Clinica Como Comunidade de Destino
Clinica Como Comunidade de Destino
Clinica Como Comunidade de Destino
PRÓ-REITORIA ACADÊMICA
Recife
2017
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CÍCERO JOSÉ BARBOSA DA FONSÊCA
Recife
2017
2
À minha filha Nayanna
3
AGRADECIMENTOS
Inicio meus agradecimentos por DEUS, já que Ele colocou pessoas tão especiais a meu lado,
sem as quais certamente não teria dado conta!
À minha amada esposa Marilene e à minha filha Nayanna, por todo amor, incentivo, apoio e
compreensão.
Aos membros da banca examinadora, Professor Gilberto Safra e ao Professor Marcos Túlio,
que tão gentilmente aceitaram participar e colaborar com esta dissertação.
Por fim, a todos aqueles que contribuíram, direta ou indiretamente, para a realização desta
dissertação, o meu sincero agradecimento.
4
“... a Psicologia, como ciência de certos fatos humanos, não poderia ser o começo, porque os
fatos psíquicos com que nos deparamos, jamais são os primeiros. Na sua estrutura essencial,
eles são reações do homem no mundo e, por isso, não podem aparecer no seu verdadeiro
sentido, sem que, antes, essas duas noções sejam esclarecidas. Pretendendo fundar uma
Psicologia, teremos que ir (...) até as bases ontológicas do mundo, do homem e do psíquico.”
(Sartre, Esboço de uma teoria das Emoções, 1994)
5
Resumo
6
Abstract
This dissertation aimed to reflect, from theoretical, the possibility of a clinic as a community of
destiny. To do so, we are dealing with issues relating to transformations that we experience in
modernity, in the face of which are necessary inovadas ways of understanding of human
existence that can give support to the sufferings of man in the days of today. In this respect, it
was observed, generating experiences a deep malaise configurator, a subject marked by
threefold tyranny of technology, consumption and information, crossed by a logic of utility-
Discardability-speed generators, feelings of helplessness and existential dyspepsia, a condition
of deep uprooting shaft of ethical fractures by plunging the human in situations in which the
other lack frighteningly and exacerbates the experience of being at the mercy. Forward to this
context, there is, in actuality, a movement of conceiving and exercising the clinic as a
community of destiny, characterized by an attitude that both welcomes the appearance of the
person as he transmits the elements available and required for this access a meaning to their
existence - a clinic in which human issues and existential permeate the whole course of
treatment. Perspective that requires an integral approach of the human and a knowledge
embedded in which life is not divided, demanding the clinician that he show his humanity, with
provision to inhabit the paradox, at a time conducive to your disposal. Condition that plunges
our time on devices intended to administer the life through strategies of government of life,
such as the militarisation, medicalization and judicialization that subtract from the unutterable
and the mysteries of his being. In this context, we realize it is essential that the clinician to
recognize and accept the fundamental elements of the human condition- a clinic as a
community of destiny anchored in Great Ethics, in the Great Aesthetics and in major Politics,
as proposed in this work. A clinic founded in the state of tension constitutive of human, as a
condition that allows the life pulsate and, at the same time and at the same time, who calls us to
create and affirm a mode of being as possibility of venturing in bustling procedures of life.
Finally, a clinic as a process of redemption of the opening State essential at a time of profound
funcionalização of existence that transforms the beautiful in insurance, the dialog in a
monologue and the diversity in disorder. A clinic understood, experienced and too committed
to the existence, whose primary objective is to create conditions that allow what is prevented
from having (the body, the senses and the world) find avenues of expression. There was a need
for research that will extend this debate about this possibility to practice medicine, due to the
scarcity of bibliographic material in psychology in relation to this issue.
7
Sumário
Introdução..................................................................................................................................10
1.1 Mal-estar contemporâneo: o advento de um novo sujeito caracterizado pela tripla tirania
da tecnologia, do consumo e da informação...............................................................................18
3.4 Clínica como Comunidade de Destino numa perspectiva da Grande Ética, da Grande
Estética e da Grande Política.......................................................................................................87
Referências Bibliográficas........................................................................................................99
8
Às forças da vida rebeldes, alegres e divertidas.
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INTRODUÇÃO
Analisando o porquê desta temática hoje não encontro respostas, mas acredito que fui
profundamente marcado à época pelas leituras da filosofia grega no primeiro ano do curso.
Não entendia naquela época porque a professora de filosofia reduziu a disciplina apenas ao
período grego. Talvez hoje compreenda um pouco melhor.
Fui um aluno inquieto, sempre fazendo leituras outras que aquelas básicas e necessárias.
Durante esse período como estudante dediquei-me a diversas perspectivas teóricas, sempre
valorizando abordagens que mais acolhessem do que restringissem a diversidade humana.
Movimento que acredito foi marcado por inquietações em busca de uma psicologia próxima da
vida. E dessa forma, fui leitor assíduo da abordagem corporal proposta por Reich, Lowen e
Boadella, assim como da abordagem logoterapêutica, da abordagem fenomenológica-
experimental do Rogers e do Perls. Movimentos que levaram a outros movimentos, e neste
percurso, fiz leituras de Nietzsche, até desembocar na proposta fenomenológica de Michel
Mafesoli.
Acredito que de todas as leituras que fiz na graduação nenhuma tenha impactado tanto
quanto Nietzsche. Tanto que durante muito tempo dizia que seria um psicólogo da vida,
colocando neste grande guarda chuva, fenomenologia, abordagens fenomenológico-
existenciais, Reich e outros.
Lembro que nesta época, já próximo de concluir o curso de psicologia, iniciei formação
em psicologia fenomenológica existencial. Época marcada por um aprofundamento nos estudos
da filosofia, sociologia e psicologia.
Assim que concluído o curso, ao mesmo que tempo que trabalhava com psicoterapia,
surgiu a possibilidade de trabalhar em um hospital psiquiátrico no interior de Alagoas. Ter ido
trabalhar no hospital psiquiátrico foi um grande desafio. Lembro-me que antes de iniciar tinha
a convicção que deveria desenvolver um trabalho o mais humano possível. Acredito que minha
contribuição maior foi tentar estar o mais próximo possível dos pacientes. E assim fiz, fui
ouvi-los e estar com eles. Vivi intensamente essa época, aprendi e cresci muito como pessoa.
Uma época marcada por também iniciar psicoterapia no interior. Interessante que já
naquele tempo, minhas experiências clínicas foram marcadas por atender clientes que traziam
10
um sofrimento do tipo “não me sinto pertencendo a lugar nenhum”, muitas vezes panificado.
Época em que era comum perceber uma grande mudança acontecendo no mundo, e como não
poderia ser diferente, chegando com intensidade nos interiores do Brasil. Era a globalização
arrastando todos os costumes, valores, relações e potencializando um mundo que deixou a
muitos (e ainda deixa) sem chão.
Ao longo da vida sempre transitei entre dois mundos (capital-interior); nasci e vivi
neste trânsito. Estudava em Maceió e passava as férias no interior, num povoado de Palmeira
dos Índios. Para mim era muito claro esta diferença, mas como criança vivia intensamente os
dois modos, ou melhor, os dois mundos. Diferença que sempre carreguei comigo. Hoje posso
dizer, que diante das transformações mundiais que vivemos na última década, e continuamos a
viver, não sinto tanta diferença entre estes dois mundos. É como se houvesse uma redução de
tudo a um único mundo. Inquietação que tem repercutido profundamente em minha vida e,
como consequência, em meu modo de viver a psicologia.
Uma noção que não achava estranho, pois sempre tive a impressão de já ter lido sobre.
Acredito que essa impressão que tinha na época, e que ainda hoje carrego comigo, tem relação
principalmente com as leituras dos filósofos da vida, assim como dos filósofos gregos. Não sei
ao certo se por leituras, ou mesmo por sonhos, mas até hoje tenho a intuição que visualizei ou
mesmo compreendi esta noção sendo trabalhada por estes filósofos.
Autores que posicionam a clínica não como um artifício ou instrumento, mas sim como
um lugar, a condição de possibilidade de habitar o mundo humano. Condição de possibilidade
fundamental numa era inóspita. Habitar como abertura do mundo para o homem, nos
permitindo encontrar uma relação genuína com o mundo.
11
Uma clínica em consonância com os ritmos da vida. Consonância, aqui próximo do
sentido que Heidegger toma emprestado da música, que significa ‘o que soa com’. Na música,
diz-se que dois sons são consonantes quando soam como um. A consonância como
acolhimento da diferença, como possibilidade de convivência dos contrários, como
possibilidade dos paradoxos. Consonância que se dá numa travessia, produtora de uma relação
de peri1-tensa , como condição do enraizamento humano.
Uma era que implica a intenção de ordenar o mundo de uma única maneira, explorar a
natureza e regular a vida dos homens segundo esta via. Concepção em que não há mais espaço
para a admiração do homem pelo mundo. O mundo perde seu sentido ao ser enquadrado. Não
resta mais nenhum mistério, nada que nos reste ser interrogado. O mundo só é visto pela ótica
das respostas que pode nos dar. Não mais uma atitude solícita, mas impositiva. Não mais
possibilidade de ex-por; ao contrário, por meio desta atitude o homem pretende se im-por,
embora acabe inevitavelmente se expondo de uma maneira perigosa.
O grande perigo dessa época reside na possibilidade desse modo tornar-se a única
possiblidade de posicionamento no mundo. Um modo visto, vivido e compreendido em nossa
época como sendo superior e verdadeiro em relação a outros modos. E a partir deste modo de
vida, corremos o risco de cada vez mais nos transformarmos em instrumento, em detrimento
das inúmeras e infinitas possibilidades de posicionamentos no mundo. Modo que é uma
agressão à vida por impossibilitar a construção e fortalecimento de raízes, de possibilidades de
novas identificações e pertencimentos.
1 Uso aqui peri-tensa, ao invés, de simplesmente pertença, para realçar suas origens etimológicas. Em grego quer dizer “passar
por” e no indo-europeu com o significado literal de “tentar, aventurar-se” (Dawsey, 2005).
2 Para melhor compreendeensão deste conceito proposto por Heidegger proponho a leitura do texto integral da entrevista
concedida a Richard Wisser em 24 de setembro de 1969 e transmitida pelo canal 2 da televisão alemã, por ocasião do
octogésimo aniversário de Martin Heidegger (O que nos faz pensar, n. 10, vol. 1, out./1996, pp. 11-17).
12
espaço. E quanto mais esta perspectiva for valorizada, mais o homem contemporâneo
valorizará uma racionalidade desprovida de vida, de corpo, de sentidos e de natureza.
Um tempo marcado, de acordo com Drucker (2004), pela agressão ao existente, com seu
intuito de padronizar cognitivamente tudo.
Heidegger não temia a ciência e, por consequência, também não temia a técnica
(Amorim & Silva, 2015), mas sim seu predomínio imperialista, sua conversão em um único
modo de ser que pode e tem destruído tudo que nos é mais próprio – a saber – a condição
humana. Representa esta dominação nos dias de hoje a profunda funcionalização da vida,
movimento que põe em perigo a abertura humana e, consequentemente, o acesso às
possibilidades de ser que lhe vem ao encontro no mundo.
A ciência não pensa, afirmou Heidegger (1996), em uma das mais controversas frases
de toda a sua produção. Uma frase que, desde o começo, de acordo com Amorim & Silva
(2015), foi vista como um grito de batalha contra um olhar, ou melhor, um modo de
compreender e viver o mundo que adquire uma espécie de superioridade e, portanto, de
venerabilidade.
O que Heidegger quis dizer com a frase “a ciência não pensa”, foi que as ciências, assim
como a técnica, tem como prerrogativas o cálculo e, com isso, são funcionais; um pensamento
calculador, que não tem como próprio objetivo a interrogação crítica sobre o sentido do
existente. E calcular significa pensar de forma mecânica, dicotômica, de forma determinada,
ainda que o ser humano seja indeterminado, assim como a vida. Nesse modo de viver, podemos
prever resultados e, principalmente, resultados inquestionáveis. E no predomínio desse modo
de ser, não se pergunta mais, não se questiona mais.
Vivemos uma era cujo desejo de impor seu domínio sobre o mundo parte da velha
ilusão moderna, segundo a qual tudo pode ser conhecido por meio da ciência. E sendo assim,
de acordo com Unger (2009), vivemos o ápice de um percurso marcado pelo desejo de tudo
dominar. Pretensão compulsiva de tudo evidenciar, onde a existência do mistério é intolerável,
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porque representa o indeterminável, o não-programável, o estrangeiro a este sistema. Uma
civilização que opõe à voz oracular do ser o barulho do discurso programador, da definição
definitiva, que emite ordens. Hoje, vivemos o ápice de um percurso civilizacional que, ao longo
de séculos, foi tomado pelo desejo de habitar uma luz sem sombras, de ter uma vida sem morte,
de erguer-se acima da terra e do que nela há de imponderável, de caminhar somente na certeza,
de varrer do mundo qualquer sombra de dúvida; de poder, enfim, controlar a vida e seus ritmos.
O objetivo claro deste projeto moderno que desemboca atualmente num projeto funcional da
vida é a destruição do mistério, uma profunda insatisfação com tudo que se vela– e, no entanto,
tudo que é vivo se vela, como diriam os gregos pré-socráticos.
E se não há lugar para o mistério, é porque tudo deve ser controlado, rompendo com o
lugar do humano. Condição que desemboca numa vida desencarnada, sem erros e sem
contradições típica da contemporaneidade. Um mundo, em sua concretude, baseado em
medidas, onde o sofrimento decorrente do viver, da instabilidade, da necessidade do outro, da
ignorância frente ao futuro e da incompletude do sofrimento humano, só podem ser coisas
vergonhosas, a serem negadas e denegadas. Uma época progressivamente caracterizada por
negar o ritmo da vida: seus riscos, suas perdas, sua provisoriedade.
Ao recusar sua própria finitude, o homem aliena-se daquilo que constitui sua
humanidade. Gravitamos nos dias de hoje empenhados em alçar acima da condição humana,
compreendida como um projeto de dominação e controle de tudo que existe, da busca de mais
e mais poder sobre a natureza, sobre tudo e sobre todos.
14
Nessa dinâmica do mundo contemporâneo, todo empreendimento, quer teórico quer
prático, manual ou intelectual, individual ou coletivo, deve servir aos objetivos de controle,
domínio e lucro. Por isso, o valor de uma coisa não está nela mesmo. O valor das coisas no
mundo do capital global não é mais sequer o seu valor de uso, mas o valor fixado segundo as
flutuações e conjunturas do mercado global.
Assim, este trabalho de dissertação se justifica tendo em vista que tem como proposta
uma clínica caracterizada por buscar resgatar a condição humana como dimensão fundante.
Diante disso, observa-se a necessidade de mais estudos para compreender melhor este viés e
círculo vicioso no qual estamos mergulhados, condição que só é possível se redimensionarmos
a relação entre unidade e diferença, entre o Um e o Múltiplo, condições propulsoras de uma
clínica como Comunidade de Destino.
Esta pesquisa constitui um estudo de natureza bibliográfica que teve como objetivo
recolher, analisar e trabalhar as principais contribuições de diferentes autores sobre a clínica
como possibilidade de Comunidade de Destino. Temos clareza que uma pesquisa bibliográfica
não implica imediata intervenção na realidade, mas nem por isso deixa de ser importante, pois
seu papel é decisivo na criação de condições para intervenção. A metodologia adotada seguiu
as etapas próprias de uma pesquisa bibliográfica, que são: levantamento e fichamento de obras
relevantes dos autores sobre a temática objeto da pesquisa; aprofundamento e expansão da
busca através de publicações secundárias; leitura, sumarização e redação final do texto.
Nas considerações finais - Por uma clínica enraizada na condição humana– tecemos
reflexões que inspiram a realização de novas investigações e nos deixam um campo aberto a
novas possibilidades.
16
CAPÍTULO 01
17
1 CLÍNICA PSICOLÓGICA DIANTE DO SOFRIMENTO HUMANO NA
CONTEMPORANEIDADE
Um ensaio elaborado visando contribuir para a batalha por uma sociedade melhor, por uma
clínica mais hospitaleira com os seres humanos. Para tal partimos da compreensão de diversas
perspectivas (teóricas, profissionais, áreas de trabalho e campos de saber) como
complementares em vez de rivais3.
3
Na elaboração deste texto tivemos a contribuição da Psicologia social inspirada nas teorias filosóficas de Simone
Weil, filosofia da vida de Bergson, na fenomenologia e na Escola de Frankfurt; da clínica psicanalítica
essencialmente de base ferencziana e winnicottiana, com fortes influencias das filosofias da vida de Simmel, de
Nietzsche e Deleuze, assim como, da fenomenologia de heidegger e Levinás; da clinica fenomenológica de base
heideggeriana e também levinasiana. Além de psicólogos e psicanalistas, diversas outras profissões, com suas
respectivas bases teóricas, também contribuíram com este texto como por exemplo: educador, tendo como base
teórica a filosofia da vida de Deleuze; sociólogo tendo como base Foucault e Levinás; geógrafos tendo como base
a geografia fenomenológica humanista de Milton Santos; filósofo tendo como base teórica a Escola de Frankfurt e
Levinas; propaganda e publicidade tendo como base Bauman e Levinás, e por fim, uma jornalista. Uma
diversidade que produziu um campo fértil de pensamento no qual todos foram colocados sob o mesmo teto e se
engajaram numa convivência mútua como alternativas vivas, complementares e não excludentes, livres da camisa
de força de epistemológica.
Nesta perspectiva não há antagonismo entre sociologia, filosofia, psicologia, educação e geografia, pelo contrário,
são compreendidas como parte de um todo. Deste modo, é importante compreender que a facilidade com que
transitamos por eles, deve-se ao fato de existir uma certa unidade na diversidade, por grande parte dos autores
reinvidicarem uma ética, uma estética e/ou uma política como compromisso frente à vida para lidar com os
fenômenos contemporâneos, e sendo assim, poder disponibilizar de outro modo à experiencia capaz de acolher o
outro em sua diferença podendo, deste modo, refletir, questionar e mesmo interceder efetivamente em seu
abandono.
18
O sentido só se elabora na relação com os
outros, na troca e na reciprocidade.
Jaqueline Barrus-Michel
O que percebemos, hoje, é uma globalização perversa imposta a toda a humanidade, que
invade todo o mundo. Diante desse fenômeno devemos considerar, em primeiro lugar, a
emergência de uma tripla tirania - da tecnologia, do consumo e da informação - intimamente
relacionadas, constituindo-se uma das principais características da condição contemporânea
(Bauman, 1999; 2001; 2003; 2008) que conspiram contra o humano. Esta tríplice tirania
fornece as bases do sistema ideológico que legitima as ações características da nossa época e,
ao mesmo tempo, busca conformar, segundo um novo ethos, as relações sociais e inter-
humanas, transformando tudo e imprimindo um novo ritmo à sociedade.
Hoje, de acordo com Unger (2001), vivemos num mundo que é fruto amargo desta
dinâmica, cujo desdobramento realiza-se em múltiplos níveis em que os vínculos sociais são
rompidos e as relações humanas dissolvem-se. Em algum nível, quer queiramos ou não, cada
um de nós está sendo interpelado a viver agonias, rupturas e tensões oriundas de toda a parte.
O capitalismo avançado consome e desagrega tudo que encontra pela frente, numa
velocidade inédita e por que não assustadora, construindo um mundo nunca visto antes. A
lógica da corrida, que a partir do advento da tripla tirania e tendo a velocidade como valor
máximo, dificulta cada vez mais o contato humano.
Não há como negar que, mesmo com todo o desenvolvimento científico e tecnológico, a
tecnologia não tem contribuído para melhorar a vida de toda a humanidade. Mas, não só não
tem contribuído para melhorar como, sob certos aspectos, de acordo com Tonet (s.d.), tem sido
um fator de degradação profunda da vida humana.
Nos dias de hoje, o que podemos dizer de uma sociedade como a nossa que se vê
compelida por uma revolução calcada nos avanços científicos e tecnológicos, muitas vezes, em
descompasso com a possibilidade de apreensão alteritária; uma sociedade competitita que pode
gerar, e tem gerado, empobrecimento da experiência inter-humana (Lazarrini & Viana, 2010).
20
não mais como posição e papel, nos sentindo, a partir daí, obrigados a orientar a conduta, as
ações e as relações pelo conhecimento científico e pela técnica. Acredito que esta seja uma das
características mais marcantes dos tempos atuais.
Desvinculado de suas raízes, e cada vez mais funcional, vendo-se apenas como
instrumento, caracterizado pela ocupação utilitária de si e do mundo, o sujeito contemporâneo
busca aplicar estratégias de normatização com vistas a evitar a diferença, a alteridade, o inter-
humano e, portanto, o conflito. No entanto, o conflito, a diferença, a alteridade é parte
inerradicável da vida conjunta dos seres humanos.
O sujeito reconhecido por si mesmo, imerso num profundo individualismo, ou como nos
diz Lipovesty(1983), num ‘hiperindividualismo’ e ‘hiperespecialismo’ tem impedida sua
possibilidade de tornar-se pessoa, de ser, de estabelecer vínculos – o que exige tempo e lugar
para acontecer. Um ser humano não se constitui, por exemplo, com mães virtuais, com
técnicas, com instrumentalizações. Nos constituimos, necessitamos para nos constituir, da
presença humana.
Nos dias de hoje, de acordo com Lazarrini & Viana (2010), vivemos em uma sociedade
que se vê compelida por uma revolução calcada nos avanços científicos e tecnológicos, muitas
vezes em descompasso com a possibilidade de apreensão imediata do indivíduo; uma sociedade
competitiva que tem gerado o empobrecimento da experiência coletiva e valorizado os
interesses e as demandas íntimas, privadas, o bem estar pessoal em detrimento do bem estar
coletivo. Com isso, a solidariedade é interrompida ou dificultada, uma vez que as pessoas não
se reconhecem como tendo os mesmos interesses.
21
atravessa de ponta a ponta a vida cotidiana, gerando um cotidiano cada dia mais normatizado,
regrado, submetido ao vento e à tempestade arrebatadora da técnica. Uma época cuja marca
registrada é a revolução tecno-eletrônica, que vem alterando, conforme Gonçalves Filho
(1998), sensivelmente o modo de produção do conhecimento e das relações humanas.
O mundo, hoje, segundo Carneiro Leão (apud Santos; Tunes & Bartholo Junior, 2006:
4):
Vivemos uma era digital, extremamente técnológica, que impõe a técnica, geradora do
modo de ser funcional como um modo superior e mais verdadeiro. Uma era que exige que o
humano acompanhe o ritmo e a cadência da produção capitalista. Ambiente voraz onde o
sujeito, assim como o trabalhador, ficam reduzidos à capacidade produtiva, ou seja, ao
funcional. No conjunto, conforme Gonçalves Filho (1998), o homem é incorporado como mais
um fator desse cálculo preciso da rentabilidade, seu corpo já não é um corpo próprio; é mais um
dos mecanismos desse ambiente voraz, lugar onde a tecnologia exige alimentação contínua de
suas peças. Reduzido ao modo de ser funcional, utilitário, a um contínuo processo de
racionalização instrumental, a uma constante alimentação de uma engrenagem maior, vive um
tempo extremamente aprisionador, conforme Bosi (2003), levando o sujeito a pensar que deve
estar à disposição desse sistema que nunca para.
O humano precede à técnica, do ponto vista existencial, mas parece que este
pensamento anda esquecido. O que temos percebido é justamente um excesso de tecnificação
da existência gerando profunda desumanização (Castro & Zanelli, 2010). No entanto, segundo
Santos; Tunes & Bartholo Júnior (2006), na contemporaneidade vivemos da absurda visão de
que os sistemas de produção e re-produção globais ao se utilizarem da terra como recurso, por
meio da técnica, e tendo como parâmetro a razão instrumental, pensam dela poder prescindir,
assim como das relações humanas. Nutre-se do fruto, nega-se a árvore; nutre-se do homem,
nega-se suas raízes, nega-se seu húmus, sua ligação terrena pela crença de que, com
instrumentalidade, pode-se fazer nascer uma nova árvore, um novo humano em solo postiço.
22
Artificialidade em cima de artificialidade, essa é a marca de um mundo mobilizado por relações
ultraindividualistas onde o sucesso, o bem estar individual e a competição acirrada imperam.
A tecnologia, por muito tempo, foi considerada ingenuamente neutra. Todavia, a partir
do movimento ludita,4 a maneira ingênua como ela era tratada passa a ser questionada,
começando-se a perceber que a ciência não é neutra; apesar de algumas ciências serem
utilizadas para o benefício humano, também existem outras que são prejudiciais (Carvalho,
2008). Não podemos esquecer-nos da Escola de Frankfurt que em suas críticas consideravam
que toda a vida humana, a partir da tecnologia, conduziu e determinou a existência a partir de
padrões instrumentais.
A impressão que temos é que a sociedade se transformou num vale-tudo (Toned, s.d.),
onde não se tem mais certeza do que é bom ou mau, correto e incorreto. E, sobretudo, parece
que os valores que mais se impõem são os de caráter individualista, funcionalista e utilitário. A
razão, distanciada do mundo circundante (Portela, 2008), desimpregnada pelos sentidos
comunitários, passa a ser promotora da cultura do efêmero, da cultura da fragmentação e da
cultura da desesperança (Andrade, 2010). Importante hoje é o luxo, o lucro, o egocentrismo e a
onipotência.
Para este autor (2001), o consumo, na nossa sociedade, é uma tentativa de escapar da
agonia a que está submetido o homem contemporâneo, como uma forma de estar livre do medo
do erro, da negligência ou da incompetência. Enquanto certo desencanto, artificialidade e
4
O movimento ludita é o nome do movimento contrário à mecanização do trabalho trazida pela Revolução
Industrial. O movimento ludita aconteceu entre 1811 e 1816 e tratava-se de um movimento que apoiava os
trabalhadores que se ressentiam das reduções salariais, da exploração infantil, da supressão das leis e costumes que
em uma época tinham protegido os trabalhadores qualificados. O descontentamento levou-os a destruir as
máquinas, a maioria da indústria têxtil. Desde então, “o termo ‘ludita’ passou a significar uma oposição radical à
tecnologia”.
23
esgotamento são consequências da dimensão tecnológica em nossa sociedade, no que se refere
ao consumo podemos dizer que o desamparo, segundo Fortes (2009), será uma dimensão
extremamente presente, elevado a dimensão traumática (Francisco, 2012). Pois, em um mundo
extremamente tecnificado, do ponto de vista existencial, gerador de profundo individualismo,
solidão, isolamento, distanciamento da outridade de si e do outro, tende a gerar profundo
desamparo. O indivíduo acaba não tendo onde se apoiar, não tendo em quem confiar. Percebe-
se, assim, que o mercado nutre-se da infelicidade que gera – dos medos, das ansiedades, dos
sofrimentos de inadequação pesssoal (Galvão, 2006), induzindo e liberando comportamentos
consumidores.
Ser, na sociedade de consumo, é ter. Segundo Bauman (2008), o ‘ter’ sublima a marca
da condição do sujeito contemporâneo, cada vez mais submisso à servidão consumista, cuja
lógica é a da substituição dos desejos, valores e crenças da tradição em prol do consumo
desenfreado de bens. Consumismo considerado como o novo ethos cultural. Consumismo como
um novo modelo de socialização (Giovannetti, 2003), como possibilidade de qualidade de
vida (Fortes, 2009).
5
Prêt-à-porter é uma expressão da língua francesa, que quer dizer “pronto para levar”. Ficou bastante conhecida a
partir do universo da moda, no período pós-segunda guerra mundial, contribuindo com a popularização e
disseminação das confecções e adequação dos consumidores ao novo estilo (Marafon, 2013). Suely Rolnik tem
feito uso do conceito prêt-à-porter em várias de suas conferências e produções para expor as imagens do mundo
24
estremecimentos da vida real. Próteses de
identidades cujo o efeito dura pouco, pois os
indivíduos-clones que eles produzem, com suas
personas esteriotipadas, são vulneráveis a qualquer
ventania um pouco mais forte. […] esteriótipos que
se reproduzem em velocidade alucinante, gera um
consumo sempre mais desenfreado: os viciados
nessas drogas estão dispostos a tudo para alcançar
reconhecimento em alguma órbita do sistema”.
O caráter descartável das mercadorias cria ansiedade por uma próxima novidade, pelo
modelo mais novo, movimentando o ciclo de produção e geração de lucro do modelo
capitalista. Movimentação em prol de um único valor, segundo Enriquez: “Tudo se compra e
tudo se vende” (2006:), cuja tentativa é eliminar as diferenças via massificação, via
homogeneização das identidades (Rosário, s.d.).
A regra vigente na era do consumo é não sofrer, e a proposta que reina soberana é a de
ter felicidade como horizonte de todos os acontecimentos da vida. Hoje, aquele que não
consegue ser feliz é visto como uma pessoa fraca e merecedora de culpa. Nos nossos dias ‘toda
tristeza é vergonhosa, injustificada e patólogica’. Felicidade, de acordo com Garcia & Coutinho
(2004), é caracterizada e exacerbada pela imposição e busca constante e sem restrições de
consumo.
prêt-à-porter, em grande parte veiculadas pela mídia, que se oferecem à subjetividade a cada segundo, assediando
a percepção e os sentidos e levandoos a ficarem no vazio. Esse modo de produção de imagens-mundo pret-à-porter
causa uma hipertrofia da percepção da representação e, ao mesmo tempo, uma hipotrofia, uma inibição do acesso
ao corpo, dos sentidos e da ação. Ficam obstruídas as possibilidades de operar com modos de cognição na
perspectiva do pensamento e da criação, fica apenas a dissociação do corpo e das imagens. Com a atrofia do corpo,
dos sentidos e da ação, o que se sobrepõe é o consumo das imagens-mundo prêt-à-porter, que viabilizam
subjetividades mais homogeneizadas, tipo padrão.
25
bem a ser adquirido nas prateleiras dos
supermercados. (Fortes, 2009).
Nesta lógica, há uma redução da figura da alteridade, pois o outro ser humano pode
tornar-se objeto de consumo, servindo como mero instrumento de uso e só existindo enquando
meio de alimentar momentaneamente o eu, e não como relação inter-humana. Há, assim, uma
relação predatória do outro e de si mesmo, uma deterioração das relações interpessoais.
26
O excesso de informação e estimulação desestabiliza o sujeito, pondo à prova sua
capacidade de metabolizar e atribuir sentido à experiencia (Garcia & Coutinho, 2010).
Interessante pensarmos acerca deste sujeito enquanto um dispéptico existencial (Nietzsche,
2009), termo utilizado para referir situações onde não lhe é dado o tempo e espaço próprio da
digestão das situações, tornando um ser ressentido, fragilizado, resultando numa experiência de
intensa incerteza e imprevisibilidade, tantas vezes associada a situações de fracasso e
frustração, ao mesmo tempo em que é confrontado com exigência do rendimento e do sucesso
do mundo globalizado.
Somos, hoje, consumidores por excelência, não só de produtos, relações, pessoas, como
de informações, sem capacidade de questionar o que ingerimos, adormecidos em uma
passividade aviltante (Millan, 2006). Uma era ‘fastfood’ não só de produtos, de informações,
mas de sujeitos.
27
O excesso de tecnologia produz racionalização generalizada da existência; o excesso de
consumo produz descartabilidade e desperdício da existência; o excesso de informação produz
destruição da experiência, da possibilidade do acontecer, da produção de sentido.
A experiência ou a produção de sentido é cada vez mais rara nos tempos atuais
(Nietzsche, 2012), por falta de tempo e espaço próprio para o acontecer humano. Tudo o que se
passa, passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E com isso se reduz a um
estímulo fugaz e instântaneo, imediatamente substituído por outro estímulo ou por outra
excitação igualmente fugaz e efêmera.
28
dimensões utilitárias, consumistas e de informações. Segundo Fonsêca (2013), a partir de
Nietzsche (2012), a dispepsia decorreria, sobretudo, da incapacidade do indivíduo em ‘saber
desligar-se’, ou seja, saber assimilar as impressões dos eventos, desenvolvendo intensos afetos
mórbidos e degenerativos que o torturam cruelmente.
Um homem marcado pela má digestão, que degenera sua vitalidade, que como uma
espécie de rato corrói suas entranhas, e que quanto mais o corrói, mais o separa de si e dos
outros, convertendo-o num grande depósito de impressões psicológicas ‘mal digeridas’.
Tornando-se dispéptico, o sujeito não se livra de nada, não ‘dá conta’ de nada. Mais
literalmente ainda: não dando conta de nada, tal homem nunca fica pronto pra o novo, para o
presente, para as novas experiências. Torna-se refém de suas marcas; nele o passado não é
vivido de maneira plástica (Fonseca, 2000), por não conseguir digerir suas vivências. Um
homem que comumente abdica do sono ou tem dificuldade de dormir. A partir de Nietzsche,
percebemos que esse homem é um dispéptico, um doente do ressentimento, que muitas vezes
reage, ressente, por incapacidade de agir, de sentir, pois tem dificuldade de digerir. Segundo
Nietzsche: existe um grau de insônia, de ruminação, de sentido histórico, que prejudica o
vivente e por fim o destrói, seja um homem, um povo ou uma cultura (Nietzsche, 2003).
Nas sociedades contemporâneas, segundo Safra (2004), têm surgido, com muita
frequência, sentimentos relacionados ao alojamento do corpo. Habitamos o mundo, mas
estamos correndo o risco de esquecer que habitamos primeiramente um corpo (Prochet, s.d.).
Pois o corpo demanda organizações rítmicas, temporais, espaciais que sejam aparentadas com
seus ritmos e dimensões, situação muito distante da realidade contemporânea. A estética
decorrente desse mundo tem levado ao adoecimento do corpo devido a exigente movimentação
acelerada do corpo. Adoecimentos psicossomáticos, somatoformes e esgotamentos são cada
vez mais comuns nos dias atuais (Birman, 2003; Fortes, 2009). “Na atualidade o corpo, tal
como é veiculado culturalmente, nos remete mais ao funcional do que ao existencial.” (Safra,
2004, 48). Se antes tinha o tempo como senhor de seu corpo, agora tem a tecnologia, o
consumo e informação.
Segundo Moreira (2006), assim como Lazarrini & Viana (2010), grande parte das
queixas que aparecem na clínica dos dias atuais diz desse mal estar difuso e invasor. Dito de
outra forma, trazem um sofrimento oriundo destas configurações contemporâneas que refletem
certo grau de fragmentação do sujeito, revelando dificuldade de constituição e sustentação
psíquica, decorrentes da fragilidade e da ruptura das relações vinculares e dos laços sociais
(Cambuí & Neme, 2011). Fragmentação da subjetividade que parece atravessar todos os níveis
da sociedade (Unger, 2001), constituindo-se o aspecto fundamental do mal estar
contemporâneo.
Segundo Birman (2003), uma época em que tudo remete ao excesso, encontrando-se,
subjacente às novas patologias, a retenção desse excesso no corpo quando não é escoado para a
ação. Sofrimento vivido no corpo, na ação e na intensidade do sentimento, marcado por uma
6
O termo "Burnout ou Síndrome de Burnout" foi desenvolvido na década de setenta nos Estados Unidos por
Freuderberger, mas aqui está sendo usado como analisador da problemática de nosso tempo. Burn-out
etimologicamente refere-se queimar para fora, queimar-se para o mundo. Burn-out como incapacitação para lidar
com o diferente, com o humano.
30
tonalidade traumática. Uma época cuja busca fundamental é pela eliminação das diferenças,
impossibilitando também as igualdades. O excesso é antes de tudo ausência da possibilidade de
sentificar a vida. Com a dificuldade crescente dos indivíduos em regular essas intensidades e
absorver os excessos, o que temos é a emergência do trauma e da angústia como modos
cotidianos de impacto das experiências dos sujeitos (Francisco, 2012). Como lembra
Figueiredo (2003), o homem contemporâneo é um homem traumatizado – entendendo trauma
como um excesso de excitações as quais o indivíduo não consegue controlar. E imerso nesta
lógica do excesso na qual o modo de pensar o sofrimento é pautado pela ausência de sentido,
instala-se a medicalização excessiva como busca de alívio, que nunca se realiza, para suportar
o profundo desamparo.
Uma condição em que a vida vem sendo negada, negada em sua efetuação de
movimentos, na construção de territórios de existência, na produção de modos de subjetivação
e de produção diferenciadora. E isto extrapola o campo de uma existência individual, pois este
atentado à vida, que atinge uma existência individual, diz respeito à vida da existência coletiva
e, mais amplamente, a existência do planeta (Portela, 2008).
31
1.2 Desenraizmento do humano: abandono do espaço e tempo comum
Sistema que extenua o organismo, que diminui o tempo de vida do humano, que
transforma recursos naturais e humanos em fundo de reserva disponível. Duas dimensões são
marcantes nesse sujeito desenraizado, uma é ser engolido pelo tempo e outra é o esgotamento
físico e psicológico, o chamado burnout.
Nosso estranho tempo, cada vez mais envolto pelo pragmatismo utilitário, tingido pelo
consumo e impregnado pelo excesso de informação vem provocando mudanças nos parâmetros
da condição humana; as distâncias se encurtam, o tempo acelera, idéias e notícias difundem-se
numa velocidade espantosa, critérios que, segundo Carvalho (2008), apartam o humano da
experiência coletiva; estranhamento que se agrava à medida que não resta qualquer traço que
indique presença humana.
32
técnica’, ‘espírito do consumo’ e o ‘espírito da informação’, o homem só apreende o mundo
através de uma manipulação incessante com o objetivo de aumentar seu poder, pensando que
agindo assim pode prescindir do humano, da natureza, dos animais, dos objetos e dos artefatos
humanos. Uma exploração que impõe à natureza a pretensão de fornecer energia, capaz de,
como tal, ser beneficiada e armazenada.
Uma era, cuja norma, segundo Ecléa Bosi (2003), é a velocidade da inovação pela
inovação, desvalorizando tudo já usado. Assim fazendo, desvaloriza-se, principalmente, a
memória do humano, suas histórias, suas lembranças, suas múltiplas raízes. A consequência
disto é a completa destituição de sentido mais genuíno da vida humana (Toned, s.d.), o que se
traduz, também, na anulação da memória e da experiência, e na manutenção da exploração do
homem pelo homem.
33
O desenraizamento impede o reconhecimento do outro, do diferente, da alteridade, por
ser uma experiência geradora de sentimentos de aniquilamento. Segundo Fortes (2009), uma
época de completa ausência de laços, produzindo sujeitos que se apresentam por uma total
‘desfiliação’, uma total desfamiliaridade. Fragmentados e despedaçados, cindidos entre
diversas arenas em que a v ida se desenrola, perdem o contorno de si, o seu lugar – o sentir-se
desalojado. Nestas situações o outro falta assustadoramente e exarceba a experiência do estar a
mercê. Uma ‘desligação’ da relação com o outro, desunião do conjunto, o que reforça o voltar-
se para si, o “torna-se cheio de si mesmo” (Nietzsche, 2012).
Segundo Bosi (2003), é por não conseguirmos nos reconhecer, participar ou estabelecer
contato de forma ativa, espontânea e intensa dentro de uma dado espaço e tempo que
encontramos o desenraizamento.
Desenraizamento que significa, segundo Weil (1979), que o homem foi arrancado de
seu solo e mergulhado no turbilhão do metabolismo social. De acordo com Gonçalves Filho
(1998), imerso cada vez mais num espaço, tempo e ritmo impenetrável à sua participação, num
mundo que não garante condições como liberdade, pluralidade e igualdade, o homem vê-se
sujeitado a uma das piores formas de escravidão (Weil, 1979; Gonçalves Filho, 1998; Bosi,
2003), essa que advem da perda da autonomia para definir o que é importante ou não para
conduzir nossa própria vida.
Simone Weil (1979) define o enraizamento como a necessidade mais importante e mais
desconhecida do humano. Segundo ela, o ser humano tem sua raiz por sua participação real,
ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado
e certos pressentimentos do futuro. Cada ser humano, segundo ela, assim como Maffesoli
(1998), precisa ter múltiplas raízes. As trocas de influências entre os meios diferentes, a
possibilidadede de novas identificações são indispensáveis no processo de enraizamento. Esta
possibilidade de estar juntos, gerada a partir do enraizamento e quebra do isolamento é um
34
bem em si, e talvez o maior dos bens (Bosi, 2003). Enraizamento compreendido como um
processo de digestão das experiências, tornando a vida mais intensa e possibilitando
posicionamentos de forma ativa em sua história e não simplesmente aceitação do fluxo de
acontecimentos.
Através do gesto a pessoa toca o outro e é por ela tocado e, reconhecida, também se
reconhece naquilo que inaugura o ser humano: a inscrição de seu ser no mundo e
reconhecimento do sofrimento como parte integrante da vida humana. Inscrição que
possibilita ingresso no mundo humano. Como diz Safra (2002):
35
enraizamento. Sem esta noção a pessoa se perde olhando pra frente, porém sem enxergar
nenhum horizonte.
36
que visa formatar as pessoas. Modelos de consumo rígidos que submetem o humano a cama de
Procusto7. Modelos de beleza rígidos submetidos ao ‘photoshop’, um parâmetro completamente
distante da realidade, caracterizado pela busca da perfeição das formas. Situações cotidianas
profundamente desenraizadoras onde o diferente não cabe, pois ele agora é visto e vivido como
traumático.
Simone Weil (1979) referindo-se ao momento histórico que vivemos procura nos alertar
ao perigo do desenraizamento. De acordo com Fonseca (s.d.: 04-06), podemos sentir esse
perigo exposto na carta crítica do Cacique Seatle ao Presidente dos Estados Unidos, em 1855,
que queria comprar as terras de sua tribo:
7
Procusto é uma figura da mitologia grega que significa “o estirador”, em referência ao castigo que aplicava às
suas vítimas. Ele era um bandido que vivia na serra de Elêusis. Possui, em sua casa, uma cama de ferro, que tinha
seu exato tamanho, para a qual convidava todos os viajantes para se deitarem. Se os hóspedes fossem demasiados
altos, ele amputava o excesso de comprimento para ajustá-los à cama, os que tinham baixa estatura, eram esticados
até atingirem o comprimento suficiente. Ninguém sobrevivia, pois nunca uma vítima se ajustava exatamente ao
tamanho da cama. http://pt.wikipedia.org/wiki/Procusto. Acesso em: 21 de dezembro de 2013.
37
com os animais, logo também acontece com o
homem. Há uma lição em tudo. Tudo está ligado.
38
destino é um mistério para nós, pois somos
selvagens, mas não compreendemos que todos os
búfalos sejam exterminados, os cavalos bravos
sejam todos domados, os recantos secretos das
florestas densas impregnadas do cheiro de muitos
homens, e a vista dos morros obstruída por fios que
falam. Onde está o arvoredo? Desapareceu. Onde
está a água? Desapareceu. É o final da vida e o
início da luta pra sobreviver.
39
é um forasteiro que vem à noite e rouba da terra
tudo de que necessita. A terra, para ele, não é sua
irmã, mas sua inimiga e, quando ele a conquista,
extraindo dela o que deseja, prossegue seu
caminho. Deixa para trás os túmulos de seus
antepassados e não se incomoda. Rouba da terra
aquilo que seria de seus filhos, e não se importa…
Seu apetite devorará a terra, deixando somente um
deserto.
Gilberto Safra
40
Partindo da condição de desenraizamento do humano, Gilberto Safra (2004) desenvolve
a concepção de fraturas éticas como uma condição extremamente presente na
contemporaneidade, caracterizada pelo estilhaçamento da condição humana. Tendo como
referência uma concepção paradigmática que diz que o sujeito só se constitui na presença do
outro, e ao mesmo tempo, vivendo uma profunda ruptura nesta relação, o sujeito vive
atravessado por um enigma enlouquece-dor, ao mesmo tempo em que imerso em condições
que não permitem o acontecer humano, pelo contrário, fraturam o ethos humano.
Ethos que implica funções protetivas, sustentadoras e acolhedoras; Ethos que possibilita
o habitar e compartilhar (receber e transmitir) humano, afetar e ser afetado pelo mundo humano
(Figueiredo, 2011). Ética implicada num contínuo processo de mutação, num desprender-se de
si mesmo, na invenção de outros modos de subjetivação pela via da diferença (Ferreira Neto,
2004). Ethos como dispositivo de contato com a alteridade, de abertura para o diferente, como
fundamento da condição humana.
Ainda segundo este autor (2004), o ethos humano pode ser entendido tanto no sentido
da práxis ou costumes quanto como morada, embora o utilize fundamentalmente em seu
sentido de ethos-morada, que reúne os elementos mais fundamentais do acontecer humano.
Safra apropria-se do sentido de ética não como princípios que regem as ações humanas (nesse
sentido, como alguma coisa que vem de fora do ser humano), mas como morada (como
condição humana de pertencimento do mundo).
41
segundo Safra (2004), tem uma possibilidade bastante fecunda de curar o homem
contemporâneo por meio de uma ação resistente que abra a memória do ethos humano e de sua
ética.
Em nosso tempo este tipo de problema é grave (Safra, 2005), pois vivemos em uma
cultura que, sob muitos aspectos já não reflete a medida humana, na medida em que as
condições necessárias para o surgimento da subjetividade humana estão quebrados.
42
CAPÍTULO 02
43
2 CLÍNICA COMO COMUNIDADE DE DESTINO
Clarice Lispector
Comunidade de Destino será tomado aqui neste trabalho a partir dos trabalhos de Ecléa
Bosi. Termo que apesar de surgir com Jacques Loew, foi resgatado e trabalhado com vigor por
Ecléa Bosi. Perspectiva que influencia Gilberto Safra e Gonçalves Filho, assim como o
historiador José Carlos Sebe Bom Meihy e a sociologia da vida de Michel Maffesoli.
Autores preocupados com os processos de desenraizamento, promotores do esfacelamento
humano.
Noção que surge com o padre Jacques Loew em 1941 no seu ‘Jornal de uma Missão
Operária’, conforme Ecléa Bosi (1979). Ano em que iniciou sua pesquisa no complexo
econômico do Porto de Marselha a convite do Padre Lebret, cuja doutrina contrariava os
princípios das desigualdades econômicas trazidas a lume pela economia liberal clássica. Desde
a sua juventude, já demonstrava inquietação, conforme Alfredo Bosi (2012), com a exploração
44
capitalista dos pescadores por parte das indústrias estrangeiras de pesca em sua cidade natal,
em Saint-Malo.
O padre Jacques Loew, aceitou o convite do padre Lebret para participar de uma
pesquisa com os estivadores do Porto de Marselha, e a partir desse contato teve um choque
revelador: “Aceitei, mas achei que para melhor conhecer aquilo que esmaga ou que une a vida
dos trabalhadores, compreendi que era preciso trabalhar e viver com eles. Foi o que fiz” (Loew,
J. citado por Estatutos da Mopp, s.d.). Surge a partir daí o termo Comunidade de Destino. A
experiência que a princípio duraria meses, Jacques ficou mais doze anos com os estivadores do
Porto de Marselha, tornando-se o primeiro Padre operário na França. Iniciando, assim, Missão
de Marselha que foi uma referência piloto para Nova Evangelização na França e também na
América Latina.
Padre Lebret, de acordo com Alfredo Bosi (2012), teve uma influência fundamental em
Jacques Loew. Trabalhando inicialmente com marinheiros e pescadores de sua cidade natal,
Saint-Malo, Porto Bretão, ele tomou consciência da exploração capitalista representada pelos
grandes navios pesqueiros que faziam concorrência à pesca artesanal e comunitária da região.
Funda o Centro de Estudo ‘Economia e Humanismo’, que tem como eixo as necessidades do
trabalhador e não dos cálculos de lucro do empresário. Percebe-se, dessa maneira, que
Comunidade de Destino, nasce das relações cotidianas dos trabalhadores, sendo uma noção que
de abstrata não tem nada, pois emerge das relações concretas.
Simone Weil, filósofa política, que assim como Jacques Loew, abandonou tudo e foi
viver numa Fábrica da Renault na França, procurou se envolver inteiramente na tarefa de
conhecer, deixando tocar e transmudar-se, revelando em seus escritos, verdadeiras cartas de
direitos humanos, elaborados a partir da vivência e das reflexões oriundas da experiência
concreta junto aos operários franceses.
Interessante perceber relações entre Loew, Lebret e Weil, mas não encontrei nenhum
texto que deixasse claro estas relações. Desenvolvem perspectivas muito próximas, atentam
para a condição do operário francês, para as condições que não se reduzem simplesmente ao
econômico. Desenvolvem perspectivas que procuram promover todos os homens e o homem
todo. Não aceitam que o econômico se separe do humano; nem o desenvolvimento das
civilizações em que ele se incluiu. O que conta para eles é o homem, cada homem, cada grupo
de homens, até se chegar à humanidade inteira.
Segundo ele, de acordo com Bosi (1979), em o ‘Jornal de uma missão operária’, é
preciso que se forme uma Comunidade de Destino para que se alcance uma compreensão plena
de uma dada condição. Comunidade de destino que, segundo o mesmo, já exclui por sua
própria enunciação, as visitas ocasionais ou estágios temporários em lócus. Significa sofrer de
45
maneira irreversível, sem possibilidade de retorno à antiga condição, o destino do outro. Noção
que surge com a finalidade de levar o pesquisador de um mero espectador a um participante de
uma cultura de massa, ao ingresso na Comunidade humana.
Uma noção que nasce na Psicologia Social com Ecléa Bosi, que procurou ressaltar a
importância do nascimento de uma compreensão sobre a condição humana sedimentada no
encontro. Condição de quem carrega o sentimento de exclusão do mundo em busca de
condições favoráveis ao pertencimento à Comunidade Humana. Condição (por exemplo: da
mulher, do idoso, do professor, etc) que os aproximam. A Comunidade de Destino como
condição que aproxima, afeta e desloca.
Por influência de Ecléa Bosi, este noção chega à História, a partir das contribuições de
Meihy (2005). Para este autor, de acordo com Holanda (2006), Comunidade de Destino é um
processo de identificação, um processo de aproximação e afetação que pode se dar por duas
bases: uma material e outra psicológica. A base material pode nascer a partir de elementos
físicos, como calamidades, terremotos, pestes, flagelos, que proporcionam uma vivência
coletiva, em um lugar físico ou cultural que une pessoas e grupos. Já na base psicológica a
entrada pode se dar por elementos ‘subjetivos’, como violência, abusos, arbitrariedade,
discriminação, que fazem surgir grupos identitários, não necessariamente unidos fisicamente,
mas com vivências e experiências que os unem.
46
segredos... Temáticas e assuntos que se opõem aos interesses tradicionais que geram uma
história oficial tutelada. Tendo a narrativa como eixo central de sua abordagem, perspectiva
que abre enquanto a história fecha, trava e transforma em documento, solidificando também a
memória e propondo uma memória comum, aquém do outro, como diria Nietzsche (2003) em
“Da utilidade e desvantagem da história para a vida”.
Narrativa que não determina mentalidades, não oprime diversidade. É sim, o surgir da
alteridade e do inédito, abertura ao aconchego, à confidência e ao respeito. Narrativa como
forma de resistência (Holanda, 2006), fundamental numa época em que as narrativas são
pulverizadas, num tempo marcado por contextos de vida repletos de superficialidade,
estereotipia, excessos de mesmice, banalização, coisificação das experiências e das pessoas,
violências implícitas e explícitas, humilhação social, ocultamento de angústias, da alteridade e
da finitude humana. Junto a isso, a aceleração dos ritmos, transformação das pessoas em
mercadorias descartáveis, despersonalização das relações e a avalanche de informações que nos
invadem tem revelado o profundo desenraizamento e desencantamento do humano. Para que
seja possível narrar, e com isso experienciar, de acordo com Safra (2004), é necessário estar
enraizado em Comunidade de Destino.
Gonçalves Filho (2003), assim como Meihy (2005), também foi influenciado por Ecléa
Bosi (1979). Para ele, Comunidade de Destino pede deslocamentos e pede sempre. Pede
deslocamentos que dão em deslocamentos que culminam numa alteração do ponto de vista:
uma alteração do ponto no mundo desde o qual nossa visão vai se abrir, e sempre se abrir. Mas
não se trata de aderir de modo irrefletido as opiniões do outro, mas de alguma passagem para
outro lugar onde se forma suas opiniões, onde se dão as compreensões, e dali trocar ou compor
com o outro desse lugar compartilhado.
Um método, se é que podemos chamar de método, pois não remete aos moldes
tradicionais como conhecemos, mais exigente com o clínico que precisa se expor ao inusitado e
ao diverso da vida cotidiana, ao manejo de constantes negociações e replanejamentos de sua
trilha e rota. Uma mobilidade dedicada ao outro, conforme Bosi (1979), sem destituir-se de si –
o que a rigor seria impossível – mas com abertura o suficiente para deixar vir o espanto, a
comoção, o desalento, e outros tantos estados de afeto que uma experiência nova pode disparar;
tudo isso antes que se interponha as já cristalizadas representações, fruto de outros tempos e
passagens, de outras vivencias no mundo.
Ação que afirma direitos comuns, que reclama e inaugura direitos, só pode ser vigorosa
quando se orienta por um ambiente que acolha a alteridade, fundando naturalmente uma
Comunidade de Destino. Fundação e não importação. Constituição e não imitação. Elaboração
e não dominação. Com isso, quero dizer que, Comunidade de Destino, de acordo com a
Psicologia Social de Gonçalves Filho (2003) não designa apenas a comunidade no sofrimento,
no aviltamento ou no rebaixamento, mas também na cultura e na resistência, a comunidade na
alegria e na iniciativa.
48
Vemo-nos, assim, expostos ao sofrimento, a condições que pedem passagem. Ex-posição que,
segundo Gonçalves Filho (2003), permite conhecer e participar de uma experiência nova.
Assim, trazidos para uma nova posição do conhecimento, posição da vida, para novas
sensações que pedem passagem, cuja ocupação está em compreender o outro em sua condição,
e não em inseri-lo em estruturas pré-estabelecidas.
Diante disso, parece-nos, justamente por não prover o clínico de instrumentos prévios,
que dele requer maior disciplina e mais rigor, até porque nesta orientação clínica não temos
como recortar os dados previamente. Ele se apresenta em acontecimentos, adventos que, ao
menos em princípio, estão mais próximos da vida.
Requer esforço, desprender-se e soltar-se, para reencontrar a graça dos gestos e das
palavras sem preparação. Requer muitos deslocamentos. Comunidade de Destino no ritmo
humano. Requer corpo, sentidos, vida. Requer renunciar a falar de cima para baixo e de baixo
para cima. De acordo com Gonçalves Filho (2003), é preciso esse movimento para ingressar em
Comunidade de Destino. É permitir que o outro seja outro, e não a idéia apressada que dele
possuímos.
49
condição de abandono da alteridade, de abandono da responsabilidade pela humanidade de
outrem e de si, vivencia uma condição de deslocado para o lado daqueles que devem ficar
quietos e obedecer, condição de oprimido, condição de consumidor de valores, ideias, pessoas.
Condição de exclusão do mundo humano, condição caracterizada pelo excesso de inexistência.
Para Safra (2004), Comunidade de Destino é uma terra originária que possibilita o
emergir humano. É tudo aquilo que funda e coloca o homem numa dimensão que o faz
acontecer, advir. Nesta perspectiva, tanto acolhe o aparecimento da pessoa, quanto lhe
transmite os elementos disponíveis e necessários para que acesse um sentido para seu existir.
Autores que, segundo Gilberto Safra (2004), evitam abstrações racionalistas e criam
uma obra resistente à fragmentação da medida humana. Pensadores que enfatizaram a
impossibilidade de se realizar qualquer tipo de redução do ser humano, pois este jamais pode
ser plenamente revelado e explicado. Essa não é só uma questão epistemológica, mas uma
situação que, se não considerada, pode adoecer profundamente o ser humano, impossibilitando
a entrada em Comunidade de Destino. Desde o racionalismo, o projeto intelectual do Ocidente
tem sido teorizar sobre o ser humano suspendendo sua condição enigmática e reduzindo-a uma
idéia, a uma coisa, a um objeto, a um conceito. A condição humana acontece a partir desta
concepção- no enigmático, no obscuro, no indizível, no mistério.
8
Assim como Sobornost, palavra oriunda da língua russa, outras palavras de outras línguas também foram e serão
usadas neste trabalho sem a necessidade do itálico ou coisa do tipo. Manteremos o sentido original na potência
que elas têm. Humanamente! Dessa forma, um trabalho aberto ao uso de palavras diferentes, tendo como foco a
valorização de uma mesma língua humana e, sendo assim não cabe formalidades e sim abertura à diversidade,
pois, embora falemos palvras diferentes somos a mesma língua.
51
Comunidade de Destino é uma concepção que resgata uma das necessidades fundamentais do
homem que é a de ser recebido no mundo humano pelo outro.
Assentado na concepção russa, Gilberto Safra (2004), concebe o ser humano não como
um indivíduo, mas como a singularização da vida de muitos. Um olhar que compreende cada
ser humano como a singularização da vida de seus ancestrais e como o pressentimento
daqueles que virão.
52
fundamental abertura para o inédito, para o advir, que implica aceitar que a falibilidade é
inerente à condição humana. Os humanos são sensíveis a outros humanos e quando não
evitamos esta humilde vulnerabilidade, curvamo-nos respeitosamente; ai vem a reverência, vem
encanto, vem a surpresa. Sendo pura precariedade, necessita de outro que o re-posione no
mundo humano.
A partir desta compreensão, existe em cada ser humano o ser singular, mas nele toda a
história do homem borbulha. Não existe pessoa singular sem os seus ancestrais. Cada ser
humano é a singularização da história do homem. Fundamental reconhecer a importância dos
outros para o acontecer humano, assim como enfatizar o valor da ação. Ação que cultiva a
natureza, nomeia seres e as coisas e os humaniza. Uma relação constitutiva do próprio ser.
Ação que afeta tanto a ancestralidade como a contemporaneidade, ou seja, ação que acontece
em Comunidade de Destino e como Comunidade de Destino.
A cada nascimento, um novo começo nos permite nos sentirmos no mundo humano e
tudo que adentra o mundo humano torna-se parte da condição humana. O trabalho e seu
produto, o artefato humano emprestam permanência e durabilidade ao caráter efêmero do
tempo humano.
Nascer, nesta perspectiva, de acordo com Safra (2004), é ser atravessado pelas questões
e pelo mistério da existência. O mistério coloca-se frente ao homem com as questões do nascer,
do outro, do convívio entre outros, da geração, da precariedade da vida, da morte e da pergunta
que sempre se renova. Comunidade de Destino é nossa condição originária. Só nascemos em
53
Comunidade de Destino, existimos em Comunidade de Destino e morremos em Comunidade
de Destino. Desde sempre o ser humano é com outro.
Outro autor que referencia sua teoria na noção Comunidade de Destino é Michel
Maffesoli, filósofo e sociólogo francês da linha fenomenológica, profundamente influenciado
pela filosofia da vida de Nietzsche e por sua concepção trágica9. Concepção trágica que,
conforme Costa (2008), e Cabral (2012), também pode ser encontrada na perspectiva dos
filósofos russos.
A vida para o grego é puro emergir, o movimento de emergir. A este movimento de vir
à luz de todos os seres, corresponde ao mesmo tempo um velamento, um retraimento, um
ocultamento. Esta tensão entre luz e mistério é constitutiva da Comunidade de Destino segundo
Maffesoli (2003) e Safra (2004).
Doistoievski, filósofo russo do final do século XIX, desenvolve em sua literatura uma
concepção trágica do Sobornost, da Comunidade de Destino (Cabral, 2012). Assim, podemos
dizer que Comunidade de Destino nasce impregnada do trágico (Costa, 2008). Suas obras
buscam trazer a discussão da condição a que seus personagens heróis estão mergulhados:
condição de negação da alteridade e mergulho na experiência de niilismo. E assim, fora da
Comunidade de Destino.
9
Concepção trágica compreendida aqui como um modo de pensamento que seja capaz de assumir e afirmar a
totalidade da existência, na integridade de seus aspectos, incluindo o que nela existe de sombrio e luminoso, de
alegre e doloroso, de desfalecimento e exaltação. Trágico enquanto um pensamento capaz de acolher e bendizer
tanto a criação como a destruição, a vida como a morte, a alternância eterna das oposições. Uma concepção
trágica prescinde de uma visão jurídica e culpabilizadora da existência, acredita na inocência do vir-a-ser, não
nega nem condena, mas aceita a vida sem subtração e nem acréscimo. Uma existência trágica é aquela que, sem
depender de uma crença na ordenação e significação moral do mundo, não considera o mal e o sofrimento como
uma objeção contra a vida. A postura de assentimento da integralidade da existência é a característica central dessa
visão de mundo. Nada é negado, pois tudo faz parte do grande devir que atende pelo nome de vida.
10
O pensamento vitalista é oriundo das filosofias da vida. Perspectiva corrente de pensamento iniciada em
contraposição as posições iluministas, cartesianas, positivistas e pragmáticas. Ele se opunha frontalmente as
perspectivas que defendiam uma divisão entre a sujeito e objeto, concebendo o corpo humano tal qual um objeto,
ou uma mercadoria, uma máquina. Teorias que germinam da ruptura de um modo de pensar e compreender,
nascente no período pré-socrático, que entende que o conhecimento agora se daria pela observação analítica e
cuidadosa da natureza, onde impera uma vontade voraz de tudo entender, de tudo classificar. É no final do século
XVIII, que a ideia de vitalismo ganha força a partir de filósofos e sociólogos como Nietzsche, Bergson, Dilthey e
Simmel e no século XX, Gilles Deleuze.
54
Para Michel Maffesoli (2003), Comunidade de Destino permite suavizar a carga trágica,
na verdade adoçar, alegrar, integrando homeopaticamente, pois não espera uma solução
amanhã, nem solução definitiva.
Perspectiva que procura se colar ao mundo a fim de saborear melhor seus frutos.
Geradora de um saber incorporado que a vida não se divide, inclui sombras e luzes. Convém
reconhecer e afirmar sua inteireza. Não tolera que lhe amputem sequer um de seus elementos,
já que sabe que é isso o próprio motor da expansão, da multiplicação, da dinâmica existencial.
Comunidade de Destino como anúncio de uma nova vida, onde o que prevalece é algo
que move e não o instituído. Acolhe a inocente vitalidade do puer aeternus, dessa eterna
criança, brincalhona e travessa; do velho tornar-se criança que, sem segurança, sem parapeito
de uma verdade estabelecida, vivem o dia-a-dia os diferentes enigmas da existência humana.
A eterna criança é uma figura emblemática, assim como é o adulto sério, marca da
contemporaneidade, profundamente racional. Face a anemia existencial, suscitada por um
social demasiamente racionalizado, a Comunidade de Destino, de acordo com Maffesoli
(2003), acentua a urgência de escapar à tirania do tempo acelerado, do tempo racional e
orientador para um objetivo a alcançar.
11
Trajetivo aqui como proposto por Michel Maffesoli foi resgatado de Gilbert Durand. Remete a uma superação
da relação sujeito-objeto, implica p /simbiose destes dois elementos – um interno e outro externo –, um assim
chamado latente e outro patente, que reagem e se amalgamam, faz surgir/resultar/emergir outra coisa. É, como se
vê, caminho circular, travessia, trânsito ou trajetivo: considerado como processo gerador da mistura, mais que
mistura, da travessia humana. É neste trajeto circular, dinâmico e organizador de trocas constantes – que, em
movimento contínuo, altera as percepções, a memória e as sensações.
55
Já não há mais uma separação estrita entre objeto e sujeito, mas um ir e vir entre os dois
pólos: o trajetivo oposto ao simples subjetivo ou objetivo (Maffesoli, 2003), como elemento
fundador da relação com o mundo, relação com o mundo mais mágica, que acolhe o mistério.
Ambiência comunitária (que induz) e comunga com algo que nos supera (Maffesoli,
2003). Mostra que cada um faz parte de um conjunto que, ao mesmo tempo, o ultrapassa e o
integra. Permite que a vida se renove, se acresça, no fim das contas se enriqueça. Retomada da
circulação e do intercâmbio.
Rebelião contra o artificialismo abstrato tão presente nas relações atuais. Contra uma
sociedade entendiante. Contra uma pseudovida programada, que não deixa mais que um
pequeno espaço à aventura e ao simples prazer de existir.
12
Pré-individual remete a algo anterior ao indivíduo, como o que remete a travessia humana. Assim, dinamismo
do devir só pode ser vivido de modo pré-individual. Realidade anterior a classificações, dissecações e
mensurações.
56
distanciamento e curatela das atitudes, propondo uma clínica como Comunidade de Destino em
que o clínico se irmana com o sofrimento do outro, porque a dor dele, a experiência da perda, a
experiência da fratura ética que ele vive nós também vivemos. E sendo assim, é possível
compartilhar este sofrimento e escutá-lo, não na simetria tradicional, mas na irmandade que
garante a alteridade. Comunidade de Destino na situação clínica é reconhecer que se pode ter
uma relação fraterna com aquele que chega à clínica. Uma relação fraterna porque
compartilhamos o mesmo destino humano, as vicissitudes da existência e os grandes problemas
contemporâneos da perda da temporalidade e dos espaços de convivência.
Desde o surgimento com Jacques Loew, bastante influenciado por Lebret, assim como
Bosi, Gonçalves Filho e Safra, Comunidade de Destino traz uma preocupação imensa com as
condições de vida oriundas do capitalismo, assim como de suas consequências. Capitalismo,
que necessita da vida, do outro e é fundamentalmente parasitário e gerador de exclusão do
mundo humano. Então, Comunidade de Destino, seja no campo social, seja no campo clínico,
ou mesmo no campo da filosofia, sempre guarda a possibilidade de reassentamento do ethos
humano e, sendo assim, constitui-se em uma perspectiva bastante transgressiva.
Vivemos numa época de profundo saqueio capitalista da vida. Uma civilização que
opõe à voz oracular do ser o barulho programador, da definição definita que não emite sinais, e
sim ordens, que não indica, mas codifica. Hoje, de acordo com Unger (2009), vivemos o ápice
de um percurso civilizacional que, ao longo dos séculos, foi tomado pelo desejo de habitar a luz
sem sombras, de ter uma vida sem morte, de erguer-se acima da terra e do que nela há de
imponderável, de caminhar somente na certeza, de varrer do mundo qualquer sombra de
dúvida, de poder, enfim, controlar a vida e seus ritmos.
Uma época que nega a necessária tensão entre o múltiplo e o uno, a razão e o mistério, a
ciência e a poesia. Tende a confiar de maneira eufórica na razão como sendo capaz de tudo
dominar, e tudo desvendar, e tudo iluminar, e tudo programar, e tudo informar, e tudo
consumir, e tudo descartar... Dessa maneira, operou-se um corte que separou a
unidade/identidade da diferença, o um do múltiplo, a luz da escuridão, o bem do mal, o corpo
da mente, o homem da comunidade. Esta decisão, ou melhor, esta cisão histórica gerou
enfraquecimento da experiência no mundo capitalista, fortalecendo o individualismo.
57
Ainda hoje, quando pensamos o conceito de clínica tendemos a formar a imagem do
tradicional trabalho no consultório, numa cena com um paciente que recebe algum tipo de
atendimento.
Mas o que é a clínica? Procurando inicialmente uma resposta que não fosse filiada a
alguma teoria especifica, mas a partir de sua etimologia, de um significado amplo, chegamos,
de acordo com Quadro (2012), às palavras gregas:
Além dessas palavras e seus significados, nos deparamos também com o conceito de
“clinamen”, que designa desvio, produção de um desvio.
Pensar a clínica como klinikós, e como klino, presa ao kline, é pensar um modelo
hegemônico que coincide, em alguma de suas raízes, com princípios epistêmicos que
privilegiem a dicotomização entre ser humano e vida, consciente e inconsciente, interioridade
e exterioridade, clinica e Comunidade de Destino. Fundada na crença de uma postura neutra
que busca produzir a “correção”, a “adaptação” daquilo que entende estar desviado e
desadaptado da norma e da funcionalidade (Fonseca; Kirst, 2004). Alimenta-se pela
representação de modos de ser considerados ideais e que, do alto de sua certeza, constituem-se
e impõem-se como modelos de identificação a serem seguidos em nome da ordem, da
funcionalidade e do bem-estar individual.
Uma clínica neoliberal que alimenta o modelo individualista, por vezes perverso, que se
esquece do homem para manter a lógica do capital, conforme sua tríade contemporânea da
tecnologia, do consumo e da informação, impregnada pela lógica do especialismo.
Tendo como base esta etimologia, desenvolve-se uma clínica, profundamente presente
na contemporaneidade, que relega passividade e dependência (do saber, do atendimento) àquele
58
que recebe assistência. Uma concepção que, muitas vezes, reduz o clínico a autômato
reprodutor de normas prescritas e técnicas de trabalho predeterminadas.
A partir desta perspectiva, proponho aqui, tendo como referência Teixeira & Barros
(2009), que imaginemos a clínica a partir do termo clinamen, usado por Epicuro para designar a
capacidade que permite os átomos, ao caírem para baixo em função do peso, desviarem-se
espontaneamente dessa direção e formarem combinações não previsíveis com outros corpos.
Clinamen, então, aponta para uma articulação original na composição das coisas através do
movimento de curva. Tomar a clínica nesta acepção implica em pensá-la como desvio
(criativo), enquanto construção de alternativas que abrem possibilidades e dão outros rumos
para o que está colocado como natural, sem capacidade de mudança.
Uma clínica para além do conceito de doença. Uma clínica em que a terapêutica está
disponível ao clinamen, ao invés de regida por um protocolo métrico-teórico (Teixeira &
Barros, 2009). Nesta clínica o devir está inevitalmente operando; então, o processo clínico
consiste em promover disjunções e conexões nos fluxos deste devir, gerando mais potência no
campo clínico.
Devir não é encontrar fórmulas, técnicas, mas pode exprimir imprevistos, criar
condições para novas raízes, pertencimentos. Se deixar levar por um devir, isto é, por um
processo sem programa prévio é operar em uma rede apostando na potencialização do
clinamen, de modo que em cada encontro fundam-se outros encontros que logo abandonaremos
no encontro seguinte: em cada instante cria-se outro mundo, as perspectivas entrelaçam-se em
uma terceira margem do rio que é o fluxo, que é a vida, que é o trânsito, que é o mistério. Uma
clínica da deriva, do imprevisto, do vir-a-ser, de acordo com Emerim (2009), em mares nem
sempre serenos por onde deve navegar o clínico, só sendo possível na perspectiva do clinamen,
da abertura ao inesperado.
Clínica que embarca por mares nem sempre conhecidos, nem sempre plácidos, nem
sempre existentes. Há mares desconhecidos, há ilhas desconhecidas. E dessa forma, uma clínica
dos ventos, uma terapêutica que se faz ao sabor da relação e que precisa se adaptar a cada
mudança climática, ou melhor, atmosférica (Emerin, 2009).
A escuta do clínico, uma orientação passível de mudança a todo tempo, que muda com
o vento, que exige novos ajustes nas velas a cada encontro (ou em um mesmo encontro), que só
é possível junto com o outro. Fundamental se lançar no mar afora, mar adentro, acompanhando
a busca de ilhas desconhecidas na clínica.
Concordo com Figueiredo (1996) quando afirma que a clínica psicológica se caracteriza
não pelo local em que se realiza – o consultório -, mas pela qualidade da escuta e da acolhida
que se ofereça ao outro: a escuta e a acolhida do excluído do discurso. Portanto, ser clínico
59
implica postura diante do outro. E para isso, é necessário que o clínico se ofereça como
morada, como espaço de acolhimento ao que é estranho, estrangeiro, desviante.
Dessa maneira, torna-se, conforme Freire (2003), um dispositivo com notória orientação
para a abertura, para a diferença, para a alteridade. Uma clínica, então, que visita o outro em
sua diferença e opta por não reduzir esta experiência a um modelo predeterminado, mas que
busca, neste lugar de passagem, neste âmbito, nesta atmosfera, que é ao mesmo tempo lugar de
atravessamentos múltiplos, uma aposta na afirmação criativa. Clínica nunca dada de todo,
sempre por ser construída, que afirma o outro na sua diferença, abrindo-se para a experiência,
que tem o sentido da clinamen, como um desvio criativo.
Uma clínica advinda do clinamen não é uma clínica do indivíduo (Quadros, 2012).
Clinica que se define por um modo de se por em relação, isto é, por um poder de afetar e ser
afetado, força propulsora que nos faz desviar. Não há mais um sujeito e um objeto, mas
processos, fluxos, trajetos (Maffesoli, 2003), onde eu me ultrapasso abdicando do meu nome,
tornando-me mundo. É uma clínica da tensão, porque se constrói num certo regime de forças,
que não são abstratas, nem são dadas a priori, nem preexistentes. Clinica que se compõe, o
tempo todo, como sistema aberto e, assim, deixa nascer mil caminhos que nos levem a mil
mundos.
O objetivo é tensionar, permitir que aquilo que se encontra bloqueado de criar possa
encontrar sua via de expressão. Tensionar é, de acordo com Rolnik (1996), movimentar,
circular, produção da vida por vir. Tensionar é desviar, é livrar-se da homogeneização linear, de
uma cadeia causal, liberando heterogeneidades impessoais, pré-individuais, pré-reflexivas.
Partindo desta etimologia da palavra clínica, podemos propor um outro rumo, para além
de uma inclinação sobre o leito- clínica como mudança de rota e direção. Essa compreensão, a
partir da expressão grega clinamen, parece-nos muito mais alinhada à perspectiva da
Comunidade de Destino. E dessa forma, podemos propor uma clínica como Comunidade de
Destino, numa perpectiva, que nos permite experimentar novas sensibilidades, outros olhares e
encontros que nos guiem na reinvenção permanente de outros modos de existência.
Não tem como meta curar os sintomas, mas inventar novos caminhos que propiciem
configurações de vida, espandindo-se à normatização e à ortopedia tão presentes ao longo da
historia da clínica psicológica. Perspectiva que demanda do clínico uma abertura à força da
alteridade e da diferença.
60
antemão. Um caminhar que deve ser traçado no e a partir do plano do caminhar, da experiência,
do mergulho no oceano humano.
Não temos como ponto de partida a mudança do outro, sua conscientização, mas sim um
fazer a vida respirar, gerar atmosferas. Uma prática que produz uma fragilidade na autonomia,
ao propor uma clínica, conforme Liberato & Dimnenstein (2009), marcada por
atravessamentos, por encontros que carregam a potência de diferir, da mesma forma que podem
anunciar a alegria de um novo tempo.
Quando o outro nos procura na clínica, ou quando procuramos o outro, nada melhor
que a resposta (originariamente dada a esta visitação ou a este acolhimento): “eis-me aqui”,
atuando como um dispositivo para a sustentação de modos de existência que se criam, de
maneira singular, e que emergem como resistência à reprodução, a massificação, à gerência da
vida. A meu ver, a grande ênfase na formação de especialistas traz, como conseqüência
imediata, a cisão entre conhecimento e engajamento social, entre conhecimento e vida, entre
clínica e Comunidade de Destino.
Perspectiva que nos inquire sobre a potencialidade de uma clínica como Comunidade de
Destino, nos convidando a novas coragens e delicadezas. Uma aposta na Clínica como
Comunidade de Destino como espaço de criação e invenção, permite dessubjetivar, sair de si
mesmo em direção ao mundo, a produção de mundos e abrir-se para a processualidade da vida.
Incomoda muito pensar uma clínica psicológica em pleno século XXI com um tipo de
formulação, de conceituação que abstraia o homem tanto de seu meio quanto de seu tempo,
tendo como consequência o desenvolvimento de uma psicologia desencarnada, marcada pelo
61
pouco contato com a problemática que o ser humano vive atualmente. Não é toa que, segundo
Safra (2004), a clinica esteja em crise.
Dessa forma, propomos novas bases para a clínica tendo como fundamento uma clínica
como clinamen amparada na Comunidade de Destino, ou seja, uma clínica como Comunidade
de Destino.
Uma clínica que exige que o profissional possa estar situado num registro alteritário, em
Comunidade de Destino, a fim de que possa ouvir a dor do outro no registro de seu
aparecimento. Em vez de concentrar suas investigações no plano da vida psíquica, suas
estruturas e dinâmicas, recuamos para plano anterior, assento e morada, ponte e porta para o
plano ontológico - aquele em que a questão do ser e da condição humana emerge como a
grande questão de nosso tempo.
Clínico aqui é uma presença real, não um ser neutro; ele mostra sua humanidade, e o
outro é aquele que traz seu sofrimento encarnado. Clínica como Comunidade de Destino que
acompanha o processo e não age sobre o outro. Cai por terra toda concepção que busca definir
a situação clínica a partir de procedimentos técnicos. A técnica, assim compreendida, conforme
Safra (2004), joga o outro em direção ao conceituável, roubando-lhe o indizível e os mistérios
do ser. E cair nesse modelo corre o risco de gerar impasses que, frequentemente, reintroduzem
na situação clínica os mesmos princípios que ocasionaram o desenraizamento e o adoecimento
do humano.
Clínica como Comunidade de Destino demanda do profissional que nela atua uma
abertura à força da alteridade, a processualidade da vida, de modo a descontruir as ideias de
tutela, periculosidade e incapacidade que ainda permeiam a psicologia nos dias de hoje. Se
posicionar a partir deste lugar areja o ambiente poluído de padrões e conceitos. Porventura, o
clínico ao encarnar o especialista e ficar restrito a orientar, aplicar técnicas, dar explicações,
pode conseguir um bom desempenho, mas não uma experiência clínica de abertura para a
existência. Fundamental se aproximar de outro modo, para que a aconteça na própria
humanidade.
62
Rompe com as dicotomias sujeito-objeto, indivíduo-sociedade, natureza-cultura,
apontando para a necessidade de uma clínica à altura de nosso tempo, religando clínica e vida.
Abole a concepção de indivíduo, assim como de sujeito, como nós a conhecemos, por levar a
concepção de ser humano isolado dos demais.
Este paradoxo não pode ser resolvido, pois pender para um dos lados pode levar ao
adoecimento da vida. Clinica como Comunidade de Destino que não reduz a contradição
humana a um dualismo, em que um dos pólos é privilegiado como promessa de solução ou
apaziguamento. Uma clínica que se tece nessas tensões.
Pensar esta mistura, de acordo com Maffesoli (2003), pode engendrar outro olhar, outra
perspectiva, outra sensibilidade que exceda nossa consciência, que nos desloca de nós mesmos.
Essa perspectiva implica que nos libertemos de modelos abstratos, totalitários e transcendentes
para nos defrontarmos com as turbulências que o viver nos traz.
O homem existe em permanente estado de tensão entre o passado e o futuro, entre o que
é o que pode ser. É importante para a clínica acolher essa noção de paradoxo como elemento
fundamental da condição humana (Aragon, 2005). Necessário preservar o mistério e o
irrevelável em detrimento de ideologias totalitárias que, a despeito de tudo explicar, borram e
esmagam o humano. Atitude geradora de uma clínica como Comunidade de Destino que
integra tudo que havia sido relegado à ordem da poesia e da filosofia, como por exemplo, o
imaginário e o sonho. Clinica que se ocupe de tudo que vive, de tudo que promete e gera vida.
63
Clínica como comunidade de destino integra qualidades como elasticidade e
plasticidade, de acordo com Kupermann (2007), que são fundamentais para desenvolver uma
sensibilidade existencial que aposte no devir. Devir que é inocente. Devir que não é encontrar
uma fórmula, mas poder exprimir imprevistos. Pensar a clínica dessa forma implica
compreender como uma polaridade perpassando cada momento do percurso terapêutico. E
assim, todo momento é um convite a assumir uma relação compromissada com existência,
deixando existir o que é direito e convocando à novas possibilidades.
Devir que é o mundo mesmo, princípio de uma clínica como Comunidade de Destino,
paradoxo que é a metáfora viva da criação. Tensão sem fim, que cria. Circuito vivo e
expressivo que implica resgatar o diverso, que opera movimentos que não traçam um percurso
linear.
É preciso lançar-se do cais para constituir uma Clínica como Comunidade de Destino
com notória orientação para abertura, deixando, dessa maneira, a vida exceder-se, deixando-se
atravessar pelas intensidades que pedem passagem. Abertura para a experimentação,
movimento sem residência fixa, cujo objetivo clínico é tensionar, permitir que aquilo que se
encontra impedido de passar, de criar, possa encontrar sua via de expressão.
O que conta nesta clínica é a travessia, é deixar-se atravessar pelas intensidades que
pedem passagem; sendo assim, possibilidades que jamais se esgotam em seu perpétuo vir-a-ser
cheio de surpresas. Provocam, ou melhor, convoca-nos a sair de nós mesmos e nos abrir para o
que ainda não somos. O que há sempre é um fluir, um pulsar, para o que se dá entre, no âmbito,
no percurso.
Clínico como habitante da passagem (Aragon, 2005), aberta para novos devires, para a
processualidade da vida, para a permanente tensão entre fluxos e territórios, entre o fora e o
dentro, entre o cognitivo e o afetivo, entre racional e o sensível. Não mais oposição e sim
complementariedade. Clínica que não está nem completamente aqui nem completamente agora.
E, assim, não corre o risco de ser acusada de adaptacionista, utilitária e ortopédica.
64
Clínica como Comunidade de Destino que se caracteriza, dessa forma, por oferecer-se
como um espaço que possa acolher as novas expressões de sofrimento face aos processos
homogeneizadores da cultura. Espaço de acolhimento e gestação de possibilidades que pedem
passagem. Atividade fundamentalmente caracterizada por livrar-se do sujeito psicológico para
se fazer uma clínica experimental (Rolnik, 1996). Ou seja, ter a ousadia de chafurdar-se no
caos, sem temer forças estranhas que esse modo de viver e de clinicar provocam, convocando
sempre a trilhar caminhos outros, confiando no que pode vir a ver. Onde o sofrimento pode ser
experimentado como uma sensação de passagem.
Compreensão que se dá fora do binarismo entre interior e exterior, e implica nos abrir
ao acontecimento que nos retira de uma posição passiva frente ao mesmo. Compreensão que
tem a capacidade de fazer a vida respirar, de gerar atmosferas, de estabelecer alianças com o
que está em movimento.
Atmosfera da vida que é devir outro que não sabemos, localizando-se na passagem para
algo. Clínica enquanto travessia (Safra, 2004), enquanto habitante da passagem. Aberta para
novos devires, em sincronia com as diversas tonalidades que vai adquirindo em função das
moradas que habita.
O que conta aqui, nesta Clínica como Comunidade de Destino é o trânsito, ou como diz
Maffesoli (2003), o fluxo trajetivo que pede passagem. Onde não há mais sujeito, não há mais
objeto. Tem-se vida, forças que atravessam, na passagem, no vaivém entre o particular e o
geral, entre a parte e o todo. A essência desta travessia é o seu potencial de liberdade que, no
limite, é sempre colocado em jogo. Única maneira de assumir esta clínica é assumir a margem,
a fronteira, o trânsito como lugar da condição humana.
Trânsito que significa poros (Finazzi-Aggro, 2002). Trânsito que é poroso, que é
abertura, que é a entrada para a tensão, para o paradoxo, para a Comunidade de Destino. Poro
que não se constrói, não se delimita, não se dobra à lei. É, sobretudo, abertura para a existência,
para o que há de comum na trajetória humana, para a possibilidade de comunicar a própria
condição. Clínicar como abrir passagens para a existência.
Aporia e poros não são vistos como dualidades, mas como ‘conceitos’ participantes do
mesmo movimento dialético, da incessante passagem da existência, destino que não permite
trégua. Tal não se planeja, não se fabrica, simplesmente acontece, advém. Passagem inédita,
trajetória em mar aberto, portanto, não é caminho pré-traçado, mas participa de outra lógica, em
que as questões postas não se resolvem pelo método, mas pelo movimento.
O caráter aporético dos diálogos, de acordo com Finazzi-Aggro (2002), já fazia parte do
vocabulário dos navegantes no período homérico, que partiam para o desconhecido, que
enfrentavam os desafios do mar, onde tudo é abertura, onde não há estradas previamente
65
traçadas: o que há no mar são tais passagens que se constituem a cada instante, poros. Onde
todo caminho logo se apaga, transformando toda navegação em experimentação sempre nova,
perigosa e incerta. Perspectiva que, segundo Fonseca (1989), lembra o conceito de Grande
Saúde em Nietzsche, saúde que não se tem, mas constantemente se adquire e é preciso adquirir,
pois sempre de novo se abandona e é preciso abandonar. Conquistá-la e deixa-la repetidas
vezes.
Processo que é produção, onde somos passagem para forças, possibilidade de expressão
do sensível (Aragon, 2005; Ferraz, 2008). Passagem e licença para existir. Deixar-se atravessar
pela expressão que pede passagem. Experiência cultural que proporciona a sensação de
continuidade e pertencimento ao mundo, que transcende a existência individual. Passaporte
possível para o experimentação, para o ingresso em Comunidade de Destino, para a
Comunidade Humana, para trazer à luz um novo ser.
Uma Clínica que rende reverência ao desconhecido com notória abertura para
sensações, percepções, movimentos que pedem passagem. Não existe e não objetiva a adesão a
um receituário qualquer da vida – que tolha, abafe a possibilidade de ser. Sustentada na
alteridade e eternamente aberta às questões de invenção e devir, a Clínica como Comunidade
de Destino, como condição para o advir humano, numa perspectiva em que clínico e o outro
estão conectados em um destino comum, o destino da experiência humana. Dessa forma,
voltada a criação das condições que permitem a experiência de reconhecimento de si, por meio
do outro, como membro da comunidade humana.
Em uma época de profundo saqueio capitalista da vida, marcada pela expulsão dos
poetas da cidade, pela exclusão do devir da clínica; em uma sociedade raquítica, azeda,
equipada com as mais altas forças cognitivas que milita e conspira contra a vida, é fundamental
uma Clínica como Comunidade de Destino que, antes de tudo, seja uma clínica de qualquer
lugar, de qualquer público, que insistirá em combater a desumanização, a massificação e a
carência de sentido. Uma clínica que nos obriga a colocar nossa técnica em questão para
66
redefinirmos a nossa posição diante do outro como um lugar mais ético, estético e político do
que técnico.
67
CAPÍTULO 03
Peter Pelbart
68
3 CLÍNICA COMO COMUNIDADE DE DESTINO NUMA PERSPECTIVA ÉTICA,
ESTÉTICA E POLÍTICA
O que se percebe, atualmente, segundo Lazarrini & Viana (2010), é que os referenciais
teóricos parecem não mais atender às demandas de um sujeito que, assim como o mundo,
encontra-se em mutação; os velhos modelos e paradigmas parecem que já não dão conta de
toda a riqueza e complexidade da vida. Na medida em que a sociedade se modifica, como
temos percebido atualmente, desembocando numa era crescentemente pragmática, junto com
essas mudanças também se modificam os modos de subjetivação, e com isso, passa a ser
necessário outro olhar sobre a clínica, pois a clínica é demasiadamente afetada pelos rumos da
história.
69
subjetivação estão em pane, tendo a vida prejudicada em sua produção diferenciadora;
vivenciam um sofrimento muito peculiar, o que implica a necessidade de se repensar as
práticas e as posturas clínicas de tendência individualizante para que estas possam dar conta
desses novos sujeitos.
O sujeito que chega à clínica psicológica hoje, segundo Safra (2011), nos informa sobre
suas questões fundamentais presentes no mundo contemporâneo. De acordo com Francisco
(2012), aquele que nos procura para um trabalho clínico, ou como nos diz Safra (2012), aquele
que decide trabalhar conosco o faz porque seu modo de subjetivação “usual” entrou em
colapso, entrou em pane, esta à deriva.
É bem verdade que o modo de vida atual em muito tem contribuído para alienar o
homem das dimensões verdadeiramente humanas, na medida em que a humanidade vem
cultivando um ativismo tecnológico, consumista e informacional, em muitos aspectos
divorciado da vida. Um mundo que esmaga as singularidades, que leva a um achatamento do
humano.
Kupermann (2003), no texto ‘Por uma outra sensibilidade clínica: fale com ela, Doutor’,
refere ser fundamental na clínica dos dias atuais desenvolver uma outra sensibilidade de modo
a atender às demandas impostas à clínica contemporânea, marcada por condições tirânicas em
relação a vida. Demanda por maior sensibilização nas relações com o outro, por maior
proximidade entre os parceiros da experiência clínica.
Fundamental nos dias de hoje uma clínica fundada num fluxo constante que brote da
afirmação radical da impermanência da vida, uma Clínica como Comunidade de Destino,
caracterizada por uma disposição ao convívio acolhedor, o que não significa ser tranquilo,
considerando o inesperado e o irredutível que caracteriza a alteridade. Uma clínica que procura
resgatar o espírito agônico dos gregos e do ser humano em geral.
Resgatamos aqui o agonismo grego por ser um ponto de vista que remete à experiência
da existência fundada invariavelmente num fluxo constante que nasce da afirmação radical da
impermanência: uma disposição em habitar a tensão, em não fugir do paradoxo (Mota, 2007).
Essa disposição de caráter afirmativo, jamais reativo, acredita na inocência do devir.
Pressuposto que nasce com Heráclito, Homero e Nietzsche para quem a alteridade é
radicalmente inocente.
Agonismo compreende a vida como uma luta sem fim estando presente na quase
totalidade das produções de cultura para os gregos (Câmara, 2006). Significa ir além, ir aonde
não foi ainda, profundamente relacionada com a vida pública13·, ou seja, como forma de
13
O termo vida pública, ou simplesmente público, significa o próprio mundo, na medida em que é comum a todos
nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele. A esfera pública, enquanto mundo comum, reúne-nos na
70
emergir no mundo humano. E com isso, de acordo com Diez & Cunha (2012), representa um
modo de relação com a existência, como forma de assumir uma condição existencial
inevitavelmente conflitiva.
Num tempo marcado por reduzir a vida e o sofrimento humano ao plano do visível e do
biológico funcional, resgatar o agonismo como possibilidade de se posicionar solidariamente
com o outro, nosso parceiro, frente às grandes questões existenciais peculiares ao destino
humano torna-se o grande desafio contemporâneo aos clínicos.
Dessa maneira, a possiblidade de uma clínica agônica deve ser preconizada pelo
respeito ao outro, aquele que possibilita a nossa própria afirmação, uma vez que com o outro
instauramos uma nobre relação. Clínica, dessa forma, que se dá com o outro, numa relação de
hospitalidade, que não está associada à supressão do conflito ou do paradoxo (Benevides,
2013).
Perspectiva que não aniquila a diferença, relação sem abolição da alteridade (Mota,
2007). Na atualidade existem perspectivas clínicas contrárias ao agonismo14, onde predomina o
encontro caracterizado pela atitude que visa minimizar ou mesmo eliminar o conflito
(Benevides, 2013). Concepção profundamente presente em nossa sociedade e que, também,
perpassa a psicologia contemporânea.
Resgatamos o agon como possibilidade para uma clínica potente, por manter e ter
consciência dessa tensão constitutiva do humano e por não ter receio ou medo da
processualidade do viver, solo conflituoso repleto de vida, marcado por paradoxos
inextinguíveis. Condições aparentemente adversas, mas que fazem deste solo um patamar mais
acolhedor, criativo e resistente.
Partindo da ideia grega de Agon, como valor central da vida, Homero se imortalizou
através das narrativas épicas; Hesíodo através da poesia cosmogônica; Heráclito através da
filosofia do devir e Nietzsche por meio da filosofia da vida. Fascinados pela questão agônica,
desenvolveram toda uma concepção que considerava que a vida seria constituída por conflitos,
interpretado de modo perspicaz como a transformação contínua do vir a ser.
companhia uns dos outros e contudo evita que colidamos uns com os outros. Vivemos um tempo que tende a
reduzir tudo, a extinguir paradoxos, por não conseguir conviver com eles. O homem se encontra tanto no público
como no privado, o chegar na rua é um retorno aos retângulos domésticos, o sair da rua é uma continuação dos
passos dados na sala.
14
Refiro-me aqui a perspectivas que visam de maneira clara e objetiva a eliminação do conflito, e por
consequência, da alteridade na clínica. Como por exemplo as abordagens clínicas cognitivas, comportamentais e
neurocientíficas.
71
destrutiva, mas é também algo construtivo e fundamental para a humanidade. Uma clínica
tendo como fundamento o agon não trata, portanto, de dissolver, eliminar os conflitos presentes
e, por consequência, a eventualidade de conflitos futuros. Ao contrário, busca criar condições
para que os conflitos não signifiquem a destruição de nenhum dos presentes, ou de ambos, o
que acarretaria a própria dissolução do conflito, e por que não, também da clínica?
Compreensão que se coloca em contraste com a clínica que predomina no mundo atual,
ou seja, aquela que, segundo Ribeiro (2014), só consegue conceber o conflito como fraturante
e maligno. Agonismo como atmosfera de conflito, que conforme Nietzsche (1996), era vista
pelos gregos como benéfica e louvável.
Atualmente parece que somos incapazes de compreender o agon, o conflito como parte
da vida. Em uma era marcada pela supressão do conflito, que o teme e o evita em todas as
esferas da vida por enxerga-lo como valor negativo. Enquanto na época pré-socrática, de
acordo com Nietzsche (1996), a vida como um todo era compreendida a partir do agon, hoje se
procura apagar esta chama de onde brota a vida, que originalmente nos incendeia e nos coloca
no mundo com os outros, enquanto outros.
Vida motivada pela agonística preconiza o respeito ao diferente. Agonística nasce com
os gregos em função da preocupação com a vida pública, com o mundo, como o modo de
aparecer no mundo humano (Ribeiro, 2014). Atualmente, estamos imersos em um tempo
marcado pela ciência e pela técnica que constitui um grande engodo ao agon, uma vez que se
arvora de ser o único conhecimento válido, fechando os olhos aos sentidos fundamentais à
vida. Os antigos gregos criaram o agon, termo que se vincula a assembleia (Diez & Cunha,
2012), reunião, demonstrando sua natureza coletiva.
Oferecer um lugar para outro – abrindo as portas e janelas à sua visitação, oferecendo o
melhor cômodo e a melhor comida, garantindo-lhe um espaço de hospitalidade, uma morada
confiável onde ele possa renovar-se para retomar as dores do mundo. Fazendo assim,
72
permitimos que o outro se apresente a partir de si mesmo, atitude onde o próprio mundo é que
acaba enriquecido.
Agonismo, segundo Ribeiro (2014), deve ser compreendido como um modo de encarar
o mal-estar e a degenerescência do tempo voltando-se para novas possibilidades e novos
valores, geradores da criação de si e do mundo. Nietzsche (1996) encara a ideia de conflito
como condição para a geração do valor contínuo de superação, permitindo que as pessoas
forjem ligações significativas. Perspectiva de afirmação do conflito, como meio de criação de
valores, como papel constitutivo do humano.
O argumento central do ensaio do livro ‘Cinco Prefácios para Cinco livros não escritos’
(1996) de Nietzsche é de que os gregos inventaram o agon a fim de redirecionar sua
violência, seus instintos destruidores para atividades que fossem culturalmente produtivas.
Agon como saída para a luta criativa, para o esforço diário para sustentar a vida.
Manutenção e sustento do conflito, da sua oposição tensa ao invés de sua eliminação.
Uma política agonística não elimina o diferente, mas dá espaço para que, por meio do
diálogo, ele possa se manifestar, tornar-se presente e ser valorizado. Não busca consensos, pelo
contrário, valoriza o dissenso que vem com o diferente.
Importante compreender a função social do agon que, de acordo com Câmara (2006),
desde a idade medieval e moderna foi minada e transformada em luta puramente pessoal,
transformada num modo de competição que visa a eliminação do outro, do paradoxo.
Transformação marcada pelo privilégio do funcional, incentivando uma forma de relação que
desativa e debilita o humano, que suprime as condições necessárias ao acontecer humano.
Lugar de reunião que é a Ágora, onde o agon pode aparecer e acontecer (Diez & Cunha,
2012). Há um pressuposto de abertura à condição humana que funda o humano, nos remetendo
à comunidade humana, e por isso geradora de um espaço social inteiramente novo. Daí porque
as construções urbanas da época eram em torno da Ágora, espaço comum, espaço público,
campo aberto para novas maneiras de relacionar, sentir e perceber o mundo.
Uma subjetividade que se produzia no exterior, uma época em que a noção de eu não
era ensimesmada como nos dias de hoje. Na verdade uma época em que não havia separação
entre interior-exterior, ou seja, não havia tanta polarização como na contemporaneidade.
Perspectiva produtora de uma clinica como lugar de troca e negociação, e também como lugar
de produção, ou seja, clínica agônica como lugar de criação, de fertilização da vida, como
espaço de manifestação da alteridade.
73
Uma época em que os gregos tinham maior intimidade com o conflito, com a dor e com
a morte, e extraiam dessas experiências uma vitalidade maior (Nietzsche, 1996). Mas,
atualmente, vivemos um tempo em que o entendimento maior é que viver é perigoso, é sofrer,
então, basta de vida. Tendem com isso a desertar do mundo, tendem a abandonar à Agora,
como espaço comum, impossibilitando, ou melhor, debilitando a possibilidade do agon.
Deserção que é apresentada por Deleuze, conforme Henz (2009), nos esforços por assepsia, por
anestesia, nada de dor, nada de morte.
O contato com outro tende a tornar-se, dessa forma, fugaz, pois está assentado em
condições que não suporta a diferença. E assim, na relação com o mundo tenta adequar-se de
maneira que nada seja tensionado. Desenvolve-se, cada vez mais, um contato com o mundo
que é marcado pela passividade, e quando se trata de sua dinâmica interna, observarmos
onipotência. Almeja-se, cada vez mais, um futuro sem tensões onde tudo se encaixe, um
mundo livre de contradições, o que remete a ideia de calmaria total.
Nossa época tem estimulado uma aproximação sempre superficial e protegida com a
alteridade, que valoriza um modo de existência que se configura como estratégia global
marcada pela impermeabilidade. Desenvolve uma vida calcada no exercício da recusa do
contato com o outro, situando-se na esfera privada, intimista e individual. Postura que leva a
uma clínica, de acordo com Benevides (2013), compositora de um modo hegemônico da
experiência subjetiva marcada pelo privar-se do risco da outridade.
74
Figueiredo (1995). Estratégias que, conforme Foucault (2008), apresentam uma lógica que
justificam sua existência, que todos fazemos funcionar, sem pensar no longo espectro dos
efeitos que produzem.
Peter Pelbart
Foucault foi fundamental, de acordo com Lemos, Galindo & Costa (2014), na discussão
das condições contemporâneas que demandam administrar a vida, não suprimi-la, mas
15
Importante atentar para as referências usadas ao longo da discussão sobre as estratégias de governo da vida.
Referências produzidas nos últimos 10 anos, nos fazendo pensar, que por mais que estas condições que
potencializam o governo da vida já existiam, como o próprio Foucault já pode perceber no século passado, ao que
parece, neste século está acontecendo um incremento maior destas estratégias, indicando seu fortalecimento e
devastação da condição humana.
75
administrá-la em termos regulatórios por meio de práticas de governo da vida, sob uma lógica
binária. Ações baseadas numa racionalidade instrumental que desembocam num profundo
movimento de higienização da cidade, da população e dos sujeitos. Condições de emergência
do discurso medicalizante, judicializante e militarizante da vida.
Com isso, em nossa sociedade ocorre de forma cada vez mais intensiva uma série de
situações, tais como: a organização dos espaços, da mobilidade, dos acessos, das pontes,
aeroportos, shopping, estradas, rodovias, empreendimentos imobiliários, conexão de bairros e
lazer, higiene urbana e social, segurança etc., que afetam profundamente os processos de
subjetivação, implicando sobremaneira na desaparição do sujeito do mundo humano.
Grau zero de tensão, esse é o objetivo que move o ambiente governado por estratégias
de controle da vida. Busca-se um sentimento de consenso e cordialidade. Estratégias, segundo
Lima (2014), que estão na ordem do dia em termos de preocupação em qualquer cidade, em
qualquer quadrante do mundo. Ideais de interiorização, cerceamento e privatização da vida
dirigem um mundo considerado suspeito.
Estratégias que avançam cada vez mais, principalmente nesta década, lançando
tentáculos e todo seu furor por todas as áreas da vida humana (Lima, 2014) e, por conseguinte,
alcançam as relações sociais segundo seu evangelho, ou seja, uma organização social produtora
de um modus vivendi para os seres humanos que os obriga a reduzir tudo a um denominador
comum, a um quantum abstrato e calculável, igualando assim o que era diferente, com
pretensões de silenciar o humano.
76
Uma era inclinada para a busca da sobrevivência16 (Lemos, 2014), marcada pela
ausência de decisões tomadas pelo uso da palavra e, por conseguinte, caracterizada pela
redução de nossa participação no mundo. Diante desse contexto, ocorre a redução do mundo, o
que implica ou permite abertura de um relevante espaço que passa a ser dominado pelos
discursos militares, médicos e/ou jurídicos.
Submersos que estamos em uma sociedade que ignora o paradoxo (Rolnik, 2003;
Benevides, 2013), que ignora a condição humana e o conflito agonístico. Costurados que
estamos sendo, conforme Vilhena, Rosa & Veras (2015), pela mercantilização da vida que
transforma as soluções em produtos, sejam militares, judiciais e/ou médicos e, desse modo, o
mundo tende a ficar seriamente debilitado, podendo gerar segregação manicomial, perda dos
direitos e da capacidade criativa. Processos que destroem a confiança e as formas de
solidariedade e sociabilidade tradicionais, reafirmando preconceitos e contribuindo para a
configuração de um panorama sócio espacial caracterizado por racionalidades que governam
as condutas e os modos de ser.
Grupo Rappa
16
A preocupação com a sobrevivência torna-se um traço proeminente nos dias de hoje, profundamente carregada
por percepções de que nada, sequer um simples detalhe, deve desviar nossa atenção, pois o mundo é tido e vivido
como profundamente perigoso, e sendo assim, marcado por imensas situações propulsoras de sentimentos
difusos de perigo. E, sendo assim, uma impiedosa retórica da sobrevivência invade a vida cotidiana, intensifica
e libera, simultaneamente, o terror do desastre. Frente a isso, torna-se frequente preparar-se para o pior e
convencendo-se que o pior deve ficar além das expectativas. Como consequência dessa mentalidade de
sobrevivência, o sujeito afasta-se da esfera pública, voltando todas as suas preocupações para a esfera da vida
privada. Pensa em si mesmo, simultaneamente, como sobrevivente e como vítima desse tempo. A crença que
domina é que somos todos vítimas, de uma ou de outra forma, de eventos que fogem ao nosso controle. E sendo
assim, vive carregado de informações midiáticas sobre eventos do século XX e do século atual nos quais pessoas
foram vitimidas em escala maciça. Desenvolve dessa forma, estratégias de sobrevivência baseada na vigilância,
na suspeita e na desconfiança em relação ao outro. E, por conseguinte, tendo a sobrevivência como doutrina
última da vida, como valor supremo perde o sentido trágico da vida. Tipificado por renunciar a esperança,
procura cada vez mais tornar-se invulnerável e proteger-se contra a alteridade, buscando desenvolver uma vida
crescentemente guiada pela ânsia de matar qualquer proximidade em qualquer encontro como a possibilidade do
vir-a-ser (Lasch, 1986).
77
Práticas que objetivam instituir um inimigo comum inominável e indefinível, o que
Lima (2014) denomina de militarização da vida, tendo como meta a proliferação dos aparatos
tecnológicos de controle que visam configurar uma sociedade em que os ideais e os próprios
termos de segurança militar são transferidos de maneira sutil para a vida cotidiana.
Um cotidiano abalizado por essa produção intensa de fala sobre o crime, sobre o perigo
no mundo, assim como sobre o perigo que o mundo é, passa a ser o contexto corriqueiro dos
habitantes contemporâneos. Lógica praticada, de acordo com Lima (2014), através de ações e
saberes técnicos, que justificam e ratificam a criminalização e o encarceramento, passando a
permear as estratégias de circulação das pessoas, fabricando uma sensação que se torna
presente no imaginário social.
Processo que leva ao desligamento dos lugares em que nos movemos e das pessoas com
quem convivemos, negando a noção do destino compartilhado. Como consequência, há uma
colonização do nosso imaginário, assim como empobrecimento das experiências corporais,
submetendo-nos a inexorabilidade do fechamento, do distanciamento daquele que não mais
reconheço como meu semelhante.
Lógica que leva ao esvaziamento do mundo, de seu sentido tradicional de lugar que
possibilita as relações sociais, retirando e negando o acontecer do imprevisto, da improvisação,
do espontâneo, da convivência, dos encontros, dos conflitos. Racionalidade que deprecia o
mundo, obstruindo a oportunidade de lugares marcados pela voz, pela negociação, que
proporciona uma posição no mundo como possibilidade de fazer os afetos circularem.
O medo do diferente passa a ser o grande mediador de um cenário que reforça a ilusão
de viver dentro de uma comunidade sem destino, ou seja, uma comunidade sem espaço para a
condição humana, sem espaço para a geração da diferença, um espaço intensamente
isonônimo e uniforme, que propende a se tornar superficial, pois tendo a homogeneidade como
parâmetro, diminui-se o risco de haver mal-entendidos e torna-se desnecessário o processo de
diálogo.
78
viadutos. A contratação de tecnologias de segurança no século XXI17 tornou-se um negocio
altamente rentável – seguros, segurança privada, cerca elétrica, câmeras instaladas por todos os
lados, travas de carro, armas, vidros blindados, GPS, celular e tantos outros (Lemos, Bicalho,
Alvarez & Brício, 2015). Os avanços das tecnologias de informática, de telecomunicações, via
satélite ou a cabo e da microeletrônica, aliados ao medo generalizado, tem favorecido ainda
mais o isolamento.
Não sejamos ingênuos a ponto de achar que uma grade de ferro, cercas de arame
farpado são meras barreiras físicas; na realidade são discursos que devem ser apreendidos em
sua lógica produtora de respostas, agenciadora de subjetividades e instauradoras de um clima
de guerra. Porém, segundo Vilhena (2009), estão sendo naturalizados, como se sempre
tivessem feito parte da paisagem da vida humana.
Diante do medo e da crescente criminalização da vida nos dias de hoje (Lima, 2014),
toda uma tecnologia da arquitetura com objetivo de produzir uma apartação social, ao mesmo
tempo que também se torna expressão de uma mixofobia (medo de misturar-se), ou seja, uma
negação da heterogeneidade e da diversidade que sempre caracterizavam a cidade desde os
gregos.
Arquitetura, segundo Vilhena (2009), onde nada deve ser ou parecer sujo ou pobre,
progressivamente produtora de um espaço onde nada morre, ninguém sofre; onde ninguém se
depara com o absurdo e onde o tempo passa sem qualidade, fixando-se ao presente e
prometendo eternidade.
Perspectiva profundamente presente nos dias de hoje, abalizada por barreiras físicas e
simbólicas de apartação em relação ao entorno. Uma arquitetura da segurança voltada para o
interior, para longe das ruas, zoneada para eliminar o contato e, por consequência, negando os
espaços de interação. Contam com isso, com cercaduras, as mais altas possíveis e, por vezes,
17
Nesta década o setor de segurança privada movimentou mais de R$ 20 bilhões e preveem um crescimento de
mais de 15% ao ano. Dados da Federação Nacional de Empresas de Segurança e Transporte de Valores (Fenavist)
mostram que o faturamento do setor, em 2015, chegou a R$ 50 bilhões, avanço nominal de 8,6% em 2014. Em
10 anos, o crescimento chega a 230%. A associação Brasileira de Empresas de Sistemas Eletrônicos de Segurança
(Abese) também exibe números que passam longe da crise, sendo um mercado que tem crescido a uma média de
10% ano ano, na última década (Cigana, 2016).
79
até mesmo climatização, evitando lembrança ou sinal do mundo. Espaços públicos
abandonados em detrimentos a locais privados que, segundo Vilhena (2009), prometem uma
vida perfeita, marcada pelo distanciamento daquele que não mais reconheço como meu
semelhante.
A paranoia da segurança traz ainda outra consequência, que é a busca incessante por
controle e a crença de que seremos capazes de tudo controlar e nos defendermos desta situação
– mesmo que o preço a pagar seja o isolamento total. Estas parecem ser a proposta, de acordo
com Arantes (2015), do urbanismo contemporâneo.
A vida nos é negada e os modos de viver tendem a conviver progressivamente com mais
medo e discursos de guerra. Modos de vida que fortalecem a estigmatização dos que estão lá
fora, ou seja, do mundo que somos todos nós.
As ruas já não são mais marcos e lembranças e nem são feitas para caminhar e evocar
um passado presente. O sujeito não se direciona para um espaço público – praças, ruas,
vizinhos, uma vez que se encontra assentado em solitárias formas de convivência. Tende a
desenvolver sentimentos de estranheza em relação ao mundo, com discursos, como por
18
Delivery é a palavra em inglês que significa entrega, distribuição ou remessa. Esta palavra é um substantivo que
tem origem no verbo deliver, que remete para o ato de entregar, transmitir ou distribuir. Delivery consiste no
transporte e entrega de cartas e outros tipos de bens e serviços, como por exemplos alimentos prontos para serem
consumidos.
80
exemplo: ‘não me sinto pertencendo a lugar nenhum’, que pode ser traduzido, conforme Lima
(2014), como sentimento de não pertencer ao novo espaço social, objetivamente hostil e
estranho. Importante constatar que o mundo só existe onde propriamente podemos nos
apresentar uns aos outros.
Abrimos mão da vida, acreditando que o outro roubou de nós. É provável que em um
curto espaço de tempo tenhamos uma geração que não mais saberá transitar pelo mundo. E
mais além, achará isto natural (Vilhena, Rosa, Veras, 2015). Provável que as pessoas
desaprendam a arte de negociar significados, esqueçam ou negligenciam o aprendizado das
capacidades necessárias ao conviver com a diferença (Vilhena, 2009).
Nós nada somos ou valemos se não contarmos com o olhar alheio acolhedor, se não
formos vistos, se o olhar do outro não nos recolher e salvar da invisibilidade que nos anula e
que, portanto, é sinônimo de solidão e incomunicabilidade, falta de sentido e valor. Quando
esse laço é rompido, ou não pode ser construído, de acordo com Vilhena (2009), rapidamente
aparecem situações onde a relação passa a ser orientada pelo domínio da força e,
frequentemente, pela demonização do outro, o que consolida o afastamento, a separação e
simboliza a dessocialização pela rejeição e pela recusa da convivência.
81
O nó da questão é que se seguirmos este conselho e mantivermos as janelas fechadas, o
ambiente logo ficará abafado e, no limite, opressivo. Medidas que fazem aumentar o medo, que
fazem aumentar o apartamento social, que fazem aumentar a violência. Extrai do sujeito a
chance de enriquecer as suas percepções e experiências, instituindo um modo de vida onde
existe o menor deslocamento em direção ao outro, tornando-o indigno de sua humanidade.
82
Com a expectativa de normatizar, legislar e vigiar a vida, da mesma maneira que a
militarização, programam-se estratégias fortemente amparadas em discursos cientificistas,
insuflando dispositivos de controle da existência (Toassa, 2012). A regulamentação da vida,
dessa forma, tende a conceber a diversidade humana por uma lente individualista, atribuindo
aos sujeitos uma série de rótulos e classificações, os inserindo em uma rede de explicações e
causalidades, objetivando criar lugares para cada um de nós ocupar.
Foucault, de acordo com Christofari; Freitas & Baptista (2015), acolhe a expressão
medicalização da vida, mas procura colocar em evidência o processo de conjunto de
procedimentos que inventam uma sociedade da norma. Segundo Lemos (2014), Foucault
amplia o uso do conceito de medicalização, pois fala da apropriação dos saberes médicos
reconhecidos como discursos com efeitos de verdade nas mais diferentes esferas sociais,
disciplinando e governando a vida de todos e de cada um.
Medicalização é uma prática que reforça que o problema está no sujeito em si, isolando-
o, desconsiderando questões políticas, sociais e culturais que permeiam a vida. Prática que
conduz, se espalha e funciona como uma maquinaria social que se caracteriza por não estar
situada em um lugar específico; longe disso, dissemina-se por toda a estrutura social (Vilhena,
Rosa & Veras, 2015). Processo intensificado na atualidade, segundo Lemos (2014), tornando
um dispositivo que em tudo intervém e começa a não mais ter fronteiras.
83
medicalização funciona como um rastro de pólvora que se infiltra e se expande rapidamente de
forma quase incontrolável em todas as esferas da vida humana.
Progressivamente e de maneira cada vez mais intensa, medicamentos são usados para
propósitos que excedem a função precípua para a qual, em tese, foram descobertos e criados,
isto é, aliviar sintomas e curar doenças (Christofari; Freitas & Baptista, 2015). A Indústria
farmacêutica vem ocultando, sistematicamente, os profundos efeitos colaterais dos princípios
ativos destinados a tratá-los!
Crianças que em uma dada época eram tidas como levadas, introvertidas, agitadas,
teimosas, indisciplinadas, agora são diagnosticadas com os mais diversos transtornos, déficits,
desvios. O problema é individualizado negando suas relações. Classificações humanas que
geram efeitos nos sujeitos: cada classificação, cada diagnóstico, cada tipificação implica uma
mudança no modo como agimos, como expressamos nossas emoções e sentimentos, enfim, no
modo de nos construirmos como sujeitos.
Um tempo vivido como entrássemos numa maquinaria de poder que nos esquadrinha,
nos desarticula e nos recompõe (Christofari; Freitas & Baptista, 2015). Olhares, gestos,
intensidades, palavras, estilos de vida tornam-se elementos importantes para o processo de
patologização. Com isso ganham a força os especialismos e os enquadrinhamentos, como
intervenções que invadem o cotidiano, produzindo paralisias e tutela de seus profissionais,
reduzindo as intervenções ao âmbito da ciência, impregnadas pela razão instrumental.
84
Diante disso, cada vez fica mais claro que nossa sociedade parece ter definido um modo
privilegiado de sofrer, um modo medicalizado de administrar os fracassos, os sofrimentos e as
angústias.
Chaïm Perelman
Situações de conflito acontecem durante toda a vida em sociedade. Nos dias de hoje,
segundo Lemos (2015), parece que não mais sabemos lidar com as tensões naturais da vida, e
diante disso não sabemos resolver os conflitos de forma colaborativa. Situações em que a vida
está sendo decidida sem que haja um prévio debate sobre o mundo, caracterizado por inflação
dos discursos jurídicos profundamente reveladores da insuficiência do debate entre os homens.
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Desse modo, o poder judiciário, ao ser provocado a apreciar os inúmeros conflitos humanos,
dificilmente leva em conta a possibilidade de pensá-los coletivamente (Lemos, Galindo &
Costa, 2014).
Com este olhar individualizante e punitivo, temos gerido vidas, produzindo leis e
demandando medidas tutelares que contemplem os mínimos aspectos do viver. Judicialização,
conforme Lemos (2015), como política da vida, estratégia de controle que se intensifica na
atualidade e que provoca novas formas de assujeitamento. Hodiernamente tendem a ser
judicializadas todas as relações inter-humanas.
Demanda-se que a justiça legisle sobre todos os aspectos do existir (Lemos, Galindo &
Costa, 2014). Lógica punitiva que esquadrinha a vida no banco dos réus. Práticas de controle,
encarceramento e punição, fazendo de cada um de nos aceite esta condição, ora de juiz ora de
acusador, algoz e vitima (Oliveira & Brito, 2013). Lógica que recai sobre o sujeito que
introjeta a punição como algo indispensável à vida, como ato necessário para o bem comum e
para o bem de cada um.
Com base em uma lógica dicotômica que separa o bem do mal, o agressor da vítima, o
cidadão do criminoso, reforça a segregação social e a culpabilização do sujeito. Nesse processo,
de acordo com Oliveira & Brito (2013), tudo deve ser controlado, recompensado ou punido,
passando pelo judiciário e pelo rol de especialistas que estão lá como solucionadores de
conflito, confiando na garantia dos saberes fornecidos por estes especialistas do viver.
Em suma, espera-se que a justiça seja feita, que ela forneça uma solução, uma sentença,
uma reparação, uma vítima e um culpado. Acredita-se na sua imparcialidade de identificar a
verdade e de decidir com base nela, tendo em vista que cabe à decisão jurídica saber qual das
partes envolvidas está com a razão.
Assim, a vida é decidida em um tribunal (Lemos, 2015), onde na maior parte das vezes
não se procura conhecer a historia da vida do sujeito. E assim, práticas jurídicas propendem a
definir tipos de subjetividades e a perpassar as formas de relação na sociedade contemporânea.
86
3.4 Clínica como Comunidade de Destino na perspectiva da Grande Ética, da Grande
Estética e da Grande Política
Vivemos em uma época marcada por condições tirânicas em relação ao humano, como
a tecnologia, o consumo e a informação, além de condições que potencializam, cada vez
mais, o governo da vida, como a militarização, a medicalização e a judicialização, situações
que desaguam crescentemente no privilegio de concepções e práticas que subtraem do
sujeito o “indizível e os mistérios de seu ser” (Safra, 2004: 27). Um solo progressivamente
marcado pela negação das condições que acolhem o sofrimento humano.
Nietzsche, conforme Oliveira (2011), no final do século XIX, fez severas críticas às
condições culturais e sociais atravessadas por valores de negação da condição humana. E em
face desse mal estar cultural e frente às grandes questões existenciais peculiares ao destino
humano, vislumbrou como alternativa para essa humanidade, cada vez mais esgotada e sem
rumo, a restauração de condições que possibilitem o ingresso no mundo humano, ingresso
numa nova era trágica, através da instauração da ética, da estética e da política.
Dimensões fundamentais nos dias de hoje, imersos que estamos em meio a uma
conjuntura que pulveriza a capacidade de criar, de pensar, de elaborar experiências e de
compartilhar. Propomos aqui, a partir de Nietzsche, a Grande Ética, a Grande Estética e a
Grande Política como dimensões basilares da Clínica como Comunidade de Destino.
Encontrada pela primeira vez em Homero, a palavra ethos significava morada (Matos,
2008). Morada que é condição para o pensar, para o brincar, para apresentar-se no mundo.
Esse sentir em casa é reforçador para experiências alteritárias, para uma ciência outra, como
propõe Nietzsche (2012), uma ciência alegre que ofereça ao ser humano o que é seu de direito.
20
Significa adesão sem crítica as práticas científicas, sem se perguntar se o que ela busca é justo ou desejável.
87
conhecer, é fundamental resgatar o ethos, movimento empreendido por Nietzsche (1996) ao
resgatá-lo dos pré-socráticos. A Grande Ética, pensada aqui tendo como referência o ethos
grego, enquanto possibilidade de afirmação da vida, visa restabelecer uma nova relação de
valoração, fundante, e com colorações para enfrentar e assumir a condição humana e, assim,
poder se dar ao experimento que é a vida.
Grande ética como convite a agir e pensar de acordo com a potência que nos atravessa.
Perspectiva que se funda na compreensão de que os seres humanos são vulneráveis uns aos
outros; experiência de estar exposto ao outro que implica em generosidade. Uma ética, de
acordo com Matos (2008), para reconhecer-nos e regenerar laços de solidariedade, para não
seguir atropelando o outro. Ética de emergência do humano que oferece um lugar para outro,
lugar desde sempre já dele. Grande Ética fundada na alteridade. Clinicar nesta perspectiva é
estar assentado nas grandes questões do destino humano.
Uma clínica que permite esvaziar-se do imperialismo e do egoísmo para estar diante do
outro com o objetivo de resgatar a inocência do vir-a-ser. Ética como morada humana e não
como normas e regras morais para o viver (Marques, 1989), normalmente leis que massificam a
humanidade e a reduzem aos procedimentos científicos, técnicos e funcionais. Uma clínica
como Comunidade de Destino com alguém possibilita que a pessoa se sinta acompanhada no
registro do sofrimento dela. Perspectiva que se faz, ou melhor, que acontece numa relação de
fraternidade, e portanto, ética.
Ao afirmar a vida sem julgá-la, sem sentidos prévios, o homem passa a manifestar uma
aquiescência profunda diante do que foi, do que é e do que será, convertendo a integração da
vida em um profundo amor ao destino. Aceitação que carece de justificativas, pois não há uma
causalidade exterior que explique e tampouco seja causa primeira ou razão última. Uma ética
que recupere o conhecimento21 valorativo, conhecimento que implica a recuperação do valor da
vida.
Clínica da Grande Ética que passa a desejar esta condição que nos obriga a nos
diferenciar de nós mesmos. Uma perspectiva que compreende a tensão como parte do
movimento da vida e que apenas momentaneamente consegue apaziguar. Ordem e caos
passam a ser pensados como indissociáveis (Rolnik, 2003). Há sempre ordem e caos ao mesmo
tempo, do caos estão nascendo novas ordens, assim como a processualidade da vida é intrínseca
à ordem. Implica mudança na perspectiva de relação com o paradoxal, pois é preciso que o mal
estar mobilizado possa deixar de ser trauma. Inexiste um lugar neutro e salvo da
processualidade da vida. O contrario é se aliar ao que já se conhece.
21
Conhecimento, no sentido etimológico, como nascer-com (Maffesoli, 2003).
88
Clinica do Ethos compreende que aquilo que o inquieta é uma diferença que se
engendrou no caos. Devir é a própria inquietação, fluidez, permanente produção e composição
de forças inéditas. É abertura que, de acordo com Rolnik (1999), depende de suportarmos o
caos, de suportarmos as diferenças que ai se engendram sem associá-las ao perigo de
desintegração, de modo que o caos deixe de ser tão aterrador. Necessário e fundamental
suportar, acolher e manejar o jorro da vida e assim dar suporte a vida em seu processo de
expansão.
Ethos, segundo Marques (1989), envolve um modo de ser, um modo de ver e de estar no
mundo, o qual se assenta na abertura à alteridade, no reconhecimento de si, dos outros e da
comum(idade). A palavra ética refere-se às condições necessárias ao acontecer humano, isto é,
ao que permite a cada sujeito “morar” no mundo humano. Segundo Barreto (2007), um gesto
eminentemente ético, fundado na abertura para algo que nos transcende. Recepção fundamental
para o ingresso no mundo humano. É dando hospitalidade ao outro em sua singularidade, que
nos deixamos visitar pela sabedoria transgeracional que o outro porta, nos colocamos mais
próximos dos fundamentos das necessidades humanas.
Ser humano, a partir desta concepção, de acordo com Safra (2004), é ser uno e múltiplo,
é singular e coletivo, é ser e não ser ao mesmo tempo, demandando por uma posição ética e
epistemológica assentada no paradoxo. Intermédio necessário ao humano, ou seja, se faz
necessário que o ser humano permaneça no entre, isto é, entre o dito e o indisível, entre o
encontro e a solidão, entre o claro e o escuro. Uma clínica em que ao ouvirmos alguém
formular as questões de seu destino, estamos ouvindo o sofrimento de um e de todos. Assim
podemos adentrar numa Clínica da ética como Comunidade de Destino.
Para Safra (2004: 27), a “clínica é essencialmente ética e a ética é clínica”, pois se trata
de considerar o sujeito como ser e presença e não como coisa. Tendo como base esta
perspectiva faz-se fundamental compreender a questão do tempo, dos objetos, da natureza que
cercam o sujeito, numa incansável busca de dar sentido ao que se apresenta fragmentado e
disperso. Solo ético, fraterno como campo fundamental da apropriação de si por campos
estéticos.
89
Ao pensar em estética, necessário ter sempre como referência a própria etimologia da
palavra, est-ética22, enquanto uma ética dos sentidos, como uma ética de afirmação dos
sentidos, como possibilidade de acessar o manancial que é a vida, indispensável para que se
inventem estilos de ser através das quais a vida possa fluir.
Vivemos em um tempo, de acordo com Almeida & Almeida (2011), em que a estética
torna-se profundamente necessária, por permitir e potencializar o desacelar do cotidiano,
produzindo outras dimensões do tempo, habitando outros devires e encarnando as diferenças
em um novo modo de existência, tanto no sentido de fazer novas composições quanto no de
desmanchar composições vigentes.
Grande Estética, de acordo com Almeida & Almeida (2011), como potência de afetar e
ser afetado, de constituir Comunidade de Destino através de nossos encontros com a alteridade
a partir dos distintos atravessamentos que nos constitui, mas procurando escapar de
modelações passivas. Um modo de ser artista, de acordo com Rolnik (1996), que se reconhece
por sua especial intimidade com o enredamento entre vida e morte, razão e sensibilidade,
ordem e caos, clínica e vida. É no encontro em Comunidade de Destino que o sujeito pode
acessar a si mesmo no campo estético.
22
Faço referência aqui ao sentido etimológico proposto por Michel Maffesoli, onde estética é a faculdade de
sentir em comum, afirmando um modo de ser que saiba integrar todos os parâmetros da existência que são
considerados habitualmente como secundários, ou seja, tudo, que pode possibilitar uma vivência pré-individual
ou transindividual. Melhores esclarecimentos sugiro a leitura da obra ‘No fundo das aparências’ de Michel
Maffesoli (1996).
90
de interioridades, mas justamente a sair de nós mesmos, deixando os planos das interioridades
psicológicas e nos abrindo para novas sensibilidades.
Não diz respeito a anular as diferenças, mas coloca-las lado ao lado, para que entrem em
ressonância ou em relação de transversalidade. A clínica, portanto, estará circunscrita numa
zona de vizinhança com a arte, forçada em seus limites por elementos que pedem passagem,
situação que coloca a clínica em devir.
Comunidade de Destino como expressão de uma existência mais livre e conectada com
o outro, que possa, de acordo com Rolnik (2003), permitir morada e afirmação do estrangeiro
que existe em nós e, dessa forma, sair dos modos fascistas de apropriação da vida. O paradoxo
como parte preponderante deste modo de clinicar, pressiona os contornos das formas vigentes e
força a subjetividade a redesenhar-se. É neste contexto que se mobiliza a força de invenção,
propulsora de uma Clínica com vocação privilegiada para rasgar a cartografia do presente e
liberar a vida em seus pontos de interrupção devolvendo-lhe a força de germinação. Dessa
forma, uma Clínica como Comunidade de Destino como possibilidade de transformar a própria
vida em laboratório poético.
91
3.4.3 Grande Política23: Clínica da Pólis como Comunidade de Destino
A Grande Política, conforme proposta por Nietzsche (apud Boas, 2011), é indissociável
da Grande Ética e da Grande Estética e, portanto, é parte integrante e indissociável de seu
projeto maior de critica da modernidade, caracterizada em demasia pela exigência de
racionalidade a qualquer preço.
A Clínica tendo como referencia a Grande política visa à desobstrução dos processos
que prejudicam a processualidade. Até porque obstruídas as saídas, a vida fica acuada e ai sim,
há grandes chances de se produzirem situações devastadoras (Rolnik, 2003).
Grande Política como condição que funda Comunidade de Destino, como condição para
o nascimento de mundos para a formação de uma pólis, instaurando condições para a iniciativa
e palavra de cada um, abrindo campo para a afirmação diferenciada de nossas opiniões,
incrementando a apresentação variada do mundo, variadas apresentações de nós mesmos
(Gonçalves Filho, 2003). Assim como fizeram os gregos pré-socráticos, esses fundadores da
cidade e da cidadania.
Uma clínica da Grande política tem como meta fazer tremer nossos contornos e nos
separar de nós mesmos, em proveito de outros que estão em vias de diferir. Uma clínica que se
caracteriza demasiadamente por aliar-se com forças da processualidade da vida (Rolnik, 1995),
23
Nietzsche não oferece detalhes em suas obras de como a Grande Política deveria ser conduzida. Podemos dizer
que sua preocupação era com a ordenação do mundo. Não há portanto, um projeto político em sua obra, mas sim
uma saída cultural que modificaria suas estruturas.
92
aliança que passa a ter como compromisso estar à escuta do excluído, do interditado e com a
sustentação das tensões e conflitos (Figueiredo, 1995). Este é o rigor da Clínica da pólis como
Comunidade de Destino, o rigor de uma luta contra as forças em nós que obstruem as nascentes
do devir.
3.5. Clínica como clinamen, como condição de possibilidade de ruptura com a tradição
Clinica que vai sendo engendrada e que põe em evidencia o deslocamento para uma
posição inventiva, não polarizada, não estratificada, de modo a pensar agonísticamente,
potencializadora de múltiplas entradas e múltiplas saídas.
Uma clínica como Comunidade de Destino operadora de uma profunda ruptura que
corresponda ao sofrimento de quem a procura e que seja capaz criar condições de intensificação
da vida que, como consequência e em última instância, agita as potências até mesmo
inesperadas e impensáveis, delineando trajetos ético-estético-políticos mais dignos. Em outras
palavras, trata-se de uma clínica que opera passagem nisso que aparentemente repousa ou se
prosta.
Pensar a partir do clinamen é um desafio que tem nos acompanhado ao longo deste
trabalho. Uma clínica, neste sentido, deve ser entendida e operada como uma prática ética,
estética e política para além de um exercício disciplinar, não restrita a saberes médicos,
psicológicos ou de qualquer outro campo ou área do saber. Trata-se, isto sim, segundo nossa
compreensão, de movimentos operados e manejados a partir da relação, da constituição de um
lugar - ethos – este podendo ou não ser curativo ou mesmo terapêutico. Movimentos que dão
passagem ao que de potente se anuncia nos mesmos.
93
4 POR UMA CLÍNICA ENRAIZADA NA CONDIÇÃO HUMANA: REFLEXÕES
94
projeto funcional. Essa condição que fratura o ethos humano tem se manifestado a partir do
corpo, dos sentimentos e das ações, testemunhando um corpo cansado, esgotado, em pânico e
imerso em condições somatoformes e psicossomáticas. Sentimentos que, de tão abafados,
negados ou estimulados, nos levam ao desenvolvimento de sinais e sintomas de depressão,
distimias e bipolaridade, por exemplo.
Também a título de exemplo podemos citar a clínica psicológica que, nos dias de hoje,
vê-se frente ao crescimento alarmante da presença do burnout, na qual é expressiva
manifestações corporais (problemas psicossomáticos e somatoformes), assim como
dificuldades de lidar com os sentimentos. Não por acaso, o burnout também é conhecido
simplesmente por depressão. As dificuldades no campo da ação são extensivas aos
profissionais que também se veem impotentes para lidar com a complexidade e a
imprevisibilidade do humano. Sendo assim, importante compreender o burnout não apenas
como uma condição do trabalhador contemporâneo, mas como uma condição do homem dos
dias de hoje. Um analisador deste tempo marcado pela funcionalização da existência que, no
limite, queima o sujeito (daí a dispepsia existencial que nos corrói profundamente) para lidar
com as mínimas situações existenciais. Queimor oriundo do excesso de funcionalidade, um
modo de ser excessivamente racional, que incapacita ou mesmo gera inabilidade frente à
existência.
24
O sentido etimológico de transtornar remete a “dar voltas”, “arredondar”, “alterar a ordem”, “fazer mudar”,
“incomodar”, “trazer perturbação a”. Apesar da positividade que o verbo transtornar indica, conforme Marafon
(2013), transtorno é um termo que vem sendo utilizado crescentemente no processo de biologização da
psiquiatria, ou melhor, no processo de funcionalização da existência. Transtorno tornou-se nos dias de hoje a
maneira rápida, naturalizada e socialmente difundida de se referir ao sofrimento humano. Aparece como efeito
dizível de uma psiquiatria cada vez mais biológica, marcadamente a partir da III Edição do Manual Diagnóstico e
Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM). Neste contexto, para a se dar a constituição e ampliação do raio de
abrangência da funcionalização da existência para toda uma série de microdesvios, pequenas anormalidades,
95
profundamente amparada por discursos vividos e compreendidos como verdades
inquestionáveis. Práticas que reforçam que o problema está no sujeito, isolando-o ainda mais
do mundo, desconsiderando profundamente questões existenciais. Dimensões de governo da
vida que não se situam em um lugar específico, mas que circulam por todos os quadrantes do
mundo, em tudo intervindo e não tendo fronteiras.
Uma clínica como Comunidade de destino tem sempre como meta a criação de
condições que possibilitem o acolhimento do humano. Requer um saber que tende a ser
transdisciplinar, transindividual e transgeracional e, dessa forma, profundamente subversivo,
propulsor e criador de versões outras frente ao contexto contemporâneo, sempre tendo como
prioridade o ritmo humano. Perspectiva paradoxal que muito se aproxima das abordagens
clínicas de Winnicott e Perls e que valorizam o transitivo como dimensão fundante do
humano.
configurações subjetivas advindas de problemas e conflitos sociais que doravante, passarão a integrar o universo
de governo da vida, com o objetivo de abarcar todo e qualquer desvio.
96
Comunidade de Destino, que tanto acolhe quanto transmite os elementos disponíveis e
necessários ao mundo humano, em busca de novos sentidos e da possibilidade de lançar-se ao
seu próprio sentido de ser em devir.
Uma clínica que sustenta a precariedade da vida humana, que aceita a falibilidade como
inerente à condição humana; que se encontra na fragilidade do “entre”, do “âmbito”, da
“sobor”, lugar ambíguo, profundamente paradoxal, nascedouro do humano e profundamente
atravessado pelo mistério da existência humana. Uma clinica dedicada ao emergir humano, na
qual as questões humanas permearão todo o percurso. Uma clínica da passagem
compromissada com a existência deixando existir o que é direito e convocando a novas
possibilidades existenciais, cujo objetivo primordial é criar condições que permitam que aquilo
que se encontra impedido de passar (ao corpo, aos sentidos e ao mundo), encontre vias de
expressão.
Por sua vez, realizar uma clínica como Comunidade de Destino implica em uma posição
epistemológico-metodológica assentada no paradoxo, aliada às forças de processualidade da
vida, que traz à baila a existência. Uma clínica como Comunidade de destino numa perspectiva
ética, estética e política marcada pelo cultivo do humano, que exclui tudo que degenera a vida,
empenhada na travessia para enxergar e criar outras possibilidades e afirma-las como um
destino.
Clínica que entende e vive o paradoxo como coração pulsante, onde o que conta é o
pulsar, o fluir, o que se dá no âmbito (di-gestivo); sendo assim, o que interessa é criar para
construir um corpo sensível, como diria Rolnik, ou uma razão sensível como diria Maffesoli. O
clínico se coloca como um intercessor para aquilo que está pedindo passagem, para os afetos
que estão ali, para aquilo que nos habita, que permite a cada um de nós morar no mundo
97
humano. Um trabalho para que a morada humana possa ser permeada pela estética, firmando e
posicionando um modo de ser, passaporte possível para a experimentação.
E dessa forma, uma clínica da Grande Ética, da Grande Estética e da Grande Política
assentada na condição humana como prática que insiste em criar condições para a
despatologização, a desmilitarização e desjudicialização da vida, atravessada demasiadamente
pelo mistério da existência. Uma clínica como intervenção política visando o desmanchamento
da base subjetiva desse regime funcional capitalista, instalando o humano em seu único lugar
possível, a Comunidade de Destino.
Este trabalho tem a modesta intenção de participar do debate sobre a Clínica Psicológica
Contemporânea. Compreendo ser fundamental pesquisas que possibilitem e ampliem o debate
acerca da clínica como Comunidade de Destino, que teçam produtivas relações com a ética,
com a estética e com a política, sobretudo porque dispomos de pouca bibliografia em
psicologia acerca dessa temática, campo fértil a novas investigações que pretendo aprofundar
no doutorado.
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