Admiravel Mundo Velho Barreto

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BARRETO, Maria Lecticia Fonseca.

Admirável Mundo Velho: Velhice, Fantasia e


Realidade Social, 1a ed. São Paulo: Ática, 1992.

Introdução

Há muitos conflitos interpessoais malresolvidos entre pessoas oprimidas e seus


opressores. Um exemplo dessas desavenças escondidas é a relação patrão-empregada. Além
da diferença socioeconômica, o opressor conta com o apoio do machismo inerente à nossa
sociedade. A mulher pobre, oprimida, encontra no seu opressor o contrário: o patrão, o
homem, o rico.
No caso do conflito velho-jovem, a relação é mais complexa. O velho não tem em
seu opressor um contrário - o jovem ainda habita o interior do velho, e a velhice está
incipiente no jovem.
O preconceito contra o idoso é uma "conspiração do silêncio" (p. 9), que deve ser
rompida. O respeito para com a velhice deve ser prioridade em qualquer sociedade que se
digne a chamar-se humana, sob pena de, ao nos depararmos com a casa dos sessenta, nos
tornarmos deprimidos e oprimidos por uma sociedade que nos descartaria, se possível fosse.
Tudo isso se torna ainda mais urgente se imaginarmos que no ano de 2025 "de 10%
a 11% da população brasileira terá 65 anos ou mais. Em termos absolutos, estaremos com
um contingente de velhos muitas vezes maior do que se pode encontrar em qualquer país
hoje" (p.10). A velhice não deve significar miséria ou indiferença para essas pessoas.

Capítulo 1 - A Realidade da Velhice

Para que haja o fenômeno do envelhecimento da população são necessárias três


condições: aumento do número de crianças; décadas depois, aumento da expectativa de
vida ao mesmo tempo que o ritmo de nascimentos diminui.
A partir da década de 70 essa situação se tornou realidade também nos países
subdesenvolvidos, e especialistas calculam que o crescimento demográfico ficará estável
(cerca de 2,2% ao ano) a partir de 2040. Essa estabilidade já existe nos países
desenvolvidos - que também já passaram pelo fenômeno do envelhecimento populacional.
Aliada ao envelhecimento da população está o aumento da expectativa de vida:
atualmente, "é mais difícil morrer", como se diz popularmente, devido ao desenvolvimento
da medicina e aos melhores cuidados com a saúde pública. Ao estudarmos a taxa de
fecundidade total, que é o número de filhos por mulher abaixo de 50 anos (porque acima
dessa idade ela já é considerada não-fértil, e é óbvio que não terá filhos), vemos que essa
proporção fica cada vez menor. Isso quer dizer que cada mulher - ou casal - quer ter menos
filhos que há algumas décadas.
Até mesmo no meio rural e em áreas onde a taxa de fecundidade parecia ser
resistente a quedas esse fenômeno é observável.

Merrick e Berquó mostram, inclusive, usando informação do Censo de


1970 e da PNAD de 1976, que o declínio percentual foi maior justamente
no grupo mais pobre da população, isso é, nas famílias com renda familiar
mensal abaixo de um salário mínimo (CARVALHO, 1987a., p. 7 apud
BARRETO p. 19).

Contudo, o mais notável de tudo isso é, infelizmente, a falta de planos de


desenvolvimento dos governos em geral para se adaptarem à nova realidade da velhice.
Mesmo os países desenvolvidos “não encontraram uma solução satisfatória e humana para
seus velhos” (CARVALHO, 1987b, p. 9 apud BARRETO p. 19).), então imagine os problemas
que o Brasil, como país subdesenvolvido, logo terá de enfrentar.
Há um problema sério de aversão à velhice, uma certa “gerontofobia” (SANTISO,
1983 p. 10 apud BARRETO, p. 20). Ignoramos os problemas que nos lembram demais da
fragilidade humana, e ainda por cima cobrimos o passado dos idosos com uma ilusão de
doce memória, como se fosse necessário algum saudosismo artificial.
No passado imaginário desses velhinhos eles tiveram as condições perfeitas para
viver – e é como se lá fosse o tempo certo deles, e estar aqui fosse um favor que lhes
prestamos.
Desde as teorias malthusianas, passando por Skinner, Orwell e Huxley, a sociedade
se preocupa com suas transformações, freqüentemente traçando fantasias sobre seu futuro.
Estamos, pois, acostumados a tratar do presente como fantasia. Nesse mundo carregado de
representações, qual o papel que o velho deve exercer? De quem será a responsabilidade de
cuidar dele? “Como é que se imagina o futuro neste despontar do terceiro milênio, que é o
início do Admirável Mundo Velho?” (p. 21)

Capítulo 2 – A Velhice na Realidade Social

- Atitude social diante da velhice

Ariès (1986), a partir de uma abordagem que toma o velho enquanto conceito,
identidade cultural em uma sociedade, acredita que há relação entre os dados demográficos
e o pensamento social sobre a velhice. A mentalidade de uma época, assim, sofreria
alterações de acordo com a estrutura demográfica da população. Em “História social da
criança e da família”, o autor, embora não se fixe na questão da velhice, fornece dados
pertinentes a respeito dela e mesmo que suas observações tratem realidade européia, é
possível aplicá-las ao Brasil:

[...] antes do século XVIII, a velhice era considerada ridícula; no século


XIX, sábia; no século XX, a velhice como conceito biológico e moral
desaparece, e a pressão social exercida no sentido de negar a velhice
enquanto tal, valorizando-se a pessoa que consegue disfarçá-la
fisicamente (velhos bem conservados) e/ou psicologicamente (velhos de
espírito jovem). Já não há valorização alguma da velhice. (p.23)

Assim, “velho sábio” caracteriza um conceito abstrato ausente de nossa realidade.


Aqueles assim chamados são idosos de classe alta que se vestem e agem como jovens,
considerados sábios por possuírem vasta bagagem intelectual. Os velhos pobres, ainda que
sejam sábios, não são considerados como tal, por afastarem-se demais da “idéia burguesa
de sabedoria” (p. 24). O preconceito contra a velhice, então, reflete as desigualdades sociais
e, segundo Maria Lecticia Barreto, “é mais forte do que o preconceito racial” (p.24) por
estar já incorporado na sociedade e ser aceito pelos próprios idosos. Elogia-se o velho por
características que são contrárias à velhice; expressões como “velha muito conservada” e
“velho de espírito jovem” equivalem à idéia racista contida em “preto de alma branca”.
O aspecto econômico da sociedade também contribui com o preconceito contra o
idoso:
No mundo capitalista, vale o que produz: o velho é visto como menos
produtivo, sendo providenciada sua substituição pelos mais jovens. A lei
de oferta e procura, incidindo sobre a força de trabalho (uma mercadoria a
mais), desvaloriza o idoso. (p.25)

- O corpo na velhice

O envelhecimento implica uma série de mudanças no corpo que acabam


contribuindo para uma imagem negativa do idoso pois a visível fragilidade e debilitação
física promovem a associação da velhice com feiúra e doença. Há também os problemas
psicológicos, como a depressão, e o esmorecimento da atividade sexual, acompanhado de
diversas alterações em relação à intensidade e capacidade de se obter prazer.
O espanto é comum a todos, mas a reação diante de tantas mudanças é bastante
diversa.

Alguns idosos tornam-se hipocondríacos; partem para uma procura


obsessiva de doenças que poderiam justificar seu mal-estar, não admitindo
que suas queixas e suas dores sejam provenientes da idade. No extremo
oposto, pessoas há que tudo atribuem à velhice e assim se descuidam de
sua saúde, evitando o médico [...] (p. 27).

Para os ricos, a quem inicialmente a velhice surge como ameaça, há uma “indústria
da juventude” para o cuidado com o corpo. Academias de ginástica, cosméticos e cirurgias
plásticas estão entre os itens a que o corpo burguês recorre até perceber a velhice como um
alívio para as pressões estéticas e dedicação excessiva à aparência.
Para as pessoas do campo, a velhice se afigura como a perda de força e disposição
para o trabalho: “O corpo velho do camponês é o corpo desempregado” (p.28). No caso do
operário, há uma situação semelhante, mas acompanhado do conflito social que decorre da
representação dominante do corpo através dos meios de comunicação, que propagam um
ideal de beleza burguês inatingível pelas pessoas simples.

- A solidão na velhice
Ainda que possa ser benéfica, permitindo a reflexão e a busca da interioridade, a
solidão pode ser dolorosa, ao aliar-se a outros fatores como o relacionamento com a família,
a mudança nas relações amorosas e a proximidade da morte. “Na velhice, a solidão pesa.
Não é apenas um sentimento, é um estado, uma maneira de ser – a solitária maneira de ‘ser-
velho’ em nossa sociedade” (p.30), de modo que a sensação de inutilidade torna-se
constante.
“A viuvez, a falta do companheiro ou da companheira, a ausência de um parceiro
amoroso tornam a solidão do idoso ainda mais profunda” (p.31). Tal situação é sentida com
mais intensidade pelas mulheres e é agravada pela repressão sexual da sociedade que toma
por ridículo as relações entre pessoas idosas, principalmente quando há diferença de idade.
Nas classes mais abastadas o preconceito é ainda mais visível, “parece que ele é
proporcional ao montante da herança que se teme perder ou repartir” (p.31).
As diferenças sociais também se revelam no que se refere à aposentadoria. Para
ricos e pobres, essa fase da vida é percebida de modo diferente pois pode representar
descanso e realização de sonhos ou o simples descarte de algo que não produz mais, a
marginalização e a sensação de foi “encostado”.

- Velhice, vizinhança da morte

Na velhice, a morte se apresenta próxima e se expressa desse modo não só pela


idade e suas conseqüências físicas, mas também pelo fato de pais, parentes e amigos já
terem partido. “Já não há projetos em andamento: casamentos, formaturas, nascimentos,
trabalhos, pesquisas, estudos – tudo já aconteceu e, se acontece novamente, perdeu o gosto
da novidade. O único novo, o único importante por acontecer é a morte” (p.34).
O problema torna-se existencial e muitos são os que buscam a resposta na religião.
“Mortalidade/imortalidade é o grande tema existencial da velhice” (p.36).

-A ideologia da velhice
O conceito de ideologia é discutido por diversos autores. Barreto busca em Haddad,
Marx e Gramsci as bases para enunciar seu objetivo de ouvir lado dos “dominados” e
“cotejar suas representações com as da ideologia dominante” (p.37).

- A representação da velhice na fantasia

A autora entrevistou pessoas de várias idades, pedindo-lhes que se imaginassem


com alguns anos a mais, numa “velhice imaginária”. O resultado apresentou uma espécie
de resistência à ideologia dominante, presente também em cinco contos e dez poesias
analisadas.
Barreto buscará, a partir da fantasia desses relatos e das obras literárias, uma
compreensão objetiva da ideologia, transformando a fantasia em “fantasia concreta”. Para
isso, procurará utilizar conceitos marxistas ou psicanalíticos, na tentativa de “aproximar a
literatura [a escrita da fantasia] da ciência [a escrita da realidade]” (p.41).

Capítulo 3 – A fantasia da realidade

Foram selecionados três contos presentes na coletânea Contos da terra do conto, de


Gotlib (1986), que descrevem a “experiência de ser velho”.

CONTO 1 – “Linha 2902”

De autoria de Branca Maria de Paula, o conto se passa num ônibus. Em primeira


pessoa, a autora se põe no lugar de uma senhora que observa os demais passageiros,
imagina a história de cada um deles, uma profissão, a morte que terão. Os personagens, sem
nomes, são identificados por um número romano e até mesmo o leitor é incluído na história.
Desse modo, a imaginação da autora é o personagem principal, numa fantasia que “produz
uma reflexão sobre a vida e a morte, denuncia a banalidade de uma vida social vazia e
mostra, ainda, que a aparência social é a própria realidade social” (p.45).
Duas personagens do conto merecem destaque por ilustrarem a idéia do autor de
resistência a uma ideologia da velhice. A personagem I é uma senhora viúva e solitária que
tem pouco encanto em viver. Seu cotidiano é triste e insosso e nas suas maneiras se mostra
sempre rígida e amarga. Não teve uma vida sexual feliz já que não sentia prazer com o
falecido marido. A morte da viúva imaginada pela narradora é uma morte “de pé”, ou seja,
morrer e “não dar o braço a torcer, não rever seus valores, nem saber o que é espírito
crítico” (p.47).
A outra personagem é a de número III, a lavadeira, profissão deduzida de sua trouxa
de roupa suja. Com aproximadamente 50 anos, a senhora pobre tem uma vida sofrida e um
ambiente familiar tenso. Morrerá, na imaginação da narradora, na miséria depois de não
mais agüentar trabalhar e suas veias estourarem.

CONTO 2 – “Semente velha”

A semente velha do conto de Kenneth Albernaz é um velho quase centenário que


dedicou sua vida ao trabalho na roça e que agora, com a mudança nas relações de trabalho e
a venda da fazenda para uma companhia, fora dispensado. Sozinho e carregando somente
um saco, que aos poucos se esvaziava, pois sentia que já não precisava de muita coisa e de
tanto peso, o velho foi até uma cidade pequena, onde esperava arranjar serviço para poder
“morrer no trabalho”, que era seu sonho.
Na cidadezinha, não havia espaço para o velho que em todo lugar que encostava era
expulso, sua presença incomodava a todos. Só pôde encontrar sossego na saída da cidade,
no mato, onde admirou a terra e plantou os cinco bagos de milho que carregava consigo.
O conto expressa o desejo de boa parte dos idosos de não deixar de trabalhar, mas
com o modo de produção capitalista, “a experiência é encostada, de nada vale” (p.52).

CONTO 3 – “Um dia Um amor”

É a história de Dona Nandinha ou Fernanda, denominação que depende de que


época se fala. “Depois de velha é que veio o diminutivo: o mundo crescia, ela diminuía”
(p.54). Ela era viúva do Coronel, com quem teve um casamento infeliz, sem prazer, e 16
filhos, que não a visitavam nunca.
Decidida a reencontrá-los, a senhora resolve ir à capital, numa viagem que acabou
proporcionando o encontro não de Dona Nandinha com os filhos, mas de Dona Nandinha
com Fernanda. No ônibus, as memórias surgem junto com Fernanda, que lembra do amor
da juventude, o primo Oswaldo, com quem sentiu prazer pela primeira e única vez.
Chegando à cidade, foi maltratada pelo taxista, pela família, que não a atendeu, e
finalmente, por cinco garotos que iam ao terraço “só ficar à toa, espiando mulheres peladas
nos outros edifícios, cuspindo e urinando lá embaixo, nos transeuntes”. Um deles a
carregou escada acima e ameaçou jogá-la em direção à rua. “Depois de devolvida a seu
lugar, na porta do apartamento, Dona Nandinha não era a mesma. Seu olhar não era o
mesmo. Tinha ficado doida”. Dona Nandinha, que agora tinha voltado a ser Fernanda, foi
levada a um hospício, deixando para trás “um vazio de oitenta anos, uma casa vazia, um
nada”.
O conto ajuda a entender a idéia de razão louca, que acompanhou a vida de Dona
Nandinha, e razão sábia enunciada por Rouanet. A razão louca ocorre quando “a razão,
interagindo com a paixão, deixa-se influenciar por ela, perdendo a objetividade necessária
ao conhecimento e mergulhando na falsa consciência, isto é, uma incapacidade mais ou
menos durável de conhecer” (ROUANET, 1987, p.145 apud BARRETO, p.57).
Já sem razão alguma, a velha viúva é internada. O mais comum, no entanto,
principalmente no caso das mulheres, é a ida para asilos e casas de repouso. O conto de
Júlio Borges Gomide mostra o fim de muitas mulheres depois de uma vida reprimida,
submissa e infeliz, numa sociedade machista e opressora.

- Síntese

Os três contos revelam como a Literatura pode desvendar ideologias, rompendo


com o discurso universalista sobre a velhice. “O universal está em outro lugar: na estrutura
social injusta que gera todos os problemas sociais, todas as formas de opressão” (p.62).

Capítulo 4 – A Realidade da Fantasia


A literatura nos ajuda a entender a alma dos seres humanos, e os velhos se incluem
aí. “A fantasia do escritor vai além da aparência das coisas, descobre o encoberto (...)
manifesta o oculto, o segredo” (p. 64). Clarice ou Guimarães Rosa são exemplos de
“mestres no conhecimento da alma, pois se banham em fontes que ainda não se tornaram
acessíveis à ciência” (PANKOW, 1988, p. 8 apud BARRETO p. 65). Lê-los amplia nossa
consciência sobre o mundo.
O ser humano parece entender o real conforme lhe convém. É por isso que há essa
tentativa, seja ela consciente ou não, de apagar a existência dos velhos – símbolos móveis
da efemeridade da vida. A realidade dos velhos é “fabricada”, simbolizada, pelas classes
dominantes, mas podemos compreendê-la, comparando-a com a fantasia dos escritores.
Ironicamente, a fantasia dos escritores é mais real que a realidade imposta pela
negação construída e tida como verdadeira. Por quê? Justamente devido à introspecção das
personagens, aberta ao mundo pelos seus criadores. Podemos analisar e compreender a
alma das personagens porque os escritores nos mostram o que elas estão pensando.

CONTO 4 – “Feliz Aniversário”

O conto de Clarice fala sobre uma velhinha que completava seus 89 anos de idade.
A família reuniu-se em sua casa para a festa, e dispuseram as cadeiras ao longo da parede,
no centro da sala somente a mesa com o bolo. Ela devaneava, quieta, quando trouxeram o
bolo com a vela – assoprada por um bisnetinho – para que ela cortasse o primeiro pedaço.
Com as mãos trêmulas, ela deixa cair algumas passas, para chateação das crianças presentes.
Por ela, o bolo só não deveria ser a janta, em pensamentos indecifráveis.

A velhice, na metáfora do bolo desabado, é a mãe que já não nutre. Oca.


Peito vazio onde ronca o rancor. Mas aspira a ser sujeito – o que é
alimentado como tal -, o bolo não substitui o jantar, pensava ela em suas
profundezas. Embora não-mãe, sou gente, sujeito. Mas ninguém poderia
adivinhar o que ela pensava. Nem que pensava (p. 70).

Uma mãe é um seio que nutre, que age e é sujeito. A velha havia sido maquiada
como se fosse uma coisa, ao ser preparada para a festa. Na cabeceira da mesa de jantar,
remói rancores por ter perdido sua função de provedora, matriz. Os outros personagens
presentes só aumentam a intensidade desses rancores, ao se concentrarem nos seus próprios
problemas e relegarem a velha ao esquecimento.
Com exceção de Jonga, um filho que morrera, e Rodrigo, um neto de sete anos, ela
via toda sua prole como “seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos, risinhos fracos,
sem austeridade, azedos e infelizes frutos de um tronco bom [ela mesma]” (p. 71). Já Jonga
não, esse era o filho cuja inexistência lhe permite fantasiar sobre uma vida que teria dado
certo. Rodrigo, de forma semelhante, representa a esperança de um futuro imaginado por
ela como perfeito.
Para a psicanálise, o filho dá à mãe a sensação máxima de importância, pois um
filho homem, viril, é o pênis que a mulher inveja – a concretização de algo que, como
mulher, ela nunca teve ou terá.
O tempo correu e ao crepúsculo a festa chegava ao fim. Os convidados foram se
retirando, cada um dando um “beijo cauteloso (...) como se sua pele tão infamiliar fosse
uma armadilha”, e ensaiavam ditos espirituosos e falsas declarações, como que temendo
que seu último tratamento para com a velha fosse rude. A velha, impassível, sentia só o
peso do tempo, representado pelo entardecer: “o crepúsculo de Copacabana, sem ceder, no
entanto se alargava cada vez mais e penetrava pelas janelas como um peso”.
Como presentes, os convidados não haviam trazido nada que pudesse ser
identificado com a velha: cactus, broches, saboneteiras, nada de fato útil para uma velha ou
para a filha que cuidava dela.
“Ela é mãe de todos e, impotente à cadeira, despreza-os. Imponente-impotente, ela é
um lapso: parece oca” (p. 75). Seu corpo traduz dezenas de aspectos de uma velhice
rancorosa pela impotência de ser a matriz: o punho é um cetro, os olhos vagam sem
curiosidade, o riso é frouxo, a pele é infamiliar.

CONTO 5 – “A Terceira Margem do Rio”

Nesse conto, Guimarães Rosa relata a história de um pai de família que,


repentinamente, manda construir uma canoa na qual cabe uma só pessoa, e parte para viver
no rio. O homem não vai a lugar algum, apenas transita pelo rio, presente e ausente ao
mesmo tempo. Não explica para ninguém porque teria feito isso ou porque não ia para
outro lugar.
A história é contada em primeira pessoa pelo filho, este mesmo percebendo logo a
velhice em si mesmo. Quando criança, ele quis ir junto com o pai, mas ele havia se retirado
calado. A mãe não aguentara e fora viver com a irmã – ambas envelhecendo também.
“Para o filho, o pai distante é a estranheza que o impede de viver sua própria vida
(...)” (p. 78), e é justamente pela presença estranha do pai que ele não consegue ficar
independente. A presença do pai apenas enfatizava a ausência dele, na medida em que
ficava incomunicável, impossível de ser ajudado ou de ajudar.
“Nenhum sentido, senso algum é dado à vida que o pai inventa de viver” (p. 78). Do
pai, só se falava em conversas sem senso, diálogos falsos, como quando pediam ao filho
que avisassem ao pai de alguma enchente ou tempestade prevista.
O filho, um dia, toma coragem e vai para a margem do rio pedir para trocar de lugar
com ele. O pai aceitou e manejava o barco na direção da terra quando o filho fraquejou,
correndo para longe dali, para arrepender-se pelo resto da vida.

Universal Subjetivo

A velhice pode nos ajudar a entender o valor da vida, que “pode nos ficar escondido
pelos desgastes sofridos pela nossa carne, nosso espírito” (p. 83). Tal como Jung, um
discípulo rebelde de Freud, descreve em suas memórias, a velhice significa ao mesmo
tempo “uma limitação, um estreitamento. E no entanto acrescentou em mim tantas coisas:
as plantas, os animais, as nuvens, o dia e a noite e o eterno no homem” (p. 82).
Assim, embora o envelhecimento traga suas agruras consigo, ele também nos
permite entender melhor a vida e o universo como um todo – como se passássemos a fazer
parte dele de modo mais íntegro, “um estado inicial, onde o eu dilacerado se reencontra
unido com todas as coisas, a definitiva pessoa” (p. 84).
Afinal, os tempos mudam e com isso vamos mudando também, mas ao final da vida
talvez estejamos mais próximos da “definitiva pessoa”, que não mais se abala tanto com o
fluxo constante do rio, com as transformações da vida.
Nesse sentido, podemos apreender melhor o sentido objetivo do que vivemos. Sabe-
se que “objetivo” é humanamente impossível, então mesmo o que pensamos, enquanto
homens, como “objetivo”, pode ser, historicamente subjetivo. E o que é historicamente
objetivo passa a ser, universalmente subjetivo.
Conforme vamos ficando velhos, nossa consciência sobre essa subjetividade se
amplia, “quer se trate de um velho camponês, quer se trate de um grande filósofo como
Lao-tse” (p. 82). Ao fazê-lo, nosso conhecimento sobre a realidade acaba se ampliando.

Capítulo 5- Fantasia e Realidade da velhice- Letra e música

-Fantasia poética

A poesia é uma forma de expressão que nos remete a nossa própria interioridade.
Alguns escritores/poetas utilizam, então, a figura do velho para se auto-denominarem
futuramente. E, para os jovens, é difícil pensar no velho que um dia virá a ser. Colocar-se
nesse lugar não é das tarefas mais simples, mesmo porque, até mesmo para o idoso, é difícil
tomar por realidade sua posição de quem está velho.
O que se lê ou o que se canta sobre o velho, através da voz de um jovem, é
importante de ser analisado e entendido. Isso porque, “a representação do velho no
imaginário dos jovens é o elemento mais importante e mais urgente de resistência à
ideologia”. (p.87)

Se um jovem poeta encontra dentro de si ressonância para re-citar o velho,


com a carga amorosa e estética dos versos, fala o velho com a voz e a
rima do moço, e fala o moço do velho que será. Rompe-se a barreira da
discriminação. Se a poesia revela, no jovem e ao jovem ‘o espírito velho’,
fica o velho desobrigado de ter ‘espírito jovem’- reconhecida a valia de
um e de outro. (p.87)

A música é, e sempre foi, considerada uma forma de transcendência, de inspiração.


A música já foi considerada sagrada, era uma forma dos homens chegarem mais próximos
de Deus.
Já a poesia-música é uma forma de abrir um espaço social mais amplo e
democrático que a da poesia escrita e lida. E, essa música, portanto, deve abordar os
assuntos mais diversos e os mais diferentes grupos, inclusive o velho.
“Poderá a conspiração do silêncio em torno da velhice ser rompido pela música?”.
(p.89)

-Seleção musical

As músicas que tratam do velho:

- Chico Buarque: “O velho”, 1968 e “O velho Francisco”, 1987.


- Caetano Veloso: “ O homem velho”, 1985.
- Milton Nascimento e Fernando Brant: “Promessas de Sol”, 1976.
- Renato Russo, Legião Urbana: “Tempo Perdido”, 1986.
- Taiguara: “O velho e o novo”, 1987.
- Cantada por Sérgio Reis: “Carro de Boi” e “Filho Adotivo”, 1985.
- Joyce: “Velhos no ano 2000”, 1985.

-Poesia-Resistência na canção de Chico Buarque

O estudioso Alfredo Bosi fala que, o poder de nomear “significava, para os antigos,
dar às coisas a sua verdadeira natureza, ou reconhecê-la”. (BOSI, 1983. In: BARRETO,
1992, p.90).
“Para Bosi, a poesia se constitui fora do discurso ideológico, ainda que, às vezes,
seja por ele penetrada.”(p.90) A poesia buscaria o além, procura resistir à ordem e criar seu
próprio mundo no horizonte da utopia.
“O autor aponta três formas de resistência à ideologia na obra poética (poesia
nostálgica, crítica e utópica), que Meneses (1982) identifica como três fases da obra de
Chico Buarque de Hollanda”(p.91).

1ª fase: Poesia Nostálgica.

A banda
Estava à toa na vida enfeitou
O meu amor me chamou Estava à toa na vida Pra ver a banda passar
Pra ver a banda passar O meu amor me chamou cantando coisas de amor
Cantando coisas de amor Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor Mas para meu
A minha gente sofrida desencanto
Despediu-se da dor A minha gente sofrida O que era doce acabou
Pra ver a banda passar Despediu-se da dor Tudo tomou seu lugar
Cantando coisas de amor Pra ver a banda passar Depois que a banda
Cantando coisas de amor passou
O homem sério que
contava dinheiro parou O velho fraco se E cada qual no seu canto
O faroleiro que contava esqueceu do cansaço e Em cada canto uma dor
vantagem parou pensou Depois da banda passar
A namorada que contava Que ainda era moço pra Cantando coisas de amor
as estrelas parou sair no terraço e dançou Depois da banda passar
Para ver, ouvir e dar A moça feia debruçou na Cantando coisas de
passagem janela amor...
Pensando que a banda
A moça triste que vivia tocava pra ela
(Chico Buarque)
calada sorriu
A rosa triste que vivia A marcha alegre se
fechada se abriu espalhou na avenida e
E a meninada toda se insistiu
assanhou A lua cheia que vivia
Pra ver a banda passar escondida surgiu
Cantando coisas de amor Minha cidade toda se

Nesta música, o velho também encontra seu espaço. “O velho fraco se esqueceu do
cansaço e pensou/ que ainda era moço para sair do terraço e dançou”.
“O velho de Buarque, neste primeiro momento, aparece com suas características
básicas e mais aparentes: é fraco (o corpo do velho é frágil); é cansado (ninguém
pode falar de velhice sem falar de fadiga); o mítico, o desejo, é ser como o moço, sair
dançando, ainda que seu par seja uma moça feia.”(p.91-92).

O Velho Não se comprometeu


Nem nunca se entregou
O velho sem conselhos
E diga agora
De joelhos
O que é que eu digo ao povo
De partida
O que é que tem de novo
Carrega com certeza
Pra deixar
Todo o peso
Nada
Da sua vida
E eu vejo a triste estrada
Então eu lhe pergunto pelo amor
Onde um dia eu vou parar
A vida iteira, diz que se guardou
O velho vai-se agora
Do carnaval, da brincadeira
Vai-se embora
Que ele não brincou
Sem bagagem
Me diga agora
Não sabe pra que veio
O que é que eu digo ao povo
Foi passeio
O que é que tem de novo
Foi passagem
Pra deixar
Então eu lhe pergunto pelo amor
Nada
Ele me é franco
Só a caminhada
Mostra um verso manco
Longa, pra nenhum lugar
De um caderno em branco
O velho de partida
Que já fechou
Deixa a vida
Me diga agora
Sem saudades
O que é que eu digo ao povo
Sem dívida, sem saldo
O que é que tem de novo
Sem rival
Pra deixar
Ou amizade
Não
Então eu lhe pergunto pelo amor
Foi tudo escrito em vão
Ele me diz que sempre se escondeu
E eu lhe peço perdão (Chico Buarque, 1958)
Mas não vou lastimar

Essa música fala de um velho que não carrega nada além do que o peso da idade, pois ficou
se guardando, sem realmente viver. E é aí que começa o que podemos interpretar como
uma auto-crítica do autor, que teria medo de envelhecer e não deixar nenhum “legado”, não
viver efetivamente. E talvez por isso, a música marque o fim da 1ª fase de suas músicas, a
fase nostálgica. Chico vai a procura de um sentido para sua vida, e o encontra na poesia
crítica.
O velho é um espelho do jovem. Quando o jovem olha para o velho, ele acaba, sem
perceber, se vendo daqui alguns anos. E esse é o grande poder do velho, temido pela
ideologia. “É preciso esconder, disfarçar, tutelar, marginalizar a velhice, pois a presença do
velho origina no jovem um balanço e um questionamento- de sua obra, sua vida, seu
trabalho, seu posicionamento político. A significação da velhice não está no velho, mas em
sua relação com o jovem. O que se teme é o velho-diante-dos-jovens”(p.94)

2ª fase- Poesia crítica

É neste ponto, portanto, que começa a nova fase da obra de Chico


Buarque de Hollanda. “Buarque faz sua auto-crítica: ao desencanto com o
velho, sucede o desencanto com seu próprio canto. No disco seguinte, ele
faz uma versão de sua própria poética e empreende uma crítica à crença
no poder de transformação social- provisório que seja- da
canção.(MENESES, 1982.P.64. In: BARRETO,1992.p.95)

Em sua música “Sem fantasia”, Buarque vai mostrar as marcas de sua luta. “Vem
meu menino vadio (...) que da noite para o dia você não vai crescer (...) Eu quero te
mostrar// as marcas que ganhei/ nas lutas contra o rei/ nas discussões com Deus”.

Nas músicas dele, no período da repressão, Chico Buarque quer retratar


que o velho não é só membro da gente sofrida, ele também pode ser o
dominador. “Em entrevista, ‘perguntando se o artista, através de sua arte,
poderia modificar o ser humano’, Buarque fala do ‘homem modificando a
sociedade, para a sociedade mudar o homem’...”(MENESES, 1982. p.107.
In: BARRETO, 1992. p.97).

Buarque “abraça a utopia, entendendo que falar de uma coisa possível é torná-la
possível, grande é o poder da palavra.”(p.98). E a palavra, para ele, é sua canção.
O disco lançado em 1987, 20 anos depois do lançamento de “O Velho”, veio
nomear esse personagem “Francisco”. Buarque (Chico, ou Francisco) coloca-se como o
velho. Suas músicas, nesta fase, são em 1ª pessoa.

O velho Francisco

Já gozei de boa vida Campeão do mundo


Tinha até meu bangalô Em queda de braço
Cobertor, comida Vida veio e me levou
Roupa lavada
Vida veio e me levou Li jornal, bula e prefácio
Que aprendi sem professor
Fui eu mesmo alforriado Freqüentei palácio
Pela mão do Imperador Sem fazer feio
Tive terra, arado Vida veio e me levou
Cavalo e brida
Vida veio e me levou Hoje é dia de vista
Vem aí meu grande amor
Hoje é dia de vista Ela vem toda de brinco
Vem aí meu grande amor Vem todo domingo
Ela vem toda de brinco Tem cheiro de flor
Vem todo domingo
Tem cheiro de flor Eu gerei dezoito filhas
Me tornei navegador
Quem me vê, vê nem bagaço Vice-rei das ilhas
Do que viu quem me enfrentou Da Caraíba
Vida veio e me levou Acho que o moço até
Nem me lavou
Fechei negócio da China
Desbravei o interior Acho que fui deputado
Possuí mina Acho que tudo acabou
De prata, jazida Quase que
Vida veio e me levou Já não me lembro de nada
Vida veio e me levou
Hoje é dia de visista
Vem aí meu grande amor
(Chico Buarque, 1987)
Hoje não deram almoço, né

-Velhice, medo e Morte

“e a meninada
respirava o vento
até vir a noite
e os velhos falavam
coisas desta vida”
[“Fazenda”]

Essa canção é do LP de Milton Nascimento e Fernando Brant Geraes(1976) Esta


música, especificamente, trata-se do descaso dos jovens com o que o idoso tem a falar.
Neste mesmo disco, Nascimento e Mercedes Sosa tiram do velho a esperança de
reviver os tempos de juventude:

“Volver a los 17
después de vivir un siglo
és como decifrar signos
[...]
el amor côn esmeros
al viejo lo vuelve nino.”
[“Volver a los 17”]

E, em contraponto ao que foi abordado neste disco, os jovens do Legião Urbana dão
uma sacudida em quem tem mais idade.
Em “Plantas embaixo do aquário”, os garotos criticam os velhos que governam o
mundo. Falam da sua pouca abertura para as novas idéias. “Acusam” esse velho poderoso:
“vive insatisfeito e não confia em ninguém/ E não acredita em nada/ E agora só cansaço e
falta de vontade...”. Por último, fazem um apelo a esses velhos, que não deixem a guerra
começar.
Já em “Tempo Perdido”, Renato Russo fala do tempo que passou. Podemos ver nela
um diálogo entre o velho e o jovem. O velho já não tem mais esperanças, enquanto o jovem
ainda vê possibilidades.

Tempo Perdido E selvagem


E selvagem
Todos os dias quando acordo,
Não tenho mais o tempo que passou
Mas tenho muito tempo: Veja o sol dessa manhã tão cinza:
Temos todo o tempo do mundo. A tempestade que chega é da cor dos teus
Olhos castanhos
Todos os dias antes de dormir, Então me abraça forte
Lembro e esqueço como foi o dia: E diz mais uma vez
"Sempre em frente, Que já estamos distantes de tudo:
Não temos tempo a perder". Temos nosso próprio tempo.

Nosso suor sagrado Não tenho medo do escuro,


É bem mais belo que esse sangue amargo Mas deixe as luzes acesas agora,
E tão sério O que foi escondido é o que se escondeu,
E selvagem E o que foi prometido, ninguem prometeu
Nem foi tempo perdido; (Legião Urbana)
Somos tão jovens

tao jovens
tao jovens

Caetano Veloso, por sua vez, liga a imagem do velho apenas à alegrias. Toda vez
que o idoso é retratado, é uma forma do compositor relembrar de seu pai, já morto.

O Homem Velho
Luz fria, seus cabelos têm tristeza de
O homem velho deixa a vida e morte para
néon
trás
Belezas, dores e alegrias passam sem um
Cabeça a prumo, segue rumo e nunca,
som
nunca mais
Eu vejo o homem velho rindo numa curva
O grande espelho que é o mundo ousaria
do caminho de Hebron
refletir os seus sinais
E ao seu olhar tudo que é cor muda de
O homem velho é o rei dos animais
tom

A solidão agora é sólida, uma pedra ao


Os filhos, filmes, ditos, livros como um
sol
vendaval
As linhas do destino nas mãos a mão
Espalham-no além da ilusão do seu ser
apagou
pessoal
Ele já tem a alma saturada de poesia, soul
Mas ele dói e brilha único, indivíduo,
e rock’n’roll
maravilha sem igual
As coisas migram e ele serve de farol
Já tem coragem de saber que é imortal

A carne, a arte arde, a tarde cai


No abismo das esquinas
(Caetano Veloso)
A brisa leve traz o olor fulgaz
Do sexo das meninas
“Caetano faz teologia. É preciso entender de religião para entender a velhice- religião ruim
para viver não serve para envelhecer e é péssima para morrer” (p.111)

-Especular o outro: o outro especular

Ao falar de velhice, falamos de espelho. Quando vemos um velho, no vemos, mas daqui
alguns anos. Além disso, é o espelho que revela para o homem a sua velhice.
Cecília Meirelles dizia em sua poesia :”Se algum de nós avistasse o que seríamos com o
tempo, todos nós choraríamos, de mútua pena e susto imenso.”

-O outro (velho)

Taiguara também retrata o velho em sua canção, com ternura e compreensão.

O velho e o Novo
Em seu dorso farto
Deixa o velho em paz Carrega o fardo de caracol
Com as suas histórias de um tempo bom Mas espera atento
Quanto bem lhe faz Que o céu cinzento lhe traga o sol
Murmurar memórias num mesmo tom
Ele sabe o mundo
A sua cantiga, revive a vida O saber profundo de quem se vai
Que já se esvai O que não faria
Uma velha amiga, outra velha intriga Pudesse um dia voltar atrás
E um dia a mais
Range o velho barco
Vão nascendo as rugas Lamento amargo do que não fez
Morrendo as fugas a as ilusões E o futuro espelha
Tateando as pregas Esse mesmo velho que são vocês
Se deixa entregue às recordações
[Taiguara]
A música sertaneja é uma forma de trazer a densidade da velhice para ser tratada
através de histórias e lendas do folclore brasileiro.

A pobreza, o desamparo, o corpo surrado, na classe trabalhadora,


mostram a opressão e a pobreza com que se convive ali, do
nascimento à morte: nada de novo depois dos 65. A tragédia do fim da
vida da classe trabalhadora é a tragédia de toda sua vida, à qual se
junta esta trágica realidade da velhice, que Nascimento canta: ‘Que
tragédia é esta que cai sobre nós?’”. (p.114)

-Velhice Imaginária

“A velhice é espelho: se o jovem nele se mira, pode mudar o rumo de sua vida, da vida
de todos nós: o porvir torna-se possível; o que há de vir uma escolha. Hoje o futuro se faz: o
futuro é presente quando se pensa, ou se imagina, ou se canta um imaginário tempo” (p.117).

Capítulo 6 – Velhice Imaginária de Pessoas Reais

Nesse capítulo a autora transcreve uma série de gravações feitas por ela de pessoas
devaneando sobre seu futuro. Ela pede para que as pessoas, relaxadas e em um estado entre a
vigília e o sono, mais propício para fantasiar, visualizem como está sua vida dez anos após o
momento presente. Vai somando décadas a esses primeiros dez anos conforme necessário
para que a pessoa se acostume com a idéia dessa velhice.
A autora colheu as entrevistas em 1988, com pessoas de variadas idades, classes
sociais e graus de instrução. Deixou que cada um escolhesse seu próprio pseudônimo.
De um modo geral, as pessoas mais jovens se concentraram em suas carreiras ao se
imaginarem dez anos à frente: com trinta e poucos anos a maioria se visualizou mais
estabilizada; com quarenta, mais cansada; com cinqüenta, curtindo mais os frutos do trabalho,
viajando. Mas a partir dos sessenta anos, todos já se imaginam muito cansados para trabalhar,
e enquanto alguns se preocupam em ter uma ocupação (tocar um instrumento, jardinagem,
pintura) ou cuidar dos netos, muitos já se vêem lutando contra a solidão – seu maior medo.

“Vou passar uns dias em Caxambu, na mata, aquela roça” (Heitor, 69,
ferroviário, pensando em si com 79 anos, p. 150)
“O mais medo que eu tenho é de ficar assim, preciso de ir prum asilo,
nem sei o quê, castigado dos outros, os outros não importar com a gente”
(Manuel, 53, rodoviário, se imaginando com 63 anos)
“[O idoso] tem muita dificuldade de ficar parado e sozinho. Então tem
que se preparar bastante, porque mesmo parado e sozinho o sujeito pode se
relacionar muito, fazer muita coisa” (Ruy Soares, 65, aposentado jornalista,
advogado e administrador, visualizando-se com 75 anos, p.165).
“Eu gostaria de chegar aos 74 anos passeando muito, viajando,
trabalhando, aprendendo fazer... nadando. Gostaria muito. Gostaria.” (June,
64, doméstica, com imaginários 74 anos).
“Se morrer, pronto. Agora eu tenho receio de ficar inválido, ficar
assim em dificuldade pra sair, andar e pra coisa” (Terêncio, 77, aposentado
sapateiro, mecânico de automóvel, ferramenteiro, agente de estação,
telegrafista, pedreiro, músico, se imaginando com 87 anos, p. 187)

Houve muitas manifestações, de ambos os sexos, sobre a decadência do corpo. Porém,


algumas das pessoas se preocuparam mais com o destino do país, social, política e até
ambientalmente.

“Eu vejo que as mudanças vão ser muito grandes sob o ponto de vista
econômico. (...) As pessoas terão que competir no mundo. Como? Criando
novas ocupações, novas formas de ganhar a vida, novas formas de
relacionamento, novas maneiras de comer, de vestir, de pensar (...)” (Maria,
60, psicóloga, imaginariamente com 70 anos, p. 167).
“A situação econômica hoje, este desvario. As improvisações política e
social, num desvario. A família procurando novos rumos. Será que vamos
sair para novas composições?” (João, 65, psicólogo, imaginando a si mesmo
com 75, p. 154)

Contudo, é interessante que, ao se imaginarem com sessenta e poucos anos,


praticamente nenhum deles se viu ligado aos acontecimentos do mundo, às notícias.

“Eu, por exemplo, tou usando um sistema que adotei de uns dias para cá, de
não ler jornal, não ouvir televisão nem nada; quer dizer: me afastar das
novidades” (Heitor, 69, se imaginando com 79, p. 151)

Outro ponto freqüentemente lembrado é o da perda de amigos e parentes.

“Eu acho que já é um ponto mais crítico, porque eu começo a conviver


com as perdas de amigos, pessoas próximas. Você vai caminhando para o
início de uma coisa derradeira” (Maria Luíza, 21, estudante de psicologia, se
imaginando com 61 anos, p. 169).
“Eu quero chegar com a minha mulher viva, a Mariana. E, se alguém
tiver que morrer, eu não quero morrer primeiro, não quero sofrer a paixão da
perda dela, não” (Heitor, 69, ferroviário, pensando em si com 79 anos,
p. 150)

Finalmente, a religião e a proximidade com Deus e a natureza estão também quase


sempre presentes.
“Estou na capela, em frente ao sacrário, estou rezando. (...) Estou
ajoelhada. Bonito!” (Marina, 27, servente em escolas públicas, primeiro grau
completo, se vendo com 67 anos, p. 171).
“Se conseguir, tenho uma promessa pra pagar, que é ir lá aonde é que
ta o Cristo, onde tem umas escadas muito alta” (Pablo, 22, desempregado, 6ª
série, se imaginando com 62 anos, p. 177).
“Ser resignado, sabe? Se acontecer alguma coisa, ser resignado à
vontade de Deus. Estou nas mãos de Deus, não? Que que eu posso fazer?”
(Jorge, 59 anos, pintor de obras, se visualizando com 69, p. 155)

Capítulo 7- Admirável Mundo Velho

-Retrato malsim

“O corpo velho do outro, essa imagem, produz o reconhecimento da desintegração


que o tempo produz (produziu ou produzirá) em mim.”(p.192)
O velho de Ruy Soares é o velho capaz, sem todas as limitações que se atribuem a ele.
Mas, a grande diferença no psicológico do velho é a necessidade de estar junto; o velho é
solitário. “Mania de morrer? Não é nada disso. Parece que ele está querendo que os outros
aproveitem alguma coisa da vida dele, alguma coisa que ele possa dar. Todo mundo tem
alguma coisinha de dar.”(p.193)

-O corpo (velho) no imaginário dos jovens

Maria Luísa é uma senhora idosa entrevistada pela autora. Na entrevista ela nunca fala
sobre o corpo do velho, mas há uma alusão ao físico, ao fato de ela achar-se acabando.
“Parece que não é seu corpo que morre, mas seus sonhos- ou o prazer? E já estão meio
mortos: nem se refletem nesse espelho que é o futuro.” (Maria Luísa em Admirável Mundo
Velho, p.199)
“A impotência sexual impede o gozo do outro, então se coça o dedão do pé (a
masturbação é comum na velhice), e a mulher amada tem a imagem do passado. A cadeira de
balanço é imagem do colo da mão, a proteção, a sensação gostosa, o carinho, a compreensão
melhor na velhice, o homem esse ser narcísico, só quer retornar” (p.201)
Os jovens têm dificuldade em se imaginar no futuro. É difícil para ele pensar no seu
corpo velho. O idoso, quando se percebe na condição de alguém “com idade avançada”, quer
tentar manter-se jovem, a vaidade fica muito aflorada, na tentativa de recuperara a juventude
perdida.

-Quando velho é o corpo da mulher/ O masculino corpo velho

Apesar da preocupação com o corpo ser bem exacerbada no velho, a saúde é o que
mais freqüentemente é citado nas entrevistas. Mais importante do que estar velho é estar bem
de saúde. A mulher já não se preocupa se suas roupas vão lhe fazer parecer velha, essa
situação já lhe é introjetada. O homem, não tem mais condições de se afirmar corporalmente
pelo trabalho braçal, sua condição não permite.

-A solidão na imaginária velhice

“Com tantas perdas, recordar o passado se impõe: é triste e é alegre olhar o que ficou
para trás” (p.218).
Os velhos vêem nos netos a possibilidade de não serem mais sós. Os filhos já
deixaram sua casa e eles têm nos netos a segunda oportunidade da paternidade sem a
obrigação de serem, efetivamente, os pais, com as responsabilidades que isso acarreta.

-À guisa de Conclusão

“Mas o que não fui, o que não fiz, o que nem sequer sonhei
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora vejo claramente que deveria ter sido-
Isso é que é morto para além de todos os Deuses
Isso- e foi afinal o melhor de mim- é que nem os Deuses fazem viver...”

[Campos, em Pessoa, 1997, p.370. In: Admirável Mundo Velho,


p.232]

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