SILVA. O Currículo Do ER Na BNCC PDF

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 10

56

O Currículo e o Ensino
Religioso na BNCC:
reflexões e perspectivas
The Curriculum and Religious Education at BNCC:
reflections and perspectives
El Currículo y la Educación Religiosa en la BNCC:
reflexiones y perspectivas

José Carlos da Silva


[email protected]

REVISTA PEDAGÓGICA
Revista do Programa de Pós-graduação em Educação da Unochapecó | ISSN 1984-1566
Universidade Comunitária da Região de Chapecó | Chapecó-SC, Brasil
Como referenciar este artigo: SILVA, J. C. O Currículo e o Ensino Religioso na BNCC: reflexões e perspectivas.
Revista Pedagógica, Chapecó, v. 20, n. 44, p. 56-65, mai./ago.
DOI: http://dx.doi.org/10.22196/rp.v20i44.4441

Resumo: O Ensino Religioso (ER) nos remete a um analyze the challenges and perspectives of RE as a field
tema polêmico e vem despertando o interesse de grupos of knowledge in the National Curricular Common Base
religiosos e educadores da área. O ER é uma das disciplinas - BNCC, as well as to discuss how such discipline can
mais antigas no currículo escolar no país. No Brasil, não be a pedagogical action dialogic, reflexive, critical and
existe oficialmente uma diretriz nacional comum para emancipating?
esta disciplina, capaz de produzir uma ação pedagógica
autônoma e reflexiva, que respeite o pluralismo religioso, Keywords: Curriculum. Religious education. Curricular
a diversidade cultural e étnica de seu povo. O objetivo Base.
deste artigo é analisar os desafios e as perspectivas do ER
como área de conhecimento na Base Nacional Comum Resumen: La Enseñanza Religiosa (ER) nos remite
Curricular - BNCC, bem como discutir como tal disciplina a un tema polémico y viene despertando el interés de
pode ser uma ação pedagógica dialógica, reflexiva, crítica grupos religiosos y educadores del área. El ER es una
e emancipadora? de las disciplinas más antiguas en el currículo escolar
en el país. En Brasil, no existe oficialmente una directriz
Palavras-chave: Currículo. Ensino Religioso. Base nacional común para esta disciplina, capaz de producir
Curricular. una acción pedagógica autónoma y reflexiva, que respete
el pluralismo religioso, la diversidad cultural y étnica
Abstract: Religious Education (RE) refers us to de su pueblo. El objetivo de este artículo es analizar
a controversial theme and has aroused the interest of los desafíos y las perspectivas del ER como área de
religious groups and educators in the area. The ER is one conocimiento en la Base Nacional Común Curricular
of the oldest disciplines in the school curriculum in the - BNCC, así como discutir cómo tal disciplina puede
country. In Brazil, there is no official common national ser una acción pedagógica dialógica, reflexiva, crítica y
guideline for this discipline, capable of producing an emancipadora?
autonomous and reflexive pedagogical action that
respects religious pluralism, the cultural and ethnic Palabras clave: Currículo. Educación religiosa. Base
diversity of its people. The objective of this article is to Curricular.

REVISTA PEDAGÓGICA | V.20, N.44, MAI./AGO. 2018.


57 O Currículo e o Ensino Religioso na BNCC: reflexões e perspectivas

Introdução

O Ensino Religioso (ER) no sistema escolar brasilei-


ro nos remete a um tema polêmico e que vem despertando
o interesse de grupos religiosos e educadores da área. O ER
é uma das disciplinas mais antigas no currículo escolar do
país. Apesar disso, o Estado nunca conseguiu implementar
uma diretriz nacional curricular para esta disciplina.O que
assistimos ao longo da história foi uma ação pedagógica de
doutrinação religiosa com forte viés de igrejas hegemôni-
cas, com destaque para a igreja católica. A educação ficou
refém de grupos religiosos, que difundiam no espaço esco-
lar suas crenças e ideologias.
Hoje percebemos três modelos de ensino religio-
so: o catequético, o teológico e o das Ciências da Religião.
Enquanto o primeiro revela conteúdos e métodos doutri-
nários com o objetivo de expansão de crenças, o segundo
apresenta uma perspectiva de cosmovisão e diálogo com
as diferentes manifestações religiosas, mas ainda com
objetivo de educação moral e de formação religiosa do
cidadão. O último, no entanto, como tentaremos mostrar
neste trabalho, busca os elementos epistemológicos e me-
todológicos para um ensino de ruptura com o viés doutri-
nário e monocultural.
No Brasil, como já afirmamos, não existe oficialmente
uma diretriz nacional comum capaz de produzir uma ação
pedagógica autônoma e reflexiva, que respeite a diversida-
de cultural, étnica e religiosa. Surgiu, todavia, no Estado
de Santa Catarina, em 1996, um movimento de educadores
para construir uma nova concepção de Ensino Religioso.
Surgia neste Estado o Fórum Nacional Permanente do En-
1 A BNCC está no Plano Nacional de Edu-
sino Religioso – FONAPER. A entidade é uma associação
cação através da Lei 13.005 de 25 de junho de professores e pesquisadores que, ao longo de duas déca-
de 2014. Podemos observar, no entanto, que das, vêm construindo um ensino não confessional, ou seja,
a BNCC já aparecia na Constituição Federal
do Brasil de 1988, no seu artigo 210 e na Lei
uma educação pautada no estudo do fenômeno religioso,
de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, no respeito à diversidade cultural, dos direitos humanos e
LDB, nº 9.394/1996. Diz o artigo 210:“Serão da cultura da paz. Tal instituição, no entanto, não conse-
fixados conteúdos mínimos para o ensino guiu ainda, por forças políticas, que suas propostas fossem
fundamental, de maneira a assegurar for-
mação básica comum e respeito aos valores institucionalizadas pelo aparelho estatal. Com a Base Na-
culturais e artísticos nacionais e regionais”. cional Comum Curricular – BNCC, fruto das prerrogativas
(p.43). Na LDB, o artigo 26 afirma: “Os da Constituição Federal Brasileira de 1988 e da Lei de Dire-
currículos do ensino fundamental e médio
devem ter uma base nacional comum, a ser
trizes e Bases da Educação Nacional, nº 9394/1996,1 como
complementada, em cada sistema de ensino trataremos mais adiante, o FONAPER se articula nacional-
e estabelecimento escolar, por uma parte mente para garantir sua concepção pedagógica de Ensino
diversificada, exigida pelas características
Religioso2.
regionais e locais da sociedade, da cultura,
da economia e da clientela.” Percebe-se no meio escolar, que muitas escolas ain-
da convivem com o paradigma do Ensino Religioso pau-
2 Para uma análise das propostas de diretri- tado no modelo confessional. Muitos educadores(as) não
zes curriculares nacionais não confessional
do Fonaper, ver Fonaper, 1996. têm a devida formação na área3. Como consequência desta
realidade educacional temos a reprodução de uma ou mais
3 Conforme Art. 62 da LDB nº 9.394/96, “a tradições religiosas. Romper com este modelo no sistema
formação de docente para atuar na educação
básica far-se-á em nível superior, em curso
escolar constitui um grande desafio para os que concebem
de licenciatura, de graduação plena”.(BRA- uma educação emancipadora e autônoma frente ao apa-
SIL, 1996). relho ideológico do Estado (ALTHUSSER, 2009). Com a
REVISTA PEDAGÓGICA | V.20, N.44, MAI./AGO. 2018.
58 O Currículo e o Ensino Religioso na BNCC: reflexões e perspectivas

BNCC, muitos professores(as) acreditam que um novo pa-


radigma pode surgir na perspectiva de um novo modelo
curricular, que respeite à diversidade religiosa no sistema
escolar.
O desafio de definição de um campo de conhecimen-
to é uma tarefa complexa. O reconhecimento do fenôme-
no religioso como área de conhecimento das Ciências da
Religião, como defende o FONAPER, passa por redefini-
ções epistemológicas e metodológicas para conquistar seu
status e credibilidade no meio científico e escolar. Tal es-
forço vem se desenhando fortemente no meio acadêmico.
Cursos de Ciências da Religião com licenciatura em Ensino
Religioso (ER), curso de formação docente, curso de espe-
cialização e pós-graduação estão formando e qualificando
educadores na perspectiva de um novo paradigma para o
4 Existem dez Estados no Brasil que têm ER no país4.
curso superior de graduação e pós-gra-
duação em Ciências da Religião. São eles:
Nosso objetivo maior é analisar os desafios e as pers-
Centro Universitário Municipal de São pectivas do ER como área de conhecimento na BNCC, bem
José-USJ, Universidade Estadual do Ama- como discutir como esta disciplina pode ser uma ação pe-
zonas-UEA, Universidade Comunitária da
Região de Chapecó, Universidade do Estado
dagógica dialógica, reflexiva, crítica e emancipadora?
do Pará-UEPA, Universidade do Estado do
Rio Grande do Norte-UERN, Universidade O Ensino Religioso como disciplina
Estadual de Montes Claros-UNIMONTES,
Universidade Federal da Paraíba-UFPB,
no currículo escolar
Universidade Federal de Juiz de Forá-UFJF,
Universidade Regional de Blumenau-FURB O Ensino Religioso (ER) nos remete a muitas contro-
e Universidade Federal de Sergipe-UFS.
vérsias e posições políticas e pedagógicas ao longo da his-
tória do país. O ER fazia parte da educação no Brasil desde
o período colonial. A chegada ao território brasileiro da
Companhia de Jesus, em 1549, com o objetivo de catequi-
zação dos povos indígenas, marcaria profundamente a pre-
sença dos ensinamentos do catolicismo em terras brasilei-
ras. Nesse período, o ER era visto como instrução religiosa
e tinha como objetivo a formação moral do indivíduo. Já no
período do Brasil imperial, observam-se ideias do respeito
à diversidade cultural e de crença do povo brasileiro. Tal
evidência, como percebeu Junqueira, aparece na constitui-
ção do império (JUNQUEIRA, 2002, p. 6). Com a procla-
mação da República, em 1889, as ideias dos iluministas e
positivistas passam a influenciar fortemente a educação no
Brasil. Nessa época, o ER já era alvo de debates políticos,
disputas hegemônicas e ideológicas de representantes de
grupos religiosos, educadores e políticos.
O referido período estabeleceu a separação entre a
Igreja e o Estado. Enquanto no período colonial e imperial
assistimos a uma estreita relação entre Estado e Igreja, na
República, por outro lado, surgiria o direito da liberdade
de culto e o reconhecimento do pluralismo religioso. Mas
este deslocamento do Estado é muito relativo, pois ainda
se percebe uma forte presença de diferentes tradições re-
ligiosas nas decisões de como o Ensino Religioso deve ser
concebido nas escolas. Os preceitos legais vigentes hoje
não garantem que a disciplina de ER seja ministrada de
forma não proselitista, conforme determina a Constituição
REVISTA PEDAGÓGICA | V.20, N.44, MAI./AGO. 2018.
59 O Currículo e o Ensino Religioso na BNCC: reflexões e perspectivas

5 A Constituição de 1988 assegura o ER nas de 1988,5 visto que se observam, como afirmado anterior-
escolas públicas quando afirma no seu artigo
210 e parágrafo 1º:”O ensino religioso, de
mente, concepções doutrinárias e confessionais no sistema
matrícula facultativa, constituirá disciplina escolar. Tal indefinição do ER, como área de conhecimento
dos horários normais das escolas públicas científico, tem gerado conflitos entre educadores e a co-
de ensino fundamental.” O dispositivo legal
munidade escolar em geral, uma vez que a falta de uma
seria seguido pela Lei de Diretriz e Base da
Educação Nacional (LDBEN) nº 9394/96 diretriz curricular deixa uma indefinição para o trabalho
no seu artigo 33, quando reforça o direito do pedagógico.
cidadão ao ER nas escolas públicas de ensi- Os anos 90 foram marcados por profundas transfor-
no fundamental e respeitando à diversidade
cultural religiosa e proibindo “quaisquer mações e mobilizações que impactaram no ER como disci-
formas de proselitismo” (Grifos nossos) plina no sistema escolar do país. Já em 1997, no governo
(LDBEN, 1996). O proselitismo religioso é do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002),
a perpetuação de crenças e práticas religio-
sas, que se colocam como verdades únicas.
a mencionada lei, no seu art. 33, sofre alterações pela lei
O proselitismo marcou profundamente o pe- nº 9.475/97. O ER seria agora ministrado por educadores
ríodo colonial e imperial, quando a relação que garantissem o direito do educando à diversidade reli-
do Estado e Igreja eram muito próxima.
giosa e proibido, assim, qualquer forma de proselitismo6.
Era o começo da construção de uma nova perspectiva
6 A Resolução CEB/CNE nº 2/1998 incluiu
o Ensino Religioso como uma das áreas de
curricular para a disciplina de ER. Conteúdos de religião
conhecimento. Essa determinação foi ratifi- ou religiões começam a perder espaço para o paradigma
cada pelas Resoluções CNE/CEB n° 4/2010 do Ensino Religioso como área de conhecimento científico,
e nº 7/2010, que mantiveram o Ensino
ou seja, como estudo do fenômeno religioso e o respeito ao
Religioso como uma das cinco áreas de
conhecimento do Ensino Fundamental de pluralismo cultural.
09 (nove) anos.
O currículo e o Ensino Religioso na
BNCC

Com o processo de redemocratização do país, a partir


de 1985, assistimos a uma série de reformas curriculares,
disputas epistemológicas e concepções de práticas peda-
gógicas. Educadores, políticos e intelectuais discutem e
formulam novos currículos para superar o modelo ditato-
rial curricular vigente. Surgem modelos de currículos mais
próximos dos currículos científicos e autônomos frente ao
aparelho ideológico do Estado ( ALTHUSSER, 2009). As
7 Exemplos de disciplinas com forte com- disciplinas ideologizadas,7 que davam sustentação ao regi-
ponente ideológico eram: Educação Moral me militar, iam aos poucos cedendo lugar a novas discipli-
e Cívica, e Organização Social e Política do
Brasil.
nas no meio escolar.
Ileizi Fiorelli Silva, ao tratar dos desafios institucio-
nais e epistemológicos no ensino, destaca que as reformas
do Estado, nos campos acadêmico e científico, são frutos de
disputas ideológicas e conflitos no seio das classes dirigen-
tes. A educação, segundo ela, é contextualizada (elaborada)
no meio científico e recontextualizada nos aparelhos do Es-
tado. É o que ela chama de “comunicação pedagógica”, com
um “discurso pedagógico”. É, desta forma, que os saberes
são reorganizados, disseminados no meio escolar (SILVA
2007, p. 405 ).
Neste mesmo sentido, Bernsteim, em seus estudos
da educação inglesa, nota que os currículos reproduzem
códigos e “habitus” produzidos na academia e centros de
pesquisa. Por sua vez, tal conhecimento é recontextualiza-
do no sistema escolar. Em outras palavras, o processo de
seleção dos currículos, a classificação, a transmissão e a
avaliação refletem a distribuição do poder e o controle so-
bre os indivíduos. (BERNSTEIM, 1997 )
REVISTA PEDAGÓGICA | V.20, N.44, MAI./AGO. 2018.
60 O Currículo e o Ensino Religioso na BNCC: reflexões e perspectivas

Silva, quando discute currículo no sistema de ensino,


identifica quatro “modelos” de currículos, que se alternam
ou se sucedem nas políticas de reforma educacionais no
país. São eles: currículo clássico-científico, currículo tecni-
cista (regionalizado), currículo das competências (regiona-
lizado) e currículo científico (SILVA, 2007, p. 409). No pri-
meiro modelo, o currículo clássico-científico, as escolas de
ensino médio estavam centradas na política de formação
das elites. Os alunos eram preparados para ocupar as vagas
em curso de maior prestígio social. Já para os estudantes,
oriundos da classe trabalhadora, a educação era voltada
para a formação de uma força de trabalho profissionali-
zante. Prevalecia no meio escolar uma didática de memo-
rização. As identidades pedagógicas eram direcionadas
para um país moderno. No segundo, o currículo tecnicis-
ta (regionalizado), ocorre um esvaziamento científico nas
escolas. Os governos militares, pós 1964, excluem discipli-
nas nas áreas das ciências humanas e introduzem conheci-
mentos aplicados e técnicos, como o estudo da gramática
e não da literatura, fórmulas da física, e não os fundamen-
tos da Física ou da Química, por exemplo. No terceiro, o
currículo da competência, está diretamente relacionado à
reorganização do trabalho, na era da produção flexível, do
trabalhador polivalente na indústria poupadora de força
de trabalho e da acumulação de capital. Era o período do
empobrecimento dos conteúdos e da ciência. Por último,
o currículo científico. O processo de redemocratização do
país alavancou uma série de reformas curriculares pelos
estados. Entram em cena teorias pedagógicas e disputas
para superar o modelo curricular autoritário e esvaziado de
conteúdos e de significados. Surge, assim, o currículo cien-
tífico, em que resgata as disciplinas de Ciências Humanas
e Sociais, o papel do professor intelectual e a escola como
instituição privilegiada e transmissora de cultura (SILVA,
2007, p. 414).
Foi a partir dos anos 60 que surgiu uma das mais im-
portantes teorias no campo da educação, o problema das de-
8 Entre os autores que contribuíram para sigualdades escolares8. Até então, o pensamento nas Ciên-
este novo paradigma na sociologia da educa- cias Humanas era fortemente marcado pela predominância
ção destacamos Bourdieu e Passeron,1977.
das ideias funcionalista e positivista. A escola era entendida
como instituição que integraria o indivíduo ao meio social
e garantiria a superação do atraso social e econômico. Uma
nova sociedade poderia emergir mediante acesso público ao
meio educacional. Os indivíduos competiriam no sistema de
ensino com as mesmas oportunidades. Esta sociedade seria
mais justa, igualitária, meritocrática e moderna, pois permi-
tiria a igualdade de oportunidades para todos. A escola as-
seguraria, deste modo, a inclusão social de todos os jovens e
difundiria o conhecimento científico.
O grande corte epistemológico, que se dá a partir dos
anos 60, foi justamente o de revelar que a origem social
tem um peso determinante no destino escolar do estudante
e na profissão que irá desempenhar na vida adulta. A es-
cola não era mais entendida como espaço democrático, de
REVISTA PEDAGÓGICA | V.20, N.44, MAI./AGO. 2018.
61 O Currículo e o Ensino Religioso na BNCC: reflexões e perspectivas

igualdade de oportunidades, justiça social e transformado-


ra da realidade social, mas o lugar de reprodução das de-
sigualdades sociais. A origem social dos alunos, sua classe,
etnia, sexo, onde morava, entre outros, eram imperativos
para determinar o desempenho escolar e o lugar que iria
ocupar na estrutura social.
Historicamente, as instituições de ensino têm se
omitido em seu papel de educar os docentes como intelec-
tuais. Giroux acredita que isso acontece devido à absorção
da racionalidade tecnocrática, que separa teoria e prática,
ignorando ações pedagógicas reflexivas e criativas do pro-
fessor. O docente tem pouca autonomia no seu trabalho. As
escolas de formação, de acordo com ele, estão preocupadas
em instrumentalizar os educadores para o domínio de téc-
nicas pedagógicas, anulando, assim, a criatividade e a crí-
tica. Em outras palavras, um mero reprodutor de tarefas,
de aplicação de conteúdos e, portanto, acrítico e apolítico.
(GIROUX, 1997, p. 23).
Esse modelo de formação profissional é parte consti-
tutiva da racionalidade técnica, que privilegia o saber teó-
rico em detrimento do saber prático. Tal modelo tecnicista
de educação foi refutado também por Giroux, que o con-
sidera como “ideologias instrumentais”, as quais limitam
a capacidade criadora do professor e reduzem o educador
a simples executor de tarefas burocráticas e cumpridor de
programas curriculares. (GIROUX, 1992, p. 12).
A racionalidade técnica busca criar uma ideologia no
corpo docente para impedir a participação crítica da pro-
dução de projetos políticos e curriculares. Apple verificou
uma tendência crescente da perda da autonomia dos pro-
fessores no desenvolvimento e planejamento dos currícu-
los. Surge uma produção de “pacotes curriculares”, isto é,
o professor é orientado a proceder determinadas tarefas
escolares e transmitir os conteúdos já previamente classifi-
cados. (APPLE, 1996, p. 54 ).
Apesar disso, encontramos concepções emancipató-
rias da escola nas reflexões de diferentes autores da socio-
9 Destacamos Apple (1984), Giroux,( 1997), logia da educação.9 Sabemos que tal perspectiva já aparecia
entre outros. em Marx. A educação, para Marx, era entendida tanto como
um instrumento de inculcação ideológica da classe domi-
nante, quanto um importante instrumento revolucionário,
visto que poderia servir de alavanca para a emancipação
e mudança social, pois o mesmo conhecimento produzido
para o avanço tecnológico, por exemplo, que fragmentou
o trabalho fabril, poderia ser utilizado para romper com a
alienação do trabalho. A teoria crítica reconhece também a
escolarização promovida pelo Estado como parte do apare-
lho ideológico, da estrutura classista, que contribui para a
hegemonia burguesa.
O Ensino Religioso (ER), como disciplina no currí-
culo escolar, passou nas últimas três décadas, por proces-
sos de ressignificação e reestruturação pedagógica. Uma
complexa rede de relações políticas e interesses de gru-
pos configurou o campo do ER no sistema de ensino. Essa
REVISTA PEDAGÓGICA | V.20, N.44, MAI./AGO. 2018.
62 O Currículo e o Ensino Religioso na BNCC: reflexões e perspectivas

configuração de forças, todavia, ainda convive no seio do


aparelho estatal, com disputas pela hegemonia de suas
crenças e conquistas de legitimidade e poder.
O modelo de ER, na perspectiva das Ciências da Re-
ligião, defendida pela Fonaper, ou seja, o conhecimento re-
ligioso como patrimônio da humanidade, que deve expres-
sar conteúdos e diálogos com diferentes matrizes religiosas
e não religiosas, é uma ruptura radical com o modelo de
catequização, que defende o ER de base cristã, de reflexão
acrítica, apolítica e monocultural. A concepção teológica
também se apoia nos princípios do cristianismo, com di-
ferentes matrizes religiosas, mas é um modelo teológico de
consenso, ou seja, está voltada em difundir a moralidade, a
ética cristã e a cidadania.
O modelo de ER defendido pelos fonaperianos, ou
seja, o estudo do fenômeno religioso, constitui uma ruptu-
ra epistemológica e pedagógica. Tal ruptura ganhou força
10 O Ensino Religioso aparece na primeira com a inclusão do ER na BNCC10. Mas as tensões no am-
e segunda versão da BNCC, no entanto, ela biente escolar sobre qual currículo prevalecerá no ER, ou
foi retirada pelo Ministério da Educação
na terceira versão. O Conselho Nacional de seja, confessional ou não confessional, chegou até a Supre-
Educação - CNE debateu pelo país a BNCC. ma Corte11. Em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF)
O Fonaper participou dos debates e pressio- decidiu pela confessionalidade na escola, o que acirrou as
nou os integrantes do CNE a rever a propos-
ta encaminha pelo Ministério da Educação.
incertezas de qual modelo curricular será seguindo nas es-
O resultado da luta do FONAPER foi a volta colas no país.
do Ensino Religioso na BNCC em 2017. Mudanças curriculares são decorrentes da hegemo-
11 A Ação foi movida pela Procuradoria Ge-
nia política de grupos sociais dominantes presentes no
ral da República (PGR), que propunha o ER seio do aparelho do Estado. A BNCC deve ser entendida
não confessional. O STF acabou decidindo, no contexto da crise do modelo de acumulação de capital
em uma votação bastante apertada, pela
confessionalidade do ER. Assim, a Corte Su-
e da reprodução de uma cultura dominante e colonial. O
prema, em 2018, no Acórdão de Ação Direta capital precisa se reproduzir e a escola, como parte do apa-
de Inconstitucionalidade - ADI 4439/DF, relho do Estado, qualificará a força de trabalho necessária
decide: “Ação direta julgada improcedente, para que ele (o capital) se reproduza. Portanto, a escola não
declarando-se a constitucionalidade dos ar-
tigos 33, caput. § 1º e 2º, da Lei 9394/1996, e apenas repassa conhecimento, mas garante que ele, o ca-
do Art.11 § 1º, do acordo entre o Governo da pital, mantenha seu ciclo de reprodução e dominação so-
República Federativa do Brasil e afirmando- cietal. Em outras palavras, o sistema educacional é parte
-se a constitucionalidade do Ensino Religio-
so Confessional como disciplina facultativa
do aparelho ideológica de grupos hegemônicos. É a escola
nos horários normais das escolas públicas que reproduz a força de trabalho e as relações de produção
de ensino fundamental”.(STF de ADI 4439/ na sociedade. O sistema escolar não ensina apenas a ler, a
DF). http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/
noticia Noticia STF /anexo/ADI4439AM.
escrever, a somar e a dividir, o indivíduo também aprende
pdf , em junho 2018. habilidades, regras de bom comportamento e submissão.
A BNCC surge na política educacional como algo
neutro, necessário, inevitável, uma vez que ela atenderia
aos interesses de todos os segmentos sociais. Ela, na ver-
dade, esconde as contradições sociais e os problemas ine-
rentes à sociedade capitalista. O sistema escolar não está
acima de grupos sociais dominantes, pois ele foi e continua
sendo produtor e reprodutor de cultura e desigualdades em
diferentes períodos da história.
O currículo é produto de antagonismos de grupos
sociais, disputas de valores e saberes. A BNCC não é, por
conseguinte, neutra. Ele, o currículo, é resultado de um
processo de seleção de indivíduos ou grupos sociais, que
determinam qual conhecimento é “legítimo”, isto é, o que
pode ou não ser ensinado na escola.
REVISTA PEDAGÓGICA | V.20, N.44, MAI./AGO. 2018.
63 O Currículo e o Ensino Religioso na BNCC: reflexões e perspectivas

Mas o currículo não é apenas produto de conflitos de


grupos sociais e disputas de valores e saberes. Ele pode ser,
também, a expressão de uma força contrária ao movimen-
to do capital. A escola, por exemplo, pode viver, como já
observou Apple, momentos de conflitos ideológicos con-
traditórios ao contribuir para o processo de acumulação
de capital, reprodução da força de trabalho, desigualdades
sociais e, ao mesmo tempo, formar estudantes críticos para
enfrentar a força do capital e construir uma sociedade mais
democrática e indivíduos emancipados. (APPLE, 1996)
Deste modo, percebe-se que a BNCC pode ser, tam-
bém, um movimento contraditório que pode criar, recriar,
destruir ou construir modelos e formas de expressão social,
política e cultural. O Ensino Religioso aparece na BNCC
como um currículo de base científica e parte constitutiva
das ciências humanas, ou seja, um currículo fundado no
paradigma das Ciências da Religião onde o fenômeno reli-
12 Tal concepção pode representar o enfra- gioso é seu objeto de análise.12
quecimento de grupos religiosos, que defen- As transformações do capitalismo globalizado colo-
dem o ER confessional, bem como o declínio
de concepções de intelectuais que defendem cam novos desafios teóricos e metodológicos para o Ensino
o fim da disciplina no sistema educacional Religioso (ER). A sociedade exige novas reflexões, concei-
no país. Entre os intelectuais que defendem tos e interpretações, o que possibilita novas configurações,
o fim do ER nas escolas destacamos Luiz
Antônio Cunha. Em seu artigo intitulado “A
horizontes e potencialidades para a disciplina se consolidar
entronização do ensino religioso na BNCC”, no meio escolar.
no artigo, Cunha critica a FONAPER e seus É preciso pensar o ER como objeto de análise crítica
diretores. Ver Cunha, 2016.
do fenômeno religioso, ou melhor, com suas contradições,
interesses, antagonismos e conflitos ideológicos. Ele deve
romper com a visão colonialista, monocultural e acrítica.
Também precisa estar fundamentada na desnaturalização
do fenômeno social, quer dizer, não cair nas armadilhas de
explicações vagas e superficiais, que perdem de vista a his-
toricidade e a criticidade. Com a BNCC, o Ensino Religioso
tem, assim, o compromisso de desmistificar conceitos na-
turalizantes, que foram instituídos ao longo da história por
interesses políticos e de grupos religiosos.
Diante disso, o(a) professor(a) do ER tem o desafio
de contribuir com a formação de estudantes críticos e re-
flexivos, preparando-os para o exercício de uma socieda-
de mais democrática. Ou seja, é preciso uma pedagogia
emancipadora, comprometida em desconstruir velhos sig-
nificados e práticas colonialistas. Diante disso, é necessá-
rio começar a incluir práticas pedagógicas de alteridade,
de ética e de dignidade humana. O educador tem o desafio
de erradicar relações de poder, dominação e de práticas
de homogeneização cultural. Um profissional habilitado
em ER tem a competência para instigar o seu aluno a pen-
sar criticamente a sociedade e o mundo em que vive, com
suas contradições, os seus antagonismos e os interesses de
classe. Sabemos que para atingir tais objetivos de forma-
ção integral, de ética da alteridade e no diálogo religioso e
não religioso, que são os princípios básicos para trabalhar
a diversidade cultural e, assim, poder enfrentar os proble-
mas de discriminação, de violência, do etnocentrismo e do
preconceito de grupos hegemônicos, o educador precisa
REVISTA PEDAGÓGICA | V.20, N.44, MAI./AGO. 2018.
64 O Currículo e o Ensino Religioso na BNCC: reflexões e perspectivas

fazer uma opção política pedagógica ou reproduzir as ve-


lhas práticas de dominação e reprodução social.
Para que tal prática pedagógica emancipadora ocorra
no ER não basta, certamente, apenas conteúdos críticos,
reflexivos e de perspectiva que respeite a ética e a diver-
sidade cultural e religiosa. Devemos considerar antes o(a)
professor(a) como intelectual transformador, como defen-
de Giroux, ou seja, um ator cujo papel da docência é contri-
buir para a construção de uma sociedade mais justa e indi-
víduos emancipados ( GIROUX, 1997). Isso significa dizer
que cabe a este professor(a) lutar contra práticas pedagógi-
cas tecnicistas e reprodutoras de desigualdade social.

Considerações Finais

A incorporação do Ensino Religioso (ER) na BNCC


não significa o fim de uma cultura de dominação e/ou
reprodução monocultural, pois a escola, como procura-
mos mostrar, é parte constitutiva do aparelho ideológico
do Estado. As relações de dominação religiosa e lutas por
hegemonia continuam a serem reproduzidos na sociedade
e sendo perpetuadas pelo sistema escolar vigente.
Os intelectuais críticos, que estudam o fenômeno
religioso na sua mais diversa complexidade, tem como
desafio a formação de professores comprometidos com
esta nova proposta de diretriz curricular nacional, pois os
professores(as) formados(as) em Ciências da Religião, com
licenciatura em Ensino Religioso, ainda são em pequeno
número no país, pois há poucos cursos de licenciatura, que
fornecem esta formação específica. Caberá ao poder públi-
co oferecer cursos de capacitação continuada para tentar
amenizar e combater o grande déficit existente nesta área.
Outro grande desafio para o Ensino Religioso é a falta
de material didático. Este recurso pedagógico é ainda bas-
tante limitado e, quando existe, seu conteúdo é reprodutor
de determinada matriz religiosa ou determinada etnia, gê-
nero e sexualidade. As instituições de ensino superior terão
que desenvolver ações de incentivo na produção dos referi-
dos materiais. O desafio é grande, uma vez que as universi-
dades ainda convivem com uma tradição bacharelesca, ou
seja, muito mais focada na pesquisa do que na formação
de professores com a produção de suporte pedagógico aos
licenciados.
Apesar dos grandes desafios que são colocados para
o ER, a BNCC pode ser o começo de uma renovação epis-
temológica e metodológica para tal disciplina, isto é, uma
educação pautada, como vem propondo o FONAPER
ao longo dos seus mais de 20 anos, nos fundamentos do
pensamento científico. Para que isso se torne realidade, é
preciso que o ER se articule com outras disciplinas e o(a)
professor(a) se torne um instrumento de perpetuação de
uma pedagógica emancipadora. Ou seja, uma pedagogia
para a formação de um ser humano critico, reflexivo e su-
jeito de sua história.
REVISTA PEDAGÓGICA | V.20, N.44, MAI./AGO. 2018.
65 O Currículo e o Ensino Religioso na BNCC: reflexões e perspectivas

Referência

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do


Estado. 10ª edição, Paz e Terra, 2009.

APPLE, Michael. Ideologia e currículo. São Paulo:


Brasiliense, 1992

_______. Educação e Poder. São Paulo: ARTMED,


1996.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação


Nacional nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996.
Brasília:Diário oficial da União, 1996.

BERNSTEIN, basil. A propos Du curriculum. In: Forquin,


J.C (org). Les sociologues de l’education américain
et britanniques; présentation et choix de textes.
Paris, Bruxelles: De Boeck Université/INRP, 1997.

BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR. Ministério da


Educação. 2ª versão preliminar. Brasília. 2016.

BOURDIEU, Pierre and PASSERON, Jean-Claud.C.


Reproductin, Beverly Hills: Sage, 1977.

FONAPER. Proposta de diretrizes Curriculares


Nacionais, para o Ensino Religioso, 1996.

CUNHA, Luiz Antônio. A entronização do ensino


religioso na BNCC. Revista Eletrônica, campinas, v.37,
nº134, 2016.

GIROUX, Henry. Os professores como intelectuais.


Rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem.
Porto alegre: Artmed, 1997.

GIROUX, Henry. Colégio, Crítica e Política Cultural,


3ª edição, São Paulo: Cortez, 1992.

JUNQUEIRA, Sergio Rogério Azevedo. O processo


de escolarização do Ensino Religioso no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 2002.

SILVA, Ileizi Fiorelli. A sociologia no ensino médio:


os desafios institucionais e epistemológicos para
a consolidação da disciplina. Rio Grande do Norte:
Cronos, 2007.

Recebido em: 24/06/2018


Aprovado em: 16/08/2018
Publicado em: 31/08/2018

REVISTA PEDAGÓGICA | V.20, N.44, MAI./AGO. 2018.

Você também pode gostar