Obarayi Trechos Do Livro1 PDF

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TRECHOS DO LIVRO

OBARÀYÍ - BABALORIXÁ BALBINO DANIEL DE PAULA


texto de Agnes Mariano

Salvador: Barabô, 2009

Trechos lidos durante o lançamento do livro na 21ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo
Leitura realizada pelos atores Ângelo Flávio e Maria Gal, em 15. 08.10
Apoio na realização do lançamento: Secretaria de Cultura da Bahia / Fundação Pedro Calmon /
Câmara Bahiana do Livro / Editora Barabô
NASCIMENTO

O ano de 1940 já estava perto de acabar. Começou dezembro e aí veio uma quarta-feira. Em
Ponta de Areia, na ilha de Itaparica, parecia um dia como qualquer outro. Os homens levantaram
cedo para ir pescar. As mulheres deram de comer aos meninos e foram mariscar. A meninada se
espalhou. Tudo parecia normal. Só percebeu alguma coisa diferente quem viu Dona Iazinha passar
apressada, junto com a filha Emiliana. Precisaram apertar o passo para chegar rápido ao destino: a
casa de Pedro. Foram direto para o quarto e encontraram Ana deitada, já sentindo as dores. Estavam
todos contentes, porque era 4 de dezembro, dia de Santa Bárbara, de Iansã. Era uma benção a
criança nascer logo no dia da dona dos ventos, das tempestades, do fogo, a mãe e rainha dos eguns,
uma das mulheres de Xangô.
Dali em diante, o menino Balbino Daniel de Paula seria sempre o caçula pintão, alegre, de
temperamento forte. Sendo protegido por Xangô, Balbino teria também alguma missão especial a
cumprir. Não é à toa que Xangô dá a coragem, o senso de justiça e o atrevimento. Mas ele ainda
tinha muita coisa para aprender. Ia precisar de ajuda. Precisava encontrar pessoas que lhe
ensinassem a ser um líder. Uma dessas pessoas morava do outro lado do mar, em Salvador. E
também nesse ano e nesse mês, em dezembro de 1940, ela deu um passo importante. Essa pessoa
era Mãe Senhora.

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MENINO DA ILHA

− Esse menino não é sopa.


Pedro sempre dizia isso e estava certo. Balbino era muito danado. Vivia descalço, de
bermuda, no meio daquele bando de primos. Sequinho, pequeno e inteligente como ele só, não
levava desaforo para casa. Teve um dia, por exemplo, que uma senhora de Ponta de Areia se
desentendeu com a mãe dele. Mesmo sendo novinho, ele percebeu tudo e, quando passou pela tal
senhora, não pediu a benção. Ana reparou e quando chegou em casa falou assim:
− Olhe, você é um menino, é uma criança. Quem brigou fui eu, não foi você. Vá lá na casa
dela tomar a bença.
Ele até obedeceu, mas ao invés de pedir a benção, disse uns desaforos e deu várias
“bananas”. Recebeu na hora uns bofetões e foi escoltado até em casa. A mãe tinha ido pegar água,
mas o pai foi informado da história. Quando Ana voltou da fonte e soube da traquinagem, avisou:
− O saco tá enchendo.
O moleque era brigão, mandão e protetor. Para sobreviver no meio de tanta dificuldade, foi
aprendendo a ser forte como um guerreiro e generoso como um pai. Não aceitava ficar para trás,
mas também não sabia usufruir de nada sozinho. Mesmo não tendo, ele sabia dar. A prima Nina
lembra bem:
− Qualquer coisa pequenininha que dessem a ele, ele me dava um pedaço.
Se visse o tio apertado, sem dinheiro para dar a roupa nova de primeiro do ano, Balbino
avisava às primas para não se preocuparem. Topava qualquer trabalho: carregava água, enchia tonel,
lavava pratos ou ia catar castanha para assar e vender. Quando juntava a quantia, entregava a dona
Iraci, para ela costurar os vestidos na máquina.

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FIM DA INFÂNCIA

A brincadeira preferida era o candomblé. Terminando as festas dos adultos, começava a dos
meninos. No fim da tarde, montavam um pequeno caramanchão na praia. Para os atabaques,
usavam as latas de querosene e o que sobrasse das obrigações dos eguns. Flor era o “pai-pequeno”,
o “ogã” Zezinho ficava responsável pelos “sacrifícios” e quem sabia mais ficava como “pai-de-
santo”: Balbino.
Balbino já tinha 14 anos. A brincadeira continuava e ele reinava como pai-de-santo. Um dia
apareceu Judite, uma prima de Salvador. Como sempre faziam, organizaram a iniciação dela.
Balbino se acomodou no banquinho como se fosse um trono, os meninos nos atabaques, as outras
primas como filhas-de-santo. Começaram a cantar e tocar para Iansã. O pai-de-santo ia repetindo a
cantiga ouvida tantas vezes. Judite começou a rodar, rodar, rodar e, então, veio a resposta: um grito
forte, parecendo um trovão. Era Iansã.
Naquele instante, acabou a infância de Balbino, o tempo das brincadeiras sem
conseqüências. Com aquele grito, todos viram que os orixás atendiam ao seu chamado. Mas ele só
queria ser rei de brinquedo, não queria ser pai de ninguém, então saiu correndo. Ele e todos os
primos foram se esconder embaixo da cama. Tio Olegário veio rápido e teve bastante trabalho para
cuidar da Iansã. Depois prometeu surra a quem brincasse novamente de candomblé.
Assustado, Balbino preferiu sair dali. Foi morar com irmã Maria em Salvador. Na hora de
arrumar a sacola, não teve muito trabalho, bastou reunir uma dúzia de peças de roupas.

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JUVENTUDE

Às vezes Balbino ficava doente, melhorava e ficava doente de novo. Apesar de não entender
o motivo, não se preocupou. Em 1958, chegou a hora de servir ao Exército. Se alistou e foi para o
Tiro-de-Guerra, na Cidade Baixa. A rotina era acordar cedo, fazer os exercícios, marchar e depois
cada qual assumia o seu posto. Morou lá dentro durante três meses. Ajudava na faxina e na cozinha.
Um dia, Balbino estava trabalhando junto com os colegas e, de repente, desmaiou. Passava
um período e acontecia de novo. Vendo a situação, o sargento chamou para conversar.
− Olhe, vou falar com o capitão pra dar dispensa a você. E vá procurar uma casa de
candomblé pra você cuidar de Ogum.
Três dias depois, veio a dispensa. Como Balbino já tinha praticamente completado o tempo,
a família não percebeu nada e nem ele contou sobre a conversa. Muito tempo depois ele soube que
o sargento era feito de santo, filho de Oxóssi.

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NA CABEÇA DE UM HOMEM

Senhora de Xangô tinha sido filha-de-santo de Mãe Aninha. A qualidade do seu Xangô era
Aganju e o seu nome era Obarai. São raras as pessoas de Aganju. Ele é o mais jovem de todos os
Xangôs, é a pedra de fogo que sai de dentro da terra. Desde a morte de Senhora, havia uma lenda no
Afonjá de que, um dia, Obarai voltaria para o axé, mas na cabeça de um homem.
Balbino estava recolhido no terreiro do Afonjá. Já não sabia mais quanto tempo havia
passado. Só sentia agora uma força diferente dentro dele. Dava coragem, calor, vontade de viver.
Um dia, as irmãs-de-santo pintaram ele todo com pontinhos brancos e levaram para fora do runcó.
Quando ouviu os atabaques, se entregou a aquele som. Num outro dia, pintado com pontinhos azuis,
voltou ao mesmo lugar. Saiu também outros dias, sempre trazendo presa na testa a pena vermelha
do ecodidé.
Então chegou o dia do nome. Muita gente estava lá, assistindo ao nascimento do novo filho
de Mãe Senhora de Oxum. Finalmente, depois de 12 dias de isolamento, o Xangô do noviço iria
gritar o seu oruncó. Todos estavam contentes, era mais um Xangô vindo para o Afonjá.
− Obarai.
A palavra saiu com esforço, mas bem alta. Na hora em que o Xangô de Balbino deu o seu
nome, só se viu filha-de-santo rodando. Todas incorporaram. Obarai cumpriu a sua promessa e
voltou para o axé. Os convidados se espremiam para olhar Obarai manifestado em Balbino. No
Afonjá, ninguém lembrava de ter visto um santo dançar tão bonito, tão forte e tão rápido como
aquele.

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CISMADO

Balbino nem sempre conseguia conciliar a vida mundana e a religiosa. Começaram os


problemas. Às vezes queria ir embora do Afonjá, mas recebia ordem para ficar. Às vezes queria sair
com os amigos, mas precisava ir para o terreiro. Foi ficando cismado.
Uma vez era período de festa e Balbino estava no Afonjá. A sua mãe-de-santo avisou:
− Não saia, você não pode ir pra casa.
Resolveu desobedecer e foi embora. De noite, Georgete sonhou com uma moça bonita. No
lugar das pernas, tinha uma cauda. Ela jogava uma corrente para prender o pé de Balbino e trazia
ele de volta. No outro dia, contou o sonho a Mãe Senhora.
– Deus que dê luz – disse a mãe-de-santo.
Na mesma hora foi no pé de Xangô e avisou a Georgete:
− Ele vem já!
No Curuzu, Balbino estava à vontade no meio da rua, brincando com os sobrinhos. De
repente parou e começou a mudar as feições. Arregalou os olhos e esticou o lábio inferior para
frente, fazendo um bico. Arrancou a camisa, o chinelo e soltou um grito. Os meninos ficaram
parados, assistindo, numa euforia só. Quando ele começou a descer a ladeira, um foi em casa avisar
a Maria:
− O santo pegou Rubelino!
Xangô foi na frente, andando rápido, e os meninos seguiram atrás. Desceram a ladeira do
Curuzu, pegaram a Avenida San Martin, caminharam até o Retiro e subiram a antiga ladeira de
pedra do São Gonçalo.
Quando o grupo se aproximou do Afonjá, de longe já se reconhecia Mãe Senhora parada na
porteira. Pegou o filho-de-santo dela nos braços e levou para dentro. Essa cena se tornou comum.

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ILÊ AXÉ AGANJU

Balbino estava tentando se acostumar com a moradia nova, em Lauro de Freitas. Para pegar
uma água, precisavam caminhar um tempão embaixo do sol forte. Dava até dor de cabeça. À noite,
o céu ficava prateado de tanta estrela. Era um deserto, só ouviam algum barulho quando passava um
avião. Um dia, foram ver o mar. Andaram um bocado nas dunas, mas quando chegaram do outro
lado, valeu à pena. Aquele marzão violento, as ondas espumando.
O caboclo Sultão das Matas não esquecia deles. De vez em quando vinha e orientava. Uma
noite, Sultão avisou que a mudança para o terreno definitivo seria na próxima lua. No dia
combinado, reuniu o povo todo e disse para onde deviam ir. Dona Ana, a mãe de Balbino, ficou com
medo. Do lado do mar? Não podia ser. Lá não tinha nada. Para o lado de cá, pelo menos tinha
alguns vizinhos. E se aparecesse um malfeitor? E se viesse algum bicho? Como iam fazer? Só
mesmo a fé para os convencer a seguir as orientações do caboclo.
Para onde olhassem, eles só viam areia. A areia mais branca que já tinham visto. Estavam
morando nas nuvens. Ali perto passava o rio Sapato e por toda parte existiam lagoas. Sultão estava
certo. Eles tinham chegado ao paraíso.

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NA TERRA DE XANGÔ

O avião se aproximou do Benin, na África, e pousou. Essa região já foi conhecida como
Costa dos Escravos. Foi ali perto, em Uidá, que os antigos reis do Daomé venderam milhares de
homens, mulheres e crianças iorubás para traficantes de escravos. Balbino não sabe onde os seus
antepassados viveram, mas pela fé nos eguns e nos orixás, principalmente em Xangô e Iansã, com
certeza era em algum lugar dessa região, entre o Benin e a Nigéria.
Um dia, acertaram para levar Balbino ao templo de Xangô. A viagem seria de carro, para
uma cidade chamada Saketê. Ele caprichou no visual. Se arrumou todo de branco, engomado. No
caminho, entendeu porque Pierre Verger tinha reclamado da sua roupa. Só se via poeira.
Na terra de Xangô, as casas eram de taipa, com chão de barro. Não parecia nada com os
terreiros da Bahia. Era mais simples. Os homens só vestiam uma túnica ou um pano amarrado na
cintura. Muita gente tinha os cabelos trançados. A maior surpresa foram as senhoras com os seios de
fora. Balbino ainda estava assim, sem saber como se comportar, quando o levaram para a casa de
Xangô. Tinha um monte de gente. Verger pediu para ele se comunicar.
− O que é que eu vou dizer pra esse povo? Eles não vão entender nada!
− Isso é com você e Xangô – disse Verger.
Balbino começou a cumprimentar. Se deitou no chão várias vezes, bateu paó para todos e na
frente do peji. Os sacerdotes de Xangô só faziam olhar para ele. Nisso, teve uma inspiração e
começou a cantar. Não se ouvia um barulho, só a voz de Balbino. Era uma cantiga bonita, tinha
aprendido na ilha, com os parentes.
− O kuu lailai / Oku akjo e / Omo / Oku lailai.
Cantou uma vez. A voz tremeu um pouco, por causa da emoção. Cantou de novo. Em volta,
ninguém se mexia. Foi então que, na quarta vez, quando Balbino recomeçou, todos responderam e
cantaram junto. Eles conheciam a cantiga, era uma antiga saudação, falando de saudade, de alguém
que volta de longe. Explicaram que ele tinha sido “bem recebido de volta a sua terra”.

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