Relatório Iddd - o Fim Da Liberdade

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A urgência de

recuperar o sentido
e a efetividade
das audiências de
custódia

LIBERDADE
O FIM DA

R E L A T Ó R I O N A C I O N A L
C O M P L E T O
R E L A T Ó R I O N A C I O N A L
C O M P L E T O
RELATÓRIO NACIONAL
PROJETO

O FIM DA
Amanda Hildebrand Oi
Coordenadora geral AUDIÊNCIAS
DE CUSTÓDIA

LIBERDADE
Vivian Calderoni
Coordenadora de Projetos IDDD
Hugo Leonardo
Maria Renata Lopes Marina Dias
Coordenadora de Desenvolvimento Amanda Hildebrand Oi
A urgência de recuperar o sentido e a Institucional Vivian Calderoni
efetividade das audiências de custódia Vivian Peres da Silva
Laura Daudén Carlos Eduardo Rahal R. de Carvalho
Coordenadora de Comunicação
CONSULTORA
Patricia Cavalcanti Gois Maíra Machado
Gerente de Administrativo Financeiro
até maio de 2019 ESTATÍSTICO
Rafael Cinoto
Fernanda Lima Neves
Coordenadora de PESQUISADORA
Administrativo Financeiro Tamirys Costa Rodrigues Pires

Vivian Peres da Silva VOLUNTÁRIA DE COMUNICAÇÃO


Assessora de Projetos Rafael Cinoto

Clarissa Tatiana de Assunção Borges PARCEIROS DA PESQUISA


Assessora de Advocacy Maceió (AL)
Responsável/pesquisador: Manoel
Jislene Ribeiro de Jesus Correia de Oliveira Andrade Neto
IDDD Assistente de Financeiro
INSTITUTO DE DEFESA Salvador (BA)
DO DIREITO DE DEFESA Roberta Lima Neves Laboratório de estudos sobre crime
GESTÃO 2016-2019 Assistente de Administrativo e sociedade (Lassos) - Universidade
Federal da Bahia – UFBA. Responsável:
CONSELHO DELIBERATIVO Bruna Cristina da Silva Ferreira Mariana Thorstensen Possas.
Dora Marzo de Albuquerque Estagiária de Administrativo Pesquisadores: Ana Carolina Santos
Cavalcanti Cordani (presidente) até março de 2019 Campos, Bruno Miguel Santos
Flávia Rahal (vice-presidente) Ferreira Cardoso, Isadora Oliveira
Antonio Cláudio Mariz de Oliveira Humberto Tozze Santos Ferreira, João Pablo Trabuco
Augusto de Arruda Botelho Estagiário de Comunicação) de Oliveira, Jonathan Oliveira de
Eduardo Augusto Muylaert Antunes Araújo, Júlia de Matos Caribé, Karina
José Carlos Dias André Ricardo dos Santos Lopes Calixto de Mattos, Mariane Alves
Leônidas Ribeiro Scholz Estagiário de Direito até Ferreira, Thamires Conceição dos
Luís Guilherme Martins Vieira dezembro de 2018 Santos e Uiliam Freitas de Santana.
Luiz Fernando Sá e Souza Pacheco
Marcelo Leonardo Emerson Ramayana Feira de Santana (BA)
Maria Tereza Aina Sadek Estagiário de Direito Grupo de Pesquisa em Criminologia
Nilo Batista da Universidade do Estado da
Carlos Eduardo Rahal R. de Carvalho Bahia e Universidade Estadual de
CONSELHO FISCAL Estagiário de Direito Feira de Santana (GPCRIM/UNEB/
Claudio Demczuk de Alencar UEFS). Responsável: Riccardo Cappi.
José de Oliveira Costa Ana Lia Galvão Pesquisadores: Ivanilda Pereira
Mário de Barros Duarte Garcia Estagiária de Direito Ferreira, Maiane Silva Costa e
Wanessa Galindo Falcão da Silva.
DIRETORIA Anderson Antônio
Fábio Tofic Simantob (presidente) Consultor pedagógico Brasília (DF)
Hugo Leonardo (vice-presidente) Grupo de Pesquisa Criminologia
Daniella Meggiolaro Janaína Camelo Homerin do Enfrentamento do Centro
Francisco de Paula Bernardes Junior Secretária-executiva da Universitário de Brasília (UniCEUB).
Guilherme Madi Rezende Rede Justiça Criminal Responsável: Carolina Costa
Guilherme Ziliani Carnelós Ferreira. Pesquisadores: Carolina
José Carlos Abissamra Filho Leonardo Santana Costa Ferreira, Bruna Martins dos
Renato Marques Martins Assessor de Advocacy da Reis, Aíla Cohim Caetano Araripe,
Rodrigo Dall’Acqua Rede Justiça Criminal Estefani Kerollen Sampaio Venzi,
Hanne Catharine Rodrigues de
EQUIPE Ana Navarrete Oliveira, João Pedro Garcia Bortolini,
Marina Dias Assessora de Comunicação Juliana Dias Medeiros, Lauá Costa
Diretora-executiva da Rede Justiça Criminal Azevedo Jacunda, Leylane Souza
Albuquerque, Mariana Costa Pontes. Pesquisadores: Alessandra EXPEDIENTE
Mascarenhas Lustosa, Milena Cardoso Teles Silva, Alípio Dutra
Guimarães Oliveira, Philip Borges Moraes, Ana Claudia Cordeiro Pinto, RELATÓRIO
Costa, Priscila Lisboa Nunes, Rayssa Ana Debora Lima Silva de Martino, Vivian Peres da Silva
Zangerolami Regis Medeiros, Renée Bruna Viana dos Santos, Bruno de Carlos Eduardo Rahal R. de Carvalho
Morais Pinto Morais, Samuel Pereira Freitas Silva, Carlos Henrique de Amanda Hildebrand Oi
Silva e Yasmin Sarah Sousa Bezerra. Oliveira Pires, Cecília Helena Goulart
Francisco, Dandara Evelyn Macedo, REVISÃO
Belo Horizonte (MG) Daphne Coelho Stoianof, Gabriel Marina Dias
Centro de Estudos de Criminalidade Correia da Silva, Giliard Francisco, Amanda Hildebrand Oi
e Segurança Pública (Crisp). Guilherme Morales Teófilo, Jacqueline Melina Fiuza
Responsável: Ludmila Mendonça dos Santos Ambrósio, Julia Cristina Laura Daudén (Mtb 0003959/SC)
Lopes Ribeiro. Pesquisadoras: Flora de Mira Galindo, Juliana Ribeiro
Moara Lima, Lívia Bastos Lages, Ardachnikoff, Karoline de Matos INFOGRAFIA
Cláudia Drumond e Renan Paolinelli. Ferreira, Larissa de Castro Melo, Rodolfo Almeida
Larissa Soares Vidal, Leticia Karoliny
Londrina (PR) Gonçalves de Souza, Lindsay Moreira PROJETO GRÁFICO E DESIGN
Responsável: Douglas Bonaldi Ferreira, Luiza Cristina da Silva, Maiara Instinto
Maranhão. Pesquisadores: Douglas Caroline Vieira de Morais, Manoela
Bonaldi Maranhão, Amanda Mendes dos Santos Reis, Marcos Aurélio |||||||
Gimenes e Douglas Labigalini Villa. Martins das Neves Júnior, Ramiro Publicado em agosto de 2019
Lino da Silva Junior, Raphael Pereira
Recife e Olinda (PE) de Moraes, Sabrina Szlachta Estuer,
Grupo Asa Branca de Criminologia. Samantha Ferraz de Almeida Bueno,
Responsável: Manuela Abath Valença. Suélen Priscila dos Santos, Suellen
Pesquisadores: Manuela Abath Horita, Tânia Lopes de Souza e Ycaro
Valença, Helena Castro, Ana Beatriz Torres da Silva.
Silva Sena, Gabriela de Oliveira
Amaral, Naiara Paula de Souza Silva, São José dos Campos (SP)
Victoria Galvão de Andrade Lima, Universidade Paulista - Unip.
Thayna Nascimento de Lima, Lucas Responsável: Milena Bregalda Reis
Gondim Chaves Regis, Treicy Kariny Pontes. Pesquisadores: Sabrina Cabral
Lima de Amorim, Brisa Lima da Silva e de Souza Motta, Gabriella Moura
Alana Barros da Silva. Bento Prata, Rita de Cassia Alves
Teixeira, Inacio Regiani, Lucas Vinicius
Rio de Janeiro (RJ) Muniz da Silva, André Gonçalves,
“Observatório das Audiências de Ricardo Pena Rodrigues de Paula,
Custódia” - OBSAC da Faculdade Poliana Brito Correia da Silva,
FINANCIAMENTO
Nacional de Direito - Universidade Matheus Benedito de Paula, Gisele
Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. de Souza Mendes, Túlio Hoffmann
Responsável: Junya Rodrigues Barletta França, Keila Jemima de Oliveira
(Coordenadora). Pesquisadores: Paula, Ivaneide Marques de Oliveira
Antonia Marcela Lourenço Lopes, G. da Silva, Claudio Rodrigues, Kelly
Emilly Soares da Costa, Isabella de Fatima Azevedo, Gabriela Alves
Corrêa de Lucena, Larissa Nascimento Stetner, Otávio Augusto R.S. de
Garcia, Leonardo Dias Alves Bernardo, Moraes e Thiago Reis.
Malu Peres Bittencourt, Manuela
Gomes Silva Candido, Matheus São Paulo (SP)
Guilherme Galdino, Pedro Henrique Maria Carolina Schlittler, Mayara
Pinheiro Freitas, e Yasmin Rodrigues Gomes, Mariana Amaral, Hilem
de Almeida Trindade. Justiça Global Oliveira, Laís Figueiredo, Mhira Loeb,
- parceria na intermediação com os Maria Eduarda da Trindade dos Reis.
atores do Sistema de Justiça Criminal
do Rio de Janeiro, para realização das
mesas de trabalho. REALIZAÇÃO

Porto Alegre (RS)


Universidade La Salle. Responsável:
Daniel Silva Achutti. Pesquisadores:
Daniel Silva Achutti, Júlia Tormen
Fuzinatto, Laís Gorski, Laura
Gigante Albuquerque e Mateus
Martins Machado.

Mogi das Cruzes (SP) www.iddd.org.br


Universidade de Mogi das Cruzes e Facebook: /idireitodedefesa
Diretório Acadêmico Águia de Haia. Twitter: @direitodedefesa
Responsável: Milena Bregalda Reis Instagram: _direitodedefesa
SUMÁRIO
1. 4.5. Conversa reservada
com a defesa 42
6.4.4. Decretação de prisão
preventiva 105

Apresentação 8
4.6. Conversas informais
nos intervalos das
audiências 45
6.4.5. Convergência entre
pedidos e decisões 110
6.5. Mulheres: gravidez
4.7 Arbitrariedades na e filhos 111
aplicação de medidas

2.
6.6. Audiências de custódia
cautelares 46 fantasma 116

Metodologia 12

2.1. Pesquisa de campo 13 5. 7.


2.2. Entrevistas 15
2.3. Mesas de trabalho 17 Audiência Conclusão
de Custódia:
118
2.4. Contatos telefônicos 19
2.5. Ressalvas
metodológicas 20 instrumento
2.6. Locais monitorados
essencial de 8.
Recomendações
e responsáveis pela
parceria 22
acesso à 122

Justiça 48

3. 5.1. Contato pessoal e


9.
Contexto
acesso à defesa 49
24 5.2. Direito à informação 52
Referências
3.1. Esfera político-
normativa 25 Bibliográficas 124
3.2. Propostas de alterações
legislativas 26 6.
Projeto de lei 6.620/16
Projetos de lei 10.372/18
Dados 58

e 882/19
6.1.1. Perfil socioeconômico 59
Projeto de Decreto Legislativo
Sexo
317/16
Idade
3.3. Resistência de atores
Escolaridade
sociais 28
Renda
Estado civil
Raça/Cor

4. 6.1.2. Crimes mais

Disparidades
recorrentes 65
6.2. Uso de algemas 71

Locais 32
6.3 Desafios para a prevenção
e o combate à tortura 74
6.4. Decisões 85
4.1. Dias da semana 33
6.4.1. Relaxamento da prisão
4.2. Prazo de 24 horas 34
em flagrante 86
4.3. Local onde ocorre a
Relaxamento do flagrante e
audiência de custódia 36
violência policial 87
Fórum
Relaxamento do flagrante
Delegacia com prisão preventiva – a
Unidade prisional manipulação da lei 90
Outros 6.4.2. Liberdade provisória
4.4. Transporte da pessoa irrestrita 91
custodiada 41 6.4.3. Liberdade provisória
com cautelar 96
O Fim da Liberdade

1.
Apre
senta
ção FOTO: ALICE VERGUEIRO

8
1. Apresentação

O Brasil possui a
terceira maior
população prisional
do mundo, com pelo

Q
uatro anos após sua
implementação, em feve-
menos 726 mil pessoas
reiro de 2015, as audiên-
cias de custódia perma-
atrás das grades
necem em alta nas discussões sobre o
sistema de justiça criminal brasileiro.
Desde então, o IDDD (Instituto de Defesa
do Direito de Defesa) tem acompanhado
e monitorado sua realização em diversas
cidades do país com o intuito de tra-
çar um diagnóstico sobre os avanços e
desafios trazidos por este instituto na
perspectiva da garantia de direitos, em
especial do direito de defesa.

O Projeto Audiência de Custódia surgiu


por iniciativa do CNJ (Conselho Nacional
“ARTIGO 7
de Justiça). Com os objetivos centrais Direito à liberdade pessoal
de (i) possibilitar que o/a magistrado/a (...)
avalie qualificadamente a necessidade 5. Toda pessoa detida ou retida deve ser
e a legalidade da prisão provisória, conduzida, sem demora, à presença de um
(ii) averiguar a ocorrência de eventual juiz ou outra autoridade autorizada pela lei
prática de maus-tratos na atuação a exercer funções judiciais e tem direito a
policial, (iii) reduzir o número de presos/ ser julgada dentro de um prazo razoável ou
as provisórios/as no país e (iv) criar um a ser posta em liberdade, sem prejuízo de
espaço de escuta da pessoa custodiada, o
que prossiga o processo. Sua liberdade pode
projeto buscou dar aplicabilidade a dois
ser condicionada a garantias que assegurem
tratados internacionais, dos quais o Brasil
já é signatário desde 1992, que trazem
o seu comparecimento em juízo.”
a previsão de realização das audiências
de custódia: a Convenção Americana de “ARTIGO 9
Direitos Humanos (Pacto de San José da (...)
Costa Rica)1 e o Pacto Internacional sobre 3. Qualquer pessoa presa ou encarcerada
Direitos Civis e Políticos2, que a este em virtude de infração penal deverá ser
respeito dispõem, respectivamente: conduzida, sem demora, à presença do juiz
ou de outra autoridade habilitada por lei
a exercer funções judiciais e terá o direito
de ser julgada em prazo razoável ou de ser
posta em liberdade. A prisão preventiva
de pessoas que aguardam julgamento
não deverá constituir a regra geral, mas
a soltura poderá estar condicionada a
garantias que assegurem o comparecimento
1. O referido tratado internacional está disponível em: da pessoa em questão à audiência, a todos
https://bit.ly/1IN2XLZ.
os atos do processo e, se necessário for,
2. O referido tratado internacional está disponível em:
https://bit.ly/1UeolAo. para a execução da sentença.” µ

9
O Fim da Liberdade

Embora a produção de dados oficiais


sobre as audiências de custódia ainda
seja bastante tímida, informações mais
recentes mostram que, entre fevereiro de
2015 e junho de 2017, 258.485 audiências
de custódia foram realizadas no Brasil.3

A iniciativa responde ao grave


cenário de superlotação das unidades
prisionais e ao aumento preocupante
do encarceramento em massa, o que
faz do Brasil o país com a terceira maior
população carcerária do mundo. São
mais de 726 mil pessoas presas, das
quais 33% são presos/as provisórios/
as, segundo dados do Infopen
(Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias)4. Porém, pesquisa mais
recente do BNMP (Banco Nacional de
Monitoramento de Prisões), também
de iniciativa do CNJ, aponta, com
dados referentes ao ano de 2018, que
a população carcerária brasileira é da
ordem de 813 mil pessoas, sendo 41,6%
presos/as provisórios/as.5

Reconhecendo isso, e diante do compro-


misso do IDDD com a garantia de direitos
e seu histórico envolvimento com a defesa
da introdução das audiências de custódia
no sistema de Justiça do país, o CNJ convi-
dou o Instituto, junto com o Ministério da
Justiça, a assinar um termo de cooperação
técnica para a implementação do projeto
Audiência de Custódia.6

Desde então, o IDDD faz este monito-


ramento, buscando analisá-lo critica-
mente e coletar dados para avaliar seu
impacto no sistema de Justiça criminal
do país. O Instituto iniciou o monitora-
mento das audiências de custódia já em
2015 e, durante dez meses daquele ano,

3. Informações extraídas de: https://bit.ly/1V1Dqno. completa é: Ministério da Justiça e Segurança Pública.


Ainda segundo informações fornecidas pelo CNJ ao Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento
IDDD, segundo os Judiciários estaduais, àquela época Nacional de Informações Penitenciárias. Atualização
FOTO: ALICE VERGUEIRO

(junho de 2017) eram realizadas uma média de 23 – Junho de 2017. Org.: Marcos Vinicius Moura. Brasília:
audiências de custódia por dia por estado no Brasil, 2019. Disponível em: https://bit.ly/2xNITJ8.
com um mínimo de cinco audiências no estado do 5. Importante pontuar que o BNMP considera, em sua
Tocantins e um máximo de 53 no estado do Paraná, o amostra de presos/as condenados/as, aqueles/as em
que resultava em uma média mensal de 605 audiências execução definitiva, execução provisória e os/as presos/
por estado. as civis, cujos números brutos são, respectivamente,
4. Esses dados referem-se ao ano de 2017 e foram 287.428, 186.564 e 1.789, segundo a pesquisa. Os dados
disponibilizados pelo Infopen em 2019. A fonte podem ser acessados em: https://bit.ly/2II8ASh.

10
1. Apresentação

As audiências de custódia
respondem ao grave
cenário de superlotação
dos presídios e ao
aumento preocupante do
encarceramento em massa

acompanhou o projeto piloto de imple-


mentação das audiências de custódia
desde o seu primeiro dia, na cidade de
São Paulo.7 No mesmo ano, os Tribunais
de Justiça e os governos dos estados de
todo o país assinaram termos de adesão
ao Termo de Cooperação Técnica, com-
prometendo-se a implementar o projeto
e, portanto, a realizar as audiências de
custódia, inicialmente nas respectivas
capitais.8 Além disso, em 15 de dezem-
bro de 2015, o CNJ editou a Resolução
213, detalhando as regras e procedimen-
tos da audiência de custódia - ainda hoje
a única norma que a regulamenta.9

Entre 2015 e 2016, o IDDD replicou essa


experiência em nove estados brasileiros,
por meio de parcerias firmadas com
organizações, grupos de pesquisa e
pesquisadores independentes, tendo
publicado seu primeiro relatório sobre
o panorama nacional das audiências de
custódia em 2017.10 Em 2018, repetiu
o monitoramento, dando origem ao
presente relatório. ■

33% 6. O termo está disponível em: https://bit.ly/322jaK2.


7. Trabalho do qual resultou a publicação Monitoramento
das audiências de custódia em São Paulo - pelo Instituto
DA POPULAÇÃO
de Defesa do Direito de Defesa, disponível em:
PRISIONAL NÃO https://bit.ly/33YKx9I.
TEM CONDENAÇÃO
8. Disponíveis em: https://bit.ly/2Mrv38p.
DEFINITIVA
E AGUARDA 9. Disponível em: https://bit.ly/2EBAYkT.
JULGAMENTO 10. Disponível em: https://bit.ly/2DVJz4K.

11
O Fim da Liberdade

2.
Metodologia

12
2. Metodologia

2.1. Pesquisa de campo

O
IDDD retomou o (Fundação Getulio Vargas) de São
monitoramento das Paulo, que desenvolveu uma proposta
audiências realizadas metodológica que recomendava a maior
no Complexo Judiciário variação de situações possível, como
Ministro Mário Guimarães - Fórum diferentes dias de semana (incluídos
Criminal da Barra Funda, em São Paulo, finais de semana e feriados, nos locais
onde, durante três meses (entre meados onde fossem realizadas audiências de
de abril e meados de julho de 2018), seis custódia nos plantões Judiciários e onde
dias por semana, acompanhou mais de fosse possível seu acompanhamento
600 audiências de custódia. Respeitando a pelos/as pesquisadores/as), diferentes
variação de períodos do dia (manhã/tarde), juízes/as (nos locais onde havia mais
juízes/as e defesa exercida por advogado/a de um/a juiz/a realizando audiência de
constituído/a ou por defensoria pública, custódia) e horários, tendo sido feita
alternando-se, aos finais de semana, o indicação para acompanhamento,
sábado e o domingo, o Instituto coletou durante três meses, de 10% da média
inúmeras informações acerca de como
essas audiências têm sido realizadas.

Seguindo o mesmo formato da pesquisa


anteriormente realizada11 e a fim de
lançar olhares às audiências de custódia
em outras cidades, o IDDD voltou a firmar
parcerias voluntárias com universidades,
organizações do terceiro setor, grupos
de pesquisa e pesquisadores/
as autônomos/as, que realizaram
observação in loco seguindo metodologia
proposta pelo Instituto.

As parcerias foram responsáveis pelo


monitoramento de audiências de
custódia, entre os meses de abril e
dezembro de 2018, realizadas em 12
cidades do Brasil: Belo Horizonte (MG),
Brasília (DF), Feira de Santana (BA),
Londrina (PR), Maceió (AL), Mogi das
Cruzes (SP), Olinda (PE), Porto Alegre
(RS), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ),
Salvador (BA) e São José dos Campos (SP).

Para que a coleta realizada pelos


parceiros em todos os locais pudesse
ser comparativa, contou-se com
a colaboração da professora Maíra
Machado, da Escola de Direito da FGV
FOTOS: ALICE VERGUEIRO

11. Pesquisa da qual resultou a publicação Audiências de


Custódia - Panorama Nacional pelo Instituto de Defesa do
Direito de Defesa, disponível em: https://bit.ly/349PT22.

13
O Fim da Liberdade

mensal de audiências de custódia. Caso


os 10% não chegassem a 100 audiências, A fim de lançar olhares às
recomendou-se que fosse este o número
mínimo considerado. audiências de custódia em
Para a pesquisa, foram elaborados dois outras cidades, o IDDD contou
instrumentos de coleta de dados: for-
mulário A (anexo 1), com questões so- com parceiros voluntários
bre dinâmica das audiências, perguntas
realizadas, pedidos feitos, postura dos que realizaram observação
atores envolvidos (juízes/as, promoto-
res/as, defensores/as, advogados/as) e in loco seguindo metodologia
respostas das pessoas custodiadas aos
questionamentos, preenchido durante proposta pelo Instituto
a audiência de custódia acompanhada;
e formulário B (anexo 2), com questões
sobre a prisão em flagrante e os enca-
minhamentos dados pelos/as juízes/
as nas audiências, preenchidos a partir
da consulta à documentação (auto de
prisão em flagrante, boletim de ocor-
rência e ata/assentada da audiência de
custódia) dos casos cujas audiências
foram acompanhadas. FOTOS: ALICE VERGUEIRO

14
2. Metodologia

É importante esclarecer que um


formulário foi preenchido para cada
pessoa apresentada em audiência de
custódia, ainda que em uma mesma
audiência tenha sido apresentada mais
de uma pessoa (nos casos em que mais de
uma pessoa é presa em um flagrante). Por
conta disso as amostras abaixo referem-
se a pessoas e não a audiências.

Após o preenchimento dos formulários


(A e B), as informações foram lançadas
pelos/as próprios/as pesquisadores/as em
um banco de dados online (plataforma
Google Forms), a partir do qual foram
extraídas planilhas para cada cidade
pesquisada. O trabalho de limpeza e
2.2 Entrevistas
uniformização dos dados também foi feito UM TERCEIRO FORMULÁRIO - C (anexo
pela equipe de pesquisa de cada local, 3) - foi elaborado no intuito de coletar in-
que fizeram uma dupla conferência nas formações qualitativas a partir de entre-
informações após a análise preliminar de vistas semiestruturadas com pessoas que
possíveis inconsistências. passaram por audiência de custódia, com
a finalidade de verificar o que cada pessoa
Ao texto deste relatório serão também pôde compreender sobre a audiência pela
trazidas as informações qualitativas dos qual passou e como avaliou a experiência
diários de campo e relatórios analíticos na perspectiva do acesso à defesa. Diante
produzidos pela equipe de pesquisa. das particularidades nas dinâmicas das
audiências nas diversas localidades onde
a pesquisa foi realizada, bem como da
dificuldade de acessar essas pessoas, a
aplicação deste formulário foi apenas
sugerida, não tendo sido obrigatória.
FORMULÁRIOS PARA
COLETA DE DADOS Dessa forma, as entrevistas foram rea-
lizadas em São Paulo e em Brasília: em
São Paulo, as pessoas que passam pela
audiência de custódia no Fórum Ministro
FORMULÁRIO FORMULÁRIO FORMULÁRIO Mário Guimarães retornam escoltadas à

A B C
carceragem logo após a audiência, tendo
ou não a prisão preventiva decretada,
sendo que as pessoas que têm a liberdade
Com questões Com questões Para coletar concedida são liberadas ao final do dia, to-
sobre dinâmica sobre a prisão informações qua- das ao mesmo tempo. Diante da impossi-
das audiências, em flagrante e os litativas a partir
perguntas reali- encaminhamen- de entrevistas
bilidade de acesso à carceragem do fórum,
zadas, pedidos tos dados pelos/ semiestruturadas não foi possível a realização das entrevis-
feitos, postura as juízes/as nas com pessoas tas ainda no espaço onde acontecem as
dos atores en- audiências, pre- que passaram
volvidos (juízes/ enchidos a partir por audiência de audiências, motivo pelo qual se optou por
as, promotores/ da consulta à do- custódia, com realizá-las no CDP (Centro de Detenção
as, defensores/ cumentação (auto a finalidade de Provisória) de Pinheiros IV, para onde são
as, advogados/ de prisão em verificar o que
as) e respostas flagrante, boletim cada pessoa pôde encaminhadas todas as pessoas que têm
das pessoas de ocorrência e compreender decretada a prisão preventiva.
custodiadas aos ata/assentada da sobre a audiência
questionamentos, audiência de pela qual passou
preenchido du- custódia) dos e como avaliou Durante o mês de setembro de 2018, a
rante a audiência casos cujas a experiência na equipe realizou oito visitas ao mencionado
de custódia audiências foram perspectiva do
acompanhada. acompanhadas. acesso à defesa. CDP, conduzindo uma média de sete
entrevistas por visita. Ao total, a equipe

15
O Fim da Liberdade

conversou com 57 pessoas que passaram O número de entrevistas realizadas foi


pela audiência de custódia e tiveram de 142. Importante destacar que, no
contra si decretada prisão preventiva. A universo das 142 entrevistas, a equipe
seleção das pessoas foi feita pela própria de pesquisa do Distrito Federal buscou
unidade prisional de forma aleatória. falar tanto com pessoas que tiveram
Vale ressaltar que não são coincidentes a prisão preventiva decretada quanto
as pessoas entrevistadas com aquelas com pessoas que tiveram liberdade
cujas audiências foram acompanhadas. provisória concedida; neste último
caso, as entrevistas foram realizadas
Em Brasília, as entrevistas foram no corredor da DPE (Delegacia de
realizadas na carceragem da Polícia Polícia Especializada).
Civil (onde está localizado o Núcleo
de Audiência de Custódia). As pessoas Serão trazidas ao texto deste relatório
entrevistadas estavam dentro da algumas informações coletadas
cela e os/as pesquisadores/as fora, durante estas entrevistas feitas em
comunicando-se entre os espaços São Paulo e no Distrito Federal, como
das grades. Nos relatos, a equipe complemento de análises feitas a partir
de pesquisa relata que havia certa dos dados quantitativos, com especial
dificuldade de escutar o que era dito destaque no que tange à importância
pelos/as entrevistados/as, por conta da da audiência de custódia enquanto
distância e do barulho da carceragem. mecanismo de acesso à defesa.
FOTO: WESLEY TINGEY

16
2. Metodologia

2.3. Mesas
de trabalho
RESOLUÇÃO OUTRAS INFORMAÇÕES QUE serão

213/1015 CNJ trazidas a este relatório referem-se a


encontros realizados em algumas capitais
Determina que, no caso de prisão com atores do sistema de Justiça criminal
em flagrante, nas 24 horas seguintes ligados às audiências de custódia. A pro-
a autoridade policial deverá posta do que convencionou-se chamar de
providenciar a comunicação da “mesas de trabalho” era a criação de um
prisão e a apresentação da pessoa canal de diálogo, com apresentação de da-
presa ao/à juiz/a competente dos levantados pelo IDDD e parceiros/as,
e compreensão das dificuldades e ganhos
encontrados por cada instituição (Tribunal
de Justiça, Ministério Público e Defensoria
Pública) na realização das audiências de
custódia, a fim de contribuir com o debate
e a qualificação dessas audiências, obser-
vando-se o que está regulamentado pela
Resolução 213/2015 do CNJ.

Até a elaboração deste relatório, foram


realizados encontros em Recife (PE) e
Fortaleza (CE), em 2018, onde a conversa
teve início com a apresentação dos dados
do monitoramento do IDDD realizado nos
anos de 2015 e 2016; e em São Paulo e no Rio
de Janeiro, em 2019, locais onde algumas
informações deste relatório já foram apre-
sentadas como forma de iniciar o diálogo.

A proposta inicial era a realização de


encontro conjunto com os três principais
atores das audiências de custódia: juízes/
as, promotores/as e defensores/as. No
entanto, Fortaleza foi o único local no qual
foi possível realizar um encontro único,
no dia 3/9/18, com a participação de todos
- onde, aliás, estiveram também presen-
tes peritos criminais, agentes penitenci-
ários, membros da Secretaria de Justiça,
membros da sociedade civil organizada e
um deputado estadual. A articulação para
a realização do encontro foi feita pelo
Comitê Estadual de Prevenção e Combate
à Tortura do Estado do Ceará.

Nas demais cidades as reuniões foram


separadas, com encontros divididos
por instituição.

Em Recife, foi possível realizar, em um


único dia (6/8/18), o diálogo com juízes/as
responsáveis pelas audiências em todo o

17
O Fim da Liberdade

estado de Pernambuco, com promotores/


as e defensores/as que realizam audiência
de custódia na capital. Nestes encontros,
juntou-se ao IDDD a APT (Associação
para a Prevenção da Tortura), que fez
importante trabalho informativo junto à
magistratura, trazendo um olhar sobre a
importância do momento das audiências
de custódia para a prevenção e o combate
à tortura,12 e o GAJOP (Gabinete de Asses-
soria Jurídica às Organizações Populares),
organização parceira que foi responsável
pela articulação dos encontros.

Na cidade do Rio de Janeiro, as conversas


foram feitas apenas com promotores/
as (tanto das audiências de custódia
quanto do Núcleo de Direitos Humanos e
Minorias) e com defensores/as, estando
presentes além dos/as defensores/
as da audiência de custódia, os/as da
administração, incluindo o defensor
público geral, para os quais foram levados
os dados preliminares desta pesquisa.
A articulação para a realização destes
encontros foi feita pela Justiça Global,
a quem incumbiu a identificação dos
atores relevantes e os convites, além
da participação nas conversas, que
aconteceram nos dias 16 e 17/5/19.

Por fim, em São Paulo, até a elaboração


do presente relatório, a equipe do IDDD
só havia se reunido com os/as juízes/as
que realizam as audiências de custódia
durante a semana (de segunda a sexta-
feira) e, eventualmente, em regime de
plantão, aos finais de semana, lotados
no DIPO (Departamento de Inquéritos
Policiais e Polícia Judiciária) do Tribunal
de Justiça de São Paulo, no dia 25/2/19,
contando com a participação da Conectas
Direitos Humanos, que tratou de
situações de tortura.

Também, as informações surgidas a partir


das conversas realizadas serão trazidas ao
texto deste relatório como complemento
dos dados coletados durante a pesquisa.

12. A este respeito ver: youtu.be/3r9OANYZ1Ns.


O vídeo faz parte de matéria veiculada em: bit.ly/2PxPUEs
13. Tema trabalhado pela organização, que acompanhou,
no ano de 2015, as audiências de custódia na cidade
de São Paulo em seu momento inicial. Os resultados da
pesquisa podem ser acessados em: bit.ly/2EdWE6P

18
2. Metodologia

2.4. Contatos
telefônicos
PARA SUPRIMIR A lacuna de informa-
ção referentes a locais onde o IDDD não
realizou o monitoramento de campo,
buscou-se informações a partir de con-
tatos telefônicos tanto com os Tribunais
de Justiça quando com as defensorias
FOTOS: ALICE VERGUEIRO

públicas dos estados. A partir desses


contatos foi possível compreender me-
lhor algumas questões ligadas à estrutura
disponível para a realização das audi-
ências, como o espaço físico onde elas
acontecem nas capitais de cada estado.

19
O Fim da Liberdade

2.5. Ressalvas metodológicas


ALGUMAS RESSALVAS À metodologia aos finais de semana a partir do final do
implementada na pesquisa de campo são mês de outubro de 2018, tendo-se em
relevantes: na cidade do Rio de Janeiro vista que, antes desta data, as audiências.
houve uma diferença considerável nas
amostras relativas às audiências de Algumas ressalvas à metodologia
custódia acompanhadas (preenchimento implementada na pesquisa de campo são
de formulário A) e documentos da relevantes: na cidade do Rio de Janeiro
prisão em flagrante (preenchimento do houve uma diferença considerável nas
formulário B), pois não foi permitido amostras relativas às audiências de
o acesso aos autos durante os três custódia acompanhadas (preenchimento
primeiros meses de observação. de formulário A) e documentos da
prisão em flagrante (preenchimento do
Diante disso, foram coletados apenas formulário B), pois não foi permitido
dados da audiência de custódia (formu- o acesso aos autos durante os três
lário A) em 392 casos, dos quais, embora primeiros meses de observação.
sem acesso aos autos, em 291 foi possível
acessar a ata/assentada da audiência Diante disso, foram coletados apenas
de custódia por meio do site do TJRJ dados da audiência de custódia (formu-
(Tribunal de Justiça do Estado do Rio de lário A) em 392 casos, dos quais, embora
Janeiro). Em 100 casos, coletou-se infor- sem acesso aos autos, em 291 foi possível
FOTO: ALICE VERGUEIRO

mações das audiências e também dos do- acessar a ata/assentada da audiência


cumentos (autos de prisão em flagrante, de custódia por meio do site do TJRJ
boletins de ocorrência e ata/assentada da (Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
audiência de custódia - formulário B). Janeiro). Em 100 casos, coletou-se infor-
Além disso, a coleta de dados das audi- mações das audiências e também dos do-
ências só passou a ser realizada também cumentos (autos de prisão em flagrante,

20
2. Metodologia

boletins de ocorrência e ata/assentada da formulários A enquanto uma preenchia


audiência de custódia - formulário B). formulários B e outra, nas entrevistas,
preenchia formulários C.
Além disso, a coleta de dados das audi-
ências só passou a ser realizada também Tendo em vista que os/as próprios/as
aos finais de semana a partir do final do funcionários/as do NAC selecionavam
mês de outubro de 2018, tendo-se em aleatoriamente os documentos disponi-
vista que, antes desta data, as audiências bilizados para a pesquisa, nem sempre
de custódia não aconteciam aos finais os casos acompanhados em audiência
de semana na Central de Audiências de coincidiam com os casos cujos documen-
Custódia de Benfica. tos eram consultados.

Cumpre destacar também que a aleatorie- Diante disso, em apenas 57 casos houve
dade das salas de audiência para acompa- o preenchimento de ambos os formulá-
nhamento e coleta de informações acabou rios (A e B), embora o total de casos cujas
prejudicada no Rio de Janeiro, uma vez que audiências foram acompanhadas seja 203.
nem sempre foi dada a opção aos/às pes- Ou seja, de 146 casos foram coletadas ape-
quisadores/as de escolher as salas onde nas informações relativas às audiências
poderiam observar as audiências. acompanhadas.

Em Brasília há também diferença na Nas cidades de Mogi das Cruzes e São


amostra, considerando que parte das José dos Campos, embora sejam reali-
informações foi extraída apenas do acom- zadas audiências de custódia durante os
panhamento de audiências de custódia plantões, as equipes de pesquisa de ambos
(formulários A). A pesquisa contou com a os locais não tiveram autorização para
participação de sete pesquisadores/as, que acompanhá-las aos finais de semana.
alternavam suas idas ao NAC (Núcleo de Dessa forma, nas duas cidades a variação
Audiência de Custódia) e, lá, se dividiam nos dias da semana se deu apenas entre a
nos acompanhamentos das audiências segunda e a sexta-feira.
(em duas salas, ficando uma pessoa em
cada sala), na consulta aos autos ainda no Na cidade de Maceió, embora à época da
próprio NAC (sob a responsabilidade de pesquisa já fossem realizadas audiências
um/a pesquisador/a) e na entrevista às nos plantões Judiciários, o acompanha-
pessoas que passavam pela audiência (sob mento feito deu-se apenas nos dias úteis,
a responsabilidade de outro/a pesquisa- diante da impossibilidade do pesquisador,
dor/a). Ou seja, duas pessoas preenchiam por motivos pessoais, de estar presente
no fórum também aos finais de semana.

Vale mencionar que, em algumas cida-


des onde a pesquisa foi feita, o acesso à
documentação foi bastante dificultado
sob diversos argumentos das autoridades
locais, o que implicou um número menor
de formulários B preenchidos - motivo
pelo qual diversas informações contidas
neste formulário inexistem na pesquisa,
conforme será explicado mais à frente.

Em algumas cidades, o Por fim, o indicativo de 10% ou 100


audiências não pôde ser cumprido em

acesso à documentação determinadas localidades, por motivos


diversos. Alguns/umas pesquisadores/

foi bastante dificultado as encontraram dificuldades em


obter autorização para acompanhar

sob diversos argumentos as audiências, outros/as acabaram


descartando alguns formulários depois de

das autoridades locais terminarem as observações, por notarem


muitas inconsistências.

21
O Fim da Liberdade

2.6. Locais OLINDA


(PE)

monitorados e Grupo Asa Branca


de Criminologia

responsáveis
da Universidade
Federal de Per-
nambuco (UFPE)

pela parceria
Manuela Abath
Valença
Ago-Dez/2018
70
Nestas páginas, estão indicados
os locais monitorados, os/as
parceiros/as e respectivos/as
responsáveis, o período observado
e a amostra total de cada local:

PARCEIRO RESPONSÁVEL
PERÍODO DE OBSERVAÇÃO AMOSTRA

MACEIÓ
(AL)
Manoel Correia
de Oliveira
Andrade Neto
RECIFE Abr-Jun/2018
(PE) 96

Grupo Asa Branca


de Criminologia
da Universidade
Federal de Per-
nambuco (UFPE)
Manuela Abath
Valença
SALVADOR
(BA)
Mai-Ago/2018
Laboratório
87
de Estudos
sobre Crime e
Sociedade da
Universidade
Federal da Bahia
(Lassos/UFBA)
Mariana Possas
Abr-Jul/2018
149

BRASÍLIA
(DF)
Grupo de
Pesquisa
Criminologia do
Enfrentamento
do Centro
Universitário
de Brasília
(UniCEUB)
Carolina Costa
Ferreira
Out-Dez/2018
203

22
2. Metodologia

FEIRA DE RIO DE JANEIRO

2.774 « amostra total


SANTANA (RJ)
(BA) Observatório das
Audiências de
Grupo de
Custódia da Fa-
Pesquisa em
culdade Nacional
Criminologia da
de Direito da Uni-
Universidade
versidade Federal
do Estado da
do Rio de Janeiro
Bahia e Univer-
(OBSAC/UFRJ) e
sidade Estadual
Justiça Global
de Feira de San-
tana (GPCRIM/ Junya Rodrigues
UNEB/UEFS) Barletta e Isabel
Lima
Riccardo Cappi
Set-Dez/2018
Abr-Jun/2018
BELO HORIZONTE 392
29 (MG)
Centro de Estudos
de Criminalidade
e Segurança
Pública da
Universidade
Federal de Minas
Gerais (Crisp/
UFMG)
Ludmila Ribeiro
SÃO JOSÉ
Abr-Jun/2018 DOS CAMPOS
(SP)
380
Universidade
Paulista (Unip)
Milena
Bregalda Reis
Pontes
Mai-Ago/2018
213

MOGI DAS
CRUZES
(SP) SÃO PAULO
(SP)
Universidade de
Mogi das Cruzes IDDD
(UMC) Abr-Jul/2018
Milena Bregalda 623
Reis Pontes
Ago-Dez/2018
288

LONDRINA
(PR)
Douglas Bonaldi
PORTO ALEGRE
(RS)
Maranhão
Jun-Set/2018 Universidade
La Salle
Amostra: 138
Daniel Achutti
Mai-Jul/2018
106

23
O Fim da Liberdade

3.
Contexto

24
3. Contexto

D
esde os últimos escândalos
de corrupção ocorridos
no país, em especial os
revelados pela Operação
Lava Jato, há uma sensação permanente
de instabilidade institucional e de
polarização moral e política. Essa
radicalização ultrapassa as discussões
políticas e tem cada vez mais penetrado
no campo da Justiça, submetendo-a
a julgamentos populares, criando um
ambiente em que a legitimidade de
direitos fundamentais é questionada,
estimulando assim uma cisão social na
qual direitos passam a ser privilégio de
apenas uma parcela da sociedade.

É neste cenário em que vemos a


existência das audiências de custódia ser
ameaça sob o falso argumento de que são
elas as responsáveis pela impunidade
e pela deficiência em combater a

3.1. Esfera político-


criminalidade. Tal concepção, que não
se ampara em dados ou informações
sobre a realidade das audiências de
custódia, acaba por prestar um desserviço
às audiências, na medida em que abre
margem para que se encare a salvaguarda
normativa
de direitos do/a acusado/a como uma EMBORA O CONGRESSO Nacional já esti-
“salvaguarda do crime”. vesse discutindo as audiências de custódia
desde 2011, foi por meio da iniciativa do
Se, de um lado, pode-se comemorar Poder Judiciário, a quem compete aplicar
a iniciativa do CNJ de implementar as a lei, que sua realização se concretizou.
audiências de custódia e assim corrigir o Isso não significa, porém, que a discussão
descumprimento da legislação nacional tenha cessado no âmbito do Legislativo.
prosperou, do outro lado vê-se com muita Pelo contrário, desde o lançamento do
preocupação a tentativa de desmontar as projeto Audiência de Custódia, do CNJ,
audiências de custódia ou de subverter o Congresso tem debatido os termos em
sua aplicação para atender a anseios que essas audiências devem integrar a
populares baseados em falsas informações legislação processual penal. O IDDD sem-
e fomentados por uma cultura punitiva. pre acompanhou os debates legislativos
acreditando ser importante padronizar,
em lei, o procedimento das audiências de
custódia, garantindo segurança jurídica e
universalização do direito à audiência de
custódia, que ainda hoje, não é realizada
É preocupante a tentativa em todo o território nacional nem para
todas as pessoas custodiadas.
de desmontar as audiências
Apesar de acreditar na importância dessa
de custódia ou de subverter previsão na legislação processual penal,
FOTO: ALICE VERGUEIRO

o IDDD vê com preocupação diversas


sua aplicação para atender a iniciativas em tramitação atualmente.
Em especial, preocupa-se com quatro
anseios populares baseados propostas: Projeto de lei 6.620/16, Projetos
de lei 10.372/18 e 882/19, e Projeto de
em falsas informações Decreto Legislativo 317/2016.

25
O Fim da Liberdade

PL 10.372/18

3.2. Propostas
CONTEÚDO

de alterações
INTRODUÇÃO DO ACORDO
DE NÃO PERSECUÇÃO

legislativas
PENAL NO MOMENTO DA
AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA:

PROJETO DE LEI 6.620/16 “Art. 2º O Decreto-lei nº


Trata-se de proposta já aprovada no Sena- 3.689, de 3 de outubro de
do que, em dezembro de 2016, foi apensa- 1941- Código de Processo
da ao PL 8.045/10, que visa alterar o Códi- Penal, passa a vigorar com as
go de Processo Penal. Desde a publicação seguintes alterações:
do último relatório de pesquisa do IDDD, ‘Art. 28-A. Não sendo o caso
em 2017, não houve avanço significativo de arquivamento e tendo o
em sua tramitação. Além disso, desde o investigado confessado formal
apensamento do Projeto de lei 6.620/16 e circunstanciadamente a
(antigo Projeto de lei do Senado 554/2011) prática de infração penal sem
ao projeto de reforma do CPP (Código de violência ou grave ameaça,
Processo Penal), a discussão sobre a audi- e com pena mínima inferior
ência de custódia perdeu protagonismo e a quatro anos, o Ministério
fôlego na medida em que está em debate Público poderá propor acordo
toda a sistemática processual penal. de não persecução penal,
desde que necessário e
Atualmente, o texto do projeto de lei suficiente para a reprovação e
vai contra a normativa internacional ao prevenção do crime, mediante
permitir a possibilidade de dilação do as seguintes condições,
prazo de 24 horas para apresentação da ajustadas cumulativa ou
pessoa custodiada e liberar a realização alternativamente:
das audiências de custódia por sistema de (...)
videoconferência.
§ 5º Tratando-se de prisão
em flagrante delito, o acordo
poderá ser proposto e submeti-
PROJETOS DE LEI
do a homologação judicial na
10.372/18 E 882/19
audiência de custódia.’”
Ainda que o texto da reforma proces-
sual penal já estivesse tramitando há
anos no Congresso Nacional, são outros
dois projetos de lei que têm dominado a TRAMITAÇÃO
pauta legislativa em matéria processual
Inserido em Grupo de Tra-
penal nos últimos tempos. Trata-se do
balho destinado a analisar e
FOTO: PEDRO FRANÇA/AGÊNCIA SENADO

PL 10.372/18, do então ministro da Justiça


debater as mudanças promo-
Alexandre de Moraes, e do PL 882/19, do
vidas na legislação penal e
atual ministro da Justiça Sergio Moro, que
processual penal pelos proje-
tramitam conjuntamente na Câmara dos
tos de lei 10.372, 10.373 e 882,
Deputados. Ambas as propostas também
de 2018 (GT Penal) - coordena-
desconfiguram a audiência de custódia em
ção: Deputado João Campos
relação ao que prevê o Pacto de San José
- PRB/GO (02/07/2019)
da Costa Rica. Em síntese, a situação dos
projetos é a seguinte:

26
3. Contexto

PL 882/19 (...)
IV - responder à questão de
ordem pública ou prevenir
persecução penal, desde que
necessário e suficiente para
a reprovação e prevenção do
custos com deslocamento ou crime, se não for hipótese
escolta de preso. de arquivamento e se o
CONTEÚDO investigado tiver confessado
(...)
circunstanciadamente a
REALIZAÇÃO DAS § 10. Se o réu preso estiver prática de infração penal,
AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA recolhido em estabelecimento sem violência ou grave
OBRIGATORIAMENTE POR prisional localizado fora da ameaça, e com pena máxima
VIDEOCONFERÊNCIA: comarca ou da subseção não superior a quatro anos,
judiciária, o interrogatório mediante o cumprimento
“Art. 3º O Decreto-lei nº e a sua participação nas das seguintes condições,
3.689, de 3 de outubro de audiências deverão ocorrer na ajustadas cumulativa ou
1941 - Código de Processo forma do § 2º, desde que exista alternativamente:’”
Penal, passa a vigorar com as o equipamento necessário.”
(...)
seguintes alterações: (NR) (grifos nossos)’”

(...)
‘Art. 185. (...)
§ 2º O juiz, por decisão INTRODUÇÃO DO
fundamentada, de ofício ACORDO DE NÃO
TRAMITAÇÃO

ou a requerimento das PERSECUÇÃO PENAL: Apensado ao PL 10.372/18 de


partes, poderá realizar Alexandre de Moraes. Tramita
“Art. 3º O Decreto-lei nº
o interrogatório do réu também no Grupo de Trabalho
3.689, de 3 de outubro de
preso por sistema de destinado a analisar e debater
1941 - Código de Processo
videoconferência ou outro as mudanças promovidas na
Penal, passa a vigorar com as
recurso tecnológico de legislação penal e processual
seguintes alterações:
transmissão de sons e penal pelos projetos de lei
imagens em tempo real, desde 10.372, 10.373 e 882, de 2018
que a medida seja necessária ‘Art. 28-A. O Ministério (GT Penal) - coordenação:
para atender a uma das Público ou o querelante Deputado João Campos - PRB/
seguintes finalidades: poderá propor acordo de não GO (02/07/2019)

27
O Fim da Liberdade

No entender do IDDD, a introdução


do acordo de não persecução penal ao 3.3. Resistência
sistema de Justiça criminal brasileiro,
por meio das audiências de custódia, a
realização por sistema de videoconfe-
de atores sociais
rência e a dilação do prazo de 24 horas NO DEBATE PÚBLICO também emergiram
para apresentação da pessoa presa manifestações de resistência às audiências
ao/à juiz/a são pontos especialmente de custódia.15 Não raro, elas são conside-
problemáticos, que não dialogam com o radas aliadas da impunidade. Nessa lógica
compromisso assumido pelo Brasil in- que resgata um punitivismo maniqueísta,
ternacionalmente quando da ratificação a proposta de criar um primeiro con-
do Pacto de San José da Costa Rica. tato entre o/a custodiado/a e o/a juiz/a
transforma-se em estímulo para oferecer
PROJETO DE DECRETO uma primeira resposta aos “cidadãos de
LEGISLATIVO 317/2016 bem” contra o “mal” da criminalidade.
Embora o Supremo Tribunal Federal já Segundo esta perspectiva, espera-se que a
tenha analisado e confirmado a consti- audiência de custódia sirva para aumen-
tucionalidade da Resolução 213/2015 do tar o número de decretação de prisões
CNJ, tramita no Congresso o Projeto de preventivas, quando, na verdade, uma de
Decreto Legislativo 317/2016,14 proposto suas finalidades é justamente reduzir este
pelo deputado Eduardo Bolsonaro, que índice, garantindo que a prisão seja rea-
pretende sustar integralmente os efei- lizada apenas em situações excepcionais,
tos do texto. O projeto está na pauta da conforme determina a lei.
CCJ (Comissão de Constituição e Justiça
e de Cidadania) da Câmara. A associação das audiências de custódia
com a impunidade causa espanto porque
revela a incompreensão sobre a nature-
za e finalidade dessas audiências. Aliás,
revela também a incompreensão sobre
o papel do Poder Judiciário, que tem sido
alvo de uma expectativa social de que as
instituições Judiciárias atuem em resposta
ao clamor social. Nesse contexto, cumpre
ressaltar a importância de toda restrição
de liberdade ser filtrada pelo Judiciário à
luz das garantias individuais e do princípio
da legalidade.

14. O texto do referido projeto de lei está disponível em:


https://bit.ly/2Uaytxx.
15. Algumas opiniões nesse sentido são:
(i) https://bit.ly/2zmL0nV;
(ii) https://bit.ly/2ZrLpjB;
(iii) https://bit.ly/2Hqmfvq;
(iv) https://bit.ly/2U6yMJV;
(v) https://bit.ly/2He8FO8;
(vi) https://bit.ly/2DTpACD;
(vii) https://bit.ly/2TMK3C8.

28
3. Contexto

A associação da
audiência de custódia
com a impunidade
revela a incompreensão
sobre sua natureza e
finalidade

A respeito do posicionamento dos/as pesquisadores/as do NEV/USP (Núcleo de


juízes/as, a Associação dos Magistra- Estudos da Violência da USP) apresentam
dos Brasileiros publicou, em novembro dois aspectos fundamentais das narrativas
de 2018, o relatório “Quem Somos - A policiais sobre as audiências de custódia:
Magistratura Que Queremos”, cujos (1) “a perspectiva de que as audiências
resultados indicam que a maioria dos/as de custódia promoveriam a soltura
magistrados/as que se opõem à audiência desmedida dos presos em flagrante
de custódia atua na primeira instância. (inclusive ‘criminosos perigosos’),
Ou seja, a percepção de que as audiências prejudicando e desvalorizando o trabalho
são um instrumento importante é maior policial” e (2) “a concepção de que a
nas instâncias superiores: apenas 50,3% palavra dos acusados sobre a violência
dos/as juízes/as de primeiro grau concor- policial seria mais valorizada do que a
dam com a realização das audiências de dos policiais, o que contribuiria para a
custódia, contra 80,9% no segundo grau e impunidade criminal, entendida como
88,2% nas cortes superiores.16 ausência de encarceramento”.17

A resistência às audiências de custódia é A pesquisa aponta, no entanto, que essas


alta também nas instituições policiais. narrativas estão “descoladas do que as
Em artigo publicado em 2018 na estatísticas vêm assinalando sobre os
Revista Brasileira de Segurança Pública, efeitos das audiências de custódia no
FOTOS: ALICE VERGUEIRO

16. O relatório está disponível em: https://bit.ly/2BsZZOI


17. JESUS, Maria Gorete Marques de; RUOTTI, Caren; ALVES, Renato. “A gente prende, a audiência de custódia solta”:
narrativas policiais sobre as audiências de custódia e a crença na prisão. Rev. bras. segur. pública. São Paulo v. 12, n. 1, 152-
172, fev/mar 2018, p. 159

29
O Fim da Liberdade

montante de decisões judiciais sobre Parece haver uma


as prisões provisórias” - que, confor-
me demonstra a presente pesquisa, no desconexão entre a
tópico 6.4.4 abaixo, ainda é alto. Assim,
parece haver uma “desconexão entre a fala dos policiais e as
fala dos policiais e as práticas observadas
no funcionamento cotidiano das audiên- práticas observadas no
cias”, de tal modo que “policiais e juízes
parecem atuar muito mais a partir de funcionamento cotidiano
afinidades do que de desalinhamentos”.
O artigo conclui que a narrativa de que “a das audiências
polícia prende e a audiência de custódia
solta” é imprecisa e reafirma “velhos
paradigmas em relação à segurança
pública”, fundada na cultura punitivista
que “ainda associa fortemente punição e
prisão, como se outros mecanismos Ju-
diciais não fossem capazes de auxiliar na Além disso, durante as mesas de trabalho,
resolução do problema da criminalidade e
promover a segurança”.18
alguns dos próprios promotores de Justiça
de Recife trouxeram a preocupação com a
conscientização da polícia para a neces-
5,28%
A resistência às audiências de custódia sidade das audiências de custódia. Essa FOI O ÍNDICE
presente nas narrativas policiais foi é a mesma conclusão apresentada pela DE RETORNO À
AUDIÊNCIA DE
observada em um caso em Salvador. Em pesquisa conduzida pela DPRJ (Defensoria
CUSTÓDIA ENTRE
relatório de campo realizado pela equipe Pública do Rio de Janeiro), que aponta para 2016 E 2017 NO
local, aponta-se um caso em que, na sala a urgência de se “desmistificar alguns RIO DE JANEIRO
de espera das pessoas custodiadas, um/a argumentos no sentido de que as audiên-
policial civil responsável pela escolta cias de custódia só servem para soltar as
comentava, de forma enérgica, como era pessoas que voltariam a cometer crimes
absurdo que se gastasse tanto dinheiro logo depois”. O estudo apresenta, ainda,
público com as audiências de custódia. dados que contrariam a afirmação de que a
Argumentou que a polícia tinha um polícia prende e as audiências de custódia
custo material e humano imenso para, soltam: por exemplo, o índice de retorno
nas audiências de custódia, o/a juiz/a à audiência de custódia entre setembro de
“desfazer todo o trabalho” ao conceder a 2016 e setembro de 2017 no Rio de Janeiro
liberdade provisória. foi de apenas 5,28%. ■

18. Idem. Trechos retirados do artigo cuja referência consta na nota de rodapé logo acima.
19. Defensoria Pública do Rio de Janeiro – Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça. Relatório 2º ano das
audiências de custódia no Rio de Janeiro. Disponível em: https://bit.ly/2U5d1tP, pp. 19-20.
20. Outra referência interessante: durante o 1º Diálogo Público sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável,
realizado no Recife, no final de abril de 2019, em co-parceria com o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda
2030 (GT Agenda 2030), a organização Gestos lançou seu relatório “A Agenda 2030 e o Acesso à Justiça - Relatório sobre
as audiências de custódia em Pernambuco”. Embora a publicação ainda não tenha sido disponibilizada virtualmente, o
portal da Gestos informa, em reportagem de Micheline Batista do dia 02 de maio de 2019, que o relatório conclui pela
precariedade do acesso à Justiça no Brasil e, especificamente, em Pernambuco, onde concentrou suas análises sobre:
(i) a implementação do ODS 16 (Paz e Justiça) no Estado, (ii) a população carcerária local, (iii) o panorama das execuções
FOTO: ALICE VERGUEIRO

criminais e (iv) o uso da audiência de custódia como garantia de acesso à Justiça. Os dados do estudo teriam sido
coletados em bases oficiais, muitos dos quais reforçam a hipótese de que o encarceramento afeta sobretudo as pessoas
negras, jovens e do sexo masculino. Segundo a reportagem do site, a publicação destaca, também, o não-cumprimento,
pelas autoridades públicas, das medidas em proteção à vida, à saúde e à integridade das população carcerária que a CIDH
(Comissão Interamericana de Direitos Humanos) da OEZ (Organização dos Estados Americanos) determinou em 2011.
Ainda assim, a implementação das audiências de custódia, seguindo o projeto piloto do CNJ, teria feito diferença: “embora
não tenha resolvido, evitou um cenário ainda pior na medida em que resultou na liberdade provisória dos presos em
43,67% das audiências realizadas até 2018”(Disponível em: https://bit.ly/2Zl7xRB).

30
3. Contexto

31
O Fim da Liberdade

4.
Disparidades
Locais FOTO: ALICE VERGUEIRO

32
4. Disparidades Locais

A 4.1. Dias da semana


observação in loco das
audiências de custódia
em diferentes cidades
permitiu perceber a falta de A PESQUISA OBSERVOU a frequência das
uniformização dos procedimentos adotados audiências de custódia, ou seja se estão
em sua realização ainda hoje, pouco mais sendo realizadas diariamente ou se ainda
de quatro anos passados desde o início da há situações em que elas acontecem
implementação. apenas em dias úteis. Constatou-se que
a grande maioria das cidades já realiza
A inexistência de lei federal que regula- as audiências de custódia durante os
mente os atos pré-processuais que com- plantões de final de semana. Confira a
põem este momento parece ser a grande situação no gráfico abaixo.
responsável pela falta de padrão. Além do
fato de que nem todas as comarcas realizam Há audiências de custódia em dias úteis e
audiência de custódia - e, portanto, nem também em regime de plantão (ou seja,
todas as pessoas presas em flagrante têm a aos finais de semana, feriados e recessos
mesma oportunidade de estarem presentes forenses) na maioria das cidades
no momento de decisão sobre a legalidade pesquisadas: São Paulo, Salvador, Recife,
de sua prisão -, outras questões se desta- Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre,
cam, como será apresentado a seguir. Mogi das Cruzes, São José dos Campos,
Maceió e Belo Horizonte.

No Rio de Janeiro, as audiências de


custódia ocorrem apenas na parte da
DIA DA SEMANA DAS AUDIÊNCIAS tarde. Durante parte do período de
observação, as audiências ainda não
audiências aconteciam aos fins de semana; isto
0 50 100 150 200 250 300 350 400 passou a ocorrer a partir de outubro de
2018. Já em Londrina, Olinda e Feira
DOM de Santana, no período em que as
observações foram feitas, as audiências
eram realizadas apenas de segunda a
sexta-feira.
SEG
A realização de audiências de
custódia também nos plantões é
TER de suma importância. Não apenas
porque contribui para que todas as
pessoas presas em flagrante recebam
QUA uma decisão sobre a legalidade de
sua prisão no prazo de 24 horas
independentemente do dia em que
QUI tenham sido presas, mas também
porque agiliza o sistema de Justiça,
evitando que o volume de trabalho
se acumule ao longo dos dias e
SEX
sobrecarregue os operadores.
Se a maioria das cidades já realiza
audiências de custódia diariamente, o
SÁB mesmo não se observou com relação
ao cumprimento do prazo de 24 horas
para apresentação da pessoa presa
FERIADO em flagrante ao/à juiz/a, conforme
determina a Resolução 213/15 do CNJ.

33
O Fim da Liberdade

4.2. Prazo de 24 horas


O PRAZO DE apresentação das pessoas mais de 24 horas presa até ser apresen-
presas à audiência de custódia - bem tada à audiência de custódia.
como o termo inicial de contagem deste
prazo (isto é, se ele é contado a partir da No Rio de Janeiro e em São José dos
prisão flagrante ou se a partir da comu- Campos, a contagem também se dá a
nicação do flagrante) - é outro ponto que partir da comunicação do flagrante.
diferencia os locais pesquisados. Entretanto, em São José dos Campos, a
equipe de pesquisa constatou que as 24
A maior parte das cidades não cumpre horas são cumpridas, enquanto que os/
com o disposto na Resolução 213/15 do as pesquisadores/as do Rio de Janeiro as-
CNJ, ultrapassando o prazo de 24 horas sinalam que o prazo de 24 horas não era
para apresentação da pessoa presa. respeitado até setembro de 2018, quando
Em São Paulo, Recife, Olinda e Maceió, o as audiências passaram a ser realizadas
prazo de 24 horas é respeitado e contado também aos finais de semana.

FOTO: ALICE VERGUEIRO


da própria prisão em flagrante. Em Feira
de Santana, também se respeita as 24 Em Brasília, nem sempre o prazo de 24
horas, mas o prazo é contado a partir da horas para a apresentação da pessoa
comunicação do flagrante, o que abre custodiada é respeitado; tudo depende da
margem para que a pessoa permaneça hora em que a pessoa é presa. O trans-

34
4. Disparidades Locais

porte da Polícia Civil das Delegacias de A maior parte das cidades


Polícia à Delegacia Especializada, onde
acontecem as audiências de custódia, não cumpre com o disposto
acontece todos os dias, em dois horários –
um pela manhã, e outro pela tarde, o que na Resolução 213/15 do CNJ,
a polícia chama de “bonde”. Se a pessoa
não pegar o “bonde” daquele dia – ou for ultrapassando o prazo de 24
presa depois de o “bonde” passar -, só
pegará o próximo e, como as audiências horas para apresentação
de custódia acontecem todos os dias de
manhã, o prazo de 24 horas pode não ser da pessoa presa
totalmente obedecido. De forma seme-
lhante, em Porto Alegre, como as audiên-
cias começam às 9h30, quem for preso/a
até às 6h é apresentado naquele mesmo
dia; mas quem for preso/a depois deste
horário vai para a pauta do dia seguinte -
assim, ultrapassa-se o prazo de 24 horas.

Em Londrina, o prazo de 24 horas não


é respeitado, especialmente quando as
prisões ocorrem em feriados ou finais
de semana ou quando são decorrentes
de mandados de prisão preventiva já
expedidos por outros/as magistrados/as. pessoa presa no Infopen e transferência
Nesses casos, a equipe de pesquisadores/ deste para o Ceresp (Centro de Rema-
as aponta que a audiência de custódia nejamento de Presos Provisórios), (iii)
ocorre pro forma e verifica apenas se no Ceresp, organização do “bonde” das
o/a custodiado/a não sofreu nenhuma audiências de custódia do dia, momento
agressão. Os/as pesquisadores/as em que todas as pessoas que chegaram
notaram ter havido audiências em que, no dia anterior são conduzidas pelos
mesmo destinadas apenas a esse fim, não agentes penitenciários. Como não há o
foi perguntado se o/a custodiado/a havia deslocamento direto da delegacia para
sofrido agressão no momento a audiência de custódia, o prazo de 24
da abordagem. horas dificilmente é cumprido.

Ademais, no prazo de 24 horas, quando Outra consequência deste protocolo


não passam pela audiência de custódia, apontada pelos/as pesquisadores/as é
as pessoas custodiadas têm seus feitos que, em caso de liberdade provisória
analisados pelos juízes de plantão – que concedida na audiência de custódia, o/a
não são exclusivamente criminais, mas preso/a precisa retornar ao Ceresp para
também das varas cíveis. devolver o uniforme e recolher os seus
pertences, sendo efetivamente coloca-
Em Belo Horizonte, o prazo para apre- do em liberdade algumas horas após a
sentação da pessoa presa é, em regra, de decisão judicial.
48 horas. Essa demora é justificada em
razão do protocolo estabelecido pelas Em Salvador, a equipe relata que as au-
instituições, que faz com que o prazo seja diências costumam ocorrer até 36 horas
contado a partir da comunicação do fla- depois da prisão em flagrante.
grante. Assim, o percurso da pessoa pre-
sa tende a ser o seguinte: (i) prisão pela Em Mogi das Cruzes, os/as pesquisado-
polícia e condução do/a custodiado/a para res/as afirmam que o respeito ao prazo
a delegacia, (ii) na delegacia, matrícula da de 24 horas ocorre de forma oscilante.

35
O Fim da Liberdade

4.3. Local onde ocorre a


audiência de custódia
OUTRO PONTO OBSERVADO pela Em Feira de Santana, as audiências rea-
pesquisa foi o local onde as audiências de lizadas às sextas-feiras ocorrem na cha-
custódia são realizadas em cada cidade mada Vara de Justiça pela Paz em Casa.
que, como será visto ao longo deste
relatório, tem implicações diretas na vida Em Belo Horizonte, as audiências de
e trajetória da pessoa custodiada. Três custódia ocorrem no subsolo do Fórum
lugares foram elencados nesse tópico: o Lafayette, o principal da capital, num
fórum, a delegacia e a unidade prisional. espaço próximo à carceragem e aos
A pesquisa permite perceber que, na Tribunais do Júri existentes na cidade.
maioria das cidades, as audiências de A equipe de pesquisa local avalia o
custódia ocorrem no fórum. espaço como bastante apropriado para
os seus propósitos, tanto em termos
de disposição física (há secretaria,
FÓRUM
FOTOS: ALICE VERGUEIRO

duas salas de audiência e um espaço


Em Recife, Olinda, Feira de Santana, específico para a conversa entre defesa e
Londrina, Mogi das Cruzes, São Pau- pessoa custodiada) quanto em termos de
lo, São José dos Campos, Maceió e Belo localização (por ser no centro da cidade,
Horizonte, as audiências de custódia são o que facilita o acesso e comparecimento
realizadas no fórum. de familiares, advogados/as e, também,

36
4. Disparidades Locais

o retorno para a casa nos casos em que a DELEGACIA


pessoa é liberada imediatamente). Em Brasília, desde agosto de 2018, as
audiências de custódia acontecem na
Em São José dos Campos e em Mogi DPE (Delegacia de Polícia Especializada)
das Cruzes, as audiências ocorrem - dentro do NAC (Núcleo de Audiências
junto à estrutura do fórum estadual de de Custódia), localizado em um comple-
cada comarca. xo da Polícia Civil do Distrito Federal.

Em Londrina, as audiências ocorrem no A pesquisadora, que acompanhou


prédio da Vara de Execuções Penais e as audiências no Tribunal em 2015 e
Corregedoria dos Presídios, ao lado do em 2017, e em 2018 na Polícia Civil,
prédio do Fórum Criminal. A equipe de entende que o espaço não alterou a
pesquisa avalia que o prédio é novo e as dinâmica decisória, mas ressalta que
instalações são adequadas. o fato das audiências de custódia se
realizarem dentro do complexo policial
Por fim, a equipe de pesquisa de Recife dificulta relatos de tortura. Além disso,
e Olinda apontou que, como em Per- pontua que o mesmo modelo altamente
nambuco as audiências ocorrem sempre punitivo é reproduzido nas salas de
nos espaços do Poder Judiciário, não há audiência, tanto no Tribunal quanto
muitos parâmetros de comparação para na Polícia Civil: a pessoa é apresentada
avaliar a qualidade do local e seus impac- algemada e a audiência é acompanhada
tos na trajetória do/a custodiado/a. por, no mínimo, dois agentes da
Polícia Civil.

Importante, entretanto, esclarecer que


o NAC é vinculado ao Tribunal de Justiça
O fato das audiências de do Distrito Federal, ligado à Corregedoria
do Tribunal – a Polícia Civil apenas cedeu
custódia se realizarem o espaço na Delegacia de Polícia Especia-
lizada para a realização das audiências de
dentro do complexo custódia, em um acordo de cooperação
entre TJDFT, Secretaria de Segurança
policial dificulta relatos Pública e Polícia Civil, para facilitar o
transporte de pessoas presas das delega-
de tortura cias ao IML e, posteriormente, ao NAC.

37
O Fim da Liberdade

UNIDADE PRISIONAL
Em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, por
sua vez, as audiências são realizadas no
interior de estabelecimentos prisionais.

Na capital gaúcha, as audiências de


custódia dos presos do sexo masculino
ocorrem na Cadeia Pública de Porto
Alegre (antigo Presídio Central de Porto
Alegre). Após o término das audiências
dos custodiados homens, os operadores
deslocam-se para a Penitenciária
Feminina Madre Pelletier, onde são
realizadas as audiências com custodiadas
do sexo feminino. No Rio de Janeiro,
todas as audiências de custódia ocorrem
no Complexo Penitenciário José Frederico
Marques, no bairro de Benfica.21

Essa mecânica foi estabelecida, apesar


do procedimento proposto pela
Resolução 213/2015 do CNJ. Assim, em
Porto Alegre, a decisão sobre legalidade
do flagrante e necessidade ou não de
decretação de prisão preventiva é feita
inicialmente por outro/a juiz/a, com
base unicamente na documentação do
flagrante e sem contato direto com a
pessoa presa. De tal forma, só passam
pelas audiências de custódia as pessoas
que tiveram a preventiva decretada
após esta primeira análise documental
(uma espécie de “reanálise da decisão”).
Isso pode explicar o baixíssimo índice
de concessão de liberdade provisória
em audiências de custódia na capital
gaúcha (a maioria dos/as juízes/as
ratifica a decisão anterior). Além disso,
os/as presos/as com outro processo de
execução criminal ativo tampouco são
encaminhados às audiências.
No Rio de Janeiro, a realização das
audiências dentro do presídio ocorre
desde 2017, sob a justificativa da
necessidade de se evitar o deslocamento
de pessoas presas em flagrante das
delegacias até o Fórum da Capital, o
21. Por meio de contato telefônico com as Defensorias
Públicas dos Estados, o IDDD buscou informações sobre que supostamente gerava insegurança
os locais em que são realizadas as audiências de custódia na população, demora na apresentação
nas capitais dos Estados onde não pôde realizar o atual
monitoramento. A saber: em Rio Branco (AC), Macapá (AP), das pessoas presas e gastos estatais
Manaus (AM), Goiânia (GO), São Luís (MA), Cuiabá (MT), com transporte, combustível e escolta.
Campo Grande (MS), Belém (PA), João Pessoa (PB), Curitiba
(PR), Teresina (PI), Natal (RN), Porto Velho (RO), Boa Vista Essa mudança, no entanto, dificultou
(RR), Florianópolis (SC), Aracaju (SE) e Palmas (TO), as
audiências de custódia são realizadas em espaço dentro
significativamente o acesso e o ingresso
dos fóruns; em Fortaleza (CE) foi criado um espaço para a do público em geral às audiências, não
Vara Única de Audiências de Custódia junto à Delegacia de
Capturas e Polinter (DECAP), ou seja, espaço é partilhado só dos/as pesquisadores/as, mas até
entre a atuação da Polícia Civil e as atividades do Poder mesmo de advogados/as constituídos/as.
Judiciário; por fim, em Vitória (ES) elas acontecem no Centro
de Triagem do Complexo Penitenciário de Viana. Era comum que familiares das pessoas

38
4. Disparidades Locais

custodiadas não fossem autorizados a


entrar no presídio, por exemplo. Nesse
sentido, a equipe de pesquisa avalia
que o espaço atual em que ocorrem as
audiências de custódia não é adequado.

Há, no entanto, diferença substancial


entre as realidades de Porto Alegre e do
Rio de Janeiro: em Porto Alegre a análise
da legalidade da prisão em flagrante é
feita por um/a juiz/a, dentro do prazo de
24 horas, com base apenas nos documen-
tos (auto de prisão em flagrante e boletim
de ocorrência). Passam por audiência de
custódia apenas as pessoas que tiveram
a prisão preventiva decretada por esse/a
juiz/a. Já no Rio de Janeiro, o prazo de 24
horas é contado a partir da comunicação
do flagrante - e não da prisão -, mas as
audiências são realizadas para todas as
pessoas presas em flagrante. Desse fato
pode-se extrair algumas conclusões: a
primeira é que em Porto Alegre não se
faz audiência de custódia nos moldes da
Resolução 213/15 do CNJ, já que as pessoas
para quem se concede liberdade provisória
na análise do flagrante não passam por
audiência - e, portanto, não têm a chance
de denunciar eventual violência sofrida na
abordagem policial. A segunda é que o nú-
mero de decretação de prisões preventivas
em audiência de custódia em Porto Alegre
destoa consideravelmente da média geral
dessa pesquisa, pelo fato de ser uma “re-
análise” de decisão de outro/a magistra-
do/a, que já entendeu necessária a prisão
provisória. A terceira conclusão é que, no
Rio de Janeiro, pessoas são inseridas no
sistema penitenciário - onde recebem o
“RG” do sistema (número de matrícula)
mesmo sem ter contra si um mandado de
O IDDD tem especial prisão expedido.

preocupação com a Em Porto Alegre, destaca-se também o


fato de que as pessoas presas que possuem
realização das audiências processo de execução criminal ativo são
impedidas de ingressar na Cadeia Pública
de custódia dentro de de Porto Alegre. Essas pessoas acabam
sendo enviadas diretamente para outras
unidades prisionais unidades prisionais do Estado e não são
apresentadas em audiência de custódia.

Para além da violação à literalidade da


Resolução 213/2015, o procedimento
adotado pela comarca impede que essas
pessoas sejam apresentadas à autoridade
FOTO: ALICE VERGUEIRO judicial e questionadas sobre o momento

39
O Fim da Liberdade

e as circunstâncias da prisão, de forma pública, conforme os artigos 5º, LX, e 37º,


que se deixa de detectar possíveis casos caput, da Constituição Federal.
de violência policial.
Além de o acesso e a publicidade
O IDDD tem especial preocupação com a das audiências de custódia ficarem
realização das audiências de custódia den- comprometidos quando elas ocorrem
tro de unidades prisionais. Por outro lado, em unidades prisionais (como resta
a realização das audiências dentro dos demonstrado, por exemplo, pelos
fóruns ou mesmo em sede policial, desde relatos da equipe de pesquisa do Rio de
que sob a jurisdição dos Tribunais de Justi- Janeiro), realizá-las nesses espaços acaba
ça estaduais, parece ser mais adequada. por introduzir as pessoas custodiadas
no sistema prisional sem que seja
Isso porque é necessário que a jurisdição decretada sua prisão preventiva. Elas
sobre as audiências de custódia acabam sendo expostas ao ambiente

TOMAZ SILVA/AGÊNCIA BRASIL


garanta (i) o acesso a essas audiências prisional, ou mesmo recebendo uma

FOTOS: ALICE VERGUEIRO /


pelo público em geral (advogados/as, identidade prisional, antes de qualquer
familiares, pesquisadores/as e outras determinação judicial.
pessoas interessadas) e (ii) a publicidade
dessas audiências – lembrando que a Por outro lado, quando a pessoa está
publicidade dos atos processuais é um sob a tutela do Poder Judiciário, o seu
princípio da Justiça e da administração resguardo do sistema prisional, assim

40
4. Disparidades Locais

como o amplo acesso e a publicidade


das audiências de custódia, torna-se
mais garantido.

OUTROS
Já em Salvador, as audiências ocorrem no
NPF (Núcleo de Prisões em Flagrante),
uma unidade específica para isso, loca-
lizada fora da Cadeia Pública da cidade.
Trata-se de um outro modelo de realização
das audiências, pois o NPF não se localiza
nem no fórum, nem na delegacia, nem
na unidade prisional. Há uma carceragem
compartilhada com a Delegacia Central
de Flagrantes, que fica próxima ao NPF
(embora com entrada independente), mas
as salas de audiências, salas de espera e
recepção são separadas. O ingresso no
Núcleo de Prisões em Flagrante se dá da
seguinte forma: as pessoas são detidas
nas delegacias espalhadas pela cidade;
depois, conduzidas ao NPF para a audiên-
cia de custódia pela Polícia Civil; e, se for

4.4 Transporte da
o caso de prisão preventiva, do NPF são
conduzidas ao Complexo Penitenciário,
que fica consideravelmente longe do cen-
tro da cidade. O NPF é de responsabilidade
do Tribunal de Justiça do Estado – a Polícia
Civil apenas cuida da escolta das pessoas
pessoa custodiada
custodiadas, enquanto que a segurança A PESQUISA TAMBÉM observou como se
do NPF é feita pela Polícia Militar. Não há dá o transporte das pessoas custodiadas
agentes penitenciários no NPF. da carceragem até o local de realização
das audiências de custódia.

Nas cidades de São Paulo, São José dos


Campos, Brasília, Feira de Santana,
Salvador, Recife, Olinda e Maceió, quem
realiza esse transporte é a Polícia Civil,
em viaturas ou camburões (veículos
com grades instaladas entre o banco
A realização de conversas traseiro e o porta-malas, onde ficam
as pessoas custodiadas). Diversos/
nos corredores, diante as pesquisadores/as apontam que o
transporte gera desconforto às pessoas
de agentes de segurança, custodiadas: carros apertados e sem boa
ventilação, uso de algemas durante todo
pode comprometer tanto o deslocamento e excesso de pessoas nas
viaturas são alguns pontos ressaltados.
a narrativa da pessoa
Em Londrina e Porto Alegre, quem realiza
custodiada quanto a o transporte é a Polícia Militar. Em São
José dos Campos, os/as custodiados/
elaboração da estratégia as também são escoltados por policiais
militares, quando vêm de centros de
de defesa detenção provisória.

41
O Fim da Liberdade

No Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, o


transporte é realizado por agentes peni- 4.5 Conversa
tenciários. No Rio de Janeiro, entretanto,
a equipe de pesquisa não teve acesso às reservada com
a defesa
carceragens do CEAC-Benfica no período
observado, de modo que não puderam
observar e avaliar em que condições se
dá o transporte (no caso, a dinâmica de UMA QUESTÃO QUE preocupa o IDDD
entrada e saída) das pessoas custodiadas diz respeito à falta de privacidade para
na referida central de custódia. Já em conversa entre as pessoas custodiadas e
Belo Horizonte, a equipe de pesquisa os/as defensores/as por ausência de salas
aponta que, geralmente, há veículos que reservadas no espaço de realização das
transportam até sete pessoas para os audiências. Foi comum a observação de
deslocamentos entre o Ceresp e o fórum, entrevistas realizadas nos corredores,
e que, como são vários os carros e sujei- ou em outros espaços abertos, diante
tos envolvidos nesta tarefa, não consta- de agentes de segurança, juízes/as,
taram problemas ou irregularidades. defensores/as, promotores/as e outros
transeuntes. Em vista disso, buscou-se
Em relação à questão do transporte compreender dois pontos centrais: (i)
dos/as custodiados/as, não recebemos se havia ou não estrutura para a conversa
resposta da equipe de Mogi das Cruzes.  reservada em cada cidade e (ii) se
essa conversa era de fato reservada.
A conclusão extraída é que, infeliz-
mente, na maioria das vezes não há
conversa reservada.

CONVERSA RESERVADA NÃO HÁ CONVERSA


GARANTIDA RESERVADA

BRASÍLIA DF RIO DE JANEIRO RJ BELO HORIZONTE MG SALVADOR BA

Há sala para conversa Há a sala da Há dois parlatórios Há a sala da Defen-


reservada e é utilizada. Defensoria Pública, anexos às salas de soria Pública e uma
que realiza entrevistas audiência, mas as sala de espera onde
OLINDA PE reservadas com as conversas ocorrem ficam todas as pessoas
Há uma sala específica pessoas custodiadas com portas abertas custodiadas, mas há
da Defensoria Pública antes das audiências. e muitas vezes na sempre agentes da
e uma sala onde os/as presença de agentes Polícia Civil por perto.
advogados/as parti- PORTO ALEGRE RS de segurança.
culares fazem atendi- Na Cadeia Pública de FEIRA DE SANTANA BA

mento reservado. Porto Alegre – onde SÃO PAULO SP Não há sala para con-
ocorrem as audiências Há uma sala para versas reservadas, que
RECIFE PE dos custodiados conversa reservada, ocorrem nos corredo-
Há uma sala específica homens – há uma mas não é utilizada res do fórum.
da Defensoria Pública sala específica em pela Defensoria Públi-
e uma sala onde os/as que a Defensoria ca, de modo que as MACEIÓ AL

advogados/as parti- realiza uma conversa conversas acontecem Não há sala para
culares fazem atendi- individual com cada no corredor, diante de conversas reservadas,
mento reservado. custodiado. policiais de escolta. que ocorrem quase

42
4. Disparidades Locais

FOTO: BARANQ

A falta de espaço reservado para conversa


entre o/a custodiado/a e os/as defenso-
res/as parece-nos um problema grave
na perspectiva do direito de defesa, pois
o exercício da ampla defesa pressupõe o
direito à privacidade. A realização de con-
sempre na carceragem “corró”, e a conversa versas nos corredores, diante de terceiros
que fica no fórum. com o/a defensor/a e, sobretudo, de agentes de segurança,
ocorre na presença pode vir a comprometer tanto a narrativa
MOGI DAS CRUZES SP das demais pessoas do/a custodiado/a quanto a elaboração
Não há sala para con- custodiadas e dos/as da estratégia de defesa. Ou seja, uma
versas reservadas, que policiais militares que vez exposta à presença das autoridades
ocorrem no corredor fazem a escolta policiais, é possível que a pessoa custo-
da carceragem. diada, já em situação de vulnerabilidade,
PORTO ALEGRE RS sinta-se insegura para apresentar ao/à
SÃO JOSÉ Ao contrário do defensor/a a sua versão detalhada dos
DOS CAMPOS SP que ocorre com os fatos, o que pode vir a prejudicar a quali-
Não há sala para con- custodiados homens, dade da argumentação apresentada pela
versas reservadas, que na Penitenciária defesa ao/à juiz/a.
ocorrem no corredor Feminina Madre
da carceragem. Pelletier, a conversa Além disso, outro problema, ainda mais
entre defensoria grave, foi detectado pelos/as pesquisa-
LONDRINA PR e custodiadas dores/as em Londrina. A equipe apon-
Custodiados/as ficam normalmente ocorre tou que, após a coleta dos dados para a
em uma cela chamada no corredor. pesquisa, foi implementado um sistema
de videoconferência, de forma que parte
das pessoas custodiadas já não é levada
para o fórum, permanecendo na unidade

43
O Fim da Liberdade
FOTOS: ALICE VERGUEIRO

em que estão presos/as, enquanto os/as videoconferência. Ainda, os/as pesquisa-


advogados/as, em sua maioria defenso- dores/as de Londrina esclarecem que, no
res/as dativos/as, continuam se dirigindo fórum, durante esse contato, o/a advoga-
ao fórum. Nesses casos, o/a advogado/a do/a fica desacompanhado/a. Salientam
tem a conversa por telefone com o/a cus- também que não é possível assegurar
todiado/a que está na unidade penal, ou, que, na unidade prisional, o/a custodia-
na hipótese de problemas técnicos com do/a tenha a mesma privacidade.
os telefones, fala pelo próprio sistema de
Diante de todo o debate sobre a im-
portância do contato pessoal e sobre a
necessária privacidade para garantir a
plenitude do direito de defesa, o IDDD
A falta de espaço manifesta-se contrário à implementação
da videoconferência e reforça a impor-
reservado para conversa tância de garantir que haja um espaço
seguro para o/a custodiado/a apresentar
parece-nos um problema sua versão sobre os fatos – inclusive, so-
bre a ocorrência de violência na aborda-
grave na perspectiva do gem policial – tanto em entrevista prévia
com a defesa, quanto em sala de audiên-
direito de defesa cia, diante do/a juiz/a.

44
4. Disparidades Locais

4.6 Conversas A situação é bastante grave tendo em vis-


ta que se abre mão do propósito central

informais
das audiências, que é conferir tratamento
individualizado a cada pessoa custodiada.

nos intervalos das


Conjuntura semelhante foi observada
Belo Horizonte: a equipe relata que,
em um dia de plantão, durante uma

audiências audiência e outra, o/a promotor/a e


o/a juiz/a conversaram e decidiram
qual seria a melhor resposta para
OUTRO ASPECTO OBSERVADO pela determinado caso. Durante a audiência,
equipe de pesquisa22 nas diferentes o/a promotor/a não teve qualquer
cidades foi a existência de conversas participação: o/a juiz/a já disse
informais entre os operadores nos diretamente ao/à defensor/a qual era o
intervalos das audiências. seu posicionamento e o do Ministério
Público e, na sequência, perguntou se a
Essas conversas e comentários chama- defesa ainda tinha algo a acrescentar.
ram a atenção dos/as pesquisadores/as Assim, a participação da acusação
na medida em que revelam percepções limitou-se ao momento informal, antes
pessoais dos operadores a respeito das da audiência, no qual o/a defensor/a e a
pessoas custodiadas ou da própria dinâ- pessoa custodiada estavam ausentes.
mica das audiências, por vezes influen-
ciando, inclusive, o seu resultado, como
se a decisão ou os pedidos já fossem pré-
-determinados antes mesmo de a pessoa
custodiada entrar na sala.

Em Salvador, por exemplo, relatou-se ter


ocorrido, logo antes do início das audi-
ências, uma prática extralegal, aparen-
temente institucionalizada, conhecida
como “paredão”, que tem determinado
um parâmetro de atuação dos atores.
Trata-se de um acordo informal firmado
entre o/a juiz/a, o Ministério Público e
a Defensoria Pública através do qual os
três dispensam manifestações orais para
tornar o procedimento mais célere. De tal
sorte, ao início de cada audiência os pe-
didos de cada parte, bem como a decisão
do/a juiz/a, já são previamente combina-
dos entre eles.

22. As informações e casos aqui relatados foram


apresentados pelos(as) pesquisadores(as) de cada
cidade em relatórios de campo entregues ao final da
pesquisa ao IDDD.

45
O Fim da Liberdade

A arbitrariedade
judicial revela o uso
indiscriminado das
medidas cautelares
e uma banalização do
controle do Estado

Chamam a atenção algumas situações


em que os operadores do direito emitem
opiniões controversas em relação às
pessoas custodiadas. Em Recife, uma
das pesquisadoras relata ter ouvido o
seguinte comentário de um/a defensor/a
público/a quando deixou seus pertences
pessoais em uma das cadeiras da
sala de audiência antes de iniciar o
monitoramento: “não coloca a bolsa aí
não que esse povo rouba”. O relato causa
espanto porque transparece a visão
extremamente depreciativa que um/a
representante/a da defesa tem sobre as
pessoas custodiadas.

Novamente em Salvador, outro caso


chamou a atenção da equipe acerca da
percepção de um/a representante do
Ministério Público sobre a pessoa presa:
antes de o custodiado entrar na sala,
foi exibido vídeo divulgado pela mídia
mostrando-o durante o cometimento de
um delito diferente daquele que resultou 4.7.
Arbitrariedades
na prisão em flagrante. A promotoria
disse que tratava-se de um “marginal

na aplicação de
safado” e que iria “falar muito bem
dele”, como também que o/a juiz/a
deveria assistir ao vídeo para proferir sua
decisão naquela audiência.

Preocupa-nos muito que um/a


medidas cautelares
representante do Ministério Público tenha EM ALGUMAS CIDADES, chamou a
não apenas feito comentários pejorativos atenção a aplicação, pelos/as juízes/as, de
em prejuízo do/a custodiado/a, mas medidas cautelares não previstas em lei.
também que, para isso, tenha se valido de A arbitrariedade judicial revela tanto uma
um elemento que sequer dizia respeito ao prática de uso indiscriminado das medi-
caso concreto pelo qual o/a custodiado/a das cautelares quanto uma banalização do
havia sido preso/a. controle do Estado sobre a pessoa custo-

46
4. Disparidades Locais

mento Social, para promover a cidadania e


garantir os direitos de pessoas dependen-
tes de drogas, em contextos de vulnera-
bilidade) como medida cautelar condicio-
nante da liberdade provisória para os/as
usuários/as de drogas.

Outro caso que revela a arbitrariedade


na aplicação das medidas cautelares se
deu em Belo Horizonte. Em um sábado,
os servidores da secretaria alertaram a
equipe de pesquisa que o juiz daquele
dia era evangélico. Ao final da audiên-
cia, o custodiado, confuso, perguntou se
seria liberado ou preso. O juiz respondeu
dizendo que essa era uma pergunta sem
importância, que a preocupação do cus-
todiado com a liberdade era uma preocu-
pação pueril e que ele deveria, no recolhi-
mento domiciliar noturno que lhe estava
sendo concedido – como um presente –,
ler o evangelho. Por fim, o juiz frisou que
os policiais de rua não iriam perdoar os
apontamentos criminais do custodiado e
que, por isso, ele deveria aproveitar essa
oportunidade e ficar, sobretudo, dentro
de casa, lendo o evangelho.

diada: estende-se a vigilância sobre sua Estes episódios demonstram a completa


FOTO: HUMBERTO TOZZE

vida privada sem que haja qualquer respal- falta de padrão na escolha e na aplica-
do de legalidade nem relação direta com o ção de medidas cautelares. Neste caso
caso concreto. É oportuno lembrar que o de Belo Horizonte, a postura do juiz não
rol de medidas cautelares trazido pelo ar- apenas é arbitrária e, portanto, contrária
tigo 319 do Código de Processo Penal é ta- ao princípio da legalidade, como também
xativo e não exemplificativo, não cabendo viola o preceito constitucional do Estado
ao/à juiz/a decidir pela aplicação de prática laico, impondo ao custodiado o exercício
não elencada no referido dispositivo como de prática religiosa.
se medida cautelar fosse uma delas.
Diante disso, o IDDD reforça a impor-
Dois exemplos se destacam nesse sentido. tância de se respeitar o rol de medidas
Em Salvador, observou-se que muitos/ cautelares trazido pelo artigo 319 do CPP
as juízes/as indicavam, com frequência, o para que não se incorra em violação ao
Programa Corra pro Abraço (iniciativa do princípio da legalidade nem na banaliza-
Governo da Bahia, através da Secretaria de ção do controle estatal sobre o corpo e a
Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvi- vida das pessoas. ■

47
O Fim da Liberdade

5.
Audiência de
Custódia:
INSTRUMENTO ESSENCIAL
DE ACESSO À JUSTIÇA
FOTO: ALICE VERGUEIRO

48
5. Audiência de Custódia

A 5.1. Contato pessoal


s audiências de custódia são
hoje uma grande porta de
entrada para o sistema de
Justiça criminal. O elevado
contingente de presos/as provisórios/
e acesso à defesa
as reflete a quantidade de pessoas que ANTES DA EXISTÊNCIA da audiência de
adentram o cárcere sem que o processo custódia, o primeiro contato da pessoa
penal tenha sido concluído. custodiada com um/a juiz/a poderia levar
meses, já que acontecia apenas na audi-
Esta foi uma das preocupações centrais ência de instrução, debates e julgamento.
do CNJ na edição de sua Resolução 213/15. Não raro, também o contato com a pessoa
Da mesma forma, o IDDD defende a que faria sua defesa acontecia somente
regulamentação das audiências de custódia neste momento.23 Ou seja, durante me-
por entendê-las como um instrumento ses, a pessoa presa ficava impossibilitada
essencial de acesso à Justiça, já que são de narrar sua versão dos fatos a quem era
o primeiro contato da pessoa presa em responsável por sua defesa, bem como
flagrante com os operadores do sistema de permanecia sem informações sobre sua
Justiça criminal. situação processual. Quando as audiên-
cias de custódia passam a ser realizadas,
Neste tópico, a ideia de acesso à Justiça é dada a oportunidade à pessoa presa
será desdobrada em duas vertentes em flagrante de exercer o seu direito à
primordiais para o direito de defesa que defesa, tanto pelo contato pessoal que
se inter-relacionam: o contato pessoal da tem com um/a defensor/a quanto pela
pessoa custodiada com os operadores e seu possibilidade de autodefender-se perante
o direito à informação. a autoridade Judiciária. O contato pes-
soal, conforme pode ser observado pela
pesquisa, não beneficia apenas a pessoa
custodiada, mas traz benefícios também
para a administração da Justiça. Durante
os encontros com os operadores do sis-
tema de Justiça, por diversas vezes ouviu-
-se de alguns atores a menção à impor-
tância do contato pessoal com a pessoa
presa em flagrante e levada à audiência
de custódia. Em um dos encontros, aliás,
este ponto foi abordado por um membro
do Ministério Público, que, partindo de

23. Se considerarmos que a maior parte das pessoas que


respondem a um processo criminal são defendidas pela
defensoria pública - ou por quem lhe faça às vezes, nos
locais onde ela ainda não existe -, pode-se inferir que, em
regra, o primeiro (e às vezes único) contato pessoal com a
FOTOS: ALICE VERGUEIRO

defesa em momento anterior ao das audiências de custódia


acontecia apenas no dia da audiência de instrução, debates
e julgamento. As defensorias públicas possuíam política
de atendimento a presos/as provisórios/as nos centros de
detenção provisória, o que também deve ser considerado.
No entanto, não se pode dizer que o breve contato que
tinham as pessoas presas com o/a defensor/a dentro de
uma unidade prisional era um contato qualificado, dado o
local, as escoltas, o tempo de entrevista, etc.

49
O Fim da Liberdade

sua experiência pessoal, disse perceber


uma maior “sensibilidade com os casos”
por parte dos atores a partir desse
contato pessoal.

Para o IDDD, essa é uma questão de


fundamental relevância. Levando-se em
consideração os fins a que a audiência
de custódia se destina, sobretudo o de
prevenir e combater tortura ou outras
formas de tratamento cruel, desumano
ou degradante, ter a presença da
pessoa presa em flagrante possibilita
a aproximação do direito à realidade,
ao caso concreto, às circunstâncias
pessoais de quem se apresenta. Por o “encontro” da pessoa com uma
mais que ainda se busque a qualificação autoridade judiciária, (iii) a relativa
desse contato, é de se comemorar melhora na qualidade da defesa técnica -
como importante conquista esse viés que tem, no encontro presencial com
da audiência de custódia; e o fato de a pessoa, a possibilidade de munir-se
que ponto tenha sido ressaltado por de mais informações e de documentos,
um promotor torna mais relevante a e (iv) melhores condições para
questão, já que, sendo titular da ação identificar casos de tortura ou outras
penal, pode evitar um sem número de formas de tratamento cruel, desumano
situações injustas quando munido de ou degradante.24
mais informações e mais empatia.
Contudo, nas entrevistas realizadas com
No encontro realizado em Fortaleza, no pessoas que passaram por audiência
qual participaram diversas instituições de custódia,25 foi possível perceber
concomitantemente, o resultado foi um que, na prática, a questão do contato
mapeamento dos avanços trazidos pelas
audiências de custódia e a produção
de um diagnóstico do que pode ainda 24. Importante ressaltar que a violência pode ser
FOTOS: ALICE VERGUEIRO

identificada com mais facilidade pelo relato da pessoa,


ser aprimorado. Nesse sentido, o que deve ser indagada sobre isso durante a audiência. No
grupo destacou como importantes entanto, não se está afirmando que apenas os casos em
que haja marcas visíveis devam ser considerados, já que a
contribuições das audiências: (i) a tortura pode ser psicológica ou, se física, pode não deixar
presença física da pessoa custodiada marcas visíveis (e, em ambos os casos, não deixará de ser
considerada como tal).
em momento de tanta relevância, (ii)
25. Como dito anteriormente, realizadas nas cidades de
a diminuição do longo tempo para São Paulo e Brasília.

50
5. Audiência de Custódia

pessoal ainda apresenta deficiências, Não se pretende aqui afirmar que essa
a começar pela falta de acesso à defesa
técnica – quase a totalidade das pessoas
entrevistadas não contou com a
68% seja a regra; mas considerando ser pos-
sível a existência desse tipo de conduta,
fica bastante clara a importância do
presença de um advogado (ou defensor DAS PESSOAS contato pessoal com a defesa técnica.
EM SÃO PAULO
público) no momento da lavratura do NÃO FORAM
auto de prisão em flagrante: em São INFORMADAS A impossibilidade de conversar reser-
Paulo, 47 pessoas estavam desassistidas SOBRE O DIREITO vadamente com quem faria a defesa
DE CONTAR COM
na delegacia; em Brasília, 116. antes da audiência (defensor/a público/a
UMA DEFESA NA
DELEGACIA ou advogado/a) também foi ressaltada
Em pesquisa realizada pelo IDDD em pelos entrevistados. A Resolução 213 do
2015, constatou-se violação grave no que CNJ, que hoje regulamenta a audiência
tange à falta da defesa no momento da de custódia, determina que “a pessoa
lavratura do auto de prisão em flagrante: custodiada deve estar sempre acompa-
nhada de advogado ou defensor público,
assegurando-lhes entrevista prévia si-
“Durante as entrevistas, foi pergun- gilosa, sem a presença de agente policial
tado aos participantes se haviam sido e em local adequado/reservado, de modo
interrogados na delegacia e apenas a garantir-lhe a efetiva assistência judi-
31,8% afirmaram que sim. Esse dado ciária”. No entanto, segundo os relatos
é preocupante, pois em todos os ouvidos pela equipe de pesquisa em São
casos havia alguma informação – Paulo, a prática não obedece a resolução.
seja sobre o silêncio, seja um depoi- Embora quase a totalidade das pessoas
entrevistadas27 tenha afirmado que
mento – no Boletim de Ocorrência.
conversou com o/a defensor/a antes do
Soma-se a isso a constatação de que
início da audiência, apenas duas qualifi-
em 56,6% dos casos cuja resposta do caram esse contato como “reservado”;
entrevistado foi a de que não teve a todas as outras informaram estarem
oportunidade de falar em delegacia, presentes funcionários do fórum, escolta
os Boletins de Ocorrência traziam policial ou mesmo outra pessoa presa no
termos de interrogatórios preenchi- mesmo flagrante - já que, nessa cidade,
dos – com versões dos fatos suposta- ficam algemadas juntas, o que quer dizer
mente narradas pelo assistido.” 26 também que no caso de haver defenso-
res/as diferentes para cada uma delas,
são ao menos quatro pessoas conversan-
do ao mesmo tempo.

Além disso, embora tenha sido criado


um parlatório dentro do fórum, o espaço
não é utilizado nem por advogados/as
nem por defensores/as públicos/as, que
conversam com seus clientes, na maior
parte das vezes, no corredor do fórum,
alguns poucos minutos antes de iniciar a
audiência. Este cenário está atribuído ao

26. Mutirão carcerário realizado pelo IDDD no Centro


de Detenção Provisória de Guarulhos I, que ensejou a
publicação do relatório Liberdade em Foco - Redução do
uso abusivo da prisão provisória na cidade de São Paulo, p.
36. Disponível em: https://bit.ly/2zqB1hG.
27. 52, das 57 entrevistadas.

51
O Fim da Liberdade

O direito à informação
compõe o direito
de defesa em sua
forma mais básica

fato de que existe pouco tempo entre o


fim de uma audiência e o início de outra,
sendo que a pessoa que será apresen-
tada em audiência de custódia aguarda
dentro da carceragem.

Já em Brasília, 130 entrevistados/


as afirmaram ter podido conversar
com quem faria a sua defesa antes da
audiência, e desses/as, 97 afirmaram ter
podido conversar reservadamente com
o/a defensor/a.

Outra diferença encontrada nas en-


trevistas realizadas em São Paulo e em

5.2. Direito à
Brasília diz respeito à qualidade desse
contato entre a pessoa custodiada e
defensor/a. Conforme ficou demons-
trado nas entrevistas realizadas pela
equipe do IDDD na cidade de São Paulo,
a conversa com a defesa não se mos-
informação
trou esclarecedora, principalmente QUANDO SE FALA sobre o direito à infor-
pelo pouco tempo disponibilizado.28 mação, pretende-se chamar atenção ao
Já em Brasília, a percepção das pessoas fato de que este direito compõe o direito
custodiadas foi a de que o tempo para a de defesa em sua forma mais básica. O
conversa foi suficiente para esclarecer necessário contato qualificado com a de-
eventuais dúvidas.29 fesa não se presta só à garantia de com-
preensão dos fins a que se destina a audi-
Assim, percebe-se das informações ência de custódia e da informação sobre
extraídas dessas entrevistas que a direitos; o trabalho defensivo também
audiência perde parte de sua essência inclui - ou deveria incluir - a preocupação
quando a conversa franca, pessoal e com as consequências da audiência e os
reservada entre custodiado/a e defesa passos seguintes à sua realização.
não é priorizada. Nas entrevistas realizadas com pessoas
FOTOS: ALICE VERGUEIRO

que passaram por audiência de custódia


também foi possível notar, sob o viés do
acesso à Justiça, a relevância e a efeti-
28. Apenas 10, das 52 pessoas que puderam conversar vidade das audiências de custódia, que
com defensor antes da audiência, afirmaram ter tido
tempo suficiente. devem, como qualquer ato processual,
29. 96, das 130. garantir que a pessoa presa esteja plena-

52
5. Audiência de Custódia

mente informada de seus direitos e sobre Outro dado que chamou atenção foi o
a finalidade do ato, garantindo assim a da falta de informação sobre o direito
plenitude da ampla defesa. de contatar familiares30 - o que leva às
consequências deletérias da inobservân-
Essas conversas reforçam apontamentos cia da lei para além da pessoa custodiada.
já feitos diversas vezes pelo IDDD sobre a Em São Paulo, 13 das 57 pessoas entre-
violação ao direito de defesa das pessoas vistadas afirmaram que a família não
presas em flagrante. Já na delegacia, um estava ciente de suas prisões. Seis dessas
direito fundamental se mostrou desres- pessoas não foram informadas sobre o
peitado: constatou-se que a maior parte direito de contatar um familiar ou teve o
das pessoas entrevistadas não recebeu a direito negado pelos policiais na dele-
informação sobre seu direito de contar gacia. Apenas 21 disseram que a família
com a assistência de uma defesa técnica. soube da prisão das mais diversas formas
Em São Paulo, das 57 pessoas entrevista- (ou porque a própria polícia avisou, ou
das, 39 afirmaram não ter recebido essa porque conhecidos presenciaram a prisão
informação; em Brasília, dos 142 entre- e comunicaram os familiares ou porque
vistados, 94 deram a mesma resposta. tiveram a oportunidade de telefonar para

30. A ausência de contato das pessoas custodiadas com presídio onde se encontra localizada a Central
familiares também foi observada pelo grupo de pesquisa de Custódia: estes/as permanecem do lado de
do Rio de Janeiro. Verificou-se que não é permitida a fora do estabelecimento prisional em busca de
entrada de familiares dos/as presos/as provisórios no notícias e informações.

53
O Fim da Liberdade

alguém na delegacia); dessas, somente 13 comer na delegacia: em São Paulo, 20


afirmaram ter de fato tido algum contato pessoas, das 57 entrevistadas, afirmaram
com a família. O restante das pessoas ter recebido comida apenas no fórum, ou
entrevistadas não soube dizer se a família seja, apenas no dia seguinte à prisão em
estava ciente de onde se encontravam. flagrante. Das que disseram ter também
se alimentado na delegacia, 12 só fizeram
Em Brasília, o resultado foi mais alar- porque familiares ou outras pessoas
mante, já que apenas 34 das 142 pessoas presas forneceram alimentos. Em
entrevistadas disseram ter contatado um Brasília, em contrapartida, 135 pessoas,
familiar entre a prisão em flagrante e a das 142 com quem os/as pesquisadores/
audiência de custódia. as conversaram, afirmaram ter se
alimentado antes da audiência de
Além de ser um direito, a comunicação custódia – a equipe de pesquisa local
com a família é de fundamental aponta que, lá, a alimentação é fornecida
relevância, a começar pelo fato de que pela Polícia Civil, na carceragem. As
nem todas as pessoas recebem algo para pessoas presas recebem três refeições:

54
5. Audiência de Custódia

Para as mulheres
presas observou-se a
absurda exigência de
comprovação de gravidez

FOTO: ALICE VERGUEIRO


ou de maternidade

café da manhã, almoço e jantar, a


depender do horário em que chegam à
carceragem para aguardar a audiência
de custódia.

Mas para além da questão da


alimentação, são os familiares que
podem providenciar documentos que
possibilitam a comprovação de todo
o alegado pela defesa em audiência
de custódia, como comprovantes de
residência, de trabalho, de renda, etc.
Para mulheres presas observou-se,

20
por exemplo, a absurda exigência
de comprovação de gravidez ou de
maternidade naqueles casos em que
a legislação confere o direito à prisão
PESSOAS, DAS 57
ENTREVISTADAS domiciliar. Vê-se, portanto, que a
EM SÃO PAULO, inobservância de direitos básicos da
AFIRMARAM pessoa presa em sede policial tem
TER RECEBIDO
COMIDA APENAS
impactos diretos na trajetória da pessoa
NO DIA SEGUINTE custodiada e sobre o acesso à defesa.
À PRISÃO
Outro caso de absoluta relevância da
ciência de familiares sobre a prisão é
aquele em que há arbitramento de fiança

34
- seja na delegacia, seja em audiência.
Em São Paulo ouviu-se relatos de pessoas
no sentido de terem recebido decisão de
PESSOAS, DAS liberdade condicionada ao pagamento
142 ENTREVISTA- de fiança, mas permaneceram presas
DAS EM BRASÍ- pelo fato de não terem como acessar o
LIA, DISSERAM
TER CONTATADO
valor. Ou seja, por conta de uma violação
UM FAMILIAR perpetrada desde o início de sua privação
ENTRE A PRISÃO de liberdade e perpetuada até a audiência
EM FLAGRANTE
de custódia, a pessoa é indevidamente
E A AUDIÊNCIA
DE CUSTÓDIA inserida no sistema penitenciário.

55
O Fim da Liberdade

Ainda há quem saia


das audiências de
custódia sem entender
o seu objetivo e a
sua real função
Com relação ao esclarecimento posterior
à audiência, ou seja, com relação à
compreensão do que se passou em
audiência e das consequências da
decisão nela proferida, percebeu-se
pelos relatos, em primeiro lugar, uma
incompreensão das pessoas custodiadas
sobre a finalidade da audiência de
custódia. É de fundamental importância
o esclarecimento de eventuais dúvidas
acerca dessa finalidade, como garantia 31. As observações das audiências de custódia em São
do exercício da ampla defesa. Ainda há Paulo mostraram que o padrão das perguntas sobre violên-
cia policial feita pelos/as juízes/as foi alterado. Enquanto
quem saia das audiências de custódia o monitoramento anterior - feito em 2015 - mostrou que a
sem entender o seu objetivo e a sua pergunta sobre violência feita ao/à custodiado/a era direta
(“você sofreu algum tipo de violência da polícia?”), as ob-
real função - que, além de verificar servações realizadas em 2018 mostraram que a pergunta
a legalidade da prisão em flagrante agora é feita de forma indireta (“você teve algum problema
com a polícia?”). Não se pode negar que, no passado, em
e avaliar a necessidade ou não de apenas 49% dos casos acompanhados houve a pergunta,
enquanto hoje constatou-se que ela foi feita em 87% dos
manutenção da segregação cautelar, é casos. No entanto, a falta de clareza na indagação (somada
também combater a violência policial. à presença constante de policiais nas salas de audiência)
pode gerar uma subnotificação dos casos de violência
Se somarmos a “precariedade” do policial - possibilidade que se aventa, dado o baixo número
momento de entrevista com a defesa com de respostas positivas (18%).

a falta de pergunta clara e objetiva dos/as 32. Em São Paulo, 38 das 57 não conseguiram falar com
a defesa após o término da audiência, e, em Brasília, 124,
juízes/as sobre violência policial31 - tema das 142.
que será abordado em tópico próprio 33. Em Brasília, 72 das 142; em São Paulo, apenas 15 das 57.

-, a questão do combate à tortura se 34. Em São Paulo, afirmaram não ter recebido essa
explicação da defesa 40, das 57 pessoas entrevistadas, e,
mostra apartada da prática cotidiana da em Brasília, 94.
audiência de custódia. 35. Em São Paulo, por exemplo, são realizadas mais
de 100 audiências por dia, sendo que há seis salas de
audiência de custódia funcionando concomitantemente.
Em segundo lugar, as entrevistas Isso quer dizer que em cada sala (com um juiz, um
promotor e um defensor) acontecem mais de 16 audiên-
permitiram notar que a falta de tempo cias por dia

56
5. Audiência de Custódia

disponibilizado para conversa com a oferecimento da denúncia e a realização


defesa também traz prejuízos à pessoa
custodiada. Tanto em São Paulo quanto
em Brasília, a maioria das pessoas
da audiência de instrução, debates e
julgamento, mas isso não é esclarecido
ao/a custodiado/a e diz muito pouco
13
afirmou não ter podido conversar com sobre o futuro da pessoa no que tange ao PESSOAS, DAS 57
ENTREVISTADAS
a defesa após a audiência32 para sanar processo que poderá vir a responder. EM SÃO PAULO,
dúvidas e compreender as implicações da AFIRMARAM QUE
decisão judicial. Em Brasília, pouco mais Se é sabido que há um elevado número A FAMÍLIA NÃO
ESTAVA CIENTE
da metade33 das pessoas afirmou que a de audiências realizadas por dia,35 é DE SUAS PRISÕES
defesa ao menos explicou a decisão do/a preciso que seja garantida estrutura para
juiz/a e, em São Paulo, ínfima minoria que o ato processual seja mais que o
recebeu essa atenção por parte de quem cumprimento de uma formalidade, mas
exercia a defesa em seu favor. Quando um ato que informe de forma satisfatória
indagados/as sobre se o/a advogado/a ou o/a juiz/a, para que este/a decida sobre
defensor/a público/a explicou os próximos a necessidade e legalidade da prisão,
passos de um eventual processo, o a pessoa acusada, para que receba
cenário é ainda pior: em ambas as cidades todas as informações pertinentes a sua
a imensa maioria34 das pessoas não situação processual, e a defesa para que
recebeu essa explicação. Destaca-se possa, a partir daquele contato, colher
que, em São Paulo, ouviu-se das pessoas informações sobre o acusado e elaborar
entrevistadas, repetidas vezes, que a uma tese de defesa. Ressalta-se que nos
explicação sobre os acontecimentos casos em que a defesa é realizada por
futuros, tanto do/a juiz/a quanto do/a advogado/a constituído/a
defensor/a era a de que “em três meses o problema persiste, já que o/a policial
haverá uma nova audiência, na qual que faz a escolta do/a custodiado/a
será dada a possibilidade de falar sobre precisa retornar com uma pessoa à
o ocorrido” - isso porque é estimada em carceragem e acompanhar a pessoa da
três meses a média de tempo entre o audiência subsequente. ■

FOTOS: ALICE VERGUEIRO

57
O Fim da Liberdade

6.
Dados
FOTO: ALICE VERGUEIRO

58
6. Dados

N 6.1. Perfil
este capítulo, analisaremos
as informações coletadas
a partir das audiências de
custódia assistidas nas 13 PERFIL SOCIOECONÔMICO
cidades pesquisadas. O panorama geral é Os dados relativos ao perfil
dado pela amostra resultante da combi- socioeconômico das pessoas custodiadas
nação entre as informações coletadas em neste monitoramento apresentam pouca
cada localidade. Os dados específicos de diferença com relação aos resultados
cada cidade serão apresentados quando apresentados do último monitoramento
forem discrepantes do cenário geral. do IDDD - que, por sua vez, estão em
consonância com as demais pesquisas
realizadas no campo prisional.

Isso remete às discussões mais atuais


sobre como o racismo estrutural
opera e produz comportamentos
que acabam por manter uma ordem
social e hierarquizada, reservando a
força do sistema de Justiça criminal a
determinados grupos sociais, em especial
aos homens negros, jovens, com baixa
renda e baixo nível de escolaridade.

Sexo
PERFIL POR
SEXO Na amostra total dos casos em que há
HOMENS informação sobre sexo,36 há 2.519 custo-
91%
diados do sexo masculino e 253 custodia-
das do sexo feminino. Isso significa que
90,9% da amostra são homens e apenas
9,1% são mulheres, padrão que varia
pouco na maioria das cidades, se indivi-
dualmente consideradas. Nos dados do
último Infopen, a proporção é de 94,8%
para 5,2%.37

36. A amostra total para este dado é de 2.772 casos.


Este dado foi extraído a partir da observação das
audiências, em que não era possível entrevistar a pessoa
(em razão do que este dado não necessariamente
corresponde à auto declaração, bem como porque não
o tratamos por gênero, mas por sexo).
37. Ministério da Justiça e Segurança Pública.

MULHERES Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento


Nacional de Informações Penitenciárias. Atualização
9% – Junho de 2017. Org.: Marcos Vinicius Moura. Brasília:
2019. Disponível em: https://bit.ly/2xNITJ8.

59
O Fim da Liberdade

PERFIL POR
Idade IDADE
A idade das pessoas presas é um dado que
merece atenção em razão do grande nú- 0 pessoas
presas
30 60 90 120 150
mero de jovens entre 18 e 24 anos: 45,56%
da amostra total de casos. Para se ter uma 20
ideia, de acordo com o Infopen, os jovens
privados de liberdade em âmbito nacional
25
correspondem a 30% do total de pessoas
encarceradas. Se considerados adultos
até 29 anos, correspondem a cerca de 66% 30
em nossa pesquisa. 13,55% têm entre 30
e 34 anos, 8,30% têm entre 35 e 39 anos e 35
12,49% têm 40 anos ou mais.38
40
Dentre as mulheres custodiadas, 59,22%
têm até 29 anos (sendo 41,26% entre 18

66%
45
e 24 anos de idade e 17,96% entre 25 e
29 anos), 17,48% têm entre 30 e 34 anos,
8,74% têm entre 35 e 39 anos e 14,56% 50
têm 40 anos ou mais.
DAS PESSOAS
55 PRESAS TÊM
Escolaridade MENOS DE 29
O acesso precário à educação também ANOS DE IDADE
60
foi evidenciado pelo monitoramento.
No panorama geral das cidades pes-
65
quisadas, 2,05% são analfabetos/as ou
sem escolaridade, 34,82% têm Ensino
Fundamental incompleto, 24,66% têm 70
Ensino Fundamental completo, 18,38%
idades

têm Ensino Médio incompleto, 17,18%


têm Ensino Médio completo, 1,71% têm
Ensino Superior incompleto e 1,20% têm
Ensino Superior Completo. Isso significa
que 43% do total das pessoas custodiadas
FOTO: ALEX RATHS
cursaram até o 9º ano, mas não concluí-
ram o Ensino Médio.39

Entre as mulheres custodiadas, 2,42% são


analfabetas ou sem escolaridade, 36,97%
têm Ensino Fundamental incompleto,
21,21% têm Ensino Fundamental comple-
to, 16,36% têm Ensino Médio incompleto,
15,75% têm Ensino Médio completo,
3,03% têm Ensino Superior incompleto e
4,24% têm Ensino Superior completo.40

38. A amostra total para este dado é de 2265 casos.


39. A amostra total para este dado é de 1752 casos.
Importante ressaltar que, desde a última pesquisa do IDDD
cujo relatório publicamos em 2017, os números tiveram
alguma melhora: antes, apenas 9,5% haviam concluído
o Ensino Médio; hoje, este número é de 17,2%. Ainda,
segundo os dados do último Infopen, 51% da população
carcerária do país sequer havia concluído o Ensino
Fundamental - em nossa pesquisa, esse número compõe
pouco menos de 35% das pessoas custodiadas.
40. A amostra de escolaridade para mulheres é de
165 casos.

60
6. Dados

PERFIL POR PERFIL POR


ESCOLARIDADE RENDA MENSAL

35%
600

157
550 casos 56
casos
casos

209
500

casos

10
casos
25%
400

1028
casos
18%
17%
300
200

2% 45
casos 274
SEM ESCOLARIDADE / ANALFABETO

casos

2% 1% 9
FUNDAMENTAL INCOMPLETO

casos
FUNDAMENTAL COMPLETO

SUPERIOR INCOMPLETO
100

SUPERIOR COMPLETO
MÉDIO INCOMPLETO

Até 1 salário mínimo 1 a 2 salários mínimos


SEM INFORMAÇÃO
MÉDIO COMPLETO

2 a 5 salários mínimos +5 salários mínimos


pessoas presas

Não foi mencionada questão de renda em audiência


Não soube informar Sem renda
Renda variável
0

Renda RS$ 954,01 e R$ 1908 (entre 1,1 e 2 salá-


Nos casos em que a questão da renda rios mínimos). Apenas 8,9% das pessoas
mensal auferida pelo/a custodiado/a foi custodiadas declarou receber um valor
mencionada41 em audiência, a maioria, maior do que R$ 1908,01 mensais (2,1
37,6%, informou ter renda variável (isto é, salários mínimos ou mais). Portanto, na
calculada com base em dias trabalhados). maioria dos casos, estivemos diante de
Entre os/as que declararam alguma renda uma população de baixa renda.
(fixa ou variável), 19,3% declararam re-
ceber até R$ 954 (até 1 salário mínimo) e Entre as mulheres custodiadas, nos
24,8% declararam receber um valor entre casos em que houve menção à renda em
audiência, 38,7% declararam ter renda
variável, 26,88% declararam receber até
R$ 954 (até 1 salário mínimo), 13,98%
declararam receber um valor entre RS$
954,01 e R$ 1908 (entre 1 e 2 salários
41. Em 58,5% dos casos não houve menção à questão mínimos) e apenas 7,53% declararam
da renda nas audiências. Em cidades como Salvador, receber mais do que R$ 1908,01 (2,1
esse número chega a 97% (amostra: 132 casos).
Portanto, as porcentagens mencionadas aqui dizem salários mínimos ou mais). Em 61,88%
respeito aos 41,5% dos casos em que a renda foi
mencionada (a amostra total é de 1.111 casos).
dos casos, não foi mencionada a questão
42. A amostra de renda para mulheres é de 93 casos de renda em audiência.42 Nota-se que
em que houve menção à renda em audiência e 151 as mulheres têm uma renda mais baixa
em que não houve. Em 9 casos, essa informação não
foi acessada do que a média da pesquisa.

61
O Fim da Liberdade

77,9%
Estado civil mais negros/as do que brancos/as para
Quanto ao estado civil, 77,9% declararam dentro do sistema. Em algumas cidades,
ser solteiros/as, 19,52% declararam ser a discrepância entre pessoas custodiadas
casados/as ou amasiados/as, 2,19% decla- negras e brancas é altíssima, tanto em
DAS PESSOAS
raram ser divorciados/as e 0,39% declara- termos absolutos (com base no número DECLARARAM SER
ram ser viúvos/as. Nos dados do último bruto de pessoas negras e brancas SOLTEIROS/AS
Infopen, o índice de pessoas solteiras é de custodiadas) quanto em termos relativos
55,42%. Em Salvador, por exemplo, esse (com base na distribuição étnico-racial da
número chega a 91,5%. população dessas cidades).

Entre as mulheres custodiadas, 74,5% Nas cidades onde a população total e


são solteiras, 18,72% são casadas ou a amostra de pessoas custodiadas é
amasiadas, 3,74% são divorciadas e 2,14% majoritariamente negra (como Salvador,
são viúvas. Recife e Feira de Santana), a quantidade
de pessoas custodiadas negras é
proporcionalmente muito mais elevada do
Raça/Cor que a quantidade de pessoas custodiadas
Em relação à raça, o cenário geral é o se- brancas nas cidades onde a população
guinte: se desconsiderarmos os casos sem total e a amostra de pessoas custodiadas é
informação, negros/as representam 64,1% majoritariamente branca (como Londrina,
contra 35,7% brancos/as, 0,15% amarelos/ Porto Alegre e São José dos Campos).
as e 0,05% vermelhos/as ou indígenas. De Ou seja, mesmo onde os/as brancos/
acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de as são a maioria da população, não são
Geografia e Estatística),45 47,1% da popu- tão inseridos/as no sistema de Justiça
lação das cidades monitoradas é composta criminal quanto são os/as negros/as.
por negros/as, com as seguintes propor-
ções em cada um dos locais: Entre as mulheres, 46,2% eram brancas,
53,2% negras e 0,54% amarelas.46
Essa comparação demonstra que o
racismo estrutural opera como um O índice geral de 64,1% negros/as para
dos principais motores do sistema de 35,7% brancos/as acompanha também a
Justiça criminal brasileiro, levando informação divulgada pelo Infopen, que

PERFIL POR
RAÇA E COR

NEGROS BRANCOS AMARELOS


64,1% 35,7% 0,15%

INDÍGENAS
0,05%

62
6. Dados

AMOSTRA IDDD X AMOSTRA IBGE POR RAÇA

IDDD Negros/as Brancos/as IBGE

RECIFE PE 97% 57%


SALVADOR BA 96% 80%
FEIRA DE SANTANA BA 95% 79%
OLINDA PE 91% 62%
MACEIÓ AL 91% 62%
RIO DE JANEIRO RJ 74% 48%
BRASÍLIA DF 67% 56%
SÃO PAULO SP 61% 37%
BELO HORIZONTE MG 61% 52%
MOGI DAS CRUZES SP 60% 34%
SÃO JOSÉ DOS CAMPOS SP 48% 26%
LONDRINA PR 46% 26%
PORTO ALEGRE RS 41% 20%

O racismo estrutural opera Esses dados reforçam a necessidade de se


repensar o sistema de Justiça criminal à

como um dos principais luz dos debates sobre racismo estrutural,


que informam sobre os filtros subjetivos

motores do sistema de que orientam a tomada de decisão


tanto dos/as agentes de segurança,

Justiça criminal responsáveis pela prisão em flagrante,


quanto dos/as magistrados/as também
operadores do racismo estrutural.

Cabe relembrar que na Declaração sobre


aponta que a população prisional brasilei- a Raça e os Preconceitos Raciais, procla-
ra é composta por 34,4% de brancos/as e mada em 1978 pela Conferência Geral da
61,7% de negros/as, indicando mais uma Organização das Nações Unidas para a
vez a predominância de negros/as entre as Educação, Ciência e Cultura, a definição de
pessoas privadas de liberdade. racismo, presente no artigo 2º da Declara-
ção, inclui “as disposições estruturais e as
Os dados apresentados pela DPERJ práticas institucionalizadas que provocam
(Defensoria Pública do Estado do Rio a desigualdade racial”.48
de Janeiro) acerca da observação das
audiências de custódia no estado entre
setembro de 2016 e setembro de 2017
reiteram a mesma percepção, com 46. Esclarecemos que o dado sobre raça/cor foi retirado
números até mais graves. De acordo com a dos boletins de ocorrência, não tendo sido extraído da
autodeclaração. Ainda, importante frisar que alguns
pesquisa, os/as negros/as compõem 76,6% boletins de ocorrência não apresentavam este registro, a
das pessoas custodiadas no Rio de Janeiro. amostra para este dado será menor, já que não poderia
ser deduzido da observação das audiências. A amostra de
A mesma pesquisa da DPERJ identificou casos válidos para raça/cor é de 2021. 753 não têm esta
que há diferenças inclusive no índice de informação. Para as mulheres, são 186 os casos válidos.
47. Dados retirados do relatório disponível em:
soltura para pessoas negras: 42,1%, contra https://bit.ly/2U5d1tP.
48,9% para pessoas brancas.47 48. O texto está disponível em: https://bit.ly/2U61ieo.

63
O Fim da Liberdade

Mas dizer que o sistema de Justiça


criminal é impregnado por um racismo
Ao contrário do que
estrutural não significa apenas dizer que
a população carcerária é em sua maioria
preconiza o senso comum,
negra (tanto em termos absolutos quanto
proporcionais). Também significa dizer
na grande maioria dos casos,
que o racismo faz parte dos discursos dos
operadores do direito. Os/As pesquisado-
percebe-se que o que chega
res/as deste projeto viveram uma situação
explícita de racismo quando, em Salva-
às audiências de custódia
dor, o/a escrevente, ao olhar um/a dos/as
pesquisadores/as com cabelo estilo black
são os crimes não violentos
power, comentou que se o/a custodiado/a
estivesse com “aquele cabelo”, seria caso
de “preventiva na certa”, situação que fez
o/a juiz/a gargalhar.

O racismo se expressa e perpetua também blica e Instituto de Pesquisa Econômica


em outros elementos como na compo- Aplicada, os dados coletados corroboram
sição das carreiras jurídicas. A pesquisa o mesmo diagnóstico:
“Quem Somos - A Magistratura que Que-
remos”, da Associação dos Magistrados Em 2017, 75,5% das vítimas de homi-
Brasileiros, aponta que apenas 0,6% dos/ cídios foram indivíduos negros (defi-
as magistrados/as de primeiro grau foram nidos aqui como a soma de indivíduos
aprovados/as no concurso para a magis- pretos ou pardos, segundo a classifi-
tratura nas vagas destinadas a pessoas cação do IBGE, utilizada também pelo
negras. Ou seja, a proporção de magistra- SIM), sendo que a taxa de homicídios
dos/as brancos/as na primeira instância é por 100 mil negros foi de 43,1, ao pas-
de quase 100%.49 so que a taxa de não negros (brancos,
amarelos e indígenas) foi de 16,0. Ou
O tratamento assimétrico conferido a seja, proporcionalmente às respecti-
brancos/as e negros/as é notável também vas populações, para cada indivíduo
nos índices de mortes violentas no país. não negro que sofreu homicídio em
No Atlas da Violência 2019, publicado 2017, aproximadamente, 2,7 negros
pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pú- foram mortos. (...) No período de uma
década (2007 a 2017), a taxa de negros
cresceu 33,1%, já a de não negros
apresentou um pequeno crescimento
de 3,3% (...)

Em resumo, constatamos em mais


uma edição do Atlas da Violência a
continuidade do processo de profun-
da desigualdade racial no país, ainda
que reconheçamos que esse processo
se manifesta de formas distintas,
caracterizando cenários estaduais
e regionais muito diversos sobre o
mesmo fenômeno. Portanto, pelo que
descrevemos aqui, fica evidente a ne-
cessidade de que políticas públicas de
segurança e garantia de direitos de-
FOTO: ALICE VERGUEIRO

49. A amostra destas porcentagens é de 2199 vam, necessariamente, levar em con-


magistrados(as). Dados retirados do relatório disponível
em: https://bit.ly/2BsZZOI, p. 222.
ta tais diversidades, para que possam
50. Atlas da Violência 2019. Fórum Brasileiro de melhor focalizar seu público-alvo, de
Segurança Pública e Instituto de Pesquisa Econômica forma a promover mais segurança aos
Aplicada. ISBN 978-85-67450-14-X. Disponível em:
https://bit.ly/2JYQDA1, pp. 49-51. grupos mais vulneráveis. 50

64
6. Dados

CRIMES MAIS
RECORRENTES
Um olhar mais atento para os tipos
penais mais frequentes no levantamento
permite compreender qual o perfil
de crimes que chegam à audiência de
custódia. As tabelas nesta seção indicam
a proporção no panorama geral.

Tendo em vista que os casos sem


concurso de crimes representam a
maioria da pesquisa, optou-se por
considerar, na análise desses dados e na
produção dos cruzamentos, apenas as
categorias de concurso cuja frequência
era maior ou igual a seis casos - que é a
frequência do crime que, isoladamente
considerado, apresenta a menor taxa
de incidência (o latrocínio). Assim,
mantém-se a representatividade de
todos os crimes incluídos na pesquisa
e, para os casos em que há concurso,

FREQUÊNCIA DE CRIMES CASOS DE CONCURSO

0 100 200 300 400 500 600 700 0 20 40 60 80 100


23,85% 4,15%
TRÁFICO DE ENTORPECENTES TRÁFICO DE ENTORPECENTES + ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO
19,34%
ROUBO 2,41%
19,26% TRÁFICO DE ENTORPECENTES + PORTE ILEGAL DE ARMAS
mudança de escala

FURTO
5,46% 0,71%
RECEPTAÇÃO TRÁFICO DE ENTORPECENTES + ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO
+ PORTE ILEGAL DE ARMAS
5,26%
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
0,63%
3,96% ROUBO + RECEPTAÇÃO
PORTE ILEGAL DE ARMAS
1,46% 0,51%
CRIMES DE TRÂNSITO
LESÃO CORPORAL + VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
1,15%
HOMICÍDIO 0,47%
0,51% RECEPTAÇÃO + PORTE ILEGAL DE ARMAS
ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO
0,47% 0,44%
DANO FURTO + RECEPTAÇÃO
0,32%
FEMINICÍDIO 0,36%
0,32% ROUBO + PORTE ILEGAL DE ARMAS
LESÃO CORPORAL GRAVE OU GRAVÍSSIMA
0,24% 0,28%
LATROCÍNIO TRÁFICO DE ENTORPECENTES + RECEPTAÇÃO

65
O Fim da Liberdade

consideram-se na análise somente


aquelas combinações cuja frequência seja CRIMES EM PROPORÇÃO
de pelo menos seis casos. DO TOTAL DE CADA SEXO

Se considerarmos os casos excluídos em


conjunto com a categoria “outro(s)” e 2.104 209
os casos com informação sobre sexo, a homens mulheres

amostra passa a ser de 2.313 casos, com


FURTO
uma perda da ordem de apenas 8,5% do
total. Nesse sentido, os dados abaixo já 35%
TRÁFICO DE
trabalham a partir desses critérios. ENTORPECENTES

Algumas conclusões importantes podem


ser extraídas a partir dos números ao lado.
30%
Ao contrário do que preconiza o senso
comum, na grande maioria dos casos,
percebe-se que o que chega às audiências
de custódia são os crimes não violentos. 25%
Isso altera a forma como devemos
entender o índice de concessões de
liberdade provisória, pois evidencia que
em quase 70% dos casos a decretação
de eventual prisão não pode ter como
20%
fundamento a violência gerada pelo crime
supostamente praticado.

A maior recorrência de crimes 15%


patrimoniais e de tráfico de drogas revela
a prioridade dada pelas agências policiais
à repressão desses crimes, associados ROUBO
à pobreza. Interessante notar que, em
nossa amostra de mulheres, que é pouco 10%
TRÁFICO DE
representativa pois é pequena, o crime ENTORPECENTES
de tráfico de drogas (isoladamente + ASSOCIAÇÃO PARA
O TRÁFICO
considerado) representa cerca de um terço
das mulheres custodiadas, enquanto que,
5% RECEPTAÇÃO
no total de mulheres presas no país, esse
número é de 52,9%. ASSOCIAÇÃO
PARA O TRÁFICO
HOMICÍDIO

% maior entre homens do que mulheres

A maior recorrência
% maior entre mulheres do que homens

de crimes patrimoniais
e de tráfico revela a
prioridade dada pelas
polícias à repressão
51. Importante considerar que nem todo feminicídio
é tipificado como tal - possivelmente, alguns são
qualificados como homicídio tradicional. De todo modo,

de crimes associados
o número de homicídios computados segue bastante
pequeno proporcionalmente à amostra total.
52. Os crimes considerados nesta soma foram:

à pobreza
feminicídio, homicídio, lesão corporal grave ou gravíssima
e violência contra a mulher (crimes da Lei Maria da Penha).

66
6. Dados

O crime de tráfico, a propósito, é muito como homicídio, lesão corporal grave


frequente tanto na amostra total quanto ou gravíssima e feminicídio51 também
nas amostras para cada sexo. No universo foram praticados em escala muito menor.
de crimes considerados (2.313), o tráfico Somados, os crimes contra a pessoa52
surge em 26% dos casos, isoladamente (sem concurso) representam apenas
considerado, e em 34,3% dos casos, 29,5% dos casos de tráfico (sem concurso).
considerando também os casos com
concurso de crimes. É um número Com relação à distribuição de crimes
bastante expressivo, pois sinaliza qual por sexo, chamam a atenção os seguin-
tipo de crime é majoritariamente levado tes fatos:
pelas autoridades policiais à audiência
de custódia. Lembrando que o tráfico de
drogas é um crime sem violência ou grave
ameaça e sem vítimas.
(i) As mulheres são propor-
Em contrapartida, os casos de latrocínio,
por exemplo, são ínfimos nesse sentido:
cionalmente mais acusadas
seis num universo de 2.528 casos de tráfico do que os homens
(tanto é que, de todos os tipos penais
considerados, o latrocínio foi o último na
(33,5% contra 25,3%);
ordem de frequência, e por isso mesmo
a linha de corte da amostra considerada
de 2.313 casos). Outros crimes violentos

(ii) Os homens são mais acusa-


dos de crimes patrimoniais do
que as mulheres, em especial
o roubo (22,1% dos homens
acusados de roubo contra
11,5% das mulheres);

(iii) Quase não há mulheres


acusadas de praticar crimes
violentos (para alguns desses
crimes, como latrocínio ou
lesão corporal, o índice de
mulheres acusadas é nulo);

(iv) Os homens são mais acu-


sados de praticar crimes em
concurso do que as mulheres.
FOTO: HUMBERTO TOZZE

67
O Fim da Liberdade

PROPORÇÃO DE CRIMES PARA Destaca-se também o fato de 35,4% das


BRANCOS/AS E NEGROS/AS mulheres serem acusadas de cometer
furto, que é também um crime sem
Negros Brancos violência. Somados, os crimes de tráfico
e furto (sem concurso) levaram quase
Amostra
70% das custodiadas para a audiência.
LATROCÍNIO (4) ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO (8) Deve-se ter em mente o argumento
0% 100% 12% 88% da não-violência do crime sobretudo
para a questão da substituição da prisão
preventiva por domiciliar para gestantes
ROUBO (406) HOMICÍDIO (22) e/ou mães de crianças de até 12 anos e/
30% 70% 32% 68% ou com alguma deficiência, conforme
decidiu o Supremo Tribunal Federal no
Habeas Corpus coletivo 143.641 de 2018.
DANO (9) TRÁFICO DE ENTORPECENTES (509)
Questão esta que, como se verá adiante,
33% 67% 35% 65% deveria se aplicar à grande maioria das
mulheres custodiadas desta pesquisa.
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER (107) RECEPTAÇÃO (112) Não só a maioria das mulheres tem
filhos ou está grávida, como também
35% 65% 37% 63% é acusada de cometer crimes sem
violência ou grave ameaça.
PORTE ILEGAL DE ARMAS (71) FURTO (369)
41% 59% 43% 57% Observando também as informações
sobre tipo penal em relação à raça da
pessoa custodiada, outras constatações
FEMINICÍDIO (7) LESÃO CORPORAL GRAVE/GRAVÍSSIMA (5) interessantes são reveladas.
57% 43% 60% 40%
O gráfico ao lado é mais um indicativo da
50% força do racismo estrutural no sistema de
CRIMES DE TRÂNSITO (28)
Justiça criminal brasileiro.
64% 36%
De forma excepcional, os crimes de
lesão corporal e os crimes do Código de
CASOS DE CONCURSO
Trânsito Brasileiro, proporcionalmente,
levaram mais brancos/as do que negros/
LESÃO CORPORAL +
as à audiência de custódia. Nota-se
FURTO + RECEPÇÃO (11) VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER (11) também que crimes praticados contra
44% 56% 82% 18% a mulher (feminicídio e crimes da Lei
Maria da Penha em concurso com lesão
corporal) também levaram mais brancos/
RECEPTAÇÃO + PORTE ILEGAL DE ARMAS (11) ROUBO + PORTE ILEGAL DE ARMAS (9) as à audiência de custódia.
27% 73% 33% 67%

TRÁFICO DE ENTORPECENTES +
ROUBO + RECEPTAÇÃO (13) ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO (78)
31% 69% 15% 85%

TRÁFICO DE ENTORPECENTES TRÁFICO DE ENTORPECENTES


+ PORTE ILEGAL DE ARMAS (50) + RECEPTAÇÃO (7)
30% 70% 43% 57%

TRÁFICO DE ENTORPECENTES
+ ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO +
PORTE ILEGAL DE ARMAS (12)
35,4%
DAS MULHERES SÃO
17% 83% ACUSADAS DE FURTO

68
6. Dados

FOTO: ALICE VERGUEIRO


evidenciar que a força repressora do
Estado afeta de maneira mais acentuada
as pessoas negras. Em Recife, por
exemplo, uma pesquisa realizada em
2018 indicou que 60% dos policiais
percebem que pessoas pretas e pardas
são priorizadas nas abordagens.53
Chama atenção a diferença na
sobrerrepresentação de pessoas negras Tal constatação, porém, não representa
em relação aos crimes de latrocínio nenhuma novidade. Em pesquisa
e associação para o tráfico de drogas. realizada na década de 1990, Sérgio
Os casos de latrocínio são escassos, Adorno (1996) analisa os crimes ocorridos
portanto pouco representativos. De todo no município de São Paulo julgados em
modo, causa espanto que, mesmo num primeira instância. Entre os principais
universo pequeno, todas as pessoas achados do estudo, verificou-se que
acusadas de praticar um dos crimes com há maior incidência de prisões em
a pena mais grave de todo o Código Penal flagrante para réus negros (58,1%)
sejam negras. Em relação aos casos de comparativamente a réus brancos
associação para o tráfico, por outro lado, (46,0%). De acordo com o autor, “tal
a situação é mais representativa - tanto aspecto parece traduzir maior vigilância
em concurso quanto isoladamente policial sobre a população negra do que
considerados. A combinação de crimes sobre a população branca”.
mais frequente em toda a amostra -
tráfico e associação - apresenta uma
proporção de 84,6% negros/as para
15,4% brancos/as.

Nesses casos, a percepção de quem é o/a


criminoso/a e, assim, a decisão sobre a 53. O resultado é trazido na pesquisa “Quando a polícia
chega para nos matar, nós estamos praticamente mortos:
necessidade de efetuação da abordagem discursos sobre genocídio da população negra no cenário
criminal, é o mecanismo que provoca de Recife-PE” da Universidade Federal de Pernambuco,
publicado pela pesquisadora Joyce Amâncio de Aquino
tamanha discrepância, que acaba por Alves em 2018

69
O Fim da Liberdade

Chama a atenção a proporção de pessoas Belo Horizonte, Mogi das Cruzes, Rio de
negras acusadas em determinadas ci- Janeiro e São José dos Campos. Com o
dades, sobretudo no Nordeste. Em Feira roubo, o mesmo aconteceu em Salvador,
de Santana, por exemplo, dos 21 casos onde as 33 pessoas custodiadas acusadas
com informação sobre crime e raça, ape- de roubo eram negros/as. Situação
nas um teria sido praticado por pessoa similar aconteceu em Maceió. Já em
branca. Em Maceió, o porte de armas, o relação ao tráfico: as 12 pessoas acusadas
roubo, a violência contra a mulher e o de traficar drogas eram negras.
tráfico em concurso com porte de armas
são os únicos crimes que têm pessoas Para o crime de roubo, a propósito, que
brancas na amostra (sendo que em ne- é bastante representativo na pesquisa,
nhum deles essa amostra ultrapassa os apenas em São José dos Campos o número
33%). Em Recife, os/as negros/as são os/ de negros/as acusados/as foi inferior ao
as únicos/as acusados/as de todos os cri- número de brancos/as (44,12% contra
mes exceto roubo e tráfico, para os quais 55,88%). Em Londrina e Porto Alegre,
o índice de pessoas custodiadas negras onde havia mais pessoas custodiadas
ainda é altíssimo: 88,89% e 94,44%, brancas do que negras, a proporção de
respectivamente. pessoas negras acusadas de roubo era de
53,33% e 60,87%, respectivamente.
Seguindo o diagnóstico no cenário
geral, o crime de associação para o Percebe-se também que há uma
tráfico de drogas levou apenas pessoas sobrerrepresentação de negros/as
negras para a audiência de custódia nas nos casos com concurso de crimes
seguintes localidades da região Sudeste: nas diferentes cidades, com algumas
FOTO: ALICE VERGUEIRO

90%
NOS CASOS
DE TRÁFICO,
A EXCLUSIVIDADE
DO TESTEMUNHO
POLICIAL COMO
PROVA EM DESFAVOR
DA PESSOA
55,6% CUSTODIADA É A
REGRA: SÃO
90% DOS CASOS
EM 55,6% DOS
CASOS, AS ÚNICAS
TESTEMUNHAS ERAM
OS/AS POLICIAIS
QUE EFETUARAM O
FLAGRANTE

70
6. Dados

exceções, como São Paulo. Importante


pontuar que o cometimento de crimes
em concurso certamente contribui para
agravar a decisão do/a juiz/a, de tal sorte
que é outro elemento a ser considerado
no impacto do resultado das audiências
de custódia para as pessoas negras.

Por fim, alguns aspectos chamam


a atenção em relação à questão das
testemunhas dos flagrantes. Em 55,6%
dos casos, as únicas testemunhas eram
os próprios agentes policiais - índice que
sobe para 90% nos casos de tráfico

Isso preocupa não por inerente


desconfiança em relação à palavra dos/
as policiais, mas porque a inexistência
de quaisquer outras testemunhas que

6.2. Uso de algemas


possam corroborar a versão apresentada
no auto de prisão em flagrante alerta
para a possível fragilidade (ou ao
menos insuficiência) da prova contra ALÉM DO FATO de a defesa ter pedido
o/a custodiado/a. a retirada das algemas em apenas 5%
dos casos, destaca-se que em 93,8%
das vezes não houve qualquer pedido
de retirada das algemas por parte dos
operadores do direito.

93,8% Este diagnóstico é problemático porque


indica que são descumpridas, ao mesmo
tempo, normas do Supremo Tribunal
DAS VEZES NÃO
HOUVE QUALQUER Federal, da Constituição Federal e do
PEDIDO DE RETIRADA Conselho Nacional de Justiça.
DAS ALGEMAS POR
PARTE DOS OPERA-
DORES DO DIREITO Em primeiro lugar, a manutenção das al-
gemas fere também um mandamento da
Corte Superior de nosso país: a Súmula
Vinculante 11 do Supremo Tribunal Fe-
deral, cujo enunciado dispõe o seguinte:

Só é lícito o uso de algemas em casos


USO DE ALGEMAS de resistência e de fundado receio de
fuga ou de perigo à integridade física

2.753
própria ou alheia, por parte do preso
casos da
amostra ou de terceiros, justificada a excep-
cionalidade por escrito, sob pena de
responsabilidade disciplinar, civil e
83% DAS PESSOAS CUSTODIADAS ESTAVAM ALGEMADAS penal do agente ou da autoridade e de
nulidade da prisão ou do ato proces-
sual a que se refere, sem prejuízo da
responsabilidade civil do Estado.54
desses casos...

5% A DEFESA PEDIU A RETIRADA


EM APENAS 5% DAS VEZES 54. Disponível em: https://bit.ly/30Dpbg5.

71
O Fim da Liberdade

FOTO: ALICE VERGUEIRO


O mandamento sumular é bastante
claro e o que se percebe é que, de modo
geral, os/as juízes/as das audiências
de custódia dão-lhe pouca importân-
cia. Não raro, as pessoas custodiadas
entravam algemadas com as mãos para
trás ou, em audiências com mais de
uma pessoa, algemadas umas às outras.
De tal sorte, o índice de 83% apontado
acima reforça a conclusão de nosso
último relatório de que há preocupan- Nas regiões Sudeste e
te “conformação dos operadores do
direito (isto é, não só de magistrados/ Centro-Oeste, o uso de
as) com essa arbitrariedade”.55
algemas é uma regra
Em segundo lugar, a manutenção56 das
algemas durante a audiência na imensa em praticamente todos
maioria dos casos marca o descum-
primento da norma constitucional os casos observados
que impõe a presunção de inocência.
Quando se mantém uma pessoa ainda
não condenada, sequer denuncia-
da, com algemas, sem fundamentar
concretamente essa determinação com
base em elementos individualizados,
faz-se uma presunção de culpa e de
55. Relatório publicado pelo IDDD em 2017, p. 31.
periculosidade que vai na contramão Disponível em: https://bit.ly/2DVJz4K.
do princípio preceituado pelo artigo 5º, 56. Usa-se este termo porque as pessoas custodiadas já
LVII, da Carta Magna. vêm algemadas da carceragem.
57. Por exemplo, processo 0038542-10.2018.8.26.0050,
que tramita no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Em terceiro lugar, a excepcionalidade 58. Art. 8º, II, da Resolução nº 213/15 do CNJ. Disponível
do uso de algemas nas audiências de em: https://bit.ly/2LaXZig.
custódia, bem como a necessidade de 59. As amostras para estas cidades são, em número de
custodiados/as: 393 (Rio de Janeiro), 200 (Brasília), 213
justificativa concreta para sua ma- (São José dos Campos) e 614 (São Paulo).

72
6. Dados

dia para a audiência de custódia

99,8%
chega a ser superior a cento e
cinquenta, mas apenas dezenove
policiais militares são destacados
É O ÍNDICE DE USO para garantir a segurança dos
DE ALGEMAS EM
trabalhos. Como se vê, e tendo em
CIDADES COMO
BELO HORIZONTE E vista ainda as fragilidades do espaço
MOGI DAS CRUZES físico e o número de audiências
realizadas simultaneamente, não há
contingente suficiente para garantir
a segurança de todos.57

Entende-se esta justificativa como


genérica por ser um trecho padrão
nutenção com base em fundado risco, de diversas atas, a despeito das
constam da Resolução 213/15 do Conselho particularidades de cada caso. Afirmar
Nacional de Justiça, conforme seu artigo que o fórum criminal Ministro Mário
8º, II. Logo, em 82,8% dos casos, pode-se Guimarães é o maior da América Latina
dizer que a norma de regulamentação das diz mais sobre o local do que sobre o/a
audiências de custódia não foi cumprida custodiado/a em questão. Assim, a
pelos operadores do direito. Quanto às ausência de estrutura suficientemente
justificativas apresentadas pelos/as ju- segura e o risco à integridade das pessoas
ízes/as para a manutenção das algemas, são justificativas desvinculadas das
elas são em sua imensa maioria genéricas individualidades de cada caso concreto.
e padronizadas. Em São Paulo, por exem- Como tal, não cumprem a determinação
plo, há um parágrafo padrão incluído do CNJ de que a manutenção do uso de
nas atas de audiência a esse respeito, algemas deve ser justificada apenas “em
transcrito a seguir: casos de resistência e de fundado receio
de fuga ou de perigo à integridade física
Em vista do disposto no Decreto nº. própria ou alheia”.58
8.858/16 e na Súmula Vinculante
nº 11, justifico que o autuado foi Nas regiões Sudeste e Centro-Oeste,
mantido algemado para garantia o uso de algemas é uma regra em
de sua própria integridade física praticamente todos os casos observados.
e de todos os participantes da No Rio de Janeiro, em Brasília, em São
audiência, além das pessoas que se José dos Campos e em São Paulo, esse
encontram no recinto e fora dele. índice é de 99,5%.59 Em cidades como
Este fórum é o maior da América Belo Horizonte e Mogi das Cruzes, o
Latina e nele circulam milhares de índice chega a 99,8%.60
pessoas diariamente. O número de
autuados representados num único No Nordeste, por outro lado, a situação
é praticamente inversa, de tal forma que
merece ser louvada e fomentada.61 Em
Recife, por exemplo, as pessoas custo-
diadas estavam sem algemas em todas as
audiências. Em Feira de Santana, o índice
de pessoas custodiadas não algema-
das é de 93,1%. Em Olinda, é de 92,9%
60. As amostras para estas cidades são, em número
de pessoas custodiadas: 380 (Belo Horizonte) e 288 (Mogi
e, em Maceió, de 91,6%.62 São cidades,
das Cruzes). portanto, que notadamente cumprem as
61. Em Porto Alegre, o índice de pessoas custodiadas não normas do Conselho Nacional de Justiça,
algemados/as é de 100% (amostra de 105 pessoas), mas
possivelmente este número guarda relação com o fato de as da nossa Corte Superior e da Constituição
audiências de custódia nesta cidade acontecerem já dentro Federal, de tal modo que os resultados
do sistema prisional, o que tornaria o uso de algemas como
garantia da segurança uma medida desnecessária. do monitoramento nessas localidades
62. As amostras para estas cidades são, em número endossam um diagnóstico muito positivo
de custodiados(as): 87 (Recife), 29 (Feira de Santana), 70
(Olinda) e 95 (Maceió). na perspectiva da garantia de direitos.

73
O Fim da Liberdade

6.3 Desafios para


a prevenção e o
combate à tortura
UMA DAS FINALIDADES centrais das
audiências de custódia é a apuração de
eventual prática, por agentes do Estado,
de violência contra o/a custodiado/a no
momento de sua prisão em flagrante.
A Resolução 213/15 do CNJ, em seu Pro-
tocolo II, traz especial atenção à questão
da ocorrência de tortura ou outros trata-
mentos cruéis, desumanos ou degradan-
tes. Em seus próprios termos,

(a) audiência de custódia deve ocor-


rer em condições adequadas que tor-
nem possível o depoimento por parte
da pessoa custodiada, livre de amea-
ças ou intimidações em potencial que
possam inibir o relato de práticas de
tortura e outros tratamentos cruéis,
desumanos ou degradantes a que
tenha sido submetida.

Dentre essas “condições adequadas”,


a Resolução indica: (i) a retirada das
algemas do/a custodiado/a; (ii) a
presença de advogado/a ou defensor/a
público/a, com quem a pessoa possa
conversar confidencialmente antes da
audiência em espaço reservado; (iii) a
ausência dos/as agentes de segurança
que efetuaram o flagrante; e (iv) a não-
utilização de armamento letal pelos/as
agentes responsáveis pela segurança das
audiências de custódia.

Além disso, a norma do CNJ determina


que “na coleta do depoimento, o juiz
deve considerar a situação particular de
vulnerabilidade da pessoa submetida
a práticas de tortura ou tratamentos
cruéis, desumanos ou degradantes”,
adotando uma postura respeitosa, clara
e compreensiva diante do relato da
pessoa custodiada. Por fim, determina
também que “constatada a existência de
indícios de tortura e outros tratamentos
cruéis, desumanos ou degradantes, o
juiz deverá adotar as providências
cabíveis para garantia da segurança da
pessoa custodiada”.

74
6. Dados

Há uma preocupação evidente do CNJ


com a sensibilidade dos operadores do
A presença constante de
direito na coleta de relatos sobre tortura
ou outros tratamentos cruéis, desuma-
agentes de segurança
nos ou degradantes, entendendo que é
preciso construir uma relação de con-
durante as audiências é
fiança entre acusados/as e operadores/as
do sistema de Justiça. 63
um fator de intimidação
É importante que a apuração sobre even-
tual prática de violência seja conduzida
de forma rigorosa, dado que a constata-
ção de ilegalidades cometidas durante
a abordagem policial, e qualquer ato de de vista que a necessidade de perma-

96,3%
violência praticado pelos/as agentes nência de agentes de segurança durante
de segurança é uma ilegalidade, deve a audiência, assim como de manuten-
acarretar no relaxamento do flagrante ção das algemas, deve ser devidamente
pela autoridade judiciária, nos termos do justificada com base na demonstração DOS CASOS
TINHAM AGENTES
artigo 310 do Código de Processo Penal. concreta da real periculosidade do/a
DE SEGURANÇA
Na prática, entretanto, o diagnósti- custodiado/a, e não de maneira abstrata PRESENTES
co no panorama nacional é (ainda) de e/ou genérica com base numa presunção NAS SALAS DE
discrepância entre a Resolução do CNJ de periculosidade. AUDIÊNCIA
e a atuação concreta dos operadores da
audiência de custódia. De acordo com os dados de nosso
monitoramento, agentes de segurança
A começar, a presença constante de estavam presentes nas salas de audiên-
agentes de segurança durante as audi- cia em 96,3% dos casos.64 Em diversas
ências é um fator intimidador. Não se localidades, não apenas um, mas dois,
trata de categoricamente dispensar as três, quatro, ou até mais policiais
escoltas, mas é importante não perder estavam presentes durante toda a audi-
ência. Em Belo Horizonte, por exemplo,
todas as audiências eram acompanhadas
por dois agentes de segurança do fórum
e/ou agentes prisionais. Em Porto
Alegre, eram até três policiais acom-
panhando o ato e em Brasília, algumas
vezes, havia mais de quatro policiais
presentes em audiência.65

O uso de armamento ostensivo por parte


dos/as agentes de segurança é outro
fator que merece um olhar atento. Lem-
brando que, em sua maioria, as pessoas
custodiadas são cidadãos/ãs em situação
de vulnerabilidade socioeconômica, é
possível que a presença constante de
policiais durante a oitiva cause-lhes
constrangimento. O número de agentes
e o porte explícito de armamento são
63. Relatório publicado
aspectos que podem intimidar as pesso- pelo IDDD em 2017, p. 33.
FOTO: ALICE VERGUEIRO

Disponível em: https://bit.


as apresentadas e, consequentemente, ly/2DVJz4K.
interferir não apenas nos relatos sobre 64. Amostra: 2.761 casos.
violência policial durante o flagrante, 65. As amostras para
mas na própria participação da pessoa estes casos são: 380 casos
(Belo Horizonte), 106 (Porto
custodiada durante a audiência. Alegre) e 202 (Brasília).

75
O Fim da Liberdade

Com relação aos episódios de violência sofrido algum tipo de violência no


policial, 14,5% das pessoas custodiadas momento do flagrante.67
não foram perguntados/as pelos opera-
dores a respeito.66 Destes, 88,7% nada Apesar de 1/4 das respostas serem posi-
disseram e 11,3% relataram, de forma tivas para a prática de violência policial,
espontânea, ter sofrido violência policial número escandalosamente alto, é preci-
no momento do flagrante. so ler estes números com cuidado, pois
eles podem não representar a totalidade
Das 85,5% pessoas custodiadas que de casos. Isso porque a forma como a
foram explicitamente perguntados/as pessoa é perguntada impacta direta-
sobre a ocorrência de violência policial, mente na resposta oferecida. A despeito
25,9% responderam afirmativamente. das determinações da Resolução 213/15
do CNJ, muitos/as juízes/as formula-
Se considerados todos os casos, tem-se vam a pergunta de maneira pouco clara,
que 23,8% das pessoas afirmaram ter questionando não se o/a custodiado/a
sofrido violência por parte dos agentes havia sofrido agressões ou maus-tratos
policiais, 63,3% das pessoas disseram por parte dos agentes de segurança pú-
que não e 12,9% não foram perguntadas blica, mas se tinha alguma “reclamação
a respeito e nada disseram. a fazer” ou se houvera “algum problema
com a polícia” no momento da aborda-
Os índices de respostas positivas sobre gem, ao que diversas pessoas custodia-
relatos de violência em cada cidade po- das respondiam negativamente - muitas
dem ser conferidos abaixo. vezes sem entender que a pergunta se
referia à prática de violência.
Destaca-se que nas cidades de Feira de
Santana e Salvador, quase metade Dado o descaso com a dignidade da
das pessoas custodiadas relatou ter pessoa custodiada e com sua integridade

ÍNDICE DE RESPOSTAS POSITIVAS


SOBRE RELATOS DE VIOLÊNCIA

FEIRA DE SANTANA BA 46,43%


SALVADOR BA 40,44%
RIO DE JANEIRO RJ 34,01%
PORTO ALEGRE RS 32,69%
MACEIÓ AL 32,63%
OLINDA PE 28,99%
RECIFE PE 25,29%
BRASÍLIA DF 24,30%
SÃO JOSÉ DOS CAMPOS SP 21,63%
LONDRINA PR 19,38%
SÃO PAULO SP 18%
BELO HORIZONTE MG 16%
MOGI DAS CRUZES SP 14%

76
6. Dados

física, o IDDD preocupa-se com a possí- RESPONSÁVEL PELA


vel subnotificação dos casos de tortura AGRESSÃO, SEGUNDO A
ou outros tratamentos cruéis, desuma- PESSOA CUSTODIADA
nos ou degradantes - seja porque o/a
custodiado/a não entende a pergunta,
seja porque se sente constrangido/a em
respondê-la. Diante da problematização
de eventual prática de violência policial
durante o flagrante, a questão da pre-
sença da polícia durante as audiências
torna-se um ponto ainda mais sensí- 458
policial
vel. Não se trata de desconfiar daquele militar
agente que acompanha a audiência - até
porque pode não ser o/a mesmo/a que
efetuou o flagrante -,68 mas é preciso
reconhecer que há um temor em relação
ao policial, sobretudo no caso da Polícia
Militar, que está presente em 41,4% das 59
policial
ocasiões em que há agentes de segurança civil
na sala69 e é imputada como autora das
agressões em 72,9% dos casos em que 48
civis
há relatos de violência.70 Em números 15
segurança
brutos, ao lado. privada

Em determinadas localidades, a Polícia 3


agentes
Militar é apontada como agressora em prisio-
mais de 90% dos casos com episódio de nais
45
outros

O IDDD preocupa-se com


FOTO: HUMBERTO TOZZE

a possível subnotificação
dos casos de tortura
ou outros tratamentos
cruéis, desumanos ou
degradantes

66. Amostra: 2.678 casos.


67. A porcentagem exata é 46,4% (amostra de 28 casos).
68. Em São Paulo, por exemplo, os(as) policiais
presentes no fórum não são os(as) mesmos(as) que fazem
ronda nas ruas.
69. A amostra para este número é de 2761 casos.
70. A amostra para este número é de 606 casos.

77
O Fim da Liberdade

violência: 92,3% em Feira de Santana e


91,8% em Belo Horizonte.71 Segundo a
Defensoria Pública do Estado do Rio de
Janeiro, em 34% das audiências de cus-
tódia realizadas entre setembro de 2016
e setembro de 2017 o/a custodiado/a re-
latou ter sofrido violência policial, sendo
que, novamente, a Polícia Militar é apon-
tada como principal agressora: 89,6% dos
casos com relato de violência.72

Assim, é possível que, com medo de so-


frer represália ou retaliação, as pessoas
preferem se calar e deixar de denunciar
casos de maus-tratos. Nesse sentido, a
finalidade de prevenir tortura ou outros
tratamentos cruéis, desumanos ou
degradantes não estaria sendo devida-
mente cumprida.

Importante considerar, também, que


a presença da polícia estende-se para

FOTO: HUMBERTO TOZZE


depois da audiência de custódia – todo/a
custodiado/a é escoltado/a por poli-
ciais no retorno à carceragem (mesmo
aqueles/as que receberam liberdade
provisória), para aguardar a chegada do
alvará de soltura ou ser encaminhado/a
pelos agentes da Secretaria de Admi-
nistração Penitenciária a um Centro de
Detenção Provisória. Nesta ocasião, não
há garantia de que a pessoa não venha a 71. As amostras para
das condutas abusivas, reduzindo-as
sofrer retaliação em razão de ter relatado estas cidades são: ao longo do tempo, dando respostas
13 casos (Feira de
alguma prática abusiva por parte dos Santana) e 61 casos (Belo efetivas à sociedade que a considera
agentes de segurança, situação que tam- Horizonte). violenta. Permite também reduzir
bém exige nossa atenção no diagnóstico 72. Relatório 2º ano das o número de acusações sem funda-
audiências de custódia
de possíveis indicativos de subnotifica- no Rio de Janeiro. mento contra os policiais. Contudo,
Disponível em: https://
ção de violência policial. bit.ly/2U5d1tP.
sem investigação isenta, o manto da
73. Conectas Direitos suspeita recobre de desconfiança e
A este respeito, a Conectas Direitos Hu- Humanos. Tortura medo as relações da sociedade com
Blindada.Como as
manos publicou, em 2017, um relatório instituições do sistema seus policiais.73
de Justiça perpetuam a
sobre as narrativas de tortura e violência violência nas audiências
policial nas audiências de custódia da de custódia. Disponível O medo da polícia e a consequente subno-
em: https://bit.
cidade de São Paulo, no qual presta o ly/2EdWE6P, p. 15. tificação dos relatos de maus-tratos são
seguinte esclarecimento, com o qual o 74. O relatório, problemas graves na medida em que invi-
IDDD se alinha: acima mencionado, sibilizam a necessidade de investigação de
da Conectas Direitos
Humanos emprega este eventuais práticas de violência por agen-
termo no mesmo sentido
Não se trata de assumir a suspei- que o propomos.
tes do Estado. Para além desse processo
ção de todos os policiais, mas de de invisibilização, outro problema que se
assegurar condições institucionais observou no monitoramento nacional é o
e um ritual de acesso à Justiça que que se chama de naturalização da violên-
favoreça, e não intimide, a denúncia cia74 - tanto pelos operadores do direito,
dos maus profissionais ou das situ- quanto pelas próprias pessoas custodia-
ações abusivas. Apurar as condutas das, vítimas de agressão policial.
de modo isento e equilibrado é um
meio extremamente útil para que as Naturalizar a violência significa banali-
polícias possam melhorar o controle zá-la, entendê-la como prática rotineira

78
6. Dados

normal e (ainda que implicitamente) ENCAMINHAMENTO


S O L I C I TA D O P E L A S PA R T E S A PA R T I R
legitimada. Significa internalizar a
D O S R E L AT O S D E V I O L Ê N C I A
convicção de que, em alguma medida,
a truculência, a ação violenta indis- 610 609
criminada, compõe a tarefa cotidiana casos casos

das instituições policiais de garantir a


segurança pública.

Esse diagnóstico é corroborado pelos 74% 72%


seguintes números:
O MINISTÉRIO
A DEFESA NÃO FEZ
PÚBLICO NÃO FEZ
Na imensa maioria dos casos, não foi QUALQUER PEDIDO DE
QUALQUER PEDIDO DE
feito registro fotográfico ou audiovisual ENCAMINHAMENTO
ENCAMINHAMENTO
em audiência de eventual marca deixada
pela agressão. Nas cidades de Belo
Horizonte, Brasília, Londrina, Mogi das
Cruzes e Salvador, em nenhuma audiên-
cia isso aconteceu.75 Em contrapartida,
em Maceió, esse registro aconteceu em
70% dos casos nos quais o/a custodia-
do/a relatou ter sofrido violência no 75. As amostras para estes casos são: 61 (Belo Horizonte), 27 (Brasília), 18
(Londrina), 40 (Mogi das Cruzes), 47 (Salvador) e 30 (Maceió).
momento do flagrante, o que nos parece
76. Importante fazer menção à capacitação oferecida aos/as juízes/as do
extremamente positivo.76 estado de Alagoas, em maio de 2017, pela Associação para a Prevenção
da Tortura (APT). Este dado de Maceió, que destoa do restante, pode ser
consequência direta da abertura do Tribunal de Justiça de Alagoas ao curso
Com relação ao encaminhamento dado oferecido pela APT, que tem como principal objetivo - além da formação
pelas partes diante do relato de violên- propriamente dita - mostrar a extrema importância deste momento tão inicial
- as audiências de custódia - também para o combate e para a prevenção da
cia, o cenário tampouco é animador: violência. A este respeito, vide: https://bit.ly/2UaLDdK

REGISTRO DE MARCAS DE AGRESSÃO

191 casos em que havia marcas


da agressão relatada

126 46 19
NÃO FOI FEITO REGISTRO FOI FEITO REGISTRO NÃO SE TEM A
FOTOGRÁFICO OU FOTOGRÁFICO OU RESPOSTA PARA
AUDIOVISUAL EM AUDIÊNCIA AUDIOVISUAL EM AUDIÊNCIA A QUESTÃO
DE EVENTUAL MARCA DE EVENTUAL MARCA
DEIXADA PELA AGRESSÃO DEIXADA PELA AGRESSÃO

79
O Fim da Liberdade

Cabe aqui esclarecer o que se considera blico não deu qualquer encaminhamento

92,3%
“dar encaminhamentos” aos relatos de em 95% dos casos com relatos de maus-
violência: ao ter notícia da suposta prática -tratos. Os encaminhamentos por parte
de um crime - no caso, a violência pratica- da Defensoria Pública somam apenas
da por um agente de segurança -, cabe às 18,8%. Em Recife, os dois órgãos só deram DOS CASOS
autoridades investigarem. O/A juiz/a pode encaminhamento em 9,5% dos casos cada EM FEIRA DE
SANTANA EM QUE
determinar a instauração de um inquérito um e em Feira de Santana, em 92,3% dos HOUVE RELATO
policial para apurar a eventual prática de casos em que houve relato de agressão, a DE AGRESSÃO,
tortura e o/a defensor/a ou promotor/a Defensoria não tomou qualquer provi- A DEFENSORIA
NÃO TOMOU
podem solicitar que isso seja feito. Para dência. Maceió, por sua vez, novamente QUALQUER
não dar causa a eventual injusta investi- apresenta situação significativamente PROVIDÊNCIA
gação, também podem os três atores, no mais positiva: o Ministério Público
momento da audiência de custódia, fazer alagoano deu encaminhamento em 70%
perguntas complementares acerca da dos casos.77
denúncia feita pelo/a custodiado/a, assim
como expedir ou solicitar que seja expedi- Além disso, outros dados reforçam a
do ofício ao órgão-corregedor responsável percepção sobre o baixo engajamento dos
pela apuração de atos cometidos por seus operadores no oferecimento de respostas
quadros, fazer registros fotográficos de a esses relatos de agressão.
eventuais marcas deixadas pela suposta
agressão sofrida, solicitar o encaminha- Em algumas das cidades pesquisadas, a
mento do/a custodiado/a ao instituto ausência de perguntas complementares,
forense e formular quesitos ao perito. por parte dos operadores, sobre os
Na cidade de São Paulo, o Ministério Pú- relatos de violência atinge números

ENCAMINHAMENTOS
D E C A S O S C O M R E L AT O D E V I O L Ê N C I A N A D E C I S Ã O J U D I C I A L

Somatória
36,9% NENHUM supera 100%
porque a
questão
21,6% ENCAMINHAMENTO DA PESSOA PRESA AO INSTITUTO FORENSE (EX: IML) permitia
assinalar
mais de uma
18,8% DE OFÍCIO À CORREGEDORIA DA POLÍCIA MILITAR alternativa.

14% DE OFÍCIO À ÁREA ESPECIALIZADA PELO CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL NO MP

9,3% OUTROS

3% DE OFÍCIO AO INSTITUTO FORENSE (EX: IML)

2,5% DE OFÍCIO À ÁREA ESPECIALIZADA DO TJ PELO CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL

1,7% FEZ OU DETERMINOU REGISTRO FOTOGRÁFICO OU AUDIOVISUAL DE EVENTUAIS MARCAS DE VIOLÊNCIA

1,4% DE OFÍCIO À CORREGEDORIA DA POLÍCIA CIVIL

0,9%
FOTO: HUMBERTO TOZZE

DETERMINOU INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIAL

0,1% DE OFÍCIO À CORREGEDORIA DAS POLÍCIAS (QUANDO ATUAM DE MANEIRA UNIFICADA)

0,1% FORMULOU QUESITOS AO INSTITUTO FORENSE

80
6. Dados

CASO 1
(SALVADOR)
O custodiado informou que os policiais
entraram em sua residência sem
mandado, renderam ele e seus familiares e
agrediram ele e sua mãe. Havia marcas de
agressão física no corpo do custodiado.
Na audiência, o defensor público
informou que a mãe do custodiado
havia confirmado a versão dele em seu
depoimento. O Ministério Público solicitou
a apuração das agressões relatadas,
preocupantes: 33,3% em São Paulo, 35,7% mas mesmo assim se manifestou pela
em Salvador e 54,6% em Londrina. Por legalidade do flagrante, homologando-o.
outro lado, em Mogi das Cruzes e Olinda,
por exemplo, os operadores fizeram
perguntas complementares sobre o
episódio de maus-tratos em todos os
casos nos quais o/a custodiado/a tinha
marcas de agressão, o que representa um
índice bastante animador.78
CASO 2
Na perspectiva nacional, contudo, os
(SALVADOR)
números são graves porque alertam para
a possibilidade de haver um desenga-
Dois jovens custodiados disseram
jamento sistêmico dos operadores do
que foram torturados durante horas
direito no combate à violência institu-
no banheiro com choques nos ânus e
cionalizada. O/A juiz/a, para avaliar a
ainda tiveram sua casa invadida por
legalidade do flagrante, deve necessa-
policiais. O defensor público perguntou
riamente perquirir sobre a ocorrência de
se eles queriam de fato prosseguir com
violência policial; o Ministério Público
a denúncia, já que se tratava de uma
tem o dever constitucional de exercer o
situação bastante grave que envolvia
controle externo das polícias; e a defesa
agentes do Estado.
representa individualmente os direitos e
interesses daquela pessoa agredida. As-
sim, entende-se a falta de compromisso
dos atores do sistema criminal como um
dos principais empecilhos para que a
audiência de custódia se torne, de fato,
um mecanismo de combate e prevenção à
tortura e de acesso à Justiça.
CASO 3
Acerca de uma tal postura por parte dos (RIO DE JANEIRO)
operadores, dois casos relatados pela
equipe de pesquisa de Salvador e um caso Em uma das audiências em que
relatado pela equipe do Rio de Janeiro havia marcas de agressão física no
causam espanto: custodiado, o promotor orientou o
advogado particular a fotografar as
lesões em seu próprio telefone celular,
afirmando que “o IML (Instituto Médico
77. As amostras para estes casos são: 101 (São Paulo), 21 Legal) não é confiável”.
(Recife), 13 (Feira de Santana) e 41 (Maceió).
78. As amostras para estes casos são: 24 (São Paulo), 14
(Salvador), 11 (Londrina), 16 (Mogi das Cruzes) e 4 (Olinda).

81
O Fim da Liberdade

O não engajamento das autoridades para que destacaram como desafios ainda
o acolhimento das denúncias e tomada de existentes a falta de peritas criminais
providência é preocupante. Não é inco- para a realização de exame nas mulheres
mum ser dada pouca ou nenhuma credi- que passam por audiência e o fato de
bilidade às pessoas custodiadas. Algumas os exames serem sempre feitos na
vezes foi possível notar que os próprios presença da polícia que realiza a escolta
operadores não levavam os relatos a sério - para além da falta de controle na
pelo fato de muitos/as custodiados/as não comunicação dos casos para o/a juiz/a
serem capazes de reconhecer os/as agen- do conhecimento (falta de notícia sobre
tes que teriam cometido as agressões. Em apuração futura/posterior à realização da
São Paulo, a equipe de pesquisadores/as audiência de custódia).
do IDDD ouviu de um/a juiz/a: “se o cus-
todiado não se diz capaz de fazer reconhe- Diante da relevância do assunto - e
cimento, eu nem dou encaminhamento também da falta de clareza em como
ao caso” - possivelmente por entender proceder -, a DPRJ editou a Resolução
infrutífera a investigação nessas ocasiões. 932, de 26/6/18,79 que disciplina “o
Entretanto, considerando que o intuito da recebimento, a documentação e o fluxo
investigação não é atestar, mas apurar a interno de comunicações relativas a casos
ocorrência dos fatos narrados, esta pos- de tortura (...) praticados por agente
tura indica que ainda há um despreparo estatal ou outra pessoa no exercício
e descaso de parte da magistratura para de funções públicas, (...), bem como
lidar com o problema da violência policial. estabelece o protocolo de atuação dos
órgãos da Defensoria Pública sobre
A propósito, a falta de estabelecimento de o tema”,80 tornando-se pioneira no
fluxo claro para os encaminhamentos dos cuidado com a questão.
relatos de violência colhidos durante as
audiências foi uma questão aventadas por O olhar mais atento por parte da DPRJ aos
diversos profissionais durante as mesas casos de violência possibilitou também
de trabalho, em mais de uma cidade. um importante diagnóstico, conforme
Em Fortaleza, este foi um ponto relatado em reunião: a morte de pessoas
levantado pela maioria dos presentes, que ficaram hospitalizadas em virtude

82
6. Dados

de violência praticada na abordagem/ Não só a violência


prisão em flagrante não entra no cômputo
de letalidade policial.81 Isso porque, não física, praticada por
tendo a morte se dado na abordagem -
mas posteriormente -, não fica registrada meio da força, pode
como “auto de resistência”. Antes da
audiência de custódia, a comunicação de ser considerada
mortes ocorridas dessa maneira tinha,
como consequência, apenas a finalização forma de tortura
do processo. Hoje, tendo a DPRJ o
controle dos casos em que a pessoa não
foi apresentada em audiência de custódia
por estar hospitalizada, essa comunicação
possibilita investigar os motivos que
causaram a internação da pessoa e,
eventualmente, computar esses casos
como decorrentes de violência policial -
evitando uma perigosa subnotificação de
graves crimes praticados por policiais.

Mas não só a violência física, praticada


por meio da força, pode ser considerada
forma de tortura. Nos encontros com
atores de sistema de Justiça realizados
em Recife a preocupação com a questão
do fornecimento de alimento às pessoas
custodiadas foi ressaltada por membros
das três instituições do sistema de
Justiça. O assunto não foi abordado nas
outras cidades, mas, em São Paulo, como
evidenciaram as entrevistas com as
pessoas que passaram pelas audiências,
mostrou-se também problemático.82

Um dos magistrados presentes no Nesse sentido, é igualmente necessário


encontro de Pernambuco afirmou que a dar atenção àqueles casos em que a
alimentação é um aspecto que exige maior agressão não deixa evidências visíveis -
zelo, pois manter alguém sob custódia ou seja, casos de violência psicológica.
sem providenciar adequada alimentação É importante não perder de vista que se
representaria, por si só, uma tortura. a violência física, que deixa marcas, pode
já estar sendo negligenciada pelos atores
do sistema de Justiça criminal, tanto mais
será a violência para além do corpo.

A violência psicológica é incluída no


conceito de tortura ou outros tratamentos
FOTOS: HUMBERTO TOZZE / ALICE VERGUEIRO

79. Disponível em: https://bit.ly/344IeBS


80. Resolução 932/2018, art. 1º.
cruéis, desumanos ou degradantes pelo
81. Vale dizer que o Rio de Janeiro registra altos índices Protocolo II da Resolução 213/15 do CNJ,
de letalidade violenta, sendo grande parte das mortes bem como por tratados internacionais dos
imputadas a agentes de segurança, como mostram
matérias veiculadas na Folha de São Paulo e no Estadão, quais o Brasil é signatário, como a Con-
disponíveis, respectivamente, em: https://bit.ly/2NlHbJz; venção contra a Tortura das Nações Unidas
https://bit.ly/2HspxOS.
82. Essa informação é trazida no tópico 5 deste relatório,
de 1984, a Convenção Interamericana
a saber: “em São Paulo, 20 pessoas, das 57 entrevistadas, para Prevenir e Punir a Tortura de 1985 e o
afirmaram ter recebido comida apenas no fórum, ou seja,
apenas no dia seguinte ao de sua prisão em flagrante. Das Manual para a Investigação e Documenta-
que disseram ter também se alimentado na delegacia, ção Eficazes da Tortura e Outras Penas ou
12 só fizeram porque familiares ou outras pessoas presas
forneceram alimentos”. (p. 19) Tratamentos Cruéis, Desumanos ou

83
O Fim da Liberdade

Degradantes (Protocolo de Istambul).83 entre juiz/a e acusado/a e o imenso ganho


Cabe lembrar, também, que o ordenamen- que a audiência de custódia representa
to jurídico brasileiro expressamente inclui nesse sentido.
o “sofrimento mental” em sua definição
de tortura (artigo 1º, I, da lei 9.455/97). Assim, espera-se que os operadores
não hesitem em dar encaminhamento
Diante disso, para assegurar que para apurar toda e qualquer narrativa de
as audiências de custódia sejam violência (tomar as providências para
efetivamente um espaço seguro e garantir a instauração de procedimento de
confiável para que as pessoas custodiadas investigação da agressão), independen-
denunciem práticas de violência por temente da existência de marcas físicas.
agentes de segurança pública, é preciso Desse modo, passa-se a atuar com mais
tornar a atuação dos operadores mais responsabilidade, diminuindo os riscos de
empática, ampliando sua escuta e sua acobertar abusos e ilegalidades por parte
proatividade face às narrativas das do Estado.
pessoas custodiadas. Daí novamente, a
imprescindibilidade do contato pessoal É importante frisar que, sem o devido
encaminhamento para casos de respostas
positivas acerca da ocorrência de violência
policial, não há propósito em questionar
o/a custodiado/a a respeito. Não faz sen-
tido estimular que as pessoas façam suas
denúncias se não houver a apuração dos
fatos e a futura responsabilização dos/as
agressores/as - mais uma razão pela qual
é necessário o efetivo comprometimento
dos atores do sistema de Justiça criminal
com o combate a essas práticas.

83. O artigo 1º - 1 da Convenção contra a Tortura das


Nações Unidas de 1984 assim determina:
“Artigo 1º - 1. Para os fins da presente Convenção, o termo
‘tortura’ designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimen-
tos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencio-
nalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma
terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la
por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou
seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta
pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado
em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores
ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público
ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por
sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquies-
cência. Não se considerará como tortura as dores ou sofri-
mentos que sejam consequência unicamente de sanções
legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas
decorram.” A definição se coaduna com a interpretação do
CNJ no Protocolo II de sua Resolução 213/15:
“Observa-se que a definição de tortura na legislação
internacional e nacional apresenta dois elementos
essenciais:
I. A finalidade do ato, voltada para a obtenção de
informações ou confissões, aplicação de castigo,
intimidação ou coação, ou qualquer outro motivo baseado
em discriminação de qualquer natureza; e
II. A aflição deliberada de dor ou sofrimentos físicos e
mentais.”
84. O total de audiências de custódia acompanhadas
nesse monitoramento foi de 2.774. No entanto, a amostra
para a questão sobre decisão é de 2.584. Essa diferença
se dá pelo fato de que nem todas as atas/assentadas
das audiências, documento fonte da informação, foram
disponibilizadas para consulta dos pesquisadores.

84
6. Dados

6.4. Decisões A decretação de


prisão preventiva tem
DESDE SUA CONCEPÇÃO, intensos
debates têm sido travados ao redor da sido a tendência nas
potencialidade das audiências de cus-
tódia para impactar no encarceramento audiências de custódia
em massa na medida em que, na justi-
ficativa do CNJ, foram concebidas como
instrumento para mitigar o uso abusivo
da prisão preventiva no país. Naquela
ocasião e ainda hoje, este foi um sen-
tido político criminal – acertado face o
alto número de presos/as provisórios/
as no país - dado a este instrumento
que, no entanto, tem como finalidade 99%
57%
básica a apresentação da pessoa presa PREVENTIVA
RESULTARAM
ao/à juiz/a, garantia fundamental que EM PRISÃO

2.584
PREVENTIVA
nasce como óbice ao desaparecimento
forçado ou às prisões arbitrárias que são
decisões
comuns em regimes não democráticos. c o n s u lta d a s 1%
DOMICILIAR
40%
Embora a discussão sobre sua natureza
LIBERDADE
libertadora ainda seja polêmica, o que PROVISÓRIA
COM CAUTELAR
as pesquisas têm mostrado é que a
decretação de prisão preventiva ainda
1% 2% RELAXAMENTO
tem sido a tendência. Do total dos DE FLAGRANTE
LIBERDADE PROVISÓRIA
casos,84 portanto: SEM CAUTELAR

APLICAÇÃO DECRETAÇÃO LIBERDADE LIBERDADE


DECISÕES RELAXAMENTO
DE PRISÃO DE PRISÃO PROVISÓRIA COM PROVISÓRIA
POR CIDADE DOMICILIAR PREVENTIVA CAUTELAR IRRESTRITA
DO FLAGRANTE

BELO HORIZONTE MG 0% 38% 60% 0% 2%


BRASÍLIA DF 0% 33% 65% 0% 2%
FEIRA DE SANTANA BA 0% 29% 53% 0% 18%
LONDRINA PR 1% 55% 42% 2% 0%
MACEIÓ AL 0% 55% 40% 4% 1%
MOGI DAS CRUZES SP 0% 63% 33% 2% 2%
OLINDA PE 0% 45% 54% 1% 0%
PORTO ALEGRE RS 0% 70% 26% 4% 0%
RECIFE PE 0% 49% 49% 1% 1%
RIO DE JANEIRO RJ 1% 62% 36% 0% 1%
SÃO JOSÉ DOS CAMPOS SP 1% 68% 29% 1% 1%
SÃO PAULO SP 1% 65% 32% 0% 2%
SALVADOR BA 0% 36% 50% 1% 13%

85
O Fim da Liberdade

6.4.1. Relaxamento da prisão em flagrante 85

O CÓDIGO DE Processo Penal, em seu O que este monitoramento mostra é que

2,17%
artigo 310, inciso I, estabelece que “ao foram relaxados apenas 2,17% dos casos.87
receber o auto de prisão em flagrante, o Nos dados gerais, os crimes que mais en-
juiz deverá fundamentadamente relaxar a sejaram relaxamento foram os seguintes:
prisão ilegal”. DOS CASOS
MONITORADOS
Com relação aos crimes de tráfico, o ar-
FORAM
Mas não só ao/à juiz/a cabe zelar pela gumento que mais aparece para justificar RELAXADOS
higidez do procedimento, sendo também a decisão do/a juiz/a é a ilegalidade do
função institucional do Ministério flagrante, sem menção, na ata da audiên-
Público “exercer o controle externo da cia, ao motivo que o teria tornado ilegal
atividade policial”, conforme determina (em 8 dos 14 casos). Dentre os pedidos
o artigo 129, inciso VII, da Constituição de relaxamento deferidos, 65,9% foram
Federal.86 As audiências de custódia são a feitos pelas duas partes e 34% foram feitos
oportunidade para que esse controle seja apenas pela defesa. Em 16,1% das decisões
feito. Constatada alguma ilegalidade na de relaxamento, ninguém o pediu. Esse
prisão, portanto, é dever do Ministério dado é interessante porque revela que, em
Público pedir que o flagrante seja nenhuma das decisões de relaxamento do
relaxado. Obviamente, para a defesa essa flagrante, o Ministério Público fez este pe-
é também uma incumbência. dido desacompanhado da defesa.

RELAXAMENTO POR CRIME


Relaxou o flagrante Não relaxou o flagrante

ROUBO + RECEPTAÇÃO ROUBO


19% 81% 0% 100%
ASSOCIAÇÃO TRÁFICO + RECEPTAÇÃO
8% 92% 0% 100%
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER TRÁFICO + ASSOCIAÇÃO
85. A amostra para essa
5% 95% 0% 100% decisão é de 56 casos.
86. “Art. 129. São
RECEPTAÇÃO ROUBO + PORTE DE ARMA DE FOGO Funções institucionais do
4% 96% 0% 100% Ministério Público: (...) VII -
exercer o controle externo
da atividade policial, na
HOMICÍDIO RECEPTAÇÃO + PORTE DE ARMA DE FOGO forma da lei complementar
3% 97% 0% 100% mencionada no artigo
anterior;”
TRÁFICO + ASSOCIAÇÃO LESÃO CORPORAL + VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER 87. A amostra para essa
questão foi 2.584 casos.
3% 97% 0% 100% 88. O total de pessoas
que alega ter sofrido
CRIMES DE TRÂNSITO LESÃO CORPORAL violência é de 637.
3% 97% 0% 100% 89. Em três casos.
90. Em um caso.
FURTO LATROCÍNIO
91. Em um caso.
3% 97% 0% 100% 92. Em cinco casos.
93. A amostra para
PORTE DE ARMA DE FOGO FURTO + RECEPTAÇÃO essa questão é 637. Em
2% 98% 0% 100% números brutos, houve 175
pedidos de relaxamento
feitos pela defesa nos
TRÁFICO FEMINICÍDIO
casos em que a pessoa
2% 98% 0% 100% custodiada alegou ter
sofrido violência.
TRÁFICO + PORTE DE ARMA DE FOGO DANO 94. O que quer dizer, em
números brutos, apenas
1% 99% 0% 100% 64 casos, dos 175.

86
5. Audiência de Custódia

Do total de 56 casos em que a decisão em


audiência de custódia foi o relaxamento da
prisão em flagrante, o Estado monitorado
que, proporcionalmente, mas o fez foi a
Bahia. Salvador e Feira de Santana tiveram
o maior número de decisões de relaxa-
mento: em Salvador, dos 149 casos acom-
panhados, 19 tiveram como resultado o
relaxamento do flagrante, o que repre-
senta 12,75% do total; em Feira de Santana
a proporção é ainda maior, com 17,86%
de decisões de relaxamento (5 em um
universo de 29). Se somados os resultados
das duas cidades, tem-se que 42,85% dos
casos em que se reconheceu ilegalidade na
prisão em flagrante vêm da Bahia.

RELAXAMENTO DO
FLAGRANTE E VIOLÊNCIA
POLICIAL
Defende-se aqui que a prática de violência
policial no momento da prisão em
flagrante a contamina de ilegalidade e,
portanto, deveria também ensejar seu Vieram de Salvador e Feira de Santana os
FOTO: ALICE VERGUEIRO

relaxamento. Entretanto, os dados desse cinco únicos casos de reconhecimento,


monitoramento mostram que, dos casos por parte do/a juiz/a, de que a alegada
em que a pessoa levada à audiência de violência policial contamina de ilegalidade
custódia relatou ter sofrido violência a prisão em flagrante.
policial na abordagem,88 em apenas 1,9%
houve pedido de relaxamento por parte Em Feira de Santana, em dois dos três
do Ministério Público, o que representa, casos a violência foi a única justificativa
em números brutos, 12 casos. Ocorre para a decisão. Em dois casos, ainda, o
que, desses, apenas dois dos pedidos relaxamento se deu de ofício - ou seja, não
são justificados pela possível violência houve pedido de relaxamento por parte do
praticada no momento da abordagem. Ministério Público ou da defesa, mas o/a
Os outros dez casos se dividem em juiz/a decidiu determiná-lo mesmo assim.
justificativas outras, como “auto de prisão
em flagrante não instruído devidamente Em Salvador, ambas as decisões reco-
(ou não formalmente em ordem)”,89 nheceram a violência como um fator de
desclassificação para outro tipo penal,90 contaminação do flagrante, mas mencio-
“excesso de prazo para a apresentação naram, também, outros elementos de ile-
da pessoa em audiência”91 ou a menção galidade (como, por exemplo, atipicidade
genérica à ilegalidade do flagrante.92 da conduta ou auto de prisão em flagrante
não instruído corretamente). Nas duas
Já a defesa fez pedido de relaxamento em ocasiões, tanto Ministério Público quanto
27,5% dos casos nos quais houve alegação defesa pediram o relaxamento.
de violência policial por parte da pessoa
custodiada.93 No entanto, em apenas Um desses casos de relaxamento
36,5%94 desses casos, o argumento ocorridos em Salvador exemplifica o tipo
utilizado pela defesa para justificar seu de ilegalidade levada em consideração.
pedido de relaxamento foi o de que houve A decisão menciona a suposta violência
relato de violência na abordagem. policial sofrida pelo/a custodiado/a e

87
O Fim da Liberdade

também registra que houve, por parte da


polícia, o ingresso arbitrário dos agentes
de segurança na residência da pessoa. O
registro de campo feito pelo pesquisador
que acompanhou essa audiência,
transcrito abaixo, dá a dimensão da
gravidade do caso:

“Perguntado sobre os relatos de


maus tratos, o custodiado explicou
que sofreu tortura e agressões, tendo
assumido ‘algo que não fez’. Segundo
seu relato, diz que cooperou com
a polícia em tudo. Disseram que
iram matá-lo. Bateram na costela,
desferiram murros, seguraram-no
pelo pescoço, aplicaram choques
no testículo e no pênis, no intuito
de descobrir se havia droga na
casa. Vasculharam seu celular, o
humilharam e ameaçaram de morte.
Deitaram-no no chão e o chutaram.
Explica que não tem relação com as
drogas supostamente encontradas em
sua residência. (...) Perguntado pelo
promotor se sofreu coação ou violência
pelo delegado quando prestou
depoimento em delegacia, respondeu
que não, mas que os policiais que o
prenderam estavam na sala a todo
momento durante seu depoimento.
O defensor público perguntou se
o que disse, em interrogatório na
delegacia, foi dito livremente ou custódia não está inserida em momento
em razão do temor por conta das de produção de provas, mas que essa
agressões que sofreu e porque, na sala restrição incide tão somente para a
do interrogatório, estavam os policiais acusação (ou para o/a juiz/a), e nunca
que praticaram as agressões visíveis para a defesa - que deve ter garantia de
em seu rosto. O custodiado respondeu ampla possibilidade de argumentação ao
que foi devido ao temor. O custodiado justificar seus pedidos.
relatou que os policiais disseram que
iriam colocar a arma em sua mão, Diante disso, sustenta-se que o
para ter provas dos tiros que foram previsto no parágrafo 1º, do artigo 8º, da
deflagrados pela polícia. Afirmou, Resolução 213/2015 do CNJ95 deve ser lido
ainda, que os policiais estavam com ressalvas. O trecho estabelece que:
fardados e encapuzados, mas não em
carro oficial. A abordagem aconteceu
às 19h em sua residência, sem ordem Art. 8º, §1º: Após a oitiva da pessoa
judicial, só sendo levado para a presa em flagrante delito, o juiz
delegacia às 22h.(...)” deferirá ao Ministério Público e
à defesa técnica, nesta ordem,
Este caso é emblemático na medida em reperguntas compatíveis com a
FOTO: ALICE VERGUEIRO

que deixa claro que a análise da legalidade natureza do ato, devendo indeferir
do flagrante, em determinados casos, as perguntas relativas ao mérito dos
está diretamente ligada ao mérito dos fatos que possam constituir eventual
fatos, ou seja, a como se deu a prisão. imputação, permitindo-lhes, em
E aqui se defende que a audiência de seguida, requerer:

88
5. Audiência de Custódia

I - o relaxamento da prisão em
flagrante;

II - a concessão da liberdade provisória


sem ou com aplicação de medida
cautelar diversa da prisão;

III - a decretação de prisão preventiva;

IV - a adoção de outras medidas


necessárias à preservação de direitos
da pessoa presa.

O cuidado na leitura refere-se, especifi-


camente, à vedação estendida também à
defesa técnica. Ou seja, embora vedado
ao Ministério Público formular questio-
namentos quanto ao mérito dos fatos,
não se trata de impedimento estendido à
defesa, que, em decorrência da garantia
fundamental à ampla defesa, poderá,
em favor do/a custodiado/a formalizar
indagações quanto à essência do ocorrido.
Ainda que assim se entenda, há relatos
de indeferimento de questões feitas pela
defesa que toquem no mérito dos fatos,
ignorando-se por completo a garantia
constitucional da ampla defesa.96

Embora não se esteja a falar neste


momento de ação penal - inexistindo,
A prática de violência portanto, acusação formal apresentada
pelo Ministério Público -, o tratamento
policial no momento da “desigual” é justificado na medida em
que a defesa não possui a seu favor o
prisão em flagrante a aparelhamento estatal, como possui a
polícia e o Ministério Público. Não por
contamina de ilegalidade e, outro motivo a Constituição Federal,
no inciso LV do artigo 5º, garante
portanto, deveria também aos acusados em geral o direito ao
contraditório e à ampla defesa, “com
ensejar seu relaxamento os meios e recursos a ela inerentes”. A
expressão “acusados em geral”, confere
alcance do direito à ampla defesa à
pessoa apresentada em audiência
de custódia, que deve, portanto,
ter, naquele momento, garantida a
possibilidade de exercê-lo, valendo-
95. Disponível em: https://bit.ly/2EBAYkT.
se dos argumentos e estratégias que
96. Nos ensinamentos de Antonio Scarance Fernandes, “(e)
ssa situação de desvantagem justifica tratamento diferenciado julgar convenientes – o que, inclusive
no processo penal entre acusação e defesa, em favor desta, e
a consagração dos princípios do in dubio pro reo e do favor rei.
se reforça na previsão do inciso
(...) Por isso tudo, a Carta Magna não se limitou a assegurar ao imediatamente anterior do mesmo
acusado o exercício de sua defesa, mas no art. 5º, LV, garantiu-
lhe mais – a ampla defesa –, ou seja, defesa sem restrições, não artigo (LIV), que prevê que ninguém
sujeita a eventuais limitações impostas ao órgão acusatório” será privado da liberdade sem o devido
(grifo nosso). FERNANDES, Antonio Scarance, Processo Penal
Constitucional, 7.ª ed., 2012, p.57. processo legal.

89
O Fim da Liberdade
FOTO: ALICE VERGUEIRO

RELAXAMENTO DO
FLAGRANTE COM
PRISÃO PREVENTIVA – A RIO DE JANEIRO
MANIPULAÇÃO DA LEI
Dois casos - que aqui não estão sendo
No Rio de Janeiro, foi levada à audiência uma mulher
enquadrados como casos de relaxamento
que teria cometido um roubo. A defesa formulou diver-
- chamaram muita atenção: um deles
sos pedidos: o principal, de relaxamento do flagrante
aconteceu no Rio de Janeiro e outro em
diante de sua ilegalidade (genericamente menciona-
Belo Horizonte. Em ambos, o/a juiz/a
da), e os subsidiários, de liberdade provisória irrestrita,
relaxou a prisão em flagrante e, em
liberdade provisória com medida cautelar e, por fim,
seguida, decretou a prisão preventiva
a concessão do direito à prisão domiciliar no caso de
em total afronta à lei. Quando o/a juiz/a
decretação de prisão preventiva. Os pedidos de liber-
decreta a prisão preventiva para alguém
dade foram ancorados na falta de antecedentes da
que teve seu flagrante permeado por uma
mulher e o de concessão do direito à prisão domiciliar,
ou mais ilegalidades, está sublimando a
pelo fato de ela ser mãe de criança recém-nascida.
ilegalidade para validar uma prisão. Ainda
A acusação, por sua vez, pediu sua prisão preven-
que formalmente relaxe o flagrante, se
tiva, justificada na “periculosidade da custodiada”.
o relaxamento não se consuma e não há
O/A juiz/a decidiu pelo relaxamento do flagrante por
qualquer alteração da situação fática do/a
entender que houve ilegalidade na prisão (generi-
custodiado/a, a ilegalidade contra ele/a
camente mencionada) e, mesmo assim, decretou a pri-
praticada não gera qualquer consequência
são preventiva afirmando que “estavam presentes os
processual ou fática. Situações como essas
requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal”.
lançam ainda mais luz sobre a ausência
Indeferiu, ainda, o pedido de domiciliar pelo fato de o
de legitimidade do sistema de Justiça,
crime ter sido praticado com grave ameaça.
minando a confiança da população em
relação aos profissionais da lei.

90
6. Dados

BELO HORIZONTE

Em Belo Horizonte, um/a custodiado/a foi levado à audiência com um flagrante lavrado pelo crime de
receptação. No entanto, tanto a promotoria quanto o/a juiz/a entenderam que se tratava do crime de
roubo majorado pelo concurso de agentes (junção de mais de uma pessoa para a prática do crime).
Segundo o/a juiz/a, o delegado “costuma enquadrar o fato como receptação para não perder o estado
de flagrância”. Os pedidos formulados pelo Ministério Público foram os de relaxamento da prisão pelo
crime de receptação, justificado pela desclassificação para outro tipo penal (roubo) e, na sequência,
de decretação da prisão preventiva, justificado pela gravidade do delito que se deu mediante concurso
de agentes. Embora o pedido da defesa tenha sido de concessão de liberdade provisória - com base no
tipo penal descrito no auto de prisão em flagrante - justificado pela primariedade do/a custodiado/a,
bem como pelo fato de possuir residência fixa e ocupação lícita, a decisão do/a juiz/a coincidiu com o
pedido da acusação.

6.4.2 Liberdade provisória irrestrita 97

O NÚMERO DE concessões de liberdade Medidas Cautelares (lei 12.403/2011). À


provisória irrestrita é baixíssimo, menor época, alguns especialistas já alertavam
ainda do que o número de relaxamentos para o fato de que as medidas cautelares
do flagrante. não seriam utilizadas como alternativa à
prisão, mas alternativa à liberdade.
Este número - menos de 1% da amostra As concessões de liberdade provisória
total - já é, por si só, indicativo de um irrestrita ocorreram em apenas 23 casos,
cenário de grande resistência por parte de modo que foi possível analisar cada
dos/as magistrados/as em conceder uma dessas situações para identificar
liberdade às pessoas custodiadas sem o algumas tendências.
controle do Estado. Esse problema não
é novo e a discussão vem sendo travada A distribuição dos 23 casos nas diferentes
desde a entrada em vigor da Lei das cidades é a seguinte:

2.584 casos da
amostra

23 TIVERAM LIBERDADE PROVISÓRIA IRRESTRITA


MOGI DAS CRUZES SP OLINDA PE
MACEIÓ AL RECIFE PE
PORTO ALEGRE RS SALVADOR BA
97. A amostra total é SÃO JOSÉ DOS CAMPOS SP RIO DE JANEIRO RJ
de 23 casos. LONDRINA PR

91
O Fim da Liberdade

Das quatro cidades em para negros/as e 42,1% para brancos/as


quando, na amostra total da pesquisa,
que não houve qualquer 64,1% das pessoas custodiadas eram
negros/as e 35,9% eram brancos/as. Entre
concessão de liberdade as pessoas negras, 0,85% receberam
liberdade provisória irrestrita; entre as
sem cautelar, três são brancas, 1,11%.99

capitais - São Paulo, Em contrapartida, analisando as conces-


sões de liberdade por sexo das pessoas
Brasília e Belo Horizonte custodiadas, tem-se uma situação mais
fiel à proporção geral da pesquisa: 20
homens para três mulheres (percentual
de 87% para 13% - relação até um pouco
mais favorável às mulheres se comparar-
mos com a proporção de 91% para 9% da
amostra total).

Duas dessas três mulheres, a propósito,


Interessante notar que, das quatro encaixavam-se no que preveem o Marco
cidades pesquisadas em que não houve
qualquer concessão de liberdade sem
cautelar, três são capitais - São Paulo,
0,85% Legal da Primeira Infância e o Habeas
Corpus coletivo 143.641 concedido pelo
Supremo Tribunal Federal em fevereiro
Brasília e Belo Horizonte. No interior DAS PESSOAS de 2018: uma delas, acusada de porte de
NEGRAS
do Estado de São Paulo, por outro lado, RECEBERAM armas, estava grávida e a outra, acusada
foram nove as concessões de liberdade LIBERDADE de tráfico de drogas, tinha filho menor
provisória irrestrita (seis em Mogi das PROVISÓRIA de 12 anos de idade. O primeiro caso é de
IRRESTRITA
Cruzes e três em São José dos Campos), Maceió e o segundo, de Mogi das Cruzes.
quase 40% da amostra de 23 casos. Além

1,11%
disso, se considerarmos a distribuição de Dos 23 casos, há informação sobre os
decisões nas diferentes cidades, veremos crimes imputados em 17 deles. Destes,
que a região Nordeste apresenta a maior seis eram de tráfico de drogas, três de
variedade de localidades em que os/as porte ilegal de arma de fogo, dois de
ENTRE AS PESSOAS
juízes/as concederam liberdade irrestrita BRANCAS furto, dois de receptação, um de roubo,
- o que nos permite concluir que, lá, um de crimes de trânsito e dois em
talvez haja uma adesão menos intensa concurso (um era de tráfico, associação
ao ideário punitivista (diagnóstico que para o tráfico e porte de armas e ou outro,
é reforçado por outros dados, como a tráfico e associação para o tráfico).
retirada das algemas ou o engajamento do
Ministério Público no encaminhamento O olhar qualitativo requer também que
dos casos em que há relato de violência analisemos a decisão judicial em con-
policial, como se observa em Maceió). junto com os pedidos das partes. Dos 23
Essa hipótese é também corroborada casos, a defesa pediu liberdade provisória
pelas informações referentes aos casos de irrestrita 16 vezes100 (duas delas com
decretação de prisão preventiva. pedidos subsidiários), sendo que nas
outras sete vezes, a defesa requereu o
É interessante pontuar também que relaxamento do flagrante ou até liberda-
destes 23 casos, em 11 as pessoas de provisória com cautelares (no total, a
custodiadas eram negras e em oito, defesa pediu relaxamento do flagrante
brancas.98 Embora em termos absolutos o em 485 casos e pediu liberdade provisória
número de pessoas negras que receberam com medida cautelar em 1.733 casos).
liberdade provisória irrestrita supere o
número de pessoas brancas, em termos O Ministério Público apresentou pedidos
relativos a situação é inversa: 57,9% das de liberdade irrestrita em apenas seis
liberdades irrestritas foram concedidas casos. Portanto, em dez dos 16 casos em

92
6. Dados

FOTO: ALICE VERGUEIRO


que a defesa pediu a liberdade irrestrita, já estava com tornozeleira eletrônica
98. Só havia
o Ministério Público fez pedido diverso: (já comunicada, inclusive). O/A juiz/a informação a respeito
seis vezes, de liberdade com cautelares e justificou sua decisão nos mesmos termos da raça/cor dos(as)
custodiados(as) em 19
quatro vezes, de prisão preventiva. da promotoria. dos 23 casos.
Alguns pontos chamam a atenção na 99. 11 pessoas negras
justificativa dos pedidos e das concessões Ainda, há dois casos em que as justifica- de 1.295 receberam
liberdade provisória
de liberdade. tivas das duas partes e do/a juiz/a coinci- irrestrita, contra 8
pessoas brancas de 719.
dem: primariedade da pessoa custodiada e/
100. Nas outras
Em primeiro lugar, há um padrão de ou o fato de possuir ou não residência fixa. sete vezes, a defesa
concordância entre as justificativas requereu o relaxamento
do flagrante ou até
apresentadas pelo Ministério Público Em um caso de tráfico de drogas em liberdade provisória
e pelo/a juiz/a nos casos em que a Porto Alegre, a defesa alegou que o crime com cautelares.

promotoria pediu a liberdade irrestrita teria sido cometido sem violência ou


e o/a juiz/a a concedeu. Em um caso grave ameaça e que a quantidade de
de Londrina, o Ministério Público droga apreendida era pequena, mas o/a
apenas afirmou que estariam ausentes juiz/a sequer fez menção a esses fatos em
os requisitos do artigo 312 do Código sua justificativa.
de Processo Penal, sem no entanto
especificar o porquê, enquanto que a Um outro caso chama atenção: o Mi-
defesa ressaltou que o/a custodiado/a nistério Público justificou seu pedido de

93
O Fim da Liberdade

liberdade irrestrita pelo fato de a pessoa


custodiada ser policial militar, o que indi-
caria ausência de risco de fuga. O/A juiz/a
fez menção à residência fixa e à ocupação
lícita em sua decisão.

Analisando as justificativas dos pedidos


do Ministério Público de liberdade
provisória com cautelares, nota-se
grande semelhança com as justificativas
apresentadas nos pedidos de liberdade
provisória sem cautelares: réu primário
(três casos), residência fixa (três casos),
não reincidente (um caso), delito leve/
não gravidade do delito (um caso),
pequena quantidade de droga (um
caso) e justificativa genérica/falta de
fundamento para a prisão (um caso).
Esse padrão nos permite concluir que não
há justificativas específicas para o pedido
de imposição de medidas cautelares. Ou
seja: por vezes, os pedidos de liberdade
com cautelar pelo Ministério Público mal
guardam relação com o caso concreto -
pede-se a cautelar simplesmente para
manter o/a custodiado/a sob o controle
do Estado independentemente das
particularidades do caso, partindo-
se do mesmo rol de justificativas que
poderia sustentar um pedido de liberdade medidas cautelares (em seis casos; no
provisória irrestrita. outro, pediu o relaxamento do flagrante).
Preocupa que as defesas não tenham
Por fim, houve sete casos em que a liberdade irrestrita como prioridade
nenhuma das partes pediu a liberdade máxima. Se compete à defesa garantir
irrestrita e o/a juiz/a concedeu de ofício. o melhor interesse do/a cliente ou
Em cinco deles, o pedido do Ministério assistido/a, não cabe a ela fazer cálculos
Público foi pela decretação da prisão para avaliar quando deve insistir na
preventiva e em dois foi pela liberdade liberdade irrestrita.
provisória com medida(s) cautelar(es),
mas chama atenção o fato da própria Chama também atenção que, em quatro
defesa pedir a liberdade provisória com dos sete casos, o crime que deu origem

94
6. Dados

à prisão foi de tráfico de drogas, e em se que a ausência de justificativa clara


três casos a quantidade apreendida era tanto para os pedidos como para as
consideravelmente mais expressiva que decisões sobre liberdade provisória
a maioria dos casos: 280g de maconha irrestrita e medidas cautelares acoberta
no primeiro caso, 1234,8g de maconha análises feitas sem qualquer relação
e 53,5g de cocaína no segundo caso e com o caso concreto, evidenciando a não
105g de maconha e 6,1g de cocaína no individualização da análise e abrindo
terceiro. Em todos eles, o/a custodiado/a brechas para atuações arbitrárias e
tinha residência fixa e era primário/a. No possivelmente influenciadas por um
primeiro e no terceiro casos, as pessoas filtro racial.
eram brancas. O/A custodiado/a do
segundo caso era negro/a e relatou ter
sofrido violência policial no momento
do flagrante.
Cabe questionar, não
Diante dessas situações, cabe questionar,
não o acerto ou erro dessas decisões, o acerto ou erro das
mas a total ausência de critérios para
a decretação da prisão preventiva (ou decisões, mas a total
mesmo da vinculação da liberdade
provisória a medidas cautelares) nos ausência de critérios
muitos outros casos de tráfico em que
a quantidade de droga apreendida era para a decretação da
dezenas ou até centenas de vezes menor
do que nestas três ocasiões. Conclui- prisão preventiva

FOTOS: ALICE VERGUEIRO

95
FOTO: NAJIB KALIL O Fim da Liberdade

6.4.3 Liberdade provisória com cautelar 101

DIFERENTEMENTE DO QUE ocorre com 64,91%;103 São José dos Campos que,

25,6%
as decisões de concessão de liberdade com baixo índice de soltura, condicionou
provisória irrestrita, ou seja, sem a liberdade a alguma medida cautelar
vinculação a qualquer outra medida, em 29,25% dos casos,104 embora tenha
as decisões de liberdade provisória registrado três casos de liberdade É O ÍNDICE DE
condicionada ao cumprimento de medida irrestrita; e, por fim, São Paulo, onde não DECISÕES DE
LIBERDADE EM
cautelar alternativa não são tão escassas. houve nenhum caso de liberdade não PORTO ALEGRE,
Dividindo as atenções com as decisões condicionada a cautelar, e registra 32,1% O MAIS BAIXO
de decretação de prisão preventiva - que de decisões de liberdade com medida ENTRE TODAS
AS CIDADES
representam a maioria dos casos -, as cautelar.105
liberdades concedidas com alguma forma
de controle estatal somam 40,4% dos Porto Alegre apresenta o índice de
casos deste monitoramento. decisões de liberdade com medida
cautelar mais baixo entre todas as cidades:
Cabe aqui mencionar as cidades que apenas 25,6% - contudo, é importante
destoam dessa média: Belo Horizonte, relembrar que, como lá, diferentemente
onde não houve registro de liberdade do restante das cidades, as audiências de
provisória irrestrita, mas em 60% dos custódia funcionam como uma reanálise
casos102 houve concessão de liberdade de decisão anterior que já determinou a
provisória com cautelar; Brasília, prisão, este número não é um parâmetro
onde também não houve concessão de representativo no panorama geral.
liberdade irrestrita, porém o número Uma ressalva com relação às concessões
de liberdades com cautelar alcançou de liberdade provisória na cidade de Feira

96
6. Dados

A possibilidade de
condicionar a liberdade
ao cumprimento de
alguma obrigação tornou-
de Santana merece nota: a equipe de
pesquisa destaca o fato de que, entre os
se uma alternativa à
meses de maio a junho de 2018, houve
uma interdição parcial do Presídio
própria liberdade
Regional de Feira de Santana (que esteve
impedido de receber novos detentos).
Essa conjuntura possivelmente motivou
muitas das concessões de liberdade
provisória em audiência de custódia
no período. Assim, as pessoas presas
em flagrante eram enviadas para a As medidas cautelares (...) deverão ser
carceragem do Complexo de Delegacias, aplicadas observando-se a:
que, desde a interdição, contava com
cerca de oitenta detentos, quando I - necessidade para aplicação da
a capacidade era para apenas vinte. lei penal, para a investigação ou
Possivelmente, se a situação do presídio a instrução criminal e, nos casos
fosse outra, mais prisões preventivas expressamente previstos, para evitar a
teriam sido decretadas. prática de infrações penais;
II - adequação da medida à gravidade
A aplicação das medidas cautelares do crime, circunstâncias do fato e
acontece desde 2011, quando entrou condições pessoais do indiciado ou
em vigor no país a lei 12.403, trazendo acusado. 106
inovação à época de sua promulgação:
possibilidade de concessão de liberdade A lei trouxe aos operadores do direito a
em vez de decretação de prisão, com solução para os casos em que, presentes
a determinação de cumprimento de o fumus commissi delicti (indício de
medidas alternativas para garantir a materialidade e autoria) e o periculum
vinculação da pessoa ao processo. libertatis (perigo de manter o suspeito
em liberdade), a prisão não representa
Fazendo alterações pontuais no Código de uma resposta proporcional ao crime,
Processo Penal, a “Lei das Cautelares”, possibilitando a extensão do controle do
como é conhecida, determina, logo de Estado sobre determinadas pessoas sem
início, que: retirá-las do convívio social. Trouxe a
alternativa à prisão e, para isso, previu
que seria necessário observar a adequação
das medidas aos casos concretos.

Passados oito anos, no entanto, o


que fica cada vez mais claro é que a
possibilidade de condicionar a liberdade
101. A amostra para os casos em que foi possível ao cumprimento de alguma obrigação
acessar a informação sobre a decisão é 2.584, como dito
anteriormente, e a amostra geral para os casos em que foi
tornou-se uma alternativa à própria
concedida liberdade provisória condicionada a uma ou liberdade, e não à sua privação, como
mais medidas cautelares é 1.044.
era o intuito da lei. Ou seja, as medidas
102. Do total de casos acompanhados, ou seja, 380.
cautelares “alternativas à prisão”
103. A amostra para essa questão é de 57 casos, diante
da impossibilidade já relatada de acessar os documentos trazidas pela lei 12.403/2011 não fazem
de onde essa informação era extraída.
diminuir o número de pessoas presas
104. A amostra para essa questão é 212.
provisoriamente, mas o número de
105. Do total dos casos acompanhados, que foram 623.
pessoas livres sobre as quais não recai o
106. Texto do artigo 282 do Código de Processo Penal,
alterado pela lei n. 12.403/2011. controle do Estado.

97
O Fim da Liberdade

Além disso, verifica-se também que a


adequação “à gravidade do crime, cir-
cunstâncias do fato e condições pessoais
do indiciado ou acusado” tampouco pare-
ce ser observada na imposição de medidas
cautelares que condicionam as liberdades
concedidas em audiência de custódia. Isso
porque percebe-se um padrão de uso das
medidas - que se repetem à exaustão e in-
cidem “em bloco” na esmagadora maioria
dos casos -, o que faz crer que inexiste a
preocupação de adequá-las às mais diver-
sas realidades.

Apresentamos abaixo a quantidade de


vezes em que cada medida cautelar pre-
vista no artigo 319 do CPP107 foi imposta,
considerando-se o total de 1.042 casos em
que a liberdade concedida em audiência
foi condicionada ao cumprimento de al-
guma obrigação e que se teve acesso a qual
medida foi imposta.108

40,4%
MEDIDAS CAUTELARES IMPOSTAS

92% COMPARECIMENTO PERIÓDICO EM JUÍZO


DOS CASOS QUE
PASSARAM PELAS
60% PROIBIÇÃO DE AUSENTAR-SE DA COMARCA AUDIÊNCIAS
DE CUSTÓDIA
RESULTARAM EM
41% RECOLHIMENTO DOMICILIAR NO PERÍODO NOTURNO E DIAS DE FOLGA LIBERDADE COM
IMPOSIÇÃO DE
ALGUMA MEDIDA
22% PROIBIÇÃO DE ACESSO OU FREQUÊNCIA A DETERMINADOS LUGARES CAUTELAR

17% FIANÇA

14% MONITORAÇÃO ELETRÔNICA

14% PROIBIÇÃO DE MANTER CONTATO COM PESSOA DETERMINADA

<1% PROIBIÇÃO DE AUSENTAR-SE DO PAÍS


FOTOS: PABLO PADILLA

<1% SUSPENSÃO DO EXERCÍCIO DE FUNÇÃO PÚBLICA OU DE ATIVIDADE DE NATUREZA ECONÔMICA


/ NIUNIU

<1% INTERNAÇÃO PROVISÓRIA

98
6. Dados

Como se vê, a soma ultrapassa os 100% que houve imposição de alguma medida
de vezes em que a audiência de custódia sem previsão legal, elevando a média
teve como desfecho a concessão de lber- de medidas impostas para cada caso de
dade provisória mediante cumprimento liberdade condicionada concedida a 2,9.
de alguma obrigação, o que quer dizer Destaca-se abaixo algumas obrigações
que para cada um dos casos foi imposta registradas nesses casos:
mais de uma medida. Considerando-se
apenas as medidas cautelares arroladas
no artigo 319 do CPP, impôs-se uma mé-
dia de 2,6 medidas para cada caso.109
No entanto, observou-se em alguns MEDIDAS
casos a imposição de medidas cautelares CAUTELARES SEM
não previstas em lei. PREVISÃO LEGAL

Dessa forma, soma-se aos casos acima


mencionados, outros 325 (31,19% do total
dos casos de liberdade condicionada ao 7 casos
cumprimento de alguma obrigação) em 48 c a s o s FREQUÊNCIA
A CURSO DA
CENTRAL DE PENAS
TRATAMENTO PARA ALTERNATIVAS
USO DE DROGAS

5 casos 3 casos
RECOLHIMENTO APRESENTAÇÃO
DOMICILIAR COM DE COMPROVANTE
FUNÇÃO/PERÍODO DE RESIDÊNCIA
PRÉ-DETERMINADOS

1 caso 1 caso
REGISTRO DE COMPROVAÇÃO
SITUAÇÃO DE RUA DE MATERNIDADE
NA SECRETARIA
MUNICIPAL DE
ASSISTÊNCIA SOCIAL

1 caso
COMPROVAÇÃO
DE VÍNCULO
EMPREGATÍCIO

107. O mencionado artigo prevê um rol taxativo de de infrações penais; VII - internação provisória do acusado
medidas cautelares, quais sejam: “I - comparecimento nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave
periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou
juiz, para informar e justificar atividades; II - proibição de semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de
acesso ou frequência a determinados lugares quando, por reiteração; VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para
circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a
acusado permanecer distante desses locais para evitar o obstrução do seu andamento ou em caso de resistência
risco de novas infrações; III - proibição de manter contato injustificada à ordem judicial; IX - monitoração eletrônica.”
com pessoa determinada quando, por circunstâncias 108. Esclarece-se que, embora o número de decisões
relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela nesse sentido tenha sido de 1.044, em dois casos não foi
permanecer distante; IV - proibição de ausentar-se possível coletar a informação sobre qual(is) medida(s)
da Comarca quando a permanência seja conveniente foi(foram) imposta(s); por isso a amostra para essa questão
ou necessária para a investigação ou instrução; V - é 1.042.
recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de
folga quando o investigado ou acusado tenha residência e 109. Considerou-se o total de casos para os quais a
trabalho fixos; VI - suspensão do exercício de função pública resposta sobre quais cautelares foram aplicadas foi possível
ou de atividade de natureza econômica ou financeira de ser obtida, ou seja, 1.042. A média foi calculada com base
quando houver justo receio de sua utilização para a prática na soma do total de medidas, que é 2.708.

99
O Fim da Liberdade

MEDIDAS CAUTELARES IMPOSTAS POR CRIME


M A I S D E U M A P O D I A S E R I M P O S TA A O M E S M O T E M P O

ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO

VIOLÊNCIA CONTRA MULHER


PORTE ILEGAL DE ARMAS
FURTO QUALIFICADO

ROUBO MAJORADO
ROUBO SIMPLES
FURTO SIMPLES
CRIMES DO CTB

RECEPTAÇÃO

TRÁFICO
COMPARECIMENTO EM JUÍZO 96% 97% 97% 98% 93% 92% 85% 97% 95% 73%

MONITORAÇÃO ELETRÔNICA 21% 3% 8% 9% 21% 7% 5% 18% 28% 14%

PROIBIÇÃO DE ACESSO A LUGAR 18% 31% 15% 25% 10% 21% 13% 39% 15% 47%

PROIBIÇÃO DE CONTATO
COM PESSOA 6% 6% 5% 3% 5% 8% 9% 5% 78%

PROIBIDA AUSÊNCIA
DA COMARCA 68% 60% 64% 66% 57% 63% 60% 58% 56% 56%

PROIBIDA AUSÊNCIA
DO PAÍS 1% 1%

RECOLHIMENTO NOTURNO 36% 26% 38% 43% 53% 45% 50% 70% 56% 25%

SUSPENSÃO DE
FUNÇÃO PÚBLICA 1% 1%

FIANÇA 49% 8% 22% 36% 34% 5% 3% 8%

TRATAMENTO DE DROGAS 5% 6% 1% 20% 3% 4% 3%

INTERNAÇÃO PROVISÓRIA 5%

OUTRAS 21% 40% 28% 23% 23% 17% 23% 27% 28% 51%

100
6. Dados

Chama atenção a frequência com que os/ É interessante notar a preferência dos/
110. Considera-se,
as magistrados/as se sentem confortáveis as magistrados/as pela medida de aqui, a frequência de
para impor medidas não previstas em comparecimento periódico em juízo, que cada categoria de crime
- para daí calcular, desta
lei, exercendo sua função de garantir a aparece em quase a totalidade dos casos frequência, o número
aplicação da lei da forma mais arbitrária de liberdade condicionada (91,94%). Essa de liberdades com
cautelares - a partir de
possível - interferindo na liberdade de é a medida que representa, atualmente, uma amostra total de
2309 casos (número de
alguém sem que sua interferência esteja maior controle por parte do Estado casos com informação
prevista em lei. com menor esforço, mas sua imposição sobre o crime e sobre a
decisão dentre os 2313
generalizada mostra que os/as juízes/ casos cujas categorias
A rigor, entende-se que esses casos de- as desconsideram a dificuldade que seu de crimes optamos
por considerar nesta
veriam importar em liberdade provisória cumprimento pode representar à pessoa pesquisa).
irrestrita pois, se não estavam presen- sobre a qual a obrigação recai.
tes os requisitos legais que permitem a
imposição de medida cautelar, não cabe Conforme já mencionado anteriormente,
ao/à juiz/a impor barreiras ou condições 37,6% declararam possuir renda variável
à concessão da liberdade - que, frise-se, (isto é, calculada com base em dias
não estão elencadas no rol de medidas trabalhados). Impor a alguém o dever
cautelares do artigo 319 do CPP. se de deslocar até o fórum – e lá perder
algum tempo, pois é comum ter fila
Elenca-se ao lado o número de para entrar e ser atendido – em um dia
liberdades com medidas cautelares para útil significa impedir que esta pessoa
cada categoria.110 dedique este dia ao trabalho, impactando
FOTO: NEONBRAND

101
O Fim da Liberdade

diretamente sua renda. Além disso, o presunção de inocência e o processo


próprio deslocamento ao fórum, para penal, impondo uma expectativa de que 111. A amostra para
essa questão é 2.731,
algumas pessoas, representa um ônus o Estado deve manter sob controle e mas a porcentagem
financeiro difícil de ser custeado. supervisão a pessoa acusada de um crime. dos pedidos somados
supera os 100% pela
Algum impacto na decretação de prisão possibilidade de
realização de mais de
Outra afirmação que se pode fazer - e preventiva foi de fato observado, um pedido (“pedidos
tendo em vista o baixíssimo número considerando que houve situações em que subsidiários”).
de concessão de liberdades irrestritas a liberdade provisória com cautelar foi 112. A amostra para
essa questão é 896.
mostrado anteriormente - é que não se concedida a pessoas acusadas de roubo,
113. A amostra para
vislumbram mais hipóteses de liberação mas isso não representa a mudança de essa questão é 2.426.
da pessoa desvinculada do cumprimento mentalidade esperada.
de algumas obrigações, nem sequer
nos crimes cometidos sem violência ou Não só ao/à juiz/a recai a crítica sobre o
ameaça com penas máximas baixas, como excesso de restrição da liberdade. De todos
é o caso do furto simples e da receptação, os pedidos formulados pelo Ministério
por exemplo, cuja pena máxima prevista Público a que se teve acesso nesse
na lei é de quatro anos. monitoramento,111 em 33% dos casos
foi requerida a liberdade condicionada a
É preocupante observar que a lei 12.403 alguma medida cautelar (em comparação
não foi capaz de romper com o binômio com 2,34% de pedidos de liberdade
prisão-liberdade antes vigente, mas irrestrita). Nesses pedidos, observou-se a
serviu para reforçar a dissociação entre menção às seguintes cautelares:112

PROIBIÇÃO DE
COMPARECIMENTO ACESSO OU PROIBIÇÃO DE
PERIÓDICO FIANÇA FREQUÊNCIA A AUSENTAR-SE DA
EM JUÍZO DETERMINADOS COMARCA
LUGARES
50,33% 21,65% 8,37% 28,9%
DOS CASOS DOS CASOS DOS CASOS DOS CASOS

PROIBIÇÃO DE RECOLHIMENTO
MANTER CONTATO INTERNAÇÃO MONITORAÇÃO
DOMICILIAR NO
COM PESSOA PROVISÓRIA ELETRÔNICA
PERÍODO NOTURNO
DETERMINADA

9,4% 18,97% 0,33% 12,17%


DOS CASOS DOS CASOS DOS CASOS DOS CASOS

TRATAMENTO
PROIBIÇÃO DE OUTRAS NÃO
PARA USO DE
AUSENTAR-SE ESPECIFICADAS
DROGAS (SEM
FOTO: JOSHUA GRESHAM /

DO PAÍS EM LEI
PREVISÃO LEGAL)
ALICE VERGUEIRO

0,33% 1,9% 9,6%


DOS CASOS DOS CASOS DOS CASOS

102
6. Dados

Houve, ainda, 30,92% de casos em que


não mencionou nenhuma cautelar,
Não se vislumbram mais
deixando à escolha do/a juiz/a o tipo de
medida a ser aplicada.
hipóteses de liberação
Quando se trata da defesa,113 também
da pessoa desvinculada
se vê uma sobreposição no número de
pedidos de liberdade com cautelar, se
do cumprimento de
comparado ao número de pedidos de
liberdade irrestrita: 63,54% e 42,06%,
algumas obrigações,
respectivamente. O relativo alto número
de pedidos de liberdade com medida
nem sequer nos crimes
cautelar à primeira vista causa espanto,
pois indica que a defesa tem aberto
cometidos sem violência
mão da disputa pela liberdade irrestrita
com bastante frequência. Vê-se que a
expectativa de controle estatal sobre
as vidas das pessoas acusadas também
habita a mentalidade defensiva.

Nas audiências de custódia em que a de-


fesa foi realizada pela Defensoria Pública
(1.737 casos nos quais foi possível coletar
essa informação), em 63,5% houve pedido
de liberdade com cautelar e em 41,62%,
de liberdade sem cautelar. Nas audiências
em que a defesa foi realizada por advoga-
do/a constituído/a (564 casos), em 65,1%
houve pedidos de liberdade com cautelar e
em 36,7%, de liberdade sem cautelar.

103
O Fim da Liberdade

Outro ponto que merece atenção é questão que se coloca nesse cenário é: que
a quantidade de medidas cautelares concepção de liberdade orienta o discurso
aplicadas a uma mesma pessoa. Em quase e a prática dos operadores do direito?
88% dos casos de liberdade provisória
condicionada a medidas cautelares, O diagnóstico reforça que o controle do
o/a juiz/a aplicou mais de uma medida. Estado sobre as pessoas custodiadas
Foram 37% de casos com aplicação de vai muito além da prisão preventiva:
duas medidas, 27,2% de casos com a quantidade de cautelares traduz
aplicação de três medidas e 22,3% de uma lógica de vigilância constante e
casos com aplicação de quatro ou mais de necessidade de estender o controle
medidas cautelares. Em Maceió, Recife e estatal sobre os indivíduos. A liberdade
Londrina, este último cenário é a regra: passa a ser condicionada.
das liberdades com cautelar nestas
cidades, houve aplicação de quatro ou É preocupante verificar que a liberdade
mais medidas em 63,2%, 45,2% e 35,4% não deixou de ser uma opção aos/às
das vezes, respectivamente.114 magistrados/as apenas, ela passou a
ser a exceção em toda a engrenagem
As combinações mais frequentes de do sistema de Justiça. Ainda que
medidas cautelares são dadas pelos determinadas medidas não sejam
gráficos abaixo: objeto de fiscalização, percebe-se que a
expectativa de controle se mostra como
Como se vê, o uso indiscriminado dessas uma opção preferível à preservação da
medidas é a regra nos casos em que há liberdade daquela pessoa que sequer
concessão de liberdade provisória. A foi denunciada.

MEDIDAS CAUTELARES IMPOSTAS


número de casos

COMPARECIMENTO RECOLHIMENTO PROIBIÇÃO DE MONITORAÇÃO PROIBIÇÃO DE OUTRAS


EM JUÍZO DOMICILIAR AUSENTAR-SE ELETRÔNICA ACESSO A LUGAR MEDIDAS 178

COMPARECIMENTO RECOLHIMENTO PROIBIÇÃO DE MONITORAÇÃO PROIBIÇÃO DE OUTRAS


EM JUÍZO DOMICILIAR AUSENTAR-SE ELETRÔNICA ACESSO A LUGAR MEDIDAS 64

COMPARECIMENTO RECOLHIMENTO PROIBIÇÃO DE MONITORAÇÃO PROIBIÇÃO DE OUTRAS


EM JUÍZO DOMICILIAR AUSENTAR-SE ELETRÔNICA ACESSO A LUGAR MEDIDAS 62

COMPARECIMENTO RECOLHIMENTO PROIBIÇÃO DE MONITORAÇÃO PROIBIÇÃO DE OUTRAS


EM JUÍZO DOMICILIAR AUSENTAR-SE ELETRÔNICA ACESSO A LUGAR MEDIDAS 53

COMPARECIMENTO RECOLHIMENTO PROIBIÇÃO DE MONITORAÇÃO PROIBIÇÃO DE OUTRAS


EM JUÍZO DOMICILIAR AUSENTAR-SE ELETRÔNICA ACESSO A LUGAR MEDIDAS 52

COMPARECIMENTO RECOLHIMENTO PROIBIÇÃO DE MONITORAÇÃO PROIBIÇÃO DE OUTRAS


EM JUÍZO DOMICILIAR AUSENTAR-SE ELETRÔNICA ACESSO A LUGAR MEDIDAS 36

COMPARECIMENTO RECOLHIMENTO PROIBIÇÃO DE MONITORAÇÃO PROIBIÇÃO DE OUTRAS


EM JUÍZO DOMICILIAR AUSENTAR-SE ELETRÔNICA ACESSO A LUGAR MEDIDAS 34

COMPARECIMENTO RECOLHIMENTO PROIBIÇÃO DE MONITORAÇÃO PROIBIÇÃO DE OUTRAS


EM JUÍZO DOMICILIAR AUSENTAR-SE ELETRÔNICA ACESSO A LUGAR MEDIDAS 34

SEM INFORMAÇÕES 148

124 OUTRAS COMBINAÇÕES 502

104
6. Dados

FOTO: WELCOMIA
70%
É O ÍNDICE DE
DECRETAÇÃO
DE PRIÃO
PREVENTIVA EM
PORTO ALEGRE,
O MAIOR DO
MONITORAMENTO

6.4.4. Decretação de prisão preventiva 115

AS DECRETAÇÕES DE prisão preventiva custódia significa uma reanálise do caso,


somam mais da metade do levantamento, ou seja, depois de decisão proferida de
alcançando índices bastante altos em ofício pelo/a juiz/a, apenas as pessoas
determinadas localidades. cuja prisão foi decretada passam pela
audiência de custódia. Nesta reanálise,
A cidade de Porto Alegre116 traz o maior portanto, 30% das pessoas são colocadas
índice de decretação de prisão preventiva em liberdade, indicando a importância
no monitoramento, 70%. Cabe lembrar da realização das audiências de custódia
que, na capital gaúcha, a audiência de - já que, se não tivessem realizado as
audiências, elas ficariam presas sem que
essa medida extrema fosse necessária.

Em condições normais de realização


das audiências de custódia, as cidades
do Estado de São Paulo apresentam os
114. As amostras são: 38 casos em Maceió, 42 casos em
Recife e 48 casos em Londrina.
índices mais elevados de decretação
115. A amostra total é de 1.451 casos para prisão preventiva de prisão preventiva: 66,1% na capital,
e dez para aplicação de prisão domiciliar. 62,8% em Mogi das Cruzes e 67,9% em
116. Amostra: 90 casos. São José dos Campos.117
117. As amostras para estas cidades são, respectivamente,
623, 288 e 212 casos. Estas porcentagens referem-se às
decretações de prisão preventiva em modalidade e às Em relação ao monitoramento anterior,
conversões em prisão domiciliar (visto ser uma modalidade
de prisão preventiva). Os índices para essas decisões – prisão a taxa de decretação de prisão preventiva
preventiva comum e prisão domiciliar – em cada cidade são, na capital paulista cresceu 32,2%: passou
respectivamente: 65,5% x 0,64% (São Paulo), 62,8% x 0%
(Mogi das Cruzes) e 67% x 0,94% (São José dos Campos).” de metade a praticamente dois terços

105
O Fim da Liberdade

das decisões.118 Nesse cenário, ressalta-se Por outro lado, em algumas das
que 84,5% dos casos de tráfico de drogas cidades monitoradas pelo IDDD tanto
(sem concurso de crimes) ensejaram prisão em 2016 quanto em 2018, a situação
preventiva. Se considerarmos também os melhorou bastante: em Recife, a taxa de
casos em que o tráfico foi combinado com decretação de prisão preventiva passou
outros crimes, o índice cresce para 85,5%.119 de 61% para 49,4%; em Brasília, de
A situação fica ainda mais problemática se 47,2% para 33,3%; e em Belo Horizonte,
considerarmos que, dos 623 casos acompa- de 53,6% para 37,6%. No Rio de Janeiro,
nhados na cidade de São Paulo, em nenhum mesmo sob intervenção federal durante
houve concessão de liberdade provisória 2018, o índice caiu timidamente: de
sem medidas cautelares. 63,4% para 62,4%.120

CRIMES QUE MAIS GERARAM PRISÃO PREVENTIVA

100% ROUBO + PORTE DE ARMAS

89% TRÁFICO + ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO + PORTE DE ARMAS

85% ROUBO (SIMPLES OU MAJORADO)

83% LATROCÍNIO

82% TRÁFICO + PORTE DE ARMAS

81% ROUBO + RECEPTAÇÃO

76% HOMICÍDIO

75% TRÁFICO + ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO

75% RECEPTAÇÃO + PORTE ILEGAL DE ARMAS

67% TRÁFICO

64% FURTO + RECEPTAÇÃO

57% TRÁFICO + RECEPTAÇÃO

50% FEMINICÍDIO

46% ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO

45% PORTE DE ARMAS

33% FURTO (SIMPLES OU QUALIFICADO)

31% VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

28% RECEPTAÇÃO

25% LESÃO CORPORAL GRAVE OU GRAVÍSSIMA

23% LESÃO CORPORAL GRAVE OU GRAVÍSSIMA + VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

17% DANO

17% CRIMES DE TRÂNSITO

106
6. Dados

Na contramão do que ocorre em São Paulo,


o estado com menor taxa de decretação
de prisão preventiva é a Bahia: 36,2% em
Salvador e 28,6% em Feira de Santana.121

Além disso, analisando o perfil das


pessoas custodiadas e de tipos penais
com maior incidência de decretação de
prisão preventiva, vemos que os dados
corroboram a apresentação trazida pelos
itens 6.1.1 e 6.1.2 acima: em números
absolutos, a maioria das pessoas presas
após a audiência de custódia é do sexo
masculino (93,6%) e negra (64,5%).122
A raça, portanto, também se manifesta
como marcador de desigualdade nos
resultados das audiências de custódia.

Do quadro ao lado, destacamos algumas


conclusões:

1 2
118. Nos dados divulga-
dos pelo relatório do IDDD
de 2017, o índice de decre-
tações de prisão preventiva
na cidade de São Paulo era
de 50%. Hoje, este número
O concurso de crimes afeta é de 66,1% (numa amostra
O tráfico de drogas é o pri- de 623 casos).
expressivamente o resultado da
meiro crime não violento com 119. A amostra dos casos
audiência - o índice de decre- de tráfico de drogas na
maior índice de decretação
tação de prisão preventiva é cidade de São Paulo é de
de prisão preventiva, ficando 139 casos (sem concurso) e
muito mais alto nos casos em 159 casos (ao todo).
à frente, inclusive, de crimes
que há concurso de crimes 120. As amostras para os
como feminicídio e lesão dados no monitoramento
(lembrando que pessoas negras de 2018 são, em número de
corporal grave ou gravíssima
tendem a ser mais acusadas casos: 87 (Recife), 57 (Brasí-
(inclusive em concurso com lia), 380 (Belo Horizonte) e
em concurso de crimes do que 389 (Rio de Janeiro).
violência contra a mulher);
pessoas brancas); 121. As amostras para
estas cidades são 149
(Salvador) e 28 (Feira de
Santana). Importante lem-
brar, contudo, que o baixo
índice de decretações de

3 4
prisão em Feira de Santana
podem ser explicados
pela incapacidade de o
presídio local comportar
mais pessoas durante os
meses de monitoramento,
conforme apontado pelos/
Proporcionalmente, os as pesquisadores/as e trazi-
O roubo, isoladamente ou em
crimes de trânsito foram os do aqui no item 4 sobre os
concurso, é o crime que mais contextos locais.
que geraram o maior índice
enseja a decretação de prisão 122. Amostra: 1.461 (sexo)
de liberdade provisória com e 1.167 (raça/cor).
preventiva (mais até do que
cautelares e o menor índice
o homicídio ou a violência
de prisão preventiva. Estão
contra a mulher). Ao todo, nos
também entre os que levaram
casos em que houve roubo a
proporcionalmente o maior
prisão foi decretada em 85%
número de pessoas brancas à
das vezes (453 de 533);
audiência de custódia.
FOTO: STÉFANY SEIXAS
/ SECOM

107
O Fim da Liberdade

Além disso, um olhar mais aprofundado Nos pedidos e decisões de decretação


para as justificativas e fundamentações de prisão preventiva, a garantia da 123. Os dados comple-
tos de comparação entre
dos pedidos de prisão feitos pelo Minis- ordem pública, talvez por sua excessiva os pedidos das partes e
as decisões judiciais se-
tério Público e das decisões judiciais que amplitude conceitual, surge como rão trazidos em detalhe
acompanharam o pedido da promotoria principal fundamento na grande maioria ao final deste capítulo.
indica que há uma tendência expressiva dos casos. O Ministério Público invoca 124. Idem.

da magistratura em seguir mais o pedido este critério em 71,6% das vezes nas quais 125. O Ministério Públi-
co utiliza estas justifica-
da acusação do que o da defesa.123 pede a prisão preventiva; já o/a juiz/a o tivas em 46,2% e 32,8%
dos casos em que pede
menciona em 76,2% das decisões nas a prisão, respectivamen-
A esse respeito, o caput do artigo 312 quais decreta a prisão. te (amostra: 1679 casos);
e o(a) juiz(a), em 47,5% e
do Código de Processo Penal apresenta 43% dos casos em que
quatro grandes critérios para justificar a A conveniência da instrução criminal é o decreta a preventiva
(amostra: 1380 casos).
decretação de prisão preventiva por parte segundo fundamento mais invocado nas
126. As amostras para
do/a juiz/a: decisões (32%), seguido da necessidade de estes casos são: 1557
(trabalho informal) e 362
assegurar a aplicação da lei penal (29,9%) (trabalho formal).
Art. 312. A prisão preventiva poderá e, por último, da garantia da ordem 127. As amostras para
ser decretada como garantia da ordem econômica (2,76%). Nos pedidos de prisão estes casos são de 1.322
casos.
pública, da ordem econômica, por feitos pelo Ministério Público, a tendência
conveniência da instrução criminal, é similar, com a ressalva apenas de que a
ou para assegurar a aplicação da menção à necessidade de aplicação da lei
lei penal, quando houver prova da penal é um pouco mais comum do que a
existência do crime e indício suficiente conveniência da instrução criminal (20%
de autoria. (grifos nossos) contra 14,1%, respectivamente).

108
6. Dados

MARCELO CAMARGO/AG BRASIL


FOTO: ALICE VERGUEIRO /
Chama a atenção, ainda, a proporção de
casos em que, no pedido do/a promotor/a
ou na decisão do/a juiz/a, não houve men-
ção explícita aos elementos do artigo 312
do Código de Processo Penal - ou, se hou-
ve, apenas mera paráfrase do artigo. Esta
situação ocorreu em 20,6% dos casos em
que o Ministério Público pediu a decre-
tação da prisão e em 14,6% dos casos em
que o/a juiz/a a decretou. Ou seja: nestes
casos, ou o Ministério Público e o/a juiz/a
nem citaram o artigo 312 do CPP ou cita-
ram sem explicar qual dos elementos do
artigo se encaixaria ao caso concreto.124

O IDDD manifesta sua preocupação


diante desse fato por entender que,
se já é grave privar uma pessoa de sua
liberdade com base em fundamentos
genéricos, abstratos e desvinculados
do caso concreto, é ainda mais grave
fazê-lo quando não há sequer menção ao Interessantemente, a maioria destes ca-
fundamento legal que sustenta a prisão. sos era de tráfico de drogas (nas justifica-
Fazer menção genérica a fundamentos tivas de gravidade abstrata apresentadas
já genéricos não satisfaz a finalidade de pelo Ministério Público, 28,6% para os
individualização da decisão para cada casos sem concurso e 40,9% para os casos
custodiado/a. com concurso; e, nas mesmas justificati-
vas apresentadas pelos/as juízes/as, 38,8%
As justificativas apresentadas para para os casos sem concurso e 58,5% para
além dos critérios elencados pelo CPP os casos com concurso).
também apontam para uma tendência
de compatibilidade entre a posição Somada a isso, a ausência de residência
da promotoria e do/a juiz/a quanto à fixa e ocupação lícita é outro critério invo-
decretação da prisão preventiva. Na cado para justificar a decretação de prisão
fala dos dois atores, a justificativa mais preventiva. A questão do trabalho é, aliás,
comum é de que o/a custodiado/a tem um fator com considerável influência
antecedentes criminais (reincidência, sobre o resultado da audiência de cus-
incluindo ato infracional), seguida de seu tódia: 69,3% das pessoas que receberam
potencial risco de reiteração delitiva.125 preventiva disseram trabalhar informal-
mente, ao passo que as que as pessoas
A gravidade concreta do delito - assim com trabalho formalizado representam
entendida quando há menção a elementos 11,4% do total de pessoas custodiadas.126

76,2%
do caso em questão - foi utilizada como
justificativa em 30,4% dos casos pelo Outro fator igualmente importante para
Ministério Público e em 38,5% dos casos o desfecho da audiência é a existência de
pelo/a juiz/a. Já a gravidade abstrata - que confissão informal, pelo/a custodiado/a,
se limita a indicar, em termos genéricos, DAS VEZES O/A da prática do crime (segundo a autoridade
JUIZ/A INVOCA
o porquê de determinado tipo penal ser A GARANTIA policial). Em 57,9% dos casos nos quais o/a
um crime grave - surgiu em 24,7% dos DA ORDEM policial afirmou, em seu depoimento, ter
pedidos de prisão pelo Ministério Público PÚBLICA PARA havido confissão informal por parte do/a
DETERMINAR
e em 13,4% das justificativas apresentadas A PRISÃO
acusado/a no momento da abordagem, o/a
pelas decisões judiciais. PREVENTIVA juiz/a decretou a prisão preventiva.127

109
O Fim da Liberdade

6.4.5 Convergência
entre pedidos
e decisões
AO FALAR DA efetividade da audiência
de custódia para garantir uma análise
mais cuidadosa sobre a necessidade da
prisão, bem como sobre as circunstâncias
pessoais da pessoa custodiada, cria-se
a expectativa de que o/a magistrado/a
aproveitará aquele momento para
conhecer de perto a situação submetida
à sua análise e formará sua convicção a
partir de diversos elementos que forem
apresentados. Acreditando que as partes
envolvidas - defesa e acusação - estão
em equilíbrio, poderia se esperar que
houvesse também algum equilíbrio
entre as vezes em que cada parte sai
vitoriosa em seu pleito. Ocorre que, ao
analisar a taxa de convergência entre o
pedido elaborado pelas partes e a decisão
proferida pelo/a juiz/a, verifica-se que,
na esmagadora maioria das vezes, a
magistratura está alinhada com o pleito
do Ministério Público.

Com base nos pedidos principais de


cada parte, temos que em 85,5% dos
casos há convergência entre o pedido do
MP e a decisão, enquanto que a decisão
converge com o pedido da defesa em
apenas 6,96% dos casos. Quando defesa e
Ministério Público convergem, a decisão

TAXA DE CONVERGÊNCIA ENTRE DECISÃO E PEDIDOS

LIBERDADE LIBERDADE DECRETAÇÃO APLICAÇÃO


RELAXAMENTO
PROVISÓRIA PROVISÓRIA COM DE PRISÃO DE PRISÃO
DO FLAGRANTE
IRRESTRITA CAUTELAR PREVENTIVA DOMICILIAR
PEDIDO... DE...

PRINCIPAL MP DEFESA 0% 0% 91% 85% 38%

PRINCIPAL MP DEFESA 4% 1% 15% 0%

PRINCIPAL MP DEFESA 80% 12% 91% 100% 33%

110
6. Dados

6.5 Mulheres:
os acompanha em 83,6% dos casos.128
Isso significa que é mais frequente a

gravidez e filhos
convergência entre MP e juiz/a do que
entre as três esferas.

Preocupa a constatação de que mesmo


quando defesa e Ministério Público EM RELAÇÃO ÀS mulheres, a pesquisa
concordaram que a liberdade provisória também se preocupou com a questão
irrestrita era a melhor solução, houve dos filhos, especialmente no que tange
divergência por parte do/a juiz/a, que em à substituição da prisão preventiva por
quase 88% dos casos, decide divergindo prisão domiciliar para gestantes e/ou
das duas partes. mães de filhos de até 12 anos e/ou com
alguma deficiência, conforme determina
Quando MP e defesa pedem que seja o Marco Legal de Atenção à Primeira
concedida liberdade provisória com Infância (lei 13.257/16) e conforme decidiu
medida cautelar, o/a juiz/a concorda em o Supremo Tribunal Federal em fevereiro
90,8%, mas em 8% diverge para decidir de 2018, ao julgar o Habeas Corpus
pela decretação da prisão preventiva coletivo 143.641.
embora não tenha sido esse o pedido
do Ministério Público. Considerando Na ocasião deste julgamento, a Corte Su-
apenas esses 8%, os crimes mais comuns perior determinou que todas as mulheres
são: 25% roubo (simples ou majorado), gestantes, puérperas e/ou com filhos de
22,5% tráfico de drogas, 7,5% tráfico de até 12 anos incompletos (e/ou com alguma
drogas e associação para o tráfico e 7,5% deficiência) que estivessem presas teriam
furto (simples ou qualificado). o direito de ter a prisão comum substituí-
da pela prisão domiciliar, salvo na hipóte-
Independentemente de quais crimes se de crimes praticados com violência ou
estavam sob análise, o/a juiz/a não grave ameaça contra seus descendentes
pode extrapolar os limites daquilo ou em outras situações excepcionalís-
que é pleiteado pelas partes impondo simas, ocasiões nas quais se exigiria
uma medida mais gravosa. São essas fundamentação judicial apropriada para
situações que expõem o desafio que impedir a substituição prisional.
ainda precisa ser enfrentado no
âmbito do Poder Judiciário - que, em No formulário A, criamos um quadro
parte, acredita ter o papel de agente separado para analisar a situação destas
de segurança pública para atuar com mulheres com o intuito de avaliar se e em
um viés de combate à criminalidade, e que medida a decisão do STF tem ou não
não de garantidor de um processo e um sido implementada pelos/as juízes/as nas
julgamento justos e equilibrados. audiências de custódia.

O gráfico ainda revela outro dado


perturbador: a defesa pediu a
decretação da prisão preventiva em
oito casos. Embora esse número seja
percentualmente irrelevante (0,3% do
total), não deixa de ser alarmante o fato
de existirem situações em que a defesa
pede que seja decretada a
prisão preventiva.
FOTOS: KYRYLL USHAKOV /
OLEG KARINA

128. Os casos em que MP e defesa convergem não


estão contabilizados nas informações sobre convergên-
cia entre defesa e decisão e entre MP e decisão.

111
O Fim da Liberdade

Uma ressalva importante: no Habeas Logo, sobretudo nesses casos mais


Corpus coletivo 143.641, o pedido principal delicados de mulheres gestantes 129. Instituto Terra,
Trabalho e Cidadania.
era pela concessão de liberdade às e mães de crianças menores de 12 Mulheres Sem Prisão:
mulheres que cumprissem esses critérios anos e/ou com alguma deficiência, enfrentando a (in)
visibilidade das mulheres
e estivessem presas - subsidiariamente, ressaltamos que a liberdade deveria ser submetidas à justiça
requereu-se a substituição para prisão a regra. Subsidiariamente, portanto, criminal. São Paulo: 2019.
Disponível em: https://
domiciliar. Entretanto, diante das a substituição pela prisão domiciliar bit.ly/2KVHXuG.
determinações previstas pelo Marco representa sim um progresso (embora
Legal de Atenção à Primeira Infância, o não um ponto de chegada), mas,
STF concedeu apenas o pedido subsidiário. infelizmente, o que se observou neste
Apesar disso, entendemos que, não monitoramento é que muitas mulheres
obstante represente um importantíssimo que se encaixam na descrição do Habeas
avanço, a prisão domiciliar também é Corpus 143.641 não têm tido seu direito
uma restrição com sérias implicações à prisão domiciliar respeitado pelos
para as mulheres, visto que as impede operadores nas audiências de custódia.
de sair de casa, comprometendo assim a – informação reforçada pelo relatório
possibilidade de trabalharem e proverem “Mulheres Sem Prisão: enfrentando
o sustento de seus filhos, muitas vezes a (in)visibilidade das mulheres
seus dependentes exclusivos, ou até de submetidas à justiça criminal”,
acompanharem seus filhos em ativida- publicado em 2019 pelo Instituto Terra,
des externas. Trabalho e Cidadania (ITTC)129
FOTO: MIGUEL ANGEL HERRERA

112
6. Dados

O universo de mulheres neste MATERNIDADE ENTRE


levantamento é de 253. Deste total, 68 MULHERES CUSTODIADAS
mulheres não foram perguntadas sobre

2.774
gravidez ou filhos (numa amostra de 240
casos do
casos com informação). Destas, 55 nada levantamento
disseram e 13 falaram espontaneamente.
Isso demonstra que para 22,9% das 253
custodiadas sequer há como avaliar se SÃO DE
a garantia prevista pelo STF foi ou não MULHERES
cumprida, pois nem se sabe se têm filhos
ou se estavam grávidas. O número de 68 172
mulheres que foram perguntadas sobre
NÃO FORAM FORAM
gravidez e/ou filhos, ou que falaram de PERGUNTADAS PERGUNTADAS
forma espontânea, é de 185 – mas só SOBRE GRAVIDEZ
há informação sobre a resposta dessas
mulheres em relação a gravidez em
135 casos. Em 19 destes 135 (14,1%), a
custodiada respondeu afirmativamente
que estava grávida.
13
Em relação aos filhos, há informação
13 SEM
sobre a resposta das custodiadas em INFOS
180 dos 185 casos em que a questão foi FALARAM
55 ESPONTANEAMENTE
trazida. Destas 180, 135 (75%) tinham
filhos menores de 12 anos e/ou com NADA
alguma deficiência. DISSERAM

A soma das custodiadas mães de filhos


entre as que foram perguntadas
menores de 12 anos e as custodiadas ou falaram espontaneamente
gestantes representa 83,2% dos casos de
mulheres em que houve alguma menção
à questão da gravidez e/ou dos filhos.
Esses dados pedem especial atenção no
18 19
quesito aplicação de prisão domiciliar
RESPONDERAM DISSERAM
(caso a primeira decisão fosse pela prisão
NEGATIVAMENTE 135 ESTAR
preventiva) para as mulheres custodiadas. GRÁVIDAS
DISSERAM TER
Em números brutos, a situação das
13 FILHOS MENORES DE
mulheres é a seguinte: 12 ANOS E/OU COM
SEM
ALGUMA DEFICIÊNCIA
INFOS

9 TIVERAM
PRISÃO
PREVENTIVA

45 TIVERAM 8 TIVERAM
PRISÃO PRISÃO 8 TIVERAM
PREVENTIVA DOMICILIAR LIBERDADE
PROVISÓRIA
COM
Muitas mulheres não CAUTELARES

têm tido seu direito


1 TEVE
LIBERDADE
1 TEVE
PROVISÓRIA
LIBERDADE
à prisão domiciliar IRRESTRITA
PROVISÓRIA
IRRESTRITA
45 TIVERAM
respeitado nas LIBERDADE
PROVISÓRIA
COM 5 SEM 1 SEM
audiências de custódia CAUTELARES INFORMAÇÕES INFORMAÇÕES

113
O Fim da Liberdade

Muito embora o universo da amostra seja


pequeno, assusta observar que 50% das
mulheres que declararam estar grávidas
foram presas preventivamente mesmo
assim, não tendo seu direito à prisão
domiciliar respeitado.

Um olhar para os tipos penais que têm


ensejado estas prisões também preocupa.
Dos nove casos de mulheres grávidas
presas preventivamente, cinco foram
por tráfico de drogas, um por tráfico e
porte de armas e um por associação para
o tráfico. Apenas dois casos, de roubo
majorado, envolvem crimes praticados
mediante violência ou grave ameaça. Se
lembrarmos que o tráfico de drogas é o
crime que mais encarcera mulheres no
Brasil e que se trata de crime sem vítima,
o descumprimento do mandamento do
STF pelos/as juízes/as das audiências de
custódia parece ainda mais complicado.

Nestes casos de tráfico, as fundamenta-


ções judiciais mais comuns para decretar a
prisão foram a garantia da ordem pública
e a necessidade de assegurar a lei penal.
As justificativas mais frequentes, por sua
vez, são basicamente a gravidade concreta
do delito, o risco de reiteração delitiva e,
sobretudo, a quantidade de droga apre-
endida. Não há, portanto, esforço em
individualizar a fundamentação da decisão
contrária à determinação da Suprema
Corte na maior parte dos casos em que
isso acontece. lhante com o que possivelmente ocorre
em determinados casos de relatos de
Outra hipótese é que, como a gravidez era violência policial. Nesse sentido, des-
visível em apenas quatro dos casos nos taca-se também que, em cinco dos dez
quais a custodiada relatou ser gestante, a casos nos quais houve aplicação da pri-
palavra das mulheres tenha baixa credi- são domiciliar em todo o levantamento,
bilidade perante os/as juízes/as - seme- o/a juiz/a condicionou a substituição da
prisão preventiva pela prisão domiciliar
à apresentação de documentação que
comprovasse a gestação.

De um lado, reconhecemos que, se


Embora haja avanços a respeito mais de metade das mulheres que
declararam ter filhos menores de 12
da questão das mulheres anos e/ou com alguma deficiência
recebeu a liberdade provisória (ainda
encarceradas, os dados coletados que vinculada às medidas cautelares, o
que novamente demonstra a resistência
refletem a baixa adesão dos/as da magistratura em conceder a
liberdade provisória sem o controle do
juízes/as à decisão do STF Estado), isso tem seu lado positivo.

114
6. Dados

MIGUEL ANGEL HERRERA


FOTOS: DENIS OLIVEIRA /
O que se pode concluir é que, na prática,
muito embora haja importantes
avanços a respeito da questão das
mulheres encarceradas (sendo um
deles o próprio Habeas Corpus 143.641),
os dados coletados refletem a baixa
adesão dos/as juízes/as à decisão do
STF, ao menos durante os meses de
monitoramento das audiências pelo
IDDD, que se deram logo em seguida da
Em contrapartida, a taxa de 34,6% decisão da Suprema Corte.
encarceradas ainda é alta. Por sua vez,
os 6,15% de frequência de aplicação da
prisão domiciliar ainda são um índice
50% Sobre este tema, o IDDD desenvolveu
ao longo dos últimos dois anos o
tímido e que pode melhorar. DAS MULHERES Mutirão Carcerário Mães Livres,
QUE DECLA-
que atuou em favor da liberdade de
RARAM ESTAR
O diagnóstico é, em síntese, o seguinte: GRÁVIDAS mulheres gestantes e mães presas na
dos 154 casos em que a custodiada FORAM PRESAS unidade penitenciária de Pirajuí, em
declarou estar grávida e/ou ser mãe de MESMO ASSIM São Paulo. Neste trabalho, identificou-
filhos menores de 12 anos e/ou com se que há ainda desafios a serem
alguma deficiência, há informação vencidos para a efetiva aplicação do
sobre o resultado da audiência em Marco Legal de Atenção a Primeira
148. Das 148 mulheres que deveriam Infância - que ainda enfrenta grande
receber prioritariamente a liberdade, 62 resistência de parte da magistratura.
(41,9%) foram presas. Destas 62 que, se Em muitos casos, a maternidade é
presas, deveriam ter o direito à prisão ignorada no processo; em outros,
domiciliar, apenas oito (12,9%) tiveram questiona-se a imprescindibilidade
esse direito respeitado. Nos oito casos, a da mãe para os cuidados da criança;
custodiada já era mãe (ou seja, nenhuma e há casos em que não se concede a
gestante recebeu a prisão domiciliar ao liberdade pela ausência de comprovação
invés da prisão preventiva comum). da maternidade.

115
O Fim da Liberdade

6.6 Audiências de Em dez desses casos, a pessoa estava


hospitalizada e por este motivo não

custódia fantasma foi levada à presença do/a juiz/a. Em


um deles, a equipe de pesquisa relatou
o seguinte:
AS AUDIÊNCIAS DE custódia têm
como principal finalidade apresentar A custodiada foi baleada e não pôde
a pessoa custodiada a um/a juiz/a. comparecer à audiência de custódia,
Nesse sentido, não é possível conce- que ainda assim foi realizada sem a
ber a realização da audiência sem a sua presença, para que a situação da
presença da pessoa presa. Entretanto, mesma não ficasse indefinida. A juíza, a
19 audiências observadas aconteceram princípio, não queria realizar a audiên-
sob essas circunstâncias, sendo oito cia sem a presença da custodiada, mas
em São Paulo, seis em Salvador, e uma acabou por fazê-lo e relaxou a prisão em
em cada uma dessas cidades: Rio de flagrante pois o auto de prisão em fla-
Janeiro, Porto Alegre, Maceió, Mogi das grante não fora instruído devidamente.
Cruzes e Brasília. Em dois desses casos,
o flagrante foi relaxado. Em 12, houve a Embora a juíza tenha acertado em rela-
decretação de prisão preventiva, e em xar o flagrante diante da identificação
quatro foi concedida a liberdade provi- de irregularidades no auto de prisão em
sória condicionada ao cumprimento de flagrante, entende-se que, em hipótese
medidas cautelares alternativas. alguma, poderia a audiência ser realiza-
da na ausência da custodiada.

Diante da ausência da pessoa presa, o/a


juiz/a deve analisar o auto de prisão em
FOTOS: ALICE VERGUEIRO

flagrante no prazo de até 24 horas, nos


termos do Código de Processo Penal,
determinando que a audiência de cus-
tódia se realize em até 24 horas a contar
da alta hospitalar. Essa medida nos pa-
rece mais acertada, pois são exatamente
os casos em que o/a custodiado/a está
ausente por motivo de hospitalização
que exigem maior atenção e cuidado em
relação à eventual violência no momen-
to da abordagem.

Os casos em que o/a


custodiado/a está
ausente por motivo de
hospitalização são os que
exigem maior atenção
e cuidado em relação à
eventual violência

116
6. Dados

Representantes da magistratura que para respaldar a decisão. De acordo


participaram das mesas de trabalho com o relato da equipe de pesquisa,
promovidas pelo IDDD manifestaram “antes do início da audiência, a juíza
preocupação em relação à possibilidade perguntou se se tratava do ‘doidinho’;
de revisão de decisão proferida por comentaram sobre a situação da saúde
outro/a magistrado/a da mesma posição mental do custodiado e decidiram por
hierárquica. Entretanto, considerando dispensar a audiência, argumentando
que a análise dos autos se dá sem a oitiva ‘vulnerabilidade psíquica’. Não
do/a custodiado/a, trata-se de decisão deixaram que ele entrasse na sala de
perfunctória, cabendo nova decisão na audiência. Aplicou-se o ‘paredão’:
ocasião da audiência de custódia. juiz/a, promotor/a e defensor/a
acordam previamente que, para o caso,
Outra situação semelhante revela a oitiva está dispensada, bem como as
o descaso de alguns atores com a explanações de acusação e defesa, e a
importância do contato pessoal decisão é proferida de pronto”. ■

117
O Fim da Liberdade

7.
Conclusão
FOTO: ALICE VERGUEIRO

118
7. Conclusão

L
ançar o presente relatório
neste momento político do país
As audiências de
é muito significativo para o
IDDD. Se por um lado, cons-
custódia são um
tatar que as audiências de custódia são
uma realidade em grande parte do país
direito inegociável.
confirma uma conquista que é fruto de um
trabalho de longo prazo, por outro, aponta
Às instituições do
os muitos desafios que ainda encontramos
para garantir o acesso à ampla defesa e a
sistema de Justiça cabe
efetivação dos direitos das pessoas acusa-
das e privadas de liberdade.
solucionar gargalos e
As audiências de custódia são um direito
superar desafios para
inegociável. Por estarem previstas em
normas internacionais ratificadas pelo
que elas recuperem seu
Brasil, sua aplicação não está condiciona-
da à aprovação de novas leis ou mesmo à
sentido original
resolução do CNJ que as regulamenta, em-
bora esses dispositivos sejam fundamen-
tais para uniformizar a dinâmica do ato.

Às instituições do sistema de Justiça


cabe, portanto, encontrar maneiras de
solucionar gargalos e superar desafios
para que elas recuperem os sentidos
e objetivos que estão na sua origem:
impedir prisões ilegais, evitar prisões
desnecessárias, fortalecer a prevenção e liberdade provisória sem medida cautelar.
o combate à tortura e garantir o direito Em capitais como São Paulo, nenhuma
das pessoas custodiadas de serem vistas, liberdade irrestrita foi concedida ao longo
ouvidas e defendidas amplamente. de todo o monitoramento. Esse dado é
alarmante. O uso recorrente de medidas
O levantamento nacional realizado pelo cautelares, embora seja uma alternativa à
IDDD mostra que os avanços pontuais, prisão e implique menor interferência do
sobretudo na abrangência da implantação Estado na vida do cidadão, passa a ser uma
- como a realização de plantões em outros muleta utilizada pelos/as magistrados/as,
dias da semana e extensão para cidades do que já não conseguem pensar o processo
interior do país, por exemplo -, continu- penal sem aprisionar o/a acusado/a.
am ofuscados pela tímida contribuição das
audiências de custódia para o desencarce- Assim, além do fim da liberdade irrestrita,
ramento e a efetividade da Justiça. o relatório evidencia o uso excessivo das
medidas cautelares. Em cerca 88% dos
Como o nome deste relatório sentencia, casos de liberdade provisória condicionada
para a clientela preferencial do sistema de a medidas cautelares, o/a juiz/a aplicou
Justiça penal, o direito à liberdade irrestri- mais de uma medida. Em quase 50%
ta acabou. Menos de 1% dos casos monito- dos casos, aplicou três ou mais medidas
rados teve como desfecho a concessão de cautelares. É importante destacar que, em
regra, as cautelares aplicadas não eram
justificadas e não apresentavam relação
direta com as circunstâncias pessoais da
pessoa acusada ou do crime praticado.

A qualidade da assistência jurídica pres-


tada também aparece como problema
crônico que precisa ser enfrentado. µ

119
O Fim da Liberdade

Se de um lado a defesa não tem tempo não foram informadas sobre seu direito
hábil para conversar reservadamente de contar com a assistência de uma
com a pessoa custodiada antes da audi- defesa técnica durante ou logo após sua
ência, explicando o que representa aquele prisão. A maioria dessas pessoas também
momento ou preparando sua defesa, de não pôde conversar com a defesa
outro lado verifica-se um despreparo ou após a audiência para sanar dúvidas e
mesmo descompromisso da defesa com compreender as implicações da decisão
a liberdade da pessoa assistida. Em quase judicial. Em Brasília, pouco mais da
metade dos casos, é a própria defesa metade das pessoas afirmou que a defesa
quem pede que seja concedida liberdade ao menos explicou a decisão do/a juiz/a
provisória condicionada ao cumprimento e, em São Paulo, uma ínfima minoria
de medida cautelar. recebeu essa atenção por parte de quem
exercia a defesa. É fundamental que as
Causa espanto o fato de que as pessoas defensorias públicas e advogados/as se
submetidas à audiência de custódia empenhem para aproveitar esse espaço
muitas vezes não têm garantido seus privilegiado para o contato pessoal entre
direitos mínimos à informação. Nesse defesa e acusado/a, fortalecendo o direito
sentido, a pesquisa demonstra que mais de defesa ao invés de tratá-lo como
da metade das pessoas entrevistadas mera formalidade.

120
7. Conclusão

Também é chocante a informação de que


relatos de tortura são absolutamente
negligenciados por todas as instituições.
A pesquisa revelou que um quarto das
pessoas perguntadas sobre essa questão
disseram ter sofrido algum tipo de violên-
cia policial. A falta de clareza sobre como
proceder em casos de relato de tortura nas
audiências segue sendo um enorme desa-
fio. Embora a Resolução 213 do CNJ traga
protocolo específico para averiguação
dos casos de violência policial, não existe
fluxo padrão de encaminhamento desses
casos. Há, ainda, de se criar um ambien-
te apropriado para colher esses relatos,
considerando a vulnerabilidade em que se
encontra a pessoa custodiada.

Se em pesquisas anteriores realizadas


pelo Instituto levava-se em conta os
desafios inerentes a um processo de
implantação dessa magnitude, que teve a
difícil tarefa de derrubar barreiras físicas,

A falta de materiais, operacionais e culturais, agora


é possível olhar para as audiências como

maturidade desse um fato dado. A falta de maturidade do


instrumento já não pode ser usada como

instrumento já não ressalva e é preciso que as audiências


de custódia deem sinais de que foram

pode ser usada como fortalecidas, e não absorvidas de maneira


disfuncional pelo sistema de Justiça.

ressalva e é preciso Nesse sentido, considerando a impor-

que as audiências tância da ampliação e padronização das


audiências, é problemático verificar que

de custódia deem ainda hoje não existe publicidade sobre os


números de audiências realizadas, bem

sinais de que foram como sobre quais foram as decisões pro-


feridas e tão pouco há informações siste-

fortalecidas matizadas pelos Tribunais de Justiça sobre


quais são os locais que realizam e quais
não realizam as audiências de custódia.

A ação é imperativa e mesas de trabalho


realizadas pelo IDDD nos estados, com
a participação de representantes dos
mais diversos órgãos, mostram que a
sociedade civil não está sozinha. Dentro
da Magistratura, do Ministério Público,
da Defensoria e dos executivos estaduais
FOTOS: ALICE VERGUEIRO

há autoridades preocupadas e engajadas


em recuperar o sentido das audiências de
custódia. Esperamos que as informações
e análises apresentadas aqui contribuam
com seu trabalho diário em prol da Justiça,
dos direitos humanos e da liberdade. ■

121
FOTO: ALICE VERGUEIRO

O Fim da Liberdade

8.
Reco
menda
ções

122
8.Recomendações

Diante das 2
GARANTIR QUE AS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA SIRVAM
PARA COIBIR E IDENTIFICAR SITUAÇÕES EM QUE A PESSOA

conclusões
CUSTODIADA TENHA SIDO VÍTIMA DE VIOLÊNCIA POLICIAL,
TORTURA OU OUTRAS FORMAS DE TRATAMENTO CRUEL,

apresentadas,
DESUMANO OU DEGRADANTE;

Para isso, é necessário: tenha sido vítima de violência

recomenda-se: policial; D MP TJs


µ Cumprir os procedimentos
previstos no Protocolo II, da µ Acompanhar e atuar efeti-
Resolução 213/2015 do CNJ para vamente, defesa e Ministério
garantir a adequada oitiva e Público, nos procedimentos

1
devida coleta de informações, instaurados a partir do relato
observando-se a previsão do não colhido em audiência de
uso de algemas; TJs custódia; D MP

GARANTIR O DIREITO DE
µ Garantir o relaxamento do fla- µ Impedir policiamento
SER APRESENTADO A UM/A
grante sempre que houver indí- ostensivo na sala de audiência
JUIZ/A A TODAS AS PESSOAS
cios de que a pessoa custodiada de custódia. TJs
PRIVADAS DE LIBERDADE;

Para isso, é necessário:

3
µ Implementar imediatamente as FORTALECER O DIREITO DE DEFESA E GARANTIR A AMPLA
audiências de custódia em todas DEFESA NAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA;
as localidades onde elas ainda não
acontecem em observância à de- Para isso, é necessário que a coletar todas as informações que
terminação do Supremo Tribunal defesa se esforce em: possam ser importantes para o
Federal; TJs exercício da defesa num eventual
µ Garantir conversa reservada, processo criminal; D
µ Aprovar lei federal que regula- com o tempo necessário e
mente a audiência de custódia e
adequado, entre defesa e pessoa µ Pleitear sempre a liberdade da
seu procedimento, em conformida-
custodiada; D pessoa custodiada em atenção
de com a Resolução 213/2015, ga-
à presunção de inocência e ao
rantindo o contato físico e imediato
µ Garantir acesso da pessoa dever de defender os interesses
entre juiz/a e custodiado/a. CN
custodiada às informações da pessoa a quem se presta
sobre a finalidade da audiência assistência jurídica; D
de custódia, seu processo e os
próximos passos, certificando-se µ Atuar na defesa do devido
de que as informações prestadas processo legal de modo a
tenham sido devidamente coibir a validação de eventuais

4
compreendidas; D ilegalidades que tenham sido
praticadas durante o flagrante.
µ Utilizar o contato pessoal para D

UTILIZAR AS MEDIDAS
CAUTELARES PREVISTAS
NO ARTIGO 319 DO CÓDIGO

5
DE PROCESSO PENAL DE MONITORAR A REALIZAÇÃO DAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA,
FORMA MODERADA E SUA FORMA E CONTEÚDO, E PRODUZIR INFORMAÇÕES DE
APENAS QUANDO SE QUALIDADE A RESPEITO DOS SEUS RESULTADOS;
MOSTRAREM ABSOLUTA-
MENTE INDISPENSÁVEIS Para isso, é necessário: como ao processo de expansão;
TJs CNJ
E NECESSÁRIAS
µ Integrar os sistemas de
Para isso, é necessário: informação dos Tribunais de µ Produzir informações sobre
Justiça dos Estados aos sistemas a atuação das instituições
µ Justificar e demonstrar, no de produção de informação públicas envolvidas (Defensoria
pedido ou na decisão judicial, os sobre prisões, audiência de e Ministério Público) para que
motivos que tornam determinada custódia e execução penal do estas tenham um diagnóstico
medida cautelar necessária e ade- CNJ (BNMP2.0, Sistac e SEEU, sobre a realidade de sua
quada ao caso concreto; respectivamente), a fim de ga- atuação e das audiências
D MP TJs rantir a transparência dos dados de custódia, podendo fazer
e possibilitar o acesso a todos controle de qualidade sobre o
µ Avaliar as condições e circuns- os órgãos e ao público em geral; serviço prestado. D MP
tâncias pessoais do/a custodiado/a TJs CNJ
antes de propor a aplicação de µ Garantir que as audiências
determinada medida cautelar, µ Publicar com periodicidade as de custódia aconteçam a
garantindo, assim, sua capacidade informações relativas à realização portas abertas e com a devida
para cumpri-la. D MP TJs das audiências de custódia bem publicidade. TJs

TJs TRIBUNAIS DE JUSTIÇA CN CONGRESSO NACIONAL D DEFESA MP MINISTÉRIO PÚBLICO CNJ CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

123
9.
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125
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