e Amaranth se encontravam per-
to do horizonte, à esquerda. Reduzidas pelos filtros a círculos luminosos
com bordos escuros, as estrelas gêmeas estavam cheias de manchas. As
forças das marés também agiam sobre elas. Diretamente acima, brilhava
Gargântua, pálido e espectral, um gigante cuja luz refletida era reduzida
pelos filtros a um brilho fantasmagórico, pouco substancial.
De um ponto muito próximo da borda de Gargântua (Darya não
teve certeza se estava na superfície do planeta ou ligeiramente acima
dela) um raio fortíssimo de luz azul se projetou em direção a Tremor.
Darya acompanhou-o com os olhos. Não podia ser um raio de luz
comum, pois nesse caso seria invisível no vácuo do espaço. No lugar onde
o raio atingiu as nuvens de Tremor, estas se dissiparam instantaneamen-
te. Uma área circular da superfície do planeta, com cem quilômetros de
diâmetro, ficou subitamente exposta à radiação combinada de Mandel e
Amaranth. Já fervilhante de lava, a superfície começou a se deformar. Um
231
túnel escuro se formou e aumentou rapidamente de largura e profundi-
dade. Em pouco tempo, Darya podia ver as rochas fundidas do interior do
planeta se abrirem em ondas, formando uma borda nítida para o buraco.
O movimento da nave estava levando Darya para longe da boca do
túnel. De onde se achava, não podia mais ver o fundo do buraco. Inclinou­
-se para mais perto da janela, ignorando as dores que sentia no corpo ma-
chucado. Visto à distância, Tremor parecia a conta de um colar, perfurada
por um fio azul. No lugar onde o raio atingia o planeta, um anel vermelho
de lava se destacava na superfície.
Os eventos a seguir ocorreram em sucessão tão rápida que Darya
mais tarde teve dificuldade para se lembrar da sequência exata.
Enquanto a rotação de Tremor levava primeiro Mandel e depois
Amaranth a desaparecerem debaixo do horizonte, um segundo raio azul
surgiu, vindo do espaço, para se juntar ao de Gargântua. Não provinha
de nenhum objeto que Darya pudesse observar no céu; simplesmente se
estendia até perder de vista.
O novo raio luminoso atingiu o túnel na crosta de Tremor e o bura-
co aumentou, não gradualmente, mas em um espasmo impossível de ma-
terial deslocado. Finos feixes de cor roxa e vermelha deixaram a superfície
do planeta, seguindo a trajetória exata dos feixes incidentes. No mesmo
momento, duas esferas prateadas surgiram das profundezas do túnel.
Pareciam idênticas; tinham cerca de um quilômetro de diâmetro.
Afastaram-se lentamente da superfície de Tremor e ficaram flutuando,
imóveis, uma abaixo da outra, como dois balões transparentes cheios de
mercúrio.
Os raios azuis mudaram de cor. O que vinha de Gargântua ficou
amarelo e o outro tornou-se carmim. A frequência dos pulsos luminosos
também mudou. Nesse momento, a esfera que estava mais acima come-
çou a acelerar, acompanhando exatamente a trajetória do raio carmim.
Entretanto, permaneceu visível apenas por uma fração de segundo. Darya
não podia dizer se ela havia acelerado ainda mais até perdê-la de vista ou
se algum outro mecanismo a fizera desaparecer. No momento em que
desapareceu, o mesmo aconteceu com o raio carmim.
A segunda esfera ainda flutuava, imóvel, nas proximidades de Tre-
mor. Depois de alguns momentos, começou a se movimentar ao longo
do raio amarelo. Mas se movia muito devagar. A moça podia facilmente
acompanhá-la com os olhos, uma bola de prata galgando o raio amarelo
como se fosse uma aranha metálica subindo no seu próprio fio. Conti-
nuou a observá-la por algum tempo.
232
De repente, a esfera começou a ficar fora de foco. O campo estelar
em torno se tornou distorcido, irreal. A esfera desapareceu totalmente,
transformando-se em um círculo negro, enquanto que a luz das estrelas
em torno convergia para formar um anel luminoso. A região escura conti-
nuou a se mover ao longo do raio amarelo.
Enquanto a moça olhava para aquele buraco no espaço, o Sonho de
Verão fez uma manobra brusca. Hans Rebka, no assento do piloto, gritou
alguma coisa. Um jato violeta, o sistema de propulsão de uma espaçona-
ve funcionando com alta intensidade, cortou o céu em direção ao Sonho
de Verão.
Darya virou a cabeça e viu a silhueta pouco graciosa de uma nave
da Comunidade dos Zardalus se aproximar rapidamente. No bico da nave,
os alçapões que escondiam os canhões começaram a se abrir.
O Sonho de Verão era o alvo... e, daquela distância, a outra nave
não poderia errar.
Enquanto a moça observava, horrorizada, as armas foram dispa-
radas. Esperava que a nave se desintegrasse a qualquer momento. En-
tretanto, inexplicavelmente, os tiros não seguiram a trajetória prevista.
Desviaram-se para o lado, passando longe do Sonho de Verão e indo de
encontro à esfera negra, que ainda estava suspensa no raio de luz ama-
rela.
Os raios emitidos pelos canhões da nave permaneciam visíveis
como linhas finas no espaço, ligando a espaçonave zardalu ao globo escu-
ro. As linhas curvas diminuíram de comprimento. A outra nave se aproxi-
mou da região distorcida do espaço, como se a esfera a estivesse puxando
pelas linhas luminosas dos seus tiros.
Mas a nave zardalu não estava disposta a ceder. O brilho violeta do
seu sistema de propulsão aumentou. Darya podia sentir o equilíbrio entre
duas forças descomunais.
A espaçonave estava perdendo. Capturada pela curvatura do cam-
po, continuou a se mover ao longo das linhas de força, irresistivelmente
atraída para a esfera negra. A esfera continuava a deslocar-se ao longo do
raio amarelo, cada vez mais depressa. Darya teve a impressão de que a
nave zardalu havia sido sugada pelo vazio negro um momento antes de a
esfera subir pelo raio amarelo até desaparecer.
O Sonho de Verão continuou em frente, acompanhando a curvatu-
ra de Tremor. Gargântua desapareceu abaixo do horizonte, e com ele o
raio amarelo.
— Não sei se alguém está interessado a esta altura. — Era a voz
233
lacônica de Rebka, fazendo a moça se lembrar de repente de onde esta-
va. — Acabo de olhar para o relógio. A Maré de Verão aconteceu poucos
segundos atrás. E estamos em órbita.
Darya virou a cabeça para olhar para o planeta. Não havia nada
para ver, a não ser nuvens escuras e, atrás delas, no horizonte, a esfera
azul-acinzentada de Opala.
A Maré de Verão havia passado. E nada acontecera como imagina-
ra. Olhou para os outros, ali deitados no chão da espaçonave, esfregando
os olhos, e se sentiu terrivelmente desapontada. Assistir a tudo... sem
nada compreender! A visita a Tremor durante a Maré de Verão tinha sido
um mistério sem solução, um desperdício de tempo e de vidas humanas.
— A boa notícia é que estamos em órbita. — Rebka estava falando
de novo, e Darya podia sentir o cansaço em sua voz. — A má notícia é que
a manobra que tivemos de fazer há alguns momentos consumiu o pouco
que nos restava de combustível. Provavelmente, temos que agradecer a
Louis Nenda e Atvar H’sial por isso. Não faço a menor idéia do que estava
acontecendo lá embaixo, nem do que foi feito da outra nave, e, sincera-
mente, não tenho tempo para pensar nisso agora. Espero que Nenda e
H’sial tenham recebido o que mereceram, mas no momento o importante
é que, sem combustível, não podemos pousar em Opala, nem em Tremor,
nem em nenhum outro lugar. O comandante Perry está calculando uma
trajetória que nos leve à Estação de Meio Caminho. Se tivermos sorte,
talvez seja possível usar o Cordão Umbilical.
Calculando uma trajetória, pensou Darya. Como? Perry não tem
mãos, apenas tocos de carne queimada.
Mas ele vai conseguir, com mãos ou sem mãos. E se seu pé estives-
se queimado como o meu, isso não o impediria de caminhar. Ou mesmo
de correr, se fosse necessário. Hans Rebka fala de sorte, mas ela não os
tem favorecido. Pelo contrário; eles têm tido que lutar contra o destino.
Nunca mais farei pouco do Círculo de Phemus. Seus habitantes são
sujos, desagradáveis, pobres e primitivos, mas Rebka, Perry e o outros
têm uma coisa que faz os povos da Aliança parecerem zumbis: vontade de
viver, aconteça o que acontecer.
E então, talvez porque estivesse ficando cada vez mais relaxada e
sonolenta em resposta ao fluido anestésico e levemente tóxico que Kallik
lhe injetara, e porque Darya Lang não conseguia parar de pensar, mesmo
que quisesse, uma voz interior lhe disse: O Cordão Umbilical. Estamos
indo para o Cordão Umbilical.
O último artefato dos Construtores; sabia disso, todos sabiam. Uma
234
estrutura insignificante, se comparada com os outros trabalhos dos Cons-
trutores. Mas era para aquele lugar, para o menor dos artefatos, e para
aquela data, a da Maré de Verão, que todos os outros artefatos dos Cons-
trutores haviam apontado.
— Por quê? Por que não apontar para um dos artefatos maiores,
como o Paradoxo, a Sentinela, o Elefante, o Casulo, a Lente?
Aí está um mistério interessante, pensou Darya; um enigma que
vale a pena investigar. Vamos esquecer a confusão em que nos encontra-
mos e pensar nisso por algum tempo. Não posso ajudar Rebka e Perry, e,
mesmo que pudesse, isso não será necessário. Eles vão tomar conta de
mim. De modo que vamos pensar.
Vamos pensar nas duas esferas que saíram do núcleo de Tremor.
Fazia quanto tempo que estavam lá? Por que estavam lá? Para onde fo-
ram? Por que escolheram este momento para aparecer, e o que fez a es-
fera negra levar a nave zardalu com ela?
As perguntas ficaram sem resposta. O veneno narcótico de Kallik
estava se espalhando pela corrente sanguínea, deixando-a sonolenta.
Não lhe restava muito tempo para pensar. Não conseguia mais se con-
centrar; seus pensamentos pulavam ao acaso de um assunto para outro.
Mais alguns segundos e estaria dormindo.
No último momento, porém, antes de perder totalmente a consci-
ência, Darya teve um súbito lampejo. Compreendeu o significado de Tre-
mor e da Maré de Verão! Descobriu para que serviam! Agarrou-se a esse
pensamento, lutando para fixá-lo na memória.
Tarde demais. Darya, ainda lutando, mergulhou nas trevas da in-
consciência.

235
Capítulo 23

Rebka acordou como um animal nervoso, passando instantanea-


mente do sono profundo para um estado de atenção total. Sua primeira
sensação foi de pânico.
Cometera o erro fatal de se deixar vencer pelo cansaço. Quem es-
tava pilotando a nave?
A única pessoa a bordo capaz de fazê-lo, além dele, era Max Per-
ry, que estava queimado demais para operar os controles. Iriam cair em
Opala, chocar-se com a superfície torturada de Tremor ou perder-se para
sempre no espaço.
De repente, antes mesmo de abrir os olhos, compreendeu que es-
tava tudo bem.
Não havia ninguém pilotando a nave. Nem era necessário. Não es-
tava a bordo do Sonho de Verão. Não podia estar, porque não estava em
queda livre. E a força que sentia no corpo não era a força irregular de uma
reentrada na atmosfera. Em vez disso, havia uma pressão constante para
baixo, a aceleração de uma fração de g a que eram submetidos os passa-
geiros de uma cápsula do Cordão Umbilical.
Abriu os olhos e se lembrou das horas finais do vôo. Tinham che-
gado à Estação de Meio Caminho como um bando de marinheiros bêba-
dos, a coleção mais deprimente de humanos e alienígenas que jamais
se reunira no sistema de Dobelle. Lembrou-se de que mordera os lábios
e pontas dos dedos até sangrarem, lutando para permanecer acordado,

236
para manter os olhos abertos. Seguira as instruções de navegação meio
incoerentes de Perry o melhor que pudera, enquanto acompanhavam du-
rante cinco horas intermináveis a linha do Cordão Umbilical. Com a ajuda
dos pequenos jatos direcionais, os únicos que ainda funcionavam a bordo
do Sonho de Verão, atracara no maior dos ancoradouros da estação.
Lembrava-se da manobra de aproximação... uma vergonha para
um piloto. Levara cinco vezes mais tempo que o necessário. Quando a
última confirmação de atracamento fora recebida na nave, recostara-se
no assento e fechara os olhos para descansar por um momento.
E depois?
Não se lembrava de mais nada. Olhou em torno.
Devia ter adormecido logo depois de estacionar a espaçonave. Al-
guém o carregara para a Estação de Meio Caminho e o colocara em uma
cápsula do Cordão Umbilical, no compartimento do meio.
Não estava sozinho. Max Perry, com os antebraços untados por
uma geléia amarela, dormia a seu lado. Mais adiante, podia ver Darya
Lang, com os cabelos longos amarrados atrás da nuca. Tinham cortado a
perna esquerda da sua calça, abaixo do joelho, e coberto com pele artifi-
cial o pé e o tornozelo queimados. Respirava tranquilamente. De vez em
quando, murmurava alguma coisa, como se estivesse prestes a acordar.
Com o rosto tão relaxado e livre de preocupações, parecia ter doze anos
de idade. Ao lado de Darya estava Geni Carmel, que também parecia estar
sob o efeito de sedativos, embora não tivesse ferimentos visíveis.
Rebka olhou para o relógio. Fazia vinte e três horas que ocorrera a
Maré de Verão. O sistema de Opala e Tremor já devia estar voltando ao
normal. E não sabia absolutamente nada sobre o que ocorrera nas últi-
mas dezessete horas.
Esfregou os olhos, observando que o rosto não estava mais sujo de
fuligem e poeira. Alguém não só o carregara até a cápsula, mas também
lhe dera um banho e trocara suas roupas antes de deixá-lo ali para dormir.
Quem fizera aquilo? Quem cuidara das queimaduras de Perry e Lang?
Isso o levou de volta à primeira pergunta: com os quatro incons-
cientes, quem estava cuidando das coisas?
Tentou levantar-se e descobriu que não conseguia desamarrar o
cinto de segurança. Mesmo depois de dezessete horas de repouso, sen-
tia-se tão cansado que seus dedos se recusavam a funcionar direito. Se
Darya Lang parecia uma adolescente, ele estava se sentindo como um
velho decrépito.
Finalmente, libertou-se do cinto e conseguiu deixar o hospital im-
237
provisado. Chegou a pensar em acordar Perry e Darya — ela continuava
a murmurar alguma coisa para si própria, em tom de protesto —, mas
decidiu não fazê-lo. Provavelmente tinham sido anestesiados para que
suas queimaduras fossem tratadas.
Subiu lentamente a escada que levava ao compartimento de con-
trole e observação da cápsula. O teto transparente da câmara superior
mostrava a Estação de Meio Caminho em primeiro plano. Mais acima,
confirmando que a cápsula estava descendo em direção a Opala, Rebka
viu o disco distante de Tremor, coberto por nuvens escuras.
As paredes do compartimento, de dez metros de altura, estavam
cobertas de indicadores. Julius Graves, sentado em frente ao console de
controle e ladeado por J’merlia e Kallik, observava atentamente uma das
telas. A sucessão de imagens que Graves estava recebendo mostrava a
superfície de um planeta, mas era Opala, e não Tremor.
Rebka observou por alguns minutos antes de anunciar sua presen-
ça. Com a atenção de todos voltada para Tremor, tinha sido fácil esque-
cer que Opala também experimentara a maior Maré de Verão da história
humana. Vistas aéreas e de radares em órbita, penetrando a camada de
nuvens que envolvia o planeta, mostravam grandes regiões do fundo do
mar que tinham sido expostas pelas gigantescas marés. O terreno lama-
cento estava coalhado de manchas verdes: rabdomantes do tamanho de
montanhas, esmagados pelo próprio peso.
Outras imagens mostravam as Fundas de Opala se desintegrando
ao serem atingidas por ondas de vários quilômetros de altura, produzidas
pela força das marés, que varriam a superfície do oceano.
Uma transmissão de Opala comunicava, com voz neutra, as perdas
sofridas durante a catástrofe: metade da população do planeta perecera,
a maioria nas últimas vinte e quatro horas; um quinto estava desapare-
cido. Antes mesmo de concluírem o levantamento dos prejuízos, porém,
os sobreviventes haviam iniciado o trabalho de reconstrução. Todos os
humanos residentes em Opala estavam participando desse esforço her-
cúleo.
As transmissões deixaram claro para Rebka que os habitantes de
Opala estariam extremamente atarefados no futuro próximo. Se o grupo
pousasse ali, não podia esperar qualquer tipo de assistência.
Foi até a frente e deu um tapinha no ombro de Graves. O conselhei-
ro teve um sobressalto, girou na cadeira e sorriu ao ver quem era.
— Ah! De volta do país dos sonhos! Como pode ver, capitão — le-
vantou a mão, com um floreio, e apontou para os monitores —, nossa
238
decisão de passar a Maré de Verão em Tremor, e não em Opala, acabou
sendo acertada.
— Se ficássemos na superfície de Tremor durante a Maré de Verão,
conselheiro, teríamos sido reduzidos a cinzas. Tivemos muita sorte.
— Mais sorte do que pensa. E muito antes da Maré de Verão. —
Graves apontou para Kallik, que estava operando os monitores com um
dos membros dianteiros e digitando números em um computador de bol-
so com outro. — De acordo com nossa amiga himenopt, Opala sofreu
mais do que Tremor. Kallik tem estado calculando o equilíbrio de energia
do sistema desde que deixamos a superfície. Ela concorda com o coman-
dante Perry: a superfície de Tremor deveria ter exibido uma atividade sís-
mica muito maior durante a Grande Conjunção. A energia das marés não
foi totalmente liberada enquanto estávamos lá. Algum mecanismo arma-
zenou a energia por algum tempo. Se não fosse por isso, o planeta teria
se tornado inabitável muito antes de deixarmos a superfície. Essa energia
foi desviada para algum lugar.
— Conselheiro, as condições em Tremor se tornaram insuportáveis.
Elena Carmel morreu. Atvar H’sial e Louis Nenda também podem ter mor-
rido.
— Morreram, sim.
— Não vou chorar por eles. Pode ser que não saiba, mas estavam
em órbita em torno de Tremor durante a Maré de Verão e tentaram nos
abater a tiros. Mereceram o destino que tiveram. Mas por que está tão
certo de que morreram?
— Darya Lang viu a nave de Nenda ser arrastada em direção a Gar-
gântua com uma aceleração tão grande que nenhum ser humano ou ce-
cropiano conseguiria sobreviver. Devem ter sido esmagados.
— A nave de Nenda dispunha de um sistema de propulsão estelar.
Não vejo como um campo local poderia capturá-la.
— Se não aceita esta versão dos fatos, capitão, deve conversar com
Darya Lang. Foi ela a testemunha, não eu.
— Ela está dormindo.
— Ainda? A moça perdeu a consciência de novo quando J’merlia
começou a tratar do seu pé, mas já devia ter acordado. — Graves virou-se
com irritação. — O que é que você quer?
J’merlia estava puxando timidamente a manga da camisa de Gra-
ves, enquanto Kallik, a seu lado, pulava e assoviava, excitada.
— Com todo o respeito, conselheiro Graves — disse J’merlia, ajoe-
lhando-se diante dele —, Kallik e eu não pudemos deixar de ouvir o que
239
disse ao capitão Rebka... que Nenda e Atvar H’sial escaparam de Tremor e
depois foram atraídos para Gargântua e esmagados pela aceleração.
— Na direção de Gargântua, meu amigo lo’tfiano. Talvez não para
Gargântua. A professora Lang insiste em dizer que não os viu chegar à
superfície do planeta.
— Mil desculpas. Eu devia ter dito na direção de Gargântua. Conse-
lheiro, poderia nos dispensar, a mim e a Kallik, por alguns minutos?
— Ora, está bem. Não precisam ser tão servis. Sabem que eu odeio
isso.
Graves dispensou-os com um gesto. Enquanto os alienígenas se di-
rigiam para o andar de baixo, voltou-se para Rebka.
— Capitão, a menos que ainda esteja precisando dormir, acho que
devemos ir ver como estão o comandante Perry e a professora Lang. Te-
mos muito tempo. A cápsula levará algumas horas para chegar a Opala. E
nossa missão oficial no sistema de Dobelle está terminada.
— A sua, talvez. A minha, não.
— Estará, capitão, antes do que espera. — O esqueleto sorridente
parecia tão irritantemente arrogante como nunca.
— Nem ao menos sabe qual é a minha verdadeira missão.
— Ah, mas eu sei. Foi mandado para cá para descobrir o que havia
de errado com o comandante Perry. Para saber o que o mantinha em
um emprego de terceira classe no sistema de Dobelle... e para levá-lo de
volta.
Rebka afundou em um assento em frente ao console de controle.
— Como sabe disso? — Parecia mais surpreso do que aborrecido.
— Da maneira óbvia: através do comandante Perry. Ele também
tem seus amigos e fontes de informações no quartel-general do Círculo
de Phemus. Ele sabe o que veio fazer aqui.
— Então, deve saber também que não consegui descobrir coisa al-
guma. Como lhe disse, minha missão não terminou.
— Não é bem assim. Sua missão oficial está quase terminada. En-
tenda, capitão, eu sei o que aconteceu com Max Perry sete anos atrás. Já
tinha minhas suspeitas antes de chegar a Tremor, e confirmei-as quando
interroguei o comandante sob os efeitos dos sedativos. Foi preciso apenas
fazer as perguntas certas. E sei como fazê-las. Confie em mim e escute.
Julius Graves aproximou-se de um monitor, tirou do bolso uma uni-
dade de dados do tamanho de um cubo de açúcar e introduziu-a na má-
quina.
— Esta é apenas uma gravação de voz, mas não terá dificuldade
240
para reconhecer de quem é, embora pareça muito mais jovem. Fiz com
que sua memória retrocedesse sete anos. Vou reproduzir apenas um frag-
mento. Não vejo vantagem em tornar público o sofrimento de um ser
humano.

...Amy parecia muito alegre e bem-disposta, mesmo com todo


aquele calor. Estava rindo quando saiu correndo na minha frente em dire-
ção ao carro que nos levaria de volta ao Cordão Umbilical. A distância até
o carro era de apenas algumas centenas de metros, mas comecei a ficar
cansado.
— Ei, espere por mim. Tenho que carregar todo este equipamento.
Ela olhou para trás e mexeu comigo.
— Ora, vamos, Max. Deixe de ser tão sério. Não precisa de todos
esses instrumentos. Deixe-os aqui... ninguém vai reparar.
Ela me fez sorrir, apesar dos ruídos à nossa volta e do suor que me
cobria o corpo. Tremor estava quente.
— Não posso fazer isso, Amy... é propriedade do governo. Tenho
que prestar contas. Espere por mim, por favor.
Mas ela se limitou a rir. E começou a dançar naquela superfície es-
tranhamente fora de foco, no solo frágil e traiçoeiro da Maré de Verão...
...antes que eu pudesse fazer alguma coisa, ela havia desaparecido.
De um momento para o outro. Em uma fração de segundo. Devorada por
Tremor. Tudo que pude levar de volta comigo foi a tristeza...

— Há muito mais, mas não acrescenta nada de novo. — Graves


desligou o monitor. — Nada que não se possa deduzir. Amy morreu na
lava, não na lama fervente. Max Perry viu de novo a distorção causada
pelo calor, na depressão de Pentacline... mas não a tempo de salvar Elena
Carmel.
Hans Rebka deu de ombros.
— Mesmo que saiba o que fez Max Perry se recolher em sua casca,
esta não é a parte mais difícil de minha missão. Tenho ainda que curá-lo,
e não sei nem por onde começar.
Rebka sabia que seu desânimo e pessimismo deviam ser temporá-
rios, não mais que um efeito do cansaço que estava sentindo depois de
dias de tensão. Entretanto, isso não os tornava menos reais.
Olhou para um dos monitores na parede, que mostrava uma Funda
flutuando de cabeça para baixo, despedaçada pelo impacto das ondas.
Tudo que se podia ver era uma massa de lama negra e escorregadia, à
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qual se misturavam pedaços de raízes. Imaginou se alguém conseguiria
sobreviver a uma catástrofe daquelas.
— Como? — prosseguiu. — Como se consegue devolver o gosto
pela vida a alguém que se acha deprimido há sete anos? Não sei.
— Claro que não sabe. O especialista nisso sou eu, e não você. —
Graves voltou-se bruscamente e se dirigiu para a escada. — Vamos —
disse, por cima do ombro. — Hora de vermos o que está acontecendo lá
embaixo. Acho que aqueles alienígenas inconvenientes estão planejando
um motim, mas vamos deixar isso para depois. No momento, temos que
falar com Max Perry.
Estaria Graves de novo perdendo o juizo? Rebka suspirou. Estava
começando a ficar com saudade dos velhos tempos, quando atravessava
as nuvens de Tremor a bordo de uma nave superlotada, imaginando se
conseguiriam sobreviver a mais um segundo de turbulência. Desceu atrás
do conselheiro para o segundo andar da cápsula.
Não havia sinal de J’merlia e Kallik.
— Bem que eu lhe disse — observou Graves. — Estão no compar-
timento de carga. Aqueles dois estão tramando alguma coisa, juro que
estão. Dê-me uma mão aqui.
Com a ajuda de Rebka, o conselheiro carregou Max Perry e depois
Geni Carmel para o compartimento superior. Darya Lang, ainda murmu-
rando alguma coisa para si mesma no limiar da consciência, foi deixada
onde estava.
Graves colocou Max Perry e Geni Carmel em assentos fazendo no-
venta graus um com o outro e afivelou os cintos de segurança.
— Amarre-os — disse a Rebka. — Tome cuidado com os braços
queimados de Perry, mas lembre-se de que não quero que os dois saiam
sozinhos dos assentos. Volto num minuto.
Graves fez uma última viagem ao andar de baixo. Quando apareceu
de novo, estava carregando duas pistolas hipodérmicas na mão direita.
— Darya Lang está acordando — disse ele —, mas vamos resolver
isto primeiro. Não levará muito tempo. — Deu uma injeção no ombro de
Perry com uma das pistolas e no ombro de Geni Carmel com a outra. —
Agora podemos começar. — Um, dois... contou em voz alta.
A injeção estimulante teve efeito imediato sobre Max Perry. Antes
que Graves chegasse a dez, Perry suspirou, balançou a cabeça de um lado
para outro e abriu os olhos devagar. Olhou em torno com desinteresse,
até dar com a ainda inconsciente Geni Carmel. Então, deu um gemido
fundo e fechou os olhos.
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— Você está acordado — disse Graves, em tom reprovador. — Não
quero que volte a dormir. Tenho um problema e preciso da sua ajuda.
Perry sacudiu a cabeça, e seus olhos permaneceram fechados.
— Daqui a algumas horas, estaremos de volta a Opala — prosse-
guiu Graves. — A vida começará a voltar ao normal. Acontece que serei o
responsável pela reabilitação de Geni Carmel. Sei que teremos audiências
formais, tanto em Shasta como em Miranda, mas isso não deve interferir
com o programa de reabilitação. Ele deve ser iniciado imediatamente. En-
tretanto, a morte de Elena torna o programa muito difícil. Sinto que seria
desastroso permitir que Geni voltasse a Shasta, com todas as suas recor-
dações da irmã, antes que esteja pelo menos parcialmente recuperada.
Por outro lado, eu preciso ir para Shasta, e de lá para Miranda, onde terei
que depor no processo de genocídio.
Fez uma pausa. Perry ainda não abrira os olhos de novo. Graves
aproximou-se e baixou o tom de voz.
— Isso me deixa com duas questões para responder. Onde deve
começar a reabilitação de Geni Carmel? E quem vai supervisionar o pro-
cesso de reabilitação, já que não posso fazê-lo pessoalmente?
“É por isso que preciso de sua ajuda, comandante. Cheguei à con-
clusão de que o processo de reabilitação deve começar em Opala. E gos-
taria de torná-lo responsável por ele.
Finalmente, Perry mostrou alguma reação. Seu corpo se retesou
contra as amarras. Os olhos injetados se arregalaram.
— De que diabo está falando?
— Pensei que estivesse sendo claro. — Graves sorria. — Mas vou
repetir. Geni permanecerá em Opala durante pelo menos quatro meses.
Será o responsável pelo bem-estar da jovem enquanto ela estiver lá.
— Não pode fazer isso.
— Está enganado. Pergunte ao capitão Rebka. Em questões como
esta, um membro do Conselho tem autoridade para determinar que a
reabilitação seja iniciada imediatamente. E qualquer um pode ser convo-
cado para ajudar. Incluindo o senhor.
Perry olhou para Rebka e depois olhou de volta para Graves.
— Minha resposta é não. Tenho meu próprio trabalho... um traba-
lho de tempo integral. Além disso, ela precisa de um especialista. Não sei
como lidar com este tipo de problema.
— Pode aprender. — Graves apontou para a outra cadeira, onde
Geni estava acordando lentamente, em resposta a uma injeção mais fra-
ca. — Ela já está em condições de ouvir. Para começar, pode contar-lhe
243
a respeito de Opala. Lembre-se, comandante, de que ela nunca esteve
neste planeta. Vai ser o seu lar por algum tempo, e o senhor conhece mais
sobre ele do que ninguém.
— Espere um minuto! — Perry estava lutando contra as cordas e
chamando Graves, que já fazia menção de se retirar, levando Rebka com
ele. — Estamos amarrados. Não pode nos deixar aqui! Olhe para ela!
Geni Carmel não estava fazendo nenhum esforço para se desamar-
rar, mas as lágrimas escorriam pelo rosto pálido e ela observava, com hor-
ror ou fascinação, as mãos e braços mutilados de Perry.
— Desculpe — disse Graves por cima do ombro, enquanto ele e Re-
bka se dirigiam para o andar inferior da cápsula. — Conversaremos sobre
isso mais tarde. Agora, precisamos ir. Eu e o capitão Rebka temos algo de
muito urgente para fazer no convés inferior. Até mais tarde.
Rebka esperou até ter certeza de que não seria ouvido por Perry
antes de falar de novo com o conselheiro.
— Estava falando sério quando disse aquilo?
— Eu sempre falo sério.
— Não vai dar certo. Geni Carmel é apenas uma criança. Com a
morte de Elena, perdeu a vontade de viver. Sabe como elas eram unidas,
tão unidas que preferiam morrer a se separar. E Perry também tem os
seus problemas pessoais... não é a pessoa indicada para cuidar dela.
Julius Graves parou no pé da escada. Voltou-se para olhar para
Hans Rebka, e desta vez não estava nem rindo nem fazendo caretas.
— Capitão, quando eu precisar de um homem que seja capaz de
pilotar uma nave superlotada e quase sem combustível como o Sonho
de Verão para escapar de um planeta que está se fazendo em pedaços
debaixo dos meus pés, certamente recorrerei ao senhor. Sabe executar
muito bem o seu trabalho. Não pode me fazer o favor de admitir que o
mesmo pode ser verdade em relação ao meu! Não acha possível que eu
seja bom no que faço?
— Mas este não é o seu trabalho.
— O que serve para mostrar, capitão, o pouco que sabe a respeito
dos deveres de um membro do Conselho. O que estou fazendo vai dar
certo, acredite. Ou prefere fazer uma aposta? Aposto que Max Perry e
Geni Carmel têm mais chance de curarem um ao outro do que eu ou você
temos de curar qualquer um deles. Como disse, ela é apenas uma criança
que necessita de ajuda... mas Perry é um homem que precisa desespe-
radamente ajudar alguém. Ele vem se punindo há sete anos pelo crime
de ter permitido que Amy fosse com ele até Tremor durante a Maré de
244
Verão. Não percebe que o fato de ter queimado os braços vai ajudá-lo a
superar o sentimento de culpa? Agora ele tem uma oportunidade de con-
seguir o perdão. E o trabalho do senhor em Opala terminou. Pode partir
hoje mesmo, que Perry ficará muito bem. — Graves estalou os dedos e
estendeu a mão a Rebka. — Quer apostar? Diga a quantia.
Rebka foi salvo da necessidade de responder por uma voz zangada
à frente deles.
— Não sei quem merece meus agradecimentos por isto, e não vou
perguntar. Mas alguém quer me tirar daqui? Tenho trabalho a fazer.
Era Darya Lang, totalmente consciente e lutando para libertar-se
das cordas. Não se parecia em nada com a tímida cientista teórica que
chegara a Opala não fazia muito tempo, mas mesmo assim ainda não do-
minava certas habilidades práticas. Em seus esforços para se desamarrar,
conseguira apenas emaranhar as cordas, de modo que estava pendurada
de cabeça para baixo e com os braços praticamente imobilizados.
— Ela é toda sua, capitão — disse Graves, inesperadamente. — Vou
descobrir onde estão J’merlia e Kallik. — Abriu uma portinhola no lado do
compartimento e desapareceu.
Rebka aproximou-se de Darya e examinou os nós das amarras.
Compreendia cada vez menos o que estava acontecendo. Depois da fuga
de Tremor, o grupo todo, exceto ele, deveria ter motivos para relaxar; em
vez disso, todos haviam adquirido novas energias. A moça parecia impa-
ciente e furiosa.
Rebka estendeu a mão, puxou devagar em um ponto da corda e
com força em outro. O resultado foi instantâneo. As amarras se desfize-
ram totalmente, depositando Darya Lang com suavidade no chão. Ele a
ajudou a levantar-se e foi recompensado com um sorriso surpreendente
e envergonhado.
— Como foi que não consegui fazer isso sozinha? — A moça apoiou
de leve no chão o pé machucado, deu de ombros e pisou com mais for-
ça. — A última coisa de que me lembro é que tínhamos chegado ao Cor-
dão Umbilical e Graves e Kallik estavam fazendo um curativo no meu pé.
Quanto tempo passei dormindo? Quando vamos chegar a Opala?
— Não sei durante quanto tempo você dormiu, mas faz vinte e três
horas que a Maré de Verão aconteceu. — Rebka consultou o relógio. —
Não, já faz quase vinte e quatro. E devemos chegar a Opala daqui a umas
duas horas. Se conseguirmos chegar à superfície. O planeta foi muito cas-
tigado. Mas não há pressa. Temos muita comida e água a bordo. Podemos
viver nesta cápsula durante semanas. Se for necessário, podemos voltar
245
para a Estação de Meio Caminho e continuar lá indefinidamente.
— Nada disso. — Darya estava sacudindo a cabeça. — Não posso
esperar. Estou consciente há apenas alguns minutos, mas passei todos
eles amaldiçoando o homem que me encheu de drogas. Temos que voltar
à superfície de Opala e você tem que me arranjar uma nave.
— Para voltar para casa? Qual é a pressa? Há alguém à sua espera
no Portal da Sentinela?
— Ninguém. — A moça segurou Hans Rebka pelo braço, apoiando­-
se nele enquanto se dirigiam para a pequena cozinha da cápsula. Sentou­-
se e se serviu de uma bebida quente, com toda a calma. Depois, voltou-se
para ele. — Você não entendeu, Hans. Não pretendo voltar para o Portal
da Sentinela. Vou para Gargântua E vou precisar de ajuda para chegar lá.
— Espero que não esteja contando comigo para isso. — Rebka des-
viou os olhos, muito consciente de que os dedos da moça continuavam
no seu bíceps. — Escute, eu sei que a nave de Nenda foi puxada naquela
direção e que todos a bordo morreram. Não quero que você morra tam-
bém. Gargântua é um gigante gasoso, um mundo gelado... é impróprio
para a vida humana ou cecropiana.
— Eu não vi a nave e a esfera pousarem em Gargântua. Não acho
que isso tenha acontecido. Acredito que o lugar mais interessante para
visitar seja uma das luas de Gargântua, mas não saberei ao certo até che-
gar lá.
— Chegar lá e fazer o quê? Recolher dois cadáveres. Quem está
ligando para eles? Atvar H’sial abandonou você em Tremor, e ela e Nenda
abandonaram J’merlia e Kallik. Mesmo que estejam vivos (e você garante
que não estão), não merecem a nossa ajuda.
— Concordo. Não é por isso que eu quero ir até lá. — Darya passou
uma xícara para Rebka. — Calma, Hans. Beba isso e preste atenção no que
vou dizer. Sei que os habitantes do Círculo de Phemus acham que todo
mundo que vem da Aliança é um incompetente sonhador, da mesma for-
ma que pensamos que vocês todos são bárbaros incultos que não gostam
de tomar banho..
— O quê?
— Mas você e eu já nos conhecemos suficientemente bem para
saber que esses preconceitos não têm nenhum fundamento. Você reco-
nhece que sou pelo menos uma observadora decente. Não invento nada.
Deixe-me contar-lhe o que vi, e não o que penso. As outras pessoas po-
dem não perceber a importância do que testemunhei, mas tenho espe-
rança de que você chegue às conclusões corretas. — E, após uma pausa:
246
— Só lhe peço uma coisa: escute primeiro, depois pense e só em seguida
reaja... nesta ordem.
Aproximou-se de Rebka, colocando-se em uma posição tal que era
difícil para ele fazer outra coisa senão ouvir o que a moça tinha a dizer.
— Quando estávamos nos aproximando das nuvens de Tremor,
você estava ocupado demais pilotando a nave para olhar para trás, e to-
dos os ocupantes do compartimento traseiro, exceto eu, foram ofuscados
pela luz de Mandel e Amaranth. Assim, ninguém viu o que eu vi: um túnel
profundo ser aberto na superfície de Tremor, um túnel que levava ao in-
terior do planeta. Dois objetos saíram desse túnel. Um deles voou ime-
diatamente para longe, para fora do plano da galáxia. Perdi-o de vista em
menos de um segundo. Você viu o outro, que se dirigiu para Gargântua e
arrastou a nave de Louis Nenda com ele. Para nós, isso representou a sal-
vação, mas não foi o mais importante! Todo mundo sabe que a atividade
sísmica em Tremor durante a Maré de Verão foi muito menor do que seria
de se esperar. Claro que nós passamos por maus pedaços, quando está-
vamos lá embaixo. Mesmo assim, me lembro de Max Perry perguntando:
para onde está indo toda a energia?
“Pois eu já conheço a resposta. A energia estava sendo transforma-
da e armazenada para que, quando chegasse o momento apropriado, o
planeta pudesse se abrir e expelir aqueles dois corpos... espaçonaves, se
quiser chamá-los assim.
“Vi quando isso aconteceu e pressenti que era a explicação para
uma dúvida que vinha me preocupando havia muito tempo, antes mesmo
que eu deixasse o Portal da Sentinela: Por que Dobelle? Por que escolher
um local tão obscuro para um acontecimento tão importante?
Darya prosseguiu.
— A idéia de visitar Dobelle me ocorreu quando calculei a hora e
lugar para os quais convergiam as influências que provocavam mudanças
nos artefatos. Só havia uma solução: Tremor, durante a Maré de Verão.
Quando tornei pública minha teoria, porém, os especialistas nos Cons-
trutores riram de mim. Eles disseram: “Escute, Darya, sabemos que existe
um artefato no sistema de Dobelle, o Cordão Umbilical. Mas é um exem-
plo menor na tecnologia dos Construtores. É alguma coisa que podemos
compreender; algo que não tem nada de complexo ou misterioso. Não faz
sentido que o ponto focal de todas as atividades dos Construtores esteja
em uma estrutura de segunda classe, localizada em uma região obscu-
ra da Galáxia...” Sinto muito, Hans, estou apenas repetindo o que eles
disseram. Infelizmente, é assim que a maioria dos habitantes da Aliança
247
considera os planetas do Círculo de Phemus.
Rebka deu de ombros.
— Não precisa pedir desculpas. É assim que muitos de nós conside-
ramos os planetas do Círculo, e nós vivemos aqui. Experimente passar um
fim de semana em Teufel... se conseguir aguentar.
— Entretanto, dissessem o que dissessem a respeito do Círculo
de Phemus e do Cordão Umbilical, não podiam contestar os resultados
de minha análise. Na verdade, eles refizeram os cálculos e confirmaram
que tudo apontava para Dobelle e para Tremor durante a Maré de Verão.
Tiveram que concordar comigo. O problema é que eu também tive que
concordar com eles. Dobelle não fazia sentido como o local de um evento
capaz de mudar a história da galáxia. Eu mesma, no meu catálogo, tinha
descrito o Cordão Umbilical como “um dos artefatos mais simples e fáceis
de compreender”! As pessoas estavam se limitando a repetir minhas pró-
prias palavras.
“De modo que eu estava intrigada quando cheguei aqui. E continu-
ava intrigada quando você decolou, tentando nos tirar de Tremor antes
que fosse tarde demais. Eu não conseguia entender por que os Constru-
tores haviam escolhido Dobelle como ponto de convergência.
“Foi então que vi um raio de luz sair de Gargântua e um buraco se
abrir na superfície de Tremor. Pouco antes de perder os sentidos, percebi
que nós todos tínhamos deixado de levar em conta um fato óbvio.
“Todas as referências à estrutura da galáxia fazem o mesmo co-
mentário, o de que o sistema de Dobelle é ‘uma das maravilhas naturais
do nosso braço da espiral’. Não é maravilhoso, dizem os livros, que a com-
binação dos campos gravitacionais de Amaranth, Mandel e Gargântua te-
nha colocado o sistema de Dobelle em uma órbita tão peculiar que a cada
trezentos e cinquenta mil anos todos os astros do sistema se alinhem exa-
tamente em uma Grande Conjunção? Isso não é espantoso?
Ela própria respondeu.
— Claro que é espantoso... se você acreditar que aconteceu por
acaso. Mas há outra maneira de encarar os fatos. O sistema de Dobel-
le não se limita a conter um artefato, o Cordão Umbilical. O sistema de
Dobelle é um artefato! O sistema inteiro! — A moça segurou de novo o
braço de Rebka, entusiasmada com a própria idéia. — As órbitas foram
calculadas pelos Construtores para que a cada trezentos e cinquenta mil
anos Mandel, Amaranth e Gargântua estejam tão próximos de Tremor
que uma interação especial possa ocorrer. Alguma coisa dentro de Tremor
é capaz de captar e utilizar a enorme energia dessas marés.
248
“Antes de visitar Tremor, eu pensava que talvez os próprios Constru-
tores estivessem no planeta, ou que talvez aparecessem durante a Maré
de Verão. Mas estava enganada. A Grande Conjunção funciona como um
sinal para que as esferas, naves, ou seja lá do que se trate, sejam ejetadas
de Tremor. Não sei para onde foi a primeira; ao que tudo indica, deixou a
galáxia. Contudo, temos informações suficientes para localizar a segunda
esfera, a que se dirigiu para Gargântua. E se queremos saber mais alguma
coisa sobre os Construtores, é para lá que temos que ir. E sem perda de
tempo! Antes que aconteça o que tem que acontecer com Gargântua e
precisemos esperar outros trezentos e cinquenta mil anos para termos
uma nova oportunidade.
Hans Rebka aproveitou a pausa que se seguiu para fazer uma per-
gunta.
— Está querendo dizer que Tremor se abre e alguma coisa sai do
seu interior toda vez que ocorre uma Grande Conjunção?
— Exatamente. É para isso que serve a Grande Conjunção... para
acumular energia suficiente para a ejeção das esferas. Depois que elas
foram ejetadas...
Rebka não a deixou concluir a frase.
— Darya, não sou um cientista, mas sei que você está errada. Per-
gunte a Max Perry.
— Ele não viu o que aconteceu quando partimos de Tremor.
— Nem eu. Max e eu estávamos ocupados com outra coisa. Mas,
quando cheguei a Opala, interessei-me pela história do par de planetas.
O passado de Opala era difícil de investigar, porque o planeta não possui
uma superfície terrestre permanente, mas Perry me mostrou uma análise
dos fósseis encontrados em Tremor. Esses estudos tinham sido realiza-
dos no início da colonização do sistema de Dobelle, porque as pessoas
queriam saber se a superfície de Tremor era suficientemente estável para
sustentar seres vivos durante a Maré de Verão.
“Hoje sabemos que não é, pelo menos no caso de seres humanos.
Nós mesmos tivemos oportunidade de comprovar isso. Mas já existia vida
em Tremor há centenas de milhões de anos, muito antes que o planeta
assumisse a órbita atual. E a formação de um túnel até o núcleo de Tre-
mor, como o que você afirma ter visto, certamente produziria uma ano-
malia capaz de ser revelada através de uma análise dos fósseis.
Rebka estendeu a mão para o controle do monitor e fez aparecer
na tela uma imagem do espaço acima da cápsula. Mandel e Amaranth
estavam visíveis, ainda bem grandes no céu, mas menos brilhantes. A cer-
249
teza de que levariam um ano para tornar a se aproximar era confortadora.
Com o afastamento das estrelas, Gargântua, que estava à direita, parecia
mais brilhante. Entretanto, o planeta gigante também já passara pelo pe-
riastro e seu disco alaranjado estava bem menor. Não havia nenhum raio
de luz saindo de Gargântua ou de um dos seus satélites. Tremor estava
bem acima da cápsula. Sua superfície escura parecia perfeitamente tran-
quila.
— A verdade, Darya, é que a análise dos fósseis não revela nenhum
sinal de uma perturbação de Tremor que seja comparável com aquilo que
você viu. Nem três anos atrás, nem trezentos, nem trezentos e cinquenta
mil. O núcleo de Tremor não é exposto há pelo menos cinco milhões de
anos.
Ele esperava que Darya ficasse abalada com os seus comentários.
Mas a moça reagiu de outra forma.
— Se você está certo, esta Grande Conjunção foi algo muito es-
pecial. Nesse caso, é ainda mais importante investigar o que aconteceu.
Hans, vou lhe ser franca. Você pode voltar amanhã para o seu trabalho no
Círculo de Phemus, mas eu não posso retornar para o Portal da Sentinela.
Ainda não. Eu tenho que dar uma olhada em Gargântua. Não passei a
vida inteira estudando os Construtores para parar agora, quando estou a
um passo de descobrir o seu segredo. Pode ser que os Construtores não
estejam em Gargântua...
— Tenho certeza de que não estão. Teriam sido descobertos quan-
do o sistema de Mandel foi explorado pela primeira vez.
— Mas existe alguma coisa lá. A esfera que carregou a nave de
Nenda não estava apenas deixando Tremor; estava indo para algum lugar.
Preciso arranjar uma nave e ir para lá depressa, enquanto a pista está
fresca.
A moça ainda estava segurando o braço de Rebka, e com tanta for-
ça que chegava a machucar.
— Darya, você não pode sair correndo para Gargântua desse jeito.
Se for sozinha, é provável que não volte. A parte exterior do sistema de
Mandel é fria e hostil. Não é um lugar fácil, mesmo para exploradores ex-
perientes. Ainda mais para você, que vem de um mundo civilizado como
o Portal da Sentinela...
Hans Rebka interrompeu o que estava dizendo. Primeiro, ela o pe-
gara em uma armadilha e o submetera por acidente a um choque quase
fatal. Depois, levara-o para a caverna debaixo da cachoeira e cuidara dele
como nenhuma mulher jamais havia cuidado. E agora estava tentando
250
pegá-lo em uma nova armadilha. Tinha que tomar cuidado para não se
comprometer.
— Não sei como você vai arranjar uma nave — disse ele. — Não
adianta pedir aos habitantes de Opala; depois da Maré de Verão, eles
vão precisar de todas as naves que ainda estão funcionando. Mas vou dar
uma olhada por aí e ver o que posso fazer.
Darya Lang largou o braço de Rebka, mas apenas porque estava
com outras coisas na cabeça. Fora interrompida por um pigarrear vindo da
escada. Julius Graves estava de volta. Logo atrás vinham J’merlia e Kallik.
Graves fez um gesto para que J’merlia se adiantasse.
— Venha. Diga você mesmo, com as suas palavras. — Voltou-se
para Hans Rebka. — Eu lhe disse que eles estavam tramando alguma coi-
sa. E disse a eles que esse tipo de decisão não dependia de mim, embora
eu tenha um opinião formada.
J’merlia hesitou e Kallik cutucou-o com um dos seus cotovelos an-
gulosos, enquanto emitia um assovio que soava como “F-f-f-faaa-le”.
— Vou falar. Senhor capitão. — J’merlia fez menção de prostrar­-
se diante de Rebka, mas Graves o impediu com um rosnado de adver-
tência. — Respeitados humanos. Eu e Kallik estamos diante de um sério
problema. Pedimos a vossa ajuda, embora não tenhamos feito nada para
merecê-la. Não o faríamos se soubéssemos como proceder sem a vossa
assistência. Sabemos que temos sido um fardo para vós. Na verdade, por
causa de nossos atos irrefletidos no planeta Tremor, colocamos em risco
as vidas de todos os...
Desta vez, quem o cutucou foi Julius Graves.
— Desembuche!
— Sim, senhor, respeitado conselheiro. — J’merlia deu de ombros
para Rebka, em um gesto quase humano de quem pede desculpas. — A
verdade, distinto capitão, é que Kallik e eu acreditávamos, quando par-
timos de Tremor, que Louis Nenda e Atvar H’sial estavam mortos, ou ha-
viam decidido (o que tinham todo o direito de fazer) que não necessita-
vam mais de nossos serviços. As duas possibilidades eram extremamente
penosas para nós, mas não víamos outra alternativa a não ser aceitá-las.
Estaríamos então obrigados a retornar ao nosso planeta natal e procurar
novos amos a quem oferecer nossos serviços. Entretanto, poucos minu-
tos atrás, ouvimos dizer que Louis Nenda e Atvar H’sial escaparam da su-
perfície de Tremor.
— É verdade. — Rebka olhou para Darya. — Mas a professora Lang
viu o que aconteceu. Nenda e Atvar H’sial morreram logo depois disso.
251
— Sabemos que pensam assim — disse J’merlia. — Kallik, porém,
observou que existe outra possibilidade. Se a força que a esfera exerceu
sobre a nave foi do tipo gravitacional, os tripulantes não sentiram nada,
pois realizaram o percurso até Gargântua em queda livre. Se tal aconte-
ceu, foram conduzidos vivos até Gargântua, contra a sua vontade, e po-
dem estar precisando da nossa ajuda. Se for esse o caso, temos o dever
de ir até lá. Eles são nossos amos. Pelo menos, não podemos deixar o
sistema de Mandel sem termos certeza de que eles não desejam nossos
serviços ou não podem fazer uso deles. Portanto, levando todos esses
fatos em conta, pedimos, com toda a humildade, que considere a possi-
bilidade de... ai!
J’merlia foi cutucado novamente por Kallik; a ponta amarela do fer-
rão de veneno da himenopt apareceu e tocou um dos membros traseiros
de J’merlia, que se encolheu e deu um passo à frente.
— Você sabia, J’merlia — disse Julius Graves, com um sorriso nos
lábios —, que a professora Lang chegou a pensar que você era incapaz de
falar por si próprio? Aposto que ela está agora com muita pena de que
isso não seja verdade.
— Sinto muito, conselheiro. Estou acostumado a traduzir pensa-
mentos, e não a criá-los. Mas, para resumir o caso, Kallik e eu gostaríamos
que nos emprestassem uma nave e nos permitissem seguir nossos amos
Louis Nenda e Atvar H’sial até Gargântua ou qualquer outro lugar para
onde tenham ido.
— Não — respondeu Rebka, sem pestanejar. — Decididamente,
não. O pedido de vocês não será atendido. Opala está ocupado demais
consertando os estragos causados pela Maré de Verão para perder tempo
à procura de espaçonaves.
Kallik emitiu uma série de assovios.
— Isso não será necessário — declarou J’merlia. — Como Kallik aca-
ba de observar, não precisamos descer em Opala. Já dispomos de uma
espaçonave: o Sonho de Verão. Ele está na Estação de Meio Caminho.
Será fácil voltar até lá e carregar o tanque para a viagem. A estação tem
um bom suprimento de combustível, e eu e Kallik podemos perfeitamen-
te pilotar a nave.
— E vão levar um passageiro — interveio Darya — Quero ir tam-
bém.
Rebka olhou para ela de cara feia.
— Você está ferida. Não se acha em condições de viajar.
— Já estou bem melhor. Posso convalescer a caminho de Gargân-
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tua. Se estivesse no meu lugar, um pé queimado o impediria de cumprir
sua missão?
— O Sonho de Verão não é propriedade do sistema de Dobelle. —
Hans Rebka evitou responder à pergunta e tentou outra abordagem. —
Não tenho autoridade para permitir que usem aquela nave. Nem eu nem
Max Perry.
— Sabemos disso. — J’merlia fez que sim com a cabeça. — A única
pessoa que pode dar essa permissão é Geni Carmel, a proprietária da
nave.
— O que o faz pensar que ela concordará com a sua idéia?
Julius Graves pigarreou.
— Na verdade, capitão Rebka, já discuti o assunto com a pobre
Geni. Ela disse que nunca mais quer ver ou ouvir falar dessa nave. Ela é
sua, se quiser aceitá-la.
Rebka olhou para o conselheiro, surpreso. Por que todo mundo pa-
recia supor que ele estava disposto a ir também?
— A resposta ainda é não, conselheiro. Mesmo que a nave seja
minha. Isso não faz diferença.
J’merlia fez uma mesura, enquanto Kallik assoviava, desapontada.
Julius Graves tomou a palavra:
— É um direito seu, capitão. O senhor se importaria de nos explicar
as suas razões?
— Claro que não. Deixe-me começar com uma pergunta. O senhor
conhece Louis Nenda e Atvar H’sial. Estaria disposto a ir até Gargântua
para procurá-los?
Rebka achava que sua posição estava muito clara. Não havia razão
para ir atrás de pessoas que tinham tentado matá-lo... a não ser que fosse
para fazer justiça com as próprias mãos.
— Eu, ir até Gargântua? — Graves levantou as sobrancelhas. — Cla-
ro que não. Em primeiro lugar, preciso voltar para Miranda. Minha missão
aqui terminou. Além disso, considero Atvar H’sial e Louis Nenda como
criminosos de alta periculosidade. Se eu fosse a Gargântua (o que não
pretendo fazer, já que tenho todas as razões para crer que estejam mor-
tos), seria apenas para prendê-los.
— Muito bem. Penso da mesma forma. Outra coisa, conselheiro.
— Rebka apontou para Kallik. — Sabe como Louis Nenda a controlava?
Vou lhe contar. Usando um chicote e uma coleira. Dizia que Kallik era seu
animal de estimação, mas ninguém devia tratar assim um animal de esti-
mação. Na verdade, ela era sua escrava, uma escrava que ele tratava sem
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a menor consideração. Nenda não hesitou em deixá-la para que morresse
em Tremor. Antes de vir para cá, Kallik não compreendia a língua humana,
mas isso porque nunca tivera oportunidade de aprender. Na realidade, foi
Kallik quem realizou os cálculos que mostravam que aconteceria alguma
coisa diferente durante a Maré de Verão. Ela é muito mais inteligente do
que Nenda. Não é verdade?
— É verdade — concordou Julius Graves, com um sorriso irônico.
— Continue, por favor.
— E J’merlia não estava em melhor situação. A forma como foi tra-
tado por Atvar H’sial quando chegaram a Dobelle foi uma vergonha. O
senhor é especialista em ética. Estou surpreso de que não tenha obser-
vado isso antes de todo mundo. Atvar H’sial não permitia que J’merlia se
manifestasse como pessoa. Hoje, ele fala livremente...
— É uma forma de colocar as coisas.
— Mas, quando a cecropiana estava por perto, J’merlia tinha medo
de abrir a boca. Sua atitude era totalmente passiva, e ele se limitava a
traduzir as palavras de Atvar H’sial. Responda-me uma coisa, conselheiro:
acha que Louis Nenda e Atvar H’sial fizeram alguma coisa para merecer a
nossa lealdade?
— Acho que não.
— Não é totalmente errado que seres racionais como J’merlia e
Kallik sejam tratados daquele jeito, como se fossem escravos ou animais
de estimação?
— É mais do que errado, capitão, é intolerável. Fico muito contente
ao ver que pensamos da mesma forma. — Julius Graves voltou-se para os
alienígenas. — O capitão Rebka está de acordo. Vocês são seres maduros,
racionais, e o capitão afirma que seria totalmente errado que vocês fos-
sem controlados por outras pessoas. É evidente, portanto, que não cabe
a nós decidir o que vocês podem ou não podem fazer. Se querem pegar
uma nave e sair à procura de Louis Nenda e Atvar H’sial, têm todo o direi-
to de fazê-lo.
— Um momento! — Rebka viu o sorriso no rosto de Julius Graves e
ouviu o assovio triunfante de Kallik. — Eu não disse isso!
— Disse, sim, Hans. — Darya Lang estava rindo também. — Não
adianta negar. O conselheiro Graves está certo. Se não estava certo Nenda
e Atvar H’sial tratarem Kallik e J’merlia como escravos, que direito nós te-
mos de fazer o mesmo? Na verdade, estaríamos procedendo pior do que
eles, porque teríamos consciência do nosso erro.
O olhar de Rebka varreu o grupo, passando dos olhos azuis e pene-
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trantes de Julius aos rostos inescrutáveis de J’merlia e Kallik e chegando
finalmente ao sorriso maroto de Darya Lang.
Tinha perdido a discussão, em toda a linha. Curiosamente, não
estava aborrecido. Começava a sentir a mesma curiosidade que sentira
quando estava planejando explorar o Paradoxo. Certamente encontraria
muitos problemas pela frente, mas seriam problemas a enfrentar através
de ações diretas, não as manipulações psicológicas que Graves achava tão
fáceis e naturais.
Que poderiam encontrar em Gargântua? A pergunta estava em
aberto. Atvar H’sial e Louis Nenda, mortos ou vivos? Os Construtores, em
pessoa? Ou mistérios maiores do que qualquer coisa que tinham encon-
trado em Opala e Tremor?
Hans Rebka suspirou quando o assovio do ar nas paredes lisas da
cápsula revelou que haviam acabado de entrar na atmosfera. Faltavam
apenas alguns minutos para chegarem à superfície de Opala.
— Muito bem, conselheiro. Vamos deixar o senhor, Max e Geni em
Opala. Os outros voltam comigo para a Estação de Meio Caminho, onde
está estacionado o Sonho de Verão. Quanto ao que vamos encontrar em
Gargântua...
— Não fazemos a menor idéia — completou Darya. — Console-se,
Hans. É como a Maré de Verão, e um pouco como a própria vida. Se a
gente soubesse exatamente o que vai encontrar, não valeria a pena fazer
a viagem.

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