Dissertação - Fábio Dantas Rocha - Versão Final - P PDF
Dissertação - Fábio Dantas Rocha - Versão Final - P PDF
Dissertação - Fábio Dantas Rocha - Versão Final - P PDF
GUARULHOS
2018
FÁBIO DANTAS ROCHA
GUARULHOS
2018
Rocha, Fábio Dantas.
307 f.
Título em inglês: Out o f the shadows: class and race in São Paulo post-
abolition (1887-1930)
I. Título
Fábio Dantas Rocha
Q rj
>IqjmjJI J ______________________________________
1---------- 1 r n
Ihof. Dr. Jaime Rodrigues
Universidade Federal de São Paulo
Poucas estradas são retas e nenhum caminho é vazio, ainda que o percurso nos pareça
solitário. Por isso a minha gratidão a tanta gente que me deu amparo intelectual e espiritual ao
longo desses quase três anos de mestrado. Antes de mais nada, devo agradecer à Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Sem o auxílio da bolsa de mestrado
concedida à mim, tenho certeza de que não conseguiría me dedicar tão profundamente em
minhas leituras, análises de fontes e escrita.
E, enquanto li, analisei e escrevi, minha vida se transformou. Como todo mundo,
precisei me desdobrar para conseguir frequentar arquivos que só funcionam em dias da semana
e em horários comerciais. Foram meses lendo caixas e mais caixas dos mais diversos
documentos. Dias que iluminaram meu caminho, ao mesmo tempo em que nublaram minhas
certezas. Mas, junto deles, outras coisas boas aconteceram. A primeira delas foi você, Fernanda
Fragoso Zanelli. Foi ao longo do mestrado que topamos enfrentar o desafio de vivermos juntos,
de dividirmos esperanças e incertezas. Junto com os capítulos que se avolumavam,
conseguimos reformar o banheiro, organizar nosso casamento, a festa, a lua de mel... nossas
vidas. Com você aprendi ser mais humano, dividi minhas angustias e solucionei questões que
emperravam o andamento da pesquisa. Você, assim, tão dona de si, ensinou-me a acreditar.
Esperta, inteligente, perspicaz e dona de uma sensibilidade sem igual, apoiou-me nos momentos
de crise, sempre acreditando em mim. Sem você, não podería entender os livros que li e as
fontes que transcreví. Boa parte das interpretações que apareceram nesse trabalho, nasceu de
nossas discussões. Mas você me ensinou mais do que isso. Foi vivendo ao seu lado que aprendi
sobre a responsabilidade que estar vivo nos impõe. O que transcende os afazeres cotidianos, e
que só aumentou com o fruto de nosso amor. Nosso bebê é o exemplo do quanto você me
ensinou a fazer bem ao mundo, do quanto temos responsabilidade com as pessoas, do quanto
estar vivo é estar com o outro e lutar por um mundo mais justo. Olha, por hora, deixo de passar
tanto tempo em frente aos livros e ao computador, para, junto de você, andarmos pelo mundo,
vivendo e se afetando pelas pessoas e pelas vontades por democracia.
Falando em vida, não dá para esquecer de meus pais. A minha mãe, Elizete Maria Dantas
Rocha, dedico cada uma das páginas aqui escritas. Espero que goste, mãe. Você é a leitora mais
assídua de meus textos. Com você também debati boa parte do que escrevi. Meu pai, José
Vianna da Rocha Junior, do seu jeito, soube me incentivar. Ligava-me sempre para perguntar
se o mestrado estava indo bem e finalizava: Estude! A você, pai, devoto minha admiração. E,
como família é família, eu não posso deixar de dedicar esse trabalho ao meu primo César
Miranda Taccini. Um leitor voraz e meu amado revisor. Sua opinião é importante para mim,
espero que tenha gostado. Edileuza Fragoso Zanelli, você também fez parte desse percurso. Sua
história de vida me inspirou e sua ajuda foi imprescindível durante o momento mais crítico de
escrita. Tal qual você, Walter Zanelli, com seus conselhos, soube dar asas à minha imaginação
e um norte para onde eu deveria seguir. Tenho a sorte de tê-los como sogros. Nutro um amor
muito grande por todos vocês.
Ao longo desses anos, várias(os) professora(es) me ajudaram. Mas foi meu orientador,
o professor Jaime Rodrigues, quem, com toda a certeza, mais me auxiliou. São pelo menos sete
anos que seu caráter, suas perguntas perspicazes e sua paciência me dão o amparo intelectual,
ético e profissional inestimável. A você, Jaime, também dedico esse trabalho. Desde 2011
venho pensando sobre o que acabo de escrever, e suas respostas, problematizações e indicações
sempre estiveram disponíveis para o meu amadurecimento como historiador. Muito obrigado.
Outras pessoas também ajudaram muito e, talvez, nem façam ideia disso. Foram todos
meus professores ao longo da graduação e do mestrado. Desde cedo aprendi qual a
responsabilidade social de ser professor e historiador. Isso não seria possível sem a Escola de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo. Meu
agradecimento especial para Lucília Santos Siqueira que, sem ela, eu não sabería da existência
dos processos-crime que utilizei. A Edilene Teresinha Toledo, Fernando Atique e Luis Antonio
Coelho Feria, agradeço as indicações. O professor Luigi Biondi, com seu jeito brincalhão e
provocador, deu o pontapé inicial para eu me questionar se São Paulo era mesmo só italiana.
Além disso, na ocasião em que fez a leitura de meu trabalho, contribuiu fortemente para a
relação que tentei fazer entre raça e classes sociais. Por fim, agradeço à Denilson Botelho de
Deus, com quem aprendi muito e quem me deu a oportunidade de escrever um dos artigos que
mais gostei.
Sem o professor Juliano Custódio Sobrinho eu pouco sabería como lidar com minhas
fontes. Suas indicações metodológicas e bibliográficas possibilitaram a escrita desse texto, por
isso, dou-lhe todo o meu reconhecimento. Ao professor Jeffrey Lesser também deixo meus
agradecimentos. A conversa que tive com ele foi fundamental para que eu pudesse ampliar e
entender as fontes disponíveis sobre São Paulo do início do século XX. Ele e a professora
Barbara Weinstein não tem responsabilidade alguma sobre meus erros, mas os acertos não
seriam possíveis sem eles. Possivelmente ela não se recorde de nossa conversa quando esteve
no Brasil. Foi uma conversa rápida, dessas de corredor, mas eu não posso esquecer das
observações metodológicas que fez sobre as minhas pretensões investigativas.
Ana Flávia Magalhães Pinto, professora e historiadora formidável, sem saber, ensinou-
me sobre muita coisa. Desde o início de minha pesquisa busquei participar de mesas e simpósios
organizados por ela e, assim, comentando minhas apresentações, educou-me sobre como
entender e sentir o mundo. O mesmo se deu com a professora Lúcia Helena Oliveira Silva, que,
com seu otimismo, vez ou outra me ajudou a suportar as cargas de pesquisa, demonstrando-me
que vale o sacrifício. A mesma honra tive ao conhecer a professora Paula Ferreira Vermeersch.
A todas elas, minha gratidão!
Agora, parando e olhando para trás, vejo nitidamente que a solidão reinante das páginas
do word não passou de mera ilusão. No percurso, conhecí grandes amizades que, sem o auxílio,
não daria conta das responsabilidades de entrega. Michele Dias e Bruna Prudêncio, além de
historiadoras fantásticas, são pessoas incríveis que sempre estiveram disposta a me ajudar.
Muito obrigado. Com minha turma de mestrado, fico com as mais prazerosas lembranças.
Foram tempos de grandes aprendizados que, sem a esperteza e o tino historiográfico de
Demetrio Quiros Bello Junior, Gustavo Moura, Igor Luis Seemann, Lilian Falcão e Regis
Munhoz, eu pouco aproveitaria o curso.
E por falar em lembranças gostosas, os tempos de graduação foram repletos delas. Adel
Igor dos Santos Cangueiro Romanov Pausini, saudades de nossas conversas sociológicas sobre
história (ou seria historiográficas sobre a sociologia?). Carlos Eduardo Malaguti Camacho, o
mundo precisa de mais pessoas como você! Felipe Souza Melo, sem sua eterna curiosidade
sobre o mundo, eu pouco aprendería. A perspicácia e amizade de vocês me ensinaram que a
mesa de estudo deve estar integrada à vida. Vanessa Xavier Nadotti, sua amizade e paciência
me ajudaram a segurar as barras cotidianas. Fernando e Lilian, como enchi o saco de vocês com
minha pesquisa. Esse trabalho é um pouco de todos vocês.
Pois é, a jornada foi longa. Desde 2016, Alice, Bob, Júlio, Klaus, Marcela, Nana, Ted e
Victor foram o suporte que precisei durante o mestrado. Amigos de longa data, sem vocês,
madrinhas e padrinhos, o mundo seria chato. Nossas cervejas e piadas ajudaram a suportar tudo
o que foi difícil.
Por fim, não posso me esquecer das pessoas e instituições que me ajudaram no processo
de coleta e análise das fontes. Bruna, Fernanda, Gustavo, Igor e Keila, muito obrigado pela
ajuda. E, com todo o gliter e amô, meu agradecimento mais do que especial à Inan Alves
“Pintosa” . Amiga, sei que seu caminho será brilhante. Marcelo Antônio Chaves, diretor do
Centro de Difusão e Apoio à Pesquisa do Arquivo Público do Estado de São Paulo, ganhou toda
a minha admiração. Durante esse tempo todo, de idas e vindas ao arquivo, ganhei um amigo
inestimável e aprendí muito com suas indicações. Meu muito obrigado.
Cada um, a seu jeito, contribuiu com cada linha escrita nessa dissertação. A vocês,
dedico tudo o que sou e o que quero ser.
RESUMO
A presente dissertação de mestrado tem como tema central a análise das experiências de
classe da população negra de São Paulo entre os anos de 1890 e 1930. Para tanto, foi preciso
entender quais foram os padrões ideológicos informaram suas ações e os contextos de conflitos
entre eles e a populações branca e pobre. Ao examinarmos essas experiências, foi possível
entender que os anos da Primeira República em São Paulo estiveram relacionados à um
processo de construção oficial de uma identidade paulistana pautada pela presença branca na
cidade. E que esse processo, além de se reformular constantemente durante os anos
republicanos, herdou padrões ideológicos informados pelos anos de desestruturação da
instituição escrava.
The main subject of the present master's thesis is the analysis of the class experiences
of the black population of São Paulo between 1890 and 1930. For that it was necessary to
understand what the ideological pattems informed their actions and the contexts of conflicts
between them and white and poor populations. By examining these experiences, it was possible
to understand that the years of the First Republic in São Paulo were related to a process of
official construction of a Paulista identity based on the white presence in the city. And that this
process, besides constantly reformulating during the republican years, inherited ideological
pattems informed by the years of the slave institutioris disorganization.
Keywords: Abolition. Post-abolition. First Republic. Housing Policies. World of Work. Racial
identity. Race and Class. Whiteness. Urbanization. São Paulo.
LISTA DE MAPAS
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO......................................................................................................................15
CAPÍTULO 1: ESCRAVIDÃO E PÓS-ABOLIÇÃO: CONECTANDO PONTOS 32
1.1. Projetos emancipacionistas, imigrantistas e abolicionistas...........................................45
1.2. Pela liberdade, o caos: as lutas sociais pela abolição na cidade de São Paulo...........48
1.3. Uma perspectiva aterradora: a transformação do trabalho e das relações com o
mundo................................................................................................................................................53
1.4. “ São especialíssimas as circunstâncias da Província” : segurança e tranquilidade
pública...............................................................................................................................................56
1.5. “De encontro aos negros fugidos” : a abolição conquistada..........................................57
1.6. De quem é a abolição?....................................................................................................... 66
1.7. A abolição é a nota do d ia !................................................................................................77
CAPÍTULO 2: A MODERNIDADE REPUBLICANA E SUAS CORES: IMIGRAÇÃO
E IDENTIDADE EM UMA SÃO PAULO NEGRA 99
2.1. Nota introdutória..................................................................................................................... 99
2.2. Uma cidade cosmopolita.......................................................................................................100
2.3. Por uma cidade também negra.............................................................................................125
2.4. Territorialidades n eg ras........................................................................................................135
2.5. Uma nova cidade para novos homens.................................................................................151
CAPÍTULO 3: A MODERNIDADE NÃO É PARA TODOS: REGULAMENTAR A
VIDA DOS MORADORKS DA Cl DADK 158
3.1. Morar também tem cor: classe e raça sob o mesmo te to ................................................165
3.2. Eu também tenho onde morar: por uma perspectiva negra da luta de c lasse............... 185
CAPÍTULO 4: “VÊM DE LONGE PARA TRABALHAR”: TRABALHO, CLASSE E
RAÇA NA CIDADE GRANDE 205
4.1. O capital toma conta de tudo: as condições econômicas de São Paulo e a reestruturação
do seu mercado de trab alh o ........................................................................................................ 216
4.2. Provisoriedade como regra: padrões ocupacionais de brancos e negros em São Paulo.
231
4.3. Fazendo de tudo para viver: trabalho e precariedade entre os gatunos e v ad io s.........237
CONSIDERAÇÕES FINAIS 255
FONTES........................................................................................................................................... 262
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 274
A N E X O S .......................................................................................................................................... 286
15
APRESENTAÇÃO
Como acontece com a maioria das pesquisas científicas, essa dissertação de mestrado
teve sua origem alguns anos antes de sua idealização. Nos idos de 2011, fortemente influenciado
por um brilhante artigo das historiadoras Ana Maria Lugão Rios e Hebe Maria Mattos, tive a
pretensão de começar a estudar as visões da última geração de escravizados brasileiros. Meu
intuito era o de aprender com seus planos de vida e suas intenções de construir seus destinos
após o 13 de maio de 1888. Aquele texto foi seminal. Ali ficou evidente como o estudo sobre a
República pode ser enriquecido desde a perspectiva do pós-Abolição como um problema
histórico crucial para o entendimento da sociedade brasileira.1
De lá para cá, foram quase sete anos em que me dediquei à leitura de uma bibliografia
que continuará me auxiliando no percurso de minhas investigações. Desde o início da trajetória,
meu objetivo era entender como a população egressa da escravidão vivenciou o pós-Abolição
na cidade de São Paulo. Estudante jovem, sem muita ciência das dificuldades que encontraria
pela frente e sem conhecer muitas das tipologias documentais, passei a procurar por mulheres
e homens negros entre as fontes sobre a cidade no início do período republicano. Não os
encontrei de primeira e, aos poucos, fui acreditando que não os encontraria. Topei com uma
infinidade de gente italiana, espanhola e portuguesa. Os nacionais, que apareciam entre os
jornais e registros oficiais, chamavam minha atenção, mas não conseguia saber se eram brancos
ou negros.
Foi nesse tempo que li pela primeira vez Nem tudo era italiano, de Carlos José Ferreira
dos Santos, e a crise de estudante de graduação em busca de uma saída para seus problemas de
pesquisa aumentou.2 Fiquei às voltas com aquele texto, que investigou tudo o que eu gostaria
de estudar, demonstrou os limites que eu mesmo havia encontrado nas fontes e, para meu
desespero, apresentou soluções brilhantes para as encruzilhadas investigativas.
1 RIOS, Ana Maria; MATTOS, Hebe Maria. "O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas".
TOPOI, Rio de Janeiro, RJ, UFRJ/Programa de Pós-Graduação em História Social, vol. 5, n° 8, pp. 170-198, jan.-
jun./2004.
2 SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano: São Paulo epobreza: 1890-1915. 3a ed., São Paulo:
Annablume/Fapesp, 2008.
16
Foi aí que meus planos mudaram. Seguindo as sugestões de meu orientador, comecei a proceder
a um levantamento bibliográfico sobre o pós-Abolição brasileiro. Escolhendo 7 diferentes
programas de pós-graduação em História, selecionei 24 dissertações e teses defendidas entre
2001 e 2010. Nesse trabalho, tentei demonstrar que aquela nova produção, mesmo tendo íntima
relação com a história social da escravidão e do processo de sua extinção, surgia com uma
grande autonomia temática ao lidar com as questões da cidadania negra do mundo pós-
emancipação.3
Assim, aos poucos, fui tendo uma ideia das tendências historiográficas e tive a
impressão de que minhas angústias sobre a originalidade temática eram banais e comuns. Lendo
as pesquisas dos mais diversos autores, junto com uma bibliografia que não parava de crescer,
dei-me conta de que as abordagens de assuntos correlatos não os esgotavam; ao contrário,
aprofundava-se o conhecimento sobre a sociedade brasileira nos primeiros anos após o fim da
escravidão. Os estudos e as temáticas não paravam de aumentar: educação, organização
política, experiência e agência de mulheres e homens negros que, depois de finda a escravidão,
tiveram que construir suas vidas em qualquer parte do Brasil. Hoje, ao término de minha
dissertação, começo a entender os motivos da sugestão de Jaime Rodrigues. Frente à uma
bibliografia que se avoluma a cada dia, o que ele quis me demonstrar, para além de necessidade
de mais leituras sobre o assunto, foi a formação de uma geração de historiadoras e historiadores
que, cada um a seu modo, estavam reformulando o conhecimento sobre o país.
Minhas conclusões ainda eram incipientes e não indicavam um caminho para interpretar
a cidade de São Paulo no pós-Abolição. Com conclusões teóricas demais, as singularidades
históricas da cidade e da vida dos seus moradores a partir do 14 de maio me escapavam. Foi o
Jaime, novamente, quem me indicou o caminho das pedras:
3 ROCHA, Fábio Dantas. E depois do 13 de maio?: tendências historiográficas para o estudo do pós-abolição no
Brasil (2001-2010). 2014. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História). Universidade Federal de São
Paulo - Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, SP, 2014.
17
Jaime tinha razão, já estava na hora de pensar sobre as experiências de gente como
Manoel Victor Ribeiro e Leonor Augusta Ribeiro, moradores no Brás que, em 1895, se
depararam com parte de sua história nas páginas dos jo rn a is4 Eram casados havia dezessete
anos quando, cansada dos maus-tratos que Manuel Vitor lhe dispensava, Leonor, “brasileira”
ocupada em “serviços domésticos” e sabendo ler e escrever, encerrou sua péssima vida conjugal
indo “alugar-se” como criada em casas de família.5 A história terminaria aí, não fossem dois
dos cinco filhos do casamento. Manoel, achando justo em bater em sua mulher, provavelmente
a proibiu de conviver com seus filhos menores, Heitor e Raul, de seis e quatro anos. A história
é longa, as testemunhas foram muitas, mas o que salta aos olhos é que, contra Manuel,
brasileiro, “empregado na superintendência de Obras Públicas”, os testemunhos de vários
portugueses e de um espanhol contam a versão de um homem que maltratava sua esposa e
deixava seus filhos ao léu, passando fome. O desenrolar do processo evidencia que o brasileiro
era agredia Leonor, mas isso não entrou em juízo. O que estava em jogo, para a mulher, era a
guarda de Heitor e Raul.
Nem a cor de Leonor nem a de Manoel foram mencionadas no processo. Mas isso não
impede deduções. Todos os envolvidos, testemunhas ou réu, tiveram suas profissões precedidas
da expressão “emprega-se” . Somente sobre Leonor foi dito que “alugava-se” como criada. Mais
do que indicar a procura por emprego após o rompimento da relação, o verbo “alugar” sugere
4 SEM TÍTULO, O Estado de São Paulo , São Paulo, 11/02/1895, p. 2; SEM TÍTULO, O Estado de São Paulo ,
São Paulo, 01/08/1895, p. 2.
5 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Manoel Victor Ribeiro. TJ1-1001283141.-3, 1895,
ATJSP.
18
uma confusão na pena do escrivão. Como já ressaltado por Maria Odila Leite da Silva Dias e
Maria Cristina Cortez Wissenbach, durante todo o século XIX foi comum em São Paulo que
mulheres escravizadas alugassem seus serviços a terceiros e, assim, pudessem compor suas
rendas e complementar os rendimentos de seus remediados senhores.6
Os tempos eram outros, não havia mais o status de escravos mas, como sabemos, o
hábito é uma segunda natureza que nos custa deixar. Dizer que Leonor alugava seus serviços
como doméstica pode ter relação com sua cor e o lugar que delegado, escrivão, testemunhas e
juiz julgavam correto para uma mulher como ela. Empregar-se era premissa de pessoas livres,
entendidas como cidadãs. No caso de Leonor, seu direito à cidadania era questionado por aquela
expressão.
Ciente de sua condição de mulher separada, pobre e, quem sabe, negra, a estratégia
usada por ela para conseguir a guarda de seus filhos não foi a de denunciar as agressões de
Manoel. Utilizando esse fato como um agravante, conseguiu reunir uma gama de testemunhas
perante o delegado do Brás que afirmaram que seu esposo não alimentava os filhos menores e,
por isso, os vizinhos ficavam com “pena das pobres crianças” e mandavam, de vez em quando,
“dar alguma comida para que não perecessem” . Leonor tinha a certeza de que os depoimentos
de negociantes portugueses cconfirmariam a história diante da polícia. Vindo da boca de “gente
tão boa”, todos acreditariam que Manoel ameaçava os filhos dizendo que os mataria caso não
saíssem de sua casa, “pois estavam lhe estragando a vida e que não os queria em casa porque
queria meter em casa uma amazia” . Mas as acusações não seriam suficientes se ela não
conseguisse comprovar que tinha “um comportamento exemplar” . Por isso, fez ver ao delegado
que seu direito de mãe tinha de ser resguardado, pois ela tinha “meios de os educar, sustentar
contando mesmo com auxílio de famílias de sua amizade” .7
A tática deu certo. Os filhos foram morar juntos à mãe e o desalmado pai acabou no
xadrez por seis meses, aguardando o julgamento. Pelas condições de conservação do processo,
não pude saber se Leonor conseguiu a guarda definitiva de seus filhos. Mas pelo jornal, pude
saber que Manoel foi absolvido e, pelas páginas restantes do processo, tomei ciência de uma
6 DIAS, Marai Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2a Ed. rev. - São Paulo:
Brasiliense, 1995; WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros
São Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998.
7 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Manoel Victor Ribeiro. TJ1-1001283141.-3, 1895,
ATJSP.
19
série de bilhetes que o pai destinou aos comerciantes do bairro pedindo que vendessem comidas
aos filhos e, portanto, não era verdade que ele deixava as crianças passando fome.
A história é cheia de pontas soltas. De qualquer modo, procurei não me ater na resolução
da trama. O que mais importou foram os indícios que ela apresentou sobre os repertórios
culturais e políticos mobilizados pelos envolvidos para comprovar seus argumentos. Leonor
sabia que o machismo era uma peça chave no raciocínio dos policiais. Por isso, buscou
relacionar as agressões que sofria ao comportamento “ébrio e desordeiro” de Manoel. Sabia
também que não acreditariam nas palavras de uma mulher que se alugava. Ciente da
hierarquização social que os oficiais fariam entre portugueses negociantes e um empregado de
obras públicas brasileiro, valeu-se da camaradagem de estrangeiros para embasar seus
argumentos.
Ao que tudo indica, Leonor, aflita com a separação forçada de seus filhos, informou-se
sobre os agravantes do artigo 292 do Código Penal de 1890. Sabia que um brasileiro,
considerado ébrio e desordeiro, ao abandonar crianças menores de 7 anos pelas ruas ou “em
qualquer lugar, onde por falta de auxilio e cuidados, de que necessite a vítima, corra perigo sua
vida ou tenha lugar a morte”, arcaria com prisão por seis meses a um ano.8
Auxiliado por seu advogado, Manoel soube de sua condição de gênero e afirmou frente
ao juiz que era trabalhador e cuidava de tudo o que as crianças precisavam. Com o que pude ler
do processo, fiquei com a impressão de que o que mais contou para a soltura do marido agressor
foi a rixa comprovada entre ele e uma das testemunhas de acusação, o português Antônio
Pereira de Christo. Na parte que restou da sentença, o juiz colocou sob suspeita o depoimento
da testemunha, pois Christo era “inimigo figadal” de Manoel “por motivo de política”, visto
que o primeiro era um português monarquista, enquanto que o segundo era um “republicano
jacobino” . Nas palavras do brasileiro, “tendo ele (...) um dia manifestado as suas idéias a Christo
desde aí ficou sendo seu inimigo; que quanto à separação de sua mulher fato que se deu em sua
ausência, atribui à sedução de alguém, talvez mesmo da família Christo” 9
Esse conflito de opiniões políticas pode parecer irrelevante. Mas, se levarmos quem era
o juiz do caso, o argumento ganha força. O juiz era o Clementino de Souza e Castro, irmão do
líder dos caifazes, Antônio Bento. O magistrado era um republicano e abolicionista conhecido
na cidade pelas duras críticas a Pedro II. Suas opiniões renderam-lhe a nomeação como
promotor público em Bragança Paulista, distrito afastado das folhas diárias da Capital.
O exílio não durou muito tempo, mas serviu para acirrar suas posições contrárias ao
Império. Com o golpe republicano, Clementino foi eleito presidente do Conselho Municipal de
Intendências de São Paulo, exercendo o cargo entre 1890 e 1891. A partir de 1895, desgostoso
com os rumos que a República tomara, afastou-se da política e dedicou-se à magistratura. Foi
nesse ano que ocorreu o julgamento de Manoel Victor Ribeiro. Ele e seu advogado sabiam que
as versões dos acusadores monarquistas não agradariam ao juiz Clementino, para quem “ficou
evidente nos autos” que as testemunhas mentiam.
Não sei bem se o pai abandonou seus filhos; acredito, no entanto, que o sujeito era
violento. O Direito tem dessas coisas: ao tentar normatizar as condutas, cria regras pautadas
nos saberes de alguns, ignorando os motivos de outros.10 O mau proceder de Manoel como pai
frente a um júri certamente machista não foi vinculado à sua conduta violenta, mas sim à sua
incapacidade de arcar com suas obrigações de homem. E assim, conforme lia mais processos-
crime, fui me dando conta que a vida de homens e mulheres negras estavam sempre envoltas
por essas confusões entre a imposição de um papel ideal que eles deveríam assumir dentro da
sociedade e os rumos que suas vidas tomaram de fato.
Conflitos como esses não ocorreram somente perante as autoridades policiais e judiciais.
Seja no trabalho ou em suas casas, aqueles homens e aquelas mulheres lidaram com as
adversidades. Wlamyra Ribeiro de Albuquerque já nos alertou sobre o cuidado que devemos
tomar ao analisarmos discursos dos sujeitos em seu dia a dia. Eles guardam expressões que
evidenciam regras de sociabilidade extremamente hierarquizadas que, nem por isso, deixavam
de ser contestadas pelos que se sentiam prejudicados por elas. Inspirado metodologicamente
por essa historiadora, também me deparei com situações onde as pessoas, “construindo e
conhecendo [seus] ‘lugares”, estabeleceram “relações, reconhece[ndo] formas de
pertencimento e estrutura[ndo] disputas próprias ao jogo social” .11
Nessa trilha, comecei a entender o porquê de algumas questões, ao mesmo tempo que
outras foram surgindo. Que impacto tiveram as concepções raciais de brancos sobre a vida da
população negra na cidade de São Paulo? Qual a relação delas com o processo de desarticulação
10 GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997;
BECKER, Howard S. Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
11 ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo:
Companliia das Letras, 2009, p. 33.
21
Ficou cada vez mais evidente que as abstratas estruturas dos economicistas não davam
conta da complexidade histórica. As pessoas, ainda que afetadas pelas conjunturas e formações
econômicas, vivem raciocinando sobre suas práticas e relações sociais. Desse modo, desde os
anos de 1980, privilegiando os contextos de lutas e conflitos, de resistências e acomodações, os
12 COOPER, Frederick, HOLT, Thomas C. e SCOTT, Rebecca. Além da escravidão: investigações sobre raça,
trabalho e cidadania em sociedadepós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
13 Com uma visão antideterminista e antieconomicista, Edward Palmer Thompson ofereceu subsídios
historiográficos que nos auxiliam na libertação das amarras ideológicas das fontes históricas. THOMPSON, E. P.
A formação da classe operária inglesa , v. I. 4a ed, São Paulo: Paz e Terra, 2004; v. II, 2a ed., São Paulo: Paz e
Terra, 2012 e v. III, 2a ed., São Paulo: Paz e Terra, 2012; A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma
crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981: . ispeculiaridades dos ingleses e outros artigos.
2a ed., Campinas: Ed. da Unicamp, 2012; Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; Los
orígenes de la Ley Negra: um episodio de la historia criminal inglesa. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2010.
Castoriadis também contribuiu com suas críticas à ortodoxia marxista. A instituição imaginária da sociedade. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1982. Michel de Foucault também empreendeu críticas ao determinismo totalizante da
ortodoxia marxista. Uma síntese de sua visão pode ser encontrada em. Micro física do Poder. Rio de Janeiro: Graal,
1993.
14 BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra. 2a ed., São
Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 51.
22
Em relação ao que se viveu depois dos anos da escravidão, uma outra historiografia
serve como base para os estudos recentes sobre o pós-Abolição. Também influenciada por
aquela perspectiva antiestruturalista e privilegiando análises comparativas, nos Estados Unidos
da década de 1970 começaram a ser publicados livros que problematizaram e buscaram os
diversos significados assumidos pelas definições sobre escravidão e liberdade durante os anos
finais da escravidão na América. Especialmente para os Estados Unidos e o Caribe,
evidenciaram que, após o fim da escravidão, os ex-escravizados atribuíram significados
próprios para suas liberdades. De norte a sul da América, o fim do trabalho escravo introduziu
difíceis questões acerca de como organizar a economia e as relações sociais que substituiríam
a escravidão. Eric Foner foi um dos pioneiros no debate sobre como a situação dos ex-
escravizados e suas percepções sobre liberdade ocuparam os legisladores e ex-senhores
preocupados com os riscos que o fim da escravidão traria. O historiador identificou diferentes
noções culturais e um compartilhamento de consciências que influenciaram os comportamentos
15 LARA, Silvia Hunold. “Blow in’in the wind: Thompson e a experiência negra no Brasil”. Projeto História. São
Paulo: PUC, n. 12, outubro de 1995, p.46.
16 MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras
paulistas (1830-1888). São Paulo: Brasiliense, 1987; Idem. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década
da Abolição. 2a ed.,São Paulo: Edusp, 2010; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas
décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das letras, 2011; LARA, Silvia Hunold. Campos da
violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
Somam-se a esses muitos outros trabalhos, como REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a
resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; REIS, João José. Rebelião escrava
no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. 3a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012; AZEVEDO,
Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites (século X IX). 3a ed. São
Paulo: Annablume, 2004; DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano epoder em São Paulo no séculoXIX. 2a
ed.,São Paulo: Brasiliense, 1995; MATTOS, Hebe. Das cores do silencio: os significados da liberdade no Sudeste
escravista (Brasil, século XIX). 3a ed., Campinas: Ed. da UNICAMP, 2013; RIOS, Ana Maria Lugão. Família e
transição: famílias negras em Paraíba do Sul (1870-1920). Dissertação de mestrado emHistória, UFF, 1990. Para
um balanço, vale a leitura do artigo de CHALHOUB, Sidney e SILVA, Fernando Teixeira. “Sujeitos no imaginário
acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980”. Cadernos AEL, Campinas,
SP, UNICAMP/IFCH, v.14, n. 26, p. 15-45, 2009. Além desse, outro texto que oferece um importante apanhado
historiográfico sobre a escravidão brasileiras: SCHWARTZ, Stuart. “A historiografia recente da escravidão
brasileira”. In: Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001, pp. 21-88.
23
Rebecca Scott é outra historiadora estadunidense que contribuiu para a assimilação das
expectativas de ex-senhores e ex-escravizados quanto à liberdade, sem esquecer que ela teve
seus limites. Lidando com o caso cubano, Scott identificou aspectos da vida dos libertos que
evidenciaram que suas aspirações sobre de liberdade bloqueados ao mesmo tempo em que os
senhores perderam, vez ou outra, o controle sobre a produção agrícola na ilha. Durante a
instituição de um mercado de trabalho baseado na mão de obra livre, os ex-escravos cubanos,
questionando seus ex-senhores nos tribunais, proibindo seus filhos de trabalhar ou abandonando
as propriedades onde trabalhavam, nutriram possibilidades de recusa à sina exploradora nas
plantationsn
O próprio termo raça passou a ser entendido como uma concepção ideológica no
contexto de construção política das novas nações. Termos como nacionalidade passam a ser
vinculados a noções de pertencimento e de direito que, relacionados à raça, excluíram os ex-
escravos. Nesse sentido, como apontou Albuquerque, o termo racialização nos ajuda a entender
como noções de raça fundamentaram hierarquias sociais.21 E uma tentativa de definição
17 FONER, Eric. Nada além da liberdade: a emancipação e seu legado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
18 SCOTT, Rebecca J. Emancipação escrava em Cuba: a transição para o trabalho livre, 1860-1899. Rio de
Janeiro: Paz e Terra; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1991.
19 FRAGINALS, Manuel M, ENGERMAN, Stanley & PONS, Frank. Between slavery andfree labour: the Spanish
Caribbean in the Nineteenth Century. Baltimore: John Hopkins University Press, 1985; McGLYN, Frank;
DRESHER, Seymour. The Meaning o f freedom: economics, politics, and culture after slavery. Pittsburg:
University o f Pittsburg Press, 1992; HOLT, Thomas. The problem o f freedom: race, labour and politics in Jamaica
andBritain, 1832-1938. Baltimore: The John Hopkins University Press, 1992.
20 HOLT, Thomas C. “A essência do contrato: a articulação entre raça, gênero sexual e economia política no
programa britânico de emancipação, 1838-1866”. In: COOPER, Frederick; SCOTT, Rebecca J. e HOLT, Thomas
C. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedade pós-emancipação. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 101.
21 ALBUQUERQUE, op. cit., p. 35.
24
histórica que perpassa também a historiografia estadunidense.22 Barbara Fields, por exemplo,
pocurou entender a historicidade das noções de raça e, para ela, as raízes das relações raciais
do século XX devem ser buscadas no desvendar das relações burguesas que o fim do século
XIX intensificou. Os discursos racionais e científicos foram forjados a partir dessas relações,
criando um ethos de categorias raciais. Nesse sentido, as diferenciações raciais são expressões
ideológicas das práticas sociais burguesas. A introjeção desse ethos só pode ser entendida a
partir da análise dos mecanismos disciplinares dessa sociedade, entre eles a escola e a família.
Raça, portanto, deve ser entendida como um produto da história, não da natureza.23 Por isso
substituir o termo raça por racialização dá a ideia de movimento, de discurso em constante
transito, “à mercê das circunstancias de cada tempo e lugar” .24
22 A historiografia sobre os processos emancipacionistas do Caribe e dos Estados Unidos contribuíram fortemente
para o amadurecimento do conceito de racialização. Cf.: COOPER, Frederick; SCOTT, Rebecca J. e HOLT,
Thomas C. op. cit.
23 FIELDS, Barbara J. “Ideology and Race in American History.” In: KOUSSER, J. Morgan; MCPHERSON,
James M. (eds). Region, Race, andReconstruction: Essays in Honor ofC. Vann Woodward. New York: Oxford
University Press, 1982.
24 ALBUQUERQUE, op. cit., p. 35.
25 FRAGA, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). 2a ed.,
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 243-279.
25
26 Entre outros, conferir FRAGA, op. cit.; SILVA, Lúcia Helena Oliveira. Paulistas afrodescendentes no Rio de
Janeiro pós-Abolição (1888-1926). São Paulo, Humanitas, 2016; COSTA, Carlos Eduardo C. De pé calçado :
família, trabalho e migração na Baixada Fluminense (1888-1940). 2013. Tese de Doutorado em História Social.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2013; RIOS, Ana Maria Lugão. Família e transição: famílias negras em Paraíba do Sul
(1870-1920). 1990. Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 1990; MATTOS, Das cores do silêncio', MATTOS e
RIOS, Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-Abolição. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005; WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Felisberta e sua gente: consciência histórica e racialização em
uma família negra no pós-emancipação rio-grandense. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.
27 BRASIL, Eric. Carnavais atlânticos: cidadania e cultura negra no pós-abolição. Rio de Janeiro e Port-of-
Spain, Trinidad (1838-1920). 2016. Tese de Doutorado. Niterói: UFF, 2016; ALBUQUERQUE, op. cit.
28 Petrônio J. Domingues nos oferece um balanço sobre essa produção para o sul do Brasil: “Um desejo infinito de
vencer: o protagonismo negro no pós-abolição”. Topoi (Rio de Janeiro), v. 12, 2011, p. 118-139, 2011 e “Fios de
Ariadne: o protagonismo negro no pós-abolição”. Anos 90, v. 30, 2009, p. 215-250.
29 SILVA, Fernanda Oliveira da. A s lutas políticas nos clubes negros: culturas negras, cidadania e racialização
na fronteira Brasil-Uruguai no pós-abolição (1870-1960). 2017. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2017; Idem, “Associativismo negro em terras sulinas: das irmandades aos clubes
para negros em pelotas (1820-1943)”. Thema, v. 8, número especial, 2011, pp. 1-13; PEREIRA, Leonardo Affonso
de Miranda. “No ritmo do Vagalume: culturas negras, associativismo dançante e nacionalidade na produção de
26
entendimento sobre a ação política e a cultura brasileira no que tange às representações sobre
liberdade. Seja acompanhando as trajetórias de sujeitos específicos ou das associações, esses
trabalhos evidenciam aspectos de uma ampla experiência negra.30 Refletindo sobre concepções
negras de liberdade e cidadania, Ana Flávia Magalhães Pinto é referência indispensável para
pensarmos como esses grupos, valendo-se de suas escritas, articularam concepções de raça,
cidadania e liberdade ao reinterpretar as condições sociais, políticas e culturais negras.31
Tratando da imprensa negra paulistana, Lívia Maria Tiede delineou como a população
negra da cidade foi sendo vista como suspeita pela polícia e administração. Suas fontes deixam
entrever ainda que a construção ideológica e racial sobre os negros paulistanos não ficou sem a
resposta daqueles jornais.32 Novos temas ganham fôlego, sem que os objetos tradicionais
percam importância. E o caso de Kleber Amancio, que investigou as tentativas de controle e
criminalização da população negra de Campinas.33 Trata-se de um exemplo de como as recentes
gerações de historiadores sociais do pós-Abolição têm sabido lidar com essas questões34
Cidadania e visões da liberdade são balizas importantes para as gerações historiográficas que,
com perspicácia, ajudam-nos a deslindar os caminhos percorridos pela sociedade brasileira
depois do fim do cativeiro. E impossível falar desses caminhos sem citar as experiências negras
nos mundos do trabalho do país. Compreendendo a importância de se integrar as dimensões
conceituais de raça, classe e gênero, historiadoras e historiadores têm identificado conflitos que
pautaram a estruturação de um mundo do trabalho livre, ainda que guardasse relações com as
experiências do tempo do cativeiro. Depois do 13 de Maio, a liberdade conviveu com condições
precárias de vida, com relações pautadas em hierarquias raciais e com adversidades que
forçaram a população negra brasileira a encontrar maneiras de resistir.35
Francisco Guimarães (1904-1933)”. Revista Brasileira de História , v. 35, n° 69,2015, pp. 13-33; SAYÃO, Thiago
Juliano. “As heranças do Rosário: associativismo operário e o silêncio da identidade étnico-racial no pós-abolição,
Laguna (SC)”. Revista Brasileira de História , v. 35, n° 69, 2015, pp. 131-154.
30 RIBEIRO, Jonatas Roque. Escritos da liberdade: trajetórias, sociabilidade e instrução no pós-abolição sul-
mineiro (1888-1930). 2016. Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2016.
31 PINTO, Ana Flávia Magalhães. Imprensa negra no Brasil do Século XIX. São Paulo: Selo Negro, 2010; Idem,
Fortes laços em linhas rotas: literatos negros, racismo e cidadania na segunda metade do século XIX. 2014. Tese
de Doutorado. Campinas: UNICAMP, 2014.
32 TIEDE, Lívia Maria. Sob suspeita: negros, pretos e homens de cor em São Paulo no início do século XX. 2005.
Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2005.
33 AMANCIO, Kleber Antonio de Oliveira. Pós-abolição e quotidiano: ex-escravos, ex-libertos e seus
descendentes em Campinas (1888-1926). São Paulo: Alameda, 2016.
34 Esse tema ainda é promissor. Ver: WEIMER, Rodrigo de Azevedo. “Sr. Sidão Manoel Inácio e a conquista da
cidadania: o campesinato negro do Morro Alto e a República que foi”. Revista Brasileira de História. São Paulo,
v. 35, n°69, 2015, pp. 59-81.
35 SOUZA, Robério Santos. Tudo pelo trabalho livre! trabalhadores e conflitos no pós-abolição (Bahia, 1892-
1909). Salvador; São Paulo: EDUFBA; FAPESP, 2011; Idem “Se eles são livres ou escravos”: escravidão e
trabalho livre nos canteiros da estrada de ferro de São Francisco. Bahia, 1858-1863. Campinas: UNICAMP,
27
2013. Tese de Doutorado; POPINIGIS, Fabiane. “Todas as liberdades são irmãs’: os caixeiros e as lutas dos
trabalhadores por direitos entre o império e a república”. Estudos Históricos, v. 29, n° 59, set.-dez. 2016, pp. 647-
666 .
36 Essas idéias podem ser conferidas entre os vários artigos do autor. Cf.: ROEDIGER, David R. Towarãs the
abolition os whiteness: essas on race, politics and working class history. London / New York: Verso, 1994.
37 POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. “Raça, Etnia, Nação”. In: Teorias da etnicidade:
seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. 2a ed.,São Paulo: Ed. UNESP, 2011, p. 33-54.
28
Por isso, para além da investigação sobre a consciência racial da população negra, é preciso
questionar os efeitos causados pela consciência branca na vida dos que foram tidos como
diferentes. E preciso evitar os riscos ideológicos da ideologia da branquitude para não ficarmos
restritos à ideia de que, ao falar de raça ou relações raciais, estejamos falando apenas do negro,
como se os demais não construísse identidades raciais. Nesse sentido, novos estudos sobre o
pós-Abolição brasileiro podem enxergar a branquitude como um problema histórico cuja
resolução ajude a explicar como e porque o racismo se perpetua nas relações entre
trabalhadores, por exemplo.
Barbara Weinstein teve isso em mente ao debater a cor da modernidade que se queria
instaurar em São Paulo pós-1930. Lidando com uma miríade de fontes, a historiadora
identificou os caminhos pelos quais se forjou a identidade oficial do paulista mediante a
branquitude e o progresso, ao mesmo tempo em que os jornais, literatos e políticos relacionaram
a negritude ao atraso.38 Com se verá nos capítulos seguintes, acredito que E. P. Thompson é um
aliado importante nessa empreitada. E certo que o conceito de experiência deve ser utilizado
com cuidado, evitando que concepções sobre identidades e consciência de classe sejam
estereotipadas de forma a defender uma normatividade racial ou de gênero. Em seu clássico A
formação da classe operária inglesa Thompson trata mais dos homens do que das mulheres,
pouco mencionando problematizações acerca de relações raciais. Mas uma leitura acerca dos
cuidados metodológicos sugeridos pelo historiador inglês pode nos fazer evitar erros.39
38 WEINSTEIN, Barbara. The color o f modernity: São Paulo and the making o f race and nation in Brazil. Durhan
e Londres: Duke University Press, 2015.
39 Para uma crítica à noção de experiência thompsoniana e à ausência ou precariedade da discussão sobre gênero
em seus estudos, ver SCOTT, Joan W. “Women in The Making o f the English Working Class”. In: Gender and
the Politics ofpfistory. New York: Columbia University Press, 1988, pp. 68-90.
40 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle
époque. 3a ed.„Campinas: Ed. daUnicamp, 2012; Idem, Visões da liberdade', CHALHOUB, & SILVA. “Sujeitos
no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980”. Cadernos
AEL, Campinas, SP, UNICAMP/IFCH, v.14, n. 26, p. 15-45, 2009; LARA, “BlowinTn the Wind: E. P. Thompson
e a experiência negra no Brasil”.
29
que as redes de solidariedade e consciência nem sempre seguem os caminhos planejados nos
miolos dos historiadores.41
Cientes dos riscos e da importância de Thompson, podemos nos perguntar sobre o papel
da branquitude na manutenção das desigualdades raciais, no mundo do trabalho ou na sociedade
em geral. Mais do que isso, devemos indagar como e porque os trabalhadores brancos insistiram
na preservação de estereótipos raciais que lhes garantiram vantagens materiais e sociais. No
caso paulistano, é preciso pautar a análise também nas atitudes e comportamentos dos brancos
- maioria numérica na cidade entre 1890 e 1930 - , de forma a entender que o racismo ultrapassa
o âmbito preconceituoso das crendices: “a característica essencial do racismo não é a
hostilidade ou a percepção errônea [sobre o outro], mas a defesa de um sistema do qual a
vantagem deriva com base na [ideia sobre] raça” .42
E evidente que o racismo não tem origem no golpe republicano. Pelo menos desde 1870,
como demonstrou Schwarcz, concepções abertamente racistas começam a circular nos debates
acerca do futuro racial da nação.43 Em São Paulo, isso esteve atrelado ao conturbado processo
do fim da escravidão. E isso que o primeiro capítulo da dissertação discute. Refletindo sobre o
contexto de grande contestação da instituição escravista, busquei descrever quais foram as
alternativas políticas dos donos de terra para o fim do trabalho escravo. Essa discussão foi
amplamente empreendida por diversos historiadores; no entanto, a apresentação desse debate
me parece essencial para entender como os momentos de apreensão social e política durante a
decadência escravista serviu como experiência para os que governaram a cidade e o estado e,
assim, pautaram seus planos para o futuro. Decerto, um futuro que ainda lhes era desconhecido.
As perspectivas não eram anmadoras. Escravos fugidos, pessoas livres e libertas empreenderam
diversos tipos de lutas pela liberdade. A gradualidade emancipacionista somaram-se as
vontades de liberdade dos escravizados que intimidaram os planos dos monarquistas e
republicanos que ocupavam o governo. As lutas se acirraram e a preocupação acerca da
manutenção da ordem pública cresceu até que o fim da escravidão não pode ser mais evitado.
41 Crítico de Thompson, Bruce Nelson parece culpar mais quem não soube problematizar Thompson do que o
próprio autor de A Formação. NELSON, Bruce. "Class, Race and Democracy in the CIO: The ‘N ew ’ Labor
History Meets the 'Wages o f Whiteness'". International Review o f Social History. Amsterdam/Netherlands:
Cambridge University Press, 41: pp. 351-374, dez.1996.
42 WELLMAN, David T. Portraits o f White Racism , apud NELSON, “Class, Race and Democracy in the CIO”, p.
358.
43 SCHWARCZ. Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993.
30
Sob tal hegemonia ideológica, homens e mulheres negras tiveram que se virar para
morar e trabalhar em São Paulo. E é disso que trato no terceiro e quarto capítulos. Evitando
discutir apenas o arcabouço ideológico da política urbanística e higienista - o que fiz no
segundo capítulo - investiguei os modos de morar e trabalhar da população paulistana,
ressaltando qual o efeito das identidades raciais dos trabalhadores brancos em suas práticas
sociais e como pretos e pardos tiveram que lidar com as pretensões hierarquizantes de patrões,
senhorios, companheiros de morada e de trabalho.
Em toda a dissertação, lidei com uma documentação variada, sem a qual não seria
possível alcançar as interpretações aqui contidas. No primeiro capítulo, utilizei correspondência
policiais capazes de informar a situação pela qual a província passou durante os anos finais da
escravidão. Jornais como A Província de São Paulo (depois, O Estado de São Paulo), Correio
Paulistano e alguns títulos da imprensa negra foram essenciais para acompanhar os debates
acerca da situação social e política da cidade nos anos próximos da Abolição. Sobre isso, Atas
da Câmara Municipal, relatórios de governadores, anuários estatísticos e a legislação municipal
também me foram úteis.
Com isso, julgo ter dado alguns passos no sentido de aquietar minhas angústias de
pesquisador, que ainda clamam por respostas. Ao encerrar este trabalho, creio ter começado a
entender os caminhos pelos quais o conhecimento histórico se constrói. Ele não advêm da ânsia
individualista. Gerações de mulheres e homens dedicados ao entendimento das mazelas sociais
clamam por um país mais justo, democrático e consciente de si mesmo. A essas pessoas de
fibra, ofereço meu agradecimento e meu empenho, na esperança de eles que se somem aos seus
esforços. Ao leitor, desejo uma boa leitura e a formação de opiniões críticas sobre o que foi e
ainda é o pós-Abolição em São Paulo.
32
Durante o ano de 1880, circulavam com frequência pelos jornais paulistanos notícias
sobre um projeto de lei de autoria do então deputado Joaquim Nabuco que visava à abolição da
escravidão. Segundo edição de 29 de agosto de 1880 do jornal A Província de São Paulo, o
projeto sobre a emancipação estava assentado sob as seguintes bases:
Foi acanhada a proposta que fez Nabuco ao Parlamento imperial. Propondo um prazo
de dez anos para o fim da escravidão, não deixou de levar em conta a questão da indenização
dos proprietários de escravizados. E evidente o cuidado do parlamentar em explicitar o caráter
gradual da lei e sua preocupação com a situação dos senhores. Pode-se interpretar que o prazo
estipulado serviría para a construção de um fundo que viabilizasse a indenização dos ex-
senhores. Ainda que eles devessem contribuir com o valor de 0,5% sobre o pecúlio depositado
por seus escravizados em caixas econômicas, a legislação tornaria a manutenção do fundo uma
tarefa de toda a sociedade: escravos, instituições religiosas e o Estado deveríam arcar com os
preços a serem pagos pelo fim progressivo da escravidão.
Joaquim Nabuco explicou essa proposta em uma carta enviada ao então secretário da
British and Foreign Anti-Slavery Society, Charles Harris Allen, em 8 de abril de 1880.
Referindo-se ao longo intervalo entre a promulgação da lei e a abolição do cativeiro, o deputado
dizia ser “apenas uma solução conciliatória”, mas necessária: essa seria a única maneira de
enfrentar as “dificuldades que ainda são enormes” . Mencionando a lei de 28 de setembro de
1871, relatou que sua ação era lenta e gerava “um índice inferior de emancipações anuais que
as circunstâncias atuais do país e o constante progresso da consciência pública tanto permitem
quanto exigem” :
Nabuco tinha razão. As dificuldades eram muitas e aquele projeto não se convertería em
lei em 1880 nem em ano algum. A discussão permeou as páginas de jornais como o Correio
Paulistano e A Província de São Paulo.
Em 25 de abril daquele ano, o Correio Paulistano , porta-voz do Partido Conservador na
província, publicou parte de um discurso do deputado Martinho Alvares da Silva Campos.
Companheiro de Joaquim Nabuco nas fileiras do Partido Liberal, Campos tratou da “grave
questão, ante a qual toda a questão política desaparece”3: a escravidão. Afirmando que nutria
sentimento de horror pelo sistema escravagista, “a mais terrível das chagas que os séculos
passados legaram ao mundo”, disse que até podería concordar com o projeto de Joaquim
Nabuco para não ter mais que passar pelo “vexame de dizer que no Brasil há escravos” . No
entanto, valendo-se de argumentos econômicos, oporia seu voto ao projeto, caso ele entrasse
em votação. Afinal, “enquanto o governo não tiver meios de poder pôr fim à escravatura, outro
dever não menos imperioso lhe corre, que é não perturbar nem pôr em perigo a própria
existência (já não diz a propriedade) da parte mais importante da população do Brasil” .4 Mas
quem seria essa parte tão importante? O orador continua:
5 Idem, Ibidem.
6 Idem, Ibidem.
7 O DR. MARTINHO Prado Júnior e o deputado J. Nabuco.. I Província de São Paulo , São Paulo, 24/04/1880, p.
3.
8 Idem, Ibidem.
35
prazo não deveria ser estipulado de forma tão rígida; a instituição teria seu fim de forma natural
e sem causar sustos. O remetente propôs, entre outras coisas, que,
Tanto dos liberais como dos republicanos, Joaquim Nabuco nunca angariou apoio
suficiente para a votação de seu projeto. O abolicionismo de ambos os lados empacava no
debate sobre qual melhor estratégia para postergar a abolição.
Martinho Jr. continuou sua carta. Para ele, a lei projetada pelo deputado teria o defeito
de “excitar [...] a aspiração do escravo para este seu supremo desejo” que era a liberdade. Que
poder alguém teria de conter aqueles libertos ou de tirar deles “qualquer trabalho frutífero”?
Não se cortaria, “de um só golpe, o braço produtor, o que implicaria aumento considerável de
esforços, senão impossibilidade de uma substituição total”?
Lidar com as aspirações de liberdade escrava e direcionar o trabalhador livre ao trabalho
nas plantações parecia ser a maior preocupação dos sujeitos que se opuseram ao projeto
Nabuco. Para tanto, o missivista republicano afirmava que era preciso dar tempo, meios e
recursos aos agricultores para uma fácil “substituição do trabalho que lhes faltar para o tamanho
de seus campos” . Além disso, outra vantagem de uma maior postergação da abolição seria não
haver, “no seio da sociedade, uma tão grande massa de elementos capazes de avultada soma de
males” . Um vagaroso processo de libertação habituaria os recém libertos ao trabalho, ajudando-
os a vencer “os primeiros entusiasmos que despertam a liberdade”, evitando, assim, “suas
tendências para a ociosidade” . Os ex-escravizados poderíam ser integrados na vida social,
estimulados gradualmente pela consideração aos seus antigos senhores. Assim, presos aos laços
da família, formariam núcleos aos quais se somariam “novas massas libertas, servindo aqueles
de guias a estes” .10
O conspícuo autor das linhas publicadas n'A Província de São Paulo entendeu que o
espaço de dez anos para a abolição não seria suficiente. De qualquer modo, não havería
justificativa para o legislador abolicionista ficar às voltas com a sugestão de modificação do
9 Idem, Ibidem, p. 3.
10 Idem, Ibidem, p. 3.
36
projeto; afinal, “na vida de uma nação seis anos ou sete é um espaço imperceptível, e notai que,
a injustiça pelo maior tempo de escravidão, não fere a todos, porque na data que quereis, uma
boa porção já serão livres” . A vitória da abolição deveria custar a injustiça a alguns, pois as
circunstâncias o exigiam. Por fim, Martinho pediu a Nabuco que ele refletisse sobre o assunto
“Quem vos fala é um emancipador de convicção, e desde muito, afastou [ilegível] a crença
errônea daqueles que aguardam da emancipação males [ilegível]” .11
Publicados por dois órgãos de imprensa que serviam a partidos distintos do Império, os
dois artigos pautavam as incertezas quanto aos caminhos da abolição da escravatura. Embora
antagônicos, ambos os periódicos relataram opiniões semelhantes. O projeto de Joaquim
Nabuco deixou transparecer duas questões cruciais para os donos de terras e de escravos de fins
do século XIX. A primeira diz respeito ao dilema sobre o que fazer com o negro liberto. A
dúvida ressalta o caráter racista das elites, uma vez que o debate se debruçou sobre um grupo
social subordinado por um viés que o identificava como conjunto de indivíduos racialmente
inferiores.12 A segunda é um pouco mais óbvia: o que os sujeitaria aos ex-senhores depois de
abolida a escravidão?
Em várias esferas formais e institucionais do Império procurou-se responder a essa
questão durante boa parte do século XIX. Uma vez posto em xeque o sistema escravista, a
abolição tornou-se um fato social que pulsou nos mais variados setores da sociedade imperial.
Por isso, “a reboque dos eventos que nas localidades escravistas e cidades mais importantes
balançavam as bases do poder de controle senhorial e da política” 13, o Estado, o Parlamentoe a
imprensa representante dos principais grupos da elite procuraram respostas. Uma política de
emancipação gradual do trabalhador escravizado foi, em alguma medida, um recurso para
equacionar os temores dos gritos negros por liberdade e a questão da propriedade escrava que,
invariavelmente, trouxe em si o anseio por indenizações pecuniárias aos senhores.
Tal remédio não parecia trazer a cura imediata. Afinal, a indisponibilidade de capitais
marcou o enredo dos pedidos de ressarcimento em relação a libertação jurídica da mão de obra
escrava.
Maria Helena P. T. Machado considera que a análise das políticas imperiais em relação
aos africanos livres é uma boa oportunidade para a historiografia compreender o
11 Idem, Ibidem, p. 3.
12 AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites (século X IX ).
3a ed., São Paulo: Annablume, 2008.
13 MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. “Teremos grandes desastres, se não houver providências enérgicas
e imediatas’: a rebeldia dos escravos e a abolição da escravidão”. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo, (org).
O Brasil Imperial. Vol III. 2a Ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 369.
37
19 BERTIN, Enidelce. Os meia-cara: africanos livres em São Paulo no século XIX. São Paulo. Tese (Doutorado
em História Social) - Universidade de São Paulo, Programa de Pós-graduação em História, São Paulo, 2006.
20 Idem, Ibidem, p. 240-241.
21 CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
22 MAMIGONIAN, Beatriz. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 2017.
23 CHALHOUB, Ibidem, p. 228.
39
Para além dos casos dos africanos livres, era comum pôr em dúvida o estatuto de
alforriados. Desde antes da lei de 1831, foram frequentes casos de escravização de pessoas
livres em todo o Brasil.24
Ainda em meados do século XIX, a defesa do princípio da propriedade privada pelo
Estado garantiu a escravidão. O antagonismo entre impulsos emancipacionistas e a propriedade
privada tentava equacionar a necessidade de se encaminhar “a questão da extinção gradual da
escravidão evitando-se o perigo de desavenças ou divisões mais sérias entre os próprios grupos
proprietários e governantes” . Frente às constantes manifestações escravas pelo Império, a
questão da propriedade continuou a nortear o pacto social entre classe proprietária e governo,
mas “os reclames da liberdade” não poderíam ser esquecidos.25 A questão servil, portanto, longe
de ser unicamente uma discussão humanitária, passou a exercer pressões sociais e políticas,
interferindo no pacto liberal de defesa da propriedade, ao mesmo tempo em que cobrava a
rediscussão do domínio senhorial sobre os escravizados.26 Protelar o fim do cativeiro pareceu
ser a forma mais eficaz de repensar os mecanismos de controle social sobre aqueles
trabalhadores.
O princípio da gradualidade deu o tom das políticas emancipacionistas a partir da
metade do século.27 A lei do Ventre Livre, de 1871, foi um bom exemplo disso. Ao legalizar a
aquisição de pecúlio pelo escravo, essa legislação teve como medula central a noção da
gradualidade. Até mesmo a lei dos Sexagenários, de 1885, cumpriu papel semelhante, quando
exigiu aos futuros libertos maiores de 60 anos a obrigatoriedade de servirem seus senhores por
mais alguns anos. Desse modo, ficou consagrado outro princípio: o da indenização dos
senhores, cujo ônus coube, na maior parte das vezes, ao próprio escravizado.28
Gradualidade e indenização senhorial foram princípios fundamentados na experiência
social e política de senhores e escravos e do próprio Estado desde meados do século XIX. O
desejo de controle da aquisição da liberdade se ligou a uma tentativa de conciliação com o poder
privado. Conciliação em constante agonia pelo direito do escravo possuir economias que
viabilizassem a obtenção da liberdade ou pelo fato de que, pelos laços de sociabilidade,
escravizados pudessem postular sua liberdade. Na medida em que brechas para a liberdade
24 CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850. Recife: Editora
da UFPE, 1998; PINHEIRO, Fernanda A. Domingos. “A precariedade da liberdade: experiências de libertos em
Mariana, século XVHI”. Anais do 4 oEncontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Curitiba, 2009.
25 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. 2a ed.,
São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 150-151.
26 CHALHOUB, Ibidem, p. 163.
27 BERTIN, Enidelce. Alforrias na São Paulo do séculoXIX: liberdade e dominação. São Paulo: Humanitas, 2004.
28 MACHADO, Ibidem, p. 372.; BERTIN, Ibidem.
40
Não creias ser possível o preparativo, para este golpe dado englobadamente:
conheceis a imprevisibilidade brasileira.
[...] As porções gradualmente libertas se irão habituando ao trabalho, sofrerão
os primeiros entusiasmos que despertam a liberdade e suas tendências para a
ociosidade; envolver-se-ão na vida social, estimulados pelo desejo de
consideração, e ainda mais presos pelos laços da família e assim formarão
núcleos a que se juntarão as novas massas libertas, servindo aqueles de guias
a estes.32
O ocaso do sistema escravista brasileiro suscitou debates e lutas políticas entre as elites
regionais brasileiras. Liberais e conservadores digladiaram-se entre a promulgação das leis
emancipacionistas. Os jornais de maior circulação batiam ou acolhiam as ações de advogados,
juizes e parlamentares abolicionistas ou emancipacionistas. A escravidão perecia. Agarrando-
Tal ordem parecia ameaçada. O período imperial foi um tempo de temor. Nas cidades e
nos campos, fugas e insurreições de escravizados “alimentavam o pânico entre a população
‘branca’, erigindo as figuras de um Manuel Congo e de uma Luísa Mahin em símbolos de uma
camada que, desde então, passou a ser considerada ‘inimigo inconciliável’” .37
Com a lei de 1871 ampliando em alguma medida o direito do escravo e fazendo objeções
ao seu valor monetário, retirava-se da alçada senhorial o poder absoluto sobre a vida de seus
escravos. O princípio de propriedade escrava rompera-se. De acordo com os parâmetros
ideológicos da administração imperial, a sociedade era formada por três mundos distintos: o
mundo da casa (a propriedade escravista), o mundo do governo (composto pelos cidadãos
votantes) e o mundo da desordem (reservados aos escravos, agregados, vadios, à pobreza,
enfim). A estabilidade política, portanto, significava reproduzir aqueles três mundos e sua
“natural” hierarquia, “de tal forma que o ‘lugar’ de cada um se definia pelos nexos pessoais que
conseguia construir e manter tanto com aqueles que se situavam imediatamente ‘acima’ quanto
com os que vinham ‘abaixo’” .38Assim, com o rompimento da hierarquia entre a casa grande e
a plebe por interferência do Estado, um dos princípios aglutinadores entre elites locais e Império
fora posto abaixo: a ordem.
Nesse sentido, a regulamentação legal do regime escravista tendeu a provocar fissuras
na base do sistema.39 Exatamente por isso o cerne das discussões das leis emancipacionistas foi
o princípio da gradualidade, uma tentativa de equacionar a transição para o trabalho livre e a
indenização senhorial.
A lei dos Sexagenários teve esse tom, quando estipulou a obrigatoriedade de prestação
de serviços por tempo determinado, aos que fossem libertados por ela. Sua promulgação
ocorreu num momento em que um dos principais debates políticos e jurídicos era o da
constituição de um mercado de trabalho livre. Qual o quê! Se a legislação de 1885 garantiu a
indenização através do preceito da liberdade condicionada a serviços prestados, do ponto de
vista senhorial seria legítimo que suas perdas fossem pagas por um trabalho que a princípio já
lhes pertencia? “Prisioneiros da lógica de defesa da propriedade e das ambivalências da
indenização, que se mostrava economicamente inviável para o Tesouro Nacional”, os
emancipacionistas e abolicionistas raras vezes avançaram no debate sobre a reparação dos
prejuízos às vítimas da escravidão.40 Mantiveram-se atrelados à militância parlamentar
37 Idem, Ibidem, p. 2.
38 Idem, p. 282.
39 MACHADO, Ibidem, p. 374.
40 Idem, p. 374.
43
“Na grande obra da abolição, nós jamais nos envolvemos com os escravizados
e os que não seguiram o nosso exemplo mancharam-se como ‘papa-pecúlios’,
como ‘incendiários de canaviais’, como excitadores dos fuzilamentos de
Cubatão.”41
41 COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à solonia. 5a ed., São Paulo: Ed. UNESP, 2010, p. 459. Esse trecho
também é citado no texto de: MACHADO, Ibidem, p. 375. Segundo Machado, o trecho foi citado por Raimundo
Magalhães Jr.,. I vida turbulenta de José do Patrocínio. Rio de Janeiro: Sabiá, 1969, nota 34, sem elucidação de
fonte. Segundo Rebecca Baird Bergstresser, The Movementfor the Abolition o f Slavery in Rio de Janeiro, Brazil,
1880-1889, PhD, Stanford University, 1973, p. 162, o texto refere-se a uma carta de Rebouças a Nabuco nos anos
1890.
42 COSTA, Ibidem, p. 485-486.
43 MACHADO, Maria Helena P. T. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da Abolição. 2a ed., São
Paulo: Edusp, 2010, p. 209.
44 Essa hipótese foi desenvolvida a partir da conjunção entre as obras de MATTOS, O tempo Saquarema, e
MACHADO, O plano e o pânico.
45 AZEVEDO, 2008, p. 17.
44
46 Ibidem, p. 27.
47 NASCIMENTO, Washington Santos. “’São Domingos, o grande São Domingos’: repercussões e representações
da Revolução Haitiana no Brasil escravista (1791-1840)”. Dimensões, 21, 2008, p. 125.
48 REIS, João José. “O jogo duro do Dois de Julho: O ‘Partido Negro” na Independência da Bahia”. In: REIS, João
José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989, p. 90.
49 REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. 3a ed., São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
45
província de São Paulo, não se pode esquecer que em torno do “imigrante ideal” orbitaram
noções raciais que nortearam o impulso paulista de purificação da “raça brasílica” .50
delimitados para aquele término. Em segundo lugar, na década de 1880, pensamentos sobre um
futuro sem escravos figuravam com mais força entre os contemporâneos. As revoltas escravas,
as crises institucionais do Império e as leis emancipacionistas davam a impressão de que os
senhores estavam pisando em um vulcão prestes a explodir. Nesse sentido, prever o fim da
escravidão, com datas delimitadas, era uma maneira de “conceder” liberdade mediante a ação
política.
Essa racionalidade política se justificaria pelo contexto de “ódio” entre as raças, que a
continuidade da escravidão tendería a fazer aumentar. O risco revolucionário que as frequentes
revoltas escravas inspiravam começavam a impor aos que resistiam à emancipação
posicionamentos de libertação imediata. A questão social batia à porta dos senhores e da
administração pública. Então, era melhor que tais acontecimentos ocorressem sob o controle
dos que legislavam e governavam.57 Muitas tensões nortearam as ações de parlamentares, de
senhores de terras ou de escravizados. O medo e a incerteza foi parte constitutiva desse
processo. E isso que veremos a seguir.
1.2. Pela liberdade, o caos: as lutas sociais pela abolição na cidade de São Paulo.
Privilegiar os anos entre 1885 e 1888 para o estudo sobre o fim da escravidão no Brasil,
dadas as constantes revoltas escravas, é uma estratégia comum na historiografia sobre o
processo de abolição brasileiro. Esse período corresponde também ao apoio popular ampliado
às ações dos escravizados. Tomando como base os alguns dos jornais da capital, cada vez mais,
as prisões e perseguições de negros aporrinhavam a opinião pública. A imprensa criticava
capitães do mato, ações policiais, ou posições conservadoras da administração pública.
justiça pública venha prestar-lhe as cadeias, que são destinadas aos delinquentes, para a
detenção dos escravos que devem estar nas suas fazendas”?58
Filiado ao Partido Liberal desde 1883 e eleito deputado provincial entre 1884 e 1889,
Cândido Rodrigues parecia seguir à risca a cartilha de seus correligionários. Visto que a
propriedade escrava era de posse do senhor, por que o Estado deveria cuidar de assuntos que
não lhe diziam respeito? O debate foi renhido, tanto que, só depois de um ano a famigerada lei
de 1869 foi revogada, em 28 de fevereiro de 1888.
O início da década de 1880 foi marcado também pelo crescimento do apoio aos ideais
abolicionistas. No entanto, havia limites para esse apoio. Os ocupantes de cargos na
administração imperial estavam divididos. Havia aqueles que, republicanos, eram escravistas
conhecidos ou abolicionistas; também os conservadores se dividiam entre os dois polos. Quanto
aos liberais, existiam os que pleiteavam a abolição mediante algum tipo de indenização
senhorial e aqueles que, em defesa da ordem, opunham-se à qualquer alteração da situação. O
momento era de incertezas e de divisões.
[...] um partido liberal tente riscar de sua bandeira a liberdade mais santa - a
liberdade dos cativos; que ouse adiar, com subterfúgios, a solução do
problema do elemento servil, ora fazendo questão de prazo, ora achando
inoportuna a discussão sobre tal assunto em nome dos interesses da lavoura,
aliás tão desprotegida dos governos.59
Uma coisa era a composição nacional do partido, outra eram os arranjos provinciais.
Enquanto no âmbito nacional o Partido Liberal dividia-se entre escravocratas e abolicionistas,
em São Paulo, devido às enormes incertezas quanto ao futuro da escravidão, o grupo parecia
romper com posições afastadas da abolição. No tempo em que João Silveira questionava os
motivos da divisão do partido, parte dos liberais também acreditava que era hora de aceitar o
fim do cativeiro, já na metade de 1887. Isso seria considerar que a liberdade dos negros era
“uma questão política”, que deveria estar no frontispício do programa liberal, a fim de que a
“questão da liberdade” não fosse uma “questão partidária”, evitando-se maiores problemas, pois
o tema já não podería “deixar de ser uma questão social” .60
A informação de que o trem partiría às 9 horas daquela manhã, com destino a Campinas,
serve para tentar uma explicação. Aqui e alhures, as décadas finais do cativeiro foram repletas
de notícias e processos policiais envolvendo escravizados que se negaram a serem vendidos em
terras do Oeste Paulista. Campinas era conhecida como um polo de concentração escrava e de
violência senhorial. Na Corte, já no final do século XIX, muitos escravizados buscaram evitar
sua venda para as fazendas de café paulistas. Chalhoub encontrou exemplos de escravos que,
60 Idem, Ibidem, p. 1.
61 ASSEMBLÉIA PROVINCIAL. Correio Paulistano , São Paulo, 08/02/1887, p. 1.
62 SESSÃO ordinário aos 18 de março de 1887. Correio Paulistano , São Paulo, 04/05/1887, p. 1.
51
praticando roubos, pequenas agressões ou até mesmo matando seus senhores, “estabeleciam
uma relação entre ‘irem para a polícia’ e ‘ficarem livres” .63
Mas esse sofrimento teve seu avesso na resistência de sujeitos que se negavam a tipos
específicos de comercialização de sua posse. E o caso daquele moço robusto que queria ser
vendido para proprietários da cidade de São Paulo, pois “tinha medo do interior da província” .
Não havia “conselho nem esforço brutal que o demovesse do seu propósito” de ficar na capital.
65
Contra toda a brutalidade dos policiais que tentavam obrigá-lo a entrar no trem, o
escravo que se recusava a embarcar para Campinas gritava e resistia, ao ponto que “o povo que
enchia a Estação começou a comover-se e a indignar-se” . A instabilidade que aquele escravo
causou à ordem animou as pessoas na estação a “protestos enérgicos no intuito de fazer cessar
uma cena tão revoltante” . Aquele homem conhecia a possibilidade de apoio popular. O caso
termina com a intervenção do chefe da estação e de funcionários “superiores” da Companhia
Inglesa, “que não podiam aceitar como passageiro um homem naquelas condições, que só
podería ir amarrado, o que o regulamento da estrada não permite” . Não fosse isso, “tinha por
certo feito explosão a indignação popular” .67
Talvez ciente das regras de transporte por trem e da conjuntura favorável, esse sujeito
pode manter-se longe do vagão que o transportaria. Conduzido à polícia, seu medo de ir para
terras campineiras era maior do que o de permanecer sob as vistas policiais. Não se sabe se seu
desejo foi alcançado; de qualquer modo, fica evidente que conflitos como esse colocavam em
xeque o domínio senhorial cotidianamente.
Podemos retomar a fala de Cândido Rodrigues e deduzir que suas palavras tinham um
conteúdo mais pautado no medo do que em sentimentos humanitários. O seu liberalismo não
esconde o temor quanto aos rumos incertos que a abolição tomava. Ele utilizava palavras como
progresso, direito, justiça para dissimular que a abolição era quase um fato consumado e se
constituía em campo de disputa.
em v á r io s m u n ic íp io s da p r o v ín c ia ” .71
Traçando um histórico das manumissões, Rodrigues Alves admite que a tendência por
liberdades condicionadas a prazos de trabalhos vinha declinando durante todo o ano de 1887.
“Por motivos que vos não são desconhecidos”, a diretriz das emancipações tomara-se de ordem
imediata e incondicional. Isso causaria um abalo na estruturação do trabalho nas fazendas
paulistas de café, já que as relações “criadas pelo elemento escravo, que tem de remotíssima
data, fornecido quase exclusivamente ao país o nosso agente de trabalho e de produção” eram
de fundamental importância para o funcionamento daquela produção. Por isso, a transição para
o trabalho livre provocaria uma “crise dolorosa para a lavoura e as indústrias que a ela se
prendem” .7172
Desde a década de 1870, o descarte do trabalhador nacional já havia sido aventado por
paulistas partidários da imigração europeia. Da perspectiva senhorial, negociar com sujeitos
que dependiam de sua vontade não proporcionava os melhores sentimentos. A perspectiva de
consolidação de um mercado de trabalho livre, pelo menos em terras paulistas, teve de levar em
conta a negociação por salários. A imigração surgia como solução para isso. Com um aumento
71 Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo pelo presidente da província, Exmo.
Sr. dr. Francisco de Paula Rodrigues Alves, no dia 10 de janeiro de 1888. São Paulo: Typ. a Vapor de Jorge
Seckler & Comp., 1888, p. 15.
72 Idem, Ibidem, p. 16.
55
da reserva de mão de obra, os salários cairíam. São Paulo não era como os Estados Unidos que,
“com seus altos salários”, conseguiu atrair para si os melhores imigrantes.73 Esse era o
entendimento do deputado paulista Martinho Prado Junior quando exigia a maior participação
do Estado na implementação da imigração em São Paulo. Antes disso, defendendo subsídio
estatal à imigração, o major Manoel de Freitas Novaes dizia que “os lavradores não podem
pagar altos salários”, pois a maior parte do “valor da produção agrícola é absorvida pelos
encargos que a oprimem” 74
As exigências dos libertos por “altos salários” somadas aos impostos que recaíam sobre
a produção agrícola, para latifundiários acostumados com as relações escravistas, significava
uma inversão na disposição das coisas. Algo deveria ser feito para impedir que o
descontentamento causasse desordens. Rodrigues Alves sabia disso quando alertou aos
membros da assembléia que essa transformação seria laboriosa e difícil.
dos trabalhadores até então escravizados nos “rudes serviços da lavoura”,76 uma vez adquirida
a liberdade:
Chamando a atenção para que o processo de liberdade fosse controlado pelos mais
amplos poderes da sociedade escravocrata, assumia um discurso para encobrir o essencial: sem
essas medidas, talvez a esperança abolicionista de que “a extinção do elemento servil se fará
pela ação normal das leis”78 fosse subjugada pela ação escrava.
Sendo destacada quase toda a força pública para conter as revoltas, não havia
contingente suficiente para conter a massiva rebeldia escrava. Com apenas 22 oficiais e 508
praças, o corpo policial permanente relatava sua incapacidade de reter escravos em fuga:
Com força policial limitada, o temor dos proprietários só aumentava. Já não havia como
“assegurar a execução das leis e manter a ordem pública” .81 Em algumas regiões, a polícia local
tinha poucas condições de serviço e na maioria dos municípios não era possível reunir tropas.
Num cenário pintado como sem lei nem direção, o crescente número de libertos
colocava em jogo os lugares sociais estabelecidos, exigindo liberdade de escolha na procura
por trabalho, reivindicando maior controle de seus tempos e localizando seus desejos como
norteadores de suas decisões. O poder repressivo contra a perturbação da ordem mostrava-se
insuficiente.
pareciam não saber o que fazer no crepúsculo escravista. Rebentavam notícias de quilombos,
de tentativas de assassinatos e de outras ocorrências que perturbavam a ordem.
Tratava-se do mesmo corpo policial comandado pelo furriel Américo Cezar. Ao que
parece, a diligência circulou por boa parte do Oeste paulista à caça de quilombolas, denotando
o pequeno efetivo policial nos municípios. Saído de Campinas, passando por Limeira e
dirigindo-se a Jundiaí, a missão do furriel não era simples. Por onde quer que parasse, negros
fugidos e quilombolas enfrentavam sua autoridade e resistiam às investidas policiais.
Em Jundiaí, Américo chegou com dois cadáveres não identificados - nem mesmo a cor
é descrita na carta - e com quatro “quilombolas”, três dos quais feridos. Junto ao furriel, de
trem, chegou o delegado de Campinas dizendo ao responsável pelas forças policiais em Jundiaí
que havia feito aquele batalhão seguir com destino a Valinhos, “afim de prender os quilombolas
que por ali praticavam desordem, mas, que houve necessidade de entrar a força neste termo,
onde achavam-se os quilombolas reunidos” .84
Pode ser que o furriel Américo tenha corrido em busca dos escravos em fuga de
Valinhos, mas é incontestável, a partir da leitura da carta, a incerteza se aqueles que dormiam
no quilombo eram, de fato, os originalmente perseguidos. Há indícios de que não: afinal, os
quilombolas feridos, Adriano e Antônio, foram tidos como “escravos do Major Francisco de
Paula Vianna”, conhecido fazendeiro da região. O mesmo ocorre com José, “escravo de D.
Anna Maria da Silva”, e Roque, “filho de escravos do mesmo Major Paula Vianna” . Se a
intenção era ir ao encalço dos fugidos do quilombo próximo à fazenda de João Franco, em
Valinhos, a decisão de ir até Atibaia pode indicar a existência de uma rede de apoio entre
escravizados, que possibilitaria a conexão entre diferentes zonas escravistas.
Essa rede deveria causar fortes temores nos senhores daqueles tempos. Rompendo com
parte do domínio senhorial tradicional, as lutas por liberdade espalhavam-se por todo o território
paulista. A polícia, com se viu, não conseguia conter a ânsia por liberdade. Faltava-lhe pessoal
e legitimidade. As condições para refrear fugas e revoltas eram precárias, a julgar pela fartura
de pedidos de reforço ou de justificativas sobre a ineficiência das ações militares na
correspondência policial. Exemplos como o pedido de um auxílio de “20 praças de linhas”,
enviado da capital para a cidade de Itu, reforçam essa interpretação. O chefe de polícia
justificou-se, dizendo que o número de praças de Salto foi incapaz de “obstar a passagem de
mais de 60 escravos fugidos”, tendo havido na ocasião “grande luta e resultando ferimentos em
todas as praças” .86
De Pereiras, Itu, Botucatu e Tatuí vinham outros pedidos e reforços para o combate aos
quilombos, que conseguiam articular redes de proteção, habilidosas o suficiente para pôr de
cabelos em pé os delegados das regiões. Uma ocorrência em Atibaia pode dar a dimensão dos
conflitos daquele tempo. Informando ao chefe de polícia sobre uma briga entre o bacharel
Olímpio da Paixão e o tenente coronel Belisário Francisco de Camargo, o delegado daquela
cidade dizia que a confusão se dera na estação de trem da cidade onde, protegido pelas pessoas
ali presentes, Olímpio da Paixão livrou-se da agressão de seu oponente. A briga terminou
quando Camargo declarou que não ofendería Paixão, embora este fosse um “inimigo da
moralidade”, um “abolicionista que trabalha para si” . Para o delegado, a queixa de Olímpio não
merecería crédito, por ser ele “um perigoso inimigo da lavoura”, um “quase louco”, que
“promove ou ocasiona constantemente cenas geralmente reprovadas” .87
Pelo tom do informe, fica evidente que as tensões entre os que ainda se apegavam à
instituição escravista, representados pelo tenente coronel Belisário Francisco de Camargo, e os
que militavam pela causa abolicionista. A inimizade entre o delegado e o queixoso se dava
exatamente por esse motivo. O bacharel era inimigo de “todas as pessoas mais importantes do
lugar, especialmente dos fazendeiros”, cujos escravos e colonos ele induzia à fuga, “ocultando-
os em sua chácara, onde aproveita os serviços com promessas de liberdade” .88
Verdadeira ou não, a acusação de que Olímpio era um aproveitador dos ânimos que o
avançado processo de abolição então provocava, o relato informa que a rixa entre os fazendeiros
não se restringia aos seus escravos fujões. Em 1887, o movimento abolicionista provocava
tantas baixas nos grupos escravocratas e aglutinava pessoas provenientes das mais distintas
origens sociais, que podemos dizer trazia uma apreensão geral.
Os escravizados tinham a convicção de que aquele momento era propício para efetivar
suas resistências ao cativeiro. Acompanhavam notícias sobre o clima da época ou sabiam da
existência de quilombos próximos aos seus locais de trabalho. Tinham certeza de que era justa
sua contestação ao poder senhorial. E certo que nem sempre suas tentativas de liberdade saiam
vitoriosas, mas a tradição de revoltas escravas, coletivas ou individuais, vinha construindo um
campo antagonista ao julgo dos produtores paulistas.
Seu estado de saúde era gravíssimo. Jovem, ele já trazia no corpo as marcas de muitos
anos de escravização. Na região posterior do pescoço, tinha um “tumor visível do volume de
um ovo de pomba” que lhe dificultava os movimentos. Sofria de dores em tudo. As articulações
apresentavam-se inchadas e com edemas que se estendiam por “todo o dorso do pé” . Seu joelho
esquerdo estava “aumentado de volume” e, talvez por isso, sua “marcha” fosse “absolutamente
impossível pela rigidez das articulações e grandes dores, quando procura mover-se” . Seu rosto
também fora marcado pela escravidão, com uma “cicatriz linear, de um centímetro, no ângulo
interno do olho direito” .90
Sua liberdade contava apenas quatro dias. Perguntado como foi parar na capital,
respondeu “que seu ex-senhor dando-lhe a liberdade, lhe disse que o mandava outra vez para a
sua terra, e assim fez, mandando-o acompanhar pelo feitor e por outra pessoa que o trouxeram
até” a cidade de São Paulo. Ali chegando, sozinho, dirigiu-se à autoridade policial não se sabe
ao certo porque. Ao ser interrogado, disse que havia estado preso por “ter assassinado o genro
de seu senhor, de nome Carlos Augusto de Camargo”, mas o júri absolvera, por atenuantes.
Benjamim pediu a Carlos Augusto que lhe tirasse os ferros que trazia aos pés. Tendo o
seu pedido negado, “tratou de fugir e tirar por si o ferro” . A autoridade senhorial, como se vê,
já não era determinante para que os ferros dos escravos fossem rompidos. Preso um tempo
depois, infligiram-lhe a mesma pena. Benjamim negou obstinadamente a condição de cativo:
rejeitava os castigos, fazendo da fuga uma alternativa de liberdade. Então, fugiu pela segunda
vez e, nessa ocasião, topando com o genro de seu senhor no meio do mato, recomeçaram os
castigos, agora com pancadas de chicote, “o que repelia ele depoente livrando-se” . Porém
Camargo, pretendendo atirar com um revólver em Benjamim, foi surpreendido com um
empurrão. Era um momento decisivo na vida do futuro liberto. Com uma pedra, esmagou o
crânio do genro desgraçado.
Preso por assassinato, o júri entendeu que sua luta por liberdade era justa e que os
castigos que sofria eram exacerbados, enviando-o de volta à fazenda do senhor. Lá, permaneceu
por meses recebendo castigos diários como vingança pelo assassinato. Foi mantido no tronco
por uns 60 dias.
Chama a atenção que o depoimento de Benjamim fale pouco dos castigos que recebeu.
Em contrapartida, o tempo todo cita as algemas que lhe prendiam os pulsos e os ferros que lhe
impediam os movimentos. As correntes pesadas do escravismo, aludidas constantemente,
inspiravam revoltas e, em momentos de tensão, a tentativa de libertar-se delas exigia medidas
violentas, caso contrário elas nunca seriam rompidas. As correntes de Benjamim tiveram esse
desfecho, mas só depois de meses de torturas físicas que lhe renderam marcas no corpo pelo
resto da vida.
Insurreições escravas também pipocavam nas mais diversas regiões da província. Atos
coletivos fizeram dos anos de 1887 e 1888 momentos de ressignificações sociais da liberdade.
Escravizados e livres, nesse momento conciliavam iniciativas com o objetivo de pôr fim ao
cativeiro.91 Esse foi o caso da insurreição de escravos de diversas fazendas de Capivari, em
setembro de 1887. Ali, guiados por “dois indivíduos de condição livre”, os escravizados
“insurgiram-se, saindo armados das fazendas [ilegível] para haverem a sua liberdade, por meio
da força” .92 Dispostos a repelir qualquer “obstáculos que ocorressem”, “resistiram duas vezes
à força pública” .93
91 Os casos aqui tratados também foram analisados por Maria Helena P. T. Machado. À pesquisa dela, também
devo minhas interpretações que, não só não diferem das dela, como são por ela inspiradas. Cf.: MACHADO,
2010 .
92 APESP, Polícia, Correspondência policial. C02678 de 1887.
93 APESP, Polícia, Correspondência policial. C02678 de 1887.
63
acarretaria a pena de morte aos ‘cabeças’, ou galés perpétuas ou, no mínimo de quinze anos” .
Aos demais participantes, a pena seria de açoites. O artigo seguinte corroborava as penas para
pessoas que houvessem sido escravas. Deste modo, temos a certeza de que todos os que
participaram da insurreição, livres ou escravos, eram negros. Por isso lastimava-se o delegado,
pois, “tendo a lei n° 3310, de 15 de outubro de 1886, abolido a pena de açoites”, parecia
impossível para ele a punição exemplar dos crimes cometidos, ficando os “escravos
insurgentes” impunes. Para ele, a questão afetava o Poder Judiciário, que deveria “julgar sobre
a dúvida de estar ou não revogado o artigo 113 do Código Criminal” . Com o imbroglio jurídico,
o delegado temia o conhecimento dos escravizados sobre uma lei que lhes dizia respeito,
levando à revolta e gerando fatos de “grande alcance social, e podendo dar-se constantes
perturbações na ordem pública” . 94 A confusão social durante o processo de abolição tinha
efeitos na legislação criminal do Império. Naquele momento, os lugares sociais estavam sendo
constantemente disputados.
Impunes ou não, certamente os escravos sabiam da lei que proibia a aplicação de açoites
e viam crescer suas chances de alcançar a liberdade. /Os últimos anos da escravidão em São
Paulo foram marcados por ataques à legitimidade do sistema. Crescia o número de negros que
viajavam para a capital, preocupando os administradores públicos. A preocupação está
expressa no aviso do mesmo delegado de polícia de Itu ao Chefe de Polícia sobre o risco de
que, se continuasse a “fuga de escravos das fazendas”, eles poderíam se dirigir à Capital. Os
ex-escravizados reuniam-se
negros fugidos no Alto de Santana” com o auxílio da força pública policial e de um piquete de
cavalaria.96
A tal ordem pública vinha sofrendo fortes resistências. O relato continua com a instrução
de que “fosse dobrado o destacamento do posto policial de Santana, com mais 10 praças” e que
as autoridades providenciassem a repressão aos perturbadores. Mas elas não puderam ser
cumpridas, pois um grupo de mais de 40 pessoas, “todas armadas, havia passado, com direção
à capital, e não puderam ser batidos pela força, por ser este muito inferior ao número dos
desordeiros, que se mostravam dispostos à luta” . A alteração da ordem já havia atingido os
bairros paulistanos. Prevenir tais ações era muito difícil para a polícia. A cor dos sujeitos
“dispostos à luta” é apagada em quase toda a carta, só sendo revelada quando o subdelegado
informa que, somente às 11 horas da noite a polícia conseguiu prender “um grupo suspeito” de
5 pessoas, que se declararam escravos, “bem como todos os outros que se evadiram na ocasião
de serem perseguidos” .9697
A conjuntura sócio-política do Império nos anos finais da década de 1880 era de grande
tensão. O status quo escravista já não podia se manter frente às manifestações de oposição.
Manifestações como a de 23 de outubro de 1887 pelas ruas da cidade de São Paulo. O cenário
era tão tumultuado que o próprio Chefe de Polícia precisou se explicar ao presidente da
Província, Rodrigues Alves. Eram 8 horas da noite quando um grupo de negros se voltou
“contra a força de polícia que fazia a guarnição da cidade, provocando grande desordem no
Largo do Palácio”, dando todos “vivas à liberdade e morras aos escravocratas” . O pânico se
estabeleceu “entre as famílias que se achavam no jardim do Palácio” . A cambulhada foi tão
forte que as digníssimas famílias tiveram que ser guardadas dentro do Palácio, cujos portões da
entrada foram fechados e protegidos pela cavalaria. Foi preciso postar um contingente de
infantaria em frente ao Palácio, “afim de que, se a turba continuasse, as famílias ali não
sofressem violências, e ficassem garantidas” .98
A aderência social à causa escrava foi significativa. Cerca de duas mil pessoas seguiram
ao bairro da Liberdade, onde “diversos cidadãos dignos pediam socorro à polícia, visto como o
grupo de desordeiros, que para ali se tinha dirigido, estava apedrejando as casas, levando assim
o susto e terror à todas as famílias” :
O ato começara antes das 21 horas e durou até quase meia noite, percorrendo a área
central da cidade sem que a polícia conseguisse manter a ordem. Em tom quase aliviado, o
delegado dizia que, depois de “reestabelecida a ordem pública”, policiais percorreram durante
a noite as ruas em patrulhas com as ordens de que “as autoridades estivessem atentas à qualquer
movimento”, mas nada ocorreu até o amanhecer.99100
Como se pode notar, são muitos os exemplos de que os anos finais da escravidão em
São Paulo estiveram recheados pela mobilização abolicionista, conjugando homens brancos
99 MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. “Sendo cativo nas ruas: a escravidão urbana na Cidade de São
Paulo”. In: PORTA, Paula (org.). História da Cidade de São Paulo : São Paulo: Paz e Terra, 2004, pp. 59-99.
100 APESP, Polícia, Correspondência policial. C02678 de 1887.
66
letrados como o conhecido abolicionista Clímaco Barbosa, à malta turbulenta. O que assustava
ainda mais a polícia violenta e escravista era a presença de uma grande parcela dos negros da
cidade: o ato fora composto na maior parte por “de negros desordeiros” e duas mil pessoas
representavam 4% de uma população de aproximadamente 50.000 habitantes. Em apenas um
ato abolicionista, 4% dos moradores de São Paulo foram às ruas.101
Oito dias depois dessa notícia, o mesmo jornal publicou uma carta de Ramos Nogueira.
Como um “propagador do espiritismo”, sentia-se “forçado a bater de frente a todos os pontos
negros da sociedade” . Considerava-se abolicionista porque era irmão dos escravos em Cristo.
Essa relação fraterna deveria cumprir algumas regras. Aos escravos cabia a obediência,
enquanto os senhores deveríam amar seus escravos. Somente essa relação afetuosa resguardaria
a ordem na sociedade. “As seduções, ajuntamentos, alugueres e distribuições de escravos
alheios não foram aconselhados por Cristo” . Na verdade, a missiva tinha o firme propósito de
defesa do direito de propriedade dos latifundiários paulistas. Portanto, aqueles eram crimes
impostos pelos abolicionistas radicais que os escravos, ingênuos e sem discernimento, não
conseguiríam evitar sozinhos. Cabia aos senhores tutelar a libertação de seus escravos e, para
isso, Ramos Nogueira propunha a criação de um fundo na capital que, oriundo dos esforços dos
fazendeiros de Campinas, Itu e outros lugares, deveria “ter uma caixa forte para processar”
quem incentivasse a fuga de escravos.103
101 “(...)funcionando como um guarda-chuva ideológico, no início da década de 1880, o abolicionismo e sua
militância cerziam, de maneira única, gmpos sociais diversos e em si mesmo antagônicos (...) em torno do lema
comum da abolição ‘“Viva a Liberdade e Morram os Escravocratas”. MACHADO, Ibidem, p. 59-99.
102 ATAQUE a um quilombo. Correio Paulistano , São Paulo, 11/08/1887, p. 3.
103 AOS FAZENDEIROS e possuidores de escravos. Correio Paulistano , 18/08/1887, p. 3.
67
Não precisamos de muito para avaliar que estas palavras eram de um homem que vinha
experimentando toda a sorte de um aumento das rebeliões escravas que os anos de 1880
acomodaram. Sua posição de classe ou não o deixou entender, ou o fez omitir, que os
escravizados que lutavam por sua liberdade, faziam-no a partir de concepções políticas de
liberdade que lhes eram próprias. De qualquer modo, as palavras de Ramos nos remete a um
medo senhorial que é mais uma comprovação de que a situação dos futuros ex-senhores, que já
era grave, piorava numa velocidade impressionante.
Desde 1886, depois da revogação das lei dos açoites, poderíam ser lidos discursos de
fazendeiros indômitos que alegavam ser o fim dos castigos físicos aos escravizados “o mesmo
que abolir a escravidão” .104 Esse era um fato que já se estendia desde o início da década de
1870. As leis emancipacionistas de 1871 e 1885, apesar de suas limitações, contaram como
importantes conquistas escravas. Foram “o reconhecimento legal de uma série de direitos que
os escravos haviam adquirido pelo costume e a aceitação de alguns objetivos das lutas dos
negros” .105
Desse modo, as palavras de Nogueira deixam entrever que o seu incômodo tinha origem
na convicção de que a escravidão vivia os seus últimos dias. Os escravizados tinham clara noção
da fragilidade da instituição naqueles anos. Sabiam que o momento era oportuno para eles. A
constância das fugas, de notícias sobre quilombos e de revoltas são indícios fortes de que
aquelas mulheres e aqueles homens aproveitavam a possibilidade de melhorar suas vidas e lutar
por suas liberdades.
Tudo isso era de conhecimento geral entre os que viveram os derradeiros anos da
escravidão. E por isso que Ramos Nogueira dizia-se abolicionista, mas um dos que respeitavam
os mandamentos legais. As regras que deveríam reger a relação senhor-escravo, descritas por
ele, faziam referência à uma conexão entre pai e filho. Era uma descrição da ideologia senhorial,
onde a “estrita justiça” deveria ser a vontade do pai.106
Peço ao sr. Visconde de Pamaíba que mande dar caça aos ladrões, porque a
Paulicéia não é a Mantiqueira.... Confiando na justiça da causa que defendo,
conto com os homens de bem e com o brioso corpo acadêmico, que tão
brilhantemente fez a sua festa à remissão dos cativos.
Como conclusão, ironiza a ação dos caifazes, dizendo que a “evolução abolicionista” 109
não precisava do auxílio daqueles salteadores, cujo líder era Antônio Bento. Para ele, aos
gatunos devia-se a cadeia; aos escravos, o seu perdão.
Acontece que, cada vez mais, a ação política dos escravizados forçava o Estado imperial
à escolher um lado do binômio senhor-escravo. E como Chalhoub nos disse, as leis
emancipacionistas também podem ser interpretadas como exemplares “do instinto de
sobrevivência da classe senhorial” .110 Ou o Império reconhecia os direitos costumeiros que os
escravos já haviam adquirido ao longo de suas vidas, ou as tensões seriam ainda maiores. Não
é a toda que as ações jurídicas por liberdade vão se tornando cada vez mais frequentes já em
meados do século XIX. Esse é mais um indício de que o Estado, seja pela sua face judiciária,
E os anos finais da escravidão foram conturbados, nesse sentido, já que o conflito entre
aquele direito e a legitimidade da luta pela liberdade escrava ficava cada vez mais evidente.
Isso, não só no plano objetivo das lutas escravas, como, também, no campo das idéias militantes
de gente como Ramos Nogueira.
A imagem era de caos. A julgar pela notícia, senhores brancos e seus fiéis escravos
corriam riscos com aquele desgoverno dos fugidos maliciosos. Mas a quem atribuíam a culpa?
Não aos escravizados. Construiu-se o estereótipo do abolicionista branco, manipulador das
vontades escravas. Cafeicultores, parlamentares e jornalistas escravistas conferiam a essa figura
a responsabilidade por tais casos. Prova disso é o caminho argumentativo de um “digno
correspondente” do Correio Paulistano, que dizia, em 30 de outubro de 1887:
111 GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de
Janeiro no século XI. SciELO - Centro Edelstein. Edição do Kindle.
112 ASSALTO. Correio Paulistano, 12/10/1887, p. 2.
70
Foi aqui [na capital] recebida com grande gáudio dos abolicionistas a notícia
da sublevação dos escravos, que a esta hora acham-se encurralados na Serra
do Cubatão, convertida por eles em uma nova Termópilas.
Acho que em tudo isso predomina mais [n]o espírito político do que espírito
humanitário; a escravidão, cujos dias estão contados, tem sido e será até o seu
último dia, uma grande especulação para os políticos e para os papa-pecúlios.
Condoo-me da sorte do escravo que deseja ser livre, mas o meu entusiasmo
pela liberdade dos negros não vai ao ponto de desejar e aplaudir a escravidão
dos brancos.113
“Est modiis in rebus ’’!11415A expressão em latim é exemplar; havería de dar limite para
tudo aquilo. Segundo o articulista anônimo, era notório que o fim da escravidão se aproximava.
Mas isso deveria dar-se dentro da perfeita ordem. Seria possível? Transformar a ação
abolicionista dos escravos em ato heroico, tornando a Serra de Cubatão em nova Termópilas,
seria coadunar com uma postura política que transformaria a escravaria no rei Leônidas com os
escravocratas de Xerxes. Acusar os abolicionistas de “papa-pecúlios” era comum na campanha
contra eles, parte da estratégia de desestabilização política daquela militância. Tido como
bastiões da luta abolicionista, José do Patrocínio e Antônio Bento enfrentaram acusações desse
tipo.113 O risco de inversão da norma escravista causado pelas ações dos cativos justificou a
construção desse discurso. Algo precisava ser feito. Nesse contexto, a opinião pública tornou-
se palco das disputas discursivas de abolicionistas e de escravocratas. O ardil destes últimos
residia em imputar ao escravo falta de discernimento e culpar os abolicionista de causarem
desordens.
Como todo discurso, este também apresenta contradições. O contexto não aceitava a
omissão de palavras que se referissem à má “sorte do escravo”, nem ao seu desejo de “ser livre” .
Sorte, desejo, e “notícias de sublevação de escravos” são expressões de um arcabouço político
confuso. Declarando que a situação de cativeiro tinha a ver com a sorte dos cativos, o que, de
forma justa, lhes certificava o desejo de liberdade, ficava cada vez mais trabalhoso o
encadeamento das idéias de sublevação escrava com a noção de passividade negra. Então, a
luta contra os “papa-pecúlios” se dava em duas frentes: no combate pela opinião pública e na
oposição à “escravidão dos brancos” que as ações escravas impunham.
Escravo do medo e consciente disso, o comentarista dizia que o governo não deveria
cruzar os braços “e entregar-nos de mãos atadas aos anarquistas que aplaudem a fuga dos
negros, o abandono das fazendas e a perturbação da ordem” . Ramos Nogueira pautava a ação:
se o Estado não tinha condição de se opor de forma efetiva à rebeldia escrava, alguém precisava
ser punido; aqueles “que de repente começaram a pregar uma cruzada contra a escravidão,
depois de enriquecidos com o suor do escravo ou de lhes ter comido a carne, deixando apenas
de roer os ossos” .116
Embora não duvide que houvesse escravos enganados por alguns “arautos da liberdade”,
não é isso o que busco elucidar. Importa, aqui, demonstrar que, durante os anos finais da
escravidão, o jogo ainda estava sendo jogado. A certeza de que o seu fim se aproximava não
deixou de lado a preocupação com “a manutenção da ordem pública e da segurança individual” .
A dúvida era complexa: quem podería “prever as consequências e conter a onda que sobe e
ameaça devorar tudo”? 117
Parte da imprensa da capital começou o ano de 1888 tentando responder a essa questão.
Tomando como base as páginas do Correio Paulistano , tendo a notar uma mudança de estilo
ao tratar da iminência do fim do cativeiro. Foi comum a publicação, durante esse ano, de
conferências parlamentares atestando a necessidade de se pôr fim à escravidão, cuja “hora de
seu termo final há de soar muito mais depressa do que geralmente se acredita” .118 Pouco a
pouco, os conservadores, principalmente os monarquistas, se aproximavam dos abolicionistas.
Já era tempo dos homens públicos tomarem medidas, antes que a “anarquia” assumisse
as rédeas da sociedade. Foi assim que o deputado José Luís de Almeida Nogueira iniciou sua
fala na Assembléia Provincial de São Paulo em janeiro de 1888. Conservador até o fim do
Império, ele sempre fora partidário da tese da abolição gradual, defendendo a indenização aos
fazendeiros.119 Ainda assim, na sessão daquele dia, assumindo que o legislador deveria conciliar
a justiça e a utilidade geral, recomendava que fosse reconhecida a influência poderosa do meio,
a pressão que o momento impunha aos interesses da política nacional. Os nobres deputados não
deveríam temer a mudança de posição, permitida pela gravidade do tema: “os homens
modificam suas vistas, como o tem feito notavelmente eminentes políticos comprovincianos
nossos, num e noutro partido monárquico e até entre os republicanos” .120
A abolição não seria mais uma causa de princípios humanitários ou partidários. Aqueles
eram tempo de resolução para os “interesses universais” daqueles proprietários. A ameaça à
tranquilidade pública podería afetar a cobiça latifundiária dos paulistas, justificando a mudança
de postura de qualquer membro daquela casa. Já era tarde para se basear em considerações de
ordem pública ou econômica com o intuito de adiar a abolição. As coisas modificavam-se
depressa demais: “nada mais natural do que esse progresso rápido, mais rápido do que
geralmente se supõe e que se assinala não por anos, não por meses ou dias, mas até por horas e
por minutos” .121
Se era difícil conter a “onda negra”, a “libertação do braço servil” deveria vir de mãos
dadas com a “substituição dele pelo trabalho livre”, com leis regendo o pós-abolição de forma
a assegurar o mandato da raça branca. Tendo por princípio manter a legalidade e a ordem, pedia
cuidado no andamento da questão. Só a propaganda emancipacionista e a persuasão legislativa
poderíam, segundo Nogueira, poupar-lhes do reinado “da anarquia, da desordem, da pressão
física e de manejos” .122
crime como alternativa para o fim da escravidão. Aqui se nota a inflexão dos discursos
emancipacionistas. Para estes, durante o ano de 1887, a estratégia abolicionista era incitar à
indisciplina;, quatro meses antes da assinatura da Lei Áurea, a propaganda pela liberdade
imediata do “elemento servil” não exortava o emprego da força por parte dos escravos. Ao que
parece, mudar os rumos do discurso foi um modo de fingir uma queda de pé. Como vimos, a
contestação escrava ao domínio senhorial já havia se espalhado pela província. O apoio popular
estava no auge. Nem a oposição policial conseguia conter o ímpeto abolicionista que se
espalhavam pelas plantações e ruas. Guerra perdia, salvem o que restar! Sobrava emprestar à
ação escrava um sentido de excepcionalidade, dizendo que os “fatos de violência” e os
“atentados criminosos” não faziam parte de um plano maior e não passavam de episódios
isolados:
Com certeza, aqueles “corações patriotas” buscavam alguma espécie de conforto. Como
se pode deduzir, pairavam no pensamento daqueles senhores ansiedades sobre uma guerra civil
pela abolição. Lembravam-se, ainda que sem citá-las nominalmente, da revolução em São
Domingos e da Guerra Civil dos Estados Unidos, por isso o dever de confeccionar
simbolicamente uma atmosfera de paz e tranquilidade. Era preciso evitar a divisão do país entre
os ânimos distintos dos “brancos e negros” . Em outras palavras, aquelas “feras desesperadas”,
que se amotinavam dentro das senzalas deveríam ser controladas a qualquer custo, mesmo que
ao preço da concessão da liberdade.
Ao Estado cabia o papel da autoridade pública. Seria sua “missão social” evitar que o
desenrolar abolicionista principiasse um quadro de violência alastrado por toda a província.
Almeida Nogueira admitia a derrota. No entanto, minimizar as perdas deveria estar na ordem
do dia para aqueles parlamentares.
A fuga coletiva não podería ser, naquele momento, assumida como uma ameaça, pois
isso tornaria concreto seu medo de que o Brasil se dividisse entre a vontade dos brancos e a
revolta dos negros. A dissimulação era a melhor estratégia para aquele momento de inquietação.
Anuir de maneira explícita ao pedido do emprego da força policial contra as lutas escravas em
São Bernardo podería acirrar ainda mais os ânimos. Portanto, ao negar apoio à solicitação, o
deputado conservador não estava defendendo o direito de manifestação daqueles sujeitos, mas,
sim, a própria cabeça e da dos seus companheiros.125
provincial entendia que os interesses individuais naquele momento estavam “em conflito com
o interesse social” . Portanto, defendia que os poucos lavradores escravistas não permanecessem
longe de “seu tempo”, opondo resistência ao fim do cativeiro. Calculava que “não resta na
província de São Paulo, senão um terço de seus escravos, para receber a sua liberdade
completa” . O leite já havia sido derramado. Os percalços pelos quais todos ali passavam era o
preço a ser pago pelos erros de seus antepassados, que cometeram falha gravíssima quando
instituíram a escravidão. Cabia àqueles congressistas responder pelo erro.
Essa geração somos nós. Pois bem; tenhamos nós a coragem do sacrifício,
assim como os negros játiveram a resignação do sofrimento em tantos séculos
de escravidão (muito bem, muito bem!)126
Agraciado com uma salva de palmas, vinda das galerias muito cheias, o senhor deputado
sabia como içar a bandeira da abolição sem pôr em xeque a legitimidade da propriedade privada.
Mais audacioso que seu antecessor, ao defender a abolição imediata do trabalho escravo, o
tribuno conferia papéis determinados àquela função. Eles, filhos dos antigos escravocratas,
ganhariam o título de geração emancipadora, enquanto aos escravos restava a epíteto de raça
resignada.127
Como se vê, nos primeiros meses de 1888, travava-se uma disputa simbólica sobre a
autoria da abolição. Nas serras, campos, fazendas e cidades, uma resistência popular impunha
seus anseios de liberdade, enquanto nos centros do poder provincial e entre os proprietários,
tentava se defender uma coesão de interesses em torno da convicção de que tudo estava sob
controle. Sabiam que não era bem assim; contudo, apegavam-se à possibilidade de ditarem a
regra do jogo.
Partindo da premissa de que não havería meios de fazer com que os ex-escravizados
voltassem ao “trabalho servil” e reatassem “de modo normal e permanente o desempenho de
suas tarefas sob o domínio do senhor”, era preciso aceitar não haver “poder humano que lhe
contenha a ardente aspiração a ser um homem livre” ! Mas o deputado discursava segundo uma
lógica muito própria daqueles que governavam a nação. Segundo ele, a escravidão só existiu
com tanta força e por tanto tempo devido a “obliteração do senso moral” de alguns senhores e,
principalmente, em virtude de uma ignorância crassa dos escravizados, que, por uma
inteligência entorpecida, acreditavam piamente na supremacia da “raça branca” . Portanto,
culpados pela existência da escravidão, ignorantes e sem senso moral adiantado, segundo a
lógica do parlamentar, não cabia ao escravo a responsabilidade de elaborar o fim do cativeiro.
Era dos deputados o fardo de introduzir a nação no “século das luzes”, condenando pelo direito
e pela moral o julgo de um homem sobre outro. “A escravidão é ainda, embora precariamente
garantida pela lei, mas de fato é mantida pelo obscurantismo e pelo atraso mental do escravo,
cujo espirito vive envolto em densas trevas” . As vezes “temos olhos e não vemos, temos
ouvidos e não ouvimos, isto é, temos inteligência e não compreendemos, temos coração e não
sentimos” . Não fosse essa premissa do evangelho, não fosse a apatia das faculdades mentais
dos senhores de escravos, talvez todo o “horror da escravidão” podería ter sido evitado.130
Uma vez desperta de um sono secular, a “raça branca” vinculou-se, “com grande
audácia, muito ardil e energia extrema para iniciar” a propaganda abolicionista de forma
ordeira. Tal qual os republicanos fizeram, um mês antes do 13 de Maio, os conservadores se
designavam como abolicionista: eram os abolicionistas pela ordem. E não o podiam de ser. Os
proprietários de escravos se aterrorizaram com razão. A sociedade sentia-se abalada e
amedrontada pelos delírios anárquicos. Mas era tempo de confiar, de crer que, contra a
tempestade iminente da liberdade, homens como Nogueira estavam trabalhando para solucionar
a crise. A província estava pronta para lançar mão dos “meios adequados para a realização de
seus grandiosos desígnios” .131 Estancada a sangria imposta pela vontade escrava, com a
implementação do imposto e sanada a duvidosa falta de mão de obra pela imigração europeia,
os emissários da liberdade acenaram para o Legislativo imperial, pedindo uma lei que abolisse,
defmitivamente a escravidão.132
Desde 1887 projetos foram apresentados para a Assembléia Geral do Império visando o
fim da escravidão, todos eles com a ideia de que a liberdade deveria ser decretada mediante a
condição de prestação de serviços. A expectativa em torno da liberdade crescia. Em 1888, foi
substituído o gabinete Cotegipe por outro conservador, João Alfredo, ao passo que o paulista
Incumbido da elaboração do projeto, Antônio Prado previa uma política de tutela dos
ex-escravizados, que deveríam permanecer em companhia de seus senhores por dois anos.
Deveria ser reprimida a vadiagem. Contando com os retoques finais de Ferreira Viana, a
apresentação ocorreu no dia 8 e, em regime de urgência, aprovado em 13 de maio daquele
A cidade de São Paulo amanheceu eufórica no dia 13 de maio, olhando para o horizonte
de libertação dos escravos. Segundo notícia d ’A Gazeta do Povo , transcrita pelo Correio
Paulistano, esse era o acontecimento de maior importância para a história política da nação.
Não se podia ficar indiferente aos interesses dos que “cegamente” se dedicavam pela “causa
dos cativos” :
Na mesma edição, foram transcritas as palavras que Aristides Lobo, publicadas no dia
anterior:
133 MENEZES, Jaci Maria Ferraz de. '‘Abolição no Brasil: a construção da liberdade”. Revista HistedBr On-line,
Campinas, n.36, p. 83-104, dez.2009, p. 94. Disponível em:
<httn://www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/36/art07 36,ndf>. Acesso em: 01 jan. 2018.
134 Idem, Ibidem, p. 95.
135 A GAZETA do Povo escreve. Correio Paulistano , São Paulo, 13/05/1888, p. 1.
79
O espetáculo é único entre nós, mas é normal em seu gênero. A nação despe-
se precipitadamente de sua mácula, como quem tem de comparecer perante
uma outra solenidade maior que a espera e que só pode recebe-la com a
roupagem pura e nítida da liberdade.136
Espetáculo único, sem dúvida. Na Corte e na cidade de São Paulo, a data da conquista
da abolição foi ansiosamente aguardada por escravizados e senhores, por libertos e pelas mais
diversas classes do Império. Despois de sua decretação, seguiram-se dias de comemoração pela
liberdade. O fim da escravidão envolveu diferentes sentimentos e expectativas. Engendrou uma
série de tensões que não tiveram suas origens ali e estavam longe de serem solucionadas. A data
da abolição marcou um período incerto da história nacional, no qual mulheres e homens
viveram intensos dilemas na elaboração de noções próprias de liberdade e de cidadania.
Aristides Lobo nos deixa essa impressão. Que caminho seguir uma vez findo o trabalho
escravo? Para Lobo, “demolida a montanha negra, resta estudar o horizonte que ela ocultava,
orientarmo-nos e partirmos todos em busca da verdadeira liberdade, que é a terra prometida da
democracia” . Não restava dúvida para aquele pregador republicano. Já que a São Paulo coube
romper com o “grande monólito da escravidão”, teria de ser a província, novamente, quem daria
“o grande impulso da revolução política” que salvaria a nação. E concluía: “Extinta a escravidão
pela Monarquia, quer que esta seja extinta pela República” .137 A perspectiva republicana havia
muito era elencada como alternativa à Monarquia. Talvez mesmo antes da independência esse
ideal fora aventado.138 Mas foi no final de 1870 que essa perspectiva ganhou corpo partidário,
com o Partido Republicano.
Ainda assim, suas bases foram construídas nos parâmetros da ordem defendida pelos
emancipacionistas e abolicionistas. O princípio de defesa da propriedade privada funcionou
para tranquilizar os interesses das classes dominantes.140
Essa hipótese é reforçada pela constância de artigos jornalísticos que levantavam a tese
de uma “revolução social e econômica” consumada “sem derramar uma gota de sangue, sem
arrancar uma lágrima de dor” !141 Era evidente o esforço dos jornais conservadores ou
republicanos para, depois de abolida a escravidão, impor aos anais da “História Pátria” um viés
de paz social e de ordenação da produção.
139 LEMOS, Renato. “A alternativa republicana e o fim da monarquia”. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo.
O Brasil Imperial (1870-1889). Vol. 3. 2a ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 403-404.
140 Idem, Ibidem, p. 404.
141 SEM TÍTULO. Correio Paulistano, São Paulo, 15/05/1888, p. 1.
142 ALBUQUERQUE, op. cit.
81
Lei Áurea pudesse libertar o “senhor branco do cativo negro” .143 Tanto um como outro grupo
pensavam em alternativas para suprimir os choques entre senhores e escravos, evitando a
oposição entre brancos e negros. Emitir mensagens de paz e harmonia logo após a decretação
da lei n° 3353, foi o método mais óbvio de que conservadores, liberais e republicanos se
utilizaram. Assim se referia o Correio Paulistano sobre a promulgação da lei:
O dia da abolição não foi marcado pelo caos. Pelo contrário, meses depois, eram comuns
que os jornais da capital paulista publicassem notícias sobre bailes de libertos, banquetes e
fogos que cuja alegria se desfazia “em discursos, sambas e alguns rolinhos” .145 Multidões de
libertos festejaram, por meses, na Capital, em Pirassununga, Campinas, Jacareí, Franca, Santos.
Eram festas “promovidas pelos libertos em sinal de júbilo pela extinção da escravatura” .146
Ainda assim, foi exagerada a tentativa de exaltação da paz pelos abolicionistas, mesmo
daqueles de longa data. Por isso, precisavam apontar os culpados pelo vigor de um sistema que
durou tanto tempo. Almeida Nogueira, como vimos, já havia achado os seus: os negros, que
inculcaram a ideia de superioridade branca, e também alguns brancos que demoram a enxergar
a realidade.147 Sendo assim, e, “por honra do Brasil”, declaravam que “nunca houve
escravagistas por princípio, que defendessem a escravidão pela escravidão” :
Não havia vencidos nem vencedores naquele dia. Para os conservadores, a data era de
“comunhão de todos os partidos e de todas as nacionalidades” que se conciliavam para a
formação da “grande Pátria” . Nem brancos, nem negros, triunfavam, somente “brasileiros” .
Congratular-se-iam todos, “pelo resgate de três séculos de injustiça legal” .149
Para o futuro prefeito da cidade de São Paulo, aos conservadores caberíam os maiores
louros pela conquista.151 De fato, tanto a lei de proibição do tráfico negreiro, de 1850, quanto
as leis do Ventre Livre e do Sexagenário, foram marcos da atuação do partido conservador,
durante o Segundo Reinado. Mas, culminando com a conclusão de que o gabinete conservador
de 10 de março consumou a “obra de redenção da raça”, Antônio Prado tinha a intenção de
assumir para si e seu partido a autoria da extinção do trabalho escravo. A palavra redenção,
rotineiramente utilizada naquele contexto, diz muito sobre o campo simbólico do discurso que
estava em disputa.
Atribuindo as glórias aos mais variados sujeitos sociais do Império, Prado outorgou
lugares sociais simbolicamente ocupados por homens brancos. Nesse sentido, dizer-se parte do
grupo dos conservadores que tanto lutaram pela liberdade, esquecendo-se, num lapso, de citar
os escravizados, significava, no frigir dos ovos, o mesmo que dizer-se causador da salvação “da
raça” .152
Digo que Antônio da Silva Prado dizia isso de si pois, proprietário do Correio
Paulistano 153 desde 1882, o “eminente estadista” não fez questão de que seu nome e o de seu
partido fossem retirados das páginas do Correio. As linhas de seu jornal afirmavam sua
disposição para o “assombroso combate” contra a abolição, “cuja vitória não tardou a se
declarar logo em favor da hoste guerreira que na frente conduzia a bandeira branca da
abolição” .154
Intitulado Post tenebras, esse artigo era explícito. Depois das trevas que a escravidão
legou aos legisladores, senhores de terras e demais “heróis da liberdade”, a esperança de luz,
da “bandeira branca da abolição” 155, seria erguida pelo dono do jornal.
Mas, às vezes, as angústias da incerteza são tantas que nos obrigam a encontrar soluções
rápidas e simplistas. O autor do artigo, Wenceslau José de Oliveira Queiroz, esconde uma
ambiguidade de significados na imagem daquela bandeira: ela era branca no sentido de paz
entre senhores e escravos ou no sentido de ser a abolição uma bandeira dos brancos? A
ambivalência daqueles tempos justificava a inquietação. Tendo a achar que a flâmula era um
pouco das duas coisas. Sem dúvida, Wenceslau Queiroz sabia disso. A imagem de uma bandeira
branca remetia a um tempo em que as conquistas de liberdade definiam-se em oposição à
escravidão, tornando a experiência de autonomia escrava uma prerrogativa branca.156
discursivas que, nos dias posteriores à abolição, denotavam paz, conciliação e redenção. No
fundo, a manipulação desses conceitos trazia em si intenções que evidenciaram a importância
dada pelos contemporâneos ao processo e à concepção de raça.
Seria muita ingenuidade se pensássemos que os recém libertos não conhecessem o teor
dessa manipulação. Alguns deles sabiam que, por de trás do discursos de paz social,
conservadores, liberais e republicanos escondiam seus interesses pela manutenção de seus
direitos à propriedade privado. Não foram raros os conflitos entre recém libertos e a polícia que
tinham como ponto de partida esse ângulo interpretativo. Conflitos e mortes também fizeram
parte das vivências dos contemporâneos ao imediato pós-abolição. Conflitos como o que
ocorreu em uma região rural da província, onde libertos lutaram com um destacamento de
praças de polícia, interessados em uma questão de divisas de terras.160
Como vimos, vários dias de festas marcaram as ruas de São Paulo. O entusiasmo era
indescritível. Pessoas ocupavam as ruas e as redações dos jornais. Ocorreram passeatas com
estandartes diversos. Já no dia 13, o “entusiasmo tocou então ao auge do delírio; e inúmeros
foguetes subiram aos ares durante o espaço de uma hora, condensava-se cada vez mais a
população de São Paulo” . As impressões do homem que descrevia os festejos era de que se
notava “naquela multidão” uma “desusada e estranha alegria” .163
Com efeito, era difícil tentar descrever os dias de festas somente enaltecendo “aos
promotores da concretização de ideia tão humanitária” . Cauteloso, contou somente da
participação das “casas de comércios”, dos “clubes” e de “outras sociedades” que içavam
bandeiras de todas as nações. A São Paulo daquele momento foi tida como uma mistura de
todas as nacionalidades, onde europeus e brasileiros erguiam “entusiásticos vivas ao Brasil” .
Aí estava implícita a composição racial dos festejos. Eram pessoas de todas as nações e
representantes do comércio, acadêmicos que, “saudando-se mutuamente”, construíam uma
“procissão cívica” em clamor aos ideais abolicionistas. Brancos, todos eles compunham a
“população de São Paulo” que, patriota, celebrava com entusiasmo as festas da abolição. O
silêncio sobre a cor era revelador. Sem enxergar ou assumir as cores das “inúmeras pessoas”
que transitavam pelas ruas centrais da cidade, o relator das festividades emprestava um sentido
racializado a elas. Aqueles não poderíam ser negros dias; tornavam-se, nas linhas do artigo,
patrióticos, compostos, estranhamente, por “todas as nações” .165
A abolição já estava feita. Agora era hora de superar os vaticínios agourentos que
pairavam em torno dela. Cumpria “iniciar nova era de progresso”, sem “esmorecer descansando
à sombra dos louros da vitória” . A grande pergunta era o que fazer. Era certo que a “miséria de
uma raça” não podería mais reinar daquele tempo em diante. Mas a “causa nacional” dos
conservadores requeria, como já vimos, que seus quadros não fossem esquecidos. Antônio
Prado aparecia como o homem “a quem a raça negra e o povo brasileiro” deviam “eterna
gratidão” . Os negros, interpretados separadamente pelos conservadores, estariam em débito
pela vitória. Os brancos, aquele “povo brasileiro”, poderíam tranquilizar-se, pois, “estadista de
vistas largas” e de “planos assentados sobre a administração pública”, Antônio da Silva Prado
sabería priorizar a produção agrícola através do incentivo da “viação férrea, [...] imigração e
colonização” .166 Na nova era que se iniciava, prevaleceríam os interesses dos mesmos antigos
senhores, tranquilizava o Correio Paulistano.
O medo que os dias de incertezas causaram foi tão notável que, no segundo aniversário
da abolição, o mesmo jornal confessou ter existido um clima caótico, em que tirânicos embates
de idéias se agitavam entre as correntes opostas, cujas lutas “revolucionavam esta sociedade,
estabelecendo em todas as camadas sociais, no círculo dos partidos, no grêmio da amizade, no
seio das famílias” os “germens deletérios de divergências, de separação, de odiosidade e de
lutas, dissenções, a guerra intestina em suma, na sociedade brasileira” .167 A essa altura, com o
início da República, esse jornal já assumira posições adeptas do republicanismo e sua defesa
não se resumia apenas à figura de Antônio Prado. Junto com o futuro prefeito de São Paulo, a
imagem do deputado Francisco de Paula Rodrigues Alves passava a simbolizar o anteparo à
anarquia.
Juntos, Prado e Rodrigues Alves foram retratados como os grandes responsáveis por
impedir que a abolição se transformasse em um futuro tétrico, a partir de conflitos raciais que
já “começavam a negrejar sinistramente os horizontes do Brasil” . Na guerra de narrativas na
qual brancos e negros se oponham com suas peculiares concepções de cidadania e liberdade,
somente a maestria daqueles dois pode realizar uma “conciliação possível” entre as classes que
disputavam naquele momento. Fica evidente nessa discussão que os antagonismos
abolicionistas emanavam compreensões de que “os brasileiros” estavam divididos “em dois
campos inimigos”, que poderíam “atear a mais crua e desesperadora anarquia” no país.
Novamente, aparece a noção de que os caminhos da abolição poderíam levar a uma “guerra de
raças, na qual a cor da pele denunciaria a cada passo, nas estradas, nos caminhos, nas ruas,
dentro das casas, mesmo, os mais encarniçados inimigos” !168
Graças à evolução humanitária e política dos dois indivíduos, o Brasil se fez em “chuva
de flores, ao esplendido sol de 13 de maio”. As nuvens borrascosas e negras, “que
ensombravam” o futuro da nação, tinham desaparecido. A tática republicana nessa disputa de
narrativas era muito semelhante à dos conservadores. Não havia para onde ir. A luta entre
monarquistas e republicanos, apesar dos contrastes, tinham algo em comum. Nada mais
parecido com um proprietário conservador, que outro republicano. A maneira de racializar a
crise da abolição, atribuindo predicados grosseiros às ações escravas e às concepções de
liberdade dos libertos, era uma forma de descreverem a si mesmos como salvadores da nação.
Em todos os artigos que pesquisei, a cor dos sujeitos ou grupos citados nunca é
evidenciada. Isso não quer dizer que ela estivesse ausente. A bandeira da paz era branca, ao
passo que as nuvens e montanhas que enevoavam a visão de um futuro eram negras. Visões de
progresso foram constantemente descritas com claras cores; as incertezas e anarquias, aos
articulistas dos jornais, conservadores ou republicanos, apareciam pretas como a noite.
E Patrocínio tinha razão. Em artigo publicado n’4 Província de São Paulo dois dias
após à abolição, os republicanos enalteciam os liberais convertidos ao republicanismo e seus
correligionários. O jornal representante do PRP dizia que “a pátria sem escravos” não era ainda
“a pátria livre” . Cada coisa ao seu tempo. Os republicanos paulistas passaram a assumir
discursivamente a “vitória” abolicionista como uma etapa necessária para a proclamação da
República. Agora começava o trabalho de libertar os brancos, assentando a Constituição política
sobre bases mais largas e seguras para a felicidade do povo e glória nacional.170
E essa tática já era antiga dentro de suas fileiras. E claro que existiram cisões dentro do
Partido Republicano. Desde 1870 a questão que pautava os debates do partido era sobre a
precedência da República ou da abolição. Segundo Maria Fernanda Lombardi Fernandes, havia
aqueles que acreditavam que a causa republicana não podería ser dissociada da abolicionista.171
No entanto, na prática, a maioria de seus membros pensaram quanto às suas prioridades. No
caso paulista, por exemplo, os republicanos, junto com os conservadores, trabalharam para o
estabelecimento da política imigrantista que, gradativamente, abriu os horizontes dos
fazendeiros paulistas para o abandono do escravismo.
Com isso em mente, poucos dias depois do 13 de Maio, Antônio Carlos Sales dizia que
sua alma se elevava às alturas pela abolição. Considerando-se um “soldado” dos ideais
abolicionistas, sentia-se tributário das lutas pela Independência e dos que, antes dele, pelejaram
pela emancipação. Ora, “ sectário convicto da democracia e da liberdade”, não podia deixar de
cumprir com o seu dever de dar continuidade àquelas lutas. A pátria começara sua liberdade
rompendo o julgo metropolitano, estendia-a com o fim do cativeiro, agora, vassalo do desejo
de seus antecessores, deveria “senhoriar-se” do futuro da nação.174 Parafraseando Aristides
Lobo175, extinta a escravidão durante a Monarquia, a “lei sociológica” da evolução ditava que
ele, republicano, extinguisse o trono. Esse era o tom pelo qual se afinavam os republicanos. A
República aos “senhores” do porvir.
171 FERNANDES, Maria Fernanda Lombardi. “Os republicanos e a Abolição”. Revista de Sociologia e Política ,
n° 27, Curitiba, nov. 2006, p. 185.
172 ALONSO, Angela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra,
2002, p. 259.
173 FERNANDES, Maria Fernanda Lombardi. “Os republicanos e a Abolição”. Revista de Sociologia e Política ,
n° 27, Curitiba, nov. 2006, p. 185.
174 TREZE de maio. A Província de São Paulo, São Paulo, 15/05/1888, p. 1.
175 A ABOLIÇÃO é a nota do dia. Correio Paulistano , São Paulo, 13/05/1888. p. 1.
89
se colocava numa posição de difícil resolução. Se, de um lado, seu apoio popular crescia, junto
com as leis emancipacionistas, do outro, as elites escravistas cada vez mais se desagradavam
com os rumos políticos do imperador.
Um exemplo disso são os conselhos que Martinho Prado Junior deu a Joaquim Nabuco,
na publicação d'A Província de São Paulo, os quais tratei no início desse capítulo. Ainda em
1880, dizia ele, era preciso encontrar a melhor maneira de para por fim a escravidão, sem que
esmorecesse aos senhores.176
Ora atribuindo a culpa do atraso social e econômico ao escravismo, ora conferindo aos
monarquistas a responsabilidade de solucionar esse problema, os republicanos assumiram uma
política de ambiguidade que lhes serviu como um instrumento de agenciamento dos chamados
republicanos do 14 de Maio. Com o avanço do movimento abolicionista, a ambivalência
acabou; já não havia mais espaço para hesitação. Em relação ao Império, já era tarde, muitos
dos conservadores e liberais já se portavam como republicanos.177 Desse modo, depois de
abolido o trabalho escravizado, restava pensar sobre os próximos passos.
“A lei Áurea”, dizia outro colunista dM Província de São Paulo, “que extinguiu o
domínio do negro pelo branco”, era o complemento de 1822, “e o início de uma nova era, cujo
término deve ser a uniformidade do regime democrático na América.178 Alguns, como Gomes
Cardim, até admitiam que as “glórias da abolição” deveríam dirigir-se ao povo, mas ressaltavam
que não se esquecesse a arraia-miúda de que o pós-abolição não seria dominado pelas “negreiras
individualidades” . “Glorifiquemos o povo”, dizia ele, mas sem se esquecer de que “se é exato
ter resplandecido o sol é necessário dispersar as nuvens que por ventura se acumulem para
empanar-lhe (sic) o brilho” .179
176 O DR. MARTINHO Prado Júnior e o deputado J. Nabuco. A Província de São Paulo , São Paulo, 24/04/1880,
p. 3.
177 FERNANDES, Maria Fernanda Lombardi. “Os republicanos e a Abolição”. Revista de Sociologia e Política ,
n° 27, Curitiba, nov. 2006.
178 TREZE de maio. A Província de São Paulo , São Paulo, 15/05/1888, p. 1.
179 GLÓRIA ao Povo. A Província de São Paulo , São Paulo, 15/05/1888, p. 1.
90
A Província de São Paulo tentava dar uma resposta a isso, dirigindo um puxão de orelha
ao “populacho” negro, e aos monarquistas, a galhofa. Na alegórica coluna Risos e reflexões, o
autor disfarçado sob o pseudônimo de D. Pedrito El-Mano interpretava os dias de comemoração
pós-13 de Maio. O personagem republicano digno de um título nobiliárquico não podia entender
como “dois estandartes” de forças que se ameaçavam, abraçavam-se “num respeitoso e sagrado
amplexo. Só a alegria e o entusiasmo fariam com que negros e monarquistas pudessem andar
de braços dados pelas ruas. “Muitíssimo bem” . “Honras às duas classes” !:
limites, ela não se referia ao campo dos amplos direitos civis. O “futuro da nação”, produto
direto da “evolução” guiada pelos cérebros republicanos, recebia humildemente o cativo. Ao
dizer que o mundo estava sendo preparado para os libertos e que conseguiram restituir esses
“homens à sociedade”, alegavam que a ordem do mando do “chefe à família” 184 estava
reestabelecida. Era assim que o Brasil renascería das cinzas negras da escravidão. Pelo
sacrifício daqueles “heróis”, sabiam-se todos livres.
No dizer de Silva Jardim, a intenção era que, redimida uma raça e elevada pela “coragem
e generosidade” a outra redentora, “a Pátria não se acabou com as glórias abolicionistas” .
Outros combates ainda restavam.188
Ao contrário de outros partidos republicanos espalhados pelo Brasil, o PRP teve uma
sólida estrutura política. Apesar da força que o partido liberal tinha em terras paulistas, aqui, o
ideal republicano e federalista tinha ganhado muito apoio e força. Com a abolição, como vimos,
a sua influência política aumentou, a imprensa passou a lhe defender fortemente e com a elite
agrária do seu lado, é compreensível que o PRP tenha conseguido legitimar um discurso sobre
o progresso e democracia, em contraposição ao autoritarismo monarquista. Desse modo, talvez,
uma porção de libertos tenham apoiado idéias como a de participação política, de crescimento
econômico e ampliação de oportunidades.
Os ideais liberais e republicanos faziam relativo sucesso nessa terra. Não era para
menos, portanto, que o jornal A Pátria , um “órgão dos homens de cor”, pouco mais de três
meses antes do golpe republicano, comemorasse o centenário da Revolução Francesa, dando
vivas à “França da destruição da Bastilha, e da queda do trono” . Para os editores desse jornal
de homens negros, foi naquele país que surgiu “aquilo que tanto aspiramos para nós -
Liberdade, Igualdade e Fraternidade” .189
Uma análise que vincule esse tipo de publicação à uma mera expressão da manipulação
que os republicanos faziam é superficial de mais, além de anacrônica. Naquele momento, meses
antes do golpe, os idéias de República ainda estavam sendo disputados dentro da sociedade
civil. A monarquia perdia sua legitimidade, os libertos exigiam mais direitos, os fazendeiros
queriam garantias de que suas regalias políticas, econômicas e sociais continuariam. Não era
despropositado, portanto, àqueles homens a ideia de que só a partir da República o negro
brasileiro podería alcançar sua cidadania plena. Dela, viríam o direito à educação, ao trabalho
e à participação política, já que tomavam como ponto de partida que o novo regime seria um
governo do povo, submetido à vontade popular.190
No entanto, sabemos que a República seguiu outros passos. E nem todos concordavam
com eles. Então, para os republicanos com poder, seus ideais de república não poderíam se
perderem nos delírios dos festejos da abolição. Outro “ponto negro” 191 os ameaçava com mais
desgraças e tristezas. Sem dúvida, a menção à cor da ameaça ao futuro nacional não era
despropositada: sentiam os riscos que o apoio dos libertos à ideia de um Terceiro Reinado
podería oferecer.
Os últimos meses de 1888 também foram marcados, nacionalmente, por uma grande
expectativa de controle da população recém-liberta. A imagem da desordem assombrava aos
abolicionistas, proprietário rurais e republicanos. Os dias posteriores à abolição foram marcados
por práticas e decisões dos 13 de Maio que visaram redefinir seus destinos. “Famílias negras
inteiras abandonaram fazendas, migrando para outras regiões”, enquanto outros impunham
negociações de salários, terras e tempo livre aos seus antigos senhores.192
As cidades do Rio de Janeiro, Salvador, Santos, São Luís, Recife e Porto Alegre, por
exemplo, vivenciaram momentos de grande tensão entre a população liberta e os propagandistas
republicanos. E como Flávio Gomes nos diz, a invisibilidade política que a escravidão legara
aos escravizados sofreu seu revés com a Lei Áurea. Agora, negros, e não só os 13 de Maio,
eram considerados como agentes políticos. Um exemplo dessa agência organizada foi a
institucionalização da Guarda Negra no Rio de Janeiro, no final de 1888.193
O que se pode saber sobre ela é limitado pelo o que foi divulgado e discutido dentro da
imprensa contemporânea. A história de sua criação é controversa, de qualquer modo a história
mais conhecida é a de que sua origem foi em 1888, criada pela Confederação Abolicionista, na
comemoração do aniversário da Lei do Ventre Livre, em 28 de setembro. Teria sido uma
homenagem à Princesa Isabel, dentro da redação do Jornal Cidade do Rio , de propriedade de
José do Patrocínio. Sua missão era a de “defender a liberdade dos negros e, em especial, a figura
da Princesa Isabel, que a representava” .194
De certo que os ecos desse conflito eram entendidos de diferentes maneiras entre os
contemporâneos. Para os republicanos, estava nítida a diferença entre o grupo de capoeiras e
libertos e os “cidadãos” . Estes eram os esclarecidos, que exerciam seus direitos de propaganda,
enquanto que aqueles eram pobres sem consciência e iludidos pelos conservadores e pela
Monarquia. A Província , entendendo os libertos como não-cidadãos, atribuiu a
responsabilidade daquela ação “perigosa” e “ridícula” ao gabinete conservador de João Alfredo.
Quanto aos conservadores paulistas que ainda restavam, restava dizer que o ataque
principiou das fileiras republicanas que “responderam a tiros de espingardas e revolveres aos
gritos de Viva a Monarquia” dos libertos. Aquilo, portanto, era a “consequência natural de um
plano preconcebido e os frutos de uma propaganda ilegal e anarquizadora” .196
Culpados ou não pelo conflito, o que vale ressaltar aqui é o horror que os republicanos
iam nutrindo à massa de libertos. Esse horror, era fruto da crise pela qual a monarquia passava.
Dentro desse processo, novas articulações políticas eram feitas e refeitas cotidianamente; todas
elas pautadas pelos conflitos legadas pelo decurso das lutas abolicionistas. O fato era que existia
aqueles que sabiam que entre os republicanos estavam os ex-senhores que não queriam largar
o osso, e que não se conformavam com qualquer princípio de igualdade entre todos os
brasileiros197
Contudo, julgo que o fato de não ter havido o seu espraiamento para São Paulo, ou de
não existirem registros objetivos, circunstâncias suficientes para que não possamos atribuir a
sua ausência. E famoso o documento de Campinas intitulado Protesto dos homens de cor,
produzido por um grupo de libertos de Campinas. Cleber da Silva Maciel, ao tratar das lutas
políticas de negros no pós-abolição em Campinas, relata que, já em 1889, existia a Irmandade
de São Benedito, onde negros se reuniam para a realização de assembléias públicas para decidir
seus posicionamentos políticos.
modo algum concordam com a organização da Guarda Negra, com o fim de defender o trono
da Princesa” .199
Para eles, a abolição era fruto da luta do povo e do exército brasileiro. Se gratidões
fossem devidas, elas seriam ais “abolicionistas sem distinção de cor política” . Não se julgavam
obrigados à defender o trono, nem a princesa. Eram brasileiros e, como tal, diziam não queres
ódio entre as raças. Esses eram negros republicanos, que protestavam contra o recrutamento
militar forçado pelo Império. Sabiam que aquele momento era de grande instabilidade e, por
isso, estavam dispostos a concretizar alianças políticas para reagirem ao desmando da “caçada
de homens livres” para o exercício militar, o que lhes fazia lembrar das “pegas dos antigos
escravos” . E concluíram dizendo: “ Somos brasileiros, saímos do cativeiro e queremos viver
como homens livres".200
Não acredito que o caráter esse relato seja suficiente para atestar que a Guarda Negra
não influenciou ações dos recém libertos em São Paulo. Ao mesmo tempo, isso não quer dizer
que os membros da irmandade de São Benedito representassem uma minoria. Mas o fato é que,
publicado no Diário de Campinas, um jornal que já começava a se aproximar dos republicanos,
esse documento serviu como uma forma de dizer que em quintas republicanas, a audácia da
Guarda Negra não tinha vez. Ainda assim, vale dizer que o cálculo político desse grupo de
libertos tinha relação com o dos editores do jornal A Pátria. Sua luta era contra os abusos do
alistamento forçado, ou, em outras palavras, contra a tentativa de tutela do liberto.
Desse modo, julgavam ser a República a forma de governo que garantiría para a “classe
dos homens de cor” o desaparecimento das “distinções de classe” . E foi assim que, depois do
15 de Novembro, em novo documento, juraram fidelidade à bandeira republicana, que poria
“em prática medidas relativas à instrução popular e à educação dos libertos” . Portanto,
consideraram que “ seria uma falta de patriotismo conservar a classe dos homens de cor
indiferentemente a transformação política porque acaba de passar o país” .201
Ora, para os que lutaram por uma república que também cuidasse dos interesses da
“classe dos homens de cor”, oferecer solidariedade aos possíveis aliados era, sem sombra de
dúvida, uma alternativa de luta. Desse modo, vivendo em um reduto de grande força
199 SEM TÍTULO, Diário de Campinas, Campinas, 19/02/1888 apud MACIEL, Cleber da Silva. Discriminações
raciais: negros em Campinas (1888-1926) - alguns aspectos. 1985. Dissertação de Mestrado, Departamento de
História do Instituto de Filosofia e Ciências humanas da UNICAMP, Campinas, SP, 1985, p. 169.
200 Idem, Ibidem, loc. cit.
201Idem, Ibidem, p. 169-170.
96
republicana como Campinas, ser contra a Guarda Negra era uma tática política que faz todo o
sentido num tempo onde as incertezas regiam as ações de homens e mulheres em busca de
consolidar suas liberdades.
De outro lado, porém, os jornais que ainda apoiavam a monarquia também se utilizaram
da imagem do liberto para dizer que em São Paulo o apoio popular estava no flanco do
imperador. Esse era o caso do Correio Paulistano que, em 3 de julho de 1888, contou que em
Santos, ao terminar um dos festejos pela liberdade, os libertos que ali estavam, “com toda a
pompa” se dirigiram àum leilão com o intuito de comprarem um retrato da princesa. Os libertos,
que eram muitos, arremataram-no pela considerável quantia de 77$000. De posse do retrato
“que lhes era tão caro”, percorreram várias ruas de Santos, “de chapéu na mão, saudado a
família imperial, a princesa regente, em verdadeiro delírio”, ao som do hino nacional.202
Não parece ter havido um consenso entre os libertos de serem republicanos. E os brancos
que o eram, sabiam disso. Por isso era preciso dizer que o “anjo da abolição” podia se tornar o
“demônio do despotismo”, tanto quanto imperava a necessidade de ressignificar a conquista do
fim da escravidão para os “paulistas” que a fizeram por conta própria, “segundo a compreensão
que tínhamos dos nossos interesses, dos proprietários e da província” . Substitua-se paulistas
por republicanos e a frase ganha sentido mais nítido. Buscava-se golpear o Império, com a
insinuação de que só os “paulistas” tinha a capacidade de abarcar todos os interesses
“importantes” da nação. “Terminadas as festas”, advertiam, “preparemo-nos para novas
lutas”203:
que circundavam a Coroa, tinha de desaparecer conjuntamente com sua “irmã gêmea” : a
escravidão.
Era nisso que diferia a tática republicana de apropriação simbólica das conquistas da
abolição da dos conservadores. De resto, o “povo” que se lembra de descrever eram o mesmo.
A presença de negros nas festas ou nas lutas políticas fora sempre ressignificada como terrível,
bárbara ou nutrida de mansidão vassalar. Em relação aos “cidadãos” autores de “grandes e
heroicos feitos”206, sua cor era representada pela coragem, inteligência, bondade e civilização.
O fato é que, cada qual com seu catálogo de heróis, conservadores e liberais monarquistas e
republicanos, estavam às voltas com as lutas políticas que o pós-abolição lhes legou. De um
lado, havia as intenções e aspirações de toda uma população liberta que almejava direitos, e por
eles lutavam207; de outro, estavam os proprietários infelizes com os desdobramentos
abolicionistas ou descrentes quanto ao futuro do Império, que buscavam alternativas para barrar
a ascensão de uma cidadania ampla e irrestrita aos ex-escravizados. Junta desses últimos,
também estava a base política cada vez mais esfacelada do imperador que, a despeito de sua
popularidade política e social, não conseguia segurar as pontas de seu reinado, nem fazer coroar
sua sucessora.
Não se quer dizer com isso que a abolição tenha sido a única causa do ocaso imperial
ou da efetivação do golpe militar de novembro de 1889. abolição e República são processos
sociais sintomáticos de um contexto de crise amplo. Ainda assim, não se pode negar que a
República como alternativa ganhava robustez já em fins da década de 1880, construindo
discursos racializados sobre as situações políticas, econômicas e sociais do Império. As armas
de luta dos defensores de um possível ou temido Terceiro Reinado eram muito parecidas. Entre
seus inimigos sempre estiveram as ferozes e negras vontades de liberdade.
Como vimos no primeiro capítulo, durante as décadas finais da escravidão, vários foram
os projetos que previam formas de controle do mercado de trabalho livre. Concorrentes entre
si, tiveram em comum, entre outras coisas, a preocupação com a manutenção da ordem social,
da propriedade e raciocínios que viam o negro como uma perigosa influência para a formação
da nação brasileira. Mas, entre eles, aqui em São Paulo, os vitoriosos foram os imigrantista que,
depois de vencida a batalha pela inundação de braços europeus para a lavoura paulista, puderam
assumir posições abolicionistas. Desse modo, foi essa facção da elite agrária paulista que, mais
do que todas, mobilizou argumentos racistas para justificar a exclusão do negro da vida social
e econômica do estado.1
Não é por acaso, portanto, que esse tipo de raciocínio começa a ser introduzidos no
cenário brasileiro por volta da década de 1870. Marcado por uma perspectiva evolucionistas,
os patronos da imigração subsidiada pelo Estado mesclaram diversas tendências das teorias
raciais europeias, homogeneizado possíveis divergências e, assim, divulgando uma noção de
evolução social que só o branco podería empreender.2
Os conceitos de civilização e progresso foram comumente utilizados para defender uma
natural desigualdade entre brancos e negros, justificando, por isso, a construção discursiva de
uma cadeia de hierarquização lógica, onde brancos e europeus estariam no topo, governando e
domesticando a população liberta. Com o golpe republicano, esses princípios científicos,
muitos deles pautados na biologia, ganharam mais força. Ao prazer das necessidades políticas
das elites nacionais, ora a antropologia cultural, de meados do século XIX, ora o darwinismo
social, serviram como pretexto para a elaboração de políticas econômicas e sociais.3 Na questão
urbana paulistana, a noção de que havia um determinismo racial e cultural tanto para brancos
como para negros inspirou planos de cidade e de moradia que, ao quererem expulsar pretos e
pardos das regiões nobres da cidade, idealizaram uma urbe que não refletiu a realidade.
Mas elaborações ideológicas têm suas forças, pesam de forma material na vida das
pessoas. Desse modo, o contexto dos primeiros quarenta anos da República na cidade de São
Alfredo Moreira Pinto formara-se na Faculdade de Direito de São Paulo havia mais de
30 anos. Desde então, nunca mais tivera ocasião de pisar em terras paulistanas. A vida tem
dessas coisas. No vai e vem da vida adulta, o Moreira Pinto só podia lembrar com saudade
daqueles tempos de aluno. Viveu o período em um burgo de estudantes de fato. Tinha “ruas
sem calçamento, iluminadas pela luz baça e amortecida de uns lampiões de azeite”, ainda
“suspensos a postes de madeira” . As pessoas namoravam das janelas de suas casas, os carros
de bois iam e vinham pelos caminhos da vila. “Míseros cativos”, com seus “míseros” afazeres.
4 SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1870-1930). São
Paulo: CompanNa das Letras, 2012, p. 111.
101
5 PINTO, Alfredo Moreira. A cidade de São Paulo em 1900: impressões de uma viagem. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1900, p. 7-8.
6 Idem, Ibidem, p. 2.
102
tempo, apagara os aspectos escravistas através das construções de “bonitos boulevards, como o
Burchard”, ou com vastas praças muito arborizadas, “como a da República” .7
Na visão do escritor, a modernidade havia chegado para ficar. Mas ela tinha seus limites.
A descrição de todo aquele requinte e beleza, de toda a sofisticação e da riqueza da capital
paulista fazia parte de um processo de elaboração de uma identidade paulista que se queria
branca e moderna. Era um empenho pela regeneração da nação. O progresso, segundo os
anseios dos republicanos paulistas, também passava pela transformação cosmopolita que a
administração pública deveria operar.
Antônio Francisco Bandeira Junior, em seu estudo sobre a indústria no Estado de São
Paulo, publicado em 1901, afirmava que “em todas as páginas da história do progresso e do
engrandecimento de São Paulo”, a tenacidade do caráter paulista sobressaia. A metrópole do
café tornava-se também, a capital da indústria. Para isso, concorria o “espírito empreendedor
do paulista” e, igualmente necessária, “a imigração italiana” .8
Sob a égide imigrantista, esse projeto modemizador de fato transformou as feições da
São Paulo de início do século XX. O imigrante europeu figurou como elemento proeminente
em muitas das descrições sobre a cidade até meados daquele século. O elemento estrangeiro
aparecia como comerciante, ambulante ou estabelecido, operário, tintureiro, amoladores de
faca, todos morando em vilas operárias ou cortiços.
Isso não era à toa. Italianos, portugueses, espanhóis, alemães e um infinidade de gente
de outras nacionalidades chegavam cada dia mais e mais para a cidade de São Paulo. A gente
era tanta, que, como Pierre M onbeig definiu, uma “epidemia de urbanização” tomava conta de
São Paulo. No curto intervalo de 1890 a 1900, a população paulistana passou de 64.934 para
239.820 9
Moreira Pinto tinha razão: a fisionomia da cidade mudara. Ela não era mais um burgo
de estudantes da Faculdade de Direito. O rápido crescimento da cidade chamava a atenção de
vários observadores. Para Henrique Raffard, parecia incrível que, em apenas quatro anos (1886-
1890), uma cidade brasileira alcançasse tamanho desenvolvimento. Por isso fazia sua as
7 Idem, Ibidem. Os trechos citados encontram-se às páginas 85, 24, 6 e 25, respectivamente.
8 BANDEIRA JUNIOR, Antonio Francisco. A indústria do Estado de São Paulo em 1901. São Paulo: Typografia
do Diário Official, 1901, p. IV.e X, respectivamente.
9 MONBEIG, Pierre. “Aspectos geográficos do crescimento da cidade de São Paulo”. Boletim Paulista de
Geografia, 81, 2005, p. 132 e 116. A escolha pelo texto do geógrafo francês Pierre Monbeig tem uma relação
epistemológica com a construção desse capítulo, que ficará mais evidente no percurso da leitura. Sendo um dos
pioneiros dos estudos geográficos sobre São Paulo, as interpretações de Monbeig serviram como pontos de partida
para muitos intelectuais que estudaram a cidade de São Paulo. Florestan Fernandes é um deles. No entanto, vale
dizer que outros textos podem fornecer dados mais atualizados sobre a cidade de São Paulo. Cf.: CORDEIRO,
Simone Lucena (org.). Os cortiços da Santa Ifigênia: sanitarismo e urbanização (1893). São Paulo: Arquivo
Público do Estado de São Paulo / Imprensa Oficial, 2010.
103
10 RAFFARD, Henrique. “Alguns dias na Paulicéia”. Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Rio de Janeiro, v.55, parte 2, 1892, p. 160.
11 Idem, Ibidem, p. 161-166.
104
Tabela 1 -Fonte: SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano: São Paulo epobreza (1890-1915).
3a ed., São Paulo: Anuablume;Fapesp, 2008, p. 32.
Se concordarmos que, em 1886, São Paulo possuía 47.697 habitantes e em 1890 esse
número subira para 64.934, veremos que o incremento populacional foi de 36%, dado que
corrobora os apresentados por Maria Alice Rosa Ribeiro.12 E esse percentual aumentou nas
décadas seguintes.
12 RIBEIRO, Maria Alice Rosa. História sem fim...Inventário da saúde pública (São Paulo - 1880-1930). São
Paulo: Ed. da UNESP, 1993, p. 105.
105
Tabela 2 -Fonte: SANTOS, op. cit., p. 33. Sob minha responsabilidade, os cálculos apresentados por Santos
foram corrigidos aqui. No entanto, a obtenção dos novos números não muda substancialmente a análise histórica
que se seguirá e muito menos invalida as importantes contribuições do autor.
juntamente com as referências que Alexandre de Freitas Barbosa proporciona em seu estudo
para os anos de 1917 até 1929, podemos ver que o incremento imigrantista decaiu anualmente.
1889 - 5 .007 - 2 2 .8 5 6 -
1893 - 3 .7 8 6 13 7 7 .9 6 9 6,645471836
1894 5.6 9 0 14.855 15 3 4 .0 9 2 - 7,939558876
1895 9 .7 4 7 2 5 .2 2 9 5 1 1 4 .7 6 9 12,90604944
1896 6 .6 1 4 2 4 .0 9 0 0 7 4 .9 1 8 - 4,175589162
1901 4 .0 6 3 2 2 .1 8 0 7 4 9 .5 9 9 16,13945812
1902 4 .8 2 6 21.0 7 5 -1 19.311 - 9,001719845
1904 5 .0 7 9 2 0 .7 4 6 1 7 .0 0 5 40,78528545
1905 5 .7 2 7 2 1 .8 0 2 0 2 6 .0 1 5 14,02013977
1906 7 .0 8 6 2 4 .5 4 4 1 2 3 .8 8 5 - 0,850588331
Tabela 3 - Fonte: A tabela acima, entre os anos de 1889 e 1916, foi montada apartir dos dados fornecidos
pelos anuários estatíscios de São Paulo dos anos de 1909 e 1916. Entre os anos de 1917 e 1928, pauteime
nas tabelas construídas por Alexandre de Freitas Barbosa. Cf.: REPARTIÇÃO DE ESTATÍSTICA E
ARCHIVO DO ESTADO. Annuario estatístico de São Paulo (Brasil) - 1909 - Movimento da população.
Vol. 1, Tomo /, São Paulo: Casa Vanorden, 1911, p.46; REPARTIÇÃO DE ESTATÍSTICA E ARCHIVO
DO ESTADO. Annuario estatístico de São Paulo (Brasil) - 1916 - Movimento da população e estatística
moral. Vol. 1, Tomo I, São Paulo: Typ. do Diário Oficial, 1918, p. 122; BARBOSA, Alexandre de Freitas.
A formação do mercado de trabalho no Brasil. São Paulo: Alameda, 2008, p. 300.
ano, a média de crescimento anual foi de surpreendentes 51%. No intervalo dos dez anos
seguintes, essa média diminuiu para quase 16%, chegando a 13,4% nos anos de 1907-1916.16
O Estado assumiu papel preponderante no incremento da imigração em São Paulo. O
espírito propulsor desse tipo de política foi, é claro, o aumento artificial da oferta de mão de
obra - que excedia em muito as necessidades da lavoura paulista.1' Esses números fornecem
bons indícios para compreendermos o caráter racial que a administração pública imprimiu
quando custeou a transmigração de milhares de pessoas brancas e europeias. Para tanto, basta
esmiuçarmos os dados e os dividirmos entre as nacionalidades que compuseram aquele quadro.
N acionalidades (% )
Ano Italian o s Espanhóis Portugueses Diversas
1880-1885 52,28 3,73 28,16 15,82
1886-1895 70,53 10,55 11,33 7,58
1896-1905 62,06 14,70 9,39 13,85
1906-1916 24,80 27,82 26,19 21,19
Tabela 4 - Fonte: REPARTIÇÃO DE ESTATÍSTICA E ARCHIVO DO ESTADO. Ammario estatístico de São
Paulo (Brasil) - 1909 - Movimento da população. Vol. 1, Tomo I, São Paulo: Casa Vanorden, 1911;
REPARTIÇÃO DE ESTATÍSTICA E ARCHIVO DO ESTADO. Annuario estatístico de São Paulo (Brasil) -
1916 - Movimento da população e estatística moral. Vol. 1, Tomo I, São Paulo: Typ. do Diário Oficial, 1918.
Como se pode ver, na maior parte do tempo os italianos representaram mais da metade
dos estrangeiros que vinham estabelecer-se no estado, financiados ou não. Já computavam 52%
no período anterior à fundação da SPI, percentagem que aumentou durante o seu funcionamento
para 70% (1886-1895). Depois de seu fim, esse número caiu mas, nos dez anos seguintes, a
participação de italianos ainda compunha mais do que a metade dos imigrantes (62%). Essa
tendência de queda também se explica, eventual mente, pelas denúncias das más condições de
trabalho e de vida dos imigrantes italianos que o R ela tó rio R o ssi divulgou para o governo
italiano.18 Essa política acarretaria uma grande expansão demográfica e, com ela, diversos
seriam os problemas sociais que os habitantes de São Paulo teriam que enfrentar.
Foi esse processo que estimulou o crescimento populacional da capital, que, em 1890
compunha apenas 5,05% da população geral do estado. Esse número aumentou
estrondosamente para 11,39%, em 1900, chegando à 12,66% em 1920.19
possa justificar minhas interpretações referentes à população paulistana para o período que se
segue à década de 1910.
Com um número maior de pessoas, as preocupações estatais iam para além da
organização do fluxo imigratório. Era preciso estender a administração pública para a
elaboração de métodos oficiais que pudessem atender e controlar os problemas ocasionados por
um crescimento daquele vulto. Todo um aparato estatal teve de ser montado para lidar com as
questões da saúde da população.21
Progressivamente, o serviço administrativo das gestões que governaram a cidade e o
estado de São Paulo foi se estruturando. Já em 1906, com o decreto n° 1.414, reestruturava-se
a Secretaria da Justiça e da Segurança Pública do Estado de São Paulo. Nesse decreto, criaram-
se, entre outros, os gabinetes de Identificação e o Médico Legal.22 Pouco a pouco, a gestão
social da cidade passou a ser identificada como assunto caro à gerência policial. A inspeção dos
divertimentos públicos, que antes estava sob a alçada da municipalidade, passou à competência
do Estado, representado pela polícia civil, com a Lei n° 1.103 de 1907. Em sua regulamentação,
pelo decreto 1.714, de 1909, ficava acertado que aos “oficiais, inferiores e praças” que
efetuassem o policiamento de eventos públicos cabia, “se no interesse da ordem e segurança
pública”, tomar “certas medidas incômodas” que, com prudência, teriam de existir com a maior
“firmeza” . O espírito daqueles que monitoravam as ruas e as vidas da população que só fazia
crescer, deveria nutrir a calma, sem deixar de agir de forma “firme e enérgica” .23
Sob a ótica do controle social, o decreto n° 1.892, de 1910, estipulava que à polícia
também cabería a assistência pública dos hospitais, asilos, casas de caridade etc.24 A partir daí,
em 1911, foi instaurado o Gabinete de Assistência Policial da Secretaria da Justiça e Segurança
Pública do Estado de São Paulo. Na verdade, esse gabinete funcionou promovendo
atendimentos médicos em postos policiais. O Gabinete de Assistência Policial fazia uma
espécie de triagem de pacientes na cidade, uma vez que, dentro dele, os pacientes envolvidos
em acidentes, acometidos por moléstias ou por uma infinidade de motivos, recebiam tratamento
básico e, em seguida, eram encaminhados para a Santa Casa, para farmácias, para as suas
residências ou, em alguns casos, para o xadrez.
A administração da saúde na capital, em alguma medida, também passou a ser vista
como caso de polícia. Num contexto de quase inexistência de um sistema de saúde, os
moradores da cidade, membros das mais diversas classes e nacionalidades, residentes nos vários
bairros paulistanos, tinham que passar sob o crivo policial para receber auxílio médico. Era nos
momentos de atendimento que esses sujeitos tinham que fornecer seus nomes, idades, cor de
pele (muito provavelmente atribuída pelos agentes de polícia), nacionalidade, profissão,
naturalidade (indicação da cidade natal), estado civil, local de acidente, moradia e motivo do
socorro. Com o fornecimento desses dados, os postos médicos das delegacias e subdelegacias
preenchiam boletins de ocorrências médicas que, embora não possam dar respostas completas
para o contexto social da São Paulo dos anos 1910 em diante, fornecem importantes indícios
demográficos que apontam para a análise dos modos de viver na cidade naquele momento.
Nesse caso, a utilização dos Boletins de Ocorrências Médicas produzidos pelo Gabinete
de Assistência Policial de São Paulo pode trazer revelações importantes. Cada boletim contava
como páginas de livros organizados pelo Gabinete; aqui, foram pesquisados vinte livros, cada
um deles divididos por ano. O recorte temporal cobriu o intervalo de 1911 até 1930,
contabilizando informações sobre 11.046 habitantes da capital.
Continuando o debate estatístico que vinha sendo delineado neste capítulo, o tratamento
desses dados como amostragem só faz sentido se levarmos em conta o total da população da
cidade. Os dados disponíveis garantem que a população paulistana era de 31.385, em 1872; em
1890, de 64.934; em 1900, eram 239.820 e, na década de 1920, o número atingiu 579.033
habitantes.25 Em 1930, 887.810 indivíduos viviam no município de São Paulo. Portanto, tendo
a segurança de que a população paulistana que passou pelo Gabinete de Assistência Policial
representa uma amostragem importante, estabeleceu-se que para o intervalo entre 1911 e 1930
um corpo de amostra aleatória de 2.395 pessoas seria suficiente para ter um cálculo de nível de
confiança igual a 95%. Assim, a taxa de erro correspondería a 2% para mais ou para menos. A
fórmula utilizada foi:
N.Z2.p
n Z2.p.(l - p) +
~ e2.(—1)
Aqui, “n” é a amostra calculada e “N” o número total da população. Para a variável
normal “Z”, associada ao nível de confiança, estipulou-se o valor de 95%. A variável “p”
representa a verdadeira probabilidade do evento e a variável “e”, o erro amostrai de 2%. Para
encontrar o número de desvio padrão da amostragem (“Z”), recorri à seguinte tabela:
Tabela 6 - Fonte: SANTOS,Glauber Eduardo de Oliveira. Cálculo amostrai: calculadora on-line. Disponível em:
<http://www.calculoamostral.vai.la>. Acesso em: 23 de setembro de 2018.
26 SANTOS, Glauber Eduardo de Oliveira. Cálculo amostrai: calculadora on-line. Disponível em:
<http://www.calculoamostral.vai.la>. Acesso em: 23 de setembro de 2018.
113
1 9 2 6 -1 9 3 0 1 5 9 0 (6 4 .7 7 % ) 301 (1 2 .2 6 % ) 2 5 2 (1 0 .2 6 % ) 100 (4 .0 7 % ) 2 1 2 ( 8 .6 4 % )
Tabela 7 -Fonte: APESP. Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo. Assistência Policial. Registro
de ocorrências da Assistência Policial, 1911-1930.
É muito provável que boa parte dos que se consideravam brasileiros ou assim o eram
pela polícia, fossem fdhos de imigrantes. Ainda mais quando os fdhos dos imigrantes que
nasceram no Brasil passam a ser recenseados como brasileiros, já que a lei do país definiu a
nacionalidade pelo critério territorial. Uma breve análise dos sobrenomes dos pacientes no
Gabinete de Assistência Policial revela essa tendência. Essa suposição tem mais um indício de
força, se percebermos que o crescimento dos nacionais entre 1911 e 1930 foi inversamente
proporcional à diminuição dos percentuais dos estrangeiros. Embora o levantamento estatístico
dos nomes não tenha sido feito, o crescimento da população nacional parece ter mais a ver com
a taxa de natalidade que a imigração proporcionou a São Paulo.
Não é a toa que o anuário demográfico de 1907 declarava que, “como sempre,
dominaram em 1906 os nascimentos de filhos de pais estrangeiros”. Segundo o relatório, 73,1%
114
dos nascimentos tinham origem de pais estrangeiros, enquanto apenas 26,9% eram filhos de
brasileiros.27 Esse contingente não parecia incomodar a administração pública da cidade.
Ora, depois de muito falar sobre o contingente adventício que superlotou a cidade de
São Paulo, e sabendo que esse fluxo foi uma consequência direta das lutas pela Abolição, não
é de surpreender o tom que o mesmo relatório assume ao avaliar o crescimento do número de
pessoas de ascendência europeia. Aqueles números demonstravam linhagens estrangeiras
formando a “nacionalidade” paulista. E explicita a ideia de que, com o europeu branco
“constituindo a nossa raça”, a identidade paulista progressivamente se formava na antítese da
cultura escravista. São nítidas as oposições binárias que o relatório estabelece: passado/futuro,
Império/República, nacional/europeu. Embora a cor não seja citada, a antítese branco/negro
permeava o discurso imigrantista, sempre tendendo a crer na preponderância do primeiro sobre
o segundo. “Todos compreendem o motivo dessa predominância, pois a nossa população é, na
sua maior parte, composta de estrangeiros, os elementos indiscutíveis do nosso progresso” .28
Relatórios de outros anos demonstram essa tendência. O de 1902, por exemplo, afirma
que “enorme vantagem tem trazido para o crescimento vegetativo da população de São Paulo a
fixação do elemento estrangeiro” . O de 1910 relaciona desde um de seus subtítulos o
“progresso, civilização e imigração” . Nele, afirma-se que os italianos e seus filhos traziam para
a cidade “força e energia nova, levantando seu progresso e concorrendo para o seu grau de
civilização” . No ano seguinte, os elogios não se matizam: o “progresso de São Paulo” só podería
ser “devido à influência do elemento estrangeiro”, que concorria, “com seu espírito adiantado”,
para a multiplicação da população da capital. Para os relatores, as perspectivas civilizacionais
eram as melhores: “o elemento nacional” só podería contribuir com esse quadro a partir de sua
“inferioridade” numérica, conforme anunciava o parecer de 1903.29
Na trilha da análise feita por Ferreira dos Santos, a ideia de que a Pauliceia assumia o
seu lugar de direito nas agremiações da civilização à medida em que incorporava em sua
populações elementos brancos e europeus foi regra de pensamento para o poder público e os
intelectuais brancos que tentavam construir uma noção de identidade paulista confrontando o
passado monarquista e atrasado do país.
27 Anuário Demográfico da Seção de Estatísticas Demografo-Sanitárias. São Paulo: Serviço Sanitário do Estado
de São Paulo, 1907, p. 12. Essa fonte também foi utilizada por Carlos José Ferreira dos Santos. Cf.: SANTOS, op.
cit.
28 Anuário Demográfico da Seção de Estatísticas Demografo-Sanitárias. São Paulo: Serviço Sanitário do Estado
de São Paulo, 1907, p. 15.
29 Os trechos dos relatórios de 1902, 1903, 1910 e 1911, foram extraídos de SANTOS, op. cit., p. 30-38.
115
Abundam os relatos sobre a italianidade da população paulista. Não era para menos:
fruto daquele processo de incentivo imigratório, a constituição de um perfil ítalo-brasileiro
pesava sobre qualquer iniciativa preocupada com a formação do caráter paulista. Os italianos
eram tantos que o médico Gina Lombroso Ferrero, em visita à cidade, em 1908, não conseguia
deixar de salientar a “italianidade” da urbe. “Ouve-se falar o italiano mais em São Paulo do que
em Turim, em Milão, em Nápoles, porque ao passo que entre nos se fala o dialeto, em São Paulo
todos os dialetos se fundem sob a influência dos Venetos e Toscanos” . Todo aqui parecia ser
italiano, os empórios da cidade estavam repletos de “latas de tomate siciliano e de massas
napolitanas”, tinha também o vinho, os pães, as roupas, tecidos; “livros, anúncios, tudo é
italiano” .30
Em 1925, Sylvio Floreal - pseudônimo de Domingos Alexandre - tem seu livro
publicado: Ronda da meia noite: vícios, misérias e esplendores da cidade de São Paulo. Nele,
volta o olhar para as “travessas escuras e fedorentas”31 da metrópole. Seu foco estava nos
“homens e mulheres infames, isto é, sem glória, como disse Michel Foucault, os presos, os
loucos, os bêbados e os mendigos, que não puderam ser incorporados nas novas atividades
produtivas da cidade.” Afeito a expressões estrangeiras, linguagem rebuscada, metáforas
organicistas e biológicas, Floreal descreveu o cotidiano de São Paulo mostrando o lado “nada
agradável nem higiênico da vida” nos “bares, cabarés, restaurantes, feiras-livres, mas também
presídios, asilos, hospitais e hospícios.”32 A margem dos grandes modernistas da década de
1920, Floreal fez parte dos que, descrevendo o controverso e as faces obscuras paulistanas, não
poderíam “abrigar quaisquer mensagens ou conteúdos que prestassem a ser utilizados como
programas, fossem eles de difuso cunho nacionalista ou outro qualquer.”33
As crônicas em Ronda da meia-noite demonstram a arguta, mas também moralista
indefinição do sujeito que vivia a metrópole. Crítico da modernização dos costumes dos
habitantes, num “momento em que se iniciava a industrialização e a modernização, Floreal
desmistifica a visão edulcorada da cidade, construída pelos memorialistas interessados em
produzir um discurso laudatório da modernidade paulistana” .34
30 FERRERO, Gina Lombroso. “NelF America Meridionale. In: BRUNO, Emani da Silva (org.). Memórias da
cidade de São Paulo: Depoimentos de moradores e visitantes. São Paulo: Prefeitura do município de São
Paulo/Secretaria Municipal de Cultura, 1981, p. 30-34, apud ROLNIK, Raquel. . I cidade e a lei: legislação,
política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: Studio Nobel, FAPESP, 1997, p. 82.
31 FLOREAL, Sylvio. Ronda da meia-noite: vícios, misérias e esplendores da cidade de São Paulo. São Paulo:
Boitempo, 2002. p. 65.
32 RAGO, Margareth. “Nas margens da Paulicéia”. In: FLOREAL, Sylvio. Ronda da meia-noite: vícios, misérias
e esplendores da cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 5.
33 SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística. São Paulo: Companhia das Letras, 2002,
p.156.
34 RAGO, Ibidem, p. 5.
116
Em cada ma, exibe a sua tradição um povo diferente. Em cada praça, brincam
chusmas de garotos peraltas e desbocados, produtos dessa feira de povos. E
nos dias de férias escolares, então, o Brás, num grande desejo patriótico de
patentear a sua extraordinária proliferação, de bom povoador do solo, exibe
nas praças e nas mas o seu incansável esforço genésico, representando em
magotes e magotes de crianças de todos os feitios e tamanhos.38
A exaltação do trabalho tinha como alicerce didático a paixão pelo movimento, “a magia
da energia superlativa” . Fazia parte da “regeneração da raça” .40
Italiano grita
Brasileiro fala
Viva o Brasil
E a Bandeira da Itália.46
A preponderância dos ítalo-brasileiros era tão grande nas mentes dos que escreviam
sobre a cidade que fica evidente que essas narrativas faziam uma ligação entre uma noção de
branquitude (europeia) e a ideia de progresso. O imigrante europeu deveria trazer em suas
bagagens intelectuais e morais a predisposição de tornar São Paulo um grande polo
cosmopolita. Embora a cor da pele dos agentes dessa cosmopolitização custe a aparecer na
maior parte dos relatos, ela sempre está ali, escondida, quando se faz uma referência ao
trabalhador estrangeiro, ao requinte do gosto francês ou a alegria do povo italiano.
Tudo isso fazia parte de um arcabouço intelectual que cada vez mais passava a atribuir
importância para a questão da raça na forja da identidade brasileira e, consequentemente, da
paulista, durante a Primeira República.
Essa afirmação não exclui a possibilidade de outros projetos identitários terem existido.
Os anos 1920 foram repletos de tensões em torno da construção racial do povo brasileiro. As
constantes greves de trabalhadores na cidade entre os anos de 1910 e 1920, os anseios políticos
da massa imigrante e as crises sociais pelas quais a São Paulo da Primeira República passou
contribuíram para que a territorialização estrangeira passasse a ser discutida. Depois do golpe
de 1930, Oscar Egídio Araújo chamava a atenção para o fato de ser preciso conhecer o
47 ARAÚJO, Oscar Egydio. “Enquistamentos éticos”. In: Revista do Arquivo Municipal, n° 65, 1940, p. 228, apud
ROLNIK, op. cit., p. 91.
119
“desenvolver-se, formando uma nacionalidade inteiramente diferente daquilo que ora se afigura
aos olhos críticos da Europa e da América do Norte”?48
Para provar tal ponto de vista, sublinhava-se a imagem de uma São Paulo que se
internacionalizava pela construção de seus bulevares, suas obras de embelezamento ou na
composição de sua população. A capital estava aí para isso.
Havia também os que não concordavam com a existência do suposto atraso moral da
“primitiva” raça brasileira. Enquanto aqueles que apregoavam e superioridade do imigrante
frente ao nacional, negando a dos caipiras, caboclos, índios e negros, havia sujeitos como
Affonso A. de Freitas que, além de anotar as “tradições e reminiscências paulistanas” onde a
civilização demorava a chegar, defendiam os costumes da “grande massa popular”, entendendo-
a como o “cerne da nacionalidade” brasileira.49
Ele apregoava que “a absorção, aos jatos, de elementos de civilização estranha, se bem
que, em dado momento, possa trazer indiscutíveis vantagens ao agrupamento receptor” e
represente “inegavelmente verdadeiras soluções de continuidade”, quebrariam a
“homogeneidade do povo” que os receberíam, “inoculando-lhe germens eliminativos da sua
peculiar uniformidade de traços físicos e fisionômicos” .50 Chamando a atenção para a
importância da cultura popular do caboclo, do mulato e do “negro”, ele também hierarquizou
as raças. Certo dia, percorrendo a região da Cantareira, deu de cara com um dos “valorosos
murumimis”, um “legítimo tipo de caboclo” . Pedindo a ele que descrevesse alguma de suas
façanhas de “primitivo” habitante da Paulicéia, teve que vencer o acanhamento e a desconfiança
“de que podería estar sendo impuiado pelo moço da cidade” :
“Vosmecê seria capaz de nos contar em verso algum caso, alguma história,
algum sucesso de caçada em que haja tomado parte?
- Nhôr?
Repetimos a pergunta restringindo-a e adaptando-a a linguagem mais familiar
ao trovador
- Mecê é capaz de dizer em verso tudo que aconteceu na ultima caçada que
mecê fez?
- Ara!... Quagi qui não paga a pea... Só si fô a caçada que outro dia o coroné...
aposto c’ô Martimsinho de mata doze veado?”51
capital, afinal, ela era “um formidável cadinho” onde raças diferentes se fundiam para formar
o “magma heterogêneo de onde sairá a futura e definitiva raça paulista” .54
Escutar sobre a futura e definitiva “raça paulista” deve ter rebuliçado uma série de
sentimentos na eminente audiência de Pirajá. Essa expressão preencheu alguns dos debates que
a imprensa paulistana empreendia. Em 18 de maio de 1922, o mesmo Correio Paulistano
noticiava uma série de conferências que o dr. Alfredo Ellis Junior realizaria no Centro Paulista.
Seria tratada a história do estado, passando pela “nobreza paulista”, chegando até “os Prados,
os Lemes, e vários povoadores da interland paulista” . Para fechar, enaltecendo a grandeza de
São Paulo, que era “a consequência natural de sua história”, Ellis Jr. palestraria sobre “a
formação da raça paulista” .55
Mas quem fazia parte dessa tal raça dos paulistas? O mesmo Alfredo Ellis respondería
a questão em outro artigo do mesmo jornal, em 3 de dezembro de 1923. Os aios da raça seriam
aqueles que, nutrindo um “magnifico surto nativista contra os portugueses”, deram o primeiro
sinal da “diferenciação da raça paulista” . Recordando a Guerra dos Emboabas, Ellis Jr. insistia
tenazmente que os bandeirantes eram os percussores de Tiradentes, do Grito do Ipiranga e,
claro, da República.56 Toda a história da nação tinha de passar inevitavelmente por mãos
paulistas. O destino histórico da nação, desse modo, estava refém dos interesses dessa classe,
ou raça, melhor dizendo.
Ano após ano, Ellis dava indícios de que os paulistas eram uma “raça de gigantes”57
Queria provar que os bandeirantes - os paulistas originais - eram todos portugueses, e em
menor escala espanhóis e “estrangeiros” .580 massacre bandeirante dos indígenas e os séculos
de escravidão acarretariam “problemas” para a formação da raça, mas os paulistas podiam ficar
tranquilos pois o “cruzamento entre branco e negro” parecia ser do tipo “homogenesico
dysgenesico” :
Numa cidade que se modernizava a uma velocidade nunca antes vista, composta
majoritariamente por homens e mulheres brancas, a perspectiva de que em São Paulo a raça
bandeirante triunfara era a que mais rondava o imaginário dos que escreviam nos jornais e dos
que administravam a coisa pública. O negro paulista estaria fadado ao desaparecimento. Não
obstante esse clima de triunfo, a primazia do legado da raça paulista ainda estava sendo jogada
no tabuleiro racial da capital. Exatamente por isso, o lugar no qual colocavam o negro tinha de
ser o de ocupante da casa de detenção, hospícios ou albergues.
O caráter moderno da cidade foi constantemente negado à participação do negro. Era
como se fábricas, escolas, bibliotecas, lojas comerciais, ruas e bairros pertencessem somente à
massa de brancos que compunha a metrópole. A ocupação desses lugares era marcada por
recortes de classe - vide as confeitarias, restaurantes e bancos citados por Moreira Pinto e
Raffard no início do séculoXX, que não podiam ser frequentados por todos.
Com tudo isso posto, ainda resta a dúvida sobre a razão de tantos esforços para provar
que a mescla entre as culturas europeias (dos colonizadores e dos estrangeiros que chegavam)
seria benéfica para a formação da índole do povo bandeirante. Pode-se pensar que esses motes
editoriais de livros e revistas tinham como ponto de partida a intenção de justificar os grandes
gastos que a imigração proporcionava aos cofres públicos. Ainda assim, esse fator sozinho não
explica a insistência da elite letrada e/ou cafeicultura em apregoar que o fim de peles negras
estava próximo.
E certo que os anos iniciais da República e a Belle Epoque paulistana requintavam as
angústias de sujeitos que se sentiam desarranjados num contexto de forte transformação
política, social e econômica. Os anos 1920 foram fartos de relatos sobre uma São Paulo que se
industrializava, junto com um mundaréu de pessoas que se aglomeravam em feiras, botequins
e pequenas vendas.
Sobre isso, já conversamos. As angustias de Sylvio Floreal quanto à “cidade-esperança”,
vista como brutal e espantosa, não existiam sozinhas. Por de trás de um véu que tentava encobrir
a antinomia social que as relações capitalistas intensificavam, existiram discursos perturbadores
sobre os rumos que a cidade seguia.
60 BOAINAIN, Regiane Magalhães. Madame Pommery: na multiplicidade de vozes, a tradição reinventada. 2008.
Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica Literária, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2008, p. 15.
61 TÁCITO, Hilário. Madame Pommery. 5a ed., Campinas: UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui
Barbosa, 1997, p. 138.
62 SEVCENKO, op. cit., p. 24-25.
63 FLOREAL, op. cit., p. 25.
64 TOLEDO, Roberto Pompeu de. A capital da vertigem: uma história de São Paulo de 1900 a 1954. Ia Ed. - Rio
de Janeiro: Editora Objetiva, 2015, p. 81.
124
Era disso que Sylvio Floreal tratava em suas constantes exclamações: “Brutalidade” !
No capitalismo que se desenhava, nem tudo eram flores. A capital paulista guardava suas
contradições em espaços onde os sujeitos transgrediam, resistiam ou eram vencidos pelos
limites que a gestão cientificista urbana queria lhes impor.66
A cidade romanceada por Oswald de Andrade com frases profundas, dinâmicas,
internacionalizadas e regionais, tudo junto, a um só tempo, tivera seu início no desconsolo de
Floreal e de tantos outros. Era uma cidade internacionalizada, sim, mas onde portugueses
assassinavam italianos, em que caipiras trabalhavam juntos com turcos, enquanto mulatos
observavam que “tinha gente roubando” . Transfigurando São Paulo como Brasil, entendia que
ali era terra só de “farturão. Farturão de terra, farturão de pinga, farturão de muié” .67
Esse era o clima que delineava algumas visões sobre a Pauliceia. Enquanto tudo rolava,
a polícia só queria “saber quem foi que começou a briga” . Nisso, “no criado, no chofer, no
lavrador, no jardineiro, no comerciante, no pecador ou no burocrata”, havia sempre um técnico,
militar, sociólogo, polígrafo, informante ou um repórter para estudar, inquerir ou confeccionar
relatórios e estatísticas para saciar a sede disciplinadora da capital.68
Nos quadros das indisciplinas e dos desajustes, pintados por homens brancos, histéricos
em seus tempos, sempre estava a figura genérica do negro. Era assim que o dr. Franco da Rocha
escrevia fragmentos de psiquiatria como uma espécie de acordo sanitário ou profilaxia. Relatou
que, certo dia, soube pela boca do administrador que um “preto que há muito existia no
Hospício, exalava um cheiro insuportável à grande distância, que precedia e acompanhava os
períodos de excitação” . Ora, se pelo cheiro e à distância o médico garantia que se podia prever
as excitações dos negros, concluía que os especialistas nas mais diversas moléstias deveríam
ter o olfato apurado e treinado para a prevenção das doenças.69
O caráter racista da análise feita pelo psiquiatra ganha tom de chacota quando relatou
outro caso envolvendo um “preto, maníaco crônico” que quando se exasperava, discutindo com
As imagens que pautaram as visões sobre São Paulo desde os tempos do Império sempre
estiveram relacionadas ao caráter branco que compôs, demográfica e burocraticamente, a
cidade. Mas isso se intensificou com o início da República até os anos 1930. Seus bairros
comumente foram narrados de forma setorizada. A Mooca e o Brás eram dos italianos; no Bom
Retiro, mulheres húngaras dividiam o espaço com espanhóis e judeus; o Bexiga estava repleto
de napolitanos, calabreses e sicilianos. Tudo parecia ser branco e imigrante, sobretudo, italiano.
Por isso, durante muito tempo, vários estudos históricos deram grande visibilidade à
uma pretensa uniformidade da vida social na cidade, destacando personagens e ambientes
majoritariamente brancos. Era como se a Belle Epoque paulistana não guardasse outros
vestígios que não os dos imigrantes.
A historiografia social do trabalho paulista, afeita a estudar o cotidiano das fábricas e
alguns movimentos organizados de trabalhadores, contribuiu para o reforço dessa ideia. Era o
estudo de uma classe quase que absolutamente italiana. Longe de ser mal intencionada, esse
tipo de análise contribuiu para o apagamento da história e da memória dos outros sujeitos que
compuseram a metrópole, do ponto de vista das classes ou da cultura. Dado o privilégio da
investigação em fontes como a imprensa operária, composta grandemente por imigrantes, ou
por levantamentos estatísticos que ecoavam os fortes efeitos da imigração em massa de
europeus, esse quadro permaneceu inalterado por longo tempo.
Claro que esse tipo de estudo contribui para a compreensão da realidade social da
industrialização, urbanização e República na cidade. Não se nega que a presença dos imigrantes,
desde os tempos agonizantes da escravidão, influenciou na modificação do perfil do mundo do
trabalho paulista e das relações sociais e de classe. No entanto, para entendermos o tabuleiro da
cidade, é preciso ir além. Devemos compreender que, apesar dos que enxergavam apenas a São
Paulo branca e o operariado predominantemente de ascendência europeia, a capital paulista
contou com uma infinidade de experiências que construíram modos de trabalhar, morar e se
relacionar que diferiam do projeto de branqueamento que delineamos até aqui.
Sob os estereótipos negativos de uma população nacional prejulgada incapaz de
construir e conviver numa sociedade que se industrializava rapidamente, muitos pretos, “ou
quase pretos de tão pobres”71, improvisaram modos de vida que as circunstâncias urbanas e
sociais lhes permitiam. E claro que, em meio aos brancos operários, funcionários públicos,
empregados e empregadores do comércio, também existiram os negros, alguns pretos, outros
tidos como brancos para uns e mulatos para outros. As estatísticas podem nos enganar nesse
aspecto.
Concepções de raça são algo mais do que a simples comparação entre os fenótipos. As
cores dos sujeitos podem sofrer mobilidades, ao sabor da ideologia que norteia as ações e
vivências dos sujeitos. Raça é um conceito historicamente construído. Certa vez, um jornalista
estadunidense perguntou a François Duvalier (fenotipicamente preto), que seria eleito
presidente do Haiti em 1957, qual era a porcentagem de brancos na população haitiana. Barbara
J. Fields nos conta que a resposta surpreendeu o entrevistador. Segundo Duvalier, os brancos
contavam 90 porcento da população. A resposta causou incômodo ao repórter que, julgando
não ter sido compreendido, repetiu a pergunta. Nesse momento Papa Doc, apelido do médico
que logo seria presidente, diz que entendeu perfeitamente e pergunta e que a respondera
corretamente. Estupefato, o estadunidense retorquiu: “Como você define branco”?
Respondendo à pergunta com outra, Duvalier indagou sobre como os norte-americanos
definiam black em seu pais. O periodista, sem titubear, disse que, nos Estados Unidos, bastava
ter uma gota de sangue negro para que a pessoa fosse considerada como tal. Então o haitiano
dá a cartada final: “Pois bem, da mesma forma nos definimos brancos em meu país” .72
Em seus convívios sociais, urdidos nos conflitos de classe, pela necessidade de morar,
trabalhar e namorar, entre outras experiências, as pessoas elaboram referências raciais que
comumente influenciam as vidas de quem as cria e de quem sofre os efeitos disso. A análise
das circunstâncias sociais que permeiam o cotidiano dos indivíduos é fundamental para
entendermos como a constituição de noções sobre cor e raça se deu num dado momento
histórico. No caso paulista, estudar o processo de constituição dessas noções é refazer uma
história do racismo, deixado de entendê-lo como um conceito imutável e que existe
independentemente da história humana. Fields prefere tratar os processos que se seguiram à
Guerra de Secessão dos Estados Unidos pensando a partir da ideia de racialização, na medida
em que ela permite pensar raça como um constructo ideológico. Raça, nesse sentido, é um fato
social sempre em constante mutação, a depender das relações das pessoas entre si, sejam elas
econômicas, políticas ou sociais.
Sendo assim, é possível que alguma parte dos que foram contabilizados como nacionais
em São Paulo tivessem pele parda mas, em função de relações profissionais ou políticas, aos
olhos de uma municipalidade racista, possam ter se tomado pessoas brancas. Isso não quer dizer
que esses sujeitos não sofreram com o racismo. Fields novamente pode nos ajudar: para ela,
raça e classe são conceitos de ordens diferentes, que não podem ser analisados como um mesmo
conjunto de relações. Classe, ainda que seja uma construção ideológica, refere-se a aspectos da
vida material dos sujeitos, delineando relações de produção de valor, riqueza ou pobreza - a
fome, quando sentida no vazio da barriga, é sempre muito concreta. Porém, as percepções sobre
raça são apenas ideológicas.73
Uso o caso genérico dos negros em São Paulo como uma estratégia operacional para me
explicar melhor, mas prometo que isso vai mudar ao longo do capítulo, quando a vida de
sujeitos negros ocupará o lugar de destaque que lhes pertence por direito. E muito provável que
o racismo tenha se consumado nas vidas de negros entendidos como brancos em determinados
momentos. Ainda que suas relações de classe e situações econômicas possam ter garantido
níveis de vida mais seguros, ao viverem em uma cidade que constantemente relacionava as
72 FIELDS, Barbara J. “Ideology and Race in American History.” In: KOUSSER, J. Morgan; MCPHERSON,
James M. (eds.). Region, Race, andReconstruction: Essays in Honor o f C. Vann Woodward. New York: Oxford
University Press, 1982. p. 146.
73 Idem, Ibidem, p. 150-151.
128
74 Sobre isso, queira o leitor conferir a dissertação de Lívia Tiede. Cf.: TIEDE, Lívia Maria. Sob suspeita: negros,
pretos e homens de cor em São Paulo no início do século XX. 2005. Dissertação de Mestrado, Departamento de
História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, Campinas, 2005, especialmente o 2o capítulo.
75 OS PRETOS desaparecem d’este Estado. A Redempção, São Paulo, 27/06/1897, p. 1-2.
129
Uma historiografia recente tem contribuído para demonstrar que nos anos imediatamente
posteriores ao fim da escravidão a migração foi uma escolha muito comum, individual ou
coletivamente, entre os ex-escravizados.76 Outras regiões e outros estados podem ter parecido
mais atraentes nos planos de construção de vida das gerações libertadas em 1888. Disso não
tenho dúvida. A diferença percentual entre negros e brancos, como vimos, aumentou
drasticamente no final do século XIX. Florestan Fernandes nos fornece o seguinte quadro:
Tabela 8: População do estado de São Paulo e da cidade de São Paulo, segundo a cor
(1890)
Esse painel influenciou muitos estudos que enxergaram a expansão urbana paulistana
sob o prisma de uma cidade estrangeira. Sem levar em conta os aspectos racializados dos censos
de 1872 e 1890, e dos relatórios de presidentes de província posteriores, atestaram friamente
que a população negra diminuiu no estado e na capital no ultimo quartel do século XIX. Se
antes de 1872, “negros e mulatos, escravos ou livres”, constituíam quase 54% da população77,
esse número sofreu quedas sensíveis entre 1872 e 1886, passando de 37% para 21,5%, segundo
76 MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil, século XIX).
3a ed., Campinas: Ed. da LINICAMP, 2013; COSTA, Carlos Eduardo C. De pé calçado: família, trabalho e
migração na Baixada Fluminense, R J (1888-1940). Tese de Doutorado em História Social, LTFRJ, 2013; RIOS,
Ana Maria Lugão. Família e transição: famílias negras em Paraíba do Sul (1870-1920). Dissertação de mestrado
em História, UFF, 1990; SILVA, Lúcia Helena Oliveira. Paulistas afrodescendentes no Rio de Janeiro pós-
abolição (1888-1926). São Paulo: Humanitas, 2016.
77 Segundo o censo de 1804, a população negra da cidade era de 53,6%, sofrendo pouca alteração segundo o censo
de 1836, passando para 53,7%. Cf. nota 7 em FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de
classes: o legado da raça branca, v. 1, 5a ed., São Paulo: Globo, 2008, p. 404.
130
os censos daqueles anos. quanto aos estrangeiros, aumentaram de 922 indivíduos (3%) em 1854
para 12.085 (25%) em 1886.78
Isso já justificaria a ausência, durante muito tempo, de estudos sobre as experiências de
negros na cidade de São Paulo. Mas, utilizando os mesmos dados dos censos anteriores a 1890,
podemos perceber que o número de pretos e pardos na cidade manteve-se quase que inalterado.
Em números absolutos, somavam 11.540 indivíduos em 1836, 11.679, em 1872 e 10.275 em
188679, o que não se altera no censo de 1890, quando os números absolutos revelam que 11.730
negros (se contarmos como negros os pretos, mestiços e caboclos) residiam na cidade após a
Abolição.
Ora, dessa forma, não se pode admitir que a população negra diminuiu em São Paulo.
Na verdade, essa afirmação foi fruto da enorme impressão que o aumento da população de
origem europeia causou nas opiniões dos que estudaram, rememoraram ou administraram a
cidade. Esse cenário começa a se modificar em 1893, com o acréscimo de 3.319 indivíduos
negros à população paulistana, que contava com 130.775 habitantes.
P o p u la ç ã o d a c id a d e d e S ã o P a u lo e m 1 8 9 3 , s e g u n d o a c o r
Negros (caboclos,
6.513 8.536 15.049 11,51
pardos e pretos)
Pode se dizer que o incremento de pouco mais de 3 mil (o aumento foi de 2,5%) pessoas
numa população de mais de 130 mil foi irrisório. Mas, se a porcentagem de negros diminuiu
durante esse período, não foi por conta de seu desaparecimento. Ainda que as migrações tenham
sido fatores que negras e negros levaram em conta durante a organização de suas vidas no pós-
abolição, os dados estatísticos comprovam que isso não afetou sensivelmente o número de
negros estabelecidos na capital.80 A diminuição ocorreu só no âmbito da proporcionalidade,
porque os números brutos de brancos aumentaram estrondosamente desde o último quartel do
século XIX. E isso, já vimos, fez parte de um projeto de Estado.
E essa tendência se comprova verdadeira também para os anos entre 1911 e 1930, com
a novidade de que a população negra paulistana tende a aumentar a sua contribuição para o total
do número de habitantes da cidade. Conforme os dados apresentados pelos boletins de
ocorrência médica, São Paulo vai, gradativamente, tornando-se mais negra, enquanto que a
proporcionalidade de brancos permanece numa constante, tendendo a diminuir a partir do
intervalo de anos entre 1926-1930.
P o p u la ç ã o d a c id a d e d e S a o P o p u la ç a o d a c id a d e d e S a o
P a u lo e m 1 9 2 1 -1 9 2 5 , s e g u n d o a
P a u lo e m 1 9 2 6 -1 3 3 0 , s e g u n d o a
cor
cor
C o r da p e le Da d o s
C o r da p e le D ados
a t r i b u id a
B ra n c a
B ru to s
2 .7 0 4 8 6 ,5 8 a t r ib u í d a B ru to s
%
M o re n a 1 0 ,0 3 B ra n c a 2 .0 6 8 8 4 ,2
P a rd a 202 6 ,4 7 P a rd a 162 6 ,6
P re ta 210 6 ,9 2
P re ta 225 3 ,2
I\J e g r a N e g ra
(M o re n a , 4 1 9 1 3 ,4 2 (P a r d a , 2 .0 6 8 1 5 ,8
P a rd a , P re ta )
P re ta )
T o ta l 3 .1 2 3 ÍO O Total 2 .4 5 5 1 oo
Tabela 10-Fonte: APESP. Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo. Assistência Policial.
Registro de ocorrências da Assistência Policial, 1911-1930.
80 Conforme apresentarei mais a frente neste capítulo, a análise dos processos-crime da capital fornece indícios de
que a cidade de São Paulo pode ter figurado, inclusive, como um polo de atração das migrações internas de famílias
negras.
132
Como podemos notar, entre 1911 e 1915 a população morena, parda e preta
correspondia a 13,5% do total. Esse número sofre uma queda de 1,12% no quinquênio seguinte.
Algumas hipóteses podem explicar essa variação. A principal é que a gripe espanhola, difundida
no mundo pelos navios fugidos das batalhas da Primeira Guerra Mundial, teve um impacto
negativo na população de São Paulo. O apetite e a fúria da praga foi imenso.81 Não tenho
dúvidas de que a peste deva ter encarnado o seu apelido de negra, já que homens e mulheres
pretas e pardas compunham a considerável população dos cortiços e de outros tipos de moradias
coletivas. A situação de classe à qual majoritariamente pertenciam também contou para isso, já
que em suas lidas diárias tinham que circular por toda a cidade que sofria os flagelos da
espanhola.
Desconheço dados que tenham contabilizado as mortes pela doença sob o critério racial,
mas o acréscimo de 1,38 pontos percentuais ao número de brancos aponta para a viabilidade
dessa suposição. Passada a tormenta, entre 1921 e 1925 houve novo aumento demográfico,
passando de 12,39% (1916-1920) para 13,42% (1921-1925). Enquanto isso, os brancos caíram
de 87,58% no período anterior para 86,58% em meados dos anos vinte. Movimento que se
confirma para os anos de 1926 até 1930, quando o incremento de 2,38% de negros coincide
com o encolhimento de brancos na mesma proporção.
A monotonia da leitura já tomou conta do texto quando dissertei sobre a confiança que
os dados contidos nos boletins de ocorrência médica oferecem. Não vou repeti-los, mas resta
dizer que o aumento da população negra não interfere de forma considerável no contingente
branco do município. Isso podería, mais uma vez, justificar argumentos que descredenciassem
a ideia de uma São Paulo negra. Então, para que não reste dúvida sobre a importância de análises
das experiência de negras e de negros na Paulicéia, segue mais um argumento.
Sabemos que as diferentes etnias que deram forma ao processo imigratório sofreram,
cada uma a seu modo, consequências que os estereótipos queriam lhes impor. Alemães, por
apoiarem as posições do exército tedesco durante a Primeira Guerra Mundial, foram
considerados perigosos. O jornal paulistano A Terra Livre, abertamente antiportuguês, em 1907
ridiculizariva os lusos:, eram “manés” que corriam à polícia, como fantoches “prontos para
assassinar grevistas, enquanto aqueles que produzem todas as coisas e não possuem nada”
reivindicavam seus direitos.82 Os trabalhadores eram os anarcosindicalistas que organizavam
81 Nicolau Sevcenko afirma que em poucos meses “prodigalizou São Paulo de valas coletivas lotadas de cadáveres,
com não poucos moribundos atirados às fossas ainda vivos de permeio, nas correrías desencontradas do pânico”.
Cf.: SEVCENKO, op. cit., p. 24.
82 A referência foi encontrada em LESSER, Jeffrey. A invenção da brasilidade: identidade acionai, etnicidade e
políticas de imigração. São Paulo: Ed. Unesp, 2015, p. 122.
133
greves, muitos deles italianos, enquanto os facínoras eram portugueses. As diferentes etnias de
imigrantes tiveram que lidar com preconceitos que interferiam em suas vidas.
Portanto, faz todo sentido dividir a população paulista segundo suas nacionalidades.
Dessa forma, comprovaremos estatisticamente quais delas participaram do processo de
formação da brasilidade, nos termos de Jeffrey Lesser. Para aumentar um pouco o caldo,
acrescentemos nessa segmentação a população negra paulistana, e com isso, teremos o seguinte
quadro:
Tabela 11: População da cidade de São Paulo, segundo cor e etnia (1911-1930)
B r a s i le i r a (B ra n c o s ) 794 3 3 ,4
B r a s ile ir a (B ra n c o s ) 1 .3 9 6 4 5 , 10
T o ta l 2 .3 7 6 100 T o ta l 3 .0 9 2 ÍO O
Tabela 11 -Fonte: APESP. Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo. Assistência Policial.
Registro de ocorrências da Assistência Policial, 1911-1930.
83 A análise foi inspirada no estudo de DOMINGUES. Petrônio José. Uma história não contada: negro, racismo
e branqueamento em São Paulo nopós-abolição. São Paulo: Ed. Senac São Paulo, 2004, p. 316. Tanto Domingues
como eu utilizamos os dados do relatório de Piza, a partir da leitura de FERNANDES, op. cit., p. 40.
134
demografia paulistana, contando com 14.258 indivíduos, antecedidos pelos italianos (44.854),
e seguidos de perto pelos portugueses (14.209). As conclusões são as mesmas apresentadas até
aqui: o aumento do número de etnias europeias em São Paulo coincide com o período de
funcionamento da SPI. Tempos depois, entre 1921 e 1925, esse quadro se modificou, voltando
os negros a ocupar o segundo lugar entre no conjunto, atrás somente dos italianos, cujo número
diminuiu progressivamente até que os negros se tornam o principal grupo étnicas no município.
Ao contrário do que possa parecer, essa corrida étnico-racial não teve nada de vantajosa
para pretos e pardos. A predominância de brasileiros considerados brancos aponta para esse
tipo de conclusão. Já dissemos que possivelmente alguns pardos e pretos foram tidos como
brasileiros brancos, mas isso aconteceu sobretudo com os filhos dos imigrantes europeus. Já em
1883, o jornalista e deputado federal pelo Rio Grande do Sul, Karl von Koseritz, junto com
Hermann Blumenau (que fundou a colônia que levou seu nome em Santa Catarina) e Hugo
Grüber, afirmavam que os colonos europeus logo perdiam sua nacionalidade, aprendendo muito
rapidamente o português. A experiência geral deix a entrever que mesmo que todos os
imigrantes conservassem sua nacionalidade e seu orgulho nacional, o mesmo não acontecia
com seus filhos nascidos e criados no Brasil. Estes são e permanecerão, acima de tudo,
brasileiros. Segundo Lesser, com a imigração em massa, veio também o descontentamento do
europeu com suas condições de trabalho. Contra isso, os imigrantes assumiram a defesa de suas
branquitudes como estratégia. Não queriam ser confundidos com negros. Como brancos,
julgavam-se superiores e, portanto, merecedores de melhor tratamento. Germinava, assim, uma
nova consciência racial que atribuía à branquitude um direito supremo sobre os ex-escravizados
negros. 84
Karl Monsma também encontrou casos semelhantes para o oeste paulista no início do
século XX. Em seu livro, brotam histórias de brigas entre imigrantes e negros, onde os
primeiros, sem posições legitimadas de autoridade, assumiam “ares de superioridade”, dando
ordens ou postulando primazias em relação aos segundos. Nesses casos, negros afirmaram
conceitos de igualdade ao defenderem seus direitos, e os “imigrantes e [seus] descendentes
defendiam sua superioridade” .8485 Nesse contexto, a disputa pouco contribuiu para a conquista
de direitos da população negra paulistana. O fato de terem assumido o posto de principal grupo
entre 1926 e 1930 teve menos a ver com suas conquistas por mais cidadania do que com a
inclusão dos filhos de europeus no rol dos que podiam pleitear mais direitos.
86 O meu acesso à essa ideia de Mario de Andrade foi indireto, devendo-se à leitura de: WEINSTEIN, Barbara.
The color o f modernity: São Paulo and the making o f race and nation in Brazil. Durhan e Londres: Duke
University Press, 2015, p. 71.
87 FERNANDES, Op. Cit., p. 40-41.
136
Daí para estabelecer uma relação entre negritude e periferização foi um pulo.
Poderiamos falar sobre os conceitos de anomia social utilizado por Fernandes, bem como sobre
o paradigma da ausência para tratar do tipo de visão que o sociólogo utilizou ao debater a
integração do negro na sociedade de classe. Mas isso estendería por longos parágrafos essa
exposição. Outras historiadoras e historiadores já o fizeram.88. Apesar da violência, as relações
escravistas estiveram repletas de contestações escravas, de gente que produzia seus próprios
valores éticos e raciais. Mesmo sob a égide do chicote, negras e negros agiram com lógicas
próprias, que estavam sempre embasadas em suas experiências e tradições particulares.
O que hoje soa como obviedade, em meados da década de 1980 não o era. Sabemos que,
embora fosse entendida como propriedade pela lei escravista, a vida dos escravizados
apresentava uma rede de sentidos muito mais densa do que o juridiquês da época pretendia. A
teoria do escravo-coisa foi demolida pelas gerações que se seguiram aos anos 1980. Com seus
subsídios, podemos pensar sobre a vida dos escravizados, livres pobres, libertos no período da
escravidão e, junto com os movimentos negros, refletir sobre aspectos da vida da população
negra no Brasil. Já não podemos acatar os argumentos logicamente organizados de Fernando
Henrique Cardoso89. Preocupado em comprovar o racismo e relacioná-lo ao mundo capitalista,
Cardoso não conseguiu observar a vida de seus analisandos e preferiu acreditar piamente nos
relatos de memorialistas e do poder público, todos eles brancos.
Ainda que com uma qualidade que não se encontra em Cardoso, Florestan também faz
muito daquilo. No entanto, para o que cabe aqui, a tese principal do sociólogo paulista não me
parece em tudo equivocada. Quando Fernandes pensa na cidade de São Paulo como um
estratagema que influencia as lutas pela sobrevivência de seus habitantes, ele admite que uma
política racista de branqueamento da capital acabou por eliminar “negros e mulatos [...] das
posições que ocupavam” no mundo anterior ao 13 de Maio - que ele chama de “pre-capitalista” .
Isso fortaleceu a tendência de “confiná-lo a tarefas” e moradias “mal retribuídas e
88 Sobre o tema, queira o leitor conferir: LARA, Sílvia Hunold. “Escravidão, cidadania e história do trabalho no
Brasil”. Projeto História, v. 16, p. 25-38 27, 1998; LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e
senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; ANDREWS, George
Reid. Negros e brancos em São Paulo: 1888-1988. Bauru: EDUSC. 1998, especialmente a introdução e o 3o
capítulo; CHALHOUB, Sidney & SILVA, Fernando Teixeira. “Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e
trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980”. Cadernos AEL, Campinas, SP, UNICAMP/IFCH,
v. 14, n. 26, p. 15-45, 2009; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das letras, 2011, com destaque para o Io Capítulo; e aqui e ali em
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo
(1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998.
89 CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul. [1962], 2a ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
137
degradantes” .90 Influenciado enormemente por aqueles discursos sobre a identidade paulista e
a bravura da raça, Fernandes atribuiu a mobilidade de classe do europeu ao seu caráter
empreendedor, de espírito capitalista avançado. Mas sua argumentação deixa soltas pontas que
podem nos servir no novelo que nos guia pelos caminhos interpretativos.
Por um lado, ele argumenta, erroneamente, que o “estrangeiro” estava mais preparado
para os “serviços essenciais para a expansão urbana” . Por outro, Fernandes finaliza dizendo que
“imperavam as conveniências e as possibilidades, escolhidas segundo um senso de barganha
que convertia qualquer decisão em ‘ato puramente econômico” . Ora, se as conveniências
existentes nas relações capitalistas na metrópole eram convertidas ideologicamente em atos
“puramente econômicos”, a análise pode seguir por um caminho interessante. “Desse ângulo,
onde o ‘imigrante’ aparecesse, eliminava fatalmente o pretendente ‘negro’ ou ‘mulato’, pois se
entendia que ele era o agente natural [grifo de Florestan Fernandes] do trabalho livre.91
A leitura atual do texto de Fernandes é um pouco delirante. Um parágrafo parece
contestar o anterior: ora o racismo surge como fator determinante para a exclusão do negro da
sociedade de classes, ora ele afirma que isso se deu pela “ irracionalidade do comportamento
do negro e do mulato, como indivíduos ou coletivamente, no período final da desagregação da
sociedade de castas” e no período de formação da cidade contemporânea. O certo é que, para o
autor, tudo isso era um complexo de coisas. O peso espoliador da escravidão, “os infortúnios
que enfrentaram nas peregrinações pelo campo, pelas cidades e para o litoral”, desabou sobre
todos quando descobriram “que a mudança de estado social não acarretava ‘a redenção da raça
negra” . Ao mesmo tempo, “as preferências pelo imigrante, em particular a proteção (...) [das]
correntes imigratórias e a assistência aos trabalhadores brancos transplantados suscitaram um
travo de fel”, que amargurava visões sobre o futuro da “cena histórica” .92
Entre as pontas soltas, acredito haver algo de essencial nos textos de Fernandes. A
análise das relações intra e intercalasses deve levar em conta as concepções de raça que
nortearam aquelas transplantações ideologizadas sobre proteção e exclusão dos sujeitos na
cidade. No limite, isso dá uma complexidade maior à ideia de formação do capitalismo que, por
ser processo, guardou as contradições do mundo escravista, suas tradições e modos de fazer
política, junto com concepções de liberdade reorganizadas conforme vivia-se a República.
O estudo sobre esse making o f the capitalism à paulista, onde relações de classe foram
sempre orientadas por vieses racializados de mundo, pode revelar algo mais do que a exclusão
dos negros da sociedade de classe. Revelará projetos de vida e embates políticos, por exemplo
no âmbito da lida diária da moradia ou do trabalho que, no frigir dos ovos, podem ser articulados
entre si.
Feita esta defesa tímida e sem jeito de Florestan Fernandes, sinto-me mais a vontade
para discordar dele. Para Fernandes, a cidade em rápido crescimento exerceu enorme atração
sobre variados grupos étnicos, processo que acompanhamos até aqui. Como vimos, havia os
que afirmavam a ausência de negros na cidade, mas também existiam os que alardeavam a
“propensão do ‘negro’ de se concentrar na cidade para viver na vadiagem” .93
As conclusões estatísticas que apontei no tópico anterior concordam com as idéias de
Fernandes, ao dizer que as saídas e as entradas negros na cidade de São Paulo compensaram-se
mutuamente, se analisarmos o número absoluto de pretos e pardos. Para ele, a concentração de
brancos tornou mais nítida em termos demográficos. Assim, concordo com sua hipótese de que,
tanto quato os brancos, os pretos e pardos afluíram em massa para a cidade a fim de “tentar a
sorte” . Minha concordância para por aqui; daí em diante, o sociólogo afirma que aqui estavam
todas as tendências favoráveis para a perpetuação e o agravamento “dos fatores de
desorganização da vida pessoal e social do ‘negro’ ou do ‘mulato” . Sem preparo suficiente para
a vida em liberdade, espoliados secularmente, a cidade republicana apresentar-se-ia como uma
espécie de “vingança dos senhores de escravos”, mantendo-o “escravo da ignorância” e
perpetuando “a sua servidão por meio de seus filhos” .94 Com tudo isso, a periferização do
sujeito negro só podería ser o passo adiante da municipalidade. Puxado pela condição negra de
desajuste social e pelo predomínio dos brancos nos setores mais bem remunerados, as bordas
da cidade ofereceríam uma vida miserável - a única com a qual os ex-escravizados estariam
aptos à viver.
Já discutimos que essa conclusão apresenta defeitos metodológicos e ilusões
ideológicas. Na verdade, essas ilusões eram anteriores a Florestan e tinham fincado fortes raízes
quando ele empreendeu suas análises. Em 1955, Odilon Nogueira de Matos publicara um estudo
sobre a cidade de São Paulo no século XIX. Segundo ele, naquela época a principal atividade
na cidade era o pequeno comércio, concentrado em nas ruas da Quitanda e das Casinhas (atual
rua do Tesouro). Na primeira, vendiam-se frutas, legumes e outros elementos de consumo
imediato. Ali, de acordo com Saint-Hilaire, ficavam negros, roceiros, muares e arrieiros que,
toda noite, cediam lugar às “verdadeiras nuvens de prostitutas de baixa classe, atraídas pelos
camaradas (servidores livres) e pelos roceiros, que elas tentam pescar em suas redes” . Na
segunda, ficavam as vendas instaladas em pequenas casas onde se fornecia “farinha, toucinho,
arroz, milho, carne seca, etc.” . Toda essa gente não moraria na região, segundo Matos. O termo
municipal, àquela época, era composto por dez freguesias, das quais apenas três correspondiam
ao centro urbano: Sé, Santa Efigênia. Problematizando os dados que apresenta, o autor conclui
que, durante o século XIX, a maior parte da “gente paulistana” espalhava-se pelos “subúrbios
da Pauliceia de então” : Guarulhos, Nossa Senhora do O, Cotia, Nossa Senhora da Penha, São
Bernardo, Juqueri e M ’Boi (Embu). O centro era o lugar dos sujeitos que estudavam na
academia de Direito, fundada em 1827. Desde então, a cidade passaria a ser “procurada por
jovens procedentes de todos os recantos do Brasil” 95
Entre o fim do século XIX e início do XX, a cidade crescera e transformara-se em
metrópole industrial. Foi assim que Pasquale Petrone a descreveu, no mesmo ano de 1955.
Coube a esse surto industrial tomar a cidade no reduto de mansões milionárias.96 E foi nas
principais áreas industriais que acompanhavam as vias-férreas, onde se estabeleceu a população
paulistana do século passado:
95 MATOS, Odilon Nogueira de. “A cidade de São Paulo no século XIX”. Revista de História , v. 10, n. 21-22,
1955, p. 99, 94 e 102
96 PETRONE, Pasquale. “A cidade de São Paulo no século XX”. Revista de História , v. 10, n. 21-22, 1955, p. 129.
97 Idem, Ibidem, p. 129.
140
pequenas cidades, quase todas periféricas e distantes entre si. De qualquer modo, o núcleo mais
urbanizado da cidade no início do século XX era composto por dois blocos: de um lado o centro;
de outro, separados pelo Tamanduateí, os bairros do Cambuci e da Mooca, próximos à Várzea
do Carmo (atual Parque Dom Pedro II) que, de tão vastos, interpenetravam-se, também, com a
Luz e o Pari. A cidade, assim, era dividida entre o Centro Velho e os bairros das zonas Oeste,
Sudoeste e Sul e, de outro lado, o Brás e seus prolongamentos a leste. O centro continuava a
ser as regiões da Sé e de Santa Efigênia, com suas ruas agitadas onde se “processavam os
negócios políticos e comerciais, trabalhava o cérebro e batia o coração de São Paulo” . A região
sul era composta pela Liberdade, Bela Vista e Consolação; a oeste estavam os Campos Elíseos,
o Bom Retiro e a Barra Funda. Segundo as fontes utilizadas por Petrone, essa vastidão urbana
não era uma cidade brasileira, de 450.000 habitantes; antes, era italiana, “de aproximadamente
100.000, uma portuguesa de talvez 40.000, uma espanhola de igual tamanho e uma pequena
cidade (Kleinstadt) alemã de mais ou menos 10.000 habitantes, com poucas de suas vantagens,
mas muitas de suas desvantagens” .98
Ora, embora tenha dito que naquele tempo misturavam-se “tipos alourados, morenos,
negros, amarelos ou mestiços, brasileiros de todas as regiões, homens vindos da Europa, da
Ásia e da América do Norte”99, ao analisar a expansão urbana paulistana, Petrone não descreveu
os lugares ocupados por negros. Talvez por que eles morassem, trabalhassem e se relacionassem
em todos aqueles bairros. No entanto, seguindo a trama da tradição paulista de apagamento das
raças que a compuseram, os paulistas, ao provarem que a expansão urbana periferizou a sua
população, escamoteiam a presença de negros nos bairros centrais e em suas imediações.
Petrone enxergou a São Paulo branca; quanto a Florestan Fernandes, ao olhar para a cidade
negra, logo atribui a ela a noção segundo a qual onde havia europeus (brancos no centro e
adjacências) não havia negros (taxados, desde a partida, de periféricos).
Esse panorama se modifica um bocado a partir dos anos 1980. Em seu estudo sobre a
São Paulo do século XIX, Maria Odila Leite da Silva Dias descreveu uma cidade constituída
como “espaço de sobrevivência de mulheres pobres, brancas, escravas e forras” 100 que mal e
mal se inseriam nas fímbrias das classes dominantes. A historiadora olha para a cidade descrita
por Saint-Hilaire, também composta por negros, roceiros e toda sorte de pessoas de “baixa
classe” com um olhar mais preciso. Em suas linhas, aquelas mulheres aparecem constantemente
Patrícia Garcia da Silva chega a conclusões semelhantes. Entre os anos de 1850 e 1875,
133 mulheres declararam a posse de 537 escravos e, destes, 54% foram alforriados.105 A
presença negra antes da Abolição era considerável. Portanto, ainda antes de 13 de maio de 1888,
a quantidade de citadinos negros livres, libertos, escravos e fugidos era relevante.
Com tudo isso, o que pode nos levar a crer que houve uma diminuição desse contingente
no pós-Abolição? Só mesmo acreditando no tão propalado, já desabilitado, déficit negro, para
julgar que isso ocorreu.
Após a assinatura da Lei Áurea, a experiência de libertos e afrodescendentes paulistas
foi marcada por desafios: de um lado, diversas expectativas de inserção social foram frustradas;
de outro, em um estado cada vez mais branqueado pela vinda de imigrantes europeus, a
concorrência no mercado de trabalho e os conflitos étnico raciais favoreceram as decisões de
deslocamento espacial por parte dos ex-escravos. Ainda assim, a tendência migratória era mais
frequente entre solteiros e jovens. Isso pode indicar que, embora tendo um cotidiano difícil,
famílias mais arraigadas dificilmente saíram da região onde viviam. Lúcia Helena Oliveira da
Silva identificou algo semelhante ao analisar a migração de negros do estado de São Paulo para
a cidade do Rio de Janeiro nos anos posteriores a 1888.106
Então, se vivências negras permaneceram pulsando na São Paulo pós-Abolição,
atravessando os anos da Primeira República até os dias atuais, cabe agora perguntar sobre os
locais onde eles experimentaram a cidade no período republicano e como o fizeram. A resposta
à primeira pergunta não é fácil, já que os dados estatísticos omitiram, na maioria das vezes, a
cor como um critério sensível para a confecção dos censos de 1890, 1900 e 1920.
De qualquer modo, Florestan, de novo ele, valendo-se do relatório de Toledo Piza107,
observa o seguinte quadro para o ano de 1893.
105 SILVA, Patrícia Garcia Emando da. Últimos desejos e promessas de liberdade: os processos de alforrias em
São Paulo (1850-1888). Dissertação de Mestrado, FFLCH/USP, São Paulo, 2010, p. 14.
106 SILVA, 2016.
107 Relatório apresentado ao cidadão dr. Casório Mota Júnior, secretário dos negócios do Interior do Estado de
São Paulo, pelo diretor da Repartição de Estatísticas e Arquivo dr. Antônio de Toledo Pisa, em 31 de julho de
1894. Rio de Janeiro: Tip. Leuzinger, 1894 apud FERNANDES, op. cit., p. 41.
143
Esses dados, segundo Fernandes, são suficientes para atestar a periferização dos negros,
já que compõe 24,9% dos moradores dos subúrbios paulistanos. No entanto, ele não diz que
13,6% de negros compunham o distrito de Santa Efigênia. Se forem somados à porcentagem
dos moradores da Consolação, Norte e Sul da Sé (Liberdade, Campos Elísios, Luz e Bom
Retiro), podemos perceber que desde esse momento a população negra paulistana, se não morou
nas ruas do centro de São Paulo, continuou a viver próxima dele.
Podemos notar que pretos, pardos e caboclos também se concentraram no que Fernandes
denomina “zona suburbana”, que entendo como as zonas rurais paulistanas, vivendo em torno
de pequenos focos de produção agrícola, cuidando da transformação e manutenção de valores
e estilos de vida construídos ou almejados desde a época das lutas pela liberdade.108
Kim D. Butler sustenta que, nos territórios rurais ou nos mais urbanizados, o
estabelecimento de famílias negras e seus laços de parentescos e solidariedade contribuíram
para a manutenção da presença negra a partir de ondas constantes de migrações. Segundo ela,
tais migrações ocorreram em fases distintas depois do fim do cativeiro. A primeira onde
migratória teria ocorrido na baixada da Bela Vista, conhecida como Bexiga, formando, assim,
um dos primeiros enclaves negros da cidade. Depois de estabelecidas as primeiras famílias,
vieram as ondas migratórias subsequentes, ocupando a Barra Funda e os Campos Elíseos. Mas
108 WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. ‘D a escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade possível”.
In: SEVCENKO. Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.
55.
144
esse tipo de ocupação territorial, sempre acompanhando as margens das linhas férreas, também
foi seguido pelas massas de imigrantes europeus, italianos em sua maioria, que dividiam o
espaço das ruas e das casas coma famílias negras.109
Entre 1910e 1915, imigrantes italianos que havia prosperado no comércio deslocaram-
se para regiões da cidade onde a demanda por serviços aumentava. Ao mesmo tempo, os
abastados moradores dos Campos Elísios mudaram-se para bairros construídos sob a égide do
saneamento e pretensamente livres das epidemias de sarampo e febre amarela, tais como o
Higienópolis. Com isso, os negros, junto com os trabalhadores brancos do interior, ocuparam
os lugares deixado pelos antigos moradores. Tudo isso deu suporte ao crescimento de demandas
por moradias, o que levou a corticização em bairros como Campos Elíseos.110
A conclusão é que a descriminação racial expressava-se, novamente, numa segregação
espacial. O estabelecimento de territórios negros nas bordas da cidade seria confirmado por um
estudo estatístico sobre os nascimentos na capital que, categorizado segundo o critério de raça,
revelou esse padrão residencial. Registrando a taxa de natalidade entre 1925 e 1929, indicou
que a Bela Vista continuou como o principal distrito ocupado por negros. A historiadora
também usou o censo escolar de 1934 para demonstrar que aquele bairro continuou como o
principal território negro paulistano. Mas acaba por afirmar que nas década de 1920 e 1930, em
distritos como Santa Cecília e Liberdade, assim como nos demais, a população negra
permanecería em números inferiores em relação aos brancos.111 Mas é preciso que tomemos
cuidado, isso não quer dizer que esse número não foi significativo.
Os pequenos territórios negros formados pelas ondas migratórias, muito deles ligados
pelo contato e pela lembrança da cidade natal, nunca deu oportunidades de sair dos arredores
da cidade em direção ao centro. Frutos de uma migração estimulada por laços de solidariedade
e ajuda mútua, “crianças, amantes, amasiados ou não, parente distantes e amigos” vinham para
a cidade tentar a sorte, sempre com a certeza de que encontrariam um teto. E, sob um único
teto, muitas pessoas dormiam nos porões e nos cortiços, transmutando-se em comunidades em
miniatura.112
Butler acerta em cheio ao dizer sobre as condições de moradia de negros em São Paulo.
E difícil colocar de uma maneira melhor a conclusão sobre a segregação espacial entre negros
e brancos, europeus ou brasileiros. No entanto, o caráter fragmentário das fontes estatísticas aos
109 BUTLER, Kim D. Freedoms given, freedoms won: afro-brazilians in post-abolition (São Paulo and Salvador).
Rutgers University Press: New Brunswick, New Jersey, 1998, p. 73-74.
110 Idem, Ibidem, p. 74.
111 Idem, Ibidem, p.75-76.
112 Idem, Ibidem, p. 77.
145
quais a autora teve acesso parece maquiar a distribuição territorial negra em São Paulo, e Butler
sabe disso. Assim, seu estudo foi importantíssimo para começarmos a desvendar esse quebra-
cabeça que o apagamento da cor nos diversos dados censitários nos legou.
Em 1997, Raquel Rolnik já contava o Bexiga, a Barra Funda e os Campos Elísios como
territórios negros. Em todos eles, a forma de morar estava ligada aos cortiços e outros tipos de
habitações coletivas. Também apontando a relevância da implantação das ferrovias que
atravessavam São Paulo, Rolnik percebeu um reordenamento nesse tipo de ocupação territorial,
o que contou para a ocupação das regiões semirrurais da Freguesia do O e da Penha, por
exemplo. Aos bairros apresentados posteriormente por Butler, somou o de Santa Efigênia, Luz,
Lavapés, Ipiranga e Sé, com seus cortiços localizados em pleno centro de São Paulo. Rolnik
também chega à conclusão de que a territorialidade negra se deu sob o contato com a população
de estrangeiros e seus descendentes. “Longe de se tornarem guetos, onde a localização de
elementos de certas origens étnicas exclui outros e define claramente espaços segregados com
limites definidos”, as áreas citadinas que contavam com maiores ou menores concentrações
étnicas guardavam uma miscigenação de territorialidades.113
E claro que a imigração, estabelecendo uma explosão demográfica, forçou uma
redefinição do espaço urbano. No entanto, os porões e cortiços citados por Butler, que também
eram habitados por negros, existiram no centro velho e em outras zonas urbanas. Sobre esse
aspecto, os boletins de ocorrências médicas também podem nos ajudar. A análise dos dados
fornecidos por eles revela que uma parcela significativa de negras e negros pobres não puderam
e não quiseram abandonar o centro da São Paulo das primeiras três décadas do século XX.
Embora o padrão de distribuição étnica tenha sido difuso, não se pode concluir que “onde havia
maior concentração de estrangeiros era mínima a presença de negros e mulatos” 114. Como bem
definiu Butler, a São Paulo pós-Abolição, inserida num contexto de diáspora afroatlântica, foi
caracterizada por lutas constantes pela autodeterminação negra.115 Nesse sentido, ao
percebermos que a periferização fez parte de um processo racializado de metrópole, nos damos
conta de sua gradualidade.
Tabela 13: Distribuição da população da cidade de São Paulo por bairros, segundo cor e
nacionalidade (1911-1915)
Distribuição por bairros da população da cidade de São Paulo entre 1911 e 1915, segundo a cor e
nacionalidade.
D e m a is
B a irro d o p a c ie n te B ra s ile ira (N e g ro s ) Italiana (B ra n c o s ) P o rtu g u e s a (B ra n c o s ) E s p a n h o la (B ra n c o s ) n a cio n a lid a d e s T o ta l
(B ra n c o s )
B e la V is ta 40 55 27 6 9 137
L ib e rd a d e 35 25 18 4 3 85
Sé 26 33 18 4 37 118
C o n s o la ç ã o 25 32 18 5 13 93
B o m R e tiro 20 65 29 7 5 126
B rá s 17 75 81 23 3 199
S a n ta C e c ília 17 15 19 2 6 59
M o o ca 15 79 50 34 16 194
N ão C o n s ta 14 13 2 2 14 45
N ão e n c o n tra d o 12 9 6 3 2 32
S a n ta n a 11 8 12 1 2 34
B e lé m 9 13 23 9 1 55
P a ri 8 13 23 2 5 51
C am buci 8 17 2 4 2 33
L uz 6 7 11 0 0 24
S a n ta E fig ê n ia 5 26 11 3 11 56
B a rra F u n d a 5 9 13 1 1 29
Não Tem 4 4 1 2 2 13
P enha 4 1 2 2 3 12
P e rd iz e s 4 6 2 0 2 14
J a rd im P a u lis ta 4 3 1 0 2 10
P in h e iro s 3 5 1 1 1 11
V ila Ma ria na 2 14 2 2 6 26
L ap a 2 5 1 0 1 9
T a tu a pé 2 1 6 0 3 12
C a m p o s E lis io s 2 2 1 0 0 5
B a irro s c o m m e n o r
51 62 39 12 26 190
in c id ê n c ia d e m o g rá fic a
Tabela 13-Fonte: APESP. Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo. Assistência Policial. Registro
de ocorrências da Assistência Policial, 1911-1930
Ao analisar a ocupação negra dos bairros paulistanos durante a primeira metade dos
anos 1910, nota-se que a sua maior concentração continuava a se verificar na Bela Vista e na
Liberdade (ou seja, o Sul da Sé). Entretanto, negros são encontrados em uma proporção bastante
próxima de italianos, portugueses e espanhóis no distrito da Sé. Bairros centrais ou contíguos à
central comercial e administrativa da cidade, como Santa Cecília, Campos Elísios, Consolação
e Luz, contam com um contingente negro considerável. Em alguns deles, os negros são a
maioria ou estão em proporção muito semelhante à dos imigrantes.
147
Tabela 14: Distribuição da população da cidade de São Paulo por bairros, segundo cor e
nacionalidade (1916-1920)
Distribuição por bairros da população da cidade de São Paulo entre 1916 e 1920, segundo a cor e
nacionalidade.
D e m a is
B a irro d o p a c ie n te B ra s ile ira (N e g ro s ) Italiana (B ra n c o s ) P o rtu g u e s a (B ra n c o s ) E s p a n h o la (B ra n c o s ) n a cio n a lid a d e s T o ta l
(B ra n c o s )
B e la V is ta 65 66 30 11 3 175
L ib e rd a d e 51 25 20 9 10 115
B o m R e tiro 39 70 24 5 7 145
S a n ta C e c ília 24 21 13 1 5 64
C o n s o la ç ã o 23 27 19 3 13 85
B rá s 18 67 91 29 5 210
M o o ca 15 93 50 56 12 226
L uz 11 3 5 2 0 21
Sé 11 27 19 9 33 99
B e lé m 8 16 13 7 2 46
P a ri 7 8 23 6 1 45
P enha 6 4 4 0 1 15
P in h e iro s 6 6 8 1 0 21
B a rra F u n d a 6 9 10 3 1 29
C am buci 6 18 4 3 2 33
Ig n o ra d o 6 3 0 0 9 18
T a tu a pé 5 1 2 0 3 11
S a n ta E fig ê n ia 5 19 13 3 12 52
S a n ta n a 4 10 19 1 5 39
Lageado 3 0 0 0 0 3
J a rd im P a u lis ta 3 1 3 2 1 10
Ip ira ng a 3 7 2 0 1 13
V ila Ma ria na 3 7 7 1 3 21
B a irro s c o m m e n o r
53 46 73 12 16 200
in c id ê n c ia d e m o g rá fic a
Tabela 1 4 -Fonte: APESP. Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo. Assistência Policial. Registro
de ocorrências da Assistência Policial, 1911-1930
Esse padrão permanece para a segunda metade da década, com leves variações nos
percentuais. Tudo isso demonstra a possibilidade desses sujeitos habitarem os superlotados
cortiços das regiões centrais. Tal padrão de ocupação, como veremos no próximo capítulo,
sofreu fortes relações com o empregos e serviços que negras e negros desempenharam durante
quase toda a Primeira República. É o que nos leva a crer na preponderância negra em bairros
como Consolação, Jardim Paulista e Campos Elísios, regiões conhecida pelos seus palacetes, o
luxo e pela gente endinheirada da época. E muito provável que morar perto ou nessas regiões
facilitasse a venda de serviços, como o de lavar e engomar roupas e outros serviços domésticos,
hipótese que aumenta a probabilidade desses sujeitos morarem em casa de seus patrões. A
leitura de fontes qualitativas, como a de processos-crime, de memórias orais ou de jornais
também revelaram que morar em cortiços estabelecidos próximos à regiões centrais serviu
como uma etapa de vida para diversas pessoas negras. Morar nessa região, para além de fornecer
oportunidades de emprego, pode ter feito parta de uma economia de costumes financeiros da
população em geral que, ao dividir as despesas de aluguel com outros companheiros de quarto,
148
podería possibilitar a formação de um pé-de-meia que facilitasse uma futura mudança de lugar
ou a compra de um terreno em outra região.
Chama a atenção a desproporcionalidade entre europeus e negros em bairros industriais,
como o Brás e a Mooca. A predominância do imigrante sobre o nacional nas fábricas pode
explicar a discrepância. Ainda assim, no universo estatístico que os boletins de ocorrências
médicas oferecem, a oscilação de 17 indivíduos para 18, no caso do Brás, e a permanência de
15 pessoas na Mooca, para além do predomínio branco nos bairros industriais, são indícios de
que, naquelas regiões, negros estabeleceram laços sociais que possibilitaram sua permanência.
E pouco provável que, no interior dessa porcentagem, eles não tivessem acesso à vida operária.
Não obstante essa hipótese, Brás e Mooca eram bairros extensos e com uma infraestrutura
urbana que crescia com o aproximar da década de 1920. Nesse caso, é possível que a expansão
da demanda por diversos serviços tenha contribuído para a permanência negra na região. E isso
aconteceu, pelo menos até o ano de 1930, conforme demonstram as tabelas seguintes, tendo a
Mooca sofrido um considerável aumento da população negra entre 1921 e 1925, sofrendo uma
queda que a levou de volta aos patamares anteriores a partir de 1926.
149
Tabela 15: Distribuição da população da cidade de São Paulo por bairros, segundo cor e
nacionalidade (1921-1925)
Distribuição por bairros da população da cidade de São Paulo entre 1921 e 1925, segundo a cor e
nacionalidade.
D e m a is
B a irro d o p a c ie n te B ra s ile ira (N e g ro s ) Italiana (B ra n c o s ) P o rtu g u e s a (B ra n c o s ) E s p a n h o la (B ra n c o s ) n a cio n a lid a d e s T o ta l
(B ra n c o s )
B e la V is ta 47 52 28 5 3 135
B o m R e tiro 40 38 20 2 12 112
L ib e rd a de 36 29 17 2 5 89
S a n ta C e cília 33 18 10 4 5 70
C o n s o la ç ã o 29 20 16 3 9 77
Sé 23 11 16 3 16 69
M ooca 21 69 42 56 15 203
B rá s 17 70 54 35 9 185
S a n ta n a 15 9 15 3 3 45
Ignorado 15 16 19 11 16 77
S a n ta E figê n ia 13 17 5 0 8 43
P en h a 11 3 8 7 1 30
L uz 9 3 2 0 2 16
B elém 9 9 22 5 4 49
V ila C e rq u e ira C e s a r 7 2 1 2 0 12
Ip iranga ■ ■ 6 2 4 1 20
P in h e iro s ■ ■ 2 8 2 0 19
P e rd iz e s 6 2 5 0 3 16
B a rra F u n d a 6 4 10 0 2 22
P ari 6 9 16 7 1 39
C am buci 6 12 2 7 1 28
T a tu a pé 5 7 8 1 1 22
V ila M ariana 5 9 7 2 1 24
B a irro s c o m m e n o r
46 45 52 11 18 172
in c id ê n c ia d e m o g rá fic a
Tabela 15-Fonte: APESP. Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo. Assistência Policial.
Registro de ocorrências da Assistência Policial, 1911-1930
150
Tabela 16: Distribuição da população da cidade de São Paulo por bairros, segundo cor e
nacionalidade (1926-1930)
Distribuição por bairros da população da cidade do São Paulo antro 1926 e 1930, segundo a cor e
nacionalidade.
Bairro d o paciente Brasileira (Negros) Italiana (Brancos) Portuguesa (Brancos) Espanhola (Brancos) nacionalidades Total
(B rancos)
Bela Vista 37 45 10 1 9 1 02
Bom Retiro 35 21 7 2 23 88
Liberdade 33 '1 13 1 3 67
S anta Cecília 30 8 11 0 4 53
Consolação 20 10 9 2 11 52
Ignorado 20 14 7 1 26 68
Brás 17 31 34 15 8 1 05
Mooca 17 40 21 39 33 1 50
Pinheiros 17 4 6 0 3 30
Sé 17 10 7 2 17 53
Tatuapé 14 9 9 4 1 37
Belém 12 11 14 1 7 45
S anta Efigênia 10 5 10 2 8 35
Santana 9 9 9 1 2 30
Barra Funda 7 4 6 1 1 19
Cam buci 13 5 1 4 30
Lapa 6 2 2 1 5 16
Penha 6 1 8 3 0 18
Perdizes 6 3 8 0 3 20
Vila Mariana 5 7 2 0 6 20
Bairros co m m enor
37 202
incidência dem ográfica
Tabela 16-Fonte: APESP. Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo. Assistência Policial.
Registro de ocorrências da Assistência Policial, 1911-1930
decorrer dos anos, mas sem perder significativamente o contingente de moradores negros. Esse
tipo de concentração populacional pode ser acompanhado nos mapas dos anexos de I à IV.
Por vezes cansativa, a análise da territorialidade negra em São Paulo foi fundamental
para demonstrar que, durante a Primeira República, a população negra passou a ocupar as mais
variadas região paulistanas, partindo do centro e chegando à periferia que ficava cada vez mais
distante das regiões centrais. No entanto, isso não é o mesmo que dizer que, no processo de
periferização até a década de 1930, ocorreu a efetiva expulsão de negras e de negros da região
central da cidade. Bairros como Penha, Santana e Lageado figuram como grandes polos negros,
principalmente a partir dos anos de 1920. Mas o seu aumento não significou uma diminuição
significativa em outras regiões, mesmo as centrais. Os dados sugerem que nessas regiões semi-
rurais desenvolveram-se laços de solidariedade que puderam atrair a migração negra para lá,
fato que também deve ter contado para a manutenção da presença negra em outras regiões.
Outrossim, outros bairros foram somados ao Bexiga, Liberdade, Barra Funda e Campos
Elíseos como áreas de concentração negra, como Bom Retiro, Santa Cecília, Consolação,
Pinheiros, Tatuapé e Belém. Isso não significa que a lida diária de mulheres e homens negros
foi fácil numa cidade que se queria branca. No entanto, esses dados demonstram que, se houve
empreitadas estatais concorrendo para a expulsão da população negra e pobre das regiões
centrais, contra essas iniciativas de segregação espacial voltaram-se pessoas que, lutando por
seus direitos, enfrentaram o ímpeto urbanizador da municipalidade. E é dessa gana por
urbanidade que trataremos a seguir.
Um projeto modemizador de cidade não surgiu pela primeira vez em São Paulo com a
proclamação da República. Desde o início do século XIX, perspectivas de transformações
urbanas já estavam em pauta. Aos poucos, novas idéias sobre cidade decorrentes da Revolução
Industrial inglesa tomaram forma em São Paulo, com a ampliação de fontes de energia (carvão,
gás), com o uso de recém-adquiridas técnicas de produção, transportes (ferrovias, pontes
metálicas e portos repletos de vapores) e de comunicação (imprensa e telégrafos). Tudo isso
atingiu a simbologia das cidades brasileiras, condenando-as o “ímpeto modemizador” .116
Novas técnicas de intervenção urbanística começavam a ser implementadas no Império
brasileiro sob os manto da engenharia. Logo se percebeu que as cidades, em franco crescimento
116 CAMPOS, Cândido Malta. Os rumos da cidade: urbanismo e modernização em São Paulo. São Paulo: Editora
SENAC São Paulo, 2002, p. 39.
152
A gestão Prado foi marcada pela limitação de recursos para financiar transformações de
grande porte. Ainda assim, sua ação marcou a reurbanização do centro, concentrada no
Anhangabaú, no Jardim da Luz, na avenida Tiradentes, na Praça da República, no Arouche e
na Várzea do Carmo. A cidade se civilizava seguindo os moldes do paisagismo francês, e a
intensão continuava a mesma: tudo para receber as famílias abastadas do café.
O Largo do Rosário (atual Praça Antônio Prado) foi ampliado e, para tanto, demoliu-se
a antiga Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, transferida para o outro lado
do Anhangabaú. No seu antigo lugar, lá no Rosário, o irmão do prefeito, Martinho Prado Júnior,
mandou erguer o Prédio Martinico, que abrigou a sede da Light, da redação do jornal Estado
de São Paulo e, hoje em dia, onde funciona a BM&FBovespa. Limpar as ruas, cuidar dos
jardins, substituir uma igreja de negros por um palacete de brancos, era o mesmo que se livrar
dos estigmas que o mundo imperial e da escravidão haviam deixado na cidade. E isso foi
concebido com a intenção saneadora dos técnicos que operavam a transformação da cidade.
Na Sé, quarteirões de casas e cortiços foram demolidos, ao que se seguiu a demolição
das antigas igrejas da Sé e de São Pedro para a projetada construção de uma catedral em estilo
eclético, neogótico. Para os lados do Anhangabaú, deu-se a intervenção mais cara e visível,
símbolo do caráter moderno da cidade: a construção do Teatro Municipal, entre 1903 e 1911.
A modernização paulistana ia ganhando novos ares, ainda que não se comparassem aos da
capital do país, com as suas avenidas centrais e bota-abaixos. Para além da urbanidade do
centro, havia outra cidade que crescia a passos bem mais largos do que o ímpeto civilizatório
de Prado e Freire. Para além do Tamanduateí, à leste, estavam os bairros industriais do Brás, da
Mooca e Belém; ao norte da Sé, estavam o Bom Retiro, Pari, Coroa e Santana; ao sul, Bexiga,
Liberdade, Cambuci, Glicério e Ipiranga; o oeste, a Barra Funda. A beira das indústrias e das
linhas de trem, esses bairros cresciam e tomavam-se mais e mais populosos. Eram o avesso da
cidade que se modernizava, simbolizavam a luta entre a cidade oficial e a real.119
A europeização arquitetônica esteve permeada de contradições que desmentiam os
discursos de evolução social. A concentração das intervenções no centro da capital demonstrava
o pensamento daqueles que imprimiam à cidade oficial uma atmosfera parisiense: a exclusão e
expulsão dos pobres - entre eles e/ou junto com eles, de negras e de negros.
A questão sanitária mascarou projetos de segregação sócio espacial que pretendiam
banir da cidade usos e costumes dos que ali continuaram morando. De acrdo com Cândido
Malta, se houve um consenso entre as elites sobre os projetos urbanizadores, esse só pode ter
sido o de que o desenvolvimento econômico, social e urbanístico da cidade não podería ser para
todos.120
Contando com o amadurecimento urbanístico que realizara junto a Prado, Vítor Freire
pode agir com maior rigor na transformação citadina, mas sempre com igual entusiasmo racial
e classista. São Paulo podería, enfim, entrar no rol das cidades civilizadas, exibindo suas
riquezas e o progresso do Estado. A cidade nunca havia crescido tanto. Com o boom imobiliário,
oferecia-se à iniciativa privada o loteamento de terrenos que atrairíam compradores dispostos a
pagar preços altos por casas deslumbrantes. E, assim, a cidade corria rumo ao refinamento e
progresso.121
Mas foi na gestão de Raymundo Duprat (1911-1914) que ocorreu o maior debate acerca
das reformas urbanas. Grandes proprietários urbanos discutiam com técnicos da prefeitura
vários projetos. No centro, demoliam-se vários quarteirões habitacionais, repletos de cortiços,
tidos como obstáculos à abertura de grandes eixos monumentais que deveríam abrigar o
comércio, os escritórios, os parques e teatros.122 As casinhas de pobres foram demolidas do
entorno do Vale do Anhangabaú, garantindo a integração entre espaços públicos e privados. As
idéias de salubridade e economia começavam a andar de braços dados. O padrão científico-
monetário de cidade previa a aglomeração de casas individuais como inconveniências
higiênicas. Os lotes estreitos que ocupavam, com aposentos que se abriam para um corredor
que levaria seus habitantes para a rua, deveríam ser substituídos ou por casas grandes e caras,
ou por edifícios de alguns andares.123
Passados os intensos debates de projetos urbanísticos, foi na gestão de Washington Luís
(1914-1919) que o governo municipal passou a definir melhor os rumos da modernização
urbana do centro de São Paulo. Foi nesse período, também, que essa política assumiu o seu
caráter mais racializado. Ex-secretário estadual da Justiça nos governos anteriores, Luís estava
acostumado com a lógica de controle social, por ter cuidado da reforma do aparelho repressivo
paulista. Tinha ao seu lado ex-conservadores, ex-liberais, republicanos, monarquistas, membros
do PRP e seus dissidentes. Em 1914, ele conseguiu verbas para a construção do Parque
Anhangabaú, realizado conjuntamente com o projeto de Bouvard para a Várzea do Carmo. Com
o novo parque proposto para a Várzea do Carmo, intermediava-se a ligação entre o Brás e a
Mooca ao centro.
O plano de modernização da cidade tinha como cerne prever os rumos que a urbe
tomaria. Era preciso garantir que nos lotes ao redor do futuro parque fossem edificadas
construções que fornecessem uma “moldura condigna” às aspirações que emplacariam a
construção do logradouro. A prefeitura assumia para si o papel de intermediação entre os
anseios técnicos de embelezamento e higiene e os movidos pelos interesses imobiliários.
E emblemática a postura de Washington Luís em relação à Várzea do Carmo. Fazendo
a ligação com três dos principais bairros operários da capital (Brás, Mooca e Pari), e contando
para a ligação do centro urbano com o restante da zona leste, esse local sempre esteve nos
planos de controle e de modificação urbana das gestões municipais. A várzea era um vasto
logradouro público encharcado, onde se faziam os despejos da cidade, soltavam-se animais,
cortava-se lenha, e onde os ociosos vinha caçar e as lavadeiras fazer seu m ister126127, onde cenas
desagradáveis aos olhos dos endinheirados ocorriam com frequência:
124 RELATÓRIO DE 1914 apresentado à Câmara Municipal de São Paulo pelo Prefeito Washington Luís Pereira
de Sousa. 2v. São Paulo: Casa Vanorden, 1916, p. 9
125 RELATÓRIO DE 1914 apresentado à Câmara Municipal de São Paulo pelo Prefeito Washington Luís Pereira
de Sousa. 2v. São Paulo: Casa Vanorden, 1916, p. 76. Apud PEREIRA, Robson Mendonça. O prefeito do
progresso: modernização da cidade de São Paulo na administração de Washington Luís (1914-1919). 2005.
Franca: UNESP (Doutl em História), p. 225.
126 SAMPAIO, Teodoro. São Paulo no século X IX e outros ciclos históricos. Apud OLIVEIRA, op. cit., p. 73.
127 SESSO JR, Geraldo. Retalhos da velha São Paulo. Apud OLIVEIRA, op. cit., p. 73.
156
porque o que hoje ainda se vê, na adiantada capital do Estado, a separar brutalmente
do centro comercial da cidade os seus populosos bairros industriais, é uma vasta
superfície chagosa, mal cicatrizada em alguns pontos, e, ainda escalavrada, feia e suja,
repugnante e perigosa em quase toda a sua extensão. [...]É ai que, protegida pelas
depressões do terreno, [...]se reúne e dorme e se encachoa, à noite, a vasa da cidade,
numa promiscuidade nojosa, composta de negros vagabundos, de negras edemaciadas
pela embriaguez habitual, de uma mestiçagem viciosa, de restos inomináveis e
vencidos de todas as nacionalidades, em todas as idades, todos perigosos. É aí que se
cometem atentados que a decência manda calar; é para ai que se atraem jovens
estouvados e velhos concupiscentes para matar e roubar [...], não obstante a solicitude
e a vigilância de nossa polícia. Era aí que, quando a polícia fazia o expurgo da cidade,
encontrava a mais farta colheita.128
128 TORRES, Maria Celestina Mendes. “O bairro do Brás”. In: História dos bairros de São Paulo. São Paulo:
Prefeitura Municipal, Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura, 1969, p. 182-
183.
129 Idem, Ibidem, p. 182-183.
130 RIBEIRO, Vanessa Costa. Várzea do Carmo a Parque Dom Pedro IP de atributo natural a artefato. 2012.
Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2012, p. 258.
157
Raquel Rolnik afirma que a legalidade urbanística, construída entre os anos da Primeira
República em São Paulo, também criou um campo de ilegalidade que abarcava a grande maioria
dos habitantes da cidade. Bairros inteiros existiam, com alta densidade populacional, sem que
fossem reconhecidos como parte oficial da metrópole.1
O discurso oficial enxergava os espaços populares com repugnância e preocupação. A
cidade oficial se desenhava a despeito da realidade construída à custa da especulação
imobiliária que tomava conta de São Paulo desde pelo menos o início do século XX. Esse
“paradigma da legalidade” colocava sob “a condição de extralegalidade” milhares de pessoas
em casas e terrenos subdivididos para abrigarem famílias inteiras. Tudo isso, ao mesmo tempo
em que era entendido pelas gestões municipais como promiscuidade, indisciplina,
desregramento e falta de higiene, também era facilitado pelo desenvolvimento de um
capitalismo territorial que lucrava com o aluguel de casas transformadas em cortiços.
Para Nabil Bonduki, as habitações precárias foram a tônica do processo de urbanização
paulistano. Configurou-se como problema real a partir de 1880, com o incremento populacional
em um mercado de trabalho onde os baixos salários eram a regra. Moradias de baixo custo de
construção passaram a ser comuns nos bairros da capital, inclusive os centrais. Entre 1886 e
1900, explodiu a primeira crise habitacional na cidade. Com o incremento demográfico advindo
da imigração, a carência habitacional se fez notar como um obstáculo para o crescimento
urbano.2 Já na década de 1890, Raffard dizia que, com o grande aumento populacional, existiam
apenas 14.000 casas “que representariam a existência de 98.000 almas calculando-se 7
habitantes por casa” . Muita gente se retirava da capital paulista “por falta de habitações” .3
Com milhares de novos moradores, a necessidade de transportes rápidos e eficientes
crescia devido às distâncias cada vez maiores a se percorrer. Os chafarizes não davam conta do
consumo de água e o risco de contaminação pela falta de esgoto tratado era um dos principais
inimigos da saúde pública entre os anos de 1890 e 1930. Tudo leva a crer que os planos de
urbanização da cidade, focados no centro, constituíram-se em meio à segregação social e
espacial. A ideia de que isso deu certo, desde muito cedo, sofreu forte influência da
predominância dos “registros e [d]a documentação divulgada sobre o período”, que “tratam
quase que de forma exclusiva do empenho da elite em construir uma cidade ‘moderna’, de
aparência europeia”, muito diferente da cidade que negras e negros ocuparam. “E muito mais
comum encontrar-se um relato de um detalhe da construção de um imponente edifício público
ou privado, neoclássico ou eclético, do que uma rápida descrição dê habitações populares” .4
Como bem disse Bonduki, existe ainda um “véu negro” que encobre os alojamentos da
classe trabalhadora paulista. Para o nosso caso, melhor dizendo, existe um véu que oculta os
alojamentos de negras e negros da classe trabalhadora. Se ninguém os via, ninguém os descrevia
e, portanto, não podemos lembrar de seus modos de morar e improvisar suas vidas cotidianas.5
Lembrando do Relatório de Washington Luís, se essas habitações não representassem o perigo
da promiscuidade e da falta de controle que o Estado pretendia sobre a vida dos moradores,
muito menos saberiamos sobre elas. Afinal, os poucos relatos oficiais que restaram foram os
dos higienistas muito mais preocupados com a saúde pública do que com as condições de vida
material dos sujeitos que habitavam a cidade.
Deste capítulo em diante, deterei minha atenção nos vestígios das histórias de homens
e mulheres negras que, convivendo com brancos, e de tão pobres, tiveram de enfrentar grandes
adversidades. Desse modo, utilizando uma gama variada de fontes, procurarei investigar as
maneiras pelas quais as “pessoas comuns” experimentaram a cidade, improvisando maneiras
de morar. Para tal, a produção de uma história vista de baixo requer alguns cuidados. As pessoas
vivem dentro de contextos específicos e tomam atitudes, falam e se relacionam informadas por
eles. Englobando aspectos econômicos, políticos e culturais, o âmbito da experiência vivida se
torna um terreno arenoso, onde qualquer passo pode fazer o historiador atribuir um significado
que deseja à realidade social sobre a qual se debruça, ao invés do que está implícito. No entanto,
o historiador social “descobre apenas o que está procurando, não o que já está esperando por
ele” . Quando digo que algo está implícito, refiro-me às experiências dos sujeitos. “Muitas fontes
para a história [...] apenas foram reconhecidas como tais porque alguém fez uma pergunta e
depois sondou desesperadamente” por respostas. Elas, portanto, não estão escondidas, a espera
do felizardo que as encontrará.6 Lendo crônicas e artigos jornalísticos, narrativas literárias,
relatórios administrativos, discursos políticos e processos-crime, aos poucos fui construindo
uma dimensão do que determinadas gírias queriam dizer, do que era preciso para entender o
porquê de homens ou mulheres tomarem uma decisão ou outra enquanto viveram no intervalo
de tempo entre 1890 e 1930. Tudo isso me permitiu entender algumas das piscadelas do
período7 e, desse modo, tive a segurança de que não estava conferindo significados políticos e
culturais inexistentes às experiências das pessoas.8
Com tal zelo, o Relatório da Comissão de Exame e Inspeção das Habitações Operárias
e Cortiços no Distrito de Santa Efigênia , publicado em 1894, é uma fonte importante para quem
se interessa pelas condições de moradia dos paulistanos pobres no início da República. Ele
conta com a mais completa descrição daquelas habitações de fins do século XIX que temos
acesso hoje. Mesmo tratando de apenas alguns quarteirões do distrito, a análise do relatório
pode ser extrapolada para outros bairros ocupados por esse tipo de morada.9
Segundo o relatório, a população de Santa Efigênia passara de 14.125 pessoas em 1890
para 42.715, em 1893. Estalagens, cortiços e outros tipos de habitações operárias foram
edificados, quase todos elas de forma apressada e precária, para abrigar toda essa gente.10 As
“habitações destinadas às classes operárias” eram numerosas. Existiam ali “nada menos de 60
cortiços de todos os tamanhos e feitios” . Lá, viveu “uma população de 1.320 indivíduos de
todas as nacionalidades e condições” . Aquelas habitações, segundo o relatório, eram, no geral,
cortiços “bem pouco confortáveis” .11
Um cortiço ocupava comumente a parte interior dos quarteirões, “quase sempre um
quintal de um prédio onde há estabelecida uma venda ou tasca qualquer” . Era um portão lateral
que servia como entrada para um “estreito e comprido corredor para um pátio com 3 a 4 metros
de largo nos casos mais favorecidos” . Para o pátio, abriam-se “as portas [...] de pequenas casas
enfileiradas, com o mesmo aspecto, a mesma construção, as mesmas divisões internas e a
mesma capacidade” . Em geral, aquelas “casinhas” não tinham sistemas de ventilação. No
interior, segundo os peritos do Relatório, suas paredes eram sujas e contavam com decoração
pobre, com rebocos e pregos onde penduravam-se os utensílios domésticos.12
Em momentos de maior dificuldade econômica, como na entrada do século XX, era
comum o aproveitamento dos fundos de edifícios e terrenos para a construção de casinhas que
7 GEERTZ, Clifford. “Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura”. In: A interpretação das
culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. pp. 3-21.
8 HOBSBAWM, Eric J. Ibidem, p. 284.
9Relatório da Comissão de Exame e Inspeção das habitações operárias e cortiços no districto de Santa Ephigênia,
apresentado ao cidadão dr. Cezário MottaJr., Secretário dos Negócios do Interior do Estado de São Paulo. 1893.
In: CORDEIRO, Simone Lucena (org.). Os cortiços de Santa Ifigênia: sanitarismo e urbanização (1893). São
Paulo: Arquivo Público do Estado de São Paulo/ Imprensa Oficial, 2010.
10 BONDUKI, op. cit.,p. 31.
11 Relatório da Comissão de Exame e Inspeção das habitações operárias e cortiços no districto de Santa
Ephigênia, p. 98.
12 Idem, Ibidem, passim.
161
pudessem ser alugadas a quem não pudesse pagar por moradia mais salubres. Eram cortiços
improvisados com tábuas, zinco, atrás de cocheiras e estábulos que ocupavam o centro e outros
bairros do perímetro urbano.
Existia uma infinidade de outros tipos de residências de aluguel para os pobres da
cidade. Havia os “hotéis-cortiços”, que funcionavam como restaurantes onde seus moradores
alugavam quartos e ali “ se aglomeram à noite para dormir, já em aposentos reservados, já em
dormitórios comuns”, tudo a depender do poder aquisitivo do cliente. Mas “ quase sempre os
aposentos são pequeníssimos: 2,5 m de frente por 3 m de fundos, ocupados por operários sem
família” sendo “sabido como é que o acumulo de gente nestes lugares excede de muito os
limites do razoável” . A criteriosa descrição teve um motivo: o relatório previu a extinção dessas
casas.13
Havia, também, prédios de sobrados “convertidos em cortiços por meio de divisões e
subdivisões dos primitivos aposentos transformados” . Ocupando as ruas, “numerosas famílias”,
se alojavam em “alguns cômodos para uso comum: uma sala com vários fogões improvisados
para gozo de todos, umas latrinas pessimamente instaladas, compridos corredores com
iluminação insuficiente” .14 Esses alojamentos eram de alta rentabilidade para seus
proprietários, um investimento certo para ricos e remediados. Jefferson Cano constatou que o
combate aos cortiços em São Paulo foi ineficaz, tornando-os objetos de tributação municipal já
no início do século XX, “estabelecendo-se uma taxa de 30 mil-réis por cada cubículo
alugado” .15
Os cortiços se espalharam por toda a cidade: em janeiro de 1893, o Correio Paulistano
dava notícia sobre eles, para “dar uma ideia das ramificações dessa instituição nociva, porém
tolerada pelas exigências sociais” . De autoria de V. de Mello, o artigo entendia que os “cortiços
ou habitações” eram lugar onde viviam, “na mais repulsiva promiscuidade[,] homens, mulheres
e crianças, entregues aos mais atentatórios atos de lesa-higiene” . Se não tomarmos cuidado,
podemos confundir o texto de Mello com o discurso sobre a Várzea do Carmo proferido por
Washington Luís. O articulista continuava avisando seus leitores sobre as perigosas casas
populares: dos cortiços, miniaturas das margens do Tamanduateí, e de “sua imundice
originaria”, desprendiam-se “miasmas” que os iriam atingir “nos seus palácios, roubando-lhes
seres tão queridos, que a troco de nenhum ouro os cederíam” .16
O aluguel desse tipo de moradia era tão vantajoso e lucrativo que até os donos dos
palácios e palacetes tinha sobrados encortiçados espalhados pela cidade. Dona Veridiana da
Silva Prado, filha de Antônio da Silva Prado, do alto de sua civilidade, possuía “nada menos
que 114 cubículos, sendo 18 em um único imóvel da rua da Consolação e os outros 96 entre os
n° 31 e 61 da rua Martinho Prado”, locais muito próximos ao centro. O mesmo se dava como
os herdeiros do dr. Ângelo Pires Ramos, que possuía 113 cubículos. Bancos também
participavam desse mercado imobiliário, tais como o Banco da União de São Paulo, com os
seus 36 cômodos de cortiços.17
As moradias populares foram sendo identificadas como antros de promiscuidade, que
dia a dia iam “relaxando os costumes” 18 daqueles que as habitavam. O número delas só
aumentou, e isso explica a frequência do debate em tomo dessa questão na Câmara Municipal
durante toda a Primeira República. Em junho de 1908, votava-se o projeto do vereador Celso
Garcia prevendo a construção de casas baratas para abrigarem os “operários e pessoas
desfavorecidas da fortuna (...), um dos problemas sociais de mais palpitante atualidade” .
Comentando o projeto, os membros das comissões de Justiça, Obras e Finanças diziam que os
“operários e indigentes” viviam inconvenientes “físicos e morais” dentro daquelas “habitações
insalubres” . E que as “condições miseráveis de suas habitações, a promiscuidade” que ali
reinava, “com seu cortejo de moléstias de toda a espécie, de crimes e de vícios”, ameaçavam “a
saúde e a ordem pública” . Infelizmente, não se tratava “de um mal puramente local”, “por toda
parte se encontra[va]m os mesmos fenômenos dolorosos” . Segundo os pareceristas, a causa do
“amontoamento ou promiscuidade” era a “pobreza extrema dos habitantes”, que não lhes
permitia “procurar domicílios mais salubres, mais vastos e sobretudo mais caros, impedindo-
os, ao mesmo tempo, de se afastarem do local, onde ganham a sua subsistência” . O aumento da
população, “devido aos nascimentos e à imigração dos trabalhadores de campo para as cidades
ou capitais” 19 também contou para a maior demanda por moradias, o que impulsionava o
mercado imobiliário dessas habitações precárias. Assim, a demolição de casas de operários e
de outros tantos trabalhadores, fosse por motivo de higiene ou embelezamento do centro, não
encontrava guarida na realidade contraditória que a municipalidade queria gerir.
Como disse o vereador Marrey Junior, qualquer melhoramento, em qualquer rua,
acarretaria, indubitavelmente, em “maior tributo ao proprietário”, o que levaria ao “aumento de
aluguel” . Aluguéis altos, baixos rendimentos da maior parte dos habitantes de São Paulo e
aumento da demanda por moradia embasavam o argumento do vereador: o município não podia
“pôr um fim a essa situação”, não tinha meios legais “de coibir os abusos que se praticam”, não
tinha “recursos positivamente para construir, de forma a facilitar a habitação em casas
higiênicas e baratas” . São Paulo havia de ser sempre aquilo, uma rede de “transformação dos
costumes que recebemos dos nossos antepassados”, uma “aglomeração em casas pequenas”,
uma “verdadeira promiscuidade de indivíduos que mal se conhecem, com prejuízo para a
educação, com real ofensa a moral e esquecimento dos preceitos religiosos”, que deveríam ser
os guias dos passos dos paulistas que se queriam modernos.20
Oito anos antes da desanimadora fala de Marrey Junior, criticando a possibilidade dos
pobres não irem à inauguração do Teatro Municipal, José de Alcântara Machado dizia que era
impossível à “elite da sociedade paulistana” gozar “das premissas do teatro (...) sem o contato
repugnante com os humildes, sem promiscuidade ignóbeis com a plebe” :
A predileção pela pobreza como tema de fala fez parte da família Alcântara Machado.
Antônio, filho do vereador José, viría a ser o autor de Brás, Bexiga e Barra Funda. Chama a
atenção na fala do vereador o fato de que havia um incômodo popular acerca da inauguração
do teatro que parecia revelar o embaraço com a segregação social e espacial decorrente das
políticas urbanísticas. Referindo-se às queixas que todos os dias lhe caiam aos ouvidos,
Alcântara Machado demonstrava que pobres, ricos e remediados, pretos, pardos e brancos
continuavam a viver e se trombar pelas ruas paulistanas, mesmo que a contragosto dos que
queriam setorizar socialmente a cidade. Uma atitude como aquela, de seleção de espectadores
de um serviço que deveria ser municipal, não parecia soar muito bem aos ouvidos tidos como
moucos da ralé citadina.
20 ATA DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. 24a sessão ordinária. 5 de julho de 1919, São Paulo: s/e,
1919, p. 276.
21 ATA DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. 27a sessão ordinária. 18 de agosto de 1911, São Paulo:
s/e, 1911, p. 316.
164
Durante os primeiros trinta anos do século XX, a elite paulistana viu-se às voltas com
as moradias populares no centro da cidade. Várias foram as solicitações de vereadores, os
projetos de engenheiros e técnicos para a demolição de casarios inteiros, sempre com a desculpa
de abrir caminho para o progresso. Clamavam pelo fim dos “pardieiros” que compunham a
fisionomia da capital. Nos anais da Câmara Municipal de São Paulo, deparei-me
frequentemente com a palavra “pardieiro” indicando a necessidade de modernização,
higienização e civilização da cidade. As choças e casebres do século XIX tinham desaparecido,
ainda que não completamente. No lugar, casarões envelhecidos e encortiçados tomavam conta
de ruas com a de Santa Thereza ou Riachuelo. Nesta última, por sinal, existia um casarão que,
segundo José Piedade, servia “de couto a vagabundos, e, sobretudo, constituindo perigoso foco
de miasmas” . O sr. José parecia não ter piedade dos que moravam no lugar e pedia ao prefeito
que demolisse o pardieiro, dando fim, assim, ao “espetáculo vergonhoso para quem transita[va]
por aquele ponto da cidade [que], aliás, [era] de grande movimento” .22
Muitos desses “pardieiros” estavam em condições insalubre e prestes a desabar23. Ainda
assim, os argumentos nunca se dedicavam a prevenir possíveis desastres: o maior medo era que
lá se ocultavam os “vagabundos” que poderíam gerar “graves danos para os moradores da
vizinhança” .24
Por mais que a questão social fosse vista como um caso de polícia durante a Primeira
República, na questão da habitação o Estado teve de aturar os cortiços que pipocavam por toda
a cidade. N a prática, as tentativas de controle policial e legislativo da população pobre da cidade
não ajudou a melhorar as condições de moradia. Os pobres paulistanos acabaram pagando os
maiores tributos que a modernidade impunha à cidade que se queria civilizada.
Os higienistas foram ganhando poderes de polícia, entrando nos domicílios populares,
controlando as vidas, impondo regras de asseio, higiene e saúde à seus habitantes. O Código
Sanitário de 1894 foi uma tentativa disso, e antes dele o Código de Posturas de 1886. Desde
então, criou-se uma cultura de intervenções pautadas por atos de violência, com a desculpa das
desinfecções. Mas era só nesses casos que as leis liberais eram desrespeitadas. O mesmo direito
inviolável de propriedade, que garantiu a perpetuação de moradias precárias pela cidade e os
lucros dos especuladores imobiliários, parecia irrelevante quando a higiene exigiu a salubridade
22 ATA DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. 4a sessão ordinária. 24 de janeiro de 1914, São Paulo:
s/e, 1914, p. 67; ATA DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. 4a sessão ordinária. 26 de janeiro de 1918,
São Paulo: s/e, 1918, p. 32.
23 ATA D A CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. 6a sessão ordinária. 06 de fevereiro de 1915, São Paulo:
s/e, 1915, p. 38.
24 ATA D A CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. 7a sessão ordinária. 17 de fevereiro de 1917, São Paulo:
s/e, 1917, p. 107.
165
das moradias dos pobres. Podemos lembrar das leis que instituíram os deveres da polícia, em
1907 e 1909, exigindo dos policiais atitudes firmes e enérgicas, quando o bem da tranquilidade
pública reivindicasse.25
A capital do café, com seu crescimento populacional desordenado, seus bairros
industriais repletos de doenças e de esgotos sem tratamento, impedia que as visões urbanísticas
fossem plenamente realizadas.26 A política “semiliberal”27 dos paulistas da Primeira República
foi incapaz de solucionar os problemas urbanos e sociais que também reinavam em outras
cidades brasileiras. Quando jornalistas, legisladores, prefeitos e escritores mobilizavam
preocupações e ações contra as calamidades que assolavam São Paulo, utilizavam-se da
estratégia de um liberalismo circunstancial, sempre a depender dos interesses que defendiam.
Se por um lado eram liberais suficientes para rejeitaram qualquer regulação dos interesses
privados das propriedades dos especuladores, por outro, negavam e impediam o direito de
morar de forma digna aos pobres da cidade.
3.1. Morar também tem cor: classe e raça sob o mesmo teto
25 SÃO PAULO (Estado). Lei n° 1.103, 26 de novembro de 1907.; SÃO PAULO (Estado). Decreto n° 1.714, 18
de março de 1909.
26 CAMPOS, op. cit., p. 19.
27 GOMES, Angela de Castro. “A república não-oligárquica e o Liberalismo dos Empresários”. In: SILVA, Sérgio
S.; SZMRECSÁNYI, Tamás. História econômica da Primeira República. 2a ed., São Paulo: Hucitec/ABPHE /
Edusp/Imesp, 2002, p. 96.
28 BERNARDO, Teresinha. Memória em branco e negro: olhares sobre São Paulo. São Paulo: EDUC/ Ed.
UNESP, 1998, p. 45.
29 SEVCENKO, op. cit.
166
ter o dinheiro todinho, não podia faltar um tostão. Eu trabalhava e todos sabiam, mas não
adiantava” .30 Para comprar uma vitrola, as mulheres negras tinham que trabalhar o ano inteiro
“sem gastar um tostão” e ainda enfrentar a desconfiança de todos. Não é difícil imaginar o quão
complicado foi conseguir uma casa para morar num contexto onde o aluguel era a única
alternativa para a população pobre.
José Correia Leite, o histórico militante da imprensa negra paulistana, nasceu à Rua 24
de Maio, em 1900. Ainda menino, foi morar com a mãe na Saracura Grande, “lá no Bixiga,
onde é hoje a Rua Marques Leão” . Logo cedo percebeu que “era um menino prejudicado” :
“tinha de enfrentar sérios problemas da minha vida. E já era a minha vida” . Morando com
portugueses e negros, ainda no Bexiga, soube de “uma negra muito bonita, muito limpa, que
vivia com um branco” . Era um homem importante, que só chegava em casa à noite e saia de
manhã, sempre com sua camisa engomada e de punhos de renda. Quem limpava sua roupa era
a moça bonita, que também deixava seus sapatos impecáveis. Mas, apesar de todo o mimo que
recebia, o indivíduo devia beber, “tinha cara de alcoólatra”, com seus “olhos empapuçados” .
Um dia o “doutor morreu”, e a “coitada” da mulher que o tratava a “ovos quentes [e] mingaus”
deu parte à polícia. Sem descobrir a procedência familiar do defunto, o corpo voltou da
delegacia para sua casa. “Mais tarde veio um carro de luxo, cocheiro com pena no chapéu”, e o
cortejo fúnebre foi acompanhado por homens “encasacados, de cartola” e com um vistoso
estandarte. Como era um sujeito importante numa sociedade beneficente, foi a associação que
cuidou das exéquias. Sem dizer se a moça que cuidava do morto era ou não sua esposa, esse
depoimento deixa entrever que, naquele tempo, “muitas negras moravam com brancos
importantes, mas de forma escondida” .31 Segundo Correia Leite, isso era uma prática social
comum na cidade. Com a morte de seus companheiros, perdiam os “bens que tinham ajudado
a adquirir porque quase sempre não eram casadas” . Ele continuou:
As reminiscências de Correia Leite nos acautelam sobre a afirmação de que a cidade era
apenas de imigrantes. Nela também viviam muitos negros. Gostaria de ressaltar a ligação que
ele faz entre a concepção de morar, as formas de relacionamento entre mulheres e homens,
negras e brancos, e o trabalho. Em sua fala, está explícita a ideia de que homens brancos bem
sucedidos deviam a sua posição à rotina do trabalho das mulheres negras.
Dona Flora, outra mulher negra entrevistada por Bernardo, com seus 83 anos, disse que
nunca quis ter um companheiro “como se diz, para sempre” . Ela teve vários pretendentes, mas
sempre pensava “para quê?” :
Faço tudo sozinha. Dá trabalho, mas mando em mim. Vou amimar homem?
Ainda tenho que cuidar dele. E não é que com esta idade, tenho esses dois
filhos que não trabalham, se separaram trouxeram os netos e eu continuo
cuidando de tudo? Mas filho e neto são da gente.33
Para mulheres como ela, os laços entre trabalho e vida a dois pareciam estar tão
permeados por relações de exploração que, por isso, as memórias do morar, ainda que com seus
familiares, aparecem como uma elaboração de um passado que ressignifica suas vidas,
comprovando sua independência, apesar de toda a dificuldade que tinham que passar.
Algumas entrevistadas de Teresinha Bernardo trouxeram à tona as lembranças de suas
vidas em cortiços. Segundo dona Maria, “morar em cortiço é ruim que só vendo” . Ela teve os
seus quatro filhos dentro de um quarto. “Ficávamos ali naquele aperto. Agora que tenho um
quarto só para mim, percebo como vivia mal, acho que aquilo não era coisa de gente” . A vida
em cortiços também era uma condição imposta às mulheres pobres negras na São Paulo. Ler os
relatos dessas mulheres é acessar as imagens de um passado que esteve longe daquele ideal de
modernidade sobre o qual falávamos. Maria Aldiva teve pesadelos em que se via voltando para
o cortiço. Na fala de todas elas, a imagem se repete. “Era muita gente num cômodo só”;
“escutava tudo o que diziam, não tinha um momento de paz”; “no cortiço, todos sabiam tudo
de todos, era uma coisa muito ruim, um banheiro para mais de trinta pessoas” . A vida no cortiço
era contraditória em muitos aspectos. Obrigadas a vencer a lida diária sozinhas, com pouca, ou
quase nenhuma participação de seus companheiros, essas mulheres sentiam-se sós no meio de
muita gente. A solidão era um sentimento que se contrapunha à realidade. Mulheres sozinhas,
como dona Francisca, tinham que arranjar onde morar, buscando aluguéis baratos ou senhorios
que as recebessem. No entanto, recordam-se de suas famílias morando sobre o mesmo teto, dos
laços de solidariedade compelidos pela dura lida cotidiana e dos amigos que os cortiços
abrigavam. Contradição complexa, muito bem sintetizada por dona Flora: “ sempre fui sozinha,
e no cortiço sempre tive quem olhasse meus filhos para que eu pudesse trabalhar” .34
Essas experiências de morar se contrapõem às memórias sobre as casas das mulheres
brancas da mesma São Paulo. Também pobres, outras interlocutoras brancas de Teresinha
Bernardo afirmaram sua ascendência italiana ao recordar da “cidade do progresso” . D onaN idia
lembrou-se de um Bom Retiro “muito alegre”, com cinemas e os clubes Luso-Brasileiro e
Terminus. Ao mesmo tempo, o Bexiga foi recordado pelos restaurantes, pela água encanada e
pela igreja de Nossa Senhora Achiropita, pela italiana Maria. Dona Carmen também lembrou
dos cortiços da Rua Caetano Pinto, no Brás, mas deu maior destaque para a presença dos
italianos e dos espanhóis.35
Ainda que as lembranças dessas mulheres brancas revelem a restrição de sua circulação
pela cidade, rememoram processos de vida que lhe garantiram certa estabilidade habitacional.
Ao contrário das mulheres negras, as brancas se recordaram dos trabalhos de seus pais e de seus
maridos, sempre os relacionando ao convívio que tiveram com uma parcela da população
italiana. Eram homens que se formavam doutores, que recordavam do esforço paterno por
garantir que seus filhos se tomassem médicos ou advogados.
A contradição entre a cidade escura, recordada pelas mulheres negras, e a cidade do
progresso, evocada pelas brancas, não está apenas na forma como elas narraram suas vidas. São
muitas as possibilidades de articulação entre o real vivido e os desejos de realização de um
imaginário. De acordo com Alessandro Portelli, os testemunhos orais podem ser encarados para
a recuperação de “eventos materiais do sucedido” mas, também, como um fruto da
subjetividade, imaginação ou desejo do sujeito que narra sua história. O desenrolar da história,
segundo algumas lembranças decorridas, podem julgar como “errados” os caminhos pelos quais
os sujeitos viveram, forçando, assim, a reconstrução de suas vidas pautadas num campo do
hipotético, de tal modo que a história contata como verdade pode ser entendida como histórias
da expectativa. Nesse sentido, as narrativas podem ser a descrição de um sonho sobre a vida
pessoal dos sujeitos que narram.36
Isso não deve nos fazer desacreditar das entrevistadas por Bernardo ou do depoimento
de Correia Leite. Essas histórias são discursos veementes, cujos alicerces estão em um sentido
coletivo que é imposto pela experiência social dos sujeitos. Ora, se as narrativas dependem de
fatores pessoais - como a vergonha de ter morado em cortiços e, portanto, apagar esse momento
de vida da narrativa elas também necessitam de certa legitimidade no grupo social em que os
sujeitos vivem. Uma história de vida, por mais fantasiosa que possa ser, deve ser sempre
analisada em seu “relacionamento estrutural”37 com a realidade. Desse modo, ainda que o
narrador disserte sobre a possibilidade ou desejo de algo ter ocorrido de determinada forma, ele
sempre articula sua história com um campo imaginário calcado em suas possibilidades reais de
vida.
E muito provável que os discursos das interlocutoras brancas de Bernardo estivessem
pautados num imaginário ideal de bom morador que foi se formando durante os anos de 1890
e 1930. Já vimos como os discursos dos vereadores da Câmara Municipal de São Paulo revelam
um viés elitista em relação à condição da moradia popular na cidade. Essas mesmas falas
também revelam uma visão que se queria difundir sobre o tipo de gente que melhor habitaria
essas residências.
Em 16 de novembro de 1907, tratando da necessidade de construção de vilas operárias
em São Paulo, o vereador Carlos Garcia, disse que havia “certos cortiços que não seriam
admitidos em parte alguma do mundo”, mas que sua existência se devia ao fato de seus
habitantes não terem para onde ir. “Os nossos prédios são todos caros. Para dar-se aqui o que
se deu no Rio, isto é, uma derrubada geral, sem cogitar de casas para a população pobre, não
pode ser” .38
O termo população pobre devia vincular-se a alguns estereótipos para aqueles
parlamentares, mas quais seriam eles? O racismo desses homens brancos não era discreto; ainda
assim, é difícil encontrar uma afirmação explícita sobre qual seria o pobre ideal para a cidade.
Para tanto, é preciso recorrer a outras fontes sobre o imaginário dos parlamentares e de uma
parcela considerável da sociedade paulistana.
O Correio Paulistano deu três das sete colunas da primeira página de sua edição de 3
de agosto de 1908 à tradução de uma conferência do professor, jornalista e político francês Paul
Doumer, proferida em Antuérpia. A matéria cercou de elogios os filhos da “raça branca
transportados para o Novo Mundo” . Esse lugar, segundo o texto, era constituído por “novas
nações formadas por homens que eram descendentes de franceses, de belgas, de alemães, de
italianos” e de espanhóis. Pretensamente informativas, as colunas do jornal veiculam as idéias
de que foram os brancos que, de forma “ardente e aventureira”, trouxeram a civilização para
São Paulo. Não era possível falar em civilização no Novo Mundo sem se remeter à “raça
branca” que lhe havia “infundido uma força particular” . E claro que a fala do conferencista
francês tinha outros objetivos. Em Antuérpia, Doumer queria justificar a expansão do domínio
comercial e cultural francês por todo mundo.
Não é difícil supor que o pobre ideal do dr. Carlos Garcia e seus colegas era branco e
deveria ser protegido das péssimas condições de moradia que a cidade apresentava41. Como
resposta às contradições do desenvolvimento especulativo de São Paulo, Garcia propunha a
criação de casas operárias salubres e moralizadas como forma de proteger a população que se
queria forjar. A pobreza não podia impedir que a branquitude cumprisse seu desígnio
civilizador. Vigiar e controlar aqueles sujeitos assumia uma forma discursiva que defendia a
formação de uma sociedade branca.
O desenrolar da urbanização paulistana elaborou códigos jurídicos e urbanísticos em
busca de uma legalidade que excluiu a maioria da população. Isso teve um impacto na
experiência de classe dos sujeitos que vivenciaram a cidade entre os anos de 1890 e 1930, mas
isso não afetou a todos da mesma forma. Mike Savage, ao analisar a relação entre a categoria
de classe social e a história do trabalho, propõe a reflexão sobre o “espaço” e o “lugar” para
uma compreensão do “contexto” em que se desenvolvem as relações de classes. Nesse sentido,
sugere uma “teoria das classes” que escape da especificação estrutural dessas relações. Para ele,
o “traço distintivo” entre os sujeitos da mesma ou de diferentes classes está na vida em que
levam. Pensando sobre a vida operária, o sociólogo afirma que a peculiaridade dos sujeitos não
está ancorada unicamente no processo de produção ou na formação de um mercado de trabalho,
mas, sim, na “insegurança estrutural vivida por todos os trabalhadores” . E a “aguda incerteza
da vida diária”, com que lidam as classes pobres, que força a construção de estratégias de
sobrevivências cotidianas. O autor fornece alternativas de interpretação dos diferentes planos
de vida dos sujeitos, possibilitando o reconhecimento de pressões estruturais sobre a vida
operária ao mesmo tempo em que examina a “enorme variedade de táticas que os trabalhadores
podem escolher para cuidar de seus problemas” .42
Longe de implicar diretamente na formação de uma determinada consciência de classe,
numa forma operária de fazer política, ou a desconsideração das rivalidades internas à classe,
essa noção de insegurança estrutural da vida dos sujeitos “reforça a necessidade de olhar para
os fatores contextuais que explicam como a própria carência geral dos trabalhadores em lidar
com tal insegurança conduz a diferentes tipos de resultados culturais e políticos” .43 Isso não
chega a ser uma novidade. Edward Palmer Thompson já afirmava que o padrão de vida dos
trabalhadores não podia ser entendido como primordial para interpretar a formação da classe.
No campo das estatísticas de preços alimentares, por exemplo, a busca pelo padrão de vida
pouco respondería sobre a qualidade. Para ele, a utilização de fontes quantitativas é importante
na medida em que não levem a conclusões que só elas podem fornecer. Médias estatísticas e
experiência humana podem nos conduzir a direções opostas; no entanto, a diferença não precisa
ser um critério de invalidação de uma ou outra. Por exemplo, “um incremento per capita em
42 SAVAGE, Mike. “Classe e história do trabalho”. In: BATALHA, Cláudio H. M.; SILVA, Fernando Teixeira
da; FORTES, Alexandre. Culturas de classe: identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas: Ed.
da UNICAMP, 2004, p. 33.
43 Idem, Ibidem, p. 33-34.
172
44 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa: a maldição de Adão, v. 2. 2a ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2012, p. 43.
45Como formulação teórica, a ideia de classe como fenômeno histórico está presento em quase todo o Prefácio de
E. P. Thompson ao primeiro volume d ’A Formação da Classe Operária Inglesa. Ao longo de todos os volumes,
o autorvai demonstrando o caminho investigativo que o levou a elaborar tal concepção. Assim, de forma resumida,
também podemos ter acesso à metodologia histórica thompsoniana em seu célebre artigo Patrícios e plebeus.
Queira o leitor conferir: THOMPSON, E. P. “Prefácio”. In:________ . A formação da classe operária inglesa: a
árvore da liberdade. Vol. 1, Ia ed. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, pp. 9-14; THOMPSON, E. P. “Patrícios e
plebeus”. In: Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 25-85.
46 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa, Vol. 3: a força dos trabalhadores. 2a ed. São Paulo:
Paz e Terra, 2012, p. 414.
173
cotidianos. No entanto, essas histórias são construídas em contextos complexos, onde pessoas
com muito dinheiro convivem com as de menos. E estas, por sua vez, convivem com as de
nenhum. E toda essa coexistência de experiências diversas que articulam um jogo de aparências,
onde um se usa e aprende com outro sobre as melhores estratégias de se viver em um
determinado tempo histórico. São essas circunstancias que, somadas às suas situações
econômicas, moldam as histórias das pessoas. Desse modo, num período de enorme escassez
de trabalho e de moradia, o crescimento urbano paulistano colocou os pobres em situações de
concorrência. Esses pobres estavam muito distantes dos vereadores, dos ricos e dos que
administraram a cidade. Mas isso não quer dizer que as contradições sociais e políticas entre a
plebe e os donos do poder não se manifestaram. Apesar dessa separação, os conflitos
ideológicos aconteceram nas relações mais próximas que os sujeitos experienciaram. Ao ler a
documentação policial, percebe-se que, informados também pela hegemonia daquela elite,
homens e mulheres pobres entraram em desacordos e conflagrações que revelaram noções
distintas sobre seus direitos. Quando esses cenários envolveram pessoas negras e brancas, pude
notar como solidariedades e identidades raciais assumiram funções norteadoras no processo de
manutenção de suas vidas. Em outras palavras, ali se desenrolava a luta de classes, ainda que o
populacho não estivesse em contato permanente ou direto com poderosos.47
Os jornais da capital paulista pintaram de forma bem diferente as relações entre os
senhorios dos cortiços e seus inquilinos. As personagens que viveram nas cidades precisavam
de um teto. Vimos como o desenvolvimento do capitalismo urbano elegeu planos de segregação
habitacional como a melhor solução para modernizar a cidade. Eles seriam “uma projeção
espacial do processo de estruturação de classes característico de uma sociedade em fase de
transição para uma economia de moldes capitalistas” . Mas esse era um ideal de realização
difícil. A cidade que se aburguesava, reformando-se para servir como centro comercial e
administrativo do estado, movimentando setores como da construção civil e dos transportes,
também impulsionou grupos que viviam da especulação imobiliária e da exploração de casas
de cômodos e cortiços. Se de um lado havia a grande burguesia com projetos apoiados pela
municipalidade, de outro havia aqueles pequenos burgueses que, vivendo do “pequeno
comércio varejista dos armazéns, armarinhos, vendas etc.”48, valeram-se da precariedade da
oferta de casas populares para lucrar e, assim, espalharam habitações coletivas pela cidade.
O caso de Manoel Benedicto também é exemplar. Manoel foi descrito como “um pobre
diabo, sem casa e sem emprego”, que “vive, como se diz, ao Deus dará”, um “vadio por
excelência” sem a coragem necessária para ocupar-se com nada honesto que lhe garantisse
“uma boa cama para o descanso” . O jornalista ironizou a personagem, “o nosso herói”, que
tinha “por moradia a várzea do Carmo, e por hoteleiro, nada mais nada menos que o negociante
descuidado que, inocentemente, deixa à porta suas frutas. Deu-se o nosso homem ao incômodo
de apaixonar-se seriamente de um finíssimo sobretudo, exposto à porta de um dos
estabelecimentos da ladeira João Alfredo” . Como a noite estava fria, Manuel resolveu roubar o
sobretudo. Mas a noite de Manoel não seria aquecida pelo sobretudo: chegando à várzea do
Carmo, Benedicto teria encontrado seu colega Chico Ferro, que “logo se simpatizou” com a
roupa e quis tomá-la à força. A recusa em ceder o sobretudo seguiu-se de uma “briga do diabo”,
só finalizada com a chegada da polícia e a prisão dos brigões. A infelicidade de Manoel teve
como resultados o xadrez e o sobretudo transformado em farrapo.53
Nesse caso, temos um negro que, impossibilitado de viver em cortiços ou outras casas
de aluguel, roubou um sobretudo para se aquecer nas frias noites paulistanas. Na descrição
estereotipada, ele tornou-se diabo, malandro, vagabundo e ladrão. A luta por um agasalho
durante uma noite fria foi descrita com galhofa e os dois indivíduos são associados à figura de
pândegos trapalhões. No entanto, a mesma ausência de qualidades morais não é atribuída ao
italiano Chico Ferro, que reside nas mesmas condições que Manuel. Ambos não se encaixavam
nos preceitos morais e materiais do bom morador, mas as projeções sobre ambos divergem.
A propagação de imagens de ladrões, vagabundos, desordeiros e maus pagadores deram
os contornos à experiência de classe dos sujeitos negros e pobres de São Paulo na Primeira
República. Elas justificavam casos em que o senhorio se recusava a entregar os pertences dos
ex-moradores negros de seus cortiços. E certo que esse tipo de atitude também atingiu a
população branca pobre da cidade; no entanto, a frequência de queixas sobre esse
comportamento na imprensa sempre vinha acompanhada por nomes de mulheres e homens
brasileiros.54 Mesmo que isso tenha acontecido com os europeus e seus descendentes, a
repetição de nomes brasileiros nas colunas de jornais indicam que esse tipo de insegurança
habitacional parece constituir a experiência de pobreza de negros paulistanos.
A precariedade que também atingiu o preto Jacinto Ricardo de Oliveira que, “depois de
ter morado dois meses em casa de Agostinho Tavares, à Rua da Mooca, n° 28”, dali se retirou
devendo 18$000 de aluguel. Agostinho, procurando o irmão de Jacinto, o cocheiro “Pedro de
Tal”, exigiu que este fizesse com que o irmão honrasse o pagamento. Isso deixou Jacinto
enfurecido e, junto com seu amigo Eugênio dos Santos, “preto também, residente na rua dos
Carmelitas”, foi reclamar ao seu antigo senhorio. O jornal não descreve os argumentos de
Jacinto, apenas o chama de alcoólatra e diz que este ameaçou a mulher de Agostinho, grávida.
Agostinho chamou como reforço seu amigo Justino Jesus Teixeira, dono de uma venda nas
proximidades. As linhas do jornal dão a entender que, a princípio, a intervenção de Justino foi
moderada e sensata, convidando “os pretos a deixarem em paz o Agostinho” :
[Mas] Eugênio não estava pelos autos: agrediu Justino com um cacete e feriu-
o na região frontal com uma formidável pancada.
O agredido, revoltando-se, sacou de um revolver disparando dois tiros, o que
pôs os pretos em fuga.
Justino ignorando ter ofendido alguém, foi até a Central, em companhia de
Agostinho e Leopoldina [esposa de Agostinho], e apresentou ao dr. Pinheiro
e Prado, 5o delegado, queixa contra os dois pretos, declarando ignorar o nome
do seu agressor.55
Enquanto o inquérito policial era aberto, Jacinto já havia sido encontrado, por ser um
“conhecido como desordeiro” de uma praça policial, andando pela Rua Visconde de Pamaíba.
Interrogando o preso, “que a cada passa caia em contradições, o delegado “compreendeu que
havia acontecido alguma coisa de grave” e o prendeu. Pouco tempo depois, um policial
encontrou Eugênio caído ao chão e gravemente ferido. Medicado no posto policial, Eugênio foi
transferido para a Santa Casa. Fora atingido pelos dois tiros disparados por Justino Teixeira,
um no peito e o outro nas costas. A história da briga entre Jacinto e Agostinha tem ai sua
reviravolta e Justino, amigo de Agostinho, acabou preso. Intitulada como um caso esquisito, a
guinada da história surpreendeu o jornalista. Um negro se recusa a cumprir com suas obrigações
com seu antigo senhorio, chama um amigo negro para defender sua recusa e encontra resistência
no laço de amizade de dois brancos que defendem o direito à propriedade. Os disparos efetuados
por Justino são descritos num primeiro momento como justos tiros de advertência, explicados
pela violência dos pretos. O fato não invertería a ordem discursiva, não fossem os tiros. Os
ferimentos em Eugênio demonstraram que os disparos foram algo mais do que simples
advertência: eles foram dados na direção dos negros que fugiam. Utilizando-se de uma
estratégia narrativa que apontava para a ordem natural das coisas - o preto que não paga o
aluguel, os pretos que se juntam para agredir o bom cidadão branco e sua mulher e a
superioridade da união fiel dos brancos em relação à audácia dos negros - o desfecho do texto
teve um revés que a realidade discursiva não estava disposta a aceitar: os tiros foram disparados
a queima-roupa. Aquele só podia ser um “caso esquisito” .
Muitas foram as noticias defendendo o inquilinato quando este era composto por
pessoas pobres e imigrantes; mas, quando as histórias envolviam pessoas negras, os jornais
selecionavam sempre casos em que o senhorio era injustamente afetado. Os inquilinos brancos
são apresentados como assolados pela miséria e explorados pelos donos dos cortiços, enquanto
os negros figuram como pobres sem disposição para o trabalho, maus pagadores e desordeiros.
Esses casos fornecem evidências de que, entre 1890 e 1930, o conceito de cidadão foi forjado
a partir de um consenso organizado pelas relações entre os pobres e os mais ou menos
endinheirados. Um bom cidadão seria aquele que, quando rico, cuidaria da ordem urbana;
quando pertencente às classes médias, não se valería da exploração imobiliária para o lucro
fácil; quando pobre, nutriría o desejo pelo progresso, pelo trabalho e pela ordem. Em qualquer
caso, a identidade individual não devia levar em conta suas experiências econômicas ou sociais:
a manutenção da ordem social liberal melhoraria os níveis de vida dos indivíduos. O fracasso
do cidadão em melhorar a vida seria explicado pela incapacidade de se adequar a essa ordem.
Acontece que as características atribuídas ao bom cidadão eram as mesmas que se
atribuía aos brancos, fossem eles pobres ou ricos. Tratava-se de uma noção de cidadania que,
tradicionalmente, justificava a exclusão dos negros, principalmente os negros pobres.
Isso se deu em vários aspectos da vida de mulheres e homens de cores pretas ou pardas.
Os que pensaram uma cidade do progresso - que também foi lembrada pelas mulheres brancas
de Teresinha Bernardo - negaram-se a oferecer oportunidades às mulheres negras. E assim que
dona Sebastiana se lembrou que, por volta de 1915, frequentava uma igreja em Pinheiros onde
se davam presentes de Natal às crianças que mais frequentassem as aulas de catecismo:
Eu nunca faltei, tinha todas as presenças, pois queria ganhar uma boneca no
Natal. No dia de Natal, depois da missa, fomos receber nossos presentes. As
meninas brancas ganharam bonecas lindas, grandes, em caixas enfeitadas.
Quando apresentei as minhas senhas [que comprovavam a presença], deram
um embrulho. Quando abri, era uma boneca sem braços. Fui chorando para
minha casa e perguntei por minha mãe: “Por que fazem essas coisas com a
gente?”. Ela me respondeu: “o nosso Deus não está aqui. Nós não temos nem
Deus nem Rei.56
A fala da mãe de Sebastiana deixa entrever que, nos anos posteriores à Abolição,
nenhuma instância social enxergava os negros como cidadãos. Não é exagerado supor que as
outras meninas brancas também fossem pobres; mas Sebastiana, pobre também, trazia outros
traços distintivos que não podem ser negligenciados. Ser pobre e negra era substancialmente
diferente de ser uma pobre e branca. Nesse sentido, a categoria raça não pode ser ignorada
quando analisamos as classes, suas relações e culturas. O fato de negros serem entendidos como
intelectual e moralmente inferiores é uma construção que justificou a exclusão deles de esferas
de cidadania. Dizer isso não é o mesmo que afirmar que as experiências de classe são
imaginadas, mas sim que elas são complexas e não devem ser limitadas aos aspectos
econômicos. Como pesquisador branco, pude perceber que nas relações entre pobres, brancos
e negros guardaram semelhanças quanto aos aspectos da precariedade material de suas vidas;
no entanto, essa mesma precariedade invocou conflitos que demandaram resoluções pautadas
em constructos sócio-raciais que negros e brancos articularam para garantir, defender ou
melhorar suas condições de vida.
Depois de passarmos uma boa parte deste trabalho discutindo a formação de uma
concepção sobre o negro em terras paulistas e sobre a construção de um ideal branco de
paulistanidade, falta dizer que essas idéias articulam-se em tomo da branquitude. E injusto e
racista pensarmos em identidades raciais pautados exclusivamente na população negra da
cidade de São Paulo. No limite, isso é o mesmo que aceitar que a responsabilidade do debate
racial cabe ao negro e às analises sobre a suas vidas. Ora, brancos não tem raça? Suas
identidades raciais não afetam suas relações com pessoas de outras raças? O racismo é a
manifestação de um ideal de branquitude que cerceia as oportunidades de homens e mulheres
negras. Fields nos lembrou que a identidade racial de um grupo ou de um sujeito depende da
relação que esses têm com outros sujeitos e grupos. Raça é um produto ideológico das
sociedades, a mercê de construções e reelaborações que os indivíduos fazem a respeito da
imagem do outro.57 Raça, portanto, é uma construção social sempre presente nas ações e
pensamentos das pessoas que vivem o mundo real. Desta forma, o imaginário do preto ou pardo
inferior moral e intelectualmente depende do desejo de defesa dos privilégios que os
considerados brancos almejam para suas vidas.
Os conflitos cotidianos entre brancos e negros pobres tiveram como divisor de águas as
certezas dos direitos que a brancura das pessoas lhes garantia. Considerar-se branco, nesses
contextos de embates, foi o mesmo que se enxergar como bom cidadão e merecedor de
benefícios, ainda que a eles fossem negados quando a polícia lhes taxava de desordeiros ou
vagabundos. Por outro lado, negras e negros pobres contestavam esses discursos de brancura,
alegando serem trabalhadores ordeiros, que mereciam os mesmos direitos de cidadania que os
brancos. Qual era a diferença entre eles e seus antagonistas, se ambos viviam nos mesmos
domicílios? A diferença residia na cor que, em alguns casos, justificou a diferenciação de
tratamento entre brancos e negros perante a polícia e a justiça.38
No dia 15 de julho de 1892, a parda Benecdita de tal, nascida em Jacareí e residente à
Rua 25 de Março, distrito de Santa Efigênia, queixou-se à policia de que havia sido agredida
por Antônio Ferri e Marcei Rossi.5859 Segundo ela, seus agressores, motivados pelo álcool,
“deram pancadas nela” porque “fazia hora no tanque” do cortiço onde moravam. Os
depoimentos das testemunhas, todas brancas, asseguravam que os italianos Antônio e Marcei
eram trabalhadores e que não se tinha noticia de serem “desordeiros ou ébrios”, que sempre
tiveram “domicílio certo” e que Benedicta, “conhecida pela alcunha de Maria Fumaça”, era
nova no cortiço e costumava demorar no tanque lavando “umas roupas” antes que os homens
saíssem para o trabalho. Augusto Ferri, primo de Antônio, foi chamado para testemunhar sobre
o proceder de seu parente, dizendo que este cumpria seus deveres de pai de família e que, só de
vez em quando, “valia-se da cana” para se divertir, ao contrário de Benedicta, que vivia ébria e
era conhecida pelos gritos e desaforos que distribuía pelas ruas. Quanto a Marcei, Augusto não
o conhecia, “não sabendo onde vive, se só ou acompanhado”, mas garantira que seu primo não
andava com pessoas de “índole maligna” .
A voz de Benedicta permaneceu apagada durante quase todo o processo. Ao que parece,
o delegado, mesmo instaurando o inquérito acusatório aos réus, não deu atenção aos motivos
da acusadora. Sua história só voltou a ser escutada depois de quase oito meses e, ainda assim,
num relato curto. Em frente ao juiz, a mulher negou ser “vagabunda e desordeira” e que, quando
ainda morava na 25 de Março, “tinha por costume lavar suas trouxas de roupa no tanque” do
cortiço. Lavadeira como era, alegava que tinha que fazer o serviço cedo para que as roupas
pudessem secar ainda durante a manhã e, no dia da briga, estava trabalhando quando Antônio
lhe disse que ali “não era lugar para ela estar”, pois ele queria lavar o rosto sem o incômodo
que as roupas lhe causavam. Ela respondeu que também podia usufruir do tanque na hora que
quisesse, “que estava em dia com suas obrigações e que não devia nada a ninguém”. Então,
58 Entre concordâncias e discordâncias conceituais, minha análise foi pautada no balanço das pesquisas sobre
identidade e cidadania nos Estados Unidos, realizado por WEINSTEIN, Barbara. “A pesquisa sobre identidade e
cidadania nos EUA: da Nova História Social à Nova História Cultural”. Revista Brasileira de História , São Paulo,
vol. 18, n° 35, p. 227-246, 1998. Disponível em http://www.scielo br/scielo php?script=sci arttext&pid=SO 102-
0188199800010001 l&lng=en&imn=iso&tlng=pt. Acesso em: 19 Junho de 2018.
59 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Antônio Ferri e Marcei Rossi. Sem Código, 1893,
ATJSP.
180
Marcei, que passava pelo portão do cortiço, vendo a alteração de tom nas palavras da mulher,
interviu “ofendendo a depoente com palavras que a decência envergonhava” .
As condições de preservação do documento não são das melhores e, por o processo estar
bastante danificado, não pude saber qual foi o fim da questão. A cor dos envolvidos no caso só
foi indicada no processo pelas nacionalidades: havia italianos, portugueses e Benedicta, a única
brasileira, que teve sua cor revelada no exame de corpo de delito. A solidariedade entre as
testemunhas e os agressores chama a atenção. Talvez Benedicta bebesse com frequência. Isso
pouco importa: afinal, isso não a impedia de exercer uma profissão e ela estava em dia com
suas obrigações, evidenciando a importância que o pagamento do aluguel assumia para ela.
Apesar das provas de ser mulher trabalhadora, no processo não consta menção alguma de
testemunhas que atestassem sua história. Ao contrário, os agressores são defendidos com
veemência nos depoimentos. Marcei não parecia morar no cortiço, embora tenha dado o
endereço de lá. Benedicta não parecia ser a única que tinha o costume de beber - se é que tinha.
Antônio também se valia da cana. Talvez os agressores tenham sido presos e a vigilância
policial tenha percebido desvios morais no proceder deles: isso nunca saberemos graças às
condições do processo. Entretanto, salta aos olhos o fato de as testemunhas de defesa e os
acusados lembrarem ao delegado que os acusados de agressão reuniam todos os quesitos de
cidadania, ao contrário da parda Benedicta. De vítima, ela passou a acusada de desordeira, ébria
e vagabunda sem, portanto, direito de gozar da justiça.
Brazilina Rodrigues, moradora de um prédio à Rua Xavantes, no Brás, denunciou
Antônio de Oliveira e Valentin Dias, ambos portugueses e moradores no dito prédio, por terem-
na impedido de entrar em uma cozinha que era comum aos moradores da edificação. Os dois
homens teriam dito que ela não tinha direito de usar aquela parte da casa pois esta lhes pertencia.
Ambos lançaram contra Brazilina “palavras desonestas, chamando de preta, sua negrinha e
ameaçando de apanhar, fazendo gestos com as pontas dos pés e proferindo outras palavras” .60
A diferença entre Brazilina e Benedicta é que a primeira vivia com sua família no cortiço do
Brás e tinha laços de solidariedade que lhe garantiram apoio para a acusação dos dois
agressores. A semelhança era que ambas foram impedidas de utilizarem partes comuns das
casas em que viviam. Para Oliveira e Dias, bastava frisar as características físicas daquela
mulher para assegurarem a exclusividade do direito de usufruto da cozinha. Ela era “preta”,
“negrinha” e não estava no lugar que eles julgavam certo. Mas Brazilina conseguiu articular
uma rede de testemunhas que comprovou a agressão sofrida por ela. Nessa rede, todos disseram
60 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Antônio de Oliveira e Valentin Dias. 014J1381-0007-
1, 1893, ATJSP.
181
não conhecer Brazilina pois ela só ficava dentro de casa, mas a briga foi tão grande que, por
morarem nas casas ao lado, saíram para ver o que se passava. Carmem Penaso e Pedro Martim,
um casal de espanhóis vizinho, alegaram terem visto “o senhor Valentim chamar a queixosa de
safada e canhão; e quando esta ia subindo a escada, o senhor Antônio dar um pontapé na
mesma” . Francisco Navarro, outro espanhol, residente à Rua Caetano Pinto, pedreiro, disse que
também viu “o senhor Valentim avançar para a queixosa, chamando-a de filha da puta e canhão
e dar-lhe um empurrão com as mãos fechadas sobre o peito, e depois o senhor Antônio descer
a escada e dar um ponta-pé na mesma queixosa” . Talvez a defesa de Brazilina pelas estivesse
pautada pela rixa que os espanhóis nutriam com os dois portugueses. Isso fica evidente quando
o próprio advogado de defesa tentou contestar os testemunhos por serem eles inimigos da
família dos réus. A cor da vítima foi posta em dúvida pelo bacharel, dizendo que autora e
testemunha eram “espanholas, e [que] entretendo relações de amizade”, não podiam dar
testemunhos válidos. No entanto, outra testemunha, Anna Gonzaga, também espanhola,
declarou que “não conhecia a autora e não sabia qual a sua nacionalidade” .
E curioso o fato de Brazilina dizer que foi chamada de preta, ter esse nome e ser
espanhola. Todos os quatro depoentes ignoraram ofensa racial, ou porque não aconteceu ou
porque não deram importância. Se segunda hipótese for a verdadeira, fica evidente que os
xingamento de “safada”, “filha da puta” e “canhão” lhes pareciam mais ofensivos, por atingirem
a moral da vítima. Essa a hipótese mais provável. A única brasileira a depor, Emília Francelina,
“de idade que ignora, parecendo ter mais ou menos vinte e cinco anos, casada, natural de
Pindamonhangaba, residente (...) à rua Chavantes”, disse ela que “viu o senhor Valentin sacudir
a querelante e chama-la de preta, canhão e safada e que havia de lhe quebrar a cara, e depois
viu o sogro de senhor Valentin dar um pontapé que se a queixosa não segurasse no corrimão da
escada cairía” . Sobre a cor de Emília, nada podemos dizer, mas na frente do juiz ela sustentou
o depoimento de Brazilina ao delegado do Brás. E provável que a mescla dos xingamentos de
“preta”, “negrinha” e “safada” calassem mais fundo no peito das duas brasileiras do que no dos
espanhóis e que os portugueses agressores soubessem disso.
Essa rede de social parece ter existido da mesma maneira para todos os negros de São
Paulo. Em 17 de março de 1893, Marcolino José Gonçalves assinou seu auto de prisão por ter
falsificado um cheque no valor de dez contos de réis, que pertencia à “firma comercial da casa
de Bandeira de Mattos Companhia” .61 “Marcolino José Gonçalves, 21 anos de idade, filho de
Ricardo José Gonçalves e de Benvinda Lucinda da Conceição, solteiro, natural do Rio de
61 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Marcolino José Gonçalves. TJ1-1001272906-4,
1893, ATJSP.
182
Janeiro, caixeiro”, sabendo ler e escrever, declarou que a acusação de falsificação era falsa. Que
“pernoitando no armazém dos negociantes desta praça, Bandeira de Mattos Companhia, à Rua
Vinte e Cinco de Março número cento e onze”, acordou no dia seguinte e se retirou, “e pelas
nove horas da noite foi ele declarante preso por Arthur de tal, com quem ele declarante
pernoitou visto ser Arthur empregado da casa, e por este lhe foi dito que o prendia por ter ele
depoente arrombado a gaveta de seu patrão, tirando um cheque”, preenchido na importância
mencionada. Tinha ido passar a noite em companhia de Arthur pois fora convidado para “jogar
a bisca”62, e como já fosse tarde, ali pernoitou. Aconteceu que a carteira do cheque fora
encontrada no Hotel do Oeste, junto com um cartão endereçado a Marcolino. Ele disse que
nunca havia dormido em nenhum dos quartos daquele hotel, “mas que tinha dormido e
frequenta[va] unicamente o Hotel do Bom Gosto, sito no Largo São Bento e que portanto não
pode[ria] dar explicação alguma quanto aos objetos encontrados no Hotel Oeste” .
A caso de Marcolino é exemplar das possibilidades que os pobres de São Paulo
encontraram para morar próximo ao centro da cidade. Sem o dinheiro para pagamento mensal
ou semanal de aluguel, ele vislumbrou a possibilidade de dormir em hotéis com estadias baratas
ou pernoitar em lugares a convite de amigos. Desde antes das reformas urbanas no centro da
cidade, essa parcela da população já encontrava alternativas para a carestia habitacional que
tomava conta de São Paulo.
Foi Joaquim Bandeira que encontrou a gaveta de sua escrivaninha arrombada, mas o
endinheirado só deu falta da carteira de cheques quando um funcionário do banco o chamou
dizendo que o dito cheque fora apresentado por Francisco Calixto Meza, “dono-chave” do Hotel
Oeste. Ele não fora descontado e permanecia em poder de Meza. Contando ao seu funcionário,
Arthur, foi quando soube que Marcolino havia dormido em sua empresa, “que lhe pedira por
favor para ai deixar ficar, por que não tinha onde dormir” . Foi Arthur quem desconfiou de
Marcolino. Temendo ser ele o acusado pelo roubo, tratou de procurar o companheiro e o
prender.
A estratégia habitacional de Marcolino vai ficando mais evidente quando Meza,
espanhol de 46 anos de idade, morador e dono do Hotel Oeste, disse que “um criado [indo]
arranjar a cama”, “encontrou diversos papéis, um cheque de dez contos de reis” e o cartão
endereçado a Marcolino. Esperando o dono que não regressou, foi ele ao banco, cujo gerente
disse que “a firma era falsa” . O fato de Francisco ir descontar um cheque que não lhe pertencia
62 A bisca é um jogo de cartas baseado no baralho italiano. É jogada com o baralho lusófono de 52 cartas,
removendo-se as cartas 8, 9 e 10 do baralho, como forma de obter as 40 cartas necessárias para jogar. Existem
variações regionais de pontuação.
183
não foi um caso para a polícia. A cor de Marcolino só foi evidenciada quando Francisco
Milagres, português, porteiro do hotel, recordou-se de que na noite anterior ao roubo, lá
dormiram três homens e um deles “era um mulatinho e que trajava roupa azul marinho” . Esse
homem era Marcolino.
A vida de Marcolino não fora fácil. O processo indica que o preço que ele teve de pagar
para continuar vivendo no centro de São Paulo foi alto. Em fevereiro daquele ano, Augusto
Perelli, dono de outro hotel no mesmo Largo de São Bento, disse que o “mulatinho de nome
Marcolino José Gonçalves” foi seu hóspede mas que, por falta de pagamento, teve de mandá-
lo embora. Pouco tempo depois, Marcolino foi buscar estadia no Oeste, no qual passou várias
noites.
Na verdade, Marcolino havia chegado do Rio de Janeiro sem dinheiro, nem emprego.
Pode apenas contar com o auxílio de conhecidos, como Arthur e Manuel Ribeiro, negro que
morava no Largo do Rosário. Pirelli afirmou que bastava ir à casa de Manuel para encontrar
Marcolino. Sem dinheiro para pagar pensão ou aluguel, nosso personagem passou um bom
tempo mudando-se de hotel-pensão para hotel-pensão. Vez ou outra podia contar com a ajuda
de amigos que lhe ofereciam teto. O roubo do cheque não parece ter tido outro objetivo que não
o de pagar ao Hotel Oeste. Lá, ele deixou a carteira com todos os cheques e com apenas um
preenchido, e com um valor que pode ser o de sua estadia.63 A experiência de migração de
Marcolino do Rio para São Paulo não foi das melhores. Ele custou a arranjar um emprego que
permitisse bancar uma moradia e, quando se tomou caixeiro, meses depois, o juiz proferiu a
pena de prisão para ele.
A falta de dinheiro foi frequente para muitos dos que ocuparam as habitações populares
paulistanas. A solidariedade entre amigos, vizinhos ou familiares era mecanismo essencial para
o auxilio de prevenção das oportunidades residenciais. O caso de Geraldo José de Paula é
exemplo disso. Morador no Tatuapé, certo dia “chegou em casa de uma lavadeira Joana de tal
à Rua Passos”, no Belém, e lá encontrou José Ventura Cachoeira. Pouco tempo depois, os dois
travaram forte discussão na presença de Anna Maria do Rosário, Joana Maria da Conceição,
Amélia de Carvalho e Joaquina Paiva.64 Pelo depoimento de Joana, “filha de Ponfirio Germano
da Conceição, brasileira, natural de São Paulo, com vinte anos, solteira, serviços domésticos”
e moradora do Belém, Geraldo apareceu no quarto do cortiço em que as mulheres conversavam
63 Lucília Siqueira estudou os hotéis baratos e de alta rotatividade da área central da cidade. Cf. SIQUEIRA,
Lucília. “Os hotéis nas proximidades das estações ferroviárias da cidade de São Paulo (1900-1917)”. Revista de
História (USP), v. 168, p. 414-442, 2013.
64 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): José Ventura de Paula. 010D0961-0066-2, 1909,
ATJSP.
184
para “entregar sei mil réis que a dita depoente lhe tinha pedido emprestado”, provavelmente
para completar o aluguel.
Segundo Anna Maria, lavadeira e residente na mesma casa, Cachoeira era “amasiado
com uma filha da depoente” e deu umas “cacetadas no preto Geraldo, que Cachoeira teve este
procedimento porque Geraldo provocou e insultou a depoente pretendendo mesmo ter relações
sexuais” com sua filha. Era Anna quem havia pedido o dinheiro emprestado. Sua proximidade
com Geraldo se devia ao fato de que ela, lavadeira, trabalhava de limpar e engomar algumas
das roupas do homem. O pedido de ajuda de Anna bastou para que Geraldo entendesse que o
favor prestado deveria ser pago sem demora. A recusa de Joana soou como um insulto
desmedido. Anna tentou persuadir o algoz de sua filha, dizendo que deixasse daquilo, que um
filho seu, “que estava trabalhando”, iria pagar-lhe. O argumento não foi suficiente e Geraldo
pediu o dinheiro de volta dizendo que se houvesse algum “filho da puta” em um dos cômodos
da casa, “que saísse” para enfrentá-lo. Não fosse a intervenção de José Ventura, as mulheres da
casa seriam agredidas.
A briga foi grande. Outra moradora da casa disse que viu Geraldo provocar as pessoas
ali presentes quando Ventura, que já se estava deitado, “levantou-se e pediu para que Geraldo
se fosse embora pois não valia a pena estar discutindo” . Segundo ela, Geraldo irritou-se mais,
forçando Ventura a “repelir as ofensas ferindo-o com um pau” . O caso demonstra como as
relações de gênero perpassaram as vidas das mulheres negras daquele período. No conflito,
Joana, Anna e Amélia de Carvalho, todas negras, tiveram que recorrer à rede familiar num
momento de dificuldade.
Mas o olhar machista de Geraldo não era o único ao qual aquelas mulheres estavam
sujeitas. O próprio processo deixa ambígua a situação habitacional delas. Ora a casa aparece
como uma casa de uma família pobre, ora pode-se confundi-la com uma casa de prostituição.
Quem morava ali eram Joana e Anna, sublocando um dos cômodos a Amélia, natural de Santa
Catarina e que chegara a pouco em São Paulo.
Fugindo, com medo das pancadas, Geraldo prestou queixa contra José Ventura, que foi
recolhido à Cadeia Pública. O processo, saído das mãos do delegado em setembro de 1909, só
fui julgado um ano depois. Enquanto respondia em liberdade, Ventura Cachoeira foi qualificado
como um “preto desordeiro” pelo advogado de acusação. Sem condições de bancar sua defesa,
José não pode fazer muita coisa. O estereótipo do negro perigoso contou para sua condenação.
O julgamento não levou em conta os argumentos das mulheres que mencionaram o assédio
sofrido. Conforme o caso foi chegando ao fim, a cor de Geraldo foi desaparecendo e a de
185
Ventura escurecendo; de mulato claro, virou pardo, para terminar como preto, em setembro de
1910. A cor foi, sem dúvida um aspecto que contou para que o júri atribuísse culpa ao réu.
As relações familiares em situações de pobreza assumiram sentidos diversos durantes
os anos da Primeira República. Aqui, também, a presença de um ideal branco circundou a
questão da moradia, encarada como ambiente a ser expurgado de marcas que remetessem ao
convívio com negros.
3.2. Eu também tenho onde morar: por uma perspectiva negra da luta de classe
65 RODRIGUES, Jaime. “Da ‘chaga oculta’ aos dormitórios suburbanos: notas sobre higiene e habitação operária
na São Paulo de fins do século XIX”. In: CORDEIRO, Simone Lucena (org.). Os cortiços de Santa Ifigênia:
sanitarismo e urbanização. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo / Arquivo Público do Estado de
São Paulo, 2010, p. 81.
66 Idem, Ibidem, p. 81.
186
impõe. É esse processo que tentarei delinear a seguir. Padecer, aturar, repelir e perdurar são
partes constituintes do curso das lutas que os sujeitos travam no seu dia a dia. Traduzindo isso
para termos mais acadêmicos, é disso que estamos falando quando nos referimos à luta de
classes.67
Sendo o encadeamento de tensões, acordos e conflitos entre os sujeitos, as classes,
quando lutam, nem sempre elegem como inimigos os seus algozes estruturais. Por isso, acredito
que a luta de classe tem de ser investigada para além da teoria, ou seja, no lugar onde ela se
desenrola. No caso deste capítulo, tratam-se dos pequeniníssimos quartos de aluguel, dos
estreitos corredores das pensões ou dos terreiros amontoados de gente pobre, negra e branca.
Não é de bom tom que um historiador generalize percepções. Amiúde, quando se faz
isso, cria-se a impressão de que conceitos e resultados da ação humana são universais ou, pior,
naturais. Assim, num contexto de efervescente especulação imobiliária, de grande urbanização,
de distanciamento entre capital e força de trabalho e de precariedade habitacional, foi corrente
a percepção de que os inimigos da classe pobre paulistana eram os donos dos cortiços ou dos
pequenos estabelecimentos comerciais que sublocavam casebres, os policiais e ficais de higiene
ou, finalmente, seus companheiros de teto. Nesse caso, é a proximidade entre os sujeitos que a
multidão urbana criou que evidencia os conflitos e as concepções de direito que negros e
brancos tiveram que enfrentar e construir.
A documentação judicial está repleta dessas discórdias. Por entre relatos de
testemunhas, depoimentos de acusação e assentadas, eles vão, aos poucos, revelando os
impasses de vida que as situações econômicas firmavam à mulheres e homens. Entre pagar o
aluguel e comer, muitos tiveram que optar pela comida, esperando ter como enfrentar a
agressividade de seus senhorios. José de Tal, carroceiro, de 22 anos de idade, natural de
Campinas, esteve dentro desse beco sem saída, em março de 1927. Alugando um quarto
próximo à rua Riachuelo, foi preso por agredir seu senhorio que, contra o réu, distribuiu
cacetadas por não ter “meio certo de vida” e por constantemente “ter seus vencimentos
atrasados” .68
Mas a hostilidade também existiu entre os moradores do cortiço. Vivendo em casas
superlotadas, onde a proximidade de vivências de várias famílias era a regra, não é de se
estranhar que houvesse desavenças. Muitas delas, por sinal, causadas pela escassez de recursos.
Ao ler os processos-crime que tramitaram na Justiça paulista, deparei-me com várias
ocorrências cujos preâmbulos foram a disputa pelo uso de banheiros, tanques de lavar ou
apoderamento de bens de pequeno valor. Brigas entre europeus e negros eram comum nessas
circunstâncias.
São querelas, altercações e rixas que dizem respeito à contestação de modos particulares
de vida que, rotineiramente, geravam queixas entre inquilinos de um mesmo edifício. Não são
esporádicas as leituras de processos que sinalizam para dissensos que a competição por
melhores condições de moradia instituiu. Foi assim que a parda Rosária Francisca se referiu ao
seu cotidiano, em 1913, depois de acusar a agressão que sofreu de um habitante do quarto ao
lado do seu: “ [...] que a depoente estava já deitada quando ouviu grande barulho vindo da casa
do acusado, que falou que não continuasse com aquela conversa que estava cansada e não se
sentia obrigada a ter com a vida de gente nenhuma” .69
Mas como o combate é só mais um dos momentos que compuseram a experiência de
classe de negros e brancos pobres, é preciso ressaltar que a vida em cortiços também guardou
uma série de práticas de solidariedade que contribuíram para a efetivação de estratégias de
sobrevivência. Embora menos frequentes nos processos aos quais tive acesso, pude me deparar
com algumas situações em que agentes de polícia invadiram cortiços para por fim à festas ou
pequenas reuniões de moradores. Mais corriqueiras são as histórias de homens e mulheres
negras que, com o auxílio de vizinhos e amigos também negros, puderam pagar seus aluguéis,
depois de pedirem emprestada uma quantia em dinheiro. Para além da ajuda material, esses
laços de solidariedade também livraram esses sujeitos das garras da lei. Desse modo, acredito
que as vidas das pessoas que conviveram em habitações populares foram repletas de situações
que, comumente, mesclaram elos familiares e de amizade, ao mesmo tempo em que situações
de extremo embate se desenvolveram.
As condições de moradia impostas pela carência financeira estimularam encontros,
muitas vezes violentos, de acepções distintas sobre o se manter e sobre o conviver. E foi assim
que o processo de lutas interclasse também acomodou diversas caracterizações racializadas
sobre os modos de ser e de morar dos que suportaram os encargos do tipo de moradia que trato
nesse capítulo.
Segundo essa lógica racializada, muitos julgaram que a segregação espacial dos sujeitos
deveria ser a regra, até mesmo dentro das residências. Os lugares de brancos e negros não
poderíam ser os mesmos. E esse viés também compôs a identidade racial de brancos que
conviveram com homens e mulheres negras. O “pardo” Sebastião dos Santos, de 20 anos de
idade, solteiro, pedreiro, natural de Piracicaba, morador em um cortiço no distrito da
69 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Luis Mazzo. Sem Código, 1913, ATJSP.
188
Consolação, convidou seu amigo Roberto Sylvestre, também “pedreiro, de cor preta”, para
jantar em sua casa. A porta, encontraram com Raul Gonçalves, que não ficou feliz com a
presença de Sylvestre. Exasperado, agrediu Sebastião, que respondeu com outras pancadas. Foi
quando Raul “sacou rapidamente de um punhal e vibrou no declarante vários golpes ferindo-o
no rosto deixando-o todo ensanguentado” .70
Segundo Porfiro de Oliveira, vizinho de Sebastião, brasileiro, provavelmente negro,
natural do Rio de Janeiro, ensacador de café, a briga se deu por “motivo fútil”, começando Raul
por ofender Sylvestre à entrada da “habitação comum” . Enfurecido pelo ato racista de Raul,
Sebastião interferiu, dizendo “que não admitia que brigasse[m] com seu companheiro” . Mas é
o depoimento de Sylvestre da Silva que mais revela o teor da briga entre Raul e Sebastião. Disse
ele que, depois do serviço, foi convidado por Sebastião para jantar em sua casa. Nesse
momento, encontraram Raul, morador do quarto “vizinho ao do ofendido”, que começou a
ofender o depoente, por não o conhecer. Raul não queria que os dois negros se reunissem
próximos ao seu quarto e foi isso que motivou a discussão e a agressão.
Quando falo em conflitos racializados, tenho em mente momentos onde um dos
envolvidos não faz menção à cor de seus opositores, mas, no entanto, articula argumentos
lógicos que atribuem qualificativos que podem ser entendidos em seus pressupostos racistas.
Maria da Imaculada Conceição, mulher preta, moradora da casa 53 da Rua do Gasômetro, no
Brás, certa vez foi acusada de “dar cacetada em seu vizinho” . O motivo da agressão ela mesma
explicou ao delegado: queria usar o tanque de água do cortiço onde vivia para lavar umas roupas
que lhe tinham encomendado. Com encontrou Heleno - português, morador no mesmo cortiço
- se demorando em sair do tanque, achou por bem apressa-lo, já que tinha muito o que fazer.
Desta feita, o português não poupou xingamentos a Maria. Para ele, a mulher não tinha direito
de lhe dirigir a palavra. E vociferava que ela devia respeitar um homem como ele, “que sempre
trabalhou” . Irritada, e dizendo “que deixasse a depoente trabalhar”, deu com um “cacete em
cabeça da vítima” . As testemunhas são quase unanimes em afirmar que Maria era malquista
pelos outros moradores do cortiço, dizendo que era uma “vadia conhecida de todos” .71
E verdade que mulheres solteiras e pobres, negras ou brancas, foram incessantemente
taxadas de vadias. Mas o caso que relatei é exemplar do tipo de argumentos que parecia valer
somente às mulheres negras. O trabalho de Maria foi comprovado por todas as testemunhas,
todas disseram que gente de toda cor a procurava em busca de roupas. Mas o que realmente
70 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Raul Gonçalves. 010E00093 -0085-2, 1909, ATJSP.
71 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Maria da Imaculada Conceição. 10J00197-0062-2,
1910, ATJSP.
189
incomodava aos que ali residiam era o fato de que “ali se deu sempre a reunião de pretos” .
Pouco a pouco, a leitura do processo revela que os julgamentos morais aos quais Maria foi
exposta, além de explicito machismo, estavam condicionados ao medo que a “reunião de
pretos” causava aos outros moradores, todos europeus.
A interpretação dos casos contidos nesses processos-crime é uma tarefa difícil para
quem busca compreender como noções de identidade racial provocaram efeitos nas vidas dos
sujeitos. Primeiro porque a cor, na maioria dos casos, é omitida pelos escrivães. Resta apenas a
esperança que os exames de corpo de delito a apresentem ou, então, que as testemunhas deixem
escapar palavras que denotem a cor que atribuem aos envolvidos: “preto”, “mulato” e suas
derivações.
Mas, mesmo quando a cor é evidenciada, uma leitura desatenta dos processos pode
deixar passar as sutilizas de um racismo que nem sempre é explícito. E esse é o maior embaraço
que o historiador precisa se desvencilhar. As vezes, uma pequena briga por mais espaço dentro
das habitações coletivas traz ofensas do tipo: “que ali não era lugar para estar”, que o sujeito
faz sempre “o que bem quer”, ou, que “era [muito] atrevido” . Tudo isso confunde a leitura,
ainda mais quando não se sabe a cor de sujeitos que, na maioria dos casos são tratados apenas
como “nacionais” . Mas a frequência de casos desse tipo, relacionados a homens e mulheres
negras, indicam que a acusação da inapropriada ocupação de alguns lugares, que o fazer o que
bem quiser e que os seus atrevimentos eram sempre atribuídos por pessoas brancas que
enxergaram seus opositores negros pelas lentes da branquitude. Sentiam-se, portanto, aptos a
julgarem os comportamentos de negras e negros como sendo de pessoas incivilizadas e/ou
inferiores.
Constructo ideológico, a noção de raça tem impacto na realidade social. Por isso, é
preciso acompanhar as estratégias dos sujeitos em suas vidas como um indício de formação
social de concepções de raças. Desse modo, poderemos entender como raça e classe se
relacionam, ainda mais, em contextos de opressão.72
Pela leitura dos processos-crime, poucas vezes podemos captar transformações
significativas das condições econômicas dos pobres da São Paulo entre 1890 e 1930. Isso é
compreensível se atentarmos para o caráter dessa tipologia documental. Dificilmente, para não
dizer nunca, os processos relatam sobre a situação dos sujeitos em termos monetários. Nada
dizem sobre seus salários, sobre o preço dos aluguéis ou sobre os valores que poderíam ter
guardados em suas gavetas. De qualquer modo, numa leitura das evidências deixadas por eles,
72 ROEDIGER, David R. Towards the abolition os whiteness: essas on race, politics and working class history.
L ondon/N ew York: Verso, 1994.
190
deparei-me com circunstâncias de vida que comprovam uma situação de pobreza e, em muitos
casos, de fome. Desconheço dados ou bibliografia que apontem para tal conclusão, mas alguém,
em algum momento, pode até argumentar que o padrão de vida dos trabalhadores paulistas
melhorou ao longo dos primeiros trinta anos do século XX. De qualquer modo, os processos-
crime revelam histórias de vidas que vão além das estatísticas econômicas. A pobreza é a marca
característica dos processos a que tive acesso. Claro que, entre uns e outros, aparecem sujeitos
com mais ou menos dinheiro. Mas isso não parece ter influído substancialmente no padrão de
vida das pessoas.
Referindo-se aos trabalhadores ingleses, Thompson escreveu que mesmo que média de
seus salários fosse mais alta no século XIX que no XVIII, ou o preço da comida fosse menor
entre um período eoutro, isso não acarretaria uma sensação de menor carestia entre os operários.
Dados estatísticos comumente são contraditos por dados qualitativos sem que, no entanto, um
invalide o outro.73 Talvez o pós-Abolição paulistano, com sua crescente urbanização e com a
estruturação progressiva de um mercado de trabalho, tenha sido acompanhado por melhoria em
salários - que, se houve, certamente foi muito pequena - mas isso também incrementou a
concorrência por melhores condições de vida entre os cidadãos. Nesse caso, a vida em
competição, independente do seu padrão entre os pobres, foi marcada pela carestia sistêmica.
Só a custa de muita luta alguns puderam contorná-la.
No que diz respeito a condição habitacional da classe pobre paulistana, não há dúvidaa
quanto às dificuldades que negros e brancos tiveram que enfrentar. Era difícil arranjar um
quarto para a família, e quando se arranjava, ficava-se à mercê dos interesses dos senhorios.
Homens e mulheres pobres brigavam com seus locadores por lhes terem exigido a saída do
quarto para que outra família o pudesse ocupar por um preço mais interessante ao dono da casa.
Num contexto de míngua habitacional, ser pobre em São Paulo era ter de lidar com as peripécias
dos um pouco mais endinheirados. Como vimos, muitos artigos de jornais denunciaram a usura
imobiliária. Mas essas denúncias, ainda que frequentes, dividiam colunas com outras que
criminalizavam os locatários. Isso se deu em meio ao combate às formas de moradia populares.
Atacando a precariedade e a falta de higiene desse ambientes, ao criticarem a agiotagem dos
donos dos “pardieiros”, estavam combatendo os modos possíveis de morar dos pobres. Quando
se criminalizavam os moradores, a tática era a mesma. Os culpados eram os gananciosos
proprietários e os miseráveis e infectos habitantes.
73 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa: a maldição de Adão. Vol. 2. 2a Ed. São Paulo: Paz
e Terra, 2012, pp. 9-45.
191
É de se imaginar, portanto, o clima de luta que havia dentro de cortiços. Com poucas
condições de contradizer as vontades dos proprietários, com poucas opções de moradia e com
casas apinhadas de famílias, vários foram os conflitos. Se as brigas e discussões evidenciadas
pelos processos-crime fizeram parte de uma economia moral desses sujeitos inseridos em um
cenário de constante rivalidade, isso não significou que foram maneiras de agir restritas a uma
só classe. Conflitos muito parecidos também podem ser encontrados envolvendo sujeitos das
classes médias que disputavam heranças ou a primazia de decisão dentro da casa.74 O machismo
e o racismo foram partes constitutivas das resoluções desses conflitos para as classes pobres e
para as outras classes. Devido à concorrência que o crescimento populacional paulistano
produzido pela política imigrantista de branqueamento, esses conflitos tinham dimensões ainda
mais drásticas, se é que se pode mensurar tais dimensões.
Fato é que viver em pensões, casebres, cortiços ou em uma infinidade de arranjos
habitacionais foi sempre uma decisão conexa com a possibilidade de choques entre maneiras
divergentes de existir. Ocasionalmente, os processos-crimes oferecem indícios disso. Manoel,
testemunha da briga entre Frederico e Antônio, não pode prestar depoimento ao juiz, por ter “se
retirado do quarto onde viveu com sua mulher, depois de altercar grande confusão com seu
vizinho de quarto”.75 Todavia, não é prudente generalizar as hostilidades. Por vezes, é na hora
do enfrentamento que o historiador consegue entrever a existência de complexas tramas de
apoios de terceiros, camaradagem e reciprocidade. E o que os depoimentos das testemunhas
dos processos acabam por revelar. Foi o que salvou a pele de Ambrosina, moradora de uma
pousada à Rua dos Andradas, denunciada como “desordeira conhecida por todos dali” . Depois
de reagir dizendo que “pagava a todos o que devia” e que “tinha trabalho e que não precisava
de favor de gente nenhuma”, por pouco não continuou presa. Não fossem os argumentos de
suas testemunhas de defesa, a preta “trabalhadeira” não conseguiría convencer o juiz de sua
inocência.76
O antagonismo entre vizinhos foi regularmente associado aos conflitos étnicos dos
sujeitos. Alexandrina era “uma porca”, porque espanhola; Manoel, pão duro, por ser português;
e o “moreno” Francisco, ladrão e “vadio conhecido” .77 No entanto, quando os conflitos
74 Esse é o caso, por exemplo, de Benjamim de Paula Brito, que assassinou Maria de Oliveira depois desta ter
decidido acabar com o casamento de ambos. A decisão da mulher não foi aceita pelo assassino que a matou na
frente do filho de nove anos, que também presenciou o suicídio do pai. SÃO PAULO (Estado). Inquérito Policial.
Ré(u): Maria Conceição e Benjamim de Paula Brito. 0 1 1F0241-0021-9, 1909, ATJSP.
75 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Antônio Saveiro. Sem Código, 1923, ATJSP.
76 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Ambrosina de Tal. Sem Código, 1912, ATJSP.
77 Os processos que envolveram Alexandrina, Manoel e Francisco são, respectivamente, de 1899, 1928, 1914, e,
com exceção do de Alexandrina e Francisco, que não contem códigos, o de Manoel pode ser pesquisado pelo
seguinte código: 100C0021-0134-8.
192
envolveram homens ou mulheres de diferentes nacionalidade e cores, foi difícil encontrar redes
de amparo a negros comparáveis às de brancos. Não que negras e negros não pudessem contar
com o apoio dos seus ou que não estabelecessem esse tipo de relação. Ao contrário, tinham e
muitas. No entanto, numa cidade que embranqueceu com o passar dos anos e nutriu uma
ideologia racial pela qual a branquitude reunia todos os quesitos de civilização e boa índole,
eram complexas as tentativas de formação de amizade e benquerença entre negros e brancos.
A São Paulo pós-Abolição foi marcada por um contexto em que violências físicas e
simbólicas contra mulheres e homens negros eram simultâneas à cordialidade de imigrantes
para com outros imigrantes, mesmo que de nacionalidades distintas. Negras que não podiam
lavar suas casas em paz porque não sabiam fazer como “suas vizinhas que são bem
higiênicas” .78 Antônio, conhecido no Brás pela alcunha de Tonico Confusão, revidou uma
bofetada do português Jacintho. Segundo o europeu, o “mulatinho” Tonico havia lhe
desrespeitado, dizendo que ia “deitar-se a hora que bem lhe aprouvesse [...] fechando a porta e
continuando o grande barulho com a mulher do denunciado” . Apenas uma testemunha
(possivelmente negra) disse que Tonico e sua esposa não se “conservavam em conversa”, pois
“o acusado é trabalhador e sempre se levanta com o sol” . Foi o único “nacional” que depôs no
processo. Os demais, italianos e portugueses, disseram que Jacintho foi obrigado a bater em
Tonico por este ter “costume de beber muito e sempre fazer barulho” . Ora, pode ser que Tonico
falasse alto ou bebesse. Mas importa que só quatro moradores estavam presentes no momento
da briga - Tonico, sua esposa, Jacintho e o “nacional” Januário. Mesmo assim, foram os
depoimentos de defesa dos outros imigrantes que saciaram as dúvidas do juiz e justificaram a
inocência do português. O processo revela uma estratégia de auxílio entre vizinhos europeus:
estigmatizar como vagabundo e beberão o negro envolvido na briga. Eles sabiam que seus
argumentos seriam ouvidos e, assim, absolveríam o amigo.79
Nos capítulos anteriores, acompanhamos dois momentos distintos e conectados. No
primeiro, vimos como o processo da Abolição foi preenchido por disputas entre republicanos,
conservadores e liberais, entre imigrantistas, abolicionistas e emancipacionistas e,
concomitantemente, entre proprietários e escravizados. O curso dessa rivalidade, ora
intraclasse, ora interclasse, delineou um clima de apreensão sobre o futuro depois da conquista
da liberdade pelos escravizados. No segundo momento, vimos como a República herdou as
consumições do Império e apresentou uma proposta racializada de resolução do problema.
Pouco a pouco, o racismo científico ganhou mais força nas resoluções discursivas do Estado,
78 SÃO PAULO (Estado). Inquérito Policial. Ré(u): Matias Conceição. Sem Código, 1909, ATJSP.
79 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Antônio de Tal. Sem Código, 1915, ATJSP.
193
80 CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. 2a ed., São Paulo: Companhia das
Letras, 2017, p. 23-32.
81 ATA D A CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Sessão ordinária. 27 de julho de 1908, São Paulo: s/e,
1908, pp. 183-184.
82 SEM TÍTULO, O Estado de São Paulo , São Paulo, 03/08/1896, p. 1.
83 DILIGÊNCIA importante. O Estado de São Paulo, São Paulo, 03/08/1896, p. 1.
194
câmara municipal que mandassem “levantar quanto antes o muro do mercado da rua Lourenço
Gnecco, que no estado atual dá fácil acesso à noite a vagabundos e ladrões” .84
Principal local de obtenção de renda para muitos, as noites paulistanas não foram
encaradas com bons olhos pelos legisladores e pela polícia. Os praças rondavam pela Brigadeiro
Tobias, São João ou Barão de Limeira, sempre circundando possíveis vadios, ébrios e
desordeiros. Mas, como bem ressaltou Chalhoub, pobres constantemente foram vistos como
uma classe viciosa, que não seabstinha dosjogos, da bebida e da vagabundagem, sendo também
as vítimas prediletas da polícia.85
A leitura das atas das sessões da Câmara de Vereadores da capital revela que, nos anos
de 1890 a 1930, a preocupação dos legisladores em fiscalizar e conter os costumes populares
foi grande. Lá, aparecem decisões de fechamento de bares, determinações de horários de
funcionamento de estabelecimentos de lazer e indicações de funções policiais que queriam
impor limites à circulação e ao cotidiano de milhares de pobres.
A pobreza era grande, e se intensificou a partir dos anos de 1920, em meio a um quadro
de escassez, especulação e inflação que acirravam “todos os tipos de tensão e conflitos que
latejavam nos desvãos da cidade” .86 A pessoas perdiam cada vez mais o poder aquisitivo e suas
condições de vida iam de mal a pior. Vistos como perigosos, os despossuídos tinham poucas
opções de subsistência, sendo uma delas morar em cortiços. Esse era um dos problemas que
mais preocupava a população de São Paulo. “Mais do que a carestia de gêneros, a de habitações
atribula a totalidade do povo” . A cidade era tida como “uma só pensão”, que custavam “aluguéis
de prédios inteiros por um quarto apenas” .87
Por isso, os cortiços foram os alvos favoritos das políticas higienistas e de segurança
pública.88 Sua população, composta por trabalhadores negros, brancos, brasileiros e imigrantes,
sofreu com isso. Descritos nos jornais e nas palavras dos vereadores como vagabundos e
desordeiros, tinham de se virar para não irem ao xadrez. Todos eram perigosos.
Entretanto, para os jornais daquele tempo, uns eram mais perigosos do que outros. E
certo que os pobres foram vistos como um risco à ordem social que a hegemonia cafeicultora
queria impor; os pobres negros, no entanto, sofreram ainda mais com isso. Chega a ser cansativo
tentar esquadrinhar a frequência de notícias sobre prisões de “pretos ébrios, desordeiros e
84 ATA DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Sessão ordinária. 19 de fevereiro de 1890, São Paulo:
s/e, 1890, p. 55.
85 CHALHOUB, Cidade febril, p. 25.
86 SEVCENKO, op. cit., p. 125.
87 O PROBLEMA das casas. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19/04/1920, p. 4. Nicolau Sevcenko também
utilizou esse artigo, cf. Orfeu extático na metrópole, p. 128.
88 RODRIGUES, “Da ‘chaga oculta’ aos dormitórios suburbanos, p. 81.
195
nos documentos que consultei. São sutilezas que só a leitura de muitos processos pôde
desenredar daquelas tramas das relações humanas. Muitas vezes são ações tão requintadas que
deixam a dúvida se o racismo foi o disparador de alguns embates. Mas o acúmulo de evidências
demonstra que noções de supremacia branca fundamentavam violências contra negros. Mas
nem sempre essa brutalidade se dava sem resistência.
A casa de José Julio de Oliveira devia ser conhecida pelas festas que dava. Filho de Júlio
de Oliveira, com 39 anos de idade, brasileiro, casado, lavrador residente no Carandiru, então
zona rural de São Paulo, chamou um pessoal para ali “dançarem bate-pé e cana-verde” . A festa
ia muito bem, até que o brasileiro Simplício e o alemão Otto agarraram-se em luta. A briga foi
tão grande, que virou pauta do Correio Paulistano e d ,0 Estado de São Paulo. O Correio
noticiou que, na noite de 23 de maio de 1909, “realizava-se [...] um assustado, a que
compareceram todos os tocadores de violão das redondezas” . Com “profusa distribuição de
bebidas alcoólicas”, os “ânimos começaram a exaltar-se pouco a pouco”, até que, lá pelas dez
da noite, “suscitou-se uma contenda entre o nacional Simplício e o alemão Otto de Tal, que
tentaram agarrar-se em luta corporal” .96 Diferentemente do que o jornal defendeu, a briga não
se deu por conta do álcool, embora todos alegassem estar embriagados. Foi, na verdade, uma
dissimulação para que todos pudessem dizer que não se lembravam do ocorrido. Assim,
evitaram dar maiores detalhes à polícia.97
Mesmo assim, o processo revela que a briga foi grande. Osório Pinto, lavrador,
brasileiro, residente no Carandiru, se achava “tocando viola” quando viu “quando dois
convivas, Simplício de Tal e Otto, se desentenderam, terminando por se agredirem em luta
corporal” . Então, resolveu separar os contendores. Pondo de lado sua viola, “dirigiu-se a eles
com bons modos” . Porém, desaprovando a intervenção, os dois brigões bateram em Osório,
“que foi agarrado por Amâncio de Camargo e Abel de Tal” . Ao que parece, Simplício foi o que
mais bateu. Conseguindo se desvencilhar dos socos e pontapés, Osório fugiu, largando para trás
seu chapéu e sua viola, indo dar queixa ao delegado. A briga envolvendo Otto e Simplício
originou um processo em que somente o segundo foi indiciado. Otto, tratado pelo delegado
como testemunha desde o início, usou a cor dos sujeitos para atestar os maus costumes de
Osório Pinto (o agredido) e Amâncio que, na verdade, estariam juntos “a jogar capoeira” . Na
96 SEM TÍTULO, Correio Paulistano, São Paulo ,24/05/1909, p.2. A mesma notícia aparece em O Estado de São
Paulo , 24 de maio de 1909, p. 3.
97 SÃO PAULO (Estado). Inquérito Policial. Ré(u): Simplício Rodrigues dos Santos. 010E0093-0002-1, 1909,
ATJSP.
198
versão do alemão, a história, o negro Simplício interviu, dando uma “cacetada em Osório”. A
confusão foi danada e os motivos são difíceis de entender.
Tudo leva a crer que Osório sabia que devia esconder do delegado que havia jogado
capoeira. Sabia que a prática era malvista. Mas o depoimento das outras testemunhas, omitindo
circunstâncias, dão a entender que Otto fazia chacota dos costumes de Simplício e de outros
negros na festa, alguns deles jogando capoeira. Foi a chacota o motivo da briga. Irritado,
Simplício e Amâncio partiram para cima de Otto, que se defendeu. Foi aí que Osório interveio.
Intervenção pouco ansiada, já que foi entendida como uma intromissão num ajuste de contas
contra as piadas, possivelmente racistas, de Otto. Aproveitando a brecha, Otto fugiu, sobrando
para Osório, que impediu que a justiça fosse feita. O caso foi encerrado ainda na delegacia. Por
falta de provas, pois, segundo o delegado, os depoimentos eram muito vagos e confusos, por
estarem todos “muito embriagados para se lembrarem de algo” .
Esse tipo de conflito esteve presente em outras regiões de São Paulo. Redes de amizades
costumavam ser questionadas pela intromissão de imigrantes europeus que julgavam negros
como causadores de problemas. E assim que, em 1912, no bairro do Limão, próximo à
Freguesia do O, os negros João Pernambuco e Gabriel tiveram uma discussão com o português
João Galvão. Ele intercedeu em favor de Angélica Moraes, que havia sido ameaçada pelos dois
negros.98 João Galvão era o senhorio de Olímpio da Flor, um “preto” que, “devido a seu bom
coração consentiu que o preto Gabriel de tal ali ficasse com quarto até arranjar cômodo” .
Podemos notar uma rede de amigos negros a contribuir a obtenção de um teto para morar. Há
indícios de que Olímpio vivia em um quarto habitado por mais pessoas. Com a chegada de João
e de Gabriel, quatro pessoas viviam em um quarto, j á que Olímpio e Angélica também moravam
ali. Angélica, percebendo o aperto daquela situação, negou comida e moradia novos moradores,
sendo, por isso, agredida verbalmente por eles. Ouvindo os gritos, João Galvão, o senhorio e
que residia no mesmo prédio, se dirigiu ao quarto dela, expulsando os outros dois de lá. Segundo
ele, seus agressores eram pretos “muito conhecidos no bairro do Limão”, e eram “indivíduos
desocupados e sem residência certa” .
Esse caso é modelar sobre o que venho argumentando até aqui. As condições de moradia
dos sujeitos pobres em São Paulo e, às vezes, a falta dela, regularmente colocavam os sujeitos
em choque. No entanto, quando esses desentendimentos envolviam pessoas de cores diferentes,
soava verídico, aos ouvidos dos delegados ou juizes, o argumento de que negros eram
arruaceiros, brigões, malandros, vagabundos ou, em outras palavras, inferiores aos cidadãos
98 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): João Pernambuco e Gabriel de Tal. TJ1-
1001278713.-0, 1912, ATJSP.
199
99 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Sylvio de Tal. TJ1-1001266617.-3, 1913, ATJSP.
100 SÃO PAULO (Estado). Inquérito Policial. Ré(u): Northon de tal. TJ1-1001764727.-1, 1917, ATJSP.
200
comprovar seus bons costumes e sua civilidade.101 A lei era dura para a classe pobre em geral
e não resta dúvida de que a probabilidade dela fustigar mais negros do que brancos foi muito
superior.
Também encontrei mulheres negras que, tal como os homens, foram tidas como
perigosas pela polícia. Elas e suas moradias eram descritas como promíscuas.102 Eram
Conceições, Rosários e Piedades que, contra a vontade da municipalidade, viveram nos
“pardieiros” das regiões centrais da cidade ou nas zonas periféricas, industriais e rurais. Tinham
seus modos de vida contestados, sendo taxadas de meretrizes, loucas e vagabundas por viverem
na “promiscuidade” de habitações coletivas.
Delegados, juizes e promotores entendiam que os cortiços impediam mães brancas e
pobres de ter a moral necessária aos brancos103, enquanto para as mães negras, constatavam que
seus desvios eram frutos da falta de brio. Foi comum encontrar alegações de que mães negras
não sabiam criar seus filhos e que elas desmoralizavam as vidas dos brancos que viviam nas
mesmas casas.
O nome de Áurea Benvinda, filha dos ex-escravos Joaquim e Madalena, tinha que dizer
algo, e, talvez por isso, não aceitasse a posição que lhe foi atribuída pelo delegado.104 Depois
de agredir a italiana Geovana Mezauma, disse “que vive de seu trabalho”, que era honesta, e
que, portanto, tinha o direito de entrar e sair do cortiço em que vivia a hora que bem entendesse.
Residente à Rua Riachuelo, na Sé, sua vida parecia incomodar portugueses e italianos que
dividiam o espaço com ela. Todas ax mulheres do cortiço disseram ao juiz que tinham medo
dela, que era conhecida “por fazer gritaria, e que todos a temiam por fazer o que quer” .105
Mulher, negra, filha de ex-escravos e, aparentemente, mãe, Áurea Benvinda invertia a ordem
que os preceitos racializados de cidadania feminina lhe tentavam impor. Ela era lavadeira,
profissão que também pode ser realizada dentro dos espaços residenciais. Meses depois, na
assentada do processo-crime perante o juiz, Áurea informou que era cozinheira. Talvez ela
cozinhasse em casa também, saindo, em seguida, para vender doces ou outras comidas; esse
tipo de uso do espaço doméstico, instituído pelas precárias condições de vida que aqueles
101 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Benedito Rodrigues ou Benedito Claudino. Sem
Código, 1914, ATJSP.
102 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Antônia Maria da Conceição. Sem Código, 1911,
ATJSP.
103 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Maria Thereza de Jesus. Sem Código, 1918, ATJSP.
104 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Áurea Benvinda. Sem Código, 1913, ATJSP.
105 O termo “fazer o que bem quer” também a parece em outro processo-crime envolvendo o ex-escravo Vicente,
que analisarei no 4o Capítulo. Chama a atenção que esse tipo de expressão se relacione aos ex-escravos e seus
descendentes.
201
sujeitos enfrentavam, não condizia com os preceitos de civilidade que tanto almejava a lei e a
ordem da municipalidade.
Mas esse não era um modo de vida característico apenas do pós-Abolição em São Paulo.
Desde o século XIX, o pacato burgo de estudantes já era repleto de roceiras e vendedoras
perambulando pelas ruas. Assim como de Áurea, as autoridade locais daquele tempo
desconfiavam da assiduidade da presença daquelas mulheres no locais de vendas de alimentos.
Vendiam de tudo, “miúdos, frangos, ovos, farinha, queijo”, nos mais diversos locais: no “pouso
do Juqueri e do Barro Branco, na estrada de Atibaia, no Piques, no canto do Bexiga, nas margens
do Anhangabaú”, ou “no caminho da Luz” .106
Naquele tempo, a escravidão na cidade tinha pouca extensão. O escravizado era caro, a
maioria dos livres e pobres e os ricos permaneciam em fazendas do interior. Mas isso não que
dizer que a escravidão não existiu na cidadezinha de então. Ela existiu, mas não predominaram
os grandes planteis. Eram mulheres livres que “moravam em casas de aluguel”, que “não
podiam manter nem sequer aparência de grandes senhoras, inserindo-se mal-e-mal, nas fímbrias
das classes dominantes” .107 Esse foi o perfil das maior parte dos proprietários dos poucos
escravos que a cidade agrilhoava. Muitas delas, mulheres, que, ou não tinham como ter escravos
ou, quando tinham, só tinham um só, que, na maior parte do tempo, viveram do ganho.
A partir de contratos muitas vezes verbais com seus senhores, esses escravizados
trabalhavam fora, sem o controle ou a supervisão dos proprietários. Muitas eram mulheres,
usualmente mais velhas, “que moravam sós em quartos de aluguel com a permissão das donas,
e se sustentavam e a seus filhos e netos” . A cada semana pagavam o que deviam à suas
proprietárias. Era o que se chamava de jornal que, uma vez pagos, o restante era guardado para
si.108
O livro Quotidiano e poder inaugurou o estudo das mulheres remediadas e
empobrecidas e das negras de ganho. Nele as vidas pulsam, também “cheiros, vozes, pregões,
gestos, cantigas” e trajetos revelam “discursos de sobrevivência que se perderam para
sempre” .109 Se essas mulheres estiveram à margem dos trabalhos historiográficos, hoje isso não
pode mais acontecer. Sabemos que foram mulheres que, na maioria das vezes, foram as cabeças
de suas famílias. Delas dependiam filhos, netos, parentes e esposos. Pode-se dizer que, desde o
início século XIX, a carestia financeira estrutural da cidade fez dessas mulheres chefes de
106 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2a ed.. São Paulo:
Brasiliense, 1995, p. 26.
107 Idem, Ibidem, p. 118.
108 Idem, Ibidem, p. 125-126.
109 Idem, Ibidem, p. 21.
202
família que seus ofícios puderam sustentar.110 Essa característica manteve-se, com pequenas
alterações, até a primeira metade do século XX, especialmente para mulheres negras. Encontrei
muitos processos em que elas aparecem como as únicas pessoas que exercem algum tipo de
atividade remunerada mais estável, o que lhes deu uma maior autonomia e independência. Não
foi à toa que as mulheres negras entrevistadas por Teresinha Bernardo deram muita importância
para seus trabalhos e suas vontades111 No entanto, essas mulheres enfrentaram grandes
dificuldades nesse processo de inserção no mundo do trabalho, tema a ser aprofundado no
próximo capítulo.
As condições de moradia dessas personagens rompiam com uma ideologia que era
masculina e da branquitude, guiando a vida dos sujeitos que moraram na cidade durante a
Primeira República. Eram mulheres que tinham viviam em quartos divididos entre algumas
pessoas, em casas onde mulheres e homens coabitavam. Tudo isso servia como uma justificar
uma estranha e contestável suspeita sobre elas, as negras em especial. Não era só perante os
olhos dos juizes ou dos delegados que essas mulheres sofriam, pois seus companheiros também
compartilhavam esse viés. Nos momentos de conflito, julgaram-nas libertinas, causadoras de
suas loucuras.
Contra todas as dificuldades, entres as leituras de jornais de época e dos processos-
crime, topei com várias histórias de mulheres negras em torno das quais se fortaleciam os
vínculos familiares. As que moravam sozinhas, as que tinham companheiros, filhos e outros
parentes faziam de suas casas e quartos locais privilegiados para o convívio social ou para a
poupança de algum dinheiro que pudesse auxiliar na efetivação de planos de vida. Filho de ex-
escravizados, o pardo Luiz Carlos da Silva Lisboa, de 19 anos, tinha vindo de Ouro Preto, ainda
menino, trazido pela importante família Almeida Prado. O patriarca da família, Carlos
Vasconcelos de Almeida Prado o acusou de roubo, no ano de 1904. Segundo seu relato, ele
havia cuidado da educação do menino. Sempre lhe tratara como se da família fosse. Não podia
entender como Luiz fosse capaz de lhe roubar 1.100 francos e mais 130$000 de seu escritório.112
O caso causou comoção na cidade e tirou o sono do delegado Pedro Arbues Junior.
Como Luiz havia negado a autoria do roubo, o comissário de polícia mandou seus praças darem
batida em tudo que foi casa dos amigos de Luiz, desde o início da tarde. Rondaram pelo Largo
do Arouche e pelas ruas do centro. Só às 11 horas da noite souberam da existência de uma
namorada de Luiz, moradora à Rua da Esperança. As horas se passaram e ainda não sabiam o
nome da mulher, ora intitulada amante, ora namorada. Lá pelas duas da manhã, descobriram
que a mulher era “uma preta chamada Olívia Maria de Castro, conhecida pela alcunha de bull-
dog” .113
E fácil deduzir os procedimentos utilizados pelos policiais para conseguir tal
informação, depois de terem assediado tantas casas de gente pobre pelo centro da cidade.
Descoberta a casa da parceira de Luiz, invadiram-na e lá encontraram “roupas finas para
homens e senhoras, guarda-chuvas e bengalas finas, cortes de seda, meias, camisas para homens
e senhoras, punhos e colarinhos, ricas cortinas e resposteiros, chapéus, botinas finíssimas de
pelica”, tudo junto, dentro de canastras, que somavam 3:000$000.114 Na casa também foram
encontrados bilhetes endereçados a amigos, para explicar que tinham a juntado algum dinheiro
e que partiríam para Belo Horizonte, cidade do mesmo estado de que Luiz era natural.
Luiz era da geração dos ventre-livres, pois havia nascido em Ouro Preto por volta de
1885. Trazido para São Paulo quando tinha oito anos de idade para trabalhar de criado em casa
dos Almeida Prado por volta de 1893, ele talvez tenha nutrido planos de voltar para sua terra
natal e reencontrar a família. O pós-Abolição brasileiro foi marcado pela movimentação de ex-
escravos. Muitos deles, vendidos pelo tráfico interno, depois de abolida a escravidão, seguiram
para suas terras natais115 Mas, em São Paulo e talvez em outros lugares, a estratégia para o
regresso teve que contar com uma vasta rede de amigos que os pudessem aconchegar durante
os anos necessário para pôr em prática esse plano. Os bilhetes foram encontrados na casa de
Olívia Maria, onde sempre passava a noite. Da mesma forma, a conquista da liberdade de Luiz
também esteve atrelada à independência de vida de Olívia, que tinha seu trabalho para pagar o
aluguel do quarto onde morava, enquanto Luiz utilizou-o como guarida para os pertences que
havia furtado. Talvez furto não seja a melhor palavra. O artigo do jornal o nomeara como o
“crioulo” dos Almeida Prado, menino de 19 anos que provavelmente não recebia salário, ainda
vivia sob a vigia senhorial e as condição de escravizado que perduraram nos primeiros anos da
Repíblica. Portanto, furtar pode ter sido a única alternativa viável para que ele pudesse retornar
a Minas Gerais. A casa de Olívia foi estratégica nesse processo.
Trabalhando como lavadeira, a preta Helena da Silva era conhecida de todos na
Liberdade. Subia e descia as ruas do centro, carregando pacotes com roupas lavadas e
engomadas de seus clientes. Foi sua popularidade que ajudou a Manoel de Tal a obter o emprego
de ensacador de café. Foi ela quem pediu a “Francisco Vieira Matos, português, comerciante”,
que arranjasse algo para Manoel, “que acerca de seis meses morava em casa” da lavadeira.116
Os casos arrolados evideciam que as casas de mulheres negras cumpriram papéis semelhantes.
Jovens ou velhas, muitas delas ampararam amigos, parceiros e parentes em momentos de
dificuldades. Por morarem nas regiões centrais de uma cidade que não parava de crescer,
ofereceram condições para que famílias inteiras estruturassem projetos de vida num contexto
de ampla escassez para muitos pobres paulistanos.
Desde o século XIX, morar no centro ou em suas adjacências foi uma alternativa para
os pobres da cidade, especialmente para os negros pobres. Lutando por sua inserção num
mercado de trabalho agudamente instável, muitas negras e negros tiveram que escolher como
morada os cortiços, pensões e casebres de aluguéis juntos ao centro para estarem próximos das
maiores ou melhores oportunidades de emprego. Como vimos, a escolha de habitar esses locais
foi acompanhada, em muitos casos, por diversos conflitos. Brancos e negros pobres entraram
em constantes hostilidades, tiveram que enfrentar o prejulgamento dos agentes policiais, os
preconceitos raciais de seus senhorios e uma infinidade de situações adversas. Não obstante,
também contaram com generosas redes de auxílio que lhes ofereceram um ponta de esperança
de uma vida melhor.
Essa procura por melhores condições e os esforços para juntar algum dinheiro e, quem
sabe, em um futuro próximo, ter com o que compra terrenos ou casas em outras regiões da
cidade, ainda que mais afastadas, foram experiências que existiram dentro dos quartos de
aluguel e dos terreiros de cortiços do centro da cidade que, muitas vezes, também funcionaram
como ambiente de trabalho. Desse jeito, ao analisar às experiências de classe dos negros pobres
paulistanos, pude me dar conta de que a busca por trabalho e por moradia esteve
escrupulosamente ligados aos costumes que eles tiveram que recriar vivendo em uma cidade
que se acreditava branca. E busca por trabalho que investigarei no último capítulo da
dissertação.
116 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Manoel de Tal. Sem Código, 1908, ATJSP.
205
Chamava-se Felisbino Roque. “Era um preto velho, orçando pelos 60 anos de idade,
alto, magro, de grisalho cavanhaque e cabeleira encarapinhada” . Tinha vindo havia dois anos
de Santos. Munido de uma recomendação do engenheiro dr. Ramos, foi admitido como
guarda das obras de edificação do Palácio das Indústrias, na Várzea do Carmo. Homem sério
e trabalhador, Felisberto dormia durante o dia, “passando as noites de atalaia” . Era só, desde
que enviuvara. Tinha apenas um filho, Lafayette Roque, que, casado, vivea na cidade de
Santos, junto com sua mulher. Felisbino não necessitava do auxílio do filho. Ambos,
Lafayette e Felisbino, eram trabalhadores. Os rendimentos do pai eram parcos; ainda assim,
econômico como ele só, guardou tudo o que ganhou, tanto que, em pouco tempo, conseguiu
“reunir algumas economias” .
vítima, uma alternativa que a personagem encontrou para ganhar a vida. Trabalhador, tinha que
cumprir perfeitamente com suas obrigações, para não perder as recomendações do dr. Ramos
de Azevedo. Talvez por conta dessa recomendação, a notícia do assassinato tenha rondado as
páginas do jornal por meses.
Lafayette Francisco dos Santos, filho da vítima, assim que soube da notícia, abandonou
seus afazeres na Companhia Paulista de Armazéns Gerais, em Santos, e embarcou
imediatamente para São Paulo. Foi ele que deu mais informações sobre a história do pai.
Mas as adversidades pelas quais Felisbino passou em Santos fizeram com que o velho
embarcasse para São Paulo. O depoimento de Lafayette confirmou que seu pai, contando com
“seus protetores coronel Urbano de Azevedo e dr. Ramos de Azevedo”, conseguiu a colocação
de servente de pedreiro nas obras do Palácio das Indústrias. Decorrido um ano de serviço, “o
sr. Dr. Ramos de Azevedo, compadecido da sorte do infeliz trabalhador que orçava já pelos 70
anos de idade, fê-lo guarda noturno das obras, dando-lhe por moradia a casinhola existente a
alguns passos da construção” . Felisbino, que soube como articular suas redes, “cheio da mais
viva satisfação e de reconhecimento por seu protetor, instalou-se na casinhola” .3
A notícia deu o tom que julgava apropriado sobre o lugar social que Felisbino deveria
assumir. Filho de africanos e ex-escravo, o guarda noturno não tinha com quem contar, a não
ser com o precário auxílio de um filho e com a benevolência dos irmãos Azevedo. O coronel
Urbano fora um senhor de escravos endinheirado, dono de fazendas em Amparo. Depois da
proclamação da República, fora empossado vereador em São Paulo em 1902.
Depois da morte de sua mulher, a migração surgiu como possibilidade de reestruturação
da vida do guarda noturno. No entanto, chegando a Santos, deparou-se com uma cidade que,
apesar dos empregos conseguidos, não lhe oferecia “clima” social de acolhimento. Com idade
avançada, trabalhar na limpeza pública ou como pedreiro de empreitada não era fácil. O auxílio
prestado pelo filho encontrou seus limites. Então, a migração continuou sendo uma alternativa
na luta por uma vida melhor. Os laços que Felisbino nutriu com a família Azevedo demostram
que, para além dos vínculos familiares, ele contou com os elos sociais que estabelecera ainda
no cativeiro.
A migração aparece como uma constante em sua vida familiar. Lafayette, depois de
casado, optou por tentar a sorte no litoral paulista, deixando seus pais em Amparo.
Provavelmente pobres, as escolhas pelo caminho de mudança para outras localidades apontam
as encruzilhadas que os ex-escravos tiveram que enfrentar nos anos posteriores à Abolição.
Após a assinatura da Lei Área, a experiência de libertos e afrodescendentes paulistas foi
marcada por grandes desafios: de um lado, diversas expectativas de inserção social foram
frustradas; de outro, em um estado cada vez mais branqueado pela vinda de imigrantes, a
concorrência no mercado de trabalho e os conflitos étnico raciais favoreceram as decisões de
deslocamento espacial por parte dos ex-escravos. Talvez por isso a tendência migratória foi
mais frequente entre solteiros e/ou jovens. Isso pode indicar que, embora tendo um cotidiano
difícil, famílias mais arraigadas dificilmente saíram da região onde viviam. Lúcia Helena
Oliveira da Silva identificou algo semelhante ao analisar a migração de negros do estado de São
Paulo para a cidade do Rio de Janeiro nos anos posteriores a 1888.4
A migração se apresentou como alternativa a Felisbino depois da morte da esposa.
Sozinho em Amparo, foi para junto do filho em Santos, buscando o reestabelecimento de uma
vida familiar que a experiência migratória em liberdade tinha desfeito. Não se sabe se o racismo
ou a precariedade da vida contribuíram para que Felisbino buscasse reatar os antigos laços de
solidariedade entre ele e a família de seu antigo senhor. Longe de ter seus caminhos livres de
empecilhos, a vida de Felisbino em São Paulo foi de um quase enclausuramento.
Impossibilitado de continuar trabalhando na construção civil devido à idade, a transferência de
cargo dependeu de sua boa conduta. Ao emprego e à casa cedidos, esse senhor deveria agradecer
com prestatividade. Assim, saia pouco, só para fazer algumas “compras no mercado da rua
Vinte e Cinco de Março, trabalhava a noite toda, e dormia na parte do dia, para ganhar os 5
contos diários como salário” . Mas os planos de migração de Felisbino tinham um objetivo
maior:
Pai e filho combinaram que trabalhariam, talvez contando com a ajuda da nora, para
conquistarem um certo grau de autonomia e um nível de vida que julgavam justo com a compra
de um terreno em São Caetano, então município rural paulista. A submissão aos preceitos
morais dos Azevedo aparece aqui não como uma dependência bajuladora e vassala, mas, como
artifício em prol de uma vida melhor. Tanto que, “ainda na véspera do [seu] último natal,
Felisbino, tendo recebido a visita do seu filho Lafayette em companhia da nora e do seu neto
Alfredo dos Santos”, conversou longamente com eles sobre “seus projetos de fazer-se
lavrador” . Até então, já tinha economizado 450$000 e, assim que recebesse os salários de
dezembro, escrevería a seu filho, chamando-o para São Paulo a fim de, juntos, comprarem as
terras. Mas o destino guardava outras surpresas. Firme em seu propósito, Felisbino mandou
uma carta ao filho, dizendo para que viesse sem demora.
Interrogando os operários da construção, o delegado, experiente, fitando a todos, notou
que um tal “Norberto Pereira, de 22 anos de idade, mal podia conter-se [...] ao lado dos seus
companheiros que se conservavam relativamente calmos” . Perguntado sobre o motivo do
nervosismo, “balbuciou algumas palavras incompreensíveis” que o comprometeram.
Conduzido à delegacia, disse que havia oito anos trabalhava “ao serviço do engenheiro sr. Dr.
Ramos de Azevedo” . Os depoimentos dos outros operários atestavam a sua alegação. Preso
preventivamente, depois de algumas horas Noberto resolveu “dizer alguma cousa em abono da
verdade” . Disse que havia sido ele o assassino de Felisbino, mas que também não estava só.
Contando com a ajuda de um ex-operário daquela obra, “há tempos dispensado como autor de
furtos de objetos dos seus próprios companheiros”, alegou não ser “a cabeça pensante do plano
criminoso” . “Convidado pelo ex-operário, em companhia de quem passou [numa] madrugada
de sábado” para dentro das obras do Palácio das Indústrias”, afim de roubarem o guarda
noturno.5
O ex-operário era Rino Giovanni, apelidado de Bepe. Italiano, tinha 42 anos de idade e
era casado com Marianna Bandolfi. Natural de Potenza, Rino estava no Brasil há apenas dois
anos e meio, como imigrante. A história de vida de Bepe evidencia como a cidade de São Paulo
apresentava-se como uma alternativa de vida e de trabalho nos anos posteriores ao fim da
5 As citações anteriores remetem ao texto CRIME MISTERIOSO. Correio Paulistano, São Paulo, 22/01/1914, p.
5.
209
escravidão. Num momento de reestruturação das relações de trabalho nas fazendas, Rino, ao
contrário de Felisbino, não parece ter se adaptado com à vida na lavoura. Tido por péssimo
rurícola, sua escolha pela migração das fazendas talvez tenha sido embasada pela percepção
das péssimas condições de vida dali. Felisbino também deve ter experimentado as mesmas
condições. No entanto, o primeiro tem São Paulo como seu destino certo, talvez sabendo que
podería contar com a preferência dos italianos donos de fábricas como a Falchi Papini. No mais,
sua busca por trabalho guarda certa semelhança com a de Felisbino: ambos passaram por vários
ramos profissionais em suas experiências migratórias. Felisbino havia sido lavrador, depois
funcionário da limpeza pública em Santos, passando a pedreiro; seguindo para São Paulo,
voltou a ser pedreiro até assumir o posto de guarda noturno - sempre nutrindo o plano de ter
sua própria terra. Rino também exerceu uma série de funções, sendo lavrador, operário de
fábricas, pedreiro e tosador de animais. Embora o plano de migração soasse como uma
esperança de vida nova aos dois, os processos de reestabelecimento nos locais para aos quais
migraram foram sempre marcados por incertezas constantes sobre a manutenção de suas vidas.
Já na delegacia, Norberto e Rino foram postos na mesma sala. - “Conhece -o”?
perguntou o delegado à Norberto. - “Perfeitamente” ! disse Norberto. E ‘Bepe’, o meu
companheiro da noite de sábado” .6 Estupefato, Bepe perguntava se era companheiro de que?
Achados os culpados, o Correio Paulistano gradualmente, apagou a imagem de
Felisbino e se concentrou na narrativa dos dois acusados. A história ganhou tons de romance
policial que deviam entreter os leitores do jornal. Aos acusados foram atribuídas descrições
sobre seus espíritos e pensamentos. O autor, misturando ficção e realidade, disse que Norberto
“ [...] há três semanas, pouco mais ou menos, encontrando-[se] nas proximidades do mercado
da rua Vinte e Cinco de Março”, recebeu a proposta de roubo das economias do guarda da obra
do Palácio das Indústrias. Ali combinaram o assalto, vagando pelas imediações do Palácio até
a madrugada. Lá pela uma hora, pularam a cerca de arame que deitava para o rio Tamanduateí
e colocaram “mãos à obra” . No dia seguinte às declarações, os policiais foram, junto com
Norberto e Bepe, à casa de ambos. Lá acharam o dinheiro. Próximos ao Palácio das Indústrias,
ambos “foram vaiados pro uma multidão de curiosos que ali se achava” .7 Nesse momento,
seguindo as indicações do advogado Carlos Augusto Garcia Ferreira, ambos passaram a negar
a autoria do crime. Tendo sido procurado pelo pai e pelo cunhado de Norberto, Carlos Garcia,
que há pouco deixara o cargo de vereador municipal8, assumiu o caso, dizendo que, “confiando
nas palavras deles, tomaria a defesa” de Norberto.9 Os laços de solidariedade do réu devem ter
contado enormemente para a obtenção da defesa de tão ilustre advogado. Devido à enorme
repercussão, o processo andou a passos largos. No dia 6 de fevereiro de 1914, as denúncias
contra Norberto Pereira e Rino já havia sido oferecida pelo promotor público Mario Pires. O
julgamento ocorreu em 29 de abril daquele ano. O promotor público, em sua acusação, tinha a
certeza de que os acusados eram os autores do assassinato do “desventurado velho
septuagenário”, que fora “colhido no posto pela ferocidade dos assassinos, que visavam, [...]
apropriar-se das parcas economias que o infeliz guarda conseguiu acumular à custa de trabalhos
penosos e sacrifícios ingentes” .10
Aquela altura, era difícil negar o percurso de vida de Felisbino. Ex-escravo, migrante
por volta dos seus 70 anos, trabalhador em vários ramos, sua condição moral e cidadã não tinha
como ser posta em dúvida. Todas as provas apontavam para a culpa dos réus: o dinheiro
encontrado em suas casas, o conhecimento dos operários em relação a Bepe, tudo parecia
apontar para uma sentença lógica: culpados. Mas o direito faz peripécias. A cientificidade do
direito, alegada pelo promotor público, não contou para aju sta condenação dos réus. Laudos
médicos e polícias não foram suficientes, mas a astúcia de Carlos Garcia, sim. Alegando, contra
todas as provas, que Norberto não tinha como saber das economias de Felisbino, a defesa de
Norberto saiu vitoriosa, graças ao eminente advogado.
O caso de Rino era um pouco mais complexo. Assim, o seu advogado, dr. Edward
Carmillo, lançou mão de argumentos sobre a vida de Felisbino Roque. O jovem advogado foi
o único a comentar sobre sua vida. Ao fazê-lo, pediu ao júri que prestassem atenção em seu
respeito aos “velhos” e, mais, à sua piedade em relação ao futuro dos ex-escravos. Deixando de
lado a lógica “iniludível dos fatos”, Carmillo pediu que acreditassem nele, assegurados pela sua
“volúpia pelo trabalho” da advocacia. Após seu exórdio, leu páginas e páginas de autores,
atestando a falta de valor das acusações sobre Rino. E finalizou dizendo que, amparado pelas
mãos do júri, Rino podería voltar “ao seu trabalho, cheio dessa integralidade, que é a fortuna
dos pobres!” 11 Os laços da família de Norberto e a astúcia do advogado de Rino deram
resultado. As 19h30 do dia 29 de abril, os acusados foram absolvidos por maioria dos votos.
8 CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PALTLO. Secretaria de Documentação da Câmara Municipal de São Paulo.
Pesquisar: Carlos Garcia [Vereadores]. Base de Dados: verea. Disponível em
<http://www.camara.sr).gov.br/memoria/vereadores/>. Acesso em: 03 dez. 2018.
9 O CRIME DO PALÁCIO DAS INDÚSTRIAS. Correio Paulistano, São Paulo, 25/01/1915, p. 7.
10 O CRIME DO PALÁCIO DAS INDÚSTRIAS. Correio Paulistano, São Paulo, 30/04/1914, p. 2.
11 Idem, Ibidem, p. 2.
211
Foi impossível ter acesso ao processo do caso. De qualquer modo, julgo pertinente atribuir à
competência dos advogados a admiração que causaram no júri. O jornal pouco descreveu sobre
as contradições apresentadas, sobre as alegações de defesa. O que mais chamou a atenção foi a
posição social do primeiro advogado e a desenvoltura discursiva do segundo. O caso foi dado
por encerrado. Norberto e Rino foram soltos, o filho de Felisbino ficou sem a condenação dos
culpados pelo assassinato de seu pai. A construção do Palácio das Indústrias prosseguiu. E o
sonho de Felisbino de ter uma terra para si foi brutalmente interrompido.
Essa foi uma longa e trágica história que guardou mais informações do que o assassinato
de um guarda noturno. Ela nos conta sobre os arranjos econômicos e sociais que se seguiram à
escravidão, que “ficaram muito longe dos ideais” de liberdade que os ex-escravizados nutriram
durante o processo de abolição.12 Antes ou depois do 13 de maio de 1888, a experiência da
liberdade foi muitas vezes discorde do que imaginavam os antigos senhores. Contra a
solidificação de modos de vida e de trabalho que as municipalidades e os antigos senhores
queriam impor, mulheres e homens negros enxergaram na liberdade a possibilidade de
“realização de seus desejos”, como, por exemplo, a posse de terras.13
Cristina Wissenbach escreveu que, após a Abolição, os negros passaram a ocupar
“espaços sociais comuns a outros grupos étnicos da sociedade brasileira” .14 E obvio que essa
distribuição socioespacial não guardou a equidade de oportunidades ou vivências. Ainda assim,
é importante ressaltar que a conjuntura dos anos finais da escravidão contribuiu para intensificar
a mescla entre a população livre e liberta. Maria Odila Leite da Silva Dias demonstrou como
mulheres negras livres, libertas, brancas pobres e escravas conviveram nas ruas da São Paulo
em fins do século X IX .15 Seguindo linha próxima e avançando na temporalidade, Maria Luiza
Ferreira de Oliveira deparou-se com situação semelhante.16
Wissenbach revelou as tensões entre escravos, libertos e livres, brancos ou negros, nos
territórios paulistanos de meados do século XIX.17 A fisionomia da sociedade brasileira
transformou-se gradativamente. Numa sociedade em que os livres tinham de viver à margem,
forjavam-se os homens e mulheres com vontades andarilhas, sujeitos “sem vínculos,
12 COOPER, Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca J. Além da escravidão: investigações sobre raça,
trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação ; tradução Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005, p. 43.
13 WISSENBACH. Maria Cristina Cortez. “Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade possível”.
In: NOVAIS, Fernando A.; SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil. República: da Belle
Epoque à era do rádio. Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 53.
14 Idem, Ibidem, p. 55.
15 DIAS, op. cit.
16 OLIVEIRA, op. cit.
17 WISSENBACH, Maria Cristina Cortez, Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos eforros São Paulo (1850-
1880). São Paulo: Hucitec, 1998.
212
despojados”, que “a nenhum lugar” pertenciam”, e que a toda parte se acomodaram” . Essa era
a sensação dos que viam os fluxos migratórios das populações livres. Na verdade, as
circunstancias socioeconômicas e raciais do país proporcionaram condições de uma
perpetuação e reelaboração das tradições nômades de várias populações do Brasil colonial e
imperial.18
Essas tradições foram comuns aqui e acolá, no Brasil e no restante das Américas. Eric
Foner, ao estudar as experiências dos libertos nos tempos posteriores à guerra civil
estadunidense, identificou um intenso movimento de ex-escravos dentro dos ELA, “Com a
emancipação, parecia que metade da população negra sulista” havia optado pelas estradas. O
direito de ir e vir para onde quisessem e a hora que escolhessem era como que “uma fonte de
orgulho e excitação para os ex-escravos” . Mas migrar não foi uma escolha tão simples,
requerendo uma série de opções e dependendo de outros tantos fatores. “Os negros que de fato
mudaram-se tinham comummente motivos específicos para isso” 19. Eles sabiam o que
enfrentariam depois dessa escolha. O próprio Felisbino teve ciência disso.
Migrar surgia como uma opção sobretudo quando os ex-escravizados julgaram que suas
margens de independência social, autonomia financeira e situação perante os antigos senhores
colocavam em risco suas concepções de liberdade. Mudar-se de um ponto a outro foi uma forma
de lidar com os problemas que a liberdade também lhes impunha. E claro que a resolução dos
conflitos pela liberdade também cabia aos proprietários de terra. De qualquer modo, esses eram
problemas de todos.20
Mas, há que se matizar essa tendência. No geral, durante os anos posteriores à assinatura
da lei Áurea, as migrações foram para regiões não muito distantes do ponto de origem. À
procura por melhores condições de vida, somava-se a busca dos entes familiares que a
escravidão separou. Carlos Eduardo Coutinho da Costa, privilegiando a análise do processo de
migração de negros ex-escravizados e seus descendentes desde a Baixada Fluminense, avaliou
que, do Vale do Paraíba para a cidade do Rio de Janeiro, esses sujeitos elaboraram diversas
formas de sobrevivência e diferentes modos de inserção social. Pautados por experiências
diretas ou ancestrais, suas vidas foram marcadas pelos desdobramentos posteriores à
Abolição.21
Não pretendo fazer um levantamento tão minucioso como o de Costa. No entanto, sei
que a discussão sobre a migração de negros para a cidade de São Paulo ainda esta por ser feita.
Aqui, pretendo tão somente apresentar um fato que a Abolição começou a delinear sobre a vida
citadina. Dos pouco mais de 90 processos-crimes que analisei, encontrei 55 negros naturais de
cidades do interior paulista, como Piracicaba, Pirassununga, Campinas, Jundiaí, Botucatu etc.
Esses homens e mulheres testemunharam conflitos cotidianos pela cidade. A presença desses
sujeitos indica que a cidade de São Paulo também foi um ponto de atração, ainda que diminuto,
no grande quadro migratório do período.
Muitas vezes, os processos-crime não são precisos o suficiente para identificarmos a
procedência dos envolvidos. Na maioria dos casos, a naturalidade é identificada pela frase
“natural deste Estado” . Percebendo que pessoas nascidas na cidade eram identificadas pelas
palavras “natural dessa Capital”, há mais sinais para a hipótese de que a população negra da
cidade contou com um incremento migratório.
Negros também vieram de outros estados. Por exemplo, Cipriano Soares Nascimento de
Jesus tinha vindo de Minas Gerais22, Antônio da Silva23 e João Joaquim Torres24, de
Pernambuco. Amélia de Carvalho25 e Antônio Francisco dos Santos26, haviam chegado de Santa
Catariana, enquanto José Francisco de Oliveira27 era de Sergipe. Foram pessoas naturais do Rio
de Janeiro que os processos-crime mais identificaram. Outras cidades como Mogi das Cruzes,
São Miguel e Vila Conceição de Guarulhos também foram encontradas - todas elas, regiões
rurais que circundavam a cidade de São Paulo.
Embora a sucessão de nomes digam pouco sobre assas experiências, fica evidente a
experiência da migração. Foram muitas vezes catastróficas, como a de Felisbino, mas que, uma
vez contadas, poderemos entender melhor quais foram os processos sociais que as pessoas,
especialmente negros, vivenciaram em São Paulo.
Indagar sobre os aspectos de vidas migrantes é, também, averiguar quais as
possibilidades de melhora de vida que a cidade ofereceu aos ex-escravos, durante a Primeira
República.
22 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): João Antonio de Azevedo. TJ1-1001283116.-1,1895,
ATJSP.
23 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Antônio da Silva. 024M 0912-005503,1910, ATJSP.
24 SÃO PAULO (Estado). Inquérito Policial. Ré(u): Sylvio de Tal. TJ1-1001266617.-3, 1912, ATJSP.
25 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): José Ventura Cachoeira. 010D0961-0066-2, 1909,
ATJSP.
26 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Antônio Francisco dos Santos. 010L0334-0008-2,
1911, ATJSP.
27 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): João Antonio de Azevedo. TJ1-1001283116.-1,1895,
ATJSP.
214
Sobre esse homem calmo, obediente, altivo e taciturno, foi dito ainda que, depois de vir
à cidade de São Paulo, sentou praça em 19 de novembro de 1899 como soldado da polícia do
estado. Ao dar baixa, meses depois, “alistou-se novamente a 23 de junho de 1901” . Conta-se,
também, que no ano de 1913, transferido para Santos, foi encarregado de manter a ordem que
“cinco desordeiros estavam a perturbar”, e que, depois de grande luta com os sujeitos, não
conseguiu evitar a fuga dos “vadios” - que, pelas anotações do perito, aparecem relacionados
com Alberto a partir da seguinte descrição: “soldado da polícia, brigou com seus colegas
desordeiros”30. Depois de cumprido seu dever, quando passava em frente a um botequim ao
cair da tarde, Alberto topou com aqueles cinco homens, que vieram em sua direção, ameaçando-
o de morte. Foi quando ele sacou seu fuzil e, amedrontado, deitou fogo sobre o grupo. Os
homens, feridos, tornaram a fugir e soube-se que os estilhaços do tiro atingiram mortalmente
um sujeito “de grande estima” que passava pelo local.
A história de Alberto não interessa aqui pelo processo que lhe rendeu dez anos e cinco
meses de cadeia, pela morte do homem “de grande estima” ou, ainda, pelo relatório deixar
escapar a palavra “colegas” para identificar a relação entre Alberto e os cinco mandriões. O
interessante desse relato não é o exposto, mas o que a pena do perito médico deixou de contar.
Ao fazer referência à fuga do réu para a cidade do Rio de Janeiro, ao encontro dele com o tio e
à outra fuga para a cidade de São Paulo, o relatório deixa ver algumas estratégias que parecem
comuns aos ex-escravos. Alberto, que nascera por volta de 1881, optou pela migração em 1891,
caminho que não parece ser original, posto que seu tio pode prendê-lo e levá-lo de volta à sua
casa, na cidade do Rio de Janeiro. Ademais, a alternativa ao serviço militar, como estratégia
28 Nome atribuído a um dos pacientes do Manicômio Judiciário do Estado de São Paulo. A cláusula que garante a
disponibilidade dessa documentação exige que não se utilize o nome verdadeiro dos pacientes em publicações ou
em trabalhos de pesquisa. Por esse motivo, substituirei o nome real pelo nome fictício de Alberto. Para o inventário
desse acervo, ver RODRIGUES, Jaime: MIRANDA, Márcia. E. e BOTELHO, Denilson. “O acervo de prontuários
do Manicômio Judiciário do Estado de São Paulo (1903- 1930)”. Revista de Fontes, v. 4, p. 14-71, 2016.
29 APESP, Manicômio Judiciário, Prontuário médico de Alberto, Caixa 6, prontuário n° DAP 59.
30 Idem, Ibidem.
215
para ganhar a vida, também não devia ser novidade para a família do condenado. Pelo menos é
o que indicam sua matrícula em um colégio militar e o fato de ter um irmão tenente da Marinha.
Migração e serviço militar parecem ter continuado a fazer parte dos planos de autonomia de
Alberto: a nova fuga que o trouxe a São Paulo e seu alistamento como soldado da polícia
paulista é um forte indício disso.
Penso que experiências como a de Alberto e a de Felisbino têm muito a informar sobre
as maneiras que homens e mulheres negras viveram a cidade, especialmente o mundo do
trabalho. Elas contêm evidências de que os libertos reelaboraram suas representações de mundo
ao optarem pela migração como forma de construir sua vida em liberdade. E, nesse processo,
são essenciais a avaliação que fizeram sobre suas possibilidades de escolha, as resistência e os
modos pelos quais viveram como parte de um “significado social, cultural e humano de uma
vida, no geral, marcada por discriminações, exclusões e dominação” .31
Somente uma pesquisa nos registros cartoriais da cidade podería atestar a intensidade
dessa migração - o que fugiría do escopo desta dissertação. Mas aquelas trajetórias podem
contar uma nova diáspora negra, que revela um desejo de mudança territorial e uma ânsia pela
transformação das relações em um momento no qual os lugares sociais de brancos e negros
estavam sendo disputados no país a fora. O fim da escravidão revelou que a sociedade brasileira
não podería ser mais entendida a partir da relação senhor-escravo, como vimos no primeiro
capítulo. Talvez o perfil altivo e taciturno de Alberto e o vínculo que lhe foi atribuído pelos
“colegas desordeiros” (colegas por serem, talvez, negros e/ou policiais?) digam muito sobre as
disputas em torno de concepções de cidadania. Essas noções de liberdade e cidadania estiveram
assentadas nas memórias da escravidão, do processo abolicionista e nas expectativas em relação
à República32, tanto da parte dos ex-escravizados como dos que administraram a cidade de São
Paulo.
Assim, ao aqui chegarem, se depararam com uma capital que crescia freneticamente.
Eram prédios demolidos para dar lugar às bonitas e largas ruas. Várzeas e rios aterrados em
prol da higiene, que impunha àqueles sujeitos a necessidade de repensarem suas estratégias de
vida. E disso que este capítulo tratará: dos modos de vida que, perpassados por relações
racializadas, por grande pobreza e por um mercado de trabalho instável, irregular e mal
delineado, foram constantemente repensados frente aos conflitos que as relações de produção
lhes impunham. Se a cidade foi um foco de atração da migração de negros, como foi de
31 MATTOS, Wilson Roberto de. Negros contra a ordem: astúcias, resistências e liberdades possíveis (Salvador-
BA, 1850-1888). Salvador: Eduneb; Edufba, 2008, p. 141.
32 ALBUQUERQUE, op. cit., p. 125.
216
imigrantes europeus, quais foram os conflitos que nela os negros tiverem que enfrentar? Se São
Paulo se queria branca, qual o papel da identidade racial dos brancos no processo de construção
biográfica dos personagens negros? No que eles trabalharam? E, tendo empregos, como
trabalharam? A quais estigmas tiveram que responder? Quais as consequências da experiência
que tiveram com o racismo para a construção da imagem do trabalhador nacional? Essas são
perguntas importantes e complexas, que tentarei responder começando pela discussão sobe o
processo de estruturação de um incipiente mercado de trabalho e sobre as condições econômicas
que negros e brancos facejaram durante os anos nem tão dourados da Belle Epoque paulistana.
O crescimento vertiginoso da cidade de São Paulo atingiu o seu ápice em inícios dos
anos de 1920. Era uma terra de estranhos, cheia de brancos, negros e mestiços, estrangeiros e
brasileiros. Lima cidade empreendedora, aos moldes norte-americanos, com ares de uma
civilidade europeia. Mas, em suas ruas, animais ainda transportavam gentes, coisas e
alimentos.33 Cidade-enigma para seus habitantes que, no turbilhão do progresso, tinham que se
virar para cuidar da barriga que roncava, dos fregueses que se acotovelavam nos balcões das
vendas, ocupar-se das ruas em que trafegavam cavalos, carroças, carros, bondes elétricos,
gentes e polícia. Foram tempos de uma nova disposição coletiva.
O mundo se transformava bruscamente. Depois da Primeira Guerra Mundial, “a
civilização e a sociedade criadas pela burguesia liberal ocidental representavam, tão somente,
uma forma passageira de organização do mundo industrial moderno” .34 Não só a economia
mudava, mas a cultura também. A incipiente modernização da cidade e de suas relações
colocava o problema da destruição do mundo imperial, mais do que o da compreensão do novo
mundo. Não dava tempo, tudo tinha de ser veloz, tecnológico e lucrativo. Essa nova ordem
cultural, como Sevcenko batizou, mobilizava e demandava relações vorazes de consumo e de
trabalho.35
Se antes, em 1888, a abolição da escravidão soou como um presságio otimista de
liberdade, de igualdade, de ampliação dos direitos civis e de constituição do mercado de
trabalho livre, a partir de 1918 o pós-Guerra trouxe o pessimismo, a desesperanças e incertezas
41 PATARRA, Neide. Dinâmica populacional e urbanização no Brasil: o período pós-30. In: Pierucci, Antônio
Flávio de Oliveira (org.). O Brasil republicano (História geral da civilização brasileira). Tomo III, v . l l . 4a ed.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 310.
42 DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo - 1880-1945, 2a ed., São Paulo: Difel. 1975, p. 91.
43 RIBEIRO, História sem fim , p. 227.
44 Idem, Ibidem, p. 227.
45 RIBEIRO, “O mercado de trabalho na cidade de São Paulo nos anos vinte”, p. 346.
46 Daqui em diante tomei como base o livro: RIBEIRO, História sem fim, p. 227-233.
219
47 Entre 1900 e 1910, a média anual de prédios construídos era de mil. Entre 1910 e 1929, esse número aumentou
para quase 3 mil. Só em 1929, a cidade tinha 60 mil prédios, contra os 32.914, de 1910. Cf.: RIBEIRO, História
sem fim, p. 228.
220
o produto industrial brasileiro. São Paulo foi a imagem da terra do progresso, tida como lócus
dos esplendores da modernidade. Uma feira dos desejos na alvorada cosmopolita. Apresentava
em seus horizontes a “esperança bruta dos anseios de conquista de todos os indivíduos” amantes
do imprevisto. Esse ímpeto empreendedor impôs aos seus habitantes uma vertigem em
ininterrupta marcha, que viviam uma vida inquieta, atropelada pelas audácias e pelos violentos
desejos do progresso que queria disciplinar uma civilização inteira.48
Em busca das promessas de trabalho, várias pessoas vieram buscar o progresso que se
anunciava. Ligada umbilicalmente à economia mundial, São Paulo atraiu cada vez mais
pessoas. Já em 1900 a Hospedaria dos Imigrantes, localizada no Brás, começou a admitir a
hospedagem de migrantes que vinham das mais diversas regiões do país. Foram os chamados
retirantes.49 Vieram em trens, a pé, ou de navios. A maioria, composta por pessoas nordestinas,
que chegavam às instalações da hospedaria e, juntos com imigrantes europeus, rastrearam
oportunidades de emprego. Do ponto de vista do capital, esse incremento populacional serviu
como uma espécie de mercado de reserva para a indústria paulistana. Embora pouco se conheça
sobre esse processo, desde 1908 os “retirantes” já compunham uma parcela importante do
público da Hospedaria. Os anos de guerra certamente tiveram um impacto nisso. Mas não só
isso. Aos poucos a política de subsídio da imigração perdeu força e o fluxo migratório ocupou
o vácuo que a combinação entre a guerra mundial e o declínio do subsídio imigrantista deixou.
Em 1914, os migrantes eram 45% dos que entraram na Hospedaria. Esse número aumentou
para 54% no ano seguinte, depois disso, variou entre 15% e 45% do total, anualmente. Entre
esse período, a maior parte deles foi de homens (em tomo de 70%). Thomas Holloway, ao
colher esses dados sobre as matrículas de entradas da Hospedaria do Imigrante, revelou esse
quadro, identificando os estados da Bahia, Ceará e Pernambuco como os locais de origem.50
E difícil acompanhar a trajetória desse fluxo. O que se pode fazer é colher algumas
histórias que contribuam para o entendimento global das aspirações que os migrantes nutriram
no momento de suas viagens. A história de vida de Felisbino, narrada no início deste capítulo,
é um exemplo do que a cidade representou para esses sujeitos que buscaram consolidar suas
liberdades. Os planos do velho guarda noturno de comprar uma terra em São Caetano, para
viver junto com a família de seu filho, não era uma vontade tão distante. E de novo Holloway
quem nos ajuda a iluminar essa interpretação. Acompanhando o censo de 1934, o historiador
48 FLOREAL, Sylvio. Rondas da meia-noite: vícios, misérias e esplendores da cidade de São Paulo. São Paulo:
Boitempo, 2004, p. 20.
49 HOLLOWAY, Thomas H. Immigrants on the Land: Coffee and Society in São Paulo, 1886-1934. North
Carolina: University o f North Carolina Press. Edição do Kindle, Locais do Kindle 1129.
50 Idem, Ibidem.
222
norte-americano descobriu que dos 3.445 proprietários rurais de pequenas extensões de terra,
apenas 2% eram migrantes brasileiros. Embora o número seja baixo, devemos levar em conta
que o processo de imigração europeia racializou a posse da propriedade privada em São Paulo.
Foram eles e suas famílias quem tiveram acesso mais facilitado aos diversos campos de
produção da cidade. Todo aquele desenvolvimento capitalista teve seus recortes raciais, que
não ocorreram no plano das normas de contratação, mas sim nas relações que os sujeitos
estabeleceram, pautadas pela ideia da supremacia branca do bom trabalhador.
Tudo isso não impediu que pessoas como Felisbino Roque tivessem suas esperanças e por elas
trabalhassem na cidade. E não era só ele quem sabia disso. José Benedicto Martins, um dos
colaboradores do jornal O Alfinete , um órgão da imprensa negra paulistana, “dedicado aos
homens de cor”, um ano antes do fim da Primeira Guerra Mundial, em 3 de setembro de 1918,
previu que, terminada a conflagração, os profissionais estrangeiros seriam chamados de volta
para reconstruir a Europa. Por isso, era preciso que “os homens de cor” imitassem os exemplos
das colônias estrangeiras, “procurando mandar ensinar uma profissão para seus filhos ganharem
a vida no futuro” . Partindo da ideia de que “os homens de cor” deveríam articular a educação
de seus filhos com a formação profissional, Martins pensou em alternativas que possibilitassem
à população negra de São Paulo concorrer com os branca pelos postos de trabalho. Homem de
seu tempo, numa sociedade que pensava os perfis de trabalhadores e cidadão baseado nos
conflitos que a ideologia da supremacia branca impôs aos sujeitos, Martins acreditou que os
filhos e netos dos “colonos africanos” nada sabiam porque - e se incluía - “não queremos
aprender um ofício, para ganhar honradamente nossa vida” . O tom racista de seu discurso pode
enganar o leitor de hoje em dia. Na verdade, o articulista estava preocupadíssimo com o futuro
dos filhos, netos e parentes negros da cidade. Seu raciocínio é coerente com a ideologia racial
da época. Isso não quer dizer que todos pensassem da mesma forma, e não pensaram. Mas, ao
nos depararmos com um texto como o de Benedicto Martins, podemos fugir das simplificações
estruturais da ideologia e perceber que as identidades dos sujeitos se formaram em constante
contato com um mundo social e cultural que, bem ou mal, informou-lhes sobre os caminhos
práticos que escolheríam para viver. O racismo perpassa o discurso publicado no jornal, assim
como todos os aspectos constituintes da sociedade; melhor dizendo, a ideologia da branquitude
norteou os discursos sobre o mundo, o qual, Martins pareceu empenhado em mudar.
E por isso que disse que a população negra não podería ficar “contente somente por
obter uma modesta colocação de servente, de uma repartição pública, ou de um escritório” . Era
preciso mais, ele cria que o futuro do progresso também era dos negros: “E preciso que os pretos
tenham a aspiração de querer ser alguma cousa no futuro; para isso é preciso que todos tenham
223
força de vontade, ensinando aos vossos filhos o que nosso pais não puderam aprender” . Era
premente resolver aquela situação de exclusão.
O artigo rompeu com a lógica dos lugares sociais que negros e brancos deveríam seguir.
Imigrantes europeus, brancos nacionais e negros podiam caminhar “com o progresso da [...]
capital”, apesar dos que queriam acreditar no contrário.
Foi comum à imprensa negra falar sobre a situação de precariedade em que viveu boa
parte dessa população. Falavam dos aluguéis caros que a especulação imobiliária da época
impunha52 e sobre a perseguição policial aos negros53 e, contra isso, alguns propuseram a união
entre os negros paulistanos. Por isso José Benedicto Martins tomava “os estrangeiros” como
exemplos: suas associações certamente favoreciam aos seus sócios a aprendizagem de algumas
profissões, facilitando a procura de trabalho “na capital e mesmo no interior” .54 O desejo de
compor fortes associações de negros teve esse caráter: o de unir a população afrodescendente,
de forma a perpetuar práticas de ajuda mútua. A aspiração por maior escolaridade e também
por formação profissional seguiu essa trilha de raciocínio. Funcionaria como uma alternativa à
precariedade estrutural da vida dos negros pobres da cidade, uma precariedade que,
infelizmente, condenou boa parte das associações que existiram.
De qualquer modo, esses são exemplos de homens e organizações que, enquanto o
capital tomava conta da vida das pessoas, quiseram que o progresso da Pauliceia lhes
pertencesse também. O progresso era um fato, dizia outro jornal em 1926:
Esses artigos soaram como uma vontade de romper com a situação da maioria dos
negros paulistanos sem, no entanto, violar as condições em que as mulheres e homens deveríam
viver. Homens tinha que aprender ofícios rentáveis e que possibilitassem suas independências,
enquanto mulheres deveríam estudar para exercerem profissões sempre ligadas à casa. Foram
contradições de um tempo em que a luta por melhores condições de vida vinham articuladas a
noções, também ideológicas, sobre gênero.
Tudo isso para dizer que concepções de raça e de gênero perpassaram a formação do
mercado de trabalho na São Paulo dos anos 1920. Os anos que se seguiram à Abolição foram
marcados por uma extração de mais-trabalho nunca antes visto. Esse processo esteve atrelado
ao tecido das relações sociais e econômicas durante os anos de 1920 na cidade. Assalariadas e
assalariados relacionavam-se com seus patrões, que dependiam dos capitais comerciais e
financeiros, que ajudavam a financiar a expansão das atividades econômicas, possibilitando a
compra de matéria prima. Delineou-se toda uma rede que os sujeitos acabaram por se ligar no
plano ideológico. E dentro desse contexto que podemos falar da emergência de um mercado de
trabalho na cidade de São Paulo, mas que ainda era instável, sempre a depender dos momentos
de expansão da produção. Ainda assim, o trabalho assalariado, em meados da década de 1910,
ganhou papel central nas relações econômicas da cidade. Até a década de 1920, a expansão
industrial nacional se restringiu à produtos ligados à matérias-primas locais, ou dependia da
importação de determinados materiais. Foi o período de submissão do capital industrial ao
comercial, que, em alguma medida, quando impôs necessidades de importação ou exportação,
ditou as circunstâncias de produção industrial. Assim, há que se matizar a expansão industrial.
Mas, por outro lado, houve surtos industriais até 1930, o que não contou para a “substituição
de importações” . Ainda assim, esses surtos tiveram suas diferenças quantitativas e qualitativas,
o que levou, gradativamente, a um reforço da estrutura industrial.56 Mesmo que de forma
parcial, o dinamismo desse setor legou sérios impactos ao cenário econômico da cidade onde
emergia a configuração de um novo mercado de trabalho.
O século XIX terminou e a figura tradicional do proletário e do patrão burguês foi algo
só imaginado. Boris Fausto diz que o proletariado urbano era apenas “uma pequena mancha
num imenso oceano agrário” .57 Mas esse quadro começou a mudar entre os anos de 1907 e
1920. No primeiro ano, eram 14.614 operários industriais na capital paulista, o que representava
10% de todo o “operariado” brasileiro. Em 1920, esse número quase que se multiplica por
56 BARBOSA, Alexandre de Freitas. A formação do mercado de trabalho no Brasil. São Paulo: Alameda, 2008,
p. 188-200.
57 FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social (1890-1920) apud Idem, Ibidem, p. 188-201.
225
quatro, atingindo a marca de 54.935 trabalhadores. Esses dados são de Alexandre de Freitas
Barbosa, que, utilizando-se dos censos industriais dos dois anos, calculou que, então, São Paulo
contribuía com 20% do operariado nacional. Eles compuseram 27% das pessoas ocupadas no
estado, o que representou um número quase dez vezes maior do que a média nacional, de 3%.
Em relação à capital, elas totalizavam 40% da mão de obra. Ora, de partida pode-se perceber
que são números significativos, que refletem a expansão industrial que delineei no início desse
• SR
topico.
Mas esses números foram preenchidos por uma gama de sujeitos que vivenciaram as
transformações do mercado de trabalho paulistano. Em 1890, os imigrantes europeus
compunham 22% dos operários da capital que, saídos das fazendas de café, buscaram a cidade
à procura de melhores salários e condições de trabalho.
Já em 1893, representaram 68% dos trabalhadores ocupados da “quase-metrópole”,
número que baixou para 49,5% em 1920. Nesse último ano, foram 100.821 trabalhadores
oficialmente ocupados, principalmente no setor primário (agricultura, criação e minas), onde
representaram 62,5%. A manufatura/indústria também teve seu peso, com maior relevância
para a metalurgia (onde os estrangeiros compunham 53,2% dos trabalhadores), produtos
químicos (53,4%), alimentação (69,9%) e edificação (64,3%). Em todos esses ramos, pelo
menos até 1920, predominou a mão-de-obra de origem europeia. Nos setores de serviços
também havia esses metecos. Nos transportes e comercio, correspondiam aos valores atinentes
de 62,7% e 63,6% do total que esses setores empregaram. Mas se os estrangeiros eram
predominantes nos empregados nos setores industriais e em dois ramos do setor de serviço, com
o que os brasileiros trabalharam? Foi o setor de serviços que eles preencheram. Eram
carroceiros, telégrafos e telefonistas, onde contavam 85,5% dos ocupados na área. A força
pública também foi um importante polo de concentração de mão-de-obra nacional (90,7% do
total). Os setores de administração pública (78,2%), as profissões liberais (70,8%) e os serviços
domésticos (63,1%) foram os tipos de profissões que mais empregaram brasileiros. Mas em
alguns âmbitos industriais também tiveram relevância, tais como a de beneficiamento de couro,
na da cerâmica, de vestuários e de luxo (tipografia, joalheria, ourivesaria e instrumentos
musicais). Especificamente à sua participação nos serviços domésticos, eles representaram
cerca de 10 mil trabalhadores e quase 10% do total de nacionais ocupados em São Paulo. Os
setores que mais empregaram os brasileiros foram compostos por uma massa urbana de
trabalhadores que não estava submetida à lógica e disciplina industrial. Lavadeiras, doceiras,58
62 CHALHOUB, Sidney & SILVA, Fernando Teixeira. “Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e
trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980”. Cadernos AEL, Campinas, v.14, n. 26, p. 15-45,
2009.
63 Diversos são os estudos que apontam que o trabalho livre não foi inaugurado com a Lei Áurea ou pela imigração,
ver, entre outros, CHALHOUB, Trabalho, lar e botequim; CHALHOUB, Sydney; RIBEIRO, Gladys Sabina;
ESTEVES, Martha de Abreu. “Trabalho escravo e trabalho livre na cidade do Rio: vivências de libertos, “galegos”
e mulheres pobres”. Revista Brasileira de História , v.55, n°8/9, p.85-116, 1985; ALENCASTRO, Luiz Felipe de.
“Proletários e escravos: imigrantes portugueses e cativos africanos no Rio de Janeiro”. Novos Estudos, n°21, p.
30-56, 1988.
64 Comumente associada ao imigrante e à experiência paulista do processo de fim da escravidão, a ideia de
substituição e ruptura acabou por excluir a presença do ex-escravo dos estudos sobre os projetos de reorganização
do mercado de trabalho pós-1888. Cf. LARA, Sílvia Hunold. “Escravidão, cidadania e história do trabalho no
Brasil”. Projeto História, v. 16, p. 25-38 27, 1998, p. 25-38.
65 Idem, Ibidem, p. 28.
228
66 GOMES, Flávio dos Santos; NEGRO, Antônio Luigi. “Além de senzalas e fábricas: um certo número de idéias
para uma irrealista história social do trabalho”. In: GOMES, Flávio dos Santos; DOMINGUES, Petrônio. Da
nitidez e invisibilidade: legados do pós-emancipação no Brasil. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013, p. 25.
67 ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Trad, Magda Lopes. Bauru: EDUSC,
1998, p. 150.
68 CASTELLUCCI, Aldrin A. S. Trabalhadores, máquina política e eleições na Primeira República. 2008 Tese
(Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2008.
69 ANDREWS, Ibidem, p. 151.
229
São Paulo Tramway, Light and Power, Andrews encontrou negros nas duas. O historiador
estadunidense ainda percebeu que houve uma tendência de crescimento de empregados negros,
ainda que lenta, nas duas empresas, entre as décadas de 1920 e 1940.70
Os dados fornecidos pelos Boletins de Ocorrências Médicas do Gabinete de Assistência
Policial de São Paulo dão mais substância às conclusões de Andrews. Entre 1911 e 1915,
homens negros com a classificação de operários contam 8,7% de todos os operários que
apareceram nesse período, em quanto que as mulheres somam 9,52%. Para o intervalo entre
1916 e 1920, pessoas negras do sexo masculino representam 5,9% do total de operários, ao
passo que a mulheres representam apenas 3,8%. Esses números aumentam significativamente
a partir do ano seguinte ao de 1920. Entre 1921 e 1925, encontrei 11,11% de mulheres negras
como operárias e 15,44% homens negros. O número de mulheres pretas e pardas tende a
aumentar entre 1926 e 1930, elas representam 15% desse tipo mão-de-obra feminina que
apareceram nos registros dos boletins. Já os homens negros, para o mesmo período, computam
17,9%.
O aumento do ingresso de trabalhadores afrodescendentes na indústria cresce ainda mais
a partir dos anos de 1930, seguindo essa tendência. O crescimento posterior contou com a ação
do governo Vargas que, em 1931, promulgou a Lei de Nacionalização do Trabalho. O objetivo
da lei foi o de que os estabelecimentos industriais e comerciais tivessem pelo menos dois terços
de sua força de trabalho constituída por brasileiros natos.71
Esse quadro não alterou o predomínio de brancos trabalhando no setor. Para os mesmo
quatro intervalos de anos, os Boletins de Ocorrências revelam que operários brancos naturais
do Brasil do sexo masculino foram também se tornando maioria nas fábricas. Os italianos
brancos representavam 37% do total de operários entre 1911 e 1915, enquanto que brancos
brasileiros compunham 21,5% dessa mão-de-obra. A partir de 1916, os números se invertem.
Os nacionais brancos foram mais contratados, atingindo a casa de 35,3%, no mesmo momento
em que os italianos eram 25,7%. Já vimos que os anos 1920 inauguram uma fase de impulso
industrial na cidade de São Paulo, dele, resultou, entre 1921 e 1925, a contração de muitos
homens brasileiros brancos, que compunham 34% dos trabalhadores, sofrendo um leve declínio
entre 1926 e 1930, atingindo a marca dos 32%. Já os homens italianos, entre 1921 e 1925,
contribuíam com 18,4% do operariado analisado, tendo o seu número levemente decrescido
entre 1926 e 1930 para 17,3%.
4.2. Provisoriedade como regra: padrões ocupacionais de brancos e negros em São Paulo.
Citando Sir John Clapham ao tratar do perfil do trabalhador londrino no início do século
XIX, Thompson afirmou que, embora mais organizados politicamente, nem os carpinteiros
navais, nem os tecelões de seda foram os típicos trabalhadores naquele momento.76 A
diversidade ocupacional dos sujeitos nos grandes centros urbanos, ao que parece, foi enorme lá
e cá. Guardadas as diferenças de lugar e época, desde a década de 1910, São Paulo foi
74 Entre 1911 e 1915, embora componham 8,72% de todos os operários do período, apenas 7,69% de homens
negros se empregaram como operários, porcentagem próxima à de brasileiros brancos (7,09%) e distante da dos
italianos (15,87%), portugueses (12%) e espanhóis (12,64%). Desse modo, há que se relativizar o aumento do
número de negros operários, já que imigrantes europeus tendem à se empregarem mais nas fábricas. Em relação
aos dados referentes ao período entre 1916 e 1930, vale a análise das tabelas constantes nos anexos de VII a XII.
Sobre o período de 1911 à 1915, indico as tabelas constante no anexos V e VI. É com base nelas que construí
minha interpretação.
75 ANDREWS, op. cit.
76 THOMPSON, E. P. “Artesãos e outros”. In: A formação da classe operária inglesa: a maldição de Adão. 2°
Vol. 2a ed. São Paulo: Paz e Terra, 2012, p. 88.
232
caracterizada por inúmeros tipos de trabalhadores. Naquele tempo, o operário talvez fosse a
simbologia ordinária de trabalhador, mas, olhando as evidências deixadas pelas diversas fontes
do período, podemos perceber a diversidade profissional dentro do mundo do trabalho
paulistano. As ruas, botequins, esquinas, praças, cortiços, lojas e restaurantes estiveram repletos
de sapateiros, alfaiates, marceneiros, tipógrafos, pedreiros, padeiros, lavadeiras, cozinheiras,
doceiras e engomadeiras. São profissões que, convivendo mutuamente, construíram modos de
vidas específicos pautados em costumes partilhados por toda uma gama de sujeitos.77
Os Boletins de Ocorrências Médicas produzidos pelo Gabinete de Assistência Policial
de São Paulo entre os anos de 1911 e 1930 informam sobre alguns padrões de ocupação fora
das fábricas. No entanto, são fontes estatísticas que podem nos enganar em certos aspectos. Se
o objetivo desse capítulo é apreender a complexidade das relações entre raça e classe no mundo
do trabalho paulista, a simples apresentação de dados sobre profissões pode passar a ideia de
uma tentativa de padronização das tendências de ocupação profissional dos sujeitos. A mera
sucessão de nomes de profissões daria a impressão de um censo de trabalhadores que, devido
às lacunas deixadas pelas fontes, seria incompleto e não ajudariam no entendimento da vida dos
trabalhadores. O mundo do trabalho, para ser entendido, precisa de algo mais do que só dados
quantitativos e categorizados. Por isso, não classifiquei as profissões que apareceram nos
boletins de ocorrência.
Outro ponto importante a ressaltar é a parcialidade que os dados apresentados. A a
produção documental dessa fonte teve como objetivo o fichamento de indivíduos que, afetados
pela violência urbana, por doenças ou acidentes, foram fotografados em momentos específicos
de suas vidas. Por isso, os dados que se seguirão não podem ser entendidos de forma estanques.
E preciso ter em mente que a precariedade, instabilidade e rotatividade ocupacional vigoraram
durante os anos de constituição do mercado de trabalho brasileiro e, especificamente, o
paulistano. Ser advogado, entre os anos de 1911 e 1930, podia abrir possibilidades para o
exercício do cargo de jornalista. Outro homem, que informou ser pedreiro, por exemplo, pode,
dali há alguns dias, ter feito o serviço de fretes com uma carroça, ou trabalhado como pintor ou
carpinteiro em uma construção, a despeito de sua especialidade de ofício. Mulheres que
apareceram como cozinheiras poderíam, ao mesmo tempo, realizar o serviço de lavadeiras,
costureiras, quitandeiras, tudo para o complemento da renda.
Esse padrão de provisoriedade ocupacional pode ser acompanhado pelas informações
contidas nos Boletins. Levando em conta os 11.045 trabalhadores registrados, em 20,45% não
constam as atividades deles. Entre 1911 e 1930, essa foi a categoria mais frequente. Isso não
quer dizer que mais de 20% da população paulistana tenha ficado sem trabalhar. Desconheço
dados sobre taxas de desempregos na época, mas não acredito que esse índice tenha sido
preenchido somente por pessoas que não exerceram profissões. Ao contrário, esse dado pode
revelar o tamanho da informalidade nesse período. Outro dado que reforça essa conclusão é a
categoria “serviços domésticos”, que abrange 16,86% de todas as pessoas fichadas pelo
Gabinete. Em sua maioria mulheres, foram suas práticas profissionais que compuseram a
segunda maior tendência ocupacional do período, ficando atrás da categoria “não consta” e à
frente da categoria “operário”, que representa 15,75% dos dados amostrais. O caráter genérico
dessas categorias não nos auxilia no entendimento do cotidiano dessas pessoas. No entanto, ele
nos fornece subsídios para perceber como a incerteza ocupacional pairou naqueles anos.
Trabalhar em serviços domésticos pode ter sido sinônimo de profissões como
cozinheiras, doceiras, lavadeiras, copeiras, engomadeiras e uma infinidade de atividades outras.
Todas elas, no entanto, podem ter coexistido. E o que sugerem experiências como a da
espanhola Rita que, fichada pela polícia como “serviço doméstico”, disse que “faz comidinhas
para fora” .78
E preciso que se diga que essa informalidade predominou entre os paulistanos pobres e,
em alguma medida, entre as classes médias também. Pretas, pardas e brancas tiveram que
enfrentar um mercado de trabalho que basicamente lhes ofereceu oportunidades de trabalho no
setor doméstico. Desde 1911, segundo os Boletins, mulheres negras predominaram nas
categorias “serviços domésticos”, “cozinheira”, “lavadeira”, “criada” e “empregada” . Entre
1916 e 1920, os registros revelam que 59,4% das mulheres negras se ocuparam como
domésticas, outros 16,67% como cozinheiras. Do total de criadas apresentadas pelos boletins,
as negras representaram 40%. Foram também a maioria entre as engomadeiras e doceiras.
Esse padrão permaneceu inalterado durante a década seguinte, quando 61,18% das
mulheres negras se empregaram no setor doméstico, entre 1921 e 1925. Embora 37,35% delas
tenham sido inscritas como domésticas entre 1926 e 1930, elas representaram 81,25% de todas
as cozinheiras. Proporção que se manteve elevada entre as categorias de “empregada” e
“lavadeira”, ambas contando com 75%.
Isso não quer dizer que mulheres negras não tenham trabalhado em setores com mais
prestígio social e, talvez, em troca de salários maiores. Apesar de serem a minoria entre as
operárias, os registros referentes a 1916 e 1920 apontam profissões como telegrafistas e
78 SÃO PAULO (Estado). Inquérito Policial. Ré(u): Sebastião de Tal. Sem Código, 1918, ATJSP.
234
tipógrafas. Ainda assim, são dados estatísticos reduzidos, que não chegam a categorizar 1% das
negras presentes nos Boletins de Ocorrência. Isso revela um padrão de ocupação em atividades
menos remuneradas, mas também lança luz sobre um movimento de realocação ocupacional
lento e doloroso.
Lorena Féres da Silva Telles, ao discutir o trabalho doméstico na capital paulista entre
1880 e 1920, diz que o trabalho doméstico foi caracterizado dentro das práticas de contratação.
Houve uma certa especialização entre os “criados” das casas das classes remediadas e médias.79
Eram cozinheiras, copeiras e também criadas que cuidavam de todo o tipo de responsabilidades
domésticas de seus patrões. Apesar da especialização, a frequência desse padrão de ocupação
leva a crer que as atividades mais realizadas por mulheres negras entre 1911 e l 930 tiveram um
caráter sazonal e informal, a depender das condições de contratação e das oscilações
econômicas. Nesse sentido, as seções de emprego dos jornais da época podem nos ser úteis. A
despeito daquele tipo de especialização, muitas mulheres foram contratadas para realizar uma
atividade específica e acabaram por desempenhar outras. Por exemplo, em 1918, uma casa da
rua Stella estava a procura de “cozinheira para o trivial e outros serviços leves” . A “casa de
pequena família”, na rua General Ozório, n° 124, também precisou de uma cozinheira que
fizesse “algum serviço leve” . Outras famílias procuravam boas cozinheiras que deveríam
“deveríam fazer todo o serviço” doméstico e, ainda, dormir “no aluguel” . Outras ainda exigiam
que essas mulheres aceitassem trabalhos como criadas “para todo o serviço” ou como copeiras
destinadas a “mais serviços” . Saber lavar e engomar também foram duas das muitas exigências.
Meninas de “até 12 anos”, foram procuradas “para brincar” com os filhos das casas.80
Ramatis Jacino pesquisou a presença do negro no mercado de trabalho em São Paulo de
1912 a 1920. Valendo-se também dos Boletins de Ocorrências Médicas, chegou a conclusões
semelhantes. Para ele, a presença dos ditos “nacionais” - brancos e negros - foi rodeada por
concepções ideológico-raciais dos empregadores que, desde o século XIX, teimaram em
enxergar somente no trabalhador branco de origem europeia, o “morigerado”, o “ordeiro”,
enfim, o bom trabalhador. Não obstante às concepções sobre a indolência e a fraqueza moral
atribuída aos trabalhadores brasileiros da cidade de São Paulo, empresários e patrões não
puderam renunciar por completo de trabalho desses “nacionais” - “seja pela qualificação que
79 TELLES, Lorena Féres da Silva. Libertas entre sobrados: mulheres negras e trabalho doméstico em São Paulo
(1880-1920). São Paulo: Alameda, 2013, p. 266.
80 EMPREGADOS. Correio Paulistano, São Paulo, 12/01/1918, p. 9.
235
alguns adquiriram, seja porque os estrangeiros não supriram toda a demanda gerada pela
extraordinária expansão industrial da cidade” .81
Isso ajuda a explicar o registro de alguns nomes de homens negros como empregados
das oficinas de jornais de grande circulação, aprendizes de litógrafos, funcionários da Câmara
Municipal, inspetores de bondes, impressores, corretores, sargentos de polícia, jornalistas,
empregados públicos, empregados do comércio, guarda-livros, alfaiates, marceneiros e etc.
Todas elas eram funções tidas como socialmente mais prestigiadas e, talvez, mais estáveis e
rentáveis. No entanto, essas mesmas profissões podem servir como exemplo de posições a que
os negros menos tiveram acesso. Por exemplo, embora existam registros de homens negros
trabalhando como empregados públicos entre 1911 e 1920, menos de 1% dos registros de
negros constantes na amostra foram contratados nessa posição. O mesmo pode ser dito sobre
os guarda-livros, ofício em que somente 0,45% de negros se empregaram.
A segregação dos trabalhadores negros dessas profissões foi a regra. No geral, os
homens negros se ocuparam em modalidades de trabalho menos valorizadas pela cadeia
empregatícia paulistana. Diferente das mulheres negras, entre 1911 e 1915, os padrões de
ocupação profissional dos homens negros não ocuparam setores que empregavam grandes
proporções dessa parcela da população.
As profissões que homens negros mais se empregaram foram as de carroceiro (9,05%),
servente de pedreiro (6,79%) e soldados (5,43%), pedreiros (3,62%) e cozinheiros (3,62%).
Chamou atenção como a categoria genérica “Trabalhador” foi mais atribuída à negros (11,79%)
do que aos brasileiros brancos (2,87%), aos italianos (4,57%) e espanhóis (4,60%). O que pode
indicar o caráter precário e intermitente das profissões que esses negros realizaram. Em
profissões cujos rendimentos poderíam ser maiores e cujo prestígio social certamente o era,
homens negros também trabalharam, mas numa porcentagem infinitamente pequena. Apenas
2,26% dos negros encontrados foram tidos como estudantes. Outros foram empregados do
comércio (1,81%), empregados públicos (0,9%), choferes (0,9%), negociantes (0,45%), alfaiate
(0,45%) ou jornalista (0,45%). Em categorias onde reina a imprecisão das profissões e a
possibilidade de retratarem sujeitos desempregados, os homens negros são absolutamente a
maioria.82 Em alguns casos, entre 1916 à 1920, sua presença, comparada com a dos sujeitos
brancos, foi relevante. Foram cozinheiros (57%), copeiros (50%), agentes de negócio (33,33%),
81 JACINO, Ramatis. O negro no mercado de trabalho em São Paulo pós-abolição (1912-1920). 2012. Tese de
Doutorado, Programa de Pós-Graduação em História Econômica, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, p.
123.
82 São as categorias “ignorada”, “sem aplicação” e a “sem ocupação”.
236
soldados (25%) e cocheiros (25%). Alguns foram empregados públicos (41,67%), mas isso num
quadro onde apenas 0,57% de toda a população se empregou e que somente 2,49% de negros
se empregaram. Como são profissões que, no quadro geral da cidade, empregaram poucas
pessoas, é relevante nos atermos às porcentagens que dizem respeito aos empregos que mais
receberam negros. Além de operário, os boletins de ocorrências apresentam a categoria
trabalhador, onde negros representam 12,32% do total.
Profissões domésticas também apareceram, como “domésticos” (18,52% do total) e
“cozinheiros” (57,89%). A mesma precariedade que pairou sobre as mulheres empregadas nos
serviços domésticos também rondou as vidas desses sujeitos. Foram carroceiros (17,31% do
total), serventes de pedreiros (28,57%), pintores (16,67%), pedreiro (14,29%) e lavradores
(33,33%). Isso denota que os homens negros exerceram diversas funções num mercado de
trabalho cuja marca foi a instabilidade.
Essa afirmação se comprova se percebermos que, para o mesmo período, a maior parte
dos homens (brancos e negros) teve sua profissão categorizada como “não consta” (23,35%), o
que deixa entrever o tamanho da informalidade para a maioria dos homens na capital. Além
disso, a profissão que mais empregou homens foi a de operários, contando com apenas 12,99%
de todos que apareceram nos Boletins, seguidos pela categoria de “Trabalhador” (6,59%) e
“Empregado do Comércio” (4,78%), onde, respectivamente, apenas 8,46% e 1,49% dos negros
foram categorizados.
O quadro de precariedade se repete entre 1921 e 1925, sofrendo apenas uma leve
alteração. Do total de homens aptos ao trabalho que os boletins nos fornecem amostras, apenas
28,01% foram categorizados como operários, seguidos pela categoria “não consta” (18,66%),
só então aparecem categorias como “comércio” (5,77%), “negociante” (3,12%), “escolar”
(3,02%) e “carroceiro” (2,75%). Gradativamente as profissões operárias vão ganhando maior
volume e os homens negros passaram a ocupar mais postos nesses trabalhos. Talvez por isso,
essa categoria apareceu ocupada por 37,50% dos negros presentes na amostragem. Isso indica
que a profissão industrial, a partir dos anos 1920, ganhou importância nos planos empregatícios
dos homens negros paulistanos. Mas, como vimos, isso também se deu em um quadro que
viabilizou a maior contratação de negros, já que estamos falando de um mercado de trabalho
pautado pelas solidariedades étnicas dos patrões brancos. Ainda assim, a maioria desses homens
negros estiveram fora das fábricas. Encontrei soldados da força pública que representam 4,84%
de negros da amostra, padeiros (3,63%), funcionários do comércio (3,23) e carroceiros (3,23%).
Devido à diminuta oferta de trabalhos em que mulheres (negras ou brancas) puderam
competir, os homens apoderaram-se de uma parcela significativa desse mercado de trabalho
237
que privilegiou os brancos na maioria dos cargos e para os de melhores remuneração. Por isso
mesmo que os homens negros cumpriram com uma gama maior de atividades profissionais.
No que diz respeito às mulheres negras registradas pelos Boletins de Ocorrência, as
conclusões de Maria Odila da Silva Dias sobre o século XIX parecem ter certa persistência
também para a análise do mercado de trabalho paulistano entre os anos de 1911 e 1930. Foram
elas que, afora o estigma escravista de suas profissões, com baixas remunerações, parcos
direitos e com condições de trabalho muito precárias, maior estabilidade profissional
encontraram como cozinheiras, criadas, engomadeiras, lavadeiras e copeiras.83 Exercendo essas
funções, entre 1926 e 1930, representaram pouco mais de 48%84 de todas as mulheres negras
que contribuíram para sustentar suas casa e suas famílias que os rendimentos masculinos (ou a
falta deles) não puderam dar conta.
Ainda é importante ressaltar a provísoriedade dos dados fornecidos pelos Boletins de
Ocorrências Médicas. Existem casos em que são óbvias as atribuições que os médicos da polícia
fizeram sobre a profissão de algumas pessoas; em outros, pode ser que elas tenham informado
profissões que não exerciam. De qualquer modo, com essas questões em mente, podemos
aproveitar ao máximo essas informações se as encararmos como instrumento de controle social
que traz em si uma imagem sobre as possibilidades ocupacionais dos sujeitos daquele tempo.
Se não são de todo confiáveis, ao mesclarem referências de cores, nacionalidades e profissões
de gentes as mais diversas, tornam-se fontes verossímeis para o mundo do rabalho e a interação
que se podia ter nele. Só assim podemos estabelecer essa série de aproximações estatísticas
quanto à presença negra nos ramos profissionais da São Paulo daquele tempo.
4.3. Fazendo de tudo para viver: trabalho e precariedade entre os gatunos e vadios
Podemos falar um pouco mais sobre a precariedade estrutural dos empregos que negros
e brancos enfrentaram nos durante a Primeira República em São Paulo. Para termos uma noção
de sua gravidade, é preciso uma análise que ultrapasse as estatísticas. Ela foi vivenciada por
pessoas de carne e osso, que tiveram que improvisar a manutenção de suas vidas a despeito do
desenvolvimento comercial e industrial da cidade. A precariedade foi regra. A abundante oferta
de força de trabalho contribuiu para a diminuição progressiva de salários e para a redução do
poder de barganha dos trabalhadores. Assim, ficou cada vez mais difícil almejar ou negociar
melhores condições de vida. Sendo cada vez mais baixo, esse valor foi sentido por homens e
mulheres que tiveram que se virar em várias profissões para o complemento da renda. Esse
dado foi utilizado pelos patrões para frear qualquer reivindicação.85
A questão foi marcada por desejos forjados ainda no processo da Abolição do trabalho
escravo. Eram vontades e concepções de liberdade que vinham de todos os lados, dos ex-
escravizados e dos ex-senhores. Com isso, os republicanos, inclusive os de 14 de Maio, tiveram
que lidar com uma República que já nascera em meio a um turbilhão de idéias e de crises.
Apenas treze dias depois do golpe militar de 15 de novembro, a população da cidade de
São Paulo teve que lidar com uma greve que começou entre os carregadores de navios em
Santos e, em pouco tempo, estendeu-se aos carroceiros da capital. Para um articulista d ’A
Província de São Paulo, a greve era “compreensível e até justificável” dadas certas condições,
cuja principal era a má retribuição do trabalho. Esperando as mercadorias que deveríam chegar
de Santos, os cocheiros tinham que distribui-las por toda a cidade. Com a greve dos
carregadores, os produtos escassearam. Assim, os cocheiros ganharam força para reivindicar
melhores valores do frete. Não bastou a pressão policial. Além disso, estavam paralisados
devido a uma “longa série de vexames, abusos e extorsões.86
O poder de pressão da categoria era tanto que A Província de São Paulo mudou de tom.
No quarto dia da greve, o mesmo articulista dizia não entender porquê o poder público impunha
aos cocheiros uma tabela de preços. Pressionou o governo para que cedessem logo aos anseios
deles. “Os gêneros de primeira necessidade, carne, feijão e todos os alimentícios tem subido
tanto de preço, que as classes operárias e pobres estão quase privadas deles” .87 O medo foi
grande e não era para menos. Poucos meses antes, os escravizados tinham conquistado sua
liberdade, já negociavam trabalhos e salários e a República, recém proclamada, ainda tinha
muitos a convencer.
Dias depois, o mesmo jornal afirmava que “uma das mais urgentes necessidades do
estado de São Paulo [era] com certeza o aumento da força policial” . “Quando se proclamou a
República, logo que se soube que a antiga ordem das cousas ia ser completamente alteradas” .
Então, os poderes municipais trataram de clamar pelo aumento do contingente de praças.88
Como vimos no primeiro capítulo, essa era uma prática das delegacias imperiais. Aos anseios
85 FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social: 1890-1920. 2a ed., São Paulo: Companliia das Letras, 2016,
p. 47.
86 A PAREDE DOS COCHEIROS. A Província de São Paulo, São Paulo, 30/11/1889, p. 1.
87 A PAREDE DOS COCHEIROS. A Província de São Paulo, São Paulo, 01/12/1889, p. 2.
88 A POLÍCIA.. I Província de São Paulo , São Paulo, 04/12/1889, p. 1.
239
89 LA BATTAGLIA. 04/03/1906 apud BEIGUELMAN, Paula. Os companheiros de São Paulo. São Paulo:
Símbolo, 1977, p. 35.
90 BATALHA, Cláudio. “Limites da liberdade: trabalhadores, relações de trabalho e cidadania durante a Primeira
República”. In: LIBBY, Douglas Colle; FURTADO, JúniaFerreira (orgs). Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil
e Europa, séculosXVII eX IX . São Paulo: Annablume, 2006, p. 97-110.
240
São Paulo. Com o capital excedente aplicado em outros setores, coronéis e burgueses
paulistanos achavam-se num clima de progresso e prosperidade. Mas, em 1914, instaurou-se
uma nova crise, agudizada pela Primeira Guerra Mundial. Negócios ficaram paralisados, os
portos estavam vazios, os comissários sem dinheiro para os fretes ferroviários e a Bolsa em
' 91
reves.
Ainda assim, existem notícias de que, desde 1913, o mercado de trabalho paulistano
empregou muito pouco. Segundo o Departamento Estadual do Trabalho, para que, em 1912, a
ampliação da produção de tecidos fosse possível, calculava-se a necessidade de mais 6.000
operários.9192 Mas essa foi a forma como soaram as falas patronais. O próprio boletim do
Departamento de 1914 registrou que “muitos estabelecimentos fabris haviam sofrido uma
sensível alteração em sua economia, trabalhando os operários apenas dois ou três dias por
semana e recebendo, portanto, um salário consideravelmente reduzido” .93 Os proprietários das
fábricas, durante os anos de crise, tenderam a defender suas taxas de lucro cortando na força de
trabalho.94 Com isso, a cidade ficou “inundada de desocupados”95 e de pessoas que não tinham
como se manter.
A guerra na Europa avançava e, aqui, em agosto de 1914, o estado da pobreza paulistana
foi o de uma calamidade pública. Pessoas não tinham onde trabalhar, faltava-lhes dinheiro para
comer. A situação foi grave, tanto que uma comissão de jornalistas tratou de organizar um
comitê de assistência social para resolver “sobre os meios mais prontos e mais práticos de
socorrer a todos que, devido às suas emergências do momento, se encontram privados de
recursos” . Articularam-se igrejas, comerciantes, industriais, jornais e prefeitura para
arrecadarem donativos para serem distribuídos entre os “distritos de paz” mais necessitados.96
Com baixos salários, vivendo um período de incertezas empregatícias, as pessoas
trabalharam no que apareceu, mesmo que isso significasse exercer mais de uma função ao
mesmo tempo. Gomes Braga, embora criticando a “deficiência de operários” da capital, ficou
admirado com a “facilidade com que o mesmo operário muda[va] de profissão, com que o
mesmo indivíduo é sucessivamente pedreiro, carpinteiro, marceneiro, mecânico” .97
91 CARONE, Edgar. A República velha: instituições e classes sociais. São Paulo: Difel, p. 45-46.
92 BEIGUELMAN, op. cit., p. 73.
93 Boletim do Departamento do Trabalho, 1914, p. 468 apud BEIGUELMAN, op. cit., p. 74.
94 GRESPAN, Jorge Luis. O negativo do capital: o conceito de crise na crítica de Marx à economia política. 2a
ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012, pp. 176-183.
95 Boletim do Departamento do Trabalho, 1914, p. 468 apud BEIGUELMAN, op. cit., p. 74.
96 UMA SYMPATHICA INICIATIVA: em favor dos que se encontram sem trabalho. Correio Paulistano, São
Paulo, 18/08/1914, p. 1. A questão da carestia foi tão grave que noticias sobre essa comissão circulou por várias
edições do Correio Paulistano. Vale conferir as edições dos dias 22, 24, 25 e 26 de agosto de 1914.
97 DO MEU CANTO. Correio Paulistano, São Paulo, 24/01/1914, p. 1.
241
98 CANO, Wilson. Raízes da concentração industrial em São Paulo. 1975. Tese de doutorado. Campinas, Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, 1975, p. 248-249.
99 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Rufino e Francisco de Tal. Caixa 62; Ordem: 3263,
1913, APESP. O nome da vítima muda constantemente durante o processo, ora é Alfredo, ora é Ângelo Anastácio.
242
olaria, disse que apareceram Rufino e Francisco, “ex-camaradas” de Alfredo, “os quais tinham
sido despedidos na véspera do serviço da olaria”, exigindo o pagamento de seus serviços, “que
por esse motivo houve entre Salvador, Rufino e Francisco forte discussão, sendo trocados
insultos de parte a parte” . Foi nessa ocasião que Alfredo Anastácio interveio “armado de cacete,
mas logo foi agredido pelos seus ex-camaradas dando cada um uma cacetada” na vítima.
Salvador era outro italiano, genro de Alfredo, que tinha de pagar o ordenado atrasado de Rufino
e Francisco. A hipótese de serem os réus sujeitos que estavam ali brigando pelos seus direitos
salariais não pesa para as testemunhas que defendiam a versão dos italianos. Apontando um
“preto” e o “mulato claro”, todas as testemunhas disseram que eles não tinham “residência
certa, trabalhando ora aqui ora ali” e, por isso, o delegado pouco importância deu às razões dos
dois negros.
Esse tipo de solidariedade racial que contou para proteger Alfredo, também contribuiu
para minar as oportunidades de defesa de João Benedicto, um padeiro brasileiro. Segundo o
promotor público Cândido Nogueira Motta, existiu no bairro do Carandiru “um doente que esse
achava desenganado pelos médicos” . Sabendo disso, João, “que dizem ser feiticeiro e que
exerce a profissão de curandeiro, foi se apresentar ao dito doente, prometendo curá-lo” . Sobre
o homem alto, de cor preta, foi dito pelas testemunhas que era verdade ele ser feiticeiro e
curandeiro e que “tem tirado vidro do estomago” do doente. O argumento base da acusação é o
de que João é temido por todos por ser curandeiro e “fazer o que quer” .100 Cinco anos depois
do fim da escravidão, ter um negro curandeiro que fazia o que queria nas redondezas das casas
de brancos ainda assustava os brancos. A perseguição a João foi grande ao ponto de forçá-lo a
dizer a Pedra Camargo, moradora no mesmo bairro, que ele tiraria “vidro e cobras da barriga
da mesma dando-lhe um remédio que a havia de deixar louca” .
Foi a partir do interrogatório de João que compreendí um pouco mais o caso. João havia
vindo de Santos passar alguns dias de férias como padeiro. Ao saber da doença de seu amigo,
foi visitá-lo e “como foi escravo algum tempo e viu seus companheiros usar[em] remédios de
roça”, perguntou a amigo se podia tratá-lo. Sobre a acusação de ter tirado vidro da barriga das
pessoas, disse ser mentira, “que nunca foi feiticeiro e curandeiro” e “tem estado empregado em
Santos, no correio e ultimamente numa padaria, donde tirou licença para vir passear em São
Paulo” . A imputação de crime de feitiçaria e a viabilidade de João tirar vidro de barriga alheia
soaram como verdadeira ao delegado que, dias depois, decretou a prisão preventiva de João,
que já havia se mandado de volta para Santos.
100 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): João Benedicto. Caixa 148; ordem: 1034; doc. 28,
1893, APESP.
243
101 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Vicente de Tal. Sem Código, 1913, ATJSP.
102 Idem, Ibidem.
103 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): João Antonio de Azevedo. TJ1-1001283116.-1,
1895, ATJSP.
244
Como Emílio, a maioria dos negros sabia que não podia contar com o arbítrio policial.
São comuns os casos em que policiais foram acusados de, no exercício do seu dever, prender
injustamente ou bater em pessoas negras que trabalhavam pela rua, informados pela pretensa
perversão e indolência de pretos e pardos.104
Sem o apoio da maioria dos brancos de São Paulo e muito menos com a proteção
policial, os negros pobres paulistanos tiveram que desenvolver estratégias que viabilizassem a
salvaguarda de seus empregos. Pude acompanhar uma série de histórias de brigas entre negros
em que a cor da vítima muda constantemente no percurso dos processos. São relatos de conflitos
como o ocorrido no Bexiga entre Benedito Silva e seu companheiro de trabalho Francisco de
Tal. Depois de confessar o assassinato de Francisco, o “preto” Benedito pode contar com a
ajuda de seus “camaradas”, que disseram que ele era um homem “trabalhador” . Quanto mais as
testemunhas atestavam a caráter morigerado de Benedito, mais a cor do acusado clareava. Para
o português Joaquim Braga, Benedito era um “mulato” bem quisto por todos; para a italiana
Helena, “não é verdade que o acusado é preto”, e que todos o conheciam por sair bem cedo para
o trabalho. Ao contrário, o assassinado, Francisco, foi tido como desordeiro, homem dado à
bebida e sem profissão certa. Ele era descrito o tempo todo como um preto metido a valente e
que não respeitava ninguém. O caso terminou com a absolvição de Benedito105. O caso é
exemplar do que tenho buscado argumentar até aqui. Ele envolveu dois negros. Um deles,
Francisco, não parece ter conquistado amizades entre as testemunhas e foi taxado de desordeiro,
porque preto. O outro, Benedito, pode contar com o auxílio de seus companheiros e, como todos
sabiam, foi preciso que a corroboração de seu caráter trabalhador viesse acompanhada do
embranquecimento do réu.
Ao me perguntar sobre como o racismo impactou a vida da classe pobre negra em São
Paulo, vislumbrei situações em que os sujeitos estavam cientes das regras sociorraciais que
permearam suas relações. Isso minou diversas oportunidades para pretos e pardos. Vivendo
num ambiente em que negros eram vistos como inferiores, o elo entre brancos e negros sempre
esteve em tensão. Isso marcou a experiência de Isabel Pereira, acusada porque quis “dar na cara
de seu patrão” . O dono de um armazém despediu Isabel por não ter condições de manter duas
empregadas na loja. Enfurecida, Isabel perguntou porque ela e não a italiana Rosa tinha de ser
dispensada. Contra a decisão de seu patrão argumentou que, por estar a mais tempo na casa,
conhecia todos os clientes e “vendia bem”, ao contrário de Rosa, que chegava à “hora que bem
104 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Luiz Augusto Pires. TJ1 00016[Ilegível]23-25,
1895, ATJSP.
105 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Benedito Silva. Sem Código, 1928, ATJSP.
245
entendesse” . Defendendo sua superioridade profissional perante a italiana, Isabel não pode
conter o ânimo quando foi informada que José Augusto, seu patrão, preferia a estrangeira.
Depois de uma longa discussão, ele “aconselhou a preta que saísse, que deixasse daquilo, que
o caso já tinha feito” .106
Como se vê, perder o emprego num tempo de grande carestia foi motivo suficiente para
que as tensões entre pobres brancos e negros crescessem. Esses desentendimentos, como vimos,
estiveram articulados ao processo de integração econômica do Brasil ao capitalismo
internacional desde o fim do século XIX. A isso somaram-se os embates políticos e sociais
sobre o processo de superação da escravidão e de ampliação do trabalho livre. A junção desses
fatores deu o enquadramento no qual a classe trabalhadora paulista forjou maneiras de lidar
com a precariedade no mercado de trabalho.
No entanto, ao analisar os processos-crime, pude notar que os modos de agir da classe
pobre paulistana eram intrínsecos à ideologia da branquitude, que imaginou a raça paulista
composta por brancos bons trabalhadores, o que aponta para além das peculiaridades culturais
dos pobres. Acompanhei histórias de sujeitos que, vivendo próximos aos seus patrões,
negociando com gente de outras classes ou relacionando-se com pessoas de seu convívio
cotidiano, associaram suas experiências com os discursos raciais em circulação no intuito de se
defenderem dos chavões proferidos por patrões, policiais ou companheiros.
Foi assim que “um negro” foi conduzido à central de Polícia, depois de ter sido visto
“muito próximo” ao local onde se desenrolou uma briga entre o italiano Vicente Noni e o
espanhol Zacarias Fernandes. A bulha teve início quando Zacarias, conversando longamente
com um companheiro, impediu que Vicente desse água aos seus animais no bebedouro
localizado no Largo do Pari. Como o local costumava estar sempre lotado de carroceiros à
espera de serviços, aquele bebedouro também serviu como um cenário onde a concorrência por
trabalho se manifestou em embates físicos entre os trabalhadores. Vicente, irritado pela demora
de Zacarias, deu-lhe uma cacetada com um pedaço de madeira e evadiu-se. Ali também estava
um parceiro de Vicente que, ficando depois da briga, foi preso pelo cabo Adriano, que lhe
chamou de “preto” . As testemunhas foram unânimes em desqualificar o proceder de Vicente,
sempre aproximando a sua figura com a de um “preto” suspeito. Nesse caso, para provarem a
má qualidade do trabalhador italiano, os outros cocheiros espanhóis conferiram ao “preto” a
indicação da culpa do italiano.107
106 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Isabel Pereira. 0070.971.5736-7, 1928, ATJSP.
107 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Vicente Noni. Sem Código, 1915, ATJSP.
246
108 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Pedro de Tal. Sem Código, 1917, ATJSP.
109 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Joaquim Alves. 010G0964 - 0056 -1 ,1 9 0 9 , ATJSP.
110 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Maria de Tal. Sem Código, 1919, ATJSP.
247
111 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Alexandrina Augusta e Manoel Antônio Rodrigues.
010E0093-0082-8, 1909, ATJSP.
112 Encontrei muitos casos onde brancos são taxados de vagabundos e desordeiros, no entanto, suas atitudes foram
relacionadas pelos escrivães e/ou juizes às suas condições de pobreza.
113 SÃO PAULO (Estado). Processos-crime da capital. Ré(u): Josefina Conceição. 011J0765-0174-2, 1907,
ATJSP.
114 SÃO PAULO (Estado). Exame cadavérico. Cadáver de: Helena Maria. Sem Código, 1911, ATJSP.
248
noite sem que saiba de onde venham nem para onde vão” . Embora a penumbra da noite
dificultasse a visão, o narrador teve a certeza de quem pedia o dinheiro. Quem mais lhe daria o
título de “nho”?
Venha comigo”, disse o jornalista.
Protta entrou em um restaurante, trocou o dinheiro e deu uma moeda ao homem: O
que vais fazer com esse níquel?”
Chovia, chovia muito. A penumbra, o frio, a torrente, tudo deixava mais triste as
palavras do interlocutor do jornalista. Parou um instante de ouvir, entrou novamente na casa e
comprou qualquer coisa que desse um jeito na fome do “velhinho” .
Essa história é forte e intrigante. Forte, por ser um testemunho vivaz das condições de
trabalho e moradia de uma parcela da população negra da São Paulo na Belle Epoque. Por de
trás da narrativa está o homem branco que enxerga a realidade, interpreta-a e sabe como
abrandar a sua impetuosidade. Não temos como saber se a história aconteceu realmente. Mas o
que importa é a verossimilhança que ela constrói. E a perspectiva de um homem branco que
garante o sentido interpretativo da história. O narrador assume, pouco a pouco, um papel
inquisitivo e a partir dele podemos ouvir a voz do senhor. E a brancura, nesse sentido, que dá
voz e sentido à experiência do homem negro. O texto descreve ainda uma experiência
contemporânea de trabalho precário, que justifica a negativa do patrão em lhe adiantar o
pagamento. Experiência de carestia, em que o preço do remédio para um neto deve ser pago
pelo valor da comida. Há também a experiência passada do cativeiro, que deixou suas marcas
no rosto e na expressão “nhô branco” . Mas há um outro sentido que essa história assumiu.
Publicada originalmente em um jornal vinculado ao movimento operário dos gráficos, a matéria
é replicada pelo jornal da imprensa negra Elite , um órgão do “grêmio dramático, recreativo e
literário Elite da Liberdade” . Nesse órgão, o sentido do artigo ganhou outros contornos. Ao
apresentar simples história, “banal de todos os dias, de todas as horas”, trouxe uma série de
questionamentos. No que o progresso paulistano contribuiu para a liberdade do negro no pós-
Abolição? Qual o preço da liberdade?
Pobre liberdade!
Na Itália és acorrentada por Mussolini; aqui não és mais que uma simples
palavra em mãos dos ‘pais da pátria’ para te fazerem figurar como tropo da
eloquência indígena nas grandes ocasiões de visitas de reis e príncipes, ou de
interesses de politiqueiros, e atiram-te depois nos calabouços da ‘Lei da
Imprensa’ et similea.
Os redatores desse jornal negro, ao ecoarem a voz dos gráficos, sentiam-se pertencentes
a eles, gráficos como também o eram. A lei da imprensa, que amordaçava os comunistas
sindicalistas, era a mesma que impedia que os jornalistas negros falassem sobre as desventuras
da liberdade pós-1888. Talvez fizesse mais sentido aos leitores do Elite a analogia entre a
escravidão e as péssimas condições de trabalho na São Paulo de 1924, do que tenha feito para
a leitores brancos d’O Trabalhador Graphico. Quem sabe o público fosse o mesmo? São
250
conjecturas que não podemos saber, mas a conclusão parecia servir para todos os que
trabalhavam na cidade.
participaram dos bailes do Elite , que nem todos leram as páginas da imprensa negra ou que os
editores podem ser entendidos como porta-vozes dos trabalhadores negros em São Paulo. Mas
a referência que o Elite fez à bancarrota capitalista e à precariedade da liberdade dos ex-escravos
são indícios suficientes para entender que, pautados por suas experiências de trabalho, eles
tiveram consciência da exploração de suas situações de classe.
A experiência humana torna homens e mulheres em sujeitos históricos. E óbvio que não
se tratavam de sujeitos autônomos, livres das conjunturas econômicas de transformação
capitalista pelas quais São Paulo passou, e, muito menos, independentes das amarras
ideológicas e racistas de seu tempo. No entanto, foram pessoas que
Sabendo que negros pobres experimentaram situações em que o racismo lhes obrigou a
enfrentar adversidades na concorrência por trabalho ou melhores salários, ao ler os processos
criminais, encontrei uma série de crimes que foram consequências das ações desesperadas. Ao
comparar esses processos com os apresentados por Chalhoub120, percebemos que o acelerado
processo de transformações capitalistas também potencializou em São Paulo práticas que
violaram o princípio legal de defesa da propriedade. Acompanhei histórias de pessoas que,
fazendo parte de uma massa de desempregados, encontraram no roubo ou no furto alternativas
para sua subsistência. Desse modo, podem ser entendidas as notícias sobre gatunagem nas
páginas dos jornais de grande circulação da capital. Por exemplo, o Correio Paulistano noticiou
em novembro de 1903 que 109 pessoas haviam sido presas por “gatunagem” .121 Foram crianças
e adultos, homens e mulheres, brancos e negros que, sem ter trabalho ou o que comer, roubaram.
Isso também pude constatar nos processos. E preciso dizer que esses atos devem ser entendidos
como a expressão de tensões e conflitos de um tempo em que a luta pela sobrevivência foi
marcada por grandes desigualdades122.
119 THOMPSON, E.P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser.
Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 182.
120 CHALHOUB, Trabalho, lar e botequim , p. 102.
121 SEM TÍTULO, Correio Paulistano , São Paulo, 03/12/1903, p. 3.
122 CHALHOUB, Ibidem, p. 87.
252
123 BECKER, Howard S. Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1977, p. 53.
253
Como Chalhoub, acredito que devamos entender as histórias contidas nos processos criminais
como “confrontos entre indivíduos ou grupos concretos” que, contraditórios, exerceram
pressões diretas uns sobre os outros, quando se acusaram ou se defenderam. Em larga medida,
os casos descritos pelos processos são exemplares de que as rixas e brigas entre negros e
brancos, e suas lutas pela sobrevivência, fizeram parte de uma “política do cotidiano” que se
formou a partir das experiências dessas pessoas “dentro de um determinado microgrupo
soei ocultural” .124
E perigoso encararmos as acusações de vadiagem, furtos, roubos ou assassinatos como
desvios de caráter dos agentes. Essa perspectiva transmite a imagem de seres anômalos, que
não podem se integrar à sociedade ou não têm capacidade para tal. E como se os “desviantes”
ameaçassem uma sociedade que, bem ou mal, tendería ao equilíbrio.125 Desse modo, qualquer
pessoa que divirja das regras hegemônicas no mundo social passa a ser vista como marginal ou,
por ser infratora das leis, desviante de uma norma que deveria ser a correta.
Vimos, no segundo capítulo, que durante o processo de estabilização política da
República, os jornais paulistas, médicos, legisladores e escritores estabeleceram critérios
normativos que, aos poucos, foram dando sentido ao discurso de que o bom trabalhador, o
trabalhador normal, tinha como característica o asseio, o respeito às regras, o vigor pelo
trabalho e, acima de tudo, uma cultura que lembrasse o progresso europeu. Essa foi uma
perspectiva médica que, preocupada em distinguir os bons dos maus, tentou categorizar os
trabalhadores paulistanos entre os perigosos e os morigerados - e, portanto, necessários. Assim,
tentando qualificar a funcionalidade dos indivíduos em uma São Paulo que não parava de
crescer, ficou cada vez mais difícil entender quem eram os disfuncionais. As noções de desvio
derivam da aplicação de regras e penas aos desviantes que são entendidos dessa forma por que
são vistos assim pelos que criaram os padrões normativos.126
Nem sempre as leis foram transgredidas. Ainda assim, a tentativa de taxar homens e
mulheres negras como criminosos funcionaram como armadilhas contra eles em conflitos com
pessoas brancas. Esse tipo de crime também foi atribuído aos imigrante e brasileiros brancos e,
em muitos casos, eles foram presos injustamente. Porém, quero ressaltar aqui como pessoas da
classe trabalhadora paulistana, informadas pelas regras jurídicas e policiais, articularam
constructos ideológicos, seja para se defenderem, ou para acusar. Os casos envolvendo negros
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como objeto de uma geração de intelectuais, esse empenho tem obtido sucesso, seja
focando nas teorias políticas sobre o liberalismo que tentou universalizar o conceito de cidadão
a partir de estereótipos europeizados, seja priorizando as experiências dos indivíduos
entendidos a partir de suas especificidades de gênero, raça e cultura. Assim, lutando contra as
generalizações e naturalizações racializadas liberais, perceberam que a liberdade, tal como a
cidadania, são constructos sociais que englobam um conjunto de valores elaborados a partir de
práticas sociais e culturais coletivas. Nesse sentido, aquelas noções também assumiram
significados diferentes dos exaustivamente repetidos pelos discursos filosóficos, científicos,
literários e jornalísticos.
1 COOPER, Frederick, HOLT, Thomas C. e SCOTT, Rebecca. Além da escravidão: investigações sobre raça,
trabalho e cidadania em sociedade pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 43.
2 Sobre esses temas, para além dos títulos já mencionados na Apresentação, ver FRANCO, Marielle. UPP: a
redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. São
Paulo: N -l Edições, 2018; DOMINGUES, Petrônio. Uma história não contada: negro, racismo e branqueamento
em São Paulo nopós-abolição. São Paulo: Senac, 2004; MACHADO, Carlos Eduardo Dias. População negra e a
escolarização na cidade de São Paulo nas décadas de 1920 e 1930. 2009. Dissertação de Mestrado, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2009; PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da vida: tráfico interprovincial e alforrias
nos sertoins de sima,BA (1860-1920). São Paulo: Annablume, 2009; TEIXEIRA, Heloísa Maria.. I não-infância:
crianças como mão-de-obra emMariana (1850-1900). 2007. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2007; PASSOS CUNHA, Sílvio Humberto dos. Um retrato fiel da Bahia: sociedade, racismo, economia
na transição para o trabalho livre no recôncavo açucareiro (1871-1902). Tese de Doutorado, Universidade
Estadual de Campinas - UNICAMP, Campinas, SP, 2004; SANTIAGO, Silvana. Tal Conceição, Conceição de
Tal: Classe, gênero e raça no cotidiano de mulheres pobres no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas.
Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2006; TESSARI, Cláudia
Alessandra. Tudinhas, Rosinhas e Chiquinhos: o processo de emancipação dos escravos e os libertos no mercado
de trabalho, Piracicaba (1870-1920). Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
SP, 2000; ARAÚJO, Mariele S. A medida das raças na mistura imperfeita: discursos racialistas em Pedro
Calmom (1922-1933). 2006. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2006;
ARANTES, Erika Bastos. O Porto Negro: trabalho, cultura e associativismo dos trabalhadores portuários no Rio
257
Em seguida, quais podem ser os termos espaciais adequados para estudarmos o pós-
Abolição? Para os três autores, o fim da escravidão impôs às sociedades que a tinham como
principal instituição econômica a necessidade de integração ao mundo político das antigas
metrópoles e, durante esse percurso, muitos dos ex-escravizados se mudaram para lá. Nesse
sentido, lançam as perguntas, “podem Paris, Londres e Nova York tornarem-se locais de
pesquisa tão importantes quanto Mombasa, Kingston e Charleston?” Ou será que sempre o
foram?
de Janeiro na virada do X IX para o XX. 2010. Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense, Niterói,
2010; FRANCISCO, Raquel Pereira. Laços da senzala, arranjos da Flor de maio: relações familiares e de
parentesco entre a população escra\’a e liberta - Juiz de Fora (1870-1900). 2007. Dissertação de Mestrado,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007; PINTO, Bárbara Lisboa. Ideologias e práticas nos tribunais
criminais do Distrito Federal no tratamento de “menores” (1890-1912). 2008. Tese de Doutorado, Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 2008; PEREIRA, Matheus Sen a. Uma viagem possível: da escra\ndão à cidadania.
Quintino de Lacerda e as possibilidades de integração dos ex-escravos no Brasil. 2011. Dissertação de Mestrado,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011.
3 SILVA, Fernanda Oliveira da. As lutas políticas nos clubes negros: culturas negras, cidadania e racialização
na fronteira Brasil-Uruguai no pós-abolição (1870-1960). 2017. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação
emHistória, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017; BRASIL, Eric. Carnavais atlânticos:
cidadania e cultura negra no pós-abolição. Rio de Janeiro e Port-of-Spain, Trinidad (1838-1920). 2016. Tese de
Doutorado. Programa de Pós-Graduação emHistória, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2016;
4 MATA, Iacy Maia. Conspirações da raça de cor: escravidão, liberdade e tensões raciais em Santiago de Cuba
(1864-1881). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2015. Ainda nesse ano de 2018, no XXIVEncontro Estadual ds
ANPUH/SP, tive a oportunidade de assistir a apresentação do trabalho de Bethania Santos Pereira. Desde lá, estou
ansioso para a leitura de sua tese de doutorado. Ver: PEREIRA, Bethania Santos. “Trabalho livre e o Código Rural
haitiano (1826 - 1843)”. Anais do XXIV Encontro Estadual de São Paulo da Anpuh, História e Democracia,
realizado na Escola de Filosofia, Letras e Ciência Humanas da Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, SP,
3 a 6 de setembro de 2018. Disponível em: <
https://www.encontro2018.sp.anpuh.Org/resources/anais/8/1530818666 ARQUIVO Anpuh2018 BethaniaPereir
a.pdf>. Último acesso em: 28 de novembro de 2018.
258
Com tudo isso, pergunto-me qual a importância dos estudos sobre o pós-Abolição em
uma cidade como São Paulo. Já são bem conhecidas as pesquisas que comprovaram o quanto a
polícia e administração pública da cidade relacionaram à população pobre uma hipotética
degradação dos costumes. Combatendo o alcoolismo, os jogos de azar, a criminalidade e as
doenças, os poderes públicos associaram tais práticas aos trabalhadores italianos, espanhóis e
portugueses que chegaram pelo porto de Santos.5 E nítido que os europeus pobres, por
participarem do combativo movimento operário de São Paulo, sofreram fortes represálias. Suas
condições de vida não eram das melhores e eles sofreram com os processos de redefinição de
cidadania que a República buscou emplacar.
No entanto, ao privilegiarem os anos entre 1890 e 1930, muitas obras estiveram focadas
no número cada vez maior de imigrantes e nas reclamações sobre suas condições de vida
veiculadas nos jornais da imprensa operária. Esse esforço historiográfico há muito demonstrou
a importância desse grupo. Ocorre que, privilegiando fontes produzidas por aqueles europeus e
pouco problematizando suas identidades raciais e as de quem compunha o poder público, esses
títulos ajudaram a consolidar a ideia de que os italianos, principalmente, representaram a
imagem ideal da classe trabalhadora de São Paulo. Como afirmou Heloísa de Faria Cruz, “a
força incontestável da presença e dos modos de vida das populações imigrantes [...] contribuiu
para apagar da história e da memória lembranças sobre outros sujeitos representados por
números estatísticos menos avassaladores” .6
Mas essa fenda historiográfica vem sendo forçada por bons escritos. Também
privilegiando aqueles anos, novos estudos colocam sobre a mesa a ideia de que, atreladas às
transformações ocasionadas pelo fim da escravidão e pelo golpe republicano, também
estiveram as experiências de uma importante parcela da população paulistana, composta pelos
ditos “nacionais” .7 Mas que eram esses nacionais? Eram brancos, pardos, pretos, ou pretos de
tão pobres?
5 O clássico estudo de Margareth Rago sobre as tentativas disciplinares e resistências anarquistas figura como um
importante exemplo. Cf.: RAGO, Margareth. Do cabaré ai lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência
anarquista, Brasil: 1890-1930. 4a ed. - São Paulo: Paz e Terra, 2014.
6 CRUZ, Heloisa de Faria. “Apresentação”. In: SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano: São
Paulo epobreza: 1890-1915. 3a ed., São Paulo: Annablume/Fapesp, 2008, p. 10.
7 Sobre isso, é fundamental a leitura de: ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo, (1888-1988).
Tradução: Magda Lopes; revisão técnica e apresentação Maria Ligia Coelho Prado. Bauru, Sp: EDUSC, 1998;
BARBOSA, Alexandre de Freitas. A formação do mercado de trabalho no Brasil. São Paulo: Alameda, 2008;
BORIN, Monique Félix. A Barra Funda e o fazer da cidade: experiências da urbanização em São Paulo (1890-
1920). Dissertação (Mestrado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014; BRITO, Iêda Marques. Samba na
cidade de São Paulo. (1900-1930): um exercício de resistência cultural. São Paulo: FFLCH/Usp, 1986; BUTLE
K im D. Freedoms given, freedoms won: Afro-brazilianinpost-abolition São Paulo and Salvador. New Brunswick
259
Como o leitor pode ver ao longo dessa dissertação, passei boa parte da pesquisa tentando
dar resposta a essa questão. Tendo a cidade de São Paulo entre as décadas de 1890 e de 1930
como locus, busquei identificar os laços sociais, os modos de vida e as experiências de classe
da população negra e pobre, e como essas experiências foram marcadas pela consciência de que
os brancos pobres também tiveram identidades raciais. Não estive sozinho no percurso: no
início da década de 1980, Maria Odila Leite da Silva Dias já havia investgado o quotidiano de
personagens como os que estudei. Ela desvendou os caminhos de mulheres brancas, negras,
pardas, pobres, escravas e forras no comércio popular da cidade da primeira metade do século
XIX, mostrando a importância de lidar com aspectos das relações sociais do dia a dia dessas
personagens como uma forma de entendimento das diversas relações e formas de sociabilização
existentes em São Paulo. A historiadora acompanhou essas mulheres que trabalharam como
lavadeiras ainda durante o Império, que ocupavam as beiras dos rios com seus filhos às costas,
ou como vendedoras ambulantes circulando por toda a cidade, do Bixiga à Rua Direita.8 Desde
o século XIX, as autoridades públicas estavam às voltas sobre quais atitudes tomar a respeito
dos modos de vida de uma população livre, pobre e, especialmente, negra.
/ New Jersey: Rutgers University Press, 1998; DOMINGUES, Petrônio José. Uma história não contada: negro,
racismo e branqueamento em São Paulo no pós-abolição. São Paulo: Ed. Senac São Paulo, 2004; JACINO,
Ramatis. O negro no mercado de trabalho em São Paulo pós-abolição (1912-1920). 2012. Tese (Doutorado em
História Econômica). Programa de Pós-Graduação em História Econômica, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2012; KOGURUMA, Paulo. Conflitos do imaginário: a reelaboração das práticas e crenças afro-
brasileiras na “metrópole do café” (1890-1920). São Paulo: Annablume: FAPESP, 2001; MACHADO, Carlos
Eduardo Dias. População negra e a escolarização na cidade de São Paulo nas décadas de 1920 e 1930. 2009, 154
f. Dissertação (Mestrado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009; MACHADO, Maria Helena Pereira
Toledo. “Sendo cativo nas mas: a escravidão urbana na Cidade de São Paulo”. In: PORTA, Paula (org.). História
da Cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2004; RODRIGUES, Jaime. “Da ‘Chaga Oculta’ aos dormitórios
suburbanos: notas sobre higiene e habitação operária na São Paulo de fins do século XIX”. In: CORDEIRO,
Simone Lucena (org.). Os cortiços de Santa Ifigênia: sanitarismo e urbanização. São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo / Arquivo Público do Estado de São Paulo, 2010; ROLNIK, Raquel. “Territórios negros nas
cidades brasileiras: etnicidades e cidade em São Paulo e Rio de Janeiro”. In: SANTOS, Renato Emerson dos (Org.).
Diversidade, espaço e relações étnico-raciais: o negro na geografia do Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2007;
ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo:
Studio Nobel, FAPESP, 1997; SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza:
1890-1915. 3a ed. - São Paulo: Annablume/Fapesp, 2008; TELLES, Lorena Féres da Silva. Libertas entre
sobrados: mulheres negras e trabalho doméstico em São Paulo (1880-1920). São Paulo: Alameda, 2013; TIEDE,
Lívia Maria. Sob suspeita: negros, pretos e homens de cor em São Paulo no início do século XX. 2006. Dissertação
de Mestrado. Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.
8 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2a ed. rev. São Paulo,
Brasiliense, 1995, p. 25.
260
relacionaram dentro de suas casas e nos ambientes de trabalho. Em ambos espaços, o racismo
esteve presente como justificador das contendas inter e intraclasse.
Nesse trajeto, senti a necessidade de justificar a pertinência conceituai de uma São Paulo
negra. A bibliografia disponível sobre o assunto vai se tornando cada vez mais ampla. Ao
estudar as especificidades demográficas da cidade, é comum nos depararmos com um grande
número de pessoas de origem europeia, cujas identidades remetem a um passado marcado pela
certeza de que mereciam tratamento diferenciado dos negros paulistanos. A própria
historiografia sobre o pós-Abolição acata a conclusão de que São Paulo foi majoritariamente
branca entre os anos de 1890 e 1930. Não está errada. Entretanto, ao iniciar minhas incursões
aos arquivos, sempre lidei com a questão: se os negros aqui existiram, onde moraram e com o
que trabalharam? Autoras e autores me ajudaram a responder essa questão, em parte. Mas
faltava um foco sobre os locais e os modos de trabalhar. Assim, ao lidar com os boletins de
ocorrências médicas produzidos pelo Gabinete de Assistência Policial de São Paulo, entre os
anos de 1911 e 1930, espero ter contribuído para ressaltar a pertinência de pensarmos sobre
uma São Paulo negra, ainda que pese a maciça branca. Enfim, ao lidar com fontes tão diversas,
e instruído por perguntas sobre o pós-Abolição, pude perceber que a cidade foi mais do que um
grande polo de atração imigrante, onde brancos e negros tiveram que saber lidar com as
adversidade de suas vidas e, por isso, travaram contendas uns contra os outros, sempre se
valendo de um contexto cultural mais amplo, que informou racialmente sobre suas práticas.
Agora, ao fim do trabalho, exausto como não podia deixar de ser, espero ter acertado
em algumas de minhas conclusões. Voltando à pergunta de Thomas C. Holt, Rebecca J. Scott
e Frederick Cooper, já consigo entender um pouco melhor quais são as fronteiras espaciais e
temporais do meu estudo sobre o pós-abolição em São Paulo. Essa cidade, apesar do seu
inchaço demográfico causado pelos longos e caros subsídios imigrantistas, surgiu com um
recorte geográfico importante para entender como os anos posteriores à escravidão foram
marcados por tensões, se não inauguradas pelo capitalismo cada vez mais globalizado,
intensificadas por uma República que nada teve de democrática e que, pensando a dicotomia
entre bons e maus cidadãos, hierarquizou racialmente os paulistanos.
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M apa 2 - Fonte: APESP. Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo. Assistência Policial. Registro
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M apa 3 - Fonte: APESP. Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo. Assistência Policial. Registro
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M apa 4 - Fonte: APESP. Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo. Assistência Policial. Registro
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