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Nº 161 - Julho 2019 - R$ 6,00 - www.suplementopernambuco.com.

br

GENOCÍDIO INDÍGENA,
DITADURA MILITAR,
REVOLTA DA ARMADA:
narrativas questionam, de
diferentes formas, violências
e apagamentos, interpelando
as versões oficiais da História

LUÍSA VASCONCELOS

SOBRE TRADUZIR AUDRE LORDE | BABY, UMA CRÍTICA NA VOZ DE GAL | VERA MALAGUTI
2
PERNAMBUCO, JULHO 2019

C A RTA DOS E DI TOR E S E X PE DI E N T E


GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO

P
Governador
Paulo Henrique Saraiva Câmara
artimos, nesta edição de julho, de uma O segundo é o perfil da criminóloga Vera Malaguti
ideia geral de conflito, algo onipresente na Batista, que investigou de forma transdisciplinar Vice-governadora
Luciana Barbosa de Oliveira Santos
História do Brasil. Comecemos pela capa. o projeto colonialista brasileiro com foco no
Nela, três textos interpelam as narrativas encarceramento. Já a historiadora Raquel Barreto Secretário da Casa Civil
Nilton da Mota Silveira Filho
autorizadas com outras: o Relatório discute, de forma introdutória, a importância de
Figueiredo, que documenta o genocídio pensarmos a representação de pessoas negras nas COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE
indígena realizado pelo Estado e por latifundiários artes visuais, em apontamentos que lançam algumas Presidente
das décadas de 1940 a 1960, é abordado por Heloisa questões em círculos de conversa pouco familiarizados Ricardo Leitão
Murgel Starling. Eurídice Figueiredo se debruça sobre com esse debate. Por fim, ao “léu” como convém, Diretor de Produção e Edição
as estratégias de B. Kucinski para, entre o biográfico o texto sobre Baby, de Caetano Veloso, resgata a Ricardo Melo
e o ficcional, mostrar a necessidade de reparação nuance política do Tropicalismo e os embates que Diretor Administrativo e Financeiro
histórica das famílias que tiveram pais, mães, filhos ou protagonizou no final da década de 1960. Bráulio Meneses
primos mortos pela ditadura. Lilia Schwarcz, por sua Também nesta edição apresentamos o projeto
vez, expõe como Lima Barreto aproveitou a Revolta de viagem da jornalista, crítica literária e curadora
da Armada em seu Policarpo Quaresma para criar uma portuguesa Isabel Lucas, que percorrerá o Brasil nos
crítica social potente. A eles se junta o 5° livro do nosso próximos meses. Ela parte da literatura e da experiência
Uma publicação da Cepe Editora
selo literário, No calor da hora, em que Walnice Nogueira das ruas para captar algo deste país ainda tão regido Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
Galvão investiga as fake news produzidas sobre Canudos pela crença no progresso futuro. As reportagens serão Pernambuco – CEP: 50100-140
nos jornais da época e que é lançado durante a Flip. publicadas neste Pernambuco e no jornal português Redação: (81) 3183.2787 | [email protected]
Outros três textos caminham juntos ao abordarem Público. Ao fim, esses textos se tornarão um livro
SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
conflitos sob a perspectiva do diálogo. O primeiro é publicado pela Cepe Editora. Luiz Arrais
o de Stephanie Borges, sobre o processo de traduzir
EDITOR
uma intelectual tão necessária quanto Audre Lorde. Uma boa leitura a todas e todos! Schneider Carpeggiani
EDITORES ASSISTENTES
Carol Almeida e Igor Gomes

COL A BOR A M N E STA E DIÇ ÃO DIAGRAMAÇÃO E ARTE


Filipe Aca, Hana Luzia, Janio Santos e Luísa Vasconcelos
Eurídice Figueiredo, Lilia Schwarcz, Stephanie Borges, TRATAMENTO DE IMAGEM
professora (UFF), autora professora e jornalista, tradutora Agelson Soares
de A literatura como pesquisadora (USP), e poeta, autora de REVISÃO
arquivo da ditadura autora de Sobre o Talvez precisemos Maria Helena Pôrto
autoritarismo brasileiro de um nome para isso COLUNISTAS
Everardo Norões, José Castello e Wellington de Melo
PRODUÇÃO GRÁFICA
Júlio Gonçalves, Eliseu Souza, Márcio Roberto, Joselma Firmino
Heloisa Murgel Starling, professora, pesquisadora (UFMG), autora de Ser republicano no Brasil Colônia; Leonardo Nascimento, e Sóstenes Fernandes
jornalista e doutorando em Antropologia (Museu Nacional/UFRJ); Piotr Kilanowski, tradutor e professor (UFPR); Priscilla Campos, MARKETING E VENDAS
jornalista, poeta e doutoranda em literatura hispano-americana (USP), autora de O gesto; Raquel Barreto, historiadora e doutoranda Tarcísio Pereira, Rafael Chagas e Rosana Galvão
em História (UFF); Renato Contente, jornalista e doutorando em Sociologia (UFPE). E-mail: [email protected]
Telefone: (81) 3183.2756
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PERNAMBUCO, JULHO 2019

BASTIDORES

LUÍSA VASCONCELOS

Lorde rejeita a ideia de privilegiar um dos as-


pectos de sua identidade de acordo com o papel
que desempenha. Assim, a autora de Irmã outsider
é uma poeta escrevendo ensaios, uma professora
se dirigindo ao público, uma mãe dividindo suas
experiências e uma mulher encarando a própria
mortalidade depois de um diagnóstico de câncer.
E, embora um texto ou outro evidencie uma face
mais do que outra, todas se fazem presentes na
forma como Lorde traça relações entre sua vida
e as estruturas sociais, indo do particular para o
geral, associando o pessoal e o político.
Um dos meus desafios na tradução era conciliar a
poeta, a leitora, a jornalista e a mulher negra que se
reconhece nas análises de Lorde e aceitar que todas
essas identidades carregam saberes úteis para me
aproximar de seus textos e fazê-los chegar ao por-
tuguês. Pelo menos uma vez por semana eu voltava
ao Youtube para ouvir Audre Lorde e me perguntava:
como vai soar essa tradução? Como encontrar um
registro que acolha a vulnerabilidade e a força com
que ela divide o que aprendeu lidando com o câncer
e o conhecimento que provém do erótico, da poesia?
Nos EUA, a militância nos movimentos antirra-
cistas e nas lutas pelos direitos civis levou as pes-
soas negras a se tratarem por brother/sister, evocando
alianças e semelhanças de viver as consequên-
cias de uma diáspora forçada. Lorde se posiciona
como uma irmã, tratando outras mulheres negras
na primeira pessoa do plural, estabelecendo um
território comum para depois nos lembrar que
somos também indivíduas, que parte da lógica ra-
cista consiste em apagar nossas complexidades e
particularidades. Reconhecer nossas diferenças e
trabalhar por objetivos em comum apesar delas é
a única forma de conduzir lutas coletivas contra
machismo e o racismo.

Tornar-se,
A tradução envolve a consciência da perda, das
Stephanie Borges limitações, da necessidade de escolhas e, neste
caso, do meu desejo de me aproximar da voz de
Meu primeiro contato com a prosa de Audre Lorde Lorde. Ler sua prosa sem esquecer que são textos

mais uma vez,


foi A poesia não é um luxo. O tom do texto me surpre- de uma poeta me parecia relevante para preservar
endeu. Seus ensaios, muitas vezes apresentados imagens e fazer escolhas que provocassem estra-
em conferências, soam como conversas. Há uma nhamentos. Leitores de poesia estão acostumados
cadência, imagens com as quais ela captura nos- com a experiência. No entanto, Irmã outsider é uma

uma irmã
sa atenção, sensibiliza-nos com sua franqueza e referência do feminismo negro e lésbico, uma obra
então apresenta suas ideias. Ao final da leitura, que nos ajuda a compreender a importância da
abri o Youtube para ouvir registros de Lorde lendo interseccionalidade e da descolonização. Como
poemas, entrevistas, gravações de palestras. Suas conciliar a tensão entre um pensamento sofistica-
palavras me instigaram a buscar sua voz. Eu ainda do e um tom que recorre ao poético para abordar

Uma poeta-tradutora divide não sabia, mas era só o começo.


Irmã outsider é uma coletânea fundamental para
experiências extremamente políticas?
Quando a poeta afirma que mulheres negras são

as muitas perguntas que a


compreender o pensamento feminista intersec- ensinadas a rejeitar a cor de sua pele, a textura de
cional de Lorde, que se articula a partir das expe- seus cabelos, tudo o que é associado à negritude e
riências de ser uma mulher negra, lésbica, mãe e a ser mulher, penso em meus cabelos alisados na
acompanharam no processo feminista. Integrante de diversas minorias, a autora
reforça em seus textos a importância de as pessoas
adolescência. Tantos rostos conhecidos me veem à
cabeça. Nenhuma de nós veio ao mundo querendo

de ser atravessada pelas se definirem com suas palavras, pois a sociedade já


tem ideias pré-concebidas sobre corpos que estão
ser outra coisa, mas os discursos, a ausência de
mulheres negras em espaços de decisão e poder,

palavras da escritora fora de uma norma branca, magra e hétero. A poesia


é uma necessidade, uma forma de encontrar as
a pouca oferta de histórias em que falamos de nós
com nossas palavras servem como uma lição de

e ativista Audre Lorde


palavras que nos permitem ser honestas com quem que há pouco espaço para quem somos. Parte do
somos e o com o que desejamos, e não apenas um processo é desaprender isso, preservar o que nos
jogo de linguagem. serve e descobrir como criar as mudanças que
Em vários momentos, perguntei-me se me tor- consideramos necessárias. As ferramentas do senhor
nei uma tradutora de Audre Lorde por causa das não derrubarão a casa-grande.
semelhanças e diferenças entre nós. A primeira Traduzir Audre Lorde foi um aprendizado como
edição de Irmã outsider foi lançada em 1984 – ano poeta, feminista e intelectual. Foi um processo de
do meu nascimento – e Lorde morreu em 1992, aceitar as minhas vulnerabilidades para que suas
quando eu descobria a poesia com Ou isto ou aquilo palavras chegassem a outras que, como eu, um dia,
de Cecília Meireles. Cheguei aos seus ensaios em precisam delas e ainda nem sabem.
2017, pesquisando poetas negras enquanto escrevia Soa diferente em português, mas gosto de pensar
meu primeiro livro Talvez precisemos de um nome para que minha intromissão como tradutora em Irmã out-
isso. Nosso reencontro se deu pela tradução: duas sider é a tentativa de transmitir a sensação de ouvir
outsiders pensando a realidade a partir das muitas essa mulher que considero sábia. Se meu corpo e
maneiras como nossos corpos não se enquadram minha voz se impõem nesses ensaios é porque eu
em determinadas visões de mundo. gostaria que terminassem o livro com a impressão
Traduzir Irmã outsider não foi apenas um processo que me acompanha desde a minha primeira leitura
intelectual, a leitura atenta, as escolhas e a pesquisa. Audre Lorde: a de ter ganho uma irmã.
Era lidar com um texto que evocava lembranças,
histórias de família, experiências para as quais
eu ainda não tinha nomes, mas ela já tinha con- O LIVRO
ceituado há décadas com muita clareza, embora Irmã outsider
a raiva de uma mulher diante da misoginia e do Editora Autêntica
racismo não seja algo simples de articular com Páginas 208
objetividade. Encontrar o tom da prosa de Lorde é Preço R$ 54,90
um exercício de escuta. Aproximar a tradução de
uma certa informalidade, da conversa, mas sem
diluir o impacto de certas decisões da autora.
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ARTIGO

A paródia
elaborada da
antropofagia
Sobre a palavra que, no lápis
de Caetano e na voz de
Gal, catalisou um período
Renato Contente

Brasil, 1968. Enquanto urubus passeiam entre gi- gens estrangeiras), mas também se tratava de uma
rassóis e há tigres e leões soltos nos quintais, somos convocação pública a uma guerrilha do afeto: tomar
incitados ao consumo de ideias e produtos de toda um sorvete na lanchonete, ver de perto a quem se
sorte: os militares que vendem como idílico um país ama, estabelecer o cuidado de si e dos seus em um
em frangalhos (“ninguém mais segura este país”), os país em estado de exceção.
estudantes franceses que propõem barricadas e so-
nhos como estratégia política (“sejam realistas, exijam MONUMENTO BEM MODERNO
o impossível”), bens de consumo duráveis (“Volks- No ensaio Entre o erudito e o popular, José Miguel Wisnik
vagen 1600, um Volksvagen em nova embalagem”) argumenta que o arco que compreende o desvario
e não duráveis (“Wembley, o cigarro mais alegre que dos modernistas de primeira hora à bossa nova marca
você vai conhecer”). Entre esses anúncios, uma terna o momento em que “a cultura letrada de um país
canção com presença massiva nas rádios sugere aos escravocrata tardio enxergou na liberação de suas
ouvintes, ou lhes impõe, estranhas prospecções: “você potencialidades mais obscuras e recalcadas, ligadas
precisa saber da piscina, da margarina, da Carolina, secularmente à mestiçagem e à mistura cultural, en-
da gasolina – você precisa saber de mim”. tremeadas de desejo, violência, abundância e miséria,
Síntese macia do Tropicalismo, Baby, a canção de a possibilidade de afirmar seu destino e de revelar-se
Caetano Veloso que adquiriu musculatura na voz de através da união entre o erudito e o popular”.
Gal Costa, consolidou uma ideia de modernidade No entanto, não há projetos de modernidade
que vinha sendo esboçada e retrabalhada desde o isentos de disputas por poderes. A bossa nova e o
advento da bossa nova, 10 anos antes. Na verdade, Tropicalismo, orquestrados pelas elites culturais de
era a culminância de uma culminância anterior suas épocas, não fogem à regra. Ao mesmo tempo,
(que seria a bossa nova), dentro de um processo de continuidade e ruptura com a primeira, se tomarmos
elaboração estético-política que se estendia desde a como base a controversa definição de “linha evo-
Semana de Arte Moderna de 1922. Em um momento lutiva” da música popular brasileira (cunhada por
de violenta supressão democrática, ela coloca em Caetano Veloso, em 1966), o Tropicalismo buscava
circulação nas rádios e televisores do país um ousado conciliar as tensões entre o erudito e o popular não
projeto de modernidade crítica, que as vanguardas a partir do apagamento dos estigmas de subdesen-
artísticas antropofágicas vinham desenvolvendo volvimento do país, como o fizera a bossa nova, mas
desde o início dos anos 1960. através da exploração de suas potências. Sob esse
Lançada em agosto de 1968 (quatro meses antes aspecto, os tropicalistas estavam infestados pelo
do AI-5, portanto), no disco-manifesto Tropicalia ou germe de Oswald de Andrade.
panis et circensis, a composição era a cartilha e o ABC No conjunto de ensaios Tudo em volta está deserto, Edu-
de um consumo cultural moderno; um manifesto ardo Jardim sustenta que as mesmas categorias-chave
“consumista-afetivo”, que discorria sobre a inserção do Modernismo dos anos 1920 estiveram na base do
do país na indústria cultural da década de 1960, o Tropicalismo: o par modernismo e passadismo, a
nosso lugar na cultura de massa (subalternizado, pero articulação entre o elemento nacional e o contexto
no mucho) e uma possível conciliação das antigas universal (que inseria o país no concerto das nações) e
tensões entre o erudito e o popular. a desejada coalizão entre o erudito e o popular, como
Era preciso estar atento ao sangue sobre o chão, parte de um projeto de unidade cultural nacional.
mas sem abrir mão de uma ternura cotidiana en- Para Wisnik, no entanto, o movimento arregimen-
quanto estratégia de resistência. A canção não era tado por Baby adensava as estratégias antropofági-
apenas convidativa ao consumo pop de então (“ouvir cas de seus antecessores a partir de atos paródicos
aquela canção do Roberto”, a Carolina de Chico Bu- mais elaborados, através dos quais “o colonizado,
arque, aprender inglês para se inteirar das mensa- assinalando voluntária e criticamente as marcas de
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HANA LUZIA E LUÍSA VASCONCELOS

Caetano Veloso, em 1963, em Salvador. Ali, eles


descobriram compartilhar de um elo sagrado: ambos
eram devotos de João Gilberto, pai da bossa nova e
baliza da modernidade que eles então ambicionavam
vivenciar artisticamente.
Essa ligação “joão-gilbertiana” se desdobrou em
uma das parcerias mais singulares da música bra-
sileira. Sobretudo até o início da década de 1970, a
relação artística entre os dois se deu através de um
curioso jogo de espelhos. Não apenas musical, mas
inclusive visual, através de penteados, roupas e um
mesmo batom vermelho.
Desde antes de Baby, antes mesmo de Domin-
go (1967), álbum bossanovista que marca a estreia dos
dois, Gal já era um alter ego feminino do compositor.
Talvez por isso mesmo, ela também era uma espécie
de protótipo de modernidade para o qual ele proje-
tava os experimentos estéticos que o inquietavam. O
próprio “autoritarismo terno” do eu-lírico de Baby ao
seu interlocutor, em relação ao que “você precisa”
para obter um consumo cultural moderno, evoca
o jogo de espelhos dos dois corações vagabundos.
Embora os gestos fundantes do Tropicalismo se-
jam as performances de Alegria, alegria, com Caetano
Veloso ao lado dos Beat Boys, e Domingo no parque,
com Gilberto Gil e os Mutantes, no Festival da Record
de 1967, Baby marcou a popularização do movimento
e facilitou sua adesão social. Afinal, com sua cínica
ternura, absolveu o Tropicalismo de parte das con-
trovérsias que o tinham como alvo.
Baby se despedia de 1968 como a terceira canção
mais tocada do ano, atrás apenas de Hey Jude, dos
Beatles, e Viola enluarada, de Marcos Valle e Milton
Nascimento. A 29ª colocação nas paradas de sucesso
também pertencia a Gal: Divino maravilhoso, de Caetano
e Gil. A enfática chamada para estarmos atentos e
fortes diante da ditadura militar havia sido apresen-
tada pela primeira vez ao público no Festival da Record
daquele ano. Com uma performance tropicalista até a
medula, a cantora demarcava em público a persona
política que assumiria na música popular brasileira
até o início da década de 1970.
O sucesso de Baby havia garantido a Gal o privilégio
de estrear em um álbum solo naquele mesmo 1968,
mas, após o exílio de Caetano e Gil, a gravadora re-
sua humilhação histórica, desrecalca os conteúdos
reprimidos e dá a eles uma potência afirmativa”.
A bossa nova havia sido um desdobramento cul-
Com sua cínica agendou a estreia do disco já pronto para março do
ano seguinte, temendo represálias.
Sem chão com a partida de seus principais ali-
tural condicionado a um projeto de modernidade
extenso e vistoso, inclusive de caráter civilizatório ternura, Baby cerces afetivos e artísticos, Gal tomaria as rédeas
da resistência estética à ditadura militar. O germe

tentou absolver o
(todos não o são, afinal?). Como destaca Silviano tropicalista permaneceria pulsante nos álbuns e
Santiago, em Genealogia da ferocidade, o país vivenciava espetáculos da cantora do período, mas sem ser um
a euforia político-desenvolvimentista dos anos de pastiche do movimento: estava mais próximo de uma

Tropicalismo de parte
Juscelino Kubitschek e de seu afamado Plano de decantação deste, um desdobramento, uma reelabo-
Metas, conhecido pelo slogan “50 anos em 5”. Santiago ração estético-política que deu corpo ao desbunde.
contextualiza a modernização asséptica e ambiciosa O grande marco desse movimento foi justamente
da década de 1950 para contrastá-la ao surgimento de
um monstro chamado Grande Sertão: veredas, em 1956.
Um monstro cuja qualidade selvagem se destaca
das controvérsias o espetáculo Gal a todo vapor, de 1971, que ganhou o
acréscimo de Fa-tal em sua adaptação para disco.
Urdida por momentos de melancolia, raiva e arrou-
com nitidez na paisagem modernizadora do Brasil de
então, “como um objeto estético insólito, uma pedra-
-lascada, e não uma pilastra em concreto armado,
que o tinham bos de alegria, a narrativa assinada pelo poeta Waly
Salomão consistia em uma mensagem na garrafa
para os exilados d’além-mar: meu amor, tudo em volta
geometricamente perfeita”. Baby também era um
monstro selvagem na paisagem militarizada de 1968,
mas sabiamente fantasiado de um ingênuo pierrô.
como alvo na época está deserto, tudo certo como dois e dois são cinco.
Eduardo Jardim sustenta que Gal a todo vapor de-
marcou o fim do Modernismo no Brasil, uma vez
O amplo projeto de modernização de JK esbar- não pereceu, nem os preceitos tropicalistas, que se que as preocupações de raiz oswaldiana inexistiam
raria na instabilidade dos anos que seguiriam ao ramificaram em diversas movimentações culturais na concepção do espetáculo. “Para seus criadores, o
seu governo, com a renúncia de seu sucessor, Jânio importantes no país, como o desbunde, mas o pro- Tropicalismo – o movimento que os antecedeu – já
Quadros, e a perseguição ao vice deste, João Goulart. jeto de modernidade que isso tudo representava fora tinha encerrado seu ciclo. Suas conquistas foram in-
Esse processo culminaria no golpe militar que, por violentamente diluído. corporadas e não era preciso voltar a elas”, escreveu o
20 anos, estrangularia a frágil democracia brasilei- autor, no já citado livro de ensaios. Para ele, as canções
ra, cujos hematomas roxo-escuro estranhamente BIOGRAFIA DE UMA CANÇÃO de Waly e Jards Macalé presentes no espetáculo, em
escureceram nos últimos anos, e voltaram a deixar Se pudéssemos visualizar o arranjo que o maestro especial Vapor barato, são as realizações mais significa-
à mostra grossas marcas de dedos. Rogério Duprat compôs para Baby, ele teria a dinâmica tivas dessa nova etapa – do fim de uma modernidade
Baby simboliza o ápice de uma tentativa de moder- veloz do crescimento de uma bactéria. Inicialmente, crítica para um abismo de definição imprecisa.
nidade crítica que, em certa medida, falhou. E falhou ouvimos acordes de um baixo e batidas de baquetas. Sai de cena um terno e suave baby, I love you. O
por conta das realidades da modernização conser- Em segundos, soma-se um violão e, logo depois, uma galante vocativo anglicano não morre, mas se trans-
vadora da ditadura militar, da indústria cultural e bateria suave. Em seguida, metais deslumbrantes forma em uma honey baby. Um lamento gutural de um
da globalização, como sugere Wisnik. Nas palavras expandem tons e texturas. São 43 segundos de uma bicho triste, um grito agudo como a dor de quem o
do autor, o Tropicalismo fora “ao mesmo tempo, e sinfonia multicolorida até surgir a primeira ordem emite, projetado para ser ouvido a grandes distân-
contraditoriamente, o fim do ciclo (desses projetos de Gal Costa, que, sob o auxílio preciso de Duprat, cias. No espetáculo Recanto, de 2012, os dois voca-
de modernidade) e a vontade de dar-lhe uma nova transforma uma estrutura celular básica em um tivos coexistem na narrativa proposta para Gal por
e incisiva atualidade”. complexo e político organismo vivo. Caetano. No roteiro, as canções participam de um
A ditadura seria ainda mais embrutecida com o Não havia cantora mais apropriada para ves- acirrado jogo semântico de luz e sombra em que
AI-5, em 13 de dezembro de 1968; 14 dias depois, tir Baby da modernidade crítica que ela tão bem não há vitoriosos nem perdedores definitivos. Há
Caetano Veloso e Gilberto Gil seriam presos pelo vendia do que Gal. Mesmo que a canção tivesse o Brasil, e nele urubus passeando entre girassóis,
regime, sendo enviados para o exílio meses depois, sido encomendada por Maria Bethânia, irmã do tigres e leões soltos nos quintais. Mas há também o
de onde só retornariam em definitivo em janeiro compositor, e para a voz dela desenhada. Gal ainda importante lembrete de que precisa ter olhos firmes,
de 1972. É evidente que Baby, um hit inesperado, era Maria da Graça, Gracinha, quando conheceu pra este sol, para essa escuridão.
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PERFIL

Por uma vida Em um dos mais altos momentos da filosofia prati-


cada no século XX, Michel Foucault escreveu as belas
páginas de O Anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista

sem fascismo
(1977). Impressiona como, ao apresentar a edição es-
tadunidense de O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (de
Gilles Deleuze e Félix Guattari), Foucault foi capaz de
enunciar – em tão breve texto – um libertador modo
de pensamento e de vida, numa intrincada relação

e sem prisões
com a obra prefaciada.
“Como fazer para não se tornar fascista, mesmo (e
sobretudo) quando se acredita ser um militante revo-
lucionário? Como livrar do fascismo nosso discurso
e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres?
Vera Malaguti e uma Como desentranhar o fascismo que se incrustou em
nosso comportamento?” – são essas algumas das

criminologia crítica que questões que, segundo Foucault, Deleuze e Guattari


enfrentam ao espreitar os traços mais íntimos do

produz desejos de liberdade


fascismo no corpo, em dissonância com aqueles que
se compraziam em buscar os traços da carne alojados
nas dobras da alma.
Em nossas margens, na periferia do capitalismo
Leonardo Nascimento global, penso que nenhuma outra obra atualizou de
forma mais radical a “arte de viver contrária a todas
as formas de fascismo, estejam elas já instaladas ou
próximas de sê-lo”, do que aquela produzida pela
eminente criminóloga Vera Malaguti Batista, profes-
sora da Faculdade de Direito da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro.
Graduada em Ciências Sociais pela PUC-Rio, em
1981, Vera Malaguti é parte de uma geração atravessa-
da pela presença da ditadura empresarial-militar em
sua formação política e acadêmica. Tendo ingressado
na Sociologia em 1973, viveu o período em que a PUC
se convertia numa espécie de refúgio intelectual na
cidade, uma vez que professores de universidades
públicas vinham sendo cassados pelo regime. Ainda
assim, em entrevista realizada em seu apartamento na
cidade do Rio de Janeiro, recorda-se que o momento
histórico convocava os estudantes a passarem mais
tempo fora das salas de aula do que dentro, integrando
as atividades organizadas pelo movimento estudantil.
Mesmo sendo aluna de referências do pensamento
(ela cita como exemplos Roberto Machado, Ivandro
da Costa Sales e Miriam Limoeiro), Vera considera o
período em que estudou na Costa Rica como essencial
para sua formação, já que o pensamento crítico bra-
sileiro estava excessivamente tolhido pela censura.
Vivendo entre 1977 e 1980 em Heredia – cidade com Assim, ao fazer seu mestrado em História Social na
intensa vida acadêmica por conta dos professores exi- Universidade Federal Fluminense, sob orientação de
lados ali presentes –, pôde aprofundar os estudos em Gizlene Neder, debruçou-se sobre o processo de cri-
marxismo e ampliar sua visão latino-americana, num minalização de adolescentes pobres na cidade do Rio
período de muitas insurgências na América Central. de Janeiro, no período entre 1968 e 1988. Interessava-
Ao retornar ao Brasil, viveu a experiência que con- -lhe, sobretudo, reconstituir a história de meninos e
sidera como sua grande escola, trabalhando nos dois meninas criminalizados pelo envolvimento com dro-
mandatos em que Leonel Brizola esteve à frente do gas, bem como elucidar a cristalização do estereótipo
governo do estado do Rio de Janeiro, de 1983 a 1987 e conduzido por seus inquisidores (médicos, psicólogos,
1991 a 1994. Seu contato com a questão criminal deu- educadores, assistentes sociais, policiais e juízes).
-se mais diretamente no segundo mandato, quando Na busca por essas fontes, realizou levantamentos
passou a assessorar Nilo Batista, à época vice-go- nos arquivos do Departamento de Ordem Política e
vernador e secretário de Justiça e Polícia Civil (em Social (DOPS), nos arquivos da extinta FUNABEM e
1994, ele assumiria o governo com o afastamento de no arquivo da 2ª Vara de Menores do Estado do Rio
Brizola para concorrer às eleições presidenciais). Foi de Janeiro.
assim que Vera Malaguti começou a atuar em pro- Como já era de se esperar, o que ela encontrou foi
jetos especiais na área de segurança pública, ao lado uma infinidade de histórias tristes. “Todos os lapsos,
de Nilo Batista, seu companheiro desde então, e do metáforas, metonímias, todas as representações da
coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, secretário juventude pobre como suja, imoral, vadia e perigosa
da Polícia Militar. formam o sistema de controle social no Brasil de hoje
“Nós fomos muito bombardeados pela questão da e informam o imaginário social para as explicações da
segurança pública, por termos defendido bandeiras questão da violência urbana” – afirma Vera em Difíceis
que eram consideradas fracassadas. Quando se olha ganhos fáceis – drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro, livro
para tudo aquilo que aconteceu desde então, essa é oriundo de sua dissertação de mestrado.
hoje nossa maior força. Há alguns anos, fizeram um Sua hipótese central baseava-se na ideia de que na
adesivo que dizia: ‘Brizola tinha razão’. Nossa visão passagem da ditadura para a abertura democrática
estava totalmente ligada ao seu projeto para o Rio havia ocorrido um deslizamento na figura do inimigo
de Janeiro e para o Brasil. Mas, naquele tempo, nem interno, passando do militante político de esquerda
mesmo o PDT compreendia qual era a nossa política para o traficante. Todo o sistema de controle social –
de segurança pública; uma política não de direito à através das políticas de lei e ordem e da disseminação
segurança, mas de segurança dos direitos. Nossa polí- de pânicos morais – convergia para a confecção desse
tica focava na contenção da truculência policial e, ao novo estereótipo. Assim, o marginal ia-se consuman-
mesmo tempo, na proteção do trabalhador policial.”. do na imagem do jovem negro, funkeiro, morador de
favela, portador de algum sinal de orgulho ou poder
DIFÍCEIS GANHOS FÁCEIS e nenhum sinal de resignação diante do cenário de
Foi trabalhando intensamente em sua experiência de pobreza que o circundava.
governo que Vera Malaguti percebeu a necessidade Paralelamente aos processos de ajuste econômico
de aprofundar os estudos na área criminal. A questão (reflexo da crise de superprodução da economia mun-
que lhe perturbava à época centrava-se na incansável dial a partir do final da década de 1960), os governos
atuação da mídia para consolidar a figura do “trafi- dos Estados Unidos passam a utilizar o combate às
cante” como inimigo público número um, produzindo drogas como foco de sua atuação internacional. As
o que ela tem chamado de constituição do sujeito matável. drogas passam a ser o eixo das políticas de seguran-
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PERNAMBUCO, JULHO 2019

PABLO VERGARA / DIVULGAÇÃO

perspectiva, as escolas criminológicas se apresen-


tam em referência às demandas por ordem de cada
conjuntura econômica, política, social e cultural.

POR QUE FALAMOS EM ABOLICIONISMOS?


A respeito do livro de Deleuze e Guattari, Foucault
sublinha o pouco apreço dos autores pelo poder. Creio
que o mesmo se pode dizer de Vera Malaguti Batista,
sobretudo quando se sabe da inglória batalha trava-
da por ela contra a expansão da militarização (e da
milicização) no estado do Rio de Janeiro, levada a
cabo nos últimos anos pelo projeto das Unidades de
Polícia Pacificadora – esse laboratório de fascismo
social testado no Rio e expandido para o restante do
país nas mais diferentes formas.
Ao mesmo tempo que grandes figuras da sociologia
carioca emprestavam seus nomes e títulos para a
consolidação dos perversos projetos do capital trans-
nacional, produzindo teorias que naturalizavam o
aplauso à truculência, Vera manteve-se firme na
trincheira garantidora dos direitos. Foi nesse mo-
mento que travei meu primeiro contato com sua
obra, através de um texto em que ela desmistificava
o museu de velhas novidades coloniais representado
pelas UPPs (sempre com o descarado auxílio dos
“operadores do consenso” atuantes na imprensa

Quando perguntada
sobre quais leituras
recomenda, Vera
Malaguti responde:
Os sertões,
porque estilhaça o
racismo positivista
ça nacional nos países atrelados a Washington. Ao como coisa perante o ordenamento jurídico das re- burguesa). Durante a leitura de O Alemão é muito mais
mesmo tempo, o capital financeiro e a nova divisão lações privadas, mas como pessoa perante o Direito complexo, impressionou-me o grande destemor com
internacional do trabalho empurram os países da Penal. Ela explora ainda a maneira como, a partir que ela é capaz de enfrentar o Império.
periferia para a produção dessa lucrativa mercadoria. da década de 1830, instaura-se a normatização da Enquanto seguimos tipificando novos crimes e
É assim que os países andinos se veem transformados medicina no Brasil, com a patologização do africano. apostando, dia após dia, em mais severas punições,
em campo de batalha, e nossas cidades em mercados O “medo branco” aumenta com o fim da monar- alimentando a ilusão de que a pena executada nos
brutalizados para o varejo residual das drogas ilícitas. quia e do sistema escravocrata, produzindo uma campos de concentração que são as prisões contem-
Essa nova conjuntura termina por fortalecer a cons- República autoritária e excludente, carregando con- porâneas poderá construir uma sociedade melhor, a
trução simbólica das favelas como locus do mal e da sigo o princípio da desigualdade. Na confluência dos coragem de Vera Malaguti de se contrapor aos desejos
desordem, aumentando as estruturas de segregação. discursos médicos e jurídicos, a saída do século XIX punitivistas causou-me sempre imensa admiração,
produz uma vergonhosa criminologia positivista, com mesmo quando era incapaz de alcançar o horizonte
O MEDO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO a incorporação do social-darwinismo e das ideias sofisticado de suas propostas. Afinal, é totalmente im-
Para melhor compreender a entrada do capitalismo lombrosianas no país. possível aproximar-se do cárcere e seguir acreditando
em sua fase neoliberal no Brasil, Vera Malaguti se Observando o paradoxo da implantação do libe- em suas (falsas) promessas. Diante dos moinhos de
viu desafiada a estudar a implantação do liberalismo ralismo, sem ruptura direta com a escravidão, Vera gastar juventude preta e pobre que é o sistema penal,
no país, trabalhando através de uma conexão entre Malaguti nos mostra como o medo do crime e da precisamos – com a máxima urgência – construir
criminologia e subjetividade. Em seu doutorado em violência urbana carrega as marcas das matrizes do novos e radicais sentidos para a palavra justiça. Por
Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social da extermínio, da desqualificação jurídica e da estética da isso temos falado tanto em abolicionismos!
UERJ, pesquisou, sob orientação de Joel Birman, as escravidão. Afinal, no Brasil, autoritarismo e liberalis- Foi apenas em maio deste ano que tive o prazer
estratégias de difusão do medo do caos e da desordem, mo são historicamente faces de uma mesma moeda. de conhecer a professora Vera pessoalmente. Ouvi
empregadas para neutralizar e disciplinar as massas seu encanto ao falar do povo brasileiro – essa categoria
empobrecidas. Para melhor entender as bases do POR UMA CRIMINOLOGIA CRÍTICA E RADICAL que sempre me pareceu tão abstrata e, ao mesmo
medo contemporâneo, analisou os discursos sobre Com sua Introdução crítica à criminologia brasileira, Vera tempo (e mais do que nunca), tão concreta. Quando
segurança pública na conjuntura de pânico do Rio Malaguti produziu um breve e inestimável guia para perguntei se teria alguma indicação de leitura, pron-
de Janeiro da década de 1990, em paralelo ao estudo uma aproximação transdisciplinar da questão cri- tamente respondeu que todo brasileiro deveria ler Os
do século XIX. minal. Dentro da perspectiva denominada por Raúl sertões, vivenciando, a partir do olhar de Euclides da
Em O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma Zaffaroni de “curso dos discursos sobre a questão Cunha, o estilhaçamento do racismo positivista. Em
história, a autora investiga os medos cariocas a partir criminal”, seu livro trabalha os conteúdos teóricos seguida, pôs-se a declamar um dos mais célebres
da repercussão da Revolta dos Malês, uma rebelião numa perspectiva da história social das ideias. Partin- trechos desse livro monumental. “Canudos não se
de escravizados muçulmanos ocorrida em 1835 na do do século XIII, demonstra como o poder punitivo rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu
Bahia. Buscando observar rupturas e permanências vai tomando um lugar central na administração da até ao esgotamento completo...”
históricas, a pesquisa interrogou fontes primárias e vida no Ocidente, em relação direta com os movi- Sou profundamente grato ao trabalho de Vera Ma-
secundárias, destrinchando discursos de um ponto mentos de acumulação do capital, do surgimento e laguti, pois com ele aprendi que só quem se apropria
de vista político, médico, jurídico-penal e, sobretudo, da consolidação do Estado e também com os conflitos de sua história, através da imbricação entre memória
observando as estratégias de “suspeição generalizada” referentes à centralização da Igreja. A questão criminal pessoal e coletiva, é capaz de produzir desejos de
produzidas pela imprensa da então capital do país. aparece, então, não como algo ontológico, mas como liberdade. Como escreveu certa vez a criminóloga
No Rio de Janeiro, o medo branco da cidade quilom- construção histórico-social. Lola Aniyar de Castro, Vera é “uma ardorosa men-
bada – aliado aos pânicos engendrados pela Revolta A partir do século XVIII, com o surgimento do sageira do futuro desejado”. Por isso, mais do que
dos Malês e pelos ventos revolucionários que sopra- Direito Penal moderno, a questão criminal vai ad- justa homenagem, este texto é um convite. Espero
vam do Haiti – detonam todo o horror de violências. quirindo uma centralidade política que se desenvolve que outras pessoas conheçam essa obra que, já há
A autora aponta as contradições jurídicas da legislação nas marchas e contramarchas das relações entre o algum tempo, tem-me inspirado na busca por uma
penal de 1830, uma vez que nela o escravo aparece capital, a mão de obra e os sistemas penais. Nessa vida contrária a todas as formas de fascismo.
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PERNAMBUCO, JULHO 2019

ENTREVISTA
Isabel Lucas

A literatura como
guia pelas ruas de
um país às avessas
Jornalista portuguesa inicia projeto de viajar pelo Brasil
guiada pelo improviso e pela nossas ficções, a fim
de alcançar algo da complexidade que marca a nação
PAULO ALEXANDRINO / DIVULGAÇÃO

uns sete ou oito anos e a minha mãe me


oferecer Jubiabá. Seguiu-se Capitães da areia,
Olhai os lírios do campo, de Érico Veríssimo,
que havia lá em casa. E na adolescência
lia muito a poesia de Drummond, de João
Cabral, copiava letras das canções do Chico
(Buarque) para cadernos, descobri depois os
cronistas Nelson Rodrigues, Luís Fernando
Veríssimo; a seguir, vieram Clarice, Lygia
e, já adulta e a trabalhar, um amigo teve
muita importância em me dar a ler nomes
como Milton Hatoum, Bernardo Carvalho,
Nuno Ramos, Sérgio e André Sant’Anna
e tantos outros. Chamava-se André Jorge
e foi um dos maiores divulgadores da boa
literatura brasileira em Portugal, na editora
que fundou, a Cotovia. Devo-lhe muito,
também por isso, e por me ter apresentado
pessoalmente alguns desses autores. E,
também por ele, descobri um dos livros
mais belos da vossa literatura: A menina
morta, de Cornélio Pena.

Inicialmente, os romances escolhidos


como guias para essa viagem ao Brasil
estão dentro do ambiente do cânone e
da literatura tida como síntese da nação.
Quais os desafios de trabalhar com esses
marcos sínteses do país e atualizá-los em
inicial com nomes canônicos, entre eles Ma- crônicas que os colocam em atrito direto
Entrevista concedida a chado de Assis, Lygia Fagundes Telles, Milton com o contemporâneo?
Carol Almeida e Igor Gomes Hatoum, Raduan Nassar, Gilberto Freyre, Sim, pode-se dizer que é uma escolha
Clarice Lispector e Érico Veríssimo. Ao fim, conservadora, mas pretende ser um
A viagem é um signo bastante recorrente nos o projeto será lançado em livro pela Cepe ponto de partida para a diversidade e o
textos da portuguesa Isabel Lucas. Jornalista, Editora. Nesta entrevista por e-mail, ela fala contemporâneo. Digo sempre que são livros
crítica literária e curadora, Isabel começou da abertura ao improviso e ao diálogo como de partida, pretendem ser vias de abertura
no mês passado uma série de incursões pelo formas de escapar de uma visão colonialista para deixar entrar o que fizer sentido. Pela
Brasil e por nossa literatura, a fim de pescar e do recorte canônico com o qual principia temática, estilo, abrangência, território. Aí
algo desse Brasil que ainda padece de uma seu contato com nosso país. quero guiar-me por todas as possibilidades
retórica do progresso no devir. Provisoria- que eles abrem, e, se me perder, tanto
mente batizado de Viagem ao país do futuro, o De que maneira começou sua aproximação melhor. A literatura, como a viagem, têm
projeto consiste em crônicas que conciliam com a literatura brasileira? O que a fez muito que ver com essa ideia de perdição
literatura e a vivência nas ruas, a serem lan- escolher inicialmente esses autores para e estranheza que gosto de convocar para
çadas simultaneamente no jornal português guiar seus caminhos pelo país? o que faço e escrevo. Vou pedir ajuda pelo
Público e neste Pernambuco. A ideia é bas- Comecei muito cedo a ler autores caminho, serei uma estrangeira numa
tante próxima de seu Viagem ao sonho americano brasileiros. Cresci numa altura em que geografia e numa área onde tenho tudo o que
(Companhia das Letras, 2017), em que per- Jorge Amado era muito popular em aprender. Ter esses livros como guia é ter
correu os EUA por meio de suas estradas e Portugal, nos anos após a Revolução (dos uma segurança porque os li, é aceitar toda a
livros. Para o Brasil, Isabel estabeleceu lista Cravos, em 1974). Lembro-me de ter aventura pelo que eles me podem revelar. Se
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PERNAMBUCO, JULHO 2019

Ter esses livros Falar a mesma


como guia é ter língua não significa
uma segurança dizer que nos
porque os li, entendamos porque
é aceitar toda há uma história
aventura que que tanto nos une
podem me revelar quanto nos divide
conseguir passar a quem lê parte pouco mais quando estiver nos improviso nos meus caminhos. governamental. Dessa forma, de a literatura e a realidade têm
do que vou aprender e encontrar sítios. Ao fazer este trabalho Nesse caminho, serei sempre que maneira o título funcionará muitas dimensões poéticas.
a partir deles, fico contente.  no Brasil, sinto-me mais um tradutor de uma realidade como um condutor de viagem Eu leio muito poesia, mas
amarrada à minha identidade, que não é a minha e farei erros nesse Brasil contemporâneo? raramente escrevo sobre
Em 2017, você lançou Viagem e a isso acresce uma noção de de tradução. Não serão No livro sobre a América (EUA), poesia, acho que é por pudor.
ao sonho americano, um responsabilidade mais visceral.  nunca premeditados.  o título só surgiu quando tudo Se a poesia me contaminar ela
projeto que fazia cruzamentos estava feito. Isso porque a entra, sempre. E levarei poetas
entre um recorte da literatura A ideia de costurar crônicas O fato de escrever durante ideia de livro veio quando as comigo. É uma certeza.
estadunidense com a em (e sobre) um território o processo de viagem – e reportagens já estavam a ser
experiência contemporânea estrangeiro exige uma não depois dela encerrada – publicadas no jornal Público (de Ainda nesse contexto,
e implicações sociais dos EUA vivência cotidiana e conversas implica também uma escrita Portugal). E veio porque trazia o campo da literatura no Brasil
hoje. O movimento de fazer algo com pessoas tanto conhecidas mais contaminada por aquilo essa carga de ambiguidade, vem servindo como um dos
semelhante com o Brasil traz, como desconhecidas. O que imediatamente a cerca. controvérsia, discussão à volta focos de debate sobre revisões
de largada, outras camadas. quanto de planejamento e Enquanto jornalista, o quão de uma frase que tem a ver históricas de quem narra e
Para além de termos uma língua o quanto de improvisação importante é esse estado de com o mito americano. Agora, quem é narrado. Machado
compartilhada, o fato de você existiu no primeiro percurso espírito para a forma textual a proposta desse título veio daí, de Assis, por exemplo,
ser portuguesa em viagem por (os EUA)? Esse plano vai se do projeto? por também ela conter essa começou a ter sua negritude
terras brasileiras traz também repetir no Brasil? Acho que já respondi um pouco ambiguidade, quase ironia. reconhecida por parte da
dimensões coloniais. De que Há muito mais planejamento a isso na pergunta anterior. O Concordei. Acho que se ajusta. academia e Casa-grande e
forma pensa sobre esse corpo, na minha ida ao Brasil do contágio é bem-vindo. Este não Tentarei não me guiar por ela. senzala vem passando por
inevitavelmente marcado que houve nos Estados é um trabalho científico. São Se, no final, perceber que não revisões que problematizam
por essa memória, Unidos. Por questões práticas, reportagens a partir da literatura faz sentido, mudarei. Partir a romantização mitificada
atravessando o Brasil? apenas. Mas elas acabam e, se eu sentir nostalgia, esse para uma reportagem para ir de uma democracia racial
Traz isso tudo, sim, e é por ser determinantes. Nos estado irá passar para o texto; ao encontro de um título vai defendida por Gilberto Freyre.
uma coisa de que estou Estados Unidos, andei meio se for entusiasmos, também contra o que entendo como Como são dois autores que
bastante consciente. Falar a vadia, à solta, a decidir os passará. São textos que quero jornalismo. Por isso, já esqueci estão no plano original do
mesma língua não significa percursos meio em cima da com vida e que tenham o o título. Como é mesmo?  seu percurso literário pelo
necessariamente que nos hora, a desviar-me de rotas. objecto de se aproximarem de país, gostaríamos de saber
entendamos melhor, porque Isso fez com que o acaso uma ideia de verdade – seja ela Percebemos que há uma se você chega com um plano
há referências e circunstâncias desempenhasse um papel qual for: literária, de território, prioridade para a prosa, de trabalho específico para
diferentes, e uma história que crucial no trabalho. No Brasil, de identidade – mesmo mais especificamente para lidar com eles.
tanto une como divide. Eu tudo está mais planejado, o sabendo que nunca a irei romances, no seu recorte Temo sempre muito os
vivo no meu tempo e carrego que é muito mais descansativo. alcançar. Mas vou tentar ler a inicial de livros. Isso aconteceu revisionismos históricos ou
uma história. A literatura tem Pude contar com pessoas pensar nisso. E também sei que também com Viagem ao de memória. Saber ler à luz
vindo a tratar isso, a lidar com que me ajudam a planejar as não voltarei a ler os livros que já sonho americano, ainda que o do tempo é preciso. Como é
isso, mas há questões muito viagens, tratam da produção, li da mesma maneira. Eles vão desfecho se dê com um verso preciso saber ler à luz do nosso
presentes a suscitar paixões. coisa que não existiu nos carregar a minha experiência de Walt Whitman. Qual sua tempo. Só que neste tempo nós
Vou, mais uma vez, pedir ajuda Estados Unidos. Isso liberta- de viagem. Como os textos que relação com escritos poéticos já temos mais conhecimento.
para tentar ler melhor essa -me energia para me focar eu escrever. Há subjectividade ou de contos no Brasil? Isso permite que tenhamos
realidade. Ajuda de estudiosos nas reportagens. Mas não nisso, claro. Os livros que escolho não são também mais ferramentas
e conversas com pessoas dispensarei a rua, as vozes, necessariamente os livros de para perceber o que foi feito e
que não têm essa dimensão os cheiros, as paisagens, a Seu próximo livro surge com que mais gosto, mas não há como deverá ser feito o debate.
teórica. Quero fugir a clichés, vida. Se não houver isso, estas o título de Viagem ao país do aqui nenhum livro de que É preciso isso, que as pessoas
a esterótipos, a preconceitos, reportagens não farão, para futuro. Essa ideia de “país do não goste muito. E é verdade se ouçam. Essa questão, do
ciente de que eu também os mim, sentido. O improviso futuro” é muito cara à nossa que há mais prosa porque ela porquê de este tempo querer
carrego, por mais que me é essencial e eu, na maneira história, particularmente me facilita o trabalho que não fazer revisões e reescrever
queira livrar deles ou que eles como vivo e trabalho, gosto para o momento que o país pretende ser um exercício coisas passadas, será abordada,
sejam inconscientes. É uma de me contaminar por ele. vive, de retrocessos brutais de análise poética. Mas irá necessariamente. Vivemos
coisa de que só vou saber um Sou naturalmente dada ao em todas as áreas de atuação haver poesia, claro, porque neste tempo.
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PERNAMBUCO, JULHO 2019

A ópera reúne todas as artes num único espetáculo


e num único lugar.
Sua caminhada começa em 1607, data da encena-
ção do Orfeu, obra fundadora do compositor Claudio
Monteverdi. Até a renovação recente empreendida
por pensadores como Gerard Mortier, de cuja visão é
exemplo a montagem de Tristão e Isolda. Com direção
de Peter Sellars e cenários de Bill Viola, o artista da
videoarte que levou seis meses para dar ao especta-
dor a sensação de “contemplar” a música. Num dos
atos, durante cerca de 10 minutos, ao som da peça de
Wagner, um grande écran de 11m x 6m mostra o inu-
sitado. A imagem é a de um homem deitado. Súbito,
surgem gotas d’água que vão se transformando numa

Everardo espécie de cachoeira ascendente. O personagem é


transportado lentamente por ela até desaparecer no

NORÕES
alto da tela. A cachoeira acalma-se aos poucos. Resta
um espaço vazio. Vazio e escuro, carregado de todas
as metáforas. É a música, tratada de outra maneira,
permitindo uma amplificação sensorial da escuta.
Música e imagem fundem-se, distorcem o foco do
espectador, que antes era voltado para maestros e
[email protected] prima-donas.
A performance do Tristão e Isolda, na montagem de
Peter Sellars, tem algo que sugere a correspondên-
cia entre Charles Baudelaire e Richard Wagner. Em
carta datada de 17.2.1860, o poeta escreve ao com-
positor para comentar que a música da ópera utili-
zava elementos que o faziam lembrar a pintura. Se
o vermelho representa a paixão, ele o via chegando
“gradualmente, por todas as transições, de vermelho
e do róseo à incandescência da fornalha”. A forna-
lha, outro dos quatro elementos que ressurgem na
tela do Tristão, numa espécie de releitura do autor de
Flores do mal. Com o recurso e técnicas de vanguarda,

Mortier e a
o espetáculo culmina por "materializar" a sensação
descrita por um dos poetas mais atentos à emergência
da modernidade. urbana de Paris empreendida por Haussmann no
A transformação conduzida por Gerard Mortier século XIX, o palácio foi levantado com o máximo
subverte a tradição operística, sobretudo a fran- requinte. Imaginado para contemplar o desfile de

dramaturgia
cesa, adepta de espetáculos montados em torno seus frequentadores, os arquitetos reservaram apenas
do exotismo colonial ou temas de entretenimento. 1/8 da área para palco e plateia. Nas suas imensas
Quando dirige a Ópera de Paris, não são poucas as salas, os espectadores dão-se em “espetáculo” antes
querelas que ele enfrenta para impor sua nova visão de se aboletarem nos camarotes. A plateia é mais

da paixão
à arte do dramma per musica. A recusa a apresentar importante do que o palco. A Ópera afaga a tradição
peças adornadas com fundos de palácios, à moda de templo da burguesia triunfante encarnada pelo
de Franco Zefirelli, ou de retirar o protagonismo às barão de Nucingen, o personagem criado por Balzac
grandes vedetes, custam-lhe críticas acerbas. Ao na Comédia humana.
contrário de alguns de seus colegas, que buscam Mas o Palácio Garnier, cenário do livro O fantasma da
contentar plateias “exigentes”, Gerard Mortier per- Ópera, de Gaston Leroux, popularizado pelo cinema,
maneceu firme à ideia de que a arte deve ser um não será mais o mesmo após a passagem de Gerard
De como toda comunicação motor do humanismo.
Belga, educado pelos jesuítas, filho de padeiro, ele
Mortier. Tampouco os outros lugares de espetáculo
que dirigiu: o Théâtre Royal de la Monnaie, os festi-

entre humanos nos leva escancara as portas da arte mais elitista do mundo
europeu. Sem pedir licença, faz penetrar no Palácio
vais de Salzburgo e Ruhrtriennale, a Ópera de Paris. E
no Teatro Real de Madrid, onde encerrou sua carreira,

necessariamente ao teatro
Garnier, o suntuoso edifício que abriga a ópera da fragilizado pelo câncer, continuou a levar à cena um
capital francesa, os efeitos óticos e sonoros possibili- teatro político, na linhagem do fundador Monteverdi.
tados pela mais avançada tecnologia. Construído por Ao falecer, em 2014, deixou um livro à medida de
iniciativa de Napoleão III, durante a transformação sua índole polêmica: Dramaturgie d’une passion. Editado
FABIO SEIXO / ARQUIVO SUPLEMENTO

FLIP 1
Wellington Nova edição de No calor da hora
de Melo
A pesquisadora e professora a obra de Galvão segue atual
emérita da FFLCH-USP na era da pós-verdade,
Walnice Nogueira Galvão ao expor o que poderíamos
lança, pelo selo Pernambuco, chamar de protofakenews
nova edição de No calor da hora, dos jornais brasileiros com
livro que traz análise de fôlego relação ao massacre de
sobre a quarta expedição a Canudos. Oportunamente,
Canudos, a partir da cobertura a Festa Literária de Paraty — Flip
parcial dos jornais da época, (9 a 14 de julho) tem como
MERCADO e reproduz as reportagens
feitas por enviados especiais
foco a obra Os sertões, de
Euclides da Cunha, e

EDITORIAL naquele 1897. Publicada


originalmente nos anos 1970,
traz Walnice na mesa de
abertura, quando autografa
durante a ditadura militar, esta nova edição.
A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:

CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
LUÍSA VASCONCELOS
CONSELHO EDITORIAL
I Os originais de livros submetidos à Companhia
Editora de Pernambuco -Cepe, exceto aqueles que a
Diretoria considera projetos da própria Editora, são
analisados pelo Conselho Editorial, que delibera a
partir dos seguintes critérios:

1. Contribuição relevante à cultura.

2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,


que privilegia:

a) A edição de obras inéditas, escritas ou


traduzidas em português, com relevância
cultural nos vários campos do
conhecimento, suscetíveis de serem
apreciadas pelo leitor e que preencham os
seguintes requisitos: originalidade,
adequação da linguagem, coerência
e criatividade;

b) A reedição de obras de qualquer gênero da


criação artística ou área do conhecimento
científico, consideradas fundamentais para o
patrimônio cultural;

3. O Conselho não acolhe teses ou dissertações


sem as modificações necessárias à edição e que
contemplem a ampliação do universo de leitores,
visando à democratização do conhecimento.

II Atendidos tais critérios, o Conselho emitirá parecer


em 2009 pela Christian Bourgois Éditeur, inédito em É do trabalho de pessoas como ele que, nos últimos sobre o projeto analisado, que será comunicado ao
português, Gerard Mortier expõe suas ideias sobre as anos, os espetáculos de ópera têm buscado explorar
proponente, cabendo à diretoria da Cepe decidir
“dramaturgias” do ofício: o papel da orquestra e dos espaços alternativos, ganhar construções cuja ou-
cantores, os labirintos da construção das peças e das sadia arquitetônica e uma tecnologia susceptíveis sobre a publicação.
programações, a poética dos cenários. O livro traz de imprimir uma outra dimensão à acústica e às
também um texto de Victoria Newhouse (especialista montagens cada vez mais instigantes. III Os textos devem ser entregues em duas vias, em
em história da arquitetura e autora de Site and sound: Em suas reflexões, o autor de Dramaturgia da paixão papel A4, conforme a nova ortografia, em fonte
the architecture and acoustics of new opera houses and concert assume a linha da tradição do teatro grego. Espaço Times New Roman, tamanho 12, com espaço de
halls) sobre as inovações trazidas pelas novas salas alternativo, conectando o espetáculo às coisas que
uma linha e meia, sem rasuras e contendo, quando
de ópera, tais como a Walt Disney Concert Hall, de acontecem fora das salas, onde a arte da imitação
Los Angeles, a de Oslo ou a Guangzhou, da China. suscita descobertas. for o caso, índices e bibliografias apresentados
Sobre a arquitetura dos lugares e suas relações E, se boa parte de nosso aprendizado é feito pela conforme as normas técnicas em vigor.
com o espetáculo, é interessante a leitura sociológica mímese, é possível concluir, com Gerard Mortier, o
de Gerard Mortier, como o paralelo que faz entre os dramaturgo da paixão, que toda comunicação entre IV Serão rejeitados originais que atentem contra a
edifícios da Ópera de Paris e o de Bayreuth, idealizado os homens leva necessariamente ao teatro.
Declaração dos Direitos Humanos e fomentem a
por Wagner. No primeiro, a disposição dos lugares
obedecendo à hierarquia social, camarotes oficiais (Num dia de visita ao Teatro São Carlos, de Lisboa, violência e as diversas formas de preconceito.
quase sempre vazios, cenários pomposos. No segun- a convite do professor e amigo Luis Carvalho, ouço
do, espectadores sentados em semicírculo, tratados alguém sussurrar num dos camarins o nome de V Os originais devem ser encaminhados à
em igualdade e até submetidos ao desconforto de Gerard Mortier. O mesmo lugar em que Maria Callas Presidência da Cepe, para o endereço indicado a
poltronas de madeira. Para Gerard Mortier, o palco é aqueceu sua voz para metamorfosear-se na Violetta seguir, sob registro de correio ou protocolo,
retrato do mundo para o qual o homem deve se voltar. Valéry da Traviata).
acompanhados de correspondência do autor, na
qual informará seu currículo resumido e endereço
para contato.

VI Os originais apresentados para análise não


serão devolvidos.

FLIP 2 FLIP 3
Companhia Editora de Pernambuco
Editoras na Casa Paratodxs Programação da Cepe Editora na Casa Paratodxs Presidência (originais para análise)
Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
A Cepe Editora participa mais Os autores Lima Trindade finalista do prêmio com o CEP 50100-140
uma vez da Flip, desta vez na Casa (As margens do paraíso), Renata poemário Vácuos, que ganha Recife - Pernambuco
Paratodxs, ocupando-a durante Penzani (A coisa brutamontes) edição brasileira pela Cepe
todo o evento com as editoras e Stephanie Borges (Talvez Editora. A jornalista, crítica
Nós, Dublinense, Kapulana, precisemos de um nome para isso) literária e curadora portuguesa
Demônio Negro, Edith, Relicário apresentam ao público suas Isabel Lucas conversa comigo
e Macondo. A casa segue obras. Schneider Carpeggiani, sobre o projeto Viagem ao país
sendo um dos espaços mais editor deste Pernambuco, do futuro, que realizará viagens
interessantes para se visitar conversa com a historiadora pelo Brasil para produzir uma
durante a festa e, além de contar Heloisa Murgel Starling (UFMG) série de reportagens sobre o
com o catálogo amplo das editoras sobre No calor da hora. Selma país a partir de sua literatura,
participantes, propõe uma Caetano, curadora do Prêmio publicadas nos próximos meses
intensa programação paralela de Oceanos, apresenta Mbate neste Pernambuco e no jornal
oficinas, lançamentos e debates. Pedro, escritor moçambicano português Público.
12
PERNAMBUCO, JULHO 2019

CAPA

A narração da barbárie
contra os indígenas
O Brasil de hoje a partir No mês de julho de 1967, ao ler a portaria publicada no
Diário Oficial, o procurador federal Jader de Figueiredo
denúncias de práticas de corrupção cometidas pelos
servidores do órgão.

de documentos de um
Correia possivelmente repassou suas possibilidades; A pressão contra o SPI era grande e o ministro
para todos os pontos que olhava via problemas. Acabara mantinha-se alerta para que a investigação – que
de ser nomeado para chefiar uma Comissão de Inves- culminaria na extinção do órgão – apresentasse os
ministro de Costa e Silva tigação sobre as atividades do Serviço de Proteção ao
Índio (SPI) – o órgão indigenista oficial que antecedeu
resultados que a ditadura buscava. Albuquerque Lima
tomou todas as precauções: a investigação deveria
à Fundação Nacional do Índio (FUNAI) – e o primeiro ocorrer em sintonia não apenas com o ministério do
Heloisa Murgel Starling contratempo que enxergou deve ter sido esse: até então, Interior, mas com o Serviço Nacional de Informações
ele não tinha, nenhuma relação com o tema indígena (SNI), o principal órgão de coleta de informações e de
– ocupava o cargo de procurador do Departamento Na- inteligência construído pela ditadura, com atuação
cional de Obras contra as Secas. Contudo, a indicação dentro da sociedade e em todos os níveis da admi-
partiu diretamente do gabinete do ministro do Interior, nistração pública. O ministro calculou quase tudo;
general Afonso de Albuquerque Lima, os militares es- mas nem ele, nem os agentes de informação ou os
tavam especialmente interessados no assunto, e Jader burocratas do ministério conheciam o procurador que
de Figueiredo não era bobo de perder a oportunidade. escolheram para chefiar a investigação. É provável
Apenas quatro meses antes, em março de 1967, o SPI que, de início, Jáder de Figueiredo tenha considerado
havia passado para o controle do Ministério do Interior o novo trabalho só rotina e iniciado suas atividades na
após ter permanecido cerca de 30 anos na Agricultura, Comissão sem alimentar nenhuma dúvida sobre os
mas o procurador não estranhou nada. Nem mesmo a resultados que pretendia alcançar. Contudo, quando a
transferência do órgão incumbido de defender os direi- investigação começou para valer, ele levou um susto.
tos e as terras dos índios para o ministério encarregado No impacto das descobertas que fez, anotando tudo
da ocupação do território, desenvolvimento regional o que via e ouvia, o procurador duvidou das próprias
e migrações internas. certezas, adotou nova perspectiva e seu relatório final
Jader de Figueiredo estava longe de ser um opositor assumiu um tom veemente de denúncia.
do governo – e provavelmente o ministro fez a escolha Entre 1967 e 1968, Figueiredo percorreu com sua
a dedo. O segundo presidente da República durante os equipe – formada por quatro funcionários do quadro
anos da ditadura, general Arthur da Costa e Silva, pa- do DNOCS – mais de 16 mil quilômetros, visitando
recia personalizar as melhores esperanças dos setores cerca de 130 postos indígenas em todo o país. O re-
da oficialidade interessados em participar da condução sultado é estarrecedor: matanças de tribos inteiras,
dos rumos do Estado – dos 19 ministros, 10 pertenciam torturas e toda sorte de crueldades foram cometidas
às Forças Armadas, entre eles, o ministro do Interior, contra indígenas, principalmente a mando dos gran-
general Albuquerque Lima, que posava como o fiador des proprietários de terras e por agentes do Estado. O
dos grupos intramilitares radicais. Ele era um general procurador fez um trabalho de apuração impressio-
linha dura, estava interessado em empurrar o desliza- nante. Incluiu relatos de dezenas de testemunhas,
mento do país no rumo de uma ditadura aberta e tinha apresentou centenas de documentos e identificou
a cabeça voltada para o ambicioso projeto de coloni- cada uma das violações que encontrou: assassinatos
zação e desenvolvimento que os militares pretendiam de índios, prostituição de índias, sevícias, trabalho es-
implantar. Por conta disso, sabia que precisava olhar cravo, apropriação e desvio de recursos do patrimônio
atentamente para a política praticada pelo Estado, so- indígena. Seu Relatório denuncia – e comprova – a
bretudo no que se referia à incorporação e demarcação existência de caçadas humanas de indígenas feitas
de terras destinadas aos índios. com metralhadoras e dinamite atiradas de aviões,
Os generais começaram a arrumar as ideias que as inoculações propositais de varíola em populações
estão na base do projeto de colonização que Albu- indígenas isoladas e as doações de quilos de açúcar
querque Lima pretendia levar a cabo, ainda nos anos misturado à estricnina. Tem mais: o órgão responsável
1950. Elas fazem parte do arcabouço doutrinário por proteger os índios permitiu a violência cometida
criado pela Escola Superior de Guerra e que serviram pelas chamadas “frentes civilizatórias”, um eufe-
de conduto para a concepção de desenvolvimento e mismo para disfarçar os processos de aculturação.
de segurança nacional colocada em prática pela di- De acordo com o “Relatório Figueiredo”, tortura e
tadura. Orientados por uma noção de guerra interna chacinas foram executadas com apoio ou contando
não circunscrita ao conceito tradicional de defesa com a omissão de funcionários do SPI.
e adequada ao cenário da Guerra Fria, o objetivo Quando Jáder de Figueiredo finalmente regressou
do projeto de colonização era ambicioso e previa a Brasília e entregou ao ministro os resultados finais
a ocupação estratégica do território nacional. Isso da investigação, Albuquerque Lima balançou a ca-
incluía o deslocamento de quase um milhão de pes- beça, sem saber como reagir: calculou a extensão
soas para as regiões norte e centro-oeste, não deixar da repercussão, inclusive internacional e entendeu
despovoado nenhum de seus espaços e tamponar a o tamanho da encrenca em que havia se metido. O
área de fronteiras. Para levar esse projeto a termo, a “Relatório Figueiredo” é uma produção do próprio
ditadura tencionava levantar o embargo legal sobre Estado brasileiro, trata-se de um dos documentos
as terras indígenas e vender o futuro: ia criar pro- mais importantes da nossa história recente, mas ficou
gramas de colonização dentro das áreas de proteção, desaparecido durante 44 anos – sob a alegação oficial
emancipar os índios integrando suas populações à de que tinha sido integralmente destruído em um in-
sociedade brasileira autodenominada “civilizada” e cêndio e não existiam cópias. A alegação não procede.
colocar as terras no mercado. Os custos ambientais O Relatório foi encontrado quase intacto, em 2013, por
ou sociais não interferiam nas contas do governo, um pesquisador independente, Marcelo Zelic, com 5
mas seria preciso amansar as prováveis resistências mil páginas e 29 tomos – das 7 mil páginas e 30 tomos
vindas do SPI. A Comissão de Investigação chefiada que constavam da versão original. A cópia descoberta
por Jader de Figueiredo entrava aí: iria identificar as por Zelic estava enfiada no meio de maços de pape-
irregularidades existentes no SPI e, sobretudo, apurar lada burocrática, acondicionados em velhas caixas
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PERNAMBUCO, JULHO 2019

LUÍSA VASCONCELOS

de papelão que se empilhavam no arquivo morto do


Museu do Índio, no Rio de Janeiro. Mas Jader de Fi-
gueiredo nunca soube disso. Ele morreu em 1975, num
A luta contra viu ou não se pode ver. Falam num tempo que não é
mais o do acontecimento e de um lugar que não existe
mais – o passado, o lugar dos mortos – intercedendo
acidente mal-explicado, atropelado por um veículo
desconhecido, ao descer de um ônibus, em Fortaleza.
Tinha 53 anos. E morreu certo de que o desfecho de
o esquecimento pelos outros e para os outros. Na realidade, são rela-
tos que falam do lugar do morto; é o testemunho de
quem precisa substituir outro testemunho porque o
sua mais importante investigação não viria a público
e jamais seria conhecido pelos brasileiros. combinou a sujeito em primeira pessoa está morto. Eles estavam
convencidos de que diante de certos fatos extremos

trajetória das
Não sabemos se o procurador Jader de Figueiredo – o horror produzido pela violência injustificada e
chegou a ler, em algum momento da vida, Os sertões, desnecessária do Estado durante a Guerra de Canudos
de Euclides da Cunha. Os dois personagens estão ou as práticas de violência cometidas pela ditadura

narrativas de
separados por cerca de 70 anos de história do Brasil; militar contra povos indígenas – é preciso que todos
contudo, algo parece ter se combinado no tempo sejam testemunhas do que ocorreu.
com força suficiente para aproximar a trajetória de Na sua origem grega, a testemunha é uma voz e um
ambos – e torná-las simultaneamente reconhecíveis
e peculiares no presente. No fim das contas, tal como
aconteceu, em 1897, quando Euclides da Cunha de-
Euclides da Cunha rosto. A testemunha está do lado das palavras e do
passado. Mas o papel da mediação a partir do qual a
história se constrói, é uma tentativa para transgredir os
sembarcou na Bahia certo de que Canudos era a nossa
Vendeia, também Jader de Figueiredo iniciou sua
viagem pelas áreas indígenas, crente de que sabia, de
e Jader Figueiredo limites dessa posição solitária em que a testemunha se
encontra. O recurso à mediação é importante porque
outorga a palavra a um morto com a convicção de
antemão, o que iria encontrar pela frente – e, talvez, sujeito que escreve um memorial tem na cabeça um que a voz desse morto deveria ser ouvida no mundo
estivesse intimamente convencido de que os índios propósito: ele quer de todo modo, manter juntas a público em busca de acolhimento e reconhecimento
eram, de fato, um empecilho para o desenvolvimento presença do ausente e a ausência dessa presença. – e, porque essa voz diz respeito a todos, ela precisa
do país. Mas, como Euclides da Cunha, ele descobriu Costuma dar certo. Jader de Figueiredo não podia ser escutada e conhecida por todos.
uma história pouco edificante sobre os rumos que adivinhar o futuro, mas, em 2016, outro procurador Conhecemos bastante bem nos dias de hoje a nar-
o país pretendia seguir em seu agônico processo de da República, Álvaro Ricardo de Souza Cruz, decidiu rativa que Euclides da Cunha publicou, em 1902, no
modernidade. A barbárie havia se alastrado, o Estado transformar o “Relatório Figueiredo” em objeto de livro Os sertões, sobre a Guerra de Canudos. Entretanto,
estava inegavelmente disposto a eliminar aquele outro pesquisa – o resultado a um só tempo meticuloso e a história do “Relatório Figueiredo” ainda não se
e inteiramente diverso habitante do mesmo Brasil e arrojado foi publicado no livro Relatório Figueiredo: geno- encontra ancorada na cena pública brasileira, nem
tanto a guerra contra o Arraial de Canudos, quanto cídio brasileiro. A pesquisa de Souza Cruz atualizou os pela construção de uma memória comum, nem pelo
a chacina de indígenas durante a ditadura militar resultados do “Relatório Figueiredo” para os dias de reconhecimento dos direitos fundamentais da cida-
era fratricídio, matança entre irmãos. Os dois se en- hoje, identificando não apenas os delitos cometidos dania. No início do século XX, Franz Kafka escreveu
volveram na escrita de textos de natureza literária contra a moralidade administrativa, mas os diversos a Oskar Pollack impressionado com uma obra que
radicalmente distinta; ainda assim, eles conservaram crimes executados pelo Estado contra as populações havia acabado de ler e argumentou ao amigo: um livro
em seus escritos o tom de denúncia e acusação. E indígenas; em seguida, procede à sua tipificação tal precisa ser o machado para o mar congelado que há
cada um ao seu modo, ambos travaram uma luta para como previsto em lei. E confirma o diagnóstico do dentro de nós. No mar congelado, ele dizia, o passado
manter viva a memória daquilo que viram. Os sertões “Relatório Figueiredo”. As populações indígenas es- não é nada além de passado. Jader de Figueiredo não
é, sem dúvida, um livro-monumento; o “Relatório tavam posicionadas entre os militares e a realização escreveu um livro e seu Relatório fala do passado; mas
Figueiredo” talvez seja uma espécie de memorial das do maior projeto estratégico de ocupação do território está orientado na direção do futuro. O futuro vai nos
comunidades indígenas do Brasil. brasileiro. Pagaram um preço altíssimo em dor e quase julgar pela nossa disposição de rememorarmos tudo o
Independentemente da forma que assume, qual- foram exterminados por isso. que aconteceu; e vai nos julgar também se não agirmos
quer memorial é um espaço – ou lugar – onde sobre- A luta contra o esquecimento combinou a trajetória de acordo com o que narram Os sertões ou o “Relatório
vive um rastro do passado. A palavra rastro inscreve de Euclides da Cunha e Jader Figueiredo: as palavras Figueiredo” – as memórias da barbárie que Euclides
a lembrança de uma presença que não existe mais, de um revezam a história contada pelo outro. Com da Cunha e o procurador Jader Figueiredo enviaram
e que corre o risco de se apagar definitivamente. O um detalhe: elas são histórias sobre aquilo que não se ao nosso presente.
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PERNAMBUCO, JULHO 2019

CAPA

Quando a O que pode a literatura para dar conta de aconteci-


mentos históricos traumáticos? Segundo o filósofo
Jacques Rancière, o real precisa ser ficcionalizado

tensão volta em
para ser pensado, de modo que, a despeito do
enorme trabalho realizado por historiadores, só a
literatura é capaz de recriar o ambiente de terror
vivido por personagens afetados pela arbitra-
riedade, pela tortura, pela humilhação. Através

fragmentos
da imaginação e da liberdade composicional, os
romancistas narram não aquilo que realmente
aconteceu, o que é impossível, como já apontava
Walter Benjamin no seu seminal texto sobre os
conceitos da História, mas algo que possa evocar
B. Kucinski nos faz acolher o o vivido. A literatura, em sua capacidade de cap-
tar o singular da natureza humana, representa o

horror da ditadura e cria um único meio de transmitir a experiência dos outros


e provocar a identificação do leitor, suscitando a

elo memorial no romance K.


emoção e a compreensão ao mesmo tempo. Para
o pesquisador Antoine Compagnon, a literatura
desconcerta e incomoda mais que os discursos filo-
sóficos porque ela percorre regiões da experiência
Eurídice Figueiredo que os outros discursos negligenciam. Em suma, a
literatura pode produzir a figuração do Outro, do
diferente, daquele que não podemos conhecer se
não sairmos de dentro de nós mesmos. Através da
literatura vislumbramos o Outro que nos habita,
porque a identidade só se perfaz no encontro com
a alteridade, inclusive com nossa própria alteri-
dade. Ao escreverem sobre a ditadura, autoras e
autores dão testemunho, permitindo, assim, que
outras gerações compreendam as consequências
do cerceamento das liberdades democráticas. Na
interação que se produz no ato de leitura, o leitor
torna-se também testemunha porque aceita aco-
lher narrativas insuportáveis (como as da tortura),
formando um elo na cadeia memorial.
A ficção não é sinônimo de fantasia e de imagina-
ção: trata-se, antes, de uma estratégia ordenadora
da linguagem a fim de reinventar os fatos numa
narrativa legível, compreensível, que promove a
empatia dos leitores. B. Kucinski, autor de K., relato
de uma busca, que trata do desaparecimento de sua
irmã Ana Rosa Kucinski da Silva e de seu marido,
Wilson da Silva, ambos militantes da ALN (Ação
Libertadora Nacional), escreve: “Tudo nesse livro
é invenção, mas quase tudo aconteceu”. O casal
foi sequestrado pelo delegado Sérgio Fleury em 22
de abril de 1974 e levado para a “Casa da Morte”
em Petrópolis (RJ), onde foi torturado e executado.
Durante anos, o governo não admitiu nem a prisão
nem a morte deles; o reconhecimento oficial só
se deu após a promulgação da Lei 9140/1995, que
considerou como mortos os desaparecidos em
razão de participação em atividades políticas no
período de 1961 a 1979. Só então as famílias rece-
beram o atestado de óbito. O ex-delegado Cláudio
Guerra, em depoimento aos jornalistas Marcelo
Netto e Rogério Medeiros para o livro Memórias de
uma guerra suja, disse que transportou os corpos
dos dois para a Usina Cambahyba, em Campos
dos Goytacazes (RJ), onde foram incinerados. A
mulher apresentava sinais de violência sexual.
Dentre tantas obras que tematizaram a última
ditadura brasileira (1964-1985), a escolha desse
livro se justifica não só pela sua qualidade esté-
tica mas também porque, ao dar voz a diferentes
narradores, ele recria, de maneira fragmentária
e lacunar, a tensão que reinava no país quando
pessoas eram presas clandestinamente, torturadas,
assassinadas e desaparecidas. O fio narrativo que
dá continuidade e sentido ao romance é assegurado
por K, o pai em busca da filha, porém outras vozes
ecoam e desvelam os meandros do funcionamento 1976, num falso acidente de trânsito. Ele exerce
do sistema repressivo: a versão dos torturadores, tortura psicológica contra K., enviando infor-
seus agentes, empregadas e amantes, o relato do mações desencontradas, assim como fez com a
militante torturado que delata e se torna um “ca- família do deputado Rubens Paiva. No momento
chorro”, as cartas enviadas pelos dois militantes, da abertura política do governo Geisel, Fleury
Ana Rosa e Wilson, que exprimem seus conflitos recebeu pressão até dos Estados Unidos, durante
existenciais e políticos quando percebem que estão a presidência de Jimmy Carter (1977-1981). Eles
cercados, sem rota de fuga. Apesar de seu nome ser exigiam explicações sobre os desaparecidos, porém
pouco citado, a figura do delegado do DOPS-SP, não havia nada palatável, todos estavam mortos,
Sérgio Fleury, ligado ao Esquadrão da Morte, está enterrados em cemitérios clandestinos, incinera-
presente em vários fragmentos: ora é sua amante, dos ou jogados no mar ou em rios.
ora a faxineira da Casa da Morte, ora seus agentes. Ao se deparar com um personagem chamado
Em um dos capítulos é sua própria voz que se faz K., o leitor é levado a evocar o clima tenso e ab-
ouvir: esbraveja contra aqueles pais que, tendo surdo do romance O processo, de Kafka, em que o
acesso a organizações internacionais, não param protagonista não entende acusações indecifráveis,
de procurar notícias dos filhos. Além de K., Fleury e se sente culpado. Busca, sem sucesso, a ajuda de
menciona a estilista Zuzu Angel, assassinada em vários personagens. De modo semelhante, aqui
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PERNAMBUCO, JULHO 2019

LUÍSA VASCONCELOS

A literatura
pode estimular a
consciência crítica
num país marcado
por conflitos sempre
violentos contra os
mais fracos
logradouros. Quando o pai visita o local que rece-
beu o nome da filha, (como em Antes do passado, de
Liniane Haag Brum), sofre uma grande decepção
porque essas ruas situavam-se em loteamentos
longínquos, lugares que estão longe de constituir
referência memorial. O que o revolta ainda mais
é constatar que nomes de militares e torturadores
foram dados a ruas, pontes e viadutos nas regiões
centrais das grandes capitais. K fica amargurado.
Como observa Marc Augé, a instituição de marcos
simbólicos numa cidade instaura o “lugar antro-
pológico”, incorporado por seus habitantes. A
necessária revisão da concessão de nomes de pes-
soas ligadas à ditadura a fim de entronizar outros
nomes, dar outra versão da História, começou a
ser feita mas, com a recente ascensão ao poder
da extrema-direita, de tendências negacionistas,
a tendência se inverte perigosamente.
A questão do corpo é fulcral no caso dos desapa-
recidos pois os familiares não conseguem elaborar
o luto através da ritualização da morte. A não
devolução do cadáver representa um desrespeito
porque é próprio da morte humana a cerimônia
do enterro, como no mito de Antígona. Em vários
momentos do livro, K tenta, inutilmente, dar à filha
uma lápide, um livro, uma oração fúnebre. Ao es-
crever o romance, Kucinski faz essa homenagem,
encerra seu luto e transmite, ao mesmo tempo,
a imagem viva da irmã morta, uma ausente que
estará para sempre presente no espírito de seus
leitores. A obra literária que B. Kucinski iniciou
já na maturidade, destaca-se no panorama da
produção brasileira pelo seu valor estético, que é
um suplemento ao seu teor testemunhal. O estilo
conciso atinge a emoção do leitor sem apelar para
o melodramático, pelo contrário, nota-se o uso da
ironia e do despojamento da linguagem para criar
o clima absurdo, claustrofóbico e apavorante em
que se viu o pai diante do sumiço da filha.
O livro levanta tantas questões éticas, que o
autor sentiu necessidade de publicar, em 2016,
Os visitantes, em que tenta responder ou, ao menos,
debater, alguns desses aspectos. O paralelismo
entre o passado mais remoto da família – a imi-
gração, a Shoá, assim como o sentimento de culpa
e a melancolia dos sobreviventes – e o passado
mais recente – o desaparecimento da irmã pela
repressão – dá maior profundidade temporal à
tragédia que se abateu sobre a família. Nesse sen-
tido, a obra de Kucinski tem as características das
narrativas de filiação, o narrador vislumbra uma
crise na transmissão da herança até porque a irmã,
reina a perplexidade do pai, sufocado por fatos que lavou na Casa da Morte, o cianureto na boca de Ana morta jovem, não teve a oportunidade de ter filhos
estão além de sua compreensão. Mas, à medida Rosa, as fotografias da filha que K. olha, são muitos aos quais legaria uma tradição.
que o tempo passa, ele “não é mais ele, o escritor, os elementos incisivos que tocam profundamente Ao despojar o livro dos elementos mais clara-
o poeta, o professor de iídiche, não é mais um o leitor. Observe-se que incisivo significa cortante, mente biográficos, o autor consegue atingir dimen-
indivíduo, virou um símbolo, o ícone do pai de ou seja, ao ferir, penetra a casca dura com a qual são universal. Kucinski, que só aparece no prólogo
uma desaparecida política”. No entanto, alguns os homens se protegem das emoções dolorosas. e no capítulo final, denuncia a permanência do
anos mais tarde, ele já não será mais ícone, será No geral, os acontecimentos históricos aparecem aparato repressivo, considera que a indenização
“o tronco inútil de uma árvore seca”, “vencido no romance já transmutados, transfigurados. O ca- das famílias sem o esclarecimento dos fatos e sem
pela exaustão e pela indiferença”. K visita pre- pítulo mais factual é “A reunião da Congregação”, a punição dos responsáveis só aumentou o senti-
sos políticos que conheceram sua filha, leva para que narra a vergonhosa expulsão de Ana Rosa da mento de culpa e o mal-estar. Se a história do Brasil
eles cigarros e barras de chocolate; nesse local, USP, em 23 de outubro de 1975, “por abandono de é uma sequência de conflitos, em que a violência
14 meses depois do desaparecimento da filha, é função”, quando ela já estava morta. Essa injus- sempre foi exercida contra os mais fracos, a não
sugerida sua morte. tiça só foi corrigida 40 anos depois, por pressão apuração dos desmandos cometidos pelos agentes
Escrito sob o signo da metonímia, o livro em da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, públicos reforça a amnésia nacional, o que possi-
fragmentos remete a vestígios de um dilacera- quando houve um pedido de desculpas formal à bilita a repetição de governos autoritários. Desse
mento: a cachorra do casal preso que não para de família. Um outro dado que aparece no romance modo, a literatura que tematiza a ditadura con-
latir, a faxineira que não se esquece do sangue que é a atribuição dos nomes de 45 desaparecidos a tribui para despertar alguma consciência crítica.
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PERNAMBUCO, JULHO 2019

CAPA

A memória que
cria motes
para revoltas
Relações entre a Revolta
da Armada e um famoso
romance de Lima Barreto
Lilia Schwarcz

Lima Barreto teve uma infância sobressaltada. Perdeu a melhor estratégia no sentido de recuperar o pres-
a mãe com 7 anos, viu seu pai, João Henriques, cair no tígio da Força. Floriano, que já andava enfrentando a
desemprego com a queda da Monarquia, bem como Revolução Federalista no sul do país, reprime a Ar-
mudou-se com a família para a Ilha do Governador mada, governa em estado de sítio, e acaba ganhando a
em 1890, onde seu pai passou a trabalhar como admi- alcunha de “Marechal de Ferro”. Abria-se uma grave
nistrador nas Colônias de Alienados. A essas alturas, crise política.
a vida até parecia tranquila e finalmente assentada. O movimento dos almirantes seria contido em
Nenhum problema de saúde na família, com os filhos 1894, mas a ferida continuou aberta. Novas ma-
mais velhos completando os estudos em Niterói. nifestações manteriam a agenda da Primeira Re-
Mas na vida dos Barreto nada parecia estável e “para pública muito conturbada. As revoltas da Armada
sempre”. Um pouco distanciado do cotidiano pacato revelavam, também, a existência de dissenções nas
da Ilha, o governo da República enfrentava problemas. cúpulas militar e civil: enquanto a Marinha se sentia
A essas alturas o regime republicano sobrevivia pelo desprestigiada diante do Exército, São Paulo rompia
uso da força. Até 1894, o país experimentou a tutela com a hegemonia carioca. Com isso, Floriano Peixoto
militar em seus dois primeiros governos. Em 1891, passou a governar ditatorialmente.
eclode a primeira Revolta da Armada. O estopim Mas a Revolta não se restringiu à capital. Os insur-
para o levante foi um ato do governo, que, em fla- retos desembarcariam na Ilha do Governador, tirando
grante violação da Constituição de 1891, ordenou o a segurança do aflito João Henriques. As primeiras
fechamento do Congresso. A conta caiu na atitude notícias vieram do próprio Lima, que, garoto, enviou
da oposição que manifestava seu descontentamento carta ao pai no dia 28 de novembro de 1893, lamen-
diante da crise econômica dos primeiros anos de tando o fato de não poder visitar a família durante
República, marcados pela especulação vertiginosa, um mês inteiro. E botou a culpa na Revolta. “Meu
fraudes e inflação galopante. E foi então que, coman- pai, (...) As aulas estão funcionando muito mal, isto
dados pelo almirante Custódio de Mello, boa parte da é, com falta de frequência (...) Correu o boato que a
frota fundeada na Baía de Guanabara sublevou-se: a Escola Naval estava lá na ilha ... Eu já estou aqui há um
Armada – como a Marinha era chamada – exigia a mês sem ir lá ... Se o senhor tiver alguém que venha a
reabertura do Congresso ou então bombardeariam Niterói por necessidade, mande me buscar (...) Diga a
a cidade do Rio de Janeiro. Para não ter de enfrentar dona Priciliana que eu desejava vê-la aqui, para ver
a provável derrota ou uma guerra civil, Deodoro da as balas passar e arrebentar como eu as tenho visto
Fonseca renunciou em 23 de novembro. daqui do Colégio (...) As granadas rebatem por todos
Seu vice, Floriano Peixoto, assume o posto in- os lados de Niterói...”.1
terinamente e dá um golpe: ao invés de convocar A Ilha seria invadida pelos homens do Segundo
eleições, como estabelecia a Constituição, o ma- Contingente da Armada que desembarcou por lá
rechal resolve seguir à frente da nação. O auge do no dia 23 de outubro de 1893. No dia 24, um sofri-
movimento aconteceu entre 1893 e 1894, no Rio de do João Henriques envia mensagem ao diretor das
Janeiro, e significou uma das primeiras manifesta- Colônias, a essa altura longe da Ilha. Na missiva,
ções contra o autoritarismo da Primeira República. relatava o desembarque dos revoltosos e o fim da
As elites controlavam as eleições, o voto, a escolha paz que reinava por lá. Praticamente sozinho na Ilha,
de candidatos, os partidos – a política formal. Mas as João Henriques dava sinais de desespero: “A minha
formas de exercitar a política na cena pública – greves, posição é horrível não sei o que fazer. Vou retirar os
protestos, panfletos, jornais operários – começavam alienados e empregados para S. Bento (...). Não posso
a pipocar em diferentes cantos do país. ir para a Cidade com minha família pois não conto
A Marinha continuava, porém, indócil e, em setem- com recursos. (...) Agora não é mais possível trazer
bro de 1893, um grupo de oficiais exigiu a convocação gêneros para aqui pois é o mesmo que entregar a eles.
de eleições presidenciais – era a segunda Revolta da O que há de ser de mim!”.2
Armada. Com significativa folha de serviços presta- No 15 de janeiro a situação parecia, porém, sere-
dos ao Império, a Marinha e seus oficiais sentiam-se nada, quando as forças até então acampadas na Ilha
negligenciados pela República. Custódio de Mello, por finalmente deixaram o local. A calma voltaria a reinar
exemplo, acreditava que rebelar a Armada significava e, passada a agitação e organizado o cotidiano das
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PERNAMBUCO, JULHO 2019

LUÍSA VASCONCELOS

Colônias, parece que o funcionário dedicado mereceu


até promoção. Na memória do menino, sobraram
apenas lembranças fragmentadas da Ilha e do embate.
É possível entrever, que a terra ia receber. Quando vi que o iam matar,
não me despedi de ninguém. Corri para casa, sem
olhar para trás.”
Lima recorda a flora local, o riacho que partia o sítio
em dois, o pântano nas terras de fundo, os pássaros
de várias espécies. Tudo é descrito com tal emoção,
no Policarpo Lima tinha apenas 12 anos, “estava naquele instante
da vida em que se gravam bem as dolorosas impres-
sões”. Para ele, anos depois, o período florianista mais
que, ao final do texto Lima conclui: esse é um sítio
que “me animo a chamar meu”.3 Quaresma, ecos lembrava um terremoto, “com seus fuzilamentos,
encarceramentos, homicídios legais”.4 Já o pai, por

das opressões
Lima, que mais tarde escreveria muito sobre seu mais que tenha conseguido negociar com os revol-
passado, lembra como foi ingênua a sua primeira tosos, saía do episódio abalado.
reação ao chegar a esse local, que, mesmo em meio O episódio é distante da publicação do romance

vividas por Lima


à revolta, continuava a lhe parecer encantado. Trazido Triste fim de Policarpo Quaresma, que sairia pela primeira
pelo pai, que fora lhe apanhar lá em Niterói, mal se vez como livro em dezembro de 1915. Mas tudo lembra
deu conta da situação tensa: “logo tratei dos meus o ambiente da obra: o sítio onde Lima vivia; a fauna
pássaros, dos meus laços, pouco se me dando com o
duelo que se fazia de terra para o mar e do mar para
a terra, a tiros de canhão e de carabina”.
Barreto e seu pai na e flora locais, a Revolta da Armada e, sobretudo, seu
pai. Ele era nacionalista e injustiçado como Policarpo.
Homem cheio de ideias e de ideais, mas que acabou
Mas o escritor rapidamente tomaria consciência
da situação de seu pai, que lutara para prover os seus
mais de 200 internos. Escreve ele na crônica Estrêla:
República Velha afundado como burocrata de uma repartição menor.
Quaresma, como João Henriques, merecia mesmo era
a patente de “patriota”; daqueles que só defendem
“Dentre os episódios da revolta de 93, assistidos por rinheiros, desejoso que um deles o ensinasse como produtos nacionais e da própria terra.
mim, aquele que mais me impressionou foi sem dú- manejar uma carabina. É possível evocar nessa cena Foi essa, também, a primeira vez que Lima notou
vida o desembarque dos revoltosos no Galeão. (...) o futuro patriotismo do personagem Policarpo Qua- um pai diferente: mais inseguro e que precisava dele
Eu tinha doze anos e acabava de chegar do colégio resma, que também enfrenta a Revolta da Armada – o filho mais velho –, para “conter” os militares.
onde era interno...”. Lá chegando, logo se dá conta da alistando-se no Exército nacional. Nesse caso, como “Meu pobre pai”, escreve Lima, não prevendo, cla-
solidão do pai: “Meu pai, meu grande e infeliz pai, era em outros, vamos perdendo as pistas do que é fato e do ro, mas de certa maneira anunciando, a demência
dos funcionários da administração superior o único que é ficção, e mais: do que é armadilha da memória, que quase migrou da cabeça dos internos para a
que tinha permanecido na ilha. O diretor, o médico, que muitas vezes recria e faz da realidade sua própria do administrador.
o escriturário se haviam retirado para a cidade. O ficção. Também fica fácil reconhecer o escritor que A Revolta surge, assim, como um episódio singular
senhor Ernesto Sena, que se picava de historiógrafo lutava pela igualdade e se opunha à violência praticada na memória do adulto garoto que fez dela um mote
no Jornal do Comércio, tratando das Colônias, nos dias durante a Primeira República. para a sua própria revolta. Revolta contra o fim da sua
de revolta, chamou a meu pai de ‘Fujão’ Barreto. Não Agora começava o verdadeiro drama que dá nome à meninice, contra a República que não era aquela dos
sei se havia entre eles qualquer desavença, mas o crônica: Estrêla. “Desceram, meu pai e o comandante. seus sonhos, e contra as injustiças perpetradas contra
certo é que o que se deve exigir de um historiógrafo De repente, eu vejo ser tirado do curral o ‘Estrêla’, um os homens, mas também contra os animais. Esse já
é a exatidão dos fatos ...”. velho boi-de-carro, negro, com uma mancha branca era Lima Barreto, sem tirar nem pôr.
Após defender a honra do pai, continua: “Estava eu na testa. O ‘Estrêla’ fazia junta com o ‘Moreno’, ou-
assim descuidado quando, uma manhã, aí pelas oito tro boi negro; e ambos, além de carreiros, lavravam * Este texto é pautado em livro de minha autoria chamado
horas, meu pai mandou-me chamar à Colônia de São também. Foi o boi conduzido para junto da estrebaria Lima Barreto, triste visionário. São Paulo, Companhia das
Bento...”. O texto segue descrevendo como no cami- e vi que um marinheiro, de machado em punho, o Letras, 2017.
nho o menino notou uma série de armas enfileiradas, enfrentava e ia desfechar-lhe um golpe na cabeça. Tive 1. Citado por BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de
uma porção de marinheiros e o pai “metido entre a visão rápida dos seus serviços e dos seus préstimos, Lima Barreto. Rio de Janeiro: José Olympio, 1952, pp.56-57.
todo aquele apresto militar e guerreiro”. A princípio, pois era de ver a paciência, a resignação do ‘Estrêla’, Como Seção Manuscritos da Biblioteca Nacional (docu-
o garoto não mostrou espanto, observando o pai que quando, atrelado com o seu companheiro de junta, mento não encontrado).
“parecia calmo”. Todavia, temendo sofrer algum de cavavam, com auxílio do arado, na encosta íngreme 2. Ibidem.
violência, João Henriques pretendia, com a presença do morro, por detrás do convento, fundos sulcos 3. O depoimento transcrito após esta nota foi retirado da
do menino, “enternecer o comandante da força”. que iam receber as manivas dos aipins e a rama da crônica O Estrêla, publicada no Almanaque d’A Noite, em
O escritor lembra como viu seu pai e o comandante batata-doce. (...) Sob o aguilhão do condutor, cavava 1921. In: Lima Barreto. Feiras e Mafuás. op. cit., pp.61-66.
subirem ao mosteiro “para tratar lá dos negócios”. resignadamente, docemente, tristemente, os sulcos 4. Lima Barreto. Numa e a Ninfa. Rio de Janeiro: Livraria
Enquanto isso, o menino conversava com os ma- no barro duro, para fazer render mais as sementes Garnier, 1989. p.61.
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PERNAMBUCO, JULHO 2019

ARTIGO

Incursões sobre Há um componente indissociável entre o racismo e a


visualidade, diz o teórico cultural e sociólogo Stuart
Hall. Para o autor, a “primazia do visual no discurso

imagens das
do racismo, porque embora sua estrutura profunda
não o seja, sua aparência imediata é uma questão
visual, é aquilo que você pode ver”.1
A modernidade é marcada por uma concepção
específica de racionalismo, progresso, ciência e

peles negras
humanismo, carregada de efeitos colaterais cons-
titutivos como colonialismo, genocídio, racismo e
etnocentrismo. Desenvolveu um regime específico
de visualidade que corroborou a crença da exis-
tência de raças do ponto de vista biológico, tendo
como algumas de suas consequências as relações

Uma discussão inicial sobre assimétricas e desiguais entre povos.


O Ocidente se estabeleceu como autoridade política,

representações e racismo na
artística, cultural, intelectual, científica do mundo, re-
legando parte considerável da humanidade – africanos
e seus descendentes, indígenas, asiáticos e árabes – à
história das artes visuais posição de quase humanos. A lógica perversa dessa
classificação incorporada a um regime de visualida-
de racializado incidiu diretamente no repertório das
Raquel Barreto representações visuais. Conferiu aos sujeitos brancos
um conjunto amplo e diversificado de imagens. E
atribuiu aos sujeitos “não brancos” um repertório
simples e limitado de representações.2
A organização da economia da circulação das ima-
gens que instaurou desde então promoveu uma violên-
cia simbólica sobre os africanos e seus descendentes,
definidos por estereótipos que reduzem, essencializam,
naturalizam e fixam a diferença. Além disso, prende-os a
representações unidimensionais, determinadas por
catástrofes e “fatalismos” de ordem econômico-social.
Nos circuitos das imagens, homens e mulheres
negras aparecem repetidamente em posições in-
desejáveis. Há um exemplo notório a se mencionar
que são as obras dos artistas viajantes do século
XIX, presentes em quase todos os livros escolares
brasileiros.3 Os artistas deixaram uma quantidade
expressiva de materiais que tinham como objetivo
registrar a vida da corte no Rio de Janeiro – o coti-
diano, o comércio, o trabalho escravo, a paisagem
e os hábitos locais.
Essa documentação pictórica é adotada nas escolas
para “ilustrar” as aulas de História, em especial aque-
las sobre a escravidão. Isso ocorre, no entanto, sem
os cuidados e as problematizações necessárias para
que essas fontes não naturalizem os estereótipos, pois simbólica alimentada por vias do corpo e do terri-
uma interpretação fora de contexto pode reafirmar a tório, em conexão com a natureza, em que o corpo
subalternidade, passividade e coisificação de pessoas é um altar para as divindades habitarem.
negras. Um outro ponto problemático que envolve A estética também atravessa o corpo e suas ima-
essas imagens é uma certa “estetização” de cenas gens. A discussão pode desenredar-se pela contes-
de castigos físicos, idealizações e projeções sobre tação do suposto padrão universal ocidental que tem
nudez, virilidade e hipersexualização de pessoas um efeito violento sob sujeitos que não se acoplam a
negras, que provocam atritos entre o labor artístico sua definição e parâmetro do belo, que define quem
e o tema retratado. deve ou não ser visto.
Outro aspecto a ser considerado é a presença de
O CORPO COMO LUGAR DE INSCRIÇÃO estéticas plurais no Brasil que não se seguiam por
“Sem o corpo, o racismo é inconcebível”, afirmou outras referências, não ocidentalizados, e reivindicam
Muniz Sodré, professor emérito da UFRJ.4 A racia- organicamente a alteridade em seus pensares e fazeres:
lização negra tem um componente profundamente
corporal marcado pela exterioridade, na qual são orixás não tomam chá de academia
inscritas as diferenças, estabelecidas a partir dos tampouco em mídia sui-seda
corpos considerados “essencialmente” diferentes. cedem
Como afirmou o psiquiatra martiniquense Frantz
Fanon: “Sou sobredeterminado pelo exterior. Não poema da negrura exposta
sou escravo da ideia que os outros fazem de mim, tece vida
mas da minha aparição”.5 na resposta
O lugar que o corpo negro ocupou, e ocupa, no abrindo a porta enferrujada de silêncio
imaginário ocidental, foi determinado pelo “contato” (Cuti, Cultura negra)7
estabelecido, no século XVI, durante o tráfico atlân-
tico, que objetificou e transformou corpos humanos A PERDA DA IMAGEM E DA IDENTIDADE
em mercadoria. De acordo com a socióloga Patricia A travessia forçada pela qual passaram aproxima-
Hill Collins: “A objetificação é fundamental para damente 11 milhões de africanos e africanas teve
esse processo de diferenças formadas por oposição. inúmeras consequências objetivas e subjetivas em
No pensamento binário, um elemento é objetificado sua vidas e de seus descendentes. Entre elas, o de-
como ‘Outro’, e é visto como um objeto a ser mani- senraizamento e a quebra do espelho.
pulado e controlado”.6 “Havia na relação escravos-escravos um inter-
Há, no entanto, outras histórias possíveis de nar- câmbio também. E essa troca está no nível do soul,
rar sobre corpos negros, que não se encerram nas da alma do homem escravo. Ele troca com o outro
privações e evidenciam protagonismo. Os africanos a experiência do sofrer, a experiência da perda da
trazidos ao Novo Mundo possuíam cosmovisões e imagem, a experiência do exílio”, explica a histo-
culturas que não se pautavam nas dicotomias entre riadora Beatriz Nascimento no documentário Orí.8
corpo (objeto) versus razão (sujeito), fundamento da A metáfora da perda da imagem citada pela autora
lógica Ocidental-Cristã que considerava o corpo um identifica as relações entre ausência e privação de
problema. As culturas africanas que aqui chegaram imagens de si, e sua importância para a constitui-
pressupunham uma inteligência corporal em seus ção da identidade dos indivíduos. Por outro lado,
movimentos e memórias. Observa-se que as religiões a falta de imagens pode também compor uma co-
de matriz africana são organizadas por uma lógica munidade de sentido que se organiza pelo vazio de
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PERNAMBUCO, JULHO 2019

FILIPE ACA E LUÍSA VASCONCELOS

uma representação necessária. “É preciso a imagem


para recuperar a identidade. Tem-se que tornar-se
visível (...). A invisibilidade está na raiz da perda da
"O 'olhar' tem A autora expõe os vínculos que sustentam as rela-
ções entre negrura e brancura, uma relação neurótica
que, segundo Frantz Fanon, é sustentada pela ideia
identidade; então, eu conto a minha experiência, e
não ver Zumbi, que para mim era o herói.”9
Compreendem-se, assim, as razões pelas quais
sido e permanece, de pureza e superioridade, e deriva do processo
colonial-escravista que definiu o sujeito negro como
o Outro (a alteridade) do sujeito branco. Isto é, tudo
a representatividade recebe tanto destaque nos de-
bates contemporâneos em relação à política racial
no Brasil. Não é por acaso que os embates incidem
globalmente, um aquilo com o qual o sujeito branco não quis se rela-
cionar foi retirado dele – atributos negativos e tabus
sociais, como agressividade e sexualidade – para
vigorosamente na reivindicação da representação, da
visibilidade, da presença e da fala. E que as disputas lugar de resistência ser projetado no sujeito negro, que personificou os
aspectos repressores do self branco.

para o povo negro


também façam referência à formação nacional, pro- Ainda segundo Kilomba, o “‘Outro’ torna-se então
blematizando o lugar subalterno destinado a negros a representação mental do que o sujeito branco teme
e indígenas no projeto do país. reconhecer sobre si mesmo, neste caso: o ladrão vio-

colonizado", escreve
lento/ a ladra violento a, o(a) bandido(a) indolente
Aí, e malicioso(a). (...) o sujeito Negro é identificado
Lançaram a culpa na escravidão como o objeto ‘ruim’, incorporando os aspectos que
Na ambição das próprias vítimas
E debitaram o racismo
Na nossa pobre conta.
a teórica bell hooks a sociedade branca tem reprimido e transformando
em tabu, isto é, agressividade e sexualidade”.12
Na mesma linha, diz Frantz Fanon: “O branco está
baseada em uma abordagem psicanalítica. Diz ela: convencido de que o negro é um animal; se não for
Então, “(...) vejo imagens que não me representam como o comprimento do pênis, é a potência sexual que o
Reservaram para nós mulher negra, que representam o imaginário branco impressiona. Ele (o branco) tem necessidade de se
Os lugares mais sórdidos do que é ser negra, mas não são imagens de quem defender deste ‘diferente’, isto é, de caracterizar o
As ocupações mais degradantes sou. Portanto, tenho sempre que lidar com o que Outro. O Outro será o suporte de suas preocupações
Os papéis mais sujos represento para o branco, o que é muito problemá- e de seus desejos”.13
E nos disseram: tico. E, depois, sinto-me obrigada a olhar para mim Curiosa ou sintomaticamente, grande parte da co-
– Riam! Dancem! Toquem! através do outro, ou seja, olho para imagens minhas modificação das imagens de homens e mulheres negras
Cantem! Corram! Joguem! que olham para mim através de outro olhar (...)”.10 que circulam na contemporaneidade incidem justa-
Uma das questões exploradas por Kilomba é a mente na agressividade e sexualidade, características
E nós rimos, dançamos, tocamos relação entre o mito grego de Narciso, aquele que se que se lhe atribuem. Novamente, Grada Kilomba:
Cantamos, corremos, jogamos. enamorou da própria imagem, e o sujeito colonial “Por conseguinte, acabamos por coincidir com a
apaixonado por sua autoimagem. Para a autora, trata- ameaça, o perigo, o violento, o excitante e também o
Agora, chega! -se de uma metáfora da tragédia colonial. “É uma sujo, mas desejável – permitindo à branquitude olhar
(Nei Lopes, Brechtiana) repetição infinita e uma representação infinita de para si como moralmente ideal, decente, civilizada e
si próprio que não representa a realidade, mas só majestosamente generosa, em controle total e livre
NARCISO E A IMAGEM DA PERFEIÇÃO aquela imagem colonial, branca, patriarcal que se da inquietude que sua história causa”.14
É que Narciso acha feio o que não é espelho  repete constantemente e que está apaixonada por
Caetano Veloso, Sampa si própria e se idealiza a si própria, e condenada A COMODIFICAÇÃO DA OUTRIDADE
porque não vê mais nada a não ser sua própria A teórica e artista bell hooks desenvolve em seu
Em sua produção teórica e artística, Grada Kilom- representação. É uma representação, um tipo de livro Olhares negros as relações entre comodificação e
ba pensa as relações entre poder e conhecimento enunciado em que as outras pessoas não existem.”11 outridade.15 Uma definição possível para o conceito
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PERNAMBUCO, JULHO 2019

ARTIGO

de comodificação é pensá-lo como um processo Vale mencionar que esse consumo não modifica de controle são projetadas para fazer com que o
de transformação de todas as atividades humanas as relações socais nem rompe com as armadilhas racismo, o sexismo, a pobreza e outras formas de
em mercadorias. Ou seja, o consumo supera a pro- da supremacia e do etnocentrismo, uma vez que a injustiça social pareçam ser partes naturais, normais
dução, mercantilizando ideias, serviços, culturas, branquitude continua sendo definida como o lugar e inevitáveis da vida cotidiana”, diz a socióloga.18
imagens. Quando atrelada à raça, a comodificação da norma, enquanto qualquer outra etnicidade é Vale ressaltar que, para Collins, todos os grupos
pode interferir na economia da circulação das ima- vista como a diferença, a cor, o sabor. sociais estão submetidos às imagens de controle.
gens da negritude16, especialmente, no contexto da Os homens brancos, por exemplo, possuem sua
cultura pop contemporânea. IMAGENS DE CONTROLE imagem atrelada à inteligência, poder e controle.
A comodificação pode transformar supostas “ima- Me ver pobre, preso ou morto, já é cultural. Os versos da O que não é necessariamente a realidade de todos.
gens da diferença” em mercadorias rentáveis que música Negro drama, do grupo Racionais MC’s, As diferenças residem no fato de que, para grupos
proporcionam novas cores, sabores e gozo a consu- exemplificam o que Patricia Hill Collins concei- não racializados, as imagens são positivas, mas que
midores. A comodificação da outridade, diz hooks, tuou como imagens de controle. para coletividades atravessadas por intersecciona-
“tem sido bem-sucedida porque é oferecida como O conceito define as imagens que legitimam e na- lidade (como as mulheres negras) as imagens são
um novo deleite, mais intenso, mais satisfatório do turalizam ideologicamente a dominação e a opressão, sempre desfavoráveis.19
que os modos de fazer e de sentir. Dentro das culturas que atribui certas características inatas e específicas Por certo, determinadas imagens naturalizam
das commodities, a etnicidade se torna um tempero, a grupos racializados/oprimidos para justificar sua desigualdades sociais, congelam sujeitos negros
conferindo um sabor que melhora o aspecto da merda própria opressão e circulam pelos meios de comu- a seus “lugares naturais” – os porões dos navios
insossa que é a cultura branca dominante”.17 nicação de massa, como o cinema. “Essas imagens negreiros, senzalas, favelas, cortiços, delinquência,
21
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FILIPE ACA E LUÍSA VASCONCELOS

mantendo-se forte e quase indestrutível. “Bertoleza


é que continuava na cepa torta, sempre a mesma
crioula suja, sempre atrapalhada de serviço, sem
A falta de imagens
domingo nem dia santo (...).”20
De outro lado, a “mulata assanhada”, personi-
ficada em Rita Baiana:
de pessoas negras
“Rita Baiana, que foi trocar o vestido por uma
saia, surgir de membros e braços nus, para dançar cria compõe uma
comunidade de
(...) cheios de uma graça irresistível, simples, pri-
mitiva, feita toda de pecado, toda do paraíso, com
muito de serpente e muito de mulher. (...) Rita, só

sentido em torno
ela, só aquele demônio, tinha o mágico segredo da-
queles movimentos de cobra amaldiçoada; aqueles
requebrados que não sabiam ser sem o cheiro que
a mulata voltada de si e sem a voz doce, quebra
harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante.”21
Vale notar que, para Collins, há, no entanto, es-
do vazio de uma
paço para agência dos sujeitos, que devem rejeitar
a internalização dessas imagens de controle como
um ato de resistência que permitirá uma construção
representação
e definição própria de si. considerando-se que o olhar que lançamos às
pessoas e aos objetos os imbui de características as
CONTRANARRATIVAS, CONTRAIMAGENS mais diversas, boas ou más. Estereótipos são criados
A litografia Mercado de escravos (1835) do pintor ale- ou reforçados quando somos diariamente bombar-
mão Johann Moritz Rugendas (1802–1858), criada deados por imagens que corporificam preconceitos
durante o período no qual esteve no Brasil, é um e lugares instituídos. Repensar esses lugares implica
dos trabalhos que visava documentar iconogra- repensar as imagens que fundaram simbolicamente
ficamente aspectos cotidianos que atendiam aos o país, e isso não é tarefa pequena”.25
desejos europeus de conhecimento do Novo Mun-
do, particularmente aos interessados no tema da NOTAS
escravidão. Esse quadro em especial permite con- 1. Entrevista de Stuart Hall a H. B. de Hollanda e Liv
siderações sobre a afirmação de uma humanidade Sovik, publicada na revista Muiraquitã (PPGLI-UFAC,
negra, mesmo em um contexto desumanizador. v.2, n.1, Jul/Dez, 2013, p. 196-207). Citação na p. 201.
Quem revela isso é o historiador da arte Roberto 2. Neste texto a expressão "sujeitos não brancos" refere-
Conduru, que, em artigo a respeito das representa- -se ao “alijados” da modernidade concebida pelos
ções oitocentistas da escravidão, suscitou questões europeus. No contexto brasileiro, tratam-se afrodes-
interpretativas sobre essa imagem: cendentes e dos povos indígenas.
“Outro modo de evidenciar humanidade, escape 3. Os trabalhos mais citados nos livros escolares são
e resistência à condição abjeta a que foram subme- Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, de Jean-Baptiste
tidos os negros é uma cena especial representada Debret e Voyage Pittoresque dans le Brasil, de Johann
por Rugendas. No Mercado de escravos por ele figurado, Moritz Rugendas.
destaca-se o negro, à direita, que desenha sobre a 4. SODRÉ, Muniz. “Uma lógica perversa de lugar”.
parede, alheio ao que acontece à sua volta, enquan- Revista da ECOPÓS. v. 21, n. 3 (2018).
to alguns o observam, inclusive um provável com- 5. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Sal-
prador. A imagem indica um feito excepcional: sem vador: Editora UFBA, 2008, p.108.
maiores cerceamentos, um escravo se representa 6. COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro.
à luz do dia; um cativo vale-se das artes plásticas São Paulo: Boitempo, 2019.
como meio de autorrepresentação”.22 7. Cadernos Negros n. 19, São Paulo, 1996.
Conduru complementa que a possibilidade, 8. Transcrição do documentário Orí publicada em
porém, de um escravizado exprimir-se era restrita, NASCIMENTO, Beatriz. Quilombola e intelectual.
uma vez que não lhe era permitido. Sua represen- Possibilidades nos dias da destruição. São Paulo: Ed.
tação foi feita a partir do registro de “olhos alheios”. Filhos da África/UCPA, 2018, p.327.
O que Rugendas imprimiu, na verdade, não era 9. NASCIMENTO, op. cit. p. 330. A citação guarda
completamente factível, mas uma possibilidade marcas de oralidade.
de ultrapassar o real visível: 10. Entrevista concedida a Helder Ferreira, no dia 7 de
“Com sua gravura, ele estaria nos dizendo: apesar abril de 2016. Disponível em https://revistacult.uol.com.
da situação abominável, de todas as limitações e br/home/grada-kilomba/.
dores, os africanos e afrodescendentes escravi- 11. “Quando as palavras se deslocam no inconsciente
zados souberam resistir e preservar sua cultura colonial”. Entrevista a Suely Rolnik. Disponível: http://
artística – não só a criação, mas também a fruição www.goethe.de/ins/br/lp/prj/eps/sob/pt16199210.htm
estética, suas práticas e saberes, sua humanidade. 12. KILOMBA, Grada. A máscara. In. Cadernos de Li-
Isso evidencia igualmente como, na arte, a imagem teratura em Tradução, n. 16, p. 171-180, 2016. (Tradução
transita entre realidade e ficção, entre a verdade, o de Jessica Oliveira de Jesus), p. 174.
verossímil e até, quem sabe, a mentira”.23 13. FANON, op. cit. p.147
A afirmação dialoga com as considerações do 14. KILOMBA, Grada. 2016, p. 174.
pensador Walter Benjamin de “escovar a história 15. A nota da tradutora Stephanie Borges no livro
a contrapelo” em suas Teses sobre o conceito da História: explica que se trata da tradução da palavra inglesa
“Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de otherness, que nomeia pessoas próximas com mar-
vozes que emudeceram?” Parafraseando-o: não cadores sociais de gênero, etnicidade distintas, não a
haveria nas imagens que vemos outras imagens alteridade psicanalítica ou etnográfica.
que se apagaram? Volto a bell hooks: “Existem 16. Aqui a palavra negritude é a tradução de blackness
presídios, hospícios, necrotérios, os lugares da do- espaços de agência para pessoas negras, onde do inglês, não o movimento da négritude liderado por
minação – a “lata de lixo da sociedade” brasileira, podemos ao mesmo tempo interrogar o olhar do Aimé Césaire.
como nomeou a antropóloga Lélia Gonzalez. Outro e também olhar de volta, um para o outro, 17. HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação.
No caso brasileiro, imagens de controle incidem dando o nome ao que vemos. O ‘olhar’ tem sido e São Paulo: Elefante, 2019, p.66.
vigorosamente sob a população negra, particular- permanece, globalmente, um lugar de resistência 18. Collins, 2019.
mente nas mulheres negras. Em nosso imaginário, para o povo negro colonizado”.24 19. Depoimento da autora, disponível em: https://www.
há lugares destinados social e historicamente às Construir e disputar suas próprias narrativas, se- youtube.com/watch?v=XVdbyhuAJEs
mulheres negras, duas figuras recorrentes ocupam jam textuais ou visuais, é um exercício de poder. No 20. AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 36ª Ed. São Paulo:
esse lugar: a “negra servente” e a “mulata assanha- caso brasileiro, impõe-se a urgência de ampliar os Ática, 2005, p.221.
da”. A literatura apresenta vários exemplos, entre repertórios representacionais, problematizar, inserir 21. AZEVEDO, op. Cit, p. 76.
eles o conhecido romance O cortiço (1890) de Aluísio e reordenar os sujeitos negros e suas imagens. Como 22. CONDURU, Roberto. “O cativeiro na arte. Repre-
Azevedo. Ainda que condicionado pelos determi- afirmou a artista e pesquisadora Rosana Paulino, é sentações oitocentistas do comércio de escravos no
nismos próprios do Naturalismo, o livro permanece preciso repensar as imagens que fundaram o país: Brasil.” Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, p. 93, 2008.
atual na evidência das imagens de controle. “Imagens não são elementos mortos. Elas par- 23. CONDURU, op cit. p.94.
No livro, a personagem Bertoleza é um exemplo ticipam ativamente da construção dos locais so- 24. HOOKS, op cit. p.217.
icônico da figura da “negra servente”, sempre dis- ciais ocupados pelos indivíduos. segundo o qual 25. PAULINO, Rosana. Diálogos Ausentes, Vozes Pre-
posta a cuidar das necessidades dos demais, servir ‘semelhante cura semelhante’ –, podemos pensar sentes. 2016. Disponível em https://www.itaucultural.
aos outros, sacrificando a si e a sua subjetividade, que, metaforicamente, ‘imagens curam imagens’, org.br/dialogos-ausentes-mostra.
HUMOR, AVENTURA E HISTÓRIA EM
LIVROS PARA ADULTOS E CRIANÇAS

HISTÓRIA DO BRASIL SOB O PEQUENA VOZ: ANOTAÇÕES POVO XAMBÁ RESISTE: 80


GOVERNO DE MAURÍCIO DE SOBRE POESIA ANOS DA REPRESSÃO AOS
NASSAU (1639-1644) Nuno Félix da Costa TERREIROS EM PERNAMBUCO
Gaspar Barléu Marileide Alves
O escritor português Nuno Félix da Costa
Nova tradução com mais de 300 notas situa o lugar da poesia no desenvolvimento Esta é a história do Povo Xambá contada
explicativas e reproduções coloridas de do pensamento, desde antes da pelos que a viveram e que trazem as marcas
gravuras do original, que retrata o período sistematização do pensamento filosófico. das dores sofridas em 80 anos de repressão,
holandês no Brasil. É uma edição essencial Para ele, a poesia é antiga e contemporânea, pela proibição de viver sua religiosidade,
para pesquisadores e envolvente para o e o poema descobre harmonia nas pela proibição de cultuar seus deuses, pela
público geral. Barléu é uma fonte histórica desconexões sinfônicas ou jazzísticas do proibição de expressar sua liberdade. É,
importante de contribuir de forma original real. O livro é fragmentário e guarda o principalmente, a história da resistência e das
para a compreensão europeia da América. despropósito permitido à linguagem poética. conquistas da nova geração de xambazeiros.

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DON JUAN-DON GIOVANNI: A COISA BRUTAMONTES O VOO DA ETERNA BREVIDADE


PEÇA EM DEZ JORNADAS Renata Penzani José Mário Rodrigues
Marcus Accioly
Como um menininho reage à ideia da É por meio da poesia que José Mário
Este livro póstumo de Marcus Accioly morte? A coisa brutamontes é um livro- Rodrigues reúne forças para unir todas
foi escrito à exaustão pelo poeta, que o interrogação: Há um lugar para ser criança as coisas e mostrar seu universo, em que
imaginou como sua última obra. Nele, e outro para ser velho? A infância um as perdas representam o sentido final da
percebe-se a grandeza épica e trágica – a dia acaba? Perto e longe são palavras experiência vivida. Ideias como brevidade,
par com o burlesco –, cuja força verbal desconhecidas? Cícero e Dona Maria são solidão e imagens de ventos e nuvens dão a
resgata a figura de Don Juan. Este, em como coordenadas geográficas tentando seus versos uma característica fugidia que
seus jogos de erotismo e sedução, revela indicar um lugar fácil de chegar, mas que recusa a linearidade de ideias. O livro foi 2°
inconsistências da condição humana, a mesmo assim poucos visitam depois de lugar do Prêmio Alphonsus de Guimaraens,
recusa e a atração da morte. grandes: um lugar chamado infância. oferecido pela Biblioteca Nacional.
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CONDENADOS À VIDA POESIA REUNIDA: ESPAÇO TERRESTRE


Raimundo Carrero TEREZA TENÓRIO Gilvan Lemos
Tereza Tenório
Edição definitiva da tetralogia de Em narrativa quase cinematográfica, Gilvan
Raimundo Carrero, que reúne Maçã O universo cósmico e imaginário da Lemos transmite a saga de uma comunidade
agreste (1989), Somos pedras que se poesia de Tereza Tenório é agrupado do interior nordestino e de várias gerações de
consomem (1995), O amor não tem bons nesta primeira antologia organizada pela uma família luso-tropical, os Albanos, que na
sentimentos (2008) e Tangolomango Cepe Editora. A obra reunida da poeta Vila de Sulidade vivem conflitos exacerbados
(2013), que aborda a família do patriarca recifense obedece à ordem cronológica pela miscigenação entre portugueses, negros
Ernesto Cavalcante do Rego. Trata- de suas publicações, de Parábola (1970) e índios. Tentam preservar suas características
se de corrosiva crítica social à elite à A casa que dorme (2003), conforme o genéticas, seus modos de ser, de ver a
nordestina decadente. O volume conta desejo da autora, que foi a grande musa realidade e de reinterpretá-la à luz do que
com ensaio crítico de José Castello. da poesia da Geração de 65 no Recife. se convencionou chamar de brasilidade.
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LÁZARO CAMINHA SOBRE O INSISTENTE INACABADO


O ABISMO Luiz Costa Lima
Augusto Ferraz
Este volume desdobra mais uma volta
Um romance em prosa poética sobre no percurso de Luiz Costa Lima sobre a
um homem que vai da morte à vida, problemática da mímesis. Aqui, o autor
enquanto reflete sobre o presente traça uma retrospectiva paralela das
e o passado de sua própria história. perguntas sobre a escrita da história e a
A todo momento, ele se encontra literatura, na qual examina formulações
e desencontra consigo, morto ou oferecidas por historiadores e
vivo, pelas ruas de São Paulo, para romancistas como Chladenius,
recordar os acontecimentos mais Droysen, e Gervinus, do século XVIII
prosaicos. Escrita em um constante ao XIX. Seu exame comparado assinala
fluxo de pensamento, a narrativa é alguns resultados consideráveis e
densa e carregada de jogos verbais, também a hierarquia que se estabelecia
belas imagens poéticas e referências entre os dois campos.
a artistas como Faulkner e Fellini.
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PERNAMBUCO, JULHO 2019

José
CASTELLO www.facebook.com/JoseCastello.escritor
HANA LUZIA

O falso pessimista
Quando me engajei, no ano de 2008, em uma simista vai outro abismo. Ver o mundo como a espera ao paroxismo, transformando-a no
montagem teatral de Esperando Godot, de Sa- ele é não significa desistir desse mundo. Muitas próprio motor do existir, que a presença/au-
muel Beckett, dirigida por Flávio Stein, ouvi vezes, não ver é a forma mais rápida de fugir. sência de Godot se torna tão poderosa. Sim,
de alguns amigos sinceros uma advertência. O gosto de Beckett pelo silêncio, e também podemos (devemos) ler (e assistir) Godot de
Saberia eu, de fato, o que estava fazendo? pelas grandes falhas e hiatos, que marcam Espe- outra maneira: a peça não é só um sobrevoo
Eles se espantavam com minha coragem rando Godot, deve ser observado de outra forma. sobre a falta de sentido da vida, ou a falência
de me envolver na leitura coletiva de um Tanto na prosa, como na dramaturgia, Beckett de existir. É também isso, é claro, mas não se
texto tão melancólico e depressivo, como trata, de fato, do inominável – daquilo que detém aí, pois Beckett não era de desistir por
diziam. Perguntavam-se se era o momento nome algum consegue designar. É da falência tão pouco. Se Vladimir e Estragon persistem
adequado para isso. “Beckett é triste demais, das palavras e de seu fracasso primordial que em sua espera, ela já não é um fracasso, ou
e nossos tempos já são bem duros”, um deles ele faz sua arte. Mas seu olhar sobre o mundo uma inutilidade – ela é o próprio semblante
argumentou. As montagens anteriores de não é pessimista, ou decadente. Ao contrário: do real. Vivemos assim, em trânsito e à deriva,
Esperando Godot teriam provado que não se se ele escreve para enfrentar impasses, tira aguardando sempre o passo seguinte, e é isso
pode montar Samuel Beckett sem tocar no disso uma força incomum. Uma irresistível – o que nos movimenta. Se alguns aí afundam
insuportável e – para citar o próprio Beckett ainda que precária – vontade de viver. por falta de coragem, isso pouco diz a respeito
– no inominável. Por isso, esses amigos se O pessimismo de Samuel Beckett, para das possibilidades do homem.
preocupavam comigo. “O mundo de hoje muitos, se estampa na fisionomia que ele Beckett não foi um pessimista, ao contrário,
exige ideias mais práticas e mais simples”, ostentou na maturidade. Rosto fino, olhos ele é um escritor radicalmente centrado em
outro me disse. Ah, a amizade que, tantas azuis e aguados como que diluídos em uma seu tempo. Antes de tudo: um escritor vital.
vezes, se parece com a incompreensão! tempestade, pele riscada em grossas rugas O avançar dos anos arranca Godot da lenda do
Meus amigos não estavam sozinhos em sua (como cicatrizes), sobrancelhas em desali- absurdo e a jogo em nosso colo. Vladimir e Es-
aflição. Samuel Beckett (1906-1989) é sempre nho, nariz em aguilhão, Beckett carregaria tragon são, por certo, dois homens espremidos
incluído no rol dos grandes pessimistas e dos na própria face as marcas de um homem e tensos. Mas todos estamos limitados por uma
incorrigíveis melancólicos. As provas disso que, porque nada mais esperava além da existência curta, recursos instáveis e ideias
começariam em sua biografia. Nascido em glória literária, seria a própria imagem da que quase nunca dão conta do real. E nem por
Dublin, Beckett passou, no fim dos anos 1920, decepção. A hoje clássica biografia do es- isso Vladimir e Estragon desistem. Não, eles
uma temporada em Paris. Lá se fez amigo de critor assinada por James Knowlson, inédita não se apoiam em ilusões, não se salvam atra-
James Joyce, de quem foi secretário. De volta no Brasil, mostra que existe muito mais sob vés da rebeldia cega ou, ao contrário, da pura
à Irlanda, ele tentou uma carreira universi- essa máscara tão pobre. Knowlson realça a negação da realidade. Ao contrário, encaram
tária, mas, com um temperamento intros- imagem dissonante de um Samuel Beckett e examinam, com grande avidez, o mundo
pectivo e disperso, não se adaptou à vida piadista, com sentimentos fortes e alma ca- que têm. E mais ainda: eles o interrogam, o
acadêmica. Estabeleceu-se em definitivo lorosa, capaz de debochar do mundo e de ridicularizam, o testam, o desafiam. Em uma
em Paris – como um fracassado, ou mesmo retirar do sofrimento um impulso para viver. palavra: eles o vivem
um fugitivo, em geral se pensa – no ano de Ele não foi só um homem que sofria de uma O mundo em que vivem está além de qual-
1938. Talvez ele mesmo, Samuel, pensasse “vertigem metafísica”, embora isso também quer síntese. Tudo o que eles têm são pedaços,
assim. Mas o que isso importa? seja verdade. Insiste-se sempre na vertigem, algumas certezas imprecisas, intuições não
Na grande trilogia narrativa que Beckett es- como que para afastá-lo de nós e enfurná-lo confiáveis, breves insights – e um grande fardo
creveu no início dos anos 1950 (Molloy e Malone na galeria distante dos “homens especiais”. de dúvidas. Fardo, ou tesouro? Contudo, esse
morre, ambos de 1951, e O inominável, de 1953), Talvez dos loucos, ou dos doentes. Mesmo mundo tão estreito não os leva a renunciar. Ao
diz-se ainda, evidenciou-se seu interesse (do- que seja dos gênios... contrário: ele os leva, sempre, a prosseguir. Os
entio, talvez) pelos monólogos, circulares e Lida nessa perspectiva, de um Beckett so- obstáculos não são barreiras que impedem seu
fechados, que ilustram o isolamento e o tédio litário e sofredor, Esperando Godot seria a prova avanço. Em vez disso, são pedras e argamassas,
do homem. De fato, os personagens de Beckett cabal da inutilidade da espera. Seja Godot um os únicos materiais de que dispõem para, às
se movem dentro de limites estreitos e expe- deus (god) ou o que for (quem sabe ele não é cegas e sem muita certeza de nada, construir
rimentam o abismo que separa o homem de o próprio personagem Pozzo?), ele seria um não sei se o mundo, mas algo que a ele se as-
seus semelhantes. E se asfixiam numa grande inútil – alguém que gasta seu tempo e sua vida semelha. É nesse construir – inventar – que
garganta de silêncio, na qual a linguagem se aguardando alguém ou algo que nunca chega. Vladimir e Estragon vivem e se movimentam.
evapora. Daí afirmar que Beckett foi um pes- Mas é talvez porque nunca chega, e prolonga Isso é, numa palavra, o existir.
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INÉDITOS Tradução e nota: Piotr Kilanowski


Jan Kochanowski

O poeta Jan Kochanowski (1530-1584), considera- poesia em outros idiomas. Em português, por en-
do o pai do idioma literário polonês, além de criar quanto, temos apenas 4 poemas dele. Três deles
há 500 anos o estilo e a linguagem que se tornaram foram traduzidos por Aleksandar Jovanović na
referência por séculos, transformando-o no maior sua antologia de poesia eslava Céu vazio e um é
poeta polonês até o advento dos vates românticos a tradução coassinada por Henryk Siewierski e
no século XIX, foi o primeiro autor polonês a criar Marcelo Paiva de Souza no livro História da literatura
uma obra tida como completa. Fora os epigramas polonesa, de autoria do primeiro.
conhecidos como Fraszki (o título proveniente do Embora o poeta durante boa parte da vida esti-
italiano frascas poderia ser traduzido como “brin- vesse perto da corte e de dignidades, nunca cedeu
cadeiras”, “bagatelas”, “folguedos”), também es- à tentação de se transformar num poeta cortês
creveu cantos à moda de Horácio, dramas, poemas bajulador. Muito pelo contrário. Tanto seus epigra-
longos, elegias, odes e epicédios. Traduziu mais mas cheios de sátiras e dedicados às celebridades
de 150 salmos para o polonês. Traduziu, também, da época, quanto seus poemas mais sérios, nos
fragmentos da Ilíada. Além da poesia escrita em quais aconselha os poderosos a como se portar e
polonês, escrevia também versos em latim (cerca governar, mostram a verdadeira independência de
de um terço de sua produção literária). A listagem um humanista e cidadão. Da mesma maneira, seu
completa de suas obras contém mais de sete cen- único drama concluído, e ao mesmo tempo a pri-
tenas de poesias nos dois idiomas, o que é um meira tragédia moderna escrita no idioma polonês,
fato impressionante, levando-se em consideração A dispensa dos emissários gregos, cuja ação transcorre
as outras atividades desse verdadeiro homem da em Tróia na véspera do início da guerra sangrenta,
Renascença – foi político, cortesão, administra- é repleto de alusões políticas e transforma-se numa
dor, poeta da corte e estudioso que frequentou voz que chama a atenção dos que comandam a
universidades em Cracóvia, Conisberga e Pádua república nos tempos de ameaças bélicas.
– e sua vida relativamente curta, já que morreu No ocaso do reinado da dinastia Iaguelônica, a
aos 54 anos. Da mesma maneira, impressiona o Polônia definitivamente se transforma na República
fato de que, embora Kochanowski fosse um dos dos Nobres, em que estes oficialmente agora elegem
grandes poetas da época renascentista e o maior seu rei. Esses tempos marcam também o gradual
SOBRE A OBRA poeta renascentista do mundo eslavo, seu legado afastamento de Kochanowski da corte real. O poeta
permanece pouco conhecido fora das fronteiras resolve viver a vida de administrador de terras,
Trecho de Lamentos, polonesas. Embora algumas de suas obras tenham dono de uma propriedade rural. Sua participação
do poeta polonês Jan sido traduzidas para outros idiomas – talvez entre na vida pública resume-se a poucas e importantes
Kochanowski, aqui as mais famosas esteja a tradução para o inglês de aparições, mas a presença da nota de preocupação
traduzido por Piotr seus Treny, em autoria conjunta dos poetas Stanisław patriótica permeia constantemente seus escritos.
Kilanowski, ainda Barańczak e Seamus Heaney, este último laureado A retirada para o seio da vida familiar, para “o
sem editora. com o Nobel literário de 1995 –, ainda há muito campo tranquilo, o campo alegre”, como escreve
trabalho a ser feito no sentido de apresentar sua numa de suas éclogas, é, no entanto, marcada por
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FILIPE ACA

infortúnios. Se, por um lado, o reconhecimento da também típico da época do Renascimento faz do que não se provaram muito úteis na vida real. A
sua tradução do Livro dos salmos, que foi simultane- ciclo uma obra original. Além de ele ser dedicado evolução do sofrimento do poeta e suas etapas que
amente adotado pelas maiores religiões do reino a uma pessoa não notória, contrariando o costume terminam na consolação com o destino podem
(católica, protestante e ortodoxa) confirma sua nos epicédios da época, vemos um ciclo dedicado a ser observados ao longo do ciclo. A construção
fama, por outro lado, a morte do irmão e de duas uma criança, ou seja, uma pessoa sem importância que permite esse relato poético acabou incutindo
filhas amarga os últimos anos do poeta. alguma do ponto de vista público. E por mais que várias influências na poesia polonesa. A crise do
Justamente esses infortúnios ao lado da maturi- existissem epitáfios versados e poemas dedicados homem pensante renascentista perante o inimigo
dade poética resultam naquela que entre as obras aos familiares mortos, um ciclo de 19 poemas de todo ser humano – a morte – e a crise perante as
de Kochanowski certamente merece destaque. dedicados à filha, ao luto por ela e às tentativas ideias que não fornecem uma base diante da dor,
Trata-se do trabalho cuja tradução foi empreendi- de superação de sua perda é uma novidade sem talvez ecoem num outro ciclo famoso de um poeta
da pela dupla Barańczak/Heaney: Treny (Lamentos igual na poesia criada até então. Podemos pensar polonês: O Senhor Cogito de Zbigniew Herbert, que
ou Trenodias). Consiste em um ciclo de epicédios nas analogias com o ciclo de Petrarca (1304- mostra o homem pensante de hoje diante da “Terra
dedicados à filha Urzsula, após falecimento desta. 1374) dedicado a Laura, na segunda parte de seu desolada” do mundo moderno. Não acaba aqui,
Ao lado da obra mais pessoal de Kochanowski, Canzioniere, de alguma maneira revisto por Pierre de no entanto, a inspiração que Lamentos exerceram
estamos também diante da obra escrita por um Ronsard (1524-1585) no ciclo Sur la mort de Marie (os na literatura. Podemos encontrar seus ecos tanto
poeta que, dos seus dias. A maturidade dos Lamentos, dois poetas conheceram-se durante a viagem de nos ciclos epicediais de Władysław Broniewski,
tanto do ponto de vista da construção intertextual Kochanowski à França), mas as protagonistas do quanto nos poemas de Józef Wittlin ou Boleslaw
quanto do domínio da forma e da linguagem, faz do italiano e do francês não eram crianças. Leśmian, mas também no ciclo de poemas que
ciclo uma das mais importantes obras da literatura A composição do livro também reflete de alguma Stanisław Wygodzki dedicadou à sua filha, morta
polonesa. Ao mesmo tempo, a universalidade de maneira a de Petrarca. Os lamentos, conversas durante o Holocausto.
seu tema, a perda de uma filha, fazem com que com a filha morta, evoluem desde o desespero até As traduções apresentadas nas próximas páginas
os versos de Kochanowski não percam viço e a consolação final com o destino. Diferentemente, são parte de um projeto ainda inconcluso de verter
importância, apesar da passagem dos anos . no entanto, da oração – uma conversa com Deus a integridade da obra para o idioma português. A
Observamos em Lamentos, como numa obra que dá cabo ao ciclo petrarquiano –, Kochanowski tradução dos Lamentos configura uma tarefa desa-
clássica da Renascença (e que em alguns momentos termina Lamentos com a descrição do sonho no fiante. Tanto porque o idioma polonês do século
já prenuncia a chegada do Barroco), a presença qual sua falecida mãe fala sobre a recepção que XVI é diferente do idioma de hoje, obrigando o
de elementos clássicos e referências à tradição Urzsula teve no outro mundo e reflete didatica e tradutor a um estudo mais minucioso, quanto por-
humanista ocidental. A invocação aberta de moralisticamente sobre os fados humanos. Nessa que a tarefa de tentar refletir os recursos utilizados
Simônides, a presença de Heráclito, de Cícero, situação, devemos pensar que as inspirações do no original são um desafio constante. Embora eu
de mitos gregos (como os de Níobe e Orfeu, por poema final remontem a O sonho de Cipião, de Cícero, esteja satisfeito com alguns dos resultados alcan-
exemplo), o imaginário sálmico e o pensamento mostrando assim vários diálogos e o sincretismo çados, outros poemas ainda aguardam uma versão
filosófico da antiguidade clássica, unem-se com estabelecidos pela obra do polonês. Um outro final a meu contento. Por ora apresento aqui ao
as intertextualidades menos óbvias como, por elemento que diferencia o ciclo de Kochanowski leitor uma amostra: alguns poemas extraídos da
exemplo, o canto da Antígona de Sófocles no Lamento do petrarquiano é um autorretrato do poeta sequência original de Lamentos, para que se possa
VI, ou o relacionamento com os conjuntos epicediais, quando velho que vemos em Lamentos. A obra ter uma ideia da obra mais importante da literatura
como o de Propércio. No entanto, outro elemento reflete a dor e o fim dos ideais estóicos do poeta, renascentista polonesa.
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INÉDITOS LAMENTO IV
Violaste os meus olhos, ó Morte abjeta,
Tive que ver a agonia da filha dileta!
Vi quando arrancavas a frutinha imatura,
Os corações dos pais pisando com pés duros.
Nunca poderia ela, sem minha grã-desolação,
Morrer, nunca sem a dor sincera e a aflição
Abandonar-me pesaroso e sozinho nessa vida,
Não importando a hora da sua partida,
Mas nunca me poderia causar sua morte
Mor desdita e uma saudade mais forte. LAMENTO V
E ela, vivendo mais anos, com a vênia de Deus, Como uma oliveira miúda, no alto pomar
Muitas alegrias legaria aos olhos meus. Seguindo a mãe, da terra ao céu tenta escalar,
E eu, nesse tempo, a minha existência viveria Nem ramos, nem folhinhas ainda brotando,
E, por fim, Perséfone, mais calmo encontraria, Apenas uma varinha delgada galgando
Sem ter sentido n’alma tão enorme pena A qual, na limpeza de urtigas e mato espinhoso,
Que a nada se iguala na vida terrena. Foi segada ao meio pelo hortelão ansioso,
Não estranho Níobe que em pedra se transformou Desfalece de pronto, da força inata privada,
Quando os corpos dos filhos mortos contemplou. Sem fôlego, cai inerte aos pés da sua mãe amada –
Assim aconteceu da minha querida Urszula a partida.
Diante dos olhos dos pais lentamente crescia sua vida,
Mal se levantou do solo, já pelo espírito contagioso
Da Morte Dura envolvida, dos pais amorosos
aos pés caiu morta. Ó Perséfone atroz,
Quantas vãs lágrimas provocaste pela dor feroz.
Tradução e nota: Piotr Kilanowski
Jan Kochanowski

LAMENTO VI LAMENTO VII


Ó minha alegre cantora! Ó Safo eslava! Indumentos infelizes, vestes desoladas
Quem, além do meu quinhão de terra ainda esperava Da minha filha amada!
O meu alaúde, devido por lei da herança! Para que meus olhos tristes estais atraindo
E tu confirmavas a todos essa esperança, E minhas penas expandindo?
Criando novos cantos e nunca fechando Não vestirá seu corpinho convosco, minha criança
A boquinha, passavas o dia cantando, Não há mais, não há mais esperança.
Como um rouxinolzinho que entre a verde folhada Captou-a o sono duro, ferrenho, infinito.
Canta a noite inteira com sua garganta animada. Seu vestido tinto bonito
Muito rápido calastes! De súbito a morte impiedosa E os laços para nada e cintos dourados,
Te espantou, minha amável gárrula preciosa! Os presentes maternos inutilizados.
Não saciaste meus ouvidos com teus belos cantos Não para esse leito, minha doce cria
E o pouco que tive - pago agora com copiosos prantos. Sua pobre mãe deveria
E tu nem na agonia de cantar cessaste, Levar-te. Não foi esse o dote prometido
Mas à mãe beijando, ainda assim a saudaste: Aquele que tens recebido!
"Cara mãe, não poderei mais servir à senhora Deu-te só uma mísera faixa e um simples vestidinho;
Nem sentar poderei à sua mesa acolhedora; O pai somente de terra um punhadinho
Terei que devolver as chaves, sozinha afastar-me, Colocou nas cabeças. Ai que maldição!
Da casa dos meus caros pais pra sempre separar-me". Fechados ela e o dote no mesmo caixão.
Foi essa, e mais não me permite recordar a atroz
dor paterna lancinante, a sua última voz.
O coração da mãe, ouvindo esse adeus aflitivo,
Devia ser bom, pois ainda conservou-se vivo.

LAMENTO VIII
Num deserto imenso o meu doce lar
Meiga Urszula, com tua falta, vieste transformar.
Cá estamos todos, mas parece que ninguém existe,
Uma alma miudinha faz tanta falta, triste...
Por todos tagarelaste, por todos cantaste,
Todos os cantos da casa sempre visitaste.
Nunca deixaste a mãe boa se preocupar,
Nem o pai com os pensamentos a fronte turvar,
Um ou outro com graça sempre abraçando,
E com a risada alegre as penas dispersando.
Silenciou tudo agora, reina o deserto,
Ninguém nunca graceja ou brinca por perto.
De cada canto espreita-nos a aflição,
E o coração procura seu consolo em vão.
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FILIPE ACA

LAMENTO XII
Nenhum pai, dizem, um filho há amado tanto,
Nenhum sobre a filha derramou os prantos
Que derramei. E nunca havia u’a criança nascido,
Que mais amor dos pais tivesse merecido.
Dócil, asseada, meiga e nada mimada
Cantar, falar, rimar, sabia como se ensinada;
Imitar reverências e posturas alheias podia,
Quando manter os modos ou brincar sabia,
Inteligente, alegre, humana, bondosa,
Pura, modesta, calma e nada chorosa.
E ainda: nunca pela manhã falava em comer
Antes que a Deus as orações fosse oferecer.
Não iria dormir sem antes a mãe saudar
E pela saúde dos pais a Deus rogar.
Sempre alegre, correndo, seu pai encontrava
quando este de viagem à casa chegava.
A ajudar sempre pronta os seus pais amados
Cada encargo executava antes dos criados.
Essas coisas fazia na infância tenrazinha
Quando ainda menos de trinta meses tinha.
Não conseguiu suportar a sua frágil juventude,
O peso de tantos méritos e tantas virtudes.
Caíste sem aguardar a colheita, minha espiga adorada,
Não maduraste ainda e antes da hora esperada
Desolado eu faço o plantio na aflita terra!
E junto a ti também a minha esperança enterro:
Pois por todos os séculos não brotarás nem florirás
E os paternos olhos tristes nunca mais alegrarás.
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RESENHAS
CATHERINE OPIE. COURTESY OF BLUE FLOWER / DIVULGAÇÃO

Por uma poética Nos estudos literários,


quando analisamos
obras nas quais são
atravessa muito de seus
poemas) mas, sobretudo,
de permanecer em
de Preparativos para ir à
América, Stein questiona-
se sobre continuar a
não dialogavam com as
normas reverberadas
pelos eixos canônicos.

lésbica em sua
propostas perspectivas direção contrária ao que escrever e fala de como Para além do aparato
de desestabilização do abala a sua subjetividade uma espécie de força teórico e opressor,
cânone e reorganização do como mulher lésbica. oculta dos espaços está quando Wittig postula,

forma textual
cânone, tem-se em mente Em um dos poemas do paralela ao processo de na conclusão de seu
um tipo de desvio do livro, intitulado Eu sempre criação. Myles faz algo ensaio, “lésbicas não
ritmo, da música que ponho a minha buceta, Myles parecido em Um poema são mulheres”, existe
todos ouvem porque desnorteia o fato de que norte-americano: “Peguei uma fagulha de desarme
Eileen Myles e uma escrita que nela está a marca da
atemporalidade. O
a mulher, dentro da
narrativa heterossexual,
o Amtrak para Nova/
York no início dos/ anos
catártico em confronto
ao discurso hegemônico
se move sempre em direção cânone faz parte de obedece ao padrão de 70 e acho que/ dá para heterossexual cravado

contrária ao heteronormativo
um consenso – como discurso masculino e dizer que/ meus anos com tantos pés juntos
visto em Habermas patriarcal, como visto escondidos/ começaram. ao patriarcado. É como
e outros autores – e, por Wittig e, assim, quais Pensei,/ Bem, vou ser se, já que apartadas
Priscilla Campos dessa maneira, emula seriam, então, as funções poeta./ O que poderia da linguagem, enfim,
estabilidade de leitura ocupadas, pela mulher ser mais/ tolo e fala-se sem parar. E
e interpretação. Em The lésbica diante de tais obscuro?/ Virei lésbica./ quando essa voz vem
straight mind, Monique sistemas de linguagem? Todas as mulheres da de novo e volta-se às
Wittig analisa como a “A busca do meu minha/ família têm cara/ figurações da realidade,
linguagem e os discursos amor/ é um distintivo/ de sapatão, mas de fato ali está a mulher que de
oprimem mulheres, é um cassetete/ é um é/ atentar contra a fato importa, como nos
lésbicas e homens capacete/ é o rosto pátria/ quando você revela Myles em seus
homossexuais porque de um cervo/ é um se torna uma”. poemas. A mulher que
estão estabelecidos a punhado de flores/ é No trecho, para a voz se sabe inteira porque
partir de uma “fundação uma cachoeira/ é um narrativa do poema, o se vê atentando à pátria
social” baseada na rio de sangue/ é uma desvio espacial é forma em defesa não só de seu
heterossexualidade. bíblia/ é um furacão/ é de impulsionamento corpo como também de
Assim, monta-se a uma adivinha”, escreve em existir-se e ver-se sua representação: diante
tensão: é possível Myles. Aqui, ela destrói lésbica e, ato contínuo, das árvores, ali está uma
um cânone literário a ideia da pena como resulta na possibilidade agente modificadora das
assumidamente uma espécie de pênis de elaborar o mundo músicas e dos tempos.
homossexual – neste metafórico – referência pela escrita. O tornar-se
caso, lésbica - e presente em Sandra M. poeta é uma questão que 1. A análise está no livro La
feminista, por exemplo? Gilbert e Susan Gubar1 – perpassa vários versos do loca del desván – La escritora
De que forma a literatura e reitera a sua identidade livro, o que deixa exposto y la imaginación literaria del
feita por mulheres e o desejo entre os corpos o quanto gênero e siglo XIX (1998).
lésbicas retorcem de duas mulheres como sexualidade estão ligados
esse tipo de noção formas de potência no à linha de frente do que
institucional presente na mundo e na escrita. Myles desenvolve como
ideia do cânone? Em termos de cânone poética e escolhe para
Por qual árvore espero, de e, em especial, cânone traçar os novos ritmos,
Eileen Myles – lançado, de língua inglesa, longe dos antigos sopros
no Brasil, pela Edições Gertrude Stein (1874 hierárquicos do cânone.
Jabuticaba; com tradução – 1946) foi um nome “Eu me fiz poeta porque
de Mariana Ruggieri, lésbico que se consolidou foi a primeira coisa
Camila Assad e Cesare como de extrema que amei de verdade”,
Rodrigues –, está no importância para o escreve em um de seus
radar de obras que Modernismo. Na busca fragmentos e continua:
podem nos apresentar por outros mecanismos “Não está perdido o
algumas saídas para de linguagem, a nosso século, graça a nós.
as questões vistas. A escritora tornou-se voz Somos as mentirosas
poeta estadunidense, imprescindível para & bandidas, somos as POESIA
ganhadora de diversos pensar a modernidade mulheres somos as
prêmios e bolsas, escreve e o território norte- mulheres”. A poesia é Por qual árvore espero
em constante movimento americano do início do sustentada por essas que Autora - Eileen Myles
e, nesse contexto, não se século XX. Em uma das um dia foram excluídas Editora - Jabuticaba
trata apenas de uma ação entradas de Autobiografia da concepção do que é Páginas - 88
espacial (temática que de todo mundo, chamada literatura pois, afinal, Preço - R$ 30
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PERNAMBUCO, JULHO 2019

Quando os narrados tentam se narrar PRATELEIRA


“Dez anos antes da casa “do diabo”. A nota importantes documentos destaca o difícil processo DIÁLOGO DAS GRANDEZAS DO BRASIL
vinda dos espanhóis, um de rodapé explica: há que nos aproximam de tradução dos textos Escrito em 1618 por um português anônimo
presságio de desgraça evidentemente uma das sensações e reflexões da língua nauatle, cuja radicado no Brasil, consiste numa conversa
apareceu pela primeira vez “interpolação franciscana” do povo asteca sobre os organização semântica é entre duas pessoas (um português recém-
no céu, como uma chama do relato original. Ou seja, espanhóis que chegaram muito diferente do alfabeto chegado e outro já morador do país) na qual são
de fogo, como uma aurora. a própria escrita desses ao México. latino, e que por isso os descritas a terra, a fauna, a flora, a economia,
(…) Um segundo presságio relatos estará para sempre Das desconfianças relatos de guerra – e de os minerais, o sistema de governo, os órgãos
funesto sucedeu aqui, atravessada por uma iniciais com as amaldiçoamento que os judiciários, os habitantes e os costumes do país.
em México-Tenochtitlan. leitura do colonizador. primeiras embarcações, astecas tentaram fazer com O estabelecimento do texto é do pesquisador
Sozinha, por sua própria Aliás, a própria ideia do ao entendimento de os espanhóis -, sofrem Caesar Sobreira, após o cotejo de 10 edições
conta, ela queimou, ardeu livro, que já surge com impotência diante bastante com a leitura da obra, com publicação da Cepe Editora.
em chamas, sem que lhe o título pressupondo o dos armamentos de feita, anos depois, por
pusessem fogo, a casa do ponto de vista da narrativa metais dos espanhóis catequizadores europeus.
diabo Uitzilopochtli.” Esse da “conquista” - e não do com “rosto branco de Ainda assim, tratam-se de
depoimento, assim escrito extermínio, palavra que giz”, o que se lê são relatos fundamentais que
na mais recente edição de caberia melhor diante dos testemunhos também de precisam ser, a toda hora,
Relatos astecas da conquista, oito presságios de desgraça como duas cosmogonias revisitados. (Carol Almeida)
com organização de identificados pelos astecas completamente distintas Autor: Anônimo
Georges Baudot e Tzvetan -, já diz bastante sobre entram em atrito violento Editora: Cepe
Todorov, diz bastante quem ainda mantém e disparam, no caso Páginas: 511
sobre como a obra revela, o poder de narrar e dos colonizadores,os Preço: R$ 60
talvez, mais sobre os quem se mantém como mecanismos de
colonizadores que os narrado, mesmo quando dominação perversos. TEMPO DE MÁGICOS
colonizados, a despeito do o relato parte do último. Nesse sentido, os relatos Traduzido por Claudia Abeling, este livro
imenso valor histórico de Naturalmente, ainda são essenciais também concentra-se em quatro intelectuais
documentos que tentem que tenha todas essas não apenas por tentar fundamentais para o séc. XX no Ocidente,
dar conta da experiência questões de edição e criar esse deslocamento que desenvolveram importantes trabalhos de
das civilizações que de não revisão histórica para a perspectiva da 1919 (já no entreguerras) a 1929 (o crack da Bolsa
foram subjugadas pelo de termos bastante civilização asteca, mas de NY): W. Benjamin, E. Cassirer, M. Heidegger
projeto racista e pré- questionáveis – a sobretudo por abrir janelas e L.Wittgenstein. Esses trabalhos mudaram o
capitalista europeu dos apresentação atualizada para os saberes, divinos e estilo de refletir os diferentes aspectos da vida
séculos XV e XVI. da edição começa com terrestres, que cercavam até os dias atuais. A obra costura explicações
Digo isso porque eis a seguinte frase: “o aquela região antes da HISTÓRIA de conceitos com dados biográficos.
que, no meio do texto, descobrimento da América invasão dizimar boa parte
como uma palavra que, foi um acontecimento da população. Relatos astecas da conquista
numa primeira leitura, único na história da Ainda sobre as Autores - Georges Baudot
tem peso menor, lá está humanidade”, e fica a cosmogonias distintas, e Tzvetan Todorov (orgs.)
a ideia de que a casa de questão “descobrimento” é preciso ressaltar que a Editora - Unesp
Uitzilopochtli, divindade de quê? - o livro não introdução do livro, escrita Páginas - 580
solar asteca, era uma deixa de ser um dos mais por Georges Baudot, Preço - R$ 92 Autor: Wolfram Eilenberger
Editora: Todavia
Páginas: 448
Preço: R$ 79,90

Uma vida póstuma Cartas japonesas ESTE É O MAR


Em Este é o mar, Mariana Enriquez explora nossos
aspectos perturbadores na esfera do mitológico.
Hélio Guimarães e Ieda movimentos negros. A A importância da e vai entendendo O mito é o das lendas do rock, em que estas
Lebensztayn organizaram reunião feita por Hélio e troca de missivas entre a importância do surgem a partir do trabalho de dedicação fanática
a republicação de alguns Ieda operam numa zona os escritores Yukio interlocutor. Nisso, a de certas mulheres, que os alçam à categoria de
textos (artigos, cartas, segura. Ao se colocarem Mishima (1925-1970) relação se aprofunda. Tão ícones junto às Luminosas, seres atemporais.
poemas) escritos sobre no texto também como e Y. Kawabata (1899- diferentes, mas próximos Helena, a protagonista, deseja construir uma
Machado de Assis logo intérpretes do autor, 1972) está tanto no pela inquietude diante dessas lendas e já elegeu o roqueiro que vai
após sua morte. A pelo uso das iniciais na fato de trazer registros da morte, que ambos eternizar. Tradução de Elisa Menezes.
seleta vai de 1908 (seu abertura do prefácio e do do Japão no ápice encontraram de forma
falecimento) a 1939 (o posfácio (como ocorre da Segunda Guerra parecida. Traduzida por
centenário), anos em que com os textos dentro do e após, quanto por Fernando Garcia, a edição
se revelam um pico de livro), eles abrem mão permitir acompanhar da Estação Liberdade
publicação sobre o autor. de posições “neutras”, as mudanças do chega ao mercado bem
A obra interessa por trazer convidando o leitor a primeiro, seu rumo contextualizada e é mais
aos leitores a consciência pensar a escolha dos à maturidade. um bom lançamento do Autora: Mariana Enriquez
de que o autor foi textos. (Igor Gomes) Kawabata foi mentor catálogo de literaturas Editora: Intrínseca
celebrado logo após para Mishima, e orientais da editora. (I.G.) Páginas: 176
seu falecimento, sem eles não poderiam Preço: R$ 29,90
os hiatos que marcam ser mais diferentes
o reconhecimento de entre si: fisicamente, O SANTO
outros escritores. Neste literariamente e, Na Idade Média, um monge devotado vive
sentido, surge como também, como em um mosteiro e cuida da comunidade
alternativa interessante correspondentes. A com seus pequenos milagres. O abade,
para se colocar Machado eloquência, e alguma vendo o mosteiro em crise financeira, decide
em pauta, uma vez que prolixidade, do mais encomendar a morte do religioso para ganhar
as descobertas recentes novo contrasta com dinheiro exibindo seu cadáver como relíquia.
sobre o autor (a ver a concisão do mais O monge consegue fugir e empreende uma
com traduções dele e velho e parece falar jornada pela África. Traduzido por Jorge
com a descoberta de algo sobre como Wolff, o livro venceu, em 2016, o Prêmio
um livro que pretendeu pessoas diferentes Iberoamericano de Narrativa Manuel Rojas.
publicar na juventude podem se aproximar
e nunca publicou) não MISCELÂNEA tanto pelo desejo de
trazem novas visadas vencer quanto pela CARTAS
sobre ele. Ouso dizer Escritor por escritor: Machado vitória efetiva: ambos
que, hoje, as visadas de Assis segundo seus pares se reconheciam como Kawabata-Mishima: correspondência
mais interessantes são Autores - Hélio Guimarães e Ieda grandes criadores (1945-1970)
as que discutem o autor Lebensztayn (orgs.) que foram. Mishima Autores - Y. Mishima e Y. Kawabata Autor: César Aira
fora do meio literário (o Editora - Imprensa Oficial de SP progride, com os anos, Editora - Estação Liberdade Editora: Rocco
jurídico, por exemplo) Páginas - 408 de um tom pueril Páginas - 256 Páginas: 192
e sua apropriação pelos Preço - R$ 80 a outro mais maduro, Preço - R$ 56 Preço: R$ 34,90
30
PERNAMBUCO, JULHO 2019

RESENHAS
DIVULGAÇÃO

da obra e dos intentos ou cinematográfica,


pseudofeministas de Anaïs sobre como a psicanálise
Nin, a quem a cronista reduziu complexidades
chamará de “escrava da sexualidade feminina,
liberta” do patriarcado por particularmente da
ter sido uma das escritoras homossexualidade
“que mais se empenhou em feminina – e nesse campo
promover, no terreno da é muito prazeroso o
literatura, uma mística de momento em que Moreno
seu próprio sexo sexuado”. se põe a analisar o analista,
Ou seja, lá estava, nas destrinchando o Freud
palavras de Moreno, a que escutava a sua famosa
ideia de que a mulher só e inominável paciente
poderia desfrutar de um lésbica – e sobre como
“gozo pedagógico”. Um que é fundamental que as
a essencializasse no lugar, feministas reivindiquem
bastante conveniente aos uma escrita para além
homens, de sujeitos que só da já citada “fina ironia”
gozam quando amam. Tudo palatável, jogando na
isso sustentado por uma roda figuras como a
literatura “feminina” que, personagem Greta La
para ser chamada de tal, Gorda (inventada, a
não poderia prescindir de propósito, por um escritor
um floreio sentimentalista homem, Günter Grass),
salpicado de, nas palavras a quem ela descreve da
de Nin, “lágrimas, risos, seguinte maneira: “Greta
palavras, promessas, La Gorda, assassina
ciúmes, invejas, todas as culinária de figurões
variedades de medo” e políticos, filósofa do poder
assim por diante. Moreno libertador dos ventos
dá um sorriso de canto de intestinais, feminista
boca e escreve, a partir solitária dos sete pecados
daí, como quem quer jogar capitais, essa deveria ser
todos os essencialismos em nossa líder. Não vale a
latas de lixo não recicláveis. pena entrar na cultura
Não se trata, portanto, sem nossos corpos. Mas
de acaso que seja esta a não os tratemos como
crônica de abertura do se fossem almas”.

Em nome de um Procura-se pelo nome de


María Moreno nos circuitos
de pensamento crítico no
conhecimento e como
metodologia antipatriarcal
e, portanto, anticapitalista.
livro. Pois que no cerne
de boa parte das críticas
escritas pela jornalista
No último artigo,
publicado em 2018,
eis a convocatória, o

feminismo na
Brasil. Em livrarias, nada. Ela é também aquela argentina está sua panfleto em si que dá
Em mesas de debate no que, com mais agudez profunda e fundamentada título ao livro: “façamos a
território nacional, os e engenhosidade, irritação com as cargas revolução que não sublima

dieta do excesso
relatos são esparsos. Nos soube entortar o campo de misoginia e débil nada”, ela escreve. “Se
corredores acadêmicos, da crítica, já no fim chacota que vêm, com a homossexualidade
muito pouco, referências dos anos 1980, com frequência, acompanhadas sublimada e a misoginia
ainda pontuais. Mas textos que a toda hora de termos como “escrita foram as condições da
Compilação de textos da como? Como? Como é
possível que estejamos
subvertem expectativas.
Seu trabalho, por
feminina”, “olhar
feminino”, “imaginação
civilização, façamos a
revolução da alma carnal
cronista María Moreno tão perto e tão longe dessa exemplo, enquanto crítica feminina” e derivações. (...) e que o ciúme,
cronista argentina que é literária, precisa ser mais Elabora essas críticas com a inveja, o ódio e a
precisa chegar ao Brasil possivelmente uma das atentamente observado. um tom muitas vezes má índole não sejam
vozes mais astutas do Aliás, boa parte dos sarcasticamente didático domesticados pela
Carol Almeida feminismo na América textos presentes nessa (“uma homenagem a Juana ideologia e as terapias do
Latina? De forma que compilação publicada Manso e tantas outras eu.” Que a nossa dieta
ler Panfleto – Erótica y pela Penguin Random que não tinham tempo, seja, portanto, a “do
feminismo, lançado em House traz revisões nem humor, para usar excesso”: “gozemos sem
2018 na Argentina e sem não apenas de obras, a papilas gustativas da ter fome em nome de um
previsão de tradução mas da vida de autoras fina ironia feminina com feminismo de especiarias,
pelas bandas de cá, é um que são muito caras – que Katherine Mansfield gordo, ganancioso (...)
exercício simultaneamente algumas caras demais escreveu seus contos”) porque entre iconografias
de fascinação por aquilo – ao desdobramento do para ir de frente contra políticas feitas de vísceras
que se lê e espanto por pensamento feminista políticas de leitura que ora não há colonialismo
saber que aquilo deveria nesses últimos dois essencializam a Mulher possível”. A figura de Greta
ter sido lido antes. Afinal séculos. Autoras como enquanto uma categoria La Gorda sobrevoando
de contas, estamos falando Alejandra Pizarnik, imutável, ora, no outro sobre nossas cabeças.
de um livro que traz uma Virginia Woolf, Katherine oposto, minimizam
compilação de textos Mansfield, Gertrude a escrita e autoria de
publicados ao longo dos Stein e Clarice Lispector mulheres em nome de
últimos 30 anos – entre estão aqui, lá, em todo uma “bissexualidade”
1988 e 2018 – e a não lugar. Sobre Clarice, de escritores homens
circulação deles em há, inclusive, um texto que teriam uma “escrita
territórios brasileños indica inteiro dedicado a como feminina” mais legítima
que precisamos fazer a escritora brasileira fez, que as próprias mulheres
circular melhor o saber lucidamente, “da loucura – e nesse momento ela
das feministas que não um procedimento literário” pontua que o modelo
necessariamente vestem e como ela conseguia, patriarcal de feminilidade
o tailleur bem-caído das como poucas pessoas na literatura, com muita
grifes acadêmicas, de no mundo, escrever “à frequência, está atravessado
preferência aquelas gringas maneira do inconsciente”. pelo dizer “sim, sim, sim”
do hemisfério Norte. Mas é quando está de Molly Bloom (Ulisses,
Porque Moreno não dedicada a destruir de James Joyce). Moreno
apenas é uma precursora alguns pilares da crítica – praticamente conclama: ENSAIO
na América Latina em literária, cinematográfica pera lá, pera lá, pera lá.
escrita crônica sobre – que Moreno melhor nos Ao longo dessa Panfleto - Erótica y feminismo
questões de gênero, instrui e nos diverte. Já no compilação de artigos, Autora - María Moreno
sobre o queer e sobre o primeiro artigo do livro, leremos muito, portanto, Editora - Penguin Random House
feminismo como um escrito em 1988, não sobra sobre o sexo e suas formas Páginas - 304
modo de organização do pedra sobre pedra diante de representação literária Preço - R$ 33 (preço Kindle)
31
PERNAMBUCO, JULHO 2019

Sobre prestar atenção ao outro PRATELEIRA


A evolução do trato remuneração de um que a narrativa parece encontraram nas viagens DOIS ARTISTAS DAS SOMBRAS
com a palavra, ou a desses prêmios (o Caine ganhar o leitor. Estamos e na linguagem um vetor O crítico de arte, escritor e professor Rodrigo
progressão na descoberta Prize, para contos em diante do velho hábito para se encontrar como Naves explora, em ensaios, as ambiguidades
da linguagem, é uma língua inglesa feitos por de contar histórias, sujeito histórico. E que que cruzam as obras de El Greco (1541-1614),
ideia que cruza Um dia escritoras e escritores memórias próprias que também nos ajudam pintor grego que transitou pela Itália e Espanha,
vou escrever sobre este lugar, africanos), o jornal são atravessadas pela a nos encontrarmos e Oswaldo Goeldi (1895-1961), conhecido
do queniano Binyavanga literário Kwani? (em precariedade política como sujeitos históricos. por seu uso da xilogravura. Da formação de
Wainana (1971-2019). É suaíli: E daí?). A edição da do continente. Mesmo A humanidade desse El Greco com os italianos à atenção dada por
um texto autobiográfico Kapulana traz o texto em com pontos fracos, relato parece propor uma Goeldi às periferias do mundo, Naves explora,
de 2011 lançado neste ano que cria uma situação como a forma constante conversa, convocando o em especial, a presença das sombras, elemento
no Brasil, pela Kapulana, ficcional na qual conta de marcar o tempo outro a assumir o papel forte em ambos, sem deixar de mostrar sua
com tradução de Carolina à mãe que é gay, “um cronológico da ação ativo de interlocutor em obsessão pelos trabalhos dos dois artistas.
Kuhn Facchin. Da criança capítulo perdido de seu (“É 2007”, “É 1983”), o um mundo povoado
que diz “não tenho livro de memórias”, livro ganha em outros de estímulos ao
palavras o bastante para no dizer do autor. aspectos. As partes que individualismo por
tudo isso” – sentença que A narrativa incorpora expõem a inserção da um sistema neoliberal.
indica uma emoção, mas algo da oralidade e, às cultura pop anglófona (Igor Gomes)
que também funciona vezes, assume um tom no país, via meios de
como metáfora da busca próximo ao lirismo. comunicação, e o inglês Autor: Rodrigo Naves
de um garoto que já Ou, noutra mostra de truncado que resulta em Editora: Companhia das Letras
sinalizava o desejo pela exploração, vai deixando um sotaque particular Páginas: 208
escrita – ao escritor o uso de uma visão mais são especialmente Preço: R$ 89,90
reconhecido, a vida passa sensível e romântica que interessantes: nelas é
à medida em que cresce corresponde à infância, possível vislumbrar UM RIO PRESO NAS MÃOS
a capacidade de acolher rumo à sobriedade e um forte significado Coletânea de crônicas de Ana Paula Tavares,
o mundo na linguagem. concisão que marcam afetivo. O mesmo se diz poeta e escritora angolana. Os escritos foram
Wainana foi um o adulto. A progressão na relação do indivíduo originalmente publicados no jornal Rede Angola
homem negro da classe da observação é marca com a política de seu e são pela primeira vez reunidos em livro.
média de um Quênia comum a toda trajetória, país, quando adulto. A As 38 crônicas transitam entre o ficcional e o
disposto à segregação ainda que se mostre busca pela identidade real e seguem por assuntos diversos (religiões
de etnias politicamente de diferentes formas não é apenas na escrita, africanas, oralidade e escrita, por exemplo),
menos influentes. – começa como furor é também na política. mas há maior incidência de discussões sobre
Homossexual declarado próprio, depois segue Em sendo o que se a população do país, em especial as mulheres.
em um continente pouco menos intuitiva e mais propõe ser – memórias MEMÓRIA A edição conta com prefácio da pesquisadora
afeito à convivência com autoconsciente. A busca –, a obra expõe uma Carmem Lúcia Tindó Secco.
a diferença, foi figura pela escrita tem a ver com subjetividade que não Um dia vou escrever sobre este lugar
eminente no meio literário a busca pela identidade. deixa de lembrar os Autor - Binyavanga Wainana
de seu país por ter ganho É nos momentos textos antigos de pessoas Editora - Kapulana
prêmios internacionais em que se concentra negras oprimidas por uma Páginas - 308
e ter fundado, com a nos fatos mais banais estrutura colonial, pessoas Preço - 54,90

Autora: Ana Paula Tavares


Editora: Kapulana

Um teatro vivo Poéticas do céu Páginas: 108


Preço: R$ 44,90

2018: CRÔNICAS DE UM ANO ATÍPICO


Como dizem os herdeiros em 1979, já no contexto As estrelas, o que são?, tentar domesticá-las. Os Martinho da Vila é um de nossos maiores
do dramaturgo Oduvaldo da abertura política no indaga o 1° verso do desenhos de Fidel Sclavo sambistas e reúne aqui crônicas sobre temas
Vianna Filho (1936- país. Apesar de se deter livro do estadunidense mostram isso: pontos que atravessaram o último ano: a comemoração
1974), na contracapa da no modelo ditatorial da Eliot Weinberger ora brilhantes no céu e uma de suas oito décadas de vida, o assassinato
edição de Papa Highirte, América Hispânica – o lançado pela Editora linha naïf indicando uma de Marielle Franco, a Copa do Mundo, sua
esta peça é “viva, de caudilho é um modelo 34, singelamente ligação. Esta ligação nós visita ao ex-presidente Lula, a renovação dos
um autor que ainda está político rejeitado pelos intitulado As estrelas. a construímos para nós. votos de casamento e outros assuntos. Com
vivo, porque percebeu ditadores brasileiros de Trata-se de um projeto Esses corpos celestes isso, temos acesso à visão de um importante
uma época da qual 1964 –, talvez hoje a peça arredio a classificações sideram nosso imaginário quadro político e cultural do país sobre o
ainda não saímos”. Papa nos faça atentar para de gênero, mais desde tempos remotos “andar da carruagem” nesses tristes trópicos.
Highirte, o protagonista, nossas ambiguidades próximo de uma e, entre tantas possíveis
é um caudilho deposto culturais em relação ao mistura de ensaio ou figurações sobre elas,
que mora no exílio autoritarismo e estimule poema. A tradução é o que emerge do livro
com a amante e nossa desconfiança de Samuel Titan Jr. e o é o desejo de realizar
alguns funcionários em relação a figuras original em inglês, de o gesto imemorial
próximos. Envolvido messiânicas. (I.G) 2000, foi pensado para de fitá-las. (I.G.)
com planos de retomar um projeto do Museu Autor: Martinho da Vila
o poder na fictícia de Arte Moderna de Editora: Kapulana
Alhambra, Highirte Nova York. Acabou Páginas: 204
nega o militarismo, a como publicação Preço: R$ 46,90
censura, torturas e outras pelo Museu, mas em
barbaridades perpetradas projeto à parte. A cada HISTÓRIA DO ESTRUTURALISMO
por seu regime, frase, é como se o Em 2 volumes traduzidos por Álvaro Cabral,
enquanto a verdade tempo da humanidade François Dosse reconstitui questões teóricas e
escoa principalmente fosse posto frente institucionais que envolveram o estruturalismo
por meio de flashbacks. ao leitor. Os versos de seu surgimento, nos anos 1940, até o
É um personagem talvez foram colhidos nas declínio, cerca de 20 anos depois. Seguimos a
ambíguo por revelar diversas figurações jornada de nomes como Barthes ou Derrida e
alguma preocupação das estrelas realizadas vislumbramos os rastros do estruturalismo hoje.
com as torturas pelas culturas
realizadas, mas que nega humanas. Fixas ou
estar ciente. Também não móveis, pássaros com
trabalhou efetivamente TEATRO plumas em chamas, POESIA
pelo fim delas. A peça imutáveis, símbolo
foi escrita naquele ano Papa Highirte de morte, morada As estrelas
que foi olho do furacão Autor - Oduvaldo Vianna Filho de reis e animais Autor - Eliot Weinberger Autor: François Dosse
no Ocidente: 1968; Editora - Temporal míticos – as estrelas Editora - Editora 34 Editora: Editora Unesp
mas só foi encenada de Páginas - 120 apenas estão lá, e nós Páginas - 56 Páginas: 1248 (2 volumes)
forma não clandestina Preço - R$ 45 que continuemos a Preço - R$ 39 Preço: R$ 248

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