Phenomenological Studies 2016 Volume XXII N. 2 PDF
Phenomenological Studies 2016 Volume XXII N. 2 PDF
Phenomenological Studies 2016 Volume XXII N. 2 PDF
Volume XXII – N. 2
2016
Goiânia – Goiás
http://pepsic.bvs-psi.org.br
Ficha Catalográfica
143p.: il.: 30 cm
ISSN: 1809-6867
Citação:
REVISTA DA ABORDAGEM GESTÁLTICA. Goiânia, v. 22, n. 1, 2016. 115p
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Volume XXII – N. 2 – Jul/Dez, 2016
Expediente
Editor
Adriano Furtado Holanda (Universidade Federal do Paraná)
Editores Associados
Celana Cardoso Andrade (Universidade Federal de Goiás)
Danilo Suassuna Martins Costa (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
Josemar de Campos Maciel (Universidade Católica Dom Bosco, MS)
Conselho Editorial
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Andrés Eduardo Aguirre Antúnez (Universidade de São Paulo)
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
André Barata (Universidade da Beira Interior, Portugal)
Cláudia Lins Cardoso (Universidade Federal de Minas Gerais)
Daniela Schneider (Universidade Federal de Santa Catarina)
Ileno Izidio da Costa (Universidade de Brasília)
Irene Pinto Pardelha (Universidade de Évora)
Lester Embree (Florida Atlantic University)
Lílian Meyer Frazão (Universidade de São Paulo)
María Lucrecia Rovaletti (Universidade de Buenos Aires)
Marcos Aurélio Fernandes (Universidade de Brasília)
Marisete Malaguth Mendonça (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
Marta Carmo (Universidade Federal de Goiás)
Mônica Botelho Alvim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Michael Barber (Saint Louis University)
Nilton Júlio de Faria (Pontifícia Universidade Católica de Campinas)
Patrícia Valle de Albuquerque Lima (Universidade Federal Fluminense)
Rosemary Rizo-Patrón de Lerner (Pontificia Universidad Católica del Perú)
Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlândia)
Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
William Barbosa Gomes (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Bibliotecário
Arnaldo Alves Ferreira Junior (CRB 01-2092)
Financiamento
Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia (ITGT-GO)
Apoio
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Encaminhamento de Manuscritos
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de seguimento que se fizer necessária, deve ser submetida eletronicamente
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Editor
Revista da Abordagem Gestáltica – Phenomenological Studies.
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A reprodução do conteúdo desta publicação poderá ocorrer desde que citada a fonte.
Sumário
Editorial................................................................................................................................................... vii
-- Por um Habitar Poético – o Encontro da Fotografia com a Poesia de Manoel de Barros.................... 134
Valeria Amorim do carmo (Universidade Federal de Minas Gerais)
-- Notas para Pensar o Sujeito: Geografia Humanista com Deleuze e Guattari...................................... 156
Ivo Venerotti Guimarães (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) &
Viviana Ribeiro (Universidade Federal Fluminense)
-- Arquitetura Vernacular e Paisagem Amazônica: um Caminho na Busca pelo Habitar Poético........ 171
Laelia Regina Batista Nogueira (Faculdade Martha Falção/DeVry Brasil)
TEXTOS CLÁSSICOS
RESENHA
NORMAS
Este número da Revista Phenomenological Studies – Será somente no final dos anos 2000, conforme nos
Revista da Abordagem Gestáltica – traz um dossiê iné- conta Marandola Jr (2008), que em uma reunião científica
dito sobre Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares acontecerá a formação de um grupo de pesquisa em torno
e paisagens. Diante disto, gostaríamos de descrever bre- da temática Fenomenologia e Geografia Humanista. A par-
vemente ao leitor um resumo histórico do encontro da tir desse momento foram se consolidando os estudos até
Geografia com a Fenomenologia. O início dessa história a fundação e organização do Grupo de Pesquisa Geografia
começou a partir da denominada “Geografia humanista Humanista Cultural (GHUM), em 2008, coordenado pelo
cultural”, ou seja, de um movimento no interior da geo- professor Werther Holzer e sediado na Escola de Arquite-
grafia que surgiu nos Estados Unidos e Canadá em tor- tura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. O
no dos anos de 1960 e 1970, como uma reação contra- grupo se relaciona hoje com outros grupos de pesquisas,
cultural e humanista à geografia científica, positivista. de outras universidades, que têm como objetivo pesqui-
Os geógrafos David Lowenthal e Yi-Fu Tuan, precurso- sar os aportes teórico-conceituais da geografia humanis-
res do movimento, defendiam a ideia que os estudos ge- ta cultural, com ênfase na Fenomenologia, destacando o
ográficos não deveriam considerar apenas a natureza e estudo do mundo vivido. Ainda, tal como está descrito
o ambiente físico real, mas fundamentalmente os seres pelo grupo, há uma dedicação aos “diferentes temas de
humanos, como se comportavam e alteravam a natureza. investigação, desde as relações com as artes, filosofia, ci-
A partir disso, podemos dizer que a Geografia passou a ências humanas e sociais, dimensões simbólicas e cul-
exigir diversas “aproximações humanísticas”, como co- turais da experiência cotidiana, até o sentido de lugares,
menta Holzer (2008). paisagens e territórios, tendo em vista a pesquisa, mas
Outra referência importante e que também influenciou também a ação nos campos do planejamento e políticas
o movimento humanista foi a obra “O homem e a terra: públicas, da academia e da educação”.
natureza da realidade geográfica”, do geógrafo francês O dossiê que aqui temos, traz várias contribuições de
Eric Dardel, publicada originalmente em francês no ano integrantes de diferentes universidades do país, que se
de 1952, contudo reconhecida tardiamente como a pri- reúnem hoje em diversos grupos de pesquisa em Fenome-
meira obra de uma geografia fenomenológica. Nos anos nologia e Geografia. Assim, além de apresentar contribui-
70, apareceu um artigo intitulado “An inquiry into the re- ções dessa relação, este número é também o resultado da
lations between phenomenology and geography”, publi- experiência concreta de autores que reconhecem o valor
cado por Edward Relph, que apontava de forma decisiva imbuído nos esforços da abordagem multi e interdiscipli-
as condições e as possibilidades da Fenomenologia ser o nar conseguindo, neste sentido, responder diretamente a
fundamento epistemológico-metodológico da então geo- muitas necessidades apontadas em diversos documentos e
grafia humanista cultural. Em um texto de 1976, “Place propostas político-pedagógicas brasileiras, na atualidade.
and Placelessness”, afirma que “os fundamentos do co-
nhecimento geográfico residem nas experiências diretas Referências
e da consciência que temos do mundo em que vivemos”
(Relph, 1976, p. 5). Esses são alguns marcos iniciais da Holzer, W. (1996). A Geografia Humanista: uma revisão. Revista
aproximação entre a Fenomenologia e a Geografia, apro- Espaço e Cultura (Rio de Janeiro), n. 3, p. 8-19.
ximações que geraram mais estudos e pesquisas durante Marandola Jr., E. (2013). Fenomenologia e pós-fenomenologia:
esses 30, 40 anos. alternâncias e projeções do fazer geográfico humanista na
No Brasil, conforme destaca Marandola Jr (2013), o geografia contemporânea. Geograficidade, 3(2), 33-48.
movimento humanista não começou tão bem organizado;
Relph, E. C. (1976). Place and placelessness. Londres: Pion.
apenas foram recebidas influências pontuais de temáticas
do movimento humanista nos anos 70, especialmente no
grupo da Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Rio Tommy Akira Goto
Claro (SP), liderado pelas professoras Lívia de Oliveira e - Editor convidado -
Lucy P. Marion Machado. Isso aconteceu devido às tradu-
ções dos textos e autores do movimento, tais como: Yi-Fu
Tuan, Edward Relph, Nicholas Entrikin, Jean Gallais, en- Número finalizado em 26.10.2016
tre outros. Embora tenha estimulado e gerado uma nova
Editorial
vii Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXI(2): vii-ix, jul-dez, 2016
Editorial
This Phenomenological Studies journal number brings on, studies were consolidated until the foundation and
an unpublished dossier about Phenomenology and Ge- organization of the Grupo de Pesquisa Geografia Human-
ography: spaces, places and landscapes. Therefore, we ista Cultural (GHUM) in 2008, coordinated by Professor
would like to briefly describe to the reader a historical Werther Holzer and based at the School of Architecture
summary of the encounter of Geography and Phenomenol- and Urbanism at Universidade Federal Fluminense. Today
ogy. The outset of this history began with the “Humanist the group is related to other research groups from other
Cultural Geography”, in other words, from a movement universities, which aim to research the theoretical and
within Geography that emerged in United States and Can- conceptual contributions of cultural humanistic Geogra-
ada around the decades of 1960 and 1970, as a counter- phy, with emphasis on Phenomenology, highlighting the
cultural and humanist reaction to the scientific Geogra- study of the life-world. Also, as described by the group,
phy. The geographers David Lowenthal and Yi-Fu Tuan, there is a dedication to “different research topics, from
precursors of the movement, defended the idea that the the relationship with the Arts, Philosophy, Humanities
geographical studies shouldn’t consider only nature and and Social Sciences, symbolic and cultural dimensions
real physical environment, but fundamentally the human of everyday experience, to the sense of places, landscapes
being, how they behaved and changed nature. Thus, we and territories, in view of the research, but also the ac-
can say that Geography has required several “humanistic tion in the public policy and planning fields, academia
approaches”, as Holzer (2008) comments. and education”.
Another important reference that influenced the hu- The dossier we have here, brings several contributions
manist movement as well was the work “L’Homme et la from members of different universities in the country, who
Terre: nature de la réalité géographique”, from French ge- gather today in various Phenomenology and Geography
ographer Eric Dardel, originally published in French in research groups. Thus, in addition to presenting contri-
1952, however belatedly recognized as the first work of butions of this relationship, this number is also the result
a Phenomenological Geography. In the 70’s, it appeared of the concrete experience of authors who recognize the
an article entitled “An inquiry into the relations between value imbued with the efforts of the multi and interdisci-
phenomenology and geography”, published by Edward plinary approach to achieving to respond directly to many
Relph, that pointed out decisively the conditions and needs identified in various political-educational Brazilian
possibilities of the Phenomenology as the epistemologi- documents and proposals, nowadays.
cal-methodological foundation of the cultural humanis-
tic Geography at the time. A 1976 text, “Place and Place- Tommy Akira Goto
lessness”, affirms that “the foundations of geographical - Guest editor -
knowledge reside in the direct experiences and conscious-
ness we have of the world we live in” (Relph, 1976, p. 5).
These are some initial marks of the Phenomenology and Número finalizado em 26.10.2016
Geography approach, approaches that created more stud-
ies and researches during these 30, 40 years.
In Brazil, as Marandola Jr (2013) highlights, the hu-
manist movement didn’t start as well organized; specific
influences of thematic humanist movement were only
received in the 70’s, especially in the Universidade Es-
tadual Paulista group (UNESP) of Rio Claro (SP), led by
teachers Livia de Oliveira and Lucy Marion P. Machado.
This happened due to translations of the movement’s
texts and authors, such as: Yi-Fu Tuan, Edward Relph,
Nicholas Entrikin, Jean Gallais, among others. Although
it has estimulated and generated a new generation of ge-
ographers in Brazil, Phenomenology and its importance
in the field of Geography were not yet clear.
It was only in 2000, as according to Marandola Jr
Editorial
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXI(2): vii-ix, jul-dez, 2016 viii
Editorial
Esta edición del periodico Phenomenological Studies Es sólo a finales de los años 2000, como narra Maran-
– Revista da Abordagem Gestáltica – trae un expediente dola Jr (2008), que en una reunión científica se llevará a
sin precedentes sobre Fenomenología y Geografía: espa- cabo la formación de un grupo de investigación en torno
cios, lugares y paisajes. Por lo tanto, nos gustaría describir al tema de la Fenomenología y Geografía Humanista. Des-
brevemente al lector un resumen histórico del encuentro de aquel momento se fue desarrollando muchos estudios,
de la geografía con la fenomenología. hasta la fundación y organización del Grupo de Investi-
El principio de esta historia comenzó a partir de la gación Geografia Humanista Cultural (GHUM) en 2008,
denominada “geografía humanista cultural”, es decir, un coordinado por el profesor Werther Holzer y con sede en
movimiento dentro de la geografía que surgió en los Esta- la Facultad de Arquitectura y Urbanismo de la Universi-
dos Unidos y Canadá alrededor de 1960 y 1970 como una dad Federal Fluminense.
reacción contracultural y humanista a la geografía cientí- Hoy el grupo está relacionado con otros grupos de in-
fica positivista. Geógrafos como David Lowenthal y Yi-Fu vestigación de otras universidades, que tienen como ob-
Tuan, precursores del movimiento, defendieron la idea de jetivo investigar los aportes teóricos y conceptuales de la
que los estudios geográficos no sólo deberían considerar geografía humanista cultural, con énfasis en la fenomeno-
la naturaleza y el medio ambiente físico real, pero, funda- logía, destacando el estudio del mundo vivido. Además,
mentalmente, cómo los seres humanos se comportaban y tal como se describe por el grupo, hay una dedicación a
cambiaban la naturaleza. A partir de esto, podemos decir “diferentes temas de investigación, a partir de la relación
que la geografía ha requerido varios “enfoques humanis- con las artes, la filosofía, las humanidades y las ciencias
tas”, como nos dice Holzer (2008). sociales, las dimensiones simbólicas y culturales de la ex-
Otra referencia importante y que también influyó en periencia cotidiana, hasta los sentidos de lugares, paisajes
el movimiento humanista fue la obra del geógrafo fran- y territorios en vista de la investigación, sino también la
cés, Eric Dardel, “El Hombre y la Tierra: Naturaleza rea- acción en los ámbitos públicos de la planificación y de
lidad geográfica”, publicado originalmente en 1952, pe- la política, de la academia y la educación”.
ro reconocido más tarde como el primer trabajo de una En esta Sección, tenemos varias contribuciones de los
geografía fenomenológica. En los años 70, apareció un miembros de las diferentes universidades del país, que se
artículo publicado por Edward Relph, “Una investigación reúnen hoy en varios grupos de investigación de Fenome-
sobre las relaciones entre la fenomenología y la geogra- nología y Geografía. Por lo tanto, además de presentar las
fía”, señalando de manera decisiva las condiciones y po- contribuciones de esta relación, este número es también
sibilidades de la fenomenología como fundamentación el resultado de la experiencia concreta de los autores que
epistemológica y metodológica de la geografía humanista reconocen el valor imbuido de los esfuerzos del enfoque
cultural. En otro artículo, “Lugar y carencia de lugar”, de multi e interdisciplinario y, en este sentido, responde di-
1976, Relph dice que “los fundamentos del conocimien- rectamente a muchas de las necesidades identificadas en
to geográfico residen en las experiencias directas y de diversos documentos y propuestas político-pedagógicas
la conciencia que tenemos del mundo en que vivimos” brasileñas actuales.
(p. 5). Estos son algunos de los momentos iniciales del
acercamiento entre la fenomenología y la geografía, mo- Referências
mentos que han generado más estudios e investigaciones
durante eses 30, 40 años. Holzer, W. (1996). A Geografia Humanista: uma revisão. Revista
En Brasil, como destacó Marandola Jr (2013), el movi- Espaço e Cultura (Rio de Janeiro), n. 3, p. 8-19.
miento humanista no empezó tan bien organizado; sola- Marandola Jr., E. (2013). Fenomenologia e pós-fenomenologia:
mente se recibieron influencias específicas del movimien- alternâncias e projeções do fazer geográfico humanista na
to humanista en los años 70, especialmente en interior geografia contemporânea. Geograficidade, 3(2), 33-48.
del grupo de la Universidad Estadual Paulista (UNESP) de
Relph, E. C. (1976). Place and placelessness. Londres: Pion.
Rio Claro (SP), liderado por los docentes Livia de Olivei-
ra y Lucy Marion P. Machado. Esto sucedió debido a las
traducciones de los textos y los autores del movimiento, Tommy Akira Goto
tales como Yi-Fu Tuan, Edward Relph, Nicholas Entrikin, - Editor invitado -
Jean Gallais, y otros. Aunque estimulado y ha generado
Editorial
Resumo: O trabalho tem como proposta fazer um aprofundamento fenomenológico sobre o conceito husserliano do “mundo-da-
vida” (Lebenswelt) na ciência geográfica. Deseja-se, com isso, apresentar considerações pertinentes que nos forneça elementos
positivos para produzir um debate em torno desse tema ainda pouco discutido nos seus pressupostos teóricos nesta disciplina na
atualidade. Com efeito, o texto irá expor três movimentos de reflexão: a) apresentar em linhas gerais o tratamento husserliano do
conceito de mundo-da-vida e o debate que lhe circunda; b) compreender na tradição da geografia humanista e fenomenológica, a
partir de alguns autores, o modo como foi interpretado e requerido. Por último, c) visamos ampliar e (re) afirmar o mundo-da-vida
como um horizonte e solo fundamental no estudo da ciência geográfica.
Palavras-chave: Fenomenologia; Conhecimento; Geografia fenomenológica.
Abstract: The paper aims to make a phenomenological deepening of the Husserl’s concept of the “life-world” (Lebenswelt) in
geographical science. To want it, make relevant considerations to provide us with positive elements to produce a debate on
this subject still little discussed in the assumptions in this discipline today. Indeed, the text will present three reflection of
movements: a) to outline the Husserl’s treatment of the concept of life-world and the debate that surrounds him; b) understand
the tradition of humanistic and phenomenological geography, from some authors, the way it was interpreted and applied. Finally,
we aim to expand and (re) affirm the life-world as a fundamental horizon and soil in the geographical science study nowadays.
Keywords: Phenomenology; knowledge; Phenomenological geography.
Resumen: El documento tiene como objetivo hacer una profundización del concepto fenomenológico de Husserl del “mundo de la
vida” (Lebenswelt) en la ciencia geográfica. Que desearlo, hacer las consideraciones pertinentes para proporcionarnos elementos
positivos para producir un debate sobre este tema aún poco discutidos en los supuestos en esta disciplina en la actualidad. De
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Rafael B. Ferreira
manista (entre os anos de 1960 e 1980), no entanto, cabe -estar-no-mundo. Sanguin (1981) lembra que o espaço vi-
ressaltar, “[...] que nem toda geografia humanista é feno- vido se tornou o mundo da experiência imediata anterior
menológica” (Marandola Jr., 2013, p. 50). De antemão, às ideias científicas. Decerto, este entendimento ganhou
ponderamos que este texto não visa relembrar esta tradi- compreensões semelhantes ao conceito do mundo-da-vi-
ção, mas sim, alguns autores que contribuíram para o te- da (pré-teórico), no entanto, pensamos: se o espaço vivi-
ma que aqui pretendemos desenvolver: a importância do do for compreendido como uma dimensão da vida coti-
conceito mundo-da-vida (Lebenswelt) para o pensamento diana este debate merece maiores explicações, uma vez,
geográfico. Tratamos, portanto, de esboçar uma geogra- entendermos que mundo-da-vida e cotidiano expressam
fia fenomenológica do mundo-da-vida, entendendo es- entendimentos particulares (Ferreira, 2015).
te pressuposto como um campo de investigação voltada Portanto, geógrafos de base fenomenológica ergueram
para os problemas e dificuldades do conhecimento; logo, um regresso à experiência em busca de um retorno ao co-
ressaltamos que este conceito não ganhará aqui qualquer nhecimento originário, da qual, emanaria a própria es-
conotação de uma outra categoria de análise geográfica, sência da geografia, isto é, o reencontro de uma geografia
tal como, espaço, território, paisagem ou região. Feitas que precede a sua própria cientificidade: uma geografia
estas ressalvas, vejamos na próxima seção os principais existencial que põe o homem lançado no mundo e, por
elementos da crítica fenomenológica levantada pelos ge- outro lado, onde o mundo se expõe como horizonte de
ógrafos humanistas, ou melhor, no seu fundamento, em ação, destino e finalidade.
que sentido a fenomenologia aparece para um pensamen- No entanto, o que significaria este retorno em seu
to de renovação e alternativo. sentido geral? Husserl (1900-1901/2001) em Investiga-
ções Lógicas (Logische Untersuchungen) no conjunto de
sua crítica ao psicologismo experimental (naturalismo) e
1. A fenomenologia como um horizonte crítico e à teoria do conhecimento (no plano da lógica) ergueu o
alternativo no pensamento geográfico humanista seguinte princípio como necessidade fundamental para
uma nova tarefa da filosofia e do conhecimento: “deve-
Com argumentos e temas filosóficos que cunhavam mos voltar às coisas mesmas” (Wir wollen auf die “Sachen
os grandes fenomenólogos do século XX como Husserl selbst” Zurückgehen). Iniciou-se então uma radicalização
(mundo-da-vida), Heidegger (ser-no-mundo e habitar), que buscava inquirir o sentido primeiro da fundação do
Merleau-Ponty (corpo-sujeito) e Sartre (liberdade huma- conhecimento: foi na obra “Ideen I” de 1913 que se apre-
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
na e existencialismo), geógrafos humanistas buscaram sentou a redução fenomenológica como método de inves-
formas alternativas e de renovação em meados dos anos tigação do eidos. Em geral, Husserl pretendia a supera-
1970. Para Sanguin (1981) trata-se de uma reação contra ção da metafísica tradicional e do racionalismo científico
a ciência neo-positivista e em grande parte, às bases da (positivista), desse modo, partiu da tese, “voltar às coisas
tradição da fenomenologia, estabelecendo na experiên- mesmas”, em busca de uma intuição originária (intuição
cia o horizonte do conhecimento (Entrikin, 1976). Desse das essências) do conhecimento e a chamou como o prin-
modo, o homem passou a ser considerado nos seus diver- cípio dos princípios (Dartigues, 1972/1992).
sos atributos mundanos: suas emoções, percepções, valo-
res, etc. Assim, foram levados em conta não somente as Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo
qualidades materiais da vida cotidiana, mas sobretudo, anterior ao conhecimento do qual o conhecimento
a própria subjetividade humana como uma constituição sempre fala, e em relação ao qual toda determinação
fundamental. Entendemos desse modo, então que “[...] científica é abstrata, significativa e dependente, como
qualquer pessoa que inspecione o mundo à sua volta é, em a geografia em relação à paisagem – primeiramente nós
alguma medida, um geógrafo” (Lowenthal, 1961, p. 242, aprendemos o que é uma floresta, um prado ou um
tradução nossa).1 Desse modo, compreender a geografia riacho. (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 4)
significou, necessariamente, compreender o próprio ho-
mem enquanto ser geográfico e sujeito do conhecimento. Em seu rigor, da qual a ciência conduziu timidamente,
Categorias como “Lugar”, “Paisagem” e “Espaço” pas- Husserl buscou neste princípio alcançar a intuição pura
saram a ser reinterpretados e ressignificados a partir do (Moran, 2002). O que se pretendia era refundar as bases
horizonte de uma geografia sob as bases da fenomenolo- do conhecimento (evidente e apodítico – indubitável) fa-
gia. Sem desconsiderar o conceito de espaço geográfico zendo da epoché seu método exigente. Portanto, “voltar”
(normalmente pautado sob o arcabouço do materialismo representa a tarefa radical da fenomenologia de renovação
histórico), geógrafos humanistas se dedicaram ao que sobre os imperativos exacerbados da racionalidade cientí-
se chamou de espaço vivido enquanto um conceito que fica que se constituíram no final do século XIX. Retornar
priorizasse o estudo da experiência geográfica do ser-e- ao mundo que precede o conhecimento, conforme apon-
tou Merleau-Ponty, não trata tão-somente de uma crítica
epistemológica e do conhecimento, mais do que isso, é
“[...] anyone who inspects the world around him is in some measure
1
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 119-126, jul-dez, 2016 120
Husserl, Mundo-da-vida e Geografia
de um sujeito situado e relacionado com as coisas que os Sem promover possibilidades melhores para a humani-
cercam e que lhes atribui sentido de mundo: em última dade e sua condução, diz: “Na urgência de nossa vida –
análise, é um retorno ao mundo-da-vida esquecido e ne- ouvimos – esta ciência nada tem a nos dizer. [...] Meras
gligenciado pelo objetivismo científico. ciências de fatos fazem meros homens de fatos” (Husserl,
Husserl (1936/2012) em “Crise” (Die Krisis der Euro- 1936/2012, p. 3). Confiantes com seus pressupostos meta-
päischen Wissenschaften und die transzendentale Phäno- físicos, a ciência moderna enquanto sentido de prosperity,
menologia, 1936) tratou desse tema com atenção. Nesta o ser humano passou, por um lado, “[...] senão um mero
obra o autor acentua uma crítica radical à filosofia e, so- espectador da ordem mecânica de um mundo indiferente,
bretudo, à ciência, erguendo a necessidade de um retor- e, por outro, reprodutor eficaz de resultados fenomênicos”
no ao mundo-da-vida em detrimento de uma decadência (Ferraz, 2004, p. 355). Ainda hoje temos fortes evidências
ética e moral do seu tempo – a perda de sentido da ci- desse desarraigamento da ciência e, sobretudo, das insti-
ência para a existência humana e, portanto, revelando a tuições sobre o mundo-da-vida.
crise do próprio homem. Esta necessidade de renovação 2) A crítica epistemológica reside no próprio adven-
repercutiu de forma positiva; algumas ciências de abor- to das ciências modernas no final do século XIX na sua
dagens fenomenológicas tomaram como base o estudo conduta metódica, isto é, às bases de um pensamento na-
do mundo-da-vida vislumbrando novas reorientações. tural e da matemática. Em “A filosofia como ciência de ri-
Do mesmo modo, se conduziu no pensamento de alguns gor”, Husserl (1911/1965) argumenta o naturalismo como
geógrafos humanistas (Buttimer, 1976, Relph, 1976/1979) consequência do descobrimento da natureza considerada
e, portanto, tornando-o como base fundamental para o como unidade do ser espaço-temporal conforme as leis
estudo da experiência (geográfica). Não obstante ao que naturais exatas. Para Dilthey (1910/2010, p. 33) “A cons-
apontou Merleau-Ponty, se buscou, metodologicamente, trução das ciências naturais é determinada pelo modo co-
abster provisoriamente do conhecimento já tematizado pe- mo seu objeto, a natureza, é dado”. Husserl (1936/2012)
la ciência e caminhar para o reencontro de uma geografia considera a fonte originária desses princípios na matemá-
pré-científica, não sistemática. Em resumo, de acordo com tica de Galileu, chegando até sua afirmação com os pres-
Entrikin (1976) e Pickles (1985), o conceito fenomenoló- supostos da geometria analítica e a ideia da natureza de
gico mais utilizado na relação entre as ciências sociais e René Descartes (res extensa [“coisa extensa”]). Foucault
a fenomenologia foi o de mundo-da-vida. (1966/2000, p. 181) lembra que este momento forjou a
Algumas críticas conduziam os textos de fenomenó- construção de uma história natural, isto é, sendo esta “na-
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Rafael B. Ferreira
necessário por “entre parêntese” do mundo tal como se do conhecimento. Nesse sentido, o tema mundo-da-vida
apresenta a nós e à ciência de fatos em sua objetividade? passou a ser o “solo” significativo da experiência huma-
na. Vejamos esta relação fundamental.
O contraste entre subjetivo do mundo da vida e o “ob- Na crítica fenomenológica do conhecimento, o mundo
jetivo” do mundo “verdadeiro” reside, então, no fato não é “visto” como uma coisa apartada da vida intuitiva
de que este é uma substrução lógico-teórica, a subs- e objetiva. Ele se constitui, obrigatoriamente, como hori-
trução de algo principalmente não perceptível, prin- zonte intencional da qual a nossa vida é dirigida. Desse
cipalmente não experienciável no seu ser-si-mesmo modo, não haveria princípios reducionistas de sua ocor-
próprio, ao passo que o subjetivo do mundo da vida rência, quiçá dicotomias que apontasse para uma escolha
se destaca, em tudo e em qualquer coisa, precisamen- idealista ou realista; trata-se de compreender, portanto,
te pela sua efetividade. (Husserl, 1936/2012, p. 104) consciência-mundo e corpo-mundo: o mundo só é pa-
ra consciência como a consciência só é para o mundo.
Investigar o conhecimento que precede à cientificida- Dentro deste conhecimento mexeu-se no estilo de en-
de toma como condição esta suspensão de juízo que jaz tendimento entre sujeito e objeto. Merleau-Ponty retrata
na atitude natural (crenças, valores, etc.). O retorno ao bem esta compreensão sobre o horizonte do mundo da
mundo-da-vida implica não somente por entre parêntese qual o próprio homem é constituido: “Tudo aquilo que
a tese do mundo, mas sobretudo, a tarefa de realização de sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de
uma subjetividade transcendental. Esta é uma condição uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem
necessária e ao desconsiderá-la conduz a prática científica a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada”
a uma negligencia do mundo-da-vida. Portanto, não basta (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 3). Portanto, avesso à des-
apenas suspender as predicações existentes no mundo, crição objetiva pelas ciências exatas e naturais (mecâni-
mas sobretudo, a próprio consciência. ca), o mundo no pensamento fenomenológico e, sobretu-
O conjunto das três críticas apontadas certamente do, husserliano se apresenta de tal forma, como algo que
devem ser melhor elucidadas, mas até aqui, nos inte- nos direciona enquanto existente.
ressou como elementos de problematização preliminar.
Na próxima seção, iremos apresentar as contribuições e O mundo pré-dado é o horizonte que abrange, em flu-
implicações do conceito mundo-da-vida na tradição da xo constante, todas as nossas metas, todos os nossos
geografia humanista. Devemos considerar que o pensa- fins, passageiros e duradouros, precisamente tal como
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
mento de Husserl pouco teve repercussões no pensamen- de antemão os abarca implicitamente uma consciência
to geográfico de forma direta. Embora as abordagens fe- intencional de horizonte. [...] Mundo é o campo uni-
nomenológicas (husserlianas) na tradição da geografia versal para onde estão dirigidos todos os nossos atos
humanista em meados dos anos de 1970 tenham trazido de experiência, de conhecimento ou de ação. (Husserl,
importantes contribuições, ainda carecemos de uma com- 1936/2012, p. 117)
preensão mais aprofundada de seu pensamento. Ainda
que a presença deste filósofo tenha sido fraca, concor- Geógrafos de base fenomenológica buscaram manter
damos com Johnson (1983) que ao contrapor à domi- esta posição. Relph (1970, 1976/1979), em seus textos
nância da ciência, Husserl apresentou a fenomenologia procurou estabelecer uma relação consistente entre feno-
como uma alternativa e base para o conhecimento e, em menologia e ciência geográfica. Para Marandola (2013),
certa medida, esta chamada ecoou em alguns geógrafos foi quem mais se dedicou às bases da fenomenologia na
na década de 1970. geografia. Antes de aprofundar nesta relação, Relph apre-
senta no texto alguns apontamentos já aqui assinalados:
para o autor, embora haja desacordos dentro da filosofia
2. Mundo-da-vida e experiência geográfica na tradi- fenomenológica, ao menos, em três aspectos há concor-
ção da geografia humanista dâncias: 1) a importância da experiência dos homens no
mundo-da-vida. 2) uma oposição à ditadura e absolutismo
Geógrafos humanistas trouxeram temas próprios quan- da ciência sobre outras formas de pensamento; 3) tentati-
do assumiu a fenomenologia como base teórico-conceitu- vas de formular alternativas metodológicas.
al: especialmente, espaço vivido, vida cotidiana e lugar. Tomando como válido o pensamento fenomenológi-
Em boa parte da tradição humanista foi esta a linguagem co do mundo, Relph traz o valor da intencionalidade na
no final da década de 1970, especialmente, com Yi-Fu geografia como uma importância para elevar às atitudes
Tuan, Anne Buttimer, Edward Relph, entre outros. De humanas e suas ações, reintegrando a relação do homem
um pensamento contrário da grande narrativa histórica com o mundo na ciência geográfica, isto é, enquanto ho-
da qual as ciências do espírito forjaram para si sua base rizonte da efetividade da vida humana. Portanto, o autor
de investigação, considerando Husserl (1936/2012) como ergue que cada indivíduo tem atitudes e ações diferen-
um encadeamento interminável, geógrafos humanistas ciadas, ou melhor, diferentes experiências (Relph, 1970).
trouxeram a experiência (geográfica) como uma dimensão Desse modo, os geógrafos profissionais não seriam mais
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 119-126, jul-dez, 2016 122
Husserl, Mundo-da-vida e Geografia
importantes do que as experiências individuais (as “ge- mundo” que trata Husserl: por entre parêntese as predica-
ografias pessoais”). Assim, para o autor, a relação do ho- ções mundanas, assim como, fazer a suspensão de juízos.
mem com o mundo passa a ser vista não como uma mera Em busca de clarificar e ampliar a interpretação do
relação cognitiva, mas como algo que permeia todo o ser mundo-da-vida para a ciência geográfica, Relph apresen-
do homem. Em ultima instância, para a geografia huma- ta suas variações essências, pouco elucidado na ciência.
nista-fenomenológica trata-se de ressignificar a visão e Para o autor há dois (eles se relacionam): 1) mundo pré-
relação do homem com a natureza (Terra): dada mecâni- determinado ou natural. “Este mundo é o que vemos e
ca, agora então, unificada. sentimos”, isto é, estamos nele implicados, diante de situ-
Noutro artigo posterior, “As bases fenomenológicas da ações que nos é dada. 2) O mundo social ou cultural, ou
Geografia”, Relph (1976/1979, p. 2) busca pensar “ideias seja, o “mundo-vivido da intersubjetividade, linguagem
fenomenológicas do mundo-vivido”. Ressaltamos breve- comum, contato com outras pessoas, instrumentos, edi-
mente, que os tradutores da geografia humanista anglo- fícios e obras de arte” (Relph, 1976/1979, p. 5-6). Diante
-saxônica, normalmente, traduzem Lebenswelt como es- dessas condições, o autor considera que há estruturas e
paço-vivido. Tem se visto, portanto, uma grande varie- experiências, portanto, há um mundo-da-vida geográfico.
dade nas traduções: lifeworld, life-world, mundo vivido, Amatuzzi, (2009, p. 94) considera que “[...] se o homem
mundo-vivido, mundo da vida. Aqui fazemos uso como pudesse considerar sua experiência, com tudo que nela
mundo-da-vida (com hífen). No primeiro texto referen- está implicado, abstendo-se do julgamento espontâneo
ciado o autor apresenta um conceito da qual deu grande da realidade que ela encerra, ele poderia chegar a con-
mérito ao trabalho de Husserl: a intencionalidade (Bernet, clusões seguras acerca do conhecimento e seu alcance”.
Kern e Marbach, 1999). O principal lema que fundamen- De fato, o mundo-da-vida torna-se o palco da própria
tou esta concepção é bem conhecido: “toda consciência condição da experiência do qual as ciências modernas
é consciência de alguma coisa”. Sem trocadilhos Relph negligenciaram, isto é, a recusa de um implica, necessa-
remete a consciência (tema caro para o pensamento hus- riamente, a exclusão do outro. Portanto, o potencial da
serliano) e faz novamente ponderações: experiência geográfica ancorada nas investigações feno-
menológicas não se sustenta se a colocarmos meramente
Mas, consciência e experiência (os dois termos são na vivência objetiva do mundo, mas sim, se a encontrar-
virtualmente intercambiáveis em muitos escritos fe- mos nas estruturas do mundo-da-vida. Nesse sentido, o
nomenológicos e incluem encontros, envolvimentos conhecimento não viria antes da experiência e nem de-
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Rafael B. Ferreira
cultura, etc.). Diante do apresentado, algumas interroga- paço construído historicamente pelas sociedades). Ainda
ções emergem e que ficam para pensamentos futuros: Se- que muitos geógrafos humanistas tenham abandonado a
ria este, ainda hoje, o caminho ideal de fundamentação abordagem fenomenológica, Marandola Jr. (2013) lembra,
do mundo-da-vida para uma “geografia fenomenológica”? que a busca pela renovação cumpriu seu papel.
Quais as implicações de compreender o mundo-da-vi-
da como fenômeno ou normativo na ciência geográfica?
Quais os limites ou os marcos conceituais entre mundo- Considerações para uma geografia fenomenológica
da-vida e espaço-vivido? Husserl traz ponderações das
quais nos servem como alerta. Marandola Jr. (2013) em discussão das transforma-
ções recentes da abordagem fenomenológica na geografia
As ciências estão construídas sobre a obviedade do humanista, sinaliza que a constituição de uma geografia
mundo da vida, porquanto a partir dela fazem uso da- fenomenológica não chegou ser claramente esboçada na
quilo que, em cada caso, é necessário para os seus fins. tradição. Isso não quer dizer que houve falhas ou erros,
Contudo, utilizar o mundo da vida desta maneira não certamente, talvez este não teria sido o objetivo essencial
quer dizer conhecê-la cientificamente a ele mesmo no daqueles geógrafos humanistas do século passado. Cabe
seu modo de ser próprio. (Husserl, 1936/2012, p. 102) ponderar, que o acesso às obras de Husserl contribui de
forma decisiva; além de serem filosóficas e densas, seus
Pickles (1985) relata que o mundo-da-vida ganhou manuscritos vão para interpretes ou ficam em obras mais
um sentido muito próprio na geografia a partir da condi- conhecidas.
ção da experiência, isto é, houve particularidades por al- De todo modo, parece válido quando Entrikin (1976)
guns geógrafos humanistas ao trazerem este tema: mundo alerta que a tradição fenomenológica na geografia não pre-
cotidiano da experiência imediata, modos culturalmen- tendeu alguma alternativa, pois se preocupou mais no seu
te variáveis de existência. Um ponto comum, que tanto horizonte crítico. Certamente, isso teve consequências: 1)
Buttimer e Relph trás nas suas abordagens em relação ao o pensamento crítico de uma escola, de um filósofo, de
tema mundo-da-vida é a experiência humana no espaço, um certo grupo é sempre vivente de seu tempo, de sua
avesso ao espaço matematizado e geométrico. Conforme condição política, social, etc. Desse modo, fica perten-
Relph (1976/1979), do ponto de vista fenomenológico, os cente a uma tradição que pode ser renovado ou não. 2)
espaços não são vazios, assim, haveria uma consciência No entanto, quando o pensamento crítico tem pretensões
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Husserl, Mundo-da-vida e Geografia
de fundamentar alternativas teóricas e metodológicas (te- tes e elucidativos para uma incursão do tema mundo-da-
leológicas) sua finalidade torna-se tematizada. Portanto, vida como ferramenta que descortine uma compreensão
a tradição da “geografia fenomenológica” perdeu forma originária entre o homem, mundo e a Terra. Se a relação
antes mesmo dos anos de 1990 e hoje é praticamente au- do homem com a Terra é um acontecimento imediato,
sente nos países que iniciaram o pensamento. No entanto, o mundo-da-vida enquanto possibilidade de ver no seu
deixou valiosas contribuições que hoje se segue. modo de ser próprio, seu estudo torna-se horizonte te-
Para Marandola Jr. (2013) no Brasil o projeto fenome- mático, agora então, para a geografia fenomenológica.
nológico se inicia nos anos de 1990 e, no cenário atual, Além do mais, enquanto domínio das evidencias ori-
vislumbramos trabalhos que apontam para a constitui- ginárias requer uma geografia eidética que investigue
ção de uma geografia fenomenológica, especialmente, a o campo das intuições e das essências – para usar um
partir das obras de Heidegger no que tange a compreen- termo de Dardel cunhado termo de Relph: investigar a
são do ser-no-mundo (Holzer, 2010a, Marandola, 2012). “consciência geográfica”. Com efeito, o espaço (geográ-
O caminho que aqui se pretende, busca uma via direta fico ou vivido) tornou-se em nosso entender abstração,
pelas ideias de Edmund Husserl, como igualmente, pre- ainda que reconhecemos os esforços de compreendê-lo
tendeu Goto (2013) em seu recente artigo: “Fenomenolo- histórico-social. Nesse sentido, que o conceito do mun-
gia, mundo-da-vida e crise das ciências: a necessidade de do-da-vida passar ser tematizado na ciência geográfica,
uma geografia fenomenológica”. não como um tema que deriva para o estudo do lugar ou
Em nosso objetivo, acreditamos que o caminho fiel do espaço vivido, mas sim, a própria tarefa de uma geo-
para tal pretensão se dará pela elucidação de uma “geo- grafia fenomenológica.
grafia fenomenológica do mundo-da-vida”. Não há dúvi-
da que a geografia no decorrer de sua institucionalização
foi se afastando das suas bases originárias – o olhar para Referências
o mundo e para Terra. Como aponta Goto (2013, p. 43)
a cientificidade da geografia “[...] ignora a vivência do Amatuzzi, M. M. (2009). Psicologia fenomenológica: uma apro-
saber imediato que o humano tem com a Terra (nature- ximação teórica humanista. Estudos de Psicologia, 26(1),
za), com suas configurações”. Com isso, torna exigente 93-100.
uma geografia eidética que resgate o sentido primeiro Assai, J. H. S. (2014). A ontologia social “fraca” em Habermas:
de seu fundamento, isto é, seu campo de fundamenta- o déficit normativo do mundo da vida (Lebenswelt). Intui-
125 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 119-126, jul-dez, 2016
Rafael B. Ferreira
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Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
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ria, 1300. Caixa Postal 1068, CEP: 13484-350 - Limeira - São Paulo.
nalmente publicado em 1900-1901)
E-mail: rafael.ferreira@ fca.unicamp.br
Husserl. E. (2012). A crise das ciências europeias e a fenome-
nologia transcendental: uma introdução à filosofia fenome-
Recebido em 26.04.2016
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Primeira Decisão Editorial em 04.08.2016
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Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 119-126, jul-dez, 2016 126
O Simbólico em Edith Stein: uma Aproximação com a Geograficidade
Resumo: O pensamento antropológico de Edith Stein está ancorado na fenomenologia de Husserl. Ele está voltado basicamente para
conhecer e explicar a pessoa humana em profundidade. A filósofa aborda os conceitos de comunidade e empatia para compreender
o ser pessoa. Em sua fase religiosa, Stein se inspira em Teresa D’Ávila e São João Batista da Cruz para clarificar a experiência
mística e seus símbolos. Pretende-se, neste texto, compreender como Edith Stein explora o simbólico e o mítico em seus escritos
espirituais. Serão investigados, ainda, os símbolos apresentados por Edith Stein que podem se relacionar com a geograficidade,
termo criado por Eric Dardel, para explicar a profunda relação existente entre o homem e a Terra. Torna-se um desafio aproximar
as ideias de Edith Stein durante sua fase religiosa ao pensamento de Eric Dardel sobre a própria possibilidade de ser no mundo
através das profundas vinculações existenciais entre o homem e a Terra.
Palavras-chave: Geograficidade; Simbólico; Experiência; Místico.
Resumen: El pensamiento antropológico de Edith Stein tiene base en la fenomenología de Husserl. Él se dedica básicamente a
conocer en profundidad e explicar la persona humana. Según la filósofa, la persona humana se explica por su interioridad y su
espiritualidad. Los conceptos de comunidad e empatía serán abordados para comprender el ser persona. En su período religioso,
Stein se inspira en Teresa de Ávila y San Juan Bautista de la Cruz para tornar clara su experiencia mística y sus símbolos. En este
texto se pretende comprender como Edith Stein ve la persona humana y como discute los símbolos en sus escritos espirituales.
Así pues, se pretende mostrar aspectos simbólicos discutidos por Edith Stein que pueden relacionarse con la geograficidad,
término creado por Eric Dardel para explicar la profunda relación existente entre el hombre y la Tierra.
Palabras-clave: Geograficidad; Simbólico; Experiencia; Místico.
127 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 127-133, jul-dez, 2016
Virginia de L. Palhares
diferenças. Até mesmo durante a experiência mística, a A realidade geográfica requer um envolvimento da
presença de Deus é vista como vivência e não como uma pessoa com suas emoções, seu corpo, seus hábitos, seu
abstração. Em sua fase religiosa, Stein se inspirou em Te- chão. Onde está a cotidianidade, o homem sente cheiros
resa D’Ávila e São João Batista da Cruz para clarificar a e cores deste chão carregado de significados e valores im-
experiência mística e seus símbolos. primidos por nossa íntima relação com ele. Vejo a Terra de
Ao fim, pretende-se mostrar aspectos simbólicos dis- Dardel muito além do solo que nos sustenta. Vejo a Terra
cutidos por Edith Stein que podem se relacionar com a com o sentido de chão sobre o qual são criadas raízes ao
geograficidade para explicar a profunda relação existen- longo do tempo, testemunhos de nossa história; ali estão
te entre o homem e a Terra. O trabalho se inicia mencio- nossas origens, nossa história. Vejo a Terra como mater, o
nando o método fenomenológico presente, especialmen- despertar para a vida, que protege, abriga, afaga, resgata a
te, durante a etapa fenomenológica de Stein para, em nossa essência, a nossa origem. É, assim, “...aquilo sobre
seguida, comentar sobre a realidade relacional sempre o que e em que o homem funda seu morar” (Heidegger,
presente em seu pensamento e, por fim, buscar a relação 2010, p. 105), onde a Terra conserva o mundo em si mes-
entre geograficidade e o simbólico em sua fase espiritu- ma (Heidegger, 2010). Habitamos a Terra. Mundo e Terra
al. A investigação concentrou-se nas “Obras Completas são distintos, embora estejam entrelaçados. O mundo bus-
(Tomo V - Escritos espirituales: en el Carmelo teresiano ca se apoiar na Terra e esta, por sua vez, brota enquanto
1933-1942) de Edith Stein, mais precisamente sobre o mundo. Heidegger (2010) acrescenta que “o mundo as-
“Castelo Interior”, nos Caminhos do Conhecimento de pira, no seu repousar sobre a Terra, a fazê-la sobressair.
Deus e na Ciência da Cruz. Em “O Castelo Interior” Stein Ele não tolera, como o que se abre. Porém, a Terra tende,
traz à cena a essência do ser humano em sua interiorida- como a que abriga, cada vez a abranger e a conservar em
de através das experiências místicas vividas por Teresa si o mundo” (Heidegger, 2010, p. 121).
D’Ávila. Ela se apropria de símbolos e de uma linguagem Mas ainda não sei o que me aguarda. Sei apenas que
poética para revelar sua aproximação com a verdade. Nos tenho o compromisso, como todos aqueles que se dedi-
Caminhos do Conhecimento de Deus prevalece a busca cam à obra de Stein, de difundir o seu pensamento, dar
do sentido do ser em sua profundidade para se alcançar voz às suas angústias e clarificações e despertar, naque-
um ser absoluto, eterno. Ali, Edith comenta sobre a for- les que compartilham o humanismo, as possibilidades de
mação do pensamento de Tomás de Aquino e mostra a re- trabalho em comum união com suas ideias.
levância da vida mística e da contemplação a Deus. A fé, A busca de Edith Stein pela formação do ser huma-
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
neste sentido, é indispensável para nos conduzir a estes no se dá por meio da fenomenologia husserliana. Segun-
caminhos misteriosos da presença de Deus em nós. Por do o método, o conhecimento das coisas tem início com
fim, na Ciência da Cruz, a simbologia poética de São João a experiência que se tem delas. O projeto de Husserl se
da Cruz se revela pelo sentido da cruz e da noite escura. concentra na essência da resposta à pergunta: O que é?
O símbolo apresenta algo sagrado, aquilo que se manifesta; para alcançar a verdade. A pergunta originária “Que é o
ao se interiorizar, se transforma em estímulo para mudar homem?”, e a sua procura pela verdade perpassou toda a
a própria alma. O que ocorre é que São João da Cruz uti- existência de Stein. A resposta a este questionamento de-
liza da simbologia da noite cósmica para explicar a noite verá apresentar o homem em sua essência que, segundo
mística, originada no íntimo da alma. a filósofa é composta por forma e matéria. É aquilo que
se encontra no ser, próprio da pessoa; é a sua verdade e
basta-se no que se é.
2. Primeiras aproximações: a experiência Tomar consciência de si e viver de modo empático le-
va a uma transformação do ser humano. No pensamento
As contribuições de Edith Stein são tantas e tão densas steiniano é preciso haver uma relação para ser pessoa di-
que as descobertas são constantes. A cada página virada ferente dos outros seres da natureza, porque ela é tecida
de sua obra há uma abertura para se conhecer melhor a por três fios: corpo, alma ou psique e espírito, dimensões
pessoa humana e para se viver a experiência geográfica. conformadoras de um todo. O primeiro fio abrange um
Estou me preparando para o outro na medida em que me corpo vivente porque tem matéria, psique e consciência.
abro para mim. Penso que a empatia pode se relacionar à Neste corpo há um eu com sensações; um eu que sente e
realidade geográfica de Dardel (2011). A empatia é, pois, possui liberdade para agir. A alma é ser vivente, forma-
acompanhando o pensamento steiniano (2004), uma opor- do e transformado a partir de seu interior. O segundo fio
tunidade de vivência comum ao eu e ao outro; é uma re- é mediador do corpo e do espírito. A alma se torna, en-
alidade. A vivência empática possibilita ao eu perceber tão, o principal fio a ser entrelaçado para dar unidade à
imediatamente a presença do outro, reconhecendo-o por pessoa. A alma faz parte da interioridade onde o eu tem
meio da intuição. A vivência ocorre no corpo e quanto consciência e liberdade para decidir seus atos. Ao mes-
maior a sua intensidade, mais viva se torna a consciência mo tempo, difunde atos espirituais que lhe permite captar
que se tem dela. A empatia é, nesse sentido, uma vivên- as coisas do mundo e aquilo que transcende. A alma nos
cia que nos une ao outro. faz voltar para nós mesmos, pois “é o centro da pessoa, o
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 127-133, jul-dez, 2016 128
O Simbólico em Edith Stein: uma Aproximação com a Geograficidade
‘lugar’ onde ela está em si mesma” (Stein, 2004, p. 811). verdade de seu ser, de sua existência. Em Stein tudo vai
Por último, o terceiro fio – o espírito – compõe a tessitu- ao encontro da unidade e tudo parte desta unidade. Deus
ra da pessoa humana. O espírito se abre para algo, toma é reconhecido naquilo que se revela e os espíritos, aos que
consciência, se utiliza do corpo para a realização da vi- se revela, transmitem esta revelação. A ascensão a Deus
vência empática. É nele que se encontra o núcleo da alma. se faz pela obscuridade e pelo silêncio. E ela se faz pela
A tessitura dos fios forma, então, o tecido vivo, o ser vivência mística, compreendida por Stein como a con-
pessoa, consciente de si, de sua vida. É pensar o homem versa interior com Deus que assegura a sua presença; “é
em sua individualidade para depois pensar sua relação o núcleo de toda vivência mística: o encontro com Deus
com o outro, traduzindo em uma comum unidade. De de pessoa a pessoa” (Stein, 2004, p. 149), com diferentes
fato, a comunidade se constrói de indivíduos. Nas pala- intensidades. O sentimento da presença de Deus vem a
vras de Stein (2004), “quando um sujeito aceita o outro ser o núcleo de toda experiência mística; é ser tocado,
como sujeito e não só está diante dele, mas vive com ele sem ver, sem ouvir, sem falar, sem imagens. É sentir. Es-
é determinado por seus movimentos vitais, neste caso se encontro íntimo da pessoa com Deus se faz revelar por
os dois sujeitos constituem entre si uma comunidade” uma imagem e palavras que podem se revelar e mostrar
(Stein, 2004, p. 344). Viver em comunidade é ver as pes- um Deus tal qual lhe foi conhecido.
soas atuarem, mas também estar com elas em sua cotidia-
nidade. É ser potencialmente solidário. Isto significa que
uma comunidade não é apenas formada por um grupo de 3. Aproximações: a simbologia
pessoas, mas é uma comum união de pessoas que vivem,
sentem e atuam como parte integrante de seu espaço de Ao longo de sua vida Edith Stein teve sua base filo-
vida. Stein comentou, em vários momentos de sua obra, sófico-religiosa fundamentada em Agostinho, Tomás de
que indivíduo e comunidade estão sempre em processo, Aquino, Ignácio de Loyola, Teresa D’Ávila e São João da
sempre em movimento, sempre se fazendo. Cruz. Mas foi com estes dois últimos que Stein conhe-
O método fenomenológico esteve presente em todas ceu a verdade. Ambos eram espanhóis, contemplativos,
as fases de sua vida, até mesmo quando a filósofa já se en- carmelitas descalços. Edith vê a mística como uma expe-
contrava na fase religiosa e mística. Sempre demonstrou riência da pessoa relatada como um testemunho dessa
a essência de seu pensamento fundamentada em Husserl, experiência. E é aqui que me apoiarei para tecer a feno-
ainda que de forma velada. Stein nunca deixou a chama menologia geográfica em Stein.
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Virginia de L. Palhares
expressão do conhecimento simbólico. “Precisamente me do ser humano com o exterior e se torna desafiadora pela
parece que isto que hoje se entende pelo termo ‘símbo- escolha de um caminho espiritual.
lo’, se realiza plenamente quando uma figura expressiva Quando atinge a segunda morada, a alma já percebe
é captada como ‘imagem sensível’, abrindo-nos a ima- certos chamados de Deus através do mundo exterior e a
gem a um sentido até agora desconhecido” (Stein, 2004, faz refletir e entrar mais em si mesma. Está determinada
p. 144), o próprio mistério. a percorrer o caminho até Deus. Muitas almas circundam
Pretendo aqui apenas resgatar a imagem do “Caste- o castelo, mas não conseguem entrar porque não possuem
lo Interior” e conecta-la à pessoa humana uma vez que a a consciência de se conhecer.
compreensão de alma é fundamental na construção físico- A terceira morada fundamenta-se na aceitação dos
-psico-espiritual que Edith chama de homem. Além disso, apelos da segunda morada. Teresa reforça a importância
é interessante observar o sentido de amplidão que San- da humildade para continuar a longa caminhada até Deus
ta Teresa dá à alma, “tão ampla quanto o mundo” (Stein, – Sua Majestade – que se encontra na sétima morada ou
2014, p. 247), este mundo que o ser é. A alma possui um aposento. Acrescente-se que a meditação se torna uma
ser, uma natureza espiritual; une o espírito ao corpo. prática cotidiana embora ocorra ainda muitos apelos ex-
Temos que tomar como base as experiências e testemu- ternos ao castelo. Nesta morada,
nhos místicos para entendermos a interioridade humana.
O “Castelo Interior” é uma demonstração disso. Santa Te- Não se trata de vozes interiores, mas de reclamações
resa, pela sua própria experiência, alcançou o mais alto que vêm de fora e que ela percebe como uma mensa-
grau de vida mística após uma ação de disciplina espiri- gem de Deus como palavras de um sermão, ou paisa-
tual, pela sua capacidade de expressar suas vivências in- gens de um livro que pareciam ditos ou escritos pre-
teriores e o indescritível através dos símbolos. Estes são cisamente para ela, enfermidades e outros casos pro-
considerados símbolos místicos ou espécies de moradas videnciais. A alma vive, todavia, em e com o mundo,
nas quais deveríamos viver. mas estas chamadas penetram em seu interior e a con-
Santa Teresa descreve a sua vivência mística se utili- vidam a entrar em si. (Stein, 2004, p. 83)
zando de uma linguagem metafórica. Ela explica a exis-
tência de um castelo cercado por uma muralha. “(...) Nas três primeiras moradas há impurezas infiltradas
A própria alma é o castelo” (Teresa de Ávila, 2015, p. 20). pelos órgãos dos sentidos, como o orgulho, a avidez, a
Como entrar neste castelo sendo ambos uma unidade, uma vaidade, em razão da proximidade da entrada do castelo.
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
mesma coisa? É o mesmo que dizer a uma pessoa para Quem entra nessas moradas deve fazer uma limpeza, se
entrar na sala embora ela já se encontre nela. A muralha purificar, penitenciando-se de suas falhas.
é o corpo e, nele, há sete aposentos ou moradas constru- A quarta morada (oração) é iluminada. A alma dei-
ídos em andares que, se adentrados, se alcança a alma, xa de pensar e passa a amar; “a oração de quietude brota
ao núcleo mais íntimo do homem, a alma da alma, como sem nenhum esforço próprio” (Stein, 2004, p. 84); é es-
Stein (2004) se referia. Fora da muralha há o mundo ex- pontânea. A oração cria a relação empática entre Deus
terno: quem o habita desconhece a vida que se desenvol- e a consciência e Ele se faz presente pela revelação. Ela
ve no interior do castelo e “é mesmo estranho que uma traz contentamentos resultantes dos momentos de me-
pessoa não conheça a própria casa” (STEIN, 2004, p. 105). ditação. Os contentamentos mostram quando a alma faz
O castelo se encontra no topo de um morro, isolado, alguma coisa por Deus. O mais importante “para tudo, é
livre de inundações e invasões e está entre o céu e a terra. o ter ciência e letras” (Teresa de Ávila, 2015, p. 72). O de-
É a ligação entre o homem e Deus. Teresa parte do princí- sejo de contentar a Deus leva ao exercício do amor e não
pio que a felicidade denominada por ela de Deus, está em propriamente o pensar.
cada um de nós e é, portanto, um estado de consciência Na quinta morada (experiência mística), a alma rece-
cujo desabrochar requer se conhecer. Para penetrar nes- be a marca do amor incondicional. É o sair de si. “A san-
ta consciência é preciso haver uma experiência que ca- ta descobre, pela experiência interior, uma verdade de fé
racteriza o saber místico, uma introspecção, um retorno que ignorava até o momento. Deus está em todas as coi-
ao eu. Primeiro é preciso entrar no castelo, voltar-se para sas por presença e por potencia e essência” (Stein, 2004,
si, conhecer-se; afinal, “não se pode levantar os olhos a p. 87). Foi nesse estágio que Santa Teresa teve revelações
Deus sem ser conscientes da própria baixeza. Mediante o e esteve em êxtase, chamado por ela de voos do espírito,
próprio conhecimento nos aproximamos de Deus” (Stein, saídas de si. Teresa D’Ávila explica que estas saídas de
2004, p. 82). Nem sempre as pessoas conseguem perceber si, correspondem ao desprendimento da alma do corpo,
e até mesmo entrar no castelo devido ao fascínio exercido ainda que a pessoa não tenha morrido. As revelações são
pelo mundo exterior. A chave para abrir a porta e entrar visões, intuições da presença divina, e não propriamente
no castelo é a oração e a reflexão para saber olhar para visões materializadas no sentido físico. Nossa consciência
si, para se conhecer; para entrar nos aposentos é preciso capta a presença divina sem haver mediação dos sentidos.
possuir a virtude da humildade e a devoção. Assim, a pri- Nesta morada, Teresa cria uma linguagem metafórica
meira morada ou aposento retrata ainda uma forte relação para estabelecer uma relação simbólica com a mariposa
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 127-133, jul-dez, 2016 130
O Simbólico em Edith Stein: uma Aproximação com a Geograficidade
e a crença no Divino. Como não crer no Divino? Como trazida por canais e fazem ruídos quando enchem a alma.
não crer na vida, na sua existência, quando se vê o modo Na outra fonte temos Deus, chamado por Teresa de Sua
de criar a seda? Quando uma semente brota nas folhas Majestade. Ele faz brotar paz e suavidade do mais ínti-
das amoreiras cobrando vida e, até então, estava morta. mo da alma. “Não sei dizer para onde vai essa água, nem
“Nas folhas, se cria o verme; e vai fiando a seda que tira como brota; nem esse contentamento e deleite, ao menos
de si mesmo e tece um pequeno casulo. Do verme nas- no princípio, se sente no coração, como os da terra; só
ce uma borboletinha branca.” (Teresa de Ávila, 2014, depois é que enche tudo” (Teresa de Ávila, 2014, p. 80).
p. 81). Aqui, Teresa evidencia as transformações da alma No Castelo Interior, a água purifica, flui para todos os
decorrentes de um profundo processo de conhecimento aposentos e potências até chegar ao corpo, limpando-o,
interior. A alma, neste aspecto, fica propensa a atingir lavando-o, curando-o, sacralizando-o.
moradas mais elevadas. De fato, os símbolos e imagens, criados na realida-
Ela se pergunta: quais razões haveria para imaginar de geográfica de Dardel (2011) se manifestam de muitas
que um verme seja tão empenhado para trabalhar em nos- maneiras. Em uma delas, a superfície da água refletida
so proveito e, ao final, o bichinho perca a sua vida? Uma na forma de qualquer corpo d’água emerge na contem-
alma que morre em seus descuidos e pecados precisa de plação do mundo por ela e se rende ao lirismo e à poé-
remédios se quiser reviver; deve se sustentar com medi- tica. O jogo de luzes e sombras criado pelos raios do sol
tações e boas leituras. Crescendo, este verme começa a desperta a imaginação para enxergar imagens telúricas.
lavrar a seda e construir a casa onde há de morrer e, pa- Quando Dardel (2011) comenta sobre o espaço aquático,
ra nós, esta casa é Cristo. Do verme sai uma mariposinha ele apresenta um espaço discreto, reservado, tranquilo,
branca. Fato semelhante ocorre à alma que, nesta oração, cujas águas apenas murmuram ruídos que nos fazem abs-
bem morta está ao mundo. A mariposinha não sabe onde trair a realidade geográfica. Assim, ela
pousar e fazer assento.
(...) mistura as imagens que se levantam das profun-
Foi tanto o que desfrutou que tudo quanto vê na ter- dezas e aquelas que se referem ao céu ou à costa.
ra a deixa insatisfeita. Já tem em nada as obras que A intimidade da substância liquida suaviza o dourado
fazia em outros tempos, sendo verme, que era ir pou- frio do reflexo, e cria um mundo de formas moventes
co a pouco fiando seu casulo. Nasceram-lhe asas; co- que parecem viver sob o olhar. (Dardel, 2011, p. 37)
mo se contentará de ir passo a passo, se pode voar?
131 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 127-133, jul-dez, 2016
Virginia de L. Palhares
significado a outra coisa invisível” (Stein, 2014, p. 234). Dardel (2011), por sua vez, considera a noite a essên-
Entretanto, este não é o sentido da noite; ela é algo natu- cia verdadeira da Terra a ser desvelada, tornando-a escu-
ral, não é um objeto e a percebemos unida a nós. “Como ra, sombria, misteriosa. É o fundo do escuro, a essência
a luz, penetra todas as coisas com suas propriedades vi- da Terra, o núcleo; esconde algo em cada um dos seres
síveis” (Stein, 2014, p. 234). no momento em que eles se expõem à luz. Segundo ele,
Na descrição de Stein sobre a noite de João da cruz, “é essa luta incessante entre a luz e a escuridão, entre o
verifica-se um esclarecimento sobre a noite cósmica e a Homem e a Terra” (Dardel, 2011, p. 43), entre o sol e a lua,
noite simbólica do místico. Ainda que ambas possuam com características obscuras, das profundezas, com seus
suas especificidades e até mesmo alguma proximidade, segredos, seus mistérios, que confere à estrutura humana
a noite cósmica detém a presença suave da lua. Essa, por- o que ela tem de concreta e de real. “O homem procura a
tanto, possui a presença iluminada da lua enquanto a noi- terra, ele a espera e a chama com todo o seu ser” (Dardel,
te escura traz tranquilidade e descanso. Noite mística e 2011, p. 43) para estar no mundo.
noite cósmica. No contexto de João da Cruz, ambas têm A contemplação mística purificadora precisa da tra-
em comum a linguagem poética. A noite mística está na vessia da alma na noite escura para se sentir tocada por
interioridade, está no eu e, nesse sentido, afeta a alma. Deus. Ele comunica à alma seu amor, mas, ainda assim,
Mesmo assim, os efeitos que ocorrem no interior podem permanece envolto no mistério; mistério este que trans-
ser comparados aos efeitos da noite cósmica, pois “(...) cende as alegorias da experiência para a alegoria do amor
implica um desaparecimento do mundo exterior mes- humano com o Divino.
mo que o exterior se encontre na clara luz do dia” (Stein, A “Cruz e noite” há relação? Qual o sentido da cruz?
2014, p. 236). Estabelece um vazio na alma solitária que Edith reconhece o símbolo como a “plenitude infinita do
impede o desenvolvimento de suas potências e abre es- sentido sobre o qual avança todo conhecimento humano,
paço para a angústia e o medo. Stein vê esse movimento capta algo e o faz manifesto e o expressa” (Stein, 2004,
como uma luz noturna que abre possibilidades para ou- p. 237). A cruz, ao ser denominada de “imagem simbólica
tra realidade no mais íntimo do ser, transbordando sua é símbolo no sentido amplo, algo visível que estende seu
luz para o exterior. Stein esclarece, ainda, que a imagem significado a outra coisa invisível” (Stein, 2004, p. 234).
é o aspecto determinante para explicar a relação exis- A cruz vai recebendo significados ao longo da história.
tente entre noite cósmica e noite mística. A imagem da Ela é um instrumento preparado e utilizado pelo homem
noite corresponde, a princípio, à noite cósmica e dela se com uma determinada finalidade. Através de sua figura
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
transfere à mística, pois contribui para compreender al- visível, a cruz nos leva, então, à plenitude do significa-
go desconhecido. Trata-se de um modo de apreender o do que está unido a ela. É simbólica, se torna sagrada.
espiritual através de algo sensível e conhecido como é a “É, portanto, um signo, mas um cujo significado não lhe
noite cósmica. Assim, para sintetizar, “(...) a noite é a ne- tenha sido aplicado artificialmente, mas que realmente
cessária expressão cósmica da mística cosmovisão de São provém do fundamento de sua eficácia e de sua história”
João da Cruz” (Stein, 2014, p. 237). (Stein, 2004, p. 234).
É da noite que nascem o lirismo, o simbolismo e o mais Diferente da cruz, a noite é algo natural: o contrário
secreto de sua mística, que incorpora uma intuição do da luz, que nos envolve a todas as coisas. Edith explica
universo. A noite escura expressa um itinerário de amor que a noite “não é um ‘objeto’ no sentido literal da pala-
cujas estrofes traduzem o movimento que vai unindo a vra: não está diante de nós e nem sequer se sustenta por
amada e o Amado; a noite é a guia. João da Cruz refletiu si mesmo. Não é tão pouco uma ‘imagem’” (Stein, 2004,
sobre a experiência mística por meio de imagens do mun- p. 234). Ainda assim, percebemo-la e está mais próxima
do sensível e conferiu a força da carne e o tempo às suas a nós que todas as coisas e figuras. A noite é como a som-
experiências espirituais. Na análise de Stein (2014), há bra, um fantasma: invisível e, por isso, ameaçadora, as-
uma luz que se abre no fundo da alma; um mundo novo, sustadora. Nosso ser não só está ameaçado exteriormente
límpido, que reflete nas atitudes. por perigos ocultos na noite, mas também interiormente,
A noite do seu pensamento místico possui uma for- afetado pela noite mesma. Nosso ser sente suas forças re-
te simbologia. Ela guarda uma relação com a experiên- duzidas, é atirado à solidão e converte-se em sombras e
cia e vem acompanhada de sentimentos que lembram fantasmas. É como antecipar a morte, vista na geografia
imagens sempre novas. Para João da Cruz, o símbolo da mítica de Dardel (2011) apenas como um modo de exis-
noite expressa uma profundidade imensa e um estado tência ou no máximo uma mudança de forma ou de resi-
de ânimo muito particular que aponta as obscuras e mis- dência. Lá, “os defuntos, os ancestrais e os deuses vivem
teriosas vias que conduzem a amada para a suave união ao lado dos seres humanos” (Dardel, 2011, p. 53). Seres
divina. A noite torna-se, para o místico, um símbolo ca- angelicais ou demoníacos, duendes, fadas, vampiros, ma-
paz de gerar novas situações e emoções que são capta- gos; todos eles habitam a geografia mítica: presenças dis-
das aos poucos: a princípio, apenas o ambiente em que persas no espaço, na névoa da escuridão, que agitam as
a alma solitária começa sua caminhada; o guia entre o profundezas da sensibilidade do homem. “Tudo lhe diz
amante e o amado. alguma coisa” (Dardel, 2011, p. 53).
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 127-133, jul-dez, 2016 132
O Simbólico em Edith Stein: uma Aproximação com a Geograficidade
Na cruz temos o sinal da paixão e morte de Cristo e colocar, com sua singularidade, com sua sensibilidade,
de tudo o que está ligado a ele, impregnado em nós. Ins- na Terra, condutora de significado, de valor. A experiên-
pirada pelo lirismo de João da Cruz, Stein (2004) explica cia geográfica contém emoção, sentimento. Neste senti-
que a cruz é o leito nupcial onde os amantes se encon- do, ela se assemelha muito à empatia de Edith cujo outro
tram, onde o Amado gera na amada uma vida nova. “O deve se abrir para o eu de modo que possa haver o ato
primeiro a adormecer (morrer na cruz) é o Amado para empático, para apreender a experiência do outro. Ouso
somente depois adormecer a amada” (Stein, 2004, p. 258). dizer que é se deixar levar, estar em devaneio com a Ter-
A cruz é o caminho mais curto para o homem encontrar ra que nos acolhe. É sair da noite obscura do mistério, se
o Criador. O cristão que não carrega sua cruz, não entra abrir para o que irá se revelar na luz, em nossa realidade
numa relação de amor com Ele e não gera dentro de si a geográfica. Perceber o simbólico em Edith Stein me am-
nova vida que o conduz ao céu. Na visão de Edith Stein, para na maneira de compreender experiências geográfi-
a diferença entre o caráter simbólico da cruz e da noite cas que se revelam, de interpretar um sentido percebido,
é que a cruz é sinal daquele que está relacionado com a de ser no mundo. O simbólico de Edith Stein me inspira
cruz de Cristo quer seja de modo explicativo ou históri- à geograficidade.
co, ao passo que a noite é a expressão cósmica da mística
cosmovisão de São João da Cruz. (Stein, 2004). A filósofa
assume, desta maneira, um sentido místico de símbolo, Referências
enquanto revelação do sagrado.
Dardel, E. (2011). O homem e a Terra: natureza da realidade
geográfica. São Paulo: Perspectiva.
Aproximações finais Heidegger, M. (2010). A origem da obra de arte. São Paulo:
Edições 70.
Penso! Penso geograficamente. Penso em simbologia
na geografia. Como reconhecer aquilo que não conhe- Stein, E. (2004). Escritos espirituales: en el Carmelo teresiano
1933-1942. (Obras completas - Tomo V). Monte Carmelo;
ço? Sentindo? Intuindo? Pressentindo? Vivendo? Dardel
Vitoria: El Carmen.
(2011) me auxilia nos questionamentos. Ele me sussur-
ra: “as realidades geográficas representam um símbolo Stein, E. (2004). Sobre el problema de la empatía. Madrid:
da alma” (Dardel, 2011, p. 44), certo acolhimento, certo Editorial Trotta S. A.
133 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 127-133, jul-dez, 2016
Valeria A. do Carmo
Resumo: A escrita aqui apresentada tem como propósito apresentar o relato de uma experiência feita na companhia de autores
e suas obras durante o ano de 2015 com o intuito de trazer um pouco de luz à inquietação que trago comigo e que pretendo que
seja minha guia: pensar a fotografia como possibilidade reveladora das relações diversas do homem com a terra, ou seja, sua
geograficidade. Esta foi a proposta apresentada no V Seminário Nacional do Grupo de Pesquisa Geografia Humanista Cultural -
SEGHUM. Foi um ano de leituras e reflexões e porque não dizer de angústias, que me fizeram pensar, principalmente após a leitura
do texto Poeticamente o homem habita de Heidegger, se a questão originária não estaria na linguagem poética antes de partir para
pensar a fotografia uma vez que penso a fotografia como linguagem, como arte, como possibilidade poética. Neste caminhar, além
da fotografia me deparei também com as palavras do poeta Manoel de Barros que, juntas fotografia e poesia, me ajudam nesta
aproximação com o desvelar de um habitar poético. Assim, este texto apresenta um pouco desta caminhada.
Palavras-chave: Fotografia; Manoel de Barros; Linguagem poética; Geograficidade.
Resumen: La escritura que aquí se presenta tiene como objetivo presentar el informe de una experiencia hizo en la compañía de
autores y su trabajo durante el año 2015 con el fin de aportar un poco de luz a la preocupación que tengo conmigo y yo quiero
que sea mi guía: pensar la fotografía como revelando posibilidad de diferentes relaciones entre el hombre y la tierra, es decir, su
geographicity. Esta fue la propuesta hecha en el Seminario Nacional de la Quinta Humanista Cultural Grupo de Investigación en
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
Geografía - SEGHUM. Fue un año de lecturas y reflexiones y por qué no decirlo angustia, que me hizo pensar, sobre todo después
de leer el texto Poetically hombre habita Heidegger, la pregunta originalmente no estaría en lenguaje poético antes de empezar a
pensar en la foto una vez Creo que la fotografía como lenguaje, como arte, como posibilidad poética. En este caminar, así como
la fotografía también se encontró con las palabras del poeta Manoel de Barros, junto fotografía y la poesía que me ayude en este
enfoque con la presentación de una vivienda poética. Por lo tanto, este artículo presenta algunos de este caminar.
Palabras-clave: Fotografía; Manoel de Barros; Lenguaje poético; Geographicity.
Abstract: The writing presented here aims to present the report of an experience made within the authors company and their
work during the year 2015 in order to bring a little light to the concern that I have with me and I want to be my guide: think
photography as revealing possibility of different relationships between man and the earth, that is, its geographicity. This was the
proposal made at the Fifth National Seminar of the Research Group Geography Cultural Humanist - SEGHUM. It was a year of
readings and reflections and why not say anguish, that made me think, especially after reading the Heidegger’s text Poetically
man dwells, the question originally would not be in poetic language before starting to think the photo once I think photography
as language, as art, as poetic possibility. In this walk, as well as photography also came across the words of the poet Manoel
de Barros, together photography and poetry help me in this approach with the unveiling of a poetic dwelling. Thus, this paper
presents some of this walk.
Keywords: Photography; Manoel de Barros; Poetic language; Geographicity.
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 134-139, jul-dez, 2016 134
Por um Habitar Poético – o Encontro da Fotografia com a Poesia de Manoel de Barros
135 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 134-139, jul-dez, 2016
Valeria A. do Carmo
Mas não é isso que procuramos, apenas: é o seu sen- até pouco tempo. Um olhar direcionado prioritariamen-
tido íntimo que tentamos discernir. Amemos nessas te para as características bio-fisicas das paisagens. E as-
humildes coisas a carga de experiências que represen- sim foi durante muitos anos com a fotografia, um olhar
tam, e a repercussão, nelas sensível, de tanto trabalho que evitava as pessoas. Sempre tivemos uma ligação forte
humano, por infindáveis séculos. (...) (Meireles, 2003) com a terra, mas hoje sei que era uma “terra apartada”.
Mas este sentimento se transformava ao chegar em uma
A fotografia sempre me possibilitou (re)encantar dian- comunidade pequena e me encontrar com as pessoas do
te das coisas do mundo. Ela é para mim um convite à pau- lugar cuja raiz na terra sempre me pareceu mais verdadei-
sa proporcionada pelo “congelamento do tempo”. Através ra. Que fique registrado que são impressões de um passa-
desse “repouso” faço o convite para refletir sobre as coisas do dentro qual pouco espaço havia para as reflexões que
mesmas além do que foi ali capturado. Para seguir este busco e que trago hoje.
caminho apoiamos no olhar/sentir/experienciar da feno- Outro aspecto que gostaria de destacar é com relação
menologia. Vemos a fotografia como uma possibilidade às características do tipo de fotografias feitas. Geralmente,
de experiência não só para aquele que faz o registro, mas eram obtidas em cor, principalmente quando o interesse
também para aquele que dele usufrui. Penso que através se voltava para as paisagens, mas quando o olhar mirava
dela, de alguma maneira, a geograficidade própria do ser as pessoas, o registro se transformava em preto e branco.
no mundo possa estar presente, tanto aquela vivenciada De uma maneira intuitiva retratava as pessoas em preto
através dos sentidos como aquela imaginada. e branco por achar que este tipo de fotografia poderia es-
E, para trazer tudo isso à reflexão necessito trazer mi- tar captando além da aparência externa das coisas, indo
nha vivência com a fotografia que se aninha em parte na mais profundamente, sendo capaz de registrar sua “alma”.
história de vida familiar. Cresci em uma casa natal onde Mais uma vez, meu olhar pedia algo mais do que foi re-
havia um barracão nomeado de “barracão de fotografia”. gistrado pela simples reflexão da luz gravada na película.
Trabalhando como repórter fotográfico da revista espor- Mais tarde, ao participar de projeto desenvolvido em
tiva Placar, meu tio revelava naquele barracão as fotos uma comunidade quilombola - Moça Santa no Vale do
tiradas durante uma tarde de partida de futebol no Mi- Jequitinhonha, novamente a fotografia adquiriu um pa-
neirão e este momento era aguardado por mim, com cer- pel importante no meu trabalho. O objetivo era fazer o
ta ansiedade. Aquele era um lugar escuro... pintado de registro de uma oficina ministrada por uma ceramista e
preto. A despeito de sua funcionalidade primeira, aquele as mulheres de Moça Santa (Figura 1).
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 134-139, jul-dez, 2016 136
Por um Habitar Poético – o Encontro da Fotografia com a Poesia de Manoel de Barros
Em um momento mais recente, já em contato com a esta condição de estranheza proporcionada pela proximi-
fenomenologia e seus autores, uma passagem do texto dade tanto pela fotografia que nos colocou em um lugar
Poeticamente... o homem habita de Heidegger nos fez pen- diferente daquele que habitualmente costumamos estar.
sar na fotografia não só como uma linguagem, mas como Desde então, ela tem sido forte aliada como forma de ma-
possibilidade poética. Mesmo sua fala sendo dirigida ao nifestar nossa relação com o mundo (Figura 4).
poeta, penso que se aplicaria também ao fotógrafo-poeta:
137 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 134-139, jul-dez, 2016
Valeria A. do Carmo
as paisagens, os lugares e sua gente (Figura 6). Registros e mostrou o sempre buscado: a autenticidade que como
estes, que testemunham uma vida vivida em meio a tan- as coisas mostradas pelo poeta, estão bem “escondidas”
tas coisas “desimportantes” que foram fundamentais na precisando apenas que sejam encontradas com a ajuda
construção de sua relação com os outros e com o mundo. de um olhar mais cuidadoso.
Manoel de Barros nos permitiu enxergar tudo isso
juntamente com outros tantos filósofos/pensadores. Foi
ele que nos ajudou a entender, por exemplo, através de
seu poema MIRÓ o que penso queria Husserl com sua
redução ou mesmo Heidegger ao dizer em relação à arte.
Assim fala o poeta:
Figura 6: Junto às crianças estão as palavras do poeta Ma- Para atingir sua expressão fontana Miró precisava de
noel de Barros. esquecer os traços e as doutrinas que aprendera nos
livros.
Mas são estas “coisas”, de importância questionada Desejava atingir a pureza de não saber mais nada.
por tantos é que o marcaram e que anunciam, através Fazia um ritual para atingir essa pureza: ia ao fundo
de um “festejo de linguagem”, a sua relação íntima e de do quintal à busca de uma árvore.
cumplicidade com o mundo. Assim, inspirada por seu E ali, ao pé da árvore, enterrava de vez tudo aquilo
poema O FOTÓGRAFO, encontro minha sustentação po- que havia aprendido nos livros.
ética para, através de sua fala, afirmar o que penso da Depois depositava sobre o enterro uma nobre mija-
fotografia: de que nela busco a força do invisível sabia- da florestal.
mente escondido para o desvelamento da condição hu- Sobre o enterro nasciam borboletas, restos de insetos,
mana do existir. cascas de cigarra etc.
A partir dos restos Miró iniciava a sua engenharia
Difícil fotografar o silêncio. de cores.
Entretanto tentei. Eu conto: Muitas vezes chegava a iluminuras a partir de um de-
Madrugada, a minha aldeia estava morta. Não se via jeto de mosca deixado na tela.
ou ouvia um barulho, ninguém passava entre as ca- Sua expressão fontana se iniciava naquela mancha
sas. Eu estava saindo de uma festa.
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
escura.
Eram quase quatro da manhã. Ia o silêncio pela rua O escuro o iluminava.
carregando um bêbado. Preparei minha máquina. (Barros, 2010 p. xxx)
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado. Com Manoel de Barros foi possível compreender o que
Fotografei esse carregador. Heidegger nos apresenta através das palavras de outro po-
Tive outras visões naquela madrugada. Preparei mi- eta, Friedrich Hölderlin: Precisamos nos fazer poeta para
nha máquina de novo. Tinha um perfume de jasmim que algo se desvele e venha finalmente para a luz, preci-
no beiral do sobrado. Fotografei o perfume. samos poetar para que o “habitar autêntico”, ou seja, um
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na habitar sobre a terra, sob o céu e à vista dos seres divi-
pedra. nos esteja ao alcance de quem assim o desejar (Figura 7).
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo. Fo-
tografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre. Por fim eu enxerguei a
nuvem de calça. Figura 7: Entre o céu e a terra, junto às divindades e com
Representou pra mim que ela andava na aldeia de bra- os mortais, habitamos o mundo.
ços com Maiakoviski – seu criador. Fotografei a nuvem
de calça e o poeta. Escuta na pausa proporcionada pela nossa experi-
Nenhum outro poeta no mundo faria uma roupa mais ência nos faz ver que não só a fotografia, mas também a
justa para cobrir sua noiva. poesia de Manoel de Barros se revelou como possibilida-
A foto saiu legal. de de um caminho para a “expressão” da geograficidade,
(Barros, 2010 p. 377) principalmente aquela experienciada no espaço telúrico
de Eric Dardel, capaz de, através da experiência senso-
Sua escrita simples, mas que ao mesmo tempo pede rial, nos colocar em contato com a substância antes de se
calma e reflexão profundas, foi relevante neste despertar transformar em idéias e noções.
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 134-139, jul-dez, 2016 138
Por um Habitar Poético – o Encontro da Fotografia com a Poesia de Manoel de Barros
Assim foi na companhia de todos eles e de suas ima- Dardel, E. (2011). O homem e a Terra: natureza da realidade ge-
gens que, aos poucos fomos percebendo um caminho além ográfica. (W. Holzer, Trad.). São Paulo: Editora Perspectiva.
daquele desvelado no início pela fotografia... nos fez de- Deleuze, G. (2007). Francis Bacon: lógica da sensação. (R. Ma-
sejar o caminho da Geopoética, da linguagem poética...da chado [Coord.]. Trad.). Rio de Janeiro: Zahar.
arte. E o que se mostra agora é que a fotografia não pode
ser o único foco, ela é apenas uma das pontas para reve- Flusser, W. (1985). Filosofia da caixa preta: ensaios para uma
lar a realidade geográfica de Dardel que é a dos lugares futura filosofia da fotografia. São Paulo: Hucitec.
onde estamos, dos lugares de nossa infância, dos nossos Heidegger, M. (2010). A origem da obra de arte (I. Azevedo e M.
deslocamentos compostos por sons, cheiros, cores, sabo- A. De Castro, Trad.). São Paulo: Edições 70.
res, sentimentos, lembranças... memórias.
Por tudo isso, este texto busca ajudar a pensar sobre o Heidegger, M. (2012c). Poeticamente o homem habita. Em Hei-
degger, M. Ensaios e Conferências. (E. C. Leão, G. Fogel, M.
papel das artes, principalmente a fotografia junto à poesia
S. C, Schuback, Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Pau-
de Manoel de Barros, como aliada no desvelar de um ha- lista, SP: Editora Universitária São Francisco. P 165-181.
bitar poético. Trago, portanto, um convite à reflexão nas
palavras de Benedito Nunes, Heidegger, M. (2003). A caminho da linguagem (M. S. C, Schu-
back, Trad.). Petrópolis-RJ: Vozes, Bragança Paulista, SP:
O pensamento de hoje, mais calculista e previsor, pre- Editora Universitária São Francisco.
para-se para deixar a habitação terrestre em deman- Heidegger, M. (1994). Serenidade (M. P. L. Viera, Trad.) da versão
da de uma habitação cósmica – o “espaço esvaziado castelhana de Yves Zimmermann publicado pela Ediciones
do mundo”, que, no entanto, continuaria sendo para del Serbal, Barcelona, Janela da Alma. Direção de João Jar-
aqueles eventuais astronautas ainda susceptíveis de dim e Walter Carvalho. Brasil, 2002.
experimentar o ancestral sentimento de admiração e
Meireles, C. (2003). Da solidão. Disponível em: <http://oninho-
estranheza. (Nunes, 2000 p. 126) eatempestade.blogspot.com.br/2009/02/da-solidao-cecilia-
meireles.html>.
Mas não só os sentimentos propriamente ditos, co-
mo objeto de preocupação, mas no que tais sentimentos Nunes, B. (2000). Heidegger e a poesia. Natureza Humana,
podem despertar para que verdadeiramente possamos 2(1):103-127.
acordar para nossa condição terrestre de habitantes, no
seu sentido mais originário. Estamos e somos a terra que
Referências
139 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 134-139, jul-dez, 2016
Eduardo J. M. Júnior
Resumo: A fenomenologia é um projeto incompleto, sempre a caminho. Neste pensar constante, um dos desafios ainda pouco
enfrentados é o da escrita fenomenológica que, a despeito das mudanças epistemológicas encampadas pelos fenomenologistas,
não raro mantém sua escrita indistinta do restante das ciências. No entanto, há necessidade de busca de outras formas de dizer,
para superar a limitação da linguagem moderna, já apontada pelos fenomenológos, em permitir que o Ser se revele. É neste sentido
que Max van Manem fala do vocativo como uma necessidade para o texto fenomenológico, adotando a enunciação como sentido
principal da escrita e, consequentemente, da leitura. Este se expressa como um imperativo estético, que se desdobra em diferentes
modos de escrever que permitem que o intuitivo, o sensível e o não-dizível encoberto possa se desvelar, no ato de escrita-leitura.
Para contribuir para o enfrentamento deste desafio pela Geografia, navego pela fenomenologia dos sentidos de Michel Serres, um
mestre do texto vocativo em diferentes facetas, para compreender o sentido hermenêutico da escrita fenomenológica.
Palavras-chave: Hermenêutica; Fenomenologia geográfica; Linguagem.
Abstract: Phenomenology is an incomplete project, always on the way. In its process of constant thinking, one of the challenges still
barely confronted is the phenomenological writing, which, despite the epistemological changes promoted by phenomenologists,
often maintains indistinct when compared to other sciences. However, there is a need to search for other ways of saying, to
overcome the limitation of the modern language, as pointed out by phenomenologists, allowing the Being to reveal itself. In that
sense, Max Van Manem mentions the vocative as a demand to the phenomenological text, adopting the enunciation as the main
direction of writing and, consequently, reading. This vocative appears as an aesthetic imperative that unfolds in different ways of
writing, allowing the hidden intuitive, sensitive and not speakable to be revealed in the act of writing-reading. To contribute in
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
tackling this challenge through Geography, I navigate Michel Serres’ phenomenology of senses, a master of the vocative text in it
is different facets, to comprehend the hermeneutic sense of the phenomenological writing.
Keywords: Hermeneutic; Geographic phenomenology; Language.
Resumen: La fenomenología es un proyecto incompleto, siempre en camino. En este pensar constante, uno de los desafíos aún
poco enfrentados es el de la escrita fenomenológica que, pese a las mudanzas epistemológicas seguidas por los fenomenólogos,
no es raro que mantenga su escrita indistinta del resto de las ciencias. Sin embargo, existe la necesidad de buscar otras formas
de decir, para superar la limitación del lenguaje moderno, ya establecido por los fenomenólogos, en permitir que el Ser se revele.
Es en este sentido que Max Van Manem habla del vocativo como una necesidad para el texto fenomenológico, adoptando la
enunciación como un sentido imperativo estético, que se desdobla en diferentes modos de escribir que permiten que lo intuitivo,
sensible y no-nombrable encubierto se pueda desvelar, en el acto de escritura-lectura. Para contribuir para el enfrentamiento de
este desafío por la Geografía, navego por la fenomenología de los sentidos de Michel Serres, un maestro del texto vocativo en
diferentes facetas, para comprender lo sentido hermenéutico de la escritura fenomenológica.
Palabras-clave: Hermenéutica; Fenomenología geográfica; Lenguaje.
À medida que as semanas decorriam tornava-se frente a um cadáver desaparecera, a violência explícita
evidente que a guerra teria de ser interrompida. Havia abandonara o espaço central das narrativas para ser
como que uma saturação, diremos, obscenamente, integrada, de modo objetivo e neutro, em relatórios.
estética: certo modo de a cidade se fragmentar tornara- O mais um dito em frente aos cadáveres tornara-se
se irritante, primeiro aos olhos e, pouco a pouco, mais violento que a própria matéria, ali, caída, matéria
intolerável. Não era pois tanto uma imposição moral desprovida já do algo humano que desaparecera da
ou de sentimentos firmes que regressavam; tratava-se mesma forma imediata e misteriosa com que aparecera,
acima de tudo de um cansaço no olhar: a repetição das no meio da família, no dia de seu nascimento. [...]
imagens tornava-se excessiva; a exaltação medrosa em Era esse mais um que estava a terminar com a guerra.
Gonçalo Tavares, A máquina de Joseph Walser
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 140-147, jul-dez, 2016 140
O Imperativo Estético Vocativo na Escrita Fenomenológica
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Eduardo J. M. Júnior
relação passiva: antes, envolve conceber o conhecimento Foi assim, por exemplo, que passei a frequentar as bi-
como relação, sempre situada, simultânea e mutuamente bliotecas da Unicamp e da Unesp, em Rio Claro, em busca
aberta (Malpas, 2008). Nossa racionalidade opera muitas dos periódicos clássicos da Geografia. Naquele antigo pré-
vezes como muros de isolamento, ou bolhas de sentido. dio da Rua 10, hoje desativado, passei horas muito praze-
Quando menos esperamos, construímos representações rosas entre velhas estantes, velhas escrivaninhas, velhas
das coisas e caímos novamente na atitude natural. Parece- bibliotecárias e velhas cadeiras. Sentia-me privilegiado,
-me igualmente necessário ao aprofundamento teórico a tendo a oportunidade de explorar tesouros, de conhecer
imersão sem reservas no mundo, a abertura para experi- textos que apenas havia visto referências. Era um minei-
ências diversas e o exercício desse ser-e-estar-no-mundo ro garimpando em volumes encadernados.
constante, via sentidos. M. Merleau-Ponty (2007) chama- Ali naquelas estantes descortinava-se para mim boa
va atenção para esta forma de ser invadido pelo mundo, parte de toda uma geografia que era mitológica até então:
manifesto na paisagem, ideia desdobrada por Jean-Marc os indícios ganhavam materialidade, os nomes, concre-
Besse (2006) e por Éric Dardel (2011). tude, os textos, extensão, mas também finitude. Ao mes-
São duas tarefas, portanto, da mais alta importância e mo tempo, portanto, que havia o maravilhamento e o en-
da mais alta dificuldade. No entanto, as vejo como funda- cantamento, havia também uma espécie de apropriação,
mentais para não reproduzirmos a fragmentação moder- pois os textos tinham fim, limites, lacunas, portas aber-
na sujeito-objeto e para que a força da razão não se torne tas e caminhos a percorrer. Ao final de meses, era nítido
aquela que cala toda vivacidade e diversidade pululante para mim que havia muito mais a ser feito do que aquilo
do mundo vivido; antes, que se alie ao sentir, à emoção que já estava concluído.
e à intuição em nossa compreensão. Por isso um pensar- Mas não era isso o que eu queria dizer.
-sentindo se faz necessário. O que mais me chocava nestas primeiras buscas, era
Neste texto começarei a refletir sobre elas, em um encontrar muitos textos sobre percepção, que na época eu
único movimento: navegando pela escrita vocativa da tinha como textos humanistas, com uma linguagem tão
fenomenologia dos sentidos de Michel Serres, procuran- técnica quanto qualquer outro texto neopositivista. Encer-
do compreender as possibilidades desveladoras do texto rar a percepção em gráficos ou em frequências descritas
e suas múltiplas possibilidades de torná-lo aberto ao mo- em porcentagens causava um estranhamento que à épo-
vimento hermenêutico. Longe de pensar um modelo de ca não conseguia nomear. Era um dos ruídos em meio ao
escrita ou um formato pré-definido, este texto se constitui maravilhamento: uma das aberturas que se anunciavam.
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
ele mesmo como uma experiência e um experimento, na Por muito tempo, essa proximidade formal era uma
expectativa de exercitar outras formas de escrita e com- maneira de aceitação ou de inserção de estudos que se
preender, no caso de Serres, quais elementos permitem preocupavam com novos temas, mas que não assumiam
que seu texto filosófico seja ao mesmo tempo rigoroso e as consequências desta escolha em todas as suas dimen-
vívido, denso conceitualmente e composto por uma plê- sões. Eu mesmo, apesar de me preocupar com uma ado-
iade de experiências e imagens. ção mais completa da fenomenologia em meu fazer, só
O que se desvela não é apenas a necessidade do sen- pude enfrentar tal desafio de forma mais direta bem re-
tido vocativo do texto (o que o permite expressar e com- centemente.
partilhar experiências), como a demanda por uma her- Michel Serres certamente não foi o primeiro autor a
menêutica que torne o texto potente e prenhe de signifi- me despertar este desejo por fazer da tessitura do texto
cados. Nesta hermenêutica está também a sua potência um trabalho de artesão, criativo e heterodoxo, ficcional
como desvelador de sentidos, entrelaçando narrativa e e poético, sensível e profundo. Mas certamente ele é res-
experiência1. ponsável por um empurrão definitivo nesta busca por
assumir o enfrentamento do desafio da linguagem e da
mundanidade do pensamento, ao mesmo tempo.
2. Narrativas e experiências Mas que força podem ter experiências particulares pa-
ra a elucidação de temas e problemas complexos e contem-
Quando me tornei aluno de pós-graduação, na Uni- porâneos? E como trazê-las de forma a não serem anedo-
camp, era muito jovem e tinha uma vontade infinita de tas, mas potências que revelam o sentido dos fenômenos?
conhecer. Interessava-me por tudo em uma intensidade Esta talvez seja uma das grandes potências da feno-
infinita, especialmente livros, lugares e pessoas. Tinha menologia e nós, por vezes, a enfraquecemos com racio-
consciência plena de tudo que me faltava conhecer, e nalismos. Por que partir de uma explicação teórica e não
uma vontade inesgotável de saciá-la. de uma narrativa?
Serres é um filósofo que primou por não se prender
a uma forma de pensamento. Para ele, a filiação rígida a
Embora não seja foco deste artigo, Paul Ricouer abre, em Tempo e
1
sistemas de pensar, como as disciplinas ou a filosofia,
narrativa, um dos caminhos possíveis para refletir sobre a escrita
conduziam a conflitos e tensões que eram contraprodu-
fenomenológica e suas relações com a experiência, o tempo e a me-
mória (RICOEUR, 2010), o que pretendo refletir em outros escritos. centes do ponto de vista humano e social (Serres, 1996).
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 140-147, jul-dez, 2016 142
O Imperativo Estético Vocativo na Escrita Fenomenológica
E é justamente nesta postura que reside sua potência em No caso da evocação, no entanto, o movimento é o
trazer a questão dos sentidos e da sensibilidade de forma de trazer para fora no sentido de recriar, reverberando
radical e de construir seus textos em diferentes formatos, os sentidos a partir da própria escrita. Implica utilizar a
com mitos, narrativas (ficcionais ou não), pinturas, refle- linguagem para reordenar sentidos, sendo fundamental a
xões e pensamentos. Van Manem (2014, p. 164-165) afir- imaginação. No segundo trecho trazido da obra de Serres,
ma que Serres executa, em sua escrita, uma verdadeira temos a evocação do sentido de Atlas, reinventando-o,
análise fenomenológica. “A análise é o escrever”.2 Isso se assim como o de Geografia. É um trazer à proximidade,
deve, sobretudo, ao caráter vocativo do texto de Serres, como afirma Van Manen (2014), convocando-a, chaman-
como podemos apreciar neste trecho de Os cinco sentidos: do-a manifestar-se.
filosofia dos corpos misturados, no qual escreve sobre as
relações entre ciências humanas e exatas. Eis agora a questão fundamental de qualquer atlas: de
que é que se deve traçar um mapa? Resposta eviden-
Deus não engana nem trapaceia. Os objetos, nas ciên- te: dos seres, dos corpos, das coisas... que não conse-
cias exatas, ficam estáveis. O homem engana e trapaceia, guimos conceber de outro modo. Por que é que, com
mais e mais que desaparece, às vezes, como Zeus sob efeito, nunca desenhamos as órbitas dos planetas, por
a pele do touro, como Hera sob o ferrão do moscardo. exemplo? Porque uma lei universal prevê as suas posi-
Ora, aquele que trapaceia e engana faz isto porque quer ções; de que é que nos serviria um roteiro neste caso de
ganhar. Portanto, o primeiro atributo de Deus consiste movimentos e situações previsíveis? Basta deduzi-los
em não fazer caso de ganhar. da sua lei. Pelo contrário, não há qualquer regra que
Afastem-se das apostas, desdenhem a vitória ou a per- prescreva o recorte dos rios, o relevo das paisagens, a
da, entrarão em ciência, em observação, em descober- planta da aldeia onde nascemos, o perfil do nariz ou
ta, em pensamento. (Serres, 2001, p. 39) a impressão digital do polegar... Aí estão singularida-
des, identidades e indivíduos, infinitamente afastados
Serres evoca os sentidos a partir tanto de elementos de qualquer lei; trata-se de existência, e não de razão,
da mitologia quanto da situação que cria, ao considerar afirmavam os filósofos.
as ciências humanas como enganadores e apostadores. Desde então, as simulações a que chamamos retratos,
Vocação, evocação, reinvocação, invocação, convoca- reproduções ou representações passaram, durante
ção e provocação são métodos de escrita mencionados muito tempo, por atrasos para os princípios, impos-
143 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 140-147, jul-dez, 2016
Eduardo J. M. Júnior
Esta evocação de sentidos o situa para dele emanar a sentir, ele precisava que o leitor, ao acompanhar seu es-
força da evocação. A forma deste Atlas, evocado, não é o crito, sentisse propriamente isso.
de uma representação pois, enquanto evocação, é o pró- No trecho a seguir lemos um pequeno fragmento do
prio sentido situado que se apresenta de forma autêntica, início do livro, o qual considero brilhante, no qual Ser-
no contexto da evocação. res consegue realizar tudo isso de forma vívida, permi-
A invocação, compreende a intensificação dos sen- tindo a intuição do cerne de seu livro, misturando evo-
tidos e da sensibilidade. O termo traz o sentido de con- cação, reinvocação, invocação, convocação e provocação
vocar, implorar, conjurar, como uma encantação. É mui- em uma escrita poética, verossímil e de profunda resso-
to utilizado em linguagem poética, como em Bachelard nância no leitor.
(2003, 2009) e seus estudos sobre a poética do espaço e
do devaneio. A invocação tem o objetivo de intensificar o Saber inútil até que chegue o verdadeiro dia de fú-
sentido de forma a produzir uma forte sensação no leitor. ria; veio, sem aviso, num dia de inverno, no mar. O
Esta sensação, que pode ser uma imagem criada durante a fogo roncava como um trovão aterrador, num minuto
leitura, é a potência de revelação do sentido do fenômeno. fecharam-se as portas estanques. Eu admirava os que
A convocação é o método no qual o texto utiliza capa- se atiravam, sem pensar, pelas escadas, nos alçapões.
cidade de fazer aparecer os sentidos a partir dos sentidos Ouvi muito ruído e já não tenho lembrança.
empáticos, envolvendo uma cumplicidade que convoca De repente, estou só. O que aconteceu? No comparti-
o leitor a partilhar o sentido e o texto, com sentido ético mento hermético, o calor insuportável faz desmaiar.
que convoca à ação. É preciso sair. A porta, atrás, bloqueada definitiva-
Por fim, o método provocativo é aquele que por co- mente, volantes e alavancas em posição de estan-
locar em cheque as compreensões do leitor, fazendo-o que, trancadas pelo outro lado. Sufoco sob a fumaça
refletir e duvidar de suas próprias compreensões, cria a espessa, deitado no chão movediço, sacudido pelas
possibilidade de uma epifania, que de repente explode pancadas de mar. Então, a vigia, só resta a pequena
durante a leitura (Van Manen, 2014). Provocação carrega vigia. Levantar-me sem respirar, tentar abrir os ferro-
o sentido de desafiar, levar adiante, incitar, o que implica lhos enferrujados que a interditam. Resistem, foram
que estes textos produzem ações. pouco usados, uma ou duas vezes, com certeza, des-
Em todos os casos, a força de qualquer destes méto- de o lançamento do casco. Não cedem. Deitar de novo
dos está na experiência, não em um repertório de repre- para recobrar fôlego, rente ao chão. O tempo torna-se
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
sentações. O texto será tanto mais vocativo quanto tiver mais ameaçador como se a onda recuasse. Levantar
a presença do autor, no sentido de fazer-se esta voz em outra vez, em estado de apnéia, e tentar outra vez sol-
diálogo. Os diferentes métodos não são excludentes, é tar os ferrolhos que parecem ceder lentamente. Três,
claro, e serão mais adequados a depender do próprio fe- quatro vezes, não lembro mais, volto outras tantas ao
nômeno a ser desvelado. Assim, uma escrita vocativa é chão, maxilares crispados, músculos paralisados, in-
pensante e sensível ao mesmo tempo, sempre fundada sisto, insisto, a janela fechada. Bruscamente se abre.
na experiência. [...]
Michel Serres aliou de forma exemplar estas formas Fiquei lá dentro, imóvel, vibrando, pregado, gesticu-
narrativas. Seu texto é vivo, pulsante, envolvendo seu lei- lando em torno da coleira fixa que me comprimia, por
tor para sentir, sendo este seu caminho para o pensar. Em tempo bastante longo para meditar, não, para que meu
Os cinco sentidos: filosofia dos corpos misturados, Serres corpo aprendesse para sempre a dizer “eu” em toda
(2001) enfrenta um tema difícil de exprimir em palavras: verdade. De verdade, sem nunca poder se enganar.
a potência dos sentidos enquanto mistura (sinestesia), o Sem erro, convictamente, porque esta meditação som-
que implica a mistura também dos elementos (homem- bria e lenta, fulminante, decidia, simplesmente, a vida.
natureza) e dos conhecimentos (ciências humanas-ciên- Estou dentro, queimado, carbonizado, só a cabeça
cias exatas). O cerne de seu pensamento está no corpo: de fora, gelada, tiritante, ofuscada. Estou dentro, ex-
um corpo-vivo que pensa e sente, que é expressão pró- pulso, excluído, a cabeça e o braço, um ombro só, o
pria desta indefinição entre dentro e fora, entre visão e esquerdo primeiro, estão de fora, na tempestade de-
os outros sentidos e, sobretudo, expressão e uma mistura sencadeada. Dentro, no meio do fogo louco que se
essencial que nos constitui como humanos. expande, o todo preso em uma coleira de angústia, a
Não poderia ter tema mais difícil de expressar-se em cabeça e o segundo ombro a custo desprendido saem,
um texto. Nossa linguagem fragmenta e separa dentro de entregues à tormenta. Não estou salvo, ainda nem saí,
fora, corpo de mente, sentir de pensar. Mesmo ao tentar aprisionado ainda, todo em um único lado da janela,
escrever a não dissocialidade, comumente compomos fra- o aro de cobre aberto no flanco do navio incendiado
ses que envolvem dois polos, como a anterior. não tem a dimensão do círculo comprimido do tórax.
Mais do que isso, Serres estava enfrentando o proble- Ainda dentro, mesmo que a cabeça e os dois ombros
ma da sensação: mais do que entender a mistura, como apontem no inverno. A vida comprime o peito à bei-
conceito racional, e o corpo como este ente do pensar e ra do esmagamento. É isto, vou morrer. Não consigo
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 140-147, jul-dez, 2016 144
O Imperativo Estético Vocativo na Escrita Fenomenológica
apoiar o pé em lugar algum, atrás, no inferno da quei- que permite, na escrita-leitura, como ato único, o pensar-
madura onde ainda estou, os braços colados ao corpo sentir o fenômeno.
não servem para nada, fiapo de palha enfiado num Michel Serres o fez de forma potente, trazendo assim
buraco, sem poder avançar, sem esperança de voltar não apenas inspiração para pensar uma escrita fenomeno-
atrás, vou morrer de sufocamento. Ou não respirar na lógica, justamente por sua busca pela experiência e pelo
fumaça, ou não respirar ante o vento gelado, ou não sentir, fazendo de seu texto algo pulsante, vivificado por
respirar no meio da coleira enferrujada, não consigo uma escrita vocativa por excelência. Com isso a própria
sequer decidir. leitura se torna uma experiência de desvelamento, uma
Então, uma pancada violenta de mar, mais oblíqua e abertura de manifestação e compreensão.
seca, faz o aro passar por minhas costelas flutuantes. Uma ciência geográfica que seja fenomenológica de-
Sim, Deus seja louvado, estou fora. Inspiro o ar frio verá enfrentar os desafios da linguagem e a busca por
até desmaiar. Horror, o mar, mais feroz, expõe o fundo uma escrita vocativa, na qual a circunstancialidade do
do barco a uma ressaca descontrolada. Ele se desequi- ser-no-mundo seja a potência criadora e doadora de sen-
libra pelo outro bordo, e cá estou eu, enfiado de novo tido, abrindo-se para o compartilhamento de experiên-
até o meio, no círculo de ferro, estou dentro, ainda. cias e a possibilidade da própria leitura converter-se em
Dir-se-ia que o casco passava sobre montes de pedras. uma experiência.
Uma pancada de um bordo me libertava, uma panca- Isso não significa descartar a escrita moderna, nem
da, de outro bordo, me reaprisionava. abrir mão da razão. Muitos veem neste imperativo esté-
Eu estava dentro, eu estava fora. tico uma guinada unilateral para a poética, como se esta
Quem, eu? (Serres, 2001, p. 12-13) fosse a única forma de escrita possível para a fenomeno-
logia. Na realidade, mais do que o poético, que se cons-
Dentro, fora, dentro: como saber a diferença? titui como uma das vias para a qual apontam muitos fe-
nomenólogos (Dufrenne, 1969; Nunes, 1986; 1999; Bosi,
2008), o caminho que vislumbro na busca por uma es-
3. O imperativo estético vocativo como hermenêutica crita fenomenológica, especialmente no contexto da geo-
grafia, é a de um texto que esteja na proximidade com a
É um porto de chegada comum aos que trilham o pen- mundanidade, ou seja, com a própria geograficidade, tal
samento fenomenológico a defesa da poética e da arte co- como compreendida por Dardel (2011). A questão não é
145 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 140-147, jul-dez, 2016
Eduardo J. M. Júnior
se compreender tal pensamento como ultrapassagem da Tais evocações não são maiores nem menores daque-
própria modernidade. las que sinto cotidianamente ao caminhar pelas ruas da
O imperativo estético vocativo, portanto, pode ser cidade em que vivo ou ao viajar para outro continente.
compreendido nestes termos: uma ultrapassagem da escri- Contemplar uma elevação nos limites da cidade ou sen-
ta proposta pela ciência moderna, como aprofundamento tir o calor asfáltico-poluído-seco-denso da urbanidade me
e ressignificação, mas não como superação que implica o permitem, igualmente, este pensar-sentido, cuja estética
descarte de toda a tradição. Trata-se de um caminho para cotidiana tem uma potência deflagradora.
que o texto possibilite, ele mesmo, a compreensão herme- O processo degenerativo, portanto, continua. Penso ser
nêutica da facticidade, aproximando-o mais dos sentidos ele a razão da própria busca, e uma forma de manter-se
experienciados e vividos, permitindo assim aprofundar alerta aos riscos da atitude natural. Depurar e despensar
sua potência desveladora. Os métodos vocativos serão pode degenerar, mas com isso se abre a possibilidade da
tanto mais eficientes quanto forem fundados ou rever- reinvocação.
berarem experiências: nesta facticidade é que reside sua
potência hermenêutica e desveladora.
Assim, o desafio da linguagem tal como aqui formu- Referências
lado, não é apenas uma questão de forma e de estética:
trata-se sobretudo de um problema epistemológico que se Bachelard, G. (2003). A poética do espaço. São Paulo: Martins
refere à própria hermenêutica e à possibilidade de compre- Fontes.
ensão dos fenômenos geográficos tal como são desvelados Bachelard, G. (2009). A poética do devaneio (A. P. Danesi, Trad.)
na experiência. A autointerpretação da facticidade, que São Paulo: Martins Fontes.
Heidegger (2013) chama atenção, se refere à nossa pró-
pria mundanidade, o que nos provoca ao desafio de uma Bernal, D. A. (2015). A rosa do deserto: hidropoéticas do lugar no
habitar urbano contemporâneo. Dissertação (Mestrado em
escrita que seja, ela própria, também mergulhada nesta
Geografia) - Universidade Estadual de Campinas.
mundanidade. A possibilidade da compreensão também
se dá, ao final, na escrita-leitura. Besse, J. (2006). Ver a terra: seis estudos sobre geografia e paisa-
Este desafio está posto a todos os que buscam na fe- gem. (V. Bartalini,Trad.) São Paulo: Perspectiva.
nomenologia inspiração ou orientação para o desafiador
Bosi, A. (2008). O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cia. Das
do conhecimento. Este texto, no entanto, está mais pró- Letras.
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 140-147, jul-dez, 2016 146
O Imperativo Estético Vocativo na Escrita Fenomenológica
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147 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 140-147, jul-dez, 2016
Lúcia H. B. Gratão
Resumo: Bachelard sonha – e nos convida a sonhar. Esta é a projeção que nos incita ao debate inscrito neste texto em torno da
fenomenologia nos estudos geográficos. Bachelard sonha e nos arrasta para o envolvente “espaço onírico” que nos desvela a
essência do poético. O filósofo da ciência expõe seu lado noturno e nos seduz pelo universo das imagens. Este O universo noturno
bachelardiano é sedutor quando nos confere o direito de sonhar em geografia pela projeção da fenomenologia da imaginação.
Uma fenomenologia que se baseia na imaginação enquanto criadora e sempre voltada para o futuro: o porvir que está além do já-
pensado. Por esta via de projeção procura-se refletir o sentido desta força que nos arrasta para o envolvente “espaço da imaginação
geográfica” atraída pela contemplação da paisagem e do lugar à luz noturna de Bachelard.
Palavras-chave: Bachelard; Fenomenologia; Imaginação geográfica.
Resumen: Bachelard sueña – y nos invita a soñar. Esta es la proyección que nos anima a debatir este texto inscrito alrededor de la
fenomenología en los estudios geográficos. Bachelard sueña y nos arrastre a lo circundante “espacio onírico” revelando a nosotros
la esencia de la poesía. El filósofo de la ciencia expone su lado nocturno y nos invita en el universo de imágenes. Este El universo
de noche bachelardiano es seductor cuando nos da el derecho a soñar en Geografía por la proyección de la fenomenología de la
imaginación. Una fenomenología basada en imaginación como creadora y siempre enfocado en el futuro: el futuro que está más
allá de lo ya-pensado. Esta ruta de proyección busca reflejar la dirección de esta fuerza que nos lleva a los alrededores de “el
espacio de la imaginación geográfica” atraído por la contemplación del paisaje y del lugar de la noche en Bachelard.
Palabras-clave: Bachelard; Fenomenología; Imaginación Geográfica.
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
Abstract: Bachelard dreams – and invites us to dream. This is the projection that incites us into the unscripted debate in this
communication around phenomenology in geographic studies. Bachelard dreams – and drags us into the involving “honiric
space” that shows us the essence of poetic. The science philosopher exposes his nocturne face and seduces us through the
universe of images. The bachelardian nocturne universe is seducer when giving us the right to dream in Geography by the
projection of imagination phenomenology. A phenomenology based on imagination as creator and always forward-looking: the
coming that is beyond the already – thought. By this projection’s way it is intended to reflect the sense of this force that drags us
into the involving “geographical imagination space” attracted by landscape and place contemplation through imagination.
Keywords: Bachelard; Phenomenology; Geographical Imagination.
1. Livros e olhos abertos para horizontes de sonhos: ginação. Esta seria um estudo do fenômeno da imagem
um despertar onírico poética quando a imagem emerge na consciência como
um produto da alma, do ser do homem tomado em sua
O geógrafo enquanto explorador de paisagens e luga- atualidade” (Bachelard, 1957/1988 b, p. 2). Sobre a “fe-
res, aos olhos da leitura e documentos, segue procuran- nomenologia da imaginação” projetada em “A poética do
do preencher os “espaços vazios” dos nossos “mapas de espaço”, alerta Bachelard:
sentimentos”. Esse mesmo geógrafo deve abrir os livros e
os olhos para novos horizontes. Na direção desses novos Um filósofo que formou todo o seu pensamento
horizontes segue ele, procurando projetar-se pelo universo atendo-se aos temas fundamentais da filosofia das
da imaginação, aquele universo que veio à luz com Gas- ciências, que seguiu o mais exatamente possível a
ton Bachelard (1884-1962), filósofo da “fenomenologia da linha do racionalismo ativo, a linha do racionalis-
imaginação” e, que considerou a imaginação como uma mo crescente da ciência contemporânea, deve es-
potência maior da natureza humana. quecer o seu saber, romper com todos os hábitos de
Por esta via de projeção buscamos então uma apro- pesquisas filosóficas, se quiser estudar os proble-
ximação fenomenológica das imagens apontando que mas propostos pela imaginação poética. (Bachelard,
“para esclarecer filosoficamente o problema da imagem 1960/1988 a, p. 1)
poética, é preciso chegar a uma fenomenologia da ima-
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 148-155, jul-dez, 2016 148
O Direito de Sonhar em Geografia – Projeção Bachelardiana
Frente a esta postura entendemos, segundo autor, que os livros que exprimem a juventude das imagens. Esse
a fenomenologia da imagem exige que ativemos a partici- desejo é natural. Esse prodígio, fácil. Pois lá em cima,
pação na imaginação “criante”. É esse impulso de imagi- no céu, não será o paraíso uma imensa biblioteca? Mas
nação que vislumbramos despertar na projeção deste ho- não basta receber, é preciso acolher. É preciso, dizem
rizonte de sonhos – um despertar onírico. “O fenomenólo- em uníssono o pedagogo e a dieteticista, “assimilar”
go pode despertar sua consciência poética a partir de mil [...] Antes de mais nada, é necessário um bom desejo
imagens que dormem nos livros” (Bachelard, 1960/1988 de comer, de beber e de ler. É preciso desejar ler mui-
a, p. 7), no sentido de despertar sonhadores, uma feno- to, ler mais, ler sempre. (Bachelard, 1960/1988a, p. 26)
menologia das imagens “criantes”; uma “fenomenologia”
que tende a restituir, mesmo num leitor modesto, a ação A esse enlevo, um novo impulso arrebata-nos pela
inovadora da linguagem poética. projeção bachelardiana: “Como penetrar na esfera poé-
É esta linguagem poética que estamos a reivindicar tica do nosso tempo?”. Pergunta o filósofo e, ele mesmo
pelo direito de sonhar em geografia. Como Bachelard, responde:
acreditamo-nos em determinar uma fenomenologia do
imaginário onde “a imaginação é colocada no seu lugar, Uma era de imaginação livre acaba de abrir-se. Em
no primeiro lugar, como princípio de excitação direta do toda parte as imagens invadem os ares, vão de um
devir psíquico. A imaginação tenta um futuro (Bachelard, mundo a outro, chamam ouvidos e olhos para sonhos
1960/1988 a, p. 8)”. E, à luz dessa projeção que “um mun- engrandecidos. Os poetas abundam, os grandes e os
do se forma no nosso devaneio, um mundo que é o nosso pequenos, os célebres e os obscuros, os que amamos
mundo. E esse mundo sonhado ensina-nos possibilidades e os que fascinam. Quem vive para a poesia deve ler
de engrandecimento de nosso ser nesse universo que é tudo. Quantas vezes, de uma simples brochura, jorrou
o nosso. Existe um futurismo em todo universo sonhado para mim a luz de uma imagem nova! Quando acei-
(Bachelard, 1960/1988 a, p. 8). tamos ser animados por imagens novas, descobrimos
Ah! Sonho sonhado em geografia! irisações nas imagens dos velhos livros. (Bachelard,
Bachelard, filósofo que ama os livros e declara o seu 1960/1988a, p. 25)
amor pela leitura. Na introdução de uma das suas obras
que trata sobre o devaneio, o sonhador autor faz uma Essa perspectiva traz à plena luz a tomada de consci-
instigante declaração diante do papel dos documentos e ência de um sujeito maravilhado pelas imagens poéticas
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Lúcia H. B. Gratão
e a “vertente noturna”, como o próprio autor expressa no 2. O espaço geográfico e a essência do poético
seguinte trecho da obra “Poética do devaneio”. Comenta
que: “Tarde demais conheci a tranquilidade de consci- Para Eric Dardel, o precursor da geografia fenomeno-
ência no trabalho alternado das imagens e dos conceitos, lógica, o conhecimento geográfico deve ter como obje-
duas tranquilidades de consciência que seria a do pleno to decifrar os signos ocultos da Terra, como ele próprio
dia e a que aceita o lado noturno da alma” (Bachelard, escreve: “O conhecimento geográfico tem por objeto es-
1960/1988a, p. 52). clarecer esses signos, isso que a Terra revela ao homem
A esse enlevo, gostaria de debruçar-me e apreciar sobre sua condição humana e seu destino. Não se trata,
com menos rapidez e mais cuidado sobre os livros ‘para inicialmente, de um atlas aberto diante de seus olhos,
não engolir’ páginas corridas, não lidas, não aprendidas é um apelo que vem do solo, da onda, da floresta, uma
e sentir o gosto e o prazer de saboreá-las. Pois, trata-se de oportunidade ou uma recusa, um poder, uma presença
uma leitura aprendiz – leitura que nos conduz ao encon- (Dardel, 1952/2011, p. 2)
tro com a realidade geográfica ao labor fenomenológico. Isso também é visto na leitura imaginante de Bache-
Por isso aqui, remetemos o convite à leitura de Bachelard lard que acaba por nos arrastar para o envolvente espaço
para acessarmos o horizonte de sonhos a que se procura geográfico e, que nos desvela a essência do poético em
projetar rumo ao direito de sonhar em geografia. geografia. Nesta perspectiva (en)levada e embevecida pe-
Ao longo das páginas desse texto seguiremos procu- las águas bachelardianas (Gratão, 2002), o geógrafo Dardel
rando (re)compor a geografia aos olhos sonhadores pela nos impulsiona pela sua escrita poético-fenomenológica:
leitura de Bachelard. Esta geografia imaginada, sonhada,
traçada pela escrita do geógrafo francês Eric Dardel, que Múltiplas são as modalidades sob as quais a realidade
se estende, se amplia e se projeta por tantos outros olha- geográfica conduz, através de símbolos ede suas ima-
res sonhadores e escritas geográficas. A escrita dos geó- gens, para além da matéria. A água, por exemplo, em
grafos Eric Dardel e Yi-Fu Tuan expressam e revelam for- uma função idealizante, aquela do espelho que am-
tes traços de influência bachelardianos seus estudos em plia, repete e enquadra. Nela o mundo se contempla
torno da relação de existência “Homem-Terra”, impressa e “tende à beleza” (Bachelard). Rio, lago ou mar, a su-
e expressa nas essências geográficas paisagem e lugar ins- perfície das águas presta homenagem ao universo e à
critas pelo ‘princípio’ de pertencimento e de afetividade poesia. A água não é somente o espelho com o qual a
na forma dos termos geograficidade (Dardel, 1952/2011) Terra se estende ao céu, às árvores, às montanhas. Ela
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
e topofilia (Tuan, 1961; 1974/1980). mistura as imagens que se levantam das profundezas
As escritas de pertencimento e sentimento topofílico e aquelas que se referem ao céu ou à costa. A intimi-
Homem-Terra, inscritas e impressas na expressão geogra- dade da substância líquida suaviza o dourado frio do
phia seduziram-me e fizeram despertar o meu olhar poé- reflexo, e cria um mundo de formas moventes que
tico-apaixonado pelas imagens da água através da leitura parecem viver sob o olhar. (Dardel, 1952/2011, p. 37)
da sua obra “A água e os sonhos” (Bachelard, 1942/1989).
Essa obra é que nos fez (en)levar a enveredar-nos como A escrita de Dardel é traçada por um forte pulso de
geógrafos pela poética do rio. Essa leitura é que enlevou entusiasmo, apelo e encantamento poético – força que
nossa a alma à entrega ao universo poético do poeta. E, emana da Terra (geo-graphia). Uma leitura apaixonada à
nesse sentido que a língua dos poetas deve ser aprendida luz de Bachelard, pois, revela-se carregada de sentidos e
diretamente, precisamente como a linguagem das almas. valores humanos. Uma escrita impregnada de vida. Uma
“Assim em nosso modesto estudo das mais simples ima- escrita de existência,
gens, nossa ambição filosófica é grande: provar que o de-
vaneio nos dá o mundo de uma alma, que uma imagem [...] uma geografia em ato, uma vontade intrépida de
poética testemunha uma alma que descobre o seu mun- correr o mundo, de frequentar os mares, de explorar
do, o mundo onde ela gostaria de viver, onde ela é digna os continentes. Conhecer o desconhecido, atingir o
de viver” (Bachelard, 1960/1988a, p. 15). inacessível, a inquietude geográfica precede e sus-
Foi essa a nossa ambição geográfica e o nosso encanta- tenta a ciência objetiva. Amor ao solo natal ou busca
mento pelo poético. Foi o que nos seduziu e nos ensinou por novos ambientes, uma relação concreta liga o ho-
Bachelard pelas bordas da geografia humanista (Holzer, mem à Terra, uma geograficidade (géographicité) do
1992). Foi também embalada por esse enlevo foi traçada homem como modo de sua existência e de seu destino.
a escrita de “A poética d’ “O Rio” – Araguaia!” (Gratão, (Dardel, 1952/2011, p. 1-2)
2002). Uma escrita encantada pelas águas à luz da ima-
ginação poética. Uma escrita geográfica à luz bachelar- A escrita de Yi-Fu Tuan também sobre influência de
diana, que procuramos deslumbrar e projetar nesse texto Bachelard está impressa no seu texto poético, original-
pelo direito de sonhar. mente escrito em inglês, intitulado “Topophilia or su-
dden encount erwith Nature” (Tuan, 1961). Nesse tex-
to, Tuan comenta longamente três obras de Bachelard,
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 148-155, jul-dez, 2016 150
O Direito de Sonhar em Geografia – Projeção Bachelardiana
originalmente escritas em francês, que para ele são exem- do os poetas, a própria fenomenologia da percepção
plos do estudo da topofilia: “La terre et los rêveries de deve ceder lugar à fenomenologia da imaginação cria-
la volonté” (Bachelard, 1948), “La poétique de l’espace” dora. (Bachelard, 1957/1988b, p. 14)
(Bachelard, 1957) e “L’eau et lês revês” (Bachelard, 1942).
A sua escrita é uma verdadeira declaração do amor à Na- Bachelard sonha e nos convida a sonhar e, nessa pro-
tureza expresso pela topofilia, esta afeição especial aos jeção nos (en)volve e nos (en)leva pelo campo geográfico
lugares. Sobre o envolvimento do geógrafo com da topo- permeado por imagens e pela imaginação geográfica, co-
filia, Tuan escreve: meçando “o itinerário pelos países do sonho e da fantasia,
amorosamente atento às florações artísticas desses terri-
Geógrafos, acho que podia dar tempo fora de suas fun- tórios” (Pessanha, 1994, p. x). Nesse itinerário de proje-
ções práticas e juntar aos poetas retratando o esplen- ção imaginária Bachelard nos arrasta para o (en)volvente
dor da terra. Isso não significa que devemos começar “espaço onírico” onde se encontra a “essência do poético”.
a descrever paisagens e rígidos planos em alguma data O filósofo da ciência expõe seu lado noturno e nos seduz
futura, quando deve abranger toda a terra com estes pelo universo das imagens. “[...] inovador da concepção
retratos. Não é necessário planejar, certamente não de imaginação, explorador do devaneio, exímio mergu-
tem nenhuma obrigação para descrever qualquer área lhador nas profundezas abissais da arte, amante da poe-
que não temos um carinho especial ou um fascínio sia [...]” (Pessanha, 1994, p. vi).
inexplicável. Geógrafos têm vantagem sobre arquite- O universo noturno de Bachelard é sedutor quando
tos, urbanistas e outras pessoas de vida selvagem que nos confere esse direito de sonhar em geografia pela pro-
não corresponde a julgar imediatamente. Como poetas jeção da “fenomenologia da imaginação” (en)levando-nos
e artistas, têm maior prazer em saborear os frutos da aos vislumbres da poética geográfica (Gratão, 2002; 2006)
terra. (Tuan, 1961, p. 32)1 ou geografia de sonho (Dardel, 1952/2011). Projeção da
“fenomenologia” que se baseia na imaginação enquanto
Unir-se aos artistas e poetas para retratar o esplendor criadora e sempre voltada para o futuro: o por-vir que es-
da Terra, expressão de motivação e impulso para despertar tá além do já-pensado. Via de projeção que procura refle-
e conduzir o geógrafo a aventurar-se pelo campo da feno- tir o sentido dessa força criante que aponta para o campo
menologia através da imaginação poética, o que se enle- da imaginação geográfica, despertando e atraindo àqueles
va a leitura de Bachelard. Aventura geográfica explorada que têm comprometimento com a concretude das coisas
and join – at y he poets in portraying the splendor of the earth. I do 1952/2011, p. 3).
not mean that we should all start describing landscapes, and grimly Nesse labor fenomenológico o que está o sonhador-
plan on some future date when the entire earth will be covered wi- geógrafo a fazer, em obediência apenas ao próprio desejo
th such portraits. We need no plan, we certinly have no obligation
to describe any area other than the one for which we have a special
diante da força das imagens? Retirando da “bagagem” o
fondness or inexplicable fascination. Geographers have na advanta- peso do saber “diurno” e nela a depositar a leveza “no-
ge over architects, town planners and wildlife conpeople we not cal- turna” de apreensão do imaginário poético, em sinal de
led upon to give immediate judgment. Like poets and arists, we have
despojamento, de renúncia ao peso das regras cientificis-
greater leisure to taste the various fruits of the earth” (Tuan, 1961,
p. 32). tas, à causalidade, à insatisfação geometrizante do espaço
151 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 148-155, jul-dez, 2016
Lúcia H. B. Gratão
geográfico? E, então, seduzido pela satisfação de sentidos acostumados a considerar o espaço geográfico “fora de
e da explosão de imagens, segue ele aventurando-se pelo qualquer tentativa de interpretação pessoal” (Bachelard,
sedutor e (in)certo mundo da imaginação criadora? Essas 1957/1988b, p. 3). Pelo campo da geografia enveredando-se
são indagações que instigam o debate no campo da ge- e deixando-se embrenhar pelas leituras de Bachelard,
ografia por essa vertente filosófica do pensador francês. passamos por uma grande “repercussão psíquica” e
Esse filósofo camponês que nasceu no solo da Champag- encontramos a transubjetividade do saber geográfico.
ne, em 1884, e somente se transferiu para Paris em 1940, Observamos, então, que essa transubjetividade não po-
convidado a ministrar cursos na Sorbonne, morando num dia ser compreendida em sua essência, apenas pelos há-
apartamento da rua LaMontagne-Sainte-Geneviève, em bitos das referências objetivas. Só a fenomenologia pode-
seu “exílio” citadino. “De “estilo filosófico rural”, como ria ajudar-nos a reconstituir a subjetividade geográfica.
reconhece Canguilhem (conforme citado por Bachelard, Para isso, é necessário associar sistematicamente o ato da
1970/1994), distante dos padrões acadêmicos convencio- consciência criadora – consciência sonhadora.
nais, longe dos modismos sorbonnianos, embebido de Nessa projeção geográfica a exigência fenomenológi-
experiências colhidas em direito e apaixonado convívio ca está em apreender o próprio ser de sua originalidade
com a natureza – experiências que fazem de Bachelard e em beneficiar-se, assim, da insigne produtividade psí-
também um filósofo da natureza enquanto paisagem” quica que é a imaginação.
(Pessanha, 1994, p. vi).
Desse mundo-vida, mundo-da-vida, vida-vivida brota A imaginação a princípio é um fator de imprudência
a “fenomenologia da imaginação” na travessia da vertente que nos afasta das pesadas estabilidades. [...] certos
diurna para a vertente noturna e, neste percurso (en)leva devaneios poéticos são hipóteses de vidas que alargam
os geógrafos que se deixam seduzir e encantar pela ver- a nossa vida dando-nos confiança no universo pelo
tente noturna desta via epistemológica. A sedução e o en- devaneio. Um mundo se forma no nosso devaneio,
cantamento por essa vertente bachelardiana que legitima um mundo que é o nosso mundo. E esse mundo so-
filosoficamente o direito ao devaneio é nos estimula a in- nhado ensina-nos possibilidades de engrandecimen-
vestigar sua contribuição no campo da geografia fenome- to de nosso ser nesse universo que é o nosso. Existe
nológica permeando, especialmente, pela paisagem e pelo um futurismo em todo universo sonhado. (Bachelard,
lugar. Aqui, contemplados como uma trama de entrelaça- 1960/1988a, p. 8)
mentos de sentidos e encantação poética, permitindo-se
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
vaguear entre as veredas da imaginação nesse universo Nesse contexto aqui, poderíamos até dizer como dis-
de imagens, devaneio e sonho. Como alerta Bachelard se Bachelard que a própria fenomenologia da percepção
(1957/1988b, p. 19): “O espaço percebido pela imaginação deve ceder lugar à “fenomenologia da imaginação” cria-
não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração dora. O conhecimento do mundo real exige investigações
e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido. E vivido fenomenológicas complexas. E, então, afirma: “E foi as-
não em sua positividade, mas com todas as parcialidades sim que viemos a pensar: é com o devaneio que se deve
da imaginação”. Ainda, completa o filósofo das imagens aprender a fenomenologia” (Bachelard, 1960/1988a, p. 14).
(poéticas): “Mas as imagens não aceitam ideias tranqui- A “fenomenologia do espaço” exige que ativemos a ima-
las, nem sobretudo ideias definitivas. Incessantemente a ginação criante-dinâmica, já afirmara também o filósofo.
imaginação imagina e se enriquece com novas imagens. Para além do contrassenso em que se incorre com frequ-
É essa riqueza do ser imaginado que gostaríamos de ex- ência, lembremos que a fenomenologia não é uma descri-
plorar” (Bachelard, 1957/1988b, p. 19). É essa riqueza do ção empírica dos fenômenos. Descrever empiricamente
ser imaginado que se busca explorar pelo campo da ima- seria uma subserviência ao objeto.
ginação geográfica. Se o geógrafo enquanto explorador de paisagens e lu-
A imaginação é um além psicológico. Ela assume o as- gares segue procurando preencher os “espaços vazios”
pecto de um psiquismo precursor que projeta o seu ser. dos nossos “sentimentos”, a leitura de Bachelard tem
A postura fenomenológica leva-nos a tentar a comunica- aqui a contribuição de conduzir o geógrafo a se projetar
ção com a consciência “criante”. Como revelou o próprio pelo mundo maravilhoso das imagens, aventurando-se
Bachelard: “E foi assim que escolhi a “fenomenologia” pelo espaço da fenomenologia rumo à fenomenologia da
na esperança de reexaminar com um olhar novo as ima- imaginação. Por este espaço se aventurando, descobrin-
gens fielmente amadas, tão solidamente fixadas na minha do e chegando ao campo da imaginação geográfica. Em
memória que não sei se estou a recordar ou a imaginar (con)fluência com os dois grandes nomes da geografia hu-
quando as reencontro em meus devaneios” (Bachelard, manista já destacados, Eric Dardel e Yi-Fu Tuan, encon-
1960/1988a, p. 2). tram-se outros nomes que por outros percursos e escritas
Como para Bachelard talvez nos perguntem também, têm deslumbrado esse campo de estudo, tais como Wri-
por que modificando o nosso ponto de vista anterior, ght (1947); Tuan (1961; 1974/1980; 1990); Prince (1961;
buscamos agora uma determinação fenomenológica na 1971); Lowenthal (1982); Lowenthal e Prince (1964);
geografia. Fiel aos nossos hábitos, estávamos também, Dardel (1952/2011); Holzer (1992) que influenciaram
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 148-155, jul-dez, 2016 152
O Direito de Sonhar em Geografia – Projeção Bachelardiana
profundamente nossas pesquisas-poéticas (Gratão, 2002; vertente de exploração e escavação fenomenológica. Por
2006; 2010). essa vertente pressente-se a relevante contribuição como
A imaginação nos conduz a lugares inacessíveis que outro modo de fazer geografia. Dardel ousou, sonhou, es-
por outras maneiras de exploração geográfica não seriam creveu e projetou essa geografia vivida em atos pela ex-
alcançados. O geógrafo da imaginação pode acessar ou- periência de um ser-onírico. Um novo olhar geográfico se
tros horizontes viajando pelo mundo das imagens pro- projeta rumo a uma geografia de sonho, como ele assim
curando encontrar e desvelar imagens geográficas, sen- escreveu: “[...] a geografia envolve e penetra os sentidos
do que para ter esse prazer da exploração é preciso sair de doçura e de luz. Continuando nossa exploração das
do porto seguro da objetividade “diurna” e viajar pe- expressões geográficas, chegamos, pelas vias do imaginá-
lo misterioso mundo da subjetividade “noturna” à luz rio, a uma geografia de sonho” (Dardel, 1952/2011, p. 5).
imaginação bachelardiana. Aqui, pressente-se a magia A expressão de Dardel originalmente escrita em francês
do direito de sonhar que inspirou a geografia de sonho (géographie de revê), é sedutora e instigante e, ao mesmo
de Eric Dardel na sua geografia fenomenológica. Uma tempo, traz e repercute uma sonoridade profunda da lin-
geografia traçada e vivida em atos fundada pela geogra- guagem poética.
ficidade e permeada pela poeticidade. Essa amálgama Do desvelamento poético o geógrafo da imaginação nos
geográfica congrega geógrafos que sonham e se deixam impulsiona e nos encoraja a transitar e a transviar por es-
arrastar para o envolvente campo da imaginação geográ- se campo geográfico que se abre para um mundo que é o
fica (Gratão, 2002; 2006; 2010). Diante dessa projeção nosso mundo. Uma abertura para um mundo belo, para
onírica vislumbram-se caminhos possíveis no campo mundos belos. Um mundo do eu sonhador. Retornando
sonhado da geografia. a Bachelard (1960/1988a, p. 8): “E esse mundo sonhado
ensina-nos possibilidades de engrandecimento de nosso
ser nesse universo que é o nosso”. Possibilidades de en-
Considerações finais: Nosso sonho! Eu sonhadora de grandecimento de nosso estar-no-mundo. Geógrafo so-
mundos nhador? Geógrafo que sonha?
É Bachelard que nos encoraja a projetarmos nesse uni-
Como nos projetar para o envolvente espaço onírico? verso quando nos mostra as possibilidades de nos libertar
Como acessar o campo da imaginação geográfica? Per- da função do real:
guntas que muito nos têm inquietado e que nos vêm des-
153 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 148-155, jul-dez, 2016
Lúcia H. B. Gratão
1992). Bachelard propicia o entendimento da geografia geografia a geograficidade, Bachelard traz a poeticidade.
feita por Dardel a qual despertou e conduziu outros ex- Desse entrelaçamento do encontro da ciência com a arte
ploradores de sonhos. Um deslocamento de sujeitos que surge e funda-se a poética geográfica. Bachelard seduz o
se estabelece pela imaginação projetada por este filóso- geógrafo que se aventura pelo campo da imaginação dia-
fo camponês “exilado” em Paris, que envolto por raios logando com autores, atores, artistas, poetas, romancistas,
noturnos vem iluminar e proporcionar o encontro de musicistas; caminhantes, viajantes. Exploradores que vis-
geógrafos com artistas e poetas. Geógrafos-explorado- lumbrando o mundo das imagens passam ao deslumbra-
res de imagens que ao sonhar despertam, vislumbram e mento da imaginação poética, e, nesse deslocamento se-
deslumbram novos campos de ação pela imaginAÇÃO! guem enveredando-se pelo universo onírico embrenhan-
Transposição possível na geografia que se faz pelo uni- do-se no mundo da arte, da fantasia, da criação. Mundo
verso da arte, da fantasia, da criação. Essa geografia que fascinante para o geógrafo sonhador.
se permite fazer – e que se faz – à luz bachelardiana. Embrenhar-se do pensamento bachelardiano é estar
“A linguagem do geógrafo sem esforço transforma-se na aberto para mudanças. “E quem é que não tem necessi-
do poeta. Linguagem direta, transparente, que “fala” dade de libertar-se de preconceitos, do mau costume, da
sem dificuldade à imaginação, bem melhor, sem dúvida, preguiça intelectual, da desmotivação cultural, do confor-
que o discurso “objetivo” do erudito, porque ela trans- mismo educacional?” (Silva, 1999, p. 3). A esta abertura
creve fielmente o “texto” traçado sobre o solo” (Dardel, para mudança, permito-me encerrar esse texto com uma
1952/2011, p. 3). transcrição da leitura de Bachelard sobre o direito de so-
A luz projetada de Bachelard ajuda a decifrar a es- nhar, feita pelo também filósofo, José Américo Pessanha.
crita da Terra, expressão fundante na escrita do geógrafo
humanista Eric Dardel. Dardel inspira os amantes da fe- Filósofo da solidão, mas também da felicidade, filósofo
nomenologia a redescobrir e a reconhecer a geografia por da solidão feliz – porque da felicidade da mão criadora
esta abordagem, fazendo desatar a imaginação dos que e da palavra feliz que laboram no instante solitário –,
diante dela – como diante de um oráculo ou de um qua- Bachelard desata, no território da imaginação, os úl-
dro de água de Monet, de um poema de Thiago de Mello timos nós que poderiam ainda prendê-lo a qualquer
ou de Manoel Barros, de um verso de Cora Coralina, de resquício intelectualista e redutivista. Deseja captar
Garcia Lorca ou de Pedro Casaldáliga ou de uma casca- o poético apenas poético, ter o prazer, somente o pra-
ta – entregam-se ao devaneio e à reflexão. Desse modo, zer, do poético. Por isso, acaba por fazer do devaneio
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
considerando a imaginação como uma potência maior da objeto e método. Aquela imprudência que é método
natureza humana. Por essa via de potência humana é que em filosofia adquire agora forma final e mais requin-
se vislumbra e se projeta a contribuição de Gaston Ba- tada. E, na imprudência do devaneio: a liberdade.
chelard como busca e ensinamento na geografia. Assim, E nessa liberdade: o pleno direito de sonhar. (Pessa-
nha, 1994, p. xxx)
A obra de Bachelard é busca e ensinamento. Busca,
na ciência, da riqueza do humano. Ao lado da razão,
nos textos do filósofo, a imaginação recupera seus di- Referências
reitos, como propulsora do saber científico: só conhe-
cemos, de modo rigoroso, diz Bachelard, aquilo com Bachelard, G. (1942). L’eau et les revês. Paris: Librarie José Corti.
que um dia, sonhamos. Por isso, seus textos de epis-
Bachelard, G. (1948). La terre et los rêveries de la volonté. Paris:
temologia são contraponteados por estudos que com- Librarie José Corti.
põem uma original abordagem poética do mundo. [...]
E o que Bachelard nos ensina? Rememora o caráter Bachelard, G. (1957). La poétique de l’espace. Paris: Presses
dinâmico, a historicidade fundamental do saber. [...] Universitaires de France.
É preciso pôr-se à escuta, dialogar e aprender com seus Bachelard, G. (1988a). A poética do devaneio (Antônio de Pádua
escritos, estar atento. Como ele, também buscamos. Danesi, Trad.) São Paulo: Martins Fontes. (Originalmente
(Cesar, 1989, p. 5-6) publicado em 1960).
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O Direito de Sonhar em Geografia – Projeção Bachelardiana
Bachelard, G. (1991). A terra e os devaneios da vontade – ensaio Tuan, Yi-Fu. (1990). Realism and fantasy in art, history and geo-
sobre a imaginação das forças (Maria Hermínia Galvão, graphy. Annals of the Association of American Geographers,
Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Originalmente publica- 80(3), 435-446.
do em 1948).
Tuan, Yi-Fu. (1983). Espaço e lugar: a perspectiva da experiên-
Bachelard, G. (1994). O direito de sonhar (José Américo Motta cia. (Livia de Oliveira, Trad.). São Paulo: DIFEL. (Original-
Pessanha, Trad.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. (Original- mente publicado em 1977).
mente publicado em 1970).
Wright, J. K. (1947). Terrae incognitae: the place of the imagi-
Cesar, C. M. (1989). Bachelard: ciência e poesia. São Paulo: nation in Geography. Annals of the Association of American
Paulinas. Geographers, 37(1), 1-15.
155 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 148-155, jul-dez, 2016
Lúcia H. B. Gratão
Resumo: Na década de 1970, os estudos em geografia passaram por uma virada humanista. Levando em consideração o contexto
dessa década, chama a atenção que, dentre as aproximações empreendidas com a filosofia, o pensamento francês pós-1960 não
tenha sido considerado. Este ensaio, portanto, abarca um desafio, qual seja o de pensar a geografia humanista em suas aberturas,
estreitando o diálogo com outras filosofias que também possam animá-la. No momento, apenas indicamos algumas notas de um
estudo em andamento cujo esforço centra-se em pensar a geografia humanista com Deleuze e Guattari para abordar o sujeito,
entendendo que “há toda uma geografia nas pessoas”. Acreditamos que tal aproximação teria implicação direta para a maneira de
se conceber a experiência e, por conseguinte, para o conceito de lugar.
Palavras-chave: Sujeito; Geografia humanista; Deleuze e Guattari.
Resumen: En la década de 1970, los estudios en geografía pasaron un turno humanista. Teniendo en cuenta el contexto de esa
década, hay que destacar que entre las apoximaciones adoptadas con la filosofía, el pensamiento francés posterior a 1960 no se ha
considerado. Por lo tanto, este ensayo abarca um desafío, que es pensar la geografía humanista en sus aberturas, intensificando el
diálogo con otras filosofías que también pueden animarla. Por el momento, sólo indicamos algunas notas de un estudio en curso
cuyo esfuerzo se centra en pensar la geografía humanista con Deleuze y Guattari para discutir el sujeto, entendiendo que “en las
personas hay toda uma geografia”. Creemos que este enfoque podría tener implicaciones directas para el modo de concebir la
experiencia y por tanto al concepto de lugar.
Palabras-clave: El sujeto; La geografía humanista; Deleuze y Guattari.
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
Abstract: In the 1970s, studies in geography went through a humanist turn. Taking into account the context of that decade, it is
noteworthy that among the approaches undertaken with the philosophy, the post-1960 French thought has not been considered.
This academic essay, therefore, faces a challenge, which is to think the humanist geography in their openings, strengthening
dialogue with other philosophies that also animate it. At this moment, we only indicate some notes of an ongoing study whose
effort focuses on thinking humanist geography with Deleuze and Guattari to discuss the subject, understanding that “there is a
whole geography in people”. We believe that such an approach would have direct implications for the way to conceive experience
and hence to the concept of place.
Keywords: Subject; Humanist geography; Deleuze and Guattari.
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Notas para Pensar o Sujeito: Geografia Humanista com Deleuze e Guattari
terceiro com o livro “Place and Placelessness”, acabaram e dos seus fundamentos, mas também uma problematiza-
por consolidar as discussões que vinham ocorrendo du- ção profunda do próprio ato de pensar, sua forma e seus
rante a década de 1970. Nessas mencionadas publicações, instrumentos metodológicos.
a aproximação com a filosofia é evidente, sobretudo com Alain Badiou, em “A Aventura da Filosofia Francesa
a fenomenologia (em diálogo com autores como Husserl, no século XX” (2015), compreende que há no período ini-
Heidegger, Merleau-Ponty, entre outros), haja vista que o ciado a partir das décadas de 1950/1960 até o momento,
geógrafo humanista, como nos afirma Tuan (1976), deve questões programáticas e compartilhadas que afetam to-
estar capacitado em filosofia. da a produção de pensamento deste período e tais ques-
Levando em consideração o contexto da década de tões se desenvolvem em torno de dois temas centrais: o
consolidação do horizonte humanista em geografia, cha- sujeito e modificações nas operações metodológicas do
ma a atenção que, dentre as aproximações empreendidas pensamento. A partir dessas duas grandes questões cen-
com a filosofia, o pensamento francês pós-1960 não tenha trais, a filosofia contemporânea vem estabelecendo seus
sido considerado. Filósofos como Gilles Deleuze, Michel debates internos com a herança cartesiana e a herança
Foucault e Jaques Derrida,2 só para citar alguns, tinham alemã (Hegel, Husserl e Heidegger, mas também Marx e
suas obras largamente difundidas na América do Norte e Nietzsche), bem como não cessa de realizar seus movi-
no mundo anglófono em geral. Longe de nosso interesse mentos externos ao dialogar com a psicologia, a política,
investigar o cerne dessa questão, procuramos contribuir a literatura e as artes em geral.
com a geografia humanista promovendo outros encontros, Desta feita, segundo Badiou, para pensar em novas
mais especificamente com Deleuze e Guattari. Diante dis- constituições subjetivas (alternativa ao cartesianismo e ao
so, uma indagação se instala: se algumas vertentes da ge- kantismo), preocupada em pensar em novos sujeitos de
ografia humanista buscaram nas filosofias do significado, ação (aspecto político e prático) e outros modos de exis-
principalmente a fenomenologia para, em outras bases, tência (aspecto ético), a filosofia contemporânea france-
criar novos conceitos de lugar e de experiência, quais se- sa se volta para pintura não figurativa, a nova música, o
riam as implicações para a matriz geográfica humanista teatro, o romance policial, o jazz e o cinema. Contagiada
se pensarmos com Deleuze e Guattari? pela literatura, a filosofia contemporânea se colocaria a
Assim, devemos dizer que este ensaio, ao invés de res- pensar novas maneiras de engendrar o pensamento e uma
ponder a pergunta acima, assume sua condição de nota nova escrita para dizer um novo sujeito:
de pesquisa, ao apontar caminhos possíveis em um estu-
do em andamento. Dessa nova escrita, trata-se de dizer o novo sujeito, de
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Ivo V. Guimarães & Viviana Ribeiro
pouco abordado de forma direta – o que demanda, inclu- inventá-las traçando-as efetivamente, na vida. (Deleu-
sive, uma cartografia do assunto em geografia. Trata-se ze e Guattari, 1980/2012, p. 83)
de uma discussão necessária, conforme apontam os ge-
ógrafos Sartre e Berdoulay (2005), Berdoulay e Entrikin Os trechos acima citados podem ser encontrados em
(1998/2012), Lima (2013), além de ser umas das preocu- “Mil Platôs”, impressionante empreendimento filosófico
pações daqueles ligados à pós-fenomenologia bem como de Gilles Deleuze e Félix Guattari. No Platô 8 (a obra é
dos que se encontram associados a pensadores europeus composta por platôs, não por capítulos, como frisam lo-
pós-1960, sobretudo os franceses (Marandola Jr., 2013). go de início), intitulado “1874 - Três novelas ou o que se
Dessa maneira, a pesquisa empreende um esforço de se passou?”, os autores pensam com a literatura. Embora o
debruçar sobre o tema do sujeito na geografia, levando título mencione três novelas, estão presentes no referido
em consideração afetos e devires, tais como os entendem platô quatro novelas e um conto. Com as novelas “Na gaio-
Deleuze e Guattari (1980/1997). la”, de Henry James, “O colapso”, de F. Scott Fitzgerald,
“História do abismo e da luneta”, de Pierrette Fleutiaux,
“A cortina carmesim”, de Barbey d’Aurevilly e com um
2. “Há toda uma geografia nas pessoas” conto “Um jeitinho”, de Guy de Maupassant, os filósofos
desenvolvem o pensamento “somos todos constituídos por
Deleuze e Claire Parnet, no livro Diálogos dizem o linhas”. De acordo com os autores, as pessoas, indivíduos
seguinte: ou grupos e também as sociedades, são constituídos por
linhas de segmentaridade dura ou molares, linhas de seg-
(...) as coisas, as pessoas são compostas por linhas mentaridade maleável ou moleculares e linhas de fuga.
muito diversas, e que não sabem, necessariamente, em As linhas de segmentaridade dura são as linhas das
que linhas estão, nem onde fazer passar a linha que identidades, onde estão contidos os grandes elementos
estão em vias de traçar; numa palavra: há toda uma de constituição (dominante-hegemônica) de uma pes-
geografia nas pessoas, com linhas duras, linhas flexí- soa: classe social, raça, orientação sexual, estado civil.
veis, linhas de fuga, etc. (Deleuze & Parnet, 1977/2004, Os grandes binarismos irredutíveis estão presentes nesta
p. 21 - grifo nosso) linha endurecida, feita de segmentos bem determinados.
“A vida não para de se engajar em uma segmentarida-
O que Deleuze quer dizer por “há toda uma geogra- de cada vez mais dura e ressecada” (Deleuze & Guattari,
fia nas pessoas”? O trecho parece indicar, antes de tu- 1980/2012, p. 77).
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
do, uma maneira de se compreender “pessoa” como al- Seguindo as trilhas de Deleuze e Guattari, pensemos
go constituído por linhas. Na mesma esteira, Deleuze e também com a literatura. O livro Americanah, da escri-
Guattari formulam: tora Chimamanda Nogozi Adichie, conta a história da
personagem Ifemelu, uma nigeriana que passa doze anos
(...) somos feitos de linhas. Não queremos apenas fa- estudando nos Estados Unidos e depois retorna para La-
lar de linhas de escrita; estas se conjugam com ou- gos. Os 12 anos de Ifemelu nos Estados Unidos marcam,
tras linhas, linhas de vida, linhas de sorte ou de in- justamente, a transição da personagem entre o término
fortúnio, linhas que criam a variação da própria linha da adolescência e a vida adulta; cria a história de uma
de escrita, linhas que estão entre as linhas escritas. vida de imigrante na América do Norte e suas relações
(Deleuze & Guattari, 1980/2012, p. 72) inter-raciais e, ainda, fala sobre a emocionante e histó-
rica vitória de Barack Obama como primeiro presidente
E mais adiante: negro dos Estados Unidos. Desta obra destacamos o tre-
cho abaixo, em consonância com o que seriam essas li-
Indivíduos ou grupos, somos atravessados por linhas, nhas duras conforme conceituaram Deleuze e Guattari em
meridianos, geodésias, trópicos, fusos, que não se- “Entendendo a América para o Negro não Americano: o
guem o mesmo ritmo e não tem a mesma natureza. tribalismo americano”:
São linhas que nos compõem, diríamos três espécies
de linhas. Ou antes, conjuntos de linhas, pois cada Nos Estados Unidos, o tribalismo vai muito bem, obri-
espécie é múltipla. Podemos nos interessar por uma gado. Existem quatro tipos: de classe, ideologia, região
dessas linhas mais do que por outras, e talvez, com e raça. Em primeiro lugar, vamos ao de classe. É bem
efeito, haja uma que seja, não determinante, mas que fácil. Ele separa os ricos dos pobres.
importe mais do que as outras...se estiver presente. Em segundo lugar, o de ideologia. Os liberais e con-
Pois, de todas essas linhas, algumas nos são impos- servadores. Eles não apenas discordam em questões
tas de fora, pelo menos em parte. Outras nascem um políticas, mas cada lado acha que o outro é malévolo.
pouco por acaso, de um nada, nunca se saberá por O casamento com uma pessoa da outra ideologia é de-
quê. Outras devem ser inventadas, traçadas, sem ne- sencorajado e, nas raras ocasiões em que acontece, é
nhum modelo nem acaso: devemos inventar nossas considerado espantoso. Em terceiro lugar, o de região.
linhas de fuga se somos capazes disso, e só podemos Entre Norte e Sul. Os dois lados lutaram numa guerra
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 156-161, jul-dez, 2016 158
Notas para Pensar o Sujeito: Geografia Humanista com Deleuze e Guattari
civil e as máculas dessa guerra persistem. Finalmente, 1980/2012, p. 74). São nestes segmentos que ocorrem as
os de raça. Existe uma hierarquia de raça nos Estados desterritorializações. No que passa como fluxo entre as
Unidos. Os brancos estão sempre no topo, especifica- grandes categorias, sem se fixar naqueles grandes elemen-
mente os brancos, de família anglo-saxã e protestante, tos identificadores. Na segmentaridade maleável correm
conhecidos como WASPS, e os negros sempre estão fluxos com potencialidade de mudança. É uma linha de
em um nível mais baixo, enquanto o que está no meio constituição de mudança da pessoa, ainda que ela venha
depende da época e do lugar (ou, como dizem aque- a voltar a endurecer, desembocando na segmentaridade
les versos maravilhosos: “Se você é um branco, tudo dura ou molar, novamente.
bem; se você é marrom, fique por aí; se você é negro, Podemos dizer que o apaixonamento está na linha de
volte para casa!”). Os americanos presumem que to- segmentaridade maleável, como um fluxo que atraves-
dos vão compreender seu tribalismo. Mas demora um sa e desterritorializa a pessoa estratificada conforme os
pouco para entendê-lo de fato. Quando eu estava na elementos das segmentaridades duras. A experiência do
faculdade, tivemos um palestrante convidado e uma apaixonamento é uma daquelas que pode fazer provocar a
colega sussurrou para outra: “Meu Deus, que cara de desterritorialização dos eixos pessoais-identitários e abrir
judeu ele tem”, e estremeceu, estremeceu de verdade. um caminho potente de fluxos, ainda que, em algum mo-
Como se ser judeu fosse um coisa ruim. Não entendi. mento a pessoa volte a endurecer, caindo, novamente, nas
Para mim, o homem era branco, não muito diferen- segmentaridades duras. Em nível macro, o próprio siste-
te da menina que falara aquilo. Judeu, para mim, era ma capitalista é compreendido como coisa constituída
algo vago, bíblico. Mas aprendi rápido. Entenda, na por linhas de segmentaridade maleável, como fluxo em
hierarquia das raças dos Estados Unidos, os judeus corrente constante, o que explicaria a sua sobrevivência
são brancos, mas ficam um degrau abaixo dos bran- por tantos séculos, apesar das crises (endurecimentos)
cos. Era um pouco confuso, porque eu conhecia uma que poderiam fazer ruir o sistema, caso ele não fosse ca-
menina de cabelo cor de palha e sardas que se dizia paz de se reconstruir em outras bases:
ser judia. Como os americanos sabiam quem era ju-
deu? Como minha colega sabia que aquele homem era A grande política nunca pode manipular seus con-
judeu? Li em algum lugar que as faculdades america- juntos molares sem passar por essas microinjeções,
nas costumavam perguntar aos candidatos qual era o essas infiltrações que a favorecem ou que lhe criam
sobrenome de sua mãe, para ter certeza de que não obstáculos; e mesmo, quanto maiores os conjuntos,
eram judeus, porque não os aceitavam. Era assim que mais se produz uma molecularização das instân-
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Ivo V. Guimarães & Viviana Ribeiro
mesmo se seus segmentos não param de se endurecer mento, como podemos ver em um trecho ainda mais mor-
para vedar as linhas de fuga. Não há nada mais ativo daz: se mostre ofendido, mesmo quando não tiver ideia
do que uma linha de fuga, no animal e no homem. E do que está sendo dito; cumprimente outros negros como
até mesmo a história é forçada a passar por isso, mais sinal de irmandade; se for homem, seja super tranquilo,
do que por “cortes significantes”. A cada momento, o não se irrite demais, ou alguém vai achar que está pres-
que foge em uma sociedade? É nas linhas de fuga que tes a sacar uma arma, vejamos: em “Para outros negros
se inventam armas novas, para opô-las às armas pesa- não americanos: nos Estados Unidos você é negro, baby”:
das do Estado, e “pode ser que eu fuja, mas ao longo
da minha fuga, busco uma arma”. (Deleuze & Guatta- Querido negro não americano, quando você escolhe
ri, 1980/2012, p. 85-86) vir para os Estados unidos, vira negro. Pare de argu-
mentar. Pare de dizer que é jamaicano ou ganense.
As três linhas não param de se misturar e o desenvol- A América não liga. E daí se você não era negro no
vimento da teoria das linhas é uma das maneiras de De- seu país? Está nos Estados Unidos agora. Nós todos
leuze & Guattari formularem a ideia de que há toda uma temos nosso momento de iniciação na Sociedade
geografia nas pessoas: dos Ex-crioulos. O meu foi numa aula da faculdade,
quando me pediram uma visão negra de algo, só que
As linhas não querem dizer nada. É uma questão de eu não tinha ideia do que aquilo significava. Então,
cartografia. Elas nos compõem, assim como compõem simplesmente inventei. Além do mais, admita, você
nosso mapa. Elas se transformam e podem mesmo pe- diz: “eu não sou negro” só porque sabe que os negros
netrar uma na outra. Rizoma. Certamente não tem na- são o último degrau na escada de raças americanas.
da a ver com a linguagem, é ao contrário da linguagem E você não quer estar ali. Não negue. E se ser negro
que deve segui-las, e a escrita que deve se alimentar trouxesse todos os privilégios de ser branco? Você
delas entre as próprias linhas. Certamente não tem ainda diria “não me chame de negro, eu sou de Trini-
nada a ver com significante, com uma determinação dad?” É, eu sabia que não. Você é negro, baby. E essa
de um sujeito pelo significante. É antes, o significan- é a questão de se tornar negro: você tem de se mostrar
te que surge no nível mais endurecido de uma dessas ofendido quando palavras como “farofeiro” e “tiziu”
linhas, o sujeito que nasce do nível mais baixo. Cer- são usadas de brincadeira, mesmo que não tenha a
tamente não tem nada a ver como uma estrutura, que menor ideia do que está sendo dito – e, como você é
sempre se ocupou apenas de pontos e de posições, de um negro não americano, é provável que não saiba o
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
arborescências, e que sempre fechou um sistema exa- que elas significam. (Na faculdade, um colega branco
tamente para impedi-lo de fugir. (Deleuze & Guattari, me perguntou se eu gostava de melancia. Eu disse que
1980/2012, p. 84) sim e outra colega disse: “Meu deus, que coisa racis-
ta”. Fiquei confusa e disse: “Espere, por quê?”). Quan-
Para Deleuze e Guattari não é uma estrutura, nem um do outro negro te cumprimenta com a cabeça em um
significante, que define um sujeito, mas o sujeito é, ele pró- bairro de maioria branca, você tem de retribuir. Eles
prio, resultado do nível mais endurecido dessa relação en- chamam isso de cumprimento negro. É uma maneira
tre as linhas que não param de se cruzar. Recorrendo mais que os negros têm de dizer: “você não está sozinho,
uma vez a uma imagem literária de Americanah, é marcan- eu estou aqui também”. Ao descrever as mulheres ne-
te um trecho do livro em que a personagem Ifemelu diz: gras que você admira, sempre use a palavra FORTE,
porque, nos Estados Unidos, é isso que as mulheres
O único motivo pelo qual você diz que a raça nunca negras devem ser. Se você for mulher, por favor, não
foi um problema é porque queria que não fosse. Nós fale o que pensa como está acostumada a fazer no seu
todos queríamos que não fosse. Mas isso é uma men- país. Porque, nos Estados Unidos, mulheres negras
tira. Eu sou de um país onde a raça não é um proble- de personalidade forte dão MEDO. E, se você for ho-
ma; eu não pensava em mim mesma como negra e só mem, seja supertranquilo, nunca se irrite demais, ou
me tornei negra quando vim para os Estados Unidos. alguém vai achar que está prestes a sacar uma arma.
(Adichie, 2014, p. 315) Quando estiver vendo televisão e ouvir um “insulto
racial” sendo usado, fique ofendido na mesma hora.
Eu só me tornei negra quando vim para os Estados Uni- Apesar de estar pensando: “Mas por que eles não me
dos. Mesmo uma linha de segmentaridade dura, linha da explicam o que exatamente foi dito?” Apensar de que-
identidade que distingue as pessoas pela raça, é um fluxo rer decidir sozinho o quão ofendido ficar, ou mesmo
variante e produz um sujeito. A pessoa negra, nos Estados se está ofendido, ainda assim você precisa ficar muito
Unidos é o resultado de uma linha em nível mais endure- ofendido. (Adichie, 2014, p. 239-240)
cido, uma linha de segmentaridade dura. Uma linha que
constitui a pessoa no deslocamento, na mudança de lugar. Entendemos que a imagem literária presente em Ame-
E, esta linha de segmentaridade dura, ainda determina ricanah, com destaque para o trecho acima, nos apresen-
uma série de ações desse sujeito constituído no desloca- ta um lugar constituindo um sujeito. Um sujeito que se
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 156-161, jul-dez, 2016 160
Notas para Pensar o Sujeito: Geografia Humanista com Deleuze e Guattari
constitui no deslocamento – de Lagos aos Estados Unidos Delacampagne, C. (1997). História da filosofia no século XX
– e na sua permanência neste lugar, também atravessado (L. Magalhães, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Ori-
e constituído por linhas. ginalmente publicado em 1995).
161 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 156-161, jul-dez, 2016
Juliana M. T. Dias
Resumo: O presente artigo vislumbra apresentar um texto ancorado na leitura da obra de Gaston Bachelard: “A poética do devaneio”.
A obra do filósofo permite refletir sobre infância e nos oferece condições para questionarmos a abertura da Geografia escolar para
diferentes concepções de infância. Para tanto, este texto procura apresentar que é infância para Bachelard e ampliar seu horizonte
reflexivo na relação com o ensino de Geografia. O cenário apresentado permite a interseção entre as mudanças na concepção de
ciência, a trajetória e consolidação da Geografia e da Geografia escolar e a pluralidade de perspectivas sobre a noção de infância.
Este entrecorte na contemporaneidade sinaliza uma busca e um encontro com uma ciência existencial que permite que o ser
se revele em outras formas de ligação entre homem e terra e uma concepção de infância que tenha abertura para imaginação,
memória, fantasias e devaneios. Através dessa perspectiva, a Geografia Humanista se apresenta na construção de um referencial-
teórico metodológico para Geografia escolar.
Palavras-chave: Gaston Bachelard; Infância; Geografia humanista; Fenomenologia.
Resumen: Este artículo tiene previsto presentar un texto anclado en la lectura de la obra de Gaston Bachelard: “La poética de la
ensoñación”. El trabajo del filósofo permite reflexionar sobre la infancia y nos da las condiciones de cuestionar la apertura de la
geografía escolar a diferentes concepciones de la infancia. Por lo tanto, este texto pretende presentar lo que es la infancia para
Bachelard y ampliar su horizonte reflexivo en relación con la enseñanza de la Geografía. El escenario permite la intersección
de los cambios en la concepción de la ciencia, la historia y la consolidación de la Geografía y de la geografía de la escuela y la
diversidad de puntos de vista sobre la noción de infancia. En esta intersección en la contenporaneidad señal una búsqueda y un
encuentro con una ciencia existencial que permite que el Ser se revela en otras formas de conexión entre el hombre y la tierra y
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
una concepción de la infancia que se ha de abrir para la imaginación, la memoria, las fantasías y. Através de esta perspectiva, la
Geografia Humanista presenta como la construcción de un marco teórico y metodológico de la geografía escolar.
Palabras-clave: Gaston Bachelard; Infancia; Geografía humanista. Fenomenología.
Abstract: This article envisages presenting an anchored text in reading the works of Gaston Bachelard: “The poetic reverie.”
The philosopher’s work allows reflect on childhood and gives us conditions to question the opening of school Geography to
different conceptions of childhood. Therefore, this text seeks to present what is childhood for Bachelard and expand its reflective
horizon in relation to the teaching of Geography. The scenario allows the intersection of changes in the design of science, history
and consolidation of Geography and school geography and the diversity of perspectives on the notion of childhood. In this
intersection nowadays signals a search and an encounter with an existential science that allows the Self is revealed in other
forms of connection between man and land and a conception of childhood that has opening for imagination, memory, fantasies
and daydreams. Through this perspective, Humanistic Geography presents the construction of a methodological framework and
theoretical to school geography.
Keywords: Gaston Bachelard; Childhood; Humanistic geography; Phenomenology.
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 162-170, jul-dez, 2016 162
Infância em Gaston Bachelard: Reflexões sobre o Ensino de Geografia
grafos humanistas clássicos e contemporâneos. Dizer que diversas que possuem o mesmo solo pátrio: a terra” (Dal
a concepção de ciência de Heidegger é como processo ou Gallo & Marandola Jr., 2015, p. 185).
como caminho construído ao caminhar, significa “ser na A Geografia contemporânea nos permite realizar es-
verdade, mas ser na verdade em virtude do desvelamen- colhas teóricos-metodológicas em diferentes ancoragens.
to dos entes aos qual o ser-no-mundo se mantém junto a” Este texto opta por uma Geografia no esteio da Fenome-
(Dal Gallo & Marandola Jr., 2015, p. 188). nologia e na busca para que o ser se revele, no entanto, o
Este caminhar fenomenológico com método descritivo histórico da Geografia escolar – que também demarca o
muito contribui e se aproxima de uma habilidade cara à campo atual – demonstra que nem sempre essa abertura
Geografia: a descrição. Todavia, praticá-la fenomenologi- foi possível. Uma interface possível, mas não a única, na
camente não significa o fim nela mesma, mas a busca por discussão sobre infância e Geografia, pode ser pautada
revelar o ser. Esta “realidade geográfica exige uma adesão na perspectiva de sua escolarização. Em sua constitui-
total do sujeito, através de sua vida afetiva, de seu corpo, ção, o ensino da Geografia associado ao “amor à pátria”
de seus hábitos, que ele chega a esquecê-los, como po- tem origem no século XIX com o desejo de fundação do
de esquecer sua própria vida orgânica. Ela está, contudo, Estado-Nação alemão. Segundo Dias & Miranda (2015),
oculta pronta a se revelar” (Dardel, 2011, p. 34) História e Geografia foram inventadas enquanto saberes
Este rompimento com um modelo de ciência não se “didatizados” para serem ensinados nas escolas. Essa in-
apresenta na construção de um novo modelo fechado, venção disciplinar ocorrera no bojo dos Estados Nacio-
mas sinaliza a abertura para além da objetivação. Na nais e da expansão de um nacionalismo que demandava
Geografia, por exemplo, o geógrafo clássico Eric Dardel um esforço concentrado de produção de “comunidades
(2011) em sua singular obra “O homem e a Terra” poeti- imaginadas”, capazes de fazer com que os sujeitos se re-
camente discorre sobre a realidade geográfica a partir de conhecessem como pertencentes a um passado, uma lín-
uma religação entre homem e Terra e refletida pela ciên- gua e um território comuns (Anderson, 2008).
cia existencial. Todavia, esta religação precisa ser vivida Segundo as autoras, a invenção desse tipo de código
e experimentada, e como nos atentarmos para tal relação disciplinar, bem como sua dilatação ao longo do século XX
homem e Terra? Inúmeras são as possibilidades e singu- pela Europa e Américas, ainda se manifesta em atitudes
lares poderiam ser suas descrições, mas optei por refletir que se fazem presentes em práticas cotidianas que con-
sobre a infância e a Geografia escolar como potência para vocam, via de regra, uma perspectiva hegemônica e não
religação entre homem e Terra. refletida em torno dos campos de conhecimento. É como
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Juliana M. T. Dias
gamento ao longo do século XX produziu no Brasil, es- sobre o direito da criança (1990) em seu artigo I. conside-
pecialmente a partir das décadas de 1970 e 1980, alguns ra “como criança todo ser humano com menos de dezoito
deslocamentos discursivos graças aos encontros lacuna- anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei
res entre os conteúdos escolares e os novos princípios aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes.”.
epistemológicos, seja da Nova História Cultural, seja das O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e o Esta-
chamadas Geografia Crítica e a Geografia Humanista-Cul- tuto da Criança e do Adolescente consideram sob a lei
tural, por exemplo (Dias & Miranda, 2015). Esta abertura nº 8.069, que dispõe em seu artigo 2º que “considera-se
culminou numa renovação das publicações escolares que criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos
aderiram às discussões políticas, econômicas e culturais. de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e
Desde aquela renovação que os debates teóricos e dezoito anos de idade”. O que é comum, ao longo de tais
metodológicos têm compreendido a Geografia em sua variações, é que tratamos de um grupo com característi-
pluralidade e, numa dessas perspectivas, encontra-se a cas específicas que alteram seus limites etários a partir
Geografia Humanista e seu referencial fenomenológico. de diferentes formas de conceber as crianças.
Nesta seara, o Grupo de Pesquisas Geografia Humanis- Foi a partir da década de 1970 que inúmeros trabalhos
ta Cultural (GHUM) tem protagonizado pesquisas, re- começaram a ser publicados na relação entre crianças e
flexões e produções no esteio da Fenomenologia. Estar suas espacialidades. Segundo Lopes (2013), as inspirações
inserida neste grupo é encontrar pares numa discus- foram na Psicologia Cognitiva, em Piaget e em Fremont
são plural e ao mesmo tempo singular e, neste sentido, com o espaço vivido. Elas enfatizavam a “dimensão da
foi possível apresentar no seminário interno do grupo experiência humana no espaço e reafirmam o afastamento
(2015) minha pesquisa intitulada “Gaston Bachelard e das clássicas teses pelas quais se trilhavam a vivência de
infância: primeiras aproximações”. O trabalho ancorou homens, mulheres e, claro, as crianças, que lentamente
este artigo e se ampliou numa discussão sobre o Ensi- deixam de ocuparem os números para terem visibilida-
no de Geografia. de em outros lugares” (Lopes, 2013, p. 287). Os mesmos
Nesta interseção entre campos do saber, o breve con- postulados permitiram ancoragem aos estudos da Geo-
texto da Geografia escolar além de nos oferecer um pa- grafia da Infância.2
norama sobre a construção do campo no Brasil, também O final da década de 80 e os anos 90, além das publi-
sinaliza a busca por referencial teórico-metodológico pa- cações, estatutos legais e políticos destacavam as crian-
ra além de um modelo de ciência e ensino de Geografia. ças como sujeitos de direitos. Para elucidar, a Convenção
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
As leituras e pesquisas construídas no interior do grupo sobre o Direito das Crianças e o ECA no Brasil “possibi-
permitiram que um incomodo se revelasse: como pensar litam outros estatutos para a infância e estendem a ideia
a infância a partir dos referenciais do GHUM? Ou numa do direito da criança ao espaço e, assim, um outro foco
tentativa fenomenológica, a pergunta que orientou a pes- ganha força nos estudos da Geografia da Infância, a noção
quisa: que é infância para Gaston Bachelard? de território, de espaço como direito politicamente defini-
do” (Lopes, 2013, p. 290). Um campo de estudos pautado
nas reflexões sobre a produção de culturas de crianças,
1. Infância em “A poética do devaneio” seus lugares e territorialidades.
Com este breve histórico, podemos perceber a plura-
O conhecimento sobre a infância esteve associado en- lidade e as diferentes sistematizações de concepções de
tre os séculos XVIII e XX à dominação, controle, aprendi- infância ao longo do tempo e institutos. Diante desse qua-
zado de civilidade e boa conduta. Segundo José Alfredo dro, não será possível adotar uma exclusiva concepção,
Oliveira Debortoli, “a infância era concebida como um mas a pluralidade que configura as infâncias em nossas
fragmento de tempo a ser deixado para trás, esquecido sociedades. “O sentido de infância é atravessado, dessa
em nome de um futuro idealizado, espaço a ser percorri- forma, pelas dimensões do espaço e do tempo que, ao se
do e vencido em direção ao que se projetou como madu- agregarem com o grupo social, produzem diferentes ar-
ro, racional, moral e científico” (Debortoli, 2008, p. 73). ranjos culturais e diferentes traços simbólicos” (Lopes,
As definições de crianças variaram ao longo do tempo 2008, p. 67).
e contexto de sua publicação. Para elucidar, em um livro O cenário apresentado permite a interseção entre as
de Geografia da População podíamos encontrar a popula- mudanças na concepção de ciência, a trajetória e consoli-
ção dividida em “três grupos: crianças (que podem abran- dação da Geografia e da Geografia escolar e a pluralidade
ger pessoas com menos de 15 ou com menos de 20 anos, de perspectivas sobre a noção de infância. Este entrecorte
em conformidade com as estatísticas), adultos e pessoas na contemporaneidade sinaliza uma busca e o anseio pe-
de mais idade (para as quais o limite mais baixo poderá lo encontro com uma ciência existencial que permite que
ser 60 ou 65 anos)”. (Beaujeu-Garnier, 1971, p. 70). Na o ser se revele em outras formas de ligação entre homem
Conferência Geral da Organização Internacional do Traba-
lho, o artigo 2º da Convenção 182, “o termo criança apli-
Geografia da Infância, Geografia Escolar e Ensino de Geografia são
2
car-se-á a toda pessoa menor de 18 anos.”. A Convenção concebidos como campos científicos.
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Infância em Gaston Bachelard: Reflexões sobre o Ensino de Geografia
e terra e uma concepção de infância que tenha abertura Geografia Humanista procura – sem negar – ir além dos
para imaginação, memória, fantasias e devaneios. E co- estudos estatísticos, da descrição racionalista do posi-
mo viver tal interseção no ensino de Geografia de base tivismo e do reducionismo economicista do movimen-
Humanista? O que estou a questionar é: quais noções de to marxista para, também, compreender o ser e estar da
infância sustentaram a consolidação da Geografia esco- criança no mundo.
lar no Brasil? E hoje, quais a ancoram? Como convidar as A partir das expressões do próprio filósofo, a criança
reflexões de um filósofo, como Gaston Bachelard, para as como filha do cosmos torna-se dona de seus devaneios
reflexões sobre o ensino de Geografia? e conhece a ventura de sonhar. Trata-se de uma infân-
Traços das crianças que hoje são considerados co- cia que não tem fim em um ou noutra idade, e sim, na-
muns, como a imaginação e a fantasia, já foram vistos co- quela em ainda dura em cada um de nós. “Essa infância,
mo doença social na concepção adultocêntrica. Esta infân- aliás, permanece como uma simpatia de abertura pa-
cia visava estabilidade no futuro e a tornou dependente ra a vida, permite-nos compreender e amar as crianças
do adulto na construção disciplinada de uma criança ra- como se fôssemos os seus iguais numa vida primeira”
cional e madura. A reorganização social do último século (Bachelard, 2009, p. 96) Esta abertura à vida e a noção
“promoveu o reconhecimento da infância, reordenou as de continuidade também permitem que a infância pos-
espacialidades tradicionais e originou áreas típicas para sa ser reimaginada.
infância nascente” (Lopes, 2005, p. 28). A sociabilidade O livro “A poética do devaneio” possui um capítulo
das ruas foi sendo vivida nos espaços restritos e privados dedicado à infância: “Os devaneios voltados para a infân-
das casas, onde as crianças e as famílias se reestruturam cia”, nele sua tese central é
socialmente. A escola e a casa eram espaços de preparação
para um determinado modelo de vida adulta, de crianças (...) reconhecer a permanência, na alma humana, de
tratadas como miniaturas de adultos. um núcleo da infância, uma infância imóvel mas
O pensamento de Bachelard se faz contemporâneo sempre viva, fora da história, oculta para os outros,
na atualidade potente de sua reflexão. Não consensual- disfarçada em história quando a contamos, mas que
mente entre pesquisadores, é conhecido por sua filosofia só tem um ser real nos seus instantes de iluminação
não cartesiana, não bergsoniana, não aristotélica e não – ou seja, nos instantes de sua existência poética”.
kantiana, sua obra excede a epistemologia e a estética (Bachelard, 2009, p. 94)
e dialoga com diferentes campos, como o da Educação.
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Juliana M. T. Dias
O poeta sublinha a infância em sua continuidade, em sua aplicação, mas desnaturalizando a objetivação como
sua beleza, em suas imagens singelas, nos leva ou nos traz atitude primeira no processo de ensino e aprendizagem
o passado, nos conduz a ressignificá-lo, nos convence a da Geografia Escolar.
recomeçar nossos devaneios, nos liberta, une imagina- Para Bachelard o passado de nossas experiências,
ção e memória, nos apresenta múltiplas infâncias (como imaginação e devaneios não são estáveis, estão em outra
as nossas), no enriquece com outras infâncias e apon- relação temporal, não mantém a infância fixa num deter-
tam um feixe de luz sobre nossa infância perdida. Nes- minado tempo que pode, inclusive, ser imaginado. Sua
te existencialismo poético, “o ser infância liga o real ao perspectiva de tempo é apresentada como aquele que é
imaginário, vivendo com toda imaginação as imagens da construído, de modo descontínuo, pelos instantes pon-
realidade” (Bachelard, 2009, p. 102). Para Angela Cogo tuais. Estes instantes podem ser percebidos e relembra-
e Sandra Richter a partir da leitura do referido filósofo, dos através das imagens de nossa memória. A pluralida-
essa realidade pode ser ultrapassada pelo imaginário e de desses instantes nos oferece a sensação de continui-
esta infância, “embora apareça como história todas as dade do tempo.
vezes que contamos, só possui existência real quando a “Portanto, para constituir a poética de uma infância
iluminamos em sua existência poética” (Fronckowiak & evocada num devaneio, cumpre dar às lembranças sua at-
Richter, 2007, p. 63). mosfera de imagem” (Bachelard, 2009, p. 99). Este tempo
O poeta une as rupturas da infância ao longo da vida, das lembranças não é o tempo que os homens organiza-
como aquelas causadas pela objetivação frente à imagi- ram cronologicamente, trata-se do tempo das estações.
nação e retoma a infância como estado de alma em seu “A lembrança pura não tem data. Tem estação. É a estação
caráter eterno. Diante dessas quebras, mesmo na continui- que constitui a marca fundamental das lembranças. Que
dade, Bachelard nos contrapõem como víamos o mundo sol ou que vento fazia nesse dia memorável?” (Bachelard,
e como a aproximação da objetivação nos afasta da ima- 2009, p. 111). São as estações do poeta, da simplicidade e
ginação, de nossos devaneios libertadores e do olhar do do embelezamento da vida, num tempo fora da história.
poeta sonhador. A imaginação que pela inovação do filó- São nos instantes que as imagens do poeta emergem, são
sofo pode ser formal ou material, num processo que está vividas e morrem. No instante conseguimos viver nossa
para além da ocularidade. imaginação criadora quando nos entregamos a estas ima-
Para o autor, a atitude objetivada de mostrar o mundo gens. Neste instante de criação, “é necessário renegar o
à criança coloca, fenomenologicamente, ver e mostrar em tempo do mundo, o tempo da vida que rege nossas ações
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
antítese. “A infância vê o Mundo ilustrado, o Mundo com pragmáticas, o tempo sucessivo, contínuo e horizontal.
suas cores primeira, suas cores verdadeiras. [...], “toda No ato de criação, o homem consegue vivenciar um tem-
infância é fabulosa, naturalmente fabulosa” (Bachelard, po vertical que o eleva ascensionalmente” (Bulcão, 2009,
2009, p. 112) e nesta infância fabulosa as imagens preva- p. 191). Bachelard acredita que possamos encontrar ele-
lecem e antecedem a experiência. As crianças e os poetas, mentos de um tempo detido em poemas verdadeiros. Um
entram no mundo das imagens e o vivem e, sua existên- tempo vertical, nascido num instante poético.
cia poética. Para Eric Dardel (2011) essa “cor” que a rea-
lidade nos aparece varia e tal variação no permite “ver” O instante poético é, pois, necessariamente comple-
“o transbordamento das coisas para fora delas mesmas” xo: emociona, prova – convida, consola -, é espan-
(Dardel, 2011, p. 39). toso e familiar. O instante poético é essencialmente
Esta atitude objetivada é muito comum quando adultos uma relação harmônica entre dois contrários. No ins-
optam por apontar paisagens para as crianças enquanto tante apaixonado do poeta existe sempre um pouco
caminham pelos lugares. O excesso de frases como “olhe de razão; na recusa racional permanece um pouco
isto ou veja aquilo” revela indicações nomeadas antes que de razão. As antíteses sucessivas agradam ao poeta.
as crianças experimentem tais lugares. Antes que vejam o Mas, para o arroubo, para o êxtase, é preciso que as
mundo colorido ele já é apresentado objetivamente. Neste antíteses se contrariam em ambivalência. Surge en-
contrapondo, a paisagem “coloca em questão a totalidade tão o instante poético... (Bachelard, 1985 p. 184 &
do ser humano, em suas ligações existenciais com a Ter- Bachelard, 2010, p. 94-95)
ra, ou seja, se preferirmos sua geograficidade original: a
Terra como lugar, base e meio de sua realização [...] A pai- Nesta perspectiva, o tempo poético permite a solidão
sagem é um escape para toda a Terra” (Dardel, 2011, p. 31). cósmica da infância, o desabrochar do voo libertador e
A paisagem apontada para a criança fica no limiar entre os devaneios se apresentam como dilatação psíquica que
uma janela livre e uma visão quadriculada sem o real ou “deslocam globos de pensamento sem grande preocupa-
imaginário para além deste olhar. A objetivação apontada ção de seguir o fio de uma aventura” (Bachelard, 2009,
pode inibir o transbordamento da Terra em nossas experi- p. 100). E são nestes devaneios que “a criança encontra
ências. Este questionamento é fulcral para reflexão sobre as suas fábulas, fábulas que ela não conta a ninguém.
outras possibilidades para pensarmos o ensino de Geogra- Então, a fábula é a sua própria vida” (Bachelard, 2009,
fia em diálogo com Bachelard. Novamente não buscando p. 113). Secreta e vivida e revivida na solidão libertadora.
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Infância em Gaston Bachelard: Reflexões sobre o Ensino de Geografia
Numa perspectiva onde o devaneio metódico é liberta- ora acreditamos. Cenas que não sabemos se vivemos ou
dor. O filósofo também destaca que existem devaneios de se inventamos a partir daquilo que ouvíamos sobre nós
infância que surgem com o brilho de um fogo, um fogo mesmos. Mas sobre mim, sei que ao certo me compõem.
capaz de fazer ressurgir de dar continuidade à infância Todo esse conjunto de cenas e narrativas nos ajudam a
esquecida ao longo da vida. construir nosso ser. Ao olhar para trás podemos ver ros-
tos com sons narrados por inúmeras conversas ao longo
Como os arquétipos do fogo, da água e da luz, a infân- da vida daquela infância que parece não ter fim.
cia, que é uma água, que é um fogo, que se torna uma Os odores! Primeiro testemunho da nossa fusão com
luz, determina uma superabundância de arquétipos o mundo. Essas lembranças dos odores do passado, nós
fundamentais. Nos nossos devaneios voltados para a as reencontramos fechando os olhos. Fechamos os olhos
infância, todos os arquétipos que ligam o homem ao outrora para saborear-lhes a profundeza. [...] Os poetas
mundo, que estabelecem um acordo poético entre o vão fornecer-nos testemunhos sobre esses odores de in-
homem e o universo, todos esses arquétipos são, de fância, sobre esses cheiros que impregnam as estações da
certa forma, revivificados. (Bachelard, 2009, p. 119) infância. [...] Quando é a memória que respira, todos os
cheiros são bons. [...] Procuremos um pouco: cada um de
Bachelard ao se basear em C.G. Jung e Robert Desoille, nós encontrará na memória o odor de um renovo da pri-
interpreta os elementos fogo, água, ar e terra como ima- mavera. [...] Cada cheiro de infância é uma lamparina no
gens arquetípicas em nosso inconsciente. Para ele, estas quarto das lembranças. [...] Quando, ao ler os poetas, des-
imagens imaginadas formadas por estes arquétipos, são cobrimos que toda uma infância é evocada pela lembran-
“sublimação dos arquétipos, mais que reproduções da ça de um perfume solitário (Bachelard, 2009, p. 132-137).
realidade. As imagens são formadas a partir das expe-
riências do sonho e das experiências da vida.” (Barbosa Para viver nessa atmosfera de outrora, devemos des-
& Bulcão, 2004, p. 43). Além disso, segundo Constança socializar a nossa memória e, para além das lembran-
Marcondes Cesar (1996), para Bachelard, sonhamos com ças ditas e reditas, contadas por nós mesmos e pelos
terra, fogo, água e ar antes estudarmos cientificamente o outros, por todos os que nos ensinaram como éramos
mundo. E estes sonhos têm participado do fazer cientí- na primeira infância, devemos redescobrir o nosso
fico? Também sobre a ideia de continuidade da infância ser desconhecido, súmula de todo incognoscível que
e da poético-análise, Bachelard indica juntar a cada ar- é a alma de uma criança. Quando o devaneio vai tão
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Juliana M. T. Dias
tudo que é criado e imaginado está legitimado por ser encantamento ainda nos compõe. O filosofo aponta a gra-
“brincadeira de crianças”, inclusive buscar a lua. Parece ça do poeta para este redespertar da cosmicidade da in-
que o poeta continua a fazer isso e a “brincar” como crian- fância. Uma qualidade do ser cósmico que habita em nós
ça. Ele traz a infância em sua poesia e em seu ser poeta. nas continuidades e descontinuidade de nossa infância e
Para a criança, seu pai e para o poeta, vale buscar a lua, em nossa capacidade de ser sonhadores.
mas se o verbo era devolver, quando isto se perde? Como? O poeta em uma infância em comunhão, partilha com
Por quê? É um corte? Existe uma castração da imaginação? o leitor suas “raízes crianceiras” a partir do ser criança.
Se minha questão de pesquisa tem como centralidade Ele divide conosco sua imaginação na solidão da infância,
uma professora investigando, como não me questionar e suas memórias inventadas e sua continuidade ao longo
nos questionar as possibilidades de abertura da Geogra- de sua vida-poesia. O singular em Bachelard é a condi-
fia Humanista frente a tais interrogações? A Geografia ção de sonhar, de imaginar, de ter devaneios em solidão,
Humanista tem servido de ancoragem teórica nas esco- de alçar voos. Qual a potência disso? O convite para re-
las? Ela tem permitido esta não castração da imaginação? flexão se amplia na medida em que podem afetar as rela-
Ela tem favorecido a infância em sua continuidade? Efe- ções espaço e tempo e os modos como temos produzido
tivamente, como nossos teóricos têm aparado nossas es- o conhecimento geográfico. E como estes acontecimentos
colhas teórico-metodológicas em nossa prática docente? poéticos têm sido esteio para reflexão geográfica?
A infância não é um tempo descolado da vida adulta,
nem tão pouco de nossos professores e alunos. A infância
com sua permanência e núcleo habita em nós, ela é con- 2. Ao final algumas considerações...
tinuidade, como também é descontinuidade na medida
em que cortamos nosso potencial de imaginar. Se tem a Bachelard não abordou a temática da Educação di-
continuidade da infância, a imaginação está lá dentro. In- retamente em sua obra, tão pouco enfatizou o ensino de
cubada, aguardando um novo desabrochar. O que é capaz Geografia, no entanto, suas reflexões sobre ciência, poe-
de trazer o reflorescer da imaginação? Quando apanha- sia, formação, imaginação e razão são atuais e potentes
remos ou esperaremos pela lua? Neste ressurgir também para serem pensados hoje. A concomitância que apresen-
se encontra a ideia de continuidade da infância por toda ta sobre construção do saber e formação do sujeito apro-
vida. Como esta concepção de infância colabora na reli- xima sujeito e objeto numa perspectiva de ciência onde
gação homem-Terra? a dialética é a do conhecimento. Nesta relação o erro, ao
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
Estas são questões sem respostas imediatas, mas que longo do caminhar científico, se torna bem-vindo a par-
são atravessadas por diferentes experiências formativas. tir da riqueza da consciência dos erros e no impacto da
Este texto não procurou delimitar uma forma de se fazer desconstrução e construção do eu durante este processo
Geografia na escola a partir da concepção de infância de que pode levar à elaboração de novas ideias e referencias.
Bachelard, mas desejou apresentar uma concepção refe- E o que significa o erro nos processos educativos que
renciada pelo grupo de pesquisa “Geografia Humanista” ocorrerem nos espaços escolares? Esta é uma pergunta
(GHUM). Não se trata de uma infância em estágios, mas que tende a caminhar em direção ao fracasso, no entanto,
contínua. Não se enaltece a objetivação, mas a imagina- Bachelard aponta justamente o contrário, ou seja, como o
ção, a memória e os devaneios. Não se conta o tempo erro é formativo. Além disso, “chega à conclusão de que
cronologicamente, mas nas nossas estações com saltos e o racionalismo atual é essencialmente um racionalismo
instantes que fogem à História. Não abordamos uma in- docente-discente, pois é na escola que o ato de pensar se
fância enrijecida na experiência, mas em imagens que a desenvolve através de uma troca ininterrupta de ideias”
antecedem. Não generalizamos a infância, mas valoriza- (Barbosa & Bulcão, 2004, p. 58). Esta é uma ideia de es-
mos seus segredos e sua intimidade. Não negamos a ques- cola permanente que permite o exercício do racionalis-
tão da linguagem, mas aproximamos poetas e crianças. mo docente-discente, numa formação longe da repetição
Devolver-nos a imaginação. Ao longo da vida, di- monótona, que é dinâmica e nos permite um voo ascen-
ferentemente dos poetas, aprendemos a não imaginar. sional através da imaginação criadora.
Os adultos tendem a se acostumar a ser objetivos e a O filósofo procurou fazer uma “fenomenologia da
censurar os próprios voos. A partir da leitura do referido imaginação” como “um estudo do fenômeno da imagem
filósofo, Elyana Barbosa e Marly Bulcão (2004) questio- poética no momento em que ela emerge na consciência
nam esta objetividade, as relações entre sujeito e objeto, como um produto direto do coração, da alma, do ser do
o significado de objetividade e a apontam como um pro- homem tomado na sua atualidade” (Bachelard, 1978,
blema do conhecimento científico. Mas para Bachelard, p. 184). Este método é uma possibilidade de nos restituir
“todos os nossos sonhos de criança devem ser retoma- a subjetividade das imagens e de sua vivência através da
dos para que alcem seu pleno voo de poesia: tal é a tarefa força da experiência individual. Uma imaginação criadora
que a poético-análise deveria cumprir” (Bachelard, 2009 que forma imagens para além da realidade.
p. 118). Como devolver? Do mesmo modo que a infân- Bachelard não se conteve a um modelo de ciência e
cia não finda em nós como um ciclo, nossa condição de sua produção nos sinaliza que a experiência pode mudar
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 162-170, jul-dez, 2016 168
Infância em Gaston Bachelard: Reflexões sobre o Ensino de Geografia
radicalmente o espírito. Através da dialética do conheci- relação existencial. Para Dardel (2011), a Geografia é do
mento indica que “as dialéticas interna e externa da ra- mundo vivido, do mundo da existência, algo que deter-
zão põem a ambivalência entre a dialética das noções a mina uma ontologia. Um mundo que antecede os mapas
priori (questionamentos, postulados, teorias) e as dialéti- cartesianos apresentados às nossas crianças, como um
cas a posteriori (superação dos obstáculos epistemológi- mundo da Geografia. Uma Geografia como possibilidade
cos)” (Cesar, 1989, p. 54). Seu modo de pensar a ciência de condição cósmica. “Ela é uma experiência, melhor: um
através da razão e da poesia é destacado por Constança choque sensível, um reencontro do Ser.” (Besse, 2011,
Marcondes através da concepção do filósofo de que, “só p. 115). Nesta perspectiva ontológica, a intervenção edu-
podemos conhecer cientificamente ‘aquilo, em torno do cacional direta e objetivada, dificulta esse reencontro e a
que sonhamos’, há sempre um resíduo de poesia em to- religação homem e Terra. Quando nos colocamos de fora,
da abordagem científica” (Cesar, 1989, p. 70). Mesmo que nos esquecemos de nossa existência como ser terrestre.
essa valorização da imaginação e da poesia pareça detur- Este é um de nossos grandes desafios! Tanto a intimida-
par o rigor do conhecimento, “abandoná-la, é perder a di- de com a Terra quanto aquela dos devaneios de criança
mensão humana, cortar as raízes do homem no mundo” estão ameaçadas se considerarmos apenas um modo do
(Cesar, 1989, p. 70). fazer geográfico. A Terra não precisa ser vista, apenas,
O fazer cientifico da Geografia, neste texto destacado por cálculos e coordenadas, ela pode ser experimentada
pela Geografia escolar, também não é único e sua plura- como mundo da existência, inclusive no processo de es-
lidade se manifesta na abertura às diferentes correntes colarização da Geografia. Uma escolarização, para além
e concepções teóricas e metodológicas. Seria incoerente da objetivação, onde os saberes promovem uma educa-
apresentar, a partir da Fenomenologia, que é infância pa- ção da liberdade de ser-estar no mundo e nossa religação
ra Bachelard e defender um ensino de Geografia pauta- com a Terra.
do em repetições e memorizações de pontos localizados Durante as travessias para a ilha do passado muitas
na superfície terrestre. Os geógrafos humanistas clássi- narrativas ecoam em nosso ser. São inúmeras lembran-
cos e contemporâneos que construíram suas reflexões ças que nos contam e que se tornam nossas lembranças.
a partir de filósofos, como Gaston Bachelard e Martin Aprendemos como éramos com tais narrativas. Entre tan-
Heidegger, incorporaram a discussão geográfica a uma tas histórias de nossas infâncias, podemos, ao contá-las
concepção de ciência existencial. “A ciência geográfica ou ouvi-las, sentir do mesmo modo ou de outras manei-
pressupõe que o mundo seja conhecido geograficamen- ras através de nossa imaginação libertadora. Para Bache-
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Editora Nacional. lo e Prática Educativa pela PUC-Rio. Possui graduação em Licenciatura
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Besse, J. Geografia e Existência a partir da obra de Eric Dardel. Docente da área de Teoria e Prática de Ensino de Geografia da Faculdade
Em: Dardel, Eric. O homem e a terra: natureza da realidade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Endereço Institu-
geográfica (W. Holzer, Trad.). São Paulo: Perspectiva. cional: Universidade Federal de Juiz de Fora. Faculdade de Educação.
Rua José Lourenço Kelmer, s/n. Bairro Martelos. CEP: 36036-330. Juiz
Bulcão, Marly. (2009). O Racionalismo da ciência contemporâ- de Fora-MG. E-mail: [email protected]
nea. Introdução ao pensamento de Gaston Bachelard. Edição
revista e ampliada. Aparecida: Ideias e Letras.
Recebido em 26.04.16
Cesar, C. M. (1989). Bachelard: ciência e poesia. São Paulo: Primeira Decisão Editorial em 22.06.16
Aceito em 11.09.16
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Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 162-170, jul-dez, 2016 170
Arquitetura Vernacular e Paisagem Amazônica: um Caminho na Busca pelo Habitar Poético
Vernacular Architecture and the Amazon Landscape: a Path in Search of a Poetic Dwelling
Arquitectura Vernácula y el Paisaje del Amazonas: un Camino en Busca del Habitar Poético
Resumo: Relatar uma pesquisa é o principal objetivo deste texto. Tal pesquisa refere-se à dissertação de mestrado (Programa de
Pós Graduação em arquitetura e Urbanismo - UFF) se desenvolveu em um dos lugares no qual o imaginário humano invade as
profundezas da Terra. Assim a Amazônia é o lugar no qual o fenômeno estudado se revelou: o habitar poético através do qual o
ribeirinho se “de-mora” sobre a Terra, travando com ela uma relação visceral. Tomando como abordagem metodológica os princípios
fenomenológicos, é com base na ontologia Heideggeriana e tendo a poética de Bachelard como meio de abertura para o mundo,
que o trabalho se desenrola, e apresenta assim a maneira como o povo ribeirinho no Amazonas habita, habitar esse que podemos
ver revelado através da materialidade de suas casas - de sua arquitetura - compondo e completando a paisagem que os cerca e os
invade por completo.
Palavras-chave: Fenomenologia; Amazônia; Habitar; Arquitetura; Ribeirinho.
Resumen: Informará de la búsqueda es el objetivo principal de este texto. Esta investigación se refiere a la tesis de maestría
(Programa de Graduados en Arquitectura y Urbanismo - UFF) se ha convertido en uno de los lugares en los que la imaginación
humana invade las profundidades de la tierra. Así que Amazon es el lugar donde se reveló el fenómeno estudiado: el habitar
poético a través del cual el río es-vivo en la Tierra, la captura de ella una relación visceral. Tomando como enfoque metodológico
de los principios fenomenológicos com base en la ontología heideggeriana y tener la poética Bachelard como medio de apertura
al mundo, el trabajo se desarrolla, y también lo ha hecho la forma en que las personas fluviales en la vida de Amazonas, habitan
esto podemos ver revelado a través de la materialidad de sus hogares, -desde su Arquitectura-escritura y completar el paisaje que
rodea e invade por completo.
Abstract: Report a search is the main objective of this text. This research refers to the master's thesis (Graduate Program in
Architecture and Urbanism - UFF) has developed into one of the places in which the human imagination invades the depths of
the earth. So Amazon is the place where the studied phenomenon was revealed: the poetic dwelling through which the river
habitant is-live on Earth, catching her a visceral relationship. Taking as methodological approach the phenomenological prin-
ciples proposed by Hurssel is based on Heideggerian ontology and having the Bachelard poetics as a means of opening to the
world, the work unfolds, and so has the way the riverine people in Amazonas lives , inhabit this we can see revealed through
the materiality of their homes, -from his Architecture-writing and completing the landscape that surrounds and invades com-
pletely.
Keywords: Phenomenology; Amazon; Dwell; Architecture; Riverside.
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Laelia R. B. Nogueira
O ponto principal do trabalho é desvelar e enten- Ele muda a paisagem entre suas cheias e vazantes e junto,
der a relação homem-mundo através da arquitetura muda a vida de quem habita em suas beiras, moldando
apresentada a qual se integra e se revela na paisagem, suas margens e seus habitantes. Assim, nosso percurso
e que sem o homem ela se tornaria incompleta. Como envolverá: comunidades no Careiro da Várzea, região co-
cita Dardel: mo o nome já fala de várzea; comunidades no rio Cuieiras,
no baixo Rio Negro, rio de águas negras e áreas de terra
(...) a paisagem não é, em sua essência, feita para se firme; e a comunidade do Catalão, comunidade de casas
olhar, mas a inserção do homem no mundo, lugar de flutuantes muito próximo do encontro das águas, famo-
um combate pela vida, manifestação de seu ser com so ponto turístico e de referência simbólica no estado do
os outros, base de seu ser social. (...) Uma verdade Amazonas. Para o caboclo ribeirinho entre terra e céu, há
emerge da paisagem, contudo como teoria geográfi- um rio. Portanto, buscaremos fazer um relato do percurso
ca ou mesmo como valor estético, mas como uma fiel de trabalho, tomando como base a fenomenologia, prin-
expressão da existência. (...) A paisagem pressupõe cipal abordagem que norteou o trabalho.
uma presença do homem, mesmo lá onde toma forma
de ausência. Ela fala de um mundo aonde o homem
realiza sua presença circunspeta e atarefada. (DAR- 1. Objetivos
DEL, p. 32, 2011)
O presente texto busca relatar a pesquisa desenvol-
vida ao longo do mestrado, focando em como a fenome-
nologia foi fundamental para permitir que o trabalho se
desenvolvesse, tomando como partido uma abordagem
holística e transcendental do fenômeno estudado – o ha-
bitar e o seu revelar através da materialidade das casas –,
não o olhando como um problema de pesquisa, visto que
não há um problema para se resolver, mas sim um mundo
para se revelar. Também podemos listar como objetivos
do trabalho, trazer o olhar do leitor para uma realidade
cotidiana de uma certa população, na qual não devemos
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
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Arquitetura Vernacular e Paisagem Amazônica: um Caminho na Busca pelo Habitar Poético
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Figura 3: Tirando os
sapatos.
Fonte: Laelia Nogueira,
2015.
3. O caminhar da pesquisa
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Arquitetura Vernacular e Paisagem Amazônica: um Caminho na Busca pelo Habitar Poético
“A arquitetura pertence à poesia, e seu propósito é ajudar a estética material está completamente atrelada a valores
o homem a habitar” (NORBERG-SHULZ, p. 459, 2013) é adquiridos pela paisagem, que são expressos materialmen-
ela que dá suporte, embasa e reúne todas as essências des- te através de utensílios-ferramentas-coisas, remetendo a
se habitar ribeirinho, segundo a quadratura, que se ma- Heidegger (2011) quando ele diz “Em habitando os mor-
nifesta na construção da casa e na manutenção da vida. tais são”. “A maneira como eu sou e como tu és homem
sobre essa terra é o buan, o habitar.” (HEIDEGGER, 2011)
Os lugares construídos pelo homem se relacionam Um habitar repleto de conhecimento e experiências. Ex-
com a natureza de três formas básicas. Em primeiro periências que atravessam os tempos e que demonstram
lugar, o homem deseja fazer a estrutura natural mais um grande conhecimento do lugar que os cerca: “Eu sou.
exata. Isto é, ele quer visualizar seu “modo de enten- Tu és. Nós somos afluente desse rio – medula do universo
der” a natureza, dando expressão à base de apoio exis- que nasce no infinito e desemboca no âmago do Ser que
tencial que conquistou. Para tanto, ele constrói o que somos parte” (Siqueira, sem Data).
viu: onde a natureza insinua um espaço delimitado,
constrói uma área fechada; onde a natureza se mostra
“centralizada”, ele erige um Mal [marco]; onde a na-
tureza indica uma direção, ele faz um caminho. Em
segundo lugar, o homem tem de simbolizar seu mo- Figura 19: Verde
do de entender a natureza (inclusive ele mesmo). A vagomundo. Título
simbolização implica “traduzir” para outro meio um da obra de Beneticto
significado experimentado. Por exemplo, um deter- Monteiro, capturada
minado caráter natural é traduzido em uma constru- através dessa fotografia.
ção cujas propriedades de algum modo o exprimem. Busca demonstrar a
O objetivo da simbolização é libertar o significado imersão e imensidão do
da situação imediata, por meio do que se torna um e no mundo amazônico.
“objeto cultural”, que pode fazer parte de uma situa- Fonte: Laelia Nogueira,
ção mais complexa ou transferir-se para outro lugar. 2015.
Finalmente, o homem precisa reunir os significados
apreendidos por experiência a fim de criar para si
Considerações finais
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Laelia R. B. Nogueira
demonstrando que o trabalho fenomenológico empírico Monteiro, B. (1974) Verde Vagomundo. Rio de Janeiro, Marco
pode ser extremamente rico, podendo perceber a teoria zero: PLG Comunicações.
funcionando na prática muito claramente, sendo possí- Merleu-ponty, M. (1994) Fenomenologia da percepção. São
vel compreender as relações homem-mundo apresenta- Paulo, Martins Fontes.
das por diversos autores. Terra, céu, mortais e divino se
interligando através da ponte, aqui representada pela a Moreria, E. (1960) Amazônia: o conceito e a paisagem. Coleção
casa. A casa como ligação e elo entre as pontas. A casa Araújo Lima. Agência da SPVEA, Rio de Janeiro.
está no entre; do útero é a placenta. Nogueira, A. R. B. (2014) Percepção e representação geográfica:
a geografia nos mapas mentais dos comandantes de embar-
cações no Amazonas. Manaus, Edua.
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Cartofilias Urbanas
Cartofilias Urbanas
Urban Cartophilies
Cartofilias Urbanas
Resumo: Um modo de ensinar-aprender que não pertence a especialistas, mas a sujeitos interessados em compartilhar-aprimorar
os seus saberes sobre as coisas. Esse é um dos propósitos humanos que define a pedagogia freireana e que encaminha o esboço
aqui proposto de uma prática de conhecimentos referenciada nas relações afetivas entre os indivíduos e seus ambientes de
experiências, de histórias e memórias. Freire nos invoca ao desconforto ocasionado pelo afastamento entre-disciplinas-diversas
e nos sugere não uma nova disciplina, mas sim uma determinada “indisciplina”, já que, também, ao senso comum é permitida a
palavra num necessário embate entre-idéias. As linhas de pensamento enquanto instrumentais analíticos remetem a separações nas
formas de saber; entretanto, enquanto elementos de um campo, ou jogo complexo de complementaridades, podem ser apreendidas
como dimensões interdependentes capazes de resguardar um suposto entendimento amplo sobre o mundo em que vivemos. Por
isso podemos corresponder a prática freireana a uma pedagogia de encontros, que realiza, simultaneamente, prática de ensino e
reelaboração de saberes já feitos. Uma dimensão de saber paralela, independente, porém nutrida das dimensões especializadas.
Palavras-chave: Planejamento urbano - aspecto social; Percepção geográfica; Patrimônio cultural - Proteção - Estudo e ensino.
Resumen: Una forma de enseñar y aprender que no pertenece a los expertos, pero las personas interesadas a compartir, mejorar
sus conocimientos acerca de las cosas. Este es uno de los propósitos humanos que definen la pedagogía de Freire y hacia adelante
aqui lo esbozo de un conocimiento práctico que se hace referencia en las relaciones afectivas entre los individuos y sus entornos
de experiencias, historias y recuerdos. Freire invoca el malestar causado por la separación entre disciplinas diversas y no hacen
alusión a una nueva disciplina, sino una cierta “falta de disciplina”, como también se le permite decir un choque entre las ideas es
necesario el sentido común. Las líneas de pensamiento como instrumentos de análisis se refieren a las separaciones en las formas
de conocimiento; sin embargo, como parte de un campo, o juego complejo de complementariedades que pueden ser percibidos
como dimensiones interdependientes capaces de proteger a un presunto amplia comprensión del mundo en que vivimos. Así
Abstract: One way of teaching-learning that does not belong to experts, but interested individuals to share, enhance their knowledge,
improve on things. This is one of the human purposes that defines Freire’s pedagogy and forwards here proposed outline of a
practical knowledge referenced in the emotional relationships between individuals and their experiences environments, stories
and memories. Freire invokes the discomfort caused by the clearance between disciplines, diverse and does not hint at a new
discipline, but a certain “lack of discipline”, as also the common sense is allowed to say a necessary clash between ideas. The
lines of thought as instrumental analytical separations refer to the ways of knowing, but as part of a field, or complex set of
complementarities, can be seized as interdependent dimensions capable of protecting a supposed broad understanding of the real
data. So we can match the practice freireana a pedagogy of meetings, which performs at the same time practice of teaching and
reworking of knowledge already made. One dimension of knowing parallel, independent, but nourished the size specialist. What
we mean as a re-education of passions, woven-the relationship between wealth: the experiences, stories and memories in what is
perceived in environments experienced.
Keywords: Urban planning - social aspects; Geographical perception; Cultural heritage - protection - study and teaching.
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Ronaldo de M. Brilhante
se dá abstratamente, por intermédio de uma relação de Em ‘Topofilia’ (1980), assim como em ‘Espaço e Lugar’
transmissões de conteúdos, segundo a qual, como bem (1982). Tuan atribuía grande importância à questão do
disse Freire em sua “Pedagogia do Oprimido”, recipientes aprendizado, à aquisição de experiência com a idade. Se
cheios são responsáveis pelo preenchimento de recipien- consultarmos mais trabalhos do autor, veremos que essa
tes vazios. O educador deve, antes, respeitar-propiciar o preocupação está relacionada com a psicologia da apren-
transbordamento de percepções, valores, histórias e me- dizagem de Piaget. Esta corrente da psicologia é explicita-
mórias, permitindo-lhes espaço na difícil tarefa de pro- mente citada em ‘Humanistc Geography’ (1976), quando o
dução de conhecimentos. autor enuncia que a geografia humanista está preocupada
O primeiro momento do método freireano refere-se com a conscientização humana e com o aprendizado. (...)
ao levantamento do universo daquela realidade onde A ênfase do autor é para a aprendizagem como modo de
a prática educativa será desenvolvida. Desse exercício estruturar o mundo (Holzer, 1992, p. 9).
procura-se extrair elementos vinculados às relações do Os conceitos de espaço e lugar favorecem uma me-
grupo com o qual se iniciará o processo educativo. As lhor abordagem daquilo que é percebido com efetivo va-
questões que se apresentam como significativas são re- lor pelo educando; os seus lugares de predileção têm um
conhecidas como sendo as “temáticas geradoras”. É a grande potencial de carregar o que é significativo para as
partir delas que educandos e educadores desencadeiam histórias e memórias das pessoas. Freire dizia que o “ho-
a prática pedagógica. mem aprende em comunhão mediatizado pelo mundo”
O levantamento freireano se ressalta por seu caráter (Freire, 2005a, p.78), o problema consiste no reconheci-
dialético, não destaca dados isolados, mas sim elemen- mento da generalidade que a conceituação de mundo po-
tos em relação, que têm como termo articulador a expe- de receber. Os problemas percebidos no mundo não são
riência humana. Uma forma de trabalho, uma ação, um os mesmos, não têm a mesma intensidade e significação,
contato entre sujeitos, um lugar, podem ser sempre reco- nem mesmo para indivíduos com características muito
nhecidos, mediados, pelos ambientes que os comportam. próximas. Tuan, por outro lado, nos convida a observar
De maneira geral, os ambientes humanos podem ser con- de modo específico essas diferenças, a partir das carac-
terísticas de gênero e idade que passaram a ser nortea-
siderados como as textualidades de suas experiências.
doras para a formulação dos trabalhos de campo que se
Os ambientes humanos são compostos, fundamentalmen-
seguiram em nossa pesquisa. A seguir apresentamos os
te, por um conjunto de infinitas relações, que lhes dão
procedimentos iniciais desse estudo, com a sistemática
forma, conteúdo e sentido.
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
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determinante para que o trabalho confluísse com aquilo do mirar-se da perspectiva freireana1). Elas se surpreen-
que é fundamental na prática freireana: quando o edu- dem com uma enorme intensidade, como se estivessem
cando começa a se sentir o sujeito da investigação, e pa- se redescobrindo: como falam, como cantam, como se
ra isso a curiosidade inerente à criança ajuda, de objetos movimentam. Elas demonstraram grande interesse em
passam a sujeitos da ação. Então tanto com o gravador, serem entrevistadas, e, principalmente, de se verem e
e principalmente com vídeo, ocorreu o aprofundamento ouvirem depois nas entrevistas. Umas brincavam, outras
da análise daqueles lugares. Um feito éramos nós lhes caçoavam das outras e até brigavam, atitudes que descre-
perguntando sobre as suas percepções, atitudes e valo- vem com fidelidade uma enorme quantidade de valores
res (Tuan, 1980) em relação àqueles lugares; outro eram infantis ainda em formação.
eles se questionando, suas perguntas entre si foram mais Com as entrevistas filmadas na segunda localidade,
incisivas em relação àquilo que interessava à pesquisa: pudemos desenvolver outro exercício na primeira loca-
lidade. O que começamos a compreender como um “cír-
K 9 anos ⇒ B 10 anos culo de cultura” derivado da abordagem freireana; feito
de maneira ampliada entre pessoas de gêneros, idades e
K - O que você faz na cachoeira? / B - Brinco, né. Tomo lugares diferentes. A partir dos desenhos que as crianças
banho. Ralo o joelho, machuco a cabeça... Só, pergunta fizeram convidamos alguns pais, avós e amigos para fa-
mais... / K - o que é que você faz na quadra? / B - Nada / larem sobre aqueles lugares destacados. Os relatos dos
K - nem jogar bola? / B - Não, não gosto não. Na hora do adultos foram muito importantes para o desdobramento
queimado, ninguém joga bola pra mim e eu também não dos temas das crianças.
jogo bola pros outros. / K - você gosta de basquete? / B - As entrevistas com os adultos foram feitas em duas
Huhum / K - faz alguma cesta? / B- Não, sou muito ruim. etapas, a primeira gravada em k7 e a segunda em vídeo.
Algumas entrevistas filmadas com os adultos da segunda
Para o aprofundamento da análise da forma como eles localidade foram apresentadas para as crianças, que pas-
experienciam o espaço e que valores agregam a seus lu- savam a conhecer os lugares destacados pelas crianças da
gares de predileção, as entrevistas deles entre si vieram a primeira localidade. Após a apresentação dos vídeos pe-
ser um passo muito construtivo. É interessante notar que dimos para que as crianças elaborassem perguntas. Esse
a objetividade do entrevistador é, em certo modo, mais exercício possuiu dois objetivos:
apurada do que nós pesquisadores poderíamos exercitar. 1) Demonstrar o início de um processo dialógico;
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
Esse apuro se dá pelo simples fato de o entrevistador as- para isso sugerimos que as crianças de uma localidade
sumir, já no ato da pergunta, fazer parte da vida do en- respondessem, via internet, aos questionamentos feitos
trevistado, inclusive sabendo de seus “podres”, que faz pelas outras. Logicamente as interlocuções se deram na
questão de revelar. medida em que tivemos como mediá-las, contudo, como
demonstrativo, o exercício foi bem sucedido. As crianças
nesta idade já estão participando de laboratórios de infor-
L 10 anos ⇒ M10 anos
mática e os exercícios dialógicos podem se configurar em
bons instrumentos para o estudo de conteúdos diversos;
L - Você desenha na mesa? / M - Desenho / L- o que? /
2) Com esse exercício pudemos também perceber o
M - Um monte de bobeira / L - fala o que é? / M - Não
interesse de grande parte das crianças por conhecer luga-
posso falar não... / L - fala... / M - piru / L - não pode
res e pessoas que nunca tinham visto, mas que, de uma
falar isso não... / M - eu sei... / L - o que você desenha
maneira ainda pouco apreensível, lhes atraia a atenção.2
mais? / M - A escola, “Rebeldes”... te amo.
1
Movimento o qual Tuan, confluindo com Freire, observa como fun-
Com isso, também, o número de elementos destaca- damental para a construção do conhecimento: “A habilidade espacial
dos por cada um cresceu em número e em significação. se transforma em conhecimento espacial quando podem ser intuídos
os movimentos e as mudanças de localização. Andar é uma habilida-
Quando, junto com grupos em separado, fomos aos luga- de mas, se eu puder me ‘ver’ andando e se eu puder conservar esta
res destacados nos desenhos, pudemos aprofundar mais imagem em minha mente que me permita analisar como me movo e
algumas questões. Assim, o procedimento associado entre que caminho estou seguindo, então eu também tenho conhecimento”
(Tuan, 1983, p. 77) – assim como a formação do conhecimento está
desenho (os mapas mentais), perguntas, entrevistas gra- relacionada com esse mirar, podemos considerar que, a construção
vadas com perguntas feitas pelo educador e, em seguida, do saber está associada à atitude que possa ser concebida em relação
com perguntas feitas pelos educandos entre si, pode ser a esse conhecimento.
definido, até então, como um bom instrumento de leitu-
2
Tuan diz que “o horizonte geográfico de uma criança expande à medi-
da que ela cresce, mas não necessariamente passo a passo em direção
ra de campo a ser praticado com as crianças. E que, por à escala maior. Seu interesse e conhecimento se fixam primeiro na
desdobramento, oferece-nos importantes elementos a se- pequena comunidade local, depois na cidade, saltando o bairro; e da
rem apropriados como recursos didáticos. cidade seu interesse pode pular para a nação e para lugares estran-
geiros, saltando a região. Na idade de cinco ou seis anos, a crianças
É interessante perceber a reação das crianças ao se ou- pode demonstrar curiosidade sobre a geografia de lugares remotos.
virem e se verem nos vídeo (o tão importante movimento Como pode apreciar locais exóticos se não tem experiência direta?”
(Tuan, 1983, p. 35).
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Cartofilias Urbanas
Acredito que esse interesse pela novidade possa vir a ser os dois campos. Na segunda localidade, foram tidas con-
o combustível para o desencadeamento de um processo versas em momentos anteriores às entrevistas. Nessas
mais amplo de formação de conhecimento. Os lugares do conversas, o propósito do trabalho foi esmiuçado, o que
outro permitem mediar experiências comuns. fez com que os entrevistados compreendessem de uma
melhor maneira que estavam fazendo parte da produção
Mas, as entrevistas gravadas representam um mate- de um procedimento de ensino. Possibilitou que se en-
rial também muito importante para o reconhecimento das volvessem de uma forma diferenciada com os propósitos
histórias locais. Em seus relatos os adultos falavam sobre da pesquisa.
as histórias daqueles lugares destacados pelas crianças. As conversas que antecederam às entrevistas possibi-
Histórias que, muitas vezes, as crianças não conheciam; litaram também o desdobramento das questões iniciais.
esses casos deram bons desdobramentos. Com perguntas que procediam àquelas relativas aos la-
Em relação aos desenhos, é interessante destacar que ços de permanência (pedimos que falassem sobre e o que
as crianças se detinham com mais cuidado, com muita consideravam importante para a história daquele lugar;
dificuldade, na hora de representar ladeiras, morros e que fizessem um relato da história da vinda de sua fa-
escadarias, pois, enquanto desenho, essa representação mília; que falassem sobre as mudanças percebidas nes-
era comum a qualquer outra, mas enquanto sentimento se tempo em que viviam ali) passamos a investigar mais
corporal era diversa. Nesses pequenos eventos elas de- profundamente sobre os valores específicos que cons-
monstravam que não estavam simplesmente racionali- tituíam os laços de afetividade daquelas pessoas com
zando, escrevendo textualmente uma experiência, mas aqueles lugares.
estavam, também, mentalmente a experimentando. Ou Logicamente, as conversas anteriores poderiam ser
seja, não é arriscado supor que, estavam mirando-se ima- prescindíveis caso estivéssemos somente buscando co-
ginariamente subindo e descendo escadarias e ladeiras no nhecer questões relativas ao tema proposto. Mas não po-
momento do desenho. demos esquecer que, de acordo com o ir a campo frei-
Um efeito próximo àquele praticado pelo método reano, o que se estabelece não são simplesmente con-
freireano, quando os educandos observavam-discutiam, tatos, mas sim relações. É nessas conversas que temos
em distanciamento, as realidades por eles vividas com oportunidade de clarificar os objetivos do trabalho. Essa
o auxílio de imagens. A partir dessa mirada distanciada forma de proceder da prática freireana, realce aparen-
propiciam-se vínculos entre o que é, e o que pode vir a temente simples, constitui um passo fundamental para
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revelam nuances que concentram poéticas, lembranças, “Antigamente, quando eu vim pra cá conhecer eu ti-
desejos de encontros nem sempre reveláveis; de mudan- nha quinze anos, e saia para dar uma volta e conhecia
ças que fizeram com que os lugares perdessem muito de todo mundo. Todo mundo conhecia todo mundo sabia
sua aura original; de rejeição tão relacionada à recusa das onde estava todo mundo” E (43 anos - localidade 1).
transformações observadas num dado intervalo de tem-
po; do trabalho que demarca a luta pela sobrevivência “Como eu converso com o C, quando viemos para Pa-
dos e nos ambientes. quetá, aqui na Praça, tinha muita árvore lá. As árvores
A perda foi um tema recorrente entre os idosos. Os caíram e eles não plantaram outras no lugar. Agora de-
espaços perdidos são, também, espaços que permitiam o vem ter umas três ou quatro e quando caírem aquelas
recordar conhecimentos constituídos. A recordação, no vai ficar só aquele coreto lá” A (65 anos - localidade 1).
entanto, tornada possível pelo exercício de memória se
desestabiliza (Bosi, 2004) quando a ela é sobreposto o “A Praia é uma, que não é mais como era. Eu gosto da
sentimento da perda da concretude que só é possível, em antiga, dessa nova eu não gosto, de quando não tinha
intensidade, pela re-experimentação do lugar com a aju- esse aterro. (...) a gente não precisava nem pegar barco,
da do encontro dos sentidos: a audição, o tato, o olfato, a tinha (peixe) aqui na beira da praia. Agora não temos
visão e o paladar.3 Quando observamos o modo como os mais. Acabou tudo, tudo, tudo. A poluição acabou com
moradores de Paquetá falam sobre mudança, por exem- tudo nosso” M (52 anos - localidade 1).
plo, podemos perceber algumas aproximações e diferen-
ciações. Sobre certos aspectos mudança remete a perda. Com essas citações, podemos perceber que os senti-
Citamos alguns trechos: mentos com o lugar se manifestam das mais diversas for-
mas, a intensidade com a qual essa emoção é transmitida
“Você pegava marisco ali com uma facilidade tremen- vem a ser um primeiro indicativo da amplitude dos elos
da. Você mergulhando com uma máscara, você ficava afetivos. Podem ser descritos pelo “prazer visual efême-
a um metro e meio ou dois metros do fundo e pescava ro; o deleite sensual de contato físico; o apego por um lu-
siri. Nós fazíamos uns arpões de pedaços de vergalhão, gar por ser familiar, porque é o lar e representa o passado,
ficávamos passando na beira da calçada... a dois me- por que evoca orgulho de posse ou de criação; alegria nas
tros você pegava siri no fundo (...) Antigamente você coisas devido à saúde e vitalidade animal” (Tuan, 1980,
pegava peixes nobres, pescada amarela, por exemplo, p. 268). Esses prazeres são comuns a homens, mulheres
Artigo - Fenomenologia e Geografia: espaços, lugares e paisagens
com a mão” P (43 anos - localidade 2). e crianças de lugares distintos. Assim,
“Naquela época pegávamos cavalo marinho azul, ca- “Uma comunidade realmente enraizada pode ter san-
valo marinho branco, cavalo marinho laranja. Pegava tuários e monumentos, mas é improvável que tenha
ouriço do mar, que furava os pés. Você via as arraias. museus e sociedades para preservar o passado. O es-
A poluição acabou com isso tudo, não tem mais. Você forço para evocar um sentimento pelo lugar e pelo pas-
jogava rede e pegava peixe de várias qualidades. Ago- sado frequentemente é deliberado e consciente. Até
ra acabou essa variedade de peixe, a poluição acabou onde o esforço é consciente, é a mente que trabalha,
com tudo” A (65 anos - localidade 2). e a mente – se lhe permitimos exercer seu domínio
imperial – anulará o passado, transformando tudo em
“Gostava (de pescar), era bem melhor do que hoje. conhecimento presente”. (Tuan, 1983, p. 219)
É porque não existia poluição. A fartura de peixe era
grande, hoje já não existe. Tem peixe que a garotada
não conhece. Cação, raia. Raia vinha na beira da praia. Reflexões finais
Siri muito, o pescado era farto. Hoje em dia acabou
tudo. Muita coisa a garotada não conhece. (...) hoje Para um bom desenvolvimento da questão poderíamos
em dia quem vive de pesca morre de fome. (...) ouri- pedir que os nossos interlocutores explicassem sobre o
ço, cavalo marinho, cobrinha do mar. Estrela do mar. que aprenderam nesses lugares, que emoções, que sabe-
Marisco. Essas crianças de quinze anos de idade já res, que prazeres nele foram constituídos? Qual o papel
não conhece nada, nada, nada. Tinha aqui na beira político de uma sociedade mais consciente de seus patri-
da praia” C (54 anos - localidade 1). mônios (objetos e sentimentos) na preservação desses lu-
gares? Mas o que, em verdade, queremos preservar, serão
os lugares ou as experiências adquiridas, os sentimentos
“Quando retornamos à cena de nossa infância, não somente a paisa-
3 aflorados, com eles? Mas, preservados, ou não, os lugares,
gem mudou mas também a maneira como nós a vemos. Não podemos a pedagogia não poderia se verter num instrumento de re-
recapitular completamente o sentimento essencial de um mundo vi- velar-comunicar aquilo que realmente lhes dá substância,
sual do nosso passado sem o auxílio de uma experiência sensorial
contra uma cultura demasiadamente atrelada à imagem?
que não mudou; por exemplo, o forte cheiro da alga marinha apodre-
cendo” (TUAN:1980, p. 12) E o que representaria, para a política, para a economia,
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 181-187, jul-dez, 2016 186
Cartofilias Urbanas
para a sociedade, uma cultura escolar apoiada pela re- de aula, onde os alunos devem ser convidados a perce-
velação-comunicação das experiências atreladas aos lu- ber-apreender diferenças e semelhanças; aproximações,
gares? Que valores humanos poderíamos deduzir desse distanciamentos e respeitos.
movimento?
É provável também que esse aprendizado feito no
ambiente íntimo, a partir das experiências dos familia- Referências
res seja mais profundo, assim duradouro, do que aque-
le praticado nos círculos escolares. Como fazer com que Bachelard, G. (1996). A poética do espaço. São Paulo: Martins
esse ambiente doméstico seja um melhor mediador para Fontes.
o ensino ambiental? Certamente, para isso, a escola deve Bachelard, G. (1996). A formação do espírito científico. Rio de
estar atenta às experiências com as quais os familiares Janeiro, Contraponto.
dos alunos podem colaborar para a ilustração de novos
aprendizados. Concordando com Tuan, em confluência Bosi, E. (2004). Memória e Sociedade. Lembranças de Velhos.
São Paulo: Companhia das Letras.
com Freire: a experiência corporifica a compreensão so-
bre as coisas. Buber, M. (1976). Eu e tu. São Paulo: Cortez e Moraes.
Não há limites para a construção de novos conheci-
mentos quando nos dispomos a experienciar os ambien- Buber, M. (1983). Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Pers-
pectiva.
tes dialogando com as experiências do outro. Reconhecer
que todas essas experiências ambientais são relacionáveis Freire, P. (2005a). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz
consiste num primeiro passo para a constituição de la- e Terra.
ços educacionais maiores. Mas, quais são os desafios em
Freire, P. (2005b). A Educação na Cidade. São Paulo: Cortez.
comunicar experiências que envolvem sentimentos tão
diversos, para indivíduos com expectativas e percepções Freire, P. (2002). Aprendendo com a própria história. São Pau-
mais diversos ainda? O foco do discurso na experiência lo: Paz e Terra.
obtida a partir da relação com o ambiente é fator de van-
Freire, P. (2000). Pedagogia da Indignação. São Paulo: Edito-
tagem para um exercício de trocas mútuas. Entretanto, a
ra Unesp.
dimensão real do desafio que se apresenta só poderá ser
mensurada a partir da prática. Freire, P. (1996). Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra.
187 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 181-187, jul-dez, 2016
A rtigos
- E studos Teóricos ou Históricos ........
Subjetividade e Indivíduo: Vivência de Tensão
Resumo: Trata-se de um breve estudo reflexivo acerca das categorias de subjetividade e Indivíduo, tal como meditadas pelo filósofo
danês, Sören Kierkegaard. Longe de serem compreendidos como conceitos psicológicos ou sociológicos, estas categorias trazem,
nelas mesmas, uma vivência de paradoxo, atravessado por uma fé apaixonada. Somente uma subjetividade experienciada no
paradoxo absoluto (tarefa existencial do Indivíduo) pode assumir o devir cristão, ideia que atravessa toda a reflexão kierkegaardiana.
Palavras-chave: Subjetividade; Indivíduo; Paradoxo; Fé; Devir.
Abstract: This is a reflective brief study of the categories of subjectivity and Individual, as meditated by danish philosopher Sören
Kierkegaard. Far from being understood as psychological or sociological concepts, these categories bring, a paradox experience,
crossed by a passionate faith. Only one experienced subjectivity in absolute paradox (existential task of Individual) can take the
becoming Christian, an idea that runs through all of Kierkegaard’s reflection.
Keywords: Subjectivity; Individual; Paradox; Faith; On becoming.
Resumen: Se trata de un estudio reflexivo breve de las categorías de la subjetividad y la individual, como meditado por el filósofo
danés Søren Kierkegaard. Lejos de entenderse como conceptos psicológicos o sociológicos, estas categorías traen, de por sí una
experiencia de paradoja, atravesado por una fe apasionada. Sólo una subjetividad con experiencia en la paradoja absoluta (tarea
existencial del Individuo) puede asumir el devenir cristiano, una idea que corre a través de toda la reflexión de Kierkegaard.
Palabras-clave: Subjetividad; Individual; Paradox; Fe; Devenir cristiano.
191 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 191-197, jul-dez, 2016
Carlos R. S. da Ponte
Kierkegaard não tolera a letargia dos filosofantes. subjetivo não tem certeza de nada. Mesmo quando se di-
Urge decidir, e o saber subjetivo é prenhe desta urgência, rige a Deus com toda a força de sua fé apaixonada, não
que não é sinônima de pressa. Urgência aqui é o que é possui garantias. Se as tivesse, assevera Kierkegaard, não
imprescindível, necessário e que não pode esperar mui- necessitaria de fé. O filósofo, assim, toma partido do pa-
to por considerações que fariam o humano recair na es- gão que presta sua oração com fé.
peculação vacilante bem ao gosto da tranquilidade e da A fé, em Kierkegaard, não é uma mera virtude teologal,
paz quieta dos animais, não sendo então mais uma sub- nem é dispensada em um conceitual acabado e sistemáti-
jetividade apaixonada. co. Nem poderia. Mas o que é a fé para o pensador danês?
O humano vivente em sua paixão na interioridade li- E aqui, diferente de outras de suas obras pseudonímicas,
ga-se ao como dos seus ditos. Este “como” é a abertura de quem aqui fala é o Magister Kierkegaard.
sua vivência que se impede de fechar em verdades obje- O Discurso Edificante, A expectativa da fé, foi escri-
tivas, exteriores a ele mesmo. Kierkegaard é enfático nas to por Kierkegaard para ser o primeiro de uma série de
suas conclusões quando nos diz que pequenas obras assinadas por ele mesmo sem recorrer a
pseudônimos. Essa produção, estritamente religiosa, es-
Objetivamente, não se interroga a não ser sobre o con- tendeu-se até, aproximadamente, 1852. E o que se perce-
teúdo do pensamento. Subjetivamente, não se interro- be como primeira impressão (e um pouco de imaginação)
ga a não ser sobre sua interioridade. Em seu máximo, é a de um Kierkegaard de fala sóbria, porém acolhedora,
este como é a paixão do infinito e a paixão do infini- típica de um tom pastoral, erguido em um púlpito, por
to é a própria verdade. Mas a paixão do infinito é jus- sobre ouvintes atentos, a escutar seu sermão dominical.
tamente a subjetividade e, assim, a subjetividade é a Mas ele mesmo declara ser o menos indicado a realizar
verdade. (Kierkegaard, 1986a, p. 238) sermões, pois, para isso, haveria de ter autoridade, coisa
que não considera possuir. Prefere discursar para quem
O que poderia ser esta subjetividade, senão um sinô- queira ouvir (Kierkegaard, 2001).
nimo de liberdade? E por quê? Porque se separa dos gri- Kierkegaard atesta: fé é tarefa. E assim é preciso ter
lhões de um conforto que fariam do humano apenas mais claro que a compreensão da fé está em apreender seu sig-
um na massa da multidão, seguindo seus descaminhos nificado essencial, não como conceito aplicável a qual-
confortáveis de rebanho. Ao contrário, o humano existen- quer fato tal como uma lei humana que, espera-se, possa
te termina não podendo escapar de si e, em meio a toda se adequar. O que está em questão, por princípio, é es-
a angústia de liberdade, toma a si mesmo em mãos, res- te desejar pela fé que aponta para a não-completude do
ponsabilizando-se por sua verdade. Pode-se dizer que a humano; para seu modo de ser finito. Daí Kierkegaard
subjetividade se apresenta como algo que traz redenção lançar mão de diálogos no correr do texto, que são como
ao existente (Le Blanc, 2003). Esta “redenção” é o coro- que inquietações de quem procura um sentido a fim de
amento desta tensionada liberdade subjetiva. O que não realizar a fé tão almejada. Kierkegaard aponta caminhos
significa uma espécie de “síntese”. possíveis, características e atributos que soam como ex-
A filosofia hegeliana (segundo o ponto de vista periência possível no sentido da fé. É preciso tomar a fé
kierkegaardiano) tem a pretensão de tudo poder expli- como para se chegar à fé (Kierkegaard, 2001). Este é ou-
citar em termos de necessidade, direcionada a um fim. tro jogo de vivência paradoxal.
O reproche de Kierkegaard a esta filosofia é o seu cará- Mesmo que se descarte a natureza objetal da fé, como
ter abstrato no tratamento com a realidade, deixando de pensar que ela possa ser possuída por mim e por muitos ao
lado a interioridade apaixonada. Repito: não há media- mesmo tempo? Kierkegaard responde que a fé é algo que
Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
ção, ou síntese; mas abertura e tensão postas no tempo o humano realiza; é uma experiência. Quanto a isso ele é
contingente do humano. Lembremos: enquanto existen- bastante enfático ao dizer, nesta famosa passagem, sobre
tes, estamos em devir. Creio que foi um golpe de grande a possibilidade de posse da fé e de passá-la a outrem. Es-
lucidez quando Kierkegaard, ao lembrar o caráter tem- creve ele que “uma pessoa pode fazer muitas coisas por
poral que nosso existir, na subjetividade verdadeira (e outra, mas não pode dar-lhe fé” (Kierkegaard, 2001, p. 31).
não na objetividade falsa), é um esforço sem um ponto Entretanto, se o humano não sabe o que é a fé, como
final, mas reanimado em diversas retomadas tensiona- e onde vai encontrá-la ou realizá-la? Embora Kierkegaard
das, nunca findas. insista na necessidade da fé, ele menciona, em seus pe-
O devir não é tão-somente uma constatação. É tam- quenos diálogos, as possíveis experiências das desventu-
bém um ato de fé de que a verdade se encontra no correr ras humanas que impõem dúvida e receio sobre a nossa
deste tempo contingente e trágico. Penso que para ilus- própria existência. A fé é uma tarefa, já foi dito. Mas é
trar este ponto de vista, recorro aqui a uma imagem bem sempre uma tarefa a ser recomeçada. Ela não é objeto de
conhecida feita por Kierkegaard: o que reza a Deus, mas posse de uma vez por todas. Se assim fosse, possuiria um
sem paixão, e do pagão que reza a um ídolo, mas com perfeito conceito fechado em si mesmo denotando um sa-
toda a paixão e verdade infinitas. Kierkegaard pergun- ber absoluto e se dissolveria enquanto experiência. Como
ta: onde existe mais verdade aí? Aquele que vive o saber se vai então à fé? Segundo Kierkegaard, como experiência,
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 191-197, jul-dez, 2016 192
Subjetividade e Indivíduo: Vivência de Tensão
é algo continuamente gerada e adquirida (Kierkegaard, Longe de o caminho conduzir ao objetivo, o começo
2001). Só se tem dela experiência, em última instância, não faz mais do que mergulhar mais profundamente
quem dá um salto. Um salto no escuro. ainda na subjetividade. (Kierkegaard, 1986a, p.241)
Kierkegaard afirma que a fé é uma expectativa. Expec-
tar é o mesmo que esperar. No entanto, não é do “verde” E mais ainda, “se já era paradoxal que a verdade eter-
da esperança que Kierkegaard fala. Nem mesmo de uma na se relacionasse com o sujeito existente, é agora abso-
esperança romântica de coisas boas que seguramente vão lutamente paradoxal que se relacione com um tal sujeito
ocorrer, bastando, é claro, “esperar” para que ocorram. Tal existente” (Kierkegaard, 1986a, p.241). Por outros termos,
raciocínio, sabemos bem, promove que se recaia em um este “sujeito existente” é o humano pecador.
círculo vicioso que, mais do que girar sobre si mesmo, le- O humano se encontra na não-verdade. Ele é a não-
va a muitos a adentrarem em um imobilismo, ou, no pior -verdade. Mas como o humano chega a ganhar essa cons-
cenário, no desespero... ciência? Nas Migalhas Filosóficas, escrito pelo pseudôni-
Kierkegaard não cessa de falar que a expectativa da mo Johannes Clímacus, Kierkegaard diz que o humano
fé é vitória. O sentido de “vitória” remete imediatamen- não pode ser considerado ignorante, pois ele foi lembrado
te ao caráter anterior de luta. O filósofo afirma que nin- pelo mestre, isto é, Cristo. A pergunta pela verdade já é
guém consegue ser mais forte que nós senão nós mes- decorrência de um reconhecimento como estando na não-
mos. Mas como vencer a nós mesmos? Ou, como perder -verdade. Se o humano não tem a condição de perceber
de nós mesmos? Primeiramente, o si-mesmo de nós co- a verdade em sua inteireza, não foi por causa de Deus,
mo um outro é saber-se na condição de pecador; finito. mas por culpa do próprio humano. Esse estado de culpa
A ânsia por completude é totalmente despropositada é o pecado. (Kierkegaard, 1995, p.35).
ao empreendimento da luta, sob pena de perder-se, de- O pecado é a culpa. O desnível entre o humano e Deus,
sorientado e não sabendo ao certo onde está o bem que mesmo depois de adquirir a consciência do pecado e da
tanto almeja. Sabendo-se finito, o humano dialoga con- verdade como subjetividade, ainda se mantém. Disso se
sigo em busca da fé. Assim, é a configuração de uma lu- conclui que esta falta não pode ser apagada por esta cons-
ta que jamais cessa, e isso aponta, mais uma vez, para a ciência nova. A consciência da não-verdade é uma condi-
tarefa constante da fé; isto é, espera vivida a fim de que ção da qual jamais se sai; é exatamente onde o humano
ela faça valer a vitória. se situa, ou melhor, ele mesmo é essa situação de cindido.
Essa fé só se espera em mira com o eterno (Kierkega- Só assim o humano pode perguntar pela verdade e ir ao
ard, 2001). Embora o eterno dê a entender o seu oposto, seu encalço: já estava na não-verdade, mas perguntava e
o movimento como devir, este eterno aponta para o Ab- se ocupava. Agora que ele sabe que é não-verdade, pode
solutamente Outro, figura pouco mencionada neste Dis- perguntar pela verdade. Verdade e não-verdade imbricam-
curso. Ele lampeja. Kierkegaard apenas deixa subtendida -se numa dialética irresolvível. Só a possibilidade aí aber-
a figura divina. Deste modo, no dizer de Kierkegaard, a fé ta pelo não-ser se põe como tarefa. Vê-se perfeitamente
é o órgão do sentido que capta o histórico (Kierkegaard, o par dialético do desocultamento/ocultamento que será
1995, p.117s). Ter fé é ter sentido histórico: é experiência mais tarde aprofundado, tempos depois de Kierkegaard,
de enfrentamento contínuo de si como tarefa compreen- por Heidegger, em sua obra Ser e Tempo. São lampejos e
siva e interpretativa. O enfrentamento aponta para o es- sombras desta tensão sem síntese.
tranho, para este Deus que se fez humano como o eterno Para vir-a-ser um autêntico existente dentro do devir
no tempo. Deus como o histórico é ao mesmo tempo ex- cristão, e não apenas mais um na massa de gente, é preciso
pectativa e projeto a ser interpretado, pois surge para mim a consciência de ser finito e pecador. O existente é a pro- Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
como negatividade que me escapa e também me envol- va viva desta dialética entre verdade e não-verdade; entre
ve a ponto de jamais concluí-lo ou cercá-lo. O mesmo se o eterno e o temporal em devir. A existência, em Kierke-
pode dizer da fé, que em se lutando/expectando realiza- gaard, é uma impossibilidade. “Impossível” é o que não
-se como história da minha subjetividade, aqui compre- poderia ser ou acontecer em circunstância alguma. Disto
endida como incerteza. se deduz que tal existência imersa nas tensões subjetivas
Voltando à subjetividade e sua paridade com a verda- acima descritas a partir da fala kierkegaardiana, seria de
de, repetidas vezes Kierkegaard, vem nos lembrar, tam- um inenarrável sofrimento que provavelmente poucos
bém, de que “a subjetividade é a não-verdade” (Kierkega- poderiam suportá-la. No entender de Kierkegaard, Cristo
ard, 1986a, p.241). Contradição? Não mesmo! Ele reafirma o viveu. Como não somos o Cristo, está ao nosso alcance
nossa condição de entes pecadores. E sobre este cúmulo a possibilidade de tornarmo-nos cristãos à sua imagem e
de vivências plenas de tensões, escreve ele que semelhança subjetiva e existente.
Diferente de Sócrates, outro grande interlocutor
a subjetividade enquanto quer começar a tornar-se constante na obra de Kierkegaard, que professava sua
verdade, através de um processo de subjetivação, docta ignorantia, o existente sabe muito bem para onde
acha-se nesta situação difícil que ela é a não-verdade. vai: para a beira do abismo da “incerteza certa” chamada
Assim, o trabalho recua, isto é, perde em interioridade. fé. Postando-se à beira, ele salta. E ainda aqui (parado-
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Carlos R. S. da Ponte
xalmente), ele é semelhante a Sócrates que dizia saber um desejo de falar o que estaria para além da lingua-
que nada sabia. Afinal, repitamos, não há garantias na gem, atirando-se contra as grades de sua jaula. Lançar-
fé. Somente uma subjetividade experienciada no cadi- -se contra estas grades é tentar mostrar um esboço deste
nho do paradoxo absoluto pode navegar nas águas in- ente Individual que encontra seu sentido último na sua
tranquilas do devir cristão, atravessado pela verdade e relação com Deus. Mais uma vez, os passos kierkegaar-
não-verdade, posto que nenhuma delas é posse do hu- dianos serão o guia.
mano. Elas é que o possuem, o definem, o condenam, Primeiramente devemos lembrar que ao humano é da-
o salvam. E esta subjetividade toma forma, encarna-se da a condição de ser membro de uma espécie, onde ele
em outra categoria kierkegaardiana (aqui apenas sub- poderia muito bem permanecer nesta condição se confun-
tendida): o Indivíduo. dido com a “massa”, o “rebanho” ou a “multidão”. Toda-
via, ao humano é dada a possibilidade de refazer sua vida
e tornar-se Indivíduo. Não que ele escolha existir de ago-
2. Indivíduo ra em diante, posto que já se encontre na posição prévia
de ser-no-mundo (para utilizar uma expressão de Heide-
De certo modo, foi dele que se falou até aqui, quan- gger). Só precisa decidir-se diluir na multidão ou tornar-
do foi ressaltada a questão dos pseudônimos, e que agora -se singular, existente Individual. Diz nos Kierkegaard,
se pretende sublinhar alguns aspectos em que o próprio
Kierkegaard se deteve a fim de dizer com propriedade A multidão se compõe de indivíduos. Deve estar, pois,
quem é este Indivíduo. Antes de adentrar nos meandros ao alcance de cada um tornar-se o que é: um indiví-
desta reflexão kierkegaardiana, é de interesse fazer algu- duo. Ninguém, ninguém em absoluto está excluído
mas diferenciações terminológicas no sentido de mostrar de tornar-se um indivíduo exceto aquele que se ex-
de que categoria Kierkegaard não está falando. clui de si mesmo, tornando-se multidão. (Kierkegaard,
Paula (2009), sobre o termo “Indivíduo”, escreve que 1986b, p.169)
“este possui duas origens: em grego, se diz atomon e, na
língua latina, individuum. Em ambos os idiomas, o signi- E se é de decisão, de escolhas que se fala, então é da
ficado aproxima-se de lago que possui uma unidade ori- liberdade que o humano precisa haver-se, pois existir au-
ginária e singular” (p. 39). Dirigindo sua atenção à língua tenticamente implica em pesar sempre as possibilidades
dinamarquesa, Paula (2009) aponta que e não se deixar levar pela massa, caminho mais fácil para
ir levando a vida. Portanto, se a verdade do Indivíduo é
o tema do indivíduo, na obra kierkegaardiana, pode uma verdade subjetiva, o caminho para compreendê-la é
ser melhor iluminado através de três termos específi- o da responsabilidade devidamente ponderada na interio-
cos do idioma dinamarquês: o primeiro deles é exem- ridade subjetiva, onde vigem a verdade e a não-verdade.
plar, que serve para designar um integrante da espécie Apesar de que já foi apontado que, para Kierkegaard, a
humana; o segundo é individ, que equivale a pessoa, existência é um impossível, lá vem ele nos dizer que ela
relacionando-se também ao meio social humano; já o é, também, possibilidade de escolha. Eis aqui mais um
terceiro, enkelte, está mais relacionado àquele indiví- par dialético desprovido de mediações ou resoluções.
duo que se assume existencialmente. Em todos esses A intranquilidade, é claro, ainda vigora aqui.
casos, a individualidade (individualitet) mostra-se su- Na dúvida, o humano deve lançar-se nos braços de
perior aos indivíduos isolados. O pensamento kierke- Deus, amparado na incerteza da fé. Assim, as escolhas
gaardiano diferencia o indivíduo da mera determina- do Indivíduo (se Indivíduo, ele decidir tornar-se) serão
Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
ção animal. (p.140. Em itálicos no original) permeadas pela angústia, posto que nada mude nas in-
determinações da existência. Não é à toa que, segundo
Perante tal determinação de “individualidade” que se Bannour (1974, p.262), “o destino do Indivíduo é ser so-
encontra numa posição superior diante de outros huma- litário”. Mas por que deveria ele ser solitário? Kierkega-
nos, pode parecer incorrer em uma contradição que se ard o confirma?
pretenda circunscrever a noção de Indivíduo. Mas não A resposta é positiva, pois Kierkegaard, quando se põe
há escolha tranquila na filosofia do danês. Incorre aqui a escrever (seja em suas obras assinadas por ele mesmo
a lembrança de que Wittgenstein afirmou certa vez, me ou por seus pseudônimos), ele o faz a todos e a cada um.
conversas com seus colegas da Filosofia Analítica do Ele foi um solitário. O Indivíduo também é: não procura
Círculo de Viena, que tinha enorme respeito por aque- sua justificação com alguém ou com a multidão. Sua re-
les que, não se calando, tentavam dizer o que, para ele, lação e justificação provêm unicamente de Deus. Se tu-
não poderia ser dito por que não haveria condições de do se resume em tornar-se cristão, logo, a escuridão e a
dizer (que ele resume na conhecida última proposição penumbra são parte deste mesmo percurso.
do seu Tractatus: “Aquilo que não pode ser dito, deve ca- Ao escrever sobre o Indivíduo, Kierkegaard arrisca-se.
lar- se”). Para o filósofo austríaco, quem a isto se dedica Afinal, como falar publicamente desta categoria (posto
é alguém que se atira em um “salto”, a fim de expressar que não chega a ser um conceito “fechado” e “pronto”)
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 191-197, jul-dez, 2016 194
Subjetividade e Indivíduo: Vivência de Tensão
tão existencialmente pertencedora a uma singularidade e com a “multidão”, cuja a elevada quantidade numérica
intimidade, e ainda querer ser compreendido quando de- quer fazer crer poder corresponder à “verdade”, qual-
la fala? A verdade do Indivíduo não pode ser senão uma quer que seja ela. Em momento algum, Kierkegaard fala
verdade subjetiva. Como, pois, explicitá-la? de “grupo” ou “comunidade”; fala de “multidão”, o que
Ao escrever as Duas Notas sobre o Indivíduo em imediatamente lembra um aglomerado humano maleável
seu livro póstumo, Ponto de Vista Explicativo de Minha e/ou conduzido por esta ou aquela ideologia.
Obra como Escritor, Kierkegaard parece ter ainda dian- Em Kierkegaard, o refúgio na multidão seria como um
te de seus olhos os efeitos sociais da Primavera dos Po- retorno ao paganismo. Entenda-se este termo colocado pe-
vos (ocorrida em 1848) e que teve sua versão dinamar- lo filósofo como uma referência à maneira de viver dos
quesa. Deve ter sido isso que ele viu pela janela de sua antigos helenos nas póleis, permeadas pelo ideal demo-
casa: as multidões caminhando e gritando palavras de crático, regime ao qual Kierkegaard tinha suas reservas
ordem pelas ruas de Copenhague, em prol de mudanças quando se queria tomar seu modelo político para o interior
políticas no país. Estas notas são duas pequenas peças do cristianismo e para os assuntos ligados à divindade:
poético-incisivas inspiradas, também, pelo momento his- viver democraticamente seria o livre uso da capacidade
tórico danês de então. da razão que se torna inútil e escandalizada diante dos
Antes de iniciar suas Notas sobre o Indivíduo, e afir- paradoxos da fé. O que importa, para além da temporali-
mando que “tudo é política”, Kierkegaard tem total cons- dade da multidão, é a eternidade onde o Indivíduo toma
ciência do quanto a mobilização das massas, neste plano sua decisão e salta para atingir sua “meta”.
temporal, mundano e secular, só se justifica na busca de Kierkegaard escreve claramente: “A multidão é a men-
uma vida materialmente melhor. Todavia, Kierkegaard tira”. E o repete exaustivamente para salientar que nada
não se ilude: a ação política que não leva em conta a es- em seu pensamento filosófico-religioso tem parte com
colha individual, particular de cada indivíduo em sua aglomerações de gente, quer estejam elas organizadas ou
existência, tendo em vista a eternidade divina, pouco fa- não. Isso mostra com clareza como Kierkegaard, no fun-
rá em mudar as formas de vida dos humanos. Embora o do, era avesso a movimentos democráticos, simpatizan-
cristianismo seja uma “religião da prática” (Kierkegaard, do melhor com a monarquia. O filósofo prefere apontar
1986b, p.93), o ponto de vista kierkegaardiano afirma que suas acusações contra a multidão nervosa que tudo quer
a almejada busca pela igualdade humana, tão procurada ditar. O Indivíduo é, acima de tudo, testemunha da ver-
pelas lutas políticas, é inútil já que “o religioso repre- dade que “fala a cada um em particular, nas ruas e nos
senta o verdadeiramente religioso” (Kierkegaard, 1986b, caminhos” (Kierkegaard, 1986b, p. 167).
p.94). Por outros termos, a igualdade entre os homens só O contraponto Indivíduo/Multidão é contundente.
pode vigorar pela prática do amor ao próximo, posto que O indivíduo, para Kierkegaard, sempre se relaciona com a
todos são criaturas de Deus. O político não conseguiria verdade. Por tal dedicação já é um mártir. Mesmo queren-
tal unidade. do partilhar com todos a sua relação com a Verdade, a fala
Os humanos, segundo Kierkegaard, podem não per- do Indivíduo é dirigida a cada um em particular porque
ceber claramente, mas a sua temporalidade existencial e a decisão pelo eterno é de foro íntimo. Portanto, o poder
finita, almeja a eternidade. Mas os humanos nada querem secular, no entender de Kierkegaard, que se apoia na so-
saber do que do eterno pode advir. O enraizamento obsti- ciedade civil e a ela se dedica é perfeitamente justificado.
nado na dimensão temporal só faz crescer no humano, na No entanto, este poder da multidão se torna a “mentira”
forma de uma saudade e de um queixume que o aperreia quando se arroga arbitrar em matéria espiritual e religio-
em seu espírito disperso, a necessidade do eterno. Ele só sa. É bem provável que esta crítica de Kierkegaard tives- Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
não o sabe claramente. De certo modo, este raciocínio faz se como alvo a Igreja Luterana dinamarquesa que tendia
eco à tese platônica da Reminiscência. a confundir espiritualidade vivida com religiosidade de
Na Primeira das Duas Notas, Kierkegaard não parece templos lotados, locus onde o Estado também exercia seu
fazer críticas que desqualifiquem a atividade política em poder sobre a sociedade, uma vez que a esta Igreja estava
si mesma, até mesmo reconhecendo sua necessidade nos submetida ao Estado, e seus pastores, funcionários remu-
assuntos terrenos. A ressalva que ele coloca é que não se nerados pelo governo.
pode tomar a política que se faz para o bem-estar geral Kierkegaard pergunta: como o Estado poderia se imis-
como modelo para os assuntos ligados ao cristianismo: cuir nos assuntos do Indivíduo com a verdade divina?
afinal, um número elevado de partidários de uma causa Verdade esta em que Deus, o Absolutamente Outro, é
política, ou a sociedade civil organizada, podem reivin- a própria mensagem? Daí o filósofo reforçar a ideia do
dicar e conseguir algo com sua união. Todavia, fazer par- “Deus Pessoal” em consonância com o argumento de
te de um “monte de gente batizada” não é a garantia da quem quiser se tornar o Indivíduo tem de tomar posse
bem-aventurança futura. de si mesmo; reconhecer-se plenamente como devir e co-
Assim, Kierkegaard fica o tempo inteiro contrapondo o mo tarefa inacabada na sua relação com a Verdade. Com
Indivíduo que visa atingir “sua meta” sob os auspícios da certeza, imergir na multidão é bem mais fácil. Todavia,
divindade e aparentado a ela (Kierkegaard, 1986b, p. 97), diluir-se deste modo, excluindo-se de si próprio, só faz
195 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 191-197, jul-dez, 2016
Carlos R. S. da Ponte
do humano um número a mais entre as cabeças sem fim só encontraria acolhida se satisfizesse aos desejos e ca-
deste rebanho. prichos da “multidão”. A compreensão e a existência no
Na Segunda Nota, Kierkegaard é bem mais incisivo cristianismo são aspectos que só se constroem na relação
em delinear os contornos da categoria do Indivíduo. Ao individual e intransferível diante de Deus.
mesmo tempo ele situa alguns sentidos possíveis dentro O quarto sentido elencado por Kierkegaard para a ca-
de sua obra como escritor eminentemente religioso. Para tegoria do Indivíduo é de que com ela “a causa do cris-
Kierkegaard, “a questão do Indivíduo é decisiva entre to- tianismo” ainda subsiste. Com este argumento o filóso-
das” (Kierkegaard, 1986b, p. 105). Kierkegaard afirma que, fo explica que, sem ela, o cristianismo transformar-se-ia
como escritor, cada obra assinada por um pseudônimo, em panteísmo que justificaria o dito popular que a voz
de um modo ou de outro, apresentou a questão do Indiví- do povo é a voz de Deus. Tal “justificativa” que encontra
duo. Trabalhando na baila de uma dialética sem síntese e recepção total na multidão dos cristãos, em Kierkegaard
sem superação, tornando mais tensa a dinâmica do devir não faz o menor sentido. O Indivíduo não tem sua voz
cristão, o Indivíduo é aquele que pode se tornar “único” em sintonia com Deus; sua sintonia está na submissão e
perante Deus. Estas significações são válidas, pois aque- obediência à vontade divina: ele escolhe resolutamen-
le que se torna o Indivíduo, nada possui de diferente ou te estar a sós consigo mesmo, mas junto a Deus. Existe
especial: simplesmente foi uma questão de decisão em uma relação aqui (não de um isomorfismo) totalmente
poder e querer ser. Daí certa ambiguidade conceitual: o assimétrica e heterogênea, posto que Deus é este Abso-
Indivíduo só pode sê-lo por auxílio da Graça, porque tal lutamente Outro em relação a mim mesmo. A categoria
existência é algo “no mais elevado grau” e que “ultrapassa do Indivíduo encontra sua força e destinação quando se
as forças humanas” (Kierkegaard, 1986b, p. 109). quer mostrar o que é o autêntico devir cristão dentro da
Passando em revista alguns sentidos a mais que o con- multidão da cristandade.
ceito de Indivíduo pode ter, Kierkegaard nos diz, primei- A filosofia kierkegaardiana do Indivíduo imputa uma
ramente, que ele é a “categoria pela qual devem passar, escolha em despertar a imobilidade do espírito para a
sob o ponto de vista religioso, a época, a história, a hu- mobilidade do tornar-se espírito; isto é, tornar-se cristão
manidade” (Kierkegaard, 1986b, p. 109). Este raciocínio que implica em sair do número da multidão para ser ape-
de Kierkegaard parece fazer alusão à mistura de filoso- nas um: uma exceção à regra massificante e inautêntica.
fia, teologia e política de inspiração hegeliana, posto que Kierkegaard quer a autenticidade de escolha do humano, o
um pouco mais à frente indique que esta categoria foi (e qual, saindo da mera animalidade, “se assume existencial-
é) confrontada com “o Sistema” em todas as obras pseu- mente”, construindo sua singularidade e individualidade
donímicas. As revoltas populares de 1848 provavelmen- para além dos humanos isolados entre si. Em Kierkegaard,
te foram gestadas bem antes; e como Kierkegaard tinha Indivíduo, fé, angústia e decisão andam de braços dados.
por hábito conversar com várias pessoas de vários seg-
mentos sociais, é possível que tenha ouvido falar destas
ideias revolucionárias e socialistas. Como Kierkegaard Considerações finais
poderia concordar com a confluência entre a razão, o di-
vino e a ação política? Como filósofo, Kierkegaard possui pretensões de uma
Um segundo sentido é que o Indivíduo “é a categoria visão de totalidade de mundo. Esta totalidade é a relação
do espírito, do despertar do espírito, tão oposta quanto com Deus. Seu cristianismo nada tem de pacífico e suave.
possível à política” (Kierkegaard, 1986b, p. 111): oposto à Não torna o “fardo leve”: pesa-o mais ainda. Este modo
“multidão”, o Indivíduo kierkegaardiano e sua existência de enxergar o mundo é um modo de perceber o humano
Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
é um contínuo sacrifício que o “despertar do espírito” faz em sua finitude fundamental, desde que tenha na fé seu
surgir: uma nova forma de existir oposta à segurança de amparo e refúgio, de certo modo.
estar em um grupo ligado a assuntos temporais somen- O danês ainda nos aperreia: trata-se do Indivíduo vi-
te. Um terceiro sentido é que o Indivíduo é a “categoria ver uma vida que tenha sentido, vê-la em suas nuances
cristã decisiva; e se-lo-á para o futuro do cristianismo” existenciais e buscar a verdade subjetiva que valha a pe-
(Kierkegaard, 1986b, p. 111). Neste ponto Kierkegaard é na viver, para que não seja um mero transeunte destinado
enfático: só porque existe um elevado número de pesso- tão-somente a morrer um dia. A filosofia de Kierkegaard,
as que se dizem cristãos, isso não significa que Deus as a partir das categorias existenciais aqui apenas esboçadas
tenha abençoado com a Salvação, como se uma multidão em suas tensões, aponta para um pensar/viver mais rico,
pudesse tomar de assalto o cristianismo apenas pela quan- ainda que tenha algo de trágico. Não porque ele o quer,
tidade de seus membros. Este comportamento revoltoso, mas porque teimamos em não ver esta dimensão existen-
segundo Kierkegaard, é fruto de uma reflexão desmedida cial que faria todo o sentido de uma vida inteira. É um
que constrói razões pelas quais se poderiam tomar posse devir nada tranquilo se matizado com as consequências
da Salvação. Kierkegaard acentua que o cristianismo ver- compreensivas de si, do mundo e de Deus, advindo des-
dadeiro é algo que “deve ser objeto de fé numa obediente te paradoxo absoluto que a divindade é e temperado pelo
submissão perante a majestade de Deus” e não algo que sabor agridoce da fé.
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Subjetividade e Indivíduo: Vivência de Tensão
Referências
Recebido em 26.10.2014
Primeira Decisão Editorial em 17.02.2017
Aceito em 12.05.2016
197 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 191-197, jul-dez, 2016
Gustavo A. O. Santos
Resumo: Nesse artigo se apresenta alguns aspectos biográficos do psicólogo social argentino Alfredo Moffatt, importantes para a
contextualização histórica de sua base teórica e conceitual, bem como de sua proposta de terapia de crise. Em um segundo momento
aprofunda-se nos conceitos erigidos pelo autor que servem como fundamento para o conceito de crise, a existência humana como
realidade temporal e espacial encontra ecos na fenomenologia de Husserl e em autor da tradição fenomenológico-existencial,
que serão apontadas. Na terceira parte do texto é apresentado o modelo de terapia de crise do autor e os quatro passos sugeridos:
contención, regresión, explicación e cambio. Esses passos geram atitudes terapêuticas distintas: empática, hermenêutica e proativa.
Exemplifica-se seu uso no atendimento realizado pelo autor na tragédia da boate de Cromañon ocorrida no ano de 2004 em Buenos
Aires que vitimou fatalmente 194 jovens. O texto se encerra com uma discussão sobre a relevância do trabalho de Moffatt para os
atuais modelos de atendimento a crises psíquicas, assim como sua originalidade em termos sócios culturais.
Palavras-chave: Alfredo Moffatt; Temporalidade; Terapia de crise; Psicoterapia fenomenológico-existencial.
Abstract: This article presents some biographical aspects of Argentine social psychologist Alfredo Moffatt, important to the
historical context of its theoretical and conceptual foundation as well as its proposal for crisis therapy. In a second step deepens
the concepts erected by the author that serve as the foundation for the concept of crisis, human existence as temporal and spatial
reality resonates in Husserl’s phenomenology and autore the existential-phenomenological tradition, to be identified. The third
session presents the author’s crisis therapy model and the four suggested steps: contención, regression, explicación and cambio.
These steps generate different therapeutic approaches: empathic, hermeneutics and proactive. An example is its use in the
service provided by the author in the tragedy of Cromañon nightclub held in 2004 in Buenos Aires that killed 194 young. The text
concludes with a discussion of the relevance of Moffatt’s work to current models of care for mental crises, as well as its originality
in terms cultural partners.
Keywords: Crisis Therapy, Alfredo Moffatt, Temporality, Phenomenological-existential psychotherapy.
Resumen: En este artículo presentase algunos rasgos biográficos del psicólogo social argentino Alfredo Moffatt, que son
importantes para la contextualización histórica de su base teorica y conceptual, así como de su planteo de terapia de crisis. En
un segundo momento profundizase los conceptos del autor que sirven como fundamentos para el concepto de crisis, la existencia
humana concebida como realidad temporal y espacial resbala en la fenomenología de Husserl y en autores de la tradicción
fenomenológico-existencial que serán señalados. En la tercera parte del texto presentase el modelo de terapia de crisis del autor
y los cuatro pasos sugeridos: contención, regresión, explicación y cambio. Esos pasos generan actitudes terapéuticas distintas:
empática, hermenéutica y proactiva. Ejemplificase su uso en el atendimiento realizado por el autor en la tragedia del boliche
Cromañon que ocurrió en el año de 2004 en Buenos Aires, victimando fatalmente 194 jóvenes. El texto termina con una discusión
respecto a la relevancia del trabajo de Moffatt para los actuales modelos de atendimiento a crisis psíquicas, asimismo señalase su
Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
originalidad sociocultural.
Palabras-clave: Alfredo Moffatt; Temporalidad; Terapia de crisis; Psicoterapia fenomenológico-existencial.
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A Terapia de Crise Segundo Alfredo Moffatt: uma Proposta Fenomenológico-existencial
nos rigorosas, pelo contrário, ao se atentarem ao contex- que no proponemos pelear con arcos y flechas, pues
to cultural de onde surgem, o modelo de terapia de crise nos parece muy eficiente el “armamento” científico
moffattiano pode contribuir para um diálogo com os mo- europeo-norteamericano (tan eficiente que con él nos
delos vigentes no Brasil. sometieron); todo lo contrario, debemos aprender a
Dos modelos que se aproximam ao eixo epistemo- usarlo bien, sólo que desde la perspectiva opuesta,
lógico fenomenológico-existencial podemos citar os de esto es desde y con el pueblo. Para esto es necesaria
inspiração humanista (Mahfoud, 2013), fenomenológico- la inversión de la relación teoría- práctica, pues con-
-existencial (Morato, H., Barreto, C., & Nunes, 2012), am- sideramos que solo luego de una praxis es posible es-
bos centrados no dispositivo do plantão psicológico como tablecer una teoría. Si, por ejemplo, las teorías sobre
forma de acolhimento das emergências e crises pontuais. el Complejo de Edipo de Freud explican las relaciones
O modelo de plantão já é utilizado no Brasil desde a dé- familiares en la Villa Miseria, la usaremos y si, por el
cada de 80 e vem sendo utilizado em instituições como contrario, comprobamos que la estructura matriar-
escolas, hospitais, delegacias, entre outros. Em geral, o cal (común entre las familias pobres) lo vuelve inútil
atendimento é feito numa sala e segue um método clíni- buscaremos otra. Esta inversión del orden entre la te-
co tradicional de fala e escuta. oría y práctica va a impedir la principal patología de
Nos últimos anos, a proposta de Da Costa (2014), nuestros grupos intelectuales, que es la teorización
cuja inspiração teórica é interdisciplinar e se aproxima sobre la teoría, lo cual crea un mundo cerrado sobre
da fenomenologia, inova ao inaugurar um dispositivo sí mismo y donde nada puede ser realmente demos-
de urgência psíquica para pacientes com sofrimentos de trado ni negado pues todo llega a ser un enorme bos-
“tipo” psicótico, nos dizeres do autor. Esse se assemelha que de palabras que impide ver la realidad concreta
ao modelo de Moffatt que visa o atendimento de trans- que lo rodea. Con la teoría puede pasar lo que con los
tornos graves executando-o na própria comunidade dos muebles viejos: se acumulan tanto que no nos permi-
pacientes atendidos. Moffatt criou dispositivos na pró- ten mover en el cuarto. Y la solución pensamos que
pria comunidade e Da Costa (2014) após uma chamada es la misma: quedarse con lo necesario y tirar el resto.
telefônica se dirige a essa. Nesse sentido, ambos mo- O también puede suceder (y de hecho así ocurre mu-
delos também são de grande valia para o atendimento chas veces) que se afila tanto el cuchillo que se gasta
emergencial a grandes catástrofes. No nosso entender, sin haberlo usado nunca”. (p. 3)
um modelo de inspiração fenomenológico-existencial e
que se adeque à realidade sócio-cultural latinoamericana Sua experiência nas classes populares e sua articula-
justifica, a nosso ver, a importância do trabalho de Mo- ção com a saúde mental é respaldado, em parte, por um
ffatt nos dias de hoje. dado importante de sua biografia. O autor recebeu uma
Nascido em Buenos Aires em 1934, filho de uma mãe bolsa de pesquisa para os EUA, onde viveu por dois anos,
alemã e um país inglês, Alfredo Moffatt formou-se em ar- atuando no Brooklin State Hospital em Nova York, segun-
quitetura pela Universidade de Buenos Aires e, segun- do Moffatt (2007b):
do sua autobiografia, devido ao tratamento repressivo
da psiquiatria da época a um primo que sofreu um surto En Estados Unidos me sentí muy cómodo tal vez por
psicótico, passa a se interessar pelo tratamento psiquiá- el origen anglosajón de mi familia paterna... en el bar-
trico e se torna psicólogo social. Sua experiência profis- rio que vivíamos había una calle que se llamaba Mo-
sional se inicia sob a coordenação de Pichón Riviére no ffatt. Aprendí un inglés muy callejero, trabajaba con
Hospital J.T Borda, subúrbio de Buenos Aires, de quem marginales, me encantaba. Era la época de los hip- Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
se torna discípulo e seguiu sendo um grande inspirador pies aunque estaban ya cerca de la decadencia, cor-
de sua obra teórica e modelo de atendimento. Assim seu ría el año setenta o setenta y uno. Absorbí todo ese
fundamento teórico bebe de distintas fontes como a psi- mundo. (p. 11)
canálise, o psicodrama e, de forma especial, a fenome-
nologia-existencial de Jean Paul Sartre, que justifica o Já na Argentina, em 1971, inaugura o que considera
termo existencial como o nome que dá a seu modelo de sua primeira grande experiência comunitária e o início
terapia de crise. Sem embargo o autor nutre uma visão de sua obra, a comunidade terapêutica La Peña Carlos
singular sobre a relação entre práxis e teoria, como afir- Gardel, no mesmo Hospital Borda, onde iniciou sua for-
ma na introdução de sua obra Psicoterapia del Oprimido, mação, segundo Moffatt (2007b):
segundo Moffatt (1974):
La Peña dio lugar a muchas otras experiencias comu-
Una psicoterapia descolonizada que elabore sus mo- nitarias, dio los grupos de mateadas, dio el Psicodra-
delos teóricos resolviendo la problemática real y con- ma en forma de teatro popular, dio cooperativas de
creta del país y no importe con sumiso respeto los mo- trabajo y además el libro Psicoterapia del Oprimido.
delos de pensamiento que resuelven y se adaptan a Muchos desarrollos que hice tienen origen en esa co-
lejanos problemas sociales europeos. Acá aclaramos munidad terapéutica. (p. 16)
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Gustavo A. O. Santos
Sua experiência na fundação e aprimoramento dessa uma cultura que precisariam ser resgatados nos trabalhos
comunidade o fizeram um alvo do regime militar que via comunitários. Graças à sua proximidade com o popular e
com desconfiança quaisquer grupos ou organizações po- com as crises psíquicas oriundas das classes mais baixas,
pulares. Nesse tempo, o sucesso de seu livro Psicoterapia o autor se torna uma referência no atendimento das cri-
do Oprimido no Brasil, possibilitou que fosse chamado a ses psíquicas de emergências sendo chamado para pres-
nosso país como conferencista e professor convidado em tar atendimento em situações de grandes catástrofes, co-
diferentes universidades e supervionasse atendimentos mo no incêndio ocorrido na boate Cromañon em 2004 no
de saúde mental de distintos lugares. Nesse país se junta mesmo bairro de Once em Buenos Aires, onde morreram
a Paulo Freire em conferencias e trabalhos comunitários, 194 jovens. Nessa tragédia o autor pôde prestar um aten-
seu livro quase homônimo ao do educador brasileiro é dimento que se dava desde o primeiro acolhimento junto
reeditado nove vezes em português. aos familiares, frente aos cadáveres dos jovens, até a ela-
Quando a Argentina reabre à democracia e os traba- boração do luto com a criação de um memorial. Atuação
lhos comunitários puderam ser feitos com mais liberda- semelhante teve o autor no incêndio do supermercado
de, Alfredo cria o Bancaderos, um grupo de ajuda psico- Yuca Bolaños, ocorrido em Assunção no Paraguai, consi-
lógica mútua que tinha como objetivo o atendimento às derada a maior tragédia civil daquele país.
urgências psíquicas em uma zona popular e conturbada Sua experiência com o trabalho comunitário e o aten-
da cidade de Buenos Aires, o bairro Once, segundo Mo- dimento a crises psíquicas o motivaram a teorizar sobre o
ffatt (2007b): tema, sistematizando suas bases filosóficas e teóricas que
nortearam sua prática. Assim os aspectos mais descriti-
El Bancadero es una comunidad que fue amasada con vos presentes em Psicoterapia do Oprimido, dão lugar a
mucho amor y responsabilidad científica. las fiestas, uma escrita mais teórica com clara inspiração filosófica,
los grupos terapéuticos, los talleres de psicodrama, fazem parte desse conjunto: Terapia de Crise: teoria tem-
el teatro, el semillero de formación. Esta es una ex- poral do psiquismo de 2007 e Psicoterapia Existencial de
periencia que fue repetida después y dio elementos 2011. Com base nessas obras podemos extrair uma pro-
para otras en Argentina siempre con el concepto de posta teórica e metodológica do atendimento das crises
Primeros Auxilios Psicológicos de contención. (p. 26) psíquicas inspiradas em uma proposta fenomenológico-
-existencial, em parte de clara inspiração sartreana, em
Desde El Bancadero, nota-se que o interesse do autor outras partes de modo original tece, com base em sua ex-
se desloca para o atendimento às urgências psíquicas, te- periência e leitura, compreensões advindas de múltiplas
ma ao qual se dedica em pelo menos duas obras escritas referencias epistemológicas, como já citamos.
e algumas centenas de palestras. Ademais, também pro- Dito isso, este artigo visa explicitar o modelo de atendi-
moveu a criação de comunidades autogestivas, como las mento a crises psíquicas proposto pelo autor que parte de
Oyitas no bairro de Matanzas em Buenos Aires que visa- princípios fenomenológicos e existenciais, e que ademais
va o atendimento de crianças em situação vulnerável e a pretende-se adequado às classes populares e à realidade
Cooperanza, conjunto de atividades que se realizam no sócio-cultural da América latina. Para tanto, demonstra-
Hospital Borda aos sábados, assim como a fundação da remos primeiro as bases conceituais de que parte Moffatt
Escola de Psicologia Nacional de Pensamiento Nacional, e sua relação com a filosofia de Sartre, em outra parte,
que segundo Moffatt (2007b): apresentaremos o modelo de atendimento a crises psí-
quicas defendido por ele e seu pano de fundo conceitual.
Hace casi diez años fundé la Escuela de Psicología Na-
Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 198-206, jul-dez, 2016 200
A Terapia de Crise Segundo Alfredo Moffatt: uma Proposta Fenomenológico-existencial
entanto, segundo o autor, a segunda perspectiva se ade- Por isso, partindo desse ponto de vista, pode-se con-
qua mais aos dias de hoje. A sociedade vitoriana do fim ceber o homem como um ser que temporaliza e é respon-
do século XIX a que pertencia Freud era mais estável que sável por sua temporalização. Consoante a isso, segundo
a Europa após a segunda guerra e a América Latina desde Moffatt (2011), o tempo é constituído pelo homem com
os tempos coloniais até os dias de hoje. Nesse sentido, se- base na percepção do antes e do depois, para o autor o
gundo o autor o que é mais importante, para o nosso con- que existe em si é o movimento do espaço, mas sua su-
texto é como viver, para que viver, que futuro teremos e cessão só pode ser constituída por um eu que se proje-
não como adequamos ou não nossos impulsos sexuais às ta imaginariamente sobre a realidade. Do ponto de vista
imposições sociais. Nesse sentido, o existencialismo de moffatiano o tempo é uma atitude humana em relação ao
Sartre, centrado na noção de liberdade e projeto oferece mundo que tem como base uma percepção real. Nesse
um pressuposto epistemológico mais adequado para as sentido Moffatt entende que a temporalidade é o alicerce
terapias de hoje, segundo Moffatt (2011): do imaginário e da linguagem, leitura possível dentro de
uma concepção sartreana, já que tanto a linguagem como
Nuestro modelo psíquico, que tuvo origen en la ob- o imaginário são atividades do para-si.
servación clínica, en el intento de resolver las crisis Como elemento central do ser, análogo à concepção
psicológicas, recibió el apoyo teórico del existencia- de ser-para-si o autor propõe o conceito de Yo Soy, des-
lismo, especialmente el sartreano, con el que conver- de onde se constitui o tempo, dependendo de sua atitu-
gió. (p. 26) de frente ao real. O real é entendido como o espaço das
relações sociais, sejam privadas e públicas, nesse senti-
Além disso, segundo o autor, a época vitoriana na qual do Moffatt também se remete a Sartre quando esse afir-
vivia Freud sobrevalorizava o passado, pois a parcela da ma que a identidade é uma resposta do outro. Portanto
sociedade atendida pelo pai da psicanálise apegava-se em a dimensão de ser-para-o-outro é, para o nosso autor, a
demasia às tradições aristocráticas e burguesas. Por outro realidade, que por sua vez dá sustentação à identidade
lado, na sociedade atual, sobretudo no contexto popular entendida como um Yo Soy. Esse se estruturaria horizon-
latinoamericano, a tradição perde seu peso e o indivíduo talmente no tempo, como um fluxo contínuo e cambiante
é chamado a responder pelo seu futuro e seu projeto de de experiências e verticalmente no espaço, como bloco
realização no mundo. Portanto, o contexto entre guerras estável e real, conformada pela cultura e legitimada pe-
no qual o existencialismo sartreano foi gestado é adequado lo olhar do outro.
à realidade social da América latina, na qual o existente Essa concepção servirá de base teórica para o modelo
é chamado a responder pelo seu futuro. de atendimento às crises psíquicas esquematizada no se-
Sartre (1997) concebe o ser do homem como um ser- guinte quadro proposto por Moffatt (2011):
para-si em contraposição a um ser-em-si. Isso quer di-
zer que no ser-humano o ser não tem identidade consigo
mesmo, o homem é falta de ser, pois se encontra sempre
em busca de uma apreensão de si, o homem deve ser o
que é, ou seja, seu ser depende de um projeto de ser pa-
ra algo. Esse movimento de não ser em si mesmo, mas
buscar ser nos possibilita compreender o homem como
liberdade pois o seu ser só se dá na medida em que ele
mesmo se projeta. Por isso não há essência humana, pois Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
nada o pode definir de antemão, antes que esse se apre-
sente e se proponha.
Assim, desde o ponto de vista sartreano, o tempo não
pode ser entendido como um ser- em-si, ou seja, que exista
independente do homem, para Sartre (1997): “A Tempora-
lidade não é, mas o para-si se temporaliza existindo” (p.
192). Portanto, tudo o que se pode afirmar sobre o tem-
po deve ter como ponto de partida o ser do homem que
se projeta, ora como presença a si mesmo, presente; ora
com o seu ser-sido, passado; ora como um projeto que se
dirige ao aberto e vazio de si mesmo, futuro. O futuro, na
concepção de Sartre, tem primazia sobre os demais êxta-
ses temporais, na medida em que é nessa dimensão que
o para-si determina a si mesmo como livre, deparando-se
com sua indeterminação e podendo se projetar como um As vinculações com o mundo se dão nesse jogo tem-
vir-a-ser. poro-espacial na qual o Ya Fui, representante do passado
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Gustavo A. O. Santos
e o Yo Seré que representa o futuro, constituem a linha La crisis se manifiesta por una experiencia de paraliza-
horizontal. Já a linha vertical representa o espaço que é ción de la continuidad del proceso de vida. De pronto
dividido entre privado, representado pela família e pú- nos sentimos confusos y solos, el futuro nos aparece
blico, representado pelo trabalho. Na interseção entre vacío y el presente congelado. Si la intensidad de la
tempo e espaço está o Yo Soy, que no passado retém e perturbación, sea una crisis de crecimiento (evolutiva)
no futuro se prospecta, se a retenção predomina isso po- o la consecuencia de un cambio imprevisto (traumáti-
de conduzir a estados melancólicos por um excesso de ca), aumenta, comenzamos a percibirnos como “otro”,
Yo Fui, da mesma forma o deslocamento excessivo do Yo es decir, tenemos una experiencia de despersonalizaci-
Soy para o Yo Seré pode conduzir aos estados ansiosos e ón. Esto provoca una discontinuidad en la percepción
paranóicos, já que o Yo Soy antecipa-se no que ainda não de nuestra vida como una historia coherente, organi-
é. Em ambos estados, o tempo que é imaginário ocupa o zada como sucesión en la que cada una de las etapas
espaço, o que ocasiona que cenas imaginárias invadam a es consecuencia de la anterior. Por lo demás, todos
percepção presente e real, por isso depressivo percebe o tenemos experiencias de las crisis psicológicas, pues
real em decorrência do que já foi, entendendo cenas reais forman parte del recorrido por diversas etapas llamado
com aspectos imaginários e o paranóico percebe o real em vivir, o más exactamente existir. Para que una situaci-
decorrência do que imagina que pode suceder. ón produzca una crisis, más importante que el nivel
Já o eixo do espaço serve ao mesmo tempo de base e de traumatismo sufrido por el paciente es lo inespe-
ápice do Yo Soy, sua base é circunscrita nos espaços de rado de la nueva situación que se le exige vivir, la que
intimidade, seu ápice, o espaço público. O intercâmbio sentirá como “irreal” y experimentará fuera de lo que
entre esses dois espaços também se relaciona com as pa- está sucediendo. Diríamos que sólo es real lo que se
tologias típicas, quando um espaço prevalece sobre o espera, lo que fue concebible antes como posibilidad
outro e o Yo Soy se priva de algum deles. Assim, no caso en la fantasía de futuro. Por eso se dice que esto o lo
da prevalência do espaço privado, as relações histéricas, otro no estaba previsto (previsto), esto es, no estaba
tão bem descritas por Freud, que obedece à formula do visto de antemano y cuando las circunstancias nos
Eu simulo ser, e no caso da prevalência do espaço públi- colocan dentro de un personaje que nunca habíamos
co sobre o privado as neuroses obsessivas que obedece à anticipado, el de huérfano, viudo, adulto, exiliado,
formula do Eu devo. etc., puede sobrevenir el desconcierto, la crisis. (p. 6)
Esse entendimento da relação do existente para com o
Ser, encontra paralelos na psicopatologia fenomenológi- Moffatt sugere assim que a patologia básica da qual
ca clássica, como nos trabalhos de Von Gebsatell (1967), derivam todas as outras, tal como demonstrado no esque-
sobre o tempo na melancolia, para quem a melancolia é ma gráfico apresentado é a dissolução do Yo Soy. Esse é
uma retenção do fluxo do tempo; e o trabalho de análise mantido no tempo pela projeção imaginária do futuro e
do caso Suzanne Urban de Ludwig Binswanger (1988), a assimilação do passado, assim como no espaço em sua
no qual a paciente, após ouvir o diagnóstico de que seu ubiquação no mundo das relações privadas e públicas.
marido padecia de câncer, passa a desenvolver sinto- Sua existência se vê ameaçada quando as expectativas
mas persecutórios de modo que o mundo “real” passa a projetadas ou os espaços imaginados se rompem de tal
ser visto como ameaçador. Outrossim, chama atenção a maneira que sua existência é ameaçada. No aspecto cul-
proximidade com a descrição topológica mais atual de tural, o autor defende que as culturas populares podem
Charbonneau (2010) que entende os modos patológicos ser mais resilientes a algumas rupturas, dada a falta de se-
da existência em relação ao posicionamento do Ser pa- dimentação de tradições, pois não investem tanto em um
Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
ra com a existência, de modo que histeria é uma forma futuro imaginado, estando assim mais dispostas à morte
de ser abaixo de si, L´étre au deçà de soi, a melancolia e à finitude, enquanto as classes burguesas tendem a ne-
uma forma do ser atrás de si L´étre en arrière de soi e a gar os ciclos vitais com a expectativa idealizada do futu-
paranóia como ser acima de si, o que é análogo à pro- ro que nega a morte acabando por negar a própria vida.
posta de Moffatt. Segundo Moffatt (2011):
Pois bem, desde esse esquema que demonstra as for-
mas como o ser se vincula no mundo no tempo e no es- En síntesis, lo que proponemos es que hay una pa-
paço precisamos definir o que é Crise e como essa é en- togenia última que está por debajo, y es más arcaica
tendida como fenômeno temporal. Se o tempo é uma ati- que el trauma básico freudiano (la represión de la se-
vidade do para-si, constituído pelo Yo Soy, ele é ao mes- xualidad, especialmente del incesto). Esta, es la posi-
mo tempo assimilação de recordações que é o passado e bilidad de desaparición del último reducto del yo, de
projeção das expectativas no futuro. As expectativas são esa porción de nosotros con la que íntimamente nos
criadas mais ou menos conforme o que determinado gru- auto percibimos, y que llamamos el núcleo del yo (el
po cultural elege como ideias e projetos e quando não se sí mismo). Esto llevaría a la desaparición del último
cumprem,se instaura a crise que ameaça a existência do testigo de nosotros mismos, la disolución de nuestro
Yo Soy. Como afirma Moffatt (2007a): último y más íntimo diálogo. Por esto las crisis son más
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A Terapia de Crise Segundo Alfredo Moffatt: uma Proposta Fenomenológico-existencial
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Gustavo A. O. Santos
inaugurando a fase de regressão, pois na primeira fase trauma gerador. Segundo Moffatt (2011) essa atitude re-
devido ao choque iminente, a palavra falta. quer do terapeuta habilidade e capacidade de reconhecer
A terceira fase, explicação, no caso de Cromañon, foi seu núcleo psicótico para ter segurança e versatilidade
feita através de oficinas que possibilitaram a fala e a es- para entrar e sair, assim como reconhecer os personagens
cuta sobre a experiência vivenciada, nesse sentido tam- na cena do delírio e se inserir como um deles. O uso de
bém foram propostos exercícios de sociodrama, como elementos originados do psicodrama, combinados com
um baile onde os pais e familiares puderam rememorar técnicas de ressonância subjetiva, como o abraço ou o
o sentido das músicas e da diversão para os seus filhos espelhamento, podem ajudar na realização na primeira
e a construção de um memorial em homenagem a eles, etapa de contención. Segundo os ensinamentos de Pi-
que existe até os dias de hoje na Plaza Miserere, no cen- chon Riviére seguidos por Moffatt, todo delírio é uma
tro de Buenos Aires. A quarta fase, cambio, foi também verdade, uma metáfora de uma cena esquecida, por isso
acompanhada por oficinas e ajuda na reinserção laboral podemos ajudar o paciente, talvez não a recordar, mas a
e estudantil dos familiares enlutados. reconstruir seu sentido.
No exemplo acima, vimos como os quatro passos são Independente de qual crise nos propomos a tratar,
modelos a seguir que vão se modelando à situação e se Moffatt (2007a) alerta que essa deve produzir não apenas
somando a técnicas diversas de acordo com a natureza mudanças na captação de seu sentido, mas também e so-
do evento traumático e do contexto de atendimento. No bretudo na realidade no entorno do paciente. De forma
caso da tragédia na boate Cromañon, Moffatt e sua equi- provocativa o autor sugere que toda terapia deve acabar
pe atenderam as pessoas enlutadas, desde instantes após em uma terapia familiar, de modo a apresentar a circuns-
o evento, até anos após o ocorrido, em um trabalho que crever o novo membro modificado e testá-lo frente a seus
variou atendimento individual, em grupo, técnicas de dra- projetos e mudanças. O autor adverte para o risco que a
matização, sociodrama e trabalhos comunitários. terapia se esvaia apenas pela palavra, detendo-se na fase
Do nosso ponto de vista, assinalamos como três as de explicación, não avançando até a fase do cambio. Esse
atitudes terapêuticas embasadas no modelo proposto por processo, último da terapia de crise, deve ser cuidadoso
Moffatt de atendimento às crises: a empática, para as eta- e paulatino, mas não deve se furtar em intervir na reali-
pas um e dois, ou seja, contención e regresión, pois essas dade espacial, ou seja, o espaço público e privado do pa-
permitem confiança e segurança para que o paciente ex- ciente, segundo Moffatt (2007a):
presse intersubjetivamente o evento traumático. A her-
menêutica, no cumprimento da etapa 3, que é da expli- La etapa del cambio efectivo es sumamente delicada,
cación, que propõe reordenar os sentidos apagados e ro- pues en ella es donde se da el peligro de que el pa-
tos da vida do paciente após o evento traumático, requer ciente se desconozca, de que tenga sentimientos de
uma atitude interpretativa e construtiva que vai desde as despersonalización. Curarse en la vida real resulta
cenas traumáticas como parte, até o sentido total da exis- muy angustiante, pues significa realmente ser otro, “el
tência do sujeito como um todo, e nesse círculo o ajuda a curado”, y a nadie le gusta ser otro. Por esto el proceso
reconstruir os sentidos; e a proativa, na qual o terapeuta terapéutico requiere cierto tiempo, debe ir de un paso
se engaja com o paciente na mudança construtiva de sua al siguiente sin precipitaciones. Es posible acrecentar
realidade. Do lado do paciente, o autor propõe que são três su eficacia y acelerar el proceso, pero nunca más allá
as etapas pelas quais passa um paciente após um evento de lo que admita la capacidad de transformación que
traumático, a do choque psicológico, que é a sensação de tenga el paciente, aunque ésta se dé en la dirección
vazio, como perda provisória do Yo Soy. De modo similar que él requiere, esto es, de la curación. (p. 79)
Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
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A Terapia de Crise Segundo Alfredo Moffatt: uma Proposta Fenomenológico-existencial
Un niño de rasgos indígenas estaba mirando una ilus- Moffatt, A. (2007b). Vida de Moffatt. Disponível em: <www.al-
fredomoffatt.com.ar>.
tración en su libro de lectura, era la imagen de un
chico rubio jugando con una ardilla... y el changuito Moffatt, A. (2011). Psicoterapia existencial. Buenos Aires: Es-
tenía de mascota un peludo y vi que él se dio cuenta peranza.
que no existía... el verdadero alumno era el rubio con
Morato, H., Barreto, C., & Nunes, A. (Orgs.) (2012). Aconselha-
la ardillita. (p. 123)
mento psicológico numa perspectiva fenomenológica exis-
tencial: uma introdução. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
Da mesma forma, o papel transformador da prática
psi deve vislumbrar ações que transcendam o caráter in- Sartre, J. P. (1997). O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenome-
dividual e que sejam críticos aos modelos impostos. Es- nológica. Petrópolis: Ed. Vozes.
205 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 198-206, jul-dez, 2016
Gustavo A. O. Santos
Recebido em 01.10.15
Primeira Decisão Editorial em 03.03.16
Aceito em 04.06.16
Artigo - Estudos Teóricos ou Históricos
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 198-206, jul-dez, 2016 206
A rtigos
- Relatos de Pesquisa ......................
Experiências de Estudantes de Psicologia em Oficinas de Desenvolvimento da Escuta
Resumo: Essa pesquisa insere-se na interface entre a Psicologia Organizacional e do Trabalho (POT) e a Psicologia Clínica. O
objetivo geral foi compreender como se deram as experiências de estudantes de psicologia da Universidade Federal do Vale do
São Francisco (Petrolina/PE), que participaram de oficinas de desenvolvimento da escuta. Especificamente, pretendeu-se descrever
os resultados obtidos nos processos vivenciados nas oficinas; identificar as competências desenvolvidas e descrever os ganhos
de aprendizagem obtidos. Consistiu de uma pesquisa qualitativa de cunho fenomenológico. Participaram 19 graduandos que,
respondendo a entrevistas abertas individuais com pergunta disparadora, discorreram livremente sobre suas experiências. Os
resultados apontaram para alcances terapêuticos, pois as oficinas, além de repercutirem na vida pessoal e acadêmica de cada
sujeito, permitiram a sensibilização para o cuidado de si e do outro. Os estudantes, também, reconheceram a escuta clínica como
uma ferramenta indissociável ao trabalho do psicólogo. As principais competências desenvolvidas foram: conhecimentos sobre a
prática psicológica clínica, diferenciação da escuta clínica da comum, habilidades interpessoais, sigilo e autocuidado. Concluiu-
se, principalmente, que oficinas de desenvolvimento da escuta, por favorecerem a apropriação de singularidade e promoverem
novos modos de subjetivação, podem constituir uma modalidade prática clínica em POT em uma instituição de ensino superior
em psicologia.
Palavras-chave: Escuta; Formação do psicólogo; Psicologia organizacional e do trabalho; Desenvolvimento de competências;
Psicologia clínica.
Abstract: This research is part of the interface between Organizational and Work Psychology (OWP) and Clinical Psychology. The
overall objective was to understand how the experiences happened to psychology students at the Universidade Federal do Vale
do São Francisco (Petrolina/PE), who participated in workshops on listening development. In particular, it was sought to describe
the results obtained in the processes experienced in the workshops; identifying the developed competences and describing the
learning gains achieved. The study consisted of a qualitative research of phenomenological nature. Nineteen undergraduates took
part, responding to open interviews with starter question, and discussed freely about their experiences. The results indicated
therapeutic ranges, as the workshops, as well as reverberating in the personal and academic life of each subject, allowed raising
awareness for the care for oneself and for the others. Students recognized the clinical listening as an inseparable tool to the work
of psychologist. The core competencies developed were: knowledge about clinical psychological practice, differentiation from
the common clinical listening, interpersonal skills, confidentiality and self-care. It was concluded that Listening Development
workshops, by favoring the appropriation of uniqueness and fostering new modes of subjectivation, may be a modality in clinical
practice in OWP in psychology degree.
Keywords: Listening; Psychologist training; Organizational and work psychology; Competence development; Clinical psychology.
Resumen: El objetivo general ha sido comprender como se dieron las experiencias de estudiantes de psicología de la Universidade
Federal do Vale do São Francisco (Petrolina/PE) que participaron de los talleres de desarrollo de la escucha. Especificamente
se ha pretendido describir los resultados obtenidos en los procesos vividos en dichos talleres; identificar las competencias
Artigo - Relatos de Pesquisa
desarrolladas y describir los aumentos de aprendizaje obtenidos. Ha consistido en un trabajo cualitativo de cuño fenomenológico.
Han participado 19 alumnos que, respondiendo a entrevistas abiertas individuales con pregunta disparadora hablaron libremente
sobre sus experiencias. Los resultados han apuntado para los alcances terapéuticos, pues los talleres, además de repercutir en
la vida personal y académica de cada sujeto, han permitido la sensibilización para el cuidado de si mismo y de los otros. Los
estudiantes también reconocieron la escucha clínica como una herramienta indispensable al trabajo del psicologo. Las principales
competencias desarrolladas fueron: conocimientos sobre práctica psicológica clínica, diferenciación de la escucha clínica de la
común, habilidades interpersonales, sigilo y autocuidado. Se concluye, principalmente, que talleres de desarrollo de la escucha,
por favorecer la apropiación de singularidades y promover nuevos modelos de subjetivación, pueden constituir una modalidad
práctica clínica en POT en una institución de enseñanza superior en psicología.
Palabras-clave: Escucha; Formación del psicólogo; Psicólogía organizativa y del trabajo; Desarrollo de competencias; Psicología
clínica.
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Aíla M. Dourado; Cristiane A. Quirino; Monzitti B. de A. Lima & Shirley M. V. de Melo
Lima (2006), ao pesquisarem as habilidades interpesso- propicie a escuta a partir de sua subjetividade implicada
ais na atuação do psicólogo, investigaram profissionais do nas várias experiências do sujeito, como possibilidade
interior de Minas Gerais, que alegaram que seus cursos de fazer diferença nas diversas áreas de atuação. Inde-
de graduação não contemplavam a formação dessas habi- pendente da abordagem ou perspectiva a ser seguida, a
lidades, destacando o ouvir com atenção a fala do outro escuta clínica caracteriza-se principalmente como uma
como a mais importante e menos desenvolvida nas suas competência da prática do psicólogo que está atrelada
graduações. Os profissionais também apontaram outras ao cuidado (MACÊDO, 2000). Já que essa escuta perpas-
habilidades necessárias, mas não desenvolvidas na sua sa pelo cuidado, faz-se necessário que o futuro psicólogo
formação universitária como eles julgavam ideal: fazer e vivencie o processo de se escutar e cuidar de si para po-
responder perguntas e expressar empatia; observar no ou- der escutar e cuidar do outro.
tro expressões verbais relevantes; ajudar o outro a identi-
ficar, nomear e expressar seus sentimentos; responder, de
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 209-218, jul-dez, 2016 210
Experiências de Estudantes de Psicologia em Oficinas de Desenvolvimento da Escuta
2. A escuta clínica e a formação graduada do psicó- Sabemos que, ao longo da graduação, os estudantes se
logo deparam com momentos em que exercitam a escuta, tais
como trabalhos de grupo, atividades em sala de aula ou de
No nosso entender, há uma carência do desenvolvi- campo, projetos de extensão e outros. Contudo, esse mo-
mento da escuta clínica nos cursos de graduação em Psi- do de escutar pode não estar direcionado à atitude clínica
cologia. Essa carência se dá, principalmente, porque não profissional. Sendo assim, a escuta tem-se mostrado como
se pode ensinar a escutar. Necessário lembrar, aqui, que um dispositivo da prática que acaba sendo aprofundado
autores referendados no campo das ciências interpretati- apenas no final do curso, ou nos momentos de estágios
vas do psiquismo humano, como Sigmund Freud, já eram profissionalizantes, ou quando os estudantes reconhe-
enfáticos em admitir que a escuta não é algo que se en- cem a necessidade de uma psicoterapia (Meira & Nunes,
sina por um ato pedagógico, pela transmissão de conteú- 2005), e estão prestes a adentrar o mercado de trabalho.
dos teóricos a serem aplicados. Neste sentido, não pode Acreditamos, entretanto, que a escuta clínica, ao ser
ser transmitida enquanto técnica, haja vista que ensinar desenvolvida como uma competência durante a forma-
a escutar é uma tarefa impossível. Escutar se desenvolve ção graduada do psicólogo, pode ser trabalhada a partir
na experimentação e se constitui no caminhar da forma- do desenrolar de conhecimentos, habilidades e atitudes.
ção como psicólogo (Heckert, 2007). Isso significa que não é necessário apenas o saber, ou seja,
Heckert (2007) lembra que a maioria dos processos de os conhecimentos acadêmicos para desenvolver ou sen-
formação desprezam os saberes e experiências dos apren- sibilizar a escuta, mas também o saber fazer e o querer
dizes. Nessa ótica, considera que o cuidado na formação fazer, isto é, pôr em prática e estar disponível para isso.
de profissionais de saúde é uma prática que se efetiva no
compartilhamento de experiências. Portanto, a escuta se
desenvolveria no contexto de cuidado como negociação e 3. Oficinas de desenvolvimento da escuta: uma ati-
construção coletiva, que se constituiria pela reflexão, pen- vidade a mais na formação do psicólogo
samentos e intervenções mútuas entre sujeitos que com-
partilham experiências entre si. Assim, somente é possí- Considerando que atividades de sala de aula, estrita-
vel se pensar a escuta como experimentação, como rein- mente acadêmicas, não permitem um aprofundamento
venção de si e do mundo. Desta feita, o desafio de quem da ferramenta da escuta clínica, e que alguns estudantes
educa é criar modos de ensino de maneira a fomentar a de Psicologia apenas a experimentam no final do curso,
oferecemos na Universidade Federal do Vale do São Fran-
experimentação e a desestabilização das certezas, provo-
cisco (UNIVASF) oficinas de desenvolvimento de escuta
cando a formulação de novos problemas, ou melhor, en-
aos graduandos. Partimos do princípio de que tais ofici-
gendrando processos de formação-intervenção. “No pro-
nas podem funcionar como capacitação ampliada para
cesso de formação, torna-se fundamental criar estratégias
estes estudantes, constituindo uma alternativa eficaz ao
que permitam escutar as diferenças (...). Afirmar a escuta
investimento na carreira e ao futuro ingresso no merca-
como experimentação significa indicar as necessidades
do de trabalho.
do outro, com o qual lidamos, que precisam ser incluí-
Pensamos essas oficinas como essenciais numa gra-
das” (Heckert, 2007, p. 10).
duação em psicologia, pois, lembrando que a formação
Somos da opinião de Coelho e Figueiredo (2004), que
pode constituir-se como espaço de compartilhamento de
as práticas psicológicas se confrontam cada dia mais com
experiências, essa seria uma saída para desenvolver a es-
a necessidade de reconhecer a alteridade como constitu-
cuta no contexto de graduação do psicólogo, já que, como
tiva de subjetividades singulares. No entanto, na maio-
bem alerta Heckert (2007, p.5): “todo processo de forma-
ria das vezes, o ambiente acadêmico da graduação em ção se produz no encontro com a alteridade, pois que é
psicologia traz uma carga assaz pesada e rebuscada de um processo de produção de subjetividade”.
teorias que, apesar de serem fundamentais no processo A atividade se inseria num projeto de extensão na
de desenvolvimento profissional, não favorecem um en-
Artigo - Relatos de Pesquisa
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Aíla M. Dourado; Cristiane A. Quirino; Monzitti B. de A. Lima & Shirley M. V. de Melo
curso (duas do terceiro e uma do oitavo período) tinham a ências são intersubjetivas e que, nestas, pesquisador e
função, junto à orientadora, de facilitar os processos con- sujeito da pesquisa são parceiros que estão em contato
duzidos. Os instrumentos utilizados eram dinâmicas de a partir da intencionalidade da consciência (Macêdo &
grupo, dramatizações, músicas, contos, mitos, atividades Caldas, 2013).
de colagem e modelagem com argila. Segundo Bicudo e Martins (1989), o que necessaria-
Respaldada teoricamente na psicologia humanista, a mente caracteriza uma pesquisa fenomenológica é o fato
oficina de desenvolvimento da escuta tinha por base a de o pesquisador iniciar interrogando sobre o fenômeno;
aprendizagem significativa – entendida como processo a situação da pesquisa ser definida pelos sujeitos inves-
que favorece mudanças intelectuais e vivenciais. Cada tigados; o investigador buscar o sentido da experiência
encontro era programado a partir do encontro anterior, para os sujeitos em estudo; e os dados serem concebidos
portanto, cada oficina foi singular e possibilitou vivên- como provenientes das significações resultantes da tema-
cias e processos diferenciados. Ao longo dos encontros, tização do sujeito acerca da experiência. Partindo dessa
constatávamos, por um lado, que os participantes se sen- metodologia, escolhemos utilizar a entrevista aberta com
sibilizavam para uma escuta diferenciada, mobilizavam-se uma pergunta disparadora, pois essa técnica faz com que
subjetivamente, muitas vezes expressando como aquele o sujeito se abra para a sua experiência, favorecendo que
momento estava sendo importante para suas vidas e sua fale livremente sobre ela, o que ajuda o pesquisador no
formação acadêmica; por outro lado, os trainees, que, sentido de compreender e interpretar os seus significa-
mesmo sem ainda terem adentrado os estágios de final de dos e sentidos.
curso, recebiam supervisão antes e após cada encontro, Os 19 sujeitos da pesquisa foram as três trainees e
encantavam-se com a possibilidade de praticar a clínica 16 estudantes que participaram de diferentes oficinas.
em psicologia, reconhecendo aquele espaço como capa- Convidado para entrevista individual de forma voluntá-
citação para seu futuro profissional. ria, cerca de três a seis meses após sua participação na-
Este artigo, portanto, nasceu da necessidade de siste- quelas atividades, cada entrevistado assinava o Termo de
matizarmos um saber sobre aquela experiência, apresen- Consentimento Livre e Esclarecido e depois respondia à
tando uma pesquisa realizada com os participantes das pergunta disparadora: “como se deu a sua experiência de
oficinas, cujo objetivo geral foi compreender como se de- participar da oficina de desenvolvimento da escuta?” As
ram as experiências dos estudantes, tanto os participantes entrevistas foram realizadas por duas bolsistas de inicia-
quanto as trainees. Os objetivos específicos foram: des- ção científica que compunham a equipe de pesquisa jun-
crever os resultados obtidos nos processos vivenciados to à orientadora, e registradas em gravador digital, num
nas oficinas; identificar as competências desenvolvidas e tempo máximo de 40 minutos cada, e ocorreram em sala
descrever os ganhos de aprendizagem obtidos. reservada do Centro de Estudos e Práticas em Psicologia
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e De- (CEPPSI) da UNIVASF.
ontologia em Pesquisas com Seres Humanos (CEDEP) da Após a coleta, foram analisados os dados em cinco
UNIVASF, estando registrada pelo número 0010/1406, e passos (baseados em GIORGI, 1985; Macêdo, 2000, 2006;
transcorreu entre agosto de 2013 e julho de 2014, com re- Amatuzzi, 2008):
cursos do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação a) Leitura integral do todo do relato: após transcrição
Científica (PIBIC CNPq/UNIVASF). integral de cada relato por uma das bolsistas, ele foi lido
por cada membro da equipe de pesquisa quantas vezes
fosse necessário para que se alcançasse os significados da
4. Metodologia experiência;
b) Encontro com as unidades de significado: tendo os
Diante do que se propôs o estudo, adotamos como me- objetivos da pesquisa em mente, cada membro da equipe
todologia a pesquisa qualitativa fenomenológica. Nessa de pesquisa destacou trechos dos relatos que, para ele, fo-
perspectiva, tanto o sujeito investigado quanto o pesqui- ram significativos em relação à experiência investigada;
Artigo - Relatos de Pesquisa
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 209-218, jul-dez, 2016 212
Experiências de Estudantes de Psicologia em Oficinas de Desenvolvimento da Escuta
a equipe de pesquisa em contexto de diálogo procurou o constatação de que, como resultados para a vida pesso-
que de comum houve no conjunto total dos relatos. al, alguns estudantes chegaram a apontar características
individuais que eram expressas no grupo sem precon-
ceitos, como nos falou P (3º período): “Eu falo muito
5. Resultados e discussão comigo e aí naquele dia eu encontrei um ambiente pro-
pício para isso e eu acho que o fato de ter pessoas ínti-
Ao buscar compreender os sentidos dados pelos su- mas também lá e muitas coisas influenciaram para me
jeitos à experiência de participarem da oficina de desen- sentir mais afetada”.
volvimento da escuta, percebemos que, dentre os resul- Já CC (4º período) associa o ambiente acolhedor das
tados obtidos, estão os alcances terapêuticos (no sentido diferenças individuais aos objetivos da própria oficina:
de mobilizações subjetivas; revelações e reflexões sobre
si mesmo e suas relações interpessoais), principalmente Acho que a oficina de escuta vem justamente para isso,
para aqueles estudantes de períodos iniciais. Houve, in- para ajudar a abrir a nossa visão de que existem diferen-
clusive, os que acreditaram que a oficina era um tipo de tes formas de dar a mão a esse sujeito, de vê-lo de várias
terapia em grupo: formas, principalmente sem criticar, porque eu acho que o
nosso mundo quer hoje uma forma de suprimir esse sujei-
Nunca fiz terapia, nem nada (...) Aquilo para mim foi, to, não deixar ele vir a ser o que ele é. Então, a oficina deu
não sei... Não sei de nada. É complicado esse negócio de liberdade para a gente poder não aprisionar esse sujeito,
escutar o outro, porque realmente eu fui e acabei me es- mas deixar ele vir como ele é. Eu acho que essa foi uma
cutando lá. Mas eu acho que eu precisava disso primei- das coisas mais importantes. (CC, 4º período)
ro, para poder depois me pôr para o outro. (V, 2º período)
Sendo assim, a oficina de desenvolvimento da escuta
Nunca tinha participado de terapia em grupo, eu assumiu também uma função terapêutica, dada, sobre-
achei divertido. Inicialmente pareceu uma proposta lú- tudo, à permissividade do ambiente – expressa na credi-
dica, mas o tempo todo a terapeuta tentou encaminhar a bilidade e confiança enquanto funções facilitadoras –, o
gente mais para o sentido de que tudo tem um sentido de que é essencial para o processo de abertura à experiência
ser. (P, 2º período) por parte do sujeito, segundo Rogers (1997). Isto se refle-
te em boa parte das afirmações, as quais são exemplifi-
Eu me senti cuidada a partir do momento em que eu cadas nos trechos:
podia me expressar, não sei... Eu refleti demais, eu cho-
rava demais, era como se eu tivesse com uma coisa pre- Eu tenho ‘C’ [aluna trainee], que conhece todo mundo
sa e depois tivesse um espaço em que eu pudesse falar. no curso... As pessoas dão a segurança para você, queren-
(G, 3º período) do ou não. Então, o jeito de falar, o jeito físico, o jeito de se
portar, a maneira de segurar na sua mão enquanto você
Percebemos, com estes recortes de relatos, que a ofi- estava ali... Essas coisas vão contando e pessoas que não
cina vai favorecendo um desenvolvimento de escuta que ficam tão seguras, num ambiente como esse, acabam se
se produz no ato de escutar-se a si a partir do escutar o deixando levar. (O, 2º período)
outro e que isto ocorre devido um ambiente facilitador
(conforme nomeia ROGERS, 1997) para o desabrochar de Eu acho que, como o ambiente estava muito diferen-
um processo de autodescoberta. te, era um clima em que o silêncio era muito respeitado,
Percebemos, também, que, de um lado, estudantes em então quando alguém falava, a atenção ficava voltada
início de curso e que nunca passaram por uma psicote- para o que aquela pessoa estava falando. Deu realmen-
rapia individual ou de grupo não conseguem identificar te uma valorização no processo de falar e o de escutar.
a diferença entre um alcance terapêutico e um resulta- (Ax, 2º período)
Artigo - Relatos de Pesquisa
213 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 209-218, jul-dez, 2016
Aíla M. Dourado; Cristiane A. Quirino; Monzitti B. de A. Lima & Shirley M. V. de Melo
As falas acima possibilitam compreender que houve forma mais técnica sobre escutar o outro, já que eu faço
um processo de escutar em que os participantes reconhe- parte do curso de psicologia. Mas muito pelo contrário.
cem os papeis dos facilitadores (traines e professora) de No começo foi muito mais um escutar de si – eu lembro
educarem os estudantes para ouvir e calar; escutar e ser muito disso. Foi algo que trabalhou primeiro na gente e
escutado; e não emitir juízo de valor sobre o conteúdo depois você passa a ter uma visão diferente de escutar o
da fala do outro. outro também. (Z, 4º período)
Alguns estudantes, independente do período cursado,
referiram-se a mudanças favoráveis nos processos pesso- Essa mobilização pessoal levou os participantes a se
ais, denotando um encontro consigo mesmo, uma mobi- atentarem à noção de cuidado com o outro atrelado ao
lização subjetiva e uma apropriação de singularidade. G autocuidado e à afetação pessoal, o que faz parte do es-
(3º período) relata: “apesar de ser uma coisa importante cutar, como diz Amatuzzi (1990). A respeito dessa ques-
para minha profissão, foi importante também para minha tão, P (4º período) disse:
vida pessoal. As atividades que aconteceram então... Eu
chorava muito e eu pensava. Aí me levou muito a refletir. Hoje eu consigo compreender um pouco melhor o que
Foi muito importante mesmo nesse sentido”. Enquanto D é o humano e quais são os seus problemas e como lidar
(4º período) nos diz: com suas angústias. E eu acho que até é um passo muito
importante para a formação, a parte em que você se per-
Para mim foi uma experiência diferente e bastante pro- mite tocar pelo outro, mesmo com certo distanciamento
veitosa porque foi um momento que a gente teve de parar profissional, sabe, a forma como eu me encontrei ali na-
realmente em meio a tanta coisa da faculdade para fazer, quele espaço como, na fala dos outros, das outras pessoas
e aquele momento de estar lá simplesmente para ouvir, (...) Isso me fez perceber que o humano é isso, é a união
para se deixar ouvir, para tentar entender a importância de coisas diferentes.
dessa ferramenta que é a nossa ferramenta de trabalho e
que a gente se preocupa muito com teorias e acaba se es- O relato acima possibilita pensarmos que a oficina
quecendo do básico, do principal que é ouvir. permitiu um processo que se desdobrou para além dos
encontros, considerando que as entrevistas ocorreram
Percebemos pelos trechos acima como o estudante alguns meses após as oficinas, e que tal processo leva a
reconhece a necessidade de um espaço acadêmico pa- reflexões sobre a formação e a prática profissional dian-
ra além da sala de aula quando o tema é a escuta, de- te do cliente (um “outro” que não “eu”). No que tange
nunciando, também, reflexões de como o cuidar de si e aos resultados no âmbito acadêmico/profissional, alguns
escutar é importante para a futura prática profissional. estudantes destacaram a escuta como uma ferramenta
Houve, ainda, o reconhecimento da oficina como propor- indissociável ao trabalho do psicólogo e como ela pode
cionadora de reflexões e mobilizadora do sujeito. Neste ser desenvolvida no decorrer da graduação. Segundo os
sentido, surge a percepção da implicação e afetação na participantes, a escuta passou a ser mais atenta e a ofi-
prática. O estudante passa a perceber não só a afetação cina foi, em alguns casos específicos, norteadora para
recíproca, mas a necessidade de que ela ocorra para es- uma atuação mais efetiva no contexto de estágio no fi-
cutar (Amatuzzi, 1990). nal do curso:
Eu não tinha percebido o quão, o quão forte é a escuta Eu levei muito mais para o âmbito profissional e que
e a fala, quando se trata de entender, ou de perceber o que me leva ainda a refletir sobre algumas coisas, da prática
é o outro ou o quão você está inserido no outro, e como o do estágio, me leva a pensar e a me avaliar (...) Avaliar
outro está inserido em você também, e aí quando foi pas- o instrumento de escuta a partir do que eu participei. (N,
sando os momentos lá, eu fui percebendo que a gente se 9º período)
encontra na fala da outra pessoa o tempo todo e a forma
Artigo - Relatos de Pesquisa
como essas histórias estão entrelaçadas e se entrelaçam Eu acredito que tenha me dado uma segurança um
a todo o tempo. (P, 4º período) pouco maior. A gente fazia atividades com o próprio parti-
cipante, muitas vezes era com a coordenadora auxiliando,
O alcance das oficinas na vida pessoal dos acadêmi- outras vezes era sozinha e aquilo ali deu uma segurança
cos repercutiu no desenvolvimento da escuta, pois mesmo maior. Eu acho que a oficina da escuta me ajudou bastante
esperando um processo mais técnico, surpreenderam-se (...) Eu entrei no estágio um pouco mais segura do que se
positivamente com o direcionamento subjetivo, o que se eu não tivesse tido essa oportunidade de iniciar com esses
confirma na seguinte fala: trabalhos. Eu acredito que eu tenha ficado mais segura,
por mais que eu ainda tenha ficado muito nervosa, mas
Foi algo bem diferente, mostrou muito, eu entrei espe- eu acho que entrei com um pouco mais de segurança. (A,
rando que fosse aquela coisa mesmo de você aprender de trainee, 10º período)
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 209-218, jul-dez, 2016 214
Experiências de Estudantes de Psicologia em Oficinas de Desenvolvimento da Escuta
O relato acima permite percebermos diferenças mar- “(...) A oficina da escuta foi bom por isso, porque me deu
cantes entre os processos dos participantes e o das trai- uma força, um olhar melhor para o curso. Acho que é is-
nees, já que para essas a experiência permitiu um aper- so” (S, 4º período).
feiçoamento do fazer psicológico, talvez pelo fato da Os sujeitos descreveram, também, que, após sua par-
função de facilitadora que ocupava, viabilizando uma ticipação na oficina, houve uma mudança na maneira
maior segurança diante das expectativas da futura práti- de enxergar a escuta clínica, e a diferenciaram da escuta
ca profissional. Como diz Braga, Daltro e Danon (2012), dita comum, a exemplo de N (9° período): “Eu acho que
a escuta é uma ferramenta indispensável no trabalho do a competência é a escuta em prática psicológica, enten-
psicólogo e se constitui como principal dispositivo de deu? Que não é uma escuta comum. Aí, na prática psi-
cuidado do profissional. As experiências dos sujeitos cológica eu acredito que deve haver esse distanciamento
trouxeram essa questão, quando eles se referiram à ofi- do que se fala para que não seja entendido de cara”. Ou-
cina como marco para o despertar da consciência acer- tros ganhos de aprendizagem se referem à função huma-
ca da importância que a escuta tem no contexto pessoal nizadora e acolhedora do eu que a oficina teve como ex-
e profissional. periência para os estudantes. Enquanto EM (4º período)
diz que “escutar já é um processo de mais cuidado, um
Então você desperta um pouco para aquilo que de al- processo em que você vai estar prestando mais atenção”,
guma forma você vai ser enquanto profissional e acho que G (3º período) relata:
perpassa até a nossa construção pessoal mesmo. Enquanto
por ser do psicólogo, isso vai me modificando também, en- Essa questão mesmo de ver a seriedade do que a gen-
tão acho que foi o primeiro ou um dos primeiros contatos te está fazendo aqui, eu como estudante, a seriedade de
e acho que foi uma preparação a mais, foi algo que não estar no curso e depois sair, trabalhar e estar só e ter a
era previsto na minha grade curricular, mas que agregou responsabilidade de lidar com vidas, com seres huma-
valor mesmo à minha formação. (Z, 4º período) nos, que não é qualquer coisa, ter uma visão mais huma-
nizada assim das coisas; a questão do ouvir, de não só
Pelo trecho de relato acima, podemos apontar outra querer colocar o que eu acho, mas também ouvir o outro,
característica que se afirmou como ganho para os estu- aprender a ouvir.
dantes, que foi o desenvolvimento da competência da es-
cuta clínica, que não se dava necessariamente em sala de Ao se depararem com uma escuta acolhedora, huma-
aula, através de teorias ou técnicas. Este aspecto desper- nizada, sensível, uma escuta de si e do outro que promo-
tou novos modos de subjetivação e o contato maior com ve cuidado, os sujeitos se mobilizavam. Esse foi o caso de
a prática profissional vindoura, que envolve a escuta do CC (4º período): “Com certeza a oficina de escuta ajuda
outro. Corroborando com a ideia de Heckert (2007), o es- principalmente a pessoa que está participando a se hu-
tudante pesquisado apresenta a necessidade de experien- manizar, porque o que mais vi foi essa forma de ajudar a
ciar a escuta enquanto prática, além do ambiente acadê- acolher o outro”.
mico comum, para assim obter maior apropriação acerca O contato com o outro permitiu, também, o desen-
da utilização desse dispositivo. Questionado se houve ga- volvimento de habilidades interpessoais que, segundo
nhos de aprendizagem após sua participação na oficina, os psicólogos participantes do estudo de Bandeira et al.
um dos sujeitos responde: (2006), é algo que nem sempre ocorre num contexto de
graduação em psicologia. Portanto, a oficina se mostra
Muito, muito... Eu acho que muito mais do que muitas como fértil para o desenvolvimento de competências va-
coisas que eu já vi ao longo desses quatro períodos. Porque lorizadas como significativas para a futura atuação pro-
por mais que seja necessário esse oculozinho que é a teo- fissional, como, por exemplo: ouvir com atenção a fala de
ria para a gente olhar a partir do nosso objeto de estudo, outro; expressar empatia; fazer relações entre diferentes
também é necessário não só os óculos como o que eu vou conteúdos da fala do interlocutor; e interpretar a fala do
Artigo - Relatos de Pesquisa
ouvir, como eu vou ouvir, que, às vezes, a gente se prende outro. O recorte da entrevista de CD (4º período) é bem
muito ao ouvir de acordo com a teoria e muita coisa pas- característico disso:
sa despercebida. (CD, 4º período)
Eu só fiquei me colocando no lugar dela... Pensando
As atividades desenvolvidas durante a oficina colo- “meu Deus, que tenso” (...) Você fala, aí a outra pessoa
caram os participantes em contato com sua realidade no não está fazendo nada, a outra pessoa só está fazendo
curso, gerando desdobramentos de significados para além com que você se escute, às vezes está repetindo até o
do momento da sua realização, apontando para suas res- que você disse... Porque, às vezes, até eu tinha consci-
ponsabilidades enquanto futuros profissionais e ratifican- ência, não é questão de inconsciência do que diz, mas
do o amadurecimento ao revelar processos que já existiam é um parar para perto da magnitude do que você fala,
no sujeito, mas dos quais este não tinha se apropriado: né? Foi bem tenso...
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Aíla M. Dourado; Cristiane A. Quirino; Monzitti B. de A. Lima & Shirley M. V. de Melo
Alguns participantes apontaram a oficina como algo “Eu não falava das outras para ela, eu só falava daquela
novo na universidade, sendo, portanto, uma experiência mesmo que ela participou... É uma coisa minha, é uma
única e significativa para eles. EM (4º período) alegou coisa dela... Então ficou só entre nós duas mesmo.” (E,
que gostou muito de participar, na época ela “estava no Trainee, 4º período).
segundo período e não tinha contato nenhum com uma
das atividades que o psicólogo poderia estar exercendo”. Acho que em primeiro lugar é o sigilo. A gente tinha a
ER (4º período) também destacou a novidade, pois dis- certeza do sigilo. “Vai sair daqui e vocês não vão poder sair
se que “foi uma experiência nova dentro da faculdade” e falando e tal”, ponto! Isso foi posto na primeira conversa
importante porque “teve contatos com outras pessoas do que a gente teve da oficina. (O, 2º período)
curso que não conhecia”. AB (9º período), além de reve-
lar que “foi algo inédito dentro da UNIVASF”, acrescenta Eu lembro que é uma coisa que é minha, a professora
que “nunca teve e sabe-se lá quando vai ter de novo ofi- também sinalizou isso e aí eu coloco isso como uma com-
cinas realmente focadas na escuta”. petência que é a questão da pontualidade. Eu acho que é
Estudantes de períodos mais adiantados sinalizaram a própria responsabilidade profissional, não deixa de ser
a relevância da oficina na vida profissional como futuros uma competência. (AB, 9º período)
psicólogos e muitos relataram a importância da escuta co-
mo competência a ser desenvolvida pelo profissional de No que tange às experiências das trainees, participar
psicologia, como pode se constatar abaixo: das oficinas permitiu uma apropriação e uma relação me-
lhor com o curso de Psicologia, pois possibilitou a elas
Eu defino a escuta como a ferramenta do psicólogo: a experimentarem a prática da atuação do psicólogo:
ferramenta. Claro que nós temos outros dispositivos possí-
veis para trabalhar como psicólogos, mas a escuta é indis- Eu estava me dedicando ao curso, mas ainda não es-
pensável (...) É o ponto chave da nossa profissão: a escuta, tava visualizando nada prático, o que é que eu ia fazer
o exercício da escuta. Então, passava pela minha cabeça: com isso depois, mas quando surgiu a oportunidade de
meu Deus será que vou ter mesmo a competência de estar participar desse projeto de extensão eu pude ver o que é
fazendo esse exercício?! (AB, 9º período) que é que eu estava fazendo ali no curso. Até então eu
estava meio navegando assim, eu sabia que eu ia che-
Independente dos períodos que os alunos cursavam, gar na praia, como se eu tivesse no mar, eu não estava
para além da escuta clínica, eles se apropriavam de ou- nadando aleatoriamente para qualquer lado, eu sabia
tras competências. No entanto, percebemos que os alu- que eu ia chegar na praia, mas eu não sabia como era
nos mais novos tiveram mais abertura e disponibilidade essa praia, entendeu? E a oficina de desenvolvimento
ao participar das atividades sugeridas. Acreditamos que da escuta me possibilitou ver que praia era essa que eu
eles tiveram a escuta sensibilizada muito mais no que se ia chegar e eu gostei do que eu vi (...). Participar da ofi-
refere ao âmbito pessoal enquanto que os veteranos des- cina me ensinou, me despertou, me sensibilizou muito
tacaram a importância no âmbito profissional. Diante do essa escuta diferenciada que eu acho que não é uma es-
que foi exposto, parece ter havido, portanto, unanimidade cuta comum e ao mesmo tempo também me jogou nessa
quanto à importância que a oficina de desenvolvimento experiência de estar lá, de escutar o outro, de ver como
da escuta teve para os estudantes. Desde os ganhos pes- aquilo estava acontecendo, de como um psicólogo deve
soais – que remetem às questões de autocuidado e escuta mediar aquele processo grupal. (...) Quando eu cheguei
de si – aos profissionais e acadêmicos – voltados para o na disciplina de processos grupais eu cheguei um pou-
amadurecimento no curso e para a visão da futura práti- quinho melhor por ter vivenciado aquilo, então quando
ca profissional. a gente estudou, por exemplo, reações G, eu já lembra-
Outro dado constatado diz respeito ao contrato efe- va muito, me remetia muito à oficina, por ter tido essa
tivado na oficina. Diversamente do que se poderia ima- experiência prática antes da aula teórica, isso me aju-
Artigo - Relatos de Pesquisa
ginar, mostrou-se como algo de extrema relevância para dou muito a chegar na aula teórica mais apropriada. (C,
o desenvolvimento de algumas competências nos parti- Trainee, 4º período)
cipantes, como, por exemplo, o sigilo e a pontualidade.
Na observação da condução do processo, os estudantes No caso de uma trainee, em específico, a oficina foi
conseguiram assimilar algumas ações que são intrínsecas crucial para a escolha do tema a ser pesquisado no Tra-
à prática profissional, como cumprir com o horário esti- balho de Conclusão de Curso, e explicita a importância
pulado para iniciar o atendimento ou a atividade progra- da oficina também como atividade acadêmico-científica:
mada, e o compromisso ético do sigilo do que é revelado
no devir da atuação. Isto pode ser visto nas respostas de Então eu acho que ela foi tão tão significativa para
dois dos estudantes participantes e de uma trainee, quan- mim que de repente eu escolhi querer pesquisar, fazer o
do questionados sobre o que foi assimilado da oficina e meu trabalho de conclusão de curso a partir dessa temáti-
que eles poderiam utilizar na futura prática profissional: ca da escuta. E, com certeza, foi o pontapé essas oficinas,
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 209-218, jul-dez, 2016 216
Experiências de Estudantes de Psicologia em Oficinas de Desenvolvimento da Escuta
essa experiência que eu tive foi o pontapé para que eu pu- perior que ofereçam o curso em questão. Tal prática clí-
desse desenvolver esse trabalho. (A, Trainee, 10º período) nica pode permitir, como se viu na presente pesquisa, a
transformação em modos de subjetivação de aprendizes,
Por fim, percebemos que as entrevistas, ao revisitarem favorecendo crescimento pessoal, apropriação e desen-
as oficinas, proporcionaram mudanças, reflexões e novos volvimento de competências para o futuro ingresso no
modos de subjetivação aos participantes, o que cumpre mercado de trabalho.
com a natureza mesma da pesquisa fenomenológica, co- Interessante destacar que, embora as oficinas tenham
mo nos apresenta Amatuzzi (2008, p. 61): sido conduzidas pelo viés da psicologia humanista, em
Quando o interlocutor (pesquisado) assume a mesma nenhum relato recolhido os estudantes destacaram a abor-
intenção de pesquisa que o pesquisador, ele sai benefi- dagem em questão ou se referiram a ela como condição
ciado por ela. Ele sai compreendendo-se melhor (e capaz para o desenvolvimento da escuta. Nesse sentido, a ofi-
de ações mais efetivas). Por isso, dentro da luz fenome- cina pode beneficiar todos os estudantes independente
nológica, não há diferenças essenciais entre pesquisa e da abordagem teórico-prática com a qual esse ou aquele
atendimento psicológico ou psicoterapia. A aproximação graduando possa se identificar ou vir a praticar em seu
do vivido desencadeia mudanças. estágio de final de curso ou em sua futura atuação como
psicólogo.
O trecho da entrevista com um dos integrantes da Como o estudo foi realizado em apenas uma institui-
equipe de pesquisa e uma participante da oficina a se- ção, sugerimos a condução das oficinas em outros contex-
guir serve para ilustrar o que afirmou Amatuzzi e nos tos acadêmicos para que tal modalidade possa ser institu-
permite concluir que a condução de uma pesquisa so- cionalizada como uma prática significativa para o cum-
bre o vivido está claramente associada com mudanças primento das Diretrizes Curriculares Nacionais, já que
em modos de subjetivação, denotando como o presente estas defendem atividades que extrapolem a sala de aula
estudo pôde, também, ser significativo para o desenvol- e contribuam para o desenvolvimento de competências
vimento da escuta do estudante, principalmente para no graduando de psicologia. Além disso, propomos pes-
os orientandos da pesquisa, que, por sinal, também fo- quisas longitudinais com maior tempo de oficina, com-
ram os trainees. parando a sensibilização e o desenvolvimento da escuta
em alunos de diferentes períodos, visto que o fato de es-
(CD, 4º período): Eu falei para você, naquele dia que tarem mais próximos ou mais distantes do momento de
foi as frases lá na parede quando a gente voltou, porque adentrarem o estágio no final do curso tem repercussões
ali ficou muito bem que muita coisa tinha sido dita pelas no modo como os estudantes vivenciam e assimilam as
pessoas e que eu não tinha escutado... e aí na hora que
atividades propostas na oficina.
eu cheguei as coisas estavam ali e eu só reconheci uma
Enfim, esperamos que este estudo possa fomentar no-
frase que tinha sido minha... as outras eu não tinha reco-
vos projetos de ensino, pesquisa e extensão, permitindo
nhecido... eu estava ao lado de Z e ela falou “ah aquilo
que os educadores, formadores de psicólogos, cumpram
não sei que...”, aí eu comecei a perceber que aquilo não
seu compromisso de agentes de transformação de reali-
era só a minha frase, tinha frase de todo mundo e que eu
dades sociais e sua missão de escutar e cuidar de seus
não tinha escutado metade daquilo ali, mas a minha eu
aprendizes.
lembrava... aí foi a parte que eu gostei muito...
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Aíla M. Dourado; Cristiane A. Quirino; Monzitti B. de A. Lima & Shirley M. V. de Melo
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O Psicodiagnóstico Interventivo Fenomenológico-existencial Grupal como Possibilidade de Ação Clínica do Psicólogo
O Psicodiagnóstico Interventivo
Fenomenológico-existencial Grupal como
Possibilidade de Ação Clínica do Psicólogo
Paulo Evangelista
Resumo: Neste artigo apresento o psicodiagnóstico interventivo fenomenológico-existencial como possibilidade de ação clínica do
psicólogo. Trata-se de um modelo de intervenção em psicologia em prática nas clínicas-escola da Universidade Paulista (UNIP),
onde leciono, tendo sido desenvolvido nessa instituição. Este modelo questiona o lugar hierárquico de saber e poder do psicólogo
no método tradicional de psicodiagnóstico, convocando os clientes a assumirem protagonismo na elaboração do conhecimento
acerca de si mesmos. Na UNIP este recurso é utilizado no psicodiagnóstico infantil, o que reconfigura o papel da família no processo.
A criança não é mais vista como portadora isolada de um ‘problema psicológico’, já que este é interpretado como um fenômeno do
mundo familiar. Ademais, configura-se já como ação psicológica, propiciando o resgate da liberdade para cuidar de si e a autonomia
dos clientes. O método compreende entrevistas com pais, sessões de observação da família, atendimentos à criança, visitas à casa
e à escola dos participantes. Por fim, elabora-se um relato em linguagem acessível para a criança de seu processo, assim como lê-
se e discute-se com os pais o Relatório Psicológico, a fim de que se posicionem e assumam a coautoria do mesmo.
Palavras-chave: Psicodiagnóstico; Psicodiagnóstico-interventivo; Psicologia fenomenológico-existencial.
Resumén: En este artículo presento el psicodiagnóstico intervencionista fenomenológico-existencial como posibilidad de acción
clínica del psicólogo. Es un modelo de intervención en psicología en práctica en las clínicas-escuela de la Universidad Paulista
(UNIP), donde enseño, desenvueltoen esta misma institución. Este modelo cuestionael lugar jerárquico de saber y poder del
psicólogo en el método tradicional de psicodiagnóstico, convocando los clientes a asumieren protagonismo en la elaboración del
conocimiento acerca de si mismos. En la UNIP este recurso es utilizado en el psicodiagnóstico infantil. Este reconfigura el papel de
la familia en el proceso. El niño no es más visto como portador aislado de un ‘problema psicológico’, ya que este es interpretado como
un fenómeno del mundo familiar. Configura-se ya como acción psicológica, propiciando el rescate de la libertad para cuidar de si y
la autonomía de los clientes. El método comprende entrevistas con los padres, sesiones de observación de la familia, atendimientos
Artigo - Relatos de Pesquisa
con los niños, visitas a la casa y la escuela de los participantes. Por fin, elaborase un relato de su proceso en lenguaje accesible para
el niño y lése e discutese con los padres el Relatório Psicológico a fin de que se posicionen e asuman la coautoría del mismo.
Palavras-clave: Psicodiagnóstico; Psicodiagnóstico-intervencionista; Psicologia fenomenológico-existencial.
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Paulo E. R. A. Evangelista
o novo supervisor, após uma mal cuidada saída da super- gica visa esclarecer a demanda no momento de chegada
visora anterior, que os teria apresentado a este modelo de ao serviço de psicologia para, em seguida, fazer o enca-
psicodiagnóstico. Quando da entrevista para contratação, minhamento correto. Está de acordo com a etimologia da
respondi que eu sabia realizar psicodiagnósticos na abor- palavra, que vem do “grego diagnõstikós e significa dis-
dagem fenomenológico-existencial. De fato, eu já tinha re- cernimento, faculdade de conhecer, de ver através de.”
alizado processos de psicodiagnóstico fundamentado na (Ancona-Lopez, 1984, p. 1) Ademais, corresponde a uma
fenomenologia existencial. Meu primeiro estágio clínico das prerrogativas da profissão do psicólogo no Brasil, de-
no curso de Psicologia foi um psicodiagnóstico, como na terminada pela Lei Federal nº 4.119 de 1962, regulamen-
maioria das universidades. Ademais, sempre que recebo tada pelo Decreto nº 53.464, de 21/01/1964, onde se lê
um paciente novo no consultório acabo por realizar, es- no Art. 4 que “São funções do psicólogo: 1) Utilizar mé-
pontânea e intuitivamente, uma avaliação informal (Mi- todos e técnicas psicológicas com o objetivo de: a) diag-
to, 1996), isto é, uma exploração da queixa, em direção à nóstico psicológico; b) orientação e seleção profissional;
demanda, à luz do contexto atual e histórico de vida do c) orientação psicopedagógica; d) solução de problemas
novo paciente. Descobri, logo no começo como supervisor de ajustamento” (Brasil, 1962) Assim, ao explicar o sofri-
de psicodiagnóstico na UNIP, que o que eu havia apren- mento psicológico do paciente e encaminhá-lo ao serviço
dido era o modelo tradicional de psicodiagnóstico e isso adequado, estou realizando um diagnóstico psicológico.
me permitiu vivenciar a diferença entre os dois modelos. Implicado aqui está que eu, psicólogo, tenho um conhe-
cimento científico que, aplicado às situações apresenta-
das pelo paciente, possibilita uma explicação das causas
1. Psicodiagnóstico tradicional desse sofrimento. Conhecendo as causas, é possível uma
intervenção adequada. Isso também está de acordo com
O psicodiagnóstico que aprendi na faculdade, que ho- a proposta da psicologia enquanto ciência técnica. Como
je chamo (à luz da descoberta do psicodiagnóstico inter- afirmam Pompéia & Sapienza (2010), “Neste nosso tempo
ventivo) de “tradicional”, é um processo psicológico vol- da técnica, faz muito sentido que, tendo detectado o que a
tado para o esclarecimento da demanda que mobilizou está perturbando, ela [pessoa que sofre] queira saber com
o paciente a buscar ajuda psicológica, com o objetivo de objetividade se o terapeuta vai conseguir responder à sua
propor o encaminhamento mais adequado. Na faculda- demanda e quanto tempo levará” (p. 129).
de, o psicodiagnóstico que realizei era de um homem de No processo que realizei, fiz isso. Identifiquei que ha-
40 e poucos anos. Estava frustrado com o trabalho e com via sofrimento psicológico e que a psicoterapia seria a mo-
o casamento. Em cinco sessões realizei com ele um le- dalidade de prática psicológica mais adequada para essa
vantamento de como a situação chegou a este momento demanda. Nem me dei conta então, que estava implicada
crítico, que mobilizou a busca por ajuda, e fiz o encami- aqui uma hierarquia na relação com o paciente (prova-
nhamento. Lembro que ao longo das sessões eu me segu- velmente porque, na condição de quartoanista no curso
rava para não fazer perguntas que convidassem reflexões de Psicologia, eu concordaria com essa hierarquia). Ele
sobre seu modo de se relacionar em casa e no trabalho. me relatou sua vida e eu, detentor do saber psicológico,
Fazia isso, pois entendia que o psicodiagnóstico era um interpretei-a por ele e para ele, entendendo que a psico-
processo de avaliação, que podia (frequentemente de- terapia seria o encaminhamento mais adequado.
veria) recorrer a testes psicológicos para compreender o Passou-se quase uma década para que eu entendesse
sentido do sofrimento apresentado. Assim, embora não que o que eu fiz com ele é o que costumeiramente se faz
tenha aplicado nenhum teste nesse paciente, fiz um le- nos serviços de psicodiagnóstico em clínicas-escola; a
vantamento que confirmou aquela que era minha expec- vasta maioria dos pacientes é indicada para a psicotera-
tativa desde o início dos atendimentos: este homem pre- pia. Na UNIP, como supervisor de psicoterapia, chegam
cisava de psicoterapia. Ademais, minha supervisora era semestralmente muitos pacientes indicados pelo psico-
uma ótima psicanalista. Às vezes ela recorria à teoria para diagnóstico. Como lá o psicodiagnóstico é a porta de en-
Artigo - Relatos de Pesquisa
iluminar algumas situações da sessão, outras, para expli- trada das crianças à clínica-escola, elas são indicadas
car por que o paciente agia do modo como agia. Assim, para a psicoterapia, assim como seus pais. Num levanta-
na quinta sessão, retomei com ele o que havíamos expli- mento estatístico bem informal dos pacientes atendidos
citado ao longo do processo, expliquei a ele por que (as pelos alunos que supervisiono em psicoterapia na UNIP,
causas!) de seu sofrimento e realizei o encaminhamento metade foi indicada pelo psicodiagnóstico.
para a mesma clínica da PUC, só que para o setor de psi- Todos esses pacientes indicados para psicoterapia tam-
coterapia. Fiz esse encaminhamento mais ou menos no bém relatam terem passado por uma das consequências do
fim de setembro e não acompanhei posteriormente para método tradicional de diagnóstico psicológico, por qual
saber quando ou mesmo se foi chamado. o paciente que atendi na PUC também deve ter passado:
Esse modo como procedi está em conformidade com receberam informações sobre o sofrimento que motivou
o modelo “tradicional” de psicodiagnóstico. Parte-se do a busca pelo psicólogo e o encaminhamento e depois ti-
pressuposto de que essa modalidade de prática psicoló- veram que aguardar meses até serem chamados. Não é à
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 219-224, jul-dez, 2016 220
O Psicodiagnóstico Interventivo Fenomenológico-existencial Grupal como Possibilidade de Ação Clínica do Psicólogo
toa que muitos pacientes desistem do atendimento nas Quando em 2008 entrei pela primeira vez para super-
clínicas-escola antes de o iniciarem; com o longo tempo visionar um grupo de estagiários de psicodiagnóstico in-
de demora na fila de espera, ou os sintomas desaparecem, terventivo na UNIP, deparei-me com um modo completa-
ou buscam atendimento em outros lugares. Esse é, por- mente diverso de prática psicológica, cujo objetivo geral
tanto, outro aspecto do psicodiagnóstico tradicional que, é esse apresentado acima. O grupo era composto por doze
quando usado em contextos institucionais, exige refor- estagiários, que formavam duplas. Eles me informaram que
mulações. No consultório particular ele funciona. Aliás, em poucos minutos receberíamos seis famílias, previamen-
é do modelo de consultório particular que provém. Mas te chamadas pela clínica-escola, para o psicodiagnóstico.
em clínicas-escola e outras instituições voltadas para o Ao longo do processo fui descobrindo e compreen-
atendimento de pessoas que não dispõem de recursos dendo o sentido deste psicodiagnóstico. Primeiramente,
para atendimentos particulares, esse modelo não se adé- as sessões eram realizadas em grupo. Isso é muito enri-
qua. Frequentemente os pacientes precisam se deslocar de quecedor neste processo, pois possibilita aos pais e res-
longe, gastando o dinheiro contado para condução, para, ponsáveis que ouçam as suas histórias, as compreensões
após dois ou três meses, terem confirmado pelo psicólogo que têm dos comportamentos de seus filhos e os modos
que realmente precisam de um atendimento psicológico. como já tentaram lidar com os comportamentos tidos
Essas mesmas dificuldades acontecem com as famílias como problemáticos. Dessas discussões surgem muitas
que levam seus filhos para as clínicas-escola. As crian- possibilidades de ação e compreensão da situação atual
ças, frequentemente encaminhadas pela escola por pro- vivenciada pela família. Lembro-me de uma sessão em
blemas de aprendizagem, vêm com seus pais para terem que duas mães começaram a narrar as dificuldades de
confirmado que precisam passar por um psicólogo. Feito suas próprias infâncias, refletindo sobre como o medo
o encaminhamento, precisam esperar até serem chama- de que seus filhos passassem por situações semelhantes
dos, o que geralmente leva meses. influenciava a rigidez com que os tratavam. Outra se pre-
Esse modelo de psicodiagnóstico nasceu nos con- ocupava que seu filho não gostava de brincar na rua. Em
sultórios particulares, mas não se adéqua à situação de grupo, relatou que passou sua infância cuidando da casa,
atendimento nessas instituições, aonde as pessoas vêm enquanto via seus amigos brincando na rua, que era o que
buscando ajuda para lidar com as dificuldades atuais. mais desejava. Essas lembranças as sensibilizaram para o
quanto a postura excessivamente firme com os filhos po-
Ancona-Lopez (1984) lembra que as pessoas nem se pre-
deria estar contribuindo para os sintomas que motivaram
ocupam com o nome do serviço psicológico que estão re-
a busca de ajuda, o que convidou todas as mães presentes
cebendo; o que lhes importa é conseguir lidar com o so-
nessa sessão a experimentarem olhar para seus filhos de
frimento atual. Mas o psicólogo que realiza o psicodiag-
outro modo. Descobriram que, com a intenção de cuidar,
nóstico no modelo tradicional acaba por desconsiderar o
estavam descuidando de seus filhos.
pedido de ajuda, postergando “a intervenção, empobre-
Esta situação revela um dos aspectos do psicodiag-
cendo um encontro rico de possibilidades” (p. 32).
nóstico interventivo, que é a implicação dos clientes no
seu processo de diagnóstico. Ao considerarem sua par-
ticipação no sofrimento do filho, estas mães descobrem
2. Psicodiagnóstico interventivo
que os sintomas que motivaram a busca pelo psicólogo
não estão isolados na criança. Ao descobrirem-se partici-
Assim, o questionamento deste modelo de psicodiag- pantes do sofrimento da criança, descobrem sua condição
nóstico surge a partir do encontro com a realidade insti- de possibilidade de superação das dificuldades vivencia-
tucional que encontra. O psicodiagnóstico interventivo das. Descobrem que o psicólogo não é o único agente de
aparece como uma modalidade de prática psicológica transformação da situação atual, mas os próprios clien-
mais adequada para atender a clientela das clínicas-es- tes descobrem-se responsáveis pelo que se passa consigo.
cola. Por um lado, segue o mesmo objetivo do psicodiag- Descobrem também que no psicodiagnóstico são tão par-
nóstico tradicional, a saber, compreender o que ocorre, o ticipantes quanto o psicólogo na formulação da compre-
Artigo - Relatos de Pesquisa
comportamento interpretado como problemático, e para ensão da situação vivenciada (Donatelli, 2013).
responder ao pedido de modificação por meio de inter- Esse modo de proceder exige que o psicólogo mude
venção do psicólogo, indicando o encaminhamento mais sua postura. Ele precisa abandonar o lugar de conhece-
adequado, caso necessário. Por outro lado, o psicodiag- dor para convidar os clientes para que participem, para
nóstico interventivo rompe com o conceito de diagnóstico que caminhem junto e se sintam colaborando. Segundo
enquanto coleta de dados para que o psicólogo formule Ancona-Lopez (1996),
uma compreensão sobre o cliente, implicando os clientes
no processo de formulação de uma compreensão sobre si Esta colaboração, no entanto, somente será possí-
mesmos e utilizando os encontros clínicos de maneira a vel se o psicólogo se abrir para a co-participação do
já intervir na dinâmica apresentada, contribuindo para cliente e acreditar que este último pode compartilhar
o esclarecimento e para a superação do sofrimento que os conhecimentos que se forem configurando duran-
motivou a busca por ajuda. te o processo. É uma atuação que se caracteriza pelo
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Paulo E. R. A. Evangelista
fato de o psicólogo partilhar suas impressões sobre (e brincar com crianças mais velhas ou mais novas, embora
com) o cliente, levando-o a participar do processo e não com crianças de sua idade? Em grupo pode-se obser-
a abandonar a postura passiva de “sujeito” a ser co- var tudo isso. E essa observação, diferentemente do modelo
nhecido. A partir daí, o psicólogo manterá sua escuta tradicional de psicodiagnóstico, que seria de coleta de da-
voltada para as possibilidades de intervenção. (p. 33) dos para formulação de uma compreensão pelo psicólogo
para posterior devolutiva e encaminhamento, possibilita
Yehia (1996) indica que o lugar do psicólogo é o de com- que, imediatamente, intervenha-se na situação, investigan-
preender a pergunta, mas neste contexto em que os inte- do e convidando novos modos de ser e estar com outros.
ressados são coautores de seu processo, o conhecimento Outras possibilidades de investigação sobre a situação
teórico e técnico do psicólogo passa a ser apenas mais um existencial daquele que busca ajuda psicológica são os tes-
ponto de vista. Trata-se de um ponto de vista embasado tes psicológicos (também são prerrogativa do psicólogo) e
em pesquisas e observações que possibilita a organização visitas domiciliar e escolar. Enquanto no modelo tradicio-
dos fenômenos clínicos e o desvelamento de um sentido nal de psicodiagnóstico o interessado vem ao consultório
que articule uma compreensão do sofrimento atual, a ser do psicólogo, a visita domiciliar propicia ao investigador
trançado com o saber proveniente dos clientes. No caso vários dados de uma só vez: primeiro, pode conhecer o
do embasamento fenomenológico existencial, o psicólo- espaço habitado pelos pacientes, podendo compreender
go contribui com a perspectiva de que o cliente está, a seu como é este ‘mundo’ (sua organização, seus aspectos, seus
modo, respondendo à indeterminação de sua existência e significados). O mundo habitado é organizado e cuidado
à tarefa de ser, buscando o sentido desse modo. É respon- por aqueles que o habitam, de modo que a casa é reve-
sabilidade do psicólogo criar o contexto de aparição de fe- ladora de seus ocupantes e de como significam sua vida
nômenos clínicos (setting), ou seja, o campo no qual o que (Corrêa, 2004). Ademais, a visita domiciliar torna-se uma
aparecer será usado para compreender o sentido da vivên- ocasião para conhecer outros membros da família, com
cia do cliente articulado ao sofrimento que motivou a pro- quem os interessados habitam e compartilham o cotidia-
cura. Também cabe ao psicólogo, em função de sua maior no, e os modos como se relacionam. Também possibilita
mobilidade e liberdade, coordenar o processo de busca de ao psicólogo alguns dados sobre a implicação da família
ajuda psicológica pela família, indicando avaliações con- no processo. Aceitam ou rejeitam a visita? Cuidam para
comitantes para esclarecer o pedido se forem necessárias. receber? Quem recebe? Essas questões compõem a com-
Um dos aspectos principais do psicodiagnóstico inter- preensão do envolvimento da família com a situação vi-
ventivo é a liberdade para acompanhar o desvelamento venciada por aquele que apresenta os comportamentos
do fenômeno que o psicólogo tem diante de si. Por isso, a problemáticos, motivando a busca do psicólogo.
abordagem psicológica mais pertinente é a fenomenologia A visita escolar também é uma possibilidade nesta mo-
existencial. Liberdade não quer dizer falta de delimita- dalidade. Frequentemente, as crianças são encaminhadas
ções. Quer dizer que se buscam constantemente modos de ao psicodiagnóstico com alguma queixa escolar. Brigam na
acesso que facilitem o desvelamento do sentido do sofri- escola, não conseguem ler ou escrever ou ambos, a profes-
mento apresentado. Isso é um dos fundamentos da feno- sora está preocupada com os comportamentos da crian-
menologia: “o sentido específico do logos, só poderá ser ça, etc. Não raro é a escola que aponta que algo não vai
estabelecido a partir da ‘própria coisa’ que deve ser des- bem. Isso é compreensível considerando que o primeiro
crita, ou seja, só poderá ser determinado cientificamente mundo habitado pela criança é o familiar (Cytrynowicz,
segundo o modo em que os fenômenos vêm ao encontro” 2000a; Cytrynowicz, 2000b). ‘Mundo’ deve ser entendido
(Heidegger, 1998, p. 65). Por isso, não há técnicas previa- como conceito fenomenológico-existencial, isto é, como
mente delineadas. O atendimento aos pais e às crianças rede de remissões significativas em que os entes veem à
(no caso de psicodiagnóstico infantil) é uma ‘ferramenta’ luz sob significados articulados e sustentados pelo para
adequada, pois a situação grupal facilita a manifestação quê da compreensão (HEIDEGGER, 1998). Assim, a família
dos modos de se relacionar. Assim, no psicodiagnóstico enquanto mundo é uma abertura para a significância dos
interventivo se alternam sessões dos pais e dos filhos. comportamentos cotidianos, abertura esta que previamen-
Artigo - Relatos de Pesquisa
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 219-224, jul-dez, 2016 222
O Psicodiagnóstico Interventivo Fenomenológico-existencial Grupal como Possibilidade de Ação Clínica do Psicólogo
algumas expectativas dos pais, professores ou de outros Yehia (2009) o aproximam do plantão psicológico. Esta
agentes da comunidade” (p. 117). modalidade se propõe a acolher a experiência daquele
O psicodiagnóstico interventivo considera importante que busca o psicólogo, favorecendo “uma visão mais cla-
a visita escolar por esta revelar, como a domiciliar, outro ra de si mesmo e de sua perspectiva ante a problemáti-
mundo habitado pela criança. Ademais, é a oportunida- ca que vive e que gera um pedido de ajuda” (Mahfoud,
de de conversar com outras pessoas que convivem com a 1987, p. 76) a partir das possibilidades do próprio cliente
criança – professor, diretor, cuidador, etc. – sobre as com- no momento em que a procura pelo serviço psicológico
preensões que têm da criança e de seus comportamentos, acontece. Assim, o plantonista contribui para o resgate
assim como implicá-los em novos modos de lidar com a da autonomia e da condição de ser-possível daquele que
criança, sendo esse o caso. Afinal, conhecer alguém é “co- busca ajuda. Faz isso através principalmente do esclare-
nhecer a rede de relações da qual esta pessoa faz parte” cimento da situação existencial em que está imerso. É o
(Ancona-Lopez, 1996, p. 27), seus contextos. A visita es- que propõem Cautella & Morato (2009) com o serviço de
colar também possibilita uma compreensão dos significa- plantão psicológico em instituição psiquiátrica: acolher a
dos imbricados na organização espacial e física da escola, demanda de forma a contribuir para “articular-se de ma-
assim como os valores que sustentam o cotidiano escolar. neira mais produtiva em relação a essa situação de crise
Há espaço para as crianças brincarem? Como é esse espaço? e às suas consequências na dinâmica familiar.” (p. 154)
A escola é limpa, organizada? Como é o barulho? etc. Estes O psicodiagnóstico interventivo pode ser entendido des-
aspectos não têm significados ‘em si mesmos’, mas podem sa mesma forma, como um modo de responder à neces-
contribuir para a compreensão global do ser-no-mundo sidade de rearticulação da malha existencial rompida no
infantil quando confrontados com outros aspectos advin- momento de crise (busca do serviço psicológico). Além
dos das situações de observação lúdica, diálogo com os disso, Yehia (2009) aponta que, tanto neste psicodiagnós-
responsáveis, visita domiciliar, etc (Maichin, 2006). tico quanto no plantão psicológico, o confronto com as
Como psicodiagnóstico, esta modalidade de prática compreensões sedimentadas e a conseqüente ruptura des-
psicológica ainda está focada na compreensão da demanda sas pré compreensões possibilita novos modos de agir na
visando um encaminhamento adequado. Como já visto, situação fáctica. Esse modo de compreender a intervenção
entretanto, não se restringe a esse levantamento. O gran- em ambas modalidades está sustentado na fenomenologia-
de diferencial do psicodiagnóstico interventivo é o fato de -existencial, que concebe a ação clínica como “um espa-
que, na busca da compreensão da demanda, implicando ço aberto, condição de possibilidade para a emergência
como participantes dessa busca aqueles que, neste mo- de uma transformação não produzida, mas emergente em
mento, sofrem, esta intervenção favorece o surgimento de forma de reflexão, aqui entendida com quebra do estabe-
novas possibilidades existenciais. lecido e condição necessária para novo olhar poder sur-
Não se trata de uma nova modalidade que surge de gir” (Barreto & Morato, 2009, p. 50).
uma especulação teórica. Conforme mencionado há pou-
co, a população que procura os serviços de clínicas-escola
investe seus recursos nesse processo. No modelo tradicio- 5. Coautoria do saber sobre si
nal do psicodiagnóstico, a família saía do processo com a
confirmação de que precisava de um psicólogo, mas que Essa perspectiva fenomenológica de intervenção, isto
teria que retornar para iniciar o processo interventivo é, disponível para acolher a demanda tal como aparece,
quando fosse chamada. A proposta de que o psicodiag- a partir de sua própria especificidade, exige do psicólo-
nóstico seja também uma intervenção surge da compre- go uma modificação na sua postura tradicional. O psicó-
ensão da especificidade do público que busca este servi- logo não tem como fazer isto se estiver apoiado no saber
ço, sendo, portanto, fenomenológica. Ao mesmo tempo científico sobre o outro, a partir do qual elaborará conhe-
em que oferece uma ajuda, tal como está sendo buscada, cimentos sobre ele. Esta postura exige participação dos
possibilita a compreensão sobre a situação atual e a aber- envolvidos, o que coloca o psicólogo na mesma condição
tura de novas possibilidades. Isso favorece, inclusive, que do paciente: diante de uma situação desconhecida, aberto
Artigo - Relatos de Pesquisa
o encaminhamento proposto seja seguido. No Centro de para o que se manifestar, tendo que destinar o que apare-
Psicologia Aplicada (clínica-escola) da UNIP, os vários pa- cer. Ou seja, ambos estão no mesmo barco rumo à modi-
cientes que chegam encaminhados pelo psicodiagnóstico ficação da situação atual.
referem-se a esse processo como tendo sido caracterizado Por fim, é fundamental comentar que ao longo do
por importantes mudanças. processo de psicodiagnóstico, são realizadas devolutivas
constantes. Elas auxiliam no esclarecimento da demanda
e na compreensão da situação, sendo o principal aspec-
4. Psicodiagnóstico interventivo como ação clínica to interventivo deste processo. Levando em conta que os
fenômenos aparecem sempre sob um aspecto e que há
O fato de propiciar modificações nos modos de ser infindáveis modos de aparecer, no psicodiagnóstico in-
permite que se considere o psicodiagnóstico interventivo terventivo são demarcadas compreensões que surgem de
uma modalidade de ação clínica. Alguns autores, como cada encontro, a fim de que psicólogo e paciente possam
223 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 219-224, jul-dez, 2016
Paulo E. R. A. Evangelista
conjuntamente considerar o que se apresentou. Do pon- Brasil (1962). Lei nº 4.119 de 27 de agosto de 1962 (Dispõe sôbre
to de vista fenomenológico a compreensão já é um modo os cursos de formação em psicologia e regulamenta a pro-
de ação, dado que abre novas possibilidades. Ademais, fissão de psicólogo). Disponível em: <https://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l4119.htm>.
é fundamental que as compreensões que surgem nos en-
contros possam ser partilhadas com os participantes. Is- Cautella, W. & Morato, H. (2009). Uma prática psicológica inclu-
so torna necessário que o psicólogo cuide de que sua lin- siva em hospital psiquiátrico: do cuidado de ser ao resgate
guagem esteja em consonância com a dos participantes. de cidadania. Em H. Morato et al (Org.). Aconselhamento psi-
Isto é, jargões psicológicos e linguagem técnica não favo- cológico numa perspectiva fenomenológica existencial: uma
recem a compreensão; pelo contrário, distanciam psicó- introdução. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
logo e paciente. Corrêa, L. (2004). Visita domiciliar: recurso para a compreen-
Neste modelo de psicodiagnóstico infantil, um dos re- são do cliente no psicodiagnóstico interventivo. (Tese de
cursos mais interessantes para o diálogo com as crianças doutorado). Pontifícia Universidade Católica de São Pau-
é o livro-história, produzido pelo psicólogo no final do lo, São Paulo.
atendimento. O livro-história é uma narrativa da histó-
Cytrynowicz, M. (2000a). O mundo da criança. Revista da Asso-
ria de vida, da situação atual e do processo de psicodiag- ciação Brasileira de Daseinsanalyse, n. 9. São Paulo.
nóstico escrito e ilustrado de acordo com a linguagem da
criança em atendimento (Becker, Donatelli e Santiago, Cytrynowicz, M. (2000b). O tempo da infância. Revista da Asso-
2013). A elaboração desses livros nos estágios na UNIP ciação Brasileira de Daseinsanalyse, n. 9. São Paulo.
e uma atividade riquíssima tanto pelo modo como favo- Donatelli, M. (2013). Psicodiagnóstico interventivo fenomeno-
rece a compreensão e a apropriação do processo pelo pa- lógico-existencial. Em S. Ancona-Lopez (Org.). Psicodiag-
ciente, quanto pelas descobertas de capacidade criativa nóstico interventivo – evolução de uma prática. São Paulo:
e artística dos estagiários. Editora Cortez.
No psicodiagnóstico interventivo, a devolutiva com
Heidegger, M. (1998). Ser e tempo. Petrópolis: Ed. Vozes.
o livro-história é seguida de uma devolutiva final com
os pais e responsáveis, que tem o mesmo objetivo da de- Maichin, V. (2006). Visita escolar. um recurso do psicodiagnós-
volutiva às crianças. Contribui para quem se apropriem tico interventivo na abordagem fenomenológico-existencial.
da compreensão e das possibilidades abertas ao longo do (Dissertação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica
processo. No estágio na UNIP isso tem sido feito através de São Paulo, São Paulo.
de uma leitura conjunta e discussão do relatório psico- Mito, T. (1996). Psicodiagnóstico formal e avaliação informal.
lógico elaborado pelo estagiário. Esta situação também Em M. Ancona-Lopez (Org.). Psicodiagnóstico: processo de
é de troca. O relatório apresentado não é definitivo, pois intervenção. São Paulo: Cortez.
as considerações, dúvidas, críticas e correções propos-
Pompéia, J. & Sapienza, B. (2012). Os dois nascimentos do ho-
tas pelos pacientes compõem a redação final, de modo
mem: escritos sobre terapia e educação na era da técnica.
que, fiel à proposta de que todos são coparticipantes Rio de Janeiro: Via Verita.
deste processo, até o relatório psicológico é elaborado
conjuntamente. Yehia, G. (1996). Reformulação do papel do psicólogo no psico-
diagnóstico fenomenológico-existencial e sua repercussão
sobre os pais. Em M. Ancona-Lopez (Org.). Psicodiagnóstico:
processo de intervenção. São Paulo: Cortez.
Referências
Yehia, G. H. (2009). Entre psicodiagnóstico e aconselhamento
Ancona-Lopez, M. (1984). Contexto geral do diagnóstico psico- psicológico. Em H. Morato et al. (Orgs.). Aconselhamento psi-
lógico. Em W. Trinca, Diagnóstico psicológico: a prática clí- cológico numa perspectiva fenomenológica existencial: uma
nica. São Paulo: EPU. introdução. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 219-224, jul-dez, 2016 224
Plantão psicológico em Unidade Básica de Saúde: Atendimento em Abordagem Humanista-fenomenológica
Resumo: Analisando o psicólogo na Atenção Primária entendemos que, este profissional tem muito a contribuir, seja integrando a
equipe ou atuando em parceria com ela. E que este trabalho seria mais abrangente no formato de Plantão Psicológico (PP), que acolhe
a pessoa no exato momento de sua necessidade. Este estudo é do tipo qualitativo-fenomenológico e buscou descrever atendimentos
psicológicos realizados em uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Participaram da pesquisa 13 pessoas, com idades entre 10 e 80
anos, 12 pessoas eram do sexo feminino e 1 do sexo masculino, a maioria eram de baixa escolaridade e de baixa renda. Foram
atendidos, primeiramente no formato de PP e, quando necessário, os clientes foram convidados a seguirem em psicoterapia. Os
atendimentos foram orientados teoricamente pela abordagem Fenomenológico-Existencial. A maioria dos participantes apresentou
queixa de depressão, mostrando vincular-se a problemas familiares. Houve outras queixas como luto, ansiedade, gravidez, e um
caso da patologia de transtorno obsessivo compulsivo. Uma grande parcela dos clientes preferiu buscar outro plantão se sentissem
necessidade a seguir um processo psicoterapêutico. Conclui-se que o Plantão Psicológico é um instrumento viável e pertinente
na prevenção e promoção de saúde.
Palavras-chave: Fenomenologia; Plantão psicológico; Atenção primária.
Abstract: Analyzing the psychologist´s role in primary health care we understand this occupation can contribute complementing
or being partner of the medical staff. We understand this work could be wider in a prompt psychological attention (PP), in which
we can attend the patients in the moment of their needs. This study is qualitative-descriptive and tries to analyze psychological
assistances made in a medical center (MC). This research comprehends 13 people between 10 and 80 years old; 12 people are
female and 01 male. Most of them have low income and low education level. Firstly, these assistances happened as PP and,
when necessary, the patients were invited to continue their assistance in psychotherapy. These assistances had as theoretical
background existential-phenomenological. Most patients presented complaints of depression linked to their families. There
were others complaints linked to mourning, anxiety, pregnancy, and one case of obsessive-compulsive disorder. Many patients
preferred to seek PP again whenever they felt the need instead of starting a psychotherapy. We conclude that prompt psychological
attention (PP) is a viable and pertinent instrument for health care and prevention.
Keywords: Phenomenology; Prompt psychological attention; Primary health care.
Resumen: Al analizar el psicólogo en la Atención Primaria hemos entendido que esto profesional tiene mucho que cooperar, sea
añadido al equipo, sea actuando junto a ella. Además, que esto trabajo sería más abarcador en el formato de Plantón Psicológico
(PP), el cual acoge a la persona en el exacto momento de su necesidad. Esta investigación es cualitativo descriptivo y buscó hacer
un análisis de las atenciones psicológicas realizadas en un puesto médico. Cooperaron en la investigación 13 personas, con
edades entre 10 a 80 años, 12 personas eran del sexo femenino y 1 del masculino, en que la mayoría era de baja escolaridad y de
Artigo - Relatos de Pesquisa
baja renta. Han sido atendidos, en primer momento, en el formato de PP y, cuando fuera necesario, los clientes fueron invitados
a seguir en la psicoterapia. Las atenciones han sido orientadas teóricamente por el abordaje fenomenológico existencial. La
mayoría de los participantes presentaron la queja de depresión atadas a problemas familiares. Además, otras quejas como luto,
ansiedad, embarazo y un caso de la patología de trastorno obsesivo compulsivo. Una gran parcela de los clientes ha preferido
buscar otro plantón si tuviera necesidad para seguir un proceso psicoterapéutico. Así, se concluye que el Plantón Psicológico es
un instrumento viable e pertinente a prevención y promoción de salud.
Palabras-clave: Fenomenología; Atención psicológica; Atención primaria.
225 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 225-232, jul-dez, 2016
Lorrany de O. Gonçalves; Marciana G. Farinha & Tommy A. Goto
ser biopsicossocial e precisa ser compreendido em sua de de um PP ressaltam ainda a importância de políticas
multidimensionalidade e complexidade, o que exige um públicas que apoiam a oferta de serviços e dispositivos
trabalho multidisciplinar (Archanjo & Schraiber, 2012). que assistem a população que procura o serviço. Morato
Ao analisar o trabalho do psicólogo nesta equipe en- (1997) acredita que o plantonista tem um papel de trans-
tendemos que, apesar das dificuldades, existe um lugar formador e multiplicador social.
para o psicólogo no PSF, seja integrando o grupo de pro- Nas palavras de Morato (1999) o plantão surgiu ouvin-
fissionais ou atuando em estreita parceria com ele. Os do as demandas sociais e propondo novos modelos que
princípios que se baseiam o PSF coadunam com aqueles dessem conta desse pungente pedido. “...amalgamando es-
que fundamentam o trabalho do psicólogo independen- sas experiências passou a repensar como a origem das ten-
temente da corrente teórica que o oriente, isto é, o in- sões, conflitos e crises dos homens e pessoas encontram-se
centivo a autonomia, a valorização das singularidades e nas diversas situações do relacionamento humano, Ou se-
dos diferentes saberes, o resgate da cidadania e o desen- ja, da condição humana no mundo com os outros” (p. 82).
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 225-232, jul-dez, 2016 226
Plantão psicológico em Unidade Básica de Saúde: Atendimento em Abordagem Humanista-fenomenológica
O PP pode ser servir tanto para oferecer uma escuta Souza (2016, p. 75) relembram que “...o tempo da consulta
que alivia uma angústia como funcionar como um servi- e os possíveis retornos dependem de decisões conjuntas
ço de emergência. Gomes (2012) observa que uma emer- entre o psicólogo e o sujeito atendido, não requerendo a
gência pode ser desde um risco de autoextermínio como necessidade de horário agendado”.
um rompimento afetivo com uma pessoa com fortes laços É um espaço privilegiado de escuta e acolhimento,
afetivos. Cautela (2004) chama a atenção para essa mo- favorecendo a instrumentalização das pessoas para li-
dalidade de atendimento pode contribuir com o aperfei- dar com suas dificuldades como é o caso de situações de
çoamento da saúde pública no quesito ajuda psicológica. violência e resguardando os direitos das pessoas que pro-
Esse formato de atendimento podemos entender como curam a instituição (Farinha & Souza, 2016). Para essas
clínico e investigativo, à medida que busca clarificar a quei- autoras, o plantão pode ser espaço facilitador para pro-
xa junto àquele que traz a demanda a partir dele mesmo, cessos de (res)significações de experiências emocionais.
favorecendo não só o acolher em seu sofrimento psicoló- Se pensarmos a partir da perspectiva de atendimento
gico/existencial, mas também o ajudando a lidar com a si- à demanda das instituições de saúde, impõe-se a neces-
tuação-problema e criando possibilidades de clarificação e sidade de abandonar concepções tradicionais da clínica,
enfrentamento (Morato, 2006). Chaves e Henriques (2008) abrindo propostas como a do Plantão Psicológico para
defendem o PP como um tipo de intervenção psicológica contemplar as emergências trazidas aos serviços de saú-
que acolhe a pessoa no exato momento de sua necessida- de. Não devemos esquecer que a atuação do psicólogo se
de, ajudando-a a lidar com a dificuldade tomando conhe- encontra sempre em processo e requer outros conheci-
cimento de seus limites e descobrindo recursos próprios mentos que deem conta da complexidade do ser huma-
antes desconhecidos. Essa ação psicológica, nas palavras no. Isso pode ser observado não só pela recente partici-
de Braga, Mosqueira e Morato (2012), é entendida como: pação e atuação do profissional psicólogo nas políticas
públicas, nas ações e intervenções com pessoas que tem
(...) atenção psicológica, via plantão psicológico, o seus direitos violados e, ainda, em diferentes campos de
ouvir se apresenta como abertura à compreensão de atuação novos e desafiadores, mas, também, pela concep-
mal-estares em relações situadas, possibilitando res- ção tradicional de sua formação clínica desde o início da
significações da experiência. Acompanhar o outro na profissão. Nessa direção, Scorsolini-Comin (2014) apon-
expressão do que lhe dói, apreendendo-o em sua re- ta que deve-se considerar que o saber psicológico não é a
alidade, é solicitude, disponibilizar-se via escuta que única verdade e deve servir a população através do con-
pode permitir se manifestarem elementos norteado- tato com outras práticas igualmente potencializadoras de
res do agir cotidiano, clareando os modos de singu- bem-estar e de crescimento pessoal.
larização e permitindo a apropriação de sentido no Em síntese, pode-se dizer que o trabalho realizado
existir. (p. 557) pelos programas de atenção básica na Unidade Básica de
Saúde é a prestação de atendimentos na unidade ou no
O psicólogo, no lugar de escuta, na compreensão do domicílio, por uma equipe multiprofissional composta
relato daquele que, muitas vezes, tomado de sofrimento por médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e agen-
psicológico/existencial vai ao seu encontro, pode apreen- tes comunitários de saúde. A equipe é levada a conhecer a
der os pontos de desordem ou de estagnação, facilitando realidade das famílias do território atendido e pelas quais
o discurso do cliente e permitindo que os aspectos confli- é responsável, por meio de cadastramento e diagnóstico
tivos emerjam. O surgimento dos aspectos conflitivos na de suas características, tornando-se mais sensível às ne-
fala do cliente, ao se deixar afetar pela fala do terapeuta, cessidades dos indivíduos atendidos. Estes conceitos da
pode proporcionar o desvelamento, mantendo a questão Saúde e de atuação do psicólogo na atualidade nos aju-
pela angústia. Desta forma, pela reflexão de si mesmo, o dam a pensar e norteiam o trabalho dos psicólogos em
cliente pode descobrir-se em liberdade na escolha de su- uma Unidade Básica de Saúde.
as possibilidades. A proposta deste trabalho consistiu no relato de ex-
Artigo - Relatos de Pesquisa
Ressalta-se que o cuidado que o plantonista oferece: a periência de uma estagiária que atendeu em PP em uma
escuta, as reflexões que propõe considerando quem é que Unidade Básica de Saúde (UBS), através do estágio em
busca a ajuda, assim como a situação existencial e socio- Psicologia Clínica, objetivando apontar quais são as de-
ambiental da pessoa que busca atendimento no plantão mandas encontradas e as possíveis intervenções do psi-
possibilitam que o cliente seja acolhido em sua dor no cólogo na instituição.
momento exato ou bem próximo da situação que emer-
giu a sua necessidade, sem precisar de agendamentos ou
aguardar em fila de espera. Tassinari (2009, p. 156) afir- 2. Aspectos metodológicos
ma que o Plantão Psicológico é “[...] realizado em uma ou
mais consultas sem duração predeterminada. Scorsolini- Este trabalho é um relato de experiência, a partir de
-Comin (2014) ressalta que o atendimento pode ser um só atendimentos em PP psicológico oferecido em uma UBS.
ou se desdobrar em outros quando necessário. Farinha e As situações clínicas aqui apresentadas buscam descrever
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Lorrany de O. Gonçalves; Marciana G. Farinha & Tommy A. Goto
e compreender de modo particular o fenômeno investiga- uma clínica-escola da cidade que oferecia a modalidade
do, o plantão psicológico. O intuito desse estudo é subsi- de serviço. A duração do estágio foi de março a dezem-
diar reflexões mais abrangentes no campo do atendimento bro de 2013 e foi norteado teoricamente pela abordagem
clínico em diferentes contextos com grande demanda e fenomenológica-existencial.
poucos recursos financeiros e de profissionais. Os usuários foram encaminhados pelos profissionais
da UBS quando identificavam uma demanda psicológica.
Após a escuta e atendimento do usuário, quando necessá-
3. O espaço da prática rio, era oferecido encaminhamento para outros serviços,
que serão explicitados na próxima sessão deste artigo.
A UBS, localizada em uma cidade do interior de Goiás,
oferece os seguintes profissionais: técnicos de enferma-
gem, enfermeiros, nutricionistas, odontólogos, médicos 4. Caracterizando as pessoas atendidas
(clínico geral, pediatra, nefrologista, endocrinologista e
cardiologista), assistente social e psicólogo, que trabalha- No período do estágio, foram atendidas 13 pessoas,
vam das 7 às 17 horas em horários predefinidos. O espaço com idades entre 10 e 80 anos. Com relação ao sexo, 12
oferecido para os atendimentos da Psicologia consiste em foram do sexo feminino e 1 do sexo masculino, a maio-
consultórios da unidade, que estivessem disponíveis no ria, 7 pessoas tinham Ensino Fundamental, 5 fizeram o
momento. Os pacientes foram atendidos pela estagiária ensino médio e 1 ainda cursava o ensino médio. Quanto
de Psicologia, no formato de PP realizados em diferen- à renda familiar, 6 pessoas possuíam renda entre 1 e três
tes horários pré-definidos pela disponibilidade de salas salários mínimos e 5 tinham renda entre 4 e 6 salários
e da aluna de psicologia. Os atendimentos não tinham mínimos. Sobre a queixa principal, 6 pessoas relataram
duração delimitada a priori e eram definidas entre usuá- ter depressão, 13 pessoas relataram problemas familiares,
rio que estava sendo atendido e a plantonista bem como 3 disseram estar passando pelo luto, 1 apresentou trans-
a necessidade de retorno ao plantão. Cada atendimento torno obsessivo compulsivo, 2 foram diagnosticadas com
era discutido nas supervisões semanais, realizados por depressão pós-parto. Em números de encontros 6 pessoas
uma psicóloga. Quando havia necessidade de atendimen- compareceram a mais de uma sessão. Como apresentado
to psicoterápico, os usuários eram encaminhados para no quadro abaixo:
Nº de encontro
Nº Sexo Idade Escolaridade Renda Familiar Queixa Principal
realizado
1 F 68 Ensino Fundamental Entre 1 e 3 salários Depressão, esquecimento, problemas familiares. 4
incompleto mínimos
2 F 73 Semi-analfabeta Entre 1 e 3 salários Depressão Grave, choro, problemas familiares 35
mínimos
3 F 35 Ensino fundamental Entre 4 e 6 salários Gravidez, ansiedade, problemas conjugais 1
completo. mínimos
4 F 65 Ensino médio Entre 1 e 3 salários Depressão, Luto, solidão. 1
completo mínimos
5 F 58 Ensino fundamental Entre 1 e 3 salários Depressão, luto, fraqueza, problemas familiares 1
completo mínimos
6 M 54 Ensino médio Entre 4 e 6 salários Problemas por ser ex-presidiário, problemas familiares 4
incompleto mínimos
7 F 17 Ensino fundamental Entre 1 e 3 salários Gravidez, problemas conjugais. 1
incompleto mínimos
Artigo - Relatos de Pesquisa
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 225-232, jul-dez, 2016 228
Plantão psicológico em Unidade Básica de Saúde: Atendimento em Abordagem Humanista-fenomenológica
Os dados dos atendimentos, problemáticas apresen- na qual o psicólogo, testemunha o entre, a condição do
tadas, dificuldades dos plantonistas foram relatados em cliente de ser em história. Pelo jogo interpretativo, é pos-
seus diários de bordos que serão trazidos aqui para sub- sível deixar ver um sentido na temporalização de uma
sidiar as discussões. Os nomes de todas as pessoas foram experiência, revelando filamentos desconexos.
trocados para resguardar os princípios éticos. Os relatos Outra característica dos atendimentos que pudemos
apresentados são ilustrativos dos atendimentos realiza- observar foi o predomínio do sexo feminino buscando pelo
dos pelas plantonistas. atendimento, o que corrobora com outros estudos (Fonse-
ca, Fialho, Matos & Figueira, 2013; Estupiña et al, 2012;
Pirkis et al, 2011) indicando talvez, entre outras coisas,
5. Resultados e discussão maior resistência masculina à intervenção ou busca por
ajuda psicológica ou ainda maior frequência de proble-
É importante destacar que os psicólogos que se vincu- mas emocionais, como a depressão, em mulheres, o que
lam à fenomenologia-existencial não restringem sua visão foi uma das nossas maiores queixas e reflete dados de
de ser humano, ou mesmo de personalidade ou pessoa, outros estudos (Borooah, 2010).
em grupos ou diagnósticos categóricos. Ao contrário, com- Segundo Dalgalarrondo (2008), do ponto de vista psi-
preendem o existir humano em sua totalidade existencial copatológico, as síndromes depressivas têm como elemen-
em um constante devir de seu ser. Ainda, esse existir hu- tos mais salientes o humor triste e o desânimo. Entretanto,
mano é caracterizado por ser-relacional, ou seja, existe elas caracterizam-se por uma multiplicidade de sintomas
mantendo uma intrínseca relação com o mundo (ser-no- afetivos, instintivos e neurovegetativos, ideativos e cog-
-mundo), com os outros existentes (ser-com-os-outros) e nitivos, relativos à auto valoração, à vontade e à psico-
com si mesmo (ser-próprio). Como destaca Goto (2003): motricidade. Também podem estar presentes, em formas
graves de depressão, sintomas psicóticos (delírios e/ou
A Psicologia Humanista-Existencial possui diferentes alucinações), marcante alteração psicomotora (geralmente
enfoques descritivos do psicológico, não por serem con- lentificação ou estupor) e fenômenos biológicos (neuro-
traditórios, mas por essa abordagem permitir uma aber- nais ou neuroendócrinos) associados. Este autor ressalta
tura na interpretação da vivência psicológica. O funda- ainda que as síndromes depressivas são atualmente reco-
mento básico desta abordagem é sustentado pela descri- nhecidas como um problema prioritário de saúde pública.
ção do vivido no contexto do ser, isto é, a descrição da Houve outras queixas como luto, ansiedade, gravidez,
vivência dentro de seus diversos modos-de-ser. Desta depressão pós-parto, e um caso da patologia de transtor-
forma, a psicologia humanista vê-se fortemente entre- no obsessivo compulsivo. Sendo a maioria dessas quei-
laçada com a ontologia, pois seria impossível falar do xas relacionadas aos sentimentos depressivos ou ansio-
homem sem localizar sua existência no mundo. (p. 157) sos. Como aponta Dalgalarrondo (2008), essas sensações
e sentimentos podem estar em alguns casos associados,
Assim, as reflexões aqui propostas foram analisadas podendo se apresentar concomitantemente ou isolada-
a partir dessa psicologia humanista-existencial, funda- mente. Percebemos então, que as queixas dos pacientes
mentando o fazer do PP. Nisso, como destacam Rebouças se unem às dificuldades que enfrentam no dia a dia e as
e Dutra (2010), compreendemos esses indivíduos a partir sintomatologias são o caminho que encontram para en-
de suas experiências e dos significados que eles atribuem frentá-las. Observamos que apontam como causas de seus
ao mundo, levando em consideração o contexto no qual problemas a desestrutura familiar, como uso de drogas,
estão inseridos, considerando-os como um ser-no-mundo envolvimentos com crimes e agressões.
e, portanto, constituídos por este, ao mesmo tempo em Os atendimentos deste trabalho se nortearam, como
que o constituem. proposto por Palmieri & Cury (2007), com uma proposta
Das queixas apresentadas foram, principalmente, de atenção psicológica acompanhando os pressupostos
questões referentes à desestruturação familiar. Nesta te- teóricos e práticos embasados nos pilares da Psicologia
Artigo - Relatos de Pesquisa
mática estavam: separação dos pais, problemas conjugais, fenomenológico-existencial, por meio da noção de res-
relação pais e filhos, e irmãos. E os atendimentos se norte- peito ao outro, autenticidade, liberdade de pensamento,
aram então, pela queixa principal de depressão, relatada possibilidade de escolha e possibilidade de encontro, le-
por 6 participantes, que disseram possuir o diagnóstico e vando-se em consideração a capacidade unicamente hu-
estarem medicadas e apresentando choro e tristeza, apesar mana de intencionalmente pensar o mundo e as relações
do uso da medicação prescrita. Mas, como aponta Braga, por meio de uma consciência reflexiva. Nesse sentido
Mosqueira e Morato (2012), clinicamente, não se escutam Morato (2006) traz uma reflexão:
queixas puramente, pois se relacionam à interpretação de
sua realidade, onde se dá as relações da vida em situações (...) Existia um parâmetro do que seria um atendimen-
com outros nos cenários do cotidiano. O Plantão Psicoló- to clínico em Psicologia, supondo a existência de uma
gico, como metodologia interventiva da ação psicológica, técnica que fornecesse definições, explicações e con-
ocorre como um acontecimento; trata-se de uma paragem ceitos que amparassem todas suas ações durante os
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Lorrany de O. Gonçalves; Marciana G. Farinha & Tommy A. Goto
atendimentos. Para o encontro ser caracterizado como próprio mundo experiencial. Isto ocorre através da em-
“atendimento”, o plantonista deveria ter insights: ca- patia. É interessante assinalar que, entre as repetidas de-
beria a ele a atribuição de significação a falta de sen- finições desse conceito de empatia – como atitude básica
tido expressa pela pessoa que buscava atendimento. para o terapeuta ou plantonista – e é genial em sua sim-
Além disso, ao final do atendimento era necessário plicidade porque nenhum processo psicoterapêutico que
que a pessoa apresentasse alguma mudança. Tal situ- implique em transformações profundas pode ser levado
ação reflete uma cristalização do modelo clínico tra- adiante com êxito se não ocorre a empatia.
dicional e, nesse sentido, o Plantão era difícil como Os plantões psicológicos corroboraram com o descrito
primeiras experiências para estagiários. Não havia por Chaves e Henriques (2008), onde a prática de PP foi
como desconstruir o que ainda não se conhecia, mas crescendo gradativamente. Acreditando que no início os
que já se havia ouvido falar. (p. 6) envolvidos estavam de certa forma desconfortáveis com
tal situação, com o “novo” surgindo, afinal não deixava
A intervenção psicológica feita com os pacientes foi de ser um desafio implantar o plantão psicológico onde
realizada com a postura do terapeuta e da psicoterapia, há anos oferecia somente o tratamento clínico tradicio-
de explorar o cotidiano do cliente. Essa postura permite nal (psicoterapias). Mas, aos poucos, tudo foi se entrela-
que ao cliente que segundo Feijoo (2000), a partir dessa çando e os plantões sendo cada vez mais procurados pe-
exploração, busca que ele identifique fatos que desenca- la população. Visto que, em certo momento, foi mais di-
dearam um determinado modo de sentir as coisas ou de vulgado, o que aproximou ainda mais as pessoas do que
agir, como os fatos que o afetam. E, então, o encontro te- estava ocorrendo. Nossa experiência revelou que muitos
rapêutico pode se tornar reveladora das situações confliti- profissionais da UBS não tinham as informações da rea-
vas, definida pela autora como, o trazer à tona a inauten- lização dos plantões psicológicos, mas quando souberam,
ticidade. O cliente diz uma coisa e sua aparência parece passaram a encaminhar os pacientes que estavam tratan-
negá-la, ou tem dois pesos e duas medidas para a mesma do para este trabalho. Pudemos perceber que uma grande
situação, isto é, pensamentos, sentimentos e ação não ca- parcela dos atendimentos realizados no PP teve resolu-
minham juntos. O terapeuta revela a situação conflitiva tividade, não necessitando de psicoterapia, demonstran-
que se mostra. Para Ferreira: do que o atendimento recebido no PP foi suficiente e/ou
resolutivo para aquela demanda.
Esse tipo de aproximação terapêutica oferece uma ati- Outro aspecto observado em alguns relatos é que há
tude acolhedora e não julgadora em relação às experi- motivos específicos para a procura da UBS, sendo estes
ências do cliente, em que o sentido se desvela sem que centrados em procedimentos fragmentados e não por
seja possível a afirmação de uma resposta definitiva. uma assistência terapêutica pautada na responsabiliza-
E esse sentido, uma vez desvelado, assume a cada vez ção, vinculação e promoção de saúde. Os pacientes dizem
novos significados que vão sendo experimentados a que já estão medicados ou que pediram para os médicos
cada encontro. (2009, p. 148) e que esperam melhorar suas tristezas com os remédios.
Percebemos então que os ideais que regem o serviço dos
Corroborando com Rebouças e Dutra (2010), que di- profissionais nesta instituição condizem com o contexto
zem que o plantão, ao oferecer esse espaço, promove o dos direitos humanos, oferecendo atividades que os es-
restabelecimento do ethos que foi perdido, devolvendo timulem e, que participando delas, eles possam ampliar
ao cliente seu lugar no mundo. Não é necessariamen- ou cuidar de sua qualidade de vida.
te preciso uma psicoterapia para se sentir bem. Muitas Percebeu-se dificuldades enfrentadas pelos profissio-
pessoas precisam apenas dessa atitude, desse novo olhar, nais da UBS, como, por exemplo, as faltas dos pacientes
para que elas possam ser quem realmente são, para que para as consultas e serviços oferecidos pelos profissionais
possam se ver como seres únicos, para que tenham aqui- da instituição. Pelo olhar dos profissionais, os pacientes
lo que o mundo atual não lhes permite, mesmo que seja só buscam o apoio deles no momento de emergências ou
Artigo - Relatos de Pesquisa
por um breve momento. O PP cria condições para que o desconforto, como dores. Acreditam que eles não possuem
indivíduo possa por si só encontrar seus caminhos, mas a consciência de que se deve seguir o tratamento ou pre-
esta trilha muitas vezes é tortuosa e em alguns momen- venir as doenças. Como apontam Faquinello, Carreira e
tos o homem precisará desse espaço para se fortalecer e Marcon (2010), as UBS deveriam ser a primeira referência
posteriormente continuar. Assim, o PP deve estar à dis- de apoio formal procurada pela população para o acom-
posição sempre que necessário. panhamento e para a prevenção em saúde e também no
Como aponta Moreira (2009) e acreditamos ser fun- que se refere à busca de orientações e informações que
damental no PP, a escuta trapêutica se produz na inter- podem ser fornecidas pelos profissionais que ali atuam.
seção da subjetividade do terapeuta e do cliente. O psi- No entanto, o que se percebe é que a procura por essas
coterapeuta e o plantonista passeiam de mãos dadas com unidades ocorre somente quando eles estão com algum
o cliente em seu lebenswelt (mundo-da-vida), buscando sintoma patológico ou problema físico. Observa-se, assim,
sempre compreendê-lo, sem nunca separar-se de seu que os sujeitos relatam motivos específicos para a procura
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 225-232, jul-dez, 2016 230
Plantão psicológico em Unidade Básica de Saúde: Atendimento em Abordagem Humanista-fenomenológica
da UBS, sendo estes, geralmente, centrados em procedi- como com a equipe de profissionais que ali trabalham.
mentos fragmentados e não por uma assistência terapêu- Há que se pensar também que focar a promoção da saú-
tica pautada na responsabilização, vinculação e cuidado de deveria ser a meta de todos os profissionais da saúde
ao paciente. Nas falas dos pacientes, aparece outro aspecto além dos cuidados quando já há um problema instalado.
para não adesão ao tratamento, a dificuldade de locomo- Este é um campo de trabalho da psicologia que deve
ção, visto que muitos moram distantes da UBS. E também ser pensado de forma a adaptar-se a este contexto de saú-
relataram falta de tempo disponível devido ao trabalho de. Deve-se então fomentar estudos, para que olhares di-
e outras atividades que consideraram mais importantes. ferentes e variados possam chegar a um consenso e a um
Nesse sentido, a oferta do PP, como alternativa de in- melhor aproveitamento para os pacientes deste serviço.
tervenção, ao contrário da tradicional oferecida por outros Percebendo o público atendido e a demanda dessas insti-
estágios, contribui que muitas pessoas aceitassem serem tuições, o PP pode ser uma alternativa para acolher pro-
atendidas já que elas já estavam em atendimento com ou- movendo dinamismo e resolutividade ao serviço de saúde,
tros profissionais da UBS, facilitando que não houvesse promovendo saúde e prevenção de agravamento de adoeci-
mais deslocamentos até a unidade. Outro aspecto perce- mentos, contribuindo assim como a UBS e a comunidade.
bido corrobora com Scorsolini-Comin (2014), que diz que: O PP foi uma alternativa que buscou ofertar um es-
paço de acolhimento, escuta ativa e respeito. Onde mes-
(...) A implantação do presente serviço não encontrou mo os atendimentos que aconteceram apenas uma vez
dificuldades significativas, mas pode-se destacar a ne- proporcionaram a escuta e auxiliaram na reconstrução
cessidade de esclarecer à população atendida em que de recursos que possibilitassem o enfrentamento das ad-
consiste uma intervenção psicológica e os elementos versidades. Foram trabalhadas as questões emergentes,
éticos desse cuidado. Aspectos como o sigilo das in- sendo demonstrada a preocupação com a história de vi-
formações e a escuta profissional tiveram que ser des- da de cada paciente que procurou o serviço, permitindo
tacados e priorizados nos atendimentos, haja vista a um olhar voltado para o indivíduo, seus sentimentos e
pouca familiaridade das pessoas atendidas com a atu- comportamentos relacionados à sua realidade.
ação do psicólogo. Outras especificidades referem-se Por isso, concluímos que análises desse tipo e o tra-
ao manejo do tempo de cada atendimento e da orga- balho do psicólogo em instituições de saúde pública têm
nização do plantão de modo conjugado com as con- muito a contribuir com estas instituições e para a popu-
sultas mediúnicas, de modo que uma mesma pessoa lação nelas atendidas. Concluímos que a visão do psicó-
pudesse, em um dia, ser atendida tanto pelo médium logo humanista tem o poder de enriquecê-los com a visão
como pelo psicólogo. (p. 898) do conjunto para cuidar das pessoas de forma integral.
novos conflitos e tensões. O importante é estar ciente de licial. Temas em Psicologia, 20(2), 555-570.
que por mais que se tentem definir padrões, estes deverão
Cautella Junior, W. (2004). Plantão Psicológico em hospital psi-
ser sempre revisados e avaliados e, cada vez mais, serão
quiátrico: novas Considerações e desenvolvimento. In: Mi-
difíceis de serem enquadrados como privativos de uma guel Mahfoud (Org.) Plantão Psicológico: novos horizontes
ou outra área do saber. (p.97 - p.114). São Paulo: Editora CI.
Percebemos que o atendimento em Psicologia é algo no- Conselho Federal de Psicologia (1994). Psicólogo brasileiro: prá-
vo para o público dessa UBS e é um campo de atuação que ticas emergentes e desafios para a formação. São Paulo: Ca-
muito tem a contribuir tanto com a população atendida sa do Psicólogo.
231 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 225-232, jul-dez, 2016
Lorrany de O. Gonçalves; Marciana G. Farinha & Tommy A. Goto
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Artigo - Relatos de Pesquisa
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 225-232, jul-dez, 2016 232
Textos clássicos ................
Prefácio ao “Essais Hérétiques: Sur la Philosofie de L’histoire”, de Jan Patočka
TEXTOS CLÁSSICOS
O público de língua francesa só conhece Jan Patočka uma temática comum: de que a política é sempre de or-
de nome: A fama o designa como aquele filósofo checo, dem diversa que a da gestão econômica e que a da proje-
discípulo de Husserl e de Heidegger, por muito tempo ção do homem no trabalho; que a política não tem outra
proibido de ensinar e de publicar, que se projetou na cena finalidade que a vida para a liberdade, e não a vida para a
pública quando os signatários da carta 77 o designaram sobrevivência ou mesmo para o bem estar; que o homem
como seu porta-voz, e que morreu sob as mãos da polí- político está na origem do homem histórico, na medida
cia ao fim de uma série de interrogatórios violentos. Mas em que, em última análise, a história testemunha a reali-
quem conhece o filósofo? Alguns leitores talvez saibam zação da liberdade no espaço público aberto à liberdade
que ele é um dos maiores conhecedores de Comenius, e para a liberdade; enfim que a filosofia é o pensamento
um dos fundadores da filosofia da educação na época livre aplicado às condições possibilitadas pela política e
do Renascimento. Outros, sem dúvida, leram a sua obra pela história, como sabemos da “República” de Platão e
“O mundo natural” da coleção Phaenomenologica publica- da “Ética” e da “Política” de Aristóteles.
da por Nijhoff e serão capazes de ler os presentes Ensaios Igualmente, se durante muito tempo procurou encon-
como uma continuação inesperada dessa obra acadêmi- trar esse fio condutor da unidade subterrânea que une a
ca. Mas quem sabe, com a exceção de seus numerosos e política, a história e a filosofia, o leitor não se sentirá per-
fervorosos discípulos de Praga, não importando de qual dido. Ficará até mesmo contente ao descobrir os desdobra-
disciplina ou horizonte intelectual não universitário pro- mentos bastante originais em relação à obra de Hannah
venha, que Jan Patočka foi um acadêmico da estatura de Arendt no que se refere ao destino da Europa após à polis
Merleau-Ponty? A leitura dos Ensaios Heréticos o persu- grega e ao imperium romano, sobretudo no que concerne
adirá sem nenhuma dúvida. Se aqui evoco a memória de ao suicídio da Europa na época das duas grandes guer-
Merleau-Ponty é porque estes Ensaios parecem ocupar, a ras mundiais. Mas quando abordar os textos estranhos,
partir da linhagem de Husserl e de Heidegger, o mesmo os olhares assustadores, relativos ao reino da guerra, das
lugar que O visível e o invisível, a saber o prenúncio de trevas e do demoníaco, bem no coração das empreitadas
uma continuidade ao mesmo tempo fiel e divergente atri- mais razoáveis a favor da paz, identificada nessa ocasião
buída à duas versões conhecidas da fenomenologia. Ou com a potência do dia, esse leitor se sentirá transportado
seja, esses Ensaios têm, como a obra póstuma de Merle- para uma esfera estranha ao discurso muito mais aris-
au-Ponty, a beleza densa de certas figuras de Rembran- totélico de Hannah Arendt a favor da livre democracia;
dt, emergindo das trevas vibrantes do fundo do quadro. ele se descobrirá repentinamente situado em outro hori-
O leitor não pode se furtar à evidência da grandeza, mes- zonte do pensamento, no curto circuito operado por Jan
mo que tenha sua leitura retardada pelo aspecto impe- Patočka entre sua leitura da atualidade política em termos
netrável e pela característica não linear da exposição.1 da Noite e a atualização do dictum de Heráclito de Éfeso:
O acesso não é difícil às páginas, muito originais para “Polemos é o pai de todas as coisas...”. O leitor aborda-
não dizer intrigantes, que retraçam o nascimento quase rá agora uma segunda leitura mais radical do que aquela
simultâneo na Europa Ocidental da política, da filosofia e que se limita a circular tranquilamente entre a política, a
da história. O destino solidário dessas três dimensões da história e a filosofia para comprovar sua correlação. Essa
humanidade europeia se constitui no fio condutor mais segunda leitura o colocará no nível do tema fundador do
Textos Clássicos
aparente desse texto denso. Nesse nível, ele nos remete precedente: a saber, a emergência da história a partir da
ao tom de Hannah Arendt em “A condição humana” ou pré-história. Trata-se ainda do destino da trilogia política,
em “As origens do totalitarismo”. E, mais do que o tom, a história, filosofia; mas esse nascimento é agora visto pela
perspectiva de um tema unificador singularmente de aces-
so muito mais difícil, o da problematicidade do homem
Publicado originalmente em 1975 (Editions Petlice, Praga), tradução
1
francesa de 1981 (Éditions Verdier). histórico, oposta à certeza ingênua e absoluta do homem
235 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 235-238, jul-dez, 2016
Paul Ricoeur
pré-histórico. Remontando assim do tema da tridimensio- constituição ontológica que precede a nossa tomada de
nalidade do homem europeu ao tema, muito mais difícil consciência. O próprio sentido da fenomenologia é as-
de tratar, o da problematicidade constitutiva do homem sim inteiramente modificado: o fenômeno ao qual nos
histórico, se remontará, ao mesmo tempo, à origem hus- abre o ser-no-mundo não pode ser despojado de seu ca-
serliana e heideggeriana de seus escritos e atentará para ráter misterioso: se mostra apenas o que se manifesta no
o lugar da heresia, que é o ponto de ruptura não somente ocultamento em que permanece o ser. Do mesmo modo
com a vulgata marxista – o que é muito evidente – mas de se perfila uma historicidade que deve ser concebida co-
modo muito mais decisivo e muito mais dramático com mo um modo do ser histórico anterior a toda consciência
as visões de Husserl e de Heidegger sobre a historicidade. histórica e também ao conhecimento histórico, a historio-
Com efeito, a questão da condição pré-histórica do grafia. Com efeito, a abertura para o mundo depende das
homem está estreitamente ligada à tentativa de recupe- atividades humanas que as compilam, as examinam e as
ração do mundo natural pela fenomenologia nas suas transmitem ao arbítrio das tradições. Assim se desvanece
duas versões clássicas. A heresia consiste precisamente a esperança de encontrar, sob as estratificações do conhe-
na nova definição do mundo natural como o mundo pré- cimento objetivo e das visões de mundo, uma invarian-
-histórico, em virtude da caracterização da historicidade te qualquer: é preciso reconhecer, sobretudo, que todos
pela problematicidade. os mundos históricos onde se recolhem as eclosões e os
Retornemos à questão pela sua outra extremidade: a eclipses do ser dos seres são “naturais”.
questão do mundo natural. É por ela precisamente que É nesse ponto que o pensamento de Jan Patočka ganha
os Ensaios Heréticos começam, sem que o leitor possa sua autonomia em relação ao próprio Heidegger. O oculta-
facilmente compreender as razões que o constrangem a mento do ser, no último Heidegger, designa as alternâncias
seguir o autor nessa discussão pouco conhecida nos cír- de ocultação e de desvelamento que fazem que o mundo
culos fenomenológicos. dos seres seja percebido tanto como Sujeito quanto co-
O mundo natural – que é lembrado desde a primeira mo Espírito. Para Jan Patočka ele designa a perda de toda
página – não é o que a ciência positiva denomina de na- a segurança colocando o homem e sua liberdade inteira-
tureza, ou seja, o conjunto dos objetos acessíveis às ci- mente a descoberto. É o que ele denomina da condição
ências empíricas, nem o que o materialismo positivista problemática característica da idade histórica. Essa nova
remete para uma exterioridade absoluta que, de uma ma- interpretação de Heidegger entra em choque com aquela
neira ou outra, se refletirá sobre a interioridade do pen- de Husserl: o mundo natural, não é o mundo pré-cientí-
samento. Nessa primeira rápida e vibrante discussão, Jan fico, é o mundo pré-histórico, ou seja, não-problemático.
Patočka segue seu mestre Husserl, mas por pouco tempo. Não que o mundo pré-histórico ignore toda a ativi-
O mundo natural, para Husserl, é o mundo pré-científico dade narrativa. O mundo não-problemático não é des-
e não o mundo pré-histórico. É o mundo da vida, que foi provido de relatos, anais ou crônicas; mas a sua função
perdido pela objetivação e que necessita ser recuperado é precisamente a de manter o estilo de vida do homem
ou, ao menos, para o qual deveríamos poder nos dirigir a pré-histórico: “os anais são uma interpretação do passa-
partir de um método alternativo de questionamento, tal do que têm importância para o êxito do comportamento
qual foi praticado pelo fundador da fenomenologia em futuro do clã, cuidando da sensação de bem estar”. O ci-
sua última obra, “A crise das ciências europeias e a feno- clo vital de recepção e de transmissão não é rompido, e a
menologia transcendental”. O mundo natural permanece historiografia pode se mover indefinidamente no interior
assim uma questão da razão teórica. Isso porque Husserl tranquilo do círculo do eterno retorno. O nascimento da
não pode “compreender o homem a partir dos fenômenos história não é o da historiografia. O mundo pré-histórico
concretos do trabalho, da produção, da ação e da criação”. não é desprovido da historiografia.
Mais gravemente ainda, Husserl, mesmo na “Crise”, foi O mundo pré-histórico também não é desprovido da
incapaz de superar o idealismo das “Meditações Cartesia- transcendência, sem deuses, sem sagrado, sem cultos e
nas” e a partir dai fazer da consciência, mesmo multipli- sem ritos. Muito ao contrário, sua visão de base está na
cada indefinidamente pelo jogo da intersubjetividade, o separação de uma região onde os deuses reservaram pa-
lar da vida pré-científica. Consequentemente, a filosofia ra si a imortalidade e deixaram para o homem a morte.
que opera o retorno aos fenômenos constitutivos do mun- A sabedoria, segundo essa visão de mundo, consiste na
do da vida, reduz a si mesma a um olhar, de um sujeito modéstia dos desejos, a aceitação da condição de mortal
desinteressado. e a amizade com os deuses que tornam suportável a rup-
Essa crítica ao idealismo husserliano, Jan Patočka tura entre sua imortalidade e nossa condição de mortais.
Textos Clássicos
compartilha muito evidentemente com Heidegger. A es- É nesse sentido que o homem pré-histórico se abriga.
se último ele atribui a convicção de que este homem em O conhecimento da imortalidade o protege do desespero
sua totalidade, com sua capacidade de conhecimento, de em que sua condição de mortal deveria lançá-lo.
ação e de sentimentos está aberto para o mundo. Funda- Essa interpretação do mundo pré-histórico como su-
mentalmente, esta abertura do ser para o mundo não é jeição regida pela amizade com os deuses enfatiza, ao pre-
um fenômeno de ordem psicológica ou mental, mas uma ço de uma completa reorientação, a análise de Hannah
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Prefácio ao “Essais Hérétiques: Sur la Philosofie de L’histoire”, de Jan Patočka
Arendt sobre a ausência de horizonte histórico do traba- a cidade e o vislumbre originário que torna possível a fi-
lhador. Esse horizonte é limitado pela reprodução da vida losofia”. Podemos ver Heráclito, tal como o concebe Jan
e a consumpção-consumação dos produtos do trabalho. Patočka, não como o pensador da existência selvagem ou
Compreendemos agora que não somente a sujeição de da ação terrorista, mas aquele que pensa o nascimento de
uma vida não-problemática não é rompida pelo trabalho todo vínculo a partir do abalo mais extremo. Este é o pen-
enquanto tal, mas que o ciclo do trabalho e o dos mitos samento que marca a cesura entre a vida pré-histórica e
estão profundamente interligados. O abrigo do trabalho a história. Além desse ponto crítico, é preciso compreen-
é o mesmo que das aparições furtivas do divino. Não se der a vida, não do ponto de vista do dia, ou seja, da vida
lê isso em Hannah Arendt. Isso porque após servir-se da aceita, mas da noite, ou seja, de Polemos.
trilogia – labor, work e action –, Jan Patočka a substitui O perigo não é de cair no idealismo, mas de ceder ao
por sua própria concepção dos três movimentos da vida, niilismo. Jan Patočka sabe bem disso. Em suas páginas
dotados cada um de uma temporalidade própria: o pri- consagradas à noção do sentido da história, ele admite,
meiro é a aceitação, onde todo o excesso é compensado como Heidegger, que a questão do “sentido” não é a do
por uma reparação, como no famoso dictum de Anaximan- “significado”, no sentido lógico e linguístico da palavra,
dro, o pensador pré-socrático de Mileto; o segundo é o da mas uma questão colocada somente pelos seres e aos seres
defesa, que pertence à economia do trabalho, na medida capazes de colocar em questão – em jogo – seu ser. Depois
em que o trabalho é, ao mesmo tempo, uma carga que o ele avança até dizer que o que é abalado, para o homem
homem toma para si por toda a vida e um alívio desse problemático, é a totalidade do sentido acumulado pelo
fardo; Este desafogo pode se limitar ao rapto de Eros, não homem pré-histórico, incluindo a era do cristianismo: “a
chega a romper os limites da existência pré-histórica onde procura expressamente questionadora, que é a filosofia,
a imortalidade dos deuses consola a condição de mortal é mais arriscada do que o mergulho divinatório do mito”.
dos homens. O terceiro movimento fundamental da vida A perda das certezas do estado pré-histórico chega hoje
é o da verdade, que, também no interior do mundo pré- ao abalo de todo o sentido aceito.
-histórico, atesta a diferença do sobrenatural e do natural, Assombrado pelo niilismo, Jan Patočka entrevê uma
e assim distingue no divino o poder da abertura. Mas é saída na própria noção de problematicidade, que lhe pa-
somente sob o regime da problematicidade que esse po- rece descartar mais o “nenhum sentido” dogmático dos
der de abertura, já em curso no mundo pré-histórico, é discípulos cínicos de Nietzsche do que o “sentido” dog-
reconhecido como tal. Ele perde agora sua função tutelar mático dos apologetas de todas as denominações. A perda
e deixa o homem desprotegido. A vida política, sob o re- do “sentido” não é a queda no “nenhum sentido”, mas o
gime da problematicidade, torna-se o que Hannah Arendt acesso à qualidade do sentido implicada na própria pro-
havia enunciado: uma vida voltada para o futuro, um im- cura. Jan Patočka retorna assim ao tema pré-socrático do
pulso para. Mas Jan Patočka acrescenta, com um acento “cuidado da alma” e da “vida examinada”. O sentido in-
trágico: essa “vida se apoia daqui em diante sobre a base cluso no estado da problematicidade é, diz ele, um “sen-
sólida da continuidade generativa, ela não se volta mais tido justo”, nem muito modesto nem dogmático, que da-
para a terra obscura. A obscuridade, ou seja, a finitude, o rá a coragem de viver na atmosfera da problematicidade.
perigo a que ela está constantemente exposta, está sempre O acesso a esse sentido requer menos uma metanoia, uma
à sua frente, afrontando-a. É unicamente nesse “se expli- conversão em um sentido mais filosófico que religioso.
car” com o perigo afrontado sem medo, que a vida livre Chegando aqui poderemos nos perguntar como é possí-
pode se desenvolver como tal; sua liberdade está funda- vel retornar, da contemplação de tais abismos de um sá-
mentalmente na própria liberdade dos audaciosos”. Di- bio solitário, à responsabilidade histórica e política, no
versamente do guerreiro que está protegido do perigo que sentido mais comum e mais corriqueiro do termo: O vín-
afronta pelas grandiosidades estáveis às quais dedica seu culo que Jan Patočka estabelece, na segunda metade do
risco, para o homem problemático “o propósito reside na seu ensaio, entre a filosofia da problematicidade e seus
vida livre como tal, se nele próprio ou em outra pessoa, julgamentos propriamente políticos relativos ao destino
está lá uma vida que ninguém coloca em abrigo”. O peri- da Europa, se detém inteiramente sobre a capacidade de
go, nesse ponto, é que, após recusar-se a idealizar a cons- transferir do indivíduo à comunidade europeia a medi-
ciência, o filósofo idealiza a cidade grega. É aqui que Jan tação sobre sentido, “nenhum sentido” e procura. A ci-
Patočka se afasta de todos os seus mentores e penetra na tação seguinte merece ser destacada apesar de ser longa:
dimensão propriamente trágica de sua meditação sobre “A possibilidade da metanoese nas dimensões históricas
a problematicidade com acentos quase nietzschianos. É, depende fundamentalmente da resposta que receberá da
Textos Clássicos
com efeito, sob a égide de Heráclito de Éfeso, já evocado questão seguinte: a parcela da humanidade que é capaz
de passagem, que o autor discerne, na raiz desta “dotação de compreender como caminha e o que está acontecendo
de sentido” que é o próprio espírito ocidental, o papel da na história e que se vê, ao mesmo tempo, oprimida, devi-
discórdia e da luta. Sim, verdadeiramente, Polemos é o do à posição atual da humanidade na vanguarda técnico
pai de todas as coisas, inclusive e sobretudo daquilo que científica, é capaz de assumir, de vez em quando, a res-
é “comum”. “Polemos é, ao mesmo tempo, o que engendra ponsabilidade do “não sentido”, é capaz igualmente, da
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Paul Ricoeur
disciplina e da renúncia de si mesma que requer a atitu- efetivamente afetados e transformados? Porque não de-
de de não-enraizamento, no interior da qual só pode se senvolveram seu potencial de salvação?”.
realizar um sentido absoluto e, contudo, acessível a hu- Para essa questão não há resposta senão a reiteração
manidade como problemática?”. do ato de fé. Nada posso além de reproduzir, com temor
Toda a continuação dos Ensaios Heréticos, consagra- e trémulo, a fórmula desse credo pronunciada além do
da à Europa e à herança européia, não passa de um longo dogmatismo do “sentido” e do dogmatismo do “nenhum
exercício aplicado ao “desenvolvimento das possibilida- sentido”: “A solidariedade dos abalados se edifica com a
des embrionariamente fundadas sobre esse abalo”. É isso perseguição e a incerteza: lá está seu front silencioso, sem
que atormenta Jan Patočka, o destino da Europa ocidental protesto e sem estrépito, mesmo lá onde a Força reinante
para além do niilismo. É bom advertir que as perspectivas procura tornar-se dominante por todos os meios”. Esse
não são promissoras. O diagnóstico é mais limitado que pensamento prolonga, para além da esfera individual, o
a terapeutica. Essas são, como foi dito acima, as páginas tema socrático do “cuidado da alma” e da “vida examina-
consagradas às duas guerras mundiais e à Guerra erigida da”. Mas esse socratismo político terá a sua chance? Essa é
como potência da Noite, que são as mais fascinantes: “no a questão mais radical que a Europa ocidental pode rece-
século vinte, a guerra, essa revolução da cotidianeidade ber hoje do coração do que foi uma vez a Europa central.
contemporânea já concluída... a guerra, como ‘tudo é per-
mitido’ universal, como a liberdade selvagem, invadindo
os Estados, tornando-se ‘total’. A cotidianeidade e a or-
gia são organizadas pela mesma mão. O autor dos planos
quinquenais é o diretor do processo do grande espetáculo NOTA BIOGRÁFICA
que faz parte da nova caça aos feiticeiros. A guerra repre-
senta, ao mesmo tempo, a quande empreitada da civiliza- Jan Patocka (1907, Turnov- 1977, Praga), um dos principais nomes da
filosofia checa do século XX. Influenciado pelo pensamento de Edmund
ção industrial, o produto e o instrumento da mobilização
Husserl, desenvolve uma fenomenologia asubjetiva e uma fenomenolo-
total (como Ernst Jünger já havia muito bem notado), e gia do Lebenswelt. Trabalha ainda com a filosofia platônica e aristoté-
a liberação de potencialidades orgiásticas que nenhuma lica. Tendo estudado em Paris, Berlim e Freiburg, travou conhecimento
outra parte pode se permitir de trazer a destruição até o direto com os pensamentos de Husserl, Heidegger e Fink. Foi um dos
fundadores do Círculo de Praga. Obras principais (em francês): Essais
limite extremo da embriaguez”.
hérétiques sur la philosophie de l’histoire (Lagrasse, Verdier, 1981); Pla-
Jan Patočka quer eliminar qualquer ilusão sobre a pró- ton et l’Europe (Lagrasse, Verdier, 1983); La Crise du sens, tome 1, Comte,
pria paz: na ótica do dia, ela é uma transição, um hiato Masaryk, Husserl (Bruxelles, Ousia, 1985); La Crise du sens, tome 2,
agradável; mas o século vinte foi um episódio disfarçado Comte, Masaryk et l’action (Bruxelles, Ousia, 1986); Le Monde naturel
et le mouvement de l’existence humaine (Dordrecht, Kluwer Academic
da própria guerra: “a guerra é a prova ad oculos de que o
Publishers, 1988); Qu’est-ce que la phénoménologie? (Grenoble, J. Millon,
mundo está maduro agora para o seu fim”. 1988); Papiers phénoménologiques (Grenoble, J. Millon, 1995); Éternité
O que é isso, nesse avanço da Noite, que correspon- et historicité (Lagrasse, Verdier, 2011).
derá no plano coletivo à lucidez do filósofo solitário? Jan
Tradução: Dr. Werther Holzer (Escola de Arquitetura e Urbanismo,
Patočka tem apenas uma formula que merece resposta:
Universidade Federal Fluminense). E-mail: [email protected]
“a solidariedade dos ‘abalados’, daqueles que estão em
choque, apesar de seus antagonismos e da diferença que
os separam”. A experiência privilegiada, sob esse olhar,
é a do front, tal qual Ernst Jünger e Teilhard de Chardin
experimentaram e comentaram: “O homem está sujeito
à vida pela morte e pelo medo; ele é manobrável ao ex-
tremo. Ora, justamente por essa razão parece haver ou-
tra perspectiva, uma possibilidade de mudança, partindo
da guerra engendrada para a paz, o terreno de uma paz
real. Ela pressupõe, em primeiro lugar, a experiência do
front descrita por Teilhard, experiência para a qual Jün-
ger, por seu lado, cunhou uma expressão menos mística
e muito mais categórica: a positividade do front, do front
não como servidão da vida, mas como libertação infinita
e alforria dessa servidão”.
Textos Clássicos
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Curriculum Vitae de um Filósofo Checo (Posfácio ao “Essais Hérétiques: Sur la Philosofie de L’histoire”, de Jan Patočka)
TEXTOS CLÁSSICOS
A vida espiritual de toda nação é de fato uma luta con- vez foi obrigado a se retirar. Ainda que as atividades pro-
tra o debacle moral, declarou com coragem Jan Patocka fessorais do mestre inspirado estivessem reduzidas a um
em mensagem publicada no ano de trevas de 1939, e “as seminário privado sobre fenomenologia, praticamente
fontes insubstituíveis da riqueza espiritual são as grandes clandestino, ele conseguiu, apesar de todos os obstácu-
personalidades. Mas elas não se fabricam por encomenda: los, prosseguir com suas múltiplas pesquisas e a redigir
elas são um dom da graça. Os recursos que temos a nos- seus trabalhos em um minúsculo apartamento subterrâ-
sa disposição para o combate espiritual são intelectuais neo. Suas limitadas possibilidades de publicação foram
e morais. Devemos nos esforçar para alcançar um grande em seguida reduzidas à zero: publicou em 1960 uma tra-
rigor e uma flexibilidade ainda maior no pensamento e dução da Fenomenologia do espírito de Hegel e, em 1967,
adquirir uma enorme disciplina interior”.1 uma tradução de sua Estética, mas em seguida suas tra-
Três filósofos checos alcançaram renome mundial, duções só puderam aparecer sob diferentes pseudônimos.
uma autoridade moral e uma vida justa excepcional: Jan O único de seus escritos publicado depois da guerra foi
Amos Komensky (1592-1670), Tomas Guarrige Masaryk sua notável monografia, Aristóteles, seus precursores e seus
(1850-1937), Jan Patocka (1907-1977). sucessores, pela Academia de Ciências Checoslovaca, em
Patocka foi um dos últimos estudantes de Edmund 1964. O tema principal desse livro é a continuidade do
Husserl, que considerava o jovem checo como um de movimento, ao mesmo tempo físico e espiritual, como
seus discípulos mais penetrantes. Ele se sentiu pessoal- ideia dominante da tradição que conduz de Aristóteles à
mente atingido quando os nazistas, que estavam no poder Hegel. Como o próprio Patocka afirma esse livro não é a
na Alemanha, proibiram seu mestre de exercer qualquer história de soluções definitivas, mas de questões abertas
atividade pública, e teve um papel ativo na organização que levam a novos problemas e visam incitar os filósofos
das conferências de Husserl em Praga, mas não teve êxi- a novas reflexões. O aprofundamento nessa questão difí-
to para que seu professor se fixasse na Checoslováquia e, cil que é o movimento interno é revelador do desenvol-
por conseguinte, sua obra. vimento do pensamento de Patocka, de seu esforço per-
Em seu discurso de 1938 em memória de Husserl, Pa- severante e de sua pesquisa.
tocka elogiou o devotamento dedicado pelo filósofo fa- Com diferentes detalhes históricos a sorte foi cruel
lecido em favor de uma corrente perpétua de fé no livre com a herança literária dos três filósofos checos que ci-
direito do homem à verdade é à autodeterminação. Esse tamos mais acima. Komensky, exilado e errante por toda
movimento, afirmava, “parece muitas vezes preso pela a vida, foi por muito tempo um autor proibido em sua
desordem e as nuvens internas bem como pelas épocas pátria. Seus livros foram parcialmente impressos no es-
cruéis, mas não pode ser vencido, a não ser que a huma- trangeiro, mas permaneceram em sua maior parte como
nidade renuncie à sua essência”. manuscritos, alguns só foram descobertos em nossa épo-
As atividades de Patocka na Universidade Charles, ca e, inclusive, em 1934, a mais importante e mais vasta
inauguradas com sua obra de 1936, O mundo natural obra dentre elas: De rerum emendatione consultatio catho-
com problema filosófico, foram interrompidas em 1939
Textos Clássicos
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Roman Jakobson
Após a primeira guerra mundial Masaryk, “dotado leitores checos e estrangeiros, reafirmou firmemente sua
de toda sua força moral”, como dizia Patocka, retornou fé: “é necessária alguma coisa fundamentalmente não téc-
da migração como o presidente libertador da Checoslo- nica, não unicamente instrumental, é necessária uma ética
váquia. Mas após a segunda guerra mundial, não somen- evidente por si só, não uma comandada pelas circunstân-
te a reedição de suas obras foi proibida, como as edições cias, uma moral incondicional... A moral não está lá para
antigas foram retiradas das bibliotecas e destruídas, e a fazer funcionar a sociedade, mas simplesmente porque o
proibição foi imposta às ideias do autor. homem é o homem. Não é o homem que define uma or-
Após os acontecimentos no fim dos anos 1960 ne- dem moral segundo a arbitrariedade de suas necessidades,
nhum escrito de Jan Patocka foi autorizado a circular na vontades, tendências e desejos, mas, ao contrário a mora-
Checoslováquia. Sua recente contribuição à filosofia da lidade é que define o homem”. A mensagem termina com
história só circulou sob a forma de texto datilografado. a seguinte declaração: “A assinatura de convenções sobre
Alguns de seus estudos foram publicados fora de seu pa- os direitos dos homens e da sociedade tornou-se possível
ís: O significado do mito do contrato com o diabo (as três como uma nova etapa da evolução histórica, isso cons-
fases da lenda de Fausto), na Alemanha; a versão francesa titui um retorno à consciência dos homens... As motiva-
de seu antigo livro sobre o mundo natural em Haia (1976) ções da ação não se encontrarão mais de modo exclusivo
e artigos na Itália, na Bélgica e na Polônia. Seu último es- ou preponderante no domínio do medo ou da vantagem
tudo a ser publicado foi uma contribuição à revista ho- material, mas no respeito pelo que no homem é superior,
landesa Tijdschrift voor Filosofie, publicado em 1976; ele na concepção do dever e do bem comum e na compreen-
abordava a ideia da mobilidade contínua da linguagem são de que, para se alcançar esse fim, deve se estar pronto
e a conexão entre o estruturalismo científico e os funda- para suportar certos inconvenientes, em aceitar ser mal
mentos fenomenológicos; lá o filósofo checo se debruça- julgado e até arriscar-se à tortura física”.
va sobre os problemas levantados em seus escritos desde O trabalho infatigável de Patocka para elaborar um no-
o início e os examinava. vo tratado de fenomenologia no sentido amplo do termo
As visitas às universidades estrangeiras, antes permi- foi interrompido. Após onze horas, em dois dias, de um
tidas, foram proibidas em meados dos anos 1970. Ainda penoso interrogatório policial, sofreu um ataque cardíaco
que um grau honorário lhe tenha sido conferido pela Uni- em 3 de março de 1977, ingressou no hospital de Strahov
versidade de Aix-la-Chapelle, somente ao termo de longas no dia 4 de março e, após receber muitas visitas destina-
negociações diplomáticas a cerimônia teve lugar em Pra- das a prolongar seu interrogatório, escreveu em sua de-
ga na residência do embaixador da República Federal da claração de 8 de março: “sejamos sinceros: no passado o
Alemanha. O projeto de um Festschrift pelo sexagésimo conformismo nunca trouxe qualquer melhoria para uma
aniversário de Patocka foi proibido em Praga e realizado situação, somente um agravamento... O que é necessário
nesse ano apenas em Haia como septuagésimo segundo é de se conduzir em qualquer tempo com dignidade, de
volume da Phaenomenologica, sob o título O mundo do não se acovardar e se intimidar. O que é necessário é fa-
humano – o mundo da filosofia. lar a verdade. É possível que a repressão se intensifique
No fim dos anos 1960 Patocka exortou a academia em casos individuais. As pessoas se dão conta novamen-
checoslovaca a defender o princípio de que a promoção te de que existem coisas pelas quais vale a pena sofrer, e
dos homens de ciência deveria ocorrer com base no mé- que sem essas coisas, a arte, a literatura, a cultura, entre
rito mais do que pela lealdade política. O jornal de Praga outras, são apenas ocupações nas quais nos engajamos
Tvorba (Criação), chamado pelos que zombavam do Par- para ganhar o nosso pão cotidiano”.
tido de “tvorba z niceho” (Criação ex nihilo), publicou Após uma hemorragia cerebral Patocka morreu em
um diatribe contra Patocka intitulado “Intenções despre- 13 de março de 1977. Em seus funerais em 17 de março,
zíveis por trás da cortina de fumaça da filosofia pura”. os cerca de mil participantes estavam rodeados por uma
Quando, em janeiro de 1977, Patocka tornou-se o porta centena de agentes civis e eram filmados pelos fotógra-
voz do Grupo de Direitos do Homem e do Cidadão para fos da polícia. Um determinado número de amigos de Pa-
a Carta 77, a imprensa checa intensificou seus ataques tocka foi preso, seja no dia anterior aos funerais, seja no
e, como ele escreveu “deu livre curso a uma feroz cam- próprio cemitério. A missa de réquiem anunciada no dia
panha de difamação sem levar em conta a verdade”. Ele seguinte pela família não foi realizada.
permaneceu firme, estoico, intrépido, lembrando-se da Foi somente no dia do funeral que o principal órgão do
famosa resposta de Komensky às perseguições difamató- Partido, o Rúde Právo, noticiou pela primeira vez a morte
Textos Clássicos
rias que desencadearam contra ele: “eu não sou despro- do filósofo, com o único objetivo de advertir a impren-
vido de consolo, porque tenho para mim o testemunho sa ocidental de se abster de utilizar “um acontecimento
de minha consciência, e nada do que vocês me acusam, trágico como a morte de Patocka para fins políticos”. Em
em sua maledicência, é verdadeiro”. Paris, Le Monde, de 19 de março, publicou sob a pena do
Após as perseguições administrativas e os repetidos eminente professor Paul Ricoeur, vice-presidente do Ins-
interrogatórios, Patocka, em uma longa mensagem a seus tituto Internacional de Filosofia, um artigo em memória
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Curriculum Vitae de um Filósofo Checo (Posfácio ao “Essais Hérétiques: Sur la Philosofie de L’histoire”, de Jan Patočka)
NOTA BIOGRÁFICA
Textos Clássicos
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Resenha ..........................
Terapia Fenomenológico-Existencial nas Comunidades Populares – Por uma Terapêutica Hilética e Brasileiramente Situada
RESENHA
Paulo Evangelista
Gustavo Santos é professor de Psicologia na Universi- recursos materiais, como a Gestalt-terapia e suas experi-
dade Federal do Triângulo Mineiro, onde concentra aulas e mentações, e desconheça modalidades de prática psico-
pesquisas na interface da fenomenologia com a psicologia. lógica como as Oficinas de Criatividade, que são terapêu-
Atualmente está morando em Buenos Aires, onde cursa ticas sem serem psicoterapêuticas (p. ex., Jordão, 1999;
pós-graduação e escreve tese de doutorado nessa mesma Schmidt & Ostronoff, 1999; Cupertino, 2008)
área. De lá, tem apresentado aos estudiosos brasileiros a Os conceitos da fenomenologia de Husserl são difí-
breve obra do psiquiatra e escritor espanhol Luis Martin- ceis, sobretudo para os leitores iniciantes. Mas Santos é
-Santos. Também de Buenos Aires e de seus estudos em bastante didático. Ademais, não gasta tempo nas minú-
terras portenhas vem o livro que acaba de ser publicado cias dos conceitos de cada manuscrito da obra husserlia-
Terapia Fenomenológico-Existencial nas Comunidades Po- na (isso cabe a filósofos, não a psicólogos). Assim, apre-
pulares – Por uma terapêutica hilética e brasileiramente senta uma rápida síntese dos aspectos que interessam à
situada (Curitiba: Editora CRV, 2015). sua proposta para fundamentar sua leitura do processo
Sua proposta no livro é muito interessante e mere- psicoterapêutico. Nisto, evidencia-se a influência do pen-
ce ser conhecida. Partindo da premissa fenomenológica samento do psicólogo social argentino Alfredo Moffatt e
de que se deve deixar os fenômenos se mostrarem por si sua “terapia de crise”.
mesmos, Santos coloca em questão a correspondência da Santos relê o processo psicoterapêutico como com-
formação em psicologia no Brasil às demandas da popula- posto por 4 etapas: 1. a queixa – interpretação naturali-
ção brasileira. O exemplo mais claro da discrepância que zante, objetiva, do sofrimento que motiva a procura por
o autor aponta é a formação do psicólogo para ser psico- psicólogo; 2. A expressão da queixa – momento em que a
terapeuta individual, seguindo o modelo de consultório queixa é assumida como acontecimento num contexto vi-
particular, frequentemente psicanalítico, ao passo que tal biográfico; 3. Demanda – quando a queixa é assumida
a população precisa ser atendida em espaços públicos, como fenômeno, isto é, como modo de uma experiência
em grupo, em domicílio, sem tempo e recursos para ses- dar-se àquele que a experiência, ou seja, que o sofrimen-
sões semanais. Não se trata de ampliar numericamente a to psicológico não é algo exterior, que advém ao indiví-
população atendida. Trata-se, outrossim, de conhecer o duo, mas que é parte de quem se é; e 4. Análise existen-
brasileiro que procura o psicólogo e desenvolver moda- cial – momento do processo em que o paciente desvela e
lidades de prática psicológica que lhe sejam pertinentes. assume aspectos ontológicos do existir, tais como aqueles
É na fenomenologia de Husserl que Santos encontra descritos por Sartre, Kierkegaard e Heidegger.
inspiração para esse questionamento e apontamentos pro- Vale enfatizar que Santos chama esta psicoterapia
positivos. Mais especificamente, encontra nas análises de fenomenológica e existencial, pois no início se traba-
husserlianas da correlação intencional noético-noemática lham aspectos de significação de fenômenos na consciên-
a importância da hyle, o material “sensível da experiência cia (Fenomenologia) para, em seguida, assumir a própria
advindo do real, puramente sensível” (p.41) que embasa existência como questão (Existencialismo). Nisso, o au-
toda fenomenalização. Em termos práticos, o que o autor tor difere de uma tradição que tem ampliado seu espaço
propõe é que a materialidade tenha tanta importância nos na Psicologia brasileira e da qual o autor desta resenha
Resenha
245 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 245-246, jul-dez, 2016
Paulo E. R. A. Evangelista
bases para a interpretação dos fenômenos clínicos. À luz fisticação academicista que questiona. A maneira mais ri-
deste olhar, a esquematização de Santos soa artificial; o ca e fenomenológica de apresentar sua proposta seria indo
que não é negado pelo próprio autor, que indica que as às coisas mesmas, ou seja, apresentando experiências da
fases se sobrepõem, não são lineares nem evolutivas. Mas, dimensão hilética na psicoterapia. Santos menciona mui-
como já mencionado, a esquematização é proposta e po- to brevemente apenas três, que não ocupam duas páginas
de ser muito esclarecedora para estudantes e psicólogos de seu livro. Ou seja, as psicoterapias fenomenológico-
que se iniciam nesta “abordagem”. existenciais conduzidas e supervisionadas por ele é que
O terceiro capítulo do livro traz a contribuição origi- deveriam ser o núcleo deste livro. Como está, as propos-
nal de Santos: sua proposta de que a psicoterapia brasi- tas soam teóricas demais. Bem fundamentadas, é verdade,
leira seja “brasileiramente situada”, conforme o título. Is- mas ainda apartadas da vivência cotidiana do brasileiro.
so exige que se conheça a população brasileira, ao invés Ao término da leitura, pode ficar para o leitor a mes-
de assumi-la como semelhante à europeia ou americana, ma dúvida que pairou para este resenhista, cujo conhe-
que são as culturas de onde provêm as teorias psicológi- cimento da obra de Husserl é limitado: é possível aproxi-
cas mais disseminadas nas nossas universidades. mar o “hilético” do “meramente sensorial”, como Santos
Santos parte de uma divisão bem conhecida a todos faz? Isto é, mesmo quando se experienciam sensações
de classes sociais na sociedade brasileira. E, seguindo não claramente significáveis – como, por exemplo, numa
Moffatt, que verifica sofrimentos psicológicos diferen- instalação artística de Hélio Oiticica – ainda assim não fi-
tes entre ricos e pobres argentinos, propõe que o mesmo guraria o “hilético” apenas como suporte imediatamente
aconteça no Brasil. Seu diferencial está em se perguntar suplantado pela correlação noético-noemática? Sente-se
quais recursos a população de baixa renda lança mão a algo estranho, viscoso, incômodo, etc., e nunca o “pura-
fim de se cuidar. Por isso, traça as análises de crentes e mente” sensorial. “Estranho”, “viscoso”, “incômodo” já
malandros. Fica em questão se são os melhores arquéti- são significações. Ainda assim, esta questão teórica não
pos da população de baixa renda. retira da proposta de Santos seu valor. Os psicólogos fe-
Santos extrai dessas análises elementos interessan- nomenológicos brasileiros, dentre os quais estou inclu-
tes que sugerem modelos de intervenção psicológica. Por ído, precisam, sim, para serem fenomenológicos, deixar
exemplo, verifica como nas religiões brasileiras as divin- que o público dos atendimentos – o fenômeno, portanto
dades são materializadas, antromorfizadas, tornando-se – possa ser tal como é, e não de acordo com o que dizem
próximas e cotidianas, ganhando mais poder para inter- as teorias psicológicas a seu respeito.
vir na dura realidade do crente. É assim na umbanda e
nas crescentes igrejas universais baseadas na teologia da
prosperidade. Essas religiões respondem a uma demanda Referências
da população que, se a psicologia conhece, não sabe ain-
da como responder. Oferecem elementos sensíveis (“hi- Jordão, M. Oficinas em Aconselhamento: Um Processo em An-
léticos”) para combater os males que afligem a população damento. In: MORATO, H. T. P. (Org.) Aconselhamento psi-
cológico centrado na pessoa: novos desafios. São Paulo: Ca-
– alcoolismo, desemprego, problemas familiares –, uma
sa do Psicólogo, 1999.
comunidade de apoio e métodos claros (não individuali-
zados, é verdade) que promovem mudanças existenciais Schmidt, M. L. & Ostronoff, V. Oficinas de Criatividade: elemen-
radicais. Compare-se isso à psicoterapia psicanalítica in- tos para a Explicitação de Propostas Teórico-Práticas. In: MO-
dividual em consultório para se ver o abismo entre a de- RATO, H. T. P. (Org.) Aconselhamento psicológico centrado na
manda e a oferta de serviços psicológicos. Mesmo as ro- pessoa: novos desafios. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.
das de samba, que poderiam ser interpretadas como di- Cupertino, C. (Org.) Espaços de criação em Psicologia: oficinas
versão, são consideradas por Santos modos de cuidar de na prática. São Paulo: Annablume, 2008.
si dos brasileiros.
Os malandros são personagens conhecidos do brasi-
leiro. Carentes de proveniência, não carregam nome de Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista - Doutor em Psicologia Es-
família nem peso da tradição. Seu destino está unicamente colar e do Desenvolvimento pela Universidade de São Paulo, Mestre em
Filosofia e Graduação em Psicologia pela Pontifíca Universidade Cató-
em suas mãos, projetando-se ao futuro, criando-o e crian-
lica de São Paulo. Atua como docente e supervisor clínico na Universi-
do-se, aproveitando as brechas que as situações trazem. dade Paulista (UNIP), sendo também responsável pela elaboração dos
O malandro é alguém que “se vira” na vida. Não é assim planos de ensino e de apostilas para autoavaliação dos alunos (líder de
que muitos brasileiros vivem? Será que a Psicologia bra- disciplina). Endereço Institucional: R. Dr. Bacelar, 1212. São Paulo - SP
- CEP: 04026-002. E-mail: [email protected]
sileira compreende esse modo de ser? Será que nossos
modelos psicoterapêuticos levam em conta essa “voca-
ção” nacional para se virar? Ou será que teorias estrangei-
Resenha
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 245-246, jul-dez, 2016 246
Terapia Fenomenológico-Existencial nas Comunidades Populares – Por uma Terapêutica Hilética e Brasileiramente Situada
RESENHA
“[...] que é habitar em risco? É todo o habitar Um pensamento fenomenológico geográfico do risco,
contemporâneo? perigo e vulnerabilidade, tal como desenvolvido pelo
Sim, todo o habitar é um habitar em risco. autor, começa por uma busca de compreensão dessas
Isto não se dá em virtude da sua essência, mas por noções como fenômenos vividos. Começa por uma in-
causa da essência da metrópole contemporânea” dagação pela experiência das pessoas, pelo o que, no
Eduardo Marandola Jr. dia-a-dia, na experiência, seja risco, perigo, vulnerabi-
lidade. Acrescida à dimensão experiencial dos riscos,
perigos e vulnerabilidades, Marandola Jr. destaca que
1. Uma fenomenologia geográfica esta dimensão experiencial é, sempre, espacial; em ou-
tras palavras, a experiência do risco, do perigo e da
O livro “Habitar em risco: mobilidade e vulnerabili- vulnerabilidade se dá nos lugares, pelos lugares, nas
dade na experiência metropolitana”, do geógrafo Eduardo articulações entre eles, nas formas como as pessoas se
Marandola Jr., é uma fenomenologia geográfica do habitar relacionam com eles.
metropolitano contemporâneo; e a partir desta fenome- O autor sublinha que, há, portanto, uma dimensão
nologia geográfica, Marandola Jr. busca compreender ris- geográfica dos riscos, perigos e vulnerabilidade e que a
cos, perigos e vulnerabilidades associados a esse habitar. geografia participa da ontologia desses fenômenos. E é a
O livro lida com um conjunto de noções que vêm sen- partir deste ponto que a reflexão de Marandola Jr. con-
do, nas últimas décadas, um dos principais pontos de tribui para um aprofundamento da compreensão desta
contato entre políticas públicas e a reflexão acadêmica, tríade de conceitos: abordando-a a partir dos sentidos do
os conceitos de risco, perigo, vulnerabilidade. São diver- viver metropolitano, lhes indagando a partir dos lugares,
sas as orientações teóricas e as metodologias que discuti- a partir da forma como habitamos os lugares.
ram e continuam discutindo esses três conceitos, no que A discussão desenvolvida no livro está dividida em
poderíamos chamar de uma busca sistemática de pensar, três partes: “Geografia dos Riscos”, “A Região e as Cida-
decompor, buscar as causas, medir a amplitude e a pro- des” e “Habitar a Metrópole”.
fundidade de eventos ou situações danosos, negativos. Na primeira parte, o autor contextualiza como risco,
Neste contexto, de um modo geral, risco veio sendo pen- perigo e vulnerabilidade vieram sendo pesquisados pe-
sado como potencial de concretização de perigo, perigo la academia científica. A partir de uma reflexão voltada
corresponderia ao evento danoso e a vulnerabilidade se- para os sentidos desses conceitos enquanto fenômenos,
ria o grau de exposição ao dano. revela-os como uma faceta de um contemporâneo marca-
A difusão desses três conceitos, tanto no âmbito acadê- do pelas sensações de incerteza e insegurança.
mico quanto no político, é flagrante: existem, atualmente, Nesse debate, a constatação da dimensão geográfica
diversos indicadores e mapas de vulnerabilidades; exis- destes fenômenos encaminha a discussão não só para
tem mensurações de diferentes vulnerabilidades (social, uma ontologia geográfica do risco, perigo e vulnerabili-
socioeconômica, à fome, à riscos naturais, etc.); existem dade, mas também e necessariamente, para uma onto-
análises de riscos, perigos e vulnerabilidade concernentes logia geográfica do próprio Ser. Na subseção intitulada
à parcelas de população, cidades ou países. Dentro des- “O Sentido Ontológico do Habitar”, Marandola Jr., a par-
te contexto, o livro de Marandola Jr. aparece propondo tir do pensamento sobre espaço do fenomenólogo Martin
Resenha
uma reflexão fenomenológica geográfica de risco, perigo Heidegger, desenvolve uma reflexão sobre o fenômeno
e vulnerabilidade. Mas o que seria um pensamento feno- habitar, apontando-o como essência da relação homem-
menológico geográfico destes três conceitos? meio, modo próprio de o homem ser e estar no mundo.
247 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 245-246, jul-dez, 2016
Paulo E. R. A. Evangelista
E é esse sentido ontológico do habitar que orienta toda a Fernanda Cristina de Paula - Possui Bacharelado e Licenciatura em
construção teórico-metodológica da pesquisa. Geografia, Mestrado em Geografia pela Universidade Estadual de Cam-
A segunda parte do livro, “A Região e as Cidades”, é pinas, foi docente da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e
dedicada a um duplo movimento. Um é o de presenti- atualmente é Doutoranda em Geografia, no Instituto de Geociências/
Universidade Estadual de Campinas e integrante do Grupo de Pesqui-
ficar o metropolitano pesquisado (Região Metropolita- sa Geografia Humanista Cultural (EAU-FAU/ UFF). E-mail: depaula.
na de Campinas, Estado de São Paulo), articulando essa [email protected]
presentificação a uma reflexão sobre o sentido ontoló-
gico de metrópole. O segundo movimento é a discussão
dos procedimentos teórico-metodológicos que visam
abordar o habitar metropolitano; onde se destacam a
construção de metodologias geográficas orientadas pe-
la Fenomenologia. Essas metodologias se congregam na
abordagem/conceito, desenvolvido pelo autor, denomi-
nado “espaço de vida”.
A terceira parte, “Habitar a metrópole” é dedicada à
própria experiência do habitar metropolitano, trazido a
partir dos espaços de vida de moradores da região pes-
quisada. A partir desses espaços de vida, Marandola Jr.
revela a experiência de viver a metrópole e, nessa expe-
riência, a manifestação de risco, perigo e, mesmo, a re-
flexão sobre uma vulnerabilidade até então nunca dis-
cutida nos estudos de risco, perigos e vulnerabilidade: a
vulnerabilidade existencial. O autor destaca que, nesta
vulnerabilidade, a casa, o bairro, as territorialidades que
constituímos têm seus pesos tanto enquanto orientado-
res de nossa forma de habitar e, por conseguinte, como
elementos de nossa segurança existencial. É nesse sen-
tido que Marandola Jr. apresenta uma série de questio-
namentos, tece reflexões e abre caminhos concernentes
à compreensão do sentido da casa, da cidade, da metró-
pole, do habitar metropolitano.
O livro Habitar em Risco é uma dupla contribuição em
um único projeto. De um lado, enquanto fenomenologia
geográfica da tríade riscos, perigos, vulnerabilidade e do
habitar metropolitano, reenvia a reflexão dessas noções à
concretude de suas existências, aproximando o que muitas
vezes é apresentando enquanto pólos opostos e distantes:
o conhecimento científico e a vida das pessoas, as quais
esse conhecimento busca compreender e, mesmo, inter-
vir. Por outro lado, esse retorno às coisas nelas mesmas,
conduz e reconduz o pensamento do autor em direção a
uma ontologia geográfica, a qual, necessariamente, não
é uma contribuição somente para aprofundar a compre-
ensão de riscos, perigos e vulnerabilidade, mas também,
enquanto ontologia, é uma abertura de caminhos em di-
reção a outras formas de pensar o homem, os lugares, a
geografia e o fazer ciência.
Referência
cher, 250p.
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 245-246, jul-dez, 2016 248
Terapia Fenomenológico-Existencial nas Comunidades Populares – Por uma Terapêutica Hilética e Brasileiramente Situada
RESENHA
los XVIII e XIX. Neste período, a Geografia se estabelece formas, desenhos e recortes das paisagens da terra. Seria
enquanto ciência, reflexo do amadurecimento do espírito a terra, portanto, uma espécie de texto composto por sig-
moderno que conquista a maior parte da cena intelectual nos que incita e se apresenta à interpreção do geógrafo.
249 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 245-246, jul-dez, 2016
Paulo E. R. A. Evangelista
Para que tal interpretação se estabeleça, Dardel recor- se configura como algo avesso ao real, mais uma supera-
re ao uso da fenomenologia enquanto método ontológi- ção deste, um ir-além-do-real. Como nos dizeres de Dar-
co de apreensão da efetividade concreta e circundante. del (2011, p. 34), não se trata aqui de estabelecer uma
A experiência existencial ocorrida em meio a uma adesão “Geografia patética” de “pura fantasia”, mas tingir, afeti-
contigua (ou cumplicidade) entre homem e terra é o que vamente, um espaço primitivo, que salta da concretude
oferece à sensibilidade humana condições fundamentais dos lugares para o corpo e, por consequência mobiliza,
de apreensão do mundo, em meio à existência. nossos desejos, vontades e pensamentos. Esta subjetivi-
A terra para Derdel (2011), semelhante às interpre- dade, convertida em fala e em texto, exige também que
tações filosóficas da antiguidade e românticas do século o geógrafo faça uso de um estilo poético-literário para
XVIII, é uma materialidade dotada de vida, potência e di- então apresentar sua mensagem (interpretação), ou seja,
namismo próprio. Deste modo, a terra, assim como o es- desmaterializar a expressividade (sua paisagem) concreta
paço geográfico, é a própria matéria, a substância gasosa da terra em nomeação, palavras, ou, como prefere Dardel
que compõe os céus (espaço aéreo); as águas que formam (2011, p. 13), em um “vocabulário”.
os oceanos os rios e lagos, assim como o gelo que caracte- Essa linguagem geográfica veicula em sua sonorida-
riza as formações glaciais (espaço aquático); a areia que se de ritmada uma coloração afetiva que, em sua ressonân-
espraia por costas e desertos, as rochas que se consolidam cia, desperta nos seres humanos, um ato de consciência,
em serras e montanhas, o solo e a vegetação que compõe sentimentos e afetos ligados intimamente à imagem e me-
campos e florestas (espaço telúrico); o concreto, o aço e mória de lugares e regiões experienciadas e imaginadas.
o vidro que sustentam as cidades e suas infraestruturas Imagens e realidades geográficas que o autor supõe já exis-
(espaço construído). Trata-se de um espaço vivo, móvel tir dentro de cada um de nós. Para o autor de O Homem e
e que nos afeta como em uma espécie de combate, ofe- a Terra, o espaço primitivo, assim como sua interpretação
recendo acolhimento, obstáculo, estímulo e resistência à poética sobre a realidade geográfica, supera a análise obje-
liberdade de construir e habitar do humano. tiva da ciência convencional por sua maior proximidade
Ao oferecer estímulo e resistência, a matéria, que se e fidelidade ao apelo terrestre. A poesia neste sentido se
configura em espaço geográfico, exige da experiência e faz mais fácil, transparente, interessante e surpreenden-
sensibilidade humana o intuir de qualidades, a exemplo te para a compreensão e a imaginação humana, dando às
dos valores de alto, sólido, amplo, pastoso, pesado, es- nuanças da terra mais vivacidade, cor, vibração e inten-
pesso, molhado, quente, distante, entre outros tantos, que sidade expressiva.
pensados acabem por fundar conceitos, noções e medidas Essa Geografia poética, ou geograficidade, se faz, a
humanas de conhecimento. Neste sentido a perspectiva princípio, um modo de ser e, consequentemente, um
de espaço geográfico assume caráter antropocêntrico de modo fenomenológico e hermenêutico de se conhecer a
interpretação, isto é, a realidade só é geográfica para o ser realidade. No campo do saber ela se configura não só co-
humano, seus inúmeros interesses e o reconhecimento mo um enfrentamento aos limites impostos pela ciência
de si mesmo. Nesta visão, o homem, portanto, é o único moderna, mas também como um resgate aos alicerces de
capaz de estabelecer diálogo com a terra, compreendê-la uma Geografia existencial, ontológica, mítica e heroica,
e respondê-la. que se fez frutífera nos tempos anteriores. Uma Geografia
A presença dessa vitalidade do espaço material se re- que tem o lugar como base e fundamento para o desdobrar
vela diante do homem como uma espécie de linguagem, de uma contiguidade circunstancial e existencial que a
uma forma comunicativa, que Dardel (2011, p. 6) sinali- paisagem estabelece entre homem e terra. Uma geografia
za como uma um “apelo” ou “confidência” que a sensi- que enxerga na paisagem um horizonte e um impulso de
bilidade pode captar e traduzir. Esse apelo da terra brota possibilidades para a fundação de mundos caracterizados
de suas particularidades materiais, sejam elas de origem por espaços únicos e diferenciados.
natural ou artificial. Um apelo que se manifesta como
um verdadeiro jogo de ocultamento e revelação (sombra
x luz) sobre sentidos e essências do mundo circundante. Capitulo 2 - A História da Geografia
Um campo de forças em luta que atinge o homem, tan-
to como oportunidade, quanto como obstáculo para suas No segundo capítulo de O Homem e a Terra, Dardel
intenções e presença, seu destruir, engendrar e ordenar nos propõe uma formidável e distinta perspectiva histó-
sobre o solo. rica sobre a Geografia. O próprio autor salienta que sua
O desafio fenomenológico e hermenêutico que fun- narrativa não pode ser confundida com uma cronologia
damenta a geograficidade derdeliana exige do geógrafo o dos descobrimentos e mapeamentos sobre a terra, mui-
exercício de uma liberdade espiritual e subjetiva capaz to menos com uma periodização sobre a trajetória do
de transmutar a realidade concreta, proporcionada pelo desenvolvimento científico-institucional da Geografia.
Resenha
sentir a terra, em uma irrealidade imaginária, onírica e A História da Geografia que Dardel (2011) nos conta é, na
fantástica, criadora de uma perspectiva de mundo pen- verdade, o caminho do despertar e do desdobrar de uma
sado. Essa irrealidade, fruto da criação do geógrafo, não consciência geográfica, estimulada pela relação direta do
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 245-246, jul-dez, 2016 250
Terapia Fenomenológico-Existencial nas Comunidades Populares – Por uma Terapêutica Hilética e Brasileiramente Situada
homem com a expressividade fisionômica da terra, sua O homem, gestado do sopro deste Deus, que (segundo
realidade circundante e cotidiana. as liturgias) projetou em nós sua própria imagem, passa
Tal trajetória, apresentada por Dardel, é, portanto, a a assumir posição hierárquica (elevada) diante da terra.
História da própria geograficidade. O caminho temporal Nessa perspectiva a terra não passa de uma materialidade
de um modo de ser (existência) pautado na interpretação, subsistente, temporária, limitada, que manifesta o poder
que transita entre homem e terra, que por sua vez, estabe- de um Deus infinito e eterno e se faz dom, assim como
lece como horizonte, base e esclarecimento para a funda- testemunho de seu poder. Desacralizada a terra torna-se
ção de diferentes concepções geográficas de mundo. Entre o oposto do céu (morada de Deus), condenada e profa-
essas Dardel destaca: a Geografia (interpretação) mítica, nada a uma falsa divindade, solo da heresia, paganismo,
profética e heroica, assim como a Geografia das velas des- maldade e supertição, destinada a servir o homem como
fraldadas e, por fim, a Geografia científica do século XIX. recurso de valor utilitário.
A geografia dos ditos “primitivos”, das sociedades Também interpratada como a geografia aventureira,
tradicionais (tribais) que, segundo o autor também era exploratória e lendária. Versadas nas proezas das narra-
vigente na antiguidade e no medievo. Essa é a leitura tivas de viagens. Essa geografia é tida por Dardel (2011)
fundamentada em um universo mágico, um mundo visto enquanto aquela que, ao mesmo tempo, se aproxima e
por uma perspectiva mítica. Nessa atmosfera interpreta- se afasta da concepção mítica sobre a efetividade. Apro-
tiva, a terra, em sua composição total (terra, ar, água), é xima-se, pois ainda mantém sua relação de fidelidade à
dotada de poderes naturais e sobrenaturais. Ela é a ori- terra, impregnada com as concepções míticas e mágicas
gem, o solo, o útero, a mãe de tudo e de todos os seres. das comunidades antigas e tradicionais. Afasta-se, pois
Fonte de fertilidade, nutriente, chão pátrio, elo parental desafia a dominação coletiva do clã, em detrimento da
da relação vivida, existencial e afetiva junto ao homem. exaltação da figura do herói, aquele que enfrenta sozinho
as potencialidades dos deuses e da natureza. Tal exalta-
A terra proporciona a coletividade humana (clã), possi-
ção proporcionou o domínio da figura masculina, nobre
bilitando a vida em comunidade, trabalho, trocas, par-
e aristocrática, isto é, o patriarca monárquico.
cerias e conflitos.
A geografia heroica também se fez alicerce para uma
A terra, na concepção mítica, não é só origem, mas a
primeira e superficial consciência histórica, que se des-
presença em constante manifestação e renovação. As ex-
prende do mito totêmico dos clãs e estabelece, por meio
pressividades de seu tempo e de seus ciclos naturais de
de sua poesia épica, interpretações cosmológicas sobre o
eterno retorno reverberam sobre os ritmos e ordens da vi-
mundo exterior. Diferentemente da perspectiva profética,
da humana, estabelecendo as interpretações míticas e as
a terra para a geografia heroica retorna a manifestar suas
performances ritualísticas que validam e organizam a re-
potencialidades próprias, porém, tendo projetada sobre si
alidade geográfica de cada cultura. A partir desses mitos
a imagem do panteão divino que, representado pela na-
e ritos a terra passa a ser vista pelos homens como digna
tureza, impõe à liberdade humana desafios e obstáculos
de sagradas e profanas qualidades. Aspectos sobrenaturais
sobre suas conquistas aos espaços.
que vão além de sua pura materialidade, base fundamen-
tal para o surgimento das primeiras religiões.
Geografia das Velas Desfraldadas
Geografia (interpretação) Profética Esta apresenta uma linha tênue que, de certa forma,
a diferencia da geografia heroica. Dardel (2011, p. 78),
Segundo a leitura de Dardel (2011), foi neste contexto em alguns momentos, expressa que o contexto das gran-
que a relação entre homem e terra sofreu sua primeira e des navegações pode ser confundido, até mesmo servir
profunda perturbação. Com a abertura para o ritualismo de “capítulo”, ou continuidade às aventuras épicas da
e a religião, concedida pela própria geografia mítica, se- primeira revolução da consciência geográfica. A geogra-
guimentos da sociedade passam a recriar valores em meio fia das grandes explorações e expedições ultramarinas
a inquietações metafísicas, dando origem às perspectivas é avessa ao trabalho de gabinete e laboratório, pois nela
proféticas. Dentre as mais delineadas entre elas, o pro- ainda pulsa uma vontade de poder que alicia o homem a
fetismo bíblico, de orientação monoteísta, que destitui a uma inquietação espacial. Vocação em descobrir, conhe-
terra de seu caráter originário, fonte sagrada da existên- cer, conquistar e fundar mundos, que consegue ir além
cia, dotada de alma, poder próprio e presença, para ser dos interesses políticos e econômicos. Vontade que se
Resenha
rebaixada à condição de mera substância passiva, obra e manteve rebelde aos imperativos da metafísica e da mo-
desígnio de um criador, meio para o fim e uma história ral profética, assim como desconhecedora das supostas
arquitetada por um Deus tido por verdadeiro. leis invariáveis da natureza.
251 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 245-246, jul-dez, 2016
Paulo E. R. A. Evangelista
Para a geografia exploratória, ainda cabe à terra inter- que nos abrem caminhos para um retorno a uma geo-
pretações poéticas, épicas e maravilhadas, advindas da grafia mais humana. Ao mesmo tempo em que o homem
experiência afetiva. Pois neste contexto, a natureza ain- traça em seu destino um distanciamento profundo em
da é animada por forças mágicas e sobrenaturais. Suas relação à natureza, o mesmo criou tímidas e esporádi-
conquistas heroicas, movidas por coragem, dificultadas cas possibilidades de se evadir dos ambientes urbanos
por terríveis riscos e fins trágicos, levou a humanidade a e artificiais, estabelecendo assim um reencontro com a
amadurecer sua consciência geográfica, alargar suas di- terra e consigo mesmo. Para Dardel o homem moderno,
mensões espaciais e enriquecer de imagens a nossa sub- assim como a ciência institucional, precisam se conven-
jetividade e conhecimento sobre outros mundos e povos. cer que o poder de sua atual e hegemônica objetividade
surgiu de uma subjetividade gestada na relação vivida,
próxima e íntima com a terra. Essa relação precisa ser
Geografia Científica resgatada e fortalecida, assim como é preciso refundar
a geograficidade que marcava os períodos heroicos e
A Geografia que atrai o tom crítico da leitura de Dar- desbravadores.
del, por ser despossuída de maior geograficidade. As pers-
pectivas que a consolidaram tiveram suas raízes, não só
na maturidade moderna do século XVIII, mas em toda a Referências
trajetória humana, desde as motivações mercantis das
antigas rotas comerciais, passando pelas concepções re- Dardel, É. (2011). O Homem e a Terra: natureza da realidade
ligiosas de infinito, da idade média, até os registros co- geográfica. (Trad. Werther Holzer) São Paulo: Editora Pers-
pectiva.
letados em meio às aventuras ultramarinas. A Geografia
científica é a Geografia dos mapas e inventários dos fatos
geográficos, matéria prima, conteúdo descritivo para a
David Emanuel Madeira Davim - Possui graduação em Geografia pela
confirmação rigorosa de hipóteses e leis invariáveis, que Faculdade de Ciências e Tecnologia, (FCT-UNESP) Campus de Presiden-
fundamentaram a Matemática e a Física das explicações te Prudente-SP; é Mestrando do curso de Geografia do Instituto de Geo-
mecanicistas e absolutas sobre a realidade. ciências (IG) da UNICAMP, tendo por linha de investigação: epistemo-
Para exercer essa Geografia objetiva o geógrafo deve logia em Geografia, Geografia Humanista e Fenomenológica e Filosofia
Contemporânea (destaque para a proposta nietzschiana e heideggeria-
abandonar seu diálogo afetivo com a terra, além de sua na de pensamento). Docente da Universidade Estadual de Campinas.
perspectiva poética, mítica e lendária. O investigador deve E-mail: [email protected]
deixar em repouso seu gosto e alegria pelo risco das aven-
turas e inquietudes geográficas, enfraquecer sua vontade
de correr, descobrir e conquistar mundos. Essa é a Geo-
grafia dos laboratórios, institutos, organismos e revistas
de pesquisas, que buscam, com todo vontade de verdade,
um conhecimento válido, rigoroso e verossímil sobre a ter-
ra enquanto mero objeto de seu interesse empreendedor.
Conclusão
Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 245-246, jul-dez, 2016 252
Normas para Publicação ......
Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica
O encaminhamento de artigos à revista implica a acei- sociais e antropológicas, e se enquadrarem nas categorias
tação, por parte dos autores, de todas as normas expres- que se seguem:
sas neste documento. Relato de pesquisa – relato de investigação concluída
ou em andamento, com uso de dados empíricos, metodo-
logia quantitativa ou qualitativa, resultados e discussão
1. Política Editorial dos dados. O manuscrito deve ter entre 15 e 25 laudas.
Revisão Crítica de Literatura – análise abrangente da
A Revista da Abordagem Gestáltica – Phenomenolo- literatura científica. O manuscrito deve ter entre 15 e 25
-gical Studies foi criada com o objetivo de ser um veí- laudas.
culo de publicação da Abordagem Gestáltica, bem como Estudo Teórico ou Histórico – análise crítica de cons-
daquelas abordagens que se fundamentam em bases teó- trutos teóricos ou análise de cunho histórico sobre um de-
rico-científicas e filosóficas dentro das perspectivas hu- terminado tema. Busca achados controvertidos para críti-
manistas, fenomenológicas e existenciais. ca e apresenta sua própria interpretação das informações.
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vilegiar reflexões – numa perspectiva multiprofissional Resenha – análise de obra recentemente publicada (no
e interdisciplinar – em torno dos seguintes temas: a) Fe- máximo há dois anos). Limitada a 5 laudas.
nomenologia; b) Psicologia Fenomenológica; c) Filosofias O Conselho Editorial ou os consultores ad hoc anali-
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Normas
255 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXII(2): 255-259, jul-dez, 2016
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sive, apresentar sugestões aos autores para as alterações de acordo com o tipo de publicação desejada (ver Infor-
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Quando a investigação envolver sujeitos humanos, os
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claração de que foi obtido o consentimento dos sujeitos 4.2 Especificações do Manuscrito
por escrito (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido)
e/ou da instituição em que o trabalho foi realizado (Comis- a) Título – é recomendado que o título do artigo se-
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Os autores serão notificados sobre a aceitação ou a re- fonte 14, centralizado e em negrito. A seguir, devem vir,
cusa de seus artigos, os quais, mesmo quando não forem em itálico, centralizados e em fonte 12, os títulos em in-
aproveitados, não serão devolvidos. glês e espanhol.
b) Epígrafe – quando for necessária, poderá ser apre-
sentada, em letra normal, com espaçamento interlinear
4. Forma de Apresentação dos Mauscritos simples, fonte 10, e alinhamento à direita. O nome do
autor da epígrafe deverá aparecer em itálico, seguido da
A Revista da Abordagem Gestáltica – Phenomenolo- referência da obra.
-gical Studies adota, em geral, normas de publicação ba- c) Resumo e Palavras-chave – deverão ser redigidos
seadas no Manual de Publicação da American Psycholo- em português, inglês e espanhol, em parágrafo único, es-
gical Association (APA) – 6ª edição, 2012. paçamento interlinear simples, fonte 10, entre 120 e 200
Os manuscritos poderão ser redigidos em português, palavras. As palavras-chave (descritores), de três a cinco
inglês, francês ou espanhol. termos significativos, deverão remeter ao conteúdo fun-
damental do trabalho. Para a sua determinação, consultar
a lista de Descritores em Ciências da Saúde – elaborada
4.1 Partes do Manuscrito pela Bireme e/ou Medical subject heading – comprehen-
sive medline. Todas as palavras deverão ser escritas com
1. Folha de rosto identificada: a) título do trabalho iniciais maiúsculas e separadas por ponto e vírgula. In-
em português; b) título do trabalho em inglês; c) título do cluir também descritores em inglês (keywords) e espanhol
trabalho em espanhol; d) indicação da categoria na qual (Palabras-clave).
o trabalho se insere (relato de pesquisa, estudo teórico ou d) Estrutura do manuscrito – os trabalhos referentes
histórico, revisão crítica de literatura, resenha); e) nome a pesquisas deverão conter introdução, objetivos, meto-
completo e afiliação institucional dos autores (apenas dologia, resultados e conclusão. O trabalho deverá ser
universidade); f) nome completo, endereço completo (in- redigido em linguagem clara e objetiva. As palavras es-
clusive CEP) e E-mail de pelo menos um dos autores para trangeiras e os grifos do autor deverão vir em itálico.
correspondência com a revista e leitores. Esta deverá ser a e) Nomenclaturas e Abreviaturas – usar somente as
única parte do texto com a identificação dos autores, pa- oficiais. O uso de abreviaturas e de siglas específicas ao
Normas
ra que seja garantido seu anonimato. ATENÇÃO: A folha conteúdo do manuscrito deverá ser feito com sua indica-
de rosto identificada deve ser enviada, no sistema, como ção entre parênteses na primeira vez em que aparecem
“documento suplementar”, separada do texto principal. no manuscrito, precedida da forma por extenso.
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Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica
f) Notas de rodapé – deverão ser numeradas conse- 4.3 Tipos comuns de citação no texto
cutivamente na ordem em que aparecem no manuscrito
com numerais arábicos sobrescritos e restritas ao míni- – Citação de artigo de autoria múltipla
mo indispensável. Não coloque números de rodapé nos a) dois autores
títulos do texto. O sobrenome dos autores é explicitado em todas as
g) Citações – deverão ser feitas de acordo com as citações, usando “e” ou & conforme a seguir: “O método
normas da APA (6ª edição, 2012). Em caso de transcri- proposto por Siqueland e Delucia (1969)” ou “o método
ção integral de um texto com número inferior a quarenta foi inicialmente proposto para o estudo da visão (Sique-
palavras, a citação deverá ser incorporada ao texto entre land & Delucia, 1969)”
aspas duplas, com indicação, após o sobrenome do autor
e a data, da(s) página(s) de onde foi retirado. Uma citação b) de três a cinco autores
literal com quarenta ou mais palavras deverá ser desta- O sobrenome de todos os autores é explicitado na pri-
cada em bloco próprio, começando em nova linha, sem meira vez em que a citação ocorrer de acordo com o exem-
aspas e sem itálico, com o recuo do parágrafo alinhado plo: “Spielberger, Gorsuch, Siqueland, Delucia e Lushene
com a primeira linha do parágrafo normal. O tamanho da (1994) verificaram que”. A partir da segunda citação, in-
fonte deve ser 12, e o espaçamento interlinear deverá ser clua o sobrenome do primeiro autor seguido da expressão
1, 5 como no restante do manuscrito. A citação destacada “et al.” (sem itálico e com um ponto após o ‘al”). Omita o
deve ser formatada de modo a deixar uma linha acima e ano de publicação na segunda citação em caso citações
outra abaixo da mesma. subsequentes em um mesmo parágrafo.
h) Referências – denominação a ser utilizada. Não Caso as Referências e a forma abreviada produzam
use Bibliografia. As referências seguem as normas da aparente identidade de dois trabalhos em que os co-au-
APA (6ª edição, 2012) adotando o sistema de citação au- tores diferem, esses são explicitados até que a ambigui-
tor-data e são listadas em ordem alfabética na lista de dade seja eliminada.
referências. A fonte deverá ser formatada em tamanho Na seção de Referências, os nomes de todos os auto-
12, espaçamento interlinear 1, 5. O subtítulo Referên- res devem ser relacionados.
cias deverá estar alinhado à esquerda. A primeira linha
de cada referência inicia-se junto à margem esquerda e c) com mais de cinco autores
as linhas subsequentes recuam 0, 75cm à direita, uti- Neste caso, faça a chamada apenas com o sobrenome
lizando o recurso “deslocamento” do editor de texto. do primeiro autor seguido de “et al.” e do ano de publica-
Verificar se todas as citações feitas no corpo do manus- ção na primeira e nas citações subsequentes. Na seção de
crito e nas notas de rodapé aparecem nas Referências e Referências, todos os nomes são relacionados.
se o ano da citação no corpo do manuscrito confere com
o indicado na lista final. – Citação de autores com o mesmo sobrenome
i) Anexos – usados somente quando indispensáveis Se uma lista de referências possui publicações de dois
à compreensão do trabalho, devendo conter um mínimo ou mais autores principais com o mesmo sobrenome, in-
de páginas (serão computadas como parte do manuscri- dique as iniciais do primeiro autor em todas as chamadas
to) e localizados após Referências. do texto, mesmo que o ano de publicação seja diferente.
j) Figuras e Tabelas – devem surgir no corpo do tex-
to, diretamente no local considerado adequado pelo(s) – Citações de trabalho discutido em uma fonte secun-
autor(es). Devem ser elaboradas segundo os padrões de- dária
finidos pela APA, com as respectivas legendas e títu- Caso se utilize como fonte um trabalho discutido em
los. Títulos de tabelas devem obedecer ao seguinte pa- outro, sem que o texto original tenha sido lido (por exem-
drão: em linha isolada, coloque o número da tabela (Ex.: plo, um estudo de Flavell, citado por Shore, 1982), deverá
Tabela 1), sem ponto final. Na linha seguinte, coloque o ser usada a seguinte citação: “Flavell (conforme citado por
título da tabela, em itálico, usando maiúsculas no início Shore, 1982) acrescenta que estes estudantes...”
das palavras (Ex.: Números Médios de Respostas Corre- Na seção de Referências, informar apenas a fonte se-
tas de Crianças Com e Sem Treinamento Prévio). Títulos cundária (no caso Shore, 1982), com o formato apropriado.
de figuras devem obedecer ao seguinte padrão: coloque Sugere-se evitar, ao máximo, o uso de citações ou re-
o número da figura em itálico, seguido de ponto final. ferências secundárias.
Logo em seguida, coloque o título da figura, apenas com
a primeira letra do título em maiúsculas. (Ex.: Figura 1. – Citações de obras antigas reeditadas
Frequência acumulada de sequências de respostas corre- a) Quando a data do trabalho é desconhecida ou mui-
tas). Os títulos das tabelas deverão ser colocados no alto to antiga, citar o nome do autor seguido de “sem data”:
“Piaget (sem data) mostrou que...” ou (Piaget, sem data).
Normas
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Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica
tor seguido de “tradução” ou “versão” e data da tradução Garcia, C. A., & Rocha, A.P. R. (2008). A Adolescência co-
ou da versão: “Conforme Aristóteles (tradução 1931)” ou mo Ideal Cultural Contemporâneo. Psicologia Ciência e
(Aristóteles, versão 1931). Profissão, 28(3), 622-631.
c) Quando a data original e a consultada são diferen-
tes, mas conhecidas, citar autor, data do original e data – Artigos consultados em mídia eletrônica
da versão consultada: “Já mostrava Pavlov (1904/1980)” Quando houver versão impressa (mesmo que em PDF,
ou (Pavlov, 1904/1980). usar regras anteriores).
As referências a obras clássicas, como a Bíblia e o Alco-
rão, cujas seções são padronizadas em todas as edições são Toassa, G., & Souza, M. P. R. de. (2010). As vivências:
citadas somente no texto e não na seção de Referências. questões de tradução, sentidos e fontes epistemológicas
no legado de Vigotski. Psicologia USP, 21(4). Recuperado
– Citação de comunicação pessoal em Outubro de 2009, de http://www.marxists.org/archi-
Este tipo de citação deve ser evitada, por não ofere- ve/luria/works/1930/child/ch06.htm
cer informação recuperável por meios convencionais. Se
inevitável, deverá aparecer no texto, mas não na seção de Evangelista, P. (2010). Interpretação Crítica da teoria de
Referências, com a indicação de “comunicação pessoal”, Campo Lewiniana a partir da Fenomenologia. Centro de
seguida de dia, mês e ano. Ex.: “C. M. Zannon (comuni- Formação e Coordenação de Grupos em Fenomenologia.
cação pessoal, 30 de outubro de 1994).” Disponível em http://www.fenoegrupos.com/JPM-Arti-
cle3/index.php?sid=14
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Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica
– Obras antigas com reedição em data muito posterior Meneghini, R. & Campos-de-Carvalho, M. I. (1995). Áreas
Franco, F. de M. (1946). Tratado de educação física dos circunscritas e agrupamentos seqüenciais entre crianças
meninos. Rio de Janeiro: Agir (Originalmente publicado em creches [Resumo]. In Sociedade Brasileira de Psico-
em 1790). logia (org.), XXV Reunião Anual de Psicologia, Resumos
(p. 385). Ribeirão Preto: SBP.
– Obra no prelo
Não deverão ser indicados ano, volume ou número de – Teses ou dissertações
páginas até que o artigo esteja publicado. Respeitada a or- Dias, C. M. A. (1994). Os distúrbios da fronteira de conta-
dem de nomes, é a ultima referência do autor. to: Um estudo teórico em Gestalt-Terapia (Dissertação de
Mestrado). Universidade de Brasília, Brasília.
Conceição, M. I. G. & Silva, M. C. R. (no prelo). Mitos so-
bre a sexualidade do lesado medular. Revista Brasileira Santos, A. C. (2008) A crítica de Sartre ao ego transcen-
de Sexualidade Humana. dental na fenomenologia de Husserl (Dissertação de Mes-
trado em Filosofia). Centro de Ciências Sociais e Huma-
– Autoria institucional nas, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria.
American Psychiatric Association (1995). DSM-IV, Manu-
al Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (4ª ed.
Revisada). Porto Alegre: Artes Médicas 5. Direitos Autorais
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