Jaggar Bordo PDF
Jaggar Bordo PDF
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Jaggar
e Susan R. Bordo
Gênero, Corpo,
Conhecimento
Tradução de
BRITTA LEMOS DE FREITAS
EDITORA
ROSADOS
TEMPOS
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
CDD-110
97-0236 CDU-11
Revisão técnica:
Maria Carneiro da Cunha e Carmem Olívia de Castro Amaral
EDITORA AFILIADA
ISBN 85-01-04345-1
Introdução 7
As colaboradoras 346
Introdução
assim que este volume sirva de guia para alguns paradigmas disciplinares
centrais, bem como para as reconstruções feministas dos mesmos. Além de
permear várias disciplinas, a coletânea também percorre um espectro dos
vários compromissos teóricos e ideológicos em torno dos quais as feministas
contemporâneas têm se situado. Nenhuma ortodoxia intelectual ou política
constitui uma base invisível deste volume. Em vez disso, ele contém muitas
perspectivas diferentes — "feministas marxistas", "feministas liberais",
"feministas culturais" e "feministas pós-modernas" de variadas posturas —
embora as aspas indiquem o desconforto das editoras com esses rótulos,
mesmo ao reconhecer sua utilidade preliminar. Os ensaios não se referem
explicitamente uns aos outros, mas todos abordam de diferentes maneiras
temas recorrentes: muitas vezes podem vir justapostos, numa argumentação
implícita. Dessa forma, o volume não só mapeia novos territórios que as
feministas estão balizando dentro de suas disciplinas, mas também introduz
algumas das mais importantes discussões, divisões e concordâncias que
surgiram do feminismo ocidental na última década.
Há uma unidade temática fundamental subjacente à diversidade disciplinar,
metodológica e ideológica dos artigos. Essa unidade, discernível sob a interação
de vários temas secundários, consiste numa emergente constatação feminista
a concepções sobre o conhecimento e a realidade que dominaram a tradição
intelectual do Ocidente pelo menos desde o século XVII.
O citado século foi na Europa um período de mudança econômica e
inquietação social. Foi marcado pelo desenvolvimento contínuo do
capitalismo mercantil, pela dominância crescente da cidade sobre o campo e
pelo estabelecimento do protestantismo em grandes áreas do continente
europeu. E, não por mera coincidência, o século XVII foi também um período
de revolução intelectual. Ideais que estavam fermentando há duzentos anos
finalmente amadureceram, tornando-se novos modelos compulsórios de
realidade física e social. Assim como as visões sobre o cosmo que prevaleciam
eram metamorfoseadas por uma série de revoluções científicas, as concepções
aceitas sobre a natureza humana e a sociedade eram transformadas pelo
desenvolvimento laico de epistemologias e teorias políticas.
Embora fossem revolucionários em muitos pontos, esses modos de
compreender não romperam inteiramente com a tradição ocidental anterior.
Ao contrário, podem ser considerados em alguns aspectos como rearticulações
de temas que haviam merecido destaque na Grécia e no pensamento medieval.
Constituíram, entretanto, uma formulação distintivamente moderna desses
temas, ao serem reelaborados num sistema tácito que moldou a maior parte da
filosofia e da ciência ocidentais até o século XX.
A articulação decisiva desse sistema foi alcançada no século XVII por
Introdução 9
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
Bader, Eleanor, J. 1987. "Research Reveals Bias in Testing." Guardian, 29 de abril 1987.
Parte I
O CORPO, O SER
O CORPO
E A REPRODUÇÃO DA FEMINIDADE:
UMA APROPRIAÇÃO FEMINISTA
DE FOUCAULT
Susan R. Bordo
*No original, backlash, termo escolhido por Susan Faludi para título de seu livro, que analisa a reação
conservadora ao feminismo nos Estados Unidos dos anos 80. (N. da T.).
**A autora usa a expressão latch-key children, ou seja, crianças que ficam com a chave da casa en-
quanto os pais trabalham. (N. da T.).
22 Género, Corpo, Conhecimento
*No original, double bind (duplo elo), expressão que designa, em psicologia, um dilema insolúvel
porque implica comportamentos mutuamente contraditórios. (N. da T.)
26 Género, Corpo, Conhecimento
*Mistura de água e ácido azótico usada para desoxidar e gravar metais. (N. da T.)
"Feminino de "Rambo", personagem masculino de outro filme de sucesso. (N. daT.)
O Corpo e a Reprodução da Feminidade: Uma Apropriação Feminista de Foucault 27
Kim Chernin afirma, por exemplo (1985), que a debilitante fixação anoréxica,
ao deter ou moderar o desenvolvimento pessoal, alivia a culpa e a ansiedade
de separação dessa geração com a perspectiva de ultrapassar as mães, de
viver de forma menos circunscrita e de ter vidas mais livres. Também a
agorafobia, que muitas vezes se desenvolve pouco tempo depois do casa-
mento, funciona claramente em muitos casos como um caminho para conso-
lidar a dependência e a fixação face a incitamentos inaceitáveis de insatisfa-
ção e inquietação.
Embora possamos falar significativamente sobre protesto, gostaria de
enfatizar a natureza contraproducente, tragicamente autofrustrante (realmente
autodesconstrutiva) desse protesto. Funcionalmente, os sintomas dessas de-
sordens isolam, enfraquecem e minam as afetadas; ao mesmo tempo, trans-
formam a vida do corpo num abrangente fetiche todo-poderoso, ao lado do
qual todos os outros objetos de atenção parecem pálidos e irreais. No nível
simbólico, a dimensão do protesto também desmorona para seu oposto e
proclama a derrota e a capitulação absolutas do sujeito ao restrito mundo
feminino. Como vimos, a mudez das mulheres histéricas e sua volta ao nível
da pura, primária expressividade corporal, têm sido interpretadas como re-
jeição da ordem simbólica do patriarcado e recuperação de um mundo per-
dido de valor semiótico materno. Mas, ao mesmo tempo, a mudez é obvia-
mente a condição da mulher silenciosa, que não se queixa — um ideal da
cultura patriarcal. Afirmar a condição asfixiante da voz feminina através da
própria falta de voz, isto é, usando a linguagem da feminidade para contes-
tar as condições do mundo feminino, sempre envolverá ambiguidades desse
tipo. Talvez por isso, os sintomas cristalizados a partir da linguagem da
feminidade sejam tão perfeitamente adequados para expressar os dilemas
das mulheres que vivem em épocas situadas à beira de mudanças de género:
o final do século XIX, o período após a Segunda Guerra Mundial e o final do
século XX. Nesses períodos, o género tornou-se uma questão a ser discutida
e proliferou o discurso sobre "a questão da mulher", "a nova mulher", "o
que as mulheres querem", "o que é a feminidade" e assim por diante.
Evidentemente, esses dilemas são vividos de forma diferente, depen-
dendo da classe, da idade de outros aspectos da situação das mulheres. A
agorafobia e a anorexia são, afinal, principalmente patologias de mulheres
de classe média e média-alta, para as quais surgiu a ansiedade da possibili-
dade; mulheres que têm os recursos sociais e materiais para levar a lingua-
gem da feminidade até o excesso simbólico. Claramente, precisamos sepa-
rar as análises dos diferentes modos de protesto empregados, dos efeitos das
práticas femininas homogeneizantes em relação às classes e aos vários gru-
pos raciais.
30 Género, Corpo, Conhecimento
nas, e não transformá-la. Nesse contexto, parece que basta, para uma mulher
se tornar homem, que se situe no pólo contrário de uma desfigurante oposi-
ção. O novo "ar de poder" na atividade feminina de modelagem do corpo,
que leva as mulheres até a desenvolverem a forma triangular de um "Hulk"
— que tem sido a norma para modeladores masculinos do corpo — não é
menos determinado por uma construção ligada ao género, hierárquica e
dualista, do que foi a norma convencionalmente "feminina" que tiranizou
durante anos modeladoras femininas do corpo, como Bev Francis.
Embora as práticas e os significados culturais específicos sejam dife-
rentes, suspeito que mecanismos similares estejam atuando na histeria e na
agorafobia. Também nesses casos a linguagem da feminidade, quando pres-
sionada em excesso — gritada e afirmada — se desconstrói para seu oposto
e torna acessível para a mulher uma experiência ilusória de poder, antes
proibida por causa do género. No caso da feminidade do século XIX, a ex-
periência proibida pode ter sido a fuga da coerção, a ruptura de grilhões —
especialmente os de ordem moral e emocional. John Conolly, o reformador
de manicômios, recomendava internação para as mulheres que "desejam
essa restrição sobre as paixões, sem a qual o caráter feminino está perdido"
(Showalter, 1985:48). As mulheres histéricas frequentemente enfureciam
os médicos homens por não terem justamente essa qualidade. S. Weir Mitchell
descreveu-as como "o desespero dos médicos". Seu "egoísmo despótico ar-
ruina a constituição de enfermeiras e de parentes dedicados e, numa auto-
indulgência inconsciente ou semiconsciente, destrói o bem-estar de todos ao
seu redor" (Smith-Rosenberg, 1985:207).
Algum prazer ilícito deve ter sido sentido pelas pacientes vitorianas ao
se perceberem capazes de tal perturbação do sólido lar do século XIX. Creio
que uma forma semelhante de poder faz parte da experiência da agorafobia.
Isso não significa que a realidade primária dessas desordens não seja de
dor e encarceramento. Na anorexia também existe claramente uma dimen-
são de dependência física em relação aos efeitos bioquímicos da dieta de
fome. Mas seja qual for a fisiologia envolvida, as maneiras como o sujeito
compreende e tematiza sua experiência não podem ser reduzidas a proces-
sos mecânicos. A capacidade da anoréxica de viver com uma ingestão míni-
ma de alimento permite-lhe sentir-se poderosa e digna de admiração num
"mundo" — como descreve Susie Ohrbach — "do qual ela se sente excluída
no mais profundo nível" e desvalorizada (1985:103). A literatura sobre
anorexia e histeria está cheia de batalhas da vontade entre a paciente e aque-
les que tentam "curá-la"; estes, como salienta Ohrbach, muito raramente
compreendem que os valores psíquicos pelos quais ela luta são muitas vezes
mais importantes para a mulher do que a própria vida.
O Corpo e a Reprodução da Feminidade: Uma Apropriação Feminista de Foucault 33
NOTAS
A análise apresentada neste ensaio é parte de um estudo mais amplo: Food Fashion and
Power: The Body and the Reproduction of Gender (Comida, moda e poder: o corpo e a
reprodução do género). University of Califórnia Press. Outras partes dessa análise mais
abrangente aparecem em diversos trabalhos: "Anorexia Nervosa: Psychopathology as the
Crystallization of Culture (Anorexia nervosa: psicopatologia como cristalização da cultura)
(Bordo, 1985, reimpresso em Diamond e Quinby, 1988); "Reading the Slender Body" (Len-
do o corpo esbelto), incluído em Jacobus, Keller e Shuttleworth, 1989; e 'The Contest for
the Meanings of Anorexia" (A discussão para os significados da anorexia), incluído em The
Body in Medicai Thought and Practice (O corpo no pensamento e na prática médicos), ed.
Drew Leder e Mary Rawlinson; Reidel, 1990). Ver também "How Television Teaches Women
To Hate Their Hungers" (Como a televisão ensina as mulheres a odiar suas fomes), Mirror
Images, 1986.
Desejo agradecer ao Douglass College pelo tempo e pelos recursos proporcionados na
primavera de 1985 pela bolsa de membro-visitante a mim concedida na cátedra Laurie de
Women's Studies. Minha permanência e minha participação nos seminários organizados
por essa cadeira muito facilitaram boa parte da pesquisa inicial deste trabalho. Versões
anteriores deste estudo foram distribuídas pelo departamento de filosofia da State University
of New York, em Stony Brook, e apresentadas na conferência sobre "Histórias da Sexuali-
dade", realizada na Universidade de Massachussetts, e na 21ª Conferência Anual da Socie-
dade de Fenomenologia e Filosofia Existencial da Universidade de Toronto. A todos os que
fizeram comentários sobre essas versões expresso meu apreço pelas sugestões estimulantes
e críticas proveitosas.
8. Ver Nadelson e Notman, 1982:5; Vicinus, 1972:82. Para discussões mais generali-
zadas, ver Gay, 1984, Showalter, 1985. A dama delicada, um ideal que tinha conotações de
classe muito fortes (como a esbeltez hoje), não é a única concepção de feminidade das
culturas vitorianas. Mas foi sem dúvida a representação ideológica de feminidade mais po-
derosa naquela época, afetando mulheres de todas as classes, inclusive aquelas sem meios
materiais para responder plenamente ao ideal. Ver Michie, 1987, para debates sobre o con-
trole do apetite feminino e construções vitorianas de feminidade.
9. Ver Fodor, 1974:119; ver também Brehony, 1983.
10. Para outras perspectivas interpretativas sobre o ideal de esbeltez, ver Bordo, 1985,
1989; Chernin, 1981;Ohrbach, 1985.
11. Notável, em relação a esse assunto, é o estudo de Catherine Steiner-Adair (1984)
sobre mulheres universitárias, que revela uma associação dramática entre problemas com a
alimentação, imagem do corpo e competição da supermulher fria, profissionalmente "integra-
da" e deslumbrante. Com base numa série de entrevistas, as universitárias foram classificadas
em dois grupos — um que expressava ceticismo quanto ao ideal da supermulher, outro que
aspirava inteiramente ao mesmo. A administração posterior de testes de diagnóstico revelou
que 94 por cento do grupo das supermulheres encaixaram-se na escala das desordens. No
outro grupo, 100 por cento se colocaram na categoria das desordens do não comer. Apesar
das imagens da mídia, as jovens mulheres parecem perceber hoje, conscientemente ou atra-
vés de seus corpos, a impossibilidade de simultaneamente atender às demandas de duas
esferas cujos valores têm sido historicamente definidos em franca oposição uns aos outros.
12. Quando se toma conhecimento das muitas autobiografias e estudos de casos de
pessoas histéricas, anoréxicas e agorafóbicas, impressiona o fato de que estas são realmente
mulheres do tipo que se espera devam ficar frustradas pelas repressões de um papel femini-
no específico. Freud e Breuer, em seus Estudos sobre a Histeria (e Freud no posterior Dora),
fazem constantes comentários sobre a ambição, independência, capacidade intelectual e
esforços criativos de pacientes. Sabemos, além disso, que muitas mulheres que se tornaram
mais tarde ativistas e feministas sociais de destaque no século XIX estavam entre as que
adoeceram com histeria ou neurastenia. Tornou-se um virtual cliché que a típica anoréxica
é perfeccionista, procurando se superar em todas as áreas de sua vida. Embora de forma
menos acentuada, um tema similar existe na literatura sobre agorafobia.
Deve-se ter em mente que, quando se analisam estudos de casos, está-se confiando nas
percepções de outros indivíduos aculturados. Suspeita-se, por exemplo, que o retrato popu-
lar da anoréxica como implacável possa ser influenciado pelo remanescente ou talvez
ressurgente vitorianismo das atitudes de nossa cultura em relação a mulheres ambiciosas.
Não se escapa desse problema hermenêutico voltando-se para a autobiografia. Mas, na au-
tobiografia, pelo menos se está lidando com construções e atitudes sociais que vivificam a
realidade psíquica do sujeito. Nesse sentido, a literatura autobiográfica sobre anorexia em
particular está notavelmente plena de ansiedade sobre o mundo doméstico e outros temas
que sugerem profunda rebelião contra noções tradicionais de feminidade; ver Bordo, 1985.
13. 'The Waist Land: Eating Disorders in America" (O país da cintura: desordens
alimentares na América), 1985, Gannett Corporation, MTI Teleprograms.
14. "Fat or Not, 4th-Grade Girls Diet Lest They be Teased or Unloved" (Gorda ou
não, meninas da 4* série fazem dieta para evitar zombaria ou desamor), Wall Street Journal,
11 de fevereiro de 1986.
15. Um enfoque nos princípios políticos da sexualização e da objetificação permanece
central para o movimento antipornografia (e.g., nos trabalhos de Andrea Dworkin e Catherine
MacKinnon). Feministas explorando princípios políticos da aparência incluem Sandra Bartky,
Susan Brownmiller, Wendy Chapkis, Kim Chernin e Susie Ohrbach. Recentemente, um
interesse feminista em desenvolvimento pela obra de Michel Foucault começou também a
produzir um feminismo pós-estruturalista orientado para a prática; ver, por exemplo, Diamond
eQuinby, 1988.
16. Ver, por exemplo, Jardine, 1985; Suleiman, 1986; Michie, 1987.
40 Género, Corpo, Conhecimento
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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O Corpo e a Reprodução da Feminidade: Uma Apropriação Feminista de Foucault 41
Muriel Dimen
O PASSADO
Dirigidas a esferas díspares da experiência, essas perguntas sobre poder,
sexualidade e intimidade não podem ser respondidas até que um elo ausente
na teoria do patriarcado seja forjado. Patriarcado é tanto um sistema psico-
lógico-ideológico — ou seja, representativo — como um sistema político-
econômico. Embora haja muitas teorias sobre a mente e a sociedade, nenhu-
ma teoria atual junta psique e sociedade, a fim de que a história inteira do
patriarcado, incluindo a experiência das mulheres e suas contradições, pos-
sa ser contada. A teoria crítica da Escola de Frankfurt, em particular, não
cumpriu sua promessa (Benjamin, 1978).
Talvez o problema não seja de ideias e sim de preconceitos. Talvez a
deficiência teórica seja metodológica. A maior parte da erudição baseia-se
na "objetividade", na obseryação e na análise supostamente imparcial, neu-
tra, impessoal. No entanto, como ressalta a crítica feminista da ciência, essa
postura objetivista é na verdade muito pessoal, baseada como é não na au-
sência de emoções e valores, mas em sua cuidadosa restrição. De fato, o
saber ortodoxo carece de um certo tipo de nota pessoal (Flax, 1983; Keller,
1985; Jaggar, 1985: cap. 11).
Talvez o elo conceituai que falta na teoria feminista seja a voz pessoal
engajada, impregnada de sentimentos, valores e protesto político, uma voz
como a que emerge de biografias feministas, nas quais o sujeito se envolve
com o assunto. Mas esses princípios políticos de autobiografia e biografia
não deveriam substituir a voz patriarcal aceita, mas se justapor a ela. A
questão é usar as diferentes possibilidades de ambas as vozes para gerar um
senso de oposição, de diferença, de tensão criativa. A terceira voz resultan-
te, retendo o poder pessoal da primeira e a intersubjetividade da segunda,
poderia assim abrir uma janela para possibilidades ainda não imaginadas,
não marcadas pelo género, do falar, do saber e do viver.
Duas dessas vozes entrelaçam-se aqui, uma pessoal, contando histórias
fictícias de sexualidade e uma pública, comentando-as.2 A sexualidade é uma
das vozes mais pessoais, engajadas e carregadas de valores. É também uma
das mais exigentes teoricamente, porque o sexo está na encruzilhada de natu-
reza, psique e cultura. Considerações sobre a sexualidade, emocionalmente
44 Género, Corpo, Conhecimento
poderosas e colidindo com o alicerce cultural, pedem uma resposta, dada aqui
por uma teoria de múltiplos comentários, social, psicológica e feminista. À
medida que segue a tripla problemática da sexualidade, o comentário traça as
delicadas ligações entre sexualidade, poder e intimidade. Essencial para esse
desenho em filigrana são a dominação, o género, a divisão do trabalho entre
mulheres e homens, a separação de género entre a vontade e a necessidade e o
uso da reprodução social para controlar o desejo.
*Peça de vestuário da Sibéria e do Alasca, originalmente de peles; atualmente, é um casaco com capuz,
feito de IS. (N. da T.)
Poder, Sexualidade e Intimidade 45
DOMINAÇÃO
Ela tem oito anos. Seu pai, de quarenta e um, e seu irmão, de cinco,
estão indo tomar um banho de chuveiro juntos. 'Também quero", grita
ela, ansiosa para ver os órgãos genitais de seu pai. "Não, minha querida",
meninas não tomam banho de chuveiro com seus papais", diz sua mãe,
de quarenta anos. Desde quando?, pergunta-se ela. Ela sabe o que quer.
Eles também sabem. Será que eles sabem que ela sabe que eles sabem
que ela sabe?
Na 7" série, se você usa verde às quintas-feiras, chamam você de
"sapatão". Se usa um suéter preto todos os dias, a chamam de "piranha".
Por alguma razão ela se esquece e usa verde na quinta-feira e suéter preto
quando gosta. Numa festa, num porão de subúrbio transformado em dis-
coteca, ela se encontra de repente sozinha no sofá, a única menina no
aposento. Quando as luzes se apagam, todos os rapazes atiram-se sobre
ela e a apalpam em todas as partes que você pode imaginar. As meninas
riem tolamente na lavanderia.
Uma menina de outra turma lhe diz que está bonita em seu suéter
preto. Elas se tornam amigas, quer dizer, mais ou menos. Ela dorme na
casa de sua amiga uma noite. Fazem biscoitos de chocolate e ouvem
ópera. Mais tarde, a amiga a convida para sua cama para fazer o que suas
amigas vêm fazendo durante algum tempo. Ela não sente nada, está as-
sustada e volta para sua própria cama.
Ela começa beijando rapazes na boca com onze anos e adora. Não
acaricia os rapazes da cintura para cima até ter quinze anos; não gosta
disso, mas namora assim para se sentir adulta. Não permite carinhos da
cintura para baixo até ter dezessete anos; então, não quer admitir que tem
orgasmos. Começa a se masturbar aos dezoito anos. Com vinte e um,
tem relações sexuais pela primeira vez; gosta do fato de estar fazendo
isso; mas demora quinze anos para gostar de fazê-lo. Usa seu diafragma
todas as vezes nesses quinze anos. (Dimen, 1984:143, ligeiramente mo-
dificado.)
48 Género, Corpo, Conhecimento
REPRODUÇÃO SOCIAL
Ele vai pegar na sua mão, ela sabe. A palma da mão dele é ligeira-
mente fria, úmida e macia e ela sente um aperto no peito. Ela quer tirar
sua mão logo que possível, talvez quando tenham que se separar para
deixar algumas pessoas passarem na calçada cheia de gente. Sua pele se
arrepia com tanta frequência por causa dele que pensaria que poderia lhe
dizer, Não vai dar certo, sinto muito, quero ir embora.
Ela ganhou, ele se curvou. Muito claramente, ele precisa dela. As-
sim, não sendo mais a parte devastada pela necessidade, ela se torna a
parte forte.
Mais tarde, sua negação das ondas que a revolvem a força à inércia
e a deixar que ele faça papel de bobo. É assim que ela pode cruzar a linha
para o desejo sexual e deixá-lo fazer amor com ela e se afastar abrupta-
mente de seus gentis carinhos de depois.
Eles se enroscam na cama, ela mais jovem, ele mais velho, outrora
gordo e macio, agora magro e rijo, mas ainda com uma corpórea aura
56 Género, Corpo, Conhecimento
AMBIGUIDADE E INTIMIDADE
que é algo para a posse, não para a criação: daí o importunador na rua, cujas
invasões desesperadas impedem a delicada atenção através da qual a intimi-
dade se desenvolve; daí nossas investidas por intimidade e nossas igualmen-
te passionais retiradas.
Contudo, um modelo de maturidade que poderia tornar a intimidade
mais acessível permanece na sombra do patriarcado: o feminino adorado e
denegrido, omitido do mito da horda primitiva. Tal como a voz pessoal jus-
taposta à erudita pode produzir uma tensão criativa, assim a ligação, em
tensão com a individualização poderia produzir um outro ideal cultural de
personalidade, embora raramente realizado: uma pessoa ao mesmo tempo
distinta, autónoma e ligada aos outros. Reconhecendo a contradição, esse
modelo utópico de maturidade consegue acomodar o paradoxo do ser e do
outro, da interligação e da separação. Embutido nele está o conhecimento de
que você só pode vivenciar sua separação conhecendo, sentindo e intuindo o
outro nas fronteiras entre os dois, entre o ser e o outro. Pode gostar de outra
pessoa ou odiá-la somente se existir um "você" para gostar ou odiar, uma
"outra pessoa" para ser gostada ou odiada e a capacidade de gostar ou odiar
ou, mais genericamente, de estar ligado aos outros.
Em outras palavras, esse modelo da idade adulta, emergindo no espaço
entre a masculinidade e a feminidade convencionais, é tolerante com a am-
biguidade, algo com que as mulheres têm de se acostumar, a fim de sobrevi-
ver no patriarcado. Em nossa cultura, as mulheres simbolizam a ambiguida-
de — não da natureza ou da cultura, mas mediando-as (Ortner, 1974). Re-
presentam ainda um caminho moral alternativo, um caminho sinuoso a ser
construído e não um que, já dado, tem que ser rigidamente seguido (Gilligan,
1983; cf. Stack, no prelo).10 Essa moralidade de ver "ambos", um "e" outro,
de apreender dois pontos de vista simultaneamente, está familiarizada com
o desconforto da ambiguidade. É crucial para o chamado "pensamento ma-
ternal", preservado pelo âmbito doméstico como uma visão utópica, senão
como prática efetivamente realizada (Ruddick, 1980).
A capacidade de apreciar a ambiguidade é igualmente essencial para a
intimidade. Infelizmente, no patriarcado, ela está tão ausente da maturidade
como do mito da horda primitiva, e não só em virtude dos ideais da vida
adulta, mas devido à maneira como as crianças crescem. A atribuição pri-
mária às mulheres do cuidado com as crianças na primeira infância garantiu
que é o pai, isto é, a dureza não ambígua do cowboy, que tem de instituir a
diferenciação entre o ser e o outro, o começo da idade adulta e, portanto, as
bases da intimidade entre adultos (Mahler et alii, 1975). Porque essa defini-
ção é estabilizada e reduzida ao silêncio, tornando-se indizível, preserva-se
a fusão entre a mãe e a criança (a Madona com o menino), fazendo com que
58 Género, Corpo, Conhecimento
toda pessoa criada por essa mãe se sinta depois incompleta e sem valor. Mas
os sentimentos de desvalorização são uma base pobre para o surgimento da
intimidade. Até que a diferenciação por rejeição desapareça e a ambiguida-
de do ser, do outro e da relação entre ambos seja tolerável, a intimidade
permanecerá, na melhor das hipóteses, ambivalente e parcial, pontuada por
terríveis períodos de distância e doces momentos de fusão.
NOTAS
Esta é uma versão revisada de Dimen (1987). Partes deste trabalho foram também publicadas
em Dimen (1984, 1986). Agradeço a Susan Bordo e Alison Jaggar pela excelente edição.
1. Ver, por exemplo, Perry (ensaio neste volume) para um debate sobre o engajamento
do autor com o sujeito na biografia feminista.
2. Dimen (1986) desenvolve essa forma mais plenamente.
3. Para debates mais completos sobre a redução do desejo, ver Dimen (1981,1982).
4. Benjamin (1980) mostra como a hierarquia de sexo/gênero masculiniza e idealiza a
imagem individualizada da idade adulta.
5. Isto é, naturalmente, um acréscimo ao seu trabalho no âmbito público, onde mais da
metade de todas as mulheres adultas também executam trabalho assalariado. Recebem sis-
tematicamente menos, ou seja, atualmente sessenta e quatro cents para cada dólar que os
homens recebem por trabalho ern tempo integral o ano todo (uma proporção similar à obtida
em Bruxelas em 1855 [Marx, 1967:671]). No entanto, se considerarmos o trabalho das mu-
lheres em tempo parcial, em tempo parcial sazonal, em tempo integral sazonal e em tempo
integral o ano todo, essa cifra cai mais ou menos para a metade (Sokoloff, 1980). Além
disso, os empregos das mulheres são instáveis. Quando a economia precisa de mais trabalho
barato, elas, como os integrantes de minorias, conseguem empregos; quando a economia
precisa de menos, são despedidas. Finalmente, a divisão cultural do trabalho emocional está
entrando no mundo económico: a maioria das mulheres está empregada em ocupações pre-
dominantemente "femininas", que se enquadram na categoria de "cuidar" — professoras,
enfermeiras, cozinheiras de lanchonetes, garçonetes. Como cssts empregos são vistos como
femininos, são menos valorizados socialmente.
6. A reprodução social pode ser organizada diferentemente em outras culturas, como
focalizo em meu trabalho em andamento, "The State's Women: Sexuality and the Classic
Case for Social Reproduction" (As mulheres do Estado: a sexualidade e o exemplo clássico
da reprodução social). Divergindo de Yanigasako e Collier (1987), creio na utilidade desse
conceito, que em contraste com Harris e Young (1981), defino de forma a incluir o incons-
ciente, a vida interior.
7. Essa frase levanta a questão sobre se a reprodução social tem sempre, em qualquer
cultura, que recriar contradições culturais da vida psicológica. Na verdade, coloca a questão
da existência em alguma época de uma cultura sem contradições, referindo-se implicita-
mente a um debate central do marxismo sobre o "comunismo primitivo" e a utopia comunis-
ta. Mas a discussão dessas questões ultrapassa o âmbito deste trabalho.
8. Em algumas culturas, como, por exemplo, a dos !Kung San, da África, o indivíduo
não é uma unidade económica viável, mas só pode sobreviver na dependência da família
extensa ou das instituições da comunidade; nelas, a necessidade e a vontade não podem ser
tão separadas, nem comparadas individualmente. Em culturas desse tipo, baseadas no pa-
60 Género, Corpo, Conhecimento
rentesco, quando uma pessoa não tem casa ou está com fome, é porque ninguém mais tem
abrigo ou comida (Lee, 1979; Shostak, 1981) e, assim, a necessidade pode não ser fonte de
vergonha como ocorre na nossa.
9. Essa percepção acarreta o que Fairbaim (1953:34-35 e passim) chamou de "depen-
dência madura".
10. A pesquisa de Stack (no prelo) entre negros na zona rural da Carolina do Norte e
em Washington, D.C. sugere enfaticamente que a tese de Gilligan pode ser limitada em
termos de classe e raça. Usando a metodologia de Gilligan, descobriu que os adultos em
geral tendem mais para a argumentação baseada na justiça; entre os adultos, os homens
tendem ligeiramente mais para a argumentação baseada em cuidados e as mulheres para a
argumentação baseada na justiça.
11. Como em toda a obra de Marx.
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A POLITICA DA ESCRITA DO CORPO:
ÉCRITURE FÉMININE
Arleen B. Dallery
ÉCRITURE FÉMININE
O feminismo francês, écriture féminine, desconstrói essencialmente a orga-
nização fálica da sexualidade e seu código, que coloca a sexualidade da
mulher e o significado de seu corpo como um espelho ou complemento para
a identidade sexual masculina. Paralelamente, esse discurso constrói a ge-
nuína, múltipla diversidade da economia libidinal da mulher — seu erotis-
mo — que foi simbolicamente reprimida na linguagem e negada pela cultu-
ra patriarcal.
Nesta breve exposição, quero desenvolver dois temas: (1) o desloca-
mento da economia masculina do desejo para uma economia feminina de
prazer ou jouissance (gozo); (2) o deslocamento de uma heterossexualidade
dualista, oposicionista, para estruturas femininas de corporificação erótica,
onde o ser e o outro são contínuos, na gravidez, no parto e na amamentação.
ESCRITA DO CORPO
POÉTICO E POLÍTICO
Seguindo a sugestão de Gallop, a crença numa poética do corpo poderia ser
politicamente radical. Quais seriam os efeitos políticos de escrever o corpo?
Estabelecer discursivamente a alteridade da sexualidade feminina mudaria
o desejo da mulher, suas práticas sexuais e produziria, então, referencialidade
no futuro! Gallop parece pensar que sim: "Pois, se [Irigaray] não está sim-
plesmente escrevendo um texto não-falomórfico (uma prática modernista
bastante comum), e sim construindo ativamente uma sexualidade não-fálica,
então o gesto de uma conturbada e mesmo assim insistente referencialidade
é essencial" (1983:83). Para ambas, Irigaray e Cixous, a constituição de
uma economia libidinal feminina no discurso teria consequências históricas
e políticas. Escrever o corpo é tanto discurso como praxis:
Escreva sobre você mesma, seu corpo precisa ser ouvido... Escrever, um
ato que não só realizará a relação não censurada com sua sexualidade,
com sua condição de mulher, mas lhe devolverá seus bens, seus praze-
res, seus órgãos, seus imensos territórios corporais que foram mantidos
lacrados. (Cixous, 1981a:250.)
A Política da Escrita do Corpo: Écriture Féminine 71
CRÍTICA: ESSENCIALISMO?
NOTAS
1. É discutível se Kristeva deveria ser classificada como feminista francesa ou mesmo
filósofa pós-feminista, mas certamente ela não é uma proponente da écriture feminine. Para
ela, o "feminino" representa a esfera semiótica, que abre caminho através dos códigos sim-
bólicos da Lei do Pai e os subverte. O "feminino" pode, então, ser encontrado em escritores
masculinos de vanguarda que não reprimiram seus vínculos pré-simbólicos ou pré-edipianos
com a mãe; não é específico quanto ao género. Mas Irigaray, em contraste, está interessada
em abrir um espaço discursivo em que a representação da diferença sexual específica da
mulher se torne possível. A especificação da diferença sexual não é relevante no trabalho de
Kristeva porque ela dcsassocia os dois termos: "feminino" e "mulheres". Ver The Kristeva
Reader, 9-12.
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78 Género, Corpo, Conhecimento
Eileen 0'Neill
mente, isso não quer dizer que questões morais ou políticas não se apliquem
a comportamentos dentro de nossa vida sexual. Parece apenas algo impró-
prio "transplantar" para a sexualidade modelos extraídos por atacado da
ética, do direito ou da política. Uma teoria da atuação sexual se faz neces-
sária.
Provavelmente, não será surpresa se essa teoria não for imediatamente
sugerida pelos esforços de mulheres artistas contemporâneas. E nem causa-
rá espanto que muitos trabalhos individuais sejam simplesmente polémicos
contra concepções existentes sobre a potência sexual feminina — mais cor-
retamente, sobre a impotência feminina. Muitos empreendimentos artísticos
tentam esclarecer as restrições conceituais, políticas e pessoais nas quais as
mulheres se encontram quando lidam com seu próprio poder e eficácia eró-
ticos.
Mas é aí, na problemática da mulher como agente sexual, que encontro
um enfoque principal nas tentativas das artistas de reimaginar sua própria
sexualidade. Espero ter delineado neste texto as várias estratégias que algu-
mas delas têm usado alternativamente em relação a Eros, brincando com
ele, assaltando-o ou puxando o tapete debaixo de seus pés e imaginando
uma deusa de sua própria invenção.
Começo por reivindicar a palavra 'pornografia', traçando sua relação
com o erotismo. Na tradição política liberal, o erotismo é geralmente consi-
derado como uma forma mais branda de pornografia: o conteúdo é mais
sugestivo do que explícito e a intenção é produzir algum grau de interesse
sexual no espectador em vez de intensa excitação sexual. Recentemente,
todavia, teóricas feministas tentaram estabelecer a distinção recorrendo à
perspectiva moral (MacKinnon, 1985; Kittay, 1983; Steinem, 1980). Desse
ponto de vista, o erótico é o que tem um conteúdo considerado mais sensual
do que obsceno e que pode provocar interesse sexual no espectador — e aí
achamos que tal resposta sexual é legítima. Nessa análise, a pornografia é
uma representação apta a causar interesse sexual devido à ilegitimidade se-
xual do que é representado e que endossa uma resposta nessas bases.
Creio ser indispensável encontrar um termo descritivo, isento de julga-
mento moral, que denote representações sexualmente explícitas visando à
excitação.1 A 'pornografia' tem funcionado assim em nossa tradição liberal.
Mas, plenamente consciente da dificuldade que encontrará qualquer tentati-
va para produzir uma noção não fascista de "ilegitimidade sexual", também
acredito que precisamos ser capazes de pôr em prática distinções normativas
em relação às instituições, práticas e discursos sociais e culturais que produ-
zem conjuntamente significados vinculados a atos sexuais. A pornografia e
o erotismo são justamente tais discursos.
(Re)presentações de Eros: Explorando a Atuação Sexual Feminina 81
longos turnos de luta, ao ser colocado em contato com suas próprias inegá-
veis fontes de prazer dentro de si mesmo. Muitos trabalhos de artistas mu-
lheres que contemplei têm essa característica de expressar em vez de repre-
sentar pontos de dor em suas vidas. Parte do erotismo desses trabalhos é sua
qualidade concomitante de cura e de fortalecimento.
Usarei 'pornografia obscena' e 'erotismo obsceno' para me referir àqueles
que violam certos costumes ou práticas institucionalizados. Obviamente, o
obsceno nesse sentido não é meramente subjetivo, pois não surge das prefe-
rências dos indivíduos isolados, sem fundamento na história. Em vez disso,
o que é considerado desagradável, ofensivo ou indecente é relativo aos sis-
temas de valores de grupos ou comunidades particulares de interesses, den-
tro de culturas específicas numa dada época. Não acho nenhum dos traba-
lhos que comentei obsceno, mas alguns são pornográficos. Esta é uma dis-
tinção que faço questão de colocar.
À pornografia e ao erotismo que violam princípios morais univer-
salizáveis sobre o respeito à personalidade chamarei de 'nocivos'. Esse tipo
de pornografia (ou erotismo) visa à excitação sexual (ou expressão sexual)
através da representação (imposição) de um "prejuízo" a alguma pessoa.
Prejuízo deve ser diferenciado de "lesão". O médico que amputa um mem-
bro infeccionado para salvar uma vida pode causar lesão mas não prejudica
a pessoa. (Essa distinção entre lesão e prejuízo será usada na terceira seção,
quando levanto algumas questões sobre pornografia lésbica sadorriasoquista.)
As representações nocivas, por exemplo, poderiam sugerir que certas pessoas
não são realmente pessoas, que não são criaturas dignas das liberdades e do
respeito dispensados a agentes — considerados em suas capacidades soci-
ais, políticas, morais ou sexuais.
Feministas como Rosemarie Tong (1982) e Eva Feder Kittay (1983)
usaram a expressão 'tanática' para referir-se à pornografia desse tipo. Opo-
nho-me ao uso desse termo por razões conceituais. 'Tanático' vem do grego
thanatos, que significa "morte", em oposição a "vida, desejo ou alegria".
Mas a morte não é, em absoluto, a mesma coisa que prejuízo ou desrespeito
à personalidade. A morte pode acontecer a uma pessoa sem trazer humilhação,
perda da integridade ou dano ao senso de identidade. Em muitas situações, a
perspectiva da morte traz um senso de completude; a morte é imaginada
como um ponto de repouso que se pode encarar sem conflitos. Às vezes, ela
é vista como uma espécie de santuário, um lugar de esquecimento, onde a
dor da vida pode ser deixada para trás. Além disso, o ponto sereno, o processo
de completar o ciclo, o todo unificado, o afastamento da angústia do Ser são
também metáforas tradicionais para Eros. Especialmente após ter lido O
Amante, de Marguerite Duras, me seria difícil negar as importantes relações
(Representações de Eros: Explorando a Atuação Sexual Feminina 83
O NU FEMININO
Uma categoria importante da arte clássica pornográfica e erótica no Ociden-
te, talvez a principal, é o nu feminino. Tem sido objeto do olhar fascinado do
artista masculino, o resultado passivo de seu intelecto e de sua libido ativos
e criação de sua subjetividade. Dadas as convenções da pintura clássica, o
nu feminino, na maioria dos casos, é reduzido a um "objeto sexual".
Mas pode-se argumentar: não são todos os nus, incluindo os masculi-
nos, objetos do olhar fascinado do espectador? Como pode uma representa-
ção não ser um objeto de possível percepção? A única outra via explicativa
é a que supõe que aquilo que se representa é um tema. Mas isso seria ridícu-
lo e requer algum esclarecimento.
Uma pintura, como entidade material, pode ser um objeto da percepção.
No entanto, muitas pinturas têm uma natureza dual. Não são apenas coisas
em si e por si, mas também apresentam um "caráter representacional" — ou
84 Género, Corpo, Conhecimento
(RE)PRESENTAÇÕES ERÓTICAS
Depois do nu, suponho que o segundo tema mais comum na arte pornográfi-
ca tradicional é a representação de atos sexuais. As esculturas de cerâmica
de Lee Stoliar não lembram simplesmente nossa corporeidade; são erotismo
levado bem próximo de seus limites. São representações explícitas que visam
à aceleração da emoção: começam, assim, a se aproximar do pornográfico.
Em One of the Ways (Um dos caminhos), a questão de quem é ativo no
intercurso heterossexual é reavaliada. Não é tanto o amante que age sobre a
fêmea, mas ele é mais envolvido pelo abraço das pernas, mãos e sexo da
mulher. A obra nos convida e considerar como seria a sexualidade — na
verdade, como seria nosso mundo — se a metáfora central para a cópula
heterossexual fosse o engolfar feminino em vez da penetração masculina
(Baker, 1984). O desenho Getting It (Pegando-o) mostra mais uma vez o
que foi dito antes sobre a clara atuação sexual feminina. A cabeça masculina
ou cérebro, símbolo tradicional essencial da masculinidade, dá lugar a uma
visão da expressão facial da mulher ativa fazendo amor. Calling It (Cha-
mando-o) capta a paixão sexual entre duas mulheres de uma maneira que
tem poucas contrapartidas na arte masculina tradicional. (Basta lembrar O
Sono, de Courbet, ou as poses impassíveis de lésbicas em muitos dos dese-
nhos de Schiele). Por fim, em Dancing It (Dançando-o), Stoliar amplia a
noção tradicional de erotismo primariamente genital. O que é pego, chama-
do e até dançado em seus trabalhos é a energia sexual.
O tema da contestação do genital como única localização do erótico, a
fim de adaptá-lo ao "sexo feminino que não é um" como colocou Irigaray,
foi tratado por muitas mulheres artistas. Por exemplo, a fotografia Darquita
e Denyeta, de Joan E. Biren, da série Eye to Eye: Portraits ofLesbians (Olho
no olho: retratos de lésbicas), de 1979, provoca a pergunta: por que hesita-
mos em chamar de erótica essa cena passional de lábios e peles, de alimen-
tação e aconchego entre mãe e filha? No Women's Caucus for Art de 1986,
Nancy Fried indagou porque esses trabalhos eram sempre interpretados como
cenas lésbicas. Para ela, uma artista lésbica, são sobre a intimidade física
feminina — seja entre amigas, amantes, irmãs ou mães e filhas. Por que as
mulheres hesitam em encarar como eróticas as intimidades ao longo de toda
a escala?
90 Género, Corpo, Conhecimento
haja perigo algum. Talvez o pássaro na gaiola não seja a mulher, mas essas
mãos que podem penetrá-la suavemente. Finalmente, elas também podem
ser as mãos da própria mulher, como apareceriam colocadas sob sua cabeça.
Talvez ela se reprima, não se permita experimentar toda sua sensualidade.
Esses devaneios permanecem em aberto. A pintura nos pede para considerar
em que grau o medo de nossa própria sexualidade vem de fontes internas ou
de fontes externas a nós.
Finalmente, em um óleo sobre papel, Seduced and Abandoned (Seduzida
e abandonada) — reproduzido em 0'Neill 1987 — Barrie Karp retrata seu
estupro de décadas atrás, quando tinha 13 anos. Esse exemplo, como muitos
de seus trabalhos, contém uma tensão irreal: é ao mesmo tempo suave, ter-
no, sereno, intensamente doloroso e emocionalmente pungente. Como su-
gerem o título e as características formais da pintura, é uma tentativa de
expressar os sentimentos de uma jovem após ter sido sexualmente atacada
— um tema bastante raro na pintura ocidental.
Mulheres artistas têm usado uma variedade de estratégias para questio-
nar as distinções conceituais subjacentes à classificação de símbolos sexu-
ais nas artes clássica e moderna. Essas distinções incluem as polarizações
binárias de mente/corpo, cultura/natureza, ativo/passivo, razão/emoção, en-
tre outras. No entanto, em alguns casos, as artistas têm reagido não tanto à
utilidade dessas distinções, mas ao que Alison Jaggar (1983) chama de
"dualismo normativo", ou seja, ao sentido normativo da bifurcação entre
mente e corpo e polaridades resultantes. Desde Platão, a mente ativa tem
sido considerada mais nobre que o corpo inerte. A partir de então, mas espe-
cialmente desde o surgimento da Nova Ciência, no fim da Renascença, o
reino mais sublime da "razão pura" tornou-se a esfera do homem (Lloyd,
1984, Bordo, 1986).
Em sua performance de 1982-1983, This is My Body (Este é meu cor-
po), Cheri Gaulke tentou exorcizar os significados misóginos de algumas
representações judaico-cristãs. Encenação, leituras, músicas e projeção de
slides foram usadas para ilustrar e interagir dialeticamente com o texto fun-
damental de Mary Daly, Gyn/Ecology (Gin/ecologia), de 1978, entre outros
escritos feministas. Seguindo as indicações de Daly, Gaulke viajou através
do sistema de valores e símbolos do "Deus-Pai". Tornou-se o Cristo crucifi-
cado, Eva, a serpente, a árvore da vida e, finalmente, uma mulher enforcada
por prática de bruxaria. Através de reencenações erotizadas, desconstruiu
esses papéis e, no fim, dançou sobre suas ruínas. Por exemplo, numa parte
da representação, Gaulke desempenha o papel de Eva em frente à projeção
de um slide de O Pecado Original, de Hugo van der Góes (1476); mas esta é
uma Eva que não terá vergonha de seu corpo e de seus desejos. Ao som da
92 Género, Corpo, Conhecimento
(RE)PRESENTAÇÕES DO PORNOGRÁFICO E
(RE)PRESENTAÇÃO PORNOGRÁFICA
* A palavra foi deixada como no original, para mostrar o trocadilho. (N. da T.)
(Re)prcsentações de Eros: Explorando a Atuação Sexual Feminina 95
sadista também vive sua sexualidade e assume papéis, mas sua atividade
isolada não dita nem os cenários nem os limites. O S/M lésbico refere-se,
então, a uma atividade conjunta de agentes sexuais femininas. Colocadas
nesse contexto, é difícil interpretar as imagens da mulher amarrada simples-
mente como representação de uma vítima, uma escrava sexual ou um objeto
transformado em fetiche. É mais difícil interpretar o código de chicotes,
correntes e facas como algo que causa "prejuízo" à personalidade das mu-
lheres.8 Algum grau de dor física pode ser insinuado, mas isso é bem dife-
rente de causar dano a pessoas.
De forma alguma, estou sugerindo que, mesmo colocadas em contexto,
essas fotografias só possam ser interpretadas unidirecionalmente como ima-
gens de fortalecimento sexual feminino. O que quero dizer é que, no contex-
to do livro, elas procuram provocar o reexame do que constitui uma repre-
sentação prejudicial às mulheres ou de ameaça a suas personalidades. Ques-
tões morais e políticas difíceis devem ser analisadas no que se refere à
erotização tanto das diferenças de poder como de suas paródias. Nesse pro-
cesso, cabe indagar se o mesmo tipo de ato S/M poderia mais facilmente ser
interpretado como jogo dentro da prática lésbica do que seria com um ho-
mem agindo como "superior" em relação a uma mulher como "parte inferi-
or". (Um pênis artificial agressivamente manejado pode ser um instrumento
ou um acessório para se brincar, experimentar para ver o tamanho e descar-
tar; mas um homem não tem uma relação assim com seu pênis.) Outras
questões similares precisam ser levantadas, substituindo as diferenças raci-
ais, de classe e de idade por aquelas de género.9
NOTAS
A versão original deste ensaio foi apresentada nos simpósios sobre "Mulheres, Arte e
Poder" na Rutgers University (fevereiro de 1986), patrocinados pelo Instituto for Research
on Women — IRW. O trabalho foi muito enriquecido pelas críticas e sugestões das co-
palestrantes, Joanna Freuh e Sandy Langer, e as de Ferris Olin, dirigente do IRW. Desejo
agradecer aos estudantes e ao corpo docente da Parsons School of Design, do Le Moyne
College e do Queens College, especialmente a Lúcia Lermond e Barrie Karp, por seus co-
mentários sobre os manuscritos revisados. Agradeço a Martha Gever por levantar questões
importantes sobre o que significa para uma representação "visar à excitação" e sobre o
papel social e cultural que a arte erótica e pornográfica feminista, enquanto arte, pode de-
sempenhar e desempenha. Infelizmente, essas questões complexas vão além do escopo do
presente estudo. Acima de tudo, sou devedora às artistas-mulheres, cujo trabalho forneceu o
impulso inicial para o ensaio e cujas reações aos meus pontos de vista estimularam novas
reflexões. Seleções do presente artigo foram publicadas em 0'Neill 1987.
exemplos concretos do corpo masculino representado como objeto sexual. Em parte, essa
interpretação dos nus é tornada possível por meio do uso pelo artista de códigos tradicionais
da sexualidade feminina. Por exemplo, o atleta de Michelangelo assume a pose da filha de
Níobe. Em Endimião, de Girodet, o corpo reclinado está num espaço irreal, inclinado quase
noventa graus e oferecendo uma visão frontal plena ao espectador; a posição do braço é
similar ao da filha de Níobe e a cabeça está jogada para trás, expondo o pescoço, como a
figura feminina de Rogério Libertando Angélica, de Ingres. Esses trabalhos demonstram
que há codificações alternativas do corpo masculino na arte tradicional do Ocidente. Creio
que seria enganoso dizer simplesmente que o cânon, tal como o descrevi anteriormente
neste ensaio, é uma codificação heterossexual do nu masculino; mas Caravaggio, Donatello,
Michelangelo, Perugino e Girodet fazem uso de um sistema homossexual de significantes.
À primeira vista, essa análise pareceria depender de uma distinção homossexual/heterosse-
xual contemporânea, aplicada anacronicamente. Penso que é preciso examinar mais
detalhadamente como as convenções do nu masculino clássico se relacionam com a varie-
dade de códigos da sexualidade masculina tal como existiam na Grécia antiga, na Renascen-
ça, na era neoclássica etc. A análise desses códigos desde o período grego até a Idade Média
foi desenvolvida por Foucault (1978-). Cf. Walters (1979). Minha discussão sobre esse pon-
to se beneficiou muito das conversas com Terri Cafaro.
6. Os trabalhos teóricos feministas sobre o cinema também contribuíram para uma
melhor compreensão de como a ideologia acaba sendo codificada nas convenções artísticas.
Ver os escritos de Molly Haskell, Kate Millet e Linda Nochlin no jornal Women in Film
(1972-1975) e os artigos escritos nos anos 70 para Screen e Camera Obscura, por Mary Ann
Doane, Laura Mulvey e outras feministas.
7. É a descrição que Gaulke faz de si mesma, tal como é citada em Raven (1986).
8. Ver Frye e Shafer (1978) para uma análise parcial do "prejuízo à personalidade de
mulheres". Elas distinguem cuidadosamente entre prejuízo e simples lesões a corpos de
mulheres.
9. No entanto, dado meu entendimento sobre "significado contextual", os significados
que atribuo a uma imagem serão uma função não só do trabalho artístico mais amplo em que
a imagem aparece, mas também, entre muitas outras coisas, de minhas crenças sobre o
mundo. Assim, se viessem à tona dados sobre violência não consensual (e.g., assalto, espan-
camento, estupro) habitual dentro da comunidade lésbica S/M, certamente minariam minha
confiança de interpretar as mulheres amarradas nas imagens como agentes em vez de víti-
mas. Minha crença de que, por exemplo, o estupro (em oposição a parceiros que resolvem
juntos dar vazão a uma fantasia de estupro) não seja típico dentro da comunidade de S/M
lésbico, mas um ato comum que os homens realizam nas mulheres em nossa sociedade,
leva-me a interpretar as imagens de S/M lésbico diferentemente de certas representações de
S/M heterossexual. Minhas observações a respeito foram muito enriquecidas por discussões
com Lynne Arnault.
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OS USOS DO MITO, DA IMAGEM E DO
CORPO DA MULHER NA RE-IMAGINAÇÃO
DO CONHECIMENTO
Donna Wilshire
MITO E CONHECIMENTO
Algumas definições usuais e suposições familiares:
Mito: crença ou história infundada; lenda; falsa crença pertencendo ao
passado obscuro, distante, supersticioso; fabricada, inventada, imaginária;
uma suposição não verificável (certamente não considerada como Conheci-
mento).
Conhecimento: aquilo que é conhecido sobre a realidade e publicamen-
te verificável, provável, estruturado objetivamente (como na matemática);
fatos, informações; esclarecimentos, o que lança luz sobre um assunto; re-
sultado do que surge da escuridão e da ignorância (circunstâncias inferiores)
para a luz da verdade.
Esse modelo de conhecimento tem pelo menos 2.500 anos. Na Grécia
clássica, era sintetizado por Apolo, divindade do céu, deus do sol e da luz,
deus da Razão. Desde esse tempo antigo até o presente, tal sistema tem
considerado a Razão como algo de maior valor, porque é elevada, mental,
ordenada, moderada, controlada, objetiva — todos fatos positivos, associa-
dos a ideias, a masculinidade e a Apolo1 — todos levando nossos olhos e
nosso coração para cima, "para o além", insinuando a conquista final... a
santidade... o céu. Nota-se que os julgamentos de valor são frequentemente
acompanhados por projeções espaciais.2
O oposto de Verdade e Conhecimento é obviamente ignorância: o não
saber; não estar ciente; algo indesejável; estar na escuridão; um estado infe-
rior (negativo), a ser evitado a qualquer custo, porque parece "decaído" e
nos empurra para baixo, para os sussurros da superstição, do oculto, do tabu,
do não sagrado... talvez do inferno.3
Aristóteles escreveu que o Conhecimento Racional é a mais alta con-
quista humana e, portanto, os homens (que, segundo ele, são mais "ativos" e
capazes de obter êxito nessa área estritamente mental) são "superiores" (Po-
lítica 1, 2:1254b) e "mais divinos" (De Generatione Animalium [G. A.] II,
1:732a) do que as mulheres, que ele descreve como "monstros"... desviados
do tipo "genérico humano" (G. A. II, 3:737a), "emocionais", prisioneiras
"passivas" de suas "funções corporais" e, em consequência, uma espécie
inferior, mais próxima dos animais que os homens. Para ele, a mulher não é
progenitora da criança; os corpos femininos são menos recipientes para o
esperma do homem (o verdadeiro progenitor). Nada vê de positivo no útero
da mulher que dá vida, nada de valioso no que se refere às funções de ali-
mentar e educar nossos corpos.
O mundo de Aristóteles é caracterizado por dualismos hierárquicos, isto
é, por opostos polarizados em que um lado tem domínio sobre o outro; para
Os Usos do Mito, da Imagem e do Corpo da Mulher na Re-imaginação do Conhecimento 103
ele, a Alma tem domínio sobre o corpo a Razão sobre a emoção, o Masculi-
no sobre o feminino e assim por diante. A Mente Pura (o "Nous" só possível
para os homens) é conectada com a Alma "divina", que é superior a todas as
coisas terrenas. A Mente masculina é, assim, mais elevada e santa do que
toda a matéria, mais elevada até que o amado corpo apolíneo (ideal, mascu-
lino); certamente, a Mente e a Razão masculinas dominam e são "mais divi-
nas" que o corpo feminino, porque a mulher (sendo dominada por emoções
e funções corporais) não é tão capaz de Mente e Razão etc.
Mais tarde, as mesmas hierarquias aparecem em São Tomás de Aquino,
suas categorias e normas estendendo-se "para o além" através de nove coros
angelicais, com a Mente sempre tendo domínio sobre a matéria e os corpos,
por ele considerados congenitamente pecaminosos. A Grande Corrente do
Ser, da Renascença, foi realmente uma Corrente de Comando, uma continu-
ação das categorias que colocam o Puro Espírito "no além", em elevados,
supremos supercorpos de substância pura, que foram degradados ao serem
empurrados "para baixo": Deus dominava os anjos, que eram superiores aos
homens, que dominavam as mulheres, que dominavam as crianças... os ani-
mais... aterra...
A história da civilização e da filosofia ocidentais só varia até o ponto
em que cada era dá ênfase a alguns aspectos favorecidos, característicos;
quanto ao conhecimento é sua aquisição, todas as eras nessa história têm
em comum a explícita desvalorização da terra e do corpo — mais especi-
ficamente, o corpo da mulher, junto com formas de saber e estar no mundo
associadas ao feminino. Mesmo cristãos como São Paulo e Santo Agosti-
nho, que desprezam os deuses pagãos como Apolo, continuam, entretanto,
a exaltar e a manter no centro de sua teorização, o dualismo apolíneo hie-
rárquico que avilta o corpo humano, considerando o corpo feminino mais
especialmente pecaminoso, culpando Eva (e todas as mulheres subsequen-
tes) pela queda do Homem, pelo Pecado Original e tudo mais. A misoginia
de Santo Agostinho é muitas vezes escancarada, como quando diz: "o ho-
mem é a imagem e a glória de Deus" e, por isso, "não deve cobrir sua
cabeça", mas a mulher "não é a imagem de Deus" e, por essa razão especí-
fica, "ela é instruída a cobrir sua cabeça" (On the Trinity [Sobre a Trinda-
de], b. 12, cap. 7, p. 814), seguindo a orientação de São Paulo, em Coríntios
1(11:7,5).
Durante a revolução científica, ainda se pensava que a Alma e a Mente
só podiam se realizar em seres masculinos e que a alma tinha que lutar para
subjugar o corpo. Descartes inaugurou a Idade Moderna descrevendo a Mente
humana como um Espírito que nada tem a ver com a matéria ou o corpo.
Como os antigos, ele associava a Mente masculina à divindade e à Alma,
104 Género, Corpo, Conhecimento
frio quente
ordem caos
alvo processo
luz escuridão
linear cíclico
duro macio
dual inteiro
MASCULINO FEMININO8
106 Género, Corpo, Conhecimento
lhos tabus (especialmente sobre o sangue das mulheres e seus corpos com
escuros interiores) em novas e positivas perspectivas, criando possibilida-
des excitantes para o futuro, para o conhecimento sobre a natureza humana
e para apresentar uma visão (PADRÃO) mais acurada (não dualista) do mun-
do em que vivemos.
Gostaria de afirmar que o método e o conteúdo do Mito primordial cor-
retamente compreendidos e não como foram definidos pela tradição cientí-
fica ocidental — são sinónimos e indispensáveis à busca feminista pelo co-
nhecimento que desejo encorajar. Essa procura almeja validar as experiên-
cias sociais, de ligação, de comunidade, pois é nelas que estão os valores
humanos mais altos e a solução da alienação para todos nós neste planeta.
Assim, a individualidade deve ser vista como adequadamente manifestada
somente dentro de uma comunidade que divide experiências, onde o indiví-
duo não busca se tornar uma pessoa mais importante ou com domínio sobre
os outros e sim alcançar a totalidade e um equilíbrio ecológico, uma
interligação entre o ser individual plenamente desenvolvido e todas as ou-
tras formas de vida.
A partir dos Mitos, podemos descobrir muito sobre como essas questões
eram parte integrante das vidas e das visões de mundo de nossos mais anti-
gos ancestrais humanos. Mircea Eliade (1971), entre outros estudiosos des-
sa área, mostra como os Mitos revelam profundas verdades universais12,
descrevendo o que todos os seres humanos compartilham ao invés daquilo
que os individualiza e os isola uns dos outros (Gebser, 1985). Uma parte
integrante do conhecimento que se revela quando o Mito é corretamente
interpretado, é que, para seus narradores, o significado da vida era constitu-
ído por integridade, interconexão e por uma experiência cíclica do tempo —
não por dualismos e linearidade. Dos Mitos do passado distante, nos che-
gam exemplos de atitudes humanas em relação à terra, à natureza, ao tempo,
às mulheres e seus corpos (todos interligados), que correspondem às atitu-
des que muitas feministas e ecologistas, como eu mesma, lutam por criar
agora para o presente e o futuro. As técnicas de criação do mito estão dispo-
níveis para nos ajudar a descobrir e descrever como essas questões podem
funcionar proveitosamente em nossas vidas hoje.
Argumenta-se tradicionalmente que só o conhecimento a partir de um
lugar público pode ser verificado. Mas muitos dos conhecimentos no Mito
primordial, arcaico, foram criados a partir de lugares privados, como os so-
nhos e os corpos das mulheres, e podem ser comunicados e compreendidos
através de enormes distâncias geográficas e diferenças culturais — mesmo
que seus criadores estejam separados de seus ouvintes modernos por milha-
res de anos.
108 Género, Corpo, Conhecimento
(céu, mar, inferno) só depois de ganharem a guerra contra seu pai. Ao con-
trário de Core (Perséfone), nenhum deles representava conceitualmente uma
essência inata relativa a suas próprias esferas, adquiridas eventualmente como
despojos de combate.
Core era a semente, a Filha da Terra, nascida e renascida das entranhas
da Mãe. Com ponto final e desde o começo. Ela não adquiriu sementes como
sua jurisdição mais tarde. Vida, Core, semente — cada uma era idêntica ao
ciclo divino, eterno.
Mantendo toda distinção entre passado e futuro num grau mínimo (qual-
quer dualismo num grau mínimo), nossos ancestrais mais antigos percebiam
todas as coisas e a si mesmos como divinos e eternamente cíclicos, passan-
do pelo nascimento, pela morte e pelo renascimento. E personificavam esse
eterno PADRÃO, esse Processo cíclico, como "a Grande Deusa Mãe que dá à
luz todo o universo e toda a vida a partir de suas Entranhas Cósmicas". Ela
deu à luz a própria terra; e uma vez que a terra passou a existir, suas caver-
nas tornaram-se uma extensão das entranhas cósmicas da Deusa, das quais
nasceram o sol no solstício de inverno, assim como os animais, as pessoas...
tudo criação Dela. A terra era o corpo da Mãe do qual nascemos e ao qual
retornamos na morte (pelo sepultamento) para o renascimento, exatamente
como as sementes, quando mortas, são devolvidas à terra (enterradas) e Dela
recebem a dádiva do renascimento, nascendo de novo no eterno, divino ci-
clo de nascimento-morte-renascimento. O corpo da Mãe, a terra, era perce-
bido tanto como o ventre do qual nascemos, como a sepultura na qual somos
enterrados — que automaticamente é de novo o ventre do qual renascere-
mos no ciclo sem fim. Ambos, ventre e sepultura. Não um ou outro.
Algumas vezes, nossos ancestrais percebiam a forma de vida como con-
tinuamente inalterada através do ciclo de nascimento-morte-renascimento
— como, digamos, uma romã que morre (transforma-se em semente) e nas-
ce novamente como uma romã. A humanidade mais antiga também teste-
munhou formas de vida em fluxo, uma forma tornando-se constantemente
outra em transformações mágicas — formas fluindo, alternando-se,
entremesclando-se mutuamente. O abutre comia peixes mortos, transfor-
mando-os em abutre (renascimento de uma forma diferente), deixando os
ossos para serem transformados, pelo trabalho divino da Mãe como Vento,
Água e Tempestade, em solo (renascimento de peixe e ave para uma outra
forma ainda), depois o solo se transforma em planta e a planta em animal ou
ser humano e assim por diante. Cada transformação, cada estágio do proces-
so cíclico da morte ao renascimento-em-outra-forma era visto como igual-
mente importante, igualmente valioso no plano total ou ciclo da vida no
universo. Nossos antigos ancestrais não precisavam preverseu renascimento
112 Género, Corpo, Conhecimento
como seres humanos. Para eles, não havia formas ideais, não havia formas
fixas; nenhuma era percebida como mais próxima à deidade ou "mais divi-
na " do que alguma outra. A deidade era imanente em todas as formas. O
PADRÃO divino estava no processo cíclico comum; o PADRÃO em si era a
divindade última. Essa visão do funcionamento sagrado na natureza traz
dentro de si um respeito ecológico por toda a natureza que a terra certamente
apreciaria no atual momento de história em tempo linear.
O PADRÃO de nascimento-morte-e-renascimento era, ele mesmo, divi-
no e Feminino. Nascimento e renascimento eram vistos como sua essência
primordial, o âmago do PADRÃO, e reconhecidos como as características
significantes e distintivas do "feminino". A definição mínima de "femini-
no" no dicionário é o sexo que dá à luz, bota ovos ou se divide
partenogeneticamente. A Deusa tinha dentro de Sua natureza as característi-
cas de tudo o que Ela deu à luz; e, como ela deu à luz filhos e filhas, Ela
Mesma tinha de ser tanto Masculina como Feminina, assim como também
era Árvore, Pedra, Mar, Pássaro e assim por diante. Ela era bissexual, mas
nunca uma coisa neutra. Era sempre Ela — considerada na origem como o
Feminino Primordial, como Mãe e Criadora Primordial.
É preciso tomar cuidado para não pensar na Grande Deusa Mãe literal-
mente: como uma grande Mulher dando à luz em algum lugar "lá fora". A
personificação de um PADRÃO Mítico ou divino origina-se da imanência e
do pensamento metafórico. Pensar nessas Imagens divinas como algo "lá
fora", que deve ser tomado ao pé da letra, as reduz a simples máscaras; as
imagens tornam-se individuais ou específicas demais — demasiado triviais,
mesmo que sejam heróicas — deixando, ao contrário da Metáfora do Mito,
de falar profunda, universal e verdadeiramente sobre a natureza do mundo e
de toda a humanidade.
Literalidade/Metáfora. Na epistemologia tradicional, uma dessas duas
linguagens é privilegiada; só uma é aceitável para determinar conhecimen-
to. Mas ambas, a literal e a metáfora são verdadeiras e têm valor para o
conhecimento. Ambas, não uma ou outra. A linguagem da literalidade é boa
para a lógica e, às vezes, para a matemática. Apolo é uma metáfora e uma
imagem para esses valores. A linguagem da Metáfora, por outro lado, não se
deixa traduzir para a lógica, mas é boa para muitas tarefas na ciência, assim
como para traduzir o Mito e seu significado de totalidade, de universais que
se referem àquilo que as pessoas compartilham. Examinarei agora a Ima-
gem Metafórica da deidade Grande Mãe, para encontrar o conhecimento
nela contido.
Os Usos do Mito, da Imagem e do Corpo da Mulher na Re-imaginação do Conhecimento 113
homens nas culturas que adoravam Deusas. Relata que, nas culturas neolíticas,
"uma divisão do trabalho entre os sexos é indicada, mas não uma superiori-
dade de um ou outro" (1980:32). "O papel de uma mulher não era sujeito ao
papel de um homem" (1982:237), pois ambos, mulheres e homens tinham
um trabalho de responsabilidade, ainda que diferente, no governo e na sub-
sistência e cada qual era respeitado e valorizado.19 As mulheres eram consi-
deradas líderes e sacerdotisas que se encarregavam dos rituais religiosos
nessa "sociedade geralmente não estratificada e basicamente igualitária, sem
distinções marcantes baseadas em classe ou sexo" (Eisler, 1987:14). O Mito
e a sociedade eram ambos dominados pela M/mãe, mas não era uma domi-
nação no sentido de um tirânico poder sobre os outros; "esse domínio tinha
um caráter de centralidade e experiência" (French, 1985:35), pois toda a
vida era vista como criada e autorizada a partir de dentro por E/ela.
A tarefa de resgatar os corpos das mulheres a serviço do conhecimento
significa resgatar o sangue das mulheres. Há de se deixar para trás a noção
do sangue menstrual como maldição ou algo a ser ignorado e voltar à per-
cepção neolítica do mesmo como algo a ser celebrado, considerado como a
Fonte Sagrada da Vida, contendo a Sabedoria das Idades, passada de Mãe
para a Filha. O sangue das entranhas das mulheres tem sido considerado
sagrado e relacionado à Sabedoria desde os tempos mais remotos — por
exemplo, o ocre vermelho é muitas vezes encontrado em lugares onde o
renascimento era solenemente desejado, nas entradas das cavernas e em cor-
pos mortos. Quente, vermelho, sangue, entranhas, escuro — essas palavras
claramente "relacionadas" à menstruação representam todas vigor, vida,
excitação, paixão. Vêm da coluna da direita, considerada tabu, mas dizem
respeito a qualquer epistemologia, pois são essenciais para o conhecimento
sobre a vida e a existência humanas.
Quando uma mulher envelhecia e não mais sangrava, a chamavam de
Anciã, uma "Velha Sábia", porque o "Sangue da Sabedoria" (como era cha-
mado o sangue menstrual) estava sendo guardado dentro (Walker, 1985:49).
Atena, a Deusa da Sabedoria, traz no peito a cabeça cortada e sangrante de
Górgona, porque a mulher que sangrava era relacionada com a Sabedoria,
mesmo na era clássica. Atena também apresenta outros vestígios que a iden-
tificam como derivada da mais antiga Deusa da Sabedoria: Gaia, aquela da
profunda Sabedoria da Terra. De uma fenda na Terra (corpo de Gaia) em
Seu tempo em Delfos, vinham as vozes e as serpentes da Profecia, sendo
Píton, Filha de Gaia, a que falava a Verdade. A serpente do oráculo enrola-
se em volta das pernas de Atena e a sábia, velha coruja oracular pousa em
seu ombro.
O Mito nos conta uma história interessante: antes de um certo tempo,
120 Género, Corpo, Conhecimento
novos PADRÕES e novas ideias20 (enlouquecedor para quem pensa que tem
de manter tudo categorizado e sistematizado) é interessante olhar novamen-
te para as colunas do dualismo com esses dois modelos de criação em men-
te. Qual é mais humano?
NOTAS
1. Apolo é "o principal portador de símbolos da civilização clássica... Seja o corpo de
um deus ou de um homem [o Ideal Masculino] é sempre imutável e imortal" (Redner,
1986:350; grifo meu).
2. Mais plenamente desenvolvido no trabalho de Donna Wilshire e Bruce Wilshire
"Spatial Archetypes and the Gender Stereotypes in Them" (Arquétipos espaciais e os este-
reótipos de género neles contidos Anima—An Experiential Journal (Primavera de 1989).
3. Hell é o nome para Hei, outrora amada Deusa dos Infernos.
4. Para esclarecimentos desta ideia, ler "On Psychological Femininity" (Sobre a
feminidade psicológica) em Hillman (1972:215-298). Para um debate sobre como o Divino
Feminino (e.g.. Sabedoria como Sofia) foi depreciado e suprimido na filosofia grega, hebraica
e cristã, ler Joan C. Engelsman The Feminine Dimension ofthe Divine (A dimensão femini-
na do divino) (1987). Ver também Catherine Keller: From a Broken Web: Separation, Sexism,
and Self (A teia rompida: separação, sexismo e o ser) (1987).
5. Para a análise de textos mostrando Sofia enraizada em Gaia, Deusa da Sabedoria da
Terra, ver Engelsman, 1987.
6. Como em: "A visão e a audição usam nossa inteligência de duas maneiras comple-
tamente diferentes. ...Nossa inteligência óptica forma a imagem na mente. A audição, por
outro lado... evoca uma resposta dos centros emotivos" (Lawlor, 1982:14).
7. A presença da "evolução" nesta coluna em oposição a "permanência" e "formas
ideais [fixas]" pode ser devido tanto à dificuldade que a evolução ainda encontra em algu-
mas esferas, como à relutância de filósofos dominantes da ciência em abraçar outras teorias
de flexibilidade, como a do físico Ilya Prigogine (Prémio Nobel) em sua Teoria do Caos
(1984) e em seu trabalho sobre padrões emergentes (1980), ou a ilogicidade das teorias
quânticas.
8. Provavelmente, Carol Gilligan acrescentaria "justiça e direitos" à coluna da esquer-
da, como " a típica voz masculina". E colocaria "relações de cuidados" na coluna da direita,
como "a típica voz feminina". Sua pesquisa mostra que, embora a perspectiva baseada em
Os Usos do Mito, da Imagem e do Corpo da Mulher na Re-imaginação do Conhecimento 123
americanos "de que papéis reprodutivos são a causa da subordinação das mulheres; [e] de
que os homens são, de alguma forma, intrínseca e universalmente dominantes". Realmente,
"as mulheres não são nem inferiores nem superiores aos homens, apenas diferentes", na
cultura Oglala. "Ambos os sexos são valorizados pela contribuição que fazem à sociedade"
(Powers, 1986:6).
20. O trabalho de Prigogine revela que novos padrões e estruturas, as bases físicas da
vida, emergem constante e aleatoriamente (1984).
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CURANDO AS FERIDAS:
FEMINISMO, ECOLOGIA E
DUALISMO NATUREZA/CULTURA
Ynestra King
para que as feministas levem a sério a ecologia, mas há outras razões por
que a ecologia é central para a filosofia e os princípios políticos feministas.
A crise ecológica está relacionada com sistemas de aversão a tudo o que é
natural e feminino por parte de formuladores brancos, masculinos, ociden-
tais, de filosofia, tecnologia e invenções mortíferas. Sustento que o sistemá-
tico aviltamento de trabalhadores, pessoas de cor, mulheres e animais está
totalmente ligado ao dualismo básico que está na base da civilização oci-
dental. Mas essa ideia de hierarquias dentro da sociedade humana está mate-
rialmente alicerçada na dominação do ser humano por outro ser humano,
particularmente das mulheres pelos homens. Embora não possa falar em
nome das lutas de liberação de pessoas de cor, acredito que as metas do
feminismo, da ecologia, e dos movimentos contra o racismo e a favor dos
povos indígenas estejam relacionadas entre si; devem ser entendidas e per-
seguidas conjuntamente, num movimento mundial, genuinamente pela vida.4
Na raiz da sociedade ocidental, existe, ao mesmo tempo, uma profunda
ambivalência sobre a própria vida, sobre nossa própria fertilidade e aquela
da natureza não humana, e uma terrível confusão sobre nosso lugar na natu-
reza. Esta não declarou guerra à humanidade; a humanidade patriarcal é que
declarou guerra às mulheres e à natureza viva. Em nenhum lugar, essa tran-
sição é mais angustiosamente retratada do que no coro da Antígone, de
Sófocles:
ções dos seres humanos entre si, especialmente nas cidades. Mas, com a
chegada das modernas tecnologias, a tarefa da ética e o âmbito da política
mudam drasticamente. A consideração do lugar dos seres humanos na nature-
za, antes território da religião, torna-se uma preocupação crucial para todos
os seres humanos. Com essas tecnologias, a particular responsabilidade dos
seres humanos com a natureza precisa se deslocar para o centro da política.
Como escreve o ético da biologia Hans Jonas, "Um tipo de responsabilidade
metafísica, além do auto-interesse, nos foi delegado em virtude da magnitu-
de de nossos poderes relativos a essa tênue camada de vida, isto é, desde que
o homem se tomou perigoso não apenas para si, mas para toda a biosfera".5
Todavia, no mundo inteiro, o capitalismo, como cultura predominante e
economia do auto-interesse, está homogeneizando culturas e simplificando
a vida na terra, ao romper equilíbrios naturalmente complexos dentro do
ecossistema. O capitalismo depende de mercados em expansão; por essa
razão, áreas cada vez maiores precisam ser intermediadas por produtos vendi-
dos. Do ponto de vista capitalista, quanto mais coisas puderem ser compradas
e vendidas, tanto melhor. Esse sistema impõe uma visão de mundo raciona-
lizada, afirmando que tanto a ciência humana como a tecnologia são ineren-
temente progressivas — o que denigre sistematicamente culturas ancestrais
— e que os seres humanos têm o direito de dominar a natureza não humana.
A natureza não humana está sendo rapidamente reduzida, destruindo-se
o trabalho da evolução orgânica. A cada ano, centenas de espécies de vida
desaparecem para sempre e a cifra está aumentando. Os ecossistemas diver-
sificados, complexos, são mais estáveis do que os simples. Exigiram perío-
dos mais longos de evolução e são necessários para sustentar os seres huma-
nos e muitas outras espécies. Todavia, em nome da civilização, a natureza
vem sendo dessacralizada num processo de racionalização que o sociólogo
Max Weber chamou de "desencanto do mundo".
A diversidade da vida humana no planeta também está sendo minada.
Esse processo mundial de simplificação empobrece toda a humanidade. A
diversidade cultural das sociedades humanas no mundo desenvolveu-se em
milhares de anos; é parte da evolução geral da vida no planeta. Homogeneizar
a cultura significa fazer do mundo uma fábrica gigante e favorecer governos
autoritários de cima para baixo. Em nome da ajuda a pessoas, os países
industrializados exportam modelos de desenvolvimento cuja premissa é a
de que a maneira americana de viver é a melhor para todos. Neste país, os
McDonald's e os shopping malls* atendem a uma clientela uniforme, que se
torna cada vez mais uniforme. Ir às compras tornou-se um verbo em inglês
"Por que as mulheres seriam mais a favor da paz que os homens? Penso
que se trata de uma questão de igual importância para ambos!... como
se ser mãe significasse ser pela paz. Equiparar ecologia e feminismo é
algo que me irrita. Não são em absoluto automaticamente uma e mes-
16
ma coisa.
Ela reitera a posição que tomou há mais de quarenta anos em O Segundo
Sexo — a de que é uma atitude sexista definir as mulheres como seres mais
próximos da natureza do que os homens. Sustenta que essas associações as
desviam de sua luta por emancipação e canalizam suas energias para "ques-
tões secundárias", como ecologia e paz.
A explicitação contemporânea mais conhecida dessa posição é a de
Shulamith Firestone, em The Dialectic of Sex (A dialética do sexo),17 que
termina com um capítulo defendendo a produção de bebés de proveta e a
eliminação da reprodução biológica dos corpos das mulheres, como condi-
ção para sua liberação.
Seguindo Beauvoir, o feminismo radical racionalista é a versão do fe-
minismo radical que muitas feministas socialistas estão tentando integrar ao
materialismo históricomarxista;18 sua asserção é a de que a identificação
mulher/natureza é ideologia masculina e um instrumento de opressão, que
deve ser superado.19 Portanto, se as mulheres devem ter plena participação
no mundo masculino, não deveríamos fazer nada em nome do feminismo
que reforce a ligação mulher/natureza. Feministas socialistas procuram manter
o compromisso do feminismo liberal com a igualdade, combinando-o com
uma análise socialista de classe.
A outra forma de feminismo radical procura abordar a raiz da opressão
das mulheres com a teoria e a estratégia opostos; esse feminismo radical
cultural é geralmente chamado de feminismo cultural. As feministas cultu-
rais resolvem o problema não obliterando a diferença entre homens e mu-
lheres, mas tomando o partido das mulheres, que, tal como o vêem, é tam-
bém o partido da natureza não humana. O feminismo cultural origina-se do
feminismo radical, enfatizando as diferenças em vez das similaridades entre
homens e mulheres. E de modo não surpreendente, interpretaram o slogan
"o pessoal é político" na direção oposta, personalizando o político. Cele-
bram a experiência de vida do "gueto feminino", que vêem como fonte de
liberdade feminina, ao invés de subordinação. As feministas culturais afir-
mam, seguindo Virgínia Woolf, que não desejam ingressar no mundo mas-
culino com sua "procissão de profissões".20 Tentaram articular, e mesmo
136 Género, Corpo, Conhecimento
nham suas vidas separadas deles. Para Daly, a opressão das mulheres sob o
patriarcado e a pilhagem do mundo natural são o mesmo fenómeno e, conse-
quentemente, ela não diferencia teoricamente as duas questões.21 Na esfera
política, Sónia Johnson participou recentemente de uma campanha presi-
dencial como candidata do Partido dos Cidadãos, traduzindo uma perspecti-
va muito parecida com a de Daly para termos políticos convencionais.22 Meu
ecofeminismo é diferente daquele de Daly; penso que Gyn/ecology apresen-
ta uma fenomenologia vigorosa. É uma obra de naturalismo metafísico ou
de metafísica naturalista — de toda forma, dualista. Apenas virou de cabeça
para baixo o velho misógino Tomás de Aquino. Embora seja mais correta do
que ele, definiu o feminino a partir do masculino, reificando-o. Essa inver-
são não nos leva para além do dualismo, o que creio ser o programa
ecofeminista.
O livro de Susan Griffin Women and Nature: The Roaring Inside Her
(Mulheres e natureza: o rugido dentro dela) é outro clássico do feminismo
cultural. Longo poema em prosa, não pretende explicitar uma filosofia e um
programa políticos precisos, mas nos fazer saber e sentir como a ligação
mulher/natureza atuou historicamente na cultura ocidental dominante. Su-
gere uma grande potencialidade para um movimento que ligue feminismo e
ecologia, com uma relação imanente ou mística com a natureza. Griffin não
pretende trocar a história pelo mistério, embora seu trabalho tenha sido in-
terpretado dessa maneira. Ambiguamente situado entre a teoria e a poesia,
tem sido lido de forma demasiada literal e às vezes evocado erroneamente
para confundir a dominação da natureza num único e intemporal fenóme-
no.23 Griffin acaba com as rígidas fronteiras entre sujeito e objeto, sugerindo
uma recuperação do misticismo como um meio de conhecer a natureza de
forma imanente.
Um problema que as feministas culturais brancas, como outras feminis-
tas, não enfrentaram de modo adequado é que, ao celebrarem o que as mu-
lheres têm em comum e enfatizarem as formas pelas quais elas são vítimas
universais da opressão masculina, deixaram de abordar a real diversidade
das vidas e das histórias de mulheres que se distinguem quanto a raça, classe
e nacionalidade. Para as mulheres de cor, a oposição ao racismo e ao genocídio
e o encorajamento do orgulho étnico são compromissos muitas vezes parti-
lhados com homens de cor numa sociedade dominada pelos brancos, mes-
mo enquanto lutam contra o sexismo em suas próprias comunidades. Essas
lealdades complexas, multidimensionais, e as situações de vida historica-
mente divergentes exigem uma política que reconheça essas complexida-
des. A conexão entre mulheres e natureza levou a uma romantização em que
elas são vistas só como virtuosas e separadas de todas as vis realidades dos
138 Género, Corpo, Conhecimento
*No original, gentrification: designação de processos de ocupação de zonas urbanas por populações
mais afluentes, que provocam a expulsão das anteriores, mais pobres e compostas, em sua maioria, por
pessoas de cor. (N. da T.)
Curando as Feridas: Feminismo, Ecologia e Dualismo Natureza/Cultura 139
pelos homens, as mulheres não serão iguais. Iria ser assim, mesmo que a
ERA (Emenda de Direitos Iguais)* passasse.
Mas as feministas socialistas compartilharam as tendências racionalistas
do feminismo liberal, retratando o mundo essencialmente em termos de tro-
ca económica — seja de produção ou reprodução — e concordaram com a
análise das feministas liberais de que devemos nos empenhar de todas as
maneiras possíveis para demonstrar que somos mais parecidas com os ho-
mens do que diferentes deles. Algumas feministas socialistas até sustenta-
ram que o feminismo liberal tem um potencial radical.34 Para elas, as pre-
missas dualistas, excessivamente racionalizadas do feminismo liberal, não
constituem problema. Também consideram que romper a ligação mulher/
natureza é um projeto feminista.
Nesse sentido, a força e a fraqueza do feminismo socialista estão na
mesma promessa: a centralidade da economia em sua teoria e sua prática.
Feministas socialistas têm articulado uma forte análise económica e de clas-
se, mas não abordaram suficientemente a dominação da natureza.35 Seu pro-
grama estaria completo, se pudéssemos superar desigualdades sistemáticas
de poder social e económico. As feministas socialistas abordaram uma das
três formas de dominação da natureza, a dominação entre pessoas, mas não
levaram seriamente em consideração a dominação tanto da natureza não
humana, como da natureza interior.
O feminismo socialista deriva do socialismo, mas vai além dele, ao de-
monstrar a dinâmica independente do patriarcado e contestar fundamental-
mente as pretensões totalizadoras da abordagem economicista marxista.
Afirma que as mulheres devem procurar entrar no mundo político como
sujeitos articulados, históricos, capazes de entender e fazer a história. E al-
gumas feministas socialistas têm utilizado o materialismo histórico de for-
mas muito criativas, tais como as teorias de pontos de vista de Alison Jaggar
e Nancy Hartsock,36 que tentam articular uma posição na qual as mulheres
podem fazer reivindicações históricas específicas sem por isso recaírem no
determinismo biológico. Porém, mesmo Hartsock, Jaggar e outras que estão
tentando uma análise histórica da opressão das mulheres com base em múl-
tiplos fatores, não tratam a dominação da natureza como uma categoria
significante para o feminismo, embora a mencionem de passagem.
Em geral, as feministas socialistas têm sido muito antipáticas em rela-
ção ao "feminismo cultural."37 Acusam-no de ser a-histórico, essencialista,
que definem como acreditar em essências masculinas e femininas (masculi-
tivo por muitos anos após a batalha. Dessa forma, a fome e a miséria conti-
nuam muito depois das lutas terem cessado.43 Aqui também, as mulheres —
muitas vezes mães agricultoras — respondem à necessidade. Tornam-se as
guardiãs da terra, num esforço árduo para ganhar a vida para alimentar a si
mesmas e a suas famílias.
Outras áreas do ativismo feminista também ilustram uma perspectiva
ecofeminista esclarecida.44 Potencialmente, um dos melhores exemplos de
relação dialética adequadamente mediada com a natureza é o movimento
feminista de saúde. A medicalização do parto no início do século XX, o
remanej amento e a apropriação da reprodução criaram novas tecnologias
lucrativas para o capitalismo e transformaram processos naturais até então
mediados por mulheres em áreas controladas por homens. Assim, elas ren-
deram-se aos serviços dos especialistas,45 interiorizando a noção de que não
sabem o bastante e cedendo seu poder. Também aceitaram a ideia de que a
máxima intervenção na natureza e sua dominação constituem um bem ine-
rente.
Mas desde o início do feminismo nos anos 60, as mulheres nos Estados
Unidos percorreram um longo caminho na reapropriação e desmedicalização
do parto. Como resultado desse movimento, um número muito maior delas
deseja ter acesso a todas as opções, escolhendo técnicas médicas invasivas
somente em circunstâncias extraordinárias e com conhecimento de causa.
Não rejeitam necessariamente a utilidade dessas tecnologias em alguns ca-
sos, mas apontaram as motivações de lucro e controle em sua aplicação
generalizada. Da mesma forma, defendo que o feminismo não deveria repu-
diar todos os aspectos da ciência e da medicina ocidentais, mas que deverí-
amos alcançar a sofisticação de poder decidir por nós mesmas quando a
intervenção nos convém.
Uma área relacionada, crucial para uma praxis genuinamente dialética,
é a reconstrução da ciência levando em conta as críticas a ela apresentadas
pela ecologia e pelo feminismo radicais.46 Historiadores(as) e filósofos(as)
da ciência feminista estão demonstrando que a vontade de saber e a vontade
de poder não precisam ser a mesma coisa. Sustentam que há modos de co-
nhecer o mundo que não estão baseados na objetificação e na dominação.47
Aqui, novamente coexistem epistemologias, aparentemente antitéticas, como
ciência e misticismo. Precisaremos de todas as formas de conhecimento para
criar neste planeta maneiras de viver que sejam, ao mesmo tempo, ecologi-
camente viáveis e livres.
Como feministas, teremos que desenvolver um ideal de liberdade que
não seja anti-social nem antinatural.48 Já ultrapassamos o ponto de um ideal
rousseauniano de romper nossos grilhões para retornar a uma natureza
148 Género, Corpo, Conhecimento
alardeada como livre, se é que isso algum dia existiu. O ecofeminismo não é
uma argumentação para uma volta à pré-história. O conhecimento de que as
mulheres não foram sempre dominadas e a sociedade não foi sempre hierár-
quica é uma inspiração poderosa para as mulheres contemporâneas, contanto
que essa sociedade não seja representada como uma "ordem natural", sepa-
rada da história, à qual teremos que voltar inevitavelmente por uma grande
reversão.
De uma perspectiva ecofeminista, somos parte da natureza, o que não
significa que sejamos intrinsecamente bons ou maus, livres ou não livres.
Nenhuma ordem natural representa a liberdade. Somos potencialmente li-
vres na natureza; mas como seres humanos, essa liberdade deve ser intenci-
onalmente criada, usando, de forma não instrumental, nosso conhecimento
do mundo natural do qual fazemos parte. Temos, portanto, que desenvolver
uma compreensão diferente da relação entre a natureza humana e a não hu-
mana. Para isso, precisamos de uma teoria da história na qual a evolução
natural do planeta e a história social da espécie não estejam separadas, pois
emergimos da natureza não humana, como o orgânico emergiu do inorgânico.
Potencialmente, recuperamos a ontologia como base para a ética.49 Nós,
seres humanos reflexivos, temos que usar a plenitude de nossa sensibilidade
e nossa inteligência para nos lançar intencionalmente para um outro estágio
da evolução — um no qual fundiremos um novo modo de ser humano neste
planeta, com um senso do sagrado, instruído por todas as formas de conhe-
cimento, intuitiva e científica, mística e racional. É o momento em que nós,
mulheres, nos reconhecemos como agentes da história — sim, até mesmo
agentes singulares — e sabiamente construímos pontes para ligar os clássi-
cos dualismos entre espírito e matéria, arte e política, razão e intuição. É a
potencialidade de um reencantamento racional. Este é o projeto do
ecofeminismo.
Neste ponto da história, a dominação da natureza está inextricavelmente
ligada à dominação de pessoas e ambas devem ser abordadas sem alegações
sobre "a contradição primária", na busca de um único ponto de Arquimedes
para a revolução. Não existe nada assim. E não há sentido em liberar pessoas,
se o planeta não puder sustentar essas vidas liberadas ou sem salvar o plane-
ta sem consideração pelo grande valor da existência humana, não só para
nós mesmas, mas para o restante da vida na terra.
NOTAS
1. Uma questão importante, discutida no Fórum da Década das Mulheres, realizado
pelas Nações Unidas em Nairobi, Quénia, em 1985, foi o efeito do sistema monetário inter-
nacional sobre as mulheres e os ónus particulares que sobrecarregam aquelas dos países em
desenvolvimento em virtude de suas dívidas com o Primeiro Mundo, em especial junto a
interesses económicos dos Estados Unidos.
2. O movimento de liberação de animais está mais desenvolvido na Grã-Bretanha do
que nos Estados Unidos. Uma de suas principais publicações é um periódico chamado Beast:
The Magazine that Bites Back (Animal: a revista que morde de volta). Ver Peter Singer,
Animal Liberation: A New Ethicsfor Our Treatment ofAnimais (Liberação dos animais:
uma nova ética para nosso tratamento dos animais) (New York: Avon Books, 1975).
3. A NOW — National Organization for Women (Organização Nacional de Mulhe-
res) foi atingida pela miopia dessa posição, apoiando o serviço militar para mulheres porque
é aplicado aos homens, ao invés de adotar uma posição antimilitarista, opondo-se ao recru-
tamento para qualquer um. Em sua convenção de Denver, em junho de 1986, a organização
começou a avaliar sua posição a respeito, mas o processo só pôde avançar através das estru-
turas do comité estadual e levará tempo para que alcance o nível nacional. Mesmo então,
não há garantia sobre a mudança dessa posição.
4. É um exemplo absurdo de newspeak* que a designação "pró-vida" tenha sido apro-
priada pela direita militarista que defende a gravidez forçada.
5. Hans Jonas, The lmperative of Responsibility: In Search of an Ethics for the
Technological Age (O imperativo da responsabilidade: em busca de uma ética para a era
tecnológica) (Chicago: University of Chicago Press, 1984), 136.
6. Para um debate mais detalhado sobre esse ponto, ver William Leiss, The Limits of
Satisfaction: An Essay on the Problem ofNeeds and Commodities (Os limites para a satis-
fação: um ensaio sobre o problema das necessidades e das mercadorias) (Toronto: University
of Toronto Press, 1976).
7. Em A Ideologia Alemã, Marx foi contra o socialismo da "ordem natural" de
Feuerbach, embora ele mesmo tivesse se voltado anteriormente para um "socialismo natu-
ralista" nos Manuscritos Econômico-Filosóficos. Ver T. B. Bottomore, Karl Marx: Early
Writings (Karl Marx: Primeiros escritos) (New York: McGraw-Hill, 1964).
Desde Marx, os chamados socialistas científicos têm afirmado que o socialismo é a
culminância da razão, compreendida como a dominação da natureza, e têm argumentado
contra o utopismo. Para esses marxistas, "utópico" é uma palavra feia; significa não realis-
ta, não científico, antiinstrumental, ingénuo por definição. Os anarquistas sociais apresen-
tam posições mais ambivalentes quanto à dominação da natureza, mantendo-se fiéis às di-
mensões culturais do socialismo utópico pré-marxista. Embora ambos, o socialismo cientí-
fico e o anarquismo social, façam parte da tradição histórica socialista, num contexto con-
temporâneo, o termo "socialismo" aplica-se aos marxistas para distingui-los dos "anarquis-
tas". Ultimamente há um movimento entre os socialistas para "recuperar" a tradição utópica
pré-marxista e utilizar essa história esquecida para salvar o socialismo contemporâneo. Pen-
so que isso é a-histórico, porque deixa de lado o problema da necessidade de criticar a
história (e a teoria) do socialismo marxista antiutópico. Os socialistas e anarquistas têm
apresentado diferença ideológicas fundamentais a respeito de questões como a dominação
da natureza, a distinção base/estrutura, o poder e o Estado, a sexualidade e o indivíduo. O
45. Ver Barbara Ehrenreich e Dierdre English, For Her Own Good: 150 Years ofthe
Experts Advice to Women (Para seu próprio bem: 150 anos de conselhos de especialistas
para as mulheres) (Garden City, N. Y.: Anchor Press, 1979).
46. Elizabeth Fee, "Is Feminism a Threat to Scientific Objectivity?" (É o feminismo
uma ameaça à objetividade científica?), International Journal of Women 's Studies 4, n° 4
(1981). Ver também Sandra Harding, The Science Question in Feminism (A questão da
ciência no feminismo), (Ithaca, N. Y.: Cornell University Press, 1986) e Evelyn Fox Keller,
Reflections on Genderand Science (Reflexões sobre género e ciência) (New Haven, Conn.:
Yale University Press, 1985).
47. Evelyn Fox Keller, A Feelingfor the Organism: The Life and Work of Barbara
McClintock (Um sentimento pelo organismo: a vida e a obra de Barbara McClintock) (S.
Francisco: W. H. Freeman, 1983).
48. As interpretações interculturais sobre liberdade pessoal da antropóloga Dorothy
Lee são evocativas desse ideal. Ver dela: Freedom and Culture (Liberdade e cultura) (New
York: Prentice Hall, 1959).
49. Estou ciente de que esse é um ponto polémico e que o estou desenvolvendo mais
explicitamente num trabalho sobre ética ecofeminista.
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Parte II
TRAJETÓRIAS FEMINISTAS DO
CONHECIMENTO
AMOR E CONHECIMENTO:
A EMOÇÃO NA
EPISTEMOLOGIA FEMINISTA
Alison M. Jaggar
EMOÇÃO
Um outro problema diz respeito aos critérios para preferir uma ou outra
explicação da emoção. Quanto mais se aprende sobre os meios pelos quais
outras culturas conceptualizam as faculdades humanas, tanto menos plausí-
vel se torna que as emoções constituam o que os filósofos chamam de "cate-
goria natural". Não só algumas culturas identificam emoções não reconhe-
cidas no Ocidente, como há motivo para se acreditar que o próprio conceito
de emoção é uma invenção histórica, tal como o conceito de inteligência
(Lewontin, 1982) ou aquele de mente (Rorty, 1979). Por exemplo, a antro-
póloga Catherine Lutz argumenta que "as categorias dicotômicas de
'cognição' e 'afeto' são elas mesmas construções culturais euro-america-
nas, símbolos dominantes que participam da organização fundamental de
nosso modo de olhar para nós mesmos e os outros (Lutz, 1985,1986), tanto
dentro como fora da ciência social" (Lutz, 1987:308). Se isso for verdade,
temos ainda mais motivos para duvidar da adequação das maneiras ociden-
tais comuns de falar sobre emoções. Todavia, não temos acesso às nossas
emoções ou às dos outros, de forma independente ou não mediada pelo dis-
curso de nossa cultura.
Diante dessas dificuldades, esboçarei uma explicação da emoção com
as seguintes limitações. Primeiro, operarei dentro do contexto das discus-
sões ocidentais sobre a emoção: não questionarei, por exemplo, se seria pos-
sível ou desejável prescindir inteiramente de tudo o que se assemelha a nos-
so conceito de emoção. Segundo, embora tente, tanto quanto possível, ser
consistente com a maioria dos entendimentos ocidentais a respeito, preten-
do cobrir apenas um domínio limitado e não todos os fenómenos que pos-
sam ser chamados de emoção. Assim, excluí como emoções genuínas res-
postas físicas automáticas e sensações não intencionais, como pontadas de
fome. Terceiro, não pretendo apresentar uma teoria completa a respeito; em
vez disso, focalizo alguns aspectos específicos da emoção que, presumo,
tenham sido negligenciados ou mal representados, especialmente em consi-
derações positivistas e neopositivistas. Finalmente, gostaria de defender
minha abordagem não só porque ela ilumina aspectos de nossa experiência e
nossa atividade obscurecidos pelos postulados do positivismo e do neoposi-
tivismo, mas também por ser menos vulnerável do que estes ao abuso ideo-
lógico. Em particular, acredito que reconhecer certos aspectos negligencia-
dos da emoção torna possível uma consideração mais acurada e ideologica-
mente menos tendenciosa de como o conhecimento é e de como deveria ser
construído.
Amor e Conhecimento: A Emoção na Epistemologia Feminista 161
divergentes sobre o que são as emoções. Por exemplo, dizem que as metáfo-
ras e metonímias do inglês revelam uma teoria "folclórica" ou popular da
raiva como um fluido quente, contido num reservatório dentro do indivíduo
que pode explodir de forma pública e perigosa. (Lakoff e Kovecses, 1987).
Em contraste, os Ilongot, das Filipinas, aparentemente não compreendem o
ser em termos de uma distinção entre público e privado; consequentemente,
não experimentam a raiva como uma força explosiva interna: para eles, é
um fenómeno interpessoal, pelo qual um indivíduo pode, por exemplo, ser
pago (Rosaldo, 1984).
Outros aspectos da construção social da emoção são revelados através
da reflexão sobre sua estrutura intencional. Se as emoções envolvem neces-
sariamente julgamentos, requerem obviamente conceitos que possam ser
vistos como maneiras socialmente construídas de organizar e compreender
o mundo. Por essa razão, as emoções são simultaneamente tornadas possí-
veis e limitadas pelos recursos conceituais e linguísticos de uma sociedade.
Essa asserção filosófica é corroborada pela observação empírica da variabi-
lidade cultural da emoção. Embora haja considerável superposição nas emo-
ções identificadas por muitas culturas (Wierzbicka, 1986), pelo menos algu-
mas emoções são histórica e culturalmente específicas, incluindo talvez o
ennui, a angst, o japonês amai (amor filial em que um se apega ao outro) e a
reação de "ser um porco selvagem", que ocorre entre os Gururumba, um
povo de horticultores que vive na região montanhosa da Nova Guiné (Averell,
1980:158). Até emoções aparentemente universais, como a raiva ou o amor,
podem variar de uma cultura para outra. Acabamos de ver como a expressão
da raiva entre os Ilongot difere bastante da moderna experiência ocidental.
O amor romântico foi inventado na Europa na Idade Média e, desde então,
tem sido modificado consideravelmente; por exemplo, não é mais restrito à
nobreza e não necessita mais ser extraconjugal ou não consumado. Em algu-
mas culturas, o amor romântico nem mesmo existe.9
Assim há pré-condições complexas, algumas linguísticas e outras soci-
ais, para a experiência, isto é, para a existência das emoções humanas. Aquelas
que experimentamos refletem formas predominantes de vida social. Por exem-
plo, ninguém poderia se sentir ou mesmo ser enganado na ausência de nor-
mas sociais sobre fidelidade; é inconcebível que a traição ou qualquer outra
emoção distintivamente humana possa ser experimentada por um indivíduo
solitário em algum hipotético estado natural e pré-social. Há uma consciên-
cia de que a culpa ou a raiva, a alegria ou o triunfo de qualquer indivíduo
pressupõem a existência de um grupo social capaz de sentir culpa, raiva,
alegria ou triunfo. Isso não quer dizer que as emoções do grupo precedem
historicamente ou são logicamente anteriores às emoções dos indivíduos;
Amor e Conhecimento: A Emoção na Epistemologia Feminista 165
Muitas vezes interpretamos nossas emoções como experiências que nos es-
magam ao invés de respostas que escolhemos conscientemente: que as emo-
ções sejam, até certo ponto, involuntárias é parte do significado comum do
termo "emoção". No entanto, mesmo na vida cotidiana, reconhecemos que
as emoções não são totalmente involuntárias e tentamos obter controle so-
bre elas de diversas maneiras, variando desde técnicas mecanicistas de mo-
dificação do comportamento, planejadas para sensibilizar ou dessensibilizar
nossas respostas afetivas em várias situações, até técnicas cognitivas desti-
nadas a nos ajudar a pensar melhor sobre as situações. Podemos, por exem-
plo, tentar mudar nossa resposta a uma situação perturbadora, pensando so-
bre a mesma de uma maneira que desviará nossa atenção de seus aspectos
mais dolorosos ou a apresentará como necessária para um bem maior.
Algumas teorias psicológicas interpretam as emoções como escolhidas
num nível ainda mais profundo — como ações em relação às quais o agente
nega responsabilidade. O psicólogo Averell, por exemplo, equipara a expe-
riência da emoção ao desempenho de um papel culturalmente reconhecido:
normalmente agimos de maneira tão uniforme e automática que não nos
damos conta de que estamos desempenhando um papel. Ele cita vários ca-
sos demonstrando que até manifestações extremas e aparentemente comple-
tamente envolventes de emoção são de fato funcionais para o indivíduo e/ou
a sociedade." Estudantes aos quais se pediu que registrassem suas experiên-
cias de raiva ou irritação durante um período de duas semanas, chegaram à
conclusão de que sua raiva não era tão incontrolável e irracional como ti-
nham suposto antes e perceberam sua utilidade e eficácia para obter vários
bens sociais. No entanto, Averell comenta que as emoções só são úteis para
alcançar o objetivo se forem interpretadas como paixões em vez de ações e
relata o caso de uma mulher levada a refletir sobre sua raiva, que escreveu
mais tarde que essa emoção passara a ser menos útil como mecanismo de
defesa, depois que ela tinha se tornado consciente de sua função.
A dicotomia ação/paixão é simples demais tanto para compreender a
emoção, como os outros aspectos de nossas vidas. Talvez seja mais útil pen-
sar nas emoções como respostas habituais mais ou menos difíceis de serem
166 Género, Corpo, Conhecimento
EPISTEMOLOGIA
exerçam uma influência contínua nos valores, nas observações, nos pensa-
mentos e nos atos articulados das pessoas.14
Na tradição positivista, a influência da emoção é geralmente vista ape-
nas como distorcendo ou impedindo a observação ou o conhecimento. É
verdade que desprezo, desgosto, vergonha, revolta ou medo podem inibir a
investigação de certas situações ou certos fenómenos. Pessoas furiosamente
zangadas ou extremamente tristes parecem muitas vezes completamente
alheias ao que as cerca, e até as suas próprias condições; podem não ouvir
ou sistematicamente interpretar erradamente o que outras pessoas dizem.
Pessoas apaixonadas são notoriamente desatentas a muitos aspectos da situ-
ação em volta delas.
Apesar desses exemplos, a epistemologia positivista reconhece que o
papel das emoções na construção do conhecimento não é invariavelmente
deletério e que elas podem dar uma contribuição valiosa para o conhecimen-
to. Mas a tradição positivista só permite à emoção desempenhar o papel de
sugerir hipóteses para a pesquisa. Isso é permitido porque a chamada lógica
da descoberta não coloca limites aos métodos idiossincráticos que os pes-
quisadores possam usar para gerar hipóteses.
Entretanto, quando as hipóteses devem ser testadas, a epistemologia
positivista impõe a lógica muito mais severa da justificação. O núcleo dessa
lógica é a replicabilidade, um critério tido como capaz de eliminar ou cance-
lar o que é conceptualizado como emocional, bem como os preconceitos
ligados a valores por parte dos pesquisadores individuais. Assim, as conclu-
sões da ciência ocidental são pretensamente "objetivas", precisamente no
sentido de que não são contaminadas pelos valores e pelas emoções supos-
tamente "subjetivos" que podem influenciar os pesquisadores individuais
(Nagel, 1968:33-34).
Se, como tem sido argumentado, a distinção positivista entre descoberta
e justificação não for viável, ela é incapaz de filtrar valores, colocando-os
fora da ciência. Por exemplo, embora essa cisão, quando embutida no méto-
do científico ocidental, possa geralmente obter êxito em neutralizar os valo-
res idiossincráticos ou não convencionais de pesquisadores individuais, ela
realmente não elimina, como muitos observaram, os valores sociais geral-
mente aceitos. Tais valores estão implícitos na identificação dos problemas
considerados dignos de investigação, na seleção das hipóteses consideradas
dignas de verificação e na solução dos problemas considerados dignos de
aceitação. A ciência dos séculos passados mostra exemplos evidentes da
influência dos valores sociais predominantes, seja na física atomística do
século XVII (Merchant, 1980), seja nas interpretações competitivas da sele-
ção natural (Young, 1985).
170 Género, Corpo, Conhecimento
Até agora, falei genericamente sobre pessoas e suas emoções, como se to-
dos experimentassem emoções e lidassem com elas de maneiras similares.
No entanto, é um axioma da teoria feminista que todas as generalizações
sobre "pessoas" são suspeitas. As divisões em nossa sociedade são tão pro-
fundas, particularmente as divisões de raça, classe e género, que muitos te-
óricos feministas alegariam que falar sobre pessoas em geral é ideologica-
mente perigoso, porque obscurece o fato de que ninguém é simplesmente
uma pessoa; ao contrário, é constituído fundamentalmente por raça, classe e
género. Esses fatores moldam cada aspecto de nossas vidas e nossa consti-
tuição emocional não está excluída. Reconhecê-lo ajuda-nos a ver mais cla-
ramente as funções políticas do mito do investigador imparcial.
Teóricos feministas têm assinalado que a tradição ocidental não tem
visto cada um como igualmente emocional. Em vez disso, a razão tem sido
associada a membros de grupos dominantes políticos, sociais e culturais e a
emoções a membros de grupos subordinados. Entre esses grupos subordina-
dos em nossa sociedade destacam-se as pessoas de cor, com exceção dos
supostamente "inescrutáveis orientais", e as mulheres.15
Embora a emocionalidade das mulheres seja um estereótipo cultural fa-
miliar, seu fundamento é bastante frágil. As mulheres parecem mais emotivas
do que os homens porque, juntamente com alguns grupos de pessoas de cor,
lhes é permitido e até exigido expressar emoção mais abertamente. Na cul-
tura ocidental contemporânea, as mulheres emocionalmente inexpressivas
são suspeitas de não serem mulheres de verdade,16 enquanto os homens que
expressam livremente suas emoções são suspeitos de serem homossexuais
ou, de alguma outra forma, desviantes do ideal masculino. Os homens oci-
dentais modernos, em contraste com os heróis de Shakespeare, por exem-
plo, devem mostrar uma fachada de calma, falta de excitação, até de tédio,
expressar emoção só raramente e assim mesmo por acontecimentos relati-
vamente triviais, como eventos esportivos, onde as emoções expressas são
reconhecidas e podem ser dramatizadas e, dessa forma, não são levadas in-
teiramente a sério. Assim, as mulheres formam, em nossa sociedade, o prin-
cipal grupo ao qual é permitido ou mesmo solicitado sentir emoção. Uma
mulher pode chorar em face da desgraça e um homem de cor pode gesticu-
lar, mas o homem branco deve simplesmente calar a boca.17
172 Género, Corpo, Conhecimento
Como já vimos, as emoções humanas maduras não são nem instintivas nem
biologicamente determinadas, embora possam ter se desenvolvido a partir
de respostas pré-sociais, instintivas. Como tudo o que é humano, as emo-
ções são em parte socialmente construídas; e como todas as construções
sociais, são produtos históricos, apresentando as marcas da sociedade que as
construiu. Dentro da própria linguagem da emoção, em nossas definições e
explicações básicas do que é sentir orgulho ou embaraço, ressentimento ou
desprezo, estão embutidas normas e expectativas culturais. Quando nos des-
crevemos, por exemplo, simplesmente como zangados, estamos pressupon-
do que estamos sendo lesados, vitimados pela violação de algumas normas
sociais. Absorvemos, assim, os padrões e valores de nossa sociedade no
próprio processo de aprendizagem da linguagem da emoção e eles estão
embutidos no alicerce de nossa constituição emocional.
Dentro de uma sociedade hierárquica, as normas e os valores predomi-
nantes tendem a servir aos interesses do grupo dominante. Dentro de uma
sociedade capitalista, de supremacia dos brancos e orientada para o mascu-
lino, os valores predominantes tenderão a servir aos interesses de homens
brancos ricos. Consequentemente, é provável que desenvolvamos uma cons-
tituição emocional completamente inadequada para o feminismo. Seja qual
for nossa cor, é provável que sintamos o que Irving Thalberg chamou de
"racismo visceral"; seja qual for nossa orientação sexual, é provável que
sejamos homofóbicos; seja qual for nossa classe, é provável que sejamos
pelo menos um tanto ambiciosos e competitivos; seja qual for nosso sexo, é
provável que sintamos desprezo pelas mulheres. As respostas emocionais
podem estar tão profundamente arraigadas em nós, que se tornam imperme-
áveis a argumentos intelectuais e podem vir à tona mesmo quando dirigimos
louvores fingidos a convicções intelectuais diferentes.19
Ao formar a constituição emocional de maneiras particulares, a socieda-
de ajuda a assegurar sua própria perpetuação. Os valores dominantes estão
implícitos nas respostas consideradas pré-culturais ou aculturais, nas cha-
madas respostas viscerais. Essas reações conservadoras não só tolhem e rom-
pem nossas tentativas de viver de forma social alternativa ou de prefigurá-
la, mas, na medida em que as considerarmos respostas naturais, também
podem funcionar como viseiras teóricas. Podem, por exemplo, limitar nossa
capacidade para perceber abusos, nos impedir de menosprezar certas coisas
ou incentivar o desprezo por outras, emprestar credibilidade à crença de que
a ganância e a dominação são motivações humanas inevitáveis e universais,
nos cegar, em suma, para a possibilidade de maneiras alternativas de viver.
174 Género, Corpo, Conhecimento
mundo e quem somos enquanto pessoas. Eles mostrariam como nossas res-
postas emocionais ao mundo mudam quando o conceptualizamos diferente-
mente e como essas respostas emocionais mutantes estimulam novas visões.
Demonstrariam a necessidade de teorias auto-reflexivas, focalizando não
só o mundo exterior, mas também nós mesmas(os) e nossa relação com o
mundo, examinando criticamente nossa situação social, nossas ações, nos-
sos valores, nossas percepções e nossas emoções. Esses modelos também
mostrariam como as teorias feministas e outras teorias sociais críticas são
instrumentos psicoterapêuticos indispensáveis, porque proporcionam as per-
cepções necessárias para uma compreensão plena de nossa constituição
emocional. Eles tornariam claro que a reconstrução do conhecimento é
inseparável da reconstrução de nós mesmos.
Um corolário da reflexividade da teoria feminista e de outras teorias
críticas é que ela exige uma concepção bem mais ampla do processo de
investigação teórica do que o positivismo aceita. Em particular, exige reco-
nhecer que uma parte necessária do processo teórico é o auto-exame crítico.
Portanto, o tempo gasto em analisar as emoções e descobrir suas fontes não
deveria ser visto como irrelevante para a investigação teórica, nem como
requisito prévio para a mesma; não é um tipo de preparo para a emoção, "um
lidar com" nossas emoções a fim de que não influenciem nosso pensamento.
Em vez disso, temos de reconhecer que nossos esforços para reinterpretar e
aprimorar nossas emoções são necessários para a nossa investigação teóri-
ca, da mesma forma como nossos esforços para reeducar nossas emoções
são necessários para nossa atividade política. A reflexão crítica sobre a emo-
ções não é um substituto auto-indulgente da análise e da ação políticas. É ela
mesma uma espécie de teoria e prática políticas, indispensável para uma
teoria social adequada e para a transformação social.
Finalmente, o reconhecimento de que a emoção desempenha uma parte
vital no desenvolvimento do conhecimento amplia nossa compreensão da
vantagem epistêmica reivindicada pelas mulheres. Podemos agora ver que
as visões subversivas das mulheres devem muito a suas emoções proscritas,
elas mesmas respostas apropriadas a suas situações subordinadas. Além de
sua propensão para vivenciar emoções proscritas, ao menos em algum nível,
as mulheres são relativamente eficientes em identificar essas emoções nelas
mesmas e em outrem, devido em parte a sua responsabilidade social pelos
cuidados com os outros, que incluem a educação emocional. E verdade que
as mulheres, como todas as pessoas subordinadas, especialmente aquelas
que têm de viver em íntima proximidade com seus dominadores, envolvem-
se muitas vezes em ilusões emocionais e até em auto-ilusões, como preço de
sua sobrevivência. Mesmo assim, podem ser menos propensas do que ou-
180 Género, Corpo, Conhecimento
11. Conclusão
NOTAS
Quero agradecer às seguintes pessoas que fizeram comentários úteis sobre versões anterio-
res deste trabalho ou me indicaram outros recursos; Lynne Arnault, Susan Bordo, Martha
Amor e Conhecimento: A Emoção na Epistemologia Feminista 181
Bolton, Cheshire Calhoun, Randy Cornelius, Shelagh Crooks, Ronald De Sousa, Tim Diamond,
Dick Foley, Ann Garry, Judy Gerson, Mary Gibson, Sherry Gorelick, Mareia Lind, Helen
Longino, Andy McLaughlin, Uma Narayan, Linda Nicholson, Bob Richardson, Sally Ruddick,
Laurie Shrage, Alan Soble, Vicky Spelman, Karsten Struhl, Joan Tronto, Daisy Quarm, Naomi
Quinn e Alison Wylie. Também sou grata aos meus colegas do seminário de Women's Studies
realizado no outono de 1985 no Douglass College, da Rutgers University; e, por suas respos-
tas a versões anteriores deste artigo, aos ouvintes nas seguintes instituições: Duke University,
Geórgia University Centre, Hobart College, William Smith College, Northeastern University,
Universidade da Carolina do Norte em Chapei Hill e Universidade de Princeton. Recebi, além
disso, muitos comentários valiosos daCanadian Society for Women in Philosophy e de estu-
dantes dos cursos de Lisa Heldke sobre epistemologia feminista, no Carleton College e na
Northwestern University. Agradeço também a Delia Cushway, que proporcionou um ambien-
te confortável, onde escrevi a primeira versão.
Uma versão similar deste ensaio foi publicada em Inquiry: An Interdisciplinary Journal
of Philosophy (junho de 1989). Reimpresso por permissão da Norwegian University Press.
1. Entre os filósofos que não concordam com essa generalização integram o que Susan
Bordo chama de tradição "recessiva" na filosofia ocidental estão Hume, Nietzsche, Dewey
e James (Bordo, 1987:114-118).
2. A tradição ocidental, como um todo, tem sido profundamente racionalista e boa
parte de sua história pode ser vista como uma contínua reelaboração das fronteiras do raci-
onal. Para um levantamento dessa história a partir de uma perspectiva feminista, ver Lloyd
1984.
3. Assim, o medo ou outras emoções eram vistos como racionais em algumas circuns-
tâncias. Para ilustrar esse ponto, Vicky Spelman cita Aristóteles {Ética a Nicomaco, Livro
IV, cap. 5): "Qualquer um que não fique zangado quando há razão para ficar, ou que não
fique zangado da maneira certa, no tempo certo e com as pessoas certas, é um tolo" (Spelman,
1982:1).
4. Descartes, Leibnitz Kant e estão entre os filósofos proeminentes que não endossa-
ram uma concepção instrumentalista e totalmente despojada sobre a razão.
5. O deslocamento dos valores para as atitudes e preferências humanas não era em si
um motivo para negar sua universalidade, porque poderiam ter sido concebidos como fun-
damentados numa natureza comum ou universal. Mas a ênfase foi colocada nos aspectos
variáveis e não nos aspectos compartilhados das preferências e respostas humanas; os valo-
res passaram a ser vistos gradualmente como individuais, particulares e até idiossincráticos,
em vez de universais e objetivos. A única exceção à variabilidade dos desejos humanos era
o supostamente universal impulso para o egoísmo e a tendência para maximizar o próprio
interesse, qualquer que ele fosse. A autonomia e a liberdade eram, consequentemente, vistas
como talvez os únicos valores capazes de justificação objetiva, porque eram uma precondi-
ção para satisfazer outros desejos.
6. Por exemplo, Julius Moravcsik caracterizou como emoções o que eu chamaria de
"simples" fome e sede, apetites que não são desejos por algum alimento ou bebida particu-
lar (Moravcsik, 1982:207-224). Penso que esses estados, que Moravcsik também chama de
instintos ou apetites, são mais claramente sensações do que emoções. Em outras palavras,
eu consideraria os chamados sentimentos instintivos, não intencionais, como a matéria-
prima biológica a partir da qual se desenvolvem as emoções humanas em sua plenitude.
7. Mesmo os adeptos da Visão pouco Inteligente reconhecem, naturalmente, que as
emoções não são inteiramente aleatórias ou não relacionadas aos juízos e às crenças do
indivíduo; em outras palavras, percebem que as pessoas estão zangadas ou excitadas com
alguma coisa, com medo ou orgulhosas de alguma coisa. Na Visão pouco Inteligente, entre-
tanto, os julgamentos ou as crenças associados à emoção são vistos como suas causas e,
assim, relacionados à emoção apenas externamente.
182 Género, Corpo, Conhecimento
Theory, ed. Richard A. Shweder and Robert. A. Levine. New York: Cambridge
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Cambridge University Press.
MULHERES E CUIDADOS:
O QUE AS FEMINISTAS PODEM
APRENDER SOBRE A MORALIDADE
A PARTIR DISSO?
Joan C. Tronto
care significava carga; cuidar é assumir uma carga. Quando uma pessoa ou
um grupo cuida de alguma coisa ou de alguém, presumimos que estão dis-
postos a trabalhar, a se sacrificar, a gastar dinheiro, a mostrar envolvimento
emocional e a despender energia em relação ao objeto de cuidados. Pode-
mos, assim, compreender afirmações como: ele só cuida (ele só se preocu-
pa) de ganhar dinheiro; ela cuida (com carinho) de sua mãe; esta sociedade
não cuida (não se preocupa com) dos sem-teto. À reclamação, você não tem
cuidado (você não se importa), respondemos mostrando alguma prova de
trabalho, sacrifício ou compromisso.
Se cuidar envolve um compromisso, deverá, então, ter um objeto. As-
sim, cuidar é necessariamente relacional. Dizemos que cuidamos de ou te-
mos cuidado com alguma coisa ou com alguém. Podemos distinguir "cuida-
do com" de "cuidar de" com base no objeto dos cuidados.1 "Cuidado com"
refere-se a objetos menos concretos; caracteriza-se por uma forma mais ge-
ral de compromisso. "Cuidar de" implica um objeto específico, particular,
que é o centro dos cuidados. As fronteiras entre essas duas formas de cuidar
não são tão nítidas como essas afirmações fazem subentender. Todavia, a
distinção é útil para revelar algo sobre a maneira como pensamos sobre cui-
dados em nossa sociedade, porque se ajusta à forma como ela define os
cuidados de acordo com o género.
"Cuidar de" envolve responder às necessidades particulares, concretas,
físicas, espirituais, intelectuais, psíquicas e emocionais dos outros. O pró-
prio ser, uma outra pessoa ou um grupo de outros, podem fornecer cuidados.
Por exemplo, cuido de mim mesma, uma mãe cuida da criança, uma enfer-
meira dos pacientes do hospital, a Cruz Vermelha das vítimas de um terre-
moto. Esses tipos são unificados por se originarem do fato de que os seres
humanos têm necessidades físicas e psíquicas (alimento, boa aparência, ca-
lor, conforto etc.) que requerem atividades para satisfazê-las. Essas necessi-
dades são em parte socialmente determinadas; também são atendidas em
sociedades diferentes por diferentes tipos de práticas sociais.
Em nossa sociedade, as estruturas privadas que envolvem "cuidar de"
localizam-se especialmente na família; profissões que proporcionam cuida-
dos são muitas vezes interpretadas como um apoio ou um substituto para
cuidados que não podem mais ser proporcionados dentro da família. Esta
pode não estar mais intacta em consequência de morte, divórcio ou distân-
cia. Ou pode não ser capaz de fornecer ajuda, porque alguns cuidados reque-
rem habilitação especial. Ou então, a própria família pode ser considerada a
fonte do problema, como no caso de famílias com padrões de abusos graves,
incesto, violência. Nesse caso, o cuidado tem sido prestado crescentemente
pelo Estado ou pelo mercado. Os americanos fazem menos refeições em
Mulheres e Cuidados: O Que as Feministas Podem Aprender Sobre a Moralidade... 189
casa, contratam empregadas, pagam para outros ficarem na fila por eles. Em
resposta a essa versão de cuidados crescentemente orientada pelo mercado,
alguns pensadores recuaram horrorizados e sugeriram que o cuidado não
pode ser dispensado se perturbar a integridade da relação do ser com o outro
(Elshtain, 1981:330; Noddings, 1984). O resultado é que na sociedade mo-
derna de mercado, a ilusão de cuidados é muitas vezes preservada: espera-se
dos prestadores de serviços que "finjam" ter cuidado (Hochschild, 1983).
Cuidar é uma atividade regida pelo género tanto no âmbito do mercado
como na vida privada. As ocupações das mulheres são geralmente aquelas
que envolvem cuidados e elas realizam um montante desproporcional de
atividades de cuidado no ambiente doméstico privado. Para colocar a ques-
tão claramente, os papéis tradicionais de género em nossa sociedade impli-
cam que os homens tenham "cuidado com" e as mulheres "cuidem de".
Como nem todo cuidado apresenta um caráter moral, uma outra distin-
ção entre ter "cuidado com" (preocupar-se) e "cuidar de" torna-se óbvia.
Quando queremos saber se "ter cuidado com" (preocupar-se) é uma ativida-
de moral, indagamos sobre a natureza do objeto do cuidado. Preocupar-se
com a justiça é uma atividade moral, porque justiça é um assunto moral;
preocupar-se com o acúmulo de dias de férias não é presumivelmente uma
atividade moral.
"Cuidar de" adquire significado moral de uma maneira diferente. Quan-
do indagamos sobre isso, não é suficiente conhecer o objeto do cuidado;
provavelmente temos de saber algo sobre o contexto em que se dá, especial-
mente sobre a relação de quem o presta e de quem o recebe. Uma criança
suja não é uma preocupação moral para muita gente; mas poderíamos desa-
provar moralmente a mãe de tal criança que, em nossa opinião, pode ter
falhado em sua obrigação de cuidar dela. Deve-se levar em conta, obvia-
mente, que esses julgamentos estão profundamente enraizados em pressu-
postos sociais, culturais e de classe sobre as obrigações da mãe, sobre pa-
drões de limpeza e assim por diante. A atribuição da responsabilidade de
cuidar de alguém, alguma coisa ou alguns grupos pode então ser uma ques-
tão moral. O que faz "cuidar de" ser tipicamente percebido como moral não
é a atividade em si, mas como essa atividade se reflete sobre as obrigações
sociais atribuídas a quem cuida e sobre quem faz essa atribuição.
A verdadeira atividade de cuidar de outra pessoa parece muito longe do
que consideramos habitualmente como questão moral. Parece mais ligada à
esfera da necessidade do que à esfera da liberdade onde presumivelmente os
julgamentos morais têm lugar (ver Arendt, 1958; Aristotle, 1981). Mas al-
guns teóricos(as) têm recentemente tentado descrever o valor dos cuidados,
negando que constituam simplesmente uma atividade banal, que não envol-
190 Género, Corpo, Conhecimento
Capacidade de Atenção
Autoridade e Autonomia
Particularismo
lher, que não conhece mecânica e está sozinha e o estranho seja um homem?
Cuide sempre de sua mãe. Suponhamos que ela e suas crianças dependam
da sua renda para manter a casa e que cuidar dela em casa lhe custará seu
emprego? Assim, os julgamentos morais envolvidos em oferecer e prover
cuidados são muito mais complexos do que qualquer conjunto de regras
possa considerar. Qualquer regra suficientemente flexível para cobrir todas
as complexidades provavelmente só poderia ser expressa por uma fórmula
como "faça tudo o que puder para ajudar mais alguém". Uma formulação
desse tipo não serve como guia para o que a moralidade exige. O que para
uns pode ser "cuidado demais" para um filho que ajuda os pais de idade
avançada, pode parecer a outros egoisticamente pouco. A objeção lógica
sobre os limites da moralidade regida por regras é bem conhecida, mas con-
tinua a ser uma dificuldade prática.
A razão por que o comportamento regido por normas é tão frequen-
temente associado à vida moral é que, se somos obrigados a seguir regras,
somos obrigados a agir imparcialmente, não fazendo favores especiais para
aqueles que estão mais próximos de nós. Outro problema em relação ao
cuidar, de um ponto de vista moral, é que podemos, devido à nossa relação
de cuidados, dar tratamento especial àqueles mais próximos de nós e ignorar
outros mais merecedores.
Nel Noddings enfrenta esse problema de maneira perturbadora. Sua po-
sição é muito restritiva quanto às condições em que o cuidado deve ocorrer.
Embora sustente que nos é natural cuidar de nossos filhos, quando estende-
mos o cuidado para além de nossas próprias crianças, isso se toma um ato
ético (não natural) (Noddings, 1984:79-80). Noddings também sugere que o
cuidado deve acontecer em um contexto limitado ou não será adequadamen-
te compreendido como cuidar: sua descrição é demasiado pessoal; seus exem-
plos incluem cuidar de gatos e pássaros, crianças e maridos, estudantes e
estranhos que batem à porta. Mãe-filho e professor-aluno são relações
paradigmáticas de cuidado. Mas qualquer expansão do cuidar para além dessa
esfera é perigosa, porque o cuidado não pode ser generalizado. Deseja, as-
sim, separá-lo de muitas de suas conotações sociais mais amplas; e parece
excluir da atividade de cuidar qualquer preocupação genérica com os ou-
tros:
NOTAS
Reconheço, com gratidão, a ajuda para escrever este ensaio que recebi de Annmarie Levins,
Mary Dietz, George Schulman, Berenice Fisher e Alison Jaggar.
1. Deve-se observar que minha distinção entre "cuidar de" e "ter cuidado com" (preo-
cupar-se com) difere daquela feita por Meyeroff (1971) e Noddings (1984). Meyeroff dese-
ja contrastar cuidar de ideias e cuidar de pessoas. Esse paralelo não só mascara a tradicional
diferença de género, mas também, como ficará claro mais tarde, os tipos de atividades en-
volvidos em cuidar de outras pessoas não podem ser facilmente usados nesse mesmo senti-
do. Noddings distingue "cuidar de" de "ter cuidado com" (preocupar-se com) numa dimen-
são que tenta esclarecer qual é o grau de comprometimento envolvido. Cuidamos mais de
quem (as pessoas que recebem nossos cuidados) do que daquilo com que nos preocupamos
(1984:86, 112); mas Noddings também deseja reivindicar que podemos cuidar de ideias.
Acredito que a maneira como formulei a distinção revela mais sobre as relações entre o
cuidar e os pressupostos tradicionais da diferença de género.
2. Entretanto, para que ocorra o cuidar, é preciso haver mais do que boas intenções e
comunicação não distorcida; os atos de cuidar também têm de ser concretamente efetivados.
202 Género, Corpo, Conhecimento
Acredito que esse ponto possa ajudar a distinguir esta abordagem daquela de Habermas
(pelo menos das versões mais antigas). Para a crítica de que o trabalho de Habermas é
intelectualizado demais, ver Henning Ottmann (1982-86).
3. Ver, entre outros autores contemporâneos que questionam a forma kantiana domi-
nante de moralidade, Lawrence Blum (1980), Alasdair Maclntyre e Stanley Hauerwas (1983),
John Kekes (1984) e Peter Winch (1972).
4. Sou grata a Berenice Fisher por sua sugestão de que um dos elementos importantes
de uma teoria dos cuidados é a especificação dos limites do cuidar.
5. Jack H. Nagel aprimorou análises anteriores sobre o poder para incluir o que C.J.
Friedrich chamara de "regra de reações antecipadas", a situação onde "o agente B molda seu
comportamento para adequá-lo ao que ele acredita serem os desejos de outro agente A, sem
ter recebido mensagens explícitas sobre as necessidades ou intenções de A ou de seus repre-
sentantes" (1975:16). Ver também Dahl (1984:24-25).
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Mulheres e Cuidados: O Que as Feministas Podem Aprender Sobre a Moralidade... 203
Lynne S. Arnault
veria ser feita para mim se eu estivesse na mesma situação desse alguém,
incluindo as mesmas características pessoais e, em particular, os mesmos
estados motivacionais" (1981:108).
Hare insiste em que as prescrições devem ser universalizáveis para se-
rem morais, porque concebe os julgamentos morais como exigindo necessa-
riamente "razões" e vê essa exigência como equivalente à demanda de
universalibilidade. Se ele insiste em que os julgamentos morais têm uma
função que requer o raciocínio, é porque acredita que os mesmos são atos-
falas prescritivas ou orientadores da ação e reconhece que uma "prescrição"
moral só é capaz de influenciar a conduta de maneira orientadora, em vez de
impositiva ou coercitiva, se "a resposta a questões morais for... uma ativida-
de racional" (1963:2).
Ao afirmar que as expressões contendo valores são prescritivas, Hare
deseja demonstrar que os julgamentos normativos estão necessariamente
ligados à ação; ele crê que a função comum de palavras como "deveria" e
"bom" é guiar a conduta, recomendar o comportamento. Na visão de Hare,
aceitar um julgamento moral está necessariamente ligado ao fazer, ou pelo
menos à tentativa de fazer o que o julgamento prescreve. É, pois, impor-
tante caracterizar os julgamentos morais como necessariamente deman-
dando razões, porque, embora Hare sustente que eles envolvem concor-
dância com um imperativo, deseja, ao mesmo tempo, negar que essas de-
clarações sejam meras tentativas de persuasão ou incitamento; segundo
ele, os julgamentos morais envolvem uma disposição para prescrever cur-
sos de ação para os outros na medida em que são auto-orientadores racio-
nais (1952: sec. 1.7).
Gostaria de argumentar que a teoria do raciocínio moral de Hare não
assegura realmente a autonomia das pessoas que receberam a prescrição,
especialmente se forem membros de um grupo subordinado. Antes de pas-
sar para essa crítica, é importante, porém, observar que Hare dá uma descri-
ção disposicional dos critérios para certo e errado. A fonte dos critérios morais
reside em passar por cima das disposições ou inclinações do deliberador
moral individual. Segundo ele, os critérios que contam para uma conduta
correta reduzem à expressão mais simples a questão da escolha individual.
Qualquer conjunto de prescrições submetido às exigências de uma possível
universalização e da prescritividade constitui uma moralidade de boa cate-
goria lógica: se o deliberador moral tiver assumido a carga desses critérios,
ele ou ela pode decidir sem erro lógico se um dado conjunto de fatos pode
ou não constituir base suficiente para a ação (1963:195-196). Por exemplo,
desde que tenha assumido essa carga, um nazista pode decidir sem erro lógi-
co que o fato de uma pessoa ser judia constitui base suficiente para sua
I Futuro Radical de uma Teoria Moral Clássica 207
Todos nós retemos a liberdade de preferir seja o que for, sujeitos à coerção
de que temos, ceteris paribus, de preferir aquilo que, se estivéssemos na
exata posição dos outros deveria acontecer e que eles preferem que
aconteça. Então, a exigência da universalibilidade requer que ajustemos
essas preferências para acomodar as preferências hipotéticas geradas por
essa coerção, como se não fossem hipotéticas e sim casos reais; e, assim,
cada um de nós chega a uma prescrição universal que representa nossa
total preferência imparcial (isto é, aquele princípio que preferimos que
seja aplicado no todo em situações como essa, independentemente da
posição que ocupamos). O que acontece é que, se temos de chegar a um
julgamento moral sobre o caso, as coerções lógicas entre elas nos forçam
a combinar nossas preferências individuais numa preferência total que é
imparcial entre nós. A demanda é que essa preferência imparcial seja a
mesma para todos e utilitária (1981:227).
dade solipsista por parte de prescribentes morais individuais. Mas, uma vez
que se reconheça que nenhum método singular de universalização é garanti-
do (ou excluído) a priori pela exigência de que os princípios morais sejam
universalizáveis, a fim de assegurar a autonomia de todas as pessoas afeta-
das, há de se interpretar o processo da escolha de um método ou de métodos
de universalização como um diálogo real, no qual as partes envolvidas se
comunicam mutuamente.
Gostaria de acrescentar, além disso, que uma vez que se reconheçam
os diferentes níveis nos quais a disputa moral pode ocorrer e os efeitos da
experiência social de uma pessoa em suas motivações, interesses, necessi-
dades e entendimentos do mundo, deve-se ir mais fundo para "a esquerda
do campo" e radicalizar as concepções de autonomia e metaética. Com a
intenção de mostrar que a manutenção da coerência interna da teoria do
prescritivismo universal de Hare exige que se radicalizem algumas de suas
suposições profundas, segui Hare ao privilegiar a universalibilidade e a
prescritividade como regras do raciocínio moral e ao definir a metaética
como a tentativa "de dar uma descrição das propriedades lógicas da ...
[linguagem moral] e, assim, dos cânones do pensamento racional sobre
questões morais" (1981:4). Na argumentação que se segue, gostaria de
salientar que a suposição de que as formas do discurso são socialmente
neutras está subjacente à compreensão de Hare da metaética e da deriva-
ção das normas do raciocínio moral. Em minha opinião, ela não é susten-
tável quando abandonamos a concepção liberal do ser e um modelo
monológico de deliberação moral.
Hare afirma que, quando operamos no nível metaético — isto é, quando
discutimos os significados de palavras morais e a lógica do raciocínio moral
— não estamos envolvidos com questões morais quanto ao conteúdo
(1981:26). Segundo ele, como são estabelecidas como regras do raciocínio
moral pela lógica filosófica, a universalibilidade e a prescritividade não po-
dem ser o tema do raciocínio moral e da disputa moral. Por essa razão, a
teoria de Hare não considera a possibilidade de que os significados de ex-
pressões morais podem eles mesmos estar emaranhados numa teia de rela-
ções de poder. Admite a neutralidade social dos meios do discurso — nesse
caso particular, a neutralidade dos tipos de instituições linguísticas invoca-
dos por linguistas empíricos contemporâneos e lógicos filosóficos no mun-
do anglo-americano (1981:11).
Essa suposição de neutralidade só é sustentável, a meu ver, se conceptua-
lizarmos o sujeito conhecedor como entidade individualista, isolada, não
inserida. Se desprezarmos a influência dos fatores sociais e da política soci-
al na construção do sujeito conhecedor, não precisamos levar em conta a
Futuro Radical de uma Teoria Moral Clássica 219
NOTAS
Gostaria de agradecer a Susan Bordo por seus comentários e sugestões inestimáveis, sua
amizade confortadora e seu constante encorajamento.
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Futuro Radical de uma Teoria Moral Clássica 223
Sondra Farganis
que este tem de ser compreendido não apenas em termos da sua lógica ine-
rente, mas também em termos das condições sociais das quais emerge e das
quais faz parte (Mannheim, 1936,1956,1971,1982; Merton, 1957; Berger
e Luckmann, 1966; Wolff, 1983). O conhecimento não é apenas um conjun-
to de argumentos, mas também um reflexo de interesses. Seguindo Jiirgen
Habermas poderíamos dizer que o conhecimento pode ser de um tipo técni-
co para nos ajudar a atingir uma meta particular; ou pode ser de um tipo
interpretativo para satisfazer nosso interesse em compreender; ou pode ser
conhecimento da linguagem usada para construir nossa realidade social que,
por sua vez, tem um interesse emancipatório. Se aceitarmos esse esquema,
poderemos compreender que os positivistas chamam de ciência uma forma
particular de conhecimento (técnico), satisfazendo um tipo particular de in-
teresse, um controle do meio ambiente e de outros seres humanos. Se vemos
que a ciência é apenas uma forma de conhecimento num certo sentido, po-
demos perceber a posição de que todos os caminhos do conhecimento —
inclusive a ciência — são invenções humanas refletindo momentos históri-
cos. O analista social não está interessado na verdade da ciência e sim em
seus aspectos sociais, isto é, nas formas pelas quais ela é praticada e defen-
dida; não em algum ideal platónico contido em alguma utopia mitológica
perfeitamente constituída, mas no modo como a ciência é compreendida
num momento específico.
Para ilustrar o que quero dizer, preciso me referir às metáforas influen-
ciadas pelo género, usadas para descrever a ciência e a natureza e seguir
suas raízes até o Zeitgeist* dos séculos XVII e XVIII. A própria linguagem
da ciência tem sido influenciada pelo género, com imagens mentais que
vêem o masculino controlando o terrestre e não trabalhado feminino da na-
tureza e do mundo natural (Griffin, 1978; Merchant, 1980; Bordo 1986).
Preciso associar as imagens mentais mecanicistas do positivismo às suas
origens na filosofia cartesiana, onde os corpos são equiparados a máquinas.
Preciso indicar como a contestação ao paradigma (neo)positivista é apoiada
pelo sucesso do Movimento de Mulheres, que suscita questões sobre o uso
social do conhecimento. Preciso também indicar como os avanços da ciên-
cia — armas nucleares, por exemplo — criaram uma atmosfera receptiva às
indagações sobre os propósitos da ciência. Em todos esses casos, o conheci-
mento não é retratado como neutro: a ênfase não é na ciência como abstra-
ção e sim como prática, não nos paradigmas científicos, mas nos agentes
históricos que confirmam ou contestam os paradigmas. Esses exemplos su-
go do que Beauvoir quer dizer quando afirma: "Alguém não nasce e sim se
torna uma mulher... É a civilização como um todo que produz essa criatura"
(Beauvoir, 1952:301).
Recorrendo a uma analogia literária, posso dizer que autoras(es) feminis-
tas têm levantado a questão de como as mulheres têm sido interpretadas e de
como elas usariam o olho feminino para interpretar (ver Perry e 0'Neill neste
volume). Ao argumentar que homens e mulheres são diferentes, as feministas
oferecem razões variadas: pensar, por exemplo, pode ter alguma relação com
a maneira como o corpo é considerado e/ou com a delineação de práticas
sociais. Na desvalorização histórica do feminino, teóricos masculinos têm atri-
buído um status subordinado a padrões feministas de pensamento e ação. Se
os homens escreveram o direito canónico e mantiveram um monopólio dos
discursos, então, aquilo que aprendemos a ver como o "racional" não poderia
ser uma noção masculina de racionalidade e as mulheres não poderiam chegar
a considerar o "racional" de maneira diferente (Okin, 1979; Elshtain, 1981;
Harding, 1983)? Bleier escreve: "Se a ciência, como método e corpo do co-
nhecimento, é, como deve ser, um produto cultural e social, como poderia, ao
contrário de todos os outros produtos culturais, fugir dos conceitos mais bási-
cos da cultura, determinados pelo género, urdidos em sua própria estrutura,
embora possam ainda ser invisíveis para nossas mentes presas à nossa própria
cultura? Qual é a autoridade que, estando acima de qualquer discussão, garantiu
que só a ciência não é contaminada por preconceitos androcêntricos, concei-
tos e métodos patriarcais" (Bleier, 1986:15)?
As feministas questionam uma racionalidade que equivale ao funcional,
eficiente e intencional; seguindo esses critérios, o nazismo e as operações
nucleares passam na prova. Mas os objetivos substantivos e os imperativos
morais que deveriam governar as vidas humanas foram omitidos nessa in-
terpretação da racionalidade. Será que não foram fundamentadas em paixão,
aquelas emoções "proscritas" (ver Jaggar neste volume) que associamos tra-
dicionalmente às mulheres? Será que não precisamos de uma nova defini-
ção de razão?
De sua parte, uma ciência social feminista procura desconstruir o modelo
masculino e reconstruir um outro que siga critérios femininos, um que valori-
ze aquelas qualidades que, por razões históricas, têm sido atribuídas às mulhe-
res e às quais este ensaio tem feito referência. Uma ciência social feminista, da
mesma forma que uma política feminista, questiona os valores do homem
moderno, "do ser como algo autónomo e objetificado: uma imagem de indiví-
duos centrados neles mesmos, separados do mundo externo e de outros obje-
tos... e simultaneamente de sua própria subjetividade" (Keller, 1985a:70).
Isso não significa que as feministas não estejam interessadas no conheci-
O Feminismo e a Reconstrução da Ciência Social 235
mento em si, isto é, na satisfação de saber, nem que estejam reivindicando que
a ciência tem de estar sempre a serviço da política. O que as feministas que-
rem salientar é que a ciência é um empenho humano inevitavelmente entrela-
çado com a cultura da qual faz parte. A ciência chega a ter impacto através do
trabalho de cientistas, que devem responder por ele. Eles precisam decidir se
desenvolvem seleção genética para assegurar que as mulheres dêem à luz mais
meninos ou se pesquisam anemia falciforme ou o mal de Tay-Sachs.*
Rose (1983,1986) tem sustentado que a ciência não deveria ser reificada
nem ter o status de uma coisa com identidade própria; não deveria ser sepa-
rada das mentes, corações e mãos daqueles que nela trabalham. Nesse senti-
do, não pode haver refúgio em algo chamado "ciência pura", pois a ciência
desenvolve-se em interação com o mundo cultural que a fomentou. Não
pode haver "distanciamento epistemológico" (Fee, 1981:386), nenhum ponto
arquimediano fora da história que permita a cientistas privilegiados ficar
acima da discussão e ver a realidade de maneira totalmente "verdadeira".
Embora leve em consideração o relativismo descritivo que reconhece as
diferentes perspectivas através das quais as pessoas vêem o mundo e os
objetos nele contidos, o feminismo deseja evitar o flagelo do relativismo
normativo que diz que cada uma dessas perspectivas é igualmente boa. Esse
problema da diversidade das perspectivas é a névoa sob a qual a filosofia e o
pensamento social contemporâneos têm operado. Ela lança sua sombra so-
bre os debates da sociologia do conhecimento, as discussões entre a teoria
crítica e a hermenêutica, a controvérsia em torno da tese de Kuhn e, mais
recentemente, sobre as asserções de pós-modernistas, particularmente
Foucault. A ciência social feminista, em seu comprometimento com o femi-
nismo, está imbuída de uma dimensão moral; dessa maneira, opõe-se ao
relativismo e à neutralidade ética usados para nortear tanto a filosofia como
a ciência contemporâneas (Hare, 1952; Stevenson, 1960; Winch, 1958; Rorty,
1980; Maclntyre, 1982; Bernstein, 1983). Além disso, o feminismo como
movimento político deve tentar criar as condições que permitam harmonizar
inteligente e razoavelmente valores sólidos. Deve-se reconhecer que é justa-
mente a partir do que viveram — de seu status marginal, de sua condição de
proscritas, de suas experiências de cuidado e envolvimento — que as mu-
lheres podem oferecer uma posição epistemologicamente mais válida e po-
lítica e moralmente melhor. Jaggar e Hartsock detalham a vantagem
epistêmica que as mulheres têm através dos papéis que desempenharam numa
•Doença hereditária rara, assim chamada por causa do médico inglês Warren Tay (1843-1927) e do
neurologista americano Bernhard Sachs (1858-1944). Acomete principalmente crianças judias originá-
rias do Leste Europeu e caracteriza-se pela presença de uma mancha vermelha na retina, cegueira
gradual e paralisia. (N. da T.)
236 Género, Corpo, Conhecimento
Embora, em princípio, possa não haver uma razão pela qual a ciência mo-
derna não poderia ter se desenvolvido diferentemente — abarcando am-
bos, sentimento e razão, ligação e separação e equiparando o conhecimen-
to tanto com poder como com amor— enquanto (por quaisquer inúmeras
outras razões) permaneceu um empreendimento exclusivamente masculi-
no, o fato é que isso não aconteceu. E aqui a força da história é anterior à
força da lógica. Foi um processo histórico e não lógico que delineou as
normas da ciência como nós as conhecemos e isso forjou, ao mesmo tem-
po, uma divisão entre emoção e trabalho intelectual — uma separação de
esferas — que coloca as mulheres estereotípicas de um lado e os (igual-
mente estereotípicos) cientistas do outro (Keller, 1985b:96).
NOTA
Este trabalho beneficiou-se de minha participação nos seminários de Women's Studies or-
ganizados por Alison Jaggar na Rutgers University em 1985. As discussões de minhas cole-
gas me permitiram aclarar meu entendimento da teoria feminista e devo muito àqueles mo-
mentos compartilhados de engajamento intelectual. Sou especialmente grata a Alison Jaggar
por seu apoio incansável e sua disposição em me ajudar a refinar minha maneira de pensar
sobre este e outros tópicos.
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DO DUALISMO DE ARISTÓTELES À DIALÉTICA
MATERIALISTA: A TRANSFORMAÇÃO FEMINISTA DA
CIÊNCIA E DA SOCIEDADE
Ruth Berman
mais ampla e cada vez mais obrigatória e estamos lutando por melhores
salários e mais satisfação em nossos empregos. Mais da metade da popula-
ção universitária é constituída por mulheres e temos um número cada vez
maior de graduadas em faculdades de ciências.
Algumas feministas contemporâneas (Harding, 1986), assim como as
mulheres em geral, têm se mostrado refratárias até a examinar a natureza
específica das ciências físicas e a dinâmica de seu papel nos processos soci-
ais. O que é compreensível, embora talvez um tanto míope. Essas ciências e
as tecnologias delas derivadas são vistas como amplamente responsáveis
pela deterioração de nosso habitat, a terra; por criar os instrumentos para a
maior intensificação do controle social sobre o corpo da mulher e sua capa-
cidade reprodutiva; e por iniciar infindáveis teorias biológicas sobre o ho-
mem superior destinadas a justificar a manutenção do lugar da mulher num
plano inferior. Essas críticas têm seu mérito.
No entanto, é difícil combater o desconhecido. A ciência de uma socie-
dade é parte integrante dela e a maneira particular pela qual é expressa afeta
profundamente nossas vidas. Com os governos no mundo todo apoderando-
se febrilmente de "ciência e tecnologia" para manter sua base de poder, as
mulheres, as feministas e todos os outros do lado oposto à hegemonia de-
vem compreender especificamente, em detalhe, o que isso significa para
nós. As cientistas feministas já aceitaram o desafio e muitas escreveram
convincentemente sobre o controle elitista e os abusos da ciência contempo-
rânea. Mas só quando reconhecermos que tanto as práticas sociais como
profissionais da ciência expressam a aceitação da ideologia da classe social
dominante, seremos capazes de determinar como responder.
*Na mitologia grega, serpente fabulosa cujas sete cabeças renasciam assim que cortadas. Foi morta por
Hércules que as queimou. {N. daT.)
Do Dualismo de Aristóteles à Dialética Materialista: A Transformação Feminista... 247
Nas seções seguintes, farei primeiro uma breve descrição global dos
começos dessa maneira de pensar na Atenas do século IV a.C, sua supres-
são da visão naturalista anterior e sua expressão na sociedade e na ciência
daquela época. Em seguida, descreverei o ressurgimento dessas filosofias
com o duplo nascimento das relações de classe capitalistas e da ciência
moderna, tornando-se o pensamento dualista novamente dominante — como
na biologia molecular de hoje, com sua concepção olímpica do gene divino.
Depois, apresentarei princípios alternativos nos quais uma ciência e uma
sociedade não elitista teriam que ser baseadas e uma importante exempli-
ficação da aplicação desses princípios em biologia.
Como minhas experiências e meus conhecimentos pessoais são, em gran-
de parte, de processos biológicos, bioquímicos e sociais, recorri principal-
mente a essas áreas para ilustrar os conceitos da dialética materialista.
Raízes Histéricas
A revolução moderna na ciência foi associada por Auguste Comte (c. 1830-
1842) àquele tempo "quando a mente humana estava em agitação sob os
preceitos de Bacon, as concepções de Descartes e as descobertas de Galileu"
(Comte, 1947) no fim do século XVI e começo do século XVII, uma visão
agora amplamente aceita. Entretanto, as origens históricas da ciência de
nossos dias remontam a muito mais longe, ao período de desenvolvimento
da escravidão na antiga civilização grega. Essas importantes raízes primárias
estavam adormecidas mas permaneceram fecundas durante mais de mil anos;
sua eflorescência, irrompendo novamente no solo fértil de uma sociedade
capitalista emergente, logo revelou os traços dualistas que caracterizaram
seu crescimento anterior. Ignorar essa longa história da ideologia científica
contemporânea distorce nossa visão da mesma.
A ciência e a filosofia ocidentais começaram juntas na Jônia, no século
VI a.C, antes que a sociedade escravista grega tivesse se desenvolvido plena-
mente (Farrington, 1944). Tales de Mileto foi o primeiro a especular sobre
os princípios que governam as relações entre fenómenos naturais sem recor-
rer a explicações mitológicas ou sobrenaturais; mas em breve outros o se-
guiram. Tanto sua ciência como sua filosofia expressavam uma visão
monística da natureza, derivada de princípios completamente naturalistas.
250 Género, Corpo, Conhecimento
nalmente" inferior, mas está eternamente em aliança com o diabo. "O ho-
mem simboliza a mente e a mulher simboliza os sentidos"; na Queda, os
sentidos triunfam sobre a mente. "Essa noção tornou-se altamente influente
tanto no judaísmo, como no cristianismo" (Phillips, 1984). Posteriormente,
foi interpretada literalmente e reforçada com especial fervor pela Igreja.
Embora tenha sido realizado um trabalho científico extraordinário e até
brilhante após o século IV a.C. (e.g. por Estratão, sucessor de Aristóteles
como dirigente do Liceu, que demonstrou experimentalmente a natureza do
vácuo), ele não foi relevante para a sociedade escravista, não tendo sido
incorporado nem em suas atividades práticas, nem em sua maneira de pen-
sar. O período seguinte caracterizou-se pela dominação da teologia judaico-
cristã baseada na autoridade; abandonou-se toda observação direta da natu-
reza. A ciência natural, como uma atividade socialmente integrada, perma-
neceu adormecida até o século XVI.
Nessa época, as necessidades de uma classe mercantil em rápida expansão
levaram a uma explosão entusiástica de interesse em explorar mais extensa-
mente as propriedades da natureza. Como observou Aristóteles, com algum
desdém, a classe mercantil ou "de comércio varejista" (diferente de sua aristo-
cracia) não estava primariamente preocupada com o valor "de uso" das coi-
sas, isto é, com "a obtenção de riqueza" a fim de viver bem, pois isso pode-
ria ser prontamente resolvido pelo trabalho dos escravos. Seu interesse prin-
cipal residia muito mais no valor "de troca" das mercadorias, para a produ-
ção de "riqueza sem limite" (Politics: 451). O que demandava um aumento
extraordinário da produtividade, que só poderia ser obtido pela observação
direta da natureza específica das coisas. A natureza começou a ser manipu-
lada e utilizada para benefício dos homens — e lucro do comerciante.
Esse período de rápida expansão económica trouxe consigo suas própri-
as contradições. As novas forças produtivas e sociais deram origem a novas
classes económicas, dominantes e subordinadas. As outras principais for-
mas de dominação social antes existentes na sociedade feudal e escravista,
isto é, a sexual e a racial, foram integradas a essa sociedade de classes mais
recente sob a hegemonia dessa nova elite dominante. A longa e contínua
história da exploração sexual a racial inseriu-se profundamente nas práticas
e mitologias sociais que se seguiram. O novo estrato dominante dos interes-
ses mercantis e, posteriormente, dos capitalistas industriais tornou-se o
patrono da nova ciência e foram seus interesses que a motivaram.
Não tardaram a emergir filosofias refletindo essas novas relações de
poder, sociais e produtivas. Novamente, um rígido dualismo, dominado por
abstrações geométrico-matemáticas e pela separação tanto entre mente e
corpo, como entre "pensador" e objeto pensado, foi proposto por René Des-
1
254 Género, Corpo, Conhecimento
A Objetividade na Ciência
A presunção de isenção, de "objetividade científica" é ainda a doutrina
predominante entre as atuais cientistas; propagou-se agora pelo estudo dos
sistemas vivos e das relações sociais. Baseia-se em várias suposições sobre
relações entre o pensador, o pensamento e o material que está sendo
investigado. Essas suposições sugerem:
O Gene Olímpico
Ao se aplicar a metodologia castesiana descrita acima à genética molecular,
pressupõe-se que a causa final para cada processo de vida particular seja o
gene ancestralmente determinado, transmitido como um segmento de uma
molécula de DNA. Cada gene é visto como um modelo estrutural e
funcionalmente específico, ligado ou desligado em resposta a um sinal
predeterminado; correntes de centenas ou milhares desses modelos operam
dentro de cada cédula. Supõe-se que a causa primária de uma condição
patogênica seja o mau funcionamento do gene que inicia o processo dado, o
primeiro passo numa progressão linear de reações.
As mudanças na função do gene implicam então uma alteração anterior
dele ou da estrutura do DNA. Até recentemente, essas mutações eram pro-
duzidas aleatoriamente; atualmente, usando técnicas de engenharia genéti-
ca, novos genes podem ser deliberadamente introduzidos. Em qualquer dos
casos, as mudanças na natureza e na ação dos genes são consideradas pro-
cessos independentes, unitários, que se realizam passo a passo.
Embora o principal surto de crescimento na biologia molecular tenha
começado com a pesquisa sobre a genética de bactérias, a abordagem
Do Dualismo de Aristóteles à Dialética Materialista: A Transformação Feminista... 257
DIALÉTICA MATERIALISTA
A palavra "materialista" tem de ser claramente definida, porque as palavras
são imagens bastante complexas do pensamento e suas conotações são sempre
sujeitas a distorção e transformação pela cultura dominante. Materialismo é
frequentemente usado nos dias de hoje para sugerir o consumismo feroz,
hedonista e a auto-indulgência que passaram a caracterizar nossa sociedade.
O que é bem o contrário do sentido que uso para descrever um conceito
filosófico e histórico, isto é, a antítese direta do idealismo dualista.
A compreensão materialista da natureza vê toda existência como maté-
ria em movimento (Engels, 1940). Não se preocupa com a ideia abstrata da
natureza, nem com a natureza como ser, mas com fenómenos naturais reais,
específicos, em lugar e tempo determinados, sob condições particulares de
existência e em processo de mudança. Compreender esses fenómenos re-
quer mais do que simples observação imparcial; requer interação, o que Marx
chamou de "prática". O "observador" e o "observado", o sujeito e o objeto
se influenciam mutuamente. A realidade não é percebida apenas pela obser-
vação "imparcial" isolada em contemplação, mas também "subjetivamente"
através de envolvimento, conceptualização e ação. A verdade é comprovada
na prática, não com uma abstração, mas através da "interação sensível" com
o próprio fenómeno (Marx, 1978).
Isso sugere que, quando se estudam sistemas vivos, deve-se estar sem-
pre bem perto do material, do organismo que se está tentando compreender
e estudá-lo, não de modo geral, mas com todos os seus detalhes. Sugere
também que ao se tentar compreender a posição das mulheres na sociedade,
é necessário envolver-se primeiro com as relações de mulheres determina-
das, num dado tempo e lugar e sob condições particulares de exploração. A
perspectiva materialista exige também que a análise de todo o processo hu-
mano se inicie com a compreensão de nossa própria natureza e nossas cir-
cunstâncias físicas. Isso significa que as condições físicas particulares da
vida de uma pessoa e sua maneira de construir a vida são os reguladores
primários das relações políticas e sociais dela e do seu ponto de vista. Signi-
fica que as circunstâncias físicas específicas da vida da mulher são a influ-
ência primária que controla seu género e sua perspectiva social.
Mas o ponto de vista é mediado através de construções mentais. As
percepções dos fenómenos são determinadas não apenas pelas coisas em si,
mas também por nossa disposição mental, nossa consciência individual e
nossa compreensão. O que, por sua vez, depende de nossa interação social
com os fenómenos e da história única de nosso corpo-cérebro-psiquismo.
Nosso ponto de vista é, portanto, derivado não só de nossas condições e
262 Género, Corpo, Conhecimento
CONCLUSÃO
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O PROJETO DA EPISTEMOLOGIA FEMINISTA:
PERSPECTIVAS DE UMA FEMINISTA NÃO OCIDENTAL
Uma Narayan
ele não é nosso único inimigo e de que as estruturas não positivistas não são,
por força dessa simples condição, mais dignas de nossa tolerância. A maior
parte das estruturas tradicionais que as feministas não-ocidentais conside-
ram como opressivas para as mulheres não são positivistas e seria errado ver
a crítica da epistemologia feminista ao positivismo como tendo a mesma
importância política para as feministas não-ocidentais como tem para as fe-
ministas ocidentais. As tradições como a minha, nas quais a influência da
religião é penetrante, são completamente inundadas por valores. Precisamos
combater não as estruturas que afirmam a separação entre fato e valor, mas
aquelas que são permeadas por valores contra os quais nós, como feminis-
tas, nos opomos. No Ocidente, o positivismo floresceu na epistemologia ao
mesmo tempo que o liberalismo na teoria política. A visão do positivismo
sobre o valor como algo individual e subjetivo correspondia à ênfase políti-
ca do liberalismo nos direitos individuais que deveriam proteger a liberdade
de cada indivíduo para viver de acordo com os valores por ele desposados.
As feministas não-ocidentais podem se encontrar num curioso beco sem
saída, ao confrontarem as inter-relações entre o positivismo o liberalismo
político. Como povo colonizado, estamos bem conscientes do fato de que
muitos conceitos políticos liberais são suspeitos e confusos e que a prática
do liberalismo nas colónias foi marcada por brutalidades inexplicadas por
sua teoria. Todavia, como feministas julgamos que alguns de seus concei-
tos, como os direitos individuais, são às vezes muito úteis para nossas tenta-
tivas de combater problemas enraizados em nossas culturas tradicionais.
As feministas não-ocidentais certamente se mostrarão sensíveis ao fato
de que o positivismo não é nosso único inimigo. As feministas ocidentais
também precisam aprender a não considerar acriticamente como aliada qual-
quer estrutura não-positivista; apesar dos pontos em comum, pode haver
muitas diferenças. Uma opinião equilibrada sobre algumas posições que
desposamos como aliadas é necessária, pois o princípio "o inimigo do meu
inimigo é meu amigo" é provavelmente tão enganoso na epistemologia como
o é no domínio da Realpolitik.*
Os teóricos críticos da Escola de Frankfurt servem bem para ilustrar
esse ponto. Surgindo como um grupo de jovens intelectuais durante a Repú-
blica de Weimar, após a Primeira Guerra Mundial, seus membros foram
significativamente influenciados pelo marxismo e seus interesses variavam
da estética à teoria política e à epistemologia. Jiirgen Habermas, seu mais
eminente representante hoje, atacou, em seus trabalhos, o positivismo e a
exigência de que as teorias científicas apresentem um valor neutro ou "de-
*Do alemão: realismo político, politica baseada no poder e não em ideais. (N. daT.)
282 Género, Corpo, Conhecimento
NOTA
Gostaria de agradecer a considerável ajuda que Alison Jaggar e Susan Bordo me prestaram
neste ensaio. Allison foi extremamente influente tanto ao opinar sobre a natureza do proje-
290 Género, Corpo, Conhecimento
to, como ao sugerir mudanças que eliminaram pequenas falhas na escrita. A leitura cuidado-
sa de Susan propiciou valiosas mudanças na estrutura do trabalho, tendo sido muito útil em
relação a referências bibliográficas. Agradeço a ambas pelos comentários criativos e pela
delicadeza com que os fizeram. Gostaria também de agradecer a Dilys Page por sua cuida-
dosa leitura e pelos comentários sobre a primeira versão deste artigo; e a Radhika
Balasubramanian, Sue Cataldi, Mary Geer, Mary Gibson, Rhoda Linton, Josie Rodriguez-
Hewitt e Joyce Tigner por compartilharem seus trabalhos comigo, por se interessarem pelo
meu e por me proporcionarem uma comunidade de mulheres que me apoia de muitas, mui-
tas maneiras.
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Parte III
REVISANDO O MÉTODO
RUMO A UM MÉTODO FEMINISTA DE PESQUISA
Rhoda Linton
Primórdios
bri que me sentia insatisfeita com os limites impostos pela prática de pesquisa
corrente. Percebi que esses limites incluíam sistemas de crenças às vezes
denominados paradigmas e que estes tinham sido criados, utilizados e promul-
gados como a norma a ser seguida, predominantemente por homens brancos
ocidentais em ambientes académicos ou outros considerados "científicos."
Nas ciências sociais, somos frequentemente introduzidos aos métodos
de pesquisa através de cursos sobre procedimentos estatísticos específicos.
Esses cursos geralmente apresentam a matéria de acordo com níveis graduais
de complexidade da análise, mas sem mostrar um quadro global de seu uso.
Pouca atenção é dada, por exemplo, à interação dinâmica entre esse e outros
aspectos da pesquisa, tais como a conceituação teórica, a formulação de
problemas, o projeto, as formas de medição, a definição dos dados, as estra-
tégias e técnicas para sua coleta etc. Não me opunha aos procedimentos
matemáticos usados em análises estatísticas, mas achava que eventualmente
mais pareciam torturantes quebra-cabeças. Inicialmente, porém, estudar es-
ses assuntos parecia de alguma forma estar fora da esfera da busca de méto-
dos através dos quais compreender o mundo. Embora angustiantes e demo-
rados, em virtude dos intrincados cálculos requeridos, parecia-me que não
se mostravam úteis como passos intermediários no empreendimento global
da pesquisa. Acredito agora que isso era uma consequência da maneira como
esses tópicos eram atomisticamente concebidos e ensinados, isto é, como
entidades em si pouco ligadas à aplicação na vida real, quer através de exem-
plos substantivos, quer através de uma preparação contextual. Esse tipo de
desenvolvimento de habilidades parece desempenhar um papel no currículo
de muitos programas de ciências sociais de grau avançado: algo periférico
em relação a assuntos substantivos "reais" e, consequentemente, de interes-
se secundário na melhor das hipóteses. Por meio de uma demonstração com-
pulsória de aptidão matemática, praticamente se garante para seu estudo
uma abordagem bastante fechada, senão atemorizante, especialmente para
muitas mulheres. Além disso, em parte porque existe um nível geralmente
aumentado de medo entre os(as) estudantes, a importância dessa capacitação
em pesquisa quantitativa assume um vulto maior do que seu valor real; ao
mesmo tempo, seu potencial para múltiplos usos numa abordagem global de
pesquisa não é reconhecido. Por exemplo, a concentração no cálculo das
várias formas de testar o "significado" dos resultados da pesquisa faz com
que não se considere a importância real de muitos procedimentos estatísti-
cos para a análise dos dados, que é negligenciada e até esquecida. A medida
que se tornam fins em vez de meios para o desenvolvimento global da pes-
quisa, esses testes, embora interessantes do ponto de vista conceituai e úteis
em alguns contextos, podem realmente bloquear o entendimento.
Rumo a um Método Feminista de Pesquisa 295
Transições
Novos começos
não pretendia nem ser absoluta nem implicar prioridade entre as atividades.
Além disso, era claro para mim que as ligações entre elas revelavam que sua
separação era algo artificial, refletindo mais uma variação no meu ponto de
vista específico do que na atividade em si. O objetivo da categorização era
refletir minha compreensão das muitas e variadas maneiras através das quais
os significados do feminismo têm sido conceptualizados — separados por
limites permeáveis, mas não mutuamente excludentes.
Etapa 1: Expansão
Etapa 2: Contração
Nesta etapa, os(as) participantes do grupo organizam as ideias. Cada mem-
bro considera todas as ideias em relação com os outros e tem influência
igual para determinar a posição das ideias no mapa resultante. As ideias
'Processo para provocar a criatividade através da livre discussão de ideias e troca de sugestões.
(N. da T.).
300 Género, Corpo, Conhecimento
Etapa 3: Interpretação
MATERIAIS PARA USO DO GRUPO. Cada pessoa recebe uma cópia do mapa
do grupo, produzida pela aplicação da análise de conjuntos sobre um esque-
ma de escala graduada multidimensional; uma lista das ideias por conjunto;
e uma lista de todas as ideias com seu nível de importância quanto ao valor,
se o grupo decidir incluir o procedimento de classificação. Outras informa-
ções que podem ser fornecidas incluem a correlação de cada ideia com seu
próprio valor por conjunto e vários indicadores numéricos importantes para
a colocação dos conjuntos, seu grau de amplitude e seu nível global de im-
portância valorativa.
DANDO NOME AOS CONJUNTOS. O grupo dá nome aos conjuntos num pro-
cesso em duas etapas. Primeiro, pequenos grupos (escolhidos ao acaso atra-
vés de sorteio) fazem um retrospecto das ideias em cada conjunto, discutem
os significados dos conjuntos e decidem os nomes para cada um deles. Se-
gundo, no contexto do grupo total, pequenos grupos contribuem com suas
sugestões e o grupo todo chega a um acordo quanto aos nomes para cada
conjunto. Com base nos significados, na distância e na direção dos conjun-
tos, o grupo pode então analisar o mapa buscando significados parciais, di-
mensões subjacentes que podem representar orientações que o grupo segue
na organização de seu pensamento, das quais pode estar consciente ou não,
e a dinâmica do movimento revelada pela colocação de ideias e conjuntos
em relação recíproca. Pode-se achar algum significado adicional comparan-
do as ideias dentro de um conjunto com as ideias dentro de outro. Por exem-
plo, numa conceptualização de grupo sobre feminismo, realizada em 1984,
os conjuntos de ideias sobre teoria e os conjuntos de ideias sobre práticas
apareceram em lados opostos do mapa. Por que o pensamento feminista
tanto deriva da prática como alimenta a prática, ciclicamente, uma pergunta
suscitada por essa relação entre conjuntos foi: como se processa esse ciclo?
Há outras perguntas que poderiam ser feitas: as teorias condizem com as
atividades? existem nas próprias ideias indicações que direcionam a com-
preensão da interação entre teoria e prática? existem declarações de inten-
ção sobre ação nos conjuntos sobre teoria e vice-versa?
Além disso, as classificações desses conjuntos dão prioridade àqueles
contendo ideias orientadas para a ação, relacionadas a necessidades e de-
mandas práticas específicas, e não aos conjuntos sobre teoria contendo idei-
as mais passivas. Isso indica que os participantes desse grupo de 1984 pare-
cem valorizar mais a ação em questões específicas do que o pensamento
302 Género, Corpo, Conhecimento
UM EXEMPLO
Vinte e cinco membros do seminário sobre "Trajetórias Feministas do Co-
nhecimento", no Douglass College da Universidade de Rutgers, participa-
ram, no outono de 1985, das três etapas da conceptualização. O acordo so-
bre a ideia de conceptualizar o feminismo foi rapidamente obtido; o
brainstorming (expansão) realizou-se a 4 de outubro, a organização das
ideias (contração) ocorreu uma semana depois, e o significado do mapa (in-
terpretação) foi discutido a 22 de novembro, totalizando um período de sete
semanas.
Etapa 1: Expansão
Etapa 2: Contração
Durante a etapa de contração, que também durou aproximadamente quaren-
ta e cinco minutos, cada membro do seminário recebeu um conjunto de no-
venta e cinco cartões com as ideias neles impressas. Pediu-se aos membros
que os colocassem em pilhas de acordo com o significado que apresentas-
sem para cada participante e que caracterizassem cada pilha com um nome
curto ou uma breve descrição. Qualquer número de pilhas era aceitável, exceto
uma única pilha ou 95 pilhas; os limites de variação eram de 3 a 20 pilhas,
com a média de 7,88 por pessoa. Os(as) participantes também situaram cada
ideia numa escala de 1 (mínimo) a 5 (máximo), de acordo com seu nível de
importância para o feminismo. Essas avaliações eram simplesmente relaci-
onadas numa lista separada contendo todas as ideias. Alguns membros co-
mentaram que o exercício de selecionar já era por si só estimulante e expan-
dia a mente, porque os forçava a lidar com várias relações entre as ideias
sugeridas pelo grupo que não teriam inicialmente escolhido para integrar
aquele terreno conceituai (ou seja, ideias sobre as quais não tinham pensado
em relação ao feminismo). Outros relataram que se sentiram desafiados para
compreender o suficiente sobre como tinham decidido que ideias ficariam
juntas e em que pilhas, a fim de poder caracterizar cada pilha com um nome
ou uma descrição.
Etapa 3: Interpretação
Na sessão de interpretação, que durou aproximadamente noventa minutos,
eu esperava seguir o seguinte roteiro, na medida em que o tempo permitisse:
304 Género, Corpo, Conhecimento
1. Breve retrospecto
2. Dar nomes aos conjuntos
— pequenos grupos negociam um nome para cada conjunto
— o grupo inteiro negocia um nome para cada conjunto
3. Debater relações
— localizar os conjuntos no mapa
— verificar elementos distantes quanto à localização, significado,
ambiguidade, confusão
— de cima para baixo? lado a lado?
— dimensões subjacentes?
— movimento, dinâmica?
— global?
4. O que está faltando (significado)?
5. Revelação de sugestões para direções, estratégias etc. para o desen-
volvimento da conceptualização?
6. O que faz com que seja feminista? Ou talvez melhor, como é compa-
tível com os princípios/atividades feministas?
7. Como pode ser usada?
APÊNDICE
I O 6 •
2 D 7 O
3 i 8 •
Figura 1. Mapa de Conceptualização do Feminismo 4 + 9 •
com Números de Identificação das Ideias 5 X 10 •
Visão Transcendendo
Revolucionária o Dualismo
Política,
Poder e
Liberdade
Assumindo o Controli
das Nossas Vidas
NOTAS
Desejo agradecer a Alison Jaggar, por sua crítica contínua e útil e sua crença no meu
trabalho; a ambas, Alison e Susan Bordo, por sua orientação na edição; a Dorothy Dauglia e
Ferris Olin, por sua generosidade na assistência logística; quero também expressar meus
agradecimentos especiais a Berenice Fisher, Uma Narayan e Joan Tronto, por sua amizade
e apoio durante o seminário.
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A CANÇÃO DE PROCNE:*
A TAREFA DO CRITICISMO LITERÁRIO FEMINISTA
Donna Perry
•Figura da mitologia grega, filha de Pândion, rei de Atenas, tomou as dores da irmã Filomela, que
havia sido violentada por seu cunhado, Tereu, marido de Procne. Procne tramou uma vingança e as
duas conseguiram fugir da ira de Tereu, Filomela transformada em rouxinol e Procne em andorinha.
(N. da T.)
316 Género, Corpo, Conhecimento
Mas esse criticismo feminista, tal como é praticado hoje, é também uma
postura política. Originou-se do reconhecimento das(dos) críticas(os) de que
as mulheres, seja qual for sua raça ou sua cor, vivenciam o mundo diferente-
mente dos homens, que seu status fora da cultura dos homens brancos de
classe média lhes permite criticá-la (e até mesmo os compele a isso). Além
disso, a(o) crítica(o) literária(o) feminista escreve, sabendo que suas ideias
são parte de um diálogo contínuo sobre as implicações de género contidas
em várias disciplinas; assim recorre livremente ao trabalho de feministas em
outros campos, particularmente nas ciências humanas e sociais, bem como
ao de outras(os) críticas(os) literárias(os) e teóricas(os) feministas. O
criticismo literário feminista está comprometido com a mudança do mundo
ao contestar pressupostos, juízos e valores patriarcais que afetam as mulhe-
res. Ele abrange uma ampla variedade de ideias, da teorização radical das
feministas francesas que vêem a linguagem como uma construção masculi-
na que exclui as mulheres (analisada por Arleen Dallery neste volume) à
posição mais pragmática americana de que as mulheres podem controlar a
linguagem e expressar nela suas experiências (Gilbert, 1979). Como diz
Elaine Showalter, "o criticismo feminista tem sido muito mais um poderoso
movimento do que uma teoria unificada, uma comunidade de mulheres com
um conjunto compartilhado de interesses e uma variedade complexa e rica
de práticas metodológicas e afiliações teóricas" (Showalter, 1984:29-30).
Este ensaio pretende analisar a história social e as principais posturas
intelectuais desse movimento. Considerando que se deve ter cautela em ge-
neralizar sobre o feminismo e que, como explica Showalter, as(os) críticas(os)
literárias(os) feministas adotam uma diversidade de posições, tento ainda
assim isolar o que vejo como características e interesses distintivos do
criticismo literário feminista, tal como é praticado nos Estados Unidos. Di-
vido este trabalho em quatro seções inter-relacionadas que abordam os se-
guintes temas: os fatores que contribuem para o desenvolvimento do
criticismo literário feminista; as implicações de ler como feminista; a noção
da "expressão diferente" da crítica feminista; e controvérsias recentes sobre
teoria e prática críticas feministas.
Durante sua primeira fase, no início dos anos 70, o criticismo feminista
privilegiou a releitura do cânon (usualmente masculino). A obra Sexual
Politics (Política sexual) de Kate Millet (1970) lançou o fundamento para
esse questionamento, em sua análise da misoginia da sociedade por trás de
criações literárias, como as mulheres desumanizadas de Henry Miller e
Norman Mailer. Num discurso corajoso, pronunciado no encontro da Modem
Language Association (Associação de Linguagem Moderna) em 1971,
Adrienne Rich rotulou o empreendimento revisionista do feminismo como
"um ato de sobrevivência", essencial às mulheres para a compreensão e
transformação de sua impotência passada (Rich, 1979 [1972]:35). Em The
Resisting Reader: A Feminist Approach to American Fiction (A leitora re-
sistente: uma abordagem feminista da ficção americana) (1978), Judith
Fetterley analisou o processo de "masculinização" que a leitora sofre quan-
do lê textos americanos "clássicos" como "Rip Van Winkle" ou The Great
Gatsby (O grande Gatsby) e é coagida pelo texto a aceitar a experiência
masculina como a norma e os pressupostos sexistas como sendo a verdade.
Esse estudo sobre mulheres como leitoras de textos (usualmente mascu-
linos) logo levou a uma segunda e mais significativa fase, de acordo com
Showalter. o "ginocriticismo".* Algumas críticas começaram a se preocu-
par em recuperar e reconstituir uma tradição literária feminina perdida
(Ellman, 1968; Moers, 1976; Showalter, 1977), enquanto outros(as) come-
çavam a escrever sobre escritoras específicas (Kaplan, 1985:37). De acordo
com Showalter, essa fase do criticismo feminista interessou-se por muitos
aspectos das escritoras mulheres: "a psicodinâmica da criatividade femini-
na; a linguística e o problema de uma linguagem feminina; a trajetória da
carreira literária feminina individual ou coletiva; a história da literatura; e,
naturalmente, estudos sobre escritoras e obras específicas" (Showalter 1985
[1979]: 128).
Será que a teoria literária feminista desenvolveu novas "vozes" críticas, novos
caminhos de se dirigir ao público? As generalizações são perigosas aqui,
porque algumas posturas críticas feministas parecem, pelo menos à primeira
vista, ressoar muito do que já existia antes: um argumento é proposto e
reúnem-se comprovações para reforçar sua defesa. A meta é convencer o
público, destruir posições alternativas, ganhar o debate.
Todavia, em muitas posturas críticas feministas, mesmo naquelas
publicadas nas PMLA (Publications ofthe Modem Language Association)
(Publicações da Associação de Linguagem Moderna), o periódico mais cita-
do em estudos literários, emerge uma diferença. O artigo de Susan Schibanoff
numa edição de 1986 das PMLA é um dos exemplos.
Em seu ensaio, Schibanoff interpreta um poema do século XVI, "Phyllyp
Sparowe", de Skelton, como um paradigma para a desconstrução textual
feminista, O ensaio de Schibanoff difere significativamente do tom impes-
soal, objetivo, antitético, conclusivo que chegamos a associar com o criticismo
literário e que eu chamaria de uma abordagem mais masculina.
Como Schibanoff nos convence da validade da sua interpretação? Após
a devida vénia aos intérpretes anteriores do poema e o resumo de seus pres-
supostos, ela nos envolve com uma série de três questões hipotéticas, nos
convidando a ler o poema de maneira nova: "Que aconteceria se ..." inter-
pretássemos dessa maneira, da sua maneira? O texto do ensaio nos conduz
através de uma interpretação desse tipo e a parte conclusiva coloca essa
interpretação no contexto tanto da experiência da própria autora, como na
de seus leitores (843):
Schibanoff finaliza com uma adição ao seu texto, tentando responder a uma
pergunta feita por um de seus leitores, "consultor especialista das PMLA"
(844).
A voz de Schibanoff não é "pessoal" no sentido de que ela integra dire-
tamente material de sua própria vida, como fazem algumas críticas literárias
feministas (Gilbert, 1979; Heilbrun, 1979; Platt, 1975). O que é notável na
expressão de Schibanoff e na de muitas críticas feministas é sua atitude em
relação a seus leitores, uma atitude que outro crítico caracteriza como "de-
mocrática moderada", recomendando ao leitor participar do processo de in-
terpretação, resistindo à voz da autoridade conclusiva (Farrell, 1979).
Jean Kennard salientou corretamente que essa atitude transformada,
voltada para a plateia, que ela vê como característica de muitas posturas
críticas feministas, originalmente desenvolvidas, pelo menos em parte, como
"resultado de integrar uma comunidade de leitoras feministas" com interes-
ses e valores compartilhados (Kennard, 1981:145). Mas, hoje a crítica femi-
nista tem uma audiência maior a ser atingida.
Ao escrever para os leitores(as) das PMLA, Shibanoff tenta tornar o
criticismo feminista acessível para outros que não são leitores(as) feminis-
tas, embora muitos dos membros da associação o sejam. Por essa razão, seu
trabalho e o de outras(os) que escrevem em publicações críticas mais gerais
tem particular relevância para as(os) estudiosas(os) feministas em discipli-
nas nas quais as perspectivas feministas são vistas com suspeitas, como nas
ciências sociais e naturais. Ela reconhece claramente que uma das funções
de seu trabalho é acostumar os leitores(as) a uma posição em que possam
aceitar não somente suas conclusões, mas também seus pressupostos
metodológicos. Ao conduzir o(a) leitor(a) através de seus próprios proces-
sos de pensamento (se leitores anteriores ignoraram certas possibilidades
sobre o texto, o que aconteceria se as incluíssemos? como eu poderia res-
ponder a quem lesse meu trabalho?), ao realçar a subjetividade da crítica
individual (escolhendo interpretar "em minha própria concepção") e ao con-
326 Género, Corpo, Conhecimento
cluir com a hipótese de que a verdade não é absoluta e sim relativa, não
podendo ser encontrada só em uma, mas em muitas interpretações ("nunca
há uma última palavra"), ela convida os(as) leitores(as) não feministas a
repensarem suas próprias metodologias e pressuposições. Seu público não é
um campo hostil a ser conquistado para o seu ponto de vista (a metáfora da
guerra é apropriada aqui), e sim colegas com interesses comuns por inter-
pretações válidas de um texto, quer leiam da mesma maneira ou não.
Algumas poucas frases de um crítico não feminista no mesmo número
das PMLA revelam uma abordagem diferente. De Charles Eric Reeves: "A
lógica de minha asserção está implícita nos exemplos egípcios de Gombrick";
e: "Mas, como tenho insistido do princípio ao fim, a expressão 'convenção
literária', tal como funciona na pesquisa literária, não pode ser mostrada
como algo apresentando uma singularidade peremptória" (Reeves, 1986:807).
Apesar do uso do "eu", Reeves aspira a uma interpretação objetiva, conclu-
siva. Sua escolha das palavras "tenho insistido" revela sua atitude em rela-
ção ao público: são oponentes a serem convencidos pela força de sua argu-
mentação. Schibanoff tece uma tapeçaria diante de nossos olhos: observa-
mos como o desenho da interpretação emerge. Reeves constrói uma fortale-
za inexpugnável: somos desafiados(as) a atacar.
Mas uma voz mais revolucionária está sendo ouvida no criticismo lite-
rário feminista: a da crítica escrita para as(os) convertidas(os). Como obser-
va Kennard, mostra a consciência de que se escreve para uma "comunidade
de leitoras(es) feministas" que compartilha sua política e seus valores
(Kennard, 1981:144). O texto começa muitas vezes com uma declaração
pessoal, que fundamenta o artigo na própria experiência de quem o escreve
e descreve uma reação emocional ao texto (143). Sandra Gilbert começa um
artigo reconhecendo uma característica dessa maneira de escrever: a abertu-
ra como testemunho pessoal que estabelece o que há em comum entre a
autora e seu público. Ela escreve: "Como tantas(os) outras(os) críticas(os)
feministas, começarei meu comentário sobre a agora bem estabelecida con-
junção do feminismo e do criticismo com uma anedota confessional" (Gilbert,
1979:849). Continua, descrevendo sua própria "conversão" ao criticismo
feminista, explicando que ela é como outras críticas feministas (e.g., Kate
Millett, Adrienne Rich, Tillie Olsen) que "falam — pelo menos de vez em
quando — como pessoas que têm de dar seu testemunho" sobre a descoberta
das experiências das mulheres "na literatura e através dela", experiências
significativamente diferentes daquelas dos homens (850).
Uma razão por que Gilbert e outras expressam sua relação com a litera-
tura em termos quase religiosos ("dar testemunho") é que elas reconhecem e
admitem seu significado pessoal e político. Escrevem de forma pessoal, na
A Canção de Procne: A Tarefa do Criticismo Literário Feminista 327
medida em que respondem como indivíduos que escrevem para outros indi-
víduos, mas de forma política, vendo a si mesmas como representantes de
outras mulheres com históricos semelhantes de raça, classe, orientação se-
xual. O estilo é mais de conversação do que de confrontação, mais sugestivo
do que argumentativo. É significativo que vários documentos importantes
no criticismo literário feminista sejam conversas ou diálogos (Carolyn
Heilbrun e Catharine Stimpson, em Donovan, 1975; Barbara Smith e Beverly
Smith, em Moraga e Anzaldúa, 1981; Cheryl Clarke e outras, em Conditions:
Nine, 1983). E muitas agradecem e citam as contribuições de seus estudan-
tes para seus trabalhos acabados (Fetterley, 1978; Gilbert e Gubar, 1979).
cal como a única base adequada para uma teoria sobre a escrita das mulhe-
res. As mulheres (e homens) pertencem a outros grupos emudecidos se fo-
rem pobres, de cor ou homossexuais, por exemplo. Além disso, todos parti-
cipam também da cultura dominante de homens brancos de classes média e
alta. Nossa diferença como escritoras só pode ser compreendida se todas
essas relações complexas forem levadas em consideração (Showalter, 1985
1981:264).
O "ginocriticismo" de Showalter tenta deslocar as experiências das
mulheres para o centro de nosso interesse. Ela vê como fundamental para
esse movimento a exumação e valorização das diversas tradições das mu-
lheres; o reexame dos pressupostos aceitos sobre coisas como estilos, movi-
mentos e tradições literários; o reconhecimento da escrita das mulheres como
"um discurso com dupla expressão, contendo uma história 'dominante' e
uma 'emudecida'" (Showalter, 1985 [1981]:266) e considera o estudo da
escrita das mulheres como o tema apropriado ao criticismo literário e à teo-
ria feministas.
Concordo com Showalter até certo ponto. Mas seu modelo para o
criticismo feminista, com ênfase na escritora, diminui a importância da mu-
lher como leitora de textos femininos e masculinos. O trabalho de Kolodny
e Fetterley e os recentes ensaios de Schweickart e Schibanoff, citados ante-
riormente, indicam a importância de definir e apresentar interpretações fe-
ministas de todos os textos literários, como corretivos necessários às inter-
pretações androcêntricas atualmente disponíveis. Showalter admite a rele-
vância desse estudo, mas o limita a uma fase preliminar e menos importante
do empreendimento crítico feminista. Eu o colocaria como ponto de interes-
se contínuo para todas nós. Concordo com a opinião de Showalter de que a
escrita das mulheres deve continuar a ser nosso interesse principal, mas que-
ro também que nossas vozes sejam ouvidas como intérpretes revisionistas
de textos masculinos. Assim, embora simpatize com seu conceito de um
"ginocriticismo", preferiria o "pluralismo lúdico" de Kolodny, pelo menos
nesse estágio inicial de teorização literária feminista. Na verdade, nossa pró-
pria diversidade poderia refletir a amplitude de nossos interesses e do âmbi-
to da revisão necessária em vez de uma falta de teorização sistemática.
O que podemos então concluir sobre o papel da crítica literária feminis-
tas? A crítica Jane Marcus vai até a obra de Virgínia Woolf Between the
Acts (Entre os atos) (1941) em busca de uma metáfora: a intérprete feminis-
ta, como Procne, é a intérprete mitológica da vida trágica de sua irmã (Marcus,
1984).
Para Woolf, Filomela, com sua língua arrancada por Tereu, o marido
traidor de sua irmã, é a escritora silenciada pelo patriarcado. Marcus estende
330 Género, Corpo, Conhecimento
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332 Género, Corpo, Conhecimento
Phyllis Teitelbaum
incluído no PIB?* Por que o apoio emocional que as mulheres realizam nas
relações não é considerado "trabalho" (Jaggar, 1984)? Por que a ciência tem
de ser elaborada em laboratórios hierarquicamente estruturados? Por que
uma mulher não pode realizar experimentos científicos em sua casa, como
faz tricô ou macramê** (NWSA 1984)? Encontrar essas indagações na teo-
ria feminista deu-me o tipo de experiência "Aha" que espero despertar em
relação aos testes.
pontos mais alto que o dos rapazes, em vez de 61 pontos mais baixo".
As diferenças de escore entre mulheres e homens no PSAT/NMSQT e
no ACT são similares às do SAT. Rosser (1987:5-16) salienta as sérias con-
sequências dessas diferenças de escore:
Os editores dos três testes alegam habitualmente que eles não são
preconceituosos em relação às mulheres. Apresentaram várias explicações
para as diferenças de pontos, sugerindo que os escores refletem diferenças
verdadeiras na preparação académica e/ou nas habilidades de mulheres e
homens. Por exemplo, alguns alegam que as mulheres têm mais facilidade
336 Género, Corpo, Conhecimento
ou recebem notas mais altas que os homens nas escolas secundárias e cursos
universitários porque se esforçam mais para agradar aos professores.
O debate sobre os testes padronizados de admissão a universidades é
importante por duas razões: (1) questiona se esses testes são prognosticadores
de sucesso académico igualmente válidos para mulheres e homens; (2) sali-
enta o que está em jogo para as mulheres se eles forem preconceituosos em
relação a elas. Não está claro ainda se as diferenças de escore são devidas a
preconceitos e, se assim for, a que tipos de preconceitos. Não obstante, os
dados que Rosser apresenta sobre as consequências negativas das diferen-
ças de escore sublinham a importância de investigar se e como os testes
padronizados apresentam tendências negativas em relação às mulheres.
Não sou contra nenhuma dessas abordagens. Eu mesma sou uma profis-
sional na área de desenvolvimento de testes do ETS — Educational Testing
Service e encarregada de treinar as pessoas que aí desenvolvem testes e os
editores na aplicação do método de julgamento. Eliminar a linguagem e o
conteúdo sexistas e racistas parece-me essencial para produzir um teste im-
parcial, pelo menos à primeira vista. Acompanho com interesse o progresso
dos estudos sobre preconceito de item e validade diferencial. Da perspectiva
prática da elaboração e utilização diária de testes, no mundo como está
estruturado hoje, creio que precisamos de mais pesquisas sobre esses e ou-
tros métodos a fim de criar testes mais imparciais, menos tendenciosos.
A maior parte das pesquisas que estão sendo realizadas atualmente sobre
preconceitos nos testes aceita como válidas as suposições básicas a eles
subjacentes. Que aconteceria se questionássemos essas suposições a partir
da perspectiva da teoria feminista? O que emerge é uma concepção
radicalmente diferente de preconceito de género como algo inerente às
suposições subjacentes ao conteúdo e ao formato dos testes padronizados.
Teóricas(os) feministas têm salientado que aquilo que fomos en-
sinadas(os) a aceitar como conhecimento comum é na verdade "andro-
cêntrico" (isto é, é dominado pelos interesses ou pontos de vista masculinos
ou os enfatiza). Por exemplo, o campo do conhecimento denominado "His-
tória" tem realmente sido a história dos homens; a das mulheres foi simples-
mente deixada de fora. Similarmente, o "conhecimento" e a "ciência" não
são universais, como geralmente se ensina; são uma forma androcêntrica de
saber e de fazer ciência.
A forma androcêntrica de conhecimento e de ciência aceita nos Estados
Unidos do século XX é baseada na teoria do conhecimento chamada
positivismo, que inclui as seguintes suposições: a explicação científica deve
ser reducionista e atomística, construindo uma entidade complexa a partir
de seus componentes mais simples; na pesquisa científica, pode-se e deve-
se ser objetivo(a), isto é, neutro(a) quanto a valores (Jaggar, 1983:356); a
razão e a emoção podem ser claramente diferenciadas (Jaggar, 1985:2). Essa
forma de conhecimento androcêntrico tende a ser dualista e dicotômica, vendo
o mundo em termos de opostos associados: razão-emoção, racional-irracio-
nal, sujeito-objeto, criação-natureza, mente-corpo, universal-particular, pú-
blico-privado e homem-mulher (Jaggar, 1985:2). Tende a ser quantitativa e
A Teoria Feminista e os Testes Padronizados 339
Você pode não concordar com os exemplos específicos que escolhi. Mas
pode se ver concordando com o fato de que muitas coisas nas quais os homens
se destacam em nossa sociedade são testadas, enquanto muitas outras em
que as mulheres se destacam não o são. Se for verdade, isso é provavelmente
uma consequência direta do formato androcêntrico e da escolha androcêntrica
do conteúdo que moldam os testes padronizados, demonstrando os
preconceitos de género inerentes aos testes baseados em um modelo
androcêntrico de conhecimento.
Se o conteúdo e o formato dos testes são androcêntricos, isso ajudará a
explicar situações em que as mulheres têm um desempenho pior que o dos
homens em testes padronizados. A tarefa de realizar um teste padronizado é
provavelmente mais difícil para elas do que para eles. As mulheres submeti-
das a um teste androcêntrico podem ser comparadas a pessoas que estuda-
ram inglês como língua estrangeira e fazem um teste de conhecimento (em
economia, por exemplo) escrito em inglês. A tarefa de operar em inglês
provavelmente torna o teste sobre economia mais difícil para aqueles(as)
que aprenderam o inglês como língua estrangeira do que para aqueles(as)
que o têm como idioma materno. Similarmente, uma mulher que faz um
teste padronizado deve mostrar domínio tanto da matéria do teste, como de
seu formato e conteúdo androcêntrico que são estranhos para ela. Um ho-
mem que faz o teste também deve dominar a matéria, mas provavelmente
achará o formato e o conteúdo androcêntricos familiares e adequados. As
mulheres educadas num sistema de ensino androcêntrico têm de dominar
dois mundos de conhecimento; os homens só precisam dominar um. Se o
homem e a mulher conhecem economia, em nível equivalente, a mulher
A Teoria Feminista e os Testes Padronizados 343
pode, apesar disso, receber um escore mais baixo que o homem, por causa
do formato e do conteúdo androcêntricos do teste. Assim os testes
androcêntricos não podem proporcionar uma comparação imparcial e justa
entre mulheres e homens.
E AGORA?
NOTA
Sou muito grata a Alison Jaggar e aos participantes de seu seminário "Trajetórias feministas
do conhecimento" por suas contribuições ao meu modo de pensar sobre questões de género.
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As colaboradoras
*Graduado(a) que recebe subvenção da universidade para se dedicar a estudos ou pesquisas. (N. da T.)
As Colaboradoras 347
A expressão "rocking the ship" também pode ser traduzida como "Virando a mesa". (N. da T.)
348 Género, Corpo, Conhecimento