Fichamento de Gesto Inacabado

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SALLES, Cecília. Gestos Inacabados. Processo de Criação Artística. São Paulo, Fapesp.

Editora:
Annablume, 2008.

Página CITAÇÃO
INTRODUÇÃO
12 A crítica genética é uma investigação que vê a obra de arte a partir de sua
construção. Acompanhado seu planejamento execução e crescimento, o crítico
genético se preocupa com a melhor compreensão do processo de criação.

Narrando a gênese da obra, o geneticista pretende tornar o movimento legível e


revelar alguns dos sistemas responsáveis pela geração da obra. Essa crítica refaz,
com o material que possui a gênese da obra e descreve os mecanismos que
sustentam essa produção.
13 Um artefato artístico surge ao longo de um processo complexo de apropriações,
transformações e ajustes. O crítico genético procura entrar na complexidade
desse processo.

Não é uma interpretação do produto considerado final pelo artista, mas do


processo responsável pela geração da obra.

A crítica genética utiliza-se o processo de criação para desmontá-lo e, em


seguida, colocá-lo em ação novamente.

[...] percurso é o rastro deixado pelo artista e pelo cientista em seu caminhar em
direção a obra entregue ao público.

O interesse dos estudos genéticos é o movimento criativo: o ir e vir da mão do


criador.
15 Escritores e críticos já desempenhavam seus papéis de tradutores de linguagem:
tudo em nome da palavra nascente. A princípio as outras linguagens eram vistas
como personagens secundárias, onde a protagonista era a palavra.

Com a dilatação das fronteiras desses estudos, amplia-se o significado de


manuscritos. Lida-se assim, com índices de materialidade diversas: rascunhos,
roteiros, esboços, plantas, maquetes, copiões, ensaios, story-boards e cadernos
de artistas.
DOCUMENTOS DE PROCESSO
16 Essa ampliação envolve alguns problemas, principalmente para aqueles que não
lidam com a diversidade de linguagens. Parto, desse modo, de uma necessidade
básica: se o interesse do crítico genético é o movimento criador em sentido
bastante amplo, ele tem que se desvencilhar da relação direta crítica genética e
rasura verbal ou crítica genética e rascunho literário, relação essa estabelecida
pela origem dos estudos genéticos.

Para que esses estudos avancem, o parâmetro tem que deixar de ser a palavra e
ser deslocado para alguns aspectos de natureza geral.
17 Nos estudos de crítica genética de literatura, o termo manuscrito já não era
usado apenas com seu significado restrito de “escrito a mão”.

Lidando com outras manifestações artísticas, as dificuldades de se adotar o termo


manuscritos aumentaram.
Poderíamos continuar falando de esboços [...] sempre que fossemos
questionados quanto a esse uso. [...] No entanto, como estamos em busca de
instrumentos gerais de análise, opto por denominar o objeto de estudo do crítico
genético documentos de processos. Acredito que esse termo nos dá mais
amplitude de ação.
Os documentos de processos são, portanto, registros materiais do processo
criador. São retratos temporais de uma gênese que agem como índice do
processo criativo.
18 Em termos gerais, esses documentos desempenham dois grandes papéis ao longo
do processo criador: armazenamento e experimentação.

RASTROS
19 O olhar genético vai além da mera observação curiosa que esses documentos
podem aguçar: um voyeur que entra no espaço privado da criação. O crítico
genético narra às histórias das criações. os vestígios deixados pelos artistas
oferecem meios para captar fragmentos do funcionamento do pensamento
criativo.

O contato com esse material nos permite entrar na intimidade da criação artística
e assistir - ao vivo – a espetáculos, às vezes, somente intuídos e imaginados.

O olhar científico procura por explicações para o processo criativo que esses
documentos guardam.

Para se chegar a sistemas e suas explicações, descreve-se percebe-se


periodicidade e, assim, relações são estabelecidas. É feito, desse modo, um
acompanhamento crítico-interpretativo dos registros. O movimento do olhar
nasce no estabelecimento de nexos entre os vestígios.
20 É importante observar a relação de cada índice com o todo: uma rasura com as
outras; rascunhos com anotações e diários; rasuras e rascunhos; anotações e
diários com as obras.

Uma visão simplificadora do gesto criador mostra um percurso que tem sua
origem em um insight arrebatador, que se concretiza ao longo do processo
criativo. Um caminho do caos inicial para a ordem que a obra oferece.

[...] sob o prisma do movimento. Esses materiais nos mostram, assim, a dimensão
do ato criador no universo da ação. Um diário, por exemplo, lembra Klee (1990,
p. 74), não é uma obra de arte, mas uma obra do tempo. Pode-se, portanto
afirmar que esses documentos guardam o tempo contínuo e não linear da
criação.
Ao introduzir na crítica essa noção de tempo, seus pesquisadores passam a lidar
com a continuidade, que nos leva à estética do inacabado.
MORFOLOGIA DA CRIAÇÃO
21 As pesquisas tinha o propósito de entrar na singularidade de um processo
criativo, ou seja, envolver-se na aura da unicidade de cada individuo.

Alguns pesquisadores vêm avançando em direção a uma generalização sobre o


processo de criação, que leve a princípios que norteiam uma possível morfologia
da criação. É o estudo das singularidades buscando generalizações.
O percurso da criação mostra-se como um emaranhado de ações que, em um
olhar ao longo do tempo, deixam transparecer repetições significativas. É a partir
dessas aparentes redundâncias que se podem estabelecer generalizações sobre o
fazer criativo, a caminho de uma teorização.

É nesse ambiente que o Gesto Inacabado se insere: apresentação e discussão


dessa morfologia do processo criador.

OLHAR
23 No percurso da literatura para as artes em geral, e das artes para a ciência, a
crítica genética está chegando ao conceito de processo em sentido bastante
amplo. Seja este concretizado na arte, na ciência ou na sociedade como um todo.

Discutir a morfologia da criação tem como pretensão oferecer mais do que um


simples registro de um estudo, mas um modo de ação: tirar objetos do
isolamento de análises e reintegrá-los em seu movimento natural.

O Gesto Inacabado pretende oferecer mais do que um simples relato de uma


pesquisa, mas uma possibilidade de se olhar para os fenômenos em uma
perspectiva de processo.
ESTÉTICA DO MOVIMENTO CRIADOR
25 Discutir arte sob o ponto de vista de seu movimento criador é acreditar que a
obra consiste em uma cadeia infinita de agregação, de ideias, isto é, em uma
série infinita de aproximações para atingi-la.

A criação é assim, observada no estado de contínua metamorfose: um percurso


feito de formas de caráter precário, porque hipotético.
26 Trata-se de uma visão, portanto que põe em questão o conceito de obra acabada,
isto é, a obra como forma final e definitiva. Estamos sempre diante de uma
realidade em movimento.

De uma maneira bem geral, poder-se-ia dizer que o movimento criativo é a


convivência de mundos possíveis. O artista vai levantando hipóteses e testando-
as permanentemente.

Admite-se, portanto, a impossibilidade de se determinar com nitidez o primeiro


instante que se desencadeou o processo e o movimento de seu ponto final.

A obra esta sempre em estado de provável mutação, assim como há possíveis


obras nas metamorfoses que os documentos preservam.
27 A própria ideia de criação implica desenvolvimento, crescimento e vida;
consequentemente não há lugar para metas estabelecidas a priori e alcances
mecânicos.

Gestos construtores que, por sua eficácia, são, paradoxalmente, aliados a gestos
destruidores: constrói-se à custa de destruições

“Os quadros são uma soma de destruições. Eu faço uma pintura e em seguida a
destruo. Mas, no fundo, nada é perdido. O vermelho que retirei de um lugar
qualquer pode ser encontrado em uma outra parte do quadro,” explica Picasso.
(1985, p.13)
TRAJETO DE TENDÊNCIAS
28 O que é um trajeto de tendência? Muitos criadores referem-s a essa espécie de
rumo vago que direciona o processo de construção de suas obras. Peter Brook
(1994) descreve essa tendência como uma intuição amorfa, que dá senso de
direção; Borges (1984), como um conceito geral e Murray Louis (1992), como
uma premissa geral. O trabalho de criação não passa da perseguição a miragem,
para Maurice Bèjart (1981).

Intuição amorfa, conceito ou premissa geral e miragem são modos de descrever o


elemento direcionador do processo.
29 O artista é atraído pelo propósito de natureza geral e move-se inevitavelmente
em sua direção. A tendência é indefinida, mas o artista é fiel a essa vagueza.

A tendência não apresenta em si a solução completa de um problema, mas indica


um rumo. O processo é a explicação dessa tendência.

A tendência mostra-se como fio condutor maleável, ou seja, uma nebulosa que
age como uma bússola. Esse movimento dialético entre vagueza e rumo é que
gera trabalho e move o ato criador.
30 [...] O dramaturgo Edward Albee explica essa relação, de modo bastante
contrastante. “Nenhum escritor sentaria e colocaria uma folha de papel na
máquina e começaria a escrever uma peça, a não ser que soubesse sobre o que
está escrevendo. Mas ao mesmo tempo, o processo de escritura tem haver com o
ato de descoberta. Descobrir sobre o que está escrevendo” (1983, p. 341). A
criação vai acompanhando a mobilidade do pensamento.

O processo criador é um percurso com um objetivo a atingir, um mistério a


penetrar, de acordo com Picasso (1985).

A arte é uma doença, uma insatisfação humana: e o artista combate a doença


fazendo mais arte, outra arte. Fazer outra arte é a única receita para a doença
estética da imperfeição. (Mário de Andrade, 1989) – um processo que fica
sempre por se completar, um desejo que fica por ser totalmente satisfeito.
31 Stanislavski (1983, p. 275) discute, também, essa busca incessante: “Há uma
satisfação estética, que nunca chega a ser totalmente completa e isso desperta
nova energia.”
Essas afirmações põem em questão, como se pode perceber, a visão do processo
criador como um caminho da imperfeição para a perfeição, que estaria associada
à necessidade plenamente satisfeita.
MATURAÇÃO PERMANENTE
31/32 O processo de criação é o lento clarear da tendência que, por sua vagueza, está
aberta a alterações.

Fellini (1986ª, p. 92) diz que sabe aonde quer chegar, mas a fidelidade ao que
havia pensado deixa uma margem às possibilidades cotidianas dos encontros e
dos enriquecimentos. “Não se pode contar uma viagem sem antes realizá-la.
Quando muito se poderá dizer que se tem a intenção de fazer esta viagem.”

32 [...] o processo mostra-se, assim, como um ato permanente.


O crescimento e as transformações vão dando materialidade ao artefato, que
passa a existir, não ocorre em segundos mágicos, mas ao longo de um percurso
de maturação. O tempo do trabalho é o grande sintetizador do processo criador.
A concretização da tendência se dá exatamente ao longo desse processo
permanente de maturação.

A construção da obra acontece, portanto, na continuidade em um ambiente de


total envolvimento.
33 Esse processo, que vai se dando ao longo do tempo, caminha de uma nebulosa
fértil em direção a alguma forma de organização. A obra em criação é um sistema
em formação que vai ganhando leis próprias.

Muitos artistas descrevem a criação como um percurso do caos para ao cosmos.


Um acúmulo de ideias, planos e possibilidades que vão sendo selecionados e
combinados.

A criação é um movimento que surge na confluência das ações da tendência e do


ocaso (Ostrower, 1990). Os documentos de processo e os relatos retrospectivos
conseguem, às vezes, registrar a ação do ocaso ao longo do percurso da criação.

35 Discutir a intervenção do ocaso no ato criador vai além dos limites da ingênua
constatação da entrada, de forma inesperada, de um elemento externo ao
processo.
37 Em toda prática criadora há fios condutores relacionados à produção de uma
obra específica que, por sua vez, atam a obra daquele criador, como um todo.
São princípios envoltos pela aura da singularidade do artista; estamos, portanto,
no campo da unicidade de cada indivíduo. São gostos e crenças que regem seu
modo de ação: um projeto pessoal, singular e único.

Esse projeto estético está localizado em um espaço e um tempo que afetam o


artista. [...] Manuel Bandeira (1996, p. 120) diz estar convencido de que nenhum
homem pode ser inatual, por mais força que faça. “Somos duplamente
prisioneiros de nós mesmos e do tempo em que vivemos”.
38 O artista não é um ser isolado, mas alguém inserido e afetado pelo seu tempo e
seus contemporâneos. O tempo e o espaço do objeto de criação são únicos e
singulares e surgem de características que o artista vai lhe oferecendo, porém se
alimenta do tempo e do espaço que envolvem sua produção.

Bakhtin (1981, p. 29) afirma que “as grandes descobertas do gênio humano só
são possíveis em condições determinadas de épocas determinadas, mas elas
nunca se extinguem nem se desvalorizam juntamente com as que geraram”.

O projeto poético também está ligado a princípios éticos de seu criador: seu
plano de valores e sua forma de representar o mundo. Pode-se falar de um
projeto ético caminhando lado a lado com o grande propósito estético do artista.

Chekhov (1986, p. 39) explica esses valores: “Cada um de nós possui suas próprias
convicções, suas próprias visão de mundo, seus próprios ideais e atitude ética
perante a vida. Esses credos profundamente enraizados e, com frequência,
inconscientes constituem parte da individualidade do homem e de seu grande
anseio de livre expressão”.
40 Não há, portanto, uma teoria fechada e pronta anterior ao fazer. A ação da mão
do artista vai revelando esse projeto em construção. As tendências poéticas vão
se definindo ao longo do percurso: são leis em estado de construção e
transformação.

Henri Cartier-Bresson (1996) explicita a tendência de sua arte: Fotografar é no


mesmo instante e numa fração de segundos, reconhecer um fato e a organização
rigorosa das formas percebidas visualmente que exprimem e significam esse fato.
Fotografar é prender a respiração quando todas as nossas faculdades
concentram-se para captar uma realidade fugitiva. Daí a máquina fotográfica ser,
para ele, o mestre do instante que, em termos visuais, questiona e decide ao
mesmo tempo.
41 Ao acompanhar um processo específico, comparando rascunhos, esboços ou
qualquer outra forma de concretização das testagens que o artista vai fazendo ao
longo do percurso, os reflexos das tomadas de decisões e as dúvidas nos
permitem compreender alguns desses princípios direcionadores que, como vimos
nos exemplos apresentados, carregam consigo seu meio de expressão.

A partir do que o artista quer e daquilo que ele rejeita, conhecemos um pouco
mais de seu projeto.

O processo de criação mostra-se também, como uma tendência para o outro.


Está em sua própria essência a necessidade de seu produto ser compartilhado
(Carlos Fuentes, 1989).
42 A obra de arte carrega as marcas singulares do projeto poético que a direciona,
mas também faz parte da grande cadeia que é a arte.

Muitos críticos e criadores discutem a questão de que não há criação sem


tradição: uma obra não pode viver nos séculos futuros se não se nutriu dos
séculos passados, nenhum artista, de nenhuma arte tem seu significado sozinho.
43 Uma mente em ação mostra reflexões de toda espécie. É o artista falando com
ele mesmo. São diálogos internos: devaneios desejando se tornar operante;
ideias sendo armazenadas; [...]
A obra vai sendo permanentemente julgada pelo criador. [...] Estamos assim
diante de uma outra instância comunicativa do processo de construção de uma
obra. É o diálogo do artista com ele mesmo, que age, nesse instante, como o
primeiro receptor da obra.

É impossível escrever um texto sem o estar lendo simultaneamente (Borges,


1987). O artista é testemunha e agente do ato criador.
44 Não se pode deixar de mencionar as leituras particulares que fazem parte de
muitos processos criadores. Algumas pessoas são escolhidas pelos artistas para
terem esse tipo de acesso preliminar às obras recém terminadas ou ainda em
processo.

Receptor. O texto é o resultado da estreita colaboração entre um autor e um


leitor. Se é certo que não existe texto sem autor, não é menos certo (e
tautológico) que não existe sem leitor (Borges , 1987).

O artista não cumpre sozinho o ato da criação. O próprio processo carrega esse
diálogo entre o artista e o receptor. Os leitores são seres que se entregam com
candura e entusiasmo à magia e à fascinação do poeta. Reações sem as quais não
seria possível as obras de arte (Sábato, 1982, p. 124).
49 Quando se fala no aspecto comunicacional do ato criador, não se pode deixar de
lembrar do contato do artista com a recepção crítica. [...] o trabalho do crítico é,
desse modo, parte integrante do processo.

Percebe-se a procura, por parte do artista, de uma crítica sensível que ultrapasse
os limites das relações pessoais e que, principalmente, se revele como forma de
um real diálogo.
50 Não se pode deixar de mencionar, também, a complexidade envolvida na inter-
relação de tendências no caso dos processos coletivos.

Representar não é como escrever, pintar ou compor uma música. É um trabalho


de equipe, é como se toda noite eu jogasse uma partida de futebol, como se toda
noite tivesse de marcar um gol. O entrosamento não basta, é preciso estar
constantemente alerta. Vittorio Gassman (1986, p. 21)

51 Não há dúvida de que essa complexidade existe, mas é importante ressaltar que
o caráter coletivo de todas essas manifestações artísticas é parte integrante de
sua materialidade. O que está sendo ressaltado é que, nesses casos, sem a
interação a obra não se concretiza.
52 Kurosawa (1990, p. 275) ilustra, com clareza, o vínculo entre a tendência e a
materialização de uma obra. [...] “Meus filmes emergem de meu próprio desejo
de dizer algo em particular, numa época particular. A raiz de qualquer projeto
cinematográfico situa-se, para mim nesse desejo interior de expressar algo. O que
nutre essa raiz e a faz prolongar-se em uma árvore é o roteiro. O que faz a árvore
produzir flores e fruto é a direção”.

Seu pensamento é transformado em ação, que se move em direção à estrutura


em formação. Momento no qual ocorre a urdidura do tecido do filme.
(EISENSTEIN, 1942)

O desenvolvimento contínuo da obra deixa claro que não há ordenação


cronológica entre pensamento e ação: o pensamento se dá na ação, toda ação
contém um pensamento.
53 Muitos criadores falam do sentimento que gera uma espécie de exigência de
expressão. São sensações descritas como algo indefinido – um forte desejo de
concepção. Necessidade de expressão no momento em que falha algo na vida
(CARLOS DRUMOND DE ANDRADE, 1985).

Há uma distinção entre a emoção poética, mesmo criadora e original, e a


produção de uma obra. Essa emoção é um estado de recolhimento, mas não de
dinamismo criador, diz Lorca (1975).
54 O estado de criação mantém a sensibilidade suspensa, à espera e à procura de
sensações que, na medida em que ativam sensivelmente o artista, são criadoras.

Trata-se de uma imagem sensível que contém uma excitação. O artista é


profundamente afetado por essa imagem que tem poder criativo; é uma imagem
geradora. Essas imagens, que guardam o frescor das sensações, podem agir como
elementos que propiciam obras futuras, como também, podem ser
determinantes de novos rumos ou soluções de obras em andamento.
A criação surge, sob essa perspectiva, como uma rede de relações, que
encontram nessas imagens um modo de penetrar em seu fluxo de continuidade e
em sua complexidade.
55 [...] não consigo falar, e tudo o que eu digo me parece desproporcionado e inútil.
Confusamente me recordo que, andando de automóvel num passeio pelos
campos próximos a Roma, vagabundeando, indolente e sem destino, pela
primeira vez, entrevi meus personagens, a atmosfera e o sentimento desse filme
Fellini (1986ª, p. 76).

Essas imagens que agem sobre a sensibilidade do artista são provocadas por
algum elemento primordial. Uma inscrição no muro, imagens de infância, um
grito, [...] experiências da vida cotidiana: qualquer coisa pode agir como essa gota
de luz.

O artista é um receptáculo de emoções.


56 G. Marquez percebe a força que imagens visuais exercem sobre ele. O conto a
Sesta da terça-feira surgiu da visão de uma mulher e de uma menina vestida de
preto, andando sobre um sol ardente num povoado deserto.
57 Os vínculos entre o desejo de concepção e a materialidade de uma imagem
fogem de uma possível relação de causa e efeito.

O artista mantém-se, ao longo do percurso, ligado de forma sensível ao mundo a


seu redor. Miró (1989, p. 20), por exemplo, admite que nunca entrou num ateliê
por rotina. A tensão foi sempre muito viva.

O processo vai assim desenvolvendo-se nesse ambiente sensível.


58 Os próprios documentos de processos, por vezes, desempenham papel
semelhante ao longo do processo. O manuseio de um diário, por exemplo, pode
ser uma forma de o artista encharcar-se do clima da obra de criação.

Alguns artistas contam da emoção provocada pelo próprio desenvolvimento do


processo.

O artista conhece a fugacidade desses momentos e encontra seu modo de


resguardar esses instantes frágeis, porém férteis. Surgem, assim, os diário,
cadernos de anotações, ou notas esparsas que acolhem essa forma sensível no
primeiro suporte disponível.
59 Se olharmos sob o ponto de vista da tendência comunicativa do processo,
podemos ver o ato criativo caminhando em direção a um efeito estético – a
emoção causada pela obra.

O artista, como seu primeiro receptor, é o primeiro a ser atingido por esse efeito.
[...] Kafka (1985, p. 102) sentia que sua Metamorfose em criação era “repugnante
ao extremo”.

O processo criador é permeado de operações sensíveis. Estamos, portanto,


diante do poder gerativo das sensações, [...].

Encontro de métodos. Os estudos genéticos, como parte de sua própria


metodologia, necessitam observar o modo de ação do artista, que é, muitas
vezes, tratado como o único método do qual o artista lança mão.
60 Não se pode negar, no entanto, que a produção da obra vai se dando por meio de
uma sequencia de gestos e, ao se acompanhar um processo, vão se percebendo
certas regularidades no modo como de o artista trabalhar. São leis de modo de
ação, com marcas de caráter prático. São gestos, muitas vezes, envolto em um
clima ritualístico.

A questão de método na criação deve ser observada, ainda, sob outra


perspectiva, certamente, mais rica no que diz respeito à natureza do ato criador.
Estou me referindo a método como série de operações lógicas responsáveis pelo
desenvolvimento da obra: procedimentos lógicos de investigação.
62 O trabalho da arqueologia, de acordo com o artista plástico e arqueólogo João
Carlos Goldberg (1994), é resgatar fragmentos do raciocínio do homem, no
acompanhamento de sequencias de gestos ou procedimentos. Fazendo uma
analogia com o crítico genético, o estudo de encadeamentos de gestos artísticos
para se obter uma determinada forma nos aproxima de uma série de operações
lógicas, o que possibilita a recuperação, assim, de fragmentos do raciocínio do
artista.

O método, sob essa perspectiva, diz respeito, portanto, às diferentes formas de


raciocínio desenvolvidas em toda e qualquer ação do artista.

O tecido do percurso criador é feito de relações de tensão, como se fosse sua


musculatura. Polos opostos de naturezas diversas agem dialeticamente um sob o
outro, mantendo o processo em ação.
63 [...] os rascunhos são um exemplo de combate com a língua nessa perseguição
que escapa à expressão. Essa luta é ação mútua; confronto constituído por ações
verdadeiras de uma coisa sobre a outra.

É a tensão entre o que se quer dizer e aquilo que se está dizendo.

O processo de criação dá-se na relação entre essa tendência e mobilidade do


percurso que está, necessariamente, inserido no fluxo da continuidade.

Trata-se, portanto, de uma perspectiva que vê a criação como um percurso


direcionado por um projeto, inserido na continuidade do processo.
Artista e Matéria
66 O termo matéria estará sendo usado, aqui, como tudo aquilo a que o artista
recorre para a concretização de sua obra: o que ele escolhe, manipula, e
transforma em nome de sua necessidade. Matéria seria, portanto, tudo aquilo do
que a obra é feita; aquilo que auxilia o artista a dar corpo a sua obra.

67 No elo estabelecido entre o uso da matéria e a tendência do projeto de um


artista, pode-se perceber, muitas vezes, que uma matéria é eleita em meio à
complexidade de uma manifestação artística.
68 Bakhtin (1992) discute, em seu estudo sobre a estética verbal, a palavra do
romancista sendo adaptada às finalidades estéticas. Ele vê a tarefa do artista,
condicionado pelo desígnio artístico, consistindo em superar a matéria.

Ao mesmo tempo, o conhecimento das leis dadas pela natureza da matéria age
sobre essa tendência concretizada no projeto poético do artista, gerando
possíveis adaptações diante da impossibilidade de superação dos limites que lhe
foram impostos. Fayga Ostrower (1978, p. 32) diz que “cada materialidade
abrange certas possibilidades de ação e outras tantas impossibilidades”.

Esse contato com os imites da matéria faz parte do processo de conhecimento de


cada matéria. cada matéria, assim, pede comportamento e disciplina específicos.

71 O desejo de concretização do processo pode gerar o encontro de meios de


superação desses limites impostos pela matéria, pode vencer essas, nesse caso,
aparentes impossibilidades.

A matéria é limitadora e cheia de impossibilidades, por isso, ao mesmo tempo,


impede e permite a expressão artística.
72 Há, ainda, outros casos em que a matéria incita o artista a agir, na medida em
que é o elemento propulsor de um processo.

O processo criativo é palco de uma relação densa entre o artista e os meios por
ele selecionados, que envolve resistência, flexibilidade e domínio.

Todo esse processo envolve manipulação, que implica um movimento dinâmico


de transformação em que a matéria recebe novas feições, pela ação artística.

Transformando-se, a matéria não é destituída de seu caráter [...] ela se torna


matéria configurada, matéria e forma, e nessa síntese entre o geral e o único é
impregnada de significações. (OSTROWER, 1978, p. 51).
73 Esse dado nos leva a afirmar que a expressividade artística não é intrínseca a esta
ou aquela matéria. Sob essa perspectiva, toda matéria tem potencialidade, tudo
depende do uso que será feito dela.

FORMA E CONTEÚDO
73 Não se pode tratar forma e conteúdo como entidades estanques, se, por um lado,
vê-se o conteúdo determinando ou falando através da forma, isto é, a forma
como um recipiente de conteúdo, não se pode negar que a forma é a própria
essência do conteúdo.

A concretude dos rascunhos, ensaios, esboços está diretamente ligada à


materialização da obra, ou seja, a formalização do conteúdo. O desenvolvimento
da obra vai se dando na contínua metamorfose – no surgimento de novas formas.
74 Durante todo o processo forma e conteúdo estão sempre em relação de
interdependência.
75 A forma surge pela necessidade de expressão do artista, daí a intimidade que ele
mantém com sua forma.

A forma é o acesso que o artista tem a seu projeto poético, de natureza geral.

Ignácio de Loyola Brandão, a certa altura do processo de construção de Não Verá


País Nenhum, anota que está sentindo a necessidade de acelerar o ritmo do
relato para que o clima sufocante se acirre. [...] muitas subordinações são
quebradas em duas orações absolutas, e as relações lógicas passam a ser
estabelecidas no resultado de justaposição.

O efeito final causado por essas modificações recai sobre a rapidez do texto e a
aceleração do fluxo narrativo. O que se observa, portanto, é que formas
representam conteúdos.
76 Há casos de criação frustrada, quando esses dois polos não se encontram.
Instantes de conteúdo sem forma, como Paul Klee (1990, p. 169 e 266) anota em
seu diário: “É como se eu estivesse prenhe de coisas prestes a ganhar forma e
agora eu posso ousar a dar forma ao que levo na alma”. O poeta russo
Mandelstam (citado por VYGOSTKY, 1987) conta: esqueci a palavra que pretendia
dizer ao meu pensamento privado de sua substância volta ao seu reino de
sombras.

O diário de Schlemmer (1987) mostra também essa dialética: “eu tinha a forma,
mas me faltava a ideia. Inicialmente foi o inverso. Agora tenho as mãos cheia e o
coração vazio”.

A relação entre forma e conteúdo não pode ser definida, portanto, por uma
dicotomia. Investigar onde começa um e o outro termina é descobrir a própria
natureza a arte.

O autor de uma obra está presente no todo da obra. Não será encontrado em
nenhum elemento separado do todo e menos ainda no conteúdo da obra, se
estiver isolado do todo. O autor se encontra num momento inseparável em que
conteúdo e forma se fundem.
77 O processo de criação mostra o trabalho do artista como partes e, essa
intervenção aparentemente parcial atua sobre o todo.

Uma interação de interferências, modificações, restrições e compensações


conduz gradualmente à unidade e à complexidade da composição total, observou
Arnheim (1976) nos esboços de Picasso para Guernica.
78 O movimento do olhar {do geneticista} deve nascer do estabelecimento de
relações entre os vestígios {deixados pelos artistas}. É no estabelecimento de
relações entre os gestos do artista que se percebe os princípios que norteiam
aquele processo.

Cada índice se for observado de modo isolado, deixa de apontar para as


descobertas sobre o ato criador. É necessário seguir o movimento do artista,
tentar compreender seus passos e recolocá-lo em seu ritmo original.

O foco de atenção é a complexidade dessas relações.

Acabamento e Inacabamento. Tomando a continuidade do processo e a


incompletude que lhe é inerente, há sempre diferença entre aquilo que se
concretiza e o projeto do artista que está sempre por ser realizado.

Essa relação entre o que se tem e o que se quer reverte-se em contínuos gestos
aproximativos – rasuras que buscam completude.

O artista lida com sua obra em estado de permanente acabamento.

O objeto “acabado” pertence portanto, a um processo inacabado.


80 O objeto considerado acabado representa, também de forma potencial, uma
forma inacabada. A própria obra entregue ao público pode ser retrabalhada ou
algum de seus aspectos – um tema, um personagem, uma forma específica de
agir sobre a matéria - pode ser retomado.
MARCAS PSICOLÓGICAS
81 Doce angústia criativa. Salvador Dali.

As marcas psicológicas do gesto criador carregam sentimentos opostos que, na


medida em que atuam um sobre o outro, toram a criação possível.

O artista sabe, por outro lado, que “o homem solitário pode preparar muitas
coisas futuras, pois suas mãos erram menos” (Cecília Meireles 1980), talvez
porque seja fechado na sua solidão que o ser de paixão prepara suas explosões e
façanhas (BACHELAND, 1978).

O lugar ideal para escrever é “uma ilha deserta pela manhã e a grande cidade à
noite. De manhã, preciso de silencio. À noite, um pouco de álcool e bons amigos
para conversar. Tenho sempre a necessidade de estar em contato com as pessoas
da rua e bem a par da atualidade”, descreve Gabriel Garcia Marquez (1982, p.
33).

DESPRAZER E PRAZER
82 O desprazer do ato criador está ligado ao fato de que o artista encontra, ao longo
do percurso, problemas infinitos, conflitos sem fim, provas, enigmas,
preocupações e desesperos que fazem do “ofício do poeta um dos mais incertos
e cansativos que possa existir”.

É interessante notar que esse tipo de dificuldade reflete-se na grande quantidade


de rascunhos encontrados, em processos de muitos escritores, do início de seus
contos e romances, e que não significa, necessariamente, começo de um
processo. Muitos justificam esse momento penoso por estarem em busca de um
tom adequado.

Assim como o começo é difícil há muitas referencias à complexidade de enfrentar


o fim da obra.
83 Você se lembra quando terminou Cem Anos de Solidão?

Gabriel Garcia Márquez responde:


Eu tinha escrito durante dezoito meses, todos os dias, de nove da manhã às três
da tarde.
[...] Lembro-me do meu desconcerto, como se fosse ontem: não sabia o que fazer
com o tempo que sobrava e fiquei tentando inventar alguma coisa para poder
viver até às três horas da tarde (1982, p. 97).
84 O cineasta chega à conclusão de que o homem deve dar valor às coisas na
proporção direta da dificuldade que teve ao realizá-las.

Todas essas dificuldades geram angústias. O artista diz enfrentar angústias de


toda ordem: morrer e não poder termina a obra; reação do público,; busca de
disciplina; o desenvolvimento da obra; [...]

Surge, assim, o artista que enfrenta dificuldades com angústia e busca paciência,
em estado de aparente desequilíbrio,[...]
85 A criação pertence ao mundo do prazer e ao universo lúdico: a um mundo que se
mostra sem regras. Se estas existem, são estipuladas pelo artista, o leitor não as
conhecem.

O ato criador oferece muitos e diferentes encantamentos.


[...] “A primeira etapa – um estado de loucura e alucinação – é muito importante
para mim. É a verdadeira criação. É o nascimento que interessa. O começo é
tudo. É o que me interessa. O começo é minha razão de viver” (Miró, 1989, p.
115).

O artista é, em muitos momentos, levado pelo sentimento de que pode tudo, ou


seja, é invadido por uma avassaladora onipotência.
86 A obra vai, assim, se desenvolvendo nesse ambiente emocionalmente tensivo,
em meio a prazeres e desprazeres, flexibilidade e resistência.
87 Diferentes ângulos de observação do movimento criador nos oferecem uma
ampliação de sua compreensão [...] É com esse objetivo que estaremos
discutindo o processo criador em cinco diferentes perspectivas: ação
transformadora, movimento tradutório, processo de conhecimento, construção
de verdades artísticas e percurso de experimentação.

AÇÃO TRANSFORMADORA
88 O percurso criativo observado sob o ponto de vista de sua continuidade coloca os
gestos criadores em uma cadeia de relações [...] O ato criador aparece como um
processo inferencial, na medida em toda a ação está relacionado a outras ações e
tem igual relevância, ao se pensar a rede como um todo.

A natureza inferencial do processo significa a destruição do ideal de começo e de


fim absolutos. [...], no entanto, a constatação de que o ato criador é uma cadeia
implica, necessariamente, igual indeterminação de últimos elos. É possível
identificar um elemento no processo contínuo como o mais próximo do ponto
inicial e toda parada é, potencialmente, uma nova partida.
89 O processo inferencial destaca as relações; [...] o ato criador manipula a vida em
uma permanente transformação poética para construção da obra.

A qualidade distintiva de uma sensibilidade poética é sua capacidade de formar


totalidades novas, para fundir experiências díspares numa orgânica unidade,
afirma T.S Eliot (citado por Gonçalves, 1988).

A criação como um processo de inferências mostra que os elementos


aparentemente dispersos estão interligados; já a ação transformadora mostra o
modo como um elemento inferido é atado ao outro. Podem-se perceber, ao
longo do processo criador, dois momentos transformadores especiais: a
percepção e a seleção de recursos artísticos.
PERCEPÇÃO ARTÍSTICA
90 A percepção artística como atividade criadora da mente humana, é um dos
momentos em que se percebem ações transformadoras. O filtro perceptivo vai
filtrando o mundo em nome da criação da nova realidade que a obra de arte
oferece.

No instante em que apreendemos qualquer fenômeno, já o interpretamos e


naquele instante vivenciamos uma determinada representação.
O processo de apreensão dos fenômenos envolve, portanto, enquadramento e
angulação singulares.
91 O artista, nessa perspectiva, está sendo vista como um explorador da existência.
[...] Poder-se-ia dizer que a conexão entre realidade e ficção acontece por
intermédio de uma forma mediada e sensível. A realidade não é imediata; a
ficção não surge do contato direto com o dito real.

O objeto que está sendo criado carrega um modo sensível de mediação da


realidade que lhe é externa; é a percepção artística que age nessa escuta por
meio de todos os sentidos.

Diários, anotações e correspondências são documentos que, por vezes,


conseguem flagrar e arquivar registros de percepção: são as reservas passionais
do artista. Registros que refletem o modo pelo qual aquele artista percebe o
mundo.
A percepção é um movimento caracterizado pela unicidade de impressão.
92 As pessoas são receptivas a partir de algo que já existe nelas de forma potencial e
que encontra nesse fato uma oportunidade concreta de se manifestar.

Pode-se falar, portanto, em esquemas perceptivos peculiares a cada indivíduo,


que revelariam singularidades de tendências. Seriam o poder de reconhecer os
fatos em certa direções.

A sensibilidade apreende essas imagens mentais, que responderam a um


estímulo e, assim, une mundos experienciados por diferentes meios.

A percepção é naturalmente seletiva: “selecionando o que é significativo e


relevante, fazemos com que o caos das impressões que nos cercam se organize
em verdadeiro cosmo de experiência” (MUNSTERBERG, 1983, p. 28).
95 De acordo com Bakhtin (1988, p. 69), a criação não ocorre a partir do nada, mas
pressupõe a realidade do conhecimento, que a liberdade do artista apenas
transfigura e formaliza.

Ao mesmo tempo, não se pode afirma que haja realidades poéticas e realidades
vulgares. A poeticidade não está nos objetos observados mas no processo de
transfiguração desse objeto.

A arte surge como uma organização criativa da realidade e não apenas como seu
produto ou derivado (JUNG, 1987).

A metamorfose, se observada sob o prisma da ação da percepção, implica


momentos de apropriação em sentido bastante amplo. O termo apropriação é
sempre associado à concretude dos objetos ready made.

O artista apropria-se da realidade externa e, em gestos transformadores, constrói


novas formas.

O ato criador estabelece novas conexões entre os elementos apreendidos.


96 [...] a percepção o trabalha, dando origem a uma imagem com força maior do que
qualquer outra, que afeta a sensibilidade do artista.
[...] o artista é um receptáculo de emoções vindas não importa de onde: do céu,
da terra, de um pedaço de papel, de uma figura que passa, de uma teia de aranha
[...] (Picasso, 1985).

É a excitação causada pela sensibilidade da percepção que permite a


continuidade do processo. Esses efeitos têm, portanto, poder gerativo: são
sensações que tendem para o futuro, como discutimos, anteriormente, sob outro
ângulo.
APROVEITAMENTO DA REALIDADE
97 O objeto artístico, durante sua criação, se desprende da realidade externa à obra
que é dissolvida na arte de dominá-la e fazer dela realidade artística. O artista é
um captador de detritos da experiência, de retalhos da realidade.

João Carlos Goldenberg (1994) chama de coleta sensorial esse tempo de captação
sensível de tudo que está em torno.
100 O artista tem o poder de modificar a realidade (FICCIONAL), à media que a
constrói.

O papel da memória, nesse processo de construção de uma nova realidade, é


sempre lembrado. Borges (1984) acredita que o que se chama de invenção
literária é realmente um trabalho da memória, a imaginação é o ato criador da
memória.

A memória é ação. A imaginação não opera, portanto, sobre o vazio, mas com a
sustentação da memória.

Bunuel (1982) explica que a memória é, permanentemente, invadida pela


imaginação e pelo devaneio.

Daí vem a impossibilidade de se estabelecer fronteiras muito nítidas entre fatos


vividos e fatos lembrados, já que existe uma imaginação da realidade que
adultera ou corrige o fato vivido.
102 Barthes (1982) fala da escritura como destruição de toda origem.
103 Calvino (1990, p. 138) “quem somos nós senão uma combinação de experiências,
informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma
biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo
pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneias possíveis”.

Todo esse universo sociomaterial, que é produto da imaginação de seu autor, é


baseado na elaboração e estruturação de suas experiências, diz Johansen (1987).
104 A percepção é a ação do olhar responsável pela construção das imagens
geradoras de descobertas ou de transformações poéticas. Em seu processo de
apreensão do mundo, o artista estabelece conexões novas e originais,
relacionadas a seu grande projeto poético.

É do olhar do artista e da ação de sua mão – o manuseio de sua matéria – que


surge a obra de arte.
RECURSOS CRIATIVOS
104 Os recursos ou procedimentos criativos são esses meios de concretização da
obra. Em outras palavras, são os modos de expressão ou formas de ação que
envolvem manipulação e, consequentemente, transformação da matéria.
[...] quando falamos em percepção artística, estamos no momento chamado pelo
autor de transfiguração e os procedimentos artísticos seriam os agentes da
metamorfose ou da construção artística.
105 Ao falar dos recursos criativos, estamos na intimidade da concretude dessa
relação entre forma e conteúdo, na medida em que são esses recursos que
atuam um sob o outro, com as características do modo de ação de cada artista.
{Esses procedimentos são vistos como elementos mediadores da relação forma e
conteúdo}.
107 Quando defino recurso, estou enfatizando como aquele artista específico faz a
concretização de sua ação manipuladora da matéria chegar o mais perto possível
de seu projeto poético.

Diferentes matérias geram busca por novos modo de ação ao lidar com a mesma
matéria.
EDIÇÃO E MONTAGEM
112 As relações estabelecidas entre os trechos em um outro ambiente ficcional
possibilitam conhecer uma nova autoria. A originalidade da construção encontra-
se na montagem e na unicidade da transformação.

Novas formas surgem ao longo do processo criador, muitas vezes, a partir da


metamorfose de formas já existentes, inclusive formas do próprio artista. O novo
é uma inflexão de uma forma anterior; a novidade é, portanto, sempre uma
variação do passado (FUENTES, 1989).

113 A transformação se dá, portanto, por meio de re – significações e deformações de


formas apreendidas.

Essas novas formas estão, certamente, relacionadas com os diferentes processos


de apreensão do mundo. Encontramos, assim, a unicidade de cada obra e a
singularidade de cada artista na natureza de combinações e no modo como essas
são concretizadas.
114 O ato criador tende para a construção de um objeto em uma determinada
linguagem, mas seu percurso é, organicamente, semiótico.

Nos documentos de processos são encontrados resíduos de diversas linguagens.


Os artistas não fazem seus registros, necessariamente, na linguagem na qual a
obra se concretizará.
115 [...] Trata-se, portanto, de um movimento de tradução intersemiótica, que, aqui,
significa conversões, ocorridas ao longo do processo criador, de uma linguagem
para outra: percepção visual se transforma em palavras; palavras surgem como
diagramas, para depois voltarem a ser palavras, por exemplo.
119 Por motivos diversos, mas com forma semelhante, encontramos a foto de uma
escultura em processo de Rodin (1982, p. 37), com indicações verbais para
futuras adequações. A fotografia surge como linguagem de ligação entre dois
momentos de escultura.
121 Alberto Moravia (1991, p. 133) falando de sua experiência, mostra-nos a relação
percepção e produção da obra via linguagens. “O cinema e a pintura têm uma
grande influência sobre a minha prosa, pois eu vivo muito através dos olhos”.
CONHECENDO O MUNDO
122 A percepção artística, como já vimos, é o instante em que o artista vai tateando o
mundo com olhar sensível e singular. Sondar o mundo é uma forma de apreensão
de informações.

A percepção é, portanto, uma forma de aquisição de informação e,


consequentemente, de obtenção de conhecimento.

A percepção é um modo de conhecimento não controlado, no sentido de que não


se dá, na maioria dos casos, de modo consciente.
125 As informações São apreendidas e transformadas em nome das novas realidades
em criação. Nessa experiência cognitiva, o artista imprime seu traço, que seu
olhar impõe a tudo o que é observado. Conhecer o mundo significa selecionar,
apreender, e metamorfosear.
128 Quando discutimos a relação do artista com a matéria, foi enfatizada a relação
tensional entre propriedade e potencialidade. Esse embate reverte em
conhecimento da matéria, que envolve uma aprendizagem de suas leis e de sua
história.
No processo de transformação da matéria há, como vimos, mútua incitação.
Nessa troca recíproca de influência, artista e matéria vão se conhecendo, sendo
reinventados e seus significados são, consequentemente ampliados.
129 Essa forma de conhecimento, que o artista adquire no processo, é plasticamente
expressa no percurso de experimentação, isto é, no movimento encontrado ao se
estabelecer relações entre as diferentes versões de uma obra.

O ato criador como uma permanente apreensão de conhecimento é, portanto,


um processo de experimentação no tempo.
130 Quando se apresentou o ato criador como um processo que tende para
concretização do projeto poético do artista, foi enfatizado que esse projeto não é
claramente conhecido e que se define enquanto a obra vai sendo executada.

O processo é o meio pelo qual o artista se aproxima-se de seu projeto poético.


133 Tudo é possível e provável. Tempo e espaço não existem. Sobre a frágil base da
realidade, a imaginação tece novas formas. STRINDBERG

A verdade esta, muitas vezes, presente nos depoimentos dos artistas sobre suas
obras.

Cientistas, filósofos e artistas falam sobre verdade. Estamos conscientes, no


entanto, de que a obra de arte tem características próprias. É exatamente ai que
reside nossa preocupação: a natureza peculiar da obra de arte.

A discussão sobre a verdade da obra de arte, mais uma vez, está inserida na
continuidade do processo; assim, trata-se de uma verdade mutável, não absoluta
ou final.
134 A verdade da obra tem um comprometimento diferente daquele da verdade
científica: é uma ficção regida pelo projeto poético do artista.

Peirce (1992) faz distinção entre o real e fictício. Real é aquilo que tem as
características que tem, independente do fato de um dado número de indivíduos
pensar que essas características existam ou não. Já o fictício é aquilo cujas
características dependem daquelas que alguém lhe atribuiu, por exemplo, o
universo fictício imaginado pelo escritor.
Esse artefato é um microcosmo com suas próprias leis, uma composição contida
em si mesma.
137 Rosenfeld (1985) fala que a verdade em obras de ficção tem significado especial:
designa com frequência qualquer coisa como genuinidade e autenticidade,
relacionadas à coerência interna no que tange ao mundo imaginário.

A construção de verdades ficcionais está, por outro lado, necessariamente, ligada


ao engendramento de novas formas, ou seja, a construção de um novo objeto
que tem a sua própria realidade.

A obra cria sua própria realidade, dando a sensação de que o artista só cumpre
ordens (JOÃO UBALDO RIBEIRO 1995). [...] A verdade da obra é tecida na
construção de sua realidade e habita a obra concretamente.

Outros criadores constatam esse poder da realidade em construção Buñuel


(1982) fala da verdade da arte se expressando por meio de mentiras que, por sua
vez, transformam-se em verdades, e da tentação do artista de acreditar nesse
mundo ficcional.
138 O ato criador mostra-se como uma profunda investigação da verdade do artista.
O artista não encontra paz, confessa Lasar Segall (1984), pois há uma profunda
verdade que o inquieta interiormente e que ele procura expressar integralmente.

O criador estabelece, portanto, uma ligação entre a verdade da obra e sua


própria verdade.
139 Uma das questões mais surpreendente, no que diz respeito à natureza da
verdade da arte, é que essa realidade com leis próprias, ao se desprender do
mundo que lhe é externo, aproxima-se mais dele.

A obra de arte, na tentativa de revelar o mundo que o artista percebe, conhece e


apreende, coloca seu receptor mais próximo da realidade que lhe é externa.

Os universos ficcionais não pertencem à realidade externa à obra, no entanto,


oferecem seu mais autêntico testemunho.

A verdade da arte, com realidade e linhas de forças próprias, liberta-se das leis
externas por de uma ação transformadora, sem abandonar a realidade que
alimenta.
143 Encontramos testagens em rascunhos, estudos, croquis, plantas, esboços,
roteiros, maquetes, copiões, projetos, ensaios, contatos, story-boards. A
experimentação é comum, a unicidade está no modo como as testagens se dão,
na materialidade das opções e nos julgamentos que levam às escolhas.
148 A experimentação está, portanto, relacionada ao conceito de trabalho contínuo.
Trabalho mental e físico agindo, permanentemente um sob o outro.

A testagem está, quase sempre, associada à fisicalidade dos documentos de


processo , no entanto, devemos lembrar dos muitos momentos de
experimentação mental,[...]
150 No momento de qualquer tipo de testagem, novas realidades são configuradas,
excluindo outras. A experimentação é um espaço de possibilidades [...]
152 Ao observar diferentes processos de criação, encontramos também inúmeras
obras abortadas. São projetos que não se realizaram, embora tentativas tenham
sido feitas.

As causas, explicações ou razões para as histórias dessas quase obras, na maioria


dos casos, inatingíveis para o observador de processos.

São formas inacabadas que podem ser definitivamente abandonadas ou um dia


retomadas, gerando novas formas.
153 Vargas Llosa(1985, p. 24) explica que a arte de escrever é uma arte complexa na
qual além da inteligência, da razão e do conhecimento do autor intervém todo
um lado obscuro da personalidade feito de instinto, experiências reprimidas e de
estranhos apetites sobre o qual ele não tem controle.
154 Estamos, portanto, no universo da concretização do projeto poético do artista,
em que a experimentação mostra-se como seu momento de exploração.
156 Quando se convive com documentos de processo, conseguimos nos aproximar da
intricada trama de motivos que envolvem a experimentação. Muitas dessas
possibilidades, aqui apontadas, se entrelaçam em uma rede de relações.

O processo de criação, como processo de experimentação no tempo, mostra-se,


assim, uma permanente e vasta apreensão d conhecimento.

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