A-Preparação-do-Ator-de-Cinema Com Comentários
A-Preparação-do-Ator-de-Cinema Com Comentários
A-Preparação-do-Ator-de-Cinema Com Comentários
CENTRO DE ARTES
CURSO DE TEATRO - LICENCIATURA
Pelotas, 2018
Felipe Cremonini de Leon
Pelotas, 2018
Felipe Cremonini de Leon
Banca Examinadora:
___________________________________________________________________
Prof. Me. Lindsay Gianoukas (Orientadora). Mestre em Artes Cênicas pelo Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS).
___________________________________________________________________
Prof. Dra. Aline Castaman. Doutora em Artes da Cena pelo programa de Pós
Graduação de Artes da Cena na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Josias Pereira da Silva. Pós Doutor em Estudos da Linguagem pela
Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Dedico este trabalho à minha família, em especial às
minhas três mães: a supermulher Eliane Cremonini
Trindade, minha tia Maria Otilia Cremonini Trindade,
e minha avó Maria Cremonini Trindade. Três
mulheres que se dedicaram incansavelmente à
minha formação como um ser humano cada vez
melhor.
À minha mãe, por sempre acreditar em mim, me apoiar, me ouvir e ser uma grande
admiradora das minhas conquistas, sempre me incentivando a conseguir mais.
Sinto-me privilegiado por ser filho desta mulher.
À minha família materna, principalmente minhas tias e minha avó, que cuidaram de
mim e acreditaram que o sonho de cursar universidade seria possível.
À minha grande amiga e irmã Rithiele Damasceno, que teve orgulho de mim e me
apoiou sempre que eu precisei.
À minha primeira diretora Tanise Carrali, que me apresentou o teatro e plantou em
mim uma semente de paixão pela arte que está florescendo neste trabalho.
Ao meu namorado, Kauê Reis, que segurou minha mão e me incentivou a ser forte
nos momentos que mais duvidei de mim, e no final me aplaudiu independentemente
do resultado.
À minha família de amigos pelotenses, sobretudo Kellen Ferreira e Giovani Garcez,
que sempre estiveram presentes em momentos importantes, difíceis e alegres. É
impossível lembrar-me de qualquer tipo de plateia sem ver a imagem deles.
Aos meus anjos negros Marco Antônio e Andy Marques, que me ajudaram no
complexo processo de me identificar como artista negro. Eles me ouviram, me
ajudaram, e são uma grande referência de vida e arte.
Ao meu colega Márcio Mariot e seu companheiro Mateus Weizenmann, que foram
as figuras paternas da minha vida em Pelotas. Sempre pude contar com eles.
À Analu Favretto, uma diretora de cinema incrível que me mostrou pela primeira vez
como o teatro pode funcionar no cinema.
Ao Wagner Previtali, que confiou em meu trabalho e me proporcionou a primeira
oportunidade de trabalhar com atores do cinema.
Ao Mands Di Martino, que conheço há tanto tempo, e que sempre puxou minha
orelha e me amparou como só ele consegue.
Ao elenco e equipe dos filmes Bicha Camelô e Raskh, pelo respeito e confiança pelo
meu trabalho, pela paciência em saber que eu estava aprendendo junto com eles.
À minha orientadora Lindsay Gianoukas, a quem admiro desde meu primeiro ano na
universidade, e que me trouxe um olhar tão sincero e único que sem ela, esta
pesquisa não teria tomado os rumos que tomou.
Por fim, agradeço também à banca avaliadora que se dispôs a conhecer meu
trabalho e me ajudar nessa jornada, e também à Universidade Federal de Pelotas,
instituição onde conheci um novo artista e pesquisador em mim.
Obrigado.
CREMONINI, Felipe. A Preparação do Ator de Cinema: reflexões e relatos de um
ator-professor-preparador – Pelotas-RS, 2018. Trabalho de Conclusão de Curso –
Universidade Federal de Pelotas.
RESUMO
ABSTRACT
This work aims to enlarge the thinking of casting associate in the field of cinema
when it crosses theatre. It exposes the experiences of theatrical practices on the
castings’ training in the short-movies “Bicha Camelô”, from 2017, and “RASKH”, from
2018. The study does a shortly contextualization comparing the history of the theatre
and the cinema intending to show the motivations that lead to a desdramatization of
the performance for the screen. It exposes the theatre as in the beginning of acting
and advocates that theatrical skills are inherent to the actors work. It also mentions
the position of the casting associate in the cinema and indicates some of them doing
such work in Brazil in order to present briefly their methods. After all, it proposes that
the exploration of theatrical practices in the casting training can increase the acting
for the screen, widening possibilities for the actor.
Nas ocasiões em que atuei como preparador de elenco nos filmes já citados,
a preparação teve como base técnicas de teatro transpostas para a linguagem
cinematográfica. Tal oportunidade representou uma mescla de duas linguagens
artísticas que, em suas respectivas histórias, buscaram se reformular e se distanciar.
Também representa uma diferente forma de compreender o curso de licenciatura em
teatro e praticar a pedagogia em um espaço alternativo, não restrito à sala de aula.
1
Neste trabalho, o termo “linguagem” é utilizado de forma genérica, uma vez que o aprofundamento sobre tal
conceito distancia-se do foco deste trabalho. A linguagem aqui aparece para definir distintas manifestações
artísticas (ex: teatro, cinema, circo, dança, artes plásticas...) ou distintas poéticas dentro de um mesmo campo
de expressão.
9
surgiu a crença de que o ator de teatro não funciona para o cinema. Para isto,
exponho uma breve contextualização histórica, explicitando a diferença temporal que
existe entre manifestações teatrais (que possuem indícios já na pré-história) e a
criação do cinema. Ciente de que não dou conta de abranger toda trajetória histórica
de ambas as expressões artísticas, o que não é o foco deste trabalho, apenas
apresento brevemente momentos da história com a intenção de localizar
temporalmente como se iniciou o processo de divergência do trabalho do ator entre
estas duas linguagens.
10
elenco. Utilizei como material bibliográfico nesta etapa os livros de Constantin
Stanislávski e Augusto Boal que foram a base da preparação de elenco deste filme.
11
1. O ator de teatro e o de cinema – Um breve panorama
Na intenção de sublinhar algumas semelhanças e divergências de práticas de
atuação nas linguagens teatrais e cinematográficas que nos próximos capítulos
compreende o eixo principal de observação, apontaremos breves observações sobre
a historia da atuação em ambos os campos artísticos. Pelo fato do teatro ser uma
arte milenar, mesmo que sua origem se distancie da estrutura tal como o
conhecemos hoje, e muito mais antiga em termos comparativos com a trajetória do
cinema, devemos ter claro o fato de que a figura do ator surge no teatro, passando
por um processo de “migração” para o cinema quando este se firma.
O cinema, por sua vez, tem sua origem no fim do século XIX, com o Teatro
entrando no auge de seu período Realista, em consonância com o movimento que
emergia de modo geral em todas as artes. Tal período marca um rompimento do
Romantismo e do que estava sendo criado até então, trazendo para o palco, no caso
do teatro, fatores verossímeis e um retrato fiel da sociedade. O cinema acaba
recorrendo a essa fonte, as artes cênicas, como referência, o que influencia de certa
forma, sua estrutura até hoje.
13
tem sua origem no teatro e, portanto, possui uma importância vital no processo de
montagem teatral, já que o ator é um dos pilares da Tríade Essencial2.
O cinema dos primeiros tempos foi interpretado por atores de teatro que
tendiam a exagerar seus jogos fisionômicos. Até os movimentos ‘naturais’
de uma atriz do Teatro de Arte de Stanislávski foram considerados
exagerados pelo diretor Pudovkin (ASLAN, 2007, p. 209)
Divergência tal que vai perdurar até os dias de hoje, como pontua Walmeri
Ribeiro em sua dissertação sobre a preparação do ator para o cinema: “(...) desde
os primeiros experimentos do cinema ficcional, houve uma necessidade de
2
“Para que o teatro dramático exista, são necessários três elementos operativos que podemos
chamar de “tríade essencial”: o texto, o ator e o público. Isto é fundamental” (J. GUINSBURG. 2001,
p. 13.)
14
adequação do trabalho do ator de teatro à estética cinematográfica, rompendo com
paradigmas teatrais” (RIBEIRO, W.K. 2005). Reforçando a ideia de que as
referências teatrais trazidas pelo ator que opta por trabalhar com o cinema devem
ser abandonadas para se adequarem a esta linguagem.
3
Recurso técnico da composição cinematográfica que divide o roteiro em sequências, planos e cenas.
15
pouca – porém válida – experiência como ator em curtas-metragens de alunos do
curso de cinema.
16
respiram juntos aquele espaço em que a peça teatral e os espectadores se
encontram frente a frente” (LEHMANN, 2007, p. 18). Este foco na exploração da
efemeridade acaba permitindo novas formas narrativas e linguagens no campo do
teatro, refletindo diretamente no trabalho do ator, que passa a expor-se a riscos em
cena, eliminando propostas mais direcionadas de atuação e trabalhando com a
fragilidade e exposição no palco.
17
A desteatralização da atuação para o cinema, somado ao fato de que o teatro
acaba assumindo um posto de “prática minoritária”, como destacado por Lehmann
(ver citação pág. 15), acaba interferindo diretamente na prática de atuação tanto no
cinema como no teatro. E é justamente neste ponto que essa pesquisa se debruça.
Nos próximos capítulos, pretendo discorrer e exemplificar como o trabalho do ator de
cinema pode ser potencializado quando, ao invés de negligenciar a linguagem
teatral como encontramos predominantemente ao longo da historia do cinema,
focamos em uma reapropriação e instrumentalização da prática de atuação teatral.
É claro que cinema e teatro são linguagens artísticas diferentes e com suas
próprias características, concepções e objetivos, e isso reflete diretamente na forma
de atuação de cada uma delas. Porém, acredito ser um equívoco afirmar que um
ator que tem sua origem no teatro não consegue se adaptar a outra linguagem,
sendo que o próprio teatro carrega consigo diferentes formas de atuação e poéticas,
como as propostas por pensadores/encenadores como Stanislávski, Grotóvski,
Brecht, Kantor entre outros que fundam ou experimentam concepções de atuação
diferentes.
18
Dessa forma, um processo de desteatralização do ator acabou ocorrendo e
ganhando forma no cinema com a figura do preparador de atores, profissional que
surge com a necessidade de adequação do trabalho do ator, o qual nos dedicamos
a refletir no próximo capítulo. Por fim, com base no aqui exposto e ciente de que
realizei uma breve revisão histórica, acredito ser possível compreender
minimamente os aspectos de aproximação e distâncias históricas entre estas duas
áreas, considerando especificamente a atuação.
19
2. O preparador de atores de cinema
Neste tópico abordarei o trabalho do preparador de atores, uma figura que
surge por uma necessidade do cinema de trabalhar com um tipo de atuação
específica, e que o teatro acaba também se apropriando posteriormente. Entender o
preparador de atores nessa pesquisa é importante para compreendermos como o
ator se adequou à linguagem cinematográfica, e também porque foi essa função que
exerci em ambos os curtas-metragens que estão analisados no terceiro capítulo
deste trabalho.
Como apresentado no capítulo anterior, desde sua criação até sua ascensão,
o cinema buscou por um tipo de “ator ideal” que pudesse se encaixar na linguagem
cinematográfica de forma que se distanciasse da referência teatral. Com essa
necessidade de uma adequação dos atores surge a figura do preparador de elenco,
profissão que no Brasil, segundo uma matéria publicada em 2012 pelo jornal Folha
de S. Paulo, ganhou projeção com o trabalho de Fátima Toledo no filme Cidade de
Deus (2002).
Aliás, mesmo antes de 1989 e depois de 1994, são raros os intérpretes que
se dedicam com mais intensidade à Sétima Arte, já que o teatro e a
televisão se mantêm como reduto principal destes profissionais – e é
justamente o costume com estes dois veículos que torna os atores
brasileiros tão fragilizados em suas performances nas telonas, já que o
teatro exige performances grandiosas, extremadas, ao passo que a
televisão investe no close e na emoção mais óbvia, descartando a
construção mais delicada por saber que o espectador caseiro encontra-se
desatento na maior parte do tempo. (VILLAÇA, 2017)
20
Ainda sobre a importância do preparador de elenco, Villaça destaca a
dificuldade do trabalho do ator no cinema, que muitas vezes precisa gravar cenas
fora da sequência cronológica da história por questões que normalmente envolvem
aparatos técnicos, e que por isso a atuação cinematográfica “exige, neste aspecto,
uma concentração e uma preparação infinitamente maiores do que no teatro e na
televisão” (VILLAÇA, 2017). O curioso é que ao relatar uma vivência de preparação
de Sérgio Penna o autor cita métodos de atuação que foram “fortemente
influenciados por Stanislávski”, uma importante referência no teatro e um dos
primeiros nomes a elaborar considerações sistemáticas sobre o trabalho do ator.
Então, observo que ao mesmo passo que aponta aspectos teatrais como traços
nocivos na atuação cinematográfica, e usa-se uma referência de “segunda mão” que
tem seu pilar no trabalho do ator de teatro.
O termo ainda é finalizado reforçando o papel do diretor de cinema como uma figura
capaz de transformar em realidade suas ideias “por intermédio das figuras dos
corpos dos atores” (p. 80). Porém, analisando os dois dicionários, é possível
21
perceber que há uma pesquisa muito maior sobre o trabalho do ator profissional no
teatro e esta pesquisa é necessário para que tal “intermédio” nos corpos seja
possível, o que é uma questão que toda a produção de um filme deveria considerar,
inclusive o preparador de elenco.
4 No livro “Fátima Toledo: Interpretar a vida, viver o cinema” usado como referência nessa pesquisa, o
autor utiliza apenas a nomenclatura “Método” para falar da preparação de Fátima Toledo, usarei da
mesma forma aqui.
5 Link:< https://www.studiofatimatoledo.com.br/>
22
pois na época trabalhava na FEBEM6, onde se dá a ambientação do filme, e tinha
experiência em ministrar aulas de teatro com crianças. Na época não se sabia muito
bem qual era o trabalho de Fátima. Em Pixote, por exemplo, ela foi creditada como
“assistente de direção”.
6Sigla para “Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor”, atualmente chamado de Fundação
Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação CASA).
23
descobriu uma forma de trabalho que ainda utiliza, que é a de não construir um
personagem, mas sim situações do filme para os atores vivenciarem.
Para isso, Fátima encontra no roteiro uma situação crucial dos personagens e
trabalha a partir desta para desenvolver as cenas, depois o roteiro é abandonado:
“Na preparação, pode-se partir de um momento do filme, definir claramente o que
estará em jogo na relação e, depois, recuar ou avançar nas situações que devem
ser construídas” (p. 167). É interessante analisar a trajetória do Método, pois Fátima,
que começou seu trabalho no campo artístico com o teatro e cita inspirações de
seus exercícios com base em Stanislávski, Grotowski e Boal, creio que acaba
posteriormente reforçando a mesma ideia de desteatralização tão presente no meio
cinematográfico e comentado no tópico 1.3 deste documento, como é evidenciado
nessa passagem da preparação do filme Cidade de Deus, do diretor Fernando
Meirelles:
A técnica é uma prática que visa a obtenção de mais prazer naquilo que se
faz. Ao contrário do que se pensa é algo que se desenvolve a partir de uma
habilidade adquirida ou inata. A técnica do ator é muito simples e
sofisticado. É a capacidade de perceber e processar estímulos. Ter domínio
sobre suas ações e ao mesmo tempo estar pronto e disposto para receber a
consequência dessas ações. O prazer é uma consequência. O objetivo é
ampliar a presença em cena. (DUURVOOT)
25
A escola de Michael Chekhov no Brasil realiza oficinas, eventos e
preparações de elenco a fim de disseminar a técnica pela América Latina. Estes
exemplos servem para ilustrar como a profissão do preparador de elenco vem
ganhando espaço no Brasil, com diversas pessoas desenvolvendo seus próprios
métodos e técnicas voltados para a atuação cinematográfica, abraçando direta ou
indiretamente referências teatrais.
- Mas no cinema, o ator de teatro não deve ter a atuação mais limitada?
26
elenco, acredito que estou desenvolvendo a minha enquanto reforço a ideia de
explorar práticas e técnicas teatrais com os atores. No próximo capítulo irei relatar
minhas experiências como preparador de atores em dois curtas-metragens nos
quais pude experimentar aspectos teatrais com o elenco, “Bicha Camelô” (2017) no
qual a utilização de técnicas teatrais aconteceu na preparação de uma forma muito
intuitiva, e “RASKH” (2018), um curta-metragem em que a mescla com o teatro
acabou repercutindo em toda a estética do filme.
27
3. A Preparação Teatral para o Cinema
Como já vimos nos capítulos anteriores, historicamente o ator tem sua origem
no teatro e, com o advento do audiovisual, ele começa a migrar entre linguagens e
trabalhar nas mais diversas plataformas. Para que essa migração ocorra de forma
coerente com a linguagem cinematográfica e a proposta fílmica, surge a figura do
preparador de atores, um profissional responsável por integrar o elenco ao universo
do filme e ajustar as devidas necessidades do ator que vem com referências
teatrais, por julgar que a atuação teatral é exagerada.
O problema é que, com isso, se gera uma negação do teatro e até mesmo um
processo de desteatralização deste ator, isso é observado tanto na história do
cinema (como analisado no Capítulo I), quanto no trabalho de grandes nomes como
Fátima Toledo e Sérgio Penna (expostos no Capítulo II), que se propõem a deixar a
atuação cinematográfica cada vez mais naturalista. O que acredito é que desvincular
o ator de referências teatrais é um processo desnecessário, por dois motivos
principais:
28
Tendo isto em mente, exponho agora meus relatos de experiência como
Preparador e Diretor de Elenco em dois curtas-metragens produzidos por estudantes
do curso de audiovisual da UFPel. O primeiro, a partir do qual nasceu a inquietação
para essa pesquisa e pude relacionar as teorias teatrais com a prática de atuação
cinematográfica, e o segundo em que qualidades teatrais se expandiram e se
configuraram como uma base para o resultado final do filme. Se trata da
possibilidade que tive de exercer treinamentos de atuação teatral a serviço do ator
de cinema, confrontando um dito “tabu” no meio cinematográfico.
29
3.1 A experiência com o filme “Bicha Camelô”
BICHA CAMELÔ
30
A preparação de elenco do filme “Bicha Camelô” e suas gravações ocorreram
entre os meses de setembro e novembro de 2016. Com sua estreia no primeiro
semestre de 2017, em uma mostra de produções dos acadêmicos de cinema no
Cine UFPel, e circulação em festivais regionais no mesmo ano, incluindo o
conceituado Festival de Cinema de Gramado. O filme representa minha primeira
experiência prática atuando como preparador de elenco.
10 LGBT é a sigla que se refere à comunidade formada por Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais.
Por vezes ainda é adicionada as letras Q, I e A para contemplar pessoas Queer, Intersexuais e
Assexuais, respectivamente, finalizado com um sinal de + para representar qualquer outra pessoa
que não esteja na sigla, portanto LGBTQIA+
11 Personagem feminina que se veste e age de forma extravagante, com o intuito profissional. Apesar
de ser um sucesso entre o público LGBT, é importante salientar que drags podem ser de qualquer
identidade de gênero ou orientação sexual. A versão masculina dessa figura chama-se drag king.
12 Ver relato completo de Wagner Previtali sobre a preparação de elenco do filme no Anexo I, ao final
deste documento.
31
Pelo fato do curta se encaixar na categoria de falso-documentário, comecei
com um trabalho de ambientação, que não fugisse da proposta de retratar a vida
cotidiana em um documentário e com o objetivo de trazer o realismo que o filme
propunha, isso reverberou nas críticas do filme, como publicado pelo comentarista
de cinema Victor Hugo Fernandes do site Papo de Cinema:
13 Neste trabalho, usaremos a sigla “TO” para nos referirmos a Teatro do Oprimido.
32
O trabalho com o TO e exercícios teatrais trouxeram para a preparação de
elenco referências diretas do teatro a serem exploradas no curta, mesmo que o
próprio Augusto Boal tenha criado o TO para que atores e não-atores possam
trabalhar a partir dele, como afirma o título de um de seus livros: Jogos Para Atores
e Não Atores (1997). Mesmo assim, estava presente a utilização de tais técnicas de
teatro para resultar em um trabalho cinematográfico.
14Stanislávski é reconhecido como uma das primeiras pessoas a pensar e sistematizar o trabalho do
ator. Esse estudo resultou em um “método” de atuação que trabalha, basicamente, com o
naturalismo. Talvez por isso, o Sistema Stanislávski seja o mais citado método de preparação de
atores no cinema, como pudemos ver no Capítulo II.
34
ainda utilizar a realidade de Mateus em benefício da personagem. Como estávamos
realizando a preparação com um ator LGBT e drag queen não só como personagem
e que viveria essa realidade no curta, as coisas foram tomando forma. Senti-me
seguro e amparado para trabalhar Stanislávski nessa época por conta de um
posicionamento do próprio encenador no livro A construção da personagem:
Convencem o cantor de que não pode obter um certo tom se não estiver de
pé, nalguma posição forçada, com as mãos se apertando diante do tórax, os
ombros jogados para trás e o queixo esticado para diante. Está claro que
isso não é verdade. Pode-se formar tonalidades, obter volume, quer o ator
esteja deitado de bruços ou de costas, de cabeça para baixo, sentado de
cócoras ou dando pinotes no ar. Só depende da vontade do ator.
(STANISLAVSKI, 2006, p. 20)
Não estive presente com o elenco nos dias de gravação, exceto nos dias que
exerci o papel de ator, acredito que minha presença no set de gravações teria sido
importante para tentar, ao menos, suprir a necessidade de encontros extras que não
tivemos durante a preparação, posteriormente entendi que cabe ao diretor querer ou
não a presença do preparador de elenco no set, porém na época fiquei um pouco
frustrado com a decisão. Para mim, essa ausência do preparador no set foi a
separação mais gritante entre meu trabalho neste curta e no RASKH, claro que
35
neste segundo fui diretor de atores e já estava munido de uma experiência prévia,
enquanto no Bicha Camelô meu papel foi de preparador de elenco, e também minha
primeira experiência neste universo.
Por fim, o trabalho com o filme Bicha Camelô foi o começo de uma nova
perspectiva sobre meu futuro, uma possibilidade que eu jamais havia considerado
(porque sequer conhecia esta atividade) e abriu portas para outros filmes que pude
trabalhar como preparador de elenco. Além de expandir as apreensões possíveis
sobre este ofício e a relação entre as atuações teatral e cinematográfica. Minha
segunda experiência, com o filme RASKH, que se utiliza de referências teatrais em
diversas instâncias está relatada no próximo subtópico deste capítulo.
36
3.2 A direção de elenco do filme RASKH
RASKH
37
Após o relato anterior, em que evidencio que utilizei técnicas teatrais no filme
Bicha Camelô de uma forma muito intuitiva, irei relatar outro processo de
preparação: o filme RASKH, no qual também utilizo de técnicas teatrais, porém com
o enfoque de experimentar com mais amplitude a utilização da linguagem teatral em
uma produção audiovisual. Durante a pré-produção (período em que acontece a
fase de preparação de elenco e produção técnica, locações, equipamentos...) do
curta-metragem baseado no “Poema Patético” de Carlos Drummond de Andrade 15,
em março de 2018, uma etapa em que eu e o diretor estudamos o roteiro e
pensamos no elenco para o filme, ao mesmo tempo em que buscamos juntos uma
base teatral para trabalhar com o elenco. Desde que fui convidado para ser diretor
de elenco do curta, expus minha vontade de trabalhar com técnicas teatrais na
preparação, e manifestei também minha intenção de que aquela experiência
pertenceria a este trabalho.
15Drummond viveu entre 1902 e 1987, sendo considerado o mais influente poeta brasileiro do século
XX, e um dos principais poetas da segunda geração do Modernismo brasileiro. O poema foi utilizado
para adaptação com autorização dos detentores dos direitos autorais.
38
Enforcado (última interação no roteiro, primeira no poema) desistir de tentar recobrá-
lo à realidade.
A locação16 do curta foi definida para o meio de uma floresta, onde seria
montada uma sala de estar ao ar livre e ali seriam desenvolvidas as ações (Figura
1). Decidiu-se renomear o filme para RASKH que na, língua persa, significa “a
migração de uma alma humana para uma árvore ou planta”, fazendo referência à
lógica de Guiomar estar tão “dentro de si” na história que estaria se tornando parte
da floresta que serviu de locação.
16 Neste documento, o termo “locação” significa o local onde é definido que será o “cenário” da
gravação de determinada cena de um filme.
17 Palavra usada para nomear a seleção de elenco de um filme, seja por testes de elenco ou por
Mesmo assim, a criança do curta é filho de uma atriz e professora do curso, a Prof. Dra. Marina de
Oliveira.
39
Com a estrutura da preparação e elenco definidos, a prática propriamente dita
começou em abril, com encontros individuais com o elenco19, além da presença do
diretor, para conversar sobre o trabalho de Tadeusz Kantor, a temática do curta e as
percepções do elenco em relação aos personagens. Estabelecemos nessa etapa
como utilizar essa marionetização proposta por Kantor (que é diferente da de Craig,
já que este propunha uma substituição do ator por marionetes, enquanto Kantor
incorporava a figura do boneco no corpo do ator) e o que compreendíamos sobre
possibilidade de como utilizar o teatro no cinema, assistimos também às cenas
gravadas de “A classe morta” (1975), peça de Tadeusz Kantor utilizando sua poética
de Teatro da Morte.
Figura 1: Still do filme RASKH, mostrando Guiomar (Régis Riveiro, poltrona), a Virgem (Kellen Ferreira,
chão) e o cenário no meio da floresta.
19 Importante dizer aqui que a preparação com o ator-mirim ocorreu de forma diferente do resto do
elenco. Por se tratar de uma criança de 4 anos, não expusemos totalmente o conceito do filme,
apenas a atribuição de seu personagem, e também a carga horária de preparação do ator mirim foi
reduzida aos posteriores encontros em conjunto com todo o elenco.
40
atmosfera e da proposta de Kantor, no que tange sua percepção sobre a morte e
mecanismos de atuação “marionetizados”. O ápice da ação é quando o personagem
espirra, trabalhamos juntos para que essa ação desmontasse aquele corpo inerte da
personagem e retornasse à posição inicial, tudo isso de forma mecânica, remetendo
ao estado de inércia da personagem. Interessante pontuar aqui que Régis foi o único
a ler o roteiro sem conhecer o poema de origem, então quando conversamos ele já
havia investigado todo um sentido lógico para o texto que o ajudaria a experimentar
este personagem tão passivo.
Discutimos e colocamos sentido para cada uma das ações que o personagem
realizaria: passar a mão no rosto de Guiomar representava a tentativa de fazer o
personagem reagir ou mudar a sua expressão, beijá-lo seria como tentar por uma
última vez acordá-lo daquela inércia, o grito como a frustração por não ter
conseguido resultados e, por fim, quebrar a TV que estava sendo assistida o tempo
inteiro por Guiomar durante o curta e tomar seu lugar, suicidar-se no móvel onde
encontrava-se a televisão que Samuel chamou de “inércia coletiva”, e aqui
discutimos sobre manipulação de massas e como tudo isso se conecta com a ideia
do encenador Kantor sobre morte, que por sua vez representa a “condição do artista
e da arte” (1998, p. 94). Corporalmente, o ator apostou em um plano médio, com
passos ritmados e variações na posição de braços e mãos, que possibilitava uma
leitura de inquietação. O figurino que anteriormente estava desenhado em um traje
social acabou sendo transferido para Guiomar e o Enforcado ganhou cores claras
que representariam a vida, para trabalhar com o contraponto entre vida e morte.
Por fim, o Homem Nu, personagem interpretado por mim, teve um prévio
trabalho psicológico, já que não fazia parte do poema de Carlos Drummond de
Andrade, eu e o diretor conversávamos sobre sua representação: no filme, o
Homem Nu representa a parte reprimida de Guiomar, o que ele tenta esconder e
lutar contra, e por isso a opção de nudez que traz além de grande exposição, ainda
um certo tabu. A ação do personagem é basicamente atravessar o cenário atrás da
televisão, parando no meio do percurso para encarar Guiomar. O primeiro ensaio
vivendo o Homem Nu se deu na primeira preparação em conjunto com Kellen,
Samuel, eu e o Diretor. Enquanto eu dirigia a atuação de Kellen e Samuel, os dois
mais o Diretor dirigiram o meu personagem, pela necessidade um olhar externo à
criação que eu não seria capaz de ter.
Partindo da lógica do “eu interior reprimido” do Guiomar, optei por fazer uma
caminhada que mostrasse dificuldade, como se eu caminhasse contra a vontade de
Guiomar. Inicialmente, a caminhada era lenta e vagarosa, e se tornou pés
arrastando no chão, como se correntes o prendessem e puxassem para trás, o
20 Filme de terror do diretor Gore Verbinski, em que uma personagem com cabelos negros caídos em
frente ao seu rosto sai de dentro de uma televisão. A cena ficou marcada na cultura popular
ganhando várias versões e paródias, por exemplo no filme de comédia Todo Mundo Em Pânico 3
(2003), e por esta razão a cena foi retirada do RASKH.
42
arrastar de pés ganhou ritmo e tônus muscular, com movimentos dos braços
reforçando essa ideia da caminhada com dificuldade.
Até este momento tudo ocorreu como planejado e fiquei satisfeito com os
resultados. As gravações ocorreram em três dias na floresta, ocasião que pude estar
presente no set, e foi onde acredito que falhei como diretor de elenco. Com o tempo
de maquiagem que era necessário, montagem de cenário e ajustes da câmera,
ainda havia a preocupação com a iluminação natural da floresta e que não fosse
visivelmente alterada na filmagem, houve pouco tempo para preparo e afinação com
o elenco no set de filmagem, principalmente na diária com A Virgem e a Criança.
A segunda diária, que era comigo, eu precisava ser meu próprio preparador.
Com o Enforcado, no entanto, houve ajustes e afinações da atuação no set, mas
provavelmente porque isso partiu de solicitação do ator, e foi quando percebi que
era um trabalho que eu deveria ter feito todos os dias. Mas de qualquer forma,
terminei satisfeito com meu trabalho, por considerar que a mescla da linguagem
teatral com a cinematográfica ocorreu sem grandes conflitos de ideias neste
trabalho, permitindo que eu pudesse ser mediador dessa conversa entre linguagens,
21Ver relato de Mands Di Martino sobre a preparação de elenco do filme no Anexo II, ao final deste
documento.
43
de forma que pude realizar experimentos práticos da inserção do teatro no cinema
sob novas perspectivas.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante a pesquisa e na compilação para este documento, pude expor uma
frustração que nasceu em trabalhos com o curso de Cinema e Audiovisual da
Universidade Federal de Pelotas, que se refere à crença de que o ator de teatro não
serve para a linguagem audiovisual. Se antes a pesquisa começou com a intenção
de provar que faz parte do trabalho do ator migrar entre linguagens e narrar a
preparação de elenco do filme Bicha Camelô, agora faz parte deste argumento um
mapeamento de como esta ideia teve origem na história e conhecimento de uma
profissão que se dedica a adequar o ator aos papéis no cinema, além de relatos de
outras experiências dentro do campo cinematográfico.
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A experiência em preparar o elenco para ambos os filmes fez finalmente com
que essas disciplinas conversassem entre si, a teoria do que eu estava trabalhando
somado à prática de iniciação teatral proposta para os atores, que cruzava com os
ensinamentos pedagógicos para ministrar vivências teatrais. Dessa forma, tive uma
experiência que pôde me trazer uma nova forma de entender a licenciatura como
não apenas uma formação para trabalhar em sala de aula, mas também para lidar
com atores, ensinando e sendo, por que não, o professor-preparador deles?
Assim, além de intuir e poder verificar como o trabalho do ator está intimamente
ligado ao trabalho teatral e que este pode ser um meio para chegar a uma proposta
cinematográfica, pude ainda encontrar um novo significado para minha formação
acadêmica, uma formação que não faz parte do nosso currículo, mas que tive a
oportunidade de vivenciar. Ademais, participei do 4º SIIEPE22 da UFPel
apresentando parte da pesquisa aqui descrita, com foco no trabalho realizado no
RASKH e ainda estou envolvido na preparação de elenco de um novo filme que será
gravado no próximo ano.
Por ora, as notas aqui reunidas dão conta de expor considerações acerca do
trabalho do ator e pretendem incentivar a utilização do conhecimento do campo
teatral para treinamento de atores em propostas fílmicas. Não proponho aqui uma
fórmula de preparação de elenco teatral, tampouco sugiro que seja utilizada a
mesma técnica que utilizei em quaisquer que sejam os filmes em que as
preparações estão aqui relatadas. O que pretendo com este trabalho é incentivar os
atores, diretores e pessoas envolvidas em um filme a buscarem referenciais teatrais
e também desmistificar o conceito de “ator teatral demais”. Entendo que basta
proporcionar ao ator um campo de trabalho propício ao desenvolvimento e criação
de sua personagem que será possível obter um trabalho fílmico que realize a
proposta pensada pelo diretor, integrando ator, preparador de elenco e o teatro.
22
Semana Integrada de Inovação, Ensino, Pesquisa e Extensão.
46
REFERÊNCIAS:
Bibliográficas
BOAL, Augusto. Jogos Para Atores e Não Atores – Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1997.
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Websites e Blogs
Outras Mídias
48
ANEXOS
49
ANEXO I
Depoimento de Wagner Previtali sobre a Preparação de Elenco do filme
Bicha Camelô:
50
ANEXO II
Relato de Mands Di Martino sobre a preparação de elenco do filme
RASKH:
51
ANEXO III
Arquivos multimídia23.
Acesse os conteúdos digitando os links aqui expostos ou a partir da leitura dos
códigos QR24. Para isso, faça o download de um leitor de QR code em seu
smartphone ou tablet, abra o aplicativo e aponte a câmera do aparelho para o
código, liberando acesso ao conteúdo.
Link: https://goo.gl/vfeRLj
Link: https://goo.gl/2AgrrD
23
Observações: Até o momento de conclusão deste documento, o filme RASKH não estava finalizado. Os vídeos
e imagens da preparação do filme Bicha Camelô também não foram enviadas a tempo de integrarem os
anexos.
24
Siga em inglês para Quick Response, Resposta Rápida em português.
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