Clarice Frases
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"O búfalo"
"Eu te odeio" disse a mulher, muito depressa, a um homem que não a amava. Mas a
mulher
só sabia amar e perdoar, e 'se aquela mulher perdoasse mais uma vez, uma só vez que
fosse,
sua vida estaria perdida'. Então, numa tarde de primavera, ela visitou o jardim
zoológico em
busca de um animal que lhe ensinasse a odiar.
Em laços de família
Não era Pepe apenas, não era guia apenas. No calor do verão, o rosto
intumescido pela bebida que mal se evaporava era substituída por outra, o homem parou
no meio de uma ruela branca e sombria de Córdoba, olhou-nos e disse bem lento para
que a frase penetrasse a nossa lentidão:
- Ustedes no tienen um guía. Ustedes tienem - Pepe El Guía!
Com o leque ela pensa alguma coisa. Ela pensa o leque e com o leque se abana.
E com o leque fecha de súbito o pensamento num estalido, vazia, sorridente, rígida,
ausente. O leque distraído e aberto no peito. “A vida é mesmo engraçada”, concorda ela
como visita que é recebida na sala de visitas. Mas num alvoroço controlado, eis que se
abana de súbito com mil asas de pardal.
Verão na sala, em para não esquecer
Esta primavera é bem seca, e o rádio estala captando sua estática, a roupa se eriça
ao largar a eletricidade do corpo, o pente levanta os cabelos imantados, é uma dura
primavera. E muito vazia. De qualquer ponto em que se está, parte-se para o longe:
nunca se viu tanto caminho. Fala-se pouco; o corpo pesa com o seu sono; em geral os
olhos são grandes e inexpressivos. No terraço está o peixe no aquário, tomamos refresco
olhando para o campo. Com o vento, vem do campo o sonho das cabras. Na outra mesa
do terraço um fauno solitário. Olhamos o copo de refresco e sonhamos estáticos dentro
do copo. "O quê!" "Eu não disse nada." Passam-se dias e mais dias. Mas basta um
instante de sintonização e de novo capta-se a estática farpada da primavera: o sonho
impudente das cabras, o peixe todo vazio, uma súbita tendência ao roubo, o fauno
coroado em saltos solitários. "O quê?" "Nada, eu não disse nada." Mas percebo um
primeiro rumor, como um coração batendo embaixo da terra. Quieta, colo o meu ouvido
na terra e ouço o verão abrir caminho por dentro, e meu coração bate embaixo da terra -
nada, eu não disse nada - e sinto a paciente brutalidade com que a terra fechada se abre
por dentro, e sei com que peso de doçura o verão amadurecerá cem mil laranjas, e sei
que as laranjas são minhas, porque eu quero.
Sei que comi a pera e desperdicei fora a metade - nunca tenho piedade na
primavera. Bebemos depois água na fonte, e não enxuguei a boca. Andávamos calados,
insolentes. Quanto à piscina, sei que fiquei horas na piscina. Olha a piscina - era assim
que eu via a piscina, demonstrando-a com olhos tranquilos. Tranquila, sem nenhuma
piedade.
Primavera não sentimental, em para não esquecer
Hoje, dez anos mais velha que seu noivo, com quem dorme,
ela ri sob a grande cabeleira e diz: não sei mesmo por que é que gosto mais do outono
do que das outras estações, acho que é porque no outono as coisas morrem tão
facilmente.
Usava apenas a
maravilha do inverno fora do paraíso: espiava tudo pelas janelas abertas e ninguém diria
se estava contente ou triste. Seu rosto ainda não sabia exprimir. Espiava pela janela
aberta com a minúcia e a atenção de quem reza, com os braços cruzados e as mãos
metidas nas mangas opostas.
Quando a
brisa leve, a brisa de verão, batia no seu corpo, todo ele estremecia
de frio e calor. E então ela pensava muito rapidamente,
sem poder parar de inventar. É porque estou muito nova
ainda e sempre que me tocam ou não me tocam, sinto —
refletia.
Continuei a
passo lento, escutando dentro de mim a felicidade, alta e
pura como um céu de verão. Alisei meus braços, onde ainda
escorria a água. Sentia o cavalo vivo perto de mim, uma
continuação do meu corpo. Ambos respirávamos palpitantes
e novos.
Enquanto isso era verão. Verão largo como o pátio vazio nas férias da escola.
Sei o que é primavera porque sinto um perfume de pólen no ar, que talvez seja o
meu próprio pólen, sinto estremecimentos à toa quando um passarinho canta, e sinto que
sem saber eu estou reformulando a vida. Porque estou viva. A primavera torturante,
límpida e mortal que o diga, ela que me encontra cada ano tão pronta para recebê-la.
Bem sei que é uma perturbação de sentidos. Mas, por que não ficar tonta? Aceito esta
minha cabeça à chuva tremeluzente da primavera, aceito que eu existo, aceito que os
outros existam porque é direito deles e porque sem eles eu morreria, aceito a
possibilidade do grande Outro existir apesar de eu ter rezado pelo mínimo e não me ter
sido dado.
Sinto que viver é inevitável. Posso na primavera ficar horas sentada fumando,
apenas sendo. Ser às vezes sangra. Mas não há como não sangrar pois é no sangue que
sinto a primavera. Dói. A primavera me dá coisas. Dá do que viver. E sinto que um dia
na primavera é que vou morrer. De amor pungente e coração enfraquecido.
Lembro-me daquela primavera: sei que comi a pera e desperdicei fora a metade - nunca
tenho piedade na primavera. Bebemos depois água na fonte, e não enxuguei a boca.
Caminhávamos calados, insolentes.
Tomando para mim o que era meu, em a descoberta do mundo
Como me
inquieta que alguém possa não compreender que morrerei numa ida para uma tonta
felicidade de primavera. Mas não apressarei de um instante a vinda dessa felicidade -
pois esperá-la vivendo é a minha vigília de vestal. Dia e noite não deixo apagar-se a
vela - para prolongá-la na melhor das esperas.
Está fazendo um dia lindo de outono. A praia estava cheia de um vento bom, de
uma liberdade. E eu estava só. E naqueles momentos não precisava de ninguém. Preciso
aprender a não precisar de ninguém. É difícil, porque preciso repartir com alguém o que
sinto. O mar estava calmo. Eu também. Mas à espreita, em suspeita. Como se essa
calma não pudesse durar. Algo está sempre por acontecer. O imprevisto me fascina.
E às vezes
ficava apenas de cabeça baixa, os olhos entrefechados até que o chão
trêmulo e confuso aproximava-se de seu rosto e se afastava
preguiçosamente
confundindo-se com o calor. No céu de verão um bater de asas
sussurrava rápido. Ela pensava se valeria a pena levantar a cabeça e olhar.
E quando finalmente resolvia, o céu já pairava limpo e azul, sem o pássaro,
sem expressão, olhos apenas abertos.
As pétalas
menores, como cabelos na nuca em verão, dobravam-se emurchecidas,
cegas, porém ainda capazes de viver e de pasmar.
O lustre
E então, quando menos se espera - num instante tão repetidamente comum como o de se
levar um copo de bebida à boca sorridente no meio de um baile - então, ontem, num dia tão
cheio de sol como estes dias do ápice do verão, com os homens trabalhando e as cozinhas
fumegando e a broca britando as pedras e as crianças rindo e um padre lutando por impedir,
mas impedir o quê? - ontem, sem aviso, houve o fragor do sólido que subitamente se torna
friável numa derrocada.
Enquanto isso era verão. Verão largo como o pátio vazio nas férias da escola.
Dor? Nenhuma. Nenhum sinal de lágrima e nenhum suor. Sal nenhum. Só uma doçura
pesada: como a da casca lenta dos elefantes de couro ressequido.
Agora, para
a primavera, vou comprar para os meninos, calça e blusa azul, e para as meninas
vestidos azuis. Ou vou mandar fazer, é mais fácil de encontrar. Tenho que tirar a medida
de todos os alunos porque —
Uma aprendizagem
Bastava um instante de
sintonização e de novo captava-se a estática farpada da
primavera ao vento: o sonho impudente das cabras e o peixe
todo vazio e nossa súbita tendência ao roubo de frutas.
No
inverno os lobos esfaimados desciam das montanhas até a aldeia
a farejar presa. Todos os habitantes se trancavam atentos em
casa a abrigar na sala ovelhas e cavalos e cães e cabras, o calor
humana e calor animal - todos alertamente a ouvir o arranhar
das garras dos lobos nas portas cerradas. A escutar. A escutar.
Tem um
lado da vida que é como no inverno tomar café em um terraço
dentro da friagem e aconchegada na lã.
Água viva
A hora da estrela
Um sopro de vida
Meses
Noite de fevereiro
Juro, acredita em mim - a sala de visitas estava escura - mas a música chamou
para o centro da sala - a sala se escureceu toda dentro da escuridão - eu estava nas trevas
- senti que por mais escura a sala era clara - agasalhei-me no medo - como já me
agasalhei de ti em ti mesmo - que foi que encontrei? - nada senão que a sala escura
enchia-se da claridade que se adivinha no mais escuro - e que eu tremia no centro dessa
difícil luz - acredita em mim embora eu não possa explicar - houve alguma coisa
perfeita e graciosa - como se eu nunca tivesse visto uma flor - ou como se eu fosse a flor
- e houvesse uma abelha - uma abelha gelada de pavor - diante da irrespirável graça
dessa luz das trevas que é uma flor - e a flor estava gelada de pavor diante da abelha que
era muito doce - acredita em mim que também não creio - que também não sei o que
poderia uma abelha viva de pavor querer na escura vida de uma flor - mas crê em mim -
a sala estava cheia de um sorriso penetrante - um rito fatal se cumpria - e o que se
chama de pavor não é pavor - é a brancura subindo das trevas - não ficou nenhuma
prova - nada te posso garantir - eu sou a única prova de mim.
Aquela noite de verão em agosto era do mais fino tecido, para sempre
inquebrantável, de se estar esperando. Eu queria que a noite começasse enfim a tremer
em fino espasmo, principiando a sua agonia; para que também eu pudesse dormir.
Uma vez no Rio, e depois de abraçar todos os amigos, irei para Cabo Frio por
uma semana, na casa de Pedro e Míriam Bloch. Voltarei depois ao Rio e recomeçarei,
toda renovada, a minha luta diária e inglória e enigmática.
Sim. Tudo isto.
Mas só se fosse de verdade...
O fato é que hoje é 1º de abril e desde criança não engano ninguém nesse dia.
Infelizmente não vejo meio de fazer essa viagem sem dinheiro. O Onassis entrou no 1º
de abril de puro penetra que ele é. Na verdade não tenho muito interesse em conhecê-lo.
Desculpem a brincadeira. Mas é que não resisti.
No dia 25 de julho de 1971 fui ver o céu no planetário. Era domingo. E nesse dia
iam mostrar Júpiter em particular. O céu é coisa de louco ou de gênio. Fiquei muito
contente de ver o Sol. E era dia do signo Sagitário, que é meu. Júpiter é o mais poderoso
de todos os planetas. Tem uma série de satélites.
Depois de 15 de agosto vou ver o planeta Marte. Será que algum planeta, além
da Terra, é habitado? Somos uns privilegiados. Sobra tanta matéria-prima aqui conosco
que até animais temos, animais puros como o tigre e um animal horrível cujo nome não
quero escrever.
Quanto a ela mesma — ciente, apenas ciente. De que aquilo tudo era
intransponível mesmo pela imaginação — essa dura verdade do sol e do
vento, e de um homem andando, e das coisas postas. E uma pessoa nem
sabia limitar-se. Pois ela nem podia deixar de orgulhar-se ao ver o tempo
passar — mas já estamos no mês de fevereiro? — como se este fosse
desenvolvimento seu. E era.
A cidade sitiada
A maçã no escuro
Uma vida dura é uma vida que parece mais longa. Mas, mesmo
assim, me surpreendo como é que hoje já é maio, se ontem era fevereiro?
Cada minuto que vem é um milagre que não se repete.
Um sopro de vida
Datas
1/1 Confraternização universal [Reveillon]
25/2 Carnaval
12/4 Páscoa
Como na Páscoa
nos é prometido, em dezembro ele volta. Ofélia é que não voltou: cresceu. Foi ser a
princesa hindu por quem no deserto sua tribo esperava.
21/4 Tiradentes
2/11 Finados
25/12 Natal
As árvores cristalizadas em domingo —
domingo é qualquer coisa como árvores de Natal —, brilhando
silenciosas, contendo, assim, assim, a respiração.
Meu
inesperado consentimento em saber foi hoje provocado pelo fato de ter aparecido em
casa um pinto. Veio trazido por mão que queria ter o gosto de me dar coisa nascida. Ao
desengradarmos o pinto, sua graça pegou-nos em flagrante. Amanhã é Natal, mas o
momento de silêncio que espero o ano inteiro veio um dia antes de Cristo nascer. Coisa
piando por si própria desperta a suavíssima curiosidade que junto de uma manjedoura é
adoração. Ora, disse meu marido, e essa agora. Sentira-se grande demais. Sujos, de boca
aberta, os meninos se aproximaram. Eu, um pouco ousada, fiquei feliz. O pinto, esse
piava. Mas Natal é amanhã, disse acanhado o menino mais velho. Sorríamos
desamparados, curiosos.