Das Virtudes e Dos Vícios de Giotto
Das Virtudes e Dos Vícios de Giotto
Das Virtudes e Dos Vícios de Giotto
Resumo:
As sete virtudes e vícios pintados por Giotto na Capela Arena possuem
uma inspiração filosófica. Diferentemente do que se pensa, não é a
República, de Platão, a origem desta influência. O conjunto de alegorias de
Pádua pode encontrar sua inspiração em Tomás de Aquino.
Palavras-chave: estética; ética; virtudes e vícios; crítica de arte; Giotto
Abstract:
In Arena Chapel the seven virtues and seven vices painted by Giotto have a
philosophical inspiration. But Republic, of Plato, is not the origin of this
influence. The ensemble of allegories of Padua can to find their inspiration
in Thomas Aquinas.
Keywords: aesthetic; ethic; virtues and vices; art criticism; Giotto
1
Doutor em Filosofia pela UERJ. Vínculo Institucional com a Anhanguera/Unipli , com a PUC-RJ e com
a FGV. Email: [email protected]
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Por este motivo, talvez ainda sob a influência da cultura helênica que
informou a civilização romana, o latino Quintiliano afirmou: “Os indoutos
estão distantes das Musas e das Graças”2. Com efeito, não reconhecer razões
sob as ações artísticas revela certa ignorância sobre o que se contempla; de
outro modo, aquele que ignora as causas da obra e da experiência estética
não compreende plenamente a arte e suas origens. Este adágio latino é ainda
bastante útil, especialmente na época da Razão Débil, em que motivos e
explicações racionais estão, por princípio, dificultadas, quando não
totalmente impossibilitadas3. Sob o influxo deste movimento da filosofia
contemporânea, também a arte decai e torna-se pura fruição e deleite, sem
que haja a mais tênue relação entre a produção artística e a contemplação do
espectador. À experiência estética não caberiam discursos que explicitassem
o relacionamento entre a obra de arte e o sentimento experimentado; para a
relação entre o homem e o belo qualquer reconstrução teórica está vedada:
só há devir histórico, só há fruição estética. Todavia, nem Nietzsche admitiu
um absoluto enraizar-se humano na história, nem ele sustentou um fluxo
ininterrupto de impressões na vida humana: “um excesso de história
prejudica o vivente”, disse ele4. Compreender a experiência estética que
ocorre aqui e agora supõe meditar sobre o espírito que a orienta e que, por
este motivo, a antecede e sustenta, antes mesmo de sua introdução na
história, antes mesmo de o devir assenhorar-se do belo.
A fim de refletir sobre os princípios que motivaram o conjunto de
afrescos sobre as virtudes e os vícios de Giotto, na Capela Arena, um artigo
de 1995 apresentou análise controversa destas obras em relação à
arquitetura da capela e ao grupo de virtudes cardeais elencado pelo pintor5.
No trabalho em questão, Glenn Erickson sustenta que: 1) a lista das
virtudes cardeais descrita por Giotto (prudência, fortaleza, temperança e
justiça) é inspirada na relação feita por Platão, em República, IV, 427e; o
autor também adverte 2) que o conjunto de afrescos não possui um critério
inequívoco de interpretação, por causa principalmente da estranha
2
QUINTILIANO. Institutio Oratoria, Líber 1, Caput 10, 21: “Indoctos a Musis atque a Gratiis abesse”.
3
A “Crise da Razão” ou “Razão Débil” caracteriza-se pela negativa à justificação de discursos
elucidativos. Tais discursos compreendem a história em um processo contínuo e unitário de sentido, que
emancipariam a humanidade das mazelas atuais, sob a perspectiva de um “dever ser” irrealizado. Daí que
a “Crise da Razão” seja também chamada de “Fim da História” por muitos autores, um fim do “dever-
ser”: “‘Final de la história’ significa final del historialismo, o sea, de la compreensión de las vicisitudes
humanas como estando insertas en un curso unitario dotado de un sentido determinado, el cual, en la
medida misma en que viene a ser reconocido, se desvela como sentido de emancipación”. VATTIMO,
Gianni. Etica de la interpratación. Barcelona: Paidós, 1991, p.16.
4
NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Consideração Intempestiva: da utilidade e desvantagem da história
para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003, p. 17.
5
ERICKSON, Glenn. Giotto’s virtues. Revista do centro de artes e letras, v. 17, n 1-2, p. 41-48, 1995.
Este artigo obteve repercussão no meio acadêmico brasileiro, contando inclusive, com uma tradução para
a revista Vivência, da UERN: LYCURGO, Tassos. As Virtudes de Giotto. Vivência, v. 26, p. 135-140,
2004.
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platônica das virtudes cardeais, ela não está apta a afirmar de quem Giotto
herda a lista de virtudes. De fato, segundo as palavras do articulista, a lista
de virtudes do pintor não correspondia à lista de Platão e provocava
desconforto na interpretação do conjunto da obra. A razão do descompasso
entre os grupos era simples, mas insuspeita para o professor Erickson: o
pintor italiano não se inspirou no filósofo helênico para listar suas virtudes,
por isso era impossível explicar suas dessemelhanças. De tudo o que se
disse resta ainda um problema: de onde, então, o pintor tomou a inspiração
para as alegorias das virtudes cardeais?
Selma Pfeiffenberger sustenta que a fonte das representações de
Giotto é o poeta latino Cícero. Esta intérprete avança a tese de que o
escritor antigo foi, até aquele momento, o único a propor a Justiça
alegoricamente como rainha, sendo ela a coroa das outras virtudes cardeais:
“he is the only writer to term Justice ‘queen’ of the Virtues”9. Isto
explicaria o porquê de a alegoria da Justiça ter sido caracterizada com
elementos indicativos de nobreza. Giotto a representa como uma
imperatriz, repousada sobre uma cátedra, ornada com régios enfeites,
indicando a superioridade desta virtude e seu domínio sobre as outras. O
pintor também destaca a virtude dando a esta representação um espaço
fisicamente maior do que aquele reservado a outras virtudes cardeais. E a
influência de Cícero sobre os latinos é confirmada quando Tomás de
Aquino, ao elaborar seu Tratado sobre as Virtudes na Suma Teológica (ST
I-II, q. 61), utiliza justamente a lista que Ambrósio tomou emprestado
desse escritor, quando apresenta as virtudes cardeais. Outra pesquisadora
que sustenta a influência do poeta latino na compreensão dos afrescos sobre
as virtudes, de Giotto, especialmente no estudo da alegoria da Justiça, é
Eleonora Beck. Ela afirma que: “a reading of Cicero rather than Aquinas
best contributes to an understanding of Giotto’s enigmatic musical
Justice”10. Portanto, é muito mais simples rastrear a influência que Tomás
de Aquino, Ambrósio e Cícero teriam sobre Giotto, muito antes de se
conseguir justificar que a República é fonte segura dos afrescos sobre as
virtudes cardeais na Capela Arena. Para os que pretendem defender tal tese,
importa encontrar a fonte secreta que traduziu a obra de Platão para os
medievais antes de Ficino.
Para além das questões acerca da fonte de inspiração das virtudes
cardeais de Giotto, há ainda o problema da compreensão da obra em
relação ao conjunto arquitetônico da Capela Arena. Com efeito, o professor
9
PFEIFFENBERGER, Selma. The Iconology of Giotto’s Virtues and Vices at Padua. Tese de Doutorado,
Bryn Mahr College, 1966, V:20. In: BECK, Eleonora M. Justice and Music in Giotto's Scrovegni Chapel
Frescoes. Music in Art, vol. XXIX/1–2, p. 41, 2004.
10
BECK, Eleonora M. Justice and Music in Giotto's Scrovegni Chapel Frescoes. Music in Art, vol.
XXIX/1–2, p. 41, 2004.
145
12
FICINO, Marcilio. Theologia Platonica De Immortalitate Animorum, Líber XVII, Cap. 1, 1-3: “In
rebus his quae ad theologiam pertinent, sex olim summi theologi consenserunt, quorum primus fuisse
traditur Zoroaster, Magorum caput, secundus Mercurius Trismegistus, princeps sacerdotum Aegyptiorum.
Mercurio successit Orpheus. Orphei sacris initiatus fiiit Aglaophemus. Aglaophemo successit in theologia
Pythagoras, Pythagorae Plato, qui universam eorum sapientiam suis litteris comprehendit, auxit,3
illustravit. Quoniam vero ii omnes sacra divinorum mysteria, ne prophanis communia fierent,poeticis
umbraculis obtegebant, factum est ut successores eorum alii aliter theologiam interpretarentur. Hinc turba
Platonicorum interpretum in sex academias se divisit, quarum tres Atticae fuerunt, reliquae peregrinae.
Atticarum vetus sub Xenocrate floruit, media sub Archesila, sub Carneade nova; peregrinarum Aegyptia
sub Ammonio, Romana sub Plotino, sub Proculo Lycia. Verum cum sex fuerint scholae Platonicorum,
tres illae Atticae simul atque Aegyptia, quaecumque de animarum circuitu scripta sunt a Platone, aliter
quam verba sonarent accipiebant; duae vero sequentes ipsam verborum faciem curiosius observarunt. Quo
autem modo hae duae platonica exponant mysteria diligenter recenseamus”.
147
J
Altar
E D
Estultície Prudência
C I
Inconstânci Fortaleza
a
F I
Ira Temperanç
a
J I
Injustiça Justiça
T I
Infidelidade Fé
F I
Inveja Caridade
P E
Desespero Esperança
J
Juízo Final
E D
Esperança Desespero
C I
Caridade Inveja
F I
Fé Infidelidade
J I
Justiça Injustiça
T I
Temperanç Ira
a
F I
Fortaleza Inconstânci
150
a
P E
Prudência Estultície
A
Altar
If we turn around and face the back wall and the Last
Judgment, the virtues, now on the left, flow into the
right hand of Christ and the delights of the blest, while
the vices, now on the right, flow into the left hand of
Christ and the torments of the damned15.
15
LACKEY, Douglas P. Giotto in Padua: A new geography of the human soul. The Journal of Ethics, vol
9, p. 552, 2005.
151
naquele momento. Se não foi Platão, que inspiração filosófica teve o pintor
para escolher as virtudes cardeais e para organizar os afrescos do modo
como fez?
16
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-IIae, q. 61, a. 1, co.: “Em sentido contrário, Ambrósio,
sobre aquilo do Evangelho de Lucas: ‘Felizes os pobres de espírito’, escreve: ‘sabemos que há quatro
virtudes cardeais, a saber: a temperança, a justiça, a prudência e a fortaleza”.
17
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-IIae, q. 112 a. 2, co.: “Foi dito acima que há duas espécies
de Graça: o dom habitual de Deus, e o auxílio de Deus que move a alma para o bem. Se se considera o
dom habitual, ele exige em nós uma preparação, porque não pode haver nenhuma forma senão na matéria
disposta”.
152
5. Considerações Finais
18
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-IIae, q. 61, a. 3, co.: “É assim que muitos falam dessas
virtudes, não só os teólogos como também os filósofos”.
19
GADAMER, Hans-Georg. A atualidade do belo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, p. 20.
153
6. Referências Bibliográficas
LADIS, Andrew. The Legend of Giotto's Wit and the Arena Chapel. The
Art Bulletin, vol. 68, no. 4, p. 581-596, 1986.
RUSKIN, John. Giotto and His Works in Padua. Echo Library, 2007.