Trovao Inverso Eugene Peterson

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TROVÃO INVERSO

O Livro do Apocalipse e a Oração Imaginativa


EUGENE H. PETERSON

Título do original em inglês:


Reversed Thunder: The Revelation of John and the Praying Imagination
Copyright © 1988 por Eugene Peterson. Todos os direitos reservados.
Impresso originalmente nos EUA.
Nenhuma parte deste livro pode ser usada ou reproduzida por quaisquer
meios sem a permissão por escrito dos editores, exceto no caso de
pesquisas e citações em trabalhos escritos. Para maior informação,
contate: HarperCoIlins Publishers, 10 East 53 rd Street, New York, NY
10022.
Tradução: Cláudia Ziller Faria
Revisão: Josemar de Souza Pinto e Segisfredo Wanderley
Capa: Ronan Pereira
Editoração eletrônica: Futura
Produção e coordenação editorial: Jorge Wanderley
1ª edição: Maio/2005
CIP — Catalogação na fonte:
P578t Peterson, Eugene H., 1932-
Trovão Inverso: O Livro do Apocalipse e a oração imaginativa / Eugene
H. Peterson; tradução de Cláudia Ziller Faria Rio de Janeiro: Habacuc,
2005.
Tradução de: Reverse thunder: The Revelation of John and the praying
imagination Inclui Bibliografia ISBN 85-89829-06-5
1. Bíblia. N.T. Apocalipse — Crítica, interpretação, etc. I.Título 04-
2989 CDD 228.06
CDU 228.07
28.10.04 03.11.04 008172
Publicado no Brasil com a devida autorização e todos os direitos
reservados por:
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Para Karen Imago Dei

1
Sumário
Apresentação
Escritor consagrado, que se destaca pelo seu estilo agradável e pela
abordagem bastante incomum dos mais diversos temas bíblicos, com mais de
uma dezena de livros de sucesso publicados, alguns dos quais já conquistaram
numerosos leitores no Brasil, Eugene H. Peterson constata que, a despeito dos
benefícios, muitos se recusam a ler o livro de Apocalipse. "Essas pessoas", diz
ele, "rejeitam as histórias de fadas, dizendo que são brutais e enchem a mente
das crianças com ideias que provocam pesadelos, e também expurgam obras
outras que desafiam a imaginação, dizendo que são difíceis demais. [...] Se
não conseguem ler uma página rapidamente, passando por ela os olhos
treinados na leitura dinâmica, desistem e voltam a mergulhar na passividade,
diante dos desenhos animados e comerciais da televisão."
Para "gente que não aguenta mais os programas sem conteúdo", escreveu
ele especialmente esta obra, em que procura "destrinchar" e explicar em
linguagem simples, acessível, agradável e altamente poética o Apocalipse de
João, sinalizando também como ler e entender esse "misterioso" e "estranho"
livro da Bíblia, que considera "uma bênção — obra repleta de imaginação, que
leva o leitor a um mundo de batalhas celestiais entre anjos e bestas, punições
terríveis e livramentos gloriosos, visão caleidoscópica e música cósmica". "O
objetivo de ler Apocalipse não é adquirir mais informações sobre a fé em
Cristo", esclarece Peterson, que fez do último livro da Bíblia uma de suas
leituras favoritas. "Leio Apocalipse [...] para reavivar minha imaginação", diz
ele, citando então Wendell Berry: "A imaginação é nosso caminho para
penetrar na imaginação divina, e nos permite enxergar, com integridade e
santidade, o que antes víamos como disperso; com ordem, o que
considerávamos aleatório."
É nosso desejo que, após a leitura de mais este excelente livro de Eugene
H. Peterson, Trovão Inverso, você possa vir a sentir o mesmo que sente o autor
com relação ao Apocalipse: "Basta ler alguns parágrafos que a adrenalina
começa a percorrer as artérias de minha fé e encho-me de energia, fico
estimulado. [...] O texto me força e capacita a olhar o que se desenrola bem à
minha frente e a ver tudo com novos olhos [...] porque, por meio da linguagem
incomum da visão apocalíptica, chama a imaginação à ação vigorosa."
Os Editores
Prefácio
Fomos treinados para pensar cientificamente e sistematicamente. Isso significa
que tudo precisa ser compreendido em termos de causa e efeito, que cada
frase ou sentença precisa ser detalhadamente analisada e compreendida
cientificamente. Em nossa mentalidade moderna, não há lugar para aquilo que
não pode ser explicado racionalmente, como não há também lugar para aquilo
que não pode, de alguma forma, ser controlado. Quando isso atinge o mundo
religioso, encontramos uma grande dificuldade em aceitar o "mistério". Na
verdade, tudo aquilo que não podemos explicar com as categorias racionais e
científicas, consideramos "místico" e, consequentemente, perigoso; por isso
não deve ser considerado.
A contribuição da cultura moderna para o estudo e a análise racional e
sistemática de um texto foi fundamental para a igreja se libertar da tirania do
obscurantismo da Idade Média. As ferramentas exegéticas e hermenêuticas
ajudaram os cristãos a interpretar as Sagradas Escrituras e a compreenderem
o que seus escritores realmente queriam dizer. Contudo, a consciência racional
e científica moderna criou uma forma de atrofia para a imaginação e,
consequentemente, uma compreensão limitada para a revelação bíblica.
Uma parte considerável das Escrituras é composta de textos poéticos, e
muitos conceitos são apresentados na forma de metáforas. Além da tarefa de
compreendê-los em seu contexto histórico, geográfico, cultural e literário, eles
são um convite ao exercício da imaginação, que é fundamental para a
compreensão dos mistérios divinos.
Quando lemos o salmo 23, um dos mais admirados da Bíblia,
reconhecemos que Davi, para escrevê-lo, teve a sua mente dominada por
imagens que ele conhecia muito bem: pastor, ovelhas, pastos, águas
cristalinas, perigos, cuidado, proteção, inimigos. Este era o cenário no qual ele
havia crescido como pastor de ovelhas. Não foram poucas as vezes que Davi
precisou conduzir seu rebanho em busca de melhores pastos, de águas mais
puras e lugares mais seguros. Também não foram poucas as vezes que Davi
teve de enfrentar feras para proteger seu rebanho de ser mutilado pela fome e
violência desses animais. Essas cenas estavam presentes na mente de Davi e
alimentavam sua imaginação enquanto orava e meditava em Deus. Ler o salmo
23 sem entrar nesse cenário e impedir a mente de ser inundada por imagens
semelhantes às de Davi, seria limitá-lo a uma análise gramatical e perder toda
a sua beleza poética.
Certa vez Jesus convidou seus discípulos a olharem os lírios do campo ou a
considerarem as aves do céu. Convidou-os a um exercício de imaginação. Se
parassem para observar um pouco e deixassem que suas mentes fossem
dominadas por aquele cenário, certamente iriam experimentar uma nova
compreensão do cuidado e amor de Deus. As parábolas de Jesus também são
um convite à imaginação. Em algumas, Ele explica o seu significado; em
outras, deixa que a mente imagine o que Ele estava propondo. É impossível ler
a parábola do filho pródigo sem imaginar as cenas do filho deixando a casa,
tentando alimentar-se com as sobras dos porcos, voltando para casa cheio de
ansiedade e medo e sendo abraçado pelo pai que o recebe de volta. São
histórias que desafiavam e ainda desafiam a imaginação.
O rev. Peterson, além de pastor e excelente exegeta bíblico, é um poeta, e
é com esta alma de poeta que ele nos conduz pelo livro de Apocalipse. Devo
confessar minha enorme dívida de gratidão ao rev. Peterson por este livro.
Desde que o li pela primeira vez, e isso já faz pelo menos uns dez anos, fui
como que redimido no meu relacionamento com o livro de Apocalipse. Eu e
Apocalipse por muito tempo não nos demos muito bem. Na verdade, a tensão
não era entre o livro e eu, mas entre os comentaristas de Apocalipse e eu. As
tentativas de decifrar códigos e enigmas apocalípticos me pareciam muito
bizarras e se moviam de acordo com as tendências políticas, econômicas e
ideológicas.
O rev. Peterson penetra em Apocalipse como um poeta e pastor. Em vez de
se preocupar em decifrar códigos e enigmas, ele deixa que as imagens
apocalípticas envolvam sua mente refazendo o cenário que João contemplava
na ilha de Patmos, fazendo do livro um recurso extraordinário para fortalecer e
sustentar a fé dos crentes em tempos de crise.
O livro de Apocalipse é um desses textos bíblicos que nos convidam à
imaginação. A visão de João na ilha de Patmos é carregada de imagens, e são
essas imagens que o ajudam a compreender a natureza da igreja, o lugar do
poder político representado por Roma, o sentido da oração e da adoração, o
reinado e domínio de Jesus Cristo. João encontra-se exilado. No exílio, o poder
do império romano está dizendo para ele quem é que manda; mas, em sua
visão, ele contempla o Cordeiro de Deus, o Leão da tribo de Judá, que venceu
e pôde então abrir o livro. No exílio, João encontra-se impossibilitado de fazer
algo relevante; mas, em sua visão, ele reconhece que suas orações, bem como
as orações de toda igreja marginalizada e perseguida, têm um poder muito
mais extraordinário do que todo o exército romano. Essas visões alimentam a
imaginação de João e dão sentido à sua vida no exílio.
A falta de imaginação reduz nossa compreensão e limita a abrangência da
verdade. As verdades bíblicas como Reino de Deus, igreja e oração precisam
de recursos que estimulem a imaginação. A falta de imaginação nos capacita a
conceituar o Reino de Deus, mas nos impede de perceber sua majestade e
grandeza. O mesmo podemos dizer da oração ou da igreja.
O apóstolo Paulo, num dos momentos mais críticos de seu ministério, onde
tudo parecia conspirar contra ele, encontra na imaginação um recurso
extraordinário para preservá-lo naquilo para o qual Deus o havia chamado. Ele
diz que, em vez de prestar atenção nas coisas que se viam, preferiu
concentrar-se nas que não se viam; a razão, disse ele, é que as realidades
visíveis passam, mas as invisíveis, não, são eternas. Para ele, havia uma
realidade visível que envolvia perseguições, sofrimentos, perplexidades e toda
sorte de tribulações. Eram fatos concretos e reais. No entanto, havia uma outra
realidade invisível, eterna, que descrevia as ações de Deus em meio ao caos
em que ele vivia. Para ele, esta segunda realidade, a invisível, era a que de
fato importava. Eram realidades eternas que testemunhavam o poder e a ação
da graça de Deus.
Peterson faz isso em Apocalipse. Procura olhar para as realidades
invisíveis, os mistérios de Deus. O império romano demonstrava toda a sua
força e o seu poder dominando, destruindo, intimidando, mas João não se
deixava intimidar por Roma, pois sua mente estava cheia de outras imagens,
as imagens de um Senhor que reina e que permanece assentado num trono,
sendo adorado por todos aqueles que reconhecem seu senhorio. Como diz
Peterson, as visões de João na ilha de Patmos são adrenalina pura para a fé
muitas vezes enfraquecida dos cristãos.
Ricardo Barbosa de Sousa Brasília, outubro de 2004
Introdução
A voz do SENHOR ressoa sobre as águas;
o Deus da glória troveja,
o SENHOR troveja sobre as muitas águas.
SALMO 29:3
E da mão do anjo subiu diante de Deus a fumaça do incenso com as orações dos santos.
Então o anjo pegou o incensário, encheu-o com fogo do altar e lançou-o sobre a terra; e houve
trovões, vozes, relâmpagos e um terremoto.
APOCALIPSE 8:4-5
Oração é...
Trovão inverso, lança que perfura o lado de Cristo,
O mundo de seis dias alterado em uma hora.
GEORGE HERBERT1
Quebro minha rotina de trabalho toda manhã de segunda-feira e caminho ao
longo de riachos que cortam as florestas de Maryland. As primeiras horas da
caminhada são monótonas: estou sempre cansado, sem energia e disperso.
Mas o canto dos pássaros pouco a pouco penetra meus sentidos e o jogo da
luz nas folhas e ásteres dos carvalhos prende minha atenção. Em meio a
inúmeras árvores, um plátano espeta suas raízes em mim e guia meus olhos
em trajetórias verticais e horizontais. Percorro as trilhas na floresta há vários
anos, mas sempre descubro um novo inseto, cujo aspecto de ferocidade e
fragilidade me cativa. Há muitas descobertas a fazer. Formações rochosas que
eu desconhecia trazem para o presente milhões de anos da pré-história. A
criação é imensamente complexa, intrincada, repleta de vida, formas, cores e
aromas! E eu passo por ela cego, surdo e mudo, tateando para encontrar meu
caminho, estupidamente absorto em colocar um pé na frente do outro, vendo
apenas uma fração do que existe. As caminhadas das segundas-feiras me
despertam, pelo menos um pouco, para o que perco na rotina modorrenta.
Algumas vezes, permaneço alerta até a quinta-feira; em certas ocasiões, até o
domingo seguinte. Tenho um amigo que chama esse meu passeio de
"caminhada de Emaús": "Então os olhos deles foram abertos e o
reconheceram..." (Lc 24:31).
A leitura de Apocalipse tem sobre minhas percepções de fé o mesmo efeito
que a caminhada pelas florestas de Maryland tem sobre meus sentidos físicos,
pois sou quase tão cego às maravilhas da palavra da aliança de Cristo quanto
sou à sua criação. [Mas, se o autor do último livro da Bíblia impuser sua
vontade, não estou condenado a viver para sempre de forma tão medíocre.]
Oh, Senhor, estaria eu condenado a viver sempre de forma tão medíocre? —
No Apocalipse, João me diz que não. Basta que eu leia alguns parágrafos de
Apocalipse, e a adrenalina começa a percorrer as artérias de minha fé e encho-
me de energia. Fico estimulado. Torna-se-me impossível continuar apático. O
texto me força e capacita a olhar o que se desenrola bem à minha frente e a
ver tudo com novos olhos. Força porque, sendo o último livro da Bíblia, a
história não pode terminar diferente do que lemos ali. E capacita porque a
linguagem incomum de Apocalipse liberta a minha imaginação.
A despeito dos benefícios óbvios e da importância e atualidade do livro de
Apocalipse, muitos se recusam a ler esse livro, ou, o que é ainda pior, se
negam a considerar a "Revelação de João" nos seus próprios termos. São
essas mesmas pessoas que privam crianças da leitura dos contos de fadas,
1 George Herbert, Major Poets of the Earlier Eighteen Century, editores Barbara Lowalski e Andrew Sabol
(Nova York: Odyssey Press, 1973), p. 231.
dizendo que são brutais e enchem a mente das crianças com ideias que
provocam pesadelos. E também expurgam os livros de Chaucer, afirmando
serem difíceis demais. Evitam exigências à imaginação e ao intelecto. Se não
conseguem ler uma página rapidamente, passando por ela os olhos treinados
na leitura dinâmica, desistem e voltam a mergulhar na passividade, diante dos
desenhos animados e comerciais na televisão.
Mas, para gente que não aguenta mais os programas sem conteúdo,
Apocalipse é uma bênção — obra repleta de imaginação, que leva o leitor a um
mundo de batalhas celestiais entre anjos e bestas, punições terríveis e
livramentos gloriosos, visão caleidoscópica e música cósmica. As crianças
pequenas se sentem instintivamente à vontade nesse mundo, e os adultos,
tornando-se como elas, recuperam o envolvimento essencial nas lutas e nos
conflitos básicos que permeiam a existência moral. Depois, avançam para
redescobrir a sublime adoração e o propósito para o qual Deus os criou.
Max Weber, o grande sociólogo da religião, entendeu que a vida religiosa se
localiza no intervalo entre polos opostos de carisma e rotina, entre o
derramamento espontâneo e empolgado da nova vida no espírito e a
institucionalização persistente da verdade nas responsabilidades cotidianas. A
fé amadurecida coloca o indivíduo entre os polos, não em torno de um deles.
Entretanto, costumamos nos alvoroçar como borboletas em volta do polo do
carisma ou, então, nos congelamos sem pensar em torno da rotina. Quanto a
mim, embora tenha momentos carismáticos ocasionais, sou basicamente filho
da rotina. Levanto-me sempre à mesma hora e sigo caminhos previsíveis
durante o dia. Meus vizinhos não podem, como os vizinhos de Immanuel Kant
em Freiburg, acertar os relógios pela hora que passo pela casa deles; contudo,
também sou previsível. A fidelidade de Deus, que se renova a cada manhã,
encontra-me sobrecarregado. Estou endurecido e não sinto o sopro do Espírito,
meus ouvidos acham-se tão embotados que não escuto a declaração da glória
de Deus feita pelos céus. Sou um cidadão respeitável no meio do mesmo tipo
de gente que Henry Adams via com tristeza à sua volta: "A debilidade de nossa
imaginação é hoje congênita, orgânica, não reage a estimulantes nem a
venenos, e nos encolhemos, como plantas sensíveis, sob o toque de uma visão
ou um espírito."2
A situação está tão grave como Adams via? Existirá alguma revelação
capaz de abrir nossos olhos para a vida abundante da redenção que temos, já
e agora, e completamente, em Cristo? Haverá uma trombeta que nos desperte
para a complexidade da graça, a profundidade da paz e as recorrentes e
inimitáveis mostras de amor que estão por toda parte em torno de nós? Por
mim, e por muitos, o Apocalipse de João fez exatamente isso. Dogmas antigos
são revistos, palavras familiares das Escrituras são repetidas, moralidades
antigas são submetidas a testes intensivos dos quais emergem
resplandecentes e cheias de atrativos, bênçãos maravilhosas mas esquecidas
são recuperadas.
O objetivo de ler Apocalipse não é adquirir mais informações sobre a vida
de fé em Cristo. Lei, profetas, evangelhos e epístolas já apresentaram isso.
Todo o conteúdo desse livro se encontra nos 65 que o precedem. Ele não
acrescenta nada de substância ao que já era conhecido. A verdade dos
evangelhos está completamente revelada em Jesus Cristo. Não há nada de
novo sobre esse assunto. Mas tudo pode ser expresso de uma nova maneira.

2 Henry Adams, Mont St. Michel and Chartes (Garden City, NY: Doubleday & Co., 1959), p. 140.
Leio Apocalipse não para obter mais conhecimento, mas para reavivar minha
imaginação. "A imaginação é nosso caminho para penetrar na imaginação
divina, e nos permite enxergar inteiramente — com integridade e santidade —
o que antes víamos como disperso; com ordem, o que considerávamos
aleatório."3 João usa as palavras como poeta e as combina de uma forma que
a verdade antiga seja captada de maneira nova. Toma o que foi desgastado e
se tornou uma trivialidade pelo uso descuidado e o coloca em movimento
diante de nós em uma "dança de ideias animada e cheia de paixão".4
As florestas de Maryland e o Apocalipse de João mostram-me, sucessivas
vezes, que meu tédio não se deve a criação nem à vida em Cristo. A
familiaridade anestesia a percepção. A pressa acaba com a atenção. A ambição
nubla a inteligência. O egoísmo restringe o alcance. A ansiedade destrói o
apetite. A inveja distrai e impede de enxergar a bondade e a bênção diante de
mim. Mas, então, o ritmo lento da segunda-feira e da visão apocalíptica de
João me faz retornar a meus sentidos, meu corpo e minha alma.
Essa capacidade de despertar-nos é a utilidade mais óbvia e, muitas vezes,
mais ignorada do livro de Apocalipse. Algumas vezes, o óbvio é a coisa mais
difícil de se ver. Assim, enquanto outros escreveram, algumas vezes
extraordinariamente bem, sobre as coisas difíceis de entender no livro de
Apocalipse, lancei-me à tarefa de ver o óbvio e contar o que vi.
Todavia, este não é um trabalho de exegese expositiva. Uma exposição
responsável considera tudo que está no texto, e somente o que está no texto.
Minha contextualização submete-se ao texto original, mas aventuro-me a
caminhos bem diferentes. Omito muito, explico bem pouco. Em certas partes,
detenho-me mais do que deveria em torno de um detalhe que me interessa. Na
verdade, eu me deleitei muito com este estudo. Submeti minha imaginação à
poesia teológica de João, meditei no que vi e ouvi, e escrevi até certo ponto à
maneira pastoral hebraica. Os intérpretes desprezam o fato de João ter sido
pastor e escrito o livro nessa condição.
Dois comentaristas de alto nível, James Moffatt, na Escócia, e Charles
Brutsch, na França, acreditavam firmemente que a preparação necessária para
uma interpretação eficiente de Apocalipse é o ministério pastoral. 5 Trabalho há
30 anos no gabinete em que estou escrevendo. Presumo que existe uma
continuidade de contexto entre o trabalho pastoral de João e o meu próprio
trabalho. O fato de João, como eu, ser um pastor, mais do que qualquer outra
coisa, conquistou minha admiração pelo que ele escreveu e me estimulou a
resgatar a arte dele para meu próprio uso.
Minha questão de abordagem desse texto não foi "O que isso significa?",
mas, sim, "Como isso funciona na comunidade de crentes onde sou o pastor?".
Assumi a posição de que esse livro não requer primeiramente ser decifrado,
como se tivesse sido escrito em código, mas que evoca maravilhas e fornece
metáforas cheias de significados e discernimentos à imaginação quando se
ora.
Mesmo assim, temos que lidar com o problema do significado. Muito da
obra é intrigante. Precisamos de guias sábios e inteligentes que nos
acompanhem pelo terreno muitas vezes intimidador do texto, para não sofrer
percalços sérios. Embora existam professores sábios, infelizmente eles
3 Wendell Berry, Standing by Words (San Francisco: North Point Press, 1983), p. 90.
4 Paul Minear, em uma revisão do comentário de George Ladd sobre Apocalipse, Interpretation (outubro
de 1972), p. 487.
5 Andre Feuillet, The Apocalypse (Staten Island, NY: Alba House, 1965), p. 20.
acabam engolidos pelo número muito maior de tolos que, como guias turísticos
intrometidos, tentam nos fazer contratar seus serviços para que nos ensinem
tudo sobre a "mobília do céu e a temperatura do inferno", 6 o número da besta e
a data do juízo final. G. K. Chesterton comentou que "embora João, o
evangelista, tivesse observado os mais estranhos monstros no meio de sua
visão, não descobriu nenhum tão feroz como alguns dos seus comentadores". 7
Encontrei alguns guias que não considerei, de forma alguma, ferozes, mas,
sim, confiáveis e sábios. Entre esses, três tiveram importância especial. Austin
Farrer, em The Revelation of St. John (Londres: Oxford University Press, 1964) e
A Rebirth of Images (Westminster: Dacre Press, 1949), é exigente, mas entende
a intenção de João melhor do que qualquer outro autor que conheço. Ferrer
penetra nas tarefas de imaginação reverente com resultados magníficos. R. H.
Charles, na obra em dois volumes International Critical Commentary, Revelation
(Edimburgo: T & T Clark, 1920), faz uma análise gramatical, literária e histórica
exaustiva do texto. Não creio que esse trabalho venha, algum dia, a ser
superado. Massyngberge Ford, em "Revelation", na Anchor Bible (Garden City,
NY: Doubleday and Co., 1975), atualiza o assunto, reunindo os resultados dos
debates eruditos relevantes ocorridos depois da descoberta dos manuscritos
do mar Morto. Recomendo aos que me pedem indicação de um comentário
adequado ao estudo em grupo o livro de Michael Wilcock, A Mensagem de
Apocalipse (São Paulo: ABU, 2003). Usei a tradução RSV da Bíblia, a não ser
pelos cânticos, que eu mesmo traduzi.8
Tenho dívida ainda maior com Hans Urs von Balthasar e Charles Williams.
O primeiro, especialmente em seu livro Prayer9, ensinou-me a ser contemplativo
diante do Apocalipse, a orar com o texto. As novelas, a poesia e a crítica de
Williams me mostraram como a imaginação funciona como meio de graça e me
convenceram que é imprescindível exercitar a imaginação para levar uma vida
completa em Cristo. Em uma dessas histórias, o personagem Henry Lee diz:
"Todas as coisas se mantêm unidas pela relação, imagem com imagem,
movimento com movimento. Sem isso, não haveria relação e, portanto, não
existiria verdade. Cabe a nós — especialmente a você e a mim — assumir o
poder da relação. Entende o que quero dizer?" 10 Creio que o entendo, e tenho
feito disso meu objetivo na leitura do livro de Apocalipse: ler, meditar e orar
como se João estivesse diante de mim.

6 Reinhold Niebuhr, The Nature and Destiny of Man (Nova York: Charles Scribner's Sons, 1941), vol 2,
p.294.
7 G. K. Chesterton, Ortodoxia (Porto, Portugal: Livraria Tavares Martins, 1971), 5.ª ed., p. 39.
8 Nesta tradução, foi usada, quando não houver indicação em contrário, a NVI, e os cânticos foram
traduzidos com base na tradução feita para o inglês por Eugene Peterson (N. da T.).
9 Hans Urs von Balthasar, Prayer (Londres: Geoffrey Chapman, 1963).
10 Charles Williams, The Greater Trumps (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publ. Co., 1950), p. 46.
1.
AS FAMOSAS ÚLTIMAS PALAVRAS
Em parábolas abrirei a minha boca,
proferirei enigmas do passado;
o que ouvimos e aprendemos,
o que nossos pais nos contaram.
Não os esconderemos dos nossos filhos;
contaremos à próxima geração
os louváveis feitos do SENHOR, o seu poder
e as maravilhas que fez.
SALMO 78:2-4
Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos o que em breve há
de acontecer. Ele enviou o seu anjo para torná-la conhecida ao seu servo João...
APOCALIPSE 1:1
Quanto mais a pessoa estuda o livro de João, mais convicta se torna de que foi composto
deliberadamente como coda, ou final, para todo o cânon.
NORTHRUP FRYE11
As últimas palavras mais famosas já pronunciadas ou escritas encontram-se no
último livro da Bíblia: o Apocalipse. Nenhum texto pode competir com ele.
Contudo, "mais famosas" não significa "mais admiradas" nem "melhor
compreendidas". Muitos, diante dos dragões sanguinários e dos sons do juízo
final, ficam apenas confusos. Outros, associando-o às vulgaridades e
futilidades com que costumam se deparar, julgam o texto de João desprezível.
No entanto, há sempre alguns que se detêm para olhar e ler movidos pela
curiosidade, mas depois passam a entender e admirar porque descobrem no
Apocalipse a verdade apresentada de forma diferente e convincente. Encontro-
me nesse grupo. As palavras são famosas, para nós, não por serem
sensacionais, estranhas, enigmáticas ou instigantes. Elas são notáveis por
serem a verdade amadurecida e testada por séculos de experiência de vida
real. As últimas palavras do Apocalipse são notáveis, extraordinárias, porque
resumem e concluem de maneira satisfatória o registro bíblico de séculos de
discernimento, conselho e experiência de pessoas a quem Deus escolheu se
revelar e que viveram pela fé no Senhor.
O poder do livro de João para atrair a atenção e, depois, tornar a realidade
de Deus e da vida de fé lógica e consistente para os que a aceitam, deriva da
convergência surpreendente dos ministérios como teólogo, poeta e pastor de
seu autor.12 Os três ministérios apresentam-se entrelaçados na introdução: "Eu,
João, irmão e companheiro de vocês no sofrimento, no Reino e na
perseverança em Jesus, estava na ilha de Patmos por causa da palavra de
Deus e do testemunho de Jesus. No dia do Senhor achei-me no Espírito e ouvi
por trás de mim uma voz forte, como de trombeta, que dizia: 'Escreva num livro
o que você vê e envie a estas sete igrejas' [...] Voltei-me para ver quem falava
comigo..." (Ap 1:9-12).
Ele estava em Patmos, ilha que servia como presídio, "por causa da palavra
de Deus e do testemunho de Jesus". Além de tê-lo colocado onde ele estava, a
palavra (logos) de Deus (theos) havia feito dele quem ele era. Ele não se

11 Northrup Frye, The Great Code (Nova York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1982), p. 199.
12 "João" pode referir-se ao apóstolo, presbítero em Éfeso, ou a outro líder da Igreja do primeiro século,
hoje desconhecido. Estudiosos defendem posições diferentes. A meu ver, isso pouco influencia a
interpretação do livro. Contudo, minha opinião é que o autor de Apocalipse foi o mesmo que escreveu o
evangelho e as cartas.
identificava pela circunstância de prisioneiro, mas pela vocação de teólogo.
Não analisou a política romana para explicar sua dificuldade, mas exercitou seu
conhecimento sobre a palavra e o testemunho de Deus e de Jesus: essa é a
tarefa do teólogo.
A palavra e o testemunho que moldaram a vida dele foram, assim, escritos
em obediência e sob inspiração. "No Espírito", ele recebeu a ordem: "Escreva o
que você vê." Como resultado, temos um livro que recria em nós, leitores,
aquilo que o próprio João vivenciou: isso é o trabalho do poeta.
Ele fez isso em companheirismo consciente tanto com os cristãos quanto
com o Cristo a quem ele conhecia — "irmão e companheiro de vocês no
sofrimento, no Reino e na perseverança em Jesus". Ele compartilhava tudo —
as dificuldades, as bênçãos gloriosas, o discipulado cotidiano: essa é a vida do
pastor.
O teólogo leva Deus a sério como sujeito, pessoa, não como objeto, e
dedica sua vida a pensar e falar sobre Ele para desenvolver conhecimento e
entendimento sobre seu ser e sua ação. O poeta leva a sério as palavras como
símbolos que ligam o visível e o invisível, e assume responsabilidade pelo uso
hábil e acurado delas. O pastor vê com seriedade as pessoas reais como filhos
de Deus, e ouve e fala com elas na perspectiva do eterno, convicto de que a
vida de fé em Deus é o essencial. Tudo o mais é periférico. Nem sempre os
três ministérios convergem em uma única pessoa — mas, quando isso
acontece, o resultado é tremendo. Porque João integra de maneira tão
completa o trabalho de teólogo, poeta e pastor, temos esse documento
brilhante e sempre útil — o Apocalipse.

JOÃO, O TEÓLOGO
Um escriba do quarto século, copiando o livro de Apocalipse, escreveu o
título: "Uma Revelação de João". Depois, em um momento de inspiração,
rabiscou na margem: tou theologou, "o teólogo". O copista seguinte, vendo que
o comentário era apropriado, moveu-o para o centro da página. E tem sido
assim, "João, o Teólogo", desde então.
João é um teólogo com a mente inteiramente saturada com pensamentos
de Deus. A visão do Senhor abalou todo o seu ser. Ele ouve, avalia e transmite
a palavra criadora e salvadora de Deus. Ele é completamente dependente,
orientado, tomado e controlado pelo Senhor. Insiste em afirmar que Deus é
mais do que um desejo nebuloso, mais do que um monossílabo usado para
amaldiçoar, ou abençoar; é um ser capaz do logos, ou seja, do discurso
inteligente. João está repleto de exclamações relacionadas a Deus,
completamente arrebatado pela sua experiência com o Senhor. Contudo, e
sobre tudo, há o logos: Deus revelado é Deus conhecido. Ele não pode ser tão
completamente conhecido que possa se tornar previsível. Deus não pode ser
conhecido até um ponto em que não há nada mais a saber, mas, ainda assim,
pode ser conhecido, racional, não irracionalmente; com método, não
desordenadamente; de modo progressivo, não anárquico.
É de grande importância para os crentes em Cristo que, de tempos em
tempos, uma pessoa inteligente, sadia e madura se coloque no meio deles e
diga "Deus é..." e complete a sentença inteligentemente. Há tendências dentro
de nós e forças à nossa volta incansáveis no esforço de reduzir Deus a um
conjunto de preceitos morais enumeráveis numa lista, ou descritos em um
manual; ou, então, a uma utilidade econômica, uma conveniência política. Ele é
rebaixado a um elemento que pode ser medido, usado, pesado, reunido,
controlado ou sentido. À medida que aceitamos essas interpretações
reducionistas, tédio, depressão e mediocridade penetram em nossa vida.
Ficamos atrofiados, como plantas em um terrário. Mas o carvalho precisa de
solo, sol, chuva e vento.
A vida humana depende de Deus. O teólogo oferece sua mente para
proclamar "Deus" de maneira que Ele não seja reduzido, trivializado ou
banalizado. O que ele fala nos leva a conhecer e adorar a Deus, e, como
consequência, nossa vida não precisa se restringir no que conseguimos
explicar, mas pode ser elevada pela adoração. Há dificuldades tremendas no
pensamento e comunicação da teologia. O teólogo nunca entrega um produto
terminado. "Teologia sistemática" é um paradoxo. Sempre haverá pontos a
explicar, mas até mesmo as migalhas em torno da mesa de um discurso assim
são mais satisfatórias do que refeições completas sobre assuntos inferiores.
A teologia de João carrega um atrativo especial, uma vez que todo o seu
pensamento sobre Deus se desenvolve sob fogo cerrado: "estava na ilha de
Patmos", uma prisão. Ele era um homem de pensamento e imaginação, na
rotina, ou oração, de joelhos, as posturas que caracterizam os melhores
teólogos. Em certos momentos na história, espera-se que eles habitem em
torres de marfim e se dediquem a escrever tratados impenetráveis e graves.
Entretanto, os mais importantes teólogos pensaram e escreveram sobre Deus
no meio do mundo, no centro da ação. Paulo ditou cartas urgentes em uma
cela de prisão; Atanásio, contra mundum, foi perseguido por três imperadores
diferentes e obrigado a se exilar cinco vezes. Agostinho pastoreou pessoas que
enfrentavam a quebra da ordem e o caos do Estado romano; Tomás de Aquino
usou a mente para combater enganos e heresias que, se não tivessem sido
enfrentados, teriam transformado a Europa em selva espiritual e mental.
Calvino foi incansável no desenvolvimento de uma comunidade do povo de
Deus dentro da turba revolucionária de Genebra; Karl Barth arbitrou disputas
trabalhistas e pregou a prisioneiros; Dietrich Bonhoeffer viveu como fugitivo na
Alemanha nazista; e João foi exilado na sólida prisão de Patmos enquanto
seus irmãos em Cristo eram assolados pelos mecanismos estruturais de
opressão do Estado pagão.
Esses teólogos tiveram a tarefa de desenvolver a ordem evangélica no caos
maligno e organizar os elementos da experiência e da razão para serem
entendidos de forma proporcional e coerente: pecado, derrota, desânimo,
oração, sofrimento, perseguição, louvor e política são colocados em relação às
realidades de Deus e Cristo, santidade e cura, céu e inferno, vitória e
julgamento, começo e fim. A façanha deles é que a comunidade que vive pela
fé em Cristo continua a ter esperança e amor inteligentes.
A comunidade cristã precisa de teólogos que nos mantenham pensando
sobre Deus, e não apenas fazendo especulações aleatórias. Nos níveis
profundos de nossa vida, todos precisamos de um Deus a quem possamos
adorar com toda a mente, o coração e a força. A genética secular jamais
conseguirá tirar de nós o gosto pela eternidade. Nossa existência deriva de
Deus e a Ele se destina. João se coloca na linha de frente do grande exército
de teólogos que nos convence, por seu pensamento disciplinado e vigoroso, de
que theos e logos são inseparáveis, e de que vivemos em uma criação, e não
em um hospício.
JOÃO, O POETA
O trabalho teológico de João gerou um poema: "o maior poema produzido
na alvorada da era cristã". 13 Se não for lido como poesia, Apocalipse será
simplesmente incompreensível. A incapacidade, ou recusa, em lidar com João,
como poeta, responde pela maior parte dos erros de leitura, interpretação e
aplicação do livro.
O poeta usa as palavras para criar, não para explicar ou descrever alguma
coisa. Poeta (poētēs) significa "criador". A linguagem poética não se relaciona a
explicações objetivas; ela é a língua da imaginação. Cria uma imagem para nos
convidar a participar da realidade. Após a leitura de um poema, temos mais
experiência, e não mais informações. Não é "um exame do que acontece, mas
uma imersão nos acontecimentos".14 Como o Apocalipse foi escrito por um
teólogo, que também era poeta, não podemos lê-lo como um almanaque no
qual buscamos descobrir o que vai acontecer, nem como uma crônica do
passado.
É particularmente apropriado que um poeta tenha a última palavra na Bíblia.
Ao chegar ao Apocalipse, já recebemos nos livros precedentes a completa
revelação divina. Todas as instruções sobre a salvação e a vida de fé
encontram-se já registradas. Não há perigo de falta de informação. Entretanto,
corre-se o risco de que, devido à familiaridade e ao cansaço, não se preste a
devida atenção aos esplendores que nos cercam em Moisés, Isaías, Ezequiel,
Zacarias, Marcos e Paulo. João toma as palavras conhecidas e as arranja em
ritmos inesperados, e, com isso, nos desperta para vermos a "revelação de
Jesus Cristo" por completo, como se fora pela primeira vez.
Alguns se enchem de cautela extrema quando o assunto é Deus, e
procuram avaliar cada afirmativa e definir todos os termos. Tentam dizer
apenas o que pode ser comprovado pela lógica. Temem ser acusados de falar
asneiras. Outros, cientes da facilidade com que somos levados por fantasias
religiosas, tornam-se excessivamente práticos. Transformam cada verdade a
respeito de Deus em um preceito moral. Mas os poetas são extravagantes e
ousados. Eles desprezam a cautela do filósofo religioso e a seriedade do
moralista ético. João, poeta, usa as palavras para intensificar nosso
relacionamento com Deus. Seu intento não é nos levar a pensar com mais
acurácia, nem nos treinar para melhorar nosso comportamento. Ele procura
nos induzir a ser mais imprudentes na fé, mais alegres nas atitudes — como
crianças que entram no Reino de Deus. Ele tenciona nos sacudir e nos tirar da
letargia, nos levar a viver alertas, e a abrir os olhos para enxergar a sarça
ardente e as carruagens de fogo, a aguçar os ouvidos para as promessas e
mandamentos permanentes de Cristo, a banir o tédio do evangelho, levantar a
cabeça e alargar o coração.
A poetisa Denise Levertov escreveu: "Já que quase toda experiência passa
rápido e tão superficialmente à nossa percepção, nossa maior necessidade não
é re-experimentar (com tanta superficialidade quanto antes), mas saborear
realmente na primeira vez a identidade espontânea e autônoma da essência da
experiência. Minha edição de 1865 do dicionário Webster define transladação
como a transferência de um lugar para outro; ser removido para o céu sem
morrer". Precisamos de uma arte que nos translade. Precisamos de algo que
nos transfira da mais dura realidade para o céu; de outra maneira, "poderemos

13 Austin Farrer, A Rebirth of Images (Westminster: Dacre Press, 1949), p. 6.


14 Denise Levertov, The Poet in the World (Nova York: New Directions Publishing Corp., 1973), p. 239.
vir a morrer sem jamais ter sabido o que é o céu". Precisamos de uma arte que
nos conecte com o céu, não como passivos receptores de informações de lá,
mas que nos coloque no palco da ação divina — vivos." 15
Esse é o trabalho de João: ele toma as coisas antigas, comuns, da criação
e salvação, do Pai, do Filho e do Espírito, do mundo, da carne e do diabo que
tomamos como certas, e nos força a olhar para elas e experimentar de novo
(ou, quem sabe, pela primeira vez) sua realidade.
Já no final de sua vida, em 1973, W. H. Auden afirmou que se exige de um
poema "duas coisas: primeiramente, tem que ser um objeto verbal bem
construído que honre a linguagem em que foi escrito; em segundo lugar,
precisa fazer afirmações significativas sobre a realidade comum a todos,
embora vista sob uma perspectiva única". 16 A obra teológica de João atende às
duas exigências. É bem construída: a estrutura complexa foi elaborada com
cuidado e provoca espanto e admiração em todos que a estudam. Além disso,
toma "a realidade comum a todos", o evangelho de Jesus Cristo, e a apresenta
sob a "perspectiva única" do fim, com completa consideração de todos os
detalhes e etapas da salvação.
João entoa os cânticos, representa as visões e arranja os sons e significados
das palavras com ritmo e arte. Justapõe imagens de forma surpreendente, e
vemos e ouvimos o que sempre esteve por perto e que teríamos percebido se
tivéssemos parado e prestado atenção. Ele desperta nossa mente, provoca
nossas emoções, envolve nossos sentidos.

JOÃO, O PASTOR
A paixão de João por pensar e falar sobre Deus e o seu talento para nos
submeter ao poder da linguagem fazem as imagens renascerem em nós,
ligando-nos a uma realidade alheia e superior a nós. João usa sua teologia e
sua poesia em um contexto específico: a comunidade de pessoas que vivem
pela fé em Deus. O conteúdo e a forma do que ele fala surgem entre pessoas
que ousam viver com base na graça invisível, aceitam o perdão, acreditam nas
promessas e oram. Decidem, a cada dia, mesmo correndo risco, viver pela fé,
e não pelas obras; em esperança, e não em desespero; em amor, e não em
ódio. E são tentadas diariamente a desistir. João é o pastor dessa comunidade,
ou, como ele mesmo diz, "irmão e companheiro...".
Gente que vive pela fé tem a sensação aguda de viver num hiato. Cremos
que Deus é o início de tudo e que estará no final de toda vida — segundo o
conhecido epigrama de João, ele é "o Alfa e o Ômega" (Apocalipse 1:8).
Costumamos assumir que o início foi bom ("E Deus viu tudo o que havia feito, e
tudo havia ficado muito bom"). Também há concordância quanto a um final bom
("Vi novos céus e nova terra"). Isso deveria garantir que tudo que está no meio
será bom, mas não é assim. Pelo menos não da forma como gostaríamos.
Sempre nos surpreendemos, pois esperamos bondade ininterrupta, mas temos
rejeição pelos pais, perseguição pelo governo, divórcio, discriminação por parte
da sociedade, mágoa causada por desinteresse alheio. Tudo isso acontece em
uma vida que foi criada muito boa e que terminará segundo o plano de Deus.
Entre o começo que cremos, mas não lembramos, e o final que esperamos,
mas que não conseguimos imaginar, existem decepções, contradições,
absurdos sem explicações, paradoxos — numa inversão de expectativas em
15 Idem, p. 94.
16 W. H. Auden, "The Poems of Joseph Brodsky", The New York Review of Books (5 de abril de 1973), p.
10.
cada um deles.
O pastor se especializa em acompanhar os indivíduos de fé nesse hiato,
enfrentando os detalhes sombrios, as rotinas desprovidas de sentido e a
maldade escarnecedora, enquanto persiste, o tempo todo, em repetir que o
hiato enigmático tem conexão com o início esplêndido e o final glorioso. Lutero
usava um teste ácido para examinar o pastor cristão: "Ele conhece a morte e o
diabo? Ou tudo é doçura e luz?"17
Experiência análoga ocorre com a leitura de um romance. O leitor sabe,
desde o primeiro capítulo, que haverá um final. Um dos pontos positivos de
pegar um livro é saber que ele vai acabar. Enquanto lemos, muitas vezes
ficamos confusos, às vezes há suspense, costumamos errar nas expectativas e
nos enganar na avaliação de um personagem. Mas não abandonamos a obra
só por não entender, não concordar ou não sentir satisfação. Presumimos que
haja significado, conexão e propósito mesmo quando não o conhecemos.
Acreditamos que o último capítulo mostrará o significado que percorreu toda a
história. Cremos que haverá um final satisfatório, e não uma conclusão banal.
Fazia parte da vocação pastoral de João reforçar, em meio ao caos do
primeiro século da era cristã, esse sentido de conexão. Ele enxergou padrão e
propósito na confusão incômoda e ruidosa de bem e mal, bênção e maldição,
descanso e conflito. Ouviu ritmos, encontrou arranjos e proporções. Transmitiu
uma arrebatadora "sensação do fim".18 Somos guiados não apenas para um
fim, mas para um alvo planejado e alcançado. O apóstolo fala sobre isso de
maneira que as pessoas que se encontram no hiato adquirem convicção
interior do que significa alguma coisa boa em Deus.
João não se preocupa com céu e inferno como coisas em si mesmas. Ele
não se interessa por julgamento e bênçãos que não afetem as pessoas que
pastoreia. Não especula nem teoriza. Toda palavra, número, visão e cântico
são postos em disponibilidade imediata nas sete pequenas congregações que
ele tem sob sua responsabilidade. Ele acompanha as pessoas nas
experiências de adoração e apostasia, martírio e testemunho, amor e vingança,
e desenvolve as conexões que estabelecem a coerência entre o início e o fim.
Essas pessoas, atendidas por tal pastor, adquirem cada vez mais certeza de
que se incluem no plano de Deus e, portanto, são capazes de perseverar
mesmo quando não conseguem entender o significado dos acontecimentos.
Concorda-se, em geral, que o Apocalipse trata de escatologia, ou seja, das
"últimas coisas". O que não se costuma entender é que toda escatologia é
colocada a serviço do pastor. Entre todas as perspectivas teológicas, a
escatologia é a mais pastoral, pois mostra que o fim influencia o presente de
tantas maneiras que a verdade do evangelho pode ser constatada nesta vida,
no "hiato". A escatologia mostra que os crentes não se encontram "no meio-dia
da história, mas no raiar de um novo dia, quando noite e dia, as coisas
passadas e as coisas por vir, convergem umas para as outras". 19
Apocalipse é denso de significado — há camadas e mais camadas de
verdade a serem exploradas. Praticamente todas as imagens usadas por João
carregam significados múltiplos. Há um quê de natureza selvagem

17 Citado por Norman O. Brown, Vida Contra Morte (Petrópolis: Vozes, 1972), 2.a ed., p. 246.
18 Título de um estudo em que Frank Kermode trata de exemplos de textos apocalípticos na literatura
moderna e das evidências que apresentam sobre exigências humanas para uma vida rumo a um final
planejado, e não simplesmente aleatório (The Sense of an Ending [Nova York: Oxford University Press,
1967]).
19 Jurgen Moltmann, The Theology of Hope (Londres: SCM Press, 1967), p. 31.
multifacetada neste "magnífico poema de imaginação vívida, no qual o mundo
que espera os que crêem em Jesus é o único mundo por vir". 20 Já que nenhum
indivíduo nem nenhuma geração pode esperar ter mais do que uma parte da
verdade complexa do Apocalipse, é importante que os leitores cultivem, desde
o início, a cortesia para com os outros, para que as diferenças nas descobertas
não resultem em antagonismos dogmáticos. Uma boa maneira de começar
bem é ser cortês com o autor, respeitando as preocupações fundamentais que
vemos em sua vida, e no Apocalipse: seu assunto é Deus (não o esoterismo
criptográfico), e seu contexto é pastoral (não entretenimento alarmista).
Aceitando João como teólogo, poeta e pastor, podemos errar sobre detalhes,
mas continuar certos em nossa reação total à sua obra. Cristãos que respeitam
essas condições enfatizarão aspectos diferentes da verdade e descobrirão
aspectos não previstos por leitores que os precederam, embora mantenham
vínculos de interpretação e resposta com todos que, com fé, lêem com o
propósito de encetar uma carreira de fé.

20 Farrer, Rebirth, p. 6.
2.
A ÚLTIMA PALAVRA SOBRE AS ESCRITURAS
APOCALIPSE 1:1-11
Como é feliz aquele
que não segue o conselho dos ímpios,
não imita a conduta dos pecadores,
nem se assenta na roda dos zombadores!
Ao contrário, sua satisfação está na lei do SENHOR,
e nessa lei medita dia e noite.
SALMO 1:1-2
Feliz aquele que lê as palavras desta profecia e felizes aqueles que ouvem e guardam o que
nela está escrito, porque o tempo está próximo.
APOCALIPSE 1:3
E, da Cidade de onde viemos como peregrinos, chegaram cartas para nós: elas são as
Escrituras.
SANTO AGOSTINHO21
João, primeiro, viu a palavra de Deus e o "testemunho de Jesus Cristo" (Ap
1:2), e só depois escreveu (Ap 1:3). E, ainda assim, não ficou só na forma
escrita muito tempo; logo retornou ao mundo sensorial: "Feliz aquele que lê as
palavras desta profecia e felizes aqueles que ouvem" (Ap 1:3). O livro começa
e termina com visão e audição (Ap 22:8). E o escrito estabelece um elo entre
as duas experiências sensoriais.
Apocalipse deixa explícita a verdade de toda a Escritura, a palavra de Deus
pronunciada e ouvida, ou apresentada e vista. O cristão crê que Deus fala, e,
como resultado, todas as coisas são trazidas à existência: natural e
sobrenatural; toda a criação e os relacionamentos da aliança. E, em algum
momento, a Escritura.
A palavra de Deus cria o cosmo. A palavra de Deus promove o perdão.
"Pois ele falou, e tudo se fez; ele ordenou, e tudo surgiu" (Sl 33:9). Deus tem a
primeira palavra. E também a última. E entre os dois extremos todas as
palavras faladas vêm por um vocabulário e uma gramática que também são
dons de Deus.
O Evangelho de João fala sobre Jesus Cristo: a "Palavra tornou-se carne".
A narrativa insiste e demonstra que a "palavra" não é uma abstração filosófica,
nem tinta sobre pergaminho, mas, sim, uma ocorrência histórica. A Epístola de
João também enfatiza a palavra física, sensorial e histórica: "... o que ouvimos,
o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos
apalparam — isto proclamamos a respeito da Palavra da vida" (1 Jo 1:1). A
palavra de Deus foi pronunciada antes de ser escrita. Pessoas viram, tocaram
e ouviram Jesus antes de escrever sobre Ele. O que caracteriza a "palavra de
Deus", acima de qualquer outra coisa, é ser falada, ter uma criatividade viva e
dinâmica.
A palavra de Deus escrita (scriptura) é maravilhosa, mas é também uma
bênção que traz vantagens e desvantagens. Vantagens porque cada nova
geração de cristãos tem acesso ao fato de que Deus fala, conhece a maneira
como Ele se expressa e os resultados decorrentes dessa manifestação. A
desvantagem está quando, no momento em que as palavras são escritas,
corre-se o risco de perder a ressonância viva da fala e reduzir-se a objeto de

21 St. Agostinho, citado em John Wilkinson, Interpretation and Community (Londres: Macmillan & Co.,
1963), p. 56.
contemplação, estudo, interpretação, sem qualquer envolvimento pessoal. No
momento da escrita, as palavras se separam da voz que as pronunciou e,
portanto, são despersonalizadas. Contudo, a essência delas é pessoal.
As palavras são o meio utilizado por alguém para compartilhar o que há em
seu íntimo. As palavras unem espíritos. Reduzidas à escrita e deixadas de
lado, cessam de cumprir o objetivo de sua existência — criar e manter
relacionamentos pessoais amorosos e inteligentes. A palavra falada e ouvida
une falante e ouvinte em um relacionamento completo; escrita e lida, se divide
em fragmentos gramaticais, e é necessário reconstituí-la com a imaginação
para que realize sua tarefa original. O leitor pode se recusar a envolver seus
sentidos, o que não acontece com o ouvinte ou o espectador. Deixados de
lado, os sentidos se atrofiam, e a palavra escrita se torna cada vez mais
abstrata. Alheias de quem as fala, as palavras são belas como as conchas,
interessantes como os esqueletos e seu estudo tão proveitoso quanto o estudo
dos fósseis. Mas, separado do ato de ouvir e responder, as palavras não
funcionam de acordo com a intenção da pessoa que fala, pois a linguagem é,
essencialmente, o meio pelo qual uma pessoa atrai outra a um relacionamento
e à participação. Deus fala, declara que cria e salva, para que possamos crer,
ou seja, participar confiantemente do processo de criação e salvação que ele
está operando em nós. A revelação não visa informar, mas, sim, nos trazer a
um envolvimento com Deus.
A história está repleta de casos nos quais as palavras, após serem escritas,
perderam seu poder e se transformaram em substantivos classificados, verbos
analisados, adjetivos admirados e advérbios discutidos. A Bíblia não escapou a
esse destino. Algumas das discórdias mais contundentes de Jesus se deram
contra escribas e fariseus, indivíduos do primeiro século que conheciam muito
bem as palavras das Escrituras, mas eram incapazes de ouvir a voz de Deus.
Possuíam conhecimento amplo e meticuloso do texto. Eles reverenciavam as
Escrituras. Eles as memorizavam. Usavam-nas para regular cada detalhe da
vida. Por que, então, Jesus os censurou tão duramente? — Porque eles
estudavam a Palavra, mas não a ouviam! Para eles, as Escrituras haviam se
tornado um fim em si mesmas; deixaram de ser um meio de ouvir a Deus.
Separaram o livro do ato divino de declaração de mandamentos de aliança e
promessas de boas novas. Isolaram o texto do ato humano de ouvir que leva à
fé, ao companheirismo e ao amor. A tinta havia se transformado em fluido de
embalsamamento.
Apocalipse é a declaração enfática do Espírito no sentido de que as
palavras escritas só cumprem sua função quando as ouvimos em um ato
pessoal de vontade. Essa palavra final da Bíblia é, portanto,
fundamentalmente, obra de imaginação — o ato da mente e da emoção pelo
qual letras sobre o papel se convertem em vozes e visões dentro de nós.
"Einstein afirmou, certa vez, que a imaginação é mais importante do que a
inteligência."22 Isso significa que não pode haver pleno uso da inteligência sem
imaginação. A imaginação transforma marcas no papel em imagens e sons que
nos envolvem como pessoas vivas que ouvem, vêem e têm contato com a
realidade. A famosa bênção que se encontra na primeira página de Apocalipse
(1:3) não se destina aos que lêem em busca de informação ou de
conhecimento. Ela se aplica aos que lêem em voz alta e aos que ouvem,
reconstituindo assim as palavras como realidades orais e visuais que nos

22 R. E. Browne, Ministry of the Word (Philadelphia: Fortress Press, 1976), p. 115.


impulsionam a um encontro pessoal com o Deus pessoal. "Qualquer coisa
pode nos levar a olhar", disse o poeta Archibald MacLeish, "mas só a arte pode
nos levar a ver."23 Apocalipse faz ver isso: "Voltei-me para ver..." (1:12).
A linguagem é a aptidão distintiva do ser humano. Por meio das palavras,
declaramos quem somos. A forma como as usamos é o aspecto mais
significativo de nosso ser. Se as aplicamos mal, nossa vida sai prejudicada. A
forma como entendemos a nós mesmos e aquilo em que nos tornamos por
meio das palavras deriva de como entendemos Deus e sua manifestação a
nós. A característica mais distintiva da fé cristã é o respeito pela palavra: antes
de tudo, a de Deus; e, depois, as nossas: em oração, confissão e testemunho.
Os ataques à fé que mais devemos temer são os que vão direto à jugular da
palavra e a torcem, negam e lançam dúvidas sobre ela. É impressionante a
frequência com que os salmistas denunciavam e pediam ajuda contra os lábios
mentirosos e as línguas aduladoras. Eles receavam muito mais os mentirosos
do que assassinos, adúlteros, agiotas ou os povos inimigos. Deus havia se
revelado a eles em palavra, e foi esse também o meio que usaram para dar
forma à resposta. Quando as palavras são destruídas, o dano chega ao mais
profundo de nosso ser.
O ataque satânico mais sutil e mais constante aos que andam com Deus
em nosso meio se dá por meio da subversão da Palavra. Há uma separação
discreta entre a imaginação e a Palavra de Deus, e passamos a considerá-la
uma maravilhosa obra impressa, ao mesmo tempo que vai se apagando toda
percepção de que ela foi pronunciada pelo Deus vivo. Essa estratégia maligna
tem alcançado enorme sucesso: milhões de pessoas usam a Bíblia, em que
acreditam com devoção para condenar aqueles de quem discordam. Outros
milhões a lêem todos os dias e dez minutos depois dirigem ao cônjuge, aos
vizinhos, aos filhos e aos colegas de trabalho palavras de desprezo, irritação,
manipulação e engano. Como isso pode acontecer? Como é possível que
gente que dá tanta atenção à palavra viva de Deus não seja afetada por ela? O
problema não é falta de fé. Há carência de imaginação: o inimigo subverteu a
palavra proclamada em palavra impressa. No momento em que isso acontece,
a imaginação se atrofia e as palavras vivas se tornam termos vazios, desenhos
nos livros. Não faz diferença acreditar que elas são verdade — se não a vemos
como a voz do Espírito, a ser ouvida com fé — e, assim, ninguém responde.
Elas passam pela mente do leitor como a água que escorre pelo cano.
Dentro da comunidade cristã, três grupos são convocados a enfrentar os
ataques contra a Palavra de Deus: professores, para nos ensinar a verdade e
evitar mal-entendidos; apologistas, para rebater os argumentos dos críticos a
fim de que a Palavra de Deus não seja desacreditada; e mestres da
imaginação, para nos manter despertos e conscientes diante do Deus vivo que
fala conosco por meio desses escritos e nos lembrar de que estamos vivos e
que alguém se dirige a nós. João é membro proeminente dos três grupos. Em
Apocalipse, ele exercita os cinco sentidos, a mente e as emoções, estimulando
a imaginação a experimentar real, pessoal e completamente aquilo que corre o
risco de receber reconhecimento apenas intelectual.
Dos cinco sentidos, a audição é central no Apocalipse. "Aquele que tem
ouvidos, ouça!" A mensagem proclamada pressupõe a habilidade de ouvir.
"Aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça." Ouvir o quê? O que ouvir não é o
que primeiro importa. Mas estabelecer a ressonância à voz de Deus no ouvido

23 Citado em George Sheehan, Running and Being (Nova York: Simon & Schuster, , p. 248.
humano. A voz de Deus e o ouvido humano estarem conectados. A visão se
une, então, à audição.
O testemunho do primeiro capítulo, "Voltei-me para ver quem falava..." (Ap
1:12), coloca os dois sentidos funcionando concomitantemente. Ouvidos e
olhos interagem e se completam. Sons de vozes, trovões e cânticos enchem o
ar. E silêncio. Os olhos são agraciados com vários elementos: bestas coloridas
e formas extravagantes; Cristo, alçado como uma estátua magnífica; pedras
preciosas e mulheres de aspectos diferentes. Evidências escritas do conteúdo
sensorial que requer participação dos olhos e dos ouvidos são recorrentes
praticamente em cada linha do livro.
O apelo ao tato vem por meio dos números: as séries de sete, as
combinações de quatro e três, os seis enigmáticos, as miríades e as multidões.
Números são extensão do tato. A partir da contagem dos dedos (dígitos), o
número se torna uma forma de estender esse sentido. "Baudelaire possuía
uma verdadeira intuição dos números como se fosse uma mão ou um sistema
nervoso dotado de tato para inter-relacionar unidades separadas. [...] Números,
vale dizer, não são apenas auditivos e ressonantes, como a palavra falada,
mas se originam do sentido do tato, do qual é uma extensão." 24
O número direciona a imaginação para a percepção da totalidade. Depois
que tudo for numerado e contado, tudo será conhecido. O próprio ato de contar
desenvolve a compreensão do contexto, ou ordem. Quando o que está diante
de nós é contado, temos uma visão da totalidade.
Johannes Pederson, em sua obra magistral sobre a mente hebraica,
mostrou que a linguagem bíblica estava sempre agindo na direção do que ele
chamou de "formação da totalidade". 25 Os hebreus preferiam analisar a
realidade como um todo integrado a pensar nela como unidades segmentadas.
Para isso, faziam e refaziam arranjos, e, em cada novo arranjo, a sensação de
totalidade se intensificava. João, o mais hebreu de todos os autores do Novo
Testamento, usou os números assim, formando "todos" em torno de núcleos. A
ideia da totalidade agindo através dos detalhes está constantemente presente,
e nos envolve com a linguagem numérica.
Assim, os números exercem influência poderosa sobre nós, mesmo quando
não entendemos as suas referências simbólicas, ou não temos uma
compreensão correta, porque despertam o nosso tato, imaginação e
sentimentos. Um exemplo é a profusão de números em Apocalipse 7. A
incursão violenta do mal tem início com a abertura dos selos no capítulo 6. O
ataque violento do mal não é contido por argumentos. Ele é vencido por uma
adequada e vitoriosa sensação de magnitude, revelada por números elevados
ao quadrado e multiplicado (144.000), e a "grande multidão que ninguém podia
contar" (Ap 7). Esses números despertam o tato, intensificando a percepção da
proteção de Deus e de sua vitória sobre o mal assolador. Esses números
transmitem a sensação do desenvolvimento da totalidade no meio da
fragmentação.
O olfato se associa à oração. O incensário que representa as orações da
Igreja pode ser visto, e seu aroma pode ser sentido (Ap 8:3-4). De todos os
sentidos dos seres humanos, o olfato é o mais sutil e delicado. Além disso, é
emblemático, pois envolve todo o aspecto sensorial humano de forma mais
abrangente que os outros sentidos. O sentido do olfato é o sensor da oração. A
24 Marshall McLuhan, Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem (São Paulo: Cultrix, 1971,
3.ª ed.), p. 129-130.
25 Johannes Pedersen, Israel, Its Life and Culture (Londres: Oxford University Press, 1926), 1:113.
oração não pode ser separada das outras áreas da vida. Sendo invisível e
envolvente, ela penetra e permeia tudo.
A mensagem à sétima igreja introduz o paladar, pois a congregação morna
de Laodicéia será vomitada porque perdeu o sabor (Ap 3:16). Além disso, o
paladar é lembrado no pequeno rolo que era doce na boca, mas amargo no
ventre (Ap 10:10), na forte mistura de julgamento bebida pela prostituta de
Babilônia (Ap 18:6) e no banquete das bodas do Cordeiro, onde os fiéis irão
celebrar (19:9).
Essas observações não minimizam a importância do entendimento racional
na leitura das Escrituras em geral e de Apocalipse em particular. O próprio livro
traz dois chamados muito conhecidos ao raciocínio: "... Aquele que tem
entendimento calcule o número da besta..." (Ap 13:18) e "Aqui se requer mente
sábia..." (Ap 17:9). Contudo, a imaginação sensorial ocupa posição de
destaque, e, embora o livro tenha sido usado por muitos como terreno de
exercício de aptidões literárias, seu impacto mais importante no decorrer dos
séculos tem sido estimular a imaginação sintetizadora em detrimento da razão
analítica. Os cristãos não extraíram novas ideias de Apocalipse. Eles tiveram a
imaginação estimulada e tornaram-se responsivos ao tom e nuanças da
Palavra de Deus.26 A imaginação sensorial é como um sacramento: estabelece
conexões entre o que se sente e aquilo em que se crê. O conselho de Susan
Sontag com respeito à literatura em geral é exatamente o que Apocalipse
fornece para a leitura da palavra de Deus escrita: "Mais importante, agora, é
recuperar nossos sentidos. Precisamos aprender a ver, ouvir e sentir mais." 27
Os sentidos envolvem o ser total, não apenas o intelecto, na reação ao que
Deus está falando: "Feliz aquele que lê as palavras desta profecia e felizes
aqueles que ouvem." E vai além:"... que ouvem e guardam o que nela está
escrito." Para praticar, é necessário ler, ouvir, tocar, cheirar e provar as
Escrituras. O texto não foi escrito para distrair, divertir, educar, revelar segredos
do futuro nem apresentar um enigma que intriga devotos que o estudam
superficialmente.
A palavra guardar (tēreo) não significa colocar em um cofre. O sentido é
manter-se por perto, usar, colocar em ação todos os dias. A intenção das
Escrituras é sempre atrair o corpo e a alma à participação. Comparando a
Bíblia com outros escritos da literatura da Antiguidade, Erich Auerbach
escreveu: "As histórias das Escrituras, ao contrário das de Homero, não
procuram nos conquistar, não nos cortejam para nos agradar e encantar —
elas têm como objetivo nos submeter, e, se nos recusarmos, seremos
rebeldes."28 É uma ironia trágica, mas o livro da Bíblia que mais enfatiza isso,
que coloca pontos de exclamação em torno disso, tem sido tratado como um
jogo de palavras cruzadas.
O Apocalipse nos move eficientemente em reação viva às Escrituras. E não
há como não ver que este livro afirma ser a palavra divina dirigida a nós, não
palavras humanas sobre Deus. Talvez o erro mais comum na leitura da Bíblia
seja considerá-la depoimentos escritos de várias pessoas, na história, de suas
ideias ou suas experiências com Deus. E este é um erro fatal.
Qualquer um que leia sem cuidado ou conhecimento e suponha estar diante
do pensamento de poetas inspirados e de feitos de santos corajosos leva um

26 E. H. Peterson, "McLuhan and the Apocalypse", Theology Today, 26:2 (julho de 1969).
27 Susan Sontag, Against Interpretation (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1986), p. 14.
28 Erich Auerbach, Mimesis (Princeton: Princeton University Press, 1968), p. 15.
susto ao se deparar com Apocalipse. João torna impossível persistir no
descuido e na ignorância. A primeira sentença do livro anuncia: "Revelação de
Jesus Cristo, que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos [...] enviou o seu
anjo para torná-la conhecida ao seu servo João." Ele apregoa aquilo que a
Bíblia toda alega: tem origem em Deus ("que Deus lhe deu"), versa sobre o
Senhor ("revelação de Jesus Cristo"), que providencia o meio para que a
mensagem seja recebida ("enviou o seu anjo"). Origem, conteúdo e meio
encontram-se em Deus. As Escrituras são aquilo que vem de Deus para os
seres humanos. Ele revela sua mente, sua criação e mostra sua salvação a
nós. É a palavra de Deus.
João só escreve depois de ouvir e ver o que Deus fala e mostra: "Escreva
num livro o que você vê..." (Ap 1:11). Origem, conteúdo e meio divinos seguem
até a conclusão: "Eu, Jesus, enviei o meu anjo para dar a vocês este
testemunho concernente às igrejas..." (Ap 22:16).
A tarefa do autor não inclui explicar como isso acontece. O caminho da
inspiração toma lugar — o processo pelo qual a mensagem divina é escrita nas
várias línguas humanas, algumas vezes com falhas gramaticais, e usada por
Deus, o Espírito, para falar pessoalmente a nós. Esse mistério foge à
compreensão. Indiscutível, entretanto, é que indivíduos de fé acreditam que
isso acontece e alegam sentir os efeitos. Outros podem decidir não acreditar
nos testemunhos e considerar que tanto escritores e leitores das Escrituras são
tolos supersticiosos ou charlatães destituídos de escrúpulos. Com essa
conclusão, não desperdiçam seu tempo e inteligência com a leitura bíblica. A
Bíblia nunca foi considerada uma grande obra literária. Austin Farrer observou
que "a doutrina que prevalece sobre a inspiração das Escrituras determina em
grande parte o uso que os homens fazem delas. No tempo em que se defendia
a inspiração verbal, os homens recebiam sustento para a alma e sabiam que
estavam alimentados. O entendimento liberal alega ter aberto o esquife
escritural, mas aparentemente não há nada em seu interior — pelo menos,
nada que toque as pessoas comuns para levá-las a buscar alimento por meio
da árida disciplina da leitura espiritual".29
João dá ao que escreve o nome de revelação, que é apokalupsis em grego.
O termo tornou-se o título do livro e descrição de toda a Escritura. "Apocalipse
significa revelação do que ocorreu na Encarnação, escondido em uma humilde
forma."30 A palavra significa literalmente "descobrir". Imagine que há uma
panela no fogo. Alguém entra em casa e sente o aroma delicioso e convidativo
que vem da cozinha. Pelo cheiro, dá para adivinhar parte dos ingredientes.
Pergunta aos que estão em casa o que há dentro da panela, e surgem várias
opiniões. A cozinheira não está por perto, de modo que por fim todos resolvem
ir até a cozinha. Alguém levanta a tampa, e todos se juntam para espiar o que
há lá dentro. O alimento e todos os ingredientes ficam à vista: Apocalipse! O
que se adivinhava, agora é conhecido em detalhes e se transforma em
alimento, refeição que satisfaz.
De uma forma ou de outra, toda a Bíblia é Apocalipse, ou revelação. Fora
das Escrituras, há adivinhações sobre o relacionamento entre Deus e suas
criaturas, suposições sobre a vontade dele, conjeturas e especulações sobre
sua natureza e forma de agir. Mas nas páginas do Texto Sagrado encontram-se
os atos de salvação, providência e bênção. A palavra de Deus traz a criação e

29 Austin Farrer, The Glass of Vision (Londres: Dacre Press, 1948), p. 36.
30 Von Balthasar, Prayer, p. 224.
os seres humanos à existência. Vemos nela Deus construindo uma ponte sobre
o abismo do pecado e estabelecendo a paz. Nós o encontramos disciplinando
e alimentando pessoas rebeldes e recalcitrantes, para que pudessem sentir o
amor e desenvolver a maturidade. Ele penetra em nossa história sob a forma
de servo para podermos participar livremente da redenção que está operando
em nós. A história de Israel, a pessoa de Jesus Cristo e a comunidade
pentecostal de fé são ingredientes revelados ao nosso entendimento,
colocados à nossa disposição para usarmos como pessoas que desejam crer e
viver pela fé em Deus.
Profecia faz paralelo com revelação. A revelação anunciada no versículo 1 é
descrita como profecia no 3. Embora paralelas, há diferença de nuança entre
as palavras. Uma enfatiza a visão, enquanto a outra, a audição. Deus age entre
nós, e vemos o que Ele fez (revelação); Ele fala conosco, e ouvimos o que Ele
disse (profecia).
Um erro comum sobre a profecia, em especial a de Apocalipse, é supor que
ela significa previsão. Contudo, a Bíblia não usa a palavra assim. O profeta não
é leitor da sorte; é uma pessoa que declara: "Assim diz o Senhor." Repete o
que Deus está falando. Traz a palavra dele para o mundo presente, insistindo
em que seja ouvida aqui e agora. Revela o que o Senhor está dizendo agora,
não o que falou ontem, nem o que dirá amanhã. Não apresenta uma palavra
passada para ser analisada e deixada de lado. Nem a futura, que pode ser
distorcida por fantasia e escapismo. É um discurso pessoal, para o presente:
"... porque o tempo está próximo" (Ap 1:3; 22:10). "Próximo" significa "à mão".
Não está longe, no futuro, mas, sim, imediatamente à nossa frente. Apenas a
falta de fé, ignorância e hesitação nos separam dele. Jesus também declarou a
iminência da palavra profética quando pregou que "o Reino de Deus está
próximo" (Mc 1:15). João e Jesus usaram a mesma palavra também em sua
raiz (eggus/eggizein).31 A profecia elimina a distância entre o momento em que
Deus fala e aquele em que escuto. Transformá-la em previsão implica
procrastinar, colocar distância entre nós e sua aplicação, deixando para lidar
com ela em uma data futura. A revelação do "que em breve há de acontecer"
(Ap 1:1) significa exatamente breve — assim que nossos corações estiverem
prontos para responder, os ouvidos para receber e os olhos para perceber.
Está tudo diante de nós. A salvação de Deus está completa, pronta para a
recebermos. "Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir
a porta, entrarei e cearei com ele, e ele comigo" (Ap 3:20). Aquele que está,
diante da porta reúne o passado e o futuro em um agora eterno e imediato:
aquele "que é, que era e que há de vir" (Ap 1:4,8).
Há, com certeza, referências ao passado e implicações para o futuro, mas a
ênfase predominante da palavra profética é no agora. Algumas apresentam
elementos de predição (também em Apocalipse), mas sempre a serviço de uma
mensagem atual. A Bíblia adverte contra o interesse neurótico no futuro e na
fantasia escapista com ele.32 Proíbe a interação com pessoas que fazem
predições (Dt 18:14-15). Isso tudo está muito claro, e todos sabem, mas
mesmo assim existem pessoas que insistem em fazer do último livro da Bíblia
uma exceção e o lêem como se ele fosse todo composto de previsões.
Contudo, o Apocalipse não foge à regra bíblica; antes, a enfatiza: Deus fala
conosco agora. Revela sua vontade hoje. No Apocalipse, somos imersos não
31 Otto Preisker, em Theological Dictionary of the New Testament, editor Gerhard Kittel (Grand Rapids,
Ml: Wm. B. Eerdmans Publ. Co., 1964), 2:330. Nas notas seguintes, essa obra será citada como TDNT.
32 2 Tessalonicenses 2:1-2; Mateus 24:36.
em predição, mas em escatologia: a consciência de que o futuro está vindo
sobre nós. A escatologia envolve crer que Cristo ainda não completou suas
aparições pós-ressurreição. Essa confiança que permeia todo o livro faz a vida
ser boa, pois quando estamos esperando uma manifestação pós-ressurreição
conseguimos aceitar todo o presente e encontrar alegria não somente nas
horas alegres da vida, mas também nos momentos de tristeza e aflição, e
felicidade nos tempos de dor e sofrimento. Caminhamos através da felicidade e
do sofrimento porque vemos, nas promessas de Deus, possibilidade de vitória
para os perdidos, os moribundos e os mortos. "Por meio dessa dimensão
escatológica, olhamos para o futuro não como simples repetição e confirmação
do presente, mas como o alvo dos eventos que estão acontecendo agora. Isso
confere significado à jornada e às suas aflições; e a decisão de confiar no
chamado de Deus hoje terá resultados no futuro." 33
Dessa forma, com essas palavras, somos forçados a lembrar que a
Escritura é a palavra de Deus a nós, e não uma coleção de palavras humanas
sobre Ele. Além disso, somos alertados de que a palavra de Deus visa o hoje, o
presente em que vivemos, não o ontem nem o amanhã. João ensina a ler o
texto com reverência e prontidão para ouvir e crer, em lugar de sermos
pesquisadores curiosos que procuram pensamentos bonitos de ancestrais
santos que podem, talvez, indicar maneiras que nos levem a ser melhores ou
aperfeiçoar nossa cultura.
Apocalipse é a palavra final sobre as Escrituras, a visão audível que insiste
em que estamos ouvindo a palavra de Deus, e não uma voz humana falando
sobre Deus. O texto ativa a imaginação de tal maneira que o que está escrito
passa a ser visto e ouvido pessoalmente. Além disso, esse livro é a palavra
final das Escrituras. A Bíblia se compõe de 66 livros escritos num período de mil
anos, em três línguas diferentes, por diversos autores (alguns famosos, outros
desconhecidos). Estilo e conteúdo variam tremendamente. É provável que,
diante de tal diversidade, o leitor termine com uma massa enorme de
impressões, sem formar um quadro nítido; com milhares de detalhes vívidos,
mas sem um enredo; tonto com tanta informação, mas não mais sábio.
Apocalipse foi escrito e colocado no lugar em que se encontra como uma
defesa contra esse tipo de final aleatório e inconsistente. A Bíblia não se limita
a um final qualquer. Há um final que satisfaz mente e emoção, um telos.
No primeiro capítulo de Apocalipse, Deus se identifica com a expressão "Eu
sou o Alfa e o Ômega" (Ap 1:8). Na visão final, a frase se expande e se torna
"Eu sou o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim" (Ap
22:13). Alfa é a primeira letra do alfabeto grego; ômega, a última. As duas
envolvem todas as outras. Para escrever qualquer coisa, são necessárias as
letras. Todo escrito deriva da pessoa de Deus. Deus é completo, revela a si
mesmo, e agora essa revelação se completou. O início encontra uma
conclusão. Primeiro e último colocam-se diante de nós. A revelação está
terminada. A palavra final da Escritura, então, tem o efeito de todas as
conclusões bem elaboradas: confere clareza e sentido ao início e ao meio. O
que era desconhecido no princípio e inacabado no meio, agora ficou conhecido
e claro.
Apocalipse tem 404 versículos e contém 518 referências a outros livros da
Bíblia. Quem não conhece os escritos anteriores, obviamente não conseguirá
entender o último. João tinha seus prediletos: Ezequiel, Daniel, Sofonias,

33 Citado por Moltmann, Hope, p. 89.


Zacarias, Isaías e Êxodo. Mas é provável que ele tenha feito pelo menos uma
alusão a cada livro do Antigo Testamento, sem exceção. O mesmo não
acontece com os textos do Novo Testamento, mas os dados para sua obra — a
vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo e a comunidade cristã que vivia pela
fé nele — estão presentes, entrelaçados no tecido que forma o poema.
A estatística leva a um alerta: não se deve ler o último livro sem conhecer
os 65 que o precedem. Assim como não faz sentido ir ao último capítulo de
uma obra sem ter lido o que se passou antes, também não faz sentido tomar o
último livro da Bíblia sem conhecer os anteriores. A leitura de Apocalipse fora
de seu contexto canônico já causou muitos danos. Por outro lado, o texto
atinge seu melhor efeito quando remete os leitores a Gênesis, Êxodo, Isaías,
Ezequiel, Daniel, Salmos, Evangelhos e Paulo. As visões de dragões, bestas,
prostitutas, pragas e cavaleiros não brotaram da imaginação de João. Foram-
lhe dadas pelo Espírito, a partir das Escrituras que ele tanto conhecia. Ele
passou, então, a enxergar de outra forma o significado das coisas. Cada linha
de Apocalipse foi extraída das ricas camadas de Escrituras acumuladas nas
eras que o precederam.
Dessa completa imersão nas Escrituras, no Apocalipse surge um corolário
interessante. Nas 518 referências a textos anteriores, não há uma única citação
direta.34 Isso significa que, embora estivesse imerso nas Escrituras e se
submetesse a elas, João não se limitou a repeti-las — elas foram recriadas por
ele. O intuito, ao citar, não foi apresentar provas; antes, ele assimilou as
Escrituras para se tornar alguém. Com esse entrelaçamento, as imagens e
ideias da Bíblia se tornam como fibras vivas em um corpo vivo. A separação é a
morte. A mente pode distinguir entre fatos, mas nada, na vida, existe
isoladamente".35
Apocalipse, apresentando a experiência de João ("caí a seus pés"), coloca
um ponto final em todas as posturas pedantes que se limitam a estudar as
Escrituras com base em obrigação devota ou curiosidade intelectual. A Bíblia é
mais do que um manual sobre Deus; é o acesso à sua palavra viva, que cria,
por meio da fala, um mundo novo em nós. Iniciando a leitura na primeira linha
de Gênesis e prosseguindo até a última de Judas, temos tudo diante de nós.
Entretanto, a unidade é mais declarada do que demonstrada. O que se requer
de nós é que ouçamos com atenção, e não que leiamos mais; que vejamos
com fé em lugar de aprofundar o estudo. Muita gente adia o momento de
começar a ouvir e ver e usa Apocalipse como uma desculpa conveniente para
mais questionamentos. Mas, "... se não ouvem a Moisés e aos Profetas,
tampouco se deixarão convencer, ainda que ressuscite alguém dentre os
mortos" (Lc 16:31), ou, mirabile dictu, que alguém lhes explique o Apocalipse! O
livro almeja nos colocar de joelhos em adoração diante de Deus e aplicar em
nossa vida suas palavras que moldam a salvação. Tentamos sempre usar as
Escrituras para nossos propósitos. Mas, na verdade, elas nos usam. Deus, em

34 Krister Stendahl comenta sobre isso: "Já estabelecemos que os textos de natureza apocalíptica
raramente contêm citações, no sentido estrito da palavra. Entretanto, ao mesmo tempo, eles são
abundantes de alusões que, com imensa liberdade e habilidade, foram entretecidas no contexto. O
próprio Apocalipse constitui exemplo marcante disso. Sem uma única citação exata, está assim mesmo
entrelaçado com o material do Antigo Testamento, a um ponto que nenhum outro escrito do Novo
Testamento chega. Encontramos o mesmo fenômeno nas profecias dos evangelhos e nos ditos de
natureza apocalíptica. Consequentemente, não há tentativa de citar com exatidão. A citação é feita com
liberdade, de memória. O espírito profético cria, não se limita a citar para ensinar ou argumentar" (The
School of St. Matthew [Philadelphia: Fortress Press, 1968], p. 158-159).
35 Alexandre Vinet, Pastoral Theology (Edimburgo: T & T Clark, 1852), p. 210.
sua bondade, não pretendia nos transformar em estudantes do texto ao nos dar
sua palavra escrita. Ele nos forneceu um meio para o ouvirmos e, assim,
sermos transformados em cristãos — adoradores reverentes, sofredores
sacrificiais e discípulos consagrados.
O último livro da Bíblia toma toda a revelação e torna as imagens em uma
visão instigante, persuasiva e evangelística que tem levado perseverança,
energia, alegria e disciplina a crentes de todos os séculos. E faz isso até hoje.
As Escrituras não falam tudo de tudo, mas contêm tudo que Deus deseja que
saibamos sobre seu amor e sua salvação e acerca da reação requerida de nós
diante dele. Lei, Profetas e Escritos são submetidos à encarnação de Deus em
Jesus Cristo e contribuem para a nossa salvação. A encarnação age de forma
retroativa em toda a Escritura e a reconstrói nessa visão final. Apocalipse não
acrescenta dados ao que já havia sido registrado. Esse livro mostra como tudo
funciona na Igreja e no mundo. Alguns deduziram que Apocalipse apresenta
uma mudança na estratégia de Deus, depois que o plano inicial de salvação
não deu certo. Nada disso. O livro apresenta o plano original funcionando em
poder, glória e triunfo.
A conclusão reforça isso com palavras de admoestação: "Declaro a todos
os que ouvem as palavras da profecia deste livro: Se alguém lhe acrescentar
algo, Deus lhe acrescentará as pragas descritas neste livro. Se alguém tirar
alguma palavra deste livro de profecia, Deus tirará dele a sua parte na árvore
da vida e na cidade santa, que são descritas neste livro" (Ap 22:18-19). A Bíblia
está completa. Nada precisamos acrescentar; nada devemos subtrair dela.
Curiosamente, essa advertência é uma citação (ou quase, já que João não
faz citações literais) de Deuteronômio, o último livro do Pentateuco. Para os
hebreus, a Torá estava completa. Tudo o mais (livros proféticos e poéticos) era
considerado comentário. Deuteronômio 4:2 admoestava o povo: "Nada
acrescentem às palavras que eu lhes ordeno e delas nada retirem, mas
obedeçam aos mandamentos do SENHOR, o seu Deus, que eu lhes ordeno."
E o versículo 32 do capítulo 12 traz conselho semelhante: "Apliquem-se a fazer
tudo o que eu lhes ordeno; não acrescentem nem tirem coisa alguma." Nem
judeus nem cristãos interpretaram isso como ordem para que nada mais fosse
escrito — de outra forma, nossa Bíblia consistiria apenas nos livros de Gênesis
a Deuteronômio. A interpretação foi que Deus já havia revelado o suficiente.
Temos a revelação completa. Não é permitido subtrair nem acrescentar. Não se
pode brincar com as Escrituras.
Não podemos torcê-las nem forçá-las a se encaixar em nossas
necessidades e desejos. Temos de nos submeter a elas e permitir que se
desenvolvam em nossa vida. Para usar as palavras de Heidegger, temos que
"ouvir a voz do Ser". A Bíblia é a palavra de Deus em sua totalidade e visa
estabelecer em nós a humanidade total.
O contato prolongado e devoto com o Texto Sagrado pode desgastar suas
bordas afiadas. A familiaridade muitas vezes amortece a percepção de seu
caráter único. Quando isso acontece, Apocalipse nos acorda do sono e nos
coloca de pé diante da realidade de toda a Escritura, "um mundo novo
desconhecido, um mundo de Deus. Não há transição, intercâmbio nem
estágios intermediários. Há apenas urgência, finalidade, novo discernimento". 36

36 Karl Harth, The Word of God and the Word of Man (Nova York: Harper Torch Books, 1957), p. 31, 91.
3.
A ÚLTIMA PALAVRA SOBRE CRISTO
APOCALIPSE 1:12-20
Repouse a tua mão sobre aquele que puseste à tua mão direita,
o filho do homem que para ti fizeste crescer.
Então não nos desviaremos de ti;
vivifica-nos, e invocaremos o teu nome.
Restaura-nos, ó SENHOR, Deus dos Exércitos;
faze resplandecer sobre nós o teu rosto, para que sejamos salvos.
SALMO 80:17-19
Voltei-me para ver quem falava comigo. Voltando-me, vi sete candelabros de ouro e entre os
candelabros alguém "semelhante a um filho de homem".
APOCALIPSE 1:12-13
Será o Cristo dos evangelhos, imaginado e amado dentro dos limites do mundo mediterrâneo,
capaz de abarcar e formar o centro de nosso universo prodigiosamente expandido? Não estará
o mundo em um processo de se tornar mais vasto, mais significativo e mais fascinante do que
Jeová? Isso não irá explodir nossas religiões? Eclipsar nosso Deus?
TEILHARD DE CHARDIN37
Nas palavras iniciais de Apocalipse, "revelação de Jesus Cristo", a preposição
"de" tem duplo sentido: a revelação sobre Jesus Cristo vem por meio dele, que é
tanto conteúdo quanto agente. Ele é o meio pelo qual Deus se revela a nós; mas
também é o próprio Deus revelado.
Segue-se, então, que Apocalipse não é, basicamente, informação sobre o
mundo corrompido em que vivemos nem relatório sobre a perseguição que a
Igreja sofria no primeiro século. Acima de tudo, o livro é uma proclamação feita
por Jesus Cristo sobre Ele mesmo. Elementos relacionados ao passado e ao
futuro figuram apenas por fornecerem material útil na apresentação de Jesus.
Retirando o enfoque dele, não resta nada no livro.
É difícil sustentar esse foco. Há tantos símbolos fascinantes a explorar e
tantos assuntos intrigantes a pesquisar que apenas a imaginação altamente
disciplinada consegue manter tudo subordinado a Jesus Cristo. Mas essa é a
única leitura sensata do livro. Aliás, a única forma correta de se ler toda a
Escritura. Em todo lugar e em todo momento, nos deparamos com o
"evangelho de Jesus Cristo". Sem esse centro de controle, a Bíblia não passa
de enciclopédia de religião, com tanto enredo quanto um catálogo telefônico. É
bem provável que aqueles que não derem às palavras iniciais o devido valor
terminarão usando Apocalipse como teste psicológico (tipo o de Rorschach), e
não como texto religioso, lendo a letra morta em lugar de extrair lições do
livro.38
O leitor consciencioso da Bíblia corre sempre o risco de deixar a mente se
perder em palavras e fatos desordenados e inexplicáveis: serpente que fala,
cabeça de machado que flutua, lei curiosa e repetida contra cozinhar a cria no
leite da mãe, genealogias compiladas com cuidado e de utilidade duvidosa ("O
nome da mulher de Abisur era Abigail. Ela deu-lhe dois filhos: Abã e Molide"),
oráculos proféticos retumbantes iniciados pelo tremendo "Assim diz o Senhor",
aforismos pungentes ("Vocês são o sal da terra [...] a luz do mundo"),
paradoxos inesquecíveis ("Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu

37 Teilhard de Chardin, The Divine Milieu (Nova York: Harper & Bros., 1960), p. 14.
38 "Conheço dezenas de pessoas que usam a Bíblia como se ela fosse um teste de Rorschach, e não
um texto religioso. Lêem mais a letra morta do que extraem lições do livro." Ellen Goodman, Baltimore
Sun, 15 de junho de 1979.
quem vive, mas Cristo vive em mim") e discursos inspiradores ("Combati o bom
combate, terminei a corrida, guardei a fé"). Quando alcançamos o livro de
Judas, é bem possível sermos reduzidos à incerteza diante da importância da
disputa entre o arcanjo Miguel e o diabo pelo corpo de Moisés. O que fazer
com tanto material confuso? Existe algum enredo, ordem, desenvolvimento ou
tema? Tanta ação, tanta coisa dita, tanta diversidade de estilo e conteúdo
deixam a mente devota perplexa. Se o campo de estudo for expandido para a
religião durante a história e através das culturas, a confusão aumenta ainda
mais.
Então viramos a página e encontramos, após algumas frases introdutórias,
Cristo descrito com tanta magnificência que tudo, absolutamente tudo, fica a
Ele subordinado. As Escrituras hebraicas sugeriram, anteciparam e oraram por
Ele. As epístolas ensinaram e pregaram sobre Ele. Os evangelhos o
apresentaram. A leitura cuidadosa e atenta manteria o tempo todo a percepção
de sua presença, mas nem sempre lemos com cuidado. A atenção se dispersa.
Entregamo-nos a debates vazios sobre predestinação, a devaneios que
chegam ao terceiro céu, a divagações e conjeturas sobre a expiação, a
entretenimentos como o de contar milagres ou colecionar raridades
gramaticais. Mas aí a visão de João nos interrompe. Despertamos subitamente
dos devaneios, divagações, debates e distrações. Nossa imaginação se
entusiasma com uma visão — de Cristo. Estimulados, ficamos atentos, alertas.
De repente, tudo adquire proporção. Cristo é a palavra final, que controla todas
que a precederam, assim como a existência do pico determina a preparação, o
ritmo e o caminho dos alpinistas que desejam alcançá-lo, mesmo quando não o
enxergam. Ele é o alvo para o qual tudo se volta. Os milhares de detalhes
encontram seu lugar no todo. Pontos estranhos, intrigantes, curiosos, lugares
áridos e favoritos, todos se arranjam, com bastante facilidade, em torno de
Cristo.
Apocalipse nos apresenta a palavra final sobre Cristo: Ele é o centro e está
no centro. Sem Cristo, nada pode ser entendido. Se esse "centro não se
sustenta, somente anarquia no mundo há de grassar". 39 Um dos dons de
Apocalipse é apresentar Cristo de uma forma que nossa imaginação é
capturada pela visão (como acontecia com a Igreja primitiva) de "cristologizar"
incansavelmente as Escrituras. Isso não significa impor Cristo à força sobre o
texto, mas, sim, discernir com seriedade as linhas que levam a Ele.
A tarefa de manter Cristo no centro apresenta dificuldades constantes.
Outros elementos se esforçam para conseguir proeminência: a regra de ouro, a
doutrina da expiação, os dez mandamentos, os ensinos paulinos sobre
justificação, os diagramas para explicar a Trindade, denúncias contra os
perversos. Não há grande perigo de se esquecer por completo de Cristo — já
se falou, pregou e escreveu demais sobre Ele para que se consiga ignorar que
será necessário acertar contas com Ele. Entretanto, é muito fácil afastá-lo da
posição central e colocá-lo em lugar de destaque no hall da fama da religião, ao
lado de Zoroastro, Buda, Moisés e Maomé. Mas Apocalipse tem a palavra final,
uma afirmação habilidosa e convincente de que Cristo é o centro.
Como será Cristo apresentado para que reconheçamos sua posição e nos
apeguemos a Ele? Como pastor, cuidando dos rebanhos nas colinas da
Palestina? Bondoso, com criancinhas nos braços? Trágico, pregado na cruz?

39 William Butler Yeats, "Second Coming", The Collected Poems of W. B. Yeats (Nova York: Macmillan
Co., 1959), p. 184.
Cheio de compaixão, tocando nos leprosos? Socrático, em um diálogo afiado
com Nicodemos? Diante da riqueza de detalhes fornecidos pelas promessas
proféticas e histórias dos evangelhos, há inúmeras possibilidades.
Aprouve a nosso Senhor, o Espírito, apresentar algo bem diferente. A voz
como de trombeta manda João iniciar seu escrito com a descrição da visão de
Cristo "semelhante a um filho de homem", expressão cuja origem remonta à
visão de Daniel:
Em minha visão à noite,
vi alguém semelhante a um filho de homem,
vindo com as nuvens dos céus.
Ele se aproximou do ancião
e foi conduzido à sua presença.
Ele recebeu autoridade, glória e o reino;
todos os povos, nações e homens de todas
as línguas o adoraram.
Seu domínio é um domínio eterno que não acabará,
e seu reino jamais será destruído.
(DANIEL 7:13-14)
"Filho do Homem" representa um futuro glorioso de domínio e redenção. 40
Ele não é, nas palavras de Tom Howard, "um galileu obscuro, mas figura
proeminente e impetuosa que jamais será controlada". 41 Muitos meditaram e
estudaram a expressão no período que separou Daniel, no Antigo Testamento,
de Apocalipse, no Novo, em especial um vidente apocalíptico anônimo, que
escreveu um livro intitulado Enoque, em que criou imagens verbais do Filho do
Homem preenchendo o cosmo com a re-criação de luz e energia. O Filho do
Homem recuperaria o esplendor de Adão e recolocaria todos os descendentes
do primeiro homem em sua identidade original gloriosa como imagem de Deus.
Falando frequentemente sobre si mesmo como Filho do Homem, Jesus só
pode ter provocado consternação e perplexidade, pois os ouvintes não
entendiam como aquele rabino itinerante, de aparência tão comum, poderia se
encaixar na ideia que faziam de Filho do Homem. Onde estavam os relâmpagos
e as roupas esvoaçantes? Ao usar o título, Ele suscitou a expectativa de
redenção, que foi destruída quando se recusou a convocar legiões de anjos
para estabelecerem seu poder na terra. Mesmo assim, continuou a usar o
título.
Para nós, fica difícil recapturar, por um ato de imaginação, o contra-senso
que era alguém naquela época denominar-se Filho do Homem e acabar
pendurado por pregos, sangrando, em uma cruz. A incongruência é menos
dramática, mas ainda mais desagradável, quando Ele ceia com uma prostituta,
vai almoçar com um cobrador de impostos, desperdiça seu tempo abençoando
as crianças quando havia legiões de romanos a serem expulsos do país, cura
fracassados sem importância e ignora os proeminentes fariseus e os influentes
saduceus. Jesus justapôs o título mais glorioso que se encontrava à sua
disposição aos estilos de vida mais humildes de sua cultura. Conversava como
rei e agia como escravo. Pregava com muita autoridade e vivia como nômade.
40 "De todos os nomes e títulos usados para Cristo, devemos dar primazia histórica e teológica ao que
Ele próprio usou para indicar sua importância para a história e a teologia — Filho do Homem. A busca um
dia 'moderna' pelo Jesus histórico interpretou a expressão nos termos do salmos 8:5 e foi atraída por isso
como garantia da completa falta de pretensão do Jesus histórico que seria, e queria ser, nada mais do
que um homem vivendo entre seus semelhantes. Entretanto, a contribuição da história das religiões
ensinou mais do que isso. Filho do Homem talvez seja a autodescrição mais pretensiosa possível que
qualquer homem que vivesse no Oriente antigo poderia ter feito." (Ethelbert Stauffer, New Testament
Theology [Londres: SCM Press, 1963], p. 19.)
41 Thomas Howard, Christ the Tiger (Philadelphia & Nova York: J. B. Lippincott Co., 1967), p. 10.
Jesus repetiu sistematicamente sua afirmação dupla: era, de fato, o Filho do
Homem, "recebeu autoridade, glória e reino"; e estava, também de fato,
completamente à vontade no cotidiano comum. Não cedeu um milímetro em
nenhuma das duas direções: era totalmente Deus e totalmente homem.
A tarefa de fé, para os que decidiram ser seus discípulos, era aceitar a
verdade literal do título Filho do Homem sob tais condições. Eles precisavam
carregar a cruz, negar a si mesmos, aceitar sofrimento e morte e ao mesmo
tempo acreditar que tudo que faziam e falavam era parte do governo vitorioso
do Reino de Deus. Quando encontraram Jesus, a mente deles foi preenchida
por visões de resgates executados por hostes de anjos no final dos tempos.
Esperavam ser salvos da história por um deus ex machina. Devagar, com
sofrimento, foram abrindo mão dos sonhos do Filho do Homem descrito por
Enoque e se tornaram discípulos desse Filho do Homem.
Jesus e seus discípulos cumpriram a tarefa nas estradas da Palestina
durante a quarta década do primeiro século. Os evangelhos e Atos narram a
história. A mesma tarefa voltou a ser realizada na última década do mesmo
século. Essa história encontra-se nas entrelinhas de Apocalipse. Porém, há
diferenças entre as tarefas. A primeira geração de discípulos tinha que aceitar o
glorioso título apocalíptico, Filho do Homem, como a verdade sobre o Jesus de
Nazaré humano que falava a mesma língua que eles, comia pão ázimo e carne
no espeto, ficava cansado e dormia diante de seus olhos. O Filho do Homem
de Daniel foi assimilado pela familiaridade observada em Jesus de Nazaré.
Glórias eternas se canalizaram no comum. O dia-a-dia tornou-se esplêndido de
graça, cura, paz e bênção.
Os cristãos da segunda e terceira gerações (as congregações de João)
enfrentavam dificuldades na direção oposta. Estavam totalmente familiarizados
com a historicidade de Jesus. Haviam recebido ensino e pregação de
testemunhas oculares, conheciam aqueles que haviam visto, ouvido e tocado o
Filho do Homem (1 Jo 1:1-4). Agora, o perigo não residia na falta de contato
entre a imagem celestial e a forma como Deus escolheu agir na história. O
risco era que os dados próximos da história vivenciada apagariam a visão
celestial. Eles mergulharam, e não havia como escapar, em sofrimento,
tribulação e decisões a serem tomadas todos os dias em questões de fé e
moral. Não havia como fugir do fato de que a fé no Filho do Homem envolvia
confrontar e viver em meio a todos os assuntos, do amor doméstico à lealdade
política, da importância litúrgica de cada detalhe no culto comunitário ao
significado espiritual de cada guerra, fome e morte. Era tempo de crise intensa:
não havia alternativa, a não ser viver a fé historicamente. A salvação tinha que
funcionar no meio do ódio e do sofrimento; não havia outra saída. As fantasias
adolescentes de raios e trovões arremessados do céu para aniquilar os
perversos inimigos tinham sido extirpadas havia muito tempo da imaginação
religiosa por décadas de perseguição, tribulação e derramamento de sangue. A
purificação da Igreja havia sido extrema. Agora, o perigo era outro, e continua o
mesmo até hoje — a redução do evangelho a estoicismo, conquistas,
moralidade séria e virtude endurecida, resistente e destituída de alegria.
Chegara o momento de reintroduzir o esplendor apocalíptico do Filho do
Homem de Daniel (e Enoque). É apropriado que isso seja a última palavra,
pois, conquanto haja sempre o perigo na vida da fé de sonhos de escapismo e
irresponsabilidade fanática, o perigo de longo alcance tem sido, com muito
mais frequência, a esperança diminuída e fraca. Disraeli disse: "A vida é muito
curta para ser pequena." O maior dos perigos é que a grandeza e o mistério de
Cristo se percam e a religião se torne vazia e insípida. O veredicto de Berdyaev
sobre sua geração foi: "O cristianismo histórico esfriou e tornou-se
insuportavelmente trivial. Sua atividade consiste, principalmente, em se adaptar
ao lugar-comum, aos padrões de vida e hábitos burgueses. Entretanto, Cristo
veio para lançar fogo celestial na terra." 42
Assim, a palavra final sobre Cristo é a visão gloriosa de Daniel do Filho do
Homem. Essa visão passou pelo fogo refinador da paixão de Jesus e da
tribulação da Igreja primitiva. Agora, volta a ser apresentada de uma forma que
deixa evidente todo o esplendor inicial — "reino do herdeiro da luz [...] beleza,
valor e ação em estado bruto". 43 Elementos terrenos são usados para insistir
nos celestiais. O que é familiar, em lugar de deter e limitar, passa a ser um
trampolim que nos permite saltar para o desconhecido e, assim, viver em
liberdade e graça. Os detalhes da visão combinam fatores celestiais com
terrenos. Ecos e lembranças apagados de promessas messiânicas e da vida
de Jesus são tomados, esclarecidos e ampliados. A metáfora que mistura visão
e audição prende nossa atenção: "Voltei-me para ver quem falava...."
A visão do Filho do Homem é apresentada em um contexto familiar: "Vi sete
candelabros de ouro e entre os candelabros alguém 'semelhante a um filho de
homem'." Poucas linhas adiante, os candelabros são identificados como igrejas
(Ap 1:20).
Pessoas familiarizadas com o antigo Israel e a Igreja primitiva dificilmente
romanceariam as comunidades de fé. As igrejas, em geral pobres, muitas
vezes eram sórdidas e carentes de fé. Foi precisamente nesse contexto que
Deus escolheu mostrar Cristo na forma magnífica de Filho do Homem. Mas, a
essa altura, isso não deveria causar surpresa: ele nasceu em uma manjedoura,
e sua coroação aconteceu na cruz. Deus colocou-o deliberadamente entre os
simples e falhos — a situação histórica nua e crua. Ele nunca será encontrado
em outro contexto. Sua revelação não foi atrapalhada nem comprometida pela
associação com a Igreja. Muito pelo contrário, ela insiste em estar nesse
contexto.
Assim, não adianta procurar por Ele em ambientes mais puros (embora Ele
esteja em todos os lugares), porque Ele deseja se identificar em revelação
dentro da comunidade de fé. É compreensível que muitos se ressintam de ter
que se relacionar com a Igreja, quando se interessam apenas em Cristo. Ela
está repleta de ambiguidades, desfigurada por crueldade e covardia, maculada
por hipocrisia e sofismas, a tal ponto que muitos se enchem de aversão por ela.
A religião cristã é tão suscetível ao ataque da superstição e da fraude que não
é de admirar que muitos se recusem a se associar a ela e busquem Cristo por
outros caminhos e em outros lugares — em sistemas gnósticos e êxtases
místicos, por exemplo. Entretanto, não há evidência bíblica de que essas
buscas alcancem sucesso. Sabe-se (pela fé) que Cristo preexistia com o Pai.
Acreditamos que Ele vive em glória no céu. Mas Ele é recebido todos os dias
nos círculos da Igreja, na companhia de indivíduos que se reúnem para adorar
e testemunhar.
A visão de Cristo começa com a descrição de suas roupas: "uma veste que
chegava aos seus pés e um cinturão de ouro ao redor do peito". Antes mesmo
de conhecermos a aparência do Filho do Homem, ficamos sabendo o que Ele
42 Nicholas Berdyaev, Dream and Reality (Nova York: Macmillan Co., 1951), p. 297.
43 Gerard Manley Hopkins, "The Windhover: To Christ Our Lord", em The Poems of Gerard Manley
Hopkins, editor W. H. Gardner (Baltimore: Penguin Books, 1958), p. 30.
faz. A roupa define a função: Ele usa a túnica (podē rē) recomendada para Arão
em seu papel de sacerdote (Êx 29:5). O Filho do Homem é um sacerdote. O
uniforme dos policiais estabelece um conjunto de expectativas (a despeito do
tamanho ou da aparência do policial). Exatamente da mesma forma, a veste
sacerdotal determina as reações que se sucederão durante o desenrolar dos
detalhes da visão. As expectativas levam a afastar-se do que é insuficiente ou
opressivo e penetrar no que é perfeito e livre. O sacerdote é uma ponte
(pontifex).
O sacerdote apresenta Deus para nós e vice-versa. Liga o divino e o
humano. Sua função não é proteger a santidade de Deus com a criação de
barreiras que impeçam o acesso de humanos pecadores. Também não é
proteger as fraquezas humanas do julgamento divino estabelecendo rituais
como sistemas de defesa. Ele abre as passagens fechadas por medo, culpa,
ignorância ou superstição para que o acesso seja livre. O sacerdote faz
intermediação. Coloca-se ao nosso lado e ao lado de Deus.
Se desejamos progredir, o sacerdote oferece ajuda. Quando nos
arrependemos de nossos erros, promete auxílio. Se o Filho do Homem assume
a obra do sacerdote, há muito para se admirar, mas nada a temer: a mediação
resulta em união de amor. Se o Filho do Homem cumpre a função de
sacerdote, há muito do que se arrepender, mas nada que leve ao desespero: a
mediação resulta em perdão.
Cabeça e olhos são os primeiros elementos que reparamos em uma
pessoa, depois das roupas. Estas representam seu papel, aqueles declaram
seu caráter. Logo questionamos se o papel combina com a pessoa, se o
uniforme está adequado a ela. A cabeça e os olhos do Filho do Homem
mostram que Ele é perdoado e perdoador. Esse mediador faz e é sua obra. O
sacerdote que mostra que tudo está puro entre nós e Deus é Ele mesmo puro e
purificador.
Ele é puro: "Sua cabeça e seus cabelos eram brancos como a lã, tão
brancos quanto a neve." Lembramo-nos da promessa do profeta: "Embora os
seus pecados sejam vermelhos como escarlate, eles se tornarão brancos como
a neve... ." Também a do salmista: "Purifica-me com hissopo, e ficarei puro;
lava-me, e mais branco do que a neve serei." Isso aconteceu. Cristo cumpriu a
promessa e atendeu à oração — limpo, santo.
E também é purificador: "seus olhos eram como chama de fogo". Várias
imagens bíblicas se acumulam nos olhos flamejantes do Filho do Homem:
coluna de fogo, sarça ardente, chama do altar, fornalha e carruagens de fogo. A
chama penetra e transforma. A santidade penetra em nosso íntimo e nos
transforma. O olhar de Cristo entra e purifica. Ele não olha para nós; olha
dentro de nós. Somos mais do que um espetáculo a que Ele assiste, já que Ele
nos invade. "Ele é um fogo consumidor. Apenas o que não pode ser consumido
permanecerá para a eternidade. Tal é a natureza de Deus, tão tremendamente
pura que destrói tudo que não seja puro como fogo [...]. Ele exige pureza. Não
é que o fogo nos queimará se não adorarmos assim; mas que o fogo arderá em
nós até que adoremos assim; sim, continuaremos queimando em nosso interior
até que tudo que é estranho tenha se rendido à sua força. Só não haverá mais
dor quando não houver o que consumir, e sim plena consciência da vida e da
presença de Deus."44
"Seus pés eram como o bronze numa fornalha ardente." Já alertados por

44 George MacDonald, Unspoken Sermons (Nova York: Geo. Routledge & Sons, s/d), p. 44.
Daniel pela evocação do Filho do Homem, não podemos deixar de reconhecer
o contraste entre a visão de João e a da "grande estátua" do sonho de
Nabucodonosor que Daniel interpretou (Dn 2:31-45). Ela tinha cabeça de ouro,
torso de prata, ventre e quadris de bronze, pernas de ferro, mas pés de uma
mistura de ferro e barro, que não fazem uma boa liga. A imagem era magnífica,
construída com metais fortes e preciosos, entretanto sua base era defeituosa.
Atingida por uma pedra, ela se desfez. Por mais maravilhosa que fosse, a base
inadequada a condenava à destruição. "Viraram pó, como o pó da debulha do
trigo na eira durante o verão. O vento os levou sem deixar vestígio" (Dn 2:35).
Mais adiante, um "homem vestido de linho", "um ser que parecia um
homem", fala com o profeta (Dn 10-11). Também tem constituição preciosa e
magnífica, mas sustentado por pernas de "bronze polido", como o Filho do
Homem de João. Aquele que sobrevive e triunfa interpreta a sucessão histórica
de reinos condenados ao julgamento (a imagem do sonho de Nabucodonosor).
O contexto da interpretação vai além do texto que interpreta.
O Filho do Homem, Cristo, se coloca, na visão de João, em contraste com a
estátua de pés defeituosos do sonho de Nabucodonosor e em continuação ao
anjo de pernas de bronze, "um ser que parecia homem", que fortaleceu a
Daniel (Dn 10:16). Por mais impressionante e magnífica que seja, a sucessão
de reinos deste mundo assenta-se sobre uma base imperfeita. Já o de Cristo
repousa sobre um fundamento tão forte quanto sua superestrutura magnífica. A
base de bronze é sólida. O bronze combina o ferro, que é forte mas enferruja,
com o cobre, que não enferruja, mas é maleável. Na ligação, a melhor
qualidade de cada um fica preservada — a força do ferro e a durabilidade do
cobre. Sobre essa base repousa o governo de Cristo: o fundamento de seu
poder foi testado pelo fogo.
Em seu evangelho, João descreve Cristo como a Palavra e o apresenta
falando mais do que todos os outros autores. A fé bíblica não é adivinhação em
meio a um nevoeiro moral e espiritual; é a resposta a uma palavra exata
pronunciada em Jesus Cristo. A Bíblia começa com Deus falando e trazendo à
existência primeiro a criação e depois a redenção. A fala se desenvolve e se
transforma em conversação quando as pessoas respondem (oram) usando o
precioso dom da fala. A palavra que Deus fala é importante; a nossa também.
As duas se completam nas de Jesus Cristo.
O significado delas vai muito além do registrado nos dicionários. Dimensões
de significado ressoam na maneira de falar e no tom de voz. A forma como se
diz importa tanto quanto o que se fala. Assim, grande parte da mensagem se
transmite pelo tom e pelo timbre: reconhecemos logo se quem fala é tímido,
hesitante, entediado, frívolo, impulsivo, irado, prático, imparcial. Interpretamos
todas as palavras por meio de uma triagem sonora. A nuança de som confere à
palavra um significado que nos deixa prontos para reação adequada ao que
entendemos na mente. Dessa forma, antes de sermos informados sobre o que
o Filho do Homem diz, somos apresentados à sua forma de falar: "sua voz
como o som de muitas águas". A metáfora nada informa quanto ao significado
das palavras; descreve apenas o som da voz de Cristo, proporcional à sua
aparência: impressionante e poderosa. Nossa reação começa a ser moldada
em formas de adoração ardente e cântico sincero antes mesmo de
entendermos o sentido da mensagem. Falatório e falta de naturalidade são
reações impensáveis diante do "som de muitas águas".
Até aqui, a visão tratou dos aspectos de Sua natureza; agora passa a
apresentar Sua função: "Tinha em sua mão direita sete estrelas", que seriam
planetas, as estrelas que se movem. No primeiro século, eram conhecidos sete
planetas. O movimento desses astros entre as constelações e em relação ao
Sol e à Lua constituíam a base da astrologia, cuja influência permeava todas as
religiões populares do mundo antigo. Acreditava-se que a localização dos
planetas nas 12 constelações do zodíaco determinava o destino. Essas
crenças controlavam assuntos públicos e privados. O estudo e a interpretação
dos movimentos dos planetas era uma profissão reconhecida e valorizada. O
astrólogo desfrutava de muito prestígio na Antiguidade.
Cristo segurava as sete estrelas em sua mão direita! Isso significa que
estava pronto para usá-las. O soldado com a espada na mão direita está
preparado para lutar, o pastor com a vara está trabalhando, o martelo na mão
direita está pronto para colocar o prego no taco solto do assoalho. O que está
em minha mão direita é aquilo que sou capaz de fazer e que, na verdade, estou
pronto para fazer. O que Cristo faz? Ele controla o cosmo. Só isso. Os planetas
não nos dirigem; Ele os governa. Adiante, na visão (Ap 1:20), as estrelas serão
identificadas como "os anjos das sete igrejas". O que os pagãos acreditavam
ser divindades impessoais, longínquas e controladoras são, na realidade, anjos
ministradores, mensageiros de Deus que trazem sua palavra e glória aos
cristãos que adoram, cantam e oram.
O autor da Epístola aos Hebreus disse que "a palavra de Deus é viva e
eficaz, e mais afiada que qualquer espada de dois gumes; ela penetra até o
ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e julga os pensamentos e
intenções do coração" (Hb 4:12). De forma semelhante, João usa a metáfora
da espada para demonstrar o que acontece quando Cristo fala.
Qualquer comunidade sitiada, aterrorizada pela espada desembainhada,
sente-se tentada a responder à força com força. Mas, embora as Escrituras
estejam repletas de ações militares, a força militar, nas Escrituras, é uma
metáfora, que vai crescendo gradualmente, até culminar em Jesus, em quem a
força militar se torna uma metáfora da palavra de Deus. Cristo não veio
carregando uma espada (mandou que Pedro deixasse a dele de lado), mas
trouxe a palavra, que também é uma arma. A vontade de Deus se expressa de
forma aguda e penetrante pela boca de Cristo. Essas palavras vencem. Não
são vacilantes, atravessam a resistência obstinada, separam o bem e o mal,
subjugam a rebeldia e estabelecem a justiça. O poder que o mundo conhece
brota do cano de uma arma; o que a pessoa de fé respeita procede da boca de
Cristo.
Quando Moisés desceu do monte da revelação, seu rosto brilhava tanto que
o povo não podia olhar para ele. A bênção araônica diz: "... o SENHOR faça
resplandecer o seu rosto sobre ti e te conceda graça" (Nm 6:25). Em Cristo, a
bênção de Deus se torna pessoal pelo brilho do rosto: "Sua face era como o
Sol quando brilha em todo o seu fulgor." Deus em Cristo é calor e luz como a
do Sol.
Grande parte da vida se passa na escuridão, literal ou metafórica. Ninguém
se sente completamente à vontade nas trevas, embora a maioria aprenda a
conviver com elas. Criamos objetos e coisas que as tornam menos
ameaçadoras — velas, fogueiras, lanternas, lâmpadas. Na escuridão, podemos
perder perspectiva e proporção: os pesadelos aterrorizam, e o medo paralisa. A
imaginação cria espectros, os sons são agourentos, os movimentos
fantasmagóricos. A luz que brilha na escuridão mostra que o terror e o caos
não possuem realidade objetiva. "A luz brilha nas trevas, e as trevas não a
derrotaram" (Jo 1:5). Ou, se há algo a ser temido, a luz mostra o mal relativo e
proporcional a tudo o que não se deve temer.
Não vivemos nas trevas, e sim na luz. Não somos amaldiçoados; somos
abençoados. Luz, não trevas, é a realidade fundamental em que vivemos. E
Deus é luz. Autores bíblicos, meditando sobre as qualidades da luz,
descobriram muitas revelações verdadeiras sobre Deus. Revelar a verdade é o
maior trabalho de Cristo.
João destaca sete características para descrever o Filho do Homem, em
arranjo simétrico. O primeiro e o último elementos, a cabeça branca e a face
brilhante, são os mais importantes: perdão e bênção são a primeira e a última
impressões. O segundo e o sexto, olhos e boca, são os órgãos do
relacionamento, visão e audição são os meios principais de comunicação:
Cristo mostra que Deus se relaciona conosco. O terceiro e o quinto itens, pés e
mão direita, os membros em par do corpo, representam capacidade — os pés
concedem base sólida e mobilidade, a mão direita é o instrumento para
execução da vontade: Deus é capaz e age em nosso favor. O quarto item,
dessa série de sete, é a voz. A voz está no centro. Todas as palavras proféticas
e apostólicas convergem para esta voz que troveja sons de amor apaixonado e
de misericórdia urgente.
Outro aspecto: João vê e ouve. Os elementos visuais (cabeça, cabelos,
olhos, pés, mão direita, rosto) e os auditivos (voz trovejante, fala como espada)
são, por toda a Bíblia, meios de revelação. As palavras de Lucas fazem
paralelo com a visão em Apocalipse: "... tudo o que Jesus começou a fazer [o
que foi visto] e a ensinar [o que foi ouvido]" (At 1:1). Não temos palavras
separadas das formas visíveis que elas trazem à existência, nem ações alheias
à articulação precisa das palavras. O visível e o invisível, o interior e o exterior,
o fato e o significado formam uma unidade em Cristo.
Embora seja a mais elaborada, essa não é a única visão de Cristo em
Apocalipse. Há ainda o Cordeiro "que parecia ter estado morto" (Ap 5:6-7), mas
que agora está em pé, mostrando o ato da redenção realizado na cruz.
Também aparecem as visões do nascimento de Jesus projetadas em uma tela
cósmica (12:1-6), do Cordeiro cercado pelos 144.000 (Ap 14:1), do Filho do
Homem coroado e pronto para o julgamento (14:14), e de Cristo a cavalo
liderando o exército do céu, "Rei dos reis e Senhor dos senhores" (19:16). Por
fim, surge Cristo em sua segunda vinda (Ap 22:12-17). Ao todo, sete visões
distribuídas pelas páginas de Apocalipse.
A imaginação cristã é fecunda na criação de imagens que levem a entender
Cristo como o primeiro, o último e o centro. Essas imagens e são sempre
moldadas com o metal das Escrituras para expressar o que é necessário no
momento e no contexto para enfocar a fé em e por meio de Jesus. As visões
tornam nossa imaginação submissa e alerta, para que entendamos que Cristo
ocupa o centro de nossa vida o tempo todo, sob qualquer condição, enquanto
buscamos o meio de responder em obediência na comunidade eclesiástica e
nos eventos presentes.
As visões de João mostram uma mente familiarizada com as expectativas
messiânicas que o Espírito havia estabelecido na vida de Israel e
fundamentada na análise da encarnação fornecida pelos autores dos
evangelhos. Mas essas visões também demonstram que a mente de João
estava aberta a novas descobertas e percepções do Cristo que vem quando
uma jornada tumultuosa nos mergulha no "sofrimento, no Reino e na
perseverança" (Ap 1:9).
Nossa imaginação é envolvida. Vemos Cristo caminhando pela Palestina
com uns pescadores meio broncos, ajudando pessoas e dizendo versículos
adequados à memorização na Escola Bíblica Dominical ou à inscrição em
placas decorativas — e supomos que já entendemos tudo. A visão de João nos
ensina a re-ver Cristo nos termos necessários para afirmar sua centralidade no
tempo e espaço atuais, no meio das pessoas que conhecemos.
A visão é mais do que isso — envolve também inteligência e vontade. Ao
ver Jesus, João caiu como morto. Foi recolocado em pé com as palavras
confortadoras: "Não tenha medo." As mesmas palavras que transformaram em
confiança o terror de Pedro durante a tempestade no mar, e o pânico de Maria
Madalena diante do túmulo vazio em testemunho vivo. A visão dá início a uma
obra: "Escreva, pois, as coisas que você viu." João tem um trabalho a realizar:
a missão pastoral de contar "o mistério" às comunidades de cristãos que
adoram, trabalham e sofrem na Ásia. Este mistério não é um enigma que
confunde; é uma infinitude a ser explorada. As palavras e a presença de Cristo
iluminam aquilo que nos é familiar para que o passemos a ver como
extraordinário. Isso faz completo contraste com a informação que os experts
costumam fornecer, que reduzem os fatos de todos os dias ao menor
denominador comum, de forma que acabamos com a auto-estima diminuída,
desprezados em nossas atividades. A visão funciona de modo totalmente
diferente: "as sete estrelas são as sete igrejas", exatamente as comunidades
de fé em que João vivia, as quais estão ligadas aos movimentos nos céus que
"declaram a glória de Deus [...] proclamam a obra das suas mãos" (Sl 19:1).
Isso não é redução; é expansão. As visões têm esse efeito.
Antes da visão, João estava exilado, sozinho, em uma ilha-presídio,
afastado de suas igrejas por um decreto do ímpio governo romano. Roma era o
poder em ascensão. O evangelho se mostrara uma investida débil e ineficiente
contra o mal inexorável. Duas gerações após a euforia do Pentecoste, os
cristãos caíram em descrédito. Tudo que João havia crido e tudo que pregara
era, diante das evidências, um desastre. Então, sem que nada mudasse em
Roma ou na Ásia — nenhum terremoto alterou a face da terra, nenhuma
revolução derrubou o governo romano —, ele se refaz. Tem uma mensagem,
uma tarefa, um meio de levar Deus às pessoas e o evangelho ao mundo. A
diferença entre o prisioneiro e o pastor é a visão da realidade de Cristo.
Afastado de suas igrejas, sentindo falta da intimidade com seu povo, João
vê os olhos penetrantes e atentos de seu Salvador. Fraco devido ao
confinamento, vê os pés fortes e polidos do Senhor. Acostumado a pregar com
autoridade a seu rebanho inconstante, ele perdeu sua voz, mas agora ouve a
voz autoritária do Soberano da Igreja e do mundo. Saudoso de suas
congregações, ele vê que elas estão seguras na mão direita do Pastor de
Israel. À mercê da espada política de Roma, ele enxerga que a palavra de
Deus procede como espada e não volta vazia. Aproximando-se do fim de seus
dias, sua energia já entrando em colapso, vê a presença radiante de Cristo
distribuindo bênçãos a todos.
Por causa da visão, o exilado oprimido se transforma em profeta vigoroso.
Em tempo de crise, como Sansão destruído no templo de Dagom, recebe nova
visitação de Deus, que liberta o povo da opressão. São as visões verdadeiras,
não as ilusões, que fazem as coisas acontecerem.
João passou de exilado a poderoso. Foi a visão que o transformou. Da ilha
de Patmos, foi elevado à esfera do Espírito e recebeu a visão de Cristo. De
volta à terra, foi feito pastor mais uma vez, mas agora com poder. Roma o
havia isolado para que suas igrejas não o vissem nem o ouvissem. O Espírito
encheu seus olhos com visões e sua boca com palavras que guiam os cristãos
até hoje. O decreto de banimento de Roma foi banido. Todos podem sonhar
com um final feliz para sua história, embora isso pareça piada sem graça para
os oprimidos, perseguidos, exilados e estrangeiros. Uma visão vê a realidade,
não o que a frustração desejaria que fosse verdade.
"A responsabilidade começa nos sonhos."45 A realidade nasce nas visões.

45 Yeats, Collected Poems, p. 98


4.
A ÚLTIMA PALAVRA SOBRE A IGREJA
APOCALIPSE 2-3
Quando convocares as tuas tropas,
o teu povo se apresentará voluntariamente.
Trajando vestes santas,
desde o romper da alvorada
os teus jovens virão como o orvalho.
SALMO 110:3
Este é o mistério das sete estrelas que você viu em minha mão direita e dos sete candelabros:
as sete estrelas são os anjos das sete igrejas, e os sete candelabros são as sete igrejas.
APOCALIPSE 1:20
A mim parece que toda sua insatisfação com a Igreja provém de entendimento incompleto do
pecado [...] Você espera que a Igreja estabeleça o reino do céu na terra aqui e agora — que o
Espírito Santo seja implantado de uma vez por todas em toda a carne.
Todavia o Espírito Santo raramente se mostra na superfície do que quer que seja. Para que a
Igreja fosse como você quer que ela seja, seria necessária a intervenção milagrosa contínua de
Deus nos assuntos humanos. Contudo, para conservar nossa dignidade, Ele escolheu operar
de outra maneira. Não se pode rejeitar "o modo de Deus" sem rejeitar a vida [...] O cristianismo
faz diferença, mas não pode destruir a realidade presente.
FLANNERY O'CONNOR O evangelho não se destina a indivíduos; mas às
46

pessoas; povo, gente, sempre. O pecado fragmenta, separa e condena a


confinamento em solitárias. O evangelho restaura, une e insere em uma
comunidade. A vida de fé revelada e cultivada nas narrativas bíblicas é
altamente pessoal, mas nunca apenas isso: há sempre família, tribo, nação —
igreja. O amor e a salvação de Deus são revelados e vivenciados na reunião do
povo "que conhece os vivas de júbilo" (Sl 89:15, RA), não no isolamento de
cada indivíduo.
Assim, não nos surpreende verificar que a visão do apóstolo João não foi
um êxtase individual destinado a compensá-lo pelo exílio. Ela foi dirigida "às
sete igrejas da província da Ásia" (Ap 1:4). Toda revelação se dirige a um
grupo. O evangelho nos leva à vida comunitária. Uma das primeiras mudanças
que o evangelho opera é gramatical: nós em lugar de eu, nosso em vez de meu.
O pecado, tanto o nosso quanto o dos outros, conduz ao egoísmo "a gosto
do freguês". Separar-se de Deus implica separar-se do próximo. A mesma
salvação que restaura o relacionamento com Deus nos restabelece na
comunidade dos que vivem pela fé. Toda tendência ao isolamento e ao
individualismo distorce e falseia o evangelho. A Bíblia não reconhece a alma
que vive, segundo as palavras de Plotino, "a sós com o Uno".
As linhas introdutórias de Apocalipse invocam uma bênção sobre os que
lêem, ouvem e guardam o que está escrito. Presume-se que a Igreja lerá e
ouvirá o texto. Ninguém imaginava que indivíduos viriam a pegar o rolo e levar
para casa a fim de o ler na privacidade de seu quarto. Atenção à mensagem do
evangelho é sempre ato comunitário, nunca exercício privado. A comunidade
dos crentes é o contexto da vida de fé.
O amor não existe em isolamento: afastado dos outros, se deforma e se
transforma em orgulho. Ninguém recebe a graça de modo privado. Longe dos
outros, a graça se deturpa e vira cobiça. A esperança não se desenvolve na
solitude. Alheia à comunidade, a esperança é semente de fantasias. Nenhum
dom, nenhuma virtude se desenvolve e se mantém saudável fora da
46 Habit of Being: Letters of Flannery O'Connor (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, , p. 307.
comunidade de fé. A expressão "Fora da igreja não há salvação" não é
arrogância eclesiástica, mas, sim, bom senso espiritual, confirmado pela
experiência cotidiana. Todos que tentam desafiar isso acabam enfraquecidos e
empobrecidos. Submeter-se acarreta recompensas generosas. "O sacrifício de
nossa intimidade egoísta, exigido diariamente de nós, é compensado
diariamente, cem vezes, no crescimento pessoal que a vida do corpo estimula.
Aqueles que são ligados uns aos outros tornam-se tão diferentes quanto a mão
o é do ouvido. É por isso que os filhos do mundo têm uma semelhança tão
monótona, se comparados com a quase fantástica variedade dos santos. A
obediência é o caminho da liberdade. A humildade é o caminho do prazer. E a
unidade é o caminho que conduz à personalidade." 47
A despeito desse coro de sabedoria acumulada, há momentos em que
parece mais fácil prosseguir sozinho na fé. No tempo de João, havia risco
político nas reuniões. A fé individual teria sido mais segura e mais conveniente.
Algumas vezes, os outros incomodam; a fé em Cristo, por si só, não torna uma
pessoa interessante nem faz dela companhia estimulante. A fé secreta e
individualizada não precisa suportar relacionamentos entediantes com
peregrinos destituídos de imaginação. Mas o testemunho bíblico desafia
constantemente nossa tendência ao isolamento e ao individualismo: "Não é
bom que o homem esteja só"; "Tornarei a sua descendência tão numerosa
como o pó da terra"; "Não deixemos de reunir-nos como igreja"; "Vocês, orem
assim: 'Pai nosso'"; "Ame o seu próximo como a si mesmo"; "Levem os fardos
pesados uns dos outros". A vida de fé se desenvolve sob a imagem da
Trindade, no contexto da comunidade.
Quando se voltou na direção da voz de trombeta que chamava sua atenção,
a primeira coisa que o apóstolo João viu foram os sete candelabros de ouro,
que "são as sete igrejas" que ele pastoreava. Então, no meio deles, viu
"alguém semelhante a um filho de homem", Jesus, o Cristo, visto bem perto do
povo reunido para ouvir, orar, crer e adorar, pessoas para quem Ele era o
Senhor e Salvador. É impossível ter Cristo sem a igreja. Nós tentamos.
Gostaríamos muito de evitar o envolvimento nas contradições e distrações das
outras pessoas que acreditam nele, ou afirmam que crêem. Desejamos o Cristo
que é apenas bondade, beleza e verdade. Preferimos adorá-lo diante de um
magnífico pôr-do-sol, das notas inspiradoras de uma sinfonia que nos eleva, ou
de uma poesia tocante. Gostaríamos de colocar a maior distância possível
entre nossa adoração e a indiferença e o moralismo exagerado que sempre
conseguem, de uma forma ou de outra, entrar na igreja. Somos ardentes para
com Deus, mas frios para com a igreja. Não é falta de religião ou indiferença
que faz muitos se afastarem; é exatamente o oposto: eles entendem e
experimentam a igreja como um poluente cancerígeno no ar puro da religião.
Muitos, desejando alimentar a fé em Deus, em lugar de se integrar a uma
companhia de santos que continuam a parecer e a agir como pecadores, fazem
uma longa caminhada por uma praia, escalam uma montanha ou se dedicam a
ler Dostoievski, Stravinski ou Georgia O'Keeffe.
Mas o evangelho diz não a todo esse esteticismo pretensioso: "Escreva às
sete igrejas." Seria mais de nosso agrado ir diretamente da visão maravilhosa
de Cristo (Ap 1) para o êxtase glorioso do céu (Ap 4 e 5), ou então para as
grandes e vitoriosas batalhas contra a perversidade do dragão (Ap 12 a 14).
Mas é impossível. É necessário lidar antes com a igreja. O caminho de Cristo

47 C. S. Lewis, Peso de Glória (São Paulo: Vida Nova, 1993), p. 42.


ao céu e às batalhas contra o pecado passa pela igreja. Não apenas uma, sete!
Gwendolyne Greene, sobrinha do barão von Hugel, tentou se afastar da
igreja, porque só se satisfazia "com o melhor". Reclamava que toda igreja que
conhecia era complicada, entediante e repulsiva. Como é possível alguém ser
elevado nas asas da adoração a Deus se estiver cercado por arquitetura feia,
hinos fora do tom, sermões destituídos de inteligência e hipócritas cochilando?
Mas o bom e velho barão não a deixou escapar e escreveu-lhe:
A beleza tocante e arrebatadora do cristianismo depende de algo sutil que todos esses
aborrecimentos ignoram. Sua grandeza, seu gênio especial, consiste, tanto quanto qualquer
coisa mais, em superar o tédio. A alma dominada pelo enfado encontra-se apenas circulando
pelos arredores do cristianismo; ainda não entrou no santuário, onde o heroísmo é sempre
familiar; onde o melhor implica sempre no estímulo para ajudar outros a deixarem de ser (no
verdadeiro sentido) semi-articulados, apáticos, infantis, partes da repulsiva multidão de
segunda, terceira e quarta categorias [...] As filosofias pagãs, todas, falharam em superar o
tédio e o desencanto; só o cristianismo conseguiu. E somente o cristianismo — e eu me refiro
ao cristianismo levado a sério até sua dimensão última — vai além da insipidez da vida. A
realidade sem Deus é, na verdade, uma coisa abominável. Apenas a plena, e verdadeiramente
livre, beleza de Cristo nos liberta desse cativeiro infeliz. 48
Uma leitura rápida das mensagens às sete igrejas deixa claro que "—
igreja" não é uma aristocracia espiritual. Igreja não é nada mais que uma
comunidade de crentes comuns em uma região geográfica específica. As
comunidades não são citadas em termos de caráter, piedade ou heroísmo, mas
apenas pela localização: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e
Laodicéia. As sete cidades se localizavam em um circuito postal romano, a
Turquia atual. Cada uma pode ser identificada no mapa, e todas foram
escavadas por arqueólogos.
Embora apresentadas pela geografia, as igrejas foram definidas pela
teologia. Uma congregação se forma com pessoas que moram em uma cidade
específica, fazem compras nos supermercados locais, trabalham na economia
da região e falam a mesma língua de seus vizinhos. Todavia, as igrejas
consistem em algo muito diferente das condições gerais de piedade, cultura e
política, mas, sobretudo, na relação com a pessoa de Jesus Cristo. Deus cria a
igreja. O Espírito Santo sopra sobre a população perdida e caótica, "sem forma
e vazia", e estabelece um povo de Deus, uma igreja. O Cristo vivo define cada
uma das sete comunidades, e todas as que as seguiram até hoje. Uma igreja
só existe em relação a Ele. Fora dele, ela teria localização, mas seria destituída
de identidade.
A congregação de Éfeso adquire sua identidade "daquele que tem as sete
estrelas em sua mão direita e anda entre os sete candelabros de ouro"; a de
Esmirna, "daquele que é o Primeiro e o Último, que morreu e tornou a viver"; a
de Pérgamo, "daquele que tem a espada afiada de dois gumes"; a de Tiatira,
"daquele cujos olhos são como chama de fogo e os pés como bronze
reluzente"; a de Sardes, "daquele que tem os sete espíritos de Deus e as sete
estrelas", a de Filadélfia, "daquele que é santo e verdadeiro, que tem a chave
de Davi. O que ele abre ninguém pode fechar, e o que ele fecha ninguém pode
abrir"; a de Laodicéia, "do Amém, a testemunha fiel e verdadeira, o soberano
da criação de Deus". Não existe igreja fora de Cristo. Os elementos da visão no
primeiro capítulo definem as comunidades de Apocalipse 2 e 3.
É impossível descobrir a natureza da igreja por meio da sociologia. Pela
análise da piedade de um povo não se chega à identidade da congregação. A

48 Baron Frederich von Hugel, Selected Letters 1896-1924, editor Bernard Holland (Nova York: E. P.
Dutton, 1933), p. 258.
palavra de Cristo forma a igreja, e Ele a sustenta por meio de seu ser.
Nenhuma análise institucional objetiva, nenhuma introspecção espiritual
subjetiva apontará essa verdade. É uma revelação de Cristo. As análises
sociológicas, tão caras aos reformadores, são praticamente inúteis. Os
lamentos escritos sobre a igreja, que tanto agradam aos moralistas, são ainda
piores. A característica única da igreja é a identidade a ela conferida por Cristo
e a vida em comum estabelecida pelo Espírito.
O Cânon Muratório, do segundo século, observou que tanto Paulo quanto
João escreveram às sete igrejas. Esse número inclui todas que existem. Cada
uma se localiza em um lugar específico. Toda igreja existe sob condições
geográficas, políticas e econômicas específicas; toda igreja é visível. Ao
mesmo tempo, cada uma recebe sua identidade de Cristo e do que Ele faz. As
igrejas existem a partir dele; e são invisíveis a todos que, sem fé, cerram os
olhos para aquele que é "semelhante a um filho de homem". Separados do
Cristo revelado a nós nessa visão, não passamos de uma sociedade de almas
piedosas (e às vezes nem tão piedosas). Além disso, embora todas recebam
sua identidade de Cristo, cada uma recebe uma parte: só um elemento da
visão. Nenhuma exibe a perfeição de Cristo. É impossível olhar para uma
congregação e encontrar nela toda a representação de Cristo, embora com
toda a certeza possamos ser levados a essa totalidade se ouvirmos o que "o
Espírito diz às igrejas" e respondermos em adoração.
Uma frase se repete, sem variação, nas sete mensagens: "Aquele que tem
ouvidos ouça o que o Espírito diz às igrejas." 49 A despeito das diferenças entre
as igrejas, dois fatos são constantes: o Espírito fala, e o povo ouve. A igreja
reúne pessoas para quem Jesus cumpre suas promessas: "... Eu o enviarei [o
Consolador]. Quando ele vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do
juízo. Do pecado, porque os homens não crêem em mim; da justiça, porque
vou para o Pai, e vocês não me verão mais; e do juízo, porque o príncipe deste
mundo já está condenado [...] Mas quando o Espírito da verdade vier, ele os
guiará a toda a verdade. Não falará de si mesmo; falará apenas o que ouvir, e
lhes anunciará o que está porvir" (Jo 16:7-11,13). Para que a promessa se
cumpra, os ouvidos devem estar atentos às palavras ditas pelo Espírito. Ouvir é
tarefa comum na igreja. As congregações são postos de escuta.
Ouvir, muito mais do que função acústica, é ato espiritual. Os equipamentos
de som caros e sofisticados não ajudam a ouvir; limitam-se a possibilitar a
audição. Porque frequentemente ouvir se deteriora em audição, e porque não
existe igreja se o povo não ouvir, a última palavra dirigida a todas as igrejas é
"aquele que tem ouvidos ouça o que o Espírito diz às igrejas". De Gênesis
("Disse Deus: Haja...") até Jesus ("Aquele que é a Palavra tornou-se carne e
viveu entre nós"), a palavra pessoal ocupa posição central, e, portanto, o ato
pessoal de ouvir é essencial. Bocas falam para que meus ouvidos possam
ouvir. O que começa como função física se transforma em reação espiritual.
Quando isso não acontece, o problema é diagnosticado como "ouvidos surdos"
(Is 6:10). Uma expressão do hebraico fala de abrir os ouvidos para que a
palavra de Deus possa entrar.
"Ele me acorda manhã após manhã, desperta meus ouvidos para escutar
como alguém que está sendo ensinado, o Soberano, o Senhor, abriu os meus
ouvidos, e eu não tenho sido rebelde; eu não me afastei" (Is 50:4-5). Foi
prometido que, quando a era messiânica chegasse, os ouvidos surdos seriam
49 Apocalipse 2:7,11,17, 29 e 3:6,13,22.
restaurados (Is 35:5). E, quando Jesus veio, um dos fatos mais evidentes foi a
abertura de ouvidos por Ele (Mc 7:33). O professor Horst considera significativo
que na declaração sobre cortar mão ou pé e arrancar olho (Mc 9:43-47), Jesus
não tenha falado sobre mutilar o ouvido. "Ouvir é indispensável, por causa da
pregação."50
Mateus, Marcos e Lucas registram todos a parábola de Jesus a respeito de
ouvir, com sua marcante conclusão: "Aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça!"
Se a palavra divina é fundamental, a audição humana é essencial: exige-se de
nós ouvir, e a forma como ouvimos também é importante. A parábola, que tem o
solo como metáfora para ouvidos, fornece uma ferramenta engenhosa para um
teste auto-aplicável: qual a qualidade do meu ouvir? Estarão meus ouvidos
endurecidos, impenetráveis como uma via de trânsito pesado? Será minha
atenção apenas superficial, como um solo rochoso em que tudo brota mas
nada firma raízes? Serão meus ouvidos semelhantes à erva daninha, que não
discrimina o que ataca, onde o que é barulhento e repetitivo toma todo o
espaço sem dar lugar a verdade, qualidade, beleza e frutificação? Ou serão
eles como o solo bom, que recebe a palavra de Deus prontamente, um solo
bem cuidado, que acolhe raízes profundas, que escolhe conscientemente a
palavra de Deus, rejeita as mentiras do mundo e aceita a grande
responsabilidade de proteger e praticar o dom de ouvir em silêncio, reverência
e atenção para que a palavra de Deus seja ouvida, entendida e recebida?
Essa parábola tem enorme importância para os cristãos, pois enfatiza a
primazia do ouvir e expõe as várias maneiras em que podemos escutar sem
ouvir de fato. Além disso, insiste na responsabilidade de ouvirmos: "Aquele que
tem ouvidos para ouvir, ouça." Tudo isso é trazido a uma conclusão
impressionante, no lugar exato em que precisa ser levado a sério e obedecido:
a igreja; onde as pessoas se reúnem para abrir deliberadamente os ouvidos
para ouvir com precisão e fé os sons da palavra de Deus.
Marshall McLuhan fez uma observação perspicaz: a natureza não equipou a
humanidade com "tampas" para os ouvidos. Contudo, compensamos essa falta
com atenção seletiva. Temos uma surdez conveniente para o que vai contra
nosso orgulho, exige obediência, interrompe fantasias ou chama atenção para
nossos erros. "Ouvidos surdos" tornam possível buscar prazeres indevidos,
entregar-se a sonhos vazios e a fugir de tarefas difíceis, com apenas um
pequeno incômodo na consciência. Entretanto, essa conveniência tem um
preço exorbitante: sacrificamos grandes porções da realidade em troca desses
confortos breves, superficiais e, principalmente, desumanizantes. Poucos se
dão conta do que perdem, de que há imensas sinfonias reverberando pelos
corredores da história enquanto eles ouvem apenas o rugido de dobradiças
enferrujadas. Muitos não percebem que há vozes de trombeta arrebatadoras
ressoando com as alturas e profundidades da glória, e eles só escutam os
resmungos e gemidos de seus vizinhos superalimentados e destituídos de vida.
Os que se dão conta de tudo isso buscam a cura em Cristo. O Salvador coloca
os dedos sobre os ouvidos e ordena: "Ephphatha". A antiga profecia de Isaías se
cumpre mais uma vez, e outra e mais outra. Com ouvidos que ouvem, essas
pessoas se reúnem nas igrejas para exercitarem sua recém-adquirida
capacidade. Ouvem Deus falar para criar e ordenar, consolar e dirigir, salvar —
palavras que fazem novas todas as coisas: "Aquele que tem ouvidos ouça o
que o Espírito diz às igrejas."
50 Johannes Horst, TDNT,5:551 .
Entre a abertura com a identificação cristológica e o chamado final
evangélico para ouvir, há uma mensagem individualizada para cada uma das
sete igrejas. O conteúdo difere, mas há um esboço comum que serve a um
propósito: fornecer orientação espiritual a um povo chamado a viver pela fé em
Cristo no mundo, mas sem ser do mundo. Essa orientação começa com uma
afirmação seguida por uma correção e conclui com uma promessa. Em
primeiro lugar, há um comentário positivo; em segundo, uma disciplina de
correção; e, em terceiro, uma promessa motivadora. Em duas igrejas (Sardes e
Laodicéia), não aparece a palavra de afirmação. Em uma (Esmirna) falta a
disciplina. A não ser por isso, a orientação espiritual tem três partes em todas
as igrejas.
A impressão mais marcante na visão do Filho do Homem em Apocalipse 1 é
a grande efusão de luz, a incandescência estonteante. A luz jorra da imagem
com grande força e quantidade e inunda as igrejas. É a luz do primeiro dia de
Gênesis, que ilumina cada pessoa que entra neste mundo. 51 A luz tem dois
efeitos: mostra o que é bom e, portanto, deve ser nela celebrado, e também
expõe ao seu calor curador tudo que é pecaminoso. A luz revela e cura.
O primeiro elemento da orientação espiritual é uma afirmação precisa. Cada
mensagem começa com o Senhor dizendo: "Conheço..." (oida) J. M. Ford
traduz esse termo como "Eu discirno...", 52 verbo fundamental em toda
orientação espiritual. Cada mensagem demonstra conhecimento exato de tudo
que acontece na congregação. A mensagem se desenvolve de acordo com os
fatos econômicos, culturais e políticos da cidade e da igreja. A situação social
externa e a situação religiosa interna se unem na mensagem formulada. O
conhecimento dEle não é exterior, como seria o de um jornalista dedicado; é
um conhecimento preciso do que significa viver como povo de Deus naquele
lugar — conhecimento compreensivo do que implica, para eles, viver no nome
de Jesus.
As igrejas recebem elogios pelo trabalho árduo, incansável e atento (Éfeso);
sofrimento corajoso (Esmirna); ousadia no testemunho (Pérgamo); crescimento
e desenvolvimento do discipulado (Tiatira) e bravura e constância (Filadélfia).
Não somos avaliados pela contribuição à sociedade nem pelo nosso potencial.
A igreja é uma comunidade em que o que somos e fazemos é reconhecido e
celebrado de maneira muito diversa da do mundo. Assim, ela é um lugar
glorioso: vidas calmas, discretas e corajosas se desenvolvem a partir das
afirmações que nela acontecem. Muito diferente dos incentivos que a
sociedade supõe serem necessários para manter motivação e
empreendimento, essas pessoas exercitam a constância.
No entanto, a igreja é também um lugar lastimável. A verdadeira vida de
Cristo, essencial para se alcançar uma humanidade completa, lhe dá forma e a
sustém. Símbolos que afirmam a segurança do amor de Deus a caracterizam.
Contudo, há sempre alguns (e frequentemente muitos) que vivem como
parasitas nessas verdades vigorosas e engordam com o sangue vivo da
redenção. Os de fora vêem apenas os parasitas e pensam que eles são a
igreja. Isso não é verdade, assim como os pregos não são o casco do navio.
Nenhuma igreja jamais existiu em estado puro. É composta por pecadores. As
pulgas acompanham o cachorro.
Além dos pecados que as pessoas levam para a comunidade de fé quando

51 Gênesis 1:3; João 1:9.


52 J. Massyngberde Ford, The Revelation of St. John (Garden City, NY: Doubleday and Co., 1975), p. 386.
passam a fazer parte dela, há outros que se desenvolvem a partir da própria
vida na fé. Os piores pecados não são nem mesmo possíveis para os que não
crêem. Assim, a correção é essencial à orientação espiritual: "tenho contra
você...". A igreja atrai pessoas que apreciam um ambiente santo mas que não
têm o menor interesse em desenvolver a santidade pessoal. Apreciam trabalhar
em comissões e sentem-se seguras em organizar a vida dentro das confiáveis
tradições de seus pais. Não faltam aos cultos dominicais e sentem-se
fortalecidas pelas instruções morais de seus líderes. Entretanto, não anelam
por santidade, alegria e amor. São totalmente convencionais e inteiramente
obtusas. Buscam a igreja como um santuário onde viver em ócio santo. Só
sabem sobre Cristo aquilo que pode ser tomado como um calmante. Assim, a
igreja precisa passar constantemente por renovações: "Tenho contra você...".
Cinco das sete igrejas (as exceções são Esmirna e Filadélfia) demandavam
algum tipo de renovação. Uma característica que fica evidente é que as
comunidades mantinham a forma de religião mesmo depois de perder o
Espírito. Recebem correção por abandonar o primeiro amor por Cristo (Éfeso);
ser indiferente aos ensinamentos heréticos (Pérgamo); tolerar a imoralidade
(Tiatira); demonstrar apatia (Sardes) e permitir que a riqueza e o luxo
substituíssem a vida no Espírito (Laodicéia). "Nenhuma outra instituição",
escreveu Charles Williams, "sofre tanto o desgaste do tempo quanto a religião.
No momento em que existe a possibilidade remota de que uma geração tenha
aprendido alguma coisa tanto de teoria quanto de prática, os aprendizes são
removidos pela morte e a igreja confronta-se com a necessidade de recomeçar
tudo. O esforço para regenerar a humanidade tem que voltar ao ponto de
partida a cada 30 anos, mais ou menos." 53 Nenhuma das igrejas de Apocalipse
tinha mais de meio século de existência; contudo, a degeneração já se
encontrava em processo. Adotaram movimentos religiosos depois que a
motivação do Espírito se esgotara. A vida modorrenta dessas igrejas apoiava-
se na base comida de cupins que um dia fora uma religião vigorosa.
O terceiro elemento da orientação espiritual é a promessa. A promessa
motivadora de toda igreja é a mesma: a vida eterna; mas apresentada sob
imagens diferentes: árvore da vida (Éfeso), coroa da vida (Esmirna), pedra
branca (Pérgamo), estrela da manhã (Tiatira), vestes brancas (Sardes), coluna
do templo (Filadélfia) e comer e reinar com Cristo (Laodicéia). Nenhuma
afirmação se sustém, e nenhuma disciplina é levada a efeito, sem a devida
motivação. A promessa da vida eterna, não como recompensa, mas como o
destino final da vida de fé, é a motivação adequada para o "vencedor". 54
Esse esboço resume a orientação espiritual que devemos receber na igreja.
A igreja é o lugar aonde vamos para descobrir o que estamos fazendo certo —
lugar de afirmação. Mas a igreja é também o lugar onde buscamos saber em
que estamos errando — lugar de correção. Na igreja, ansiamos ouvir as
promessas — lugar de motivação. Nenhuma comunidade cristã sobrevive som
qualquer das parles dessa mensagem. Precisamos de afirmação, correção e
motivação.
Na igreja, estamos sempre no processo de receber afirmação. Identificamos
as partes de nossa vida que estão bem, e isso nos traz alegria, confiança e
segurança. Estamos sempre no processo de correção. Encontramos aquilo que
não está funcionando bem. A palavra de Deus é incansável em insistir conosco

53 Charles Williams, The Descent of the Dove (Nova York: Meridian Books, 1956), p. 83.
54 Apocalipse 2:7,11,17,26 e 3:5,12,21.
para encarar a preguiça, o orgulho e a avareza — tudo que nos separa da
vitória completa de Deus em nós, cada parte de nós que está doente ou que é
imatura, que acaba com nossa alegria ou interfere na salvação dos outros.
Além disso, estamos sendo motivados. Nada do que fazemos na fé é de curto
prazo. Tudo é de longo alcance. A motivação para viver vigorosamente a vida
toda precisa ser adequada para nos sustentar através dos vales sombrios e
dos desertos secos. A promessa da vida eterna, e apenas ela, basta para trazer
essa motivação.
Essa tríplice orientação espiritual capacita o povo de Deus para viver em fé,
confiante nele, em ambiente hostil. O processo de afirmação, correção e
promessa é o que os gregos chamavam de paidea, processo complexo pelo
qual a comunidade passa adiante sua paixão e sua excelência. 55 Repreendo e
disciplino [paideuo] aqueles que eu amo" (Ap 3.19). O treinamento acontece em
sete áreas: somos ensinados a amar (Éfeso), sofrer (Esmirna), falar a verdade
(Pérgamo), ser santos (Tiatira), ser autênticos (Sardes), cumprir a missão
(Filadélfia) e adorar, usando tudo para louvar a Deus e recebendo dons para
servi-lo (Laodicéia). A igreja é a comunidade de pessoas que explícita e
conscientemente se submetem à direção e ao ensino do nosso Senhor, o
Espírito, para buscar excelência nessas sete áreas. Reconhecem e
desenvolvem seus pontos positivos e expõem e corrigem suas fraquezas.
Somos encorajados (ninguém é completamente mal) e corrigidos (ninguém é
completamente bom). Tornamo-nos motivados, adquirindo energia interior para
perseverar através da dor do crescimento e chegar à satisfação da inteireza e
perfeição.
O apóstolo João não se queixa nem exalta suas igrejas. Ele as toma como
fatos. Elas são o meio que Deus utiliza para unir as pessoas, para que
entendam quem é seu Senhor, quem elas mesmas são e, assim, desenvolvam
relacionamentos coerentes com essas identidades. As sete cartas sucintas de
João são um alívio para pessoas e congregações bombardeadas com análises
entediantes, detalhes e reclamações. Entorpecidos pelo excesso de preletores
seculares, reagimos com gratidão diante das cartas misericordiosamente
breves do apóstolo. Se há uma coisa que a igreja não precisa é de análises
extensas. O Apocalipse tem se mostrado imensamente bem-sucedido na
capacitação de igrejas para florescer em tempos de dificuldades. E, se esse
livro é confiável também para nós, precisamos de: visão, esperança e
encorajamento, além de um pouco de orientação discreta, direta e sensata.
O Apocalipse mostra que as igrejas são diferentes dos salões vitorianos que
estão sempre preparados para receber convidados. Elas são como as salas da
maioria das casas residenciais, um tanto desarrumadas. Muitas vezes, quando
fazemos uma visita sem sermos esperados, somos recebidos com muitos
pedidos de desculpas e explicações. O apóstolo não pede desculpas. Claro
que as coisas estão fora do lugar, mas é isso que acontece nas igrejas em que
há vida. Elas não são vitrines. São salas onde vivem pecadores. Há roupas
espalhadas, marcas de dedos na parede e lama no tapete. Enquanto Jesus
insistir em chamar pecadores e injustos ao arrependimento — e não há
qualquer sinal de que Ele tenha mudado sua política a esse respeito —, as
igrejas continuarão sendo uma vergonha para os exigentes e uma afronta para
os justos. Para João, elas eram apenas candelabros: lugares, locais, onde a luz

55 Werner Jaeger, Paidea: lhe Ideals of Greek Culture (Nova York: Oxford University Press, 1943), vol. 2, p.
VI.
de Cristo é demonstrada. Não são a luz. Não há nenhum glamour especial nas
igrejas, nem, por outro lado, nada particularmente vergonhoso nelas.
Simplesmente existem. A igreja está para o evangelho assim como o corpo
está para a pessoa: necessário sob as condições de nossa criação, mas não é
a essência. O corpo pode sofrer abusos por excesso de alimentação ou de
trabalho e ser desfigurado por acidentes ou doenças. Ainda assim, continua
necessário. Muita gente realiza obras admiráveis em corpos maltratados,
negligenciados e inadequados. Além disso, o corpo pode ser tratado e
perfumado sem qualquer intenção de trabalho ou amor e, mesmo assim, ser
instrumento para os dois. O mesmo ocorre com a igreja. Embora corrompida,
continua agindo como igreja. Candelabros sujos não apagam a luz de Cristo. A
despeito dela mesma, a igreja petrificada ainda funciona como tal: o brilho do
ouro polido é menor do que o da luz de Cristo. Claro que é melhor que nada
disso aconteça, que a igreja não seja maculada, negligenciada nem polida por
simples vaidade. O melhor é que ela simplesmente exista, sem consciência de
si mesma e sem chamar atenção, mas sempre recebendo e compartilhando a
luz de Cristo.
Muita ira voltada contra a igreja e a maioria das decepções que nela
ocorrem resultam de expectativas frustradas. Queremos ver um exército
disciplinado de homens e mulheres comprometidos que perseguem com
coragem os poderes deste mundo, e, em lugar disso, encontramos pessoas
preocupadas em acabar com a praga que está se espalhando na grama do
jardim de sua casa. Esperamos encontrar uma comunidade de santos maduros
nas virtudes de amor e misericórdia, e acabamos trabalhando para preparar um
jantar na igreja onde há mais fofoca do que comida. Desejamos ver mentes
informadas e moldadas pelas grandes verdades e ritmos das Escrituras, e nos
deparamos com pessoas cuja energia intelectual mal dá para levá-las das
revistas em quadrinhos até as páginas esportivas dos jornais. Quando isso
tudo acontece, é mais importante examinar e modificar nossas expectativas do
que transformar a igreja, pois ela não é o que organizamos, mas, sim, o que
Deus concede; não as pessoas que escolhemos para serem nossa companhia,
mas as que Ele nos dá para estarem conosco — uma comunidade criada pela
descida do Espírito Santo, na qual nos submetemos à afirmação,
transformação e motivação do Espírito. Não pode haver idealização da igreja, e
a lamentação deve ser tolhida. Tanto o auto-elogio quanto a angústia estão fora
de lugar. As igrejas, velhas ou novas, não são pequenas Jerusalém.
É da vontade de Deus que tenhamos uma igreja. A vida de fé acontece
sempre e necessariamente em uma comunidade de pessoas com uma
localização específica no tempo e no espaço. A geografia tem tanta importância
quanto a cristologia no caminho cristão. Ur, Nazaré, Damasco, Patmos e Tiatira
são tão essenciais quanto os olhos flamejantes daquele semelhante ao Filho
do Homem, cuja voz é como muitas águas. Não há evidência, nem nos anais
do Israel antigo nem nas páginas do Novo Testamento, de que as igrejas
tenham sido muito melhores nem muito piores do que as atuais. Uma escolha
aleatória de sete comunidades em qualquer século, incluindo o nosso, acabaria
mostrando algo semelhante às sete igrejas que o apóstolo João pastoreava.
5.
A ÚLTIMA PALAVRA SOBRE ADORAÇÃO
APOCALIPSE 4-5
Os céus louvam as tuas maravilhas, SENHOR,
e a tua fidelidade na assembleia dos santos.
Pois, quem nos céus poderá comparar-se ao SENHOR?
Quem dentre os seres celestiais assemelha-se ao SENHOR?
Na assembleia dos santos Deus é temível,
mais do que todos os que o rodeiam.
Como é feliz o povo que aprendeu a aclamar-te, SENHOR,
e que anda na luz da tua presença!
SALMO 89:5-7,15
Os quatro seres viventes disseram: "Amém", e os anciãos prostraram-se e o adoraram.
APOCALIPSE 5:14
Preso entre as primeiras orações hesitantes, o silêncio enche este lugar, um ouvir nebuloso
enquanto nosso alheamento busca o foco do Espírito para esta hora e reúne força suficiente
para observar e voar em pequenos e brilhantes arcos de louvor sustentado em suas pontas
pelos hinos antigos. Cristo neste ajuntamento de repouso e elevação humilha-se de novo até
nossa humanidade; e como a ovelha (trêmula nas mãos do tosquiador) entrega-se a nós mais
uma vez em silêncio.
LUCI SHAW 56
A última palavra à igreja de Laodicéia foi um convite à adoração: "Eis que estou
à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei e cearei
com ele, e ele comigo. Ao vencedor darei o direito de sentar-se comigo em meu
trono, assim como eu também venci e sentei-me com meu Pai em seu trono"
(Ap 3:20-21). À mesa do Senhor, houve cântico de hinos, pregação da Palavra,
oração, ofertas, entrega da vida de Cristo sob a forma de pão e vinho. A mesa
do Senhor, para a qual Laodicéia foi convidada, era lugar de adoração.
Talvez essa igreja tivesse negligenciado e até mesmo desprezado a
adoração. Os membros da comunidade são apresentados como ricos e auto-
suficientes. Nenhuma necessidade os colocava de joelhos em súplica. Também
não existia pobreza que os atraísse a uma comunidade de amigos que tivesse
todas as coisas em comum e compartilhadas em amor. Nenhuma fome e sede
de justiça os impelia à mesa do banquete carregada de bênçãos de redenção:
"Você diz: 'Estou rico, adquiri riquezas e não preciso de nada...'" (Ap 3:17).
A mensagem de João aos cristãos ricos foi severa e acusadora.
Contrariamente à bela aparência deles, o apóstolo viu um grupo "miserável,
digno de compaixão, pobre, cego e que está nu" (3:17). Ele os chama com
ardor ao arrependimento. A palavra de conclusão é uma metáfora: há uma
porta fechada que precisa ser aberta para que eles possam comer a refeição
sacramental para a qual Cristo os convida, compartilhando sua vida com eles.
Uma porta, apenas isso, separa o povo "miserável, digno de compaixão" da
fartura da mesa da Comunhão. O próprio Cristo bate à porta. Com persistência
e paciência, semana após semana, o convite ressoa: "Vamos adorar a Deus."
Abra a porta. Venha para a festa. Aceitarão eles o convite?
A igreja de Laodicéia tinha acabado de ouvir um dos sermões mais
poderosos (e mais curtos!) de toda a história da pregação cristã. O pregador
apresentou o convite: "Estou à porta e bato", e depois o apóstolo conta: "...
olhei, e diante de mim estava uma porta aberta no céu" (Ap 4:1). O povo
aceitou. Através da porta, ele vê os membros de sua igreja reunidos na
56 Luci Shaw, "Bethany Chapel", The Sighting (Wheaton, IL: Harold Shaw, 1981), p. 95.
adoração no Dia do Senhor, como tinha sido costume desde o começo. A visão
agora mostra a eles o significado glorioso do que fazem nos cultos dominicais.
A primeira visão de João do Dia do Senhor mostrou a realidade completa de
Cristo (Ap 1:12-20). Profecias, lembranças e experiências ocorridas durante
centenas de anos foram reunidas para vivermos à luz da revelação completa,
não apenas de pedaços dela. Essa segunda visão mostra toda a realidade da
adoração, nossa resposta à revelação de Cristo. Hinos, sermões,
pensamentos, orações e ofertas vivenciados em vários graus de
despertamento, com mais ou menos entendimento, são colocados juntos em
uma única visão coerente para enxergarmos nossa resposta à realidade viva
de Deus em sua inteireza, e não apenas em segmentos subjetivos. De novo,
João estava "no Espírito" (Ap 4:2), como no dia em que recebeu a visão de
Cristo e as mensagens às sete igrejas (Ap 1:10). Mais uma vez, ele ouve a voz
de trombeta (Ap 1:10; 4:10) e vê o que acontece quando os cristãos adoram.
Quando em culto, os cristãos sentem convicção da presença de Deus.
Adoração é um ato de atenção ao Deus vivo que governa, fala e revela, cria e
redime, ordena e abençoa. Quem está de fora não enxerga nada disso ao
observar os atos de culto. Vê apenas um grupo de pessoas cantando músicas
desconhecidas, algumas vezes fora do tom, alguém lendo um livro antigo e
fazendo comentários que podem ou não interessar aos ouvintes, e depois os
participantes comendo e bebendo pequenas porções de pão e vinho que
devem alimentar a alma eterna da mesma forma que um bife com batatas fritas
sustenta a carne mortal. Quem está certo? Será o culto uma reunião
convocada por iniciativa de Deus, onde pessoas de fé são abençoadas por sua
presença e respondem à sua salvação? Ou será uma charada patética e
algumas vezes desesperada em que tentam chamar a atenção de Deus para
levá-lo a fazer alguma coisa por elas (1 Rs 18)?
Jesus está à porta e bate. O que acontecerá quando abrirmos a porta?
Apocalipse, capítulos 4 e 5, responde à pergunta e dá a última palavra sobre a
adoração, em cinco partes: a adoração centraliza, reúne, revela, sinaliza e
afirma. Em primeiro lugar, na visão, há um trono: "estava um trono no céu", que
havia sido prometido na mensagem a Laodicéia: "... darei o direito de sentar-se
comigo em meu trono." Agora, lá está ele, na adoração. Um trono centraliza a
autoridade. O culto é centralizador. A palavra trono aparece em quase todos os
capítulos de Apocalipse (exceto capítulos 9, 10, 15, 17, 18). Duas vezes refere-
se a centros falsos de autoridade: o trono de Satanás (Ap 2:13) e o da besta
(Ap 16:10).
No culto, Deus reúne seu povo e se coloca no centro: "O Senhor reina..." (Sl
93:1). A adoração é um encontro que visa a levar nossa vida a ser centralizada
em Deus para não sermos destituídos de um ponto centralizador. Nós
adoramos; de modo que vivemos em resposta a esse centro e dependentes
dele, o Deus vivo. Fracasso na adoração nos relega a inclinações instáveis,
ficamos à mercê de toda propaganda, sedução, engodo. Sem o culto,
passamos a manipular e ser manipulados. Avançamos em pânico aterrador ou
letargia enganosa e, então, ficamos alarmados por espectros e nos acalmamos
com placebos. Se não houver centro, não haverá circunferência. Pessoas que
não adoram são levadas pela inquietação epidêmica do mundo, sem direção
firme ou objetivo que as sustente.
Israel passou séculos assolado pelo culto a Baal — centros de adoração
portáteis colocados sobre cada colina e embaixo de cada árvore. Contudo, não
eram centros verdadeiros, mas locações arbitrárias, semelhantes aos locais
para culto ao imperador romano do primeiro século. Em Israel, Jeremias
chamou o povo para voltar ao centro. Alguns ouviram e atenderam. "Nós
viremos a ti, pois tu és o SENHOR, o nosso Deus. De fato, a agitação idólatra
nas colinas e o murmúrio nos montes é um engano. No Senhor, nosso Deus,
está a salvação de Israel" (Jr 3:22-23). As colinas são um engano, assim como
todo lugar casual ou pomposo em que as pessoas procuram um centro fácil e
instantâneo. Gente que não adora vive em um enorme shopping center e
avança de uma loja a outra, desperdiçando imensas quantidades de energia e
fazendo infinitas incursões para atender primeiro às suas necessidades e
depois a seus apetites, inclinações e fantasias. A vida se volta de repente de
uma satisfação parcial para outra, interrompida apenas por fossos de
decepção. O movimento se alimenta de ilusões sucessivas de que, comprando
tal armário, tendo certo carro, comendo determinado alimento ou bebendo
certa bebida, a vida terá um centro e uma coerência.
Acima desses falsos lugares de adoração, Jeremias declarou que havia "um
trono glorioso, exaltado desde o início; é o lugar de nosso santuário" (Ap
17:12). É o mesmo trono que João viu. O trono de Deus — o fato de que ele
existe e Deus está nele — é a revelação da Bíblia. O trono é a revelação
suprema das Escrituras. Ele não é citado no início da história bíblica, mas está
sempre presente. Todas as imagens dos primeiros tempos apresentam os
homens colocando sua vida em um relacionamento com o trono de Deus e, por
isso, encontrando paz; ou se rebelando contra o governo divino e perecendo
por essa razão. O estabelecimento da monarquia em Israel, algo totalmente
maligno, decorreu do fracasso do povo em reconhecer o fato imutável do trono
de Deus. "'Não foi a você que rejeitaram', disse Deus a Samuel, 'foi a mim que
rejeitaram como rei.' Todos os problemas resultaram dessa rejeição." 57
A centralização resulta em uma reunião imensa. A visão primeiro abrange
Deus como centro da realidade, depois aponta aquilo que está reunido em
torno: "... ao redor do qual estavam outros vinte e quatro tronos, e assentados
neles havia vinte e quatro anciãos. Eles estavam vestidos de branco e na
cabeça tinham coroas de ouro". Vinte e quatro é duas vezes 12: as tribos
hebraicas e os apóstolos, o antigo Israel e a nova Igreja.
O trono reúne à sua volta aquilo que havia sido dirigido para Deus através
dos séculos de vida por fé: sacrifício e obediência, pregação e louvor,
arrependimento e ofertas do povo de Israel que se chamava pelos nomes dos
filhos de Jacó e, com eles, os 12 apóstolos enviados por Jesus em atos de cura
e bênção, alimentação e auxílio, libertação e pregação. Todos se reúnem em
torno do centro. As duas dúzias incluem o velho e o novo, profecia e
cumprimento, e tudo que se encontra entre esses dois extremos: tanto olhadas
tímidas e hesitantes para cima em busca de uma deidade indefinida quanto
louvor confiante e consciente ao Deus que se revelou em Jesus Cristo. Cada
capacidade adquirida procura um lugar para trabalhar, cada impulso para amar
anseia encontrar uma pessoa. Cada compromisso firme para negar a si
mesmo, cada decisão clara de seguir a Cristo, junto com toda decisão
fracassada e demanda cega, são reunidas em volta desse trono central.
Poderá essa reunião ocorrer sem apagar elementos significativos da
experiência de qualquer pessoa, sem cancelar verdades, mesmo que mal
sustentadas ou mantidas em parte, sem abafar alguma voz, mesmo que

57 G. Campbell Morgan, Studies in the Prophecy of Jeremiah (Londres: Oliphants, 1969), p. 101.
vacilante ou fraca? Poderá a reunião ser um verdadeiro encontro, e não
apenas uma seleção? Será a energia centralizadora do trono tão arrebatadora
que os presentes serão simplesmente absorvidos, perdendo sua identidade?
As duas dúzias mantêm identidades separadas e, ao mesmo tempo, se
combinam em harmonias convergentes.
Além das pessoas representativas, também há animais representativos em
volta do trono: "... ao redor do trono havia quatro seres viventes" (Ap 4:6). As
quatro criaturas são todos os aspectos da criação, assim como os 24 anciãos
são todas as facetas da fé. O mais nobre (leão), mais forte (boi), mais sábio
(humano) e mais ágil (águia) estão centrados em Deus.
A vida como se encontra é um caos. A matéria-prima servida em nossos
dias é desordem e turbulência. A natureza encontra-se em tumulto,
descontrolada. Nós mesmos estamos indecisos e cheios de conflitos. Parece
ser impossível dominar tudo isso. Aparentemente, não há esperança de
harmonia em meio a tamanho caos. O ato de adoração reúne em seus rituais
centralizadores e ritmos harmonizadores todos os aspectos da criação. O culto
não separa espiritual e natural; ele os coordena. Natural e sobrenatural, criação
e aliança, anciãos e animais, todos reunidos. O culto que despreza a criação
fica empobrecido. A escória da criação, sempre inclinada à destruição, se
coloca em ordem diante do trono e se encontra mais consigo mesma: cada
criatura alerta (cheia de olhos) e voando (com seis asas). Usando as palavras
de George Herbert: "Vós, criaturas de Deus Pai, todos erguei a voz, cantai!"
Na adoração, todos os sinais de vida, impulsos rumo à santidade, toques de
beleza e centelhas de vitalidade — patriarcas hebreus, apóstolos cristãos,
animais selvagens, gado doméstico, seres humanos e pássaros altaneiros —
se colocam em volta do trono que pulsa com luz e mostram o que cada criatura
tem de melhor, pegando todas as cores do espectro para mostrar a glória.
Quanto ao que estava sentado no trono, "era de aspecto semelhante a jaspe e
sardônio. Um arco-íris, parecendo uma esmeralda, circundava o trono". A luz
com as cores de pedras preciosas (jaspe, sardônio e esmeralda) banha todos
que se reúnem para o culto. Vidas desfiguradas pelo pecado, transformadas
em manchas escurecidas, agora voltam a ser vistas em suas verdadeiras
cores. Cada tom desbotado e cada linha indefinida foram restaurados e
readquiriram cor e precisão originais. As pedras são preciosas quando recebem
e intensificam a luz. Ela é composta por todas as cores, entretanto nossos
olhos imperfeitos não conseguem captá-las. Uma pedra seleciona
determinadas cores no ar e as intensifica, demonstrando a glória profunda que
estava na luz o tempo todo. O mundo antigo valorizava as pedras por essa
capacidade de revelar e intensificar as cores da luz, e não para enfeite. A
ordem "Haja luz", registrada no primeiro capítulo de Gênesis, foi pronunciada
desse trono carregado de cor. "Deus é luz; nele não há treva alguma." A
adoração é como uma pedra preciosa que revela todas as cores da luz que
está em nosso interior e à nossa volta e nos deixa ofuscados. Placas feias,
sinais de neon e o ar poluído refletem, rebaixam e filtram a luz, envolvendo o
mundo em um manto cinzento. Então uma pedra preciosa nos mostra o
verdadeiro vermelho, verde ou azul; somos abalados e despertados, voltamos a
nos maravilhar.
Diante do trono que reúne e ilumina todas as pessoas e criaturas, há "um
mar de vidro, claro como cristal". Esse mar vem antes. Para alcançar o trono,
os adoradores precisam passar por ele, que é a pia batismal. No templo de
Salomão, havia um grande mar de bronze, ou seja, uma enorme bacia para
purificação, colocada na entrada do local de culto. Nos primeiros séculos da
era cristã, os cultos aconteciam nas casas. As habitações romanas tinham
sempre na entrada um lugar para limpeza, o pluvinium, e os cristãos usavam
essas bacias como batistério. O batismo era (e é) a porta de entrada para a
adoração comunitária dos cristãos. Em torno do trono, há uma reunião ampla,
mas não i n d i s c r i m i n a d a — é necessário primeiro ser limpo, depois
apresentado, para participar. As águas do batismo, como as do mar Vermelho e
do rio Jordão, com que tantas vezes são identificadas, são águas pelas quais
passamos, deixando para trás um estilo devida e adotando um novo,
milagrosamente vivos e purificados. O "mar" batismal reaparecerá na visão
(15:2). Mais adiante, veremos um altar no lugar de adoração. 58 O trono, o mar e
o altar são os originais gloriosos do púlpito, da pia e da mesa nas
congregações domésticas onde o povo de João se reunia todas as semanas
para o culto do Dia do Senhor.
Em meio a toda essa glória, o apóstolo percebe que há um rolo selado e
que "não havia ninguém, nem no céu nem na terra nem debaixo da terra, que
pudesse abrir o livro, ou sequer olhar para ele. Eu chorava muito, porque não
se encontrou ninguém que fosse digno de abrir o livro e de olhar para ele" (Ap
5:3-4). Mesmo cercado de esplendor e vitalidade, imerso no ato de culto que
confere um centro à vida e reúne todas as coisas diante de Deus, João não
estava satisfeito: "chorava muito".
Um cristão do primeiro século entenderia "livro" como hoje entendemos
Bíblia. Os rolos mais conhecidos eram os grandes rolos das Escrituras nas
sinagogas. Eram respeitados e valorizados. O povo de Deus acredita que ele
fala, que mostra quem é e o que faz. Ele não é deus absconditus; é deus
revelatus. Fala para que seus filhos saibam o que faz em favor deles e
conheçam sua vontade para eles. E essas palavras foram escritas nos rolos,
ou livros. Assim, é bem próprio esperar que um rolo apareça durante o culto.
Mas o livro está selado. O texto foi preservado com cuidado, reverência e
meticulosidade, mas o significado foi lacrado por séculos de discussões e falta
de fé. Era um problema antigo. Setecentos anos antes, Isaías lamentara que a
visão estava selada e ninguém era digno de romper o lacre (Is 29:11-12). Havia
debates, mas não fé; cópia, mas não obediência. Um dos pontos altos e uma
das maiores glórias da adoração cristã foi que a pregação de Cristo destruiu o
lacre dos rolos das Escrituras. Na sinagoga de Nazaré, Ele estabeleceu o
padrão: "E levantou-se para ler. Foi-lhe entregue o livro do profeta Isaías.
Abriu-o [...] Então ele fechou o livro [...] e ele começou a dizer-lhes: 'Hoje se
cumpriu a Escritura que vocês acabaram de ouvir'" (Lc 4:16-21). Jesus quebrou
o selo ao revelar o significado presente, o início de sua liderança no Reino de
Deus, as boas novas.
Lucas relata uma repetição desse padrão alguns anos mais tarde. Filipe
encontrou um etíope lendo o rolo de Isaías enquanto viajava para Gaza. Eles
conversaram: "'O senhor entende o que está lendo?' [...] 'Como posso entender
se alguém não me explicar?'" (At 8:30-31). Então Filipe o ensinou a ler como
ele mesmo havia aprendido. Pregou a Cristo, e Cristo abriu o livro. O etíope
estava lendo Isaías 53. Filipe identificou o "cordeiro" de Isaías com "as boas
novas de Jesus". Cristo, o Cordeiro, abriu o livro e revelou a palavra de Deus
de forma que foi entendida de imediato e pessoalmente. O viajante perplexo
58 Apocalipse 6:9; 8:2; 9:13.
não estava mais confuso: ouviu, creu e foi batizado. Assumiu seu lugar diante
do trono em adoração e depois, "cheio de alegria, seguiu o seu caminho" (At
8:39).
Na visão, as lágrimas de João cessam no momento em que o Cordeiro
pega o livro. O som que vem a seguir não é de pranto; é um grande hino de
redenção, confiante na salvação do mundo: "... com teu sangue compraste
para Deus gente de toda tribo, língua, povo e nação" (Ap 5:9). O texto lido e
pregado mostra que Cristo (o Cordeiro) revela o sentido de minha vida e
cumpre meu destino. Sem a pregação, por mais esplêndido que seja o trono e
por maior que seja o número dos anciãos e das criaturas, não há certeza de
que eu me incluo, e, como consequência, vem desespero suficiente para levar
uma pessoa ao pranto. Não basta enxergar o trono glorioso, ouvir os cânticos
maravilhosos e entender como são vastas as inclusões. Se não descubro que
eu me incluo, não conseguirei louvar; minha reação será o choro. Se não
consigo me ver entre os que jogam a coroa para o alto e gritam de alegria,
despreocupados, minha única atitude será curvar a cabeça e chorar.
O pranto de João é o pivô emocional do ato de culto. E quanto a mim? O
que dizer sobre o mundo em que vivo? Como este pecador altamente incapaz,
que vive neste mundo perverso, se encaixa em tudo isso? De pouco adianta
saber que Deus é santo, se estou excluído da santidade. A existência pessoal é
questionada diante da majestade e santidade divinas. A pregação responde à
pergunta. Ela se dirige à recém-descoberta pobreza daquele que se encontra
estarrecido diante dos sinais de esplendor santo. Assim, apresenta a palavra
pessoal que convida a participar da adoração. A pregação liberta a palavra do
cativeiro sob o livro selado e a leva para fora, proclamando "o ano da graça do
Senhor" (Lc 4:19). E deixa claro que o grande ato da redenção inclui na glória
cada pessoa: "Não chore! Eis que o Leão da tribo de Judá, a Raiz de Davi,
venceu para abrir o livro e os seus sete selos." Adoração é pregação: abrir o
livro, ler o evangelho, convidar o pecador, demonstrar as dimensões pessoais
da eterna e gloriosa vontade de Deus. O livro de Atos e as cartas de Paulo
estão repletos dessa pregação: as novas de Deus haviam chegado — e eram
boas!
Algo acontece com os adoradores durante o culto: mentes são esclarecidas,
percepções entram em foco, espíritos são renovados. Enquanto isso, a
conversa comum, a prosa impaciente e banal, as danças — tudo é condensado
em poesia e depois elevado em música. A adoração canta. Música é a fala
intensificada e expandida. Toma os ritmos naturais e o timbre da fala e
desenvolve os acentos e entonações.
Há cânticos por toda parte das Escrituras. O povo de Deus canta, expressa
vigor ao entender a majestade de Deus e a misericórdia de Cristo, a perfeição
da realidade e sua recém-descoberta capacidade de participar disso. As
músicas proliferam. Hinos reúnem as vozes de homens, mulheres e crianças
em corais que cobrem séculos. Moisés, Miriã, Débora, Davi, Maria, anjos,
Jesus, os discípulos, Paulo e Silas cantam. As pessoas de fé também cantam
quando se conscientizam de quem é Deus e do que Ele faz. Não há como
deter a música.
No ato de adoração descrito em Apocalipse 4 e 5, são entoados cinco
cânticos, mas a música não se limita a esses capítulos. Isso não poderia
acontecer. Não há como colocá-la "em seu devido lugar". Os cânticos ressoam
por todo o Apocalipse.59 Quando o julgamento chega a Babilônia, o lugar da
antiadoração, a música cessa: "Nunca mais se ouvirá em seu meio o som dos
harpistas, dos músicos, dos flautistas e dos tocadores de trombeta..." (18:22).
Os primeiros cinco cânticos estabelecem o padrão para a adoração. Os dois
primeiros são hinos a Deus, o Criador; os dois seguintes, a Cristo, o Redentor;
o quinto é um hino ao Criador e Redentor juntos, combinando os temas que,
como água de poços artesianos, jorram para a superfície, transformando-se em
música sempre que os cristãos adoram.
O primeiro cântico adora a essência de Deus. Composto por três linhas,
cada uma consistindo em três palavras ou frases, apresenta a perfeição da
Trindade. Todo ser se inclui em Deus. Toda realidade também. No centro, tudo
é puro e poderoso, pessoal e majestoso, eterno e temporal. Os seres viventes
formam um quarteto e cantam:
Santo, santo, santo
É Senhor Deus Todo-poderoso
Ele é, Ele era, Ele virá.
O segundo cântico conecta nossa resposta de adoração à bondade criadora
de Deus. Quem Ele é e o que Ele faz se relacionam a como somos feitos e
quem somos. Os anciãos representativos, que experimentaram em Israel e na
Igreja o prazer de serem criados, abençoados e guiados por Deus fazem o
coro.
Digno! Ó Senhor, Sim!
Nosso Deus: recebe a glória! a honra! o poder!
Tu criaste tudo.
Tudo que existe é criado.
O terceiro cântico se dirige a Cristo, o Cordeiro de Deus. Agora o louvor liga
nossa resposta de adoração à misericórdia redentora de Deus. A primeira linha
é idêntica à do segundo cântico, mas o tema muda para a redenção e nossa
participação nela. Os cantores são os mesmos 24 anciãos que haviam louvado
a boa criação e agora entendem o milagre da redenção.
Digno! Recebe o livro, abre os selos.
Imolado, pagando em sangue, tu compraste para Deus pessoas
De cada família e língua e cultura e raça.
Depois as fizeste sacerdotes do reino para o nosso Deus
Sacerdotes-reis, governarão a terra.
O quarto cântico começa como o terceiro, mas usa a atribuição do segundo.
É cantado por uma multidão incontável de anjos. O novo aspecto é que agora
se dirige ao Cordeiro redentor. A redenção assume seu lugar ao lado da
criação.
O cordeiro imolado é digno! Recebe o poder,
a riqueza, a sabedoria, a força,
a honra, o poder, a bênção!
O quinto cântico, que repete "bênção e honra", reúne as glórias gêmeas da
criação (Rei) e redenção (Cordeiro) e as eleva em louvor, envolvendo em um
mesmo coral as vozes de todas as criaturas e anjos.
Para o Rei! para o Cordeiro!
A bênção, a honra, a glória, a força
Por era após era após era.
Quem adora, canta. Na vida eclesiástica, os hinários são livros de orações.
O culto suscita respostas profundas de adoração que tomam a forma de ritmos
e melodias de gratidão, e envolve a voz de criaturas de todos os lugares e
tempos e as coloca para trabalhar harmoniosamente em louvor.
59 Apocalipse 7:10,12; 11:17-18; 14:2-3; 15:3-4; 19:1-3; 19:6-8.
A palavra final na adoração é amém: "Os quatro seres viventes disseram:
'Amém', e os anciãos prostraram-se e o adoraram" (Ap 5:14). Amém significa
"sim". É a afirmação ao Deus que nos afirma. Ele nos diz sim, e respondemos
a isso com outro sim, amém. Adoração é afirmação.
O resultado final do ato de adoração é que nossa vida muda por completo.
Vamos até Deus com uma história de negação, de rejeitar e sermos rejeitados.
No trono, somos imersos no sim de Deus que silencia todos os nãos e provoca
em nós uma resposta afirmativa. Deus, não o ego, é o centro. Deus não é
alguém de quem é possível se aproximar impondo restrições que atendam a
nossos interesses, distribuindo "sim" e "não" de acordo com nossa vontade. Na
adoração, "ouvimos a voz do Ser" e nos tornamos resposta a ela. O ego deixa
de ser o centro da realidade, como o pecado nos fazia supor. Somos treinados,
desde a infância, a nos relacionar com o mundo com exploração, recusando e
tomando, empurrando e puxando, irritando e seduzindo. Como produtor e como
consumidor, o ego é predador, mas na adoração deixamos de ser predadores
que se aproximam furtivamente dos outros como se eles fossem presas que
pudéssemos levar para nosso centro. Na adoração, respondemos ao verdadeiro
centro. Somos ouvintes privilegiados e respondemos nos oferecendo a Deus,
que cria e redime. Amém! Essa palavra é recorrente e enfática entre o povo de
Deus. É forte e viva. Não há nela nada de covardia, cautela nem timidez. É
palavra de resposta, purgada de todas as negativas.
Em sua descrição do culto cristão da metade do segundo século (por volta
do ano 150 d.C.), Justino Mártir diz que as orações sempre terminavam com
um vigoroso amém por toda a congregação. Ele usa uma palavra viva,
entusiástica, para descrever — epeuphēnei, "gritar em aplauso".60 Com isso,
eles demonstravam convicção não de que as orações seriam atendidas no
futuro, mas mostravam que já tinham sido atendidas, no presente, em Cristo.
Paulo havia escrito: "... pois quantas forem as promessas feitas por Deus,
tantas têm em Cristo o 'sim'. Por isso, por meio dele, o 'Amém' é pronunciado
por nós para a glória de Deus" (2 Co 1:20).
Isaías havia dado a Deus o título de "amém" (65:16), que João atribuiu
também a Jesus (Ap. 3:14). Quando os quatro seres viventes gritam amém,
estão se apropriando do que Deus tornou realidade para eles. 61 A palavra
estava sempre nos lábios de nosso Senhor: "Amém, amém, vos digo" ocorre
pelo menos 63 vezes nos evangelhos. O erudito alemão Schlier conclui seu
estudo sobre o termo, dizendo: "O 'Amém' de Jesus envolve, como uma
concha, toda a cristologia." 62 Quando nós, cristãos, dizemos, cantamos ou
gritamos "amém", Deus ouve uma concordância inequívoca com seu 'Sim'
irrevogável a nós, o 'Sim' de nosso Cordeiro redentor, o 'Sim' de nosso Rei
criador.
A segunda geração de cristãos gentios tentou, por algum tempo, traduzir o
termo hebraico para o grego. Contudo, faltava à palavra aleuthinos o impacto da
afirmação — seu significado literal é "aquilo que não é falso" — então eles
desistiram. Também abandonaram genoito, que a Septuaginta havia usado para
traduzir amém no Antigo Testamento. O tom de ansiedade, "Gostaria que fosse
assim", não possuía a firmeza confiante de um pedido atendido no presente.

60 Cyril Richardson, Interpreters Dictionary of the Bible, editor G. A. Buttrick (Nashville: Abingdon Press,
1962), 4:888.
61 Alfred Jepsen, em Theological Dictionary of the Old Testament, editores G. Johannes Botterweck e
Helmer Ringgrin (Grand Rapids, MI: W. B. Eerdmans Publ. Co., 1974), 1:322.
62 TDNT, 1:341.
Num tempo surpreendentemente curto, surgiu o consenso. Logo todos estavam
usando o termo hebraico que o próprio Jesus usou. 63 Até hoje, os cristãos usam
o "amém" para expressar a resposta em adoração às afirmações mais
profundas de suas vidas, fazendo eco aos améns do leão, do boi, do homem e
da águia do apóstolo João.
O ato de adoração ensaia, no presente, o final que nos espera. 64 O céu se
apresenta no presente. Mas também conserva o passado e, assim, age como
força estabilizadora. Contudo, sua função dinâmica é a antecipação: uma
comunidade planeja o futuro à luz de seu documento de funcionamento. A
visão do apóstolo João mostra às congregações que aquilo que elas fazem no
culto de adoração, no presente, corresponde ao que acontece, também no
presente, no âmago de todas as coisas, o céu.
A igreja em adoração está centrada e congregada no trono de Deus,
recebendo a revelação do Cristo sobre o qual se fala, e que fala Ele próprio,
cantando os hinos maravilhosos, afirmando e recebendo afirmação. Detalhes
dessa visão serão reintroduzidos à medida que ela se desenrolar. Esta é a
realidade da qual participamos em todos os cultos, que molda tanto nossa vida
quanto nossa história.65
Uma forma comum de distorcer a visão de João e deixar de examinar o
presente é sentir pena de nossos irmãos e irmãs do primeiro século. Eles
enfrentavam dificuldades políticas e econômicas; é bem natural ter pena deles.
Mas, sendo ou não natural, não devemos fazer isso, pois é fatal para a
imaginação. O exercício da piedade, em especial à distância, resulta em
presunção: "É uma pena que você esteja sofrendo tanto (mas eu tenho muita
sorte de ter escapado!)." Quase sempre, essa é uma postura de
condescendência, pois nos coloca em superioridade no momento exato em que
aqueles de quem temos pena estão provavelmente acima de nós — em posição
de nos dar aquilo de que mais precisamos.
Nada poderia estar mais distante da realidade do que imaginar que os
cristãos das sete congregações da Ásia fossem pessoas arrasadas, que se
agarravam como podiam à fé, e que João, seu pastor, procurou com ansiedade
um meio desesperado (apocalipse!) para assegurar que eles suportariam o pior
dos momentos. Esses homens e mulheres entendiam suas vidas, a partir do
63 Dom Gregory Dix, The Shape of the Liturgy (Londres: Dacre Press, 1945), p. 130.
64 John MacQuarrie, Paths to Spirituality (Nova York: Harper & Row, 1972), p. 7.
65 "A função histórica da Igreja primitiva encontra sua plenitude na adoração. (Entretanto, a importância
da adoração encontra expressão madura no Apocalipse.) João, o apóstolo mais versado em liturgia,
indica o lugar que o culto da Igreja ocupa na história universal. A Igreja na Ásia continental se reunia para
adorar no Dia do Senhor, enquanto João estava sozinho na ilha de Patmos. Mas então toda limitação
terrena foi removida e o próprio templo celestial se abriu para os olhos interiores, como havia acontecido
antes com Isaías. João viu a 'tenda do testemunho', a 'arca da aliança', o 'altar', as 'sete lâmpadas', o
'incensário do sacrifício', cuja fumaça enchia todo o templo. Homens e animais, juntos, se prostravam
diante de Deus e do Cordeiro e adoravam. Anjos e mártires tocavam harpas eternas. A figura solitária em
Patmos testemunha e compartilha da adoração no céu. Soam trombetas celestiais. Cantam-se triságios.
Louvores entoados pelas criaturas, as estrelas e os mundos pairam em torno do Criador como uma fuga
de Bach, que não termina nunca. O coro celestial canta o 'Agnus Dei'. O drama da salvação se desenrola
como a Missa que Palestrina dedicou ao papa Marcelo. As 144.000 vozes cantam um cântico novo com
palavras que nenhum ouvido humano é capaz de aprender. O anjo proclama um evangelho eterno de
glória sobrenatural como o final do coro do Messias de Haendel. A última igreja se reúne para a 'grande
comunhão', uma Igreja de sacerdotes que servirão a Deus por toda a eternidade. Essa foi a liturgia da
história universal que o vidente de Patmos conheceu e compartilhou. Mas a irmandade também está
reunida em volta dele, invisível, aqui e agora uma Igreja de sacerdotes. Ela recebe a epístola celestial e
participa do culto com seu 'sim', 'amém', e 'maranata', 'mesmo assim, vem logo, Senhor Jesus', com
solenidade. Assim, o liturgista apocalíptico entende a doxologia da Igreja perseguida no quadro maior de
uma liturgia que abarca todos os mundos e tempos." (Ethelbert Stauffer, New Testament Theology
[Londres: SCM, 1963], p. 202)
instante de seu batismo em nome da Trindade, como milagres de ressurreição.
O povo que se reunia a cada Dia do Senhor para cantar louvores e receber
vida era o mais forte de todo o império romano. Viviam imersos em esplendor,
transbordavam de vida. Mesmo quando o zelo esfriava, o que acontecia de vez
em quando, e eles vacilavam um pouco na lealdade, havia muito mais coisas
acontecendo com eles do que com seus contemporâneos seduzidos por
Babilônia. E eles sabiam disso. Quando esqueciam, João os fazia lembrar. Não
devemos jamais esquecer as imagens de celebração intensa no céu e os
sofrimentos catastróficos descarregados sobre a terra, a exposição do mal em
suas blasfêmias horrendas e a revelação da bondade em adoração gloriosa
tudo isso elaborado a partir do conhecimento diário que eles tinham das
Escrituras, do batismo e da Ceia do Senhor.
Eles levavam a vida nesse ambiente invadido pelo céu e ameaçado pelo
inferno. Nada, fora a fé ou o desafio da fé, poderia igualar a vida deles em
profundidade de sentido e presença de drama. Não pode ter havido muitos
momentos insossos nessas vidas, nem precisa haver na nossa. Quando isso
acontecia, o marasmo era reconhecido como obra do diabo e perseguido pela
imaginação formada pelo Apocalipse, em adoração.
"Muitas congregações, reunidas no templo, podem parecer aos anjos praias
cheias de poças de água durante a maré baixa, repletas de todo tipo de lixo e
objetos estranhos — um espetáculo bem penoso. Então vem a maré da
adoração, e tudo se vai: os ouriços e águas-vivas mortos, os papéis e as latas
vazias e os inumeráveis resíduos. O mar purificador flui sobre tudo. Assim, o
ato comum de adoração a Deus nos liberta de um olhar estreito e egoísta para
o universo."66

66 Evelyn Underhill, Collected Papers (Londres: Longmans, Green & Co., 1946), p. 78.
6.
A ÚLTIMA PALAVRA SOBRE O MAL
APOCALIPSE 6-7
Já não vemos sinais miraculosos;
não há mais profetas,
e nenhum de nós sabe até quando isso continuará.
Até quando o adversário irá zombar, ó Deus?
Será que o inimigo blasfemará o teu nome para sempre?
Por que reténs a tua mão, a tua mão direita?
Não fiques de braços cruzados! Destrói-os!
SALMO 74:9-11
Então um dos anciãos me perguntou: "Quem são estes que estão vestidos de branco, e de
onde vieram?" Respondi: Senhor, tu o sabes. E ele disse: "Estes são os que vieram da grande
tribulação e lavaram as suas vestes e as alvejaram no sangue do Cordeiro."
APOCALIPSE 7:13-14
Tenho constatado como verdadeiro que a maior tentação fora do inferno é viver sem tentações.
Se a água parar de se mover, apodrece. A fé se aperfeiçoa com o ar fresco, com o vento
cortante do inverno batendo no rosto. A graça definha sem a adversidade. O diabo nada mais é
do que o instrutor de esgrima que Deus usa para nos ensinar a manusear nossas armas.
SAMUEL RUTHERFORD67
A ascendência intrigante do mal deve ter ocupado a mente de muitos cristãos
durante o exílio do apóstolo João. Se o Reino de Deus havia sido iniciado por
Cristo, os exércitos romanos não deveriam desfrutar de tanta evidência. O
evangelho declarava o amor de Deus pelo mundo. Os decretos de Roma
condenavam os que criam à prisão e à cruz. Cristo havia vivido, sofrido,
morrido e ressuscitado, e o mundo não melhorava; ficava cada vez pior. Em um
mundo assim, Annie Dillard coloca a pergunta que ela classifica como a
principal questão teológica de todos os tempos, e para qual urge resposta:
"Mas, afinal, o que está acontecendo no mundo?" 68
João considera a questão, mas não se apressa em responder. O problema
do mal clama por uma resposta, mas essa não é a primeira questão. Quando
nós temos alguma experiência com o mal, somos tentados a senti-lo como
absoluto. O mal contamina tudo o mais. Dor em um dente elimina a percepção
da saúde nas outras partes do corpo. Um machucado no dedo do pé me
impossibilita de apreciar o fato maravilhoso de meus cotovelos se dobrarem
sem qualquer esforço.
O apóstolo não se aventura a tratar da presença do mal antes de
estabelecer raízes em uma realidade muito mais abrangente. Só aborda o
problema depois de apresentar a visão do Cristo vitorioso (Ap 1), da adoração
em triunfo (capítulos 4 e 5), relacionando essas revelações com as exigências
cotidianas das mensagens da igreja (capítulos 2 e 3). Fica claro que o reinado
magnífico de Cristo se coloca sobre todas as coisas. Também fica evidente que
Cristo não apenas está sobre, mas se importa com as condições específicas
das comunidades de fé. Ele conhece a fundo as virtudes e os fracassos dos
crentes e cuida deles. E agora ficou indiscutivelmente claro que por meio da
adoração há uma imersão na realidade central do governo de Deus e de sua
redenção. A vontade de Deus se cumpre vitoriosamente na pessoa de Cristo. A
igreja é a comunidade onde conhecemos a Deus e somos conhecidos por Ele.
A adoração é o ato em que experimentamos e desfrutamos de sua presença

67 Samuel Rutherford, Letters (Edimburgo: Oliphant, Anderston & Ferrier, 1891), p. 290.
68 Annie Dillard, Holy the Firm (Nova York: Harper & Row, 1977), p. 60.
criadora e redentora. João não se apressa. Vinte por cento do livro já está
pronto quando ele se volta para a questão do mal na história — a dor e a
perversidade que estão por toda parte, evidentes na política, na sociedade e na
individualidade.
Durante o grande ato de adoração, João havia chorado por não haver
ninguém para abrir o livro e proclamar a palavra de Deus pessoalmente para
ele (5:4). Então, Cristo, em forma de cordeiro, avançou para quebrar o selo, ou
seja, pregar. O pranto cessou imediatamente: Deus revela sua palavra quando
Cristo prega. Haverá sentido no caos maligno da história? Esperamos que haja
uma resposta escondida no meio dos destroços. A abertura do livro — a
revelação de Jesus, pela qual a vontade de Deus passa a ser conhecida por
nós — é a proclamação das boas novas na história. Há correspondência entre
o que acontece na adoração e o que acontece na história. Jesus Cristo, ao
abrir o livro, demonstra isso. Não precisamos esperar uma revelação futura
para entender o significado. Não há necessidade de resolver um enigma para
descobrir o sentido. Tudo nos é apresentado. E é Cristo quem o faz.
A história apresenta grande quantidade de dados — guerras, períodos de
fome, assassinatos e acidentes — junto com alvoradas, águas tranquilas, flores
do campo e pastos verdejantes. O povo de Deus aprendeu que é possível, em
oração e louvor, ouvindo e crendo, discernir sentido no caos aparente e, assim,
ler boas novas nas entrelinhas da vida cotidiana na história. Isso é feito por
meio da proclamação de Jesus Cristo, o Cordeiro morto desde a fundação do
mundo. "Cristo não precisa nos dizer que o mundo está cheio de problemas.
Mas precisamos da explicação de Jesus sobre a história, sem a qual tudo fica
sem sentido."69 A história entra em foco por meio de sua vida, morte e
ressurreição.
A visão do apóstolo apresenta Jesus proclamando a mensagem de Deus
em um sermão composto por sete pontos. Com a abertura de cada selo, um
aspecto dos propósitos de Deus é apresentado de modo que, um a um, os
elementos da história se colocam em ordem, se arranjam e as boas novas são
compreendidas. A abertura do primeiro selo mostra uma sequência de quatro
cavalos. O cavalo é o animal para a guerra: o boi para o trabalho na fazenda, o
jumento para o transporte, e o cavalo para a guerra. A natureza básica da
história é a guerra. Quem vive pela fé, vive em conflito. A história é uma longa
sequência de batalhas — as forças do bem e do mal em combate aberto. As
pessoas de sensibilidade sabem disso. Os artistas têm essa consciência. Os
historiadores esquadrinham os documentos. Pessoas de oração encontram-se
no meio desses conflitos mesmo quando as armas disparam sem fazer
barulho. A batalha grassa dentro das almas, nos círculos familiares, entre
nações. Guerra é a condição humana. Ser humano significa estar em guerra.
Se não há pregação, essa história de guerras é a essência do mal. Deus
está no céu, mas o diabo faz história. As pessoas bondosas acabam ficando
para trás. Na família Karamazov, na obra do escritor Dostoievski, Ivan, o irmão
ateu, tinha um caderno em que anotava toda atrocidade de que tomava
conhecimento: com isso, queria provar que Deus não existia. 70 Um livro de
notas como o de Ivan Karamazov nunca deixa a lista dos livros mais vendidos.
Toda pessoa que crê precisa se confrontar com a questão: amor e redenção de
Deus funcionam na história em que vivo? Ou talvez só funcionem em um plano

69 Michael Wilcock, A Mensagem de Apocalipse (São PauIo: ABU, 2003), p. 46-47.


70 Fyodor Dostoevsky, The Brothers Karamazov (Nova York: New American Library, 1980).
transcendental, separado da vida de todos os dias, de forma que necessitamos
de outro nível de consciência para chegar até eles, mas depois temos que
retornar aos assuntos corriqueiros e agir da melhor forma possível. Seria o
amor e a redenção realidades para o futuro, e, enquanto espero, preciso
aceitar as situações como são e usar todas as técnicas de sobrevivência para
me manter vivo, e com fé, até os tempos que virão? Ou será que eles estão
agindo agora? Serão a guerra, a fome e a doença as realidades supremas?
Estarão a paz, a fartura e a saúde no centro de todas as coisas? A pregação
responde a essas questões. O sermão de Jesus abrange, em seu esboço dos
sete selos, todos os outros.
O primeiro elemento nessa história das guerras narrada no Apocalipse é
Cristo: "Olhei, e diante de mim estava um cavalo branco. Seu cavaleiro
empunhava um arco, e foi-lhe dada uma coroa; ele cavalgava como vencedor
determinado a vencer." Cristo está na história, reinando e vencendo. Para
entendê-la, temos que começar, com abertura e firmeza, nele, que é a primeira
palavra. Não importa o assunto, começamos com Ele. No alfabeto do discurso
histórico, Ele é o Alfa. Não é uma ideia de última hora, colocada em ação
depois que o pecado destruiu tudo.
O salmo 110 era o favorito na comunidade dos primeiros cristãos: "O
SENHOR estenderá o cetro de teu poder desde Sião, e dominarás sobre os
teus inimigos! [...] O Senhor está à tua direita; ele esmagará reis no dia da sua
ira." Os cristãos bíblicos não agem com sentimentalismo com relação a Cristo.
Há impetuosidade e espírito combativo na atitude deles. O mundo jaz no
conflito, e nosso Cristo se coloca como o primeiro no campo de batalha.
Questões elevadas são decididas todos os dias. Cristo não apenas é adorado
todos os domingos; Ele também triunfa a cada dia da semana. Claro que não
lemos isso nos jornais, nem nossas emoções indicam essa vitória, mas é isso
que a revelação pregada proclama.
O cavaleiro do cavalo branco reaparece em Apocalipse 19:11: "Vi os céus
abertos e diante de mim um cavalo branco, cujo cavaleiro se chama Fiel e
Verdadeiro. Ele julga e guerreia com justiça." Por todo o Apocalipse, ou seja,
por toda a história, esse Cristo lidera os batalhões da salvação pelos campos
de batalha de todos os dias, "vencedor determinado a vencer".
Na verdade, esse cavalo branco é produto da imaginação visionária da fé, e
não um item histórico observado. Gibbon e Toynbee não lhe dedicaram sequer
uma linha. As formas de vitória de Cristo estão no jumentinho do Domingo de
Ramos, no Cordeiro pascal imolado, no Messias fracassado, desprezado e
crucificado. Mas são exatamente essas as formas entendidas na fé como
vencedoras. Cristo não mudou seu modo de agir. O cavalo branco não mostra
que Ele desistiu de jumentos, cordeiros e cruzes e que agora passou a usar
cavalos, lanças e cetros. Antes, valida o fato de que o meio que Ele escolheu
para realizar sua vontade e sua obra de salvação é, mesmo contra todas as
aparências, verdadeiramente vitorioso.
A pregação prossegue com a concentração diante de Cristo de tudo que se
opõe a Ele. Uma visão não basta para sustentar uma vida de fé se não houver
um relato de como ela se encaixa na anarquia deste mundo. Na pregação,
Jesus avança do lugar de culto para a arena da história, onde leões e
gladiadores negam a Deus e o desafiam. Por toda parte, há pessoas e grupos
dispostos a destruir a boa criação: matando e mutilando seres vivos,
explorando a terra generosa, incapacitando e enfraquecendo corpos preciosos.
O mundo que observamos está coalhado de malignidade. O mal figura em três
cavaleiros: da guerra (cavalo vermelho), da fome (preto) e da enfermidade
mortal (amarelo). A guerra é o mal social; a fome, o ecológico; a doença, o
biológico. A guerra ataca a bondade da comunidade, a fome viola e saqueia a
fartura de Deus, e a doença destrói e desperdiça o corpo concedido por Ele:
são pecados contra a sociedade, a terra e o corpo.
Cada uma dessas manifestações do mal é comum, mas todas se disfarçam
sob a aceitação cultural e são tomadas como normais e até boas. A guerra
recebe a fantasia de patriotismo e luta gloriosa pela liberdade. A fome se veste
de padrão de vida mais elevado. A doença se esconde atrás da tecnologia. O
mal introduz, alternadamente, conflito, cobiça e engano na existência social e
pessoal e arruína a criação, subvertendo seus propósitos e contradizendo seu
projeto de redenção. Essas infâmias se apresentam com aparência tão benigna
em seus disfarces que o mundo, sem notar, as aceita como forças da história,
diante das quais Cristo se torna um protesto adorável, mas ineficiente em seu
aspecto minoritário.
A guerra recebe roupagem mais refinada sob o título "competição".
Aprendemos muito cedo a conquistar o que desejamos competindo contra os
outros, e não em colaboração com eles. Em sua essência, os meios envolvem
violência física ou psicológica, armas ou propaganda. Desejo os bens de meu
irmão, cobiço as propriedades de minha irmã e invejo as características de meu
vizinho. Com isso, proponho-me a satisfazer a mim mesmo com qualquer coisa
que se encontre à mão. A outra pessoa (ou nação) não preservará por muito
tempo seu nome ou identidade. Cada uma possui um rótulo que diz: obstáculo,
impedimento, ou força estranha a ser superada. "De onde vêm as guerras e
contendas que há entre vocês? Não vêm das paixões que guerreiam dentro de
vocês? Vocês cobiçam coisas, e não as têm; matam e invejam, mas não
conseguem obter o que desejam. Vocês vivem a lutar e a fazer guerras" (Tg
4:1-2). Esporadicamente, esses atos atingem um ponto crítico, e o mundo entra
em guerra. Durante algum tempo, noticiada em letras garrafais nos jornais, a
guerra é percebida como um mal, e surgem orações em prol da paz. Mas isso
não dura muito, pois logo o conflito passa a ser enaltecido como patriótico ou
explicado como justo. Contudo, a guerra é um cavalo vermelho, sangrento e
cruel, que torna a vida miserável e horrenda. Decorre dos atos de gente
faminta pelo poder, é o engano do orgulho doentio, expressão da cobiça
desenfreada. Mas o maligno não possui o poder de permanência do bem. A
energia perversa não consegue se sustentar por muito tempo: perde o ímpeto,
vacila e para. Os líderes, então, assinam tratados de paz, firmam contratos de
trabalho ou decidem as cláusulas do divórcio. Todos se cumprimentam. A
guerra aberta se esconde nos assuntos cotidianos, onde prossegue, com
menos energia, mas ainda agindo sob as formas aclamadas da competição e
da aquisição, e, assim disfarçada, acumula força para a próxima investida.
A artimanha sempre presente é enaltecer a guerra para que a vejamos
como meio aceitável para atingir determinados alvos. Mas a guerra é maligna.
Cristo se opõe a ela. Ele jamais se assenta sobre o cavalo vermelho. Quando
disse que não tinha vindo trazer paz, mas, sim, espada, Ele falava da paz da
acomodação das pessoas que vegetam em meio ao pecado e da espada que
nos separa desses pecados. Não — a guerra é inferno. A guerra é um mal.
Neste mundo em que as pessoas recusam o senhorio de Cristo e rejeitam sua
salvação, a guerra é o caminho para dominar e conseguir glória. Mas sempre,
e em todos os lugares, Jesus combate a guerra. O cavalo branco vencerá o
vermelho.
A fome se insinua entre nós sob todas as formas de busca de um padrão de
vida mais elevado. A escassez é a natureza fora de equilíbrio. Os itens para
satisfazer as necessidades diminuem, enquanto os de luxo abundam como um
deboche aos carentes. O cavaleiro montado no cavalo preto carrega uma
balança. Ouve-se uma voz: "Um quilo de trigo por um denário, e três quilos de
cevada por um denário, e não danifique o azeite e o vinho!" Com uma ração de
um quilo de trigo, uma família passará fome, e o denário era o salário de um
dia de trabalho. Não há disponibilidade do que é necessário para uma condição
mínima de vida, enquanto os luxos, o azeite e o vinho, existem em abundância.
A ganância opera isso. As pessoas exploram a terra em benefício próprio e a
deixam exaurida e pobre. Glorificam a cobiça com a expressão sacrossanta
"padrão de vida elevado" e a usam para desculpar a insanidade de cada dia.
Colocamos milhões de pessoas para trabalhar em serviços estúpidos
construindo máquinas que poluem o ar, para nos levar com mais rapidez de um
lugar a outro, em projéteis a velocidades letais (e, com isso, matamos e
aleijamos outros milhões — mais do que morreram em todas as guerras
travadas até hoje sobre a face da terra). Com isso, desejamos ter mais tempo
para ficar diante de aparelhos eletrônicos caríssimos que vibram à nossa frente
com formas de fantasias carnais que tentam nos convencer (muitas vezes com
sucesso) de que precisamos de azeite e vinho, e, por isso, temos que voltar ao
emprego estúpido para fabricar as máquinas letais.
Escassez é a condição em que temos quase tudo que não precisamos e
quase nada do que realmente precisamos. Paul Goodman esclarece sobre o
mal: "De que precisamos? Não precisamos dos estímulos constantes, do
alimento envenenado, do ar carcinogênico e do trabalho inútil pelo qual somos
tão bem pagos."71 Pouca gente acredita que há fome em nossa terra. Em
determinadas regiões, o desequilíbrio e a cobiça se unem e ela se torna
evidente — pode-se fotografar a desnutrição e a falta de alimento. Entretanto,
os ventres inchados e as pernas e braços esqueléticos — fatos literais para
alguns — são uma paródia horrível da vida da maior parte dos outros.
O cavaleiro sobre o cavalo preto trabalha bem. Mas o do cavalo branco não
fica atrás. O Senhor que nos ensinou a orar: "O pão nosso de cada dia dá-nos
hoje" está agindo para restaurar a terra e as pessoas a uma sanidade
equilibrada. Ele convoca seu povo para uma refeição de comunhão cristã
semanal que ensina a substituir a cobiça pela graça.
A doença se esconde atrás da tecnologia, mal que se insinua mediante a
glorificação generalizada da tecnologia e a consequente depreciação da saúde
humana. A máquina é mais importante do que o corpo. Atrofiamos nossas
pernas, imobilizando-as por várias horas dentro dos automóveis todas as
semanas. Amortecemos mente e nervos com narcóticos e estimulantes
consumidos em quantidades assustadoras. Depois, acreditamos ter acesso à
saúde por termos à nossa disposição hospitais modernos para onde nos
dirigimos quando sentimos alguma dor ou nosso corpo não funciona como
esperamos. As imensas instalações médicas são as novas catedrais de nossa
sociedade. Não são sinais de saúde, mas, sim, de doença — só uma
sociedade enferma como nenhuma outra criaria tal mercado.

71 Paul Goodman, "Notes of a Neolithic Conservative", New York Review of Books, 26 de março de 1970,
p. 17.
Nossos corpos sofrem tantos abusos que não funcionam mais com
facilidade e naturalmente como templos do Espírito Santo. A ansiedade e a
tensão aceitas como o preço necessário a pagar pelo mundo tecnológico
diminuem a capacidade de viver, ao mesmo tempo que produzem incentivos
para a vida. Aceitamos o mito de que a atividade mais importante para nosso
corpo é trabalhar para ganhar dinheiro ou adquirir reputação. As doenças
aumentam. O cavaleiro sobre o cavalo amarelo representa a pestilência —
epidemias e doenças mortais. A incidência de enfermidades cresce
exponencialmente, enquanto, por ironia, o tamanho dos hospitais aumenta e a
tecnologia médica se torna cada vez mais refinada. As nações modernas, com
mais acesso à medicina técnica, são as mais doentes.72
Na enfermidade, o corpo fica fraco ou incapacitado e deixa de ser eficaz
como templo de santidade que molda rituais de amor e testemunho. Uma das
características mais presentes no ministério vitorioso de Cristo foi a cura: o
corpo é santo, assim como a terra e a comunidade. As curas ainda acontecem.
O cavalo amarelo da pestilência deixa sua marca na história, mas a cura tem a
palavra final. A derradeira cura será a ressurreição.
O imperativo "Venha!", proclamado do trono, coloca no campo da história os
quatro cavaleiros: a batalha se junta aos atos de adoração. O Cristo anunciado,
vencedor, rompe os disfarces de respeitabilidade dos três cavaleiros malignos
e os obriga a mostrar sua verdadeira cor: o cavalo vermelho, da guerra,
chacina a comunidade de amor e confiança; o preto, da fome, extrai a cor da
vida; o amarelo, da doença, priva os seres humanos de sua vitalidade. "Venha!"
Lute contra Cristo em seu cavalo branco. Ele irá combater e vencer, sobrepujar
as contendas, restaurar a terra, curar os corpos. O mal presente nas pessoas,
na terra e nos corpos será desmascarado e combatido. Pode parecer uma luta
injusta, já que são três contra um. Segundo nossas análises, há pouca chance
de vitória.
Ainda há mais. Existe uma dimensão menor e outra maior do mal a serem
levadas em conta. A menor é a perseguição religiosa, que aparece na abertura
do quinto selo (Ap 6:9-11). A maior são as catástrofes naturais apresentadas no
sexto (Ap 6:12-17). A perseguição é menor por atingir apenas a minoria que
vive pela fé. É a aflição que decorre apenas da identidade de povo de Deus. A
catástrofe é maior no sentido de que a natureza é mais inclusiva do que a
história, envolve tanto animais quanto gente, tribos primitivas e civilizações
avançadas, inocentes e culpados. O massacre organizado pelo Estado é
seletivo; o terremoto, indiscriminado. A perseguição tem um foco, e a catástrofe
é ampla.
Sofrendo o infortúnio da perseguição, os mansos da terra clamam: "Até
quando?" Esses pequeninos (Mt 18:10-14) recebem a promessa de que logo
Deus julgará e punirá os perseguidores. Atingidos pelo mal das catástrofes, os
poderosos da terra gritam: "Chega!" Aprendem que poder e status não os livram
do destino comum a todos e que o julgamento não será adiado.
A imaginação que crê recebeu até aqui imagens relacionadas a todos os
aspectos do mal: disputas sociais, desastres ecológicos, enfermidades mortais,
perseguição religiosa e catástrofes naturais. Nada do que entendemos como
maligno passa despercebido ou fica sem resposta. Está tudo às claras,
inclusive no significado anunciado da história. Os cristãos não fecham os olhos
à crueldade que o mundo comete contra eles e contra os outros. O apóstolo

72 Ivan Illich, Medicai Nemesis (Nova York: Random House, 1976).


João nos ensinou a prestar muita atenção a ela, a nomeá-la com sinceridade
— sem eufemismos nem fuga — e lidar com ela corajosamente. A despeito das
numerosas caricaturas de devotos que teimam em fechar os olhos para as
crueldades que os cercam a fim de não serem perturbados em suas
meditações elevadas, e a despeito da inocência incontestável de alguns que
permanecem em felicidade ingênua acreditando que, apesar de tudo, o mundo
é um lugar agradável, estou convicto de que os cristãos, em sua maioria, são
aqueles membros de nossa sociedade com os quais se pode contar para não
ter ilusões sobre a profundidade da depravação neles mesmos e no mundo em
geral. Nenhuma outra comunidade, em toda a história, insistiu tanto em dar ao
mal seu verdadeiro nome. Nenhum outro grupo tem sido tão incansável em
expor racionalizações, nem tão corajoso em confessar suas próprias
incongruências. Com exceções reconhecidas, a comunidade de fé sabe mais
do que qualquer outra sobre o que há de errado no mundo, e, ao mesmo
tempo, não há outra que seja menos cínica e se desespere menos do que ela.
Apocalipse 6 termina com uma pergunta que precisa de resposta, embora
não esperemos recebê-la. É uma pergunta retórica que presume resposta
negativa: "Quem poderá suportar?" Claro que ninguém. O fim do mundo
chegou. A história vai de mal a pior. Tudo que se esperava ver solucionado
continua problemático. A Terra, antes sólida, agora está traiçoeira, cheia de
fissuras e fendas. O movimento de precisão matemática do Sol, da Lua e das
estrelas encontra-se em caos. Tudo aquilo com que a humanidade estava
acostumada acabou. Ninguém consegue permanecer firme em tais condições:
nenhum rei, general, nem atleta. Quem poderá suportar? Ninguém. "Quando os
fundamentos estão sendo destruídos, que pode fazer o justo?" (Sl 11:3).
A pergunta não espera resposta. Já sabemos a resposta. No entanto,
alguém responde — e é uma surpresa. É um fato tão urgente e importante que
a abertura do sétimo selo fica para depois da apresentação da resposta
completa. Quem poderá suportar? Os anjos, mensageiros de Deus que
transmitem suas ordens e seus conselhos. Eles suportam. Não se intimidam
diante dos cavaleiros malignos nos campos da história, não se entregam diante
dos lamentos vindos de sob o altar, nem se confundem com a anarquia no
cosmo. O mal não os desanima, não os irrita. A estrutura da providência e da
redenção permanece intacta. O mal — por mais devastador que pareça — não
causa medo nem hesitação nos anjos. Eles permanecem firmes em seus
lugares (Ap 7:1,11).
Também permanece uma "grande multidão que ninguém podia contar" (7:9).
Os sinais de identificação (7:9-10) mostram que são cristãos. Essa é a grande
surpresa. Aparentemente, eles são uma triste minoria. Com guerra, fome,
pestes, perseguição e catástrofes, com diminuição na participação dos cultos,
os batalhões ficam bem dizimados. Por certo há momentos de esplendor,
quando todos concordam, por um ou dois dias, em cantar e celebrar. Então
voltamos ao que, por um truque linguístico do diabo, resolvemos chamar de
"mundo real" — aquele de orgulho e perseguição, doença e desastre. A
intrincada vida de fé acaba posta de lado em troca de uma imitação feita pelo
diabo usando poder, status, armas e auto-ajuda. Mas esse não é o mundo real.
Está condenado, morrendo. Nele, a palavra final desesperada é "Quem poderá
suportar?". João vê e ouve outra realidade, menos visível mas mais sólida, que
existe e na qual nenhum mal consegue penetrar. É a realidade cristã, a vida de
fé.
Pergunta e resposta ligam Apocalipse 6 e 7. Quem pode suportar esse
mundo maligno? Os cristãos. Os capítulos se unem também pela palavra selo.
Em Apocalipse 6, Cristo abre os selos e mostra o conteúdo da história. O
conteúdo é assustador e excede a experiência de um único indivíduo. No
capítulo 7, selos protetores das pessoas de fé as livram das consequências
eternas do mal histórico. Porque nenhum mal foi permitido "até que selemos as
testas dos servos do nosso Deus" (Ap 7:3). O selo é inclusivo: toda pessoa, de
toda tribo. O número 144.000, assim como a maioria dos outros que aparecem
em Apocalipse, é simbólico, aponta para uma totalidade. Inclui os milhões que
oraram com fé, pedindo "nenhum mal o atingirá, desgraça alguma chegará à
sua tenda" (Sl 91:10), e outros milhões que cantaram, confiantes: "O SENHOR
o protegerá de todo o mal, protegerá a sua vida" (Sl 121:7).
Esses selos não são os primeiros a aparecer nas Escrituras. Ezequiel 9, no
Antigo Testamento, e Enoque 66, no período intertestamentário, falam de selos
e julgamentos pesados lançados sobre o mundo. Mais significativo para os
cristãos é o apóstolo Paulo: "Quando vocês ouviram e creram na palavra da
verdade, o evangelho que os salvou, vocês foram selados em Cristo com o
Espírito Santo da promessa, que é a garantia da nossa herança até a redenção
daqueles que pertencem a Deus, para o louvor da sua glória" (Ef 1:13-14;
4:30).
Paulo combina os dois símbolos, permanecência e selo, na Epístola aos
Coríntios: "Ora, é Deus que faz que nós e vocês permaneçamos firmes em
Cristo. Ele nos ungiu, nos selou como sua propriedade e pôs o seu Espírito em
nossos corações" (2 Co 1:21-22). À luz desse cenário, conhecido dos leitores
versados na Bíblia, o impacto de Apocalipse 7 se faz sentir na experiência
presente dos que crêem. Somos protegidos (selados) enquanto estamos
inseridos no mal histórico. Muitos lêem esse texto e o tomam como descrição
da ventura celestial. Considero isso muito improvável. A visão de João alarga a
imaginação para que ela abranja o que Ezequiel, Enoque e Paulo
testemunharam: estamos protegidos dos efeitos do mal que nos separam de
Deus, mesmo quando experimentamos o sofrimento que esse mal nos causa.
Há visões paralelas em Apocalipse 7: os 144.000 (7:4-8) e a "grande
multidão que ninguém podia contar" (Ap 7:9). Os dois grupos são formados
pelas mesmas pessoas. Um dos artifícios prediletos dos poetas para enfatizar
um elemento é a repetição rimada. A arte da rima está em quase duplicar o
som, sem duplicar por completo. A quase-identidade sonora fornece a ênfase; a
pequena diferença intensifica a percepção do significado. A rima sonora é
comum na poesia. Os poetas hebreus (com os quais João cresceu) rimavam
significados, não sons. Colocavam lado a lado sentidos que evocavam a
percepção. Um exemplo típico é a sentença no salmo 34:3: "Proclamem a
grandeza do SENHOR comigo; /juntos exaltemos o seu nome." Há três rimas
de significado: proclamem/exaltemos, SENHOR/seu nome, comigo/juntos. João
também faz isso, mas rima as visões, como, por exemplo, em Apocalipse 7:
dois quadros paralelos, semelhantes o suficiente para produzir a ênfase pela
repetição, diferentes o suficiente para provocar a mente e levá-la à participação
ativa. Ele apresenta um quadro do que acontece com as pessoas que vivem
pela fé em um mundo repleto do mal.
João ouve que o número dos selados é 144.000. Quando olha, vê uma
multidão incontável. "Rima" o som com a visão. O Espírito sela protetoramente
contra o mal as pessoas que vivem pela fé. João ouve Deus declarar o número
total — absolutamente completo, não falta um sequer, 144.000 inclui todos (12
elevado ao quadrado e depois multiplicado). Quando olha, ele percebe que
esse total definido, conhecido por Deus, é uma multidão incontável, acima da
capacidade de cálculo de qualquer ponto de vista humano. De modo
semelhante, essas pessoas são todo o Israel, ou seja, o povo de Deus do
ponto de vista dEle. De nossa perspectiva, procedem de todas as nações sob o
céu.
Essas pessoas não se limitam a estar seguras; elas exultam. É um
fenômeno curioso, mas totalmente bíblico: as representações mais
assustadoras do mal (Apocalipse 6) colocadas ao lado de louvor ardente
(capítulo 7). Os cristãos cantam. No deserto, à noite, na prisão, na tempestade.
Como cantam! (Ap 7:10,12,15-17). Os cânticos da visão respondem às
estatísticas do mal. Músicas como essas expõem todo o mal, até o mais
terrível, como fraco e pedante: "Uma vez, em Assis, um teólogo atacou o frade
Egídio pela forma como ele costumava arranjar os silogismos. O irmão esperou
a apresentação das conclusões e, então, tirou uma flauta das dobras de sua
veste e tocou sua resposta em melodias rústicas." 73
Outro detalhe: em qualquer enumeração de uma série, os elementos mais
importantes são o primeiro e o último. Nos sete selos que, em conjunto,
mostram o mal presente na história, o primeiro revela o triunfo de Cristo sobre
o mal, e o sétimo apresenta o silêncio atento no céu, onde as orações de cada
crente são ouvidas e respondidas com cuidado (Ap 8:1-4). Todo mal fica entre
o início e o fim, ou seja, está limitado.
O texto não minimiza o mal, mas coloca-o em seu devido lugar,
enclausurado entre Cristo e a oração. Há uma lista detalhada do mal e da luta
corajosa contra ele, mas não há explicações. A Bíblia não se propõe a
responder à clássica pergunta: "Por que um Deus bom permite a existência do
mal?" O mal é um fato. A Bíblia dedica muito espaço a insistir na malignidade
de determinados fatos, negando que sejam pequenas imperfeições na
superfície da existência. Mas não apresenta explicações — antes, define um
contexto: todo o mal acontece em uma arena histórica, limitada por Cristo e
pela oração. Não explica; cerca. Apocalipse resume o contexto: admita o mal,
não o tema — pois "— aquele que está em vocês é maior do que aquele que
está no mundo" (1 Jo 4:4). Suporte o mal, pois você já triunfou sobre ele — "Eu
vi Satanás caindo do céu como relâmpago" (Lc 10:18). Apocalipse expande as
palavras do apóstolo e de Jesus em visões. Colocando o mal em seu lugar e
restringindo-o com precisão na parte específica da história à qual ele pertence,
ele é visto como um episódio finito, e não como um triunfo total.
Há alguns anos, eu estava falando sobre esse texto a um pequeno grupo
quando uma das participantes entendeu de repente a importância e pediu para
contar sua história. Ela disse que algum tempo antes tinha sofrido um colapso
nervoso. Sua vida estava um caos. Nada dava certo. Não conseguia enxergar
sentido em sua vida. Sentia que o mal, a culpa e até o azar a dominavam.
Procurou aconselhamento e foi orientada a analisar cada detalhe que havia
acumulado em uma enorme pilha que tachava de "mal". Examinou os itens, um
a um. Contou que nada se tornou menos horrível ou mais aceitável, mas
alguma coisa aconteceu enquanto ela fazia a análise. Começou a descobrir
outros aspectos de sua vida que haviam ficado escondidos pela pilha de
problemas: relacionamentos agradáveis, músicas arrebatadoras, paisagens

73 Henry Adams, Mont St. Michel, p. 375.


que pareciam fazer o coração parar. Começou a perceber a maravilha do
funcionamento de seu corpo. Passou a confiar em seus sentimentos e a
valorizá-los. Notou que as outras vidas eram preciosas e descobriu maneiras
de apreciá-las. Depois, encontrou-se com Deus, e todo o mundo que, agora,
ela percebia que era Apocalipse 7, entrou em foco. O mal não foi abolido, mas
ficou em uma perspectiva definida. Os elementos malignos que antes não
tinham nome passaram a ter. Os erros inumeráveis foram contados. Ela não
percebeu muito bem o momento em que as proporções mudaram, mas agora o
que parecia infinito era o bem, e as glórias é que iam além da conta. Nada em
sua vida havia mudado, mas tudo estava diferente. Ela se perguntou se algo
semelhante não poderia acontecer sob a influência da imaginação orientadora
do apóstolo João.
7.
A ÚLTIMA PALAVRA SOBRE ORAÇÃO
APOCALIPSE 8-9
Clamo a ti, SENHOR; vem depressa!
Escuta a minha voz quando clamo a ti.
Seja a minha oração como incenso diante de ti,
e o levantar das minhas mãos, como a oferta da tarde.
SALMO 141:1-2
Outro anjo, que trazia um incensário de ouro, aproximou-se e se colocou em pé junto ao altar. A
ele foi dado muito incenso para oferecer com as orações de todos os santos sobre o altar de
ouro diante do trono. E da mão do anjo subiu diante de Deus a fumaça do incenso com as
orações dos santos.
APOCALIPSE 8:3-4
O verdadeiro poder na história não reside em batalhões formados por pessoas que oram
comandadas por Cristo, mas, sim, na ação corporativa do Salvador-Intercessor com sua
comunidade, um volume e energia de oração organizados em um Espírito Santo e na Igreja
que Ele cria. Dessa forma, os santos julgarão o mundo e controlarão a vida. Nem para o
indivíduo, nem para a Igreja, a verdadeira oração é um enclave dentro do curso maior e mais
real da vida. Não é um recinto fechado, nem um abrigo em meio a um deserto imenso. Esse é
o lado fraco do pietismo.
P. T. FORSYTH74
Apocalipse funde visão e oração. Logo após a abertura do sétimo selo, o
silêncio toma conta do céu por cerca de meia hora. Chegou o clímax. O silêncio
prepara a imaginação para receber uma verdade inacreditável. Enquanto o
conflito entre o bem e o mal decorria, subiam ao céu as orações de grupos de
devotos do primeiro século, espalhados por todo o império romano. As imensas
engrenagens de perseguição e zombaria se levantaram contra eles, que não
tinham armas nem votos. Possuíam pouco dinheiro e nenhum prestígio. Ainda
assim, não sofriam colapso nervoso nem fugiam, por um único motivo: oravam.
Para que as orações fossem ouvidas, houve silêncio no céu durante meia
hora. Enquanto isso, a ação se desenrolava: um anjo veio para a frente do altar
de Deus com um incensário. Misturou as orações dos cristãos com o incenso
(para purificá-las) e combinou tudo com o fogo (o Espírito de Deus) tirado do
altar. Depois, colocou a mistura no incensário e arremessou-o de sua trincheira
no céu. O incensário voou pelos ares e caiu na terra. Com o impacto, "houve
trovões, vozes, relâmpagos e um terremoto" (Ap 8:5). As orações que haviam
subido, sem que os jornalistas da época percebessem, voltaram com uma força
imensa — segundo a expressão de George Herbert, como "trovão inverso". 75 A
oração volta à história com efeitos que ninguém poderia prever. A terra em que
vivemos se abala a cada dia por causa disso.
A visão convence o cristão do potencial da oração. Com ela, temos acesso
ao ambiente em que Deus é o centro em torno do qual a ação acontece. Todas
as outras pessoas, eventos ou circunstâncias são secundários. O
relacionamento direto com Deus ilumina a existência. Nem bênção nem ruína
conseguem afastar o enfoque desse centro. Gente que ora não se deixa
enganar por tamanho, influência, importância ou poder. Essas pessoas voltam
as costas e ignoram os templos de Canaã e Assíria, Grécia e Roma, e se
entregam à profundidade pessoal que se transforma em reverência diante de
Deus e leva à intimidade com ele. E transformam o mundo.

74 P. T. Forsyth, The Soul of Prayer (Londres: Independent Press, 1949), p. 55.


75 George Herbert, Major Poets, p. 231.
Na abertura do livro de Apocalipse, João descreve duas condições de seu
momento presente: "na ilha de Patmos" e "no dia do Senhor achei-me no
Espírito". Exilado na ilha. Isolado. Afastado de socorro e consolo. Prisioneiro.
Uma burocracia sem rosto, à qual ele não tinha acesso, pronunciara palavras
decisivas e executara as ordens que definiram seu ambiente e as condições de
sua vida. A liberdade se fora com um simples traço da pena de um magistrado.
Não tinha mais permissão para executar o trabalho ao qual se lançara com
paixão. Acabaram-se as conversas sobre o pergaminho de Isaías com os
irmãos e irmãs que lhe eram tão caros; fora-se o tempo das celebrações da
Santa Ceia nos lares de seus corajosos companheiros de fé; nada mais de
visitas aos enfermos e aos que estavam à morte para consolá-los com as
palavras do Senhor; não servia mais os copos de água refrescante aos
sedentos viajantes da estrada da fé. Exílio.
O exílio é a experiência da impotência in extremis. Os outros determinam
tudo. O exilado é removido do lugar onde deseja estar e afastado das pessoas
com quem espera conviver. Isolamento do lugar e das pessoas. Torna-se
vítima. No Israel antigo, o banimento era o pior castigo possível. Separação da
família e do país, da comunidade de culto e da família da fé — o decreto mais
cruel. O julgamento mais severo que a nação judaica viveu foi o exílio em
Babilônia. Uma pessoa criada para relacionamentos pessoais de amor não vive
por completo sem eles. O exílio desumaniza. Sentencia a comer apenas pão
até a morte. "Na ilha de Patmos", Roma mostrou a João quem mandava. Cada
hora passada no rochedo sem vegetação provava que Roma controlava o
destino do apóstolo, tinha a palavra final na vida dele, estabelecia os limites
dentro dos quais ele recebia permissão para existir. João estava só, indefeso e
abandonado.
"No Espírito no dia do Senhor" significava algo completamente diferente. "No
Espírito" indicava que João sabia que estava em contato e usufruía de toda a
energia do Comando Central do universo. Ao mesmo tempo que estava em
Patmos, ele estava no Espírito. A tradução mais literal é "achei-me no espírito"
(egenomen en pneumati).76 João estava orando. Ele não estava distante, se é
que algum dia havia estado, pensando em Deus ou falando a respeito dele:
João estava com Deus. "Acabou estando no espírito." Encontrava-se agora
naquela condição em que a palavra de Deus se dirigiu diretamente a ele, e a
visão foi uma revelação pessoal. Oração é, na vida de fé, o ato em que
entramos diante de Deus em postura consciente e deliberada de falar e ouvir
— relacionamento do Criador com sua criação e dela com Ele. A qualquer
tempo que nos concentramos, focamos os pensamentos e prestamos atenção,
nós oramos. Orar significa ter consciência, exercitar a atenção, estimular e
desenvolver a intensidade pessoal diante de Deus.
Em todo o Apocalipse, em toda a Bíblia, Deus toma a iniciativa. Ele fala,
mostra, ordena, abençoa. Para um processo de comunicação perfeito, a
pessoa deve ver e ouvir o que Deus apresenta e fala. Em outras palavras,
precisa orar. João não viu nem ouviu o que escreveu em Apocalipse quando
estava descuidado sem nada para fazer, desfrutando do repouso dominical,
deixando as coisas acontecerem. João estava orando. Ele estava numa
experiente atitude de receptividade diante de Deus.
A oração é a linguagem usada para se dirigir a Deus, não para explicá-lo
nem para falar sobre Ele. É resposta. O evangelho tem a missão de nos fazer

76 Austin harrer, The Revelation of St. John The Divine (Oxford: Clarendon Press, 1964), p. 64.
parar de falar sobre Deus e nos levar a falar com Ele. Na conclusão dessa
porção da Escritura, o movimento se completa: João está ajoelhado. Nessa
posição, responde de forma diversa a uma palavra muito diferente da que o
colocou em Patmos: "Vi [...] Ouvi."
A experiência de estar em Patmos combina com a de estar no Espírito na
oração. Com ela, percebe-se a incapacidade pessoal e, ao mesmo tempo, a
participação no poder de Deus: não sou capaz de fazer nada; Ele é capaz de
fazer tudo. Só quando chegamos ao local de exílio, nos dispomos a passar
pela quietude disciplinada e pela espera apaixonada que nos levam à condição
de ouvir, ver e receber a plenitude de Deus. Só quem ora, vê e ouve o que
Apocalipse revela. O verdadeiro conhecimento de Deus jamais é conhecimento
sobre Ele; é sempre relacionamento com Ele. Quando Apocalipse termina,
João ainda está orando: "Amém. Vem, Senhor Jesus!" (22:20).
O "dia do Senhor" fornece um centro para a oração. Para João, significava
o domingo, o dia da ressurreição, o maravilhoso "primeiro dia" de Cristo.
Contudo, no primeiro século, a maioria dos súditos do império romano entendia
que ele se referia à festa do imperador. 77 Não foi a primeira vez, nem a última,
que os cristãos se apropriaram de uma expressão pagã e transformaram seu
significado.
Havia necessidade de um novo centro. Jerusalém, o local milenar de culto,
havia sido destruída pela arrogância pagã. As elogiadas leis do império romano
haviam decretado que os cristãos eram criminosos. A pax romana se
transformara, para os crentes, em perseguição até a morte. Em algumas partes
do império, a vida parecia um pesadelo. As imagens das bestas não são
exageros. O mundo estava de pernas para o ar. Muitos cristãos oravam o
salmo 55: "O meu coração está acelerado; os pavores da morte me assaltam.
Temor e tremor me dominam; o medo tomou conta de mim. Então eu disse:
Quem dera eu tivesse asas como a pomba; voaria até encontrar repouso! Sim,
eu fugiria para bem longe, e no deserto eu teria o meu abrigo. Eu me
apressaria em achar refúgio longe do vendaval e da tempestade."
O "dia do Senhor", em que acontecia a festa do imperador e o povo louvava
Roma por manter o mundo unido em paz e justiça, era uma piada para os
cristãos, mas isso não significava que paz e justiça também fossem uma piada.
À medida que os crentes oravam, o "dia do Senhor" foi adquirindo novo
significado: primeiro dia da semana, dia da ressurreição, dia de começar um
novo ciclo de oração, no qual Deus pelas suas primeiras palavras na semana
de Gênesis impõe ordem no caos: "Haja luz".
Todos somos sujeitos a inconsistências e contradições. Ficamos
desorientados e vacilamos, tontos sob o impacto de acidentes e decepções. Se
tivermos consciência apenas das tragédias, nossa vida será uma loucura e o
mundo um manicômio. Mantemos a sanidade reagindo ao que nos mantém
vivos: alimento e confiança, amor e abrigo, roupas e perdão, trabalho e lazer.
Há coerência entre a vida interior e a exterior. As carências exigentes em nosso
íntimo e as necessidades impostas à nossa volta encontram seu lugar na
hierarquia da providência. A oração descobre a coordenação de todas as
necessidades sob o domínio daquele que supre a todas. A oração se centra em
Deus, e, assim, todas as coisas entram em foco. Quando a atenção se fixa em
Deus, no centro, tudo se volta para Ele. A vida não é uma coleção aleatória de
porções e pedaços, incluindo tesouros e entulhos. Há coerência nela.

77 Ford, The Revelation, p. 382.


A arte literária de Apocalipse, por ela mesma, representa o triunfo da
coerência sobre o caos. Até o leitor menos atento percebe que o apóstolo João
arranjou a violência terrível e as questões desconcertantes em padrões
intrincados de beleza tremenda e energia abundante. A complexidade do
arranjo não vai além das exigências do conteúdo, mas este é, na verdade,
infinitamente complexo. A história não é simples. Não há como resumi-la em
um slogan. É repleta de diversidade e mistério.
Os dados de todas as semanas figuram nas páginas de Apocalipse: terror
político, mistério litúrgico, separações dolorosas, orações sem respostas, hinos
gloriosos, profecias não cumpridas, glória percebida, crueldade brutal, mortes
devastadoras e esperança inextinguível. Tudo isso se insere na experiência
dos que decidem viver pela fé em Cristo. Apocalipse de João inclui tudo na
coreografia de um balé de imagens. O uso repetido do número sete, que
transmitia à mente dos antigos afeitos à Bíblia um sentido de perfeição,
estabelece cadências de perfeição para a imaginação. O "dia do Senhor" é o
primeiro dia da ressurreição, quando a criação decaída inicia a nova semana
de redenção.
O mundo pagão acreditava que um deus ou deusa cuidava de cada dia da
semana. As divindades faziam exigências segundo seus caprichos e
distribuíam o bem ou o mal com arbitrariedade. Brigavam umas com as outras,
havia disputas e rixas. A semana era uma confusão de complôs e intrigas. Os
cristãos, pelo contrário, passavam o tempo todo sob o senhorio de Cristo. O
tempo foi redimido. Deus molda a criação, e Cristo a redime. O primeiro dia é a
nascente do rio do tempo, que nunca para de correr. O Dia do Senhor é a fonte
para os que o sucederão. Todos os eventos e experiências da semana fluem
dos arquétipos da criação e da redenção.
Tentar encontrar sentido em uma semana em que cada dia é governado por
uma divindade que briga com as outras é como tentar digitar uma carta e
descobrir que existem 23 teclados, cada um com uma única tecla, e que eles
estão espalhados pela cidade. Para escrever, eu preciso ir a um escritório para
pegar o "a", em outro para conseguir o "r" e em um terceiro para o "t". Certo
dia, chego ao escritório do "a" e descubro que o responsável tirou férias e só
volta daqui a duas semanas. Outra vez, vou ao local onde está o "o" e fico
sabendo que a secretária está cobrando mais caro e que não tenho dinheiro
suficiente.
Apresentar uma petição racional ou agradecer a vários deuses é assim.
João estabeleceu o Dia do Senhor, da revelação clara e coerente do Deus que
cria e salva, como contraste deliberado com o dia do imperador e seu bazar de
deidades, cada uma prometendo e exigindo uma coisa ou outra do povo. Ao
orar, nos dirigimos a um centro pessoal e inteligente. Endereçamos todas as
palavras, gestos, sentimentos e necessidades a Deus. Somos reunidos, não
desmembrados, nem espalhados. Concentrados, não diluídos.
Experimentamos a coerência.
Depois, silêncio no céu por "cerca de meia hora" (Ap 8:1). Vivemos em um
mundo barulhento. Gritam conosco, somos incitados, convocados. Todo mundo
tem uma mensagem urgente para nós. O barulho nos cerca: telefone, rádio,
televisão, aparelho de som. As mensagens são amplificadas a um nível
ensurdecedor. O mundo é uma multidão, onde todos falam ao mesmo tempo e
ninguém se dispõe, nem é capaz, de ouvir. Mas Deus ouve. Ele não se limita a
falar; também escuta. Isso é maravilha ainda maior do que Ele falar. Raramente
alguém ouve com atenção toda a mensagem. Poucas vezes vemos alguém
entender o que gaguejamos, decifrar nossa fala desajeitada, elucidar, ajeitar e
ouvir nossa sintaxe confusa — atenção a cada sílaba, compreensão de cada
nuança. Alguém leva nossa mente e nossos sentimentos a sério. Quando isso
acontece, percebemos a importância imensa do que falamos e sentimos.
Adquirimos dignidade. Só saberemos se pensarmos e falarmos bem, se
encontrarmos alguém que nos ouça.
Apaixonados costumam descrever a característica distintiva do novo
relacionamento mais ou menos assim: "Pela primeira vez na vida, posso dizer
tudo que penso e sinto." Isso não se deve à inclusão de novas palavras ao
vocabulário nem a aulas de expressão oral. Simplesmente encontraram uma
pessoa que ouve. A fala verdadeira se torna possível quando alguém ouve de
verdade. As palavras de nada valem se não houver quem as ouça.
Silêncio no céu por cerca de meia hora: Deus está ouvindo. Tudo que
falamos, cada gemido, murmúrio, tentativa de oração: Ele ouve tudo. Todo o
céu se aquieta. As vozes elevadas dos anjos, as mensagens penetrantes das
trombetas, os cânticos retumbantes do trono, tudo fica quieto enquanto Deus
ouve. As orações dos fiéis devem ser ouvidas: os aleluias espontâneos, os
améns solenes, os "Por que me desamparastes?" desesperados, os "Afasta de
mim este cálice" agonizantes, os "Pai nosso que estás nos céus" confiantes, os
"Tu, Senhor e Deus nosso, és digno de receber a glória, a honra e o poder,
porque criaste todas as coisas, e por tua vontade elas existem e foram criadas"
cheios de alegria. Ouvem-se agora, de forma pessoal, cuidadosa e precisa,
todos os salmos, ditos e cantados por todos os séculos, em vozes altas,
suaves, iradas ou serenas. Deus silencia anciãos e anjos. Nenhuma de nossas
palavras se perderá em um turbilhão de fofocas nem se afogará na catarata
formada pelos barulhos deste mundo. "A característica distintiva da oração dos
primeiros cristãos é a certeza de ser ouvido." 78 Alguém nos ouve. Percebemos
que temos dignidade. Mudanças dramáticas ocorrem nesse período de
silêncio. O mundo se coloca na perspectiva correta. Percebemos a realidade
do ponto favorável da obra de salvação de Deus, e não mais do meio do
pântano da desordem desesperadora. Adquirimos esperança.
Após a citação inicial de João "no Espírito", a referência seguinte à oração
acontece na abertura do quinto selo, quando o apóstolo viu "debaixo do altar as
almas daqueles que haviam sido mortos por causa da palavra de Deus e do
testemunho que deram. Eles clamavam em alta voz: 'Até quando, ó Soberano,
santo e verdadeiro, esperarás para julgar os habitantes da terra e vingar o
nosso sangue?' Então cada um deles recebeu uma veste branca, e foi-lhes dito
que esperassem um pouco mais, até que se completasse o número dos seus
conservos e irmãos, que deveriam ser mortos como eles" (Ap 6:9-11).
Isso se passa no mesmo altar em que as orações daqueles que estão sob o
altar são misturadas com o fogo do Espírito e usadas na ação de Deus para
responder. A oração era "Até quando?". O questionamento impaciente vem de
longa data.79 Agora, a resposta está à vista. Deus vai completar sua obra. Os
eventos que nos envolvem no presente fazem parte do plano que completa a
história da salvação.
A resposta é suficiente. Quando entendemos que há diferença entre demora
e procrastinação, que a espera não se deve à indiferença do outro e que não

78 Heinrich Greeven, TDNT, 2:803.


79 Salmos 6:3; 74:9; 80:4; Zacarias 1:12.
fomos esquecidos, então esperar se torna tolerável. Providências importantes
foram tomadas enquanto aguardávamos. A ação na terra, vista do lugar
celestial, apresenta o enredo da redenção vitoriosa. O primeiro selo, no qual o
Cristo vencedor entrou na história montado em um cavalo branco, se liga ao
quinto, quando os mártires, vestidos de branco, recebem a certeza de que
Cristo vence em favor deles.
A oração nos leva ao plano de Deus. Aquilo que parece ser apenas
confusão na correria de todos os dias assume características de um plano
quando passa a oscilar entre o trono e o altar. Quando há um projeto, há
também esperança. A vertigem que sentíamos foi curada. Discernimos agora
direção, enredo e propósito.
Durante o silêncio no céu, os próximos passos são preparados. As orações
não ficam armazenadas no altar; são misturadas com o fogo do Espírito de
Deus e mandadas de volta à terra. A oração é tanto exterior quanto interior. É
uma das atitudes mais práticas que uma pessoa pode adotar. Diferente do
escapismo místico, implica envolvimento histórico. Leva à participação nos atos
de Deus. Ele reúne clamor, orações, petições e intercessões e os usa. As
preces elevadas a Deus agora retornam à terra. Ele as usa em sua obra.
"Oração", escreveu Pascal, "é o caminho de Deus para prover ao ser humano a
dignidade da causalidade."80
João usa a metáfora da trombeta para mostrar a certeza de que Deus age
com nossas orações e o poder com que o faz. Assim que as preces voltam à
terra no incensário, sete anjos se preparam para tocar as trombetas. Do
mesmo modo que a abertura dos selos marcou a revelação, as trombetas
apontam para a proclamação. O fato proeminente de que a imaginação cristã
associa trombetas a orações é a conquista de Jericó. Israel passou por longas
provações e tribulações, confiando na promessa de uma nova terra. Chegando
às portas, descobriu que a entrada estava bloqueada pela cidade de Jericó,
que era uma fortaleza. Os hebreus haviam vivido muitos anos com base em
promessas e visões. Foram alimentados com sua cota no deserto e um longo
discipulado. Agora, nos limites da nova terra, são recebidos por uma cidade de
muros inexpugnáveis. Alguns arqueólogos encontraram nas escavações em
Jericó muros de 4 metros de largura. Quando Josué chegou, a muralha não era
tão sólida, mas a reputação era: ninguém conseguia invadir aquela cidade.
Nenhuma arma importunava a fortaleza. Mas a oração fez isso.
Jericó estava completamente fechada por causa dos israelitas. Ninguém saía nem entrava.
Então o SENHOR disse a Josué: "Saiba que entreguei nas suas mãos Jericó, seu rei e seus
homens de guerra. Marche uma vez ao redor da cidade, com todos os homens armados. Faça
isso durante seis dias. Sete sacerdotes levarão cada um uma trombeta de chifre de carneiro à
frente da arca. No sétimo dia, marchem todos sete vezes ao redor da cidade, e os sacerdotes
toquem as trombetas. Quando as trombetas soarem um longo toque, todo o povo dará um forte
grito; o muro da cidade cairá e o povo atacará, cada um do lugar onde estiver" (Js 6:1-5).
A incidência sucessiva do número 7 — sete sacerdotes, sete chifres de
carneiro, sétimo dia, sete vezes — em paralelo com a oração cristã transmite
mensagem poderosa: quando oramos, participamos da realização da vontade
de Deus "assim na terra como nos céus". Jericó é a lembrança mais vívida que
as trombetas evocam, mas há muitas outras. O crente em oração se lembra de
que o Senhor disse a Moisés: "Faze duas trombetas de prata; de obra batida
as farás; servir-te-ão para convocares a congregação e para a partida dos
arraiais" (Nm 10:1-2, RA). As trombetas voltarão a ser usadas para convocar o

80 Blaise Pascal, Pensamentos (São Paulo: Nova Cultural, 1988), p. 161.


povo para a guerra: "... perante o SENHOR, vosso Deus, haverá lembrança de
vós, e sereis salvos de vossos inimigos" (Nm 10:9, RA). Deveriam ser tocadas
nos dias de alegria, "em seus dias festivos, nas festas fixas e no primeiro dia
de cada mês", um sinal de "um memorial em favor de vocês perante o seu
Deus" (Nm 10:10). Dessas festas, a mais importante era o Dia do Ano Novo
(Rosh Hashanah), seguido de dez dias de penitência, como preparação para o
dia mais santo de todo o ano, o Dia do Perdão (Yom Kippur). Há um novo
começo, acontece uma purificação completa.
A trombeta indicava também o ano do jubileu: "Contem sete semanas de
anos, sete vezes sete anos; essas sete semanas de anos totalizam quarenta e
nove anos. Então façam soar a trombeta no décimo dia do sétimo mês; no Dia
da Expiação façam soar a trombeta por toda a terra de vocês" (Lv 25:8-9). O
jubileu proclamava a liberdade. Toda propriedade voltava aos donos originais,
as dívidas eram perdoadas, a terra ficava sem cultivo e os escravos eram
libertados. Em seu primeiro sermão na sinagoga de Nazaré, Jesus usou um
trecho de Isaías e anunciou que o jubileu havia chegado: "O Espírito do Senhor
está sobre mim [...] para libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça do
Senhor" (Lc 4:18-19). A. Strobel afirma que entre os anos 26 e 27 desta era
houve um ano do jubileu e que a citação de Jesus levava em conta esse fato,
quando as trombetas soavam por toda a terra e o povo lembrava mais uma vez
a tradição da libertação narrada em Levítico.81
Nas congregações que João pastoreava, devia haver ainda gente que se
lembrava do passado, quando adoravam no templo de Jerusalém. Para eles,
as trombetas suscitavam lembranças da riqueza sonora e visual daquele lugar,
onde "tocavam-se as trombetas durante o sacrifício diário, assim que o cordeiro
desmembrado era colocado sobre o fogo do altar. Mas o cordeiro só podia ser
colocado no altar, e as trombetas só podiam tocar, depois que o sacerdote
oferecia incenso no altar de ouro que ficava dentro do templo. Ele entrava com
seus auxiliares, e a congregação esperava em silêncio no pátio até ele
reaparecer. Então, o sacrifício prosseguia, e as trombetas soavam".82 O mesmo
padrão e sequência que eles viam na terra, agora viam no céu. A oração
estabelece a correspondência entre os atos terrenos e os celestiais.
O primeiro texto do Novo Testamento, a Epístola de Paulo aos
Tessalonicenses, liga trombetas à vinda de Cristo: "Pois, dada a ordem, com a
voz do arcanjo e o ressoar da trombeta de Deus, o próprio Senhor descerá dos
céus..." (1 Ts 4:16). Ressurreição dos mortos e arrebatamento dos vivos
seguirão esse toque de trombeta. Antes, Jesus havia prometido: no final, o
Filho do Homem "enviará os seus anjos com grande som de trombeta, e estes
reunirão os seus eleitos dos quatro ventos, de uma a outra extremidade dos
céus" (Mt 24:31). Tanto Jesus quanto Paulo tinham como base um texto de
Isaías: "E naquele dia soará uma grande trombeta. Os que estavam perecendo
na Assíria e os que estavam exilados no Egito virão e adorarão o SENHOR no
monte santo, em Jerusalém" (Is 27:13).
As imagens se fundem: purificação completa, vitória poderosa, retorno final.
Um novo ano e um novo tipo de vida. Terra nova e novo local de bênção. A
oração nos coloca em uma nova vida, interior e exterior, no coração e no país.
Desfrutamos de relacionamento restaurado com o Deus santo; somos enviados
como povo santo a uma terra prometida. As trombetas proclamam o que Deus

81 A. Strobel, citado em I. Howard Marshall, The Gospel of Luke (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1978).
82 Farrer, The Revelation, p. 112.
está fazendo em resposta às nossas orações e nos despertam para participar
da obra dele em nosso favor. Elas nos impedem de dormir durante a revolução
e nos mantêm atentos a todos os atos de julgamento e salvação.
As trombetas falam de novos começos e de vitórias. Isso contrasta com as
visões que se seguem, relacionadas com julgamento e arrependimento. Jericó,
jubileu, Jerusalém e Jesus (salvação) se justapõem a pragas de Moisés no
Egito e exércitos de gafanhotos de Joel (julgamento). O poeta coloca lado a
lado imagens improváveis e deixa que atuem em nossa imaginação, como
metáforas que fertilizam umas às outras.
A imaginação medieval apreciava meditar nas histórias hebraicas como
arquétipos da jornada da alma. O ato da oração descobre analogias para o
discipulado cristão em toda parte, tanto em lugares prováveis como nos
improváveis. A imaginação de Richard de St. Victor mostra isso quando ele
aconselha:
Mas primeiro é necessário deixar o Egito para trás, cruzar o mar Vermelho. Antes os egípcios
precisam perecer nas ondas; temos que sofrer com a fome na terra do Egito antes de ficarmos
aptos a receber o alimento espiritual e celestial. Aquele que deseja esse alimento da solitude
celestial deve abandonar o Egito de corpo e coração e deixar por completo o amor ao mundo.
Atravessa o mar Vermelho, tenta retirar de teu coração toda tristeza e amargura, se desejas ser
tomado de doçura interior. Primeiro o Egito precisa ser consumido. Que os caminhos perversos
pereçam para que os cidadãos do céu desprezem companhias ignóbeis. Os alimentos do Egito
precisam faltar, e o prazer carnal ser considerado abominação, antes que possamos sentir a
natureza desses prazeres interiores e eternos.83
João leva a imaginação, cheia da esperança que as trombetas evocam, a
observar o que Deus faz em resposta às orações, para que, em
arrependimento verdadeiro, sejamos livres para uma nova vida. As pragas que
as trombetas anunciam reconstroem as do Egito. Em Êxodo, elas foram
purgativas, e não punitivas; enviadas não apenas para acabar com o faraó,
mas para fazê-lo mudar de vida, se arrepender. O mesmo propósito continua
aqui, pois a imaginação reverente se prepara para aplicar as pragas das
trombetas à nossa vida. A primeira praga mostra que não há segurança na
terra, no mar nem no céu (Ap 8:7-11). A salvação vem de Deus e apenas dele.
Quando nos tornamos complacentes com as rotinas "egípcias", Deus intervém.
Exceto Deus, nada é seguro. Nenhum relacionamento é seguro sem fé.
O envenenamento das águas (8:10-11) contrasta com a purificação ocorrida
quando Moisés jogou uma árvore no poço em Mara e a água "se tornou boa"
(Êx 15:22-25). O mal, especialmente quando pretensioso, tem efeito de
veneno. Os pais da fé gostavam de correspondência de imagens e de unir uma
história à outra. Aqui, viam a árvore da crucificação arremessada no poço da
amargura de nosso pecado para que uma fonte de água viva fosse criada em
nós.
O escurecimento dos luminares — Sol, Lua, estrelas — lança uma sombra
sobre a vida (8:12). Agora todos os elementos (terra, água salgada, água doce,
firmamento) estão sob julgamento. Gênesis deixou claro que tudo que vemos
resulta da vontade criadora de Deus; Apocalipse estabelece que tudo está
sujeito a seu julgamento criativo. Quando qualquer dos elementos da criação
se coloca entre nós e Deus, como ídolo, o julgamento vem e nos leva de volta
à confiança e adoração simples. Toda confiança e toda devoção equivocadas
são questionadas.
Ainda assim, fazemos todo o possível para entender o julgamento. Usamos
todos os estratagemas que conseguimos para evitar as consequências do
83 Citado em F.C. Happold, editor, Mysticism (Baltimore: Penguin Books, 1970), p. 248.
pecado. Mas Deus não permite isso. Ele não fecha os olhos à nossa falta de
atenção. Temos que levá-lo a sério. Em uma pausa entre dois toques de
trombeta, uma águia grita Seu aviso (Ap 8:13). Embora nos tornemos hábeis
em desligar os sons que não desejamos ouvir, inclusive do desagrado de Deus
diante do pecado, Ele encontra novos meios de penetrar em nossa surdez. O
grito da águia nos pega de surpresa.
Depois vêm os gafanhotos (Ap 9:1-11). Inimizade contra Deus é um ataque
feroz contra a humanidade. A profecia de Joel é retomada para mostrar as
consequências terríveis de recusar o caminho do arrependimento. Só seremos
salvos dos terrores do pecado se nos arrependermos. Com a introdução de
Apoliom (Ap 9:11), o quadro se torna surrealista, com figuras de pesadelo em
uma cena grotesca: o anjo do abismo sem fim comanda o exército de
gafanhotos. Mesmo assim, a destruição, embora terrível, não é completa — é
identificada e, assim, está sob o comando daquele que "deu-lhe um decreto
que jamais mudará'' (Sl 148:6).
Em contraste com o sexto dia da criação, em que Deus soprou sua vida em
forma de homem, e fazendo paralelo com a praga em que o anjo da morte
matou os primogênitos dos egípcios, a trombeta do sexto anjo indica morte
para alguns e vida para outros (Ap 9:13-19). A morte é o "último inimigo". Isso
marca o limite de nosso relacionamento com Deus. Assim como a dor é um
caminho de cura e o sofrimento um estímulo à saúde, também o julgamento é
um instrumento útil ao arrependimento. Mas isso não é garantido. "O restante
da humanidade [...] nem assim se arrependeu" (Ap 9:20-21). O faraó também
não se arrependeu, nem mesmo depois de passar pelas dez pragas do
julgamento. Somos forçados a procurar dentro de nós mesmos a obstinação
persistente que recusa os convites divinos e ignora os sinais do Espírito.
João introduz outro assunto entre o toque da sexta e da sétima trombetas
(10-11). Antes mesmo de completar essa série, ele nos envolve na próxima.
Não devemos tirar conclusões prematuras. Há muitas penúltimas coisas antes
das últimas. Mas, por enquanto, avancemos diretamente para a sétima
trombeta (Ap 11:15-19), que inicia uma cena celestial de orações respondidas:
os fiéis que fizeram a oração do Pai Nosso, "Venha o teu Reino; seja feita a tua
vontade, assim na terra como no céu", verificam agora que "o reino do mundo
se tornou de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará para todo o sempre".
As orações foram respondidas. O domínio se estabeleceu. O reino é glorioso.
O templo de Deus no céu se abre, e os fiéis vêem a arca da aliança,
acompanhada pelo alarido da vitória.
Estamos mais uma vez em Jericó. Quando a cidade caiu, as trombetas
comandaram a parada que carregou a arca da aliança em volta da cidade pagã
fortificada contra o povo e a ação de Deus. A arca indicava a presença de Deus
entre seu povo. Mais tarde, os filisteus a capturaram e depois o exército de
Davi a resgatou. Colocada no templo de Salomão, desapareceu quando ele foi
destruído, em 586 a.C. Para onde foi a arca? Onde estava Deus? Durante
vários séculos, o povo orou: "Teus adversários gritaram triunfantes no local
onde te encontravas conosco, e hastearam suas bandeiras em sinal de vitória.
[...] Já não vemos sinais miraculosos; não há mais profetas, e nenhum de nós
sabe até quando isso continuará. Até quando o adversário irá zombar, ó
Deus?" (Sl 74:4,9-10). Agora João mostra ao povo em oração que a arca não
foi destruída. Esteve onde sempre foi seu lugar, o templo celestial onde todas
as orações se completam.
"Transforme sua Bíblia em oração", escreveu Robert Murray McCheyne a
um jovem batizando. Foi isso que João fez, de joelhos, na ilha de Patmos no
Dia do Senhor.
8.
A ÚLTIMA PALAVRA SOBRE TESTEMUNHO
APOCALIPSE 10-11
Eu proclamo as novas de justiça
na grande assembleia;
como sabes, SENHOR,
não fecho os meus lábios.
Não oculto no coração a tua justiça;
falo da tua fidelidade e da tua salvação.
Não escondo da grande assembleia
a tua fidelidade e a tua verdade.
SALMO 40:9-10
Darei poder às minhas duas testemunhas, e elas profetizarão durante mil duzentos e sessenta
dias, vestidas de pano de saco.
APOCALIPSE 11:3
Tive que voltar a mim mesmo para aprender a organizar minhas convicções ocultas, minha
verdadeira fé, e, com isso, dar meu testemunho. É tarefa muito extensa, e ainda não a
completei.
CZESLAW MILOSZ84
Antipas, da igreja de Pérgamo, morreu na perseguição. Foi chamado de "minha
fiel testemunha", ho martus mou ho pistos mou (Ap 2:13). Antes, Jesus tinha sido
descrito com frase quase idêntica, "testemunha fiel", ho martus ho pistos (Ap
1:5). De Antipas, foi dito que "foi morto nessa cidade", e isso por certo é
verdade. Quanto a Jesus, o texto afirma também que Ele era "o primogênito
dentre os mortos" (Ap 1:5).
Falar a verdade é difícil e perigoso. Os que se atrevem, muitas vezes
acabam mortos. A palavra que no primeiro século significava falar a verdade
sobre Deus, martus, veio para nossa língua como "mártir", aquele que perde a
vida por dizer o que pensa.
Desde o início, as pessoas que seguiam a Bíblia se comprometeram a falar
a verdade revelada por Deus. É necessário que se diga que eles o faziam com
sinceridade, ousadia e precisão. Marcando o contraste com as outras religiões
do mundo antigo, que se dedicavam a construir ídolos e templos, a fé bíblica
valorizava a palavra verdadeira. As outras religiões usavam ritos e cerimônias
para manipular suas divindades; palavras que não diziam nada lançavam
feitiços e encantamentos destinados a influenciar a vontade dos deuses. A fé
bíblica, em contraste desafiador, insistia em que Deus falava e que temos de
ouvir e responder. "Testemunho" era o relato pessoal de uma conversa.
Profetas e apóstolos adquiriram a reputação de falar sem medo. Corriam
grandes riscos. A taxa de mortalidade deles, pelo menos em Israel, era muito
elevada. Sabemos de Antipas, citado no texto, mas muitos morreram sem que
ficasse registro de seus nomes. Mais adiante no Apocalipse, João verá a
grande prostituta "embriagada com o sangue dos santos, o sangue das
testemunhas de Jesus" (Ap 17:6). A maioria das famílias do final do primeiro
século tinha amigos ou parentes entre esses santos e mártires.
Enquanto há silêncio no céu, e as orações dos cristãos são ouvidas, Deus
se prepara para falar. E fala. De alguma forma misteriosa, há uma ligação
indiscutível entre o que Ele fala e as orações. Esse discurso querigmático de
Deus, que faz história, foi anunciado com trombetas pelos anjos. Seguem-se
consequências terríveis. Mas há outro discurso, mais modesto, porém também
84 Czeslaw Milosz, Emperor of the Earth (Berkeley: University of California Press, 1977), p. 14.
importante. As palavras que dirigimos a Deus (as orações-incenso) são
poderosas, podemos ter certeza disso. As que Deus fala à humanidade (a
pregação com trombetas) são tremendas, podemos nos convencer disso. Mas
há também o que falamos sobre as palavras que dirigimos a Deus e sobre o
evangelho que Ele dedica à terra. Em comparação com tal oração e tal
pregação, talvez seja importante minha hesitação ao declarar a palavra de
Deus em meus contatos de todos os dias com pessoas que preferem ouvir
qualquer outra coisa. Os capítulos 10 e 11 de Apocalipse tratam dessa
hesitação e, enfaticamente, afirmam que sim, é importante!
Exatamente como a abertura do sétimo selo aguardou até que fosse
assegurado a todos que a comunidade cristã comum, afundada até o pescoço
na perversidade da história, estava ordenada e protegida (Apocalipse 7), assim
também o toque da sétima trombeta esperou que a importância do testemunho
cristão fosse assegurada. A comunidade de crentes tem sempre dado muita
importância até à mais corriqueira das conversas. O que as pessoas de fé
dizem umas às outras e também às que não crêem não é tão importante
quanto o que falamos com Deus por meio de Jesus Cristo (em oração), nem
tão marcante quanto as proclamações que os anjos fazem do evangelho por
meio de trombetas (na pregação), mas tem um lugar essencial, que deve ser
ocupado.
A principal dificuldade na manutenção do testemunho cristão é a timidez. A
vida mundana é agitada, barulhenta e agressiva. A de fé é simples, calma,
discreta. O que um cristão comum pode dizer que tenha alguma chance contra
o ímpeto ruidoso de dinheiro, prazer e ambição? E contra os lamentos de tédio,
depressão e autopiedade? Em nossa sociedade, publicitários cínicos, atores
sem fé e artistas complacentes se apropriaram de metáforas e símbolos para
nos condicionar a uma devoção maníaca e obtusa ao eu e ao agora. Diante
disso, como renovar a imaginação para podermos dizer, pessoalmente, com
sinceridade, sem elevar a voz, quem Deus é e o que significa eternidade?
Os anjos de João constituem um caminho. Eles não se parecem com as
figurinhas rechonchudas das pinturas renascentistas nem com as garotinhas
sorridentes e enfeitadas das pecinhas de Natal. São anjos reais, apocalípticos
— enormes, impetuosos, caminham sobre o mar. Têm o inferno nas narinas e o
céu nos olhos. Anjos são um meio bíblico de representação do invisível.
Sempre que o invisível, intrincado e complexo, rico e luxuoso, está vivo na
mente de homens e mulheres, surgem referências abundantes aos anjos.
Acreditar neles significa reconhecer que "o mundo de Deus é muito mais rico
do que aquilo que podemos ver em nosso planeta". A Bíblia fala abertamente
dos anjos como espíritos ministradores, "criaturas sem pecado que habitam um
mundo em que a matéria não estorva o espírito, que a usa com liberdade, sem
limitações. Ao mesmo tempo, são criaturas que, a despeito de terem
inteligência mais elevada, colocam-na a serviço da causa da redenção,
proteção e direção da humanidade terrena".85
As Escrituras apresentam os anjos de duas maneiras. Na forma de pessoas
comuns, semelhantes ao homem ou à mulher que mora na casa ao lado da
nossa. Em sua aparência natural, são agentes do sobrenatural, uma forma de
ação direta de Deus na vida cotidiana. Três homens apareceram a Abraão e
Sara, que só mais tarde perceberam que eles eram anjos (Gênesis 18). O autor
de Hebreus aconselha a prática da hospitalidade com o seguinte argumento:

85 Henrikus Berkhof, Christian Faith (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publ. Co., 1986), p. 176.
"... foi praticando-a que, sem o saber, alguns acolheram anjos" (Hb 13:2). Se
algum dia virmos um anjo, não saberemos de imediato quem ele é. Eles têm
propensão a aparecerem incógnitos. Manifestam-se também por meio de
visões, quando se apresentam de maneira extravagante, figuras imensas que
enchem o céu, tendo constelações nos cabelos e empunhando espadas do
tamanho de cometas.
A mente cristã consegue discernir a sabedoria divina nas formas de
manifestação dos anjos. Deus diz à mente ainda não convertida por completo,
que deseja ardentemente receber visitações milagrosas e sensações
sobrenaturais: "Nada disso. Minha presença sobrenatural está com você, mas
você só saberá disso por meio dos deveres e responsabilidades que estão à
sua volta." Contudo, o Espírito ocasionalmente concede visões e sonhos ao
cristão devoto, dedicado à intercessão fiel e paciente ao levar as cargas, para
fortalecê-lo com o conhecimento de que somos cercados e sustentados por
exércitos celestiais durante nossas batalhas. 86 Os anjos existem para encorajar,
não para distrair.
A perda dos anjos na linguagem da fé não se deve tanto à atrofia da
capacidade de crer, porém deve-se mais à anemia da capacidade de imaginar,
pois, como Berkhof comentou, "uma geração como a nossa, que assume (sem
provas) em suas teorias e literatura de ficção científica a existência de seres
conscientes em outros planetas, interessados nesta Terra, dificilmente acharia
estranho acreditar em anjos".87
Precisamos de uma transfusão substancial de glóbulos vermelhos de
imaginação no sistema circulatório de nossa fé. Para que a conversa comum e
cotidiana dos cristãos não se transforme em pieguice e clichês, é necessário
entrar em contato com a realidade rica e vibrante do sobrenatural, a vitalidade
invisível de Deus, de quem o salmo 18 diz que "montou um querubim". Jamais
seria possível imaginar esse querubim como um bebê de bochechas rosadas. A
mente exige algo mais semelhante a um magnífico centauro com um cometa
saltando de seu globo ocular.
Emily Dickinson lamentou: "Essa vida tímida de mostra/esconde — eu não
sei".88 O Apocalipse responde com uma vigorosa vida de imaginação que ousa
ver anjos vestidos de sol e, como consequência, vem o testemunho audaz: "Eu
creio." João usa, para nos levar da timidez ao testemunho, a estratégia de
preencher o cenário de nossa imaginação com a visão de um anjo projetado na
tela da fé, anjo poderoso descendo do céu, vestido com nuvens, coroado pelo
arco-íris, o rosto brilhando como o sol, pisando no oceano e na terra, com duas
imensas colunas de fogo como pernas (Ap 10:1-2).
João e o povo que ele pastoreia estão sendo preparados para a obra do
testemunho, o uso diário das palavras em conversas a serviço do evangelho.
Entretanto, algumas coisas não devem ser ditas, pelo menos por enquanto. O
anjo poderoso abre sua boca e ruge como um leão, e a resposta é
meteorológica — sete trovões. O apóstolo se prepara, com muita naturalidade,
para escrever a mensagem dos trovões (isso iria impressionar aqueles
intelectuais que desprezavam a fé!), mas é impedido. O primeiro aspecto do
testemunho que aprendemos é que não podemos dizer tudo. Testemunho não
é o mesmo que tagarelice. Jesus havia dado conselho semelhante sobre lançar
86 Joel 2:28-32; Atos 2:17-20, etc.
87 Berkhof, Faith, p. 175.
88 Emily Dickinson, The Complete Poems, editor Thomas H. Johnson (Boston: Little, Brown and Co.,
1960), p. 343.
pérolas aos porcos (Mt 7:6).
O retumbante salmo 29 provavelmente diz tudo que viremos a saber sobre
as revelações dos sete trovões: a voz do Senhor (qol Yahweh) ressoa sete
vezes no salmo, em criação e julgamento, com todas as criaturas do céu e da
terra respondendo em adoração: "Glória!" O salmo tem o mesmo estilo de
Apocalipse. Como o texto mais antigo nos leva a entender o que os sete
trovões disseram, parece que o motivo da ordem dada ao apóstolo para selar a
mensagem não é manter segredo; isso se dá porque o mundo descrente ainda
não é capaz de ouvi-la.
Assim, parece que no testemunho não devemos contar tudo que vimos e
ouvimos, indiscriminadamente e sem pensar. A reticência faz parte do
testemunho tanto quanto a expressão. Ao descer do monte da Transfiguração,
Jesus instruiu os três discípulos: "Não contem a ninguém o que vocês viram"
(Mt 17:9), não porque ninguém nunca devesse saber (hoje sabemos), mas
porque não era a hora certa. Em muitas situações na vida de Jesus, Ele proibiu
os que foram curados de contar o que tinha acontecido. Ele não planejava
iniciar uma sociedade secreta, mas queria ensinar a arte precisa e difícil do
testemunho cristão, no qual há "tempo de calar e tempo de falar" (Ec 3:7).
João foi proibido de dizer uma coisa (o que os sete trovões falaram), mas
recebeu ordem para dizer outra. O anjo forte que desceu do céu ficou na frente
dele e lhe mostrou um livro. É a segunda vez que esse anjo aparece. Na
primeira, estava diante do livro selado, perguntando insistentemente se havia
alguém capaz de abri-lo (Ap 5:1-2). Aqui, ele segura o mesmo livro, que agora
está aberto — o significado foi revelado por meio da pregação. (Ele aparecerá
uma terceira e última vez, carregando não o livro, mas uma grande pedra de
moinho: Babilônia não se arrepende, endurece o coração às palavras do livro,
então é transformada em pedra e lançada no mar do julgamento (Ap 18:21-
24].)
O apóstolo pega o livro que o anjo lhe mostra. "Livro" significa revelação
inteligível. A história na qual vivemos tem sentido, enredo e propósito. O livro
está aberto, pois Cristo havia rompido o selo. Ninguém chega até Deus por
meio de conjeturas. O anúncio de que não haverá mais demora acompanha o
livro aberto: a revelação está completa (Ap 10:6). Cristo cumpriu todas as
promessas de Deus. "Hoje é o dia da salvação." A procrastinação — principal
engano introduzido pelos videntes e leitores de sorte ("como a verdade ainda
está no futuro, não preciso pensar nela hoje") — foi abolida. Vivemos em um
Agora intenso e eterno. O testemunho abrange a abertura e a urgência da
palavra de Deus. A testemunha vê com cautela as discussões. Opõe-se à
objetividade distante que alega preservar verdades científicas desencorajando
a participação pessoal. A testemunha mergulha na subjetividade radical e
convida os outros a fazerem o mesmo. Requer mente alerta (para ler o livro
aberto) e reação imediata (pois o tempo acabou).
O anjo manda João, além de pegar, comer o livro. Com isso, ele consome tudo,
assimilando-o nos tecidos da vida. O testemunho se transforma primeiro
naquilo que será dito depois. Para ser mais do que falação a respeito de Deus,
ele tem que ser a palavra internalizada. A maioria das pessoas tem opiniões
sobre Deus e não hesita em declará-las. Essas conversas de nada adiantam,
ou pior, são prejudiciais. O fato de uma conversa (ou sermão!) ter a palavra
Deus não a qualifica como testemunho cristão. João não tem que passar
adiante informações sobre Deus. Ele recebe a ordem de assimilar a palavra,
para que, quando falar, ela se expresse com naturalidade em sua sintaxe,
assim como aquilo que comemos é, quando somos saudáveis, assimilado em
nossos nervos e músculos sem nem percebermos.
João pega o livro. Entretanto, a palavra usada não é a mesma empregada
na apresentação do mesmo livro. A voz celestial diz: "Vá, pegue o livro [biblion]
aberto que está na mão do anjo." Ele conta o que aconteceu a seguir:"... me
aproximei do anjo e lhe pedi que me desse o livrinho [biblaridion]." No capítulo
10, versículo 10, diz: "Peguei o livrinho [biblaridion] da mão do anjo...".
Sendo preparado para a obra do testemunho, o apóstolo se depara com um
evangelho profundo, poderoso, complexo e impressionante: "Quem conheceu a
mente do Senhor?" (Rm 11:34). A mensagem é eterna e abrangente. Todos que
ousam testemunhar têm a consciência dolorosa de estarem apenas na "borda
de suas obras" (Jó 26:14). Nenhuma pessoa está apta a transmitir tal
mensagem. Contudo, João não se esquiva ao testemunho com a desculpa de
sua inadequação. Pega o que é capaz de assimilar, um livrinho no lugar de um
livro.
A troca de palavras sugere modéstia no testemunho. Sabemos, assim que a
mensagem se dirige a nós, que o significado completo da vida divina nos foi
apresentado e que devemos anunciá-lo. Entretanto, sabemos também que não
podemos dizer tudo. Ficamos perplexos diante da imensidão que nos foi
revelada. Por sua própria pequenez, nossa vida demonstra o tamanho da
mensagem. O vocabulário à nossa disposição não dá nem para começar a
tratar o assunto. Mas nem por isso ficamos sem palavras. Afinal, alguma coisa
pode ser dita, e nós a diremos. Contudo, na palavra do testemunho, temos
consciência da diferença: o livro aberto foi apresentado, mas só conseguimos
assimilar o conteúdo de um livrinho. Por mais que falarmos, só trataremos de
uma parte do todo. Mesmo que nos expressemos muito bem, sabemos que
estamos apresentando uma versão deficiente e abreviada da perfeição que é a
palavra feita carne. Mas essa inadequação não nos incapacita. Ser incapaz de
dizer tudo não significa que estamos isentos de falar o que podemos. Ainda
assim, a troca de palavra sugere humildade, que nem sempre se verifica
naqueles que ousam testemunhar de seu Senhor.
Continuando a seguir as instruções (pois jamais avançamos sozinhos na
obra do testemunho, somos sempre aprendizes atentos), João come o livro.
Ele já sabia o que esperar: "... Ele será amargo em seu estômago, mas em sua
boca será doce como mel" (Ap 10:9). Então, aconteceu exatamente assim: "...
Ele me pareceu doce como mel em minha boca; mas, ao comê-lo, senti que o
meu estômago ficou amargo" (Ap 10:10).
Como nós hoje, o apóstolo João deve ter se lembrado da história de
Ezequiel, que o Espírito grava no entendimento de cada um que se lança à
obra de testemunhar. O profeta também havia recebido um livro e a ordem para
comê-lo. Depois, contou: "... em minha boca era doce como mel" (Ez 2:8-3:3).
Essa experiência é comum a todos que incorporam a palavra de Deus nas
suas. O servo, meditando e saboreando na Bíblia, aprecia e se deleita no que
lhe é fornecido. "Provem, e vejam como o Senhor é bom..." (Sl 34:8). A palavra
de Deus é suave ao paladar, como mel na boca. Contudo — e aí reside a ironia
da doçura da palavra do testemunho —, muitas vezes há rejeição, e aquele
que testemunha sente a amargura da rejeição em seu estômago. A
congregação de Ezequiel era rebelde (Ez 2:7). Ele transmitiu a mensagem
atraente e depois comentou sobre a congregação: "... não quer me ouvir, pois
toda a nação de Israel está endurecida e obstinada" (Ez 3:7). Jeremias, quase
contemporâneo de Ezequiel, não teve sorte melhor. Ele recebeu a palavra de
maneira muito comovente e maravilhosa (Jr 1:10). Pregou-a com paixão
poética, em sentenças fortes e metáforas de clareza ofuscante. Mas o povo a
rejeitou, e ele mergulhou em angústia e dor: "... Por isso a palavra do SENHOR
trouxe-me insulto e censura o tempo todo" (Jr 20:8). Todas as testemunhas
bíblicas que conhecemos — Moisés, Elias, João Batista e o próprio Senhor —
experimentaram essa amargura.
O testemunho sempre envolve as polaridades de doçura e amargura. A
palavra recebida de Deus é doce; a rejeitada pelos outros é amarga. É
irresponsabilidade descrever a obra de testemunhar como uma alegria
constante. Alguns insistem em fazer isso e nos dizem que, se ousarmos falar a
palavra da verdade com habilidade e sinceridade, com toda a certeza
alcançaremos sucesso. Alguns afirmam que a única barreira entre Deus e a
humanidade perdida é a comunicação clara e que, quando "transmitirmos" a
palavra, tudo ficará bem. A Bíblia não confirma isso. As testemunhas bíblicas
foram motivadas pela promessa de uma palavra doce, mas também advertidas
da amargura da rejeição. Há uma mensagem maravilhosa a provar: "Venham a
mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei
descanso" (Mt 11:28). Mas há também uma muito difícil de aceitar: "Assim,
façam morrer tudo o que pertence à natureza terrena de vocês [...] É por causa
dessas coisas que vem a ira de Deus sobre os que vivem na desobediência"
(Cl 3:5-6).
Fácil ou difícil, sucesso ou fracasso, tem que ser feito. Deus deseja que sua
atividade redentora na história seja conhecida. Afinal, o livro foi aberto a um
preço muito alto — apenas o Cordeiro imolado foi considerado apto. E, assim,
vem a ordem: "... É preciso que você profetize de novo acerca de muitos
povos, nações, línguas e reis" (Ap 10:11). Testemunhar não é escolha, nem
tarefa especial designada a quem fala bem ou é arrogante e insensível. O
Espírito usa a mesma palavra que havia usado com Jeremias para enviar João
em sua missão (Jr 1:10), mas faz um pequeno acréscimo: "de novo" (palin),
alteração criativa na citação — mudança deliberada do original para assegurar
o interesse. É fácil imaginar João aplaudindo o que havia visto até esse ponto
com relação ao testemunho e dizendo: "Sim, Senhor, vou transmitir tudo isso
aos membros de minhas igrejas. Sei, por experiência própria, que tudo que o
Senhor está dizendo é verdade. Vou dizer aos cristãos que o Senhor me
mostrou tudo com muita clareza." Então, o Espírito repete a mensagem e diz:
"É preciso que você profetize de novo"; ao que o apóstolo dá a resposta
inevitável: "Mas, Senhor, dediquei meu tempo, cumpri minhas obrigações, já
passei muitas vezes por essa amargura. Eu gostaria de passar os poucos anos
que me restam de vida como consultor honorário do ministério de testemunho
da igreja." Mas o Espírito é inflexível: "Ouça com atenção o que eu disse, João:
'profetize de novo'. Não pense que minha memória falhou ou que errei a citação
de Jeremias 1:10 por falta de atenção. Não errei. Eu sabia o que estava
fazendo quando acrescentei de novo. Não há aposentadoria no serviço do
testemunho."
É característica do Espírito, na preparação do crente para o longo esforço
de perseverança, interromper a ação com interlúdios de afirmação. Não se
pode pensar na fé cristã como provação inclemente. Na verdade, a maior parte
dela se dá na participação na vida de graça, um "descanso sabático". Ainda
assim, o crente enfrenta batalhas, e seria um erro fatal ignorar os perigos que
residem na tribulação e na tentação. Apocalipse, em grande parte, prepara a
imaginação para levar a sério esses perigos e ao mesmo tempo entender a
maravilhosa segurança e, assim, permanecer firme no meio do mal e saber
resistir a ele. Desenvolvem-se disciplinas que reavivam o brilho do primeiro
amor (Éfeso) e renovam o ardor do serviço exultante (Laodicéia) em um mundo
onde a descrença impede a percepção do sagrado. Assim, exatamente como a
abertura do sexto selo levou à visão confortadora dos cristãos selados e em
segurança, também aqui, em meio ao desenrolar da obra árdua do
testemunho, há um breve descanso sob a metáfora da medição do templo.
O lugar medido e, digamos assim, cercado, representa visualmente a
comunidade cristã em culto, ouvindo a pregação da palavra de Deus ("... vão e
façam discípulos de todas as nações...") e oferecendo suas orações ("... livra-
nos do mal..."). A ordem moral e espiritual está encravada no caos da
tribulação. As linhas são claras; as dimensões, específicas — o lugar foi
medido. Os cristãos em culto encontram seu lugar no cosmo da redenção.
Foram estabelecidos limites para a anarquia diabólica. Templo, altar e
adoradores medidos com precisão tornam-se como, na poesia de Wallace
Stevens, um "jarro no Tennessee", que dominava todo o "deserto esquecido"
pelo simples fato de ter sido colocado sobre uma colina. Embora totalmente
desprovido de ostentação ("o jarro era cinza e sem enfeites"), ele nos força a
ver a extensão do Estado do Tennessee em relação à forma do jarro, e não
este em relação àquele.89 A ordem, mesmo que seja apenas um jarro, ou uma
liturgia, submete a desordem sem chamar atenção para si. A imagem é pouco
mais do que uma vinheta: é um lembrete de que o lugar de culto encontra-se
estabelecido, é inviolável, de forma que conseguimos reunir energia para a vida
árdua de testemunho que recebemos como missão.
O lugar de culto está protegido, mas o de testemunho, não. O pátio dos
gentios, onde ele acontece, não foi medido. Lá, as coisas sagradas e aqueles
que falam sobre elas são tratados com desprezo. O testemunho acontece
diante de hostilidade. Não há um coral para apoiar os que testemunham.
Ninguém apresenta uma lista impressionante de credenciais para conquistar o
respeito do público. Não há nada disso no testemunho. Para os cristãos, os
que se lançam a essa tarefa podem ser heróis, mas no mundo eles encontram
solidão, suspeita, alheamento e, de vez em quando, abuso.
Apocalipse não contribui com o testemunho apresentando instruções ou
ensinando a fazer uma apologia coerente da fé. Contribui com imaginação,
fortalecendo o espírito com imagens que nos mantêm como foi recomendado:
"... mantenham-se firmes, e que nada os abale. Sejam sempre dedicados à
obra do Senhor..." (1 Co 15:58). No testemunho, a instrução é importante, mas
a coragem, essencial, pois ele envolve batalha intensa. Nessa obra, em que "a
nossa luta não é contra seres humanos, mas contra os poderes e autoridades"
(Ef 6:12), somos "rodeados por tão grande nuvem de testemunhas" (Hb 12:1).
Fazemos parte de uma companhia de eleitos, que conta com muitos heróis.
Contudo, não os vemos. O apóstolo João tem a tarefa de torná-los visíveis.
Ele usa como base a transfiguração de Jesus. A comunidade cristã conhece
bem a história, pois Mateus, Marcos e Lucas a contaram. O fato ocorreu em um
momento crítico durante o ministério de Jesus, quando Ele transferia a

89 Wallace Stevens, "Anecdote of the Jar", The Oxford Rook of American Verse (Nova York: Oxford
University Press, 1950), p. 630.
autoridade aos discípulos. Pedro havia acabado de reconhecer quem Jesus era
e confessara seu senhorio. Cristo começara a preparar seus seguidores para
as dificuldades que os aguardavam. Havia iniciado a jornada que os levaria,
poucos dias depois, para Jerusalém, onde Ele passaria por rejeição, sofrimento
e morte por causa de seu testemunho. Como parte do treinamento, chamou
três discípulos e foi com eles a uma montanha para orar. Lá, eles o viram
transfigurado. Enquanto a glória do céu brilhava através do corpo de Jesus,
duas testemunhas (Moisés e Elias) conversavam com Ele, atestando
(testemunhando) que Ele era o Messias. Foram envoltos por uma nuvem. Uma
voz vinda do céu confirmou o testemunho: "Este é o meu Filho amado em
quem me agrado. Ouçam-no!" As nuvens se dispersam, e as duas
testemunhas desaparecem. Agora, eles, Pedro, Tiago e João, são as
testemunhas.
A visão de Apocalipse lança mão dessa história para mostrar a importância,
o perigo e, por fim, a inviolabilidade do testemunho cristão. A presença das
mesmas duas testemunhas da transfiguração enfatiza a importância de cada
ato de testemunho ao qual nos lançamos. As figuras anônimas de Apocalipse
11 são as mesmas do monte da transfiguração, Moisés e Elias. Os dois
homens, grandes em seu próprio valor, acumularam grandeza simbólica com o
passar dos séculos: Moisés, o transmissor da lei, e Elias, exemplo de profeta.
Os dois, juntos, dirigem a atenção de toda a humanidade a Cristo como Senhor
e Salvador — Deus, em nossa história, para nossa salvação. Lei e profecia são
o conteúdo de todo testemunho.
A lei (Moisés) é a revelação da verdade de Deus. Ele deseja que saibamos
o que é real. Há inteligibilidade na criação, e Deus a mostra para nós: nas
rochas e no clima, na imoralidade e no pensamento, na oração e no culto.
Nada é arbitrário nem acidental. Não elaboramos explicações da realidade
enquanto prosseguimos pela vida; Deus a apresenta para nós. Nisso reside a
importância da lei mosaica: Deus fala conosco de uma forma que
compreendemos a disposição inteligível da realidade. O universo não surgiu
por acaso, e os fatos não ocorrem por sorte. Existe razão, ordem, sentido.
Claro que nossa mente não consegue captar tudo, mas qualquer parte que
consigamos entender faz sentido. Quem nega que haja sentido na vida procura
escrever sua negação com uma lógica gramatical que lhe assegure que será
entendido pelos que o lerem. Não conseguimos escapar ao vasto sentido de
determinação em que tudo se encaixa. O testemunho atesta isso. Quando
testemunhamos, não abrimos aos outros o conteúdo de nossa bagagem
emocional para deleite dos voyeurs; nós mostramos o que Deus revelou.
A profecia (Elias) é a aplicação imediata da verdade divina na história
corrente e pessoal. A verdade, mais do que uma realidade objetiva exterior, nos
envolve em um ato de participação interior. A profecia é um chamado para viver
a verdade revelada, não apenas reconhecê-la, e descobrir novos caminhos
para vivê-la em todos os aspectos da vida — enquanto escovo os dentes, falo
ao telefone, coloco meu voto na urna, preencho um cheque. Proclama a
verdade de Deus, evidente nas "coisas criadas" (Rm 1:20); tem que ser
adotada como a verdade dos detalhes de minha vida, não apenas da vida em
geral.
A profecia mostra conexões entre os assuntos cotidianos e a eternidade de
Deus e nos chama a vivenciá-las. Não há como evitar essas escolhas.
Ninguém consegue ser humano sem responder de forma apropriada. A profecia
é a parte do testemunho que afirma isso. Não somos animais que vivem por
instinto, nem anjos que se conduzem por inteligência. Somos seres humanos,
que avaliam, refletem e decidem. A profecia se dirige à vontade, com um
convite para participarmos da vontade de Deus. O testemunho não envolve
recrutamento nem propaganda. Ele se propõe a esclarecer o terreno onde as
decisões serão tomadas, tenta lançar luz sobre a interseção entre tempo e
eternidade e convida a entrar na claridade onde o "caminho estreito" começa.
A lei mostra como Deus se envolve em nossa vida. A profecia diz como nos
envolvemos na dele. As duas são a sístole e a diástole do testemunho, que não
pode existir sem nenhuma delas. As duas testemunhas apontam para Cristo,
que revela tudo de Deus a nós, e também é nossa total resposta a Ele.
Essas duas testemunhas estão trabalhando no mundo desde o início (os
1.260 dias de Apocalipse 11:3). O trabalho delas é marcado por um poder
notável. O fogo que brota de sua boca destrói os inimigos, e a chave que
tranca os céus para que não chova mostra que elas são mais do que vozes
intrometidas e secundárias que transmitem conselhos morais. Essas vozes
articulam as maiores profundezas da realidade. A obra do testemunho recebe
endosso de céu e terra: "Desde o céu lutaram as estrelas, desde as suas
órbitas lutaram contra Sísera. O rio Quisom os levou, o antigo rio, o rio Quisom.
Avante, minh'alma! Seja forte!" (Jz 5:20-21). Os que se opõem à palavra do
testemunho colocam-se contra a própria realidade, externa e interna.
Mas as duas testemunhas também sofrem uma enorme humilhação. São
mortas. E os cadáveres ficam expostos à zombaria nas ruas da cidade. Não se
pode dizer que isso seja surpresa, pois a humanidade rebelde tem uma longa
história de rejeição da palavra de Deus revelada e aplicada, desejando
desesperadamente ser dona do próprio nariz, querendo ser "como deuses".
Quando parece que vai dar certo (como acontece esporadicamente, por
intervalos curtos, na história), há uma celebração festiva: "Moisés morreu —
não temos mais que nos lembrar do objetivo da criação. Elias morreu — não
precisamos mais pensar no destino que nos espera! Estamos livres para
explorar a terra, oprimir os inimigos, manipular os amigos, desfrutar de nossas
emoções e mimar nossos corpos. 'Vamos construir uma cidade [...]. Assim
nosso nome será famoso.'" Contudo, a festa sempre é interrompida antes de
atingir o ponto máximo. "Depois de três dias e meio", as duas testemunhas se
colocam em pé novamente. O trabalho não pode parar. A vida delas se
reproduz em cada ato de testemunho.
Como Moisés e Elias na transfiguração, as duas testemunhas desaparecem
na nuvem com Deus, e ouve-se o toque da sétima trombeta. O ciclo se
completa. As trombetas começaram anunciando as pragas do Egito,
preparando o caminho para a redenção. As pragas acabam com a dureza do
coração do mundo. As trombetas de Deus, tocadas pela oração, realizam
aquilo que guerra santa, indignação justa, reforma moral e liberação política
jamais conseguiram realizar.
O testemunho acontece na pausa entre o toque da sexta e da sétima
trombetas, enquanto os sete trovões ressoam. O céu apresenta uma antífona
de sons tremendos. A Bíblia conta que quando Moisés estava no monte Sinai
"houve trovões e raios, uma densa nuvem cobriu o monte, e uma trombeta
ressoou fortemente" (Êx 19:16). Depois das pragas do Egito, veio a revelação
no Sinai. Na montanha, "o som da trombeta era cada vez mais forte. Então
Moisés falou, e a voz de Deus lhe respondeu" (Êx 19:19). Houve um grande
diálogo entre trombetas e trovões. Nossas palavras de testemunho se colocam
nesse contexto. Falamos acompanhados pelas proclamações das trombetas de
Deus. Vozes do céu respondem para validar o testemunho do cântico dos
anciãos (Ap 11:15-19). A experiência presente é "assim na terra como no céu".
Tudo que ouvimos e vimos sobre Deus encontra seu caminho, de uma
forma ou de outra, nas palavras de testemunho. Toda a Bíblia acha um meio de
chegar à fala comum do cristão. Gabriel, descrito por Daniel, segura o livro em
forma de rolo de Ezequiel e manda que João pregue a revelação de Moisés e
contemple o fogo de Elias que desce do céu. As Escrituras, meditadas e
assimiladas no testemunho, são reexpressadas de formas novas e
surpreendentes, e resultam, cumulativamente, em "fortes vozes nos céus" (Ap
11:15).
9.
A ÚLTIMA PALAVRA SOBRE POLÍTICA
APOCALIPSE 12-14
Alguns confiam em carros e outros em cavalos,
mas nós confiamos no nome do SENHOR, o nosso Deus.
Eles vacilam e caem, mas nós nos erguemos e estamos firmes.
SALMO 20:7-8
Aqui está a perseverança dos santos que obedecem aos mandamentos de Deus e
permanecem fiéis a Jesus.
APOCALIPSE 14:12
A política sempre compete com a religião (unindo-se a ela, tolerando-a quando necessário e
absorvendo-a quando possível) para prometer, se não uma vida após a morte, pelo menos um
novo acordo nesta terra e um Líder sorrindo, carismático, em um outdoor.
ERIK ERIKSON90
Aqueles que aprenderam a orar "Venha o teu Reino, assim na terra como no
céu" agora ouvem: "O reino do mundo se tornou de nosso Senhor e do seu
Cristo, e ele reinará para todo o sempre" (Ap 11:15). A obra de oração dos
crentes se confirma, no clímax do contexto das sete trombetas. Mas, quando
saírem de casa na manhã seguinte para trabalhar, eles enfrentarão o reino de
Roma e verão que nada mudou, a não ser, talvez, para pior. Será que o
apóstolo João tem alguma coisa a dizer sobre isso?
O evangelho de Jesus Cristo é mais político do que todos imaginam, de
uma forma que ninguém adivinha. O "Reino de Deus", metáfora totalmente
política, faz parte do vocabulário básico para se entender o evangelho. 91 Ao
mesmo tempo, a expressão responde por muitos enganos. "Reino" insiste em
um evangelho que inclui tudo e todos sob o governo de Deus, que é mais do
que um brilho religioso que aquece uma noite escura. Cristo não é uma
verdade esotérica destinada a formar uma elite gnóstica. A fé cristã é uma
totalidade aberta, ativa, controladora e vitoriosa. Nada, nem ninguém, escapa à
soberania de Deus.
A metáfora política do reino leva a erros porque a política que conhecemos
requer uso do poder, por meio da manipulação da força (militarismo) ou das
palavras (propaganda) e, em geral, de ambas. Deduzimos, com muita
naturalidade, que, se existe um Reino de Deus, ele vai nos coagir, e não
hesitamos em adotar a mesma postura, verbal ou física, em nome dele.
Jesus anunciou a presença do Reino de Deus. A expressão estava sempre
nos lábios dele que, no final, aceitou o título de Rei. Vemos claramente que Ele
pretendia que todos soubessem que o governo de Deus era abrangente,
estabelecido sobre corpo e alma, sociedade e indivíduo, comportamento
exterior e inclinação interior, cidades e nações, lares e igrejas. Jesus rejeitou
com a mesma clareza os meios usados para exercer o governo: recusou a
oferta do diabo de uma posição no governo, censurou os irmãos Boanerges
[filhos do trovão] por desejarem que viesse fogo do céu para consumir os
inimigos, mandou que Pedro largasse a espada, assegurou a Pilatos que o
emprego do governador não estava em perigo e, por fim, para ter certeza de
que todos entenderiam, preparou tudo para que sua coroação ocorresse em
uma cruz.

90 Erik Erikson, Toys and Reasons (Nova York: W. W. Norton, 1977), p. 91.
91 A melhor abordagem desse assunto encontra-se em John Bright, The Kingdom of God (Nashville, TN:
Abingdon Press, 1953).
Mesmo assim, as pessoas, inclusive os cristãos, continuam sem entender.
O problema não foi a política de Jesus ser menos visível do que a de Roma,
pois os livros de história lhe dão cobertura adequada. O fato é que era muito
menos pretensiosa e fazia muito menos promessas de recompensas imediatas,
de modo que era difícil perseverar na prática, em especial sem usar os meios
da política comum, quando o modo de agir de Jesus não parecia estar
funcionando e o de Roma estava dando muito certo.
A política envolve dois elementos: o exercício do poder e o meio pelo qual
isso acontece. Todos gostam de ouvir que Deus é poderoso e governa, mas
não ficam tão entusiasmados ao descobrir a maneira como Ele age. Assim,
selecionam as fontes antes de usá-las: lêem a profecia de Isaías para inspirar
confiança no controle poderoso de Deus sobre o universo; O Príncipe, de
Maquiavel, para descobrir como governar este mundo com eficiência. As duas
fontes passam por edição e são combinadas para criar manuais que manterão
as igrejas religiosas (Isaías) e relevantes (Maquiavel).
Duas tentações exercem grande influência sobre a comunidade cristã. Uma
é reter a dimensão política do evangelho e adotar o meio de ação mais comum
na política, ou seja, a força. Em vez de montar em um simples jumentinho,
Jesus deveria ter arremetido contra Jerusalém cavalgando um puro-sangue e
feito rolar algumas cabeças. A outra é deixar a política de lado e desfrutar de
uma comunidade agradável — cultivar uma fé que, digamos assim, abandona o
mundo de governo, economia, cultura e sociedade e se dedica a salvar
algumas poucas almas.
Essas tentações ficam mais exacerbadas quando os que praticam a política
de Jesus passam um período considerável sob perseguição dos políticos de
Roma. João discerne as linhas da tentação e trata delas no centro de
Apocalipse, construindo uma defesa formidável com imagens, capacitando
assim a comunidade cristã a manter as dimensões políticas do Reino de Deus
enquanto resiste aos demônios políticos.
Ele começa com uma nova narrativa do nascimento de Jesus, que seria,
aparentemente, a menos política de todas as histórias dos evangelhos. O toque
ensurdecedor da sétima trombeta já havia despertado o mundo adormecido
(Ap 11:15). Todos ouvem o hino vitorioso dos 24 anciãos e vêem, através de
uma abertura no céu, o templo de Deus com as portas abertas, de forma que a
arca, evidência material de que o governo de Deus está ligado à nossa
salvação, fica claramente visível (11:15-19). Relâmpagos, trovões, terremoto e
granizo marcam a mudança de cena (não saia do lugar!), e uma mulher
aparece no teatro do céu. Veste uma roupa diáfana, tecida com os raios
solares, cada fio um brilho fugaz. Doze estrelas, pulsando em branco e
vermelho, formam uma coroa sobre sua cabeça. Ela está em pé sobre a Lua. E
está grávida.
Essa beleza majestosa chama nossa atenção e depois sucumbe com as
dores do parto. Os gritos dela abafam o hino vigoroso cantado pelo coral
masculino formado pelos 24 anciãos, embora as harmonias ainda ecoem na
noite. Subitamente, surge um dragão asqueroso em sua aparência, totalmente
contrastante com a beleza da mulher. Um réptil carmim como sangue viola o
céu. Suas sete cabeças se aprontam para devorar o bebê que sai do útero
materno. A mulher que dá à luz e o dragão que traz a morte distam anos-luz um
do outro, são os limites do melhor e do pior que podemos imaginar. No
momento em que a criança aparece, o dragão dá o bote. Fechamos os olhos,
aterrorizados demais para presenciar tal ultraje. Então, no último instante,
acontece o resgate. O bebê é tomado e levado para o trono de Deus. A mãe
escapa para um lugar seguro, e alguém toma conta dela.
Na fração de segundo que separa nascimento e resgate, quando o dragão
perde sua presa, reconhecemos a criança pela descrição de João: aquele "que
governará todas as nações com cetro de ferro". Ele governará o mundo como
nunca ninguém o fez, estabelecendo uma política que acabará com todas as
outras. É o Messias profetizado com tanto ardor no salmo 2. Mateus, usando
Isaías 7:14, chama atenção para a peculiaridade do nascimento de Jesus.
João, usando salmo 2:9, nos envolve em Sua política.
A consequência imediata do nascimento não são cânticos de Natal. Um
grande combate grassa nos céus. O maravilhoso Miguel, capitão dos anjos,
entra na batalha contra o dragão e a multidão de demônios. A contenda vai de
uma extremidade a outra do céu e depois, tão subitamente quanto começou,
acaba. O dragão e seus asseclas, incapazes de fazer frente a Miguel e seus
anjos, desabam do céu. "Expulsos" descreve melhor o que acontece (eblēthe)
— mandados para fora sem qualquer cerimônia. Os nomes aterrorizantes —
Grande Dragão, Antiga Serpente, Diabo, Satanás, Que Engana o Mundo Todo
— não passam de um monturo sobre o chão.
Agora veio a salvação, o poder
e o Reino do nosso Deus,
e a autoridade do seu Cristo,
Pois foi lançado fora
o acusador dos nossos irmãos,
que os acusa diante do nosso Deus, dia e noite.
Eles o venceram
pelo sangue do Cordeiro
e pela palavra do testemunho que deram;
diante da morte, não amaram a própria vida.
Portanto, celebrem-no, ó céus,
e os que neles habitam!
Mas, ai da terra e do mar,
pois o Diabo desceu até vocês!
Ele está cheio de fúria,
pois sabe que lhe resta pouco tempo. (Ap 12:10-12)
A visão de Isaías se confirma: "Como você caiu dos céus, ó estrela da
manhã, filho da alvorada! Como foi atirado à terra, você, que derrubava as
nações!" (Is 14:12). A percepção de Jesus é mais elaborada: "... Eu vi Satanás
caindo do céu como relâmpago" (Lc 10:18).
Embora não seja o que estamos acostumados a ouvir, é a história do Natal.
O nascimento de Jesus suscita mais do que admiração; provoca o mal:
Herodes, Judas, Pilatos. A vida dele incitou a perversidade feroz a se
transformar em violência. Conseguirá um bebê envolto em panos resistir às
engrenagens do terror? Poderá a promessa sobreviver ao horror? Queremos
que Ele viva, ansiamos por seu governo, mas será isso possível neste mundo?
Parece que faltam os meios para Ele governar. Nós superestimamos a política
de Roma e subestimamos a da graça. A imaginação de João infunde
adrenalina em nós, que temos pouca fé, e voltamos a nos encher de coragem,
sem nos impressionar com a bazófia do dragão, certos de que Deus há de nos
preservar. A criança sobrevive, a salvação é certa. O governo de Deus está
intacto.
O apóstolo João tem a tarefa de completar a obra de Mateus e Lucas, para
que a Natividade não seja sentimentalizada, considerada apenas bonita,
domesticada, tomada como insípida, nem comercializada para atender a outros
interesses. Ele torna explícito o que se encontra implícito nos evangelhos. O
nascimento messiânico ocorre a partir do ventre do povo de Deus, em um
cosmo resplandecente de maravilha. Toda a criação veste esse povo que é,
Eva e Maria, mãe do Messias. O visível da criação e o invisível da salvação se
unem para agir. O esplendor da criação e a agonia da redenção se combinam
nesse evento, esse centro onde Deus, em Cristo, invade a existência com uma
vida redentora e inflige ao mal derrota decisiva. O talento de João pega Jesus
na manjedoura, vigiado por pastores e magos, e o coloca no cosmo, atacado
por um dragão. A consequência é que nossa fé se fortalece contra a
intimidação. Nossa reação diante da Natividade não pode se reduzir a fechar a
porta ao mundo exterior, comer panetone e cantar hinos natalinos. Antes,
estamos prontos a caminhar porta afora, segundo a colocação de um salmista,
com altos louvores a Deus em nossos lábios e uma espada de dois gumes nas
mãos (Sl 149:6).
Derrubado, o dragão tenta de novo. Dessa vez, ataca a mãe. Vomita uma
torrente de água para afogá-la. Contudo, a terra não colabora com os desígnios
dele, assim como os céus não haviam ajudado: o solo se abre e engole o rio
que iria levar a mulher. Pela segunda vez, ele fica sem vítima. Haverá mais
alguém a atacar? Na verdade, há — nós, os cristãos, aqueles que "obedecem
aos mandamentos de Deus e se mantêm fiéis ao testemunho de Jesus" (Ap
12:17). Dificilmente haveria motivo para supor que ele alcançará mais sucesso
dessa vez do que com nosso Senhor e sua mãe. A essa altura, o dragão
parece estar meio sujo. João parece estar zombando um pouco dele.
O réptil fracassado se coloca à beira do mar e contempla seus insucessos.
Obviamente, precisa de ajuda. Se quer guerrear contra os "que obedecem aos
mandamentos de Deus e se mantêm fiéis ao testemunho de Jesus", ele precisa
de um meio para vencer ou subverter a fé deles. Tentará os dois caminhos. A
disputa do dragão não se dá contra toda a raça de Adão, mas apenas contra as
pessoas de fé cuja vida é marcada por atos de obediência a Deus e
testemunho das palavras de Jesus. Como não irá atacar todas as criaturas,
mas somente as que são de Cristo, ele precisa de um estratagema que as faça
desviar da obediência e atrapalhe seu testemunho. Assim, as amedrontará
para que desobedeçam, as enganará e as levará à ilusão.92
Ele recruta ajudantes das profundezas, duas bestas — uma vinda do mar,
outra da terra — para executar seus desígnios malignos dentro da comunidade
de fé, as pessoas que Deus dirige e salva. As congregações de João,
acostumadas à leitura da Bíblia, não têm dificuldade em reconhecer os
animais. As bestas são Leviatã e Beemote, apresentados por Deus a Jó como
o exemplo máximo de ferocidade (Jó 40-41), mas que foram destruídos e
descartadas e não representam mais qualquer ameaça ao governo de Deus. 93
Leviatã e Beemote eram terríveis, mas há um toque indiscutível de humor
na descrição de João. A besta do mar parece uma colcha de retalhos,
construída a partir de sobras de leopardo, urso e leão. A terrestre é um cordeiro
falso, imitação esquisita do magnífico Cordeiro de verdade (Ap 5:6, 7:17). O
apóstolo admite que elas têm capacidade para espalhar terror, mas também

92 "Como o anticristo conduz sua campanha contra os assuntos e o povo de Deus? Ele luta com duas
armas, que são poder e mentiras [...] grande poder e muita astúcia se combinam em Apocalipse 13 e
seguintes: o anticristo é o poder escatológico do mundo que toma o espírito mentiroso como seu espírito!"
Ethelbert Stauffer, New Testament Theology (Londres: SCM, 1963), p. 213.
93 Salmo 74:1; Isaías 27:1.
mostra que estão bastante desgastadas. As bestas estão por aí há muito tempo
e já começando a desbotar.
A política alcança as dimensões de comportamento e fé. A autoridade do
governo se dedica a manter a ordem definida na lei civil e penal (se não fosse
assim, haveria o caos). A maioria dos sistemas políticos alcança da família ao
império, e combina elementos de governo e religião, como acontecia no
império romano. A democracia separa os dois. Mas, juntos ou separados, os
dois elementos continuam presentes, paralelos em sua importância política. 94 A
análise visionária de João quanto ao que o cristão enfrenta quando confrontado
com o exercício das forças coercitivas da polícia e da propaganda parece a
mim igualmente válida para a sociedade atual como para Roma, e também
para famílias e congregações.
Em uma sociedade, os dissidentes ameaçam o sistema político tanto
quanto os criminosos. Isso é óbvio no totalitarismo e sutil na democracia.
Nossos comportamentos manifestos na sociedade e crenças expressas na
religião são igualmente políticos. Para separar nosso comportamento e nossa
fé do governo de Deus, a política será o campo onde o diabo organizará sua
tropa para o ataque. Com as imagens das bestas do mar e da terra, João
revela a vontade satânica em ação dissimulada nas áreas do governo e da
religião. Com a besta do mar, o dragão nos amedrontará para nos levar a
desobedecer ("guerrear contra os santos e vencê-los" (Ap 13:7). Com a besta
da terra, nos enganará e nos levará à ilusão ("enganou os habitantes da terra"
(Ap 13:14]). As palavras de admoestação que o apóstolo dirige a seus
paroquianos enfrentam os poderes das bestas — intimidar e enganar. Cada
visão delas encerra com um conselho pastoral sucinto que conduz o progresso
cristão através das dimensões políticas da vida, que as visões mostraram estar
sob ameaça.
Depois de apresentar a violência da besta do mar, João aconselha: "... Isso
exige que o povo de Deus aguente o sofrimento com paciência e seja fiel"
(13:10, NTLH). Não há dúvida de que podemos morrer por causa da violência.
Contudo, morte não é sinônimo de derrota. Não é o pior que pode acontecer. É
difícil seguir esse conselho. Sabendo disso, e consciente de que muitas vezes
nossos ouvidos simplesmente não ouvem o que é difícil, João toma um cuidado
especial para assegurar-se de que será ouvido. Introduz seu conselho com a
repetição da fórmula que Jesus usava para chamar atenção: "Aquele que tem
ouvidos ouça!" A isso, acrescenta uma alteração na citação para prender a
atenção. Em um tempo tão difícil quanto aquele em que João vivia, Jeremias
havia escrito:
Os destinados à morte, para a morte;
os destinados à espada, para a espada;
os destinados à fome, para a fome;
os destinados ao cativeiro, para o cativeiro. (Jr 15:2)
O contexto do profeta, no sétimo século a.C., era diferente, mas as palavras
se aplicam exatamente ao propósito de João, de modo que ele toma a última
linha dessa série e escreve: "Se alguém há de ir para o cativeiro, para o
cativeiro irá" — não é uma citação exata, mas quase. Depois, segue: "Se
alguém há de ser morto à espada, morto à espada há de ser." Mas não foi isso,
de forma alguma, que Jeremias escreveu.
Na sentença do profeta, "espada" ("os destinados à espada, para a
94 Há uma exposição ampla do assunto em John Richard Neuhaus, The Naked Public Square (Grand
Rapids, Ml: Eerdmans, 1986).
espada") faz paralelo exato com "exílio". Por que João não faz o que é óbvio e
segue a primeira linha citada de Jeremias com uma segunda para fins de
ênfase, trazendo a citação para mais perto? Por que, no meio da série de
admoestações, muda a retórica? Sabemos o que ele tem de fazer: fortalecer o
povo para que consiga enfrentar a luta terrível. No mundo político tomado pela
violência da besta do mar, ele precisa deixar claro o que pode estar esperando
qualquer um deles: exílio, morte, perseguição e tortura. Ele sabe que quando o
medo recebe nome perde grande parte de sua força. Por isso, irá se assegurar
de que sua congregação ouvirá falar de todo desastre infligido pelo poder
maligno. Sabendo o que esperar, eles, pelo menos, não serão surpreendidos e
levados à covardia.
Mas há uma dificuldade paralela. Quando vivemos muito tempo cercados
pela violência, acabamos contaminados por ela, em especial se sabemos que
nossa causa é justa e que a oposição vem do mal. A fé religiosa, em particular
a cheia de zelo, às vezes usa a força. Assim, João, tendo apresentado seu
conselho para perseverança, coloca ao lado dele um aviso para não se recorrer
à violência. Isso seria tão grave quanto se entregar à complacência covarde.
Afinal, em uma cena tão violenta quanto qualquer outra que conhecemos,
Jesus disse: "... Guarde a espada! Pois todos os que empunham a espada,
pela espada morrerão" (Mt 26:52). Matar os oponentes é a estratégia da besta
do mar. Não é a nossa. A nossa é persistência e fé.
Essa combinação de persistência e fé difere de passividade entorpecida.
Também não é como o conselho tímido que Josefo havia dado aos judeus da
Palestina alguns anos antes: abster-se de lutar porque certamente iriam perder.
Não é um conselho prudente para evitar perdas, nem cautela covarde que não
se arrisca diante da agressividade. Os exilados e mártires de João eram
tremendamente ativos em seu sofrimento. Os seguidores de Cristo haviam
aprendido algo profundo sobre o sacrifício e a morte: persistência e fé são
forças agressivas na batalha feroz entre Deus e o diabo. É necessário muita
energia para fazer frente à espada, com disposição para sofrer, aceitando o
sacrifício.
A seguir, vem a besta da terra, caracterizada pela capacidade de enganar.
Após descrever o animal, João aconselha: "Aqui há sabedoria. Aquele que tem
entendimento calcule o número da besta, pois é número de homem. Seu
número é seiscentos e sessenta e seis" (Ap 13:18). O apóstolo espera que a
mente cristã penetre no engano da besta: pensamento sério e crítico. A besta
da terra é, antes de tudo, religiosa. Tem uma qualidade semelhante a Cristo; é
"como cordeiro" (Ap 13:11), mas é paródia, não derivado, de Jesus. Seu
principal objetivo é levar as pessoas a adorá-la. Para subverter a vida religiosa,
usa armadilhas milagrosas. Quando uma pessoa ou movimento se apresenta
como religioso, parece estar em bons termos com o sobrenatural e insiste para
participarmos de atos religiosos, baixarmos a guarda. Pelo menos na
superfície, parece haver incompatibilidade entre a mente cética e a fé religiosa.
Pessoas habituadas à fé, dispostas a aceitar questões sobre Deus e o
sobrenatural, são facilmente enganadas por líderes religiosos. Na verdade, a
área da vida em que o engano é mais presente é a religião (assim como a
violência é mais presente no Estado). O comportamento organizado tende à
violência; a fé organizada, ao engano.
Precisamos descobrir como nos proteger do engano institucionalizado. João
é claro: use a cabeça. Entenda o que está acontecendo. A maioria das
manifestações religiosas visíveis que entram em moda advém da besta da
terra. Exponha essas pretensões religiosas que nada têm a ver com Deus. Veja
o número: é humano. Não é um mistério divino, mas, sim, a confiança daqueles
que falam demais: religião que dá show, que se vangloria, que afasta os olhos
do Cristo pobre, sofredor e santo. Na linguagem dos números, 666 é um triplo
fracasso ao tentar ser 777, a perfeição repetida três vezes, número perfeito e
divino. A comercialização é característica recorrente dessa religião da besta da
terra, que requer quantias imensas para se manter, nos manipulando
economicamente, levando-nos a comprar e vender segundo suas ordens,
vendendo conselho, consolo, bênção, soluções, salvação e bons sentimentos.
Aqui, o diabo abandona a estratégia da missa negra e usa a da missa de
mercado.
O credo básico de Israel, ensinado por Moisés e transmitido aos cristãos,
era: "Ouça, ó Israel: O SENHOR, o nosso Deus, é o único SENHOR. Ame o
SENHOR, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas
as suas forças" (Dt 6:4-5). Essa era a estrutura da fé e do comportamento do
povo de Deus — a confissão de que só existia um Deus e a ordem para amá-
lo. Os judeus eram instruídos nessa crença e treinados nessa atitude. Uma
forma que usavam para se manter atentos a esse Shema ("ouça!") era pegar
pergaminhos com o texto escrito, enrolá-los, colocá-los em pequenas cápsulas
(filactérios) e prendê-los com tiras de couro na testa e nas costas das mãos (Dt
6:8). As palavras breves, simples e profundas colocavam ordem no interior da
mente e dirigiam a ação das mãos. Fé e comportamento coordenados pela
palavra de Deus: o Senhor é o único — ame o Senhor. Mas quando o resumo
do credo (marca) da besta substitui o shema na testa e nas mãos, a religião se
transforma em consumo — as pessoas se tornam imitações baratas do
evangelho, compram tudo que podem no intuito de mostrar que Deus as
abençoa e se curvam diante de todas as demonstrações de sucesso. Compra e
venda de religião é a marca da besta.
Com as bestas, João zomba da seriedade com que toda autoridade, no
governo ou na religião, olha para si mesma. No momento em que qualquer
uma começa a agir como se fosse Deus, passa a merecer nosso desprezo.
Quando o apóstolo acaba de tratar delas, as bestas já deixaram de ser
apavorantes e se tornaram ridículas. Não devemos levar a sério as pretensões
delas, nem considerá-las dignas de atenção. O salmo 2 apresenta um traço
pelo qual reconhecemos o bebê ameaçado pelo dragão como o Cristo que
vence o mundo (Ap 12:5). Além disso, o salmo estabelece o modo como
devemos lidar com qualquer autoridade, governamental ou religiosa, que
usurpa o controle de Cristo como rei e sacerdote: "Do seu trono nos céus o
SENHOR põe-se a rir e caçoa deles" (Sl 2:4).
Os cristãos não desprezam as autoridades por elas mesmas. A Igreja
primitiva conseguiu manter ao mesmo tempo respeito pelo governo ("honrem o
rei" [1 Pe 2:17]) e desprezo por qualquer elemento dentro dele que tentava
substituir Deus e seu Cristo ("boca para falar palavras arrogantes e blasfemas"
[Ap 13:5]). O cristão pode ser um bom cidadão sob um mau governo, pode
manter o testemunho santo em uma igreja corrupta. Mas orar pelo rei
(presidente, bispo, avivalista, pastor, papa) não impede que satirizemos o mal
que João nos ajuda a discernir.
O dragão, a besta do mar e a besta da terra integram uma trindade satânica
que se infiltra no mundo político para afastar nossa adoração de Deus, a quem
não vemos, dirigindo-a às autoridades que vemos, e nos engana para
comprarmos uma religião ou sistema de fé que possui resultados visíveis de
autogratificação. João revela que essa infiltração é temível, mas pode ser
derrotada. Miguel sobrepujou o dragão; nós podemos resistir à besta do mar e
entender a da terra.
Com isso, o mundo político, que nos parece maior do que a vida, se reduz a
termos controláveis. O cristão, com a ajuda de João, não se deixa esmagar
pelo governo, pela religião sensacionalista, por ameaças imensas, por
dificuldades colossais, nem por apelos insistentes. A tentação de usar os
métodos de Satanás para fazer frente à sua força enfraquece de forma
considerável. Por mais ardiloso que o inimigo seja, é possível desmascará-lo. A
vitória tríplice de Jesus em tentações semelhantes fornece material para uma
análise profunda.95
Apocalipse de João não subestima as forças satânicas — há grande poder
e engano se opondo a nós. Mesmo assim, grande parte não passa de blefe, e
as caricaturas nas visões reduzem a trindade falsa do que ela pretende ser ao
que realmente é. Não se trata de um poder sobrenatural diante do qual nada
podemos fazer; é mais como algo "paranatural", com o qual não estamos
acostumados. Contudo, ensinados pela imaginação pastoral de João,
acabamos equipados para permanecer firmes e ser capazes de discernir.
Três visões que mostram as forças da salvação agindo em nosso favor por
trás da cena se contrapõem à demonstração de força das três bestas da
condenação. As visões com as bestas mostraram o embuste do mal; as da
salvação revelam o sistema de apoio que sustenta a vida de perseverança e
discernimento. Deve-se dizer que não vivemos apenas em postura defensiva
contra os "principados e potestades". Há ações agressivas a nosso favor em
curso, mesmo quando não nos damos conta disso. As três visões da salvação
foram o Cordeiro liderando o culto no monte Sião (Ap 14:1-5), os três anjos
pregando em um púlpito no meio do céu (Ap 14:6-13) e o Filho do Homem
fazendo a colheita:"... a safra da terra está madura; chegou a hora de colhê-la"
(Ap 14:14-20). Isso nos mostra que, enquanto nos esforçamos ao máximo para
adorar a Deus e não os poderes do mundo, para entender nossa fé e não
sermos enganados pelos disparates religiosos do diabo, e para cultivar a
santidade em uma sociedade repleta de joio, estamos, o tempo todo,
recebendo ajuda.

ADORAÇÃO
Adoração é nossa resposta à ação do Cordeiro entre nós, a ação que nos
redime de nossa luta. Nossas vozes se elevam em coro quando nos unimos ao
louvor da criação ao Criador, a gratidão de Israel pela salvação. No ato de
culto, nossas palavras mal entendidas e mal pronunciadas são corrigidas e
arranjadas em expressão da verdade sobre nós mesmos e nosso Deus. É o ato
em que nossa vida fragmentada se corrige e se acerta em uma oferta perfeita e
completa a Ele — pela ação do Cordeiro, nos tornamos "sem mancha".
Mas nada parece acontecer na adoração. No mundo político, os agentes do
poder fazem suas manobras para exercer influência e controle, onde toda
palavra é um instrumento para conquistar um seguidor ou moldar uma reação.
Numa situação assim, fica difícil alguém que leva a vida a sério pensar em se
limitar a adorar, cantar hinos e dizer e ser quem é em Deus. Isso parece

95 Mateus 4:1-11; Lucas 4:1-13.


negligência com as obrigações morais, entrega do campo de batalha ao
inimigo. Tendemos a pensar assim — até descobrirmos que essa inatividade na
adoração é exatamente o que o Cordeiro requer. Ele está no centro da história,
instalando seu Reino em seu nascimento e consumando seu domínio na morte
e na ressurreição. Se a adoração não é perda de tempo para o Cordeiro,
também não pode ser para nós (Ap 14:1-5). "Excesso de atividade é
característica dos que não vivem pela graça." 96
PREGAÇÃO
Pregação é o ato de reverência e adoração que proclama a palavra de
Deus aos que prestam culto (primeiro anjo). Além disso, é a declaração que
anuncia a condenação da besta do mundo (segundo anjo). Também é o
discurso que apresenta a orientação para uma vida santa (terceiro anjo). A
palavra de Deus, de muitas dimensões, cria o mundo, molda a salvação, se
volta para a realidade, e está sempre ameaçada de ser silenciada ou
amenizada. Silenciada pelo fechamento do livro onde foi escrita, pelo som e a
fúria do trânsito que enfrentamos todos os dias, pelo zumbido constante da
ambição e da cobiça em nossa mente. A pregação devolve o som à palavra
silenciada, para que ela ressoe em nossos ouvidos para nos relacionarmos
com Deus não como uma recordação, mas como alguém que falou direta e
pessoalmente conosco.
A pregação, porém, não conta nada de novo. Tudo já foi repetido vezes sem
conta. E, afinal, está tudo escrito na Bíblia, onde podemos procurar na hora
que mais nos convier. No mundo político, acontecem muitos eventos ao mesmo
tempo — guerras, alianças, negociações, tragédias, novos líderes que
anunciam esperança, grupos de estudo que elaboram planos para acabar com
a fome e a guerra — e por certo temos urgência em acompanhar as notícias,
nos manter informados e agir com responsabilidade. E, com tantas notícias a
ouvir, ninguém tem tempo para a pregação, que não tem como se afastar ainda
mais das notícias. Tendemos a pensar assim — até que, no meio da batalha,
verificamos que a coragem diminuiu e o compromisso está vacilando. Então
entendemos que o mundo não é, basicamente, um lugar para armazenar
informações que serão recuperadas mais tarde. Ele é palco da disputa moral e
espiritual em que estamos envolvidos. Nessa hora, nos sentimos gratos pela
proclamação feita do púlpito no meio do céu contando mais uma vez o que
Deus diz sobre o que está acontecendo, transformando informação em
mandamento ou promessa, traduzindo lembranças morais em urgências
espirituais (Ap 14:6-13).

VIDA SANTA
Vida santa é a ação pela qual expressamos, no comportamento e nas
palavras, o amor e a presença de Cristo. Fundamenta-se na convicção de que
tudo que fazemos, o que quer que seja, por mais comum e discreto, se
relaciona com a ação de Deus e constitui semente que colheremos como
santidade ou ira.
Mas nada em nossas atitudes leva à percepção empírica dessas
consequências. E sofremos muita pressão para escolher atos e palavras de
acordo com a eficácia para completar tarefas imediatas. Alguns questionam a
necessidade de certo grau de moralidade, para que a anarquia não

96 Charles Brutsch, Clarté de l'Apocalypse (sem dados da editora, 1955), p. 145.


impossibilite a existência das relações comerciais. Contudo, acreditam que,
com base nesse mínimo, devemos calcular nossos passos tendo em vista o
que desejamos conquistar, sem levar em consideração quem somos nem a
vontade de Deus, fatores que não têm o menor peso no mercado. De toda
forma, tendemos a pensar assim também — até que conseguir o que
queremos perde a graça e vai se tornando tédio. Talvez atos e palavras
estejam fora de nosso alcance, tenham mais valor do que somos capazes de
avaliar. Talvez haja neles algum significado que amadurece, como uma
semente, e depois chega a um fruto que guarda tão pouca semelhança com
sua fonte quanto o pinhão com a araucária. "As verdadeiras vitórias acontecem
devagar e sem que percebamos, mas seus efeitos têm longo alcance.
Colocada em evidência, a fé em Deus como Senhor da história pode, às vezes,
parecer ridícula, mas algo na história a confirma." 97 Quem percebe isso, sente-
se grato por existir alguém para guiá-lo na vida santa, orientá-lo em palavras e
atos que se transformam em frutos que serão colhidos para algum grande
banquete de comunhão cristã, escapando à sua terrível alternativa (Ap 14:14-
20).
São estas as três atividades pelas quais sobrevivemos e florescemos na
política: praticar a adoração, ouvir a palavra proclamada e seguir a vida santa.
Encontramos força para elas no culto dirigido pelo Cordeiro, na pregação dos
anjos e na colheita das ações feita pelo Filho do Homem. Se essas armas
parecem fracas diante do poder e da propaganda do dragão e de suas bestas,
os livros de história apresentam evidências ao contrário: "Foi em grande parte
devido à propagação de ideias firmes, como as expostas em Apocalipse, que
os cristãos se mantiveram leais à fé e, sem derramar lágrimas nem empunhar
espadas, conseguiram, por fim, transformar a situação do mundo, insistindo
com o império para que atendesse às suas reivindicações." 98
Não há como evitar a política, que começa no momento em que duas vidas
se encontram. E nossa vida se choca com outras, queiramos ou não. Somos
centros de poder — capazes de amaldiçoar e abençoar — e temos a
responsabilidade de administrar e dirigir esse poder. O poder não desaparece
nem diminui quando nos lançamos à jornada de fé. Se formos ingênuos ou
desprezarmos o poder, por certo o usaremos errado, ou permitiremos que seja
usado por outros que não são inocentes nem escrupulosos.
Nenhuma ação ou crença é privativa. E, quanto mais valiosa, menos
privada será. As questões associadas a Cristo e ao anticristo são, portanto, as
menos individuais e as mais políticas de todas. Todos os pensamentos saem
de nosso cérebro, e todas as ações vão além de nossa pele e penetram em
uma rede de interações complexas. Nossos atos e opiniões se ligam aos dos
outros e acumulam força para justiça e paz, bondade e santidade, guerra e
opressão, blasfêmia e profanação — mistura confusa de meios e motivos.
A política do Cordeiro toma os elementos básicos e simples de nossa
obediência (expressar a adoração em culto, ouvir a proclamação da palavra,
praticar a vida santa) e os desenvolve até se tornarem perfeitos e eternos. A
política do Cordeiro, mostrando que os mínimos detalhes de nossa fé cotidiana
são fatores importantes em um drama cósmico, nos protege da arrogância e
nos guia à maturidade que espalha inteligência e energia no que se encontra
diante de nós, fazendo uma obra de arte santa a partir do comum.
97 Martin Buber, Israel and the World (Nova York: Schocken Books, 1973), p. 238-239.
98 James Moffatt, Expositor's Greek Testament (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publ. Co., 1970),
vol. 5, p. 313.
A política do dragão pega o superficial e o pretensioso e os infla até
convertê-los em promessas de domínio e fama, seduzindo o ego e
exacerbando o orgulho. A política do dragão, manipulando desejos e fantasias,
lida sempre com abstrações alheias às verdadeiras circunstâncias em que as
vidas se moldam para o bem ou o mal, e, com isso, afasta as pessoas da
realidade. As abstrações são um excelente lugar para cultivar o mal: uma
generalização magnífica esconde uma multidão de pecados.
Toda comunidade se situa no meio desse conflito político. As comunidades
cristãs de fé possuem a visão do apóstolo João para distinguir a política do
dragão da do Cordeiro. Estamos no meio do fogo cruzado entre o espalhafato
do dragão pretensioso e a mansidão do Cordeiro poderoso. Ambos se
preocupam com a operação e o uso do poder. A escolha é nossa: podemos
seguir o dragão e as bestas em seu desfile — chamativo com a adoração de
imagens esplêndidas, elaborado em símbolos misteriosos, repleto de
estatísticas — assumindo qualquer papel necessário para apresentar uma boa
imagem, receber o aplauso da multidão, conseguir acesso ao poder e ser
importante aos nossos próprios olhos. A alternativa é seguir o Cordeiro por uma
estrada rural, adorando o invisível, ouvindo as tolices pregadas, praticando
uma vida santa que envolve atos heróicos que ninguém jamais verá, para se
tornar, simplesmente, um ser eterno em uma cidade eterna. Essa é a diferença
política entre usar os que nos cercam para alcançar o poder (ou, se não formos
hábeis, sermos usados por eles) e estabelecer alianças para que o poder da
salvação se estenda a todas as partes de nossa vizinhança, sociedade e
mundo que Deus ama.
Uma congregação é um microcosmo desse conflito. Política envolve
manipulação de poder, seja em casamento, família, negócios, comércio,
congregação, comissões, legislatura, convenções, sala de aula ou conselhos
executivos. Queiramos ou não, havendo votos ou não, estamos no meio da
política. É essencial distinguir as linhas de influência enquanto avançamos por
esses vários fóruns. A visão do apóstolo fornece a sabedoria pastoral para esse
trabalho. Estaremos lidando com o poder da coerção ou da graça? Trataremos
da política da Abstração, que consiste de grandes imagens e programas sem
conexão com nossa natureza, que obriga os outros à conformidade em
anfiteatros imensos e estádios repletos de espectadores? Ou nos voltaremos
para a política da Encarnação, que consiste em adorar a Deus, ouvir sua
palavra e obedecer aos seus mandamentos no dia-a-dia denso e cheio de
detalhes em nossa esquecida e tão desprezada Galiléia? 99
Uma sentença (Ap 14:13) nessa série de seis visões liga a nossa política
diretamente à política de Jesus. Em seu julgamento diante dos governantes e
líderes da fé, o sumo sacerdote judeu e o governador romano, Jesus foi
condenado à morte pela acusação de blasfêmia. Nessa hora, ele disse:
Chegará o dia [ap'arti] em que vereis o Filho do homem
assentado à direita do Poderoso
e vindo sobre as nuvens do céu. (Mt 26:64)
Dos cristãos que o apóstolo João pastoreava, alguns seriam (e todos
corriam o risco) condenados por blasfêmias semelhantes. A bênção enfática
que Jesus manda transmitir (grapson, "escreva!") envolve todos eles em sua
postura política: "Felizes os mortos que morrem no Senhor de agora em diante
(ap'arti)."
99 Cynthia Ozick caracteriza a vida do peregrino da fé como "repleta do cotidiano de uma cultura
aprovada por Deus", Art and Ardor (Nova York: A. A. Knopf, 1983), p. 220.
A locução ap'arti, "de agora em diante", não é comum. 100 A repetição chama
atenção para si mesma e liga os mártires ao Mártir. No simples ato de praticar
os caminhos do Reino, o Rei se liga aos súditos que, por sua vez, também se
lançam às práticas do Reino. O Espírito confirma essa identificação:
Sim, eles descansarão das suas fadigas,
pois as suas obras os seguirão. (Ap 14:13)
A visão que se segue confere validação imaginativa ao mostrar que as
obras os seguem quando o ceifeiro, o Filho do Homem, vem das nuvens, como
prometeu (Mt 26:64) e colhe o grão dos campos das boas obras. Após isso, os
anjos colhem as uvas bravas, a vindima das vinhas da ira.
Sempre que morre algum cristão que pastoreio (até hoje, nunca devido à
violência), eu repito a bênção: "Felizes os mortos que morrem no Senhor de
agora em diante." O século 21 se liga diretamente ao primeiro século. O dragão
da política que atacou os cristãos de João ataca também os meus. A política do
Cordeiro, que nos comprometemos a praticar, requer muita resistência e
discernimento. Os detalhes que cercam nossa vida mudam, mas a gravidade
permanece a mesma: temos que perseverar em nossa submissão ao poder do
Reino e na prática dos seus caminhos.

100 Veja uma análise exegética e teológica minuciosa de ap'arti em Matthias Rissi, Time and Theology
(Richmond, VA: John Knox Press, 1966), p. 29-30.
10.
A ÚLTIMA PALAVRA SOBRE JULGAMENTO
APOCALIPSE 15-18
Não é do oriente nem do ocidente
nem do deserto que vem a exaltação.
É Deus quem julga:
Humilha a um, a outro exalta.
Na mão do SENHOR está um cálice
cheio de vinho espumante e misturado;
ele o derrama,
e todos os ímpios da terra
o bebem até a última gota.
SALMO 75:6-8
Todas as nações virão à tua presença e te adorarão, pois os teus atos de justiça se tornaram
manifestos.
APOCALIPSE 15:4
A Bíblia se baseia, de maneira majestosa, em três "nãos" divinos. O primeiro é a Queda do
Homem, feita sua queda pelo julgamento de Deus. O segundo é o Dilúvio, que julgou o Mundo
Tribal. E o terceiro é o Êxodo, o abandono dos templos e da fartura do Egito, e a condenação
de todos que se ligaram à feitiçaria naquela nação.
EUGEN ROSENSTOCK-HUESSY101
As imagens apresentadas por João nos atingem como o toque de um sino
enchendo uma igreja. As antigas igrejas inglesas cultivavam a arte do toque
dos sinos e a usavam para encher as congregações com sons magníficos de
glória a Deus quando os sineiros puxavam as cordas nas torres. Os que
levavam a sério seu ofício menosprezavam o toque simples — tinham paixão
por sons mais complexos, que exigiam mais habilidade: os ritmos afinados se
entrelaçavam. Primeiro um sino liderava; depois passava-se para outro, de
timbre e intensidade diferentes; daí, para outro, e assim por diante, seguindo
permutas e combinações matemáticas. Ouvidos modernos, desacostumados a
essas minúcias e ensurdecidos pelo ruído constante das máquinas,
consideram os sinos um incômodo e pedem às prefeituras que acabem com
eles. Sem conseguir distinguir a arte, só percebem o clangor. 102
A imaginação moderna, esvaziada pelo ataque constante de fatos e
informações, encontra dificuldade semelhante diante das imagens de João.
Não estamos acostumados a essas complexidades e não nos sentimos à
vontade com elas. Preferimos que as ideias, especialmente as religiosas,
sejam colocadas com clareza e em ordem — em melodias que possamos
entoar. Mas João introduz uma imagem após outra e as mantém "badalando"
ao mesmo tempo, contrapondo ritmos e inventando novas combinações. Ele
tem como propósito levar-nos às várias camadas de interseções em que a
101 Eugene Rosenstock-Huessy, Judaism Despite Christianity (University, AL: University of Alabama
Press, 1969), p. 181.
102 Dorothy L. Sayers me forneceu essa metáfora dos campanólogos em sua história de detetive, The
Nine Tailors (Nova York: Harcourt, Brace, and World, 1934). Ela vai além: a história confirma minha
convicção de que Apocalipse de João, por mais complexo que seja, destina-se aos leigos e seus
pastores, e não aos eruditos. Os praticantes da minuciosa arte popular do toque dos sinos eram,
tradicionalmente, os membros comuns das paróquias (exatamente como Sayer os apresenta na história
do assassinato misterioso). Em outras palavras, complexidade não implica erudição elitista; o camponês é
tão astuto quanto o erudito, e mais ainda quando o assunto se relaciona à vida comum. E Apocalipse trata
diretamente da "vida comum". Uma das infelicidades de nossa cultura é que, quando qualquer assunto
parece difícil, ele é enviado para as universidades a fim de ser explicado. A poesia teológica de João é
lida com mais naturalidade e melhor apreciada no contexto exato em que foi escrita, a congregação
comum.
vontade de Deus se une à nossa percepção de hem e mal, afirmação e
negação, Cristo e anticristo. Ao mesmo tempo, ele agrada a mente que louva e
aprofunda a resistência da fé nas inacreditáveis coordenadas da graça. Ele
quer apresentar todo o desenrolar dos caminhos de Deus conosco, à nossa
frente e dentro de nós. Nós queremos a mesma coisa. Assim, submetemos a
imaginação de fé ao absurdo lógico, mas imaginariamente possível de "ouvir a
visão". Refreamos, assim, o impulso de explicar a poesia e deixamos que as
imagens façam seu trabalho em nós, relacionem lembranças das Escrituras a
experiências recentes, reúnam pedaços de pensamento, emoções e
comportamento e trabalhem para colocar tudo na mais inclusiva e coordenada
das vidas, a vida em Cristo.
Essas páginas nos trouxeram, há muito tempo, a consciência do passar das
horas que nos aproximam do julgamento. Esse som se tornou o toque de
trombeta quando o quinto selo foi aberto e as almas que estavam sob o altar
clamaram: "Até quando, ó Soberano, santo e verdadeiro, esperarás para julgar
os habitantes da terra e vingar o nosso sangue?" (Ap 6:10). "Até quando?" é
uma pergunta antiga. O desejo de ver o julgamento, muitas vezes se
transformando em uma exigência, está profundamente impregnado na vida do
povo que ora a Deus.
Até quando, SENHOR? Para sempre te esquecerás de mim?
Até quando esconderás de mim o teu rosto?
Até quando terei inquietações e tristeza no coração dia após dia?
Até quando o meu inimigo triunfará sobre mim? (Salmo 13:1-2)
A expressão repetida quatro vezes aqui nesse texto é reproduzida e
elaborada em todas as circunstâncias possíveis na história da salvação –
doença, exílio, dúvida, derrota, dor e aflição. Agora a questão recebe uma
resposta.
O chamado para o julgamento que chega ao clímax em Apocalipse não é
abstrato, jurídico, nem preocupação com decoro, ética ou sociedade justa.
Aliás, não é nem "preocupação", mas um clamor: feridos desejam alívio,
oprimidos procuram equidade, maltratados anseiam por dignidade. A questão
"Até quando?", colocada pelas almas que foram assassinadas e estão sob o
altar, cresce e se transforma em questionamento: até quando será permitida a
violação da bondade, beleza e verdade por manipuladores insensíveis e
ímpios? Até quando teremos que suportar a arrogância deles, que acreditam
que força é sinônimo de direito?
A pergunta ecoa através das culturas, reverbera pelos séculos. Nem
sempre a injustiça é evidente, de modo que nem sempre o clamor recebe
atenção. Para cada grande mártir que morre em confronto corajoso com os
perversos, há milhões de mártires menores sob o altar, que perseveram a vida
toda sofrendo injustiças, chorando orações silenciosas.
Cresce o desejo pelo julgamento e a frustração pela demora. Toda matéria-
prima da injustiça aparece na experiência comum de homem ou mulher, filho
ou pai, marido ou esposa, funcionário ou patrão. Não acontece apenas na
guerra, nos guetos e nos genocídios. Nas esferas diárias de amor e trabalho,
nos deparamos com injustiças aparentemente irremediáveis. O mundo não é
justo. Aprendemos isso desde pequenos. As crianças, com seu sentido moral
inato, sem saber, mas com muita precisão, fazem uma paráfrase das
Escrituras: "Assim não vale." Ninguém recebe o que merece, seja como
recompensa ou punição. As consequências tanto da virtude quanto dos vícios
estão muito longe das causas. Algumas vezes, recebemos menos do que
merecemos e temos a certeza de que estamos sendo explorados. Em outras
ocasiões, recebemos mais e nos sentimos afortunados (ou culpados). A maioria
das pessoas endurece o senso moral com o passar dos anos e tenta sempre
"se dar bem". Mas, então, levanta-se uma injustiça radical — terrorismo
político, abuso doméstico — e a questão volta a ser urgente: até quando? Para
o apóstolo João, o evento radical foi o martírio de alguns membros de sua
congregação.
É digno de nota, aqui, que o método pastoral do apóstolo não envolve o
bálsamo das palavras de consolo. Ele não ameniza a situação e mostra que
poderia ser bem pior. Não sugere que "quem entende, perdoa", nem rearranja
os fatos para não sentirmos tanto o ultraje. Pelo contrário, ele intensifica o
senso de injustiça: em resposta ao clamor "Até quando?", as almas
martirizadas ouvem que precisam esperar mais um pouco, "até que se
completasse o número dos seus conservos e irmãos, que deveriam ser mortos
como eles" (Ap 6:11). A combinação de injustiça e demora é como sal na ferida;
não é bálsamo. Mas por certo a situação já vem durando demais. Com certeza,
depois de tantos séculos, chegou a hora de acabar com a sujeira, levar os
perpetradores de tantas crueldades ao julgamento definitivo e acabar com o
sorriso de condescendência que eles trazem no rosto.
É desconcertante, mas a Bíblia não dá resposta direta à pergunta. Ainda
assim, embora não haja uma data marcada na agenda do tribunal, milhões de
cristãos prosseguem crendo firmemente no julgamento de Deus. Mas o que se
encontra por trás da persistência dessa gente que continua a viver cercada por
perguntas sem respostas? Uma das características mais notáveis das
comunidades de fé é que, mesmo diante de injustiça sem punição, elas
perseveram crendo na justiça e no julgamento de Deus. Aparentemente, isso
deriva da convicção inabalável de que Ele um dia dará fim à injustiça, mesmo
que, hoje, não dê o menor sinal de estar exigindo ordem no tribunal. Como
essa convicção do povo de Deus se tornou tão profunda? Como ele adquiriu
essa âncora inabalável? Como isso aconteceu? Não há nenhuma evidência
empírica para apoiar essa fé. A Bíblia mostra poucos julgamentos aplicados na
hora: Ananias e Safira, Judas, Herodes, nada mais. Em nossa vida, eles
também são raros. A maior parte de nossa existência se dá em ambiguidade
moral, quando adquirimos resignação para tolerar o comportamento injusto dos
outros e recebemos misericórdia na demora do julgamento de nossos próprios
pecados. Se confinados aos registros de nossos diários, é quase certo que
cairíamos no cinismo que Yeats expressou: "Alguns pensam ser natural que a
sorte mate de fome os bons e favoreça os maus." 103
Assim, a que atribuir a persistência inacreditável do clamor? No abandono
generalizado da oração, quando grandes multidões desistem de Deus e se
lançam às ruas para pegar o que puderem com as próprias mãos, por que
motivo uma minoria notável não faz o mesmo, mas permanece, clama e
espera? A esta altura, já nos acostumamos com a resposta do apóstolo, ou
seja, adoração, que cria o contexto do paradoxo simultâneo de acreditar na
justiça enquanto vive a injustiça, exatamente como criou antes o contexto para
tudo o mais que foi elevado do dia-a-dia para essa visão. O julgamento há
muito aguardado, agora iminente, toma forma em um ato de culto (Ap 15:1-8).
Sete anjos se preparam para agir enquanto a congregação entoa um hino.
Neste poema teológico, João estabeleceu seis seções. A cena do
103 W. B. Yeats, Collected Poems, p. 333.
julgamento é a quinta.104 Corresponde à transição do quinto livro de Moisés
para o sexto, intitulado Jesus (Josué), que narra a ocupação da Terra
Prometida. (A Bíblia usada na Igreja primitiva era a Septuaginta, a tradução
grega do original hebraico. Onde temos o nome hebraico "Josué" em nossa
Bíblia, os primeiros cristãos tinham a tradução grega, "Jesus".)
Os dois nomes, Moisés e Jesus, se ligam na conclusão do poema
impetuoso de julgamento em Deuteronômio 32, onde está escrito que o cântico
foi ensinado a Israel por Moisés e Josué. João desenvolve a ênfase indicando
o hino congregacional que será cantado enquanto se prepara o julgamento
como "cântico de Moisés [...] cântico do Cordeiro", ou seja, Jesus (Ap 15:3).
O hino (Ap 15:3-4) é uma versão bem resumida de Deuteronômio 32, mas
contém elementos suficientes para trazer à mente a postura reverente na qual
nos vemos como pessoas salvas, inseridas em um mundo perigoso.
Exatamente como Israel, fomos "comprados por alto preço" e ensinados pela
disciplina dura dos anos no deserto, purgados e fortalecidos pelos julgamentos
de Deus. Estamos agora prontos para entrar na Terra Prometida —
vencedores, prontos a vencer.
Tuas obras são imensas e terríveis,
Senhor Deus todo-poderoso,
Teus caminhos são justos e puros.
Ó Rei das nações,
Quem não te admira, Senhor,
Quem não celebra teu nome?
Tu és santo — e és o único!
As nações vêm, todas elas,
Vêem com clareza teus julgamentos,
E se prostram em adoração! (Apocalipse 15:3-4)
Apocalipse começou com a visão de Cristo, a quem adoramos (Ap 1), seguida
pela visão do povo de Deus em adoração (Ap 4-5). Irá terminar com céu e terra
recém-criados transformados em lugar de adoração, um santuário, repletos de
adoração (Ap 21-22). João, pastor exilado, responsável por sete congregações
sujeitas a violência e propaganda exteriores e infiltradas por mentiras
astuciosas e atraentes, não pode pensar em nada melhor a fazer do que
chamar o povo para a adoração. A insistência em contextualizar tudo que
pensam, vivem e sentem no ato de adoração diferencia o apóstolo dos
liturgistas exagerados incapazes de suportar a carga da vida comum, que
escapam para as belezas preparadas de incenso, cantilena e ritual. Nenhum
outro líder espiritual demonstrou tantas evidências de estar em contato com as
inúmeras dificuldades da vida e de responder a elas como João. As
representações recorrentes de adoração, no Apocalipse, não são ficções
piedosas e escapistas; são convicções teológicas. A convicção de que é com
as ações de Deus, não as do mundo, que queremos nos envolver. O mundo
não é o contexto para lidarmos com Deus. Deus é o contexto para lidarmos
com Ele mesmo e com o mundo. Estamos constantemente sujeitos a
confusões, e a adoração é o ato com que nos reorientamos.
A adoração é o ato essencial e central do cristianismo. Nós fazemos muitas
outras coisas na preparação e como resultado do culto: cantar, escrever,
testemunhar, curar, ensinar, descrever, servir, ajudar, construir, limpar, sorrir.
Entretanto, o centro é a adoração — ato de comprometer toda a atenção ao ser

104 Sigo a análise estrutural de Austin Farrer, que identifica em Apocalipse seis livros de "setes": 1) as
sete mensagens (Apocalipse 1-3), 2) os sete selos (4-8:6), 3) as sete trombetas (8:7-11:19), 4) as sete
visões das bestas (12-14), 5) as sete taças (15-18) e 6) as sete últimas coisas (19-22).
e à ação de Deus. A vida cristã se baseia no pressuposto de que Deus está
agindo. Durante a adoração, não parece que estamos fazendo muita coisa — e
não estamos mesmo. Limitamo-nos a olhar para Deus e orientar nossos
passos segundo os pontos cardeais: criação, aliança, julgamento e salvação.
Na pressão deste mundo, os eventos oscilam entre o glamour das
celebridades e a violência dos terroristas. Num ambiente assim, o culto parece
absurdo. A maioria dos cristãos sente isso, e alguns chegam a abandonar a fé.
Pensam que seres humanos fortes, de boa índole e inteligentes não podem se
dedicar a práticas tão irracionais. Por certo será desperdício de energia
distribuir um pedaço de pão e um cálice de vinho. Quanto mais a pessoa se
conscientiza das inúmeras catástrofes que ameaçam a existência humana,
mais questiona o ato da adoração. Aqueles que o abandonam não são, em sua
maioria, os que não se importam com os problemas do mundo. São
exatamente os que se preocupam. Não é a falta de energia moral que os leva a
desprezar a adoração; é exatamente o contrário. Abandonam o lugar de culto
com a melhor das intenções, para fazer alguma coisa. Aqueles com quem
adoraram por muito tempo — alguns não muito inteligentes, vários muito
simpáticos, a maioria alheia à gravidade de nossa situação — parecem aliados
muito incompetentes, de modo que partem em busca de intensidade moral e
austeridade intelectual.
Outros permanecem no lugar de culto, mas adotam atitude muito pior:
querem subvertê-lo. Transformam-no em lugar de entretenimento para alívio de
consumidores entediados e cansados, transmitindo-lhes um pouco de ânimo.
Ou então fazem do culto uma sala de palestras, supondo que as pessoas agem
segundo o que sabem. Ou, ainda, estabelecem uma plataforma de lançamento
de boas obras e lançam foguetes de justiça rumo às linhas de combate do
adversário. Em todos esses casos, desviam a atenção do que Deus está
fazendo para enfocar o que nós estamos fazendo. E alguns, é claro, ausentam-
se do culto por preguiça ou indiferença. Esses perderam o interesse, há muito
tempo, na questão "Até quando?".
Mas a ausência significativa é a dos que, impacientes com o adiamento da
resposta, não entendem o motivo de continuar esperando e partem para agir
por conta própria. Os participantes perigosos são os que, inquietos com a falta
de ação, fazem do culto momento de agir. Para esses, tanto os que
abandonam o culto como os que o subvertem, João demonstra a continuidade
orgânica entre os atos de Deus e o nosso testemunho e louvor, que é
adoração, a partir dos quais Deus cria sua ação entre nós e no mundo. Nada
que fazemos tem mais influência no céu ou na terra do que o culto a Deus.
A adoração, de onde se desenvolve o julgamento, acontece em torno da
água do batismo, "um mar de vidro misturado com fogo" (Ap 15:2). Púlpito,
mesa e pia batismal compõem o mobiliário do culto cristão. Na pia, os pecados
são lavados; à mesa, recebemos o alimento do corpo e sangue de Cristo; e, do
púlpito, a palavra de Deus é pronunciada com autoridade A cena da adoração
em Apocalipse 4 e 5 enfatizou o púlpito (trono). A mesa (altar) orientou a liturgia
no capítulo 8. Agora, o elemento em foco é a pia batismal. A congregação que
adora (incluindo em suas dimensões celestiais as almas assassinadas que
estão sob o altar e reclamam da demora do julgamento) se reúne em torno da
água do batismo e entoa o hino do julgamento.
Há uma propriedade especial no fato do lugar de batismo estabelecer o
contexto à medida que os julgamentos divinos entram em foco. Conforme
Paulo coloca, na água do batismo imergimos para a morte e subimos para a
vida: "... fomos sepultados com ele na morte por meio do batismo, a fim de que,
assim como Cristo foi ressuscitado dos mortos mediante a glória do Pai,
também nós vivamos uma vida nova" (Rm 6:4). No batismo, uma vida de
pecado - rebeldia contra Deus, rejeição do Seu senhorio e do Seu amor - é
afogada, e uma nova vida em Cristo surge a partir dela.
A água do batismo representa, acima de tudo, julgamento, e simul-
taneamente, com muita ênfase, salvação. Todas as experiências bíblicas com a
água convergem na meditação cristã para o batismo: o caos aquático sobre o
qual o Espírito de Deus se movia, dando início à criação; a catástrofe que
purificou a terra da decadência enquanto a água levava Noé e sua família rumo
à salvação; o mar Vermelho que afogou os cavalos e cavaleiros egípcios, mas
que Moisés atravessou com Israel para a liberdade; o magnífico tanque ("mar")
de metal de Salomão, usado para purificar os sacerdotes que administravam o
templo; o rio Jordão, onde João Batista mergulhou multidões de pecadores
arrependidos e de onde Jesus se levantou aclamado para proclamar o Reino
de Deus.
Ninguém, diante da pia batismal, consegue pensar no julgamento como
algo que acontece exclusivamente com os outros: eu também passei por isso e
aqui estou - apesar do julgamento, ou melhor, por causa dele - vivo e salvo.
Estabelecer o julgamento no contexto do batismo evita a exultação hipócrita.
O grupo dos sete anjos parte para derramar os julgamentos contidos nas
taças repletas da ira de Deus. Enquanto eles esvaziam as taças e vemos as
consequências, percebemos que não há nada de novo. Os acontecimentos não
passam de continuação do que Deus vem fazendo o tempo todo e não vemos.
Recordamos, em especial, das pragas do Egito, porque cada uma das sete
taças (e isso também se aplica às pragas iniciadas pelas trombetas mais no
início de Apocalipse) repete um aspecto do julgamento daquele episódio tão
importante na história da salvação. A conexão clara com o Egito reforça a
ênfase de João sobre o culto, pois sabemos que as dez pragas não
aconteceram por serem os egípcios extraordinariamente maus, mas por uma
única razão que não tem qualquer conteúdo moral aparente: eles estavam
determinados a evitar que o povo de Israel fosse adorar a Deus.
A tarefa de Moisés, a mesma de todo líder espiritual, era formar um povo
que adorasse ao Senhor. Ao voltar do exílio em Midiã, em obediência ao
chamado divino, ele se apresentou ao povo e transmitiu sua mensagem. A
resposta espontânea foi adoração: "... e eles creram. Quando o povo soube
que o SENHOR decidira vir em seu auxílio, tendo visto a sua opressão, curvou-
se em adoração" (Êx 4:31). Depois de narrar a história da saída do Egito, a
maior parte do livro de Êxodo é um manual de adoração (Êx 24-40).
As conhecidas negociações entre Moisés e o faraó tinham um único tema:
adoração. A primeira petição foi: "'Deixe o meu povo ir para celebrar-me uma
festa no deserto' [...] permite-nos caminhar três dias no deserto, para oferecer
sacrifícios ao SENHOR, o nosso Deus" (Êx 5:1,3). Cada renovação desse
pedido repetia o motivo: "Deixe ir o meu povo, para prestar-me culto" (ou seja,
adorar [latreuo]).105 Duas variações usam expressões do pedido original:
"ofereceremos sacrifícios ao Senhor" (Êx 8:27) e "vamos celebrar uma festa ao
Senhor" (Êx 10:9). Moisés tinha a missão de liderar o povo no culto. Faraó
pecou ao impedir. As pragas de julgamento aconteceram por esse único
105 Êxodo 7:16; 8:11,20; 9:1,13; 10:3.
motivo. O pior inimigo externo que o povo de fé enfrenta é a obstrução à
adoração. O pior inimigo interno que o povo de Deus enfrenta é a subversão da
adoração. Esse deve ser nosso maior temor. Foi o aspecto com o qual João
mais se preocupou. Com base nisso, é que os julgamentos sobrevêm.
O clamor pelo julgamento e a indagação a Deus "Até quando?" encontram-
se estabelecidos no contexto adequado: o culto a Deus. O julgamento deixou
de ser questão de esclarecer opiniões ou acabar com queixas pessoais.
Passou a ser experimentado como ação há muito iniciada, profundamente
elaborada e totalmente realizada de Deus, na qual penetramos por meio do
batismo, cujas consequências compartilhamos na salvação, da qual
participamos por meio da adoração e celebramos o triunfo final por meio da
palavra e da Ceia do Senhor.
O tema do julgamento se completa na apresentação da "grande prostituta"
(Ap 17-18). O texto primeiro narra a destruição dela (Ap 17) e depois mostra
um cântico sobre o mesmo assunto (Ap 18). Essa sequência de história
seguida por cântico foi inspirada em Êxodo e reforça a percepção de que o
julgamento acontece para libertar as pessoas para a adoração, e, quando elas
estão livres, a ordem do dia é o culto (Ap 19). Êxodo 14 narra a história do
julgamento do Egito, que foi, ao mesmo tempo, a salvação de Israel; o capítulo
15 traz um cântico sobre o mesmo tema. João também usa esse padrão de
fala/cântico, mas substitui o faraó e os egípcios pela Grande Prostituta e seus
amantes. Sabemos que o julgamento caiu sobre o faraó porque ele impediu o
povo de adorar e entendemos que a Grande Prostituta é julgada pela mesma
acusação.
A tarefa da imaginação apocalíptica é fornecer imagens que nos mostram o
que está acontecendo em nossa vida. "Quando há poderes misteriosos à
nossa volta", comentou um personagem de uma história de Saul Bellow, "só o
exagero nos ajuda a enxergá-los. Todos sentimos que há poderes que criam o
mundo — vemos isso quando olhamos em torno de nós — e outros que o
destroem."106 Contudo, essas coisas que antes eram óbvias tornam-se
indistintas à medida que nos movemos em meio aos assuntos deste mundo.
Quando visto através das lentes sujas de nossa cultura, aquilo que antes era
claro na fé se torna enevoado e distorcido. As imagens apocalípticas de João
clareiam em duas direções. Primeiro, o mundo de revelação, os dois mil anos
de experiência (para nós, quatro mil) de ser povo de Deus ficam mais claros.
Nada é obsoleto nem irrelevante. Ninguém pode tirar uma vida de fé da manga
na hora que precisa, nem arrumar uma nova salvação na hora do desespero.
Temos antepassados. Nosso Cristo foi imolado "desde a criação do mundo". A
fé tem raízes na história e base na geologia. A memória fraca e a instabilidade
dos sentimentos obscureceram as conexões. As imagens de João as refazem.
O segundo esclarecimento está no nosso "aqui e agora": nossos encontros
de todos os dias, com caixas de banco, funcionários dos correios e frentistas
de postos de gasolina são, cada um deles, elementos de pecado e graça. Cada
uma dessas pessoas e cada encontro são detalhes importantes na vida de fé.
Contudo, não temos consciência disso. A maior parte de nosso tempo se passa
sem crises que nos convençam de que precisamos de Deus, embora tudo que
façamos seja importante para nossa fé e Deus se envolva profundamente
nisso. Sem nos darmos conta, passamos o dia todo realizando atividades de
importância eterna. Durante todo o tempo, pronunciamos palavras que entram

106 Saul Bellow, The Dean's December (Nova York: Harper & Row, 1982), p. 225.
na vida das pessoas e as modificam, muito ou pouco, e jamais ficamos
sabendo disso. Haverá alguma forma de nos ensinar a perceber a glória que
pulsa em cada ato de boa vontade e o mal que permeia todo ato de
desobediência? A visão apocalíptica é um caminho.
O símbolo da Grande Prostituta como experiência cotidiana é uma cidade
onde a vida corre tranquila. A mulher e a besta escarlate sobre a qual ela se
assenta abrangem as ruas que percorremos, as lojas em que compramos
verduras enquanto conversamos trivialidades com o proprietário. Flannery
O'Connor, em resposta a uma pessoa que lhe perguntou por que os
personagens de suas histórias eram tão grotescos, explicou que é necessário
apresentar caricaturas simples e grandes para que quem seja quase cego
possa enxergar.107 A Grande Prostituta é uma dessas caricaturas, uma imagem
capaz de suscitar uma consciência que jamais será esquecida sobre a
presença poderosamente sedutora dos que gostariam de obstruir ou subverter
a adoração ao Cordeiro imolado e ressurreto.
A adoração a Deus em Cristo é a prática mais importante e difícil do
cristianismo. Por ser tão difícil, estamos sempre prontos a partir para tarefas
mais fáceis, em especial se, aparentemente, incluir os elementos essenciais do
culto. Mas é melhor não fazer isso. A Grande Prostituta, lançada ao mar como
uma pedra de moinho, constitui uma advertência. Prostituta é um termo sexual,
mas, em Apocalipse 17-18, aparece como metáfora de adoração errada. João
não tratadas condições sexuais do final do primeiro século; ele se preocupa
coma situação da fé. Ele tem a responsabilidade pastoral de evitar que os
crentes abandonem a vida de adoração fervorosa e persistente para adotar
algo que parece religião, tem aparência bem melhor e é muito mais fácil. Ele
fala sobre a Grande Prostituta a fim de abrir os olhos deles para as diferenças
entre o culto ao Cordeiro e esse outro, que não é adoração, e nos impede de
adorar. A prostituição liga o sexo ao dinheiro. A união física recebe uma
etiqueta com um preço. Depois do pagamento, a relação chega ao fim, até o
momento em que alguém voltar a pagar. A cópula é sexual, e o relacionamento,
comercial.
O mais terrível com relação à prostituta não é o fato de ela se deitar com
estranhos (isso é apenas seu primeiro ato questionável), mas que, fazendo
isso, ela usa o corpo para mentir sobre a vida: não há união de vidas; só de
órgãos genitais. A investigação e o desenvolvimento da singularidade da nossa
identidade humana, dos quais o sexo é o meio físico, são desviados por essas
elaboradas e enganosas fantasias. Por trás do encanto sedutor de perfumes,
sedas e bajulação, a pessoa sofre um empobrecimento fundamental. A
prostituição usa o sexo para mentir sobre a vida: a verdade de que o amor é
um dom, os relacionamentos envolvem compromisso e a sexualidade
representa a espiritualidade. A prostituta mente ao fazer acreditar que o amor
pode ser comprado, que os relacionamentos são "acordos" e que a
sexualidade é um apetite. Usa algo bom para realizar o mal, um corpo bom
para diminuir a pessoa, o meio de firmar nossa identidade para nos
despersonalizar. O grande engano da prostituição não é a imoralidade sexual;
é o sacrilégio espiritual.
A adoração sob o aspecto da Grande Prostituta é à comercialização de
nossa grande necessidade e profundo desejo de sentido, amor e salvação, e

107 Citado por Walker Percy, The Message in the Bottle (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1975), p.
11 8 .
do aperfeiçoamento de nós mesmos para irmos além do que somos. A
adoração-prostituta prospera designando o que há de pior em nós — orgulho,
lascívia, inveja, cobiça, ira — como "Deus", motivando multidões
despersonalizadas e despersonalizantes a buscarem religiosamente esses
defeitos divinizados regiosamente. O grande perigo que o mundo representa
não reside no mal evidente, mas na religião fácil. A promessa de sucesso,
êxtase e significado que podemos comprar por um preço é a adoração-
prostituta. É a inversão diabólica. Transformou o "Você foi comprado por um
preço" em "Você pode comprar tudo no atacado".
A Grande Prostituta é apresentada em um contraste implícito com a Noiva
Virgem. Depois que o julgamento dela se completa, o contraste fica mais
explícito no banquete de casamento do Cordeiro (Apocalipse 19). A Noiva
constitui uma metáfora sexual, assim como a Prostituta, mas faz contraste
absoluto com ela. Para a Prostituta, o sexo está a serviço do comércio; para a
Noiva, do amor. A Prostituta considera o sexo um contrato; a Noiva, um ganho
para toda a vida. Para a primeira, o sexo é ganho, para a outra, dádiva.
Somos seres profunda, completa e inescapavelmente sexuais. Ao viver a
sexualidade, conhecemos o outro e, de maneira indireta, a nós mesmos. Na
vivência da sexualidade, também conhecemos, ou não, a Deus. A adoração-
prostituta é assunto para momentos e ocasiões. A adoração-noiva envolve e
une todas as partes da vida. A adoração-prostituta é praticada sob o princípio
da atração e do prazer. A relação adoração-noiva é no melhor ou no pior, na
saúde e na doença, até que a morte nos separe, adoração-noiva está sempre
em desvantagem, pois a outra é indulgente e provoca a lascívia, enquanto
noiva se entrega com sacrifício e fidelidade e, por isso, está sempre sob
ameaça. E também por isso precisamos da caricatura violenta do apóstolo
sobre a propaganda religiosa que coloca em perigo nossa persistência e
fidelidade.
A adoração-prostituta traz-nos grande ganhos: conseguimos tudo o que
queremos, na hora em que queremos. Já a adoração-noiva envolve doação:
nos entregamos e não sabemos quanto tempo teremos de esperar pela
satisfação de nossa ansiedade. Por todo o livro de Apocalipse, as grandes
cenas de adoração mostram que Deus está sendo servido — as pessoas se
aproximam dele, se entregam em louvor. Em nenhum lugar, Ele as atrai com
promessas fáceis. No lamento do capítulo 18 sobre o fim da Grande Prostituta,
os negociantes de terra e mar são os que mais sofrem (18:11-19): no culto da
Prostituta, conseguiam tudo que desejavam, a vida transbordava com o que
possuíam, e agora tudo havia acabado, virara fumaça. Foram privados de tudo
que lhes havia sido prometido, daquilo em que haviam investido e do que
tinham desfrutado. A decadência, além de envolver seus negócios, envolveu a
religião que cultivava a tolerância consigo mesmo, o culto ao consumo. Agora
tudo acabou: a salvação pelo saldo bancário, o deus do pagamento à vista, o
sentido do dinheiro, a religião como sentimento, o eu divinizado
(temporariamente). Ficaram apenas eles mesmos que, tendo passado a vida
toda no prostíbulo, não conhecem a si mesmos.
Mas a conclusão do julgamento de Deus não acontece em meio a pranto,
mas, sim, a aleluias. Apocalipse traz para dentro de si o livro com o qual mais
se parece, Salmos, e conclui com a mesma palavra: hallelujah. Há inúmeros
paralelos entre Salmos e Apocalipse. Os dois se voltam para o ato de culto,
expressam imensa variedade de problemas. Tanto na experiência dos
salmistas quanto na de João, os inimigos se espalham por toda parte. Nos dois
livros, figuram o clamor fervoroso por um julgamento justo. E tudo isso se une
na palavra de conclusão: hallelujah!
A primeira vez que o termo hallelujah aparece em Apocalipse é no primeiro
versículo do capítulo 19. Figura no momento certo para evitar que a gratidão e
o alívio pelo julgamento degenerem e se transformem em desprezo pelos que
foram julgados. Quando ocorre o julgamento e é decretada a morte da
prostituta, corremos o grande risco de partir para denúncias generalizadas. O
anseio pelo julgamento está muito próximo da busca da vingança. O desejo de
ver a justiça de Deus sempre oscila na linha divisória com a vontade de ver os
inimigos consumidos pela dor. O santo que espera pelo juízo divino que
estabelecerá o direito corre o risco de resvalar no sadismo que se deleita em
presenciar o tormento dos que estão sendo punidos. Quatro aleluias nos
arrancam da linha divisória e nos levam de volta ao culto, onde nos colocamos,
em humildade e adoração, na presença da Glória.
O primeiro aleluia (Ap 19:1) celebra a verdade e a justiça do julgamento da
Grande Prostituta, a imagem que inclui toda tentação para abandonar a Deus,
toda armadilha para trair a Cristo, toda emboscada contra a perseverança, toda
sedução à fé.
Aleluia!
A Salvação, a Glória, o Poder,
todos pertencem a nosso Deus.
Os julgamentos são precisos e justos.
Ele julgou a Grande Prostituta!
a terra, arruinada pela traição sexual dela,
e o sangue dos servos de Deus que ela derramou
tudo ele restaurou à retidão! (19:1-3)
O segundo aleluia (Ap 19:3) demonstra, sem palavras, gratidão, enquanto a
fumaça sobe e se dispersa no ar.
Aleluia!
A fumaça sobe
sem parar, sem parar. (Ap 19:3)
Os 24 anciãos e os quatro seres viventes, a comunidade litúrgica que reside
em volta do trono, o coral esplêndido, invisível mas presente em nossas
reuniões sofríveis a cada Dia do Senhor, declaram o terceiro aleluia (Ap 19:4),
temperado com um amém afirmativo. Depois, do próprio trono vem a resposta
em antífona.
Amém! Aleluia!
Louvem nosso Deus
todos os seus servos.
Todos em reverência diante dele:
todos os pequenos! todos os grandes! (Ap 19:4-5)
O quarto aleluia é uma resposta congregacional retumbante ao chamado à
adoração que partiu do trono, convocando todos a louvarem a Deus.
Prossegue com o anúncio do banquete de celebração que leva Cristo e seu
povo a uma eternidade de amor compartilhado — o banquete das bodas do
Cordeiro.
Aleluia!
O Senhor reina,
nosso Deus todo-poderoso.
Alegremo-nos, celebremos, ofereçamos a ele a glória.
Pois chegaram as bodas do Cordeiro.
Sua noiva já vestiu
o vestido que ele lhe deu,
vestido de linho, diáfano e imaculado. (Ap 19:6-8)
No Saltério, quatro salmos (146-149) com aleluias reúnem toda a dor e o
lamento de Israel pela tristeza do julgamento inacabado em louvor elaborado
em detalhes. Depois, tudo se funde no poderoso salmo 150, com 13 salvas de
louvor, ressoando aleluias por Israel e pela Igreja. Em Apocalipse, os quatro
aleluias retiram do mundo julgado corpos partidos e o sangue derramado da
Igreja e os levam à grande Comunhão, à qual nossos pequenos sacrifícios se
ligam solenemente, e depois declaram a bênção sobre todos os convidados
para o banquete do casamento do Cordeiro.
11.
A ÚLTIMA PALAVRA SOBRE A SALVAÇÃO
APOCALIPSE 19-20
Preparas um banquete para mim
à vista dos meus inimigos.
Tu me honras, ungindo a minha cabeça com óleo
e fazendo transbordar o meu cálice.
SALMO 23:5
"Aleluia!, pois reina o Senhor, o nosso Deus, o Todo-poderoso.
Regozijemo-nos! Vamos alegrar-nos e dar-lhe glória!
Pois chegou a hora do casamento do Cordeiro, e a sua noiva já se aprontou.
Para vestir-se, foi-lhe dado linho fino, brilhante e puro."
O linho fino são os atos justos dos santos.
E o anjo me disse: "Escreva:
Felizes os convidados para o banquete do casamento do Cordeiro!"
APOCALIPSE 19:6-9
Quando o perigo é grande, o poder salvador também cresce.
FRIEDRICH HOLDERLIN108
Jesus, o nome com o qual João começa e termina Apocalipse (1:1 e 22:21),
significa "o Senhor salva". A primeira pessoa a ter esse nome na Bíblia foi
Josué, filho de Num, o general que liderou o povo liberto na conquista da terra
de sua salvação. João já apresentou dois cânticos de salvação que celebram o
triunfo da obra de Deus (Ap 7:10 e 12:10). O terceiro e último tem função dupla:
encerra a visão do julgamento e introduz a da salvação:
Aleluia!
A Salvação, a Glória, o Poder,
todos pertencem a nosso Deus.
Os julgamentos são precisos e justos.
Ele julgou a Grande Prostituta!
a terra, arruinada pela traição sexual dela,
e o sangue dos servos de Deus que ela derramou
tudo ele restaurou à retidão! (Ap 19:1-3)
Os cânticos de salvação e as imagens que o apóstolo apresenta se
colocam sobre um cenário de catástrofe. A salvação é a resposta ao caos. A
Bíblia entende que as catástrofes estão além da capacidade de recuperação do
ser humano. Toda a criação — Andrômeda e o Amazonas, cedros do Líbano e
batatas inglesas, trutas e sabiás, esquimós e aborígines — tudo foi abalado,
perdeu a harmonia original e está em discórdia. Rivalidade e acusação
obscureceram a complementação transparente que havia entre macho e
fêmea. As conversas que Deus e os humanos mantinham no final da tarde
foram distorcidas e se tornaram evasivas e furtivas. Foi-se o "ajuste" que
existia entre céu e terra, entre criação, criatura e Criador: a forma não combina
mais com a função, o resultado não segue mais o objetivo. Agora existe dor,
labuta, suor e morte.
Nada escapa à catástrofe. Nada é inocente na catástrofe. Terra e céu estão
implicados. Bactérias contaminam a corrente sanguínea e causam doenças em
santos e pecadores. O granizo despenca do céu e arrasa os pés de trigo,
frágeis e elegantes, nos campos prontos para a colheita. Fogo líquido fende a
crosta terrestre e incinera tigres e árvores com fúria vulcânica. Anjos rebeldes,
desautorizados de advogar nos tribunais celestes, infiltram-se nas regiões

108 Friedrich Hölderlin, citado por Robert Bly, Taking All Morning (Ann Arbor MI: University of Michigan
Press, 1980), p. 81.
invisíveis do mundo e distorcem a glória da inteligência, formando padrões de
engano. E os seres humanos, criados "à imagem de Deus", descobrem em seu
interior, muitas vezes horrorizados, um coração "desesperadamente corrupto".
A tragédia vai além do que se pode imaginar. Ainda assim, há muita beleza
em meio a toda essa devastação, tais como: bondade profunda, inclinação
moral, bênção e inteligência ativa; de modo que é possível viver alguns
períodos, às vezes bem longos, ignorando a extensão do desastre. Mas, de
repente, devido ao acúmulo de evidências observadas com cuidado, ou ao
reconhecimento provocado por uma crise, deixa de ser possível escapar ao
que está diante e em torno de nós: fomos separados de nossas origens, de
nosso Deus, de pais, amigos e irmãos, dos ursos, dos falcões e dos coiotes.
Estamos, segundo Walker Percy, "perdidos no cosmo". 109 Não sabemos quem
somos nem onde estamos.
Os cristãos crêem que a causa da catástrofe foi um ato de rebeldia, a
desobediência que tentou enganar Deus ou tomar o lugar dele. Mas essa não é
uma opinião generalizada. As pessoas costumam pensar que, por mais terrível
que pareça a situação de tempos em tempos, não há uma catástrofe, pois
encarar o fato de que ela aconteceu envolve, em algum momento, acertar
contas com Deus. E parece que tudo é mais fácil do que isso. Assim, o diabo
falsifica o relatório, e o mundo altera as evidências. As pessoas reduzem sua
percepção da catástrofe a um nível aceitável sem que precisem envolver Deus
de forma substancial. Dessa forma, o mesmo ato que causou o caos o
perpetua.
Se não houver percepção exata do problema, não haverá entendimento
perfeito da salvação, que é o ato divino que traz a solução. Não há nada
ameno nas palavras de João sobre a catástrofe — é necessário ter estômago
para continuar observando enquanto os selos são abertos, as trombetas
tocadas, e as taças derramadas. Nesse ponto, muitos abandonam o apóstolo e
adotam visões mais suaves, encontradas em versão condensada do texto, que
podem ser lidas como um jornaleco qualquer. É pena, pois perdem o contexto
adequado para apreciar a apresentação forte que João faz da salvação.
O significado básico de "salvação" em hebraico é ser amplo, tornar-se
espaçoso, alargar. Transmite o sentido de libertação de uma existência
comprimida, confinada e rígida.110 A salvação é o enredo da história. Salvação é
o tema mais amplo das Escrituras, aquele que ultrapassa e sobrepuja a
catástrofe. Salvação é a determinação de Deus de resgatar sua criação; sua
atividade na recuperação do mundo. Isso é pessoal e impessoal, relaciona-se a
almas e cidades, alcança pecado e doenças. É tão indiscriminada que chega a
ser temerária. Não há distinção clara entre quem, o que ou quando — invade,
infiltra, chama, convida e apela a todo o mundo perdido: "Porque Deus tanto
amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito...." Deus envolve toda a
catástrofe.
O mundo possui uma palavra para substituir salvação: otimismo, ou seja,
continuar útil e esperançoso sem recorrer a Deus. Claro que a percepção do
caos deve ficar muito mais amena para que a credibilidade permaneça.
Otimismo assume duas formas: moral e tecnológico. O primeiro acredita que a
aplicação generosa de boa vontade e boas intenções ao monte de injustiça,
maldade e corrupção que nos cerca colocará o mundo, aos poucos, mas com

109 Walker Percy, Lost in the Cosmos (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1983).
110 Interpreters Dictionary of the Bible, 4:169.
toda a certeza, de volta a seu curso original. O otimismo tecnológico acredita
que a mesma coisa será feita por meio da aplicação da inteligência científica
aos problemas da pobreza, poluição e neurose. Nenhuma das duas formas de
otimismo adora a Deus, embora o moral às vezes lhe conceda espaço
cerimonial. Os otimistas acreditam que falta pouco para consertar o mundo, e
pensam que cabe a eles resolver os problemas.
Talvez soe como indelicadeza nutrir tão pouco entusiasmo diante de tanta
dedicação de inteligência e boa vontade. Afinal, essa gente pelo menos está
fazendo alguma coisa. Contudo, o discernimento bíblico mostra que o mal
espiritual motiva essas boas ações, o mal de ignorar, evitar ou negar a Deus. O
esforço para viver bem, ajudar os outros e melhorar as condições do mundo é
alimentado pela determinação, consciente ou não, de manter Deus fora do que
eles são e do que fazem. Enquanto conseguirem racionalizar, fantasiar ou
interpretar a catástrofe como algo consideravelmente inferior ao que ela é,
poderão esquecer que dependem de Deus para a salvação deles mesmos, dos
outros e do mundo. Esse otimismo é tão generalizado, se apresenta de forma
tão atraente, recebe tantas recompensas e honras e faz tantas conquistas que
fica difícil não se impressionar e, com isso, acompanhar a euforia que está em
toda parte. Claro que isso é muito mais fácil do que se relacionar com Deus.
A tarefa pastoral do apóstolo João era manter os cristãos em contato com
Deus. Uma parte dessa tarefa é manter-nos escrupulosamente honestos face à
catástrofe: se os agudos detalhes do mal se confundem com o cenário, não
passarão nem cinco minutos antes que comecemos a nos preparar para
operações de salvamento do mundo ou, pelo menos, de nossos vizinhos. Mas
o outro aspecto da missão cristã é nos manter confiantes e participantes da
ação salvífica de Deus. A salvação é maior do que a catástrofe. Nessa
grandiosa visão, em Apocalipse 19 e 20, João mostra a grandiosidade da ação
e a natureza de nossa participação nessa grande salvação.
Dois elementos compõem a visão: um banquete e uma guerra,
representando a polaridade da salvação. Tanto é necessário explorarmos a
imensidão da salvação quanto não nos afastarmos da enormidade da
catástrofe. Parece-me que tememos muito mais a graça do que o mal. João
usa as imagens do banquete e da guerra para nos fazer ir o mais fundo
possível no terreno da salvação.
Desacostumados com uma vida que vai além de nós mesmos e nos afasta,
pela fé, da posição de controle, corremos o grande risco de nos contentarmos
timidamente com um tipo de religião que conseguimos administrar. As reduções
mais comuns na tentativa de deixar a salvação em um nível mais confortável
são transformá-la em devoção subjetiva ou decoro ético, ou uma combinação
dos dois. Contudo, salvação é obra de Deus. Está sempre muito além do que
pensamos, é muito mais do que experimentamos em qualquer momento
específico. Estamos sempre nos detendo e definindo-a em termos do
entendimento presente, que é sempre prematuro e, portanto, reduz essa
imensa ação na qual temos tanto a aprender e na qual, muito mais ainda, pela
graça de Deus, vamos penetrar. "Tendo começado pelo Espírito, querem agora
se aperfeiçoar pelo esforço próprio?", foi o comentário um tanto ácido de Paulo
sobre esse tipo de redução. A abordagem pastoral de João se dá por meio de
visões: ele opõe a redução da salvação a subjetivismo espiritual ao apresentar-
nos um banquete; e ele se opõe à redução da salvação a boas maneiras ao
mostrar-nos uma guerra.
Os quatro cânticos de aleluia ligaram a cena do julgamento, mostrando as
dimensões da catástrofe (Ap 15-18), com a visão da salvação. O primeiro
cântico proclamou a salvação, o segundo e o terceiro elaboraram o tema, e o
quarto a anunciou como o casamento entre Jesus (o Cordeiro) e os cristãos (a
Noiva). Os cânticos nos precipitaram no centro nervoso da salvação.
A imagem do casamento se transforma imediatamente na imagem do
banquete: os salvos, além de serem a Noiva, são também os convidados da
cerimônia que celebra a união de intimidade e fidelidade ímpares que é o
casamento. No Evangelho de João, Jesus fez seu primeiro milagre em uma
festa de casamento, em Caná, transformando a água que seria usada para a
purificação em vinho de bênção. Seu último encontro com os discípulos foi um
café da manhã da ressurreição, em uma praia na Galiléia. Marcos mostra
Jesus jantando com pecadores e, com isso, ferindo a sensibilidade dos
fariseus. No Evangelho de Lucas, a ceia vespertina da Páscoa, em Emaús,
revelou o Salvador a Cleopas e seu amigo. O Mestre apreciava usar o
ambiente comum de refeições, jantares e banquetes tanto para contar histórias
quanto para conversar. Na última refeição que fez com seus discípulos, Ele
mandou que eles continuassem com o costume, para lembrarem com precisão
o que tinham vivido na companhia dele ("Façam isto em memória de mim") e
aguardarem sem vacilar o que Ele ainda haveria de fazer ("até que eu volte").
Sabemos que Jesus adorava em sinagogas e no templo, os lugares onde o
povo costumava ir para adorar a Deus e receber o ensino das Escrituras.
Apesar disso, a maior parte dos ensinamentos e das orações de Jesus
aconteceu nas ruas e nos campos, nas montanhas e nos lares, onde ofereceu
ou recebeu refeições. Ao estabelecer a forma como seus seguidores deveriam
preservar o que tinham experimentado, e os mandamentos que tinham
recebido dele, Jesus recomendou que desfrutassem juntos de uma refeição de
pão e vinho. Eles obedeceram. E nós continuamos fazendo o mesmo até hoje.
Levando-se em conta a falta de fé e de memória que caracteriza os cristãos
de todos os séculos — a sordidez de conduta e a propensão à heresia —, a
persistência com que essa refeição tem sido feita constitui uma das exceções
verdadeiramente incríveis. Nenhum outro elemento de obediência continuada é
mais impressionante. Seguindo a mudança dos tempos, a ênfase doutrinária se
volta para um elemento enquanto abandona outro. O radicalismo do evangelho
sempre cede em uma ou outra direção, para se acomodar à cultura. O culto
cristão encontrou expressão na arquitetura mediante todos os tamanhos e
formas de construções. Mas, em meio a todas essas diferenças, mudanças e
conflitos, a Ceia continua sendo celebrada: sempre com as mesmas palavras e
os mesmos elementos de pão e vinho. Claro que houve discussão em torno do
significado das palavras e dos elementos — mas nunca o debate interrompeu a
obediência.
A visão da salvação começa com um convite à refeição:
Felizes os convidados
para o banquete do casamento do Cordeiro!
O poder da Ceia do Senhor no sentido de nos manter participando da
essência da salvação é impressionante. Ela é a prática fundamental dos
cristãos para lembrar, receber e compartilhar o significado da salvação: Cristo
crucificado por nós, seu sangue derramado para a remissão de nossos
pecados. Nela, confirmamos a realidade de nossa salvação. O que sabemos e
cremos sobre Cristo em sua encarnação e o que esperamos dele em sua volta
envolvem a vida presente: dentro desse contexto amplo e no cenário comum,
celebramos nossa salvação. Cada celebração da Ceia nos reintroduz no
domínio daquele que João descreve com uma expressão gramatical original:
"que é, que era e que há de vir" (Ap 1:4,8). De forma significativa, ele coloca
primeiro o presente ("é"), depois mostra que o passado e o futuro ("era" e "há
de vir") o envolvem. Essa reunião de todos os tempos verbais em apenas um
acontece como sacramento na Comunhão. A realidade multidimensional da
salvação se preserva em uma refeição que fazemos, e não em uma verdade a
ser entendida nem em um comportamento ético a ser adotado. Nem todos
conseguem entender uma doutrina. Nem todos obedecem aos preceitos.
Contudo, todos são capazes de comer um pedaço de pão e beber um cálice de
vinho, além de entender uma declaração simples — meu corpo, meu sangue.
Mantenho ligação com o Jesus morto e ressuscitado, que é a salvação, não
com algum aprendizado nem com um comportamento, mas comendo uma
refeição.
A Santa Comunhão usa elementos cotidianos para me conectar com a
crucificação e a ressurreição extraordinárias e únicas de Jesus. Ela é ao
mesmo tempo comum e excepcional, repetição do costumeiro e celebração do
único. As refeições, em todas as culturas, parecem ter essa capacidade de
avançar do comum ao extraordinário, fazendo com que um penetre o outro. As
três refeições de todos os dias são rotina, mas, quando queremos celebrar uma
grande ocasião, como casamento ou aniversário, achamos bem natural usar
uma refeição para expressar intensidade, êxtase e consumação.
Por um lado, a salvação é Cristo na cruz e levantado da tumba; por outro, é
comer pão e beber vinho. Não há como separar isso na Ceia do Senhor:
salvação é Cristo no Gólgota e Cristo em mim.
A Ceia vai além: mantém a forma social da salvação. Comer juntos é um ato
de confiança e amor entre amigos e estranhos, convite aceito para igualdade
diante de Deus. Não costumamos, se pudermos evitar, comer sozinhos.
Reunimo-nos com familiares ou amigos. Demonstramos cortesias básicas à
mesa, onde aprendemos consideração e perdão. Além disso, é para ela que
convidamos os estranhos, sendo a hospitalidade o meio de superar
desconfiança e solidão, chamando o desconhecido ao lugar de alimento e
aceitação. A mesa da Comunhão incorpora a verdade evangelística da
salvação, na qual Jesus insistiu: "Pessoas virão do oriente e do ocidente, do
norte e do sul, e ocuparão os seus lugares à mesa no Reino de Deus" (Lc
13:29).
Toda vez que o convite à Santa Comunhão é feito e aceito, encontra-se
implícita uma defesa contra a redução da salvação a espiritualismo falso —
transação devocional que acontece estritamente na privacidade da alma. A
refeição impossibilita que a salvação seja mantida como elemento privado
entre nós e Deus no interior das profundezas da alma. A prática esnobe de
sentimentos devotos que envolvem a recusa a se envolver com pessoas
inadequadas e a lidar com os assuntos corriqueiros encontra seu fim na mesa
eucarística. É impossível preservar a subjetividade devota pura quando temos
que lidar com vinho derramado e migalhas de pão. A refeição também torna
difícil viver a salvação basicamente como a manipulação agradável de
sentimentos espirituais em ambiente preparado com esmero, na companhia
daqueles de quem mais gostamos, isolados dos aspectos mais grosseiros do
mundo. A Ceia do Senhor não acata tais reduções: os participantes da mesa
são escolhidos pelo Senhor, não por mim; os elementos são o pão e o vinho
materiais, e não pensamentos espirituais e sentimentos devotos. Durante a
refeição, ouvimos as palavras simples de Jesus e comemos e bebemos
seguindo sua ordem direta.
O segundo elemento na visão da salvação é a guerra. Primeiro, a imagem
do Noivo Cristo casado com a Noiva Igreja se expandiu na imagem do Cordeiro
Cristo fornecendo uma refeição eucarística a Ele mesmo. Agora, a imagem do
Guerreiro Cristo cavalgando rumo à grande batalha de Armagedom se coloca
sobre essas imagens. Dificilmente se encontraria um contraste mais extremo
do que o existente entre banquete e guerra, mas, ao nos submetermos às
imagens, percebemos mais complementação do que contradição. Salvação
está nas intimidades e festividades de um casamento e, também, em uma
batalha agressiva para derrotar o mal. Salvação não é nenhum desses
elementos isoladamente. Ela envolve todos, o abraço de amor e o ataque ao
mal, em tensão polarizada, cada um deles definido pelo outro, um se
alimentando do outro.
A visão da guerra mostra Jesus sobre um cavalo branco, vestido com
esplendor e vitorioso, liderando os cristãos em triunfo contra o dragão e suas
duas bestas, ou seja, todas a variações do mal que nos sobrevêm.
Vi os céus abertos
e diante de mim um cavalo branco,
cujo cavaleiro se chama
Fiel e Verdadeiro.
Ele julga e guerreia
com justiça. (19:11)
Os detalhes da cena da batalha nos incomodam, devido a complexidades que
fogem a qualquer resumo bem elaborado. Há mais informações do que se
percebe à primeira vista; a ação salta do cenário. Mas não há espaço para
erros de interpretação: a salvação está sendo conquistada. As duas bestas,
responsáveis por tanta confusão e sofrimento, são afastadas, os dois seres
"foram lançados vivos no lago de fogo que arde com enxofre" (19:20). Um
milênio depois, a fonte maligna da catástrofe, do Éden ao Egito, da crucificação
de Jesus ao martírio dos cristãos, será jogada no mesmo lugar (20:10). O
motivo por que os três não são lançados juntos no lago é, para mim, uma das
ambiguidades menores, mas sem resposta, que evitam que a visão seja
reduzida a um diagrama. A última palavra é, então, que toda forma e fonte do
mal serão banidas da história.
A visão mostra que a salvação enfrenta oposição furiosa, em grande parte
oculta e dissimulada. Uma das funções dessa visão é treinar nossa percepção
para que jamais deixemos de enxergar essa oposição. Ao mesmo tempo,
aumenta nossa adrenalina, para que coloquemos a melhor energia no elevado
drama espiritual do qual participamos todos os dias quando confessamos o
senhorio de Cristo. Tendo visto isso, é muito pouco provável que lutemos com
indiferença a guerra contra o inimigo tenaz.
Nosso mundo não é benigno nem neutro. Enfrentamos oposição maligna,
vontade perversa que se dedica a nos enganar e destruir. A salvação ataca um
inimigo. "Nossa salvação é um drama apresentado com um diabo que não é
meramente o mal generalizado, mas uma inteligência perversa determinada a
impor sua supremacia."111 Ao nos ensinar a orar "Livra-nos do mal", Jesus nos
forneceu uma arma para a vida de salvação. Paulo, ao pregar, não organizou
sociedades éticas em torno do Mediterrâneo. Ele enfrentou batalhas e

111 Flannery O'Connor, Mysteries and Manners (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1979), p. 168.
desenvolveu um vocabulário extenso para designar a oposição maligna:
poderes (Rm 8:38), poderosos desta era (1 Co 2:8), tronos (Cl 1:16), domínios
(Ef 1:21). Paulo não parecia estar nem um pouco intimidado por essas forças
tenebrosas. Trabalhava sempre em posição de vitória certa, pois Jesus havia
"despojado os poderes e as autoridades, fez deles um espetáculo público,
triunfando sobre eles na cruz" (Cl 2:15). Aparentemente, não há nada a temer
na luta. O perigo está em não lutar. O lugar mais seguro é o campo de batalha,
pois é lá que Cristo age, montado no cavalo branco.
O Armagedom que João apresenta imprime essa dimensão de salvação em
nossa consciência e, com isso, convoca nossa participação em fé no
desenrolar da salvação. A maneira singular que temos para nos desviar do
objetivo pastoral dessa visão é projetá-la no futuro, como uma guerra do fim do
mundo. É uma guerra do fim do mundo, mas é o mundo da tentação, da
injustiça e do engano em nós e em nossas comunidades que está chegando ao
fim. O apóstolo usa a visão dessa grande guerra para engajar ativamente
nossa fé e participação em todos os aspectos da salvação que requerem
dedicação atenta, obediente e corajosa. Quem supõe (e muitos o fazem) que a
salvação é um certificado que nos qualifica para participar da eternidade, um
diploma que podemos emoldurar e pendurar na parede do quarto, entendeu
tudo errado. É uma batalha. No momento em que nos afastamos da mesa da
Comunhão, onde recebemos a vida de nosso Senhor, penetramos no
Armagedom, onde exercitamos a força que Ele nos concedeu. Os leitores dos
evangelhos estão acostumados a essa dimensão agressiva da salvação. Os
ataques de Jesus contra as forças malignas e enganadoras da hipocrisia são
tão frequentes quanto as refeições com amigos, pecadores e prostitutas.
A "casa do homem forte" (Mc 3:27) que Jesus invadiu e saqueou com tanta
energia — as almas dos escravos do pecado, os corpos dos oprimidos por
enfermidades — é Armagedom. Os 70 discípulos voltaram empolgados de seu
primeiro dia em Armagedom: "... Senhor, até os demônios se submetem a nós,
em teu nome." A resposta de Jesus foi um prenúncio da visão de João: "Eu vi
Satanás caindo do céu como relâmpago. Eu lhes dei autoridade para pisarem
sobre cobras e escorpiões, e sobre todo o poder do inimigo; nada lhes fará
dano. Contudo, alegrem-se, não porque os espíritos se submetem a vocês,
mas porque seus nomes estão escritos nos céus" (Lc 10:17-20). Jesus
confirmou a euforia deles, mas também a colocou em um contexto mais amplo:
a essência da salvação não era o que eles tinham feito ("espíritos se
submetem a vocês"), mas a obra que Ele estava realizando ("seus nomes
estão escritos nos céus"). O trabalho deles se subordinava ao de Jesus; para
manter esse foco afiado, eles tinham que voltar o regozijo para o que Ele
estava realizando. Somos destinatários e participantes da salvação, não
criadores nem modeladores.
O termo Armagedom surgiu quando a taça com a sexta praga foi esvaziada
(Ap 16:12-16). É a única vez que ocorre na Bíblia. Significa, em hebraico,
"montanha \Ar\ de Megido". Zacarias, em contexto paralelo, mostra a vitória de
Deus sobre todos os opositores em Biqathmeggedon, vale de Megido (Zc
12:10). Sendo montanha ou vale, Megido serviu à imaginação profética como
lugar de concentração das forças e da fé, para não haver indolência em meio à
crise. Outros autores usaram outros lugares de forma semelhante. Malcolm
Cowley escreveu sobre sua experiência na luta contra os fascistas na década
de 1920: "Houve momentos na França em que o pensamento de morrer no dia
seguinte ou, talvez, na próxima semana, apurou intensamente nossos
sentidos."112
Megido era uma grande fortaleza, plantada em local estratégico, a base da
cadeia de montanhas do Carmelo, vigiando a planície de Esdraelom e o vale
de Jezreel, os campos de batalha históricos de Israel. Em uma linha diagonal
cruzando o vale, ocupando posição estratégica equivalente, localizava-se o
monte Tabor, onde Débora e Baraque reuniram as tribos para o ataque triunfal
aos cananeus. Descendo o vale para o leste, ficava Gilboa, onde Saul teve seu
fim. Josias morreu nesse campo lutando contra os egípcios. Jeú atravessou
esse terreno em sua carruagem, em perseguição furiosa e sangrenta. Na
montanha que assoma por trás de Megido, Elias venceu o embate com os
sacerdotes malignos protegidos por Jezabel, que seduziam e levavam Israel à
infidelidade contra seu Senhor. Bem na orla das montanhas, do outro lado do
vale, ficava Nazaré, onde Jesus cresceu.
Não faz parte de minha missão explicar o paradoxo de um Deus santo
operar sua salvação por meio dessas batalhas ancestrais. Mas o fato é que
estamos diante de alguma coisa maior do que a ética. Deus trabalha com o que
está disponível, e a guerra estava — maligna, no entanto apta a ser usada para
o bom propósito do Senhor: "Até a tua ira contra os homens redundará em teu
louvor, e os sobreviventes da tua ira se refrearão" (Sl 76:10). Ninguém é mais
consciencioso do que Deus. A escritora Doris Lessing não abraça a causa
cristã, mas mesmo assim estranha ao observar que muitos têm o hábito de
desautorizar grandes porções da Bíblia porque "Jeová não pensa nem se
comporta como assistente social".113 O fato é que a salvação é uma guerra.
Moisés liderou o povo em batalha contra os amalequitas. Josué guiou seu povo
contra os filisteus. Quando Jesus veio, as palavras haviam tomado o lugar das
espadas como arma primordial, mas o fato de existir uma guerra não havia
mudado: Jesus lidera seu povo rumo à batalha contra o dragão e as duas
bestas, as forças malignas que degradam a vida e condenam a alma. A cada
dia, enfrentamos Sísera, Jezabel e Neco. A salvação retoma o território perdido
na invasão maligna e restaura o país para crer, perseverar e adorar a Deus.
Na perspectiva apocalíptica da visão do apóstolo, as proclamadas
pretensões do mal diabólico são trazidas á consciência surpresa na forma do
dragão e das bestas do mar e da terra. Contudo, no final, o mal só consegue se
expressar na feiura cômica de três rãs (Ap 16:13-14). A visão leva o mal a
sério, mas não demais. Teresa de Ávila nutria respeito saudável e percepção
viva semelhantes quanto ao mal, mas se impacientava com pessoas que se
preocupavam demais com ele: "Não dou a mínima para os demônios [...]. Não
entendo esse medo: 'O diabo! O diabo!', quando podemos dizer: 'Deus! Deus!'
e fazer com que o diabo trema [...]. Dou a eles tanta atenção quanto dou às
moscas. Penso que eles são tão covardes que perdem as forças quando
percebem que não são nem um pouco estimados." 114
Colocando Armagedom diante de nós como visão de salvação, esse pastor
impede que inadvertidamente rebaixemos a salvação a bom comportamento,
na suposição de que o objetivo é nos tornar agradáveis, instilar boas maneiras

112 Malcolm Cowley, Exiles Return (Baltimore: Penguin Books, 1976), p. 42.
113 Citado por Gore Vidal, "Paradise Regained", New York Review of Books, 20 de dezembro de 1979, p.
3.
114 St. Teresa of Avila, The Collected Works, traduzido para o inglês por Kieran Kavanaugh e Otilio
Rodriguez (ambos da Ordem dos Carmelitas Descalços) (Washington, D.C.: Institute of Carmelite Studies,
1976), 1:169-170.
a todos e fazer de nós consumidores dóceis. É difícil aceitar, mas pessoas que
lêem a Bíblia por muito tempo podem acabar com essa visão tímida da
salvação. Claro que há nas Escrituras muitas instruções éticas, mas instrução
não é ação; salvação — em Gibeão, Ela, Cedrom — é a ação, cuja
característica mais proeminente é a ferocidade incitada contra o mal.
Simplesmente não há a menor margem para se entender a salvação como um
código de honra elitista. "Estou convicto", afirma o bispo Aulen no final de seu
livro Christus Victor, "de que nenhuma forma de ensino cristão tem futuro,
exceto aquelas que mantêm firmemente a visão da realidade do mal que está
no mundo e partem para combatê-lo com um hino de guerra e triunfo." 115
Ao mesmo tempo, fica evidente que essa guerra difere de todas as outras
que já foram, ou serão, travadas por exércitos humanos. O Messias guerreiro,
montado no cavalo branco, "aprendeu a arte da guerra", como Hilário coloca
com tanta habilidade, "quando venceu o mundo." 116 Carrega apenas uma arma:
sua palavra. Guerreia com o que fala, expressão de quem Ele é. Com seu
nome escrito no manto e na coxa, Ele está bem identificado.
Paulo identificou essa guerra dentro dele mesmo: batalhamos não contra
carne e sangue, mas, sim, contra principados e potestades. "Pois, embora
vivamos como homens, não lutamos segundo os padrões humanos. As armas
com as quais lutamos não são humanas; ao contrário, são poderosas em Deus
para destruir fortalezas. Destruímos argumentos e toda pretensão que se
levanta contra o conhecimento de Deus, e levamos cativo todo pensamento,
para torná-lo obediente a Cristo" (2 Co 10:3-5). Quando a palavra-espada saiu
da boca de Jesus na sinagoga de Cafarnaum, o endemoninhado foi libertado, e
não morto (Mc 1:21-28); no cemitério gadareno, o possesso de Legião não
morreu; ele foi salvo (Mc 5:1-20). Quem acompanha Jesus pelas montanhas e
vales da salvação, não tem permissão para usar outras armas. Quando Pedro,
ansioso para combater as forças malignas que levavam Jesus rumo à cruz,
sacou a arma e, com manejo desajeitado, cortou a orelha do servo do sumo
sacerdote, Jesus mandou parar imediatamente — "Basta!" — e, com seu toque
curador, reparou o que ele havia feito." 117 Wendell Barry denuncia com muito
sarcasmo a tolice de usar armas destruidoras na guerra da salvação: "Você já
acabou de matar todos que se opunham à paz?" 118
William James realizou uma campanha em busca de um "equivalente moral
para a guerra" — alguma coisa que suscitasse em nós a mesma bravura que a
guerra, mas sem a mortandade e o desperdício. Não conseguiu nada
significativo. João tinha a mesma ideia, mas o equivalente que ele buscava era
espiritual, de modo que se aprofundou muito mais. A visão estimula ao ataque
contra a perversidade, sem usar nenhuma das armas do mal. Claro que não
impede que os outros as usem, nem é provável que venha a fazê-lo, mas
recrutou milhões de pessoas para agirem em favor da salvação. É impossível
calcular o tamanho das imensas áreas que foram recuperadas do domínio
maligno sem que uma gota de sangue sequer tenha sido derramada, exceto o
dos cristãos martirizados em sacrifício voluntário.
Uma das consequências infelizes da visão de Armagedom foi inflamar a
imaginação de ignorantes da Bíblia e os levar a fantasias desgastantes sobre o
final dos tempos, esquecendo assim o valor da obediência constante, do amor
115 Gustav Aulen, Christus Victor (Londres: SPCK, 1950), p. 176.
116 Citado em The Liturgy of the Hours (Nova York: Catholic Book Pub. Co., 1976), 2:1583.
117 Lucas 22:50-51; João 18:10-11.
118 Wendell Berry, Collected Poems (San Francisco: North Point Press, 1985), p. 121.
sacrificial e da persistência cotidiana. Isso contraria por completo o objetivo de
João, como até mesmo uma leitura superficial do texto deixa claro. Quem
ignora as imagens dos profetas e dos evangelhos, e não foi instruído na
linguagem metafórica da guerra na história da salvação, é presa fácil para as
predições envolventes de um holocausto final no monte Megido, em Israel,
baseadas em recortes de jornal que falam sobre política internacional. Jesus foi
muito claro ao afirmar que esses que fazem predições sensacionalistas de tirar
o fôlego são, eles próprios, os falsos cristos e profetas que fingem desmascarar
(Mt 24:23-26).
Mas a supressão da visão seria um preço muito alto a pagar para evitar
essa irresponsabilidade. Um antídoto mais eficiente, embora mais trabalhoso, é
permitir que a visão do apóstolo ressoe com as ações de Jesus relatadas nos
evangelhos e os ensinamentos de Paulo transmitidos nas epístolas e, depois,
confiar em que as histórias, instruções e visões realizarão seu trabalho
complementar em nossa imaginação, levando-nos à confluência de energia
tremenda do "já e do ainda não" que, segundo o professor Goppelt, é a
salvação.119
Toda a visão do apóstolo João coloca as exigências presentes da vida pela
fé em Jesus Cristo no contexto maior de tudo que acontece, o passado
penetrando o presente, o futuro vindo até o agora. O pecado introduz divisões
em nossa percepção, estabelece categorias em nosso entendimento,
especialmente entre o visível (histórico) e o invisível (escatológico). 120João
assume a correspondência dessas duas dimensões na Ceia do Senhor, e
continua a fazê-lo na guerra de Armagedom, que coloca o conflito diário com o
mal no contexto do conflito cósmico, ou vice-versa. O que separamos, o
apóstolo une. Isso resulta do trabalho pastoral bem realizado. Esse é o objetivo
de todo grande sermão. Apocalipse de João é um dos grandes momentos, em
Patmos e nas sete congregações da Ásia, em que o escatológico e o histórico
se fundem. Quantas vezes terá isso acontecido? Talvez aconteça todo dia do
Senhor.
Salvação, então, não é simplesmente alguma coisa que Deus faz: é algo
que Ele está fazendo, e não apenas por nós, mas conosco, nos envolvendo na
ação salvífica. Fazer uma refeição mostra a salvação agindo na vida comum,
fortalecendo o povo de fé. Enfrentar uma batalha mostra a salvação agindo
para derrotar a oposição e converter todos que, conscientemente ou não,
agravam a catástrofe opondo-se, evitando e denegrindo a palavra de Deus. A
visão que João teve da salvação segue o padrão de refeição e batalha
estabelecido pela paixão de Jesus. Na noite em que foi traído, Ele fez com
seus discípulos a refeição que deu início à Ceia semanal. A isso se seguiu sua
prisão, com soldados carregando tochas e espadas por todo o Getsêmani. A
refeição e a guerra são as polaridades da ação salvífica: a Ceia é o ato em que
nos reunimos em amizade e compartilhamos o que nos traz vida. A batalha é o
ato em que confrontamos o mal com mãos treinadas para a guerra, dedos para
a batalha (Sl 144), lutando "o bom combate da fé". Na refeição, há
tranquilidade e alegria. Na guerra, vigor e determinação. Aquela lida com o
119 Leonhard Goppelt, Theology of the New Testament (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publ. Co.,
1981), 2:183.
120 O professor Alan Richardson colocou assim: "Não há separação nem contradição entre o histórico e o
escatológico, porque o primeiro, tornando-se ativo no presente, não apenas um evento passado e
acabado, é a matriz e o molde do segundo. A salvação escatológica, ativa no presente, é a realização
após o fim da história daquilo que a redenção histórica prenunciou e prometeu. Passado, presente e
futuro constituem não três libertações, mas uma única." Interpreters Dictionary of the Bible, 4:173.
comum; esta, com o extraordinário. A salvação inclui ambos. Não há como
escolher um em detrimento do outro. Se queremos estar com nosso Senhor,
temos que comer sempre com Ele. E também precisamos estar prontos para, a
qualquer momento, entrar na batalha com Ele.
Dois versículos do salmo 23 poderiam ter servido de texto para a visão que
o apóstolo teve da salvação. Talvez tenham. A linguagem, as imagens, a
intensidade e as extravagâncias de Apocalipse muitas vezes encontram
correspondência em Salmos. Os dois livros dedicam a maior parte à oração e à
poesia, portanto não deveríamos nos surpreender com a ressonância das
correspondências.
Preparas um banquete para mim,
à vista dos meus inimigos.
O Senhor, como anfitrião, preside o banquete; uma guerra acabou com o
poder de todos os inimigos, que já não causam nenhum dano. O salmo 23 e
Apocalipse 19 são peças conjuntas na exposição da salvação, mostrando dois
elementos: livramento da catástrofe da sombra da morte; hospitalidade à mesa,
onde fomos aperfeiçoados pela intimidade com a bondade e a misericórdia.
Resgatados e saudáveis: salvos, tanto agora ("todos os dias da minha vida")
quanto para sempre ("na casa do Senhor para todo o sempre").
12.
A ÚLTIMA PALAVRA SOBRE O CÉU
APOCALIPSE 21:1-22:2
Por isso o meu coração se alegra e no íntimo exulto;
mesmo o meu corpo repousará tranquilo,
porque tu não me abandonarás no sepulcro,
nem permitirás que o teu santo sofra decomposição.
Tu me farás conhecer a vereda da vida,
a alegria plena da tua presença,
eterno prazer à tua direita.
SALMO 16:9-11
Vi a Cidade Santa, a nova Jerusalém, que descia dos céus, da parte de Deus, preparada como
uma noiva adornada para o seu marido. Ouvi uma forte voz que vinha do trono e dizia: "Agora
o tabernáculo de Deus está com os homens, com os quais ele viverá. Eles serão os seus
povos; o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus."
APOCALIPSE 21:2-3
Apague do léxico do ser humano a ideia do céu, e logo ele estará reduzido a um ambiente de
uma só dimensão, vivendo sem qualquer meio de apoio invisível.
PAUL MINEAR121
Mateus relata que, quando Jesus saiu da água após o batismo, o firmamento
se abriu e o Espírito, em forma de pomba, passou pela abertura e desceu
sobre Ele. Uma voz alta, também vinda do céu, acompanhou a visão: "Este é o
meu Filho amado, em quem me agrado" (Mt 3:16-17). Marcos e Lucas repetem
a história, com pequenas variações. Eles concordam que esse fato indica a
inauguração do ministério terreno de Jesus. Em Apocalipse, João usa
vocabulário idêntico para contar como viu uma porta se abrir no céu e ouviu
uma voz (4:1).
Quando os céus se abrem, conseguimos ver e ouvir o que não víamos nem
ouvíamos antes: o governo de Deus, suas palavras em nossa língua. Os
autores dos evangelhos contam que isso aconteceu quando Jesus iniciou seu
ministério. A visão de João em Patmos faz paralelo com a revelação palestina:
as narrativas evangélicas e as visões apocalípticas têm o mesmo tema —
Jesus — e usam a palavra céu da mesma forma. Céu, nos dois lugares (e por
toda a Bíblia), é uma metáfora que mostra que existem muito mais coisas do
que nosso olho consegue enxergar. Além e através do que vemos, existe o que
não conseguimos ver, que está, surpreendentemente, não "lá longe", mas bem
aqui à nossa frente e entre nós: Deus — seu governo, amor, julgamento, sua
salvação, misericórdia, graça, cura, sabedoria.
Chamar o céu de metáfora não implica que ele seja menos real; é apenas o
reconhecimento de que essa realidade está inacessível aos nossos sentidos no
momento presente. N. hebraico e no grego, como em português, há apenas
uma palavra para designar "céu". Em inglês, há duas palavras para isso.
Shamayim (hebraico) e ouranos (grego) significam tanto o espaço visível acima
de nós quanto a esfera invisível de Deus nos invadindo. O que determina seu
sentido é o contexto. Mas, qualquer que seja o sentido, o outro sussurra por
trás, fazendo sentir sua presença. A língua inglesa, usando "sky" para o visível
e "heaven" para o invisível, elimina os sussurros. A clareza aumenta, mas a
compreensão diminui. A ambiguidade acaba, mas leva com ela as linhas de
irradiação da metáfora que espalha luz em várias direções ao mesmo tempo. O
"céu" bíblico (shamayim/ouranos), respondendo pelo que se vê e também pelo
121 Paul Minear, I Saw a New Earth (Washington, D.C.: Corpus Books, 1968), p. 14.
que não se vê, mantém a imaginação funcionando para estabelecer conexões
entre o que vemos e o que está oculto, ambos igualmente reais, cada um
fazendo lembrar do outro.
A última visão de João é o céu. Não apresenta o fim, como seria de esperar,
e sim um novo começo: "Então vi novos céus e nova terra..." (Ap 21:1). A
história bíblica iniciou, logicamente, com um começo. Agora chega ao fim,
contrariando a lógica, com outro começo. A criação de Gênesis, arruinada pelo
pecado, é restaurada na criação de Apocalipse, renovada pelo sacrifício. O
produto do ato inicial e do ato final da criação é o mesmo: "os céus e a terra"
em Gênesis, e "novos céus e nova terra" em Apocalipse. A história tem a
criação como a palavra inicial e também a final: "o fim é o lugar onde
começamos".122
"Os céus e a terra" envolvem tudo. Céus — a grande abóbada de luzes
acima e além de nós, o teatro estonteante em que assistimos a coreografia
bem sintonizada das constelações e a bela fúria selvagem das tempestades.
Conhecemos esse céu pelos sentidos — vemos as estrelas e ouvimos os
trovões — mas somos incapazes de manuseá-lo, alterá-lo ou controlá-lo.
"Terra" envolve, literalmente, tudo que se encontra abaixo de nós e à nossa
volta, aquilo com que temos contato e conseguimos manusear, alterar e, até
certo ponto, controlar. É o solo firme sob nossos pés, as flores que colhemos,
os campos que aramos, plantamos e ceifamos. A extensão física vai além do
que conseguimos captar com os cinco sentidos. Mesmo com a ajuda de
aparelhos que aumentam muito o alcance de nossas percepções sensoriais —
telescópio, microscópio, radar, sonar, rádio, televisão e sondas espaciais
controladas por instrumentos —, ainda não chegamos nem perto de uma
catalogação completa da aparentemente infinita quantidade de combinações
de elétrons e prótons que se estendem das estrelas da constelação de Órion
aos pontos mais remotos de nosso planeta. As duas palavras juntas, céus e
terra, nos ligam a uma criação material que, até o ponto que nossos sentidos
mostram, jamais acaba.
Estamos mergulhados na materialidade, do começo ao fim. Entramos nela
em Gênesis e voltamos a ela em Apocalipse. Entre esses dois extremos, nada
escapa à geologia, história, geografia, meteorologia, encarnação e todos os
sinais materiais do sagrado. A matéria envolve nossa existência. Nada é
apresentado no evangelho à parte do físico, tampouco nada do que ele contém
pode ser entendido e recebido fora da esfera física. Isso não quer dizer que só
existe matéria, pois afirmar isso seria negar a maior parte das alegações da
vida pela fé. Contudo, significa que não se pode vivenciar nada fora da matéria.
Os grandes invisíveis, Deus e a alma, só podem ser entendidos junto com os
grandes visíveis, céus e terra.
Só se compreende o que não se vê por meio do que é visto. O evangelho
se coloca contra toda forma de gnosticismo. Ele não começa com a matéria
para depois ir passo a passo se aperfeiçoando para chegar ao refinamento do
espírito. A revelação de Deus não começa com um universo material, Jesus de
carne e sangue, para depois, com muito esforço, vencer etapas e conseguir
alcançar o éter, anjos e ideias.
Céus e terra são polaridades: designam os polos de uma realidade material,
nenhum existe sem o outro (como o Norte e o Sul) e, juntos, envolvem toda

122 T. S. Eliot, "Little Gidding", The Complete Poems and Plays 1909-1950 (Nova York: Harcourt, Brace &
Co., 1958), p. 144.
matéria que existe entre eles. Céus e terra, ou seja, materialidade, são o
contexto inclusivo em que existimos. Não acabam com a ressurreição. Os
autores dos evangelhos insistiram nessa continuidade testemunhando sobre o
corpo de Jesus, e os que elaboraram o credo na expressão "ressurgiu dos
mortos". Não adianta tentar escapar por alguma porta lateral ou abertura
secreta. Não somos anjos.
Um grande perigo nesta vida é reduzir tudo a matéria e eliminar o espírito.
Perigo igualmente sério, que afeta em especial as pessoas que vivem pela fé,
reside em menosprezar a matéria e passar a sonhar com um mundo imaterial
de ideias e fantasias. Quem deseja se manter atento à ação de Deus, precisa
conservar olhos e ouvidos abertos no local em que Ele age. A criação, céus e
terra, é o lugar de trabalho de Deus. Há uma necessidade especial em insistir
nisso quando abandonamos "terra" e passamos a pensar apenas em "céus". A
natureza não regenerada sabe como fugir das amarras da esfera física para se
lançar, como um cão desobediente, em todo tipo de atração espiritual. Mas
espiritualidades desmaterializadas são espaços vazios. Um dos fatos mais
assombrosos deste mundo é a frequência com que a visão que João teve do
céu recebe elementos imaginários e se transforma em fantasia antibíblica.
O apóstolo João, como seus colegas bíblicos, mistura livremente o céu
literal com o metafórico (a esfera divina). Mas, quando ele coloca a visão final
diante de nós, os significados se interpenetram como jamais poderíamos
imaginar. João pastoreava um povo de oração que estava envolvido na árdua
tarefa de discernir a ação de Deus no comércio fraudulento e sedutor de suas
cidades, extraindo a palavra de Deus do meio de blasfêmias políticas e
religiosas que feriam seus ouvidos todos os dias. A visão do céu atende ao
primeiro conjunto de petições da Oração do Senhor: o nome de Deus
santificado, seu reino vindo, sua vontade obedecida "assim na terra como nos
céus". O céu não está distante no tempo nem no espaço; está muito próximo.
Não é o que esperamos depois do arrebatamento, nem o lugar para onde
iremos depois da morte, mas é aquilo que existe, que quase pode ser
alcançado por nossos sentidos, e que a visão de João traz até seu povo.
Agora, podemos olhar para os eventos que nos cercam não como um pântano
desesperador de engano pagão e miséria humana. Vemos as dores do parto
de uma nova criação e ouvimos o chamado para participar da obra de Deus na
recriação.
A visão do céu é uma afirmação da correspondência: aquilo que
começamos a experimentar corresponde ao que um dia experimentaremos por
completo.123 Ela não promete nada diferente do que já recebemos pela fé.
Entretanto, promete mais, ou seja, promete completar o que começou. Em seu
estilo caracteristicamente prático, Teresa de Ávila afirmou, no comentário sobre
Cantares, que "a recompensa começa nesta vida". 124 Há continuidades
intrincadas e profundas entre terra e céu, entre o visível e o invisível. Assim
123 "A concepção bíblica do céu [...] repousa no princípio que talvez se resuma em uma palavra:
'correspondência'. A sabedoria do Antigo Oriente Próximo adotava a crença de que neste mundo decaído
os homens experimentam a vida de acordo com as leis
124eternas da criação. A terra corresponde ao céu, mas também difere dele. Correspondência inclui tanto
analogias quanto diferenças. A revelação cristã não viola esse princípio; ela o ajusta à figura central do
Deus-homem. Assim, a ordem cristã alega ser a ordem de todo o mundo, tanto como origem quanto como
fim de toda existência. Pode ser, e é, ultrajada e contestada na desordem do mundo decaído do qual faz
parte o homem pecador. Mas até mesmo essa ordem fugaz extrai sua realidade (passado, presente e
futuro) da ordem cósmica de Deus" (Ulrich Simon, Heaven in the Christian Tradition [Nova York: Harper &
Bros., 1958], p. XII).
St. Teresa of Avila, Collected Works, 2:246.
como as ações na terra fluem para o céu, também as do céu descem para a
terra. Um é tão real quanto o outro.
É importante interpretar isso de forma convincente, para não nos
contentarmos com pouco. Ou seja, explicar o céu em termos da terra, em vez
de entender a terra em termos dos céus. Se interpretarmos na direção errada,
viveremos na mediocridade, sem perceber glórias que estão próximas de nós,
ou em sonhos inúteis à vida que levamos. Céu é mais do que um refúgio para
escaparmos das confusões e dificuldades da terra. Não é fantasia. Temos
acesso ao céu agora. O céu é a invisibilidade na qual estamos imersos, que se
transforma passo a passo em visibilidade até que um dia ficará completamente
visível. Como o poeta Robert Browning colocou: "A terra está repleta do céu."
Ao obedecer à ordem "Escreva, pois estas palavras são verdadeiras e
dignas de confiança" (Ap 21:5), João reescreveu Gênesis, Isaías, Ezequiel e
Jesus. Confirmou as promessas e percepções entrelaçadas no correr dos
séculos que mostram que a ação e a presença de Deus, toda a esfera de seu
governo, penetram em nosso mundo e em nossa vida.
O céu certamente é mais do que isso. Muito mais. Contudo, ele completa o
que existe, não foge da realidade. É a plenitude do que hoje vemos em parte, e
não a rejeição de tudo. A visão do céu, portanto, é completamente prática —
mantém-nos convictos da realidade de todos os atos e palavras em cujo bom
senso a era em que vivemos não confia. O céu não é uma passagem brilhante
anexada ao final de Apocalipse como floreio retórico, mas, sim, uma imersão
na realidade do governo de Deus em nossa vida, que tem o efeito de reavivar a
obediência, fortalecer para a jornada e conferir ousadia para o testemunho.
Com a utilização dos elementos do presente — lugares, pessoas, visões e
sons as porções invisíveis e visíveis de nossa vida se unem de uma maneira
original. O céu afirma e confirma as belezas e a santidade da criação visível —
árvore, rocha, Jesus, Comunhão. Elas não são ilusões enganosas que nos
levam a pensar como os cínicos que as práticas de amor, esperança e fé são
ingênuas, inúteis e tolas, mas realidades que estão em estrita correspondência
com o que já começou em nós e um dia estará completado.
A surpresa na apresentação do céu em Apocalipse é ele vir em forma de
cidade: "Vi a Cidade Santa, a nova Jerusalém, que descia dos céus, da parte
de Deus, preparada como uma noiva adornada para o seu marido" (Ap 21:2).
Não deveria, todavia, ser tão surpreendente, pois Isaías teve visão semelhante
(Is 65:17-66:24). Contudo, a visão do profeta, menos intensa, não chama tanto
a atenção. Não há mente que divague enquanto João elabora sua visão do
céu.
Outras religiões descrevem o céu como a volta à natureza — um paraíso
formal, como um jardim, ou uma região desabitada e intacta como a Arcádia.
Isso parece ter sentido quando buscamos renovação e restauração de mente e
espírito. Quando queremos recuperar a intimidade na família e no casamento,
costumamos deixar a cidade e ir para o campo, para o interior — alguma
variação do Éden, do paraíso ou da Arcádia, que chamamos de "céu na terra".
E parece haver base bíblica para isso. Como resultado do pecado, fomos
expulsos de um jardim. Em consequência, a salvação deveria nos levar de
volta a ele.
Os jardins em geral são tranquilos. Passeamos, contemplamos a paisagem,
sentimos o perfume das rosas e mantemos comunhão com Deus no frescor da
tarde. O jardim representa a vida abençoada e controlada por Deus. Em
Gênesis, o paraíso é um jardim. Em Cantares, o amor também é.
Mas as cidades estão repletas de pessoas barulhentas, voltadas para si
mesmas, que se esquecem de Deus ou o desafiam, que espancam os outros e
abusam deles. A primeira cidade, Enoque, foi construída pelo primeiro
assassino, Caim, e destruída no dilúvio. A segunda, Babel, resultou da tentativa
arrogante de invadir o céu e foi abandonada em uma confusão de línguas
incoerentes. Na visão do julgamento, uma cidade foi destruída: "Caiu! Caiu a
grande Babilônia!" (Ap 18:2).
Por certo, o céu deveria nos afastar de tudo isso. Já não existem cidades
suficientes na terra? Será que não merecemos aquilo pelo que ansiamos?
Muitos querem ir para o céu como pensam em ir para o litoral — lugar com
clima agradável e pessoas decentes. Mas na Bíblia é diferente. O céu não é
um lugar afastado das tensões da vida dura na cidade. É a invasão da cidade
pela Cidade. Não entramos no céu para fugir do que não gostamos, mas pela
santificação do lugar em que Deus nos colocou.
Não há nem um traço de escapismo na visão do céu de João. Não estamos
diante de um longo (eterno) fim de semana longe das responsabilidades de
trabalho e cidadania. Presenciamos a intensificação e a cura deles. O céu se
forma a partir de ruas sujas, alamedas perigosas, quartos de adultério, tribunais
corruptos, sinagogas hipócritas, igrejas mercantilistas, cobradores de impostos
desonestos e discípulos traidores: cidade, mas não a cidade santa.
A visão apresenta uma cidade específica — Jerusalém — de ruas
apertadas, muito antiga, destituída de esplendor. É verdade que ela presenciou
grandes momentos de adoração, pregação, construção do templo, revelação.
Mas as histórias bíblicas aniquilam qualquer possibilidade de idealização: Davi
desonrou com adultério e assassinato a cidade que tomou dos jebuseus. Ela se
tornou infame pelos sacrifícios de crianças e a bruxaria ilegal. Zombou da
integridade de Jeremias e se fez surda à pregação poderosa de Isaías. Foi
destruída duas vezes em julgamento: primeiro pelos exércitos de Babilônia
conduzidos por Deus e depois pelos soldados romanos comandados por Tito,
segundo a profecia de Cristo. Entre essas duas destruições, foi precariamente
reconstruída por Neemias. Chegando à cidade, Jesus chorou: "Se você
compreendesse neste dia, sim, você também, o que traz a paz! Mas agora isso
está oculto aos seus olhos" (Lc 19:41). E também lamentou: "Jerusalém,
Jerusalém, você, que mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados!
Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus
pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram. Eis que a casa de
vocês ficará deserta" (Mt 23:37-38). Essa parece ser a cidade mais improvável
para modelo de céu. No entanto, o é.
A visão em forma de cidade que o Espírito concedeu a João para ser
transmitida às congregações urbanas só pode ter um significado: o céu é
esculpido no mármore e granito de nossa teimosia, de nossa auto-afirmação —
todas as nossas cidades que odeiam os irmãos (Enoque), desafiam a Deus
(Babel) e rejeitam a Cristo (Jerusalém). Claro que nenhuma cidade está
tomada apenas pelo mal; há sempre bondade, beleza e verdade mesmo na
pior delas. Além disso, todas as cidades são, a longo prazo, uma tentativa
evidentemente fracassada de viver em paz, justiça e alegria. A vida nelas
propicia ganhar dinheiro, adquirir poder e praticar o engano. Agora, descendo
do céu, vemos uma cidade que é comunidade de adoração pronta para receber
o amor de Deus em fidelidade, uma noiva enfeitada para seu marido! O céu é
uma cidade santa que vive em harmonia com Deus; uma noiva virgem,
estimulada pela intimidade com Ele; e tanto a cidade quanto a noiva somos
nós.
Doze pedras formam o fundamento da cidade, que tem 12 portões. Em
cada um está escrito o nome de uma das 12 tribos de Israel e, nas pedras, os
nomes dos apóstolos. Com isso, João desenvolve ainda mais a sensação de
correspondência: nossos ancestrais falhos e infiéis formam o acesso e o
fundamento do céu. Em outras palavras, agora nossa participação e esperança
no céu é poupada de lágrimas pela dura vida de fé nas cidades de Tiatira,
Pérgamo e Éfeso; São Paulo, Rio de Janeiro e Recife.
Ninguém espera que as 12 tribos formem os portões do céu. Suponho que
apenas aqueles que ignoram a história idealizem os nomes e os usem como
representações simbólicas de ancestrais santos. Mas sabemos que as
comunidades cristãs primitivas conheciam o assunto. Liam com avidez as
Escrituras, a tradução grega do original hebraico. A maravilha na história dos
12 filhos de Israel não reside em santidade e heroísmo. Espantoso foi Deus ter
decidido usar vidas humanas tão obstinadas e destituídas de atrativos para
formar a base da grande obra de salvação que completou em Jesus. O pai dos
12, Jacó, depois Israel, tinha poucas qualidades a recomendá-lo, e sua
semente não melhorou em seus filhos. Encontramos histórias de brutalidade,
fraude, violência, abuso sexual e covardia. Contudo, nessas vidas e através
delas, Deus persistentemente trouxe salvação a miseráveis que não mereciam
ser salvos e revelou, assim, sua glória.
A história conhecida dos 12 apóstolos não é tão extensa quanto a das
tribos, mas o que sabemos não traz mais orgulho para encorajar nossa
genealogia espiritual. Também eles formavam um grupo desigual de pessoas
comuns, esperançosas e medrosas, generosas e individualistas, corajosas e
inconstantes. Notável foi Jesus passar a vida na companhia deles, com
paciência e persistência, ensinando, treinando, perdoando, censurando,
viajando com eles, amando-os até morrer. Só temos informações de três
(Pedro, Tiago e João). De quatro, sabemos um ou dois fatos (André, Filipe,
Tomé e Mateus). Não sabemos nada dos outros cinco: Tiago filho de Alfeu,
Bartolomeu, Tadeu, Simão, o zelote, e Matias, que assumiu o lugar de Judas
Iscariotes. Na última década do primeiro século, quando os cristãos da Ásia
deixavam seus lares, tomavam a cruz e seguiam seu Senhor, metade dos
apóstolos havia adquirido certo esplendor, mas a outra mergulhara em total
obscuridade. Todos os 12 fizeram parte do fundamento da cidade.
Aparentemente, não podemos pensar no céu como nas histórias de
conquistas, com grandes heróis recebendo troféus, carregados em honra
celestial em turbilhão lendário de tirar o fôlego. Se o céu for para pessoas
assim, terá pouco a ver comigo. Mas nada na vida de fé ou na visão aponta
para isso. Simeão e Rúben (até eles?) são material para a construção do céu,
como Bartolomeu e Tadeu (quem?). Sendo assim, não há nada tão maligno em
minha falta de fé e nada tão obscuro em minha vida que não seja, agora
mesmo, transformado em pedra para o fundamento ou para os portões de
entrada do céu.
Quando João viu os nomes das 12 tribos escritos nos portões de pérola e
dos 12 apóstolos nas pedras, soube, e nos faz saber, que tudo na história é
remediável. Martin Heidegger elaborou esse entendimento pela metafísica: o
passado deve ser tomado e revelado como ele foi. Ele se torna importante para
o futuro e, no momento de visão e decisão, se integra nele.125 Nós vimos de
todas as direções nas bases do acesso israelita. Em qualquer lugar secundário
que vivamos, estamos sobre o fundamento apostólico. Tudo que foi ousado em
Israel e na Igreja se completa diante de nossos olhos. O céu é um sistema
intrincado de conclusões.
As características visuais admiráveis do céu são a simetria, a luz e a
fertilidade. As proporções são perfeitas, ele é repleto de luz e produz vida. A
simetria aponta para a santidade completa. Estamos sendo moldados em
santidade, que é a inteireza de proporções perfeitas. O apóstolo apresenta o
céu geometricamente como um cubo — o santo dos santos planejado para o
templo de Salomão (1 Rs 6:20) amplificado de forma extravagante (Ap 21.16).
Talvez essas medidas não surpreendam pessoas acostumadas a cálculos
astronômicos com anos-luz e à contagem de tempo dos geólogos, mas
impedirão por certo que nossa imaginação confine a santidade a uma caixa
guardada na Igreja ou no firmamento.
O efeito que tal descrição pretende causar na imaginação, contudo, não é
chocar com dimensões descomunais, mas nos levar a sentir a enorme
perfeição, a imensa santidade que reduz à insignificância toda abominação e
blasfêmia à nossa volta. Tudo está em proporção com todo o resto. Não há
nada esquisito. Equilíbrio, harmonia e proporção prevalecem. Tudo se encaixa.
Nada está fora de lugar. É famoso o dito espirituoso de Galileu, sobre a
intenção do Espírito Santo. Ele afirmou que o Espírito não pretende mostrar
como vai o céu, quer mostrar como se vai ao céu. 126 Aqui, o "como" é a
santidade.
Em seu livro A Cidade na História, Lewis Mumford mostra a cidade como
extensão da pele, com a mesma função de manter unido tudo que deve
permanecer unido.127 A construção dos muros de uma cidade cria consciência
de grupo e troca de relações. As duas cidades simbólicas em Apocalipse,
Babilônia e Jerusalém, mostram isso. A primeira com a autoconsciência e inter-
relação do mal. Quando o mal atinge sua mais elevada densidade, forma a
cidade-prostituta. Babilônia concentra o mal e é destruída. De forma
semelhante, quando a percepção de Deus e a relação de amor alcançam sua
mais alta densidade, uma cidade-noiva é formada. Essa cidade é a
concentração de pessoas que adoram em espírito e em verdade. Nossa forma
de viver (espírito) é proporcional ao Deus de nossa vida (verdade). Mas nossa
adoração do domingo, fé da terça-feira e amor da quinta-feira não continuam
simétricos por muito tempo: as trajetórias se chocam e se partem, as
proporções se alteram. Na quarta-feira, um portão bate, livre em suas
dobradiças, e, na sexta-feira, vemos que uma das pedras da fundação sofreu
sérios danos. O que fazer então? Abandonar a visão e conformar-se com a
vida em Babilônia? Não será melhor declarar a visão de Jerusalém e, em
adoração, oração e obediência, permitir que a simetria deixe sua marca em
nós, que a santidade estabeleça sua proporção em nossos dias assimétricos?
A simetria na arquitetura dos santuários e a sincronia das liturgias são mais
do que arranjos estranhos e artificiais com os quais detemos temporariamente
o caos. São representações da cidade santa para a qual estamos sendo
edificados, da qual a Bíblia fala:"... temos da parte de Deus um edifício, uma
casa eterna nos céus, não construída por mãos humanas" (2 Co 5:1).
125 John MacQuarrie, Martin Heidegger (Nova York: Viking Press, 1978), p. 38.
126 Stillman Drake, Discoveries and Opinions of Galileo (Garden City, NY: Anchor Books, 1957), p. 186.
127 Lewis Mumford, A Cidade na História (São Paulo: Martins Fontes, 1991, 3.a edição).
A segunda característica visual do céu é ser repleto de luz: "... não
precisarão de luz de candeia, nem da luz do sol, pois o Senhor Deus os
iluminará" (Ap 22:5). A luz é a experiência visual fundamental, aquilo que
possibilita enxergar todas as coisas. O primeiro ato da criação foi o surgimento
da luz. A primeira visão de Apocalipse mostra Jesus como luz do mundo, no
meio de um mar também de luz. Assim, a última criação mostra o céu repleto
de luz, inundado com seu brilho.
Os cristãos crêem que a luz que vemos e seguimos em Cristo vence as
trevas. Acreditamos que a glória (doxa) da ressurreição de Jesus (Jo 13:31)
derrota a noite (nux) em que Judas mergulhou ao traí-lo (13:30). A visão
celestial de João confirma isso: "... a glória (doxa) de Deus a ilumina [...]. Não
haverá mais noite (nux)" (Ap 21:23; 22:5). A cidade se firma sobre 12 pedras
preciosas, que fazem mais do que apenas confirmar a presença da luz:
demonstram sua plenitude. A luz é a união das cores, e as pedras as expõem,
uma a uma, para ênfase e louvor.
Muitas vezes, atravessamos o "vale da sombra da morte" e não vemos luz.
Em outras ocasiões, o pecado tolda nossos olhos, e não discernimos as cores.
Vivemos em época sombria da história, forçados a mergulhar nas noites
escuras da alma. O que fazer? O que João tem a nos dizer sobre isso?
Perseverança é requerida. Simplicidade tem de ser cultivada. Contudo, "o
maior problema não é como prosseguir, mas como elevar nossa existência. O
clamor pela vida após a morte é irrealista se não há um anseio por vida eterna
antes de nossa descida à cova. Eternidade não é futuro perpétuo; é perpétua
presença. Ele plantou em nós a semente da vida eterna. O mundo por vir não é
apenas futuro; mas o que há de ser, e será, presente, aqui e agora". 128 Nada
pode ser mais nocivo ao amadurecimento da fé do que a redução da
perseverança a determinação austera, triste e estoica. João apresenta a visão
do céu porque, se não a tivéssemos, é quase certo que nos contentaríamos
com uma existência monocromática — pessoas benévolas, mas sem cor, que
vêem tudo em termos de preto e branco; vidas monótonas, escravas do rigor
moral.
No entanto, a vida na graça e no amor de Cristo é magnífica. Há excesso
de realidade por trás de tudo que experimentamos. Não apenas existe luz, mas
ela se refrata em 12 cores. A extravagância jorra do céu em fulgor
caleidoscópico e ilumina os passos de nossa peregrinação.
Pedras preciosas são preciosas não por causa do seu custo, mas devido à
sua capacidade de exibir o espectro da luz. A luz chega até nós em uma fusão
das cores. Ela atinge os objetos, que absorvem algumas cores e devolvem
(refletem) outras para nós. Quando nos chega à retina, após incidir sobre
peles, cascas ou flores, já perdeu um pouco de seu brilho original. Mas
determinadas pedras fazem exatamente o oposto: selecionam cores
específicas na luz e as apresentam a nossos olhos com pureza intensa e
ardente. Alguns artistas fazem coisa semelhante com a pintura. Levam-nos a
perceber o amarelo como nunca antes (van Gogh) ou a experimentar o azul
que havia sido diluído por cores que competiam com ele e formas que
distraíam nossa atenção (Mondrian). As 12 pedras fazem isso: separam as
cores da luz e as mostram em sua pureza. A luz do céu não se parece com a
claridade tênue de uma lâmpada de 40 watts pendurada no teto à noite. A luz
celestial consiste em cores, revela matizes e texturas de tudo que existe na
128 Abraham Joshua Heschel, Man Is Not Alone (Nova York: Farrar, Straus, & Giroux, 1976), p. 295.
criação. Nela, vemos mais do que os objetos; percebemos a beleza
estonteante e luminosa que há neles. Na escuridão, nada é visível, "todos os
gatos são pardos", mas na luz somos cercados e banhados em uma
exuberante cascata de cores.
Em seu romance Castle Warlock (O Bruxo do Castelo), George MacDonald
fala de um tesouro composto de pedras preciosas que se espalharam
formando desenhos no chão por causa da luz do sol. A descrição dele serve
como comentário da cidade do apóstolo João:
Começou a cair no monte [de luz] uma pequena cascata de fragmentos de arco-íris,
lampejando todas as cores visíveis ao olho humano — e mais. A corrente que deles fluía [...]
uma tempestade silenciosa e imóvel de matizes conflitantes e ao mesmo tempo completamente
harmoniosos, com jorro espumante de raios pontudos e manchas que ardiam nos olhos com as
cores vibrantes [...] Lá pulsava o brilho místico do coração vermelho, senhor das cores; o
jubiloso amarelo-claro se coroava em ouro etéreo; o curioso azul-celeste — a verdade
insondável; o verde que persegue o cérebro — reservatório dos segredos infinitos da natureza
[...]. Todas as gemas estavam lá — safiras, esmeraldas e rubis; mas mal seriam notadas na
gloriosa massa de cores recém-nascidas e logo mortas que jorravam das fontes dos diamantes
que engolem a luz.129
Temos percepção especial da invasão das sombras terrestres pela luz celestial
em atos de adoração, quando as várias luzes da revelação iluminam
inesperadamente os cantos sombrios do mundo e do coração. Isso é
adequado, pois João extraiu as 12 pedras preciosas da descrição do peitoral
de Arão, da indumentária que o sumo sacerdote vestia quando representava o
povo diante de Deus e Deus diante do povo, na adoração (Êx 18:17-20). As
cores deslumbrantes não se restringem ao céu. A "pequena cascata de
fragmentos de arco-íris" se derrama todos os dias nos atos de louvor e
obediência motivados pelo céu. "E a esperança que a visão do céu ilumine
toda nossa peregrinação" é uma experiência muitas vezes confirmada. 130 Essas
cores enfatizadas pelas pedras exercem influência substancial sobre a terra.
Cada ato de persistência de fé e amor sacrificial, com muita frequência iniciado
na escuridão, permanecendo nela por muito tempo, em algum momento irá
brilhar com as cores de sua plenitude final.
A terceira característica visual do céu é a fertilidade. Há abundância de vida:
"Então o anjo me mostrou o rio da água da vida [...]. De cada lado do rio estava
a árvore da vida, que frutifica doze vezes por ano, uma por mês" (Ap 22:1-2). O
rio e o pomar nos guiam às condições que nutrem nossa humanidade para a
fertilidade. Eles apresentam riqueza de água e alimento, nossas duas
necessidades básicas. O céu apresenta as condições suficientes para nossa
criação, condições sob as quais nós obtemos o que necessitamos para ser
quem devemos ser. Nossas necessidades básicas são inumeráveis — muito
mais extensas do que pensamos, pois mal começamos a entender o que
significa ser humano, como eram Adão e Eva, como foi nosso Senhor. Ninguém
jamais colocou os olhos em uma pessoa totalmente humana. Alguns dos
santos apresentam traços. Como poderemos viver mais profundamente nossa
humanidade criada e redimida? Como adquirir os nutrientes que conferem
energia diante das exaustivas dores do parto e do crescimento (Rm 8:22) que
nos levam a parecer mais com o Senhor? Será útil aprender técnicas de
meditação? Seguir o último guru? Colecionar arte? Combater os terroristas?

129 George MacDonald, citado em Greville MacDonald, George MacDonald and His Wife (Londres:
George Allen & Unwin, 1924), p. 543.
130James Quinn, S.J. (Sociedade de Jesus), The Liturgy of the Hours (Nova York: Catholic Book Publ.
Co., 1976), 2:1525.
Tirar férias na China? Escalar o Kilimanjaro? Aprender acupuntura? Falar em
línguas? Praticar ioga?
A imaginação corrompida pelo pecado entende tudo ao contrário. Nós
tentamos melhorar a vida através de meios que, de fato, a empobrece. Em
capítulos anteriores de Apocalipse, João apresentou a visão da fome. O
cavaleiro montado no cavalo preto escarnecia, anunciando preços exorbitantes
para o pão, enquanto os itens de luxo, azeite e vinho, sobravam. O mal faz
isso. Priva-nos do que precisamos para viver e nos farta com o que não é
essencial, mascarando nossa necessidade. Terrivelmente anêmicas por causa
da subnutrição e fracas pela desidratação, as pessoas untam a pele com
unguentos caros e abarrotam a adega com vinhos de boa safra. E afirmam que
isso é progresso. A sociedade fica cada vez mais rica — e cada vez mais
enferma. O povo desumanizado compensa sua falta de vitalidade com uma
camada de cosmético (azeite) e iguarias caras (vinho). Pessoas que vivem
segundo a Bíblia não podem olhar o azeite e o vinho em desprezo puritano ou
fervor ascético, pois a história de Jesus só pode ser contada com precisão com
a afirmação desses dois elementos. 131 Contudo, as imagens esclarecedoras do
céu impedem que óleo e vinho sejam tomados erroneamente como alimentos.
Os elementos necessários à nossa vitalidade são frutas e água. Essas imagens
nos restauram às condições que nutrem com tranquilidade nossa natureza
criada por Deus, e nos afastam da promoção doentia do fingimento estimulado
pelo pecado.
Depois que nossas necessidades básicas são atendidas, Deus não nos dá
aquilo de que não precisamos; Ele nos dá mais do mesmo que nos deu, pois a
vida é tão profunda que jamais chegamos ao fim, e nunca deixamos de
precisar de suprimentos de energia para o trabalho árduo de nos tornarmos
plenamente nós mesmos.
O corpo e a alma humanos são criações divinas, que Deus declarou bons.
Assim, não se pode aperfeiçoá-los. O "bom" de Deus não pode passar a
"melhor". Heidegger sempre insistiu em que é uma falácia acreditar que a vida
começa errada, fraca e desamparada. A verdade é o oposto. O mais forte e
mais poderoso está no início. O que vem de pois não é desenvolvimento, mas
simplificação que resulta do desperdício. 132 É incapacidade de manter o que
existia no começo. Esse começo é mutilado e, depois, caricaturado de
grandeza pela multiplicação de números e aumento de tamanho, como os
romanos, tropeçando em seus predecessores gregos — incapazes de fazer
coisas bonitas, eles as faziam grandes.
O céu reafirma o início. Esclarece as condições de nossa humanidade
básica e nos coloca em contato com as fontes abundantes e criativas de força
e saúde — a água e a árvore da vida. Jamais sabemos o bastante sobre a vida
e aquilo que a mantém. E há abundância também dos elementos básicos —
água e frutas. Nossa vida flui em um rio. Também amadurece e se transforma
em fruto.
Com isso, a visão do apóstolo João fornece imagens das condições que
apoiam e promovem o crescimento vigoroso em Cristo e o amadurecimento
constante no discipulado. Já somos, em Cristo, "nova criação" (2 Co 5:17) e em
nossa vida presente "segundo a sua imagem estamos sendo transformados
com glória cada vez maior" (2 Co 3:18). Assim, em certo sentido, estamos "no

131 João 2:11; Marcos 14:3-9.


132 MacQuarrie, Heidegger, p. 39-40.
céu" — sendo parte e participante da nova criação, a cidade santa na qual
Deus governa e onde tudo acontece segundo sua vontade. Entretanto, não se
pode dizer que as condições nas cidades em que vivemos sejam propícias à
glória. A maioria das cartas e revistas que recebemos pelo correio transmitem
imagens que nos saturam com ilusão e engano. Precisamos de um meio para
discernir a glória. As imagens do céu são heurísticas: um caminho para
descobrir o real no meio da ilusão, para identificar a fraude e afastá-la da
revelação.
Pode-se identificar isso com certa precisão reparando nas várias
correspondências entre as mensagens de João às congregações e as imagens
da cidade celestial. Paul Minear deu atenção especial a essas
correspondências, traçando linhas entre as necessidades dos cristãos das
congregações (Ap 2 e 3) e as imagens fornecidas a eles na cidade celestial (Ap
21 e 22).133 Em outras palavras, o céu é funcional. Por meio dessa visão, vimos
a saber que o céu não é algo que esperamos passivamente, mas que (entre
outras coisas) o céu está na atividade que fornece as imagens que nos trazem
compreensão a respeito das condições propícias ao nosso desenvolvimento
sadio como criaturas em Cristo.
As condições principais, como temos visto, são: a santidade, que não é
restrita nem distorcida, mas abrangente; a iluminação que pela exibição de
imagens extravagantemente belas vai além da demonstração mínima do que é
verdadeiro; e o alimento saudável para nossa vida em lugar de adornos
frívolos. As dimensões da cidade fazem nossa vida ampla em santidade (pois
santidade é amplitude). As luzes da cidade fazem nossas vidas belas (pois a
verdade é magnífica). O alimento da cidade faz nossas vidas fortes e
saudáveis (pois a vida é abundante). As visões rejeitam implicitamente as
versões de santidade limitada e distorcida, de verdade insípida e monótona, de
crescimento decorativo e estéril.
Será a visão capaz de nos convencer? Uma crítica frequente à visão
celestial de João afirma que nela o céu não é muito interessante. 134 Se
comprovada, essa crítica será fatal, pois caso o céu não corresponda à
satisfação do que é profundamente real e entusiástico em nós, será por certo
falso. Terá o apóstolo nos enganado? Para rebater essas críticas, apontamos
os rios e árvores de Gênesis; as pedras do peitoral em Êxodo; o céu, a terra e
a cidade em Isaías; a vara para medir em Ezequiel; a crucificação e a
ressurreição de Jesus e as cartas de Pedro e Paulo repletas de metáforas.

133 As referências cruzadas de Minear incluem: Éfeso — Apocalipse 2:7, cf. 22:2,14,19; Esmirna — 2:11,
cf. 21:4, 8; Pérgamo — 2:17, cf. 22:4; Tiatira — 2:28, cf. 22:16; Sardes — 3:5, cf. 21:27, 22:14; Filadélfia
— 3:12, cf. 21:22, 22:4, bem como 21:2; Laodicéia — 3:21, cf. 22:3 (I Saw a New Earth [Washington,
D.C., 1968], p. 61).
134 O diálogo a seguir foi extraído de George Bernard Shaw, Man and Superman (Baltimore: Penguin
Books, 1952), p. 139-143.
Estátua: O céu é o lugar mais angelicalmente sem graça de toda a criação.
Diabo: A tensão de viver no céu é intolerável. Alguns pensam que fui expulso de lá, mas na verdade
ninguém me convenceria a ficar. Eu simplesmente parti e vim organizar esse lugar aqui.
Estátua: Isso não me surpreende. Ninguém consegue aguentar uma eternidade no céu. [Mas Dom Juan
pensa diferente e refuta o diabo com percepções bem semelhantes às do apóstolo João.]
Dom Juan: No céu residem os mestres da realidade; é por isso que vou para lá.
Ana: Muito obrigada: eu vou para o céu para ser feliz. Já tive minha cota de realidade aqui na terra.
Dom Juan: Então você tem que ficar aqui, pois o inferno é o lugar do irreal e dos que buscam a
felicidade. É o único lugar para se fugir do céu que, como já disse, é o lar dos mestres da realidade, e da
terra, que é o lar dos escravos da realidade [...] no céu, segundo imagino, minha cara, vive-se e trabalha-
se em lugar de jogar e fingir. Lá encaramos as coisas como elas são; escapamos de tudo, exceto do
fascínio; e a constância e o risco são nossa glória.
Caso os críticos nunca tenham submetido a mente à força dessas narrativas,
nem tenham adquirido a capacidade de apreciar imagens, e não tenham sido
atingidos pelas tempestades de paradoxos e contradições para emergir,
surpresos e curados, nas águas tranquilas da fé, então o céu que João
apresenta pode muito bem parecer sem graça. O apóstolo é um mestre da
alusão. Se não houver em nossa mente as experiências às quais ele alude, ele
terá falado ao vento.
Mas se houver abertura de mente e boa vontade nas críticas, essa
deficiência poderá ser reparada. A razão mais provável para a rejeição é que
João não tenta apelar para ilusões. Ele é um mestre nas alusões, mas se
abstém totalmente da ilusão. João não apela para nossas fantasias. Ele é um
pastor. Ele não é um vendedor promovendo um céu interessante pelo apelo à
nossa lascívia, cobiça, avareza ou orgulho. E nós, desacostumados aos apelos
baseados em outros elementos que não sejam a nossa conveniência pessoal,
não sabemos como reagir.
Costuma-se citar Robert Browning: "O alcance de um homem deve estar
além da extensão de seus passos, senão não se chegaria ao céu". 135 Isso é
certo e errado, mas, no contexto em que costuma ser citado, em geral, está
errado. Está certo porque o céu corresponde mesmo ao nosso desejo de
satisfação; nosso ser precisa de aperfeiçoamento. Errado, quando sugere que
a ambição alcança o céu, quando confere legitimidade ao descontentamento
com o presente, quando encoraja desprezo por limites e estimula arrogância
para superar pessoas e condições que nos confinam. A maior parte das
pessoas que cita Browning o usa como autorização para mais conquistas
terrestres que sirvam como entrada para celeiros maiores no céu, onde
poderão se apossar de tudo que quiserem. A visão do apóstolo João não
servirá absolutamente aos que vivem querendo mais, que se rebelam contra os
limites e ficam entediados com o que têm e procuram distrair-se. Ele não
apresenta um paraíso ao gosto do freguês. O céu que ele descreve, em lugar
de extensão da cobiça humana vertical, mostra a invasão e a presença de
Deus vindo do alto até nós. Na visão de João, lembre-se, o céu desce. Como
consequência, "o tabernáculo de Deus está com os homens". Se não
queremos Deus, ou não o queremos muito perto, dificilmente estaremos
realmente interessados no céu.

135 Robert Browning, "Andrea del Sarto", The Poems & Plays of Robert Browning (Nova York: The
Modern Library, 1934), p. 220.
13.
AS ÚLTIMAS PALAVRAS
Agrada-te, SENHOR, em libertar-me;
apressa-te, SENHOR, a ajudar-me.
Quanto a mim, sou pobre e necessitado,
mas o Senhor preocupa-se comigo.
Tu és o meu socorro e o meu libertador;
meu Deus, não te demores!
SALMO 40:13,17
Aquele que dá testemunho destas coisas diz: "Sim, venho em breve!" Amém. Vem, Senhor
Jesus!
APOCALIPSE 22:20
Viver no passado e no futuro é fácil, mas viver no presente é como enfiar a linha no buraco da
agulha.
WALKER PERCY136
As visões chegaram ao fim. O apóstolo João, arrebatado em adoração, cai aos
pés do anjo revelador, prostrado para cultuar, mas ouve uma censura quanto à
devoção mal dirigida: "Não faça isso! Sou servo como você e seus irmãos, os
profetas, e como os que guardam as palavras deste livro. Adore a Deus!" (Ap
22:9). É a segunda vez que o apóstolo tenta adorar o anjo que revela em vez
do Deus revelado (Ap 19:10). Por que tanta dificuldade para entender? Por que
acontece o mesmo conosco? Simples: porque é mais fácil se entregar ao
êxtase do que obedecer, perseguir o fascínio com o sobrenatural do que servir
a Deus. E o mais fácil acontece com mais frequência. Sofremos de epidemias
recorrentes de obsessão religiosa. As pessoas gostam muito de se distrair com
milagres. Uma religião de anjos envolve empolgação sobrenatural e êxtase
milagroso. Matéria forte. Em contato com essas coisas por muito tempo,
qualquer um pode ser levado a um delírio generalizado. Os anjos reveladores
são sempre mais populares do que o Deus que revelam.
Não é surpreendente que, de tempos em tempos, tomados de assombro,
sejamos levados a cultuar algum mensageiro divino excepcionalmente
atraente. João não escapou a isso e prostrou-se duas vezes para adorar a
pessoa errada. Mas o engano não foi tratado com indulgência. A censura veio
imediata e grave: levante-se. Fique em pé. Adore a Deus, e somente a Deus.
Anjos, profetas e todos os cristãos encontram-se no mesmo nível e ajoelham-
se juntos, no mesmo lugar, como adoradores.
Muitos tratam Apocalipse da mesma maneira que João tratou o anjo que lhe
trouxe a revelação, mas não ouvem a censura angelical imediata. É mais difícil
adorar a Deus do que a seus mensageiros. E, assim, as pessoas se voltam
para tudo que há no livro, exceto para Deus, e se perdem na procura frenética
de símbolos, números, tempos e épocas, a despeito da restrição severa de
Jesus (At 1:7). O número de pessoas inteligentes e devotas que se prostram
diante de anjos, surdas à reprovação deles, é deprimente e indesculpável. Pois
nada é mais explícito neste livro do que o fato de que tudo gira em torno de
Deus. O tema central de Apocalipse é a revelação de Jesus Cristo, não o fim
do mundo, nem a identidade do anticristo, nem o cronograma da história. O uso
da primeira pessoa do singular em todo o texto não deixa margem a dúvidas:
Jesus Cristo como Senhor faia na primeira pessoa para nos dizer quem Ele é
("Eu sou o Alfa e o Ômega", na proclamação inicial), ou o que Ele faz ("Estou

136 Walker Percy, Lancelot (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1977), p. 235.
fazendo novas todas as coisas", na declaração final). Sem a fé em Cristo, nada
será compreensível no livro. Nada tem sentido fora do senhorio dele. Não há
nenhuma linha que não seja rigorosamente teológica. Mas, "porque temos
sempre curiosidade doentia e entendimento deficiente, e porque somos sempre
atraídos por espetáculos e emoções, no Apocalipse nós geralmente nos
interessamos por aquilo que é apenas um envelope". 137
O que Deus é capaz de fazer no mundo, e o que está fazendo, é agora
revelado numa sequência de imagens impressionantes. O Deus criador e a sua
criação são insondáveis para nós. A energia e a beleza da criação de Deus
excedem tudo que nossos olhos podem ver e nossos ouvidos ouvir. Nada que
encontramos do nascimento até a morte existe simplesmente. Tudo resulta da
maravilhosa ação de Deus. Há um verbo atrás de cada nome. E o primeiro
verbo no cosmo e na Bíblia é: criar. Deus, também, salva por caminhos
insondáveis, com persistência e sabedoria que excedem muito nossa vontade
e entendimento. Nenhuma pessoa que encontramos, do momento em que
acordamos até fecharmos os olhos para dormir, está concluída. Todos são
almas tragicômicas a quem Deus está salvando. Implícito em cada nome
pessoal (explícito no batismo) está a Trindade Santa, esse complexo vir a ser
de pessoas em relacionamento numa eternidade que ninguém consegue
penetrar.
Mas essa criação acontece em um mundo decaído. A salvação ocorre em
pessoas condenadas. Isso significa que criação e salvação não são óbvias.
João mostra o que não é óbvio, embora seja profundamente verdadeiro. Não
estamos diante de histórias fantásticas que editores preparam para publicação
e cineastas filmam para contar o que acontece no mundo e o que temos de
enfrentar. Contudo houve um momento em que criação e salvação ficaram
totalmente evidentes: o momento final de Jesus Cristo. Não durou muito, nem
muita gente viu. Mas, nas poucas horas entre a crucificação e a ressurreição
de Jesus, para uns poucos homens e mulheres que o seguiam — nessas
poucas horas, entre os poucos crentes — tudo entrou em foco: Deus criando,
Deus salvando, em e mediante Jesus Cristo.
Então o foco se nublou. A clareza da criação se perdeu, e o mundo criado
se tornou em coisas a comprar, vender, usar e descartar. Também a santidade
foi perdida, e os indivíduos passaram a ser apenas gente de quem gostamos
ou não, que melhora ou piora nossa vida, de quem queremos nos aproximar ou
nos afastar. Haveria alguma forma de recuperar o foco? De restaurar a
visibilidade óbvia do Cristo criador e redentor? Sim: a adoração. O imperativo
foi incisivo: adore a Deus. Muitos obedeceram. Por toda parte, crentes
adoravam com regularidade e fidelidade. A adoração do primeiro dia da
semana moldava a semana e a vida deles. Recontavam a história de Jesus.
Eles rememoravam com clareza e santidade, com pão e com vinho, o sacrifício
de Jesus. Recuperavam o enfoque na criação que estava subjacente em tudo
que eles observavam, a salvação interior para todos que encontravam.
O esforço para manter o enfoque correto está sempre em risco. A ordem
precisa ser repetida vezes sem conta. O apóstolo João a repetiu: adore a Deus.
Ele convocava continuamente os cristãos a adorar. Eu o descrevi como uma
fusão de pastor, poeta e teólogo. Como pastor, acompanhava o povo de fé em
toda a vida comum, e, por meio de suas orações, conversas e testemunho,

137 Jacques Ellul, Apocalypse, traduzido para o inglês por George W. Schriner (Nova York: Seabury
Press, 1977), p. 32.
mostrava-lhes em detalhes que o trabalho e o amor eram uma graça
extraordinária. Como poeta, usava a linguagem comum de negócios, romance
e estudo com tanto cuidado e habilidade que as palavras se tornaram janelas
para o interior onde o amor era percebido, a verdade era afirmada e Cristo
reconhecido. Como teólogo, avançou pelo mundo tomado de fome e sede de
justiça, separando, do trigo da realidade de Deus, o jogo das ilusões dos
ídolos, ensinando os crentes a distinguirem entre a revelação de Jesus Cristo e
o frenesi da imaginação religiosa desenfreada. A obra do pastor, do poeta e do
teólogo encontrou a síntese no ato de adoração.
Adore a Deus. João fez isso em Patmos. Ele ensinou os membros de suas
congregações a fazerem o mesmo nas reuniões semanais. No Apocalipse, está
elaborada toda perícia que João havia aprendido e praticado. Ele fez convergir
tudo em uma ordem que ele mesmo obedeceu: adore a Deus. O culto colocou
o foco de volta em Jesus Cristo. Uma obra complexa. Mais complexa ainda do
que o arranjo brilhante de visões, sons, proporções, atos, números e animais
na poesia teológica desse pastor. O ato de culto reúne e coloca diante de Deus
tudo que havia sido afastado pelo pecado. Ao mesmo tempo, toma toda a
revelação de Deus que havíamos esquecido por pressa e distração e coloca
diante de nós para que possamos oferecer tudo em louvor e obediência. Isso
não acontece em apenas uma hora de culto. Mas, com a repetição deliberada e
conscienciosa, semana após semana, ano após ano, há o crescimento rumo à
perfeição. Eis por que a imaginação é tão importante. A imaginação é a
capacidade interna de reunir, arranjar e conectar todos os dados da existência
numa totalidade correta e adequada. Não se pode desprezar o intelecto, mas
cabe à imaginação a obra mais pesada na adoração. 138 À medida que a
imaginação redimida do apóstolo, protegida pela inspiração, se aproxima da
conclusão, ele ordena e nos provê os meios de fazer o que ele faz: adorar a
Deus!
Um grande ataque do mundo contra a comunidade de fé consiste em
insinuar que a vida cristã é boa, mas afastada do centro real da ação humana.
A quadrilha que dirige Babilônia conspira para eliminar a contemplação da
prática das pessoas comuns, para que só reparem no que está sob holofotes e
só ouçam o que é dito ao microfone. O diabo procura transformar Jesus em um
galileu banal que deve ser levado a sério e citado reverentemente sempre que
tenhamos tempo para discutir grandes ideias. A estratégia satânica é fazer dos
cristãos pessoas normais pelo padrão da época, uma massa de bons cidadãos
que se esforçam muito para viver bem. Quando a estratégia alcança sucesso,
todos se tornam cristãos de uma forma que não faz a menor diferença. 139
A maior responsabilidade das comunidades cristãs é atacar essa obra do
mundo. Não a falta de fé, mas a fé embotada; não o mau comportamento, mas
o comportamento indefinido. Ninguém liderou essa tarefa com mais habilidade
do que o apóstolo João. Os que submetem a imaginação que adora às visões
dele jamais aceitam indiferença e monotonia em Cristo e nos cristãos.
A urgência é recomendada junto com a adoração. Explícita nas primeiras
138 Michael Wilcock, pastor anglicano, escreveu: "É relevante que nosso intelecto esteja preso à Palavra
de Deus. Mas quantos cristãos já tiveram as suas imaginações acionadas visando a um serviço a Cristo?
Por isso, creio que uma renovada apreciação da grande visão de João não deixará de produzir frutos" (A
Mensagem de Apocalipse [São Paulo: ABU, 2003], p. X).
139 "Quem é crente agora? Todos. Todo mundo acredita em tudo. Somos todos muito modernos, mas
temos uma fé meio superficial. Mesmo agora Kitty não prestava atenção, seus olhos vagavam enquanto
ela falava. Até no próprio ato de declarar suas verdades mais profundas, ela estava entediada demais e
não queria ouvir." (Walker Percy, The Second Coming [Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1980], p. 287.)
linhas de Apocalipse, "mostrar aos seus servos o que em breve há de
acontecer" (Ap 1:1), permanece intacta até as últimas, "mostrar aos seus
servos as coisas que em breve hão de acontecer" (Ap 22:6). Contudo, "breve"
é uma tradução descorada do original tachei. O tom da palavra grega é o
mesmo que usamos quando chamamos: "Táxi! Táxi!". Quando gritamos assim,
convocamos o motorista e seu veículo para atender à necessidade imediata de
ir a determinado lugar. Gritamos, entramos e partimos. Ninguém chama o
motorista de táxi para marcar um horário em outro dia da semana. Não há
previsão de atraso. "Táxi!" Tudo que João escreve tem relevância imediata.
Nada está guardado para aplicação futura.
A causa e o contexto da urgência é a segunda vinda de Jesus Cristo. Ele
havia prometido: "Então se verá o filho do homem vindo nas nuvens com
grande poder e glória" (Mc 13:26), e aconselhado: "Fiquem atentos! Vigiem!"
(Mc 13:33). O apóstolo agora relembra o que havia sido dito: "... Eis que ele
vem com as nuvens, e todo olho o verá..." (Ap 1:7), e repete duas vezes a
necessidade de estar alerta, primeiro na mensagem de Sardes: "... virei como
um ladrão, e você não saberá a que hora virei contra você" (Ap 3:3), e depois
quando a cena do julgamento se aproxima do clímax: "Eis que venho como
ladrão! Feliz aquele que permanece vigilante..." (Ap 16:15). Fora do contexto,
essas palavras perturbaram a imaginação de muitos, fazendo deles presas
fáceis para o medo e a fantasia. Contudo, João é extremamente cuidadoso
com o contexto. Ao prometer voltar, Jesus não pretendia nos deixar
apavorados, nem autorizar nenhum grupo de profetas a ganhar dinheiro
escrevendo livros sobre quando isso vai acontecer. Ele se colocou com firmeza
como o fim, exatamente como havia se estabelecido como o início. Temos uma
"necessidade profunda de finais fáceis de entender". 140 Se formos incapazes de
unir o início ao fim, nossa vida será desestruturada e incoerente. A expectativa
da volta de Jesus confere-nos um alvo que molda e unifica a vida em
conformidade com sua origem em Cristo, em padrões coerentes com a
plenitude final que será alcançada igualmente nele. Essa urgência é
libertadora, pois nos impele a permanecer alertas, profunda e seriamente
conscientes de quem somos e do que estamos fazendo, mantendo-nos, assim,
livres de banalidades que, como as cordas dos liliputianos, podem fazer de nós
prisioneiros, como se fossem bolas de ferro e correntes.
Assim, o apóstolo João nos infunde urgência. Contudo, paradoxalmente, ele
não tem pressa. O anúncio inicial e final da urgência envolve um poema
intrincado que requer cuidadosa ponderação. A arte pastoral de envolver a
imaginação que crê nessas visões do Dia do Senhor procede com ritmo e
vagar meditativo. Se estivesse em pânico, dificilmente João teria escrito a
mensagem com estrutura complexa, repleta de símbolos de vários níveis. Se
estivesse com pressa, teria reduzido tudo a um slogan que ele gritaria
enquanto corria. O barão Frederich von Hugel gostava de dizer: "Nada pode
ser realizado no meio de uma debandada". Aparentemente, João tinha a
mesma opinião. Por certo ele avança com calma e usa muito de nosso tempo
também. Senso de urgência não deve ser confundido com pressa.
Temos algo semelhante a uma atenção tranquila, prontidão à vinda de
Cristo ao nosso meio. A urgência está em dar atenção, estar totalmente
presente na presença de Deus que Cristo traz até nós em sua vinda. Thorlief
Boman, em um estudo profundo sobre o tempo na Bíblia, disse: "Presente

140 Frank Kermode, The Seme of an Ending (Londres: Oxford University Press, 1967), p. 8.
significa exatamente o que a palavra diz; 'presença', isto é, estamos no lugar
em que acontece a ação."141 A ênfase de João jamais é no futuro como tal, mas,
sim, no presente que está prenhe do futuro. Kant chamou o tempo de "senso
interno" e reconhecia que isso não pode ser percebido externamente. 142 O
tempo é, basicamente, categoria da vida interior, dos eventos pessoais. Mas
somos tão acostumados a pensar nele em termos espaciais — passado,
presente e futuro como marcas em uma linha do tempo — que fica difícil
pensar de outra forma. João usa duas palavras para tempo, chronos e kairos.
Chronos se relaciona a duração; kairos, a oportunidade. Costumamos medir o
primeiro friamente com relógios e calendários. Perdemo-nos com fervor no
segundo quando nos apaixonamos ou abraçamos a fé. Não podemos jamais, e
João não o faz, considerar chronos inferior ou desprezível — agendas e
compromissos são muito necessários nesta vida. Entretanto, somente por meio
de kairos conseguimos compreender e participar da vinda de Cristo, pois ela
não pode ser restrita a uma data — é, em primeiro lugar, um encontro, uma
chegada que já está acontecendo, embora ainda não consumada.
Em seu romance The Second Coming (A Segunda Vinda), Walker Percy
colocou a questão: "Será possível uma pessoa perder sua vida do mesmo jeito
que perdemos um avião?''. A resposta será afirmativa se tudo que conhecemos
é chronos. Percy descreve uma vida dessas assim: "Nem uma só vez em sua
vida toda, ele havia se permitido descansar em um canto sossegado do seu
interior, mas empurrava-se sempre de algum passado apagado do qual não se
lembrava para um futuro que não existia. Nem uma só vez, ele estivera
presente em sua própria vida. Assim, a vida dele passou como um sonho". 143
Se somos dominados pelo senso de chronos, o futuro é uma fonte de
ansiedade, que suga a energia do presente ou deixa-nos queixosos e
descontentes com o que acontece agora, como crianças ansiosas que não
podem esperar pelo presente de Natal. Mas, se formos dominados por kairos, o
futuro será fonte de expectativa que infunde energia no presente. A obsessão
com chronos — agendas rígidas, horários planejados com muitos detalhes — é
uma defesa contra o kairos de Deus, os mistérios inesperados e incontroláveis
da graça. Pessoas preocupadas com o futuro nunca se preparam para ele, que
é algo que se faz alimentando os pobres, trabalhando pela justiça, amando o
próximo e desenvolvendo uma vida de virtude e compaixão em nome de Jesus.
Essas pessoas querem prever o futuro. E prever o futuro se torna um substituto
para a ação. "Mas uma das verdades fundamentais da experiência humana é
que nunca podemos ter certeza do que acontecerá no próximo minuto, menos
ainda no próximo século."144 Diz-se que o físico Niels Bohr afirmou, com
perspicácia profética: "Predição é uma arte muito difícil, especialmente quando
envolve o futuro." Assim, de onde vem toda essa gente crédula que sustenta o
mercado de "profecia" na Igreja e "futurologia" no mundo?
O apóstolo João elabora uma construção gramatical para o nome de Deus
que nos ajuda a entender isso. Descreve o Senhor como "aquele que é, que
era e que há de vir" (Ap 1:4,8). A semente para essa formulação encontra-se
em Êxodo 3:13. Moisés, diante da sarça ardente, perguntou a Deus: "Quando

141 Thorlief Boman, Hebrew Thought Compared with Greek (Nova York: W. W. Norton and Co., 1960), p.
146.
142 Immanuel Kant, Critique of Pure Reason (Nova York: The Moslem Library, 1958), p. 67 e seguintes,
74 e seguintes e 77.
143 Walker Percy, The Second Cuming, p. 124.
144 Wendell Berry, The Gift of Good Land (San Francisco: North Point Press, 1981), p. 176.
eu chegar diante dos israelitas e lhes disser: O Deus dos seus antepassados
me enviou a vocês, e eles me perguntarem: 'Qual é o nome dele?' Que lhes
direi? Disse Deus a Moisés: 'EU SOU O QUE SOU'. É isto que você dirá aos
israelitas: 'EU SOU' me enviou a vocês.'" Em hebraico, isso não era um nome;
era o presente do verbo ser. João, usando a tradução grega de Êxodo, copiou
o nome como encontrou: "Aquele que é". Depois, elaborou o pensamento. Na
meditação rabínica sobre o nome de Deus (o tetragrama), era comum notar
que o ser divino incluía todos os tempos do verbo ser: presente, passado e
futuro. O nome do verbo, que equivale ao tempo presente do verbo na língua
portuguesa, inclui o passado e o futuro. João começa seguindo essa linha, mas
faz algo surpreendente. Esperamos encontrar "Aquele que é, que era e que
será", mas não é isso que lemos. Em lugar do futuro do verbo "ser", temos "há
de vir". O futuro desconhecido (aquele que será) foi trocado por uma chegada
passível de identificação (aquele que virá, ou seja, o Cristo que prometeu vir,
vem). A ênfase deixa a metafísica do tempo e passa para a história da
salvação.
Mais adiante no Apocalipse, essa percepção do tempo recebe reforço
engenhoso quando o anticristo é descrito por um nome que é uma paródia
gramatical: "era, não é, e está para vir" (Ap 17:8). O anticristo é definido por um
passado (ele era) e um futuro (ele estará aqui, parestai), mas sem presente.
Ele nunca está aqui e agora, não há nele condição intrínseca de existir. Ele
seduz com base no passado, e sugestões sobre o futuro, mas jamais trata do
presente, pois ele era, mas não é, ele não existe agora. Presente, o anticristo é
uma fraude manifesta. Mas tudo que Deus é e tudo que Ele tem sido é
presente, imediato, invadindo o aqui e agora. Nada em Deus é remoto, nem no
passado distante nem no futuro inalcançável. Em Deus, passado e futuro se
fundem, perpetuamente, no presente.
Tudo isso está na primeira página que João escreveu. Na última, ele dá um
toque final de ênfase na urgência: Aquele que "há de vir". Duas vezes Jesus
afirma: "Eis que venho em breve" (Ap 22:7,12). O Espírito, a Noiva e todos que
o ouvem anseiam por sua vinda: "Vem!" (Ap 22:17). Os sedentos do mundo
são convidados a virem àquele que vem (Ap 22:17). No Apocalipse, Jesus faz
sua declaração final: "Sim, venho em breve!", e é prontamente acolhido: "Vem,
Senhor Jesus!" (Ap 22:20).
"Vem, Senhor Jesus!" muitas vezes em sua versão aramaica, Maranata!, (1
Co 16:22), é uma oração cristã básica. Quando Cristo vem até nós, há sempre
um elemento de surpresa que nos leva a exclamar, com alegria: "Então é isso
que Ele quer dizer".145 O inesperado aguça nossas expectativas. Não
pensamos mais no futuro com a ansiedade da cronologia, mas com a alegre
expectativa do kairos: "Vem! Senhor Jesus".

145 J. J. M. Roberts, "A Christian Perspective on Prophetic Prediction" Interpretation, julho de 1979.

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