Fichamento de Gesto Inacabado
Fichamento de Gesto Inacabado
Fichamento de Gesto Inacabado
Editora:
Annablume, 2008.
Página CITAÇÃO
INTRODUÇÃO
12 A crítica genética é uma investigação que vê a obra de arte a partir de sua
construção. Acompanhado seu planejamento execução e crescimento, o crítico
genético se preocupa com a melhor compreensão do processo de criação.
[...] percurso é o rastro deixado pelo artista e pelo cientista em seu caminhar em
direção a obra entregue ao público.
Para que esses estudos avancem, o parâmetro tem que deixar de ser a palavra e
ser deslocado para alguns aspectos de natureza geral.
17 Nos estudos de crítica genética de literatura, o termo manuscrito já não era
usado apenas com seu significado restrito de “escrito a mão”.
RASTROS
19 O olhar genético vai além da mera observação curiosa que esses documentos
podem aguçar: um voyeur que entra no espaço privado da criação. O crítico
genético narra às histórias das criações. os vestígios deixados pelos artistas
oferecem meios para captar fragmentos do funcionamento do pensamento
criativo.
O contato com esse material nos permite entrar na intimidade da criação artística
e assistir - ao vivo – a espetáculos, às vezes, somente intuídos e imaginados.
O olhar científico procura por explicações para o processo criativo que esses
documentos guardam.
Uma visão simplificadora do gesto criador mostra um percurso que tem sua
origem em um insight arrebatador, que se concretiza ao longo do processo
criativo. Um caminho do caos inicial para a ordem que a obra oferece.
[...] sob o prisma do movimento. Esses materiais nos mostram, assim, a dimensão
do ato criador no universo da ação. Um diário, por exemplo, lembra Klee (1990,
p. 74), não é uma obra de arte, mas uma obra do tempo. Pode-se, portanto
afirmar que esses documentos guardam o tempo contínuo e não linear da
criação.
Ao introduzir na crítica essa noção de tempo, seus pesquisadores passam a lidar
com a continuidade, que nos leva à estética do inacabado.
MORFOLOGIA DA CRIAÇÃO
21 As pesquisas tinha o propósito de entrar na singularidade de um processo
criativo, ou seja, envolver-se na aura da unicidade de cada individuo.
OLHAR
23 No percurso da literatura para as artes em geral, e das artes para a ciência, a
crítica genética está chegando ao conceito de processo em sentido bastante
amplo. Seja este concretizado na arte, na ciência ou na sociedade como um todo.
Gestos construtores que, por sua eficácia, são, paradoxalmente, aliados a gestos
destruidores: constrói-se à custa de destruições
“Os quadros são uma soma de destruições. Eu faço uma pintura e em seguida a
destruo. Mas, no fundo, nada é perdido. O vermelho que retirei de um lugar
qualquer pode ser encontrado em uma outra parte do quadro,” explica Picasso.
(1985, p.13)
TRAJETO DE TENDÊNCIAS
28 O que é um trajeto de tendência? Muitos criadores referem-s a essa espécie de
rumo vago que direciona o processo de construção de suas obras. Peter Brook
(1994) descreve essa tendência como uma intuição amorfa, que dá senso de
direção; Borges (1984), como um conceito geral e Murray Louis (1992), como
uma premissa geral. O trabalho de criação não passa da perseguição a miragem,
para Maurice Bèjart (1981).
A tendência mostra-se como fio condutor maleável, ou seja, uma nebulosa que
age como uma bússola. Esse movimento dialético entre vagueza e rumo é que
gera trabalho e move o ato criador.
30 [...] O dramaturgo Edward Albee explica essa relação, de modo bastante
contrastante. “Nenhum escritor sentaria e colocaria uma folha de papel na
máquina e começaria a escrever uma peça, a não ser que soubesse sobre o que
está escrevendo. Mas ao mesmo tempo, o processo de escritura tem haver com o
ato de descoberta. Descobrir sobre o que está escrevendo” (1983, p. 341). A
criação vai acompanhando a mobilidade do pensamento.
Fellini (1986ª, p. 92) diz que sabe aonde quer chegar, mas a fidelidade ao que
havia pensado deixa uma margem às possibilidades cotidianas dos encontros e
dos enriquecimentos. “Não se pode contar uma viagem sem antes realizá-la.
Quando muito se poderá dizer que se tem a intenção de fazer esta viagem.”
35 Discutir a intervenção do ocaso no ato criador vai além dos limites da ingênua
constatação da entrada, de forma inesperada, de um elemento externo ao
processo.
37 Em toda prática criadora há fios condutores relacionados à produção de uma
obra específica que, por sua vez, atam a obra daquele criador, como um todo.
São princípios envoltos pela aura da singularidade do artista; estamos, portanto,
no campo da unicidade de cada indivíduo. São gostos e crenças que regem seu
modo de ação: um projeto pessoal, singular e único.
Bakhtin (1981, p. 29) afirma que “as grandes descobertas do gênio humano só
são possíveis em condições determinadas de épocas determinadas, mas elas
nunca se extinguem nem se desvalorizam juntamente com as que geraram”.
O projeto poético também está ligado a princípios éticos de seu criador: seu
plano de valores e sua forma de representar o mundo. Pode-se falar de um
projeto ético caminhando lado a lado com o grande propósito estético do artista.
Chekhov (1986, p. 39) explica esses valores: “Cada um de nós possui suas próprias
convicções, suas próprias visão de mundo, seus próprios ideais e atitude ética
perante a vida. Esses credos profundamente enraizados e, com frequência,
inconscientes constituem parte da individualidade do homem e de seu grande
anseio de livre expressão”.
40 Não há, portanto, uma teoria fechada e pronta anterior ao fazer. A ação da mão
do artista vai revelando esse projeto em construção. As tendências poéticas vão
se definindo ao longo do percurso: são leis em estado de construção e
transformação.
A partir do que o artista quer e daquilo que ele rejeita, conhecemos um pouco
mais de seu projeto.
O artista não cumpre sozinho o ato da criação. O próprio processo carrega esse
diálogo entre o artista e o receptor. Os leitores são seres que se entregam com
candura e entusiasmo à magia e à fascinação do poeta. Reações sem as quais não
seria possível as obras de arte (Sábato, 1982, p. 124).
49 Quando se fala no aspecto comunicacional do ato criador, não se pode deixar de
lembrar do contato do artista com a recepção crítica. [...] o trabalho do crítico é,
desse modo, parte integrante do processo.
Percebe-se a procura, por parte do artista, de uma crítica sensível que ultrapasse
os limites das relações pessoais e que, principalmente, se revele como forma de
um real diálogo.
50 Não se pode deixar de mencionar, também, a complexidade envolvida na inter-
relação de tendências no caso dos processos coletivos.
51 Não há dúvida de que essa complexidade existe, mas é importante ressaltar que
o caráter coletivo de todas essas manifestações artísticas é parte integrante de
sua materialidade. O que está sendo ressaltado é que, nesses casos, sem a
interação a obra não se concretiza.
52 Kurosawa (1990, p. 275) ilustra, com clareza, o vínculo entre a tendência e a
materialização de uma obra. [...] “Meus filmes emergem de meu próprio desejo
de dizer algo em particular, numa época particular. A raiz de qualquer projeto
cinematográfico situa-se, para mim nesse desejo interior de expressar algo. O que
nutre essa raiz e a faz prolongar-se em uma árvore é o roteiro. O que faz a árvore
produzir flores e fruto é a direção”.
Essas imagens que agem sobre a sensibilidade do artista são provocadas por
algum elemento primordial. Uma inscrição no muro, imagens de infância, um
grito, [...] experiências da vida cotidiana: qualquer coisa pode agir como essa gota
de luz.
O artista, como seu primeiro receptor, é o primeiro a ser atingido por esse efeito.
[...] Kafka (1985, p. 102) sentia que sua Metamorfose em criação era “repugnante
ao extremo”.
Ao mesmo tempo, o conhecimento das leis dadas pela natureza da matéria age
sobre essa tendência concretizada no projeto poético do artista, gerando
possíveis adaptações diante da impossibilidade de superação dos limites que lhe
foram impostos. Fayga Ostrower (1978, p. 32) diz que “cada materialidade
abrange certas possibilidades de ação e outras tantas impossibilidades”.
O processo criativo é palco de uma relação densa entre o artista e os meios por
ele selecionados, que envolve resistência, flexibilidade e domínio.
FORMA E CONTEÚDO
73 Não se pode tratar forma e conteúdo como entidades estanques, se, por um lado,
vê-se o conteúdo determinando ou falando através da forma, isto é, a forma
como um recipiente de conteúdo, não se pode negar que a forma é a própria
essência do conteúdo.
A forma é o acesso que o artista tem a seu projeto poético, de natureza geral.
O efeito final causado por essas modificações recai sobre a rapidez do texto e a
aceleração do fluxo narrativo. O que se observa, portanto, é que formas
representam conteúdos.
76 Há casos de criação frustrada, quando esses dois polos não se encontram.
Instantes de conteúdo sem forma, como Paul Klee (1990, p. 169 e 266) anota em
seu diário: “É como se eu estivesse prenhe de coisas prestes a ganhar forma e
agora eu posso ousar a dar forma ao que levo na alma”. O poeta russo
Mandelstam (citado por VYGOSTKY, 1987) conta: esqueci a palavra que pretendia
dizer ao meu pensamento privado de sua substância volta ao seu reino de
sombras.
O diário de Schlemmer (1987) mostra também essa dialética: “eu tinha a forma,
mas me faltava a ideia. Inicialmente foi o inverso. Agora tenho as mãos cheia e o
coração vazio”.
A relação entre forma e conteúdo não pode ser definida, portanto, por uma
dicotomia. Investigar onde começa um e o outro termina é descobrir a própria
natureza a arte.
O autor de uma obra está presente no todo da obra. Não será encontrado em
nenhum elemento separado do todo e menos ainda no conteúdo da obra, se
estiver isolado do todo. O autor se encontra num momento inseparável em que
conteúdo e forma se fundem.
77 O processo de criação mostra o trabalho do artista como partes e, essa
intervenção aparentemente parcial atua sobre o todo.
Essa relação entre o que se tem e o que se quer reverte-se em contínuos gestos
aproximativos – rasuras que buscam completude.
O artista sabe, por outro lado, que “o homem solitário pode preparar muitas
coisas futuras, pois suas mãos erram menos” (Cecília Meireles 1980), talvez
porque seja fechado na sua solidão que o ser de paixão prepara suas explosões e
façanhas (BACHELAND, 1978).
O lugar ideal para escrever é “uma ilha deserta pela manhã e a grande cidade à
noite. De manhã, preciso de silencio. À noite, um pouco de álcool e bons amigos
para conversar. Tenho sempre a necessidade de estar em contato com as pessoas
da rua e bem a par da atualidade”, descreve Gabriel Garcia Marquez (1982, p.
33).
DESPRAZER E PRAZER
82 O desprazer do ato criador está ligado ao fato de que o artista encontra, ao longo
do percurso, problemas infinitos, conflitos sem fim, provas, enigmas,
preocupações e desesperos que fazem do “ofício do poeta um dos mais incertos
e cansativos que possa existir”.
Surge, assim, o artista que enfrenta dificuldades com angústia e busca paciência,
em estado de aparente desequilíbrio,[...]
85 A criação pertence ao mundo do prazer e ao universo lúdico: a um mundo que se
mostra sem regras. Se estas existem, são estipuladas pelo artista, o leitor não as
conhecem.
AÇÃO TRANSFORMADORA
88 O percurso criativo observado sob o ponto de vista de sua continuidade coloca os
gestos criadores em uma cadeia de relações [...] O ato criador aparece como um
processo inferencial, na medida em toda a ação está relacionado a outras ações e
tem igual relevância, ao se pensar a rede como um todo.
Ao mesmo tempo, não se pode afirma que haja realidades poéticas e realidades
vulgares. A poeticidade não está nos objetos observados mas no processo de
transfiguração desse objeto.
A arte surge como uma organização criativa da realidade e não apenas como seu
produto ou derivado (JUNG, 1987).
João Carlos Goldenberg (1994) chama de coleta sensorial esse tempo de captação
sensível de tudo que está em torno.
100 O artista tem o poder de modificar a realidade (FICCIONAL), à media que a
constrói.
A memória é ação. A imaginação não opera, portanto, sobre o vazio, mas com a
sustentação da memória.
Diferentes matérias geram busca por novos modo de ação ao lidar com a mesma
matéria.
EDIÇÃO E MONTAGEM
112 As relações estabelecidas entre os trechos em um outro ambiente ficcional
possibilitam conhecer uma nova autoria. A originalidade da construção encontra-
se na montagem e na unicidade da transformação.
A verdade esta, muitas vezes, presente nos depoimentos dos artistas sobre suas
obras.
A discussão sobre a verdade da obra de arte, mais uma vez, está inserida na
continuidade do processo; assim, trata-se de uma verdade mutável, não absoluta
ou final.
134 A verdade da obra tem um comprometimento diferente daquele da verdade
científica: é uma ficção regida pelo projeto poético do artista.
Peirce (1992) faz distinção entre o real e fictício. Real é aquilo que tem as
características que tem, independente do fato de um dado número de indivíduos
pensar que essas características existam ou não. Já o fictício é aquilo cujas
características dependem daquelas que alguém lhe atribuiu, por exemplo, o
universo fictício imaginado pelo escritor.
Esse artefato é um microcosmo com suas próprias leis, uma composição contida
em si mesma.
137 Rosenfeld (1985) fala que a verdade em obras de ficção tem significado especial:
designa com frequência qualquer coisa como genuinidade e autenticidade,
relacionadas à coerência interna no que tange ao mundo imaginário.
A obra cria sua própria realidade, dando a sensação de que o artista só cumpre
ordens (JOÃO UBALDO RIBEIRO 1995). [...] A verdade da obra é tecida na
construção de sua realidade e habita a obra concretamente.
A verdade da arte, com realidade e linhas de forças próprias, liberta-se das leis
externas por de uma ação transformadora, sem abandonar a realidade que
alimenta.
143 Encontramos testagens em rascunhos, estudos, croquis, plantas, esboços,
roteiros, maquetes, copiões, projetos, ensaios, contatos, story-boards. A
experimentação é comum, a unicidade está no modo como as testagens se dão,
na materialidade das opções e nos julgamentos que levam às escolhas.
148 A experimentação está, portanto, relacionada ao conceito de trabalho contínuo.
Trabalho mental e físico agindo, permanentemente um sob o outro.