Perda Do Trabalho Perda Da Identidade
Perda Do Trabalho Perda Da Identidade
Perda Do Trabalho Perda Da Identidade
Eugène Enriquez
Doutor em Sociologia pela École de Hautes Études en Science Sociale de Paris e Professor Emérito da Universidade de Paris VII
Em certa medida, minha exposição estará sob o sinal da resistência à fatalidade. Ou seja, vou tentar
mostrar o ponto em que estamos e, além disso, que podemos inverter o que pode parecer ser o curso
da história, desempenhando o nosso papel de ator social, de sujeito social, que eu chamo de sujeito
criador de história.
Para ir direto ao cerne do assunto que me cabe: nosso tema é "Perda do Trabalho, Perda da
Identidade". Diria que, de certa forma, todo mundo concordaria facilmente com esse diagnóstico
colocado no título da conferência. Sabemos muito bem que toda perda de trabalho provoca uma
ferida profunda na identidade de diferentes pessoas, concorrendo para a desagregação de suas
personalidades. Os exemplos são suficientemente numerosos para mencioná-los agora. Eu diria até
que a conferência1 poderia terminar aqui, pois acredito que estamos todos de acordo em dizer que o
trabalho é um dos elementos constitutivos do ser humano. Mas, naturalmente, vou um pouco além.
Então, nesse sentido, vou propor que consideremos três coisas.
Em primeiro lugar, pensar qual era a civilização do trabalho de vinte anos atrás, para melhor
compreendermos as armadilhas atuais, os problemas que se colocam hoje. Em segundo lugar, pensar
as conseqüências efetivas da nova situação, que tentarei traçar aqui, para vermos em quais pontos,
concretamente, a identidade das pessoas e a identidade coletiva são afetadas. Em terceiro lugar, vou
tentar examinar se existem respostas possíveis para tal situação.
À primeira parte eu poderia dar o título: "de onde viemos?" Ou seja, qual é a civilização na qual
nasceu a maioria de nós e que existia há mais ou menos vinte anos? Para situar a questão, gostaria
de fazer uma comparação muito rápida entre nossa concepção de trabalho e aquela que existia nas
sociedades antigas. Nas antigas sociedades, particularmente naquela que, para nós, é sempre uma
sociedade de referência — a sociedade grega, da Atenas do século V A.C. — o trabalho não era
absolutamente valorizado. Vocês sabem muito bem que, logo após, os romanos chamariam o trabalho
de tripalium, que era um instrumento de tortura. Assim, o trabalho era fundamentalmente "aquilo
que tortura". Além disso, como diziam particularmente Platão e Aristóteles, o trabalho é aquilo que
está ligado à necessidade — necessidade de se cobrir, de se alimentar, etc. Então, para os gregos
antigos, tudo aquilo que está ligado à necessidade não define a liberdade nem a grandeza do homem.
Assim, a necessidade de produzir e de comercializar, por exemplo, ficará a cargo dos escravos.
Fazendo um pequeno parêntese, o termo escravo, na Grécia antiga, não tinha o mesmo sentido
daquilo que foi a escravatura em nossas sociedades, até o final do século XIX. Teoricamente, a
escravatura não existe mais, mas sabemos que, na prática, ela ainda está presente em muitas partes
do mundo, embora não seja exatamente a mesma coisa. Para dar um exemplo: os funcionários,
servidores públicos, foram recrutados entre a classe dos escravos, porque eram eles que tinham de
fazer funcionar a máquina administrativa. Então eles eram obrigados, não eram livres. Aliás,
poderíamos nos perguntar, algumas vezes, se os funcionários públicos não são ainda escravos.
Então, vocês estão vendo aqui uma concepção de trabalho que não o valoriza de maneira alguma.
Mas tudo muda, tudo se transforma, e sou obrigado a saltar um número de séculos extremamente
importantes para chegar ao momento da revolução industrial inglesa, no século XVIII, acompanhada,
pouco tempo após, pela revolução política americana e pela revolução política francesa. Neste
momento, o que estou querendo dizer com "tudo muda" é que, justamente porque a indústria se
desenvolve, começou-se a perceber que os homens não somente sofrem sua história, mas também
podem produzir sua história. E para produzi-la, é preciso também produzir economia. O trabalho, que
não era tido em alta consideração (aliás, na sociedade medieval, ele nem era cogitado, já que um
nobre não devia trabalhar), de repente passou a ser valorizado, porque se transformou num símbolo
de liberdade do homem, para transformar a natureza, transformar as coisas e a sociedade. Aliás, foi o
pensador inglês John Locke — um dos inspiradores do Bill of Rights, a Declaração de Direitos inglesa,
da Declaração da Independência americana, e que também influenciou a Declaração francesa dos
Direitos do Homem — quem disse que a primeira liberdade, a liberdade fundamental do homem é a
liberdade de empreender. Alguém que não empreende e que, portanto, não tenta transformar as
coisas, não expressa a sua liberdade fundamental.
Esta idéia se difundiu muito rapidamente, porque ela correspondia bem ao desejo das nações naquele
momento. Veremos Adam Smith dizer, em A Riqueza das Nações, que o trabalho é o que permite
efetivamente aumentar a riqueza das nações. Para Montesquieu, o trabalho e o comércio é que
permitem manter as relações entre os seres humanos e, conseqüentemente acalmar, eu diria, as
tendências guerreiras do homem. Para Montesquieu, quando se faz comércio, não se faz guerra. Essa
idéia foi retomada mais tarde, no século XX, pelo grande economista inglês Keynes, que dizia:
"Melhor ter uma atitude despótica com relação ao próprio bolso do que ter essa mesma atitude com
relação ao ser humano". E depois, os grandes pensadores franceses do começo do século XIX, como o
Conde de Saint-Simon e Auguste Comte, bem conhecidos no Brasil, desenvolverão a idéia de que a
nova sociedade deveria ser uma sociedade industrial e positiva. Ou seja, essa revolução do
pensamento arranca, de alguma forma, os indivíduos dos antigos laços de subordinação à terra, ao
senhor, e vai transformar cada um de nós em um trabalhador livre — livre, evidentemente, para
vender sua força de trabalho a quem possa lhe dar emprego. Ao mesmo tempo, essa liberdade vai
ser paga por um certo número de pessoas, pelo fato de que elas serão obrigadas a trabalhar. Isso vai
se desenvolver como dominação capitalista e exploração da mão-de-obra. E foi bem salientado por
Saint-Simon, inventor do termo "exploração", assim como por Karl Marx, é claro, e até por um grande
romancista, como Balzac, que mostrou muito bem como o capitalismo exigia que os seres humanos
fossem como os grandes felinos, os grandes animais que tentavam comer a sua presa.
O que é interessante notar é que mesmo um autor revolucionário como Karl Marx tinha a mesma
idéia que Locke, Smith e Montesquieu. Ele se exprime de maneira totalmente direta, dizendo que o
trabalho é a propriedade fundamental do homem, que o homem é, em certa medida, criado pelo
trabalho e não mais criado por Deus. Pois é justamente o trabalho, isto é, a possibilidade de mudar as
coisas, de transformar o mundo e de fazer objetos, que vai diferenciar, fundamentalmente, o animal
do homem. É claro que Marx não se refere ao tipo de trabalho alienado, presente na sociedade que
está se desenvolvendo, à sua época. Ele sonha com uma sociedade onde cada um pudesse trabalhar
de maneira verdadeiramente livre e com um certo modelo de associação com os outros. Outros
pensadores mais ou menos utópicos, do século XIX, vão pensar como ele. E não são apenas
pensadores, é claro. São também os trabalhadores que percebem o grau de exploração no trabalho e
que sonham com uma sociedade mais justa.
No entanto, a nova mentalidade sobre o trabalho vai gerar o que chamamos de mobilização geral dos
seres humanos para o trabalho. Vemos aí se desenvolver a idéia de que os indivíduos que não
trabalham são parasitas, delinqüentes e inúteis. Ou que, em certo sentido, aqueles que não
trabalham não têm o direito de comer. Como se vê, trata-se realmente de uma civilização do trabalho
e dos trabalhadores. Ou seja, com o desenvolvimento dessa idéia de trabalho e o aparecimento
posterior da grande empresa, vamos constatar que não apenas os grandes empreendedores e
empresários estão interessados no trabalho, mas, ao mesmo tempo e progressivamente, também os
operários. Estes, mesmo que freqüentemente alienados e explorados, vão justamente reivindicar o
trabalho como um elemento constitutivo e fundamental da sua personalidade.
É aí que vai se desenvolver o que chamamos de consciência profissional dos operários e sua ligação
às suas ferramentas de trabalho. Estamos entrando, de fato, em uma civilização do trabalho. E
entramos também, já que o assalariado se desenvolve, no que chamamos de uma civilização
"salarial", para retomar o termo do sociólogo Robert Castel. Civilização salarial quer dizer o quê? Quer
dizer não só que existe o trabalho e que é preciso liberdade econômica, mas também — e esse é um
ponto essencial — que os trabalhadores não são simplesmente seres a explorar, mas seres com
direitos. E isso é muito importante. Eles têm direitos civis, políticos e sociais. Sabemos que estes
últimos foram adquiridos progressivamente, graças às lutas sociais e sindicais. Assim, o trabalho que
era tão desvalorizado nas sociedades antigas, torna-se um elemento fundamentalmente integrador da
sociedade, isto é, permite efetivamente a uma sociedade engendrar ou reforçar os laços sociais. A
figura do trabalhador vai se tornar totalmente central. Aliás, um autor alemão, Ernst Jünger, vai
escrever um grande livro, chamado O Trabalhador, no qual ele engloba no termo "trabalhador" todos
os seres humanos que fazem alguma coisa. Aqui se incluem não apenas os trabalhadores manuais e
os intelectuais: até o guerreiro tornar-se-á um trabalhador como outro qualquer.
A figura do trabalhador torna-se, então, uma figura central. Nos primeiros anos do pós-guerra, depois
de 1945, essa tendência só vai se reforçar porque, simplesmente, estamos num período de
crescimento, embora este não seja o mesmo para todos os países — o que é evidente. A
produtividade não é a mesma em todos os países, mas isso não vai impedir que, no mundo inteiro,
assistamos ao seu aumento e ao desenvolvimento do crescimento econômico. Vemos também o
desenvolvimento dos direitos sociais e a instituição do que na França se chamou de L'État Providence.
Tomando o seu equivalente inglês Welfare State, vê-se que efetivamente o capitalismo se desenvolve,
mas que, ao mesmo tempo, ele estava se humanizando progressivamente, o que chegaria a levar
alguns pensadores a dizer que a luta de classes estaria desaparecendo.
Nas empresas, aparece o movimento das "relações humanas", onde se leva em conta o fator humano,
as motivações dos trabalhadores. Além disso, também progressivamente, vemos desenvolver-se o
pleno emprego. Considerando todos esses fenômenos, as sociedades começam, de certa forma, a
realizar o sonho do sociólogo Durkheim, de que a moderna sociedade industrial, fortemente
diferenciada, chega ao estágio de uma solidariedade orgânica muito forte. Esse é o mundo do qual
viemos, o mundo onde nascemos.
Desde 1970, e não só desde 1980, como se diz com muita freqüência, a tendência se inverte. E o
mal-estar na civilização torna-se palpável. Por quê? O economista austríaco Joseph Schumpeter
caracterizou o capitalismo como um movimento de destruição criadora. Esse movimento vai-se
intensificar, isto é, o capitalismo, ao invés de ser produtor de riquezas, vai se tornar, cada vez mais e
rapidamente, seu destruidor, para poder construir outras riquezas. A ordem é: vamos construir para
destruir e vamos destruir para construir. Podemos tomar um exemplo simples. Quando se compra um
computador hoje, ele vai ser obsoleto e sem interesse, daqui a dois anos. Bem depressa, o produto
que estamos produzindo vai para o lixo ou será vendido para países subdesenvolvidos. Por exemplo,
os materiais de guerra que os países desenvolvidos não querem mais utilizar são vendidos para a
África. Esses são fenômenos bastante conhecidos. Vamos vendê-los aos países árabes para que eles
possam continuar as suas guerras. Sabemos muito bem que existe uma batalha terrível para o
controle da aviação e que, continuamente, novos aviões estão aparecendo. Sabemos também que
existe uma batalha muito grande para a invenção de novos lançadores de foguetes. Basta olhar a
batalha entre a NASA, de um lado, e o pólo europeu que, da base de Kourou, Guiana Francesa, lança
os foguetes Ariane. Enfim, desde que um objeto aparece no mercado, sabemos que, em seis meses,
um ano ou dois anos, será necessário substituí-lo por um outro, o que significa que estamos entrando
numa sociedade que é, exclusivamente, de consumo e pelo consumo. Claro que isso existia
antigamente. Mas eram as pessoas ricas que trocavam as roupas a cada ano, acompanhando a moda.
Hoje, no entanto, a cada vez que alguém tem um pouquinho de dinheiro, troca as suas roupas. Falo
isso porque conheço muito poucas pessoas que são anti-sociedade de consumo, como eu. Se eu não
tivesse uma mulher que tomasse um pouquinho conta de mim, iria usar as mesmas roupas de vinte
anos atrás. Isso não ocorre porque ela está sempre renovando o meu guarda-roupa e, por isso, estou
aqui apresentável, frente a vocês.
Outra coisa é que o desenvolvimento se volta para o problema do consumo e não mais para o da
produção. Esse é um ponto essencial. O desenvolvimento das novas tecnologias, como aquelas das
telecomunicações, permite efetivamente que hoje funcionemos em tempo real. Sabemos
imediatamente o que está acontecendo na bolsa de Tóquio, de Frankfurt ou de Londres. Então, vemos
se desenvolver um extraordinário "boom" do capital financeiro e não mais do capital industrial. Marx
fez equações simples dizendo que, no capitalismo, existe o dinheiro ou o capital que serve para fazer
mercadorias, que estas vão ser vendidas para que se tire um lucro. Isso vai produzir novamente
dinheiro. Portanto, a fórmula de Marx é simples: há dinheiro, há mercadoria que produz dinheiro a
mais. Mas hoje estamos cada vez mais no movimento de produzir dinheiro com dinheiro, sem
produzir mercadoria. Quando o Sr. George Soros, um grande financista do qual vou falar daqui a
pouco, há dois anos, tentou fazer com que despencasse a cotação da libra esterlina, ele chegou a
fazer alguns bilhões de dólares em alguns dias, sem que existisse produção de riqueza em qualquer
lugar que fosse.
Vamos entrar em um outro mundo, não somente do consumo, mas num mundo que um economista
francês, Maurice Allais, ganhador do Prêmio Nobel de Economia, há alguns anos, definiu como um
imenso cassino financeiro. Basta ver as manchetes dos jornais. Há vinte ou trinta anos, é verdade
que já existiam alguns grandes especuladores que jogavam na bolsa. Hoje, praticamente todo mundo
tem algumas ações e tenta se arranjar com elas. Então, para se ter um melhor produto a ser vendido
no mercado, a fim de se realizar melhores lucros financeiros, o que vai acontecer? Uma intensificação
da guerra econômica, uma exacerbação desta guerra, que desde sempre foi fundamental para o
capitalismo, mesmo que, de tempos em tempos, os grandes poderosos sejam obrigados a fazer
acordos com os bancos centrais e pensar em baixar ou aumentar as taxas de juros.
De maneira bem clara, o capitalismo está a ponto de fazer ruir ou de implodir as antigas sociedades
industriais nas quais vivemos, as sociedades fundadas ao mesmo tempo sobre a produção de
mercadorias, sobre o dinamismo dos empreendedores e sobre a resistência operária, isto é, a luta de
classes da qual vou falar oportunamente. Então, o que vai aparecer, concretamente, é o predomínio
generalizado de uma visão racional da vida, isto é, de uma visão racional estritamente econômica,
instrumental. Dito de outra maneira: vivemos numa visão da lógica técnica e, por isso, tudo o que
seria a lógica prática, que permite estabelecer laços entre os seres humanos, tudo o que está ligado
às lógicas emancipatórias, permitindo reduzir o sofrimento dos que mais padecem, isso está sendo
progressivamente abandonado.
Um grande pensador alemão da atualidade, Jürgen Habermas, faz essa distinção que acredito ser
muito apropriada entre a lógica puramente instrumental, a lógica emancipatória e a lógica prática.
São fundamentalmente os países ainda não desenvolvidos que continuam a ter um desenvolvimento
industrial clássico, mas com um regime de trabalho precário e mal pago. O Brasil tem essa
característica extraordinária de ser um laboratório muito interessante, porque é um país
subdesenvolvido e, ao mesmo tempo, desenvolvido, sub e supradesenvolvido. Eu diria que, de todos
os países do mundo — e conheço muitos — este é o país mais contraditório que já vi. Aqui no Brasil
há de tudo, encontramos características do século XX e do século passado, simultaneamente. E isso
depende da região e até mesmo dos bairros, algumas vezes. Nessa nova situação, em algumas
regiões temos realmente mais necessidade de trabalhadores intelectuais, relativamente sofisticados,
que tenham feito estudos profundos de engenharia, de eletrônica, de estudos comerciais etc. E temos
cada vez menos necessidade de pessoas pouco qualificadas. Em outras regiões, temos mais
necessidade de empregos pouco qualificados, empregos precários, quer dizer, pessoas que se
tornarão empregados domésticos, motoristas etc. Estes são aqueles que Marx chamou de proletariado
miserável e que não estão do lado dos trabalhadores intelectuais sofisticados. E parecem constituir a
grande maioria da população.
Por trás disso, existe um fenômeno típico que reconhecemos em todos os países do mundo: falamos
cada vez menos de trabalho e cada vez mais de emprego. Dizemos que uma pessoa tem ou não um
emprego. O que quer dizer um emprego? Quer dizer ter uma tarefa a ser feita, com um salário fixo,
mesmo que essa remuneração não seja interessante. Vemos então que a noção do trabalho liberador
está se partindo em pedaços.
Além disso, constatamos — exatamente por causa da automação e das novas tecnologias — que cada
vez temos menos necessidade da maioria das pessoas. O que é bastante curioso aqui, nesse
fenômeno que vai ser traduzido por perda de emprego, é a tese de que isso leva a economia
capitalista a se comportar melhor. Mas não é verdade. Ou seja, depois dessa redução de empregos,
do uso de tecnologias como a reengenharia e outras do gênero, das técnicas de qualidade total, nas
quais não acredito de maneira nenhuma — o crescimento global em todos os países, na realidade,
diminuiu. Sobre a qualidade total, vejo-a como uma inutilidade, pois qualidade total nunca existiu em
lugar nenhum. Podemos melhorar a qualidade de um produto, mas qualidade total não existe.
Quando falamos em qualidade, o que estamos querendo dizer? A qualidade da organização geral, a
qualidade dos métodos que estamos realizando, a qualidade do produto, a qualidade de vida das
pessoas que trabalham, que vivem na empresa, a qualidade de melhor atendimento ao cliente. É tudo
isso ao mesmo tempo. Certas qualidades são contraditórias, porque, se o chefe de empresa quer
aumentar o ritmo, a rapidez dos movimentos, ele não vai se preocupar com a qualidade de vida dos
seus colaboradores. Definitivamente, a noção de qualidade total é a noção de um mundo que não
existe. Não pode existir um mundo totalmente racional, onde cada qual funciona bem, no tempo
previsto, com os gestos necessários, sem sentimento, nem paixão. Seríamos perfeitos autômatos. Na
França, há 10 anos se falava muito em qualidade total, hoje ninguém mais fala, foi uma moda como
qualquer outra. O problema é que, por hipótese, não existe uma empresa que faça produtos de
qualidade ruim. Não existe uma empresa que vai tentar sempre manipular o cliente. O problema da
qualidade é um problema normal de toda organização. A noção de qualidade total é como se,
efetivamente, tudo pudesse ser perfeito. Sinto muito, mas Deus fez o mundo imperfeito e não vejo
como os homens poderiam fazer melhor que Ele.
Voltemos à questão do crescimento: nos países europeus, quando existe um crescimento de 2%, isso
é considerado formidável. Antes esse crescimento era de 5%. Em países como aqui, se chegamos a
ter um crescimento de 5%, é magnífico, e até poderíamos, em alguns anos, ter um crescimento de
10%. Mas o crescimento está diminuindo e a produtividade diminui. Um outro exemplo é o dos
Estados Unidos, sobre o qual temos estatísticas mais disponíveis. Nos EUA, a produtividade/hora
aumentou em 1% entre 1993 e 1995, enquanto havia aumentado em 3%, em média, entre 1950 e
1993. Por outro lado, estamos assistindo a um empobrecimento salarial. E ainda: nos Estados Unidos,
o salário real, não o nominal, não aumentou desde 1973, e o crescimento da renda familiar —
levando-se em conta que as pessoas trabalham mais e que existem mais pessoas na família
trabalhando — não aumenta desde 1989, exceto para os salários dos presidentes e diretores-gerais
das grandes companhias, que viram crescer a sua renda, de 1990 a 1995, em 92%. O salário anual
médio, em 1990, era de mais ou menos U$2.000.000,00 para um presidente ou diretor-geral,
enquanto era de US$22.000,00 para um trabalhador. Atualmente ele é de U$3.800.000,00 para o
presidente e diretores-gerais e US$4.000,00 para os trabalhadores. Então, o salário só aumentou
para as pessoas que são cada vez mais ricas.
Um exemplo é o das usinas Peugeot-Citröen, porque a Peugeot, instalou-se no Brasil e seu Diretor-
Geral aceitou um aumento de salário de 2% para os trabalhadores, mas ele aumentou seu próprio
salário em 60%. Existe, então, cada vez mais, um rebaixamento da cobertura social para os
assalariados, em quase todos os países. Com o recente "pacote" econômico que houve, acontecerá a
mesma coisa no Brasil. Ele comporta o essencial da fiscalização e um decréscimo de cobertura social,
cujas perdas são repassadas aos detentores do capital. Existe um endividamento crescente e um
concomitante aumento da miséria.
Não vou sobrecarregá-los com números, não sou um economista. Quero dizer que, no quadro atual, o
trabalho não é o mais importante, mas outra coisa. O que isso provoca em nossa civilização? Diria
que provoca o desenvolvimento da perversão social, ligada ao desenvolvimento da psicologização do
problema. O que entendo por perversão social se aplica às empresas dominadas por lógicas e
estratégias financeiras e industriais e que têm, cada vez mais, tendência a considerar os homens
como objetos eminentemente substituíveis, atendo-se apenas aos problemas financeiros.
A redução de pessoal acontece, mesmo quando as empresas estão funcionando bem. Vou dar dois
exemplos, um tirado dos Estados Unidos e o outro da Suécia. Em 1994, quando as grandes empresas
americanas tiveram um aumento de 40% dos seus lucros, elas eliminaram 116 mil empregos,
enquanto em 1990, no momento de recessão econômica, eliminaram apenas 316 mil. Quanto mais as
coisas funcionam, mais se eliminam os trabalhadores. Segundo exemplo recente, há alguns meses
atrás: uma companhia sueca, Eletrolux, de eletro-eletrônicos e outros produtos, suprimiu
aproximadamente 100 mil empregos no mundo e 12 mil na matriz, porque o acionista principal queria
um rendimento financeiro de 15% para as suas ações, rendimento esse que era de 9%, o que já é
muito bom, porque na Suécia não há inflação.
Então, vocês vêem que a redução de efetivos não está ligada a problemas de organização, mas sim à
idéia de que, justamente como são as finanças o que importa, é preciso ter melhores resultados
financeiros. Não sei se as medidas tomadas pelo Governo brasileiro recentemente, que irão suprimir
33 mil empregos — não conheço o problema — caminham nesse mesmo sentido. Tudo é feito, vocês
sabem, com o objetivo de reagir à crise que acabou de acontecer, que é puramente financeira e não
uma crise econômica. A economia asiática está se comportando de uma maneira muito boa. Uma
crise financeira é totalmente diferente da econômica. São momentos em que, de repente, as pessoas
não têm mais confiança e retiram o capital para colocá-lo em outro lugar. As pessoas podem fazer
isso todo dia, podem até, diria eu, brincar de fazê-lo.
Compreendemos muito bem que, numa situação assim, todos os assalariados de uma empresa, não
importa qual seja o seu nível hierárquico, não sabem nunca se serão mantidos ou não no emprego,
porque não é a riqueza econômica da empresa que vai impedir que exista redução de efetivo. Vou dar
o exemplo novamente da Peugeot e da Citroën, que conheço bem, na França. É uma empresa que
está funcionando muito bem. Ela passa seu tempo a despedir as pessoas de maneira regular. Isso é
perversão, mas a perversão está ligada à psicologização. O que quero dizer com isso? Poderão
permanecer na empresa apenas aqueles que são considerados de excelente performance. Vocês
sabem muito bem o que isso quer dizer, performance e excelência. Isso remete às pessoas ditas
vencedoras. São aqueles que matam de maneira tranqüila, sem dó, "fritando" o semelhante, um
outro profissional. Mata-se de verdade e a pessoa lesada não tem idéia, nem tem a impressão de que
querem matá-la. Isso é psicologização, na medida em que, se alguém não consegue conservar o seu
trabalho, fala-se tranqüilamente: "mas é sua culpa, você não soube se adaptar, você não soube fazer
esforços necessários, você não teve uma alma de vencedor, você não é um herói." Isso quer dizer
que é preciso ser um herói num cavalo branco para ganhar as coisas ou as guerras. Então,
psicologização quer dizer: "você é culpado e não a organização da empresa ou da sociedade. A culpa
é só sua." Isso culpabiliza as pessoas de modo quase total, pessoas que, além disso, ficam
submetidas a um estresse profissional extremamente forte. Então as empresas exigem daqueles que
permanecem um devotamento, lealdade e fidelidade, mas ela não dá nada em troca. Ela vai dizer
simplesmente: "você tem a chance de continuar, mas talvez você também não permaneça."
Sou muito sensível, principalmente no Brasil, a todas as críticas que se fazem às administrações
públicas. É verdade que muitas não funcionam bem, mas não se deve exagerar. Nas críticas que são
feitas à burocracia, sobre o fato de a empresa privada ser bem melhor, é preciso observar, com Max
Weber, que foi verdadeiramente o primeiro a refletir sobre a burocracia, que esta tem muitos
defeitos, mas tem, apesar de tudo, uma vantagem. Não se deve esquecer que ela é fiadora do
interesse geral ou garantidora da preservação do bem comum. E isso não acontecerá se
simplesmente promovermos uma desregulamentação, porque tudo tem que ter uma regulamentação.
Mas não existe nenhuma empresa à altura de assegurar o interesse geral e o bem comum. Por que
vocês acham que ela deveria fazê-lo? Diria que, quando criticamos a burocracia, é preciso prestar
atenção e não apenas criticar os mecanismos que permitem à sociedade funcionar e se manter. Pois
quais são as conseqüências? As pessoas estão cada vez menos inseridas no tecido social. Uma
sociedade que se julgue democrática, deve integrar as pessoas para permitir que elas, efetivamente,
vivam juntas.
Eu vou retomar uma frase muito bonita, um antigo conceito de Aristóteles que, há vários séculos,
dizia: uma sociedade é aquilo em que podemos viver juntos, tendo o prazer de viver juntos. Ora, essa
integração na sociedade é que constitui basicamente nossa identidade, é onde nos sustentamos e nos
nutrimos. A primeira formação da identidade é feita pela família. Eu não vou desenvolver isso, mas
insisto em que o papel da família é, de fato, o de ensinar quais são as coisas proibidas e as coisas
possíveis, papel de transmitir um certo número de noções éticas e também de incutir o amor natural.
Por outro lado, a escola que freqüentemente não preenche o seu papel, deve favorecer o confronto
com os semelhantes e favorecer o desenvolvimento do pensamento, dando às pessoas a possibilidade
do prazer intelectual. Mas, se a família e a escola são representantes do conjunto da civilização, eu
diria que a civilização do trabalho, ao longo do tempo, divide as coisas. No mundo do trabalho, não se
sabia o que era objeto de educação, não se sabia o que devia ser transmitido às crianças. E hoje,
cada vez mais, temos pais que não sabem, e também a escola não sabe mais. Vou insistir
principalmente no aspecto da identidade forjada, completada com o trabalho. O trabalho faz o quê?
Ele toma as pessoas que já têm um certo grau de personalidade e as remodela, estabiliza suas
personalidades e seus desejos. Por outro lado, ele coloca as pessoas na realidade, faz com que elas
entrem na realidade. Quando se trabalha, sabemos qual é a realidade da organização e isso permite,
também, que se instaure a temporalidade, coisa que é totalmente fundamental, porque o ser humano
se desenvolve na temporalidade. Quando não temos temporalidade, não sabemos mais quem nós
somos nem o que temos a fazer. A empresa, nesse momento, poderia estar atenta e deveria ser um
lugar de aprendizagem, de continuação da socialização.
Por outro lado, na empresa, nós estamos lidando com colegas e deveríamos aprender a ter
solidariedade com eles, isto é, não nos considerarmos como seres únicos, mas vivendo uns com os
outros. Toda essa inserção vai permitir a cada um sentir-se útil no seu trabalho, na sociedade, além
de buscar algum sentido para a própria vida. Pois a partir do momento em que existir um sentido
para a vida, este não se limitará somente ao fato de termos um papel na empresa, mas ao fato de
estarmos inseridos num sistema social mais completo, podendo ter investimentos políticos e nos
sentir verdadeiramente cidadãos.
Em outras palavras, o trabalho só permite uma saída política sob a ética da responsabilidade, uma
ética onde sabemos o que temos a fazer, onde podemos exprimir o que sabemos fazer e o que não
sabemos. A identidade para cada um de nós tem a ver com nossas consistências e com a relação
destas com outros seres humanos. Essa relação está existindo com menor freqüência. Vemos, e não
vou falar muito sobre este problema, que as famílias sabem cada vez menos definir o que é permitido
e o que não é, na medida em que elas não sabem mais quais são os verdadeiros valores sociais. E
nós sabemos muito bem as críticas que podem ser feitas às escolas. Mas se eu me debruço sobre o
trabalho, direi que nós não vivemos mais do nosso trabalho, nós sobrevivemos dele, o que é bem
diferente. Nós vivemos no efêmero. Quantas vezes, no Brasil, ouvi essa expressão: "eu não sei o meu
futuro" ou "para mim, o futuro é a próxima semana." Ora, quando vivemos sem esse horizonte de
temporalidade, como poderemos ter projetos, como poderemos construir, efetivamente, nossa vida e
nossa existência? É por isso que fiquei muito chocado, quando li o livro de Stephan Zweig, "Brasil,
Terra do Futuro". Ele dizia que, mesmo sessenta anos depois, poderíamos dizer a mesma coisa. E, em
certa medida, não aconteceu o desenvolvimento que Zweig desejava para o Brasil, exatamente
porque, justamente, viver no imediato não nos permite a construção de um projeto verdadeiro. O que
isso provoca? Provoca o que chamamos de explosão social ou, para utilizar um outro termo, um
"desafiliamento" social, porque não estamos mais afiliados uns aos outros e, em certa medida, a visão
coletiva desaparece. E quando isso acontece, nós nos sentimos inúteis, não sabemos mais como ser
cidadãos, sentimo-nos desconsiderados e, aos poucos, vamos perder a nossa auto-estima . O que
está se desenvolvendo é essa angústia generalizada, que vai ocorrer em todos os países do mundo.
Na verdade, existem estratégias de respostas que foram evocadas por um certo número de autores.
Existe a possibilidade de se valorizar a personalidade, quando se é mais agressivo, mais decidido.
Existe uma maneira de tentar contornar toda essa dificuldade, orientando nossa sociedade a ter um
certo humor em relação a isso, ou então a se integrar, ainda que à margem. Podemos, também,
desenvolver estratégias de defesa, isolando-nos e privando-nos da identidade coletiva, refugiando-
nos no álcool, na droga, na criminalidade. É claro que não são boas estratégias de respostas, mas,
apesar de todos esses fenômenos, eu diria que as conseqüências são aquelas que já foram evocadas
aqui e elas resultam na fragmentação geral de nossa sociedade.
É o que Alain Touraine, com o qual nem sempre estou de acordo, formulou muito bem, há vinte anos:
"Aquilo que eu receio, quanto a toda a nossa sociedade, é que ela se fragmente de maneira tal que
cada um se torne uma gangue para sua coletividade." Então, estaríamos numa sociedade de luta
geral de gangues, os homens uns contra os outros. Numa certa medida, é o que está acontecendo,
mas não apenas aqui. O mais extraordinário é que aqueles que foram os atores mais ativos deste
lado desastroso que eu tentei mencionar, começam a ficar inquietos pelo que está acontecendo. Por
exemplo, o Sr. Hammer3, que é o criador "genial" (eu coloco aspas porque estou fazendo humor) da
reengenharia, começa já a dizer que o chefe de empresa não vê as conseqüências sociais, mas
apenas técnicas, daquilo que planeja e realiza. Numa outra declaração, o Sr. George Soros, financista
internacional que, alguns anos atrás, fez falir algumas empresas na Inglaterra, diz que se o
capitalismo financeiro parasse de atuar, provocaria um desastre. Mas outros financistas pensam
diferentemente e começam a dizer que esse sistema é perigoso, porque simplesmente impede os
indivíduos de viver e ter uma história coletiva.
O que eu gostaria de dizer é que sou contrário ao que disseram os pensadores da segunda onda,
alguns deles americanos. Um deles é o Sr. Fukuyama, que predisse que a história estava terminada,
porque o regime comunista se desmoronou e que iríamos viver, até o final dos tempos, no liberalismo
tranqüilo. Eu diria, ao contrário, que estamos no início da história. Estamos em um momento em que
não temos mais ideologias que nos protegem ou que nos dizem o que fazer. Diria, no entanto, que é
preciso sempre ler Marx. E se o socialismo real — não estou dizendo o marxismo — levou a
catástrofes, o ultraliberalismo também leva a catástrofes.
Nós, felizmente, estamos nos soltando das grandes ideologias e devemos construir o mundo
inventando e imaginando novas perspectivas. Não temos mais pensadores magníficos que nos digam
o que fazer. É por isso que estou dizendo que não estamos no final da história, mas, ao contrário,
estamos no início da história, pelo fato de que somos responsáveis pelo que devemos fazer.
Então, se somos responsáveis, restam-nos algumas pistas e eu diria que não devemos nos limitar
apenas à questão da perda de efetivos. Por exemplo, vejo que, aos poucos, no caso das bombas de
gasolina, temos mais bombas automáticas. Na França só existem bombas automáticas. Existe toda
uma série de pessoas que prestavam serviços que foram suprimidos. Mesmo num país industrializado
como o Japão, eles compreenderam que não existem bombas automáticas, existem sempre
servidores. Na França, se você for a um restaurante, você vai passar o tempo todo chamando e
fazendo sinal, porque existem dois garçons para cem pessoas. No Brasil existem cinco ou seis. No
Japão existem 15, isto é, vemos que se pode dar trabalho às pessoas que precisam de trabalho.
Então, é preciso não automatizar tudo, mas isso não vai ser suficiente.
Eu diria que podemos pensar em outras formas de organização do trabalho, nas quais os indivíduos
não estejam, simplesmente, em um trabalho repetitivo, mas nas quais eles possam ter uma certa
autonomia e uma certa possibilidade de decisão. Podemos pensar, igualmente, no desenvolvimento
das atividades do setor quaternário, ou seja, o ensino, a educação, todo o setor de lazer. E sob esse
ponto de vista, a velha citação de Marx não é tão falsa, quando ele dizia que, talvez um dia existirão
pessoas que irão trabalhar três horas por dia e depois irão pescar, ler um bom livro, fazer música etc.
Deve-se pensar também numa civilização que possa se centrar não apenas no trabalho, porque não
vamos encontrar a civilização do trabalho antiga, mas uma sociedade que se centre na multiplicação
das atividades, à medida em que cada qual é bem mais competente do que acredita. Por exemplo,
como imigrantes da África do Norte, na França, as mulheres árabes que sabem apenas um pouco de
francês sentem-se totalmente inúteis. Mas foram criadas, em certos bairros, redes de solidariedade
onde essas mulheres vão ensinar as francesas a fazer a culinária algeriana e, em troca, as francesas
vão ensinar a elas o francês. Abriram-se cursos de dança árabe, que fazem um enorme sucesso, e
muitos profissionais liberais que vão às aulas de dança, em vez de pagá-las — um médico, por
exemplo — dão consultas.
O que quero dizer é que existe a possibilidade de se recriar. E temos exemplos também da antiga
economia do Brasil, essa economia de troca, que não passa pelo dinheiro, mas pelo fato de as
pessoas prestarem serviços. Além do mais, cada pessoa se sente útil para alguma coisa. Os
deficientes físicos mostram ser capazes de fazer sempre alguma coisa. Lembro-me da primeira
experiência que tive, quando era um jovem psicossociólogo. No norte da França, as pessoas que
trabalhavam nas minas diziam que não tinham nada a nos falar. Eu dizia que não tinha problema,
bastava que elas me falassem sobre o seu trabalho. Em algumas vezes, essas entrevistas duravam
horas, às vezes, o dia todo. Então, os mineiros diziam que nunca pensaram que sabiam tantas coisas.
É claro que essas pessoas sabem muito mais do que elas julgam saber.
Há também outros problemas que não foram apontados. Há o problema da duração do trabalho.
Sabemos que, nos meados do século XIX, as pessoas trabalhavam setenta horas por semana e,
quando diziam aos chefes de empresa que era preciso trabalhar apenas sessenta horas, o chefe de
empresa dizia: é impossível, não é verdade. Eu diria que o melhor exemplo foi dado, há mais ou
menos quinze anos, no momento da grande recessão na Inglaterra, quando inúmeras empresas
colocaram o seu pessoal no desemprego técnico. Eles trabalhavam três vezes por semana, durante
seis meses. E durante esse tempo, eles produziram tanto quanto produziram durante a semana toda,
o que mostra que o fato de não poder se reduzir a jornada de trabalho é falso.
Eu diria também que é preciso encontrar ligações de solidariedade fora do trabalho. É preciso
reinventar o coletivo. E isso não quer dizer ser simplesmente um ator individual, mas um ator social.
Há algum tempo, o filósofo norte-americano Richard Rorty, que é um filósofo inteligente, apesar de
liberal, escreveu ao presidente da grande Federação Americana do Trabalho, dizendo que é preciso
intensificar a luta de classes. Não podemos mais continuar assim. Os chefes de empresa se tornaram
loucos, eles só trabalham para o seu proveito e temos uma sociedade que vai se destruir. Então, o
fato de que um filósofo liberal, escreve a um presidente do maior sindicato, para que se intensifique a
luta de classes, mostra que existe um problema importante. É preciso que os seres humanos possam
encontrar a dimensão que tendemos a esquecer, que é a dimensão histórica, o seu peso na história.
Que eles possam, também, reencontrar o sentido político, o significado dos seus atos, além do prazer
de viver juntos. Não temo dizer coisas tão banais como o que pode contribuir para a felicidade
humana.
Termino dizendo duas frases escritas por dois pensadores que aprecio. Uma é do americano Herbert
Simon, antigo Prêmio Nobel de Economia, que diz na sua autobiografia:
"Sou um pesquisador da ciência social, antes de ser um economista ou psicólogo, e espero ser um ser
humano antes de qualquer coisa."
Tudo isso nos leva à idéia de um novo humanismo. Gostaria de citar uma frase mais longa do grande
historiador francês Fernand Braudel, que renovou toda uma parte histórica no mundo. Ele escreveu,
um pouquinho antes de morrer, a seguinte frase: "É preciso criar um novo humanismo." E ele definia
humanismo da seguinte maneira:
"O humanismo é uma maneira de esperar, de querer que os homens sejam fraternais e que as
civilizações, cada uma por si, e juntas, se salvem e nos salvem. Aceitar é desejar que as portas do
presente se abram largamente sobre o futuro, além das falências, além das explosões das catástrofes
que nos predizem os profetas. Essa seria a linha de parada, onde todos os séculos vêem frente a si,
como um obstáculo, a esperança dos homens. E os homens devem seguir em frente, devem
ultrapassar essa linha."
Eu diria que a criação de um novo humanismo é necessária, se quisermos recriar, reinventar uma
democracia que só existirá se conseguirmos conjugar autonomia individual com autonomia coletiva,
que será uma autonomia voltada ao bem comum e ao interesse geral.
[Conferência proferida durante o seminário "Trabalho e Existência", em 13/11/97, promovido pela Escola do
Legislativo, IRT - Instituto de Relações do Trabalho - e o Instituto Jacques Maritain, da PUCMinas]
Palestra publicada originalmente em "Relações de Trabalho Contemporâneas"; orgs. Antônio Carvalho Neto
e Maria Regina Nabuco. Belo Horizonte: IRT (Instituto de Relações do Trabalho) da PUC-Minas, 1999. pp.
69-83.