Voz Passiva Ou Topicalização Na Libras
Voz Passiva Ou Topicalização Na Libras
Voz Passiva Ou Topicalização Na Libras
Instituto de Letras - IL
Departamento Linguística, Português e Línguas Clássicas - LIP
Programa de Pós-Graduação em Linguística – PPGL
Brasília - DF
2014
II
Brasília - DF
2014
III
DISSERTAÇÃO DO MESTRADO
BANCA EXAMINADORA:
____________________________________________
Prof. Dr. Marcos Araújo Bagno
(Membro efetivo - LET/UnB)
___________________________________________
Profa. Dra. Orlene Lúcia de Sabóia Carvalho
(Membro efetivo - LIP/PPGL/UnB)
_________________________________________
Profa. Dra. Daniele Marcelle Grannier
(Membro suplente - LIP/PPGL/UnB)
V
Dedico essa dissertação à comunidade surda brasileira pelo aprendizado da Libras e por ter
contribuído para minha vida profissional. Dedico também ao meu primo escritor, Francisco
Tancredo Torres (in memoria) pela sua delicada sabedoria com as palavras.
VI
AGRADECIMENTOS
Ao querido professor Dioney Moreira Gomes, amigo e colega, pelas valorosas orientações, pela
grande disposição e contribuição ao meu aprendizado e pela paciência.
Aos meus professores do PPGL, pelos ensinamentos de novas oportunidades e aprendizado.
Às secretárias do PPGL, sempre solícitas em atender minhas necessidades. Aos meus colegas do
mestrado, surdos e ouvintes, pelo compartilhamento de conhecimento e apoio.
Ao CNPq, pelo apoio financeiro para com minha pesquisa.
À comunidade surda brasileira, pelas trocas em Libras que tanto contribuíram para minha
pesquisa.
Aos meus pais e irmãos, que me deixaram saudades. Serei eternamente grato pela educação que
recebi durante minha trajetória. Sempre me compreenderam, inclusive com a distância, pois
precisava seguir meu caminho.
Aos meus familiares e amigos do Piauí, da Paraíba e do Distrito Federal, pelo apoio e incentivo
aos estudos.
Aos meus filhos pela paciência e compreensão por dedicar tantas horas nas pesquisas.
À minha eterna companheira e esposa de caminhada, com as bênçãos de Deus. Sempre dedicada
em me apoiar, sobretudo nas horas difíceis. Obrigado por tamanha paciência.
VII
RESUMO
Perceber a voz passiva como uma estratégia morfológica e sintática para i) aumentar a
topicalidade de um paciente – colocando-o na posição sintática de sujeito – e, necessariamente,
ii) diminuir a importância do agente – colocando-o na periferia da frase ou até apagando-a dela –
é tarefa que vai muito além de transformar, mecanicamente, sentenças ativas em passivas. A
presente pesquisa apresenta um estudo da sintaxe da Libras a fim de descobrir se tais
características, tão presentes em (algumas) línguas orais, são observadas em Libras. Ou, dito de
outra forma: como os enunciados, em Libras, colocam o paciente em posição de tópico? Haveria
ainda, nos dados observados, mudança nas funções sintáticas dos argumentos, em que o paciente
assumiria a função de sujeito? Questionamentos merecedores de destaque nesse processo de
análise e descrição de uma língua de sinais. É, mediante o olhar funcionalista-tipológico que esta
dissertação evidencia o paciente em posição de tópico, além de outras estratégias utilizadas para
topicalizar em Libras. Consideramos, a partir desse olhar, que a língua é um conjunto de
ferramentas, dinâmica, cujos componentes linguísticos são analisados na interação verbal,
descartando uma preocupação exclusiva com a pura competência para a organização gramatical
das frases. Este estudo nos fez perceber a infinidade de fenômenos linguísticos ainda tão pouco
(ou nunca) analisados na Libras. Como resultados, constatamos que não há uma forma
morfossintática específica e que poderia ser chamada de voz passiva em Libras, mas há formas
possíveis de topicalizar o paciente a partir de construções (pro)tipicamente transitivas. Nosso
percurso metodológico acabou por nos mostrar que mesmo surdos altamente escolarizados têm
dificuldade em compreender a passiva do português, o que nos deixa um espaço novo para
futuras pesquisas sobre a temática.
ABSTRACT
To understand the passive form as a morphological and syntactical strategy that can i) rise the
topicality of a patient - moving it to the subjects’ syntactical position – and, necessarily, ii)
reduce the agent’s importance - moving it to the phrasal periphery or even extracting it – it’s a
task that goes beyond of only transforming, mechanically, active sentences into passive ones. The
present research aims to investigate the syntax of the Libras and to find out if those above cited
features, that are so present in (some) spoken languages, are found in Libras. Or, put another
way: as the statements, in Libras, set the patient in a topic position? There would have, in the
collected data, changings in the syntactical functions of the arguments, in which the patient
would take over the subject’s position? This questions deserving an attention concerning to an
analysis and description’s process of a signed language. And it is, by the functionalist-typological
perspective that this master thesis finds the patient in the topic position, and other strategies used
in order to set the topic, in Libras. Consider, from that look, that language is seen as a set of
dynamic tools, whose linguistic components are taken from verbal interaction, abandoning the
exclusive preoccupation with the pure competence instead of the grammatical organization of the
phrases.This study collaborated to the awareness of how many linguistic phenomena have been
excluded from the Libras research’s agenda. As a result, we find that there is no specific
morphosyntactic form and could be called passive in Libras, but there are possible ways to
topicalizar the patient from buildings (pro) typically transitive. Our methodological approach
turned out to show us that even highly educated deaf have difficulty understanding the passive of
the portuguese, which makes us a new space for future research on the topic.
LISTA DE FIGURAS
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS......................................................................................... VI
RESUMO ............................................................................................................ VII
ABSTRACT ......................................................................................................... VIII
LISTA DE FIGURAS ......................................................................................... IX
SUMÁRIO ........................................................................................................... X
INTRODUÇÃO .................................................................................................. 1
2. Objetivos .............................................................................................. 5
3. Justificativa .......................................................................................... 5
CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO À LIBRAS E SUAS CONCEPÇÕES
7
HISTÓRICAS E CULTURAIS .........................................................................
1. Introdução ............................................................................................ 7
1.1 Origem das línguas de sinais e da Libras .......................................... 7
1.2 Comunidade Surda ............................................................................. 9
1.3 Política linguística para surdos .......................................................... 11
1.4 Escrita de sinais (Sign Writing) ......................................................... 13
1.5 Línguas de Sinais ................................................................................. 14
1.5.1 Fonologia .............................................................................................. 15
1.5.2 Morfologia ............................................................................................ 17
1.5.3 Sintaxe .................................................................................................. 19
1.5.4 Semântica e Pragmática ..................................................................... 20
CAPÍTULO 2 – SINTAXE DA LIBRAS .......................................................... 21
2. Introdução ............................................................................................ 21
2.1 Estrutura gramatical da Libras – um foco na sintaxe ..................... 21
2.2 Ordem das palavras ............................................................................ 23
2.3 Tipos de Verbos em Libras ................................................................ 28
2.4 Pessoa (referência) .............................................................................. 34
2.5 Tempo/Modo/Aspecto ......................................................................... 35
CAPÍTULO 3 – METODOLOGIA ................................................................... 37
3. Introdução ............................................................................................ 37
3.1 Fontes dos dados .................................................................................. 38
3.2 Escrita de Sinais e Português ............................................................. 39
3.3 ELAN .................................................................................................... 40
CAPÍTULO 4 - VALÊNCIA VERBAL ............................................................ 43
4. Introdução ............................................................................................ 43
4.1 Valência ................................................................................................ 44
4.1.1 Definição .............................................................................................. 44
4.1.2 Relações Gramaticais .......................................................................... 45
4.1.3 Papéis Semânticos ............................................................................... 46
4.1.4 Papéis Pragmáticos ............................................................................. 47
4.1.4.1 Tópico e Foco ....................................................................................... 48
4.1.4.2 Topicalização do Paciente .................................................................. 51
4.1.4.3 Rebaixamento do Agente ................................................................... 51
XI
INTRODUÇÃO
Uma vez que a universidalidade da língua de sinais está ancorada na ideia de que toda essa
língua é um “código” simplificado aprendido e transmitido aos surdos de forma geral, é
muito comum pensar que todos os surdos falam a mesma língua em qualquer parte do
mundo.
2
línguas de sinais. Outros autores, como Klima e Bellugi (1979), Wilbur (1987), Hulst (1993),
Supalla e Newport (1978) Padden (1983), Liddell (1984) aprofundaram os estudos sobre a
estrutura linguística da ASL – Língua de Sinais Americana.
A Libras começou a ser estudada cientificamente na década de 1980, com a pesquisadora
pioneira Lucinda Brito, que publicou o livro Por uma Gramática: Línguas de Sinais no ano de
1995. Segundo o historiador Antônio Campos, antes do termo Libras, ela defendia a sigla BCSL
(Brazilian Cities Sign Language), a fim de diferenciar as duas línguas existentes no Brasil: língua
de sinais usadas pelos surdos não-indígenas e a língua de sinais utilizada pela tribo indígena
Urubu-Kaapor1.
A pesquisadora viajou para a Europa e os Estados Unidos para explorar os conhecimentos
das línguas de sinais em diversos países e oferecer informações sobre a gramática da Libras.
Dentre essas informações, constam em suas pesquisas aspectos fonológicos, morfológicos,
sintáticos, o uso dos chamados classificadores e a transcrição de sinais, entre outros, sempre
comparando a Libras à ASL.
Ronice Muller de Quadros, coda2, professora e pesquisadora da área, escreveu a
dissertação As categorias vazias pronominais: uma análise alternativa com base na Língua
Brasileira de Sinais e reflexos no processo de aquisição. (1995) e a tese Phrase Structure of
Brazilian Sign Language (1999). Também há diversos livros publicados por ela, entre eles:
Língua de Sinais: Instrumentos de Avaliação (2011), Teorias de Aquisição da Linguagem (2008),
Questões Teóricas das Pesquisas em Língua de Sinais (2008), Curso de Libras 1 (2006), Ideias
para ensinar o português para alunos surdos (2006), Língua de Sinais Brasileira: Estudos
Linguísticos (2004), O Tradutor e intérprete de língua brasileira de sinais e língua portuguesa
(2004), entre outros.
Um dos livros de maior referência publicado por Quadros & Karnopp (2004), em
coautoria com L. Karnopp, é Língua de Sinais Brasileira: Estudos Linguísticos, que traz aspectos
da fonologia, morfologia e sintaxe da Libras.
1
Pesquisa elaborada pela Ferreira Brito com as citações dos capítulos: “Similarities and Differences in Two
Brazilian Sign Languages, em 1984, e “A Comparative Study of Signs for Time and Space in São Paulo and Urubu-
Kaapor Sign Languages”, em 1985.
2
Coda é o termo usado para designar ouvintes que são filhos de pai e mãe surdos. A origem desse termo é a
seguinte: CODA = Child of Deaf Adults, organização criada pelos filhos ouvintes na década de 1980 nos Estados
Unidos; no Brasil, temos um grupo que participa dessa organização: http://codabrasil.blogspot.com.br.
4
Em 2a e 2b, temos topicalização, mas com diferentes níveis representados pelas diferentes
estruturas. Em 2a, temos apenas a inversão da ordem e a mudança de prosódia; "caneta" continua
sendo objeto direto. Mas em 2b, "caneta" passou a ser o sujeito do enunciado; outra importante
diferença é que o agente de 2b pode ser eliminado; isso mostra que é o paciente em 2b
estruturalmente mais significativo e, obviamente, é também pragmaticamente o mais importante.
Como isso acontece em Libras?
2. Objetivos
2.1.1 Estudar a sintaxe da Libras a fim de descobrir se há passiva nessa língua e/ou outras
formas de topicalização do paciente.
3. Justificativa
línguas de sinais e/ou sirvam para constatar ou não a presença de um mesmo fenômeno ou
elemento comum a todas elas.
Por fim, mas não menos importante, este trabalho pode vir a contribuir para produção
futura de materiais didáticos pertinentes ao ensino de português para surdos ou mesmo ao ensino
formal de Libras.
A metodologia empregada em nossa pesquisa e o quadro teórico usado serão
apresentados respectivamente nos capítulos 3 e 4.
Assim, esta dissertação está dividida em cinco capítulos: no capítulo 1, fazemos uma
introdução geral sobre a Libras e sua história, a comunidade surda e noções básicas da linguística
de Libras ; no capítulo 2, abordamos aspectos da sintaxe de Libras; no capítulo 3, apresentamos a
metodologia de coleta de dados com a biografia dos colaboradores e dos usos tecnológicos para
efetivar a coleta de dados; no capítulo 4, apresentamos o capítulo teórico; e, no capítulo 5,
analisamos as estruturas frasais da Libras através dos dados coletados com os colaboradores, com
imagens para obter o resultado da Passiva ou Topicalização em Libras.
7
1. Introdução
Pouco se sabe sobre a origem das línguas de sinais. Conforme Felipe (2009, p. 130),
uma fonte de registro antigo remonta a 368 a.C., na obra Crátilo, de Platão: “Suponha que nós,
seres humanos, quando não falávamos e queríamos indicar objetos, uns para os outros, nós o
fazíamos, como fazem os surdos-mudos, sinais com as mãos, cabeça e demais membros do
corpo?”. Entendemos que essa pergunta acaba por registrar a existência de comunicação entre
surdos já nessa época. É uma questão da sobrevivência.
De acordo com outros registros, uma língua de sinais era utilizada por monges
beneditinos da Itália, em 530 d.C., para manter o voto de silêncio (FELIPE, 2009, p. 130).
Segundo Moura (2000, p. 18), há registros de línguas de sinais iniciadas pelo filólogo e
soldado a serviço secreto do rei da Castela, atual Espanha, Juan Pablo Bonet (1579 – 1629), sobre
os métodos de ensino para os surdos através do uso do alfabeto digital, para alfabetizar e
transmitir conhecimentos gramaticais. Segundo Moura (2000, p.19), os moldes manuais do
alfabeto digital foram escritos pelo monge franciscano Melchior Yebra (1524 – 1586) e
divulgados em livros publicados na época.
8
3
http://asmtabascozac.blogspot.com.br/p/dia-nacional-del-sordo.html
4
http://asmtabascozac.blogspot.com.br/p/abad-charles-michel-de-lepee.html
9
Fonte:http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/agosto2011/ju500_pag3.php
Entretanto, é fato que sempre existiram sinais utilizados por surdos nas diversas regiões
do nosso país, como defende o historiador surdo Antônio Campos em vídeo gravado em Libras e
postado no blog “Brasil – Língua Brasileira de Sinais – Libras – Libraslândia”. Para ele, a Libras
teria surgido originalmente em Pernambuco.
Strobel (2008) apresenta diferenças entre comunidade e povo surdo. Quais seriam as
diferenças mais relevantes se compararmos esses dois conceitos? Vejamos a definição do Novo
Dicionário Aurélio (2010): “Comunidade é qualquer grupo social cujos membros habitam uma
região determinada, têm um mesmo governo e estão irmanados por uma mesma herança cultural
e histórica”. Já “povo é um conjunto de indivíduos que falam a mesma língua, têm costumes e
hábitos idênticos, afinidade de interesses, uma história e tradições comuns”.
10
Para Strobel (2008, p. 33), a comunidade surda, de fato, não é formada só de sujeitos
surdos; há também sujeitos ouvintes – membros da família, intérpretes, professores, amigos e
outros – que participam e compartilham interesses em comum, em uma determinada localização,
e o povo surdo é aquele que, embora não habite o mesmo bairro ou cidade em um país, apresenta
tradições parecidas através das origens e também com o uso da língua de sinais.
Felipe (2009, p. 82) apresenta características peculiares à cultura surda em sua
comunidade. Assim os surdos:
a) preferem se relacionar com outros surdos;
b) gostam de fazer piadas com as diversas interações entre surdos e ouvintes;
c) usam o teatro para trazer experiências do universo surdo;
d) têm um modo peculiar de olhar o mundo, onde as pessoas são expressões faciais e
corporais ;
e) como falam com as mãos, evitam usá-las desnecessariamente e, quando as usam,
possuem uma agilidade e leveza que podem se transformar em poesia.
Sobre como analisar uma língua de sinais na comunidade surda, a fim de coletar dados e
compreender a existência das diferenças de sinais entre as comunidades, Zeshan (2008, p. 46,
apud SOUZA e SEGALA 2009) afirma:
Para compreender melhor a política linguística, Arnoux (1999, apud Castilho 2010, p.
97) afirma que “o estudo das políticas linguísticas são estimuladas por necessidades sociais e,
em grande medida, tende a propor linhas de intervenção” e, ainda, aquele que se interessa pela
política linguística “deve aderir a certos princípios políticos, éticos, ideológicos que vão orientar
sua pesquisa e suas propostas”.
Azeredo (2005, p.5) apresenta a opinião do militante surdo Antônio Abreu sobre
comunidade surda:
Os governos têm a missão de fazer suas ações sobre as línguas conforme os interesses da
sociedade defensora do reconhecimento da sua língua:
tradutores e intérpretes de Libras, bem como de parte da sociedade que defende os direitos dessa
minoria.
As crianças surdas devem adquirir Libras como primeira língua, e Português como
segunda língua. É o que dizem os resultados da pesquisa do Programa de Avaliação Nacional do
Desenvolvimento Escolar do Surdo – PANDES cujo coordenador e responsável pela equipe é o
professor Dr. Fernando Capovilla. Em entrevista dada ao Estadão 27/07/2011, ele fala sobre a
escolarização com as crianças surdas, em Libras e, os deficientes auditivos, em português. Esse é
o maior programa do mundo para avaliação do desenvolvimento escolar, de cognição e de
linguagem de uma população escolar surda e ocorreu entre 2001 e 2011 com o apoio do CNPq,
Capes e Inep, com a participação de mais de 8 mil surdos em 15 estados brasileiros.
Fonte: www.facebook.com/photo.php?fbid=157285261009141&set=o.193408724034259&type=3&theater
Utilizaremos, no presente trabalho, o sistema elaborado por Sutton para registrar alguns
exemplos em Libras.
O objetivo desta seção é apresentar uma introdução a alguns aspectos linguísticos das
línguas de sinais. A língua de sinais utilizada em vários países não é universal. As línguas de
sinais têm sua gramática diferenciada conforme cada país ou comunidade. É fundamental
conhecer as noções básicas da linguística da língua de sinais para amplia as pesquisas nessa área.
Para Ramos (1995, pag. 21), as LS são portadoras de estrutura própria e, portanto,
codificadoras de uma 'visão de mundo' específica, constituídas de uma gramática, apresentando
especificidades em todos os níveis: fonológico, sintático, semântico e pragmático.
Segundo Quadros & Karnopp (2004, pag. 08): LS são línguas que são utilizadas pelas
comunidades surdas. As línguas de sinais apresentam as propriedades específicas das línguas
naturais, sendo, portanto, reconhecidas enquanto línguas pela Linguística. As línguas de sinais
são visuais-espaciais, captando as experiências visuais das pessoas surdas.
Para Gesser (2009), existem falácias sobre língua de sinais, entre elas: LS é universal (a
mesma em todos os lugares do planeta), artificial, mímica, alfabeto manual, ou mesmo
afirmações como “a língua de sinais é o código secreto dos surdos”, “a língua de sinais é o
alfabeto manual” ou “a língua de sinais tem suas origens históricas na língua oral”. Para os
estudiosos da LS, todas essas falácias devem ser abolidas a fim de evitar perpetuar tais equívocos.
Uma língua, seja ela visual ou oral, possui estrutura gramatical específica com estruturas
linguísticas diferenciadas na: fonologia, morfologia, sintaxe, semântica e pragmática.
5
Propriedades sublexicais são as subdivisões da unidade mínima do sinal como os parâmetros: configurações de
mãos, sua orientação, movimentos do espaço e expressões faciais ou expressão não manual. (ROSA, 2008 p. 51)
15
1.5.1. Fonologia
Nos estudos sobre línguas de sinais, as pesquisas têm falado em fonologia. De acordo com
Xavier (2006), Stokoe (1960) e Battison (1978), os sinais da Língua de Sinais Americana (ASL)
são constituídos de três partes ou parâmetros independentes:
1. Localização: é o local do corpo em que o sinal é produzido;
2. Configuração de Mão: é a forma da mão em que o sinal é apresentado;
3. Movimento: é uma maneira como a mão se move.
Segundo Xavier (2006, pag. 13): “em 1978, Battison acrescentou um outro parâmetro, o
de orientação da palma, devido ao aspecto de sinais com pares mínimos. A orientação da palma
distingue um sinal do outro”.
Para compreender os pares mínimos em sinais, Leite (2008) afirma que é possível
identificar aspectos dos sinais que permitem a distinção de itens lexicais. Vejamos um exemplo6:
<TRABALHAR> <TELEVISÃO>
Os sinais acima são pares mínimos por apresentarem a mesma configuração de mão,
localização, movimento e ausência de expressão não-manual. O único parâmetro que os
diferencia é a orientação da mão. No sinal de “trabalhar”, as palmas das mãos são orientadas para
6
Para os leitores compreenderem melhor, os sinais escritos, abaixo das figuras, apresentam uma pequena diferença
na orientação dos dois sinais. Assim, na escrita, o sinal TRABALHAR tem os dedos dos indicadores cortados com a
mão, indicando que a palma está orientada para baixo, e o sinal de TELEVISÃO não apresenta cortes dos dedos;
portanto, a palma permanece orientada para parede.
16
baixo, e, no sinal de “televisor”, as palmas das mãos são orientadas para frente. Vejamos outro
exemplo:
<APRENDER> <LARANJA>
O sinal de “aprender” está localizado na testa, enquanto o sinal de laranja está localizado
próximo à boca; portanto, só alteramos a localização, o que os torna pares mínimos,
analogamente ao que encontramos com fonemas.
De acordo com Leite (2008, p.21), Stokoe denominou o componente fonológico dos
sinais de querema (do grego Khéir, mãos) por acreditar que a denominação fonema seria
inadequada por ela ser relacionada a som. Mas a literatura linguística não adotou essa
terminologia, assim como também não adota mais os termos originalmente empregados para
designar os componentes (parâmetros dos sinais): configuração de mão originalmente era
denominada designator; localização era tabula e movimento, signation.
Leite (2008) informa ainda que Liddel (1978) notou o uso de algumas expressões faciais
por alguns surdos falantes de ASL. Ela fez o registro através de fotos de diversos sinais,
apresentados pelos surdos e constatou o uso da expressão facial em vários momentos desse
registro.
Porém, para Leite (2008), Stokoe já havia falado do papel da expressão facial em 1965,
quando abordou os argumentos de sim/não e, posteriormente, Bellugi e Fisher (1972) e Baker
17
(1976) já tinham revelado que o movimento da cabeça de um lado para outro indicava uma
oração negativa.
1.5.2. Morfologia
Para Leite (2008), Mesquita (2008) e Quadros & Karnopp (2004), a maioria dos sinais em
Libras são monomorfêmicos. Ou seja, um sinal apresenta apenas uma forma, um morfema, que é
composto de todos os parâmetros da língua de sinais proposto por Stokoe. Vejamos isso nos
exemplos abaixo, em que um único item lexical é utilizado para executar o sinal:
<HOMEM> <HOSPITAL>
Conforme Leite (2008), haveria 3 tipos de sinais complexos, todos formados por
composição:
<CASA> <CRUZ>
<IGREJA>
Aqui o sinal apresenta configurações de mão distintas, para expressar a quantidade de dias.
<TRABALHAR> <TRABALHAR-MUITO>
1.5.3. Sintaxe
Os estudos de sintaxe da ASL e das demais LSs do mundo ganharam um novo impulso a
partir da década de 70. Até então, a maior parte dos pesquisadores acreditava que a
ordem das sentenças na ASL era basicamente livre, sem restrições, tendo em vista que,
em diferentes contextos discursivos, os sinais correspondentes a sujeito e objeto
apareciam posicionados de diferentes maneiras em relação ao verbo. Essa visão
começou a mudar a partir dos estudos que vieram destacar o importante papel dos sinais
não-manuais, principalmente relativos ao rosto e à cabeça, na identificação de
fenômenos sintáticos. (LEITE, 2008 p. 28)
20
E a sintaxe da Libras, no Brasil, começou a ser estudada a partir da década 1980. Namura
(1982) fez uma dissertaçao com o tema A ordem sintática e a repetição em Mogi das Cruzes. Na
sequência, vieram os estudos de Brito (1984) com pesquisas que tomaram como parâmetro o que
se pesquisava em ASL. Reservamos o capítulo 2 desta dissertação para abordar melhor a sintaxe
em Libras, sobretudo com relação aos temas sintáticos que nos interessam pesquisar aqui.
2. Introdução
<APRENDER> <SÁBADO>
Stokoe (1965) propõe ainda que os sinais são compostos por três elementos fonológicos
básicos: configuração de mão (CM); localização (L) e movimento (M). Em estudos posteriores,
Battison (1974), Liddel e Johnson (1989) apud Crato (2010) acrescentam a orientação da palma
da mão (OR) e as expressões não manuais (ENM) como dois outros elementos que possuem um
importante papel no que poderia ser chamado de estrutura fonológica dos sinais.
Nas línguas de sinais, a unidade que unifica forma e significado é o sinal. Os sinais podem
ser formados por mais de um componente que denota sentido e/ou função gramatical. Segundo
Oliveira e Cunha (2011), os componentes dos sinais são simultâneos, o que, a nosso ver, dificulta
a identificação de morfemas. Para Meir (2012) uma característica marcante das línguas
sinalizadas é o fato de o léxico apresentar um número maior de elementos icônicos do que as
línguas orais.
Para Souza (2014), outro ponto de estudo sobre a morfologia são os estudos de processos
sobre a formação e a modificação dos sinais. Há os processos de criação de novas palavras,
conhecida como morfologia derivacional, e os processos de criação de novas formas da mesma
palavra, morfologia flexional.
A sintaxe, segundo Quadros & Karnopp (2004, p.20), é: “a parte da linguística que estuda
a estrutura interna das sentenças e a relação interna entre suas partes”. Ao analisar as estruturas
internas das sentenças na Libras, podem-se perceber as seguintes características: ausência de
preposição, de conjunções e de verbos de ligação, a incorporação de verbos direcionais ou com
concordância ou flexão, típico de línguas espaço-visuais. (FERNANDES, 1994).
Os principais aspectos linguísticos da sintaxe de Libras, conforme Stumppf (2005 p. 25),
são: exploração do uso do espaço (organização de objetos e referentes e não-presentes); uso da
23
marcação de concordância nos verbos com concordância; uso dos elementos necessários para
marcação de concordância com verbos sem concordância (auxiliar, ordem linear, topicalização e
foco); uso de estruturas complexas (interrogativo, relativas e condicionais); uso de topicalização;
uso de estruturas com foco e uso de marcação não-manual gramatical para realização de
concordância; perguntas QU e sim/não; negação. Todos esses aspectos são abordados por
diversos autores, mas não foram ainda aprofundados.
Para exemplificar essa sintaxe da Libras com suas regras específicas, a seguir abordamos
o conceito de ordem de palavras na língua de sinais e a chamada concordância na língua a partir
dos tipos verbais em Libras.
Segundo Souza (2014), um dos temas mais discutidos na área da Sintaxe é a ordem básica
dos constituintes na frase em diferentes línguas de sinais e em diferentes tipos de sentenças,
principalmente as sentenças interrogativas e as construções de tópico e foco.
Quadros (1999) afirma que a Libras tem uma estrutura da ordem dos constituintes
semelhante à da ASL: (S) sujeito, (V) verbo e (O) objeto – SVO.
Para Fisher (1973), a ordem básica em ASL também é SVO, porém “Se o verbo for
transitivo e o sujeito e o objeto forem reversíveis, ou seja, há uma mudança na orientação da mão
e da direção do sinal, a flexibilidade nas ordenações será mais restrita” (Fisher, 1973, p. 15 apud
Quadros & Karnopp, 2004, p. 135). Fisher também constatou que as estruturas não-reversíveis,
ou seja, flexíveis, apresentam quatro combinações SVO, OSV, VOS, e SOV, sendo que a OSV
produz uma possível topicalização do objeto, que será analisada no capítulo da análise de dados.
Quadros & Karnopp (2004, p.135), em consonância com Fischer (1973), confirmam que
há diferentes padrões de ordenação em virtude da flexibilidade na ordenação dos constituintes,
porém afirmam que essas ordens são arranjos existentes na língua derivados da ordem subjacente.
Souza (2014) destaca que todas as sentenças com ordem SVO são gramaticais.
Observemos alguns exemplos:
24
a.
b.
c.
A sentença (1b) traz um verbo simples, que significa sem concordância, e a sentença tem
a ordem SVO. Contudo, mesmo sendo verbo simples, apresenta os argumentos considerados
reversíveis, ou seja, ambos os argumentos possuem propriedades semânticas capazes de exercer
tanto a função sintática de sujeito quanto de objeto da sentença.
Quadros (1999), apesar de defender uma ordem básica da Libras, SVO, apresenta o que a
autora intitula como a flexibilidade na ordem dos constituintes. Algumas construções, como a
(1b) não permitem essa flexibilização, afinal, é a ordem SVO que estabelece as relações sintático-
semânticas de cada um dos argumentos. Caso tentássemos topicalizar o objeto, mudando a ordem
para OSV, teríamos possivelmente outra sentença, em que Marcos seria interpretado como
sujeito, e Carla, objeto.
Na sentença (1c), há um objeto oracional que, segundo Quadros (1999), é uma sentença
que apresenta apenas a ordem SVO como gramatical. Para ela, a topicalização do objeto,
particularmente nessa sentença, não é uma possibilidade. Situação semelhante foi registrada na
coleta dos nossos dados, porém, sem o ‘engessamento’ da ordem. Retomaremos essa discussão
no capítulo referente à análise dos dados.
Diferentemente, as sentenças cujos verbos possuem concordância, segundo a autora,
apresentam uma ordem mais flexível, sendo possível a topicalização do objeto:
(2)
Na sentença (2) acima, a ordem apresentada é (O) objeto (S) sujeito (V) verbo - OSV. Ao
sinalizar MARIA, há um processo de topicalização, evidente na mudança de ordem e na
26
expressão não-manual de elevar das sobrancelhas, como pode ser observado no quadro 1 ‘Maria’.
Importante lembrar aqui que, neste tipo de sentença, os verbos apresentam concordância. E se o
verbo utilizado na sentença não apresentar concordância? Como o objeto pode ser topicalizado?
Analisemos a sentença abaixo:
(3)
Para Quadros & Karnopp (2004), se o objeto é topicalizado e há uma marcação não-
manual - cf o primeiro quadro – independentemente do verbo apresentar concordância (ou não),
caracteriza-se a sentença em gramatical.
Outro ponto que merece destaque é a construção do foco, que apresenta constituintes
duplicados, para Petronio e Lillo-Martin (1997) as “construções duplas”. Para Quadros &
Karnopp (2004), o foco é gerado com entonação mais marcada, o que a autora denomina
‘focalização’, cujo elemento duplicado ocupa a posição final, como no exemplo:
(4)
Aspecto que também será observado na análise dos dados. Outra possibilidade de ordem é
a VOS que, segundo Quadros & Karnopp (2004) ocorre em contextos de foco contrastivo:
(5)
<JOÃO> OU <MARIA>?
Em síntese, Libras teria uma ordem básica SVO e outras derivadas; também é possível
perceber a importância do verbo para o estabelecimento da ordem, que se altera a depender se o
verbo apresenta concordância ou não.
Nos próximos dois tópicos, apresentaremos os chamados verbos com concordância para
uma melhor compreensão dos fenômenos que foram apresentados até aqui.
Os verbos sem concordância, ou verbos simples, são aqueles que não apresentam
nenhuma marca de concordância e são também conhecidos, na literatura, como verbos não-
direcionais.(6)
7
Encontra-se muito, na literatura sobre Libras, o termo “incorporação” usado de maneira genérica. Nesta dissertação,
vamos evitar usar esse termo em nossas análises por entendermos que ele é inadequado para expressar os fenômenos
linguísticos comumente associados a ele. Porém, ao citarmos as ideias de outros autores, manteremos o termo. Esse
termo, por exemplo, é bastante usado no contexto em que o sujeito e o objeto fariam parte do próprio verbo, sendo
considerados incorporados ao verbo.
29
a.
.
b.
c.
a) Ancorados no corpo – são verbos nos quais os sinais são feitos em contato com ou
muito próximos ao corpo. Nesses verbos, em virtude da não flexibilidade do verbo e
de ser próximo ao corpo, não há forma de marcar o sujeito e o verbo a não ser pelo
sistema pronominal, ou seja, não há incorporação de indicadores, é necessário
apresentar sujeito e objeto. Como no exemplo:
(7) a.
(08)
<EU> <COMER-MAÇÃ>
Eu como maçã.
* necessário destacar que o sinal de maçã sofre uma mudança devido à incorporação do objeto.
(09) a.
<CARRO> <IR>
O carro está passando.
b.
<COPO-CAIR>
O copo caiu.
32
Alguns verbos incorporam somente o objeto. Outra classificação sobre os verbos com
concordância é a apresentada por Souza (2014). Para o autor, a concordância pode ser dividida
em três subgrupos:
(11) a.
(12) a.
E uma última classificação denominada por Quadros & Karnopp (2004) de backward
verbs, em que iniciam a trajetória do sinal na posição do objeto e concluem na posição de sujeito,
ao contrário dos demais verbos que começam a trajetória na posição de sujeito e vão em direção à
posição do objeto (QUADROS & KARNOPP 2004, p. 203).
13) a.
Quadros, Pizzio e Rezende (2009, pag. 34) afirmam que a flexão é utilizada para marcar
as referências pessoais nos verbos com concordância. O referente é realizado por meio da
apontação para diferentes locais no espaço, estabelecidos para identificá-los, quando estes não
estão presentes no discurso. No caso de referentes presentes, a apontação é direcionada para a
posição real do referente. Se isso é ou não efetivamente um caso de flexão não será aqui discutido
por nós.
Segundo Castro (2010), essa apontação não ocorre de forma caótica. A primeira distinção
refere-se à pessoa do discurso. A autora apresenta uma distinção entre 1ª pessoa e não-1ª pessoa:
ao se fazer referência à 1ª pessoa, aponta-se diretamente para o peito do sinalizador. Para
referência a outras pessoas do discurso, há uma associação com um ponto distinto do espaço. O
ponto será estabelecido de acordo com o referente. E este ponto pode ser estabelecido de forma
diferenciada se o referente estiver presente ou ausente no momento da enunciação. Se o referente
estiver presente, aponta-se diretamente para o local, ou seja para sua posição real.
No caso da 2ª pessoa, ela é identificada imediatamente à frente do falante. Para Berenz
(2002) apud Souza (2014) essa regularidade constatada de sempre a segunda pessoa estar à frente
do falante levou alguns autores a discutirem se as línguas de sinais fazem ou não distinção entre
1ª pessoa, 2ª pessoa e 3ª pessoa. Porém, os estudos ainda são novos e não iremos detalhar nesta
pesquisa.
A 3ª pessoa é marcada ao se fazer referência à localização real do referente, se este estiver
presente na discussão, ou ainda, ao se atribuir um ponto abstrato específico no espaço de
sinalização. Para Meir (2002): “(...) devido a modalidade visual, cada nominal do discurso pode
receber uma localização distinta e, portanto, cada localização contém informações suficientes
para identificar unicamente seu referente”.
Para se determinar a pessoa, em todos os casos, a configuração usada é a mão em G. Na
primeira pessoa, o dedo indicador aponta para o peito do locutor e, na segunda pessoa, o
indicador aponta para o interlocutor. Pontos no espaço estabelecidos durante o discurso
representam as terceiras pessoas. Uma das formas de expressar o plural é por meio do movimento
semicircular para a segunda pessoa e do movimento circular para a primeira pessoa.
35
2.5. Tempo/Modo/Aspecto
As realizações desses sinais podem ser descritas como se estivessem se valendo de linhas
temporais imaginárias situadas no espaço de sinalização: futuro bem à frente do tronco, passado
atrás e presente próximo.
Na Libras, como não parece haver flexão gramatical para tempo, a noção de
temporalidade pode ser explicada por essa composicionalidade do sistema de referência temporal
e aspectual. Ou seja, há marcas específicas que estabelecem relações dêiticas com o momento de
fala e expressam os tempos futuro, passado ou presente. Porém, quando essas marcas não são
empregadas, é possível ter leitura de presente ou passado dada pela interação entre tempo e
aspecto, isto é, pela lexicalidade do verbo e seus argumentos, é possível interpretar sentenças
como estando no presente quando a lexicalidade dos verbos e de seus complementos não estiver
denotando um evento pontual, cujo tempo de referência pode ser interpretado como um todo
ocorrido antes do momento de fala, pois, nesse caso, o tempo que se coloca é de passado.
36
Abaixo segue uma imagem apresentada por Ferreira-Brito, que indica como seria a
posição corporal na apresentação do tempo.
Figura 6 – Sinais para tempo e espaço
CAPÍTULO 3 – METODOLOGIA
3. Introdução
Utilizamos, inicialmente, a coleta de dados em vídeos livres na internet para registrar o sujeito
surdo sinalizando de forma espontânea. Esses dados foram retirados de sites de relacionamento e
de vídeos no youtube. Outra forma de
levantamento de dados se deu com o registro de dados elicitados. Convidamos colaboradores
surdos para sinalizar, em Libras, enunciados diversos, previamente formulados por nós em
português, que incluíam sentenças na voz ativa (com e sem topicalização do objeto) e na voz
passiva, com a finalidade de observar se o sujeito surdo compreende tais sentenças em português
e faz a distinção entre as formas ativa e passiva também em Libras. O corpo de colaboradores
incluiu surdos, com idade superior a 18 anos, falantes de Libras. Tivemos o cuidado de convidar
surdos não oralizados, para evitar a possível interferência do Português durante a coleta de dados
em Libras. Mas esses surdos, no mínimo, sabiam ler em Português.
Dos cinco surdos participantes da pesquisa, três nasceram em Brasília e dois não, apesar
de morarem aqui há mais de dez anos. Todos são atuantes na Federação Nacional de Educação e
Integração dos Surdos (FENEIS)8. Convidamos surdos que utilizam a Libras como forma
exclusiva de comunicação. Foram homens e mulheres para que pudéssemos observar se a questão
do gênero apresenta-se relevante à pesquisa.
8
A FENEIS é uma entidade filantrópica que tem por objetivo a defesa e a luta dos direitos da comunidade surda
brasileira. Seu grande propósito é divulgar a Libras. O autor desta dissertação é, neste momento, o diretor geral do
escritório da FENEIS em Brasília (são 6 escritórios em diferentes estados do Brasil).
38
ponto de vista sobre o mundo, passando do conjuntural expresso pela língua de sinais para o
estruturado, expresso pelo texto. Assim, a escrita de sinais também foi utilizada no registro de
alguns de nossos dados. Os dados foram gravados em áudio e vídeo e editados na ferramenta
ELAN, software muito utilizado em pesquisas de línguas de sinais por permitir criar, editar,
visualizar e procurar anotações a partir de áudio e imagens. Este capítulo tem 3 seções. Na seção
3.1, apresentamos as fontes da coleta de dados; na seção 3.2, apresentamos exemplos em Libras
através da escrita de sinais e também do Português; na seção 3.3, fazemos uma apresentação do
software ELAN.
ROTEIRO 1
Para realizar as entrevistas, colocamos três filmadoras para captar as imagens: uma com
foco no pesquisador, outra no entrevistado e a terceira com foco nos dois.
39
Como dissemos acima, antes de iniciar a entrevista cada colaborador assinou o TCLE que
autoriza a divulgação das suas imagens para fins de pesquisa e inclusão na dissertação. O
pesquisador explicava todo o processo da entrevista, passo a passo, para que não ocorressem
equívocos na hora da gravação.9
A gravação com cada surdo durou, em média, 30 minutos. Todos os roteiros foram
apresentados com tranquilidade e sem interferência do entrevistador. Da preparação das
filmadoras até a retirada delas, cada sessão durava cerca de 1 hora.
Após a gravação dos vídeos, o material foi analisado no Elan, editado no programa Adobe
Premiere Elements 9 e, posteriormente, as imagens selecionadas foram repassadas para o
programa Coreldraw, com o objetivo de formatar as imagens e colocá-las no Word. Registramos
que esse é um trabalho bastante exaustivo.
É importante ressaltar que o surdo não deve estar necessariamente restrito a uma única
forma de comunicação. Uma educação bilíngue lhe permite compreender, ao menos,
duas línguas que podem coexistir no mesmo ambiente de aprendizagem. Além disso,
9
O Comitê de Ética em Pesquisa foi procurado por este pesquisador, mas não conseguiu, até o momento, emitir
parecer sobre esta pesquisa. Um erro gerado na página da Plataforma Brasil, local em que os projetos são detalhados
antes da submissão, via internet, não registrou a instituição proponente – Universidade de Brasília – e a ausência
desse registro implicava a não impressão da versão completa da página de rosto, necessária para submissão. Foram
vários os contatos, via email, atendimento online, além de claro, a tentativa de inúmeras visitas ao Comitê de Ética
do Instituto Humanas da UnB, sem sucesso, em virtude de reforma na sala, mudança de endereço e, por fim, greve
dos servidores responsáveis pelo setor.
40
esta modalidade de educação não apenas define qual língua deve ser usada como
primeira língua (L1) e qual deve ser usada como segunda língua (L2), como também
indica as funções de cada uma delas no ambiente social do Surdo (QUADROS, 1997)
1. Os sinais da Libras, para efeito de simplificação, serão representados por itens lexicais da
Língua Portuguesa (LP) em letras maiúsculas. Exemplos: CASA, ESTUDAR, FAMÍLIA;
2. Um sinal, que é traduzido por duas ou mais palavras em língua portuguesa, será representado
pelas palavras correspondentes separadas por hífen. Exemplos: CORTAR-COM-FACA "cortar",
QUERER-NÃO "não querer", MEIO-DIA "meio-dia", AINDA-NÃO "ainda não", etc.;
3. Um sinal composto, formado por dois ou mais sinais e que será representado por duas ou mais
palavras, será separado pelo símbolo ^. Exemplos: CAVALO^LISTRA = “zebra”;
4. A datilologia (alfabeto manual), que é usada para expressar nome de pessoas, de localidades e
outras palavras que não possuem um sinal, está representada na escrita pela palavra separada,
letra por letra por hífen. Exemplos: J-O-Ã-O, A-N-E-S-T-E-S-I-A.
3.3. ELAN
Atualmente, um recurso metodológico que tem sido muito utilizado para a transcrição e
análise das línguas de sinais é o ELAN (EUDICO- Anotador Linguístico). Usamos a versão
41
atualizada 4.6.1. O ELAN (EUDICO – Linguistic Annotator) é um software que pode ser baixado
do site http://www.lat-mpi.eu/tools/elan/. Ele tem a função de registrar os recursos de áudio e
também de vídeo com suas funções para criar, editar, visualizar e fazer anotações. Para usar o
ELAN, é necessário que os vídeos sejam salvos como documentos *.mpg ou *.mov. Os vídeos
também podem ser ampliados na tela a fim de facilitar a visualização detalhada. Eles podem ser
rodados em diferentes velocidades com quadros localizados em várias opções.
O ELAN foi elaborado pelo Instituto de Psicolinguística Max Planck, Nijmegen, na
Holanda, com o objetivo de facilitar as anotações de fala e/ou sinais associadas às gravações em
vídeo. Permite análise de línguas de sinais e de gestos, mas não se restringe apenas a esses
grupos, podendo ser utilizado por todos que manipulam em seus trabalhos dados gravados em
mídias (vídeo e/ou áudio), para fins de documentação. Ele permite a criação de trilhas, que se
organizam hierarquicamente, podendo depender umas das outras de acordo com o modelo de
transcrição adotado (ANATER, 2009).
Leite (2008, p. 141) elenca alguns fatores para justificar o uso do software:
4. Introdução
Eles [os funcionalistas] buscam explicações nas funções e nos processos diacrônicos
recorrentes, os quais são em grande parte dirigidos por funções. Vêem a língua como
uma ferramenta, ou melhor, um conjunto de ferramentas, cujas formas são adaptadas a
suas funções (DeLancey, 2000).
4.1. Valência
4.1.1. Definição
O termo valência foi introduzido na Linguística pelo linguista francês Lucien Tersnière
(1959). Originalmente, ele é usado na Química e denota a capacidade de um elemento se
ligar a outros elementos químicos. De modo semelhante, em Linguística o termo se
refere ao número de argumentos que podem se combinar com o verbo. (WALHEY,
1997, p. 183) (tradução nossa)10
10
The term valence was borrowed into linguistics by the French linguist Lucien Tesnière (1959). Originally, it was
used in chemistry where it denote the capacity of an element to bond with other chemical elements. Similarly , in
linguistics the term refers to the number of arguments that can combine with a verb. (WHALEY, 1997, p. 183)
45
Facundes (2010, p.13) conceitua as RG como: “As descrições das línguas do mundo, em
geral, atestam a existência de relações puramente sintáticas contraídas entre o SN e o predicado
de uma oração. Essas relações sintáticas são as relações gramaticais (ou sintáticas)”. Para
Whaley (1997, p. 70),
Uma razão decisiva para tomar sujeito, objeto direto e objeto indireto como a classe
típica de relações gramaticais é que a concordância verbal é muitas vezes concebida para
codificar estes e não quaisquer outros sintagmas nominais. (...) é possível dizer que, se
uma língua apresenta concordância verbal com sintagmas nominais em uma oração,
serão esses o que, normalmente, serão classificados de sujeito, objeto direto, objeto
indireto, ou todos os três, mas com nenhum outro. (WHALEY 1997, p. 70) (Tradução
nossa)11.
11
A final reason that subject, direct object, and indirect object have been taken as the universal class of grammatical
relations is that verb agreement is often designed to encode these, and not any other, noun phrases. (…) it is
sufficient to say that if a language exhibits verb agreement with any nominals in a clause, it will be with those
nominals that are typically called subjects, direct objects, indirect objects, or all three, but with no others. (WHALEY
1997, p. 70)
47
12
Cançado (2013, p. 2) afirma que existem diversas denominações para essas relações semânticas na literatura:
papéis participantes (Allan, 1986), casos semânticos profundos (Fillmore, 1968), papéis semânticos (Givón, 1990),
relações temáticas (Gruber, 1976; e Jakendoff, 1972) e papéis temáticos (Dowty, 1989, 1991 e Jackendoff, 1983,
1990)
48
Para Silva (2012), a pragmática se preocupa com a comunicação efetiva, ou seja, trata da
língua na sua relação com os usuários, da adaptação das expressões às situações em que são
enunciadas.
De acordo com Neves (1997, p. 95), “funções pragmáticas são funções que especificam o
estatuto informacional dos constituintes em relação à situação comunicativa em que eles são
usados”. De um modo geral, os interlocutores associam informações novas a um certo sintagma
nominal e informações velhas/compartilhadas/conhecidas a outro sintagma nominal velho. Nesse
caso, a informação velha é chamada de tópico, e a informação nova, de foco.
A informação velha ou dada (o tópico) é, segundo Chafe (1976), o conhecimento que o
falante assume estar na consciência do ouvinte no momento da enunciação. Já a informação nova
(o foco) é a informação que o falante acredita estar introduzindo na consciência do ouvinte pela
primeira vez.
Pensando nas mais diversas expressões linguísticas, sabemos que durante o processo
comunicativo um falante-emissor revela informações velhas (o dado) e informações novas (o
novo), porém o falante, ao julgar que o destinatário já possuía conhecimentos prévios implícitos,
quando na verdade ele não os tinha, evidencia inferências no processo comunicativo. As noções
de tópico e de foco correspondem ao dado e ao novo, respectivamente. Assim, o tópico
caracteriza as coisas de que falamos, enquanto o foco caracteriza as partes mais importantes do
que dizemos em relação ao tópico. Buscamos aprofundar um pouco mais esse assunto na próxima
seção.
Pezatti (1998) afirma que o conceito de tópico, apesar de ser objeto de estudo de muitos
pesquisadores, é um dos mais controversos na literatura linguística. Pensar num conceito único,
ainda que por um viés específico, não é uma tarefa fácil, talvez pela existência dos vários
funcionalismos, como lembra Neves (1990), o que implica abordagens diferenciadas. Com o
objetivo de ilustrar isso, vejamos algumas definições de tópico.
Para Dubois (1993, p. 590), tópico é o mesmo que tema. Numa frase assertiva, chama-se
tema o constituinte imediato (sintagma nominal) a respeito do qual se diz alguma coisa
49
(predicado): o tema pode ser ou não sujeito da frase. Por exemplo: o livro e Pedro são temas das
frases seguintes: “O livro está na mesa” e “Foi Pedro que eu vi ontem”.
Dik (1997) apresenta topicalidade e focalidade como as coisas sobre as quais nós falamos
e as partes mais importantes ou salientes do que nós dizemos.
Já para Crystal (2000, p. 255), o tópico é o
Conforme Chafe, Li e Thompson (1976 apud PONTES, 1987, p. 13), “o que caracteriza o
tópico nas línguas é ele estabelecer um quadro de referência para o que vai ser dito a seguir”.
Segundo a classificação de Chafe (1976 apud SILVA 2012, p. 159), existem diferentes
tipos de tópicos, porém o verdadeiro tópico é aquele que visa estabelecer um esquema espacial,
temporal ou individual dentro do qual a predicação principal se mantém, de modo a limitar-lhe a
aplicabilidade a um domínio restrito, como demonstra a sentença Filme, eu gosto mais de
comédia. Assim, é possível afirmar que a escolha do tópico pode ser condicionada, basicamente,
por dois fatores:
1) O contexto – em que os elementos já apresentados são utilizados mais naturalmente como
tópico que os elementos novos. É o que temos no segundo enunciado na palavra o texto :
a) – Quem traduziu o texto? b) – O texto foi traduzido pelos intérpretes de Libras;
2) As propriedades de topicalidade que possuem intrinsecamente os nomes, ou que decorrem
do papel semântico na frase. Infere-se que os humanos (traço intrínseco), ou os agentes se
utilizam mais naturalmente como tópicos que os não-humanos e os pacientes: a) O João
lançou um novo livro e não necessariamente b) Um novo livro, João lançou ou c) Um
novo livro foi lançado por João. Claramente, um novo livro é topicalizado em b) e c). Que
50
É possível afirmar que o tópico funciona como o ponto de partida da enunciação, aquilo a
partir de que o enunciador desenvolve um comentário. “Uma fatia de informação mais importante
é colocada na frente” (GIVON, 2001 apud NARO, 2008 p. 171).
1) Eu quebrei o vaso.
2) O vaso, eu quebrei ele.
3) O vaso, eu quebrei.
4) O vaso foi quebrado por mim.
5) O vaso foi quebrado.
6) O vaso se quebrou.
7) O vaso quebrou.
tipo de fonte, ou mesmo a construção textual) dada a relevância da notícia a ela vinculada,
tornando a manchete quase uma propaganda da publicação. Se o objetivo da manchete é
evidenciar o paciente, construir enunciados na voz passiva passa a ser uma excelente estratégia.
Falar em topicalização do paciente, colocando-o em um primeiro plano, implica
necessariamente falar no rebaixamento (e até no apagamento) do agente. Givón (1979), em
estudos sobre diversos tipos de passivização em línguas variadas, propõe como função principal
da construção passiva analítica, a promoção de um não-agente a tópico; Keenan (1985) evidencia
como função básica das passivas o rebaixamento do Agente; e Shibatani (1985) apresenta a
passiva como uma “de-tematização”, que significa deslocar o agente da posição de tema para
uma posição considerada mais “periférica” e, segundo o autor, “apagar” ou mesmo omitir o
agente. Halliday (1985) também apresenta, como uma das principais funções da voz passiva, o
apagamento do agente. E nas línguas de sinais? As razões que motivam o uso dessas construções
em línguas orais também são observadas nas línguas de sinais? Esses são alguns questionamentos
também abordados na análise dos dados.
A compreensão do exemplo pode ser clara para um ouvinte acostumado com a língua
portuguesa desde seu nascimento, mas para um surdo não é. Citar outros exemplos de voz ativa e
passiva também parecia fácil, porém ainda não sabia qual a definição. No curso da graduação,
Letras Libras, durante as aulas de gramática, lá estava a voz passiva novamente, sempre
“atrelada” à ativa e, mais uma vez, sem definição. Identificar enunciados, transformar sentenças
ativas em passivas era tarefa fácil (ou melhor, mecanicamente fácil), mas responder em qual
contexto a construção passiva em detrimento da construção ativa é preterida é outra história.
Então quando usar a voz passiva? Pergunta que durante muitos anos eu não saberia responder.
Durante uma aula na pós-graduação, explicações sobre agente/paciente, enunciados prototípicos,
escala de agentividade e, mais uma vez, lá estava a voz passiva. Diferentemente do Ensino
Fundamental e Médio, compreender que essas construções geralmente não são proferidas apenas
me fez perceber que é evidente a distância entre essa construção verbal e o dia-a-dia linguístico.
Hoje, podemos definir a voz passiva como uma estratégia morfológica e sintática para:
ou até apagando-o dela. A voz passiva é resultado de um conjunto de ações formais a serviço de
funções pragmático-discursivas.
Para Oliveira (2004, p. 52), a voz passiva “é um construto teórico usado pelos gramáticos
para se referir a uma forma verbal de relatar os fatos. É isso que significa dizer que a voz passiva
é usada para dar ênfase ao paciente. Ocorre uma topicalização do paciente”. Observemos um
exemplo:
No próximo capítulo, apresentaremos as análises dos dados coletados para esta pesquisa e
as relacionaremos com os principais assuntos tratados neste capítulo.
13
n = número de argumentos.
55
5. Introdução
5.1. Os dados revelam a Passiva em Libras? Quais as estratégias utilizadas nessa língua
como recurso ao que poderia ser análogo à passivização?
Os dados de nossa pesquisa são oriundos de duas fontes: i) os vídeos com as filmagens
dos colaboradores surdos, registrados por nós pesquisadores; e ii) vídeos livres encontrados em
redes sociais.
5.1.1. Os roteiros
Como não houve tempo suficiente, vamos aqui mostrar os resultados de um dos roteiros.
Ele é composto pelos seguintes enunciados:
1)
Como resultado, tivemos literalmente: “A foto, ela (a foto) a pessoa beijou. ” Partindo do
pressuposto de que a ordem típica de constituintes em Libras é SVO (cf. seção 2.2), ao iniciar a
sentença pelo paciente, entendemos que isso foi um tipo de topicalização. Pensamos que,
provavelmente, foi esse um recurso utilizado pelo colaborador que considerou a foto um
argumento merecedor de destaque. Após o sinal para foto, é realizado um sinal de apontação
(conforme o segundo quadro) para anunciar que ela (a foto), uma pessoa beijou. Em Libras é
muito comum o uso dessa referência anafórica. Percebemos que não foi utilizado um sinal para
marcar o agente (homem), porque o sinalizante opta por representar ele próprio o homem do
enunciado. É sabido que o agente é uma pessoa, pela escolha lexical marcada na configuração de
mão no momento de sinalizar o verbo “beijar”; porém, não existe um sinal para indicar se essa
pessoa é um homem ou uma mulher.
2)
3)
4)
5)
Em seguida, pedimos aos colaboradores para nos dar, em Libras, o segundo enunciado do
roteiro:
“M” topicaliza o paciente “foto” com a mudança de ordem. De acordo com Quadros &
Karnopp (2004), a mudança de ordem e a elevação das sobrancelhas (marcação não-manual) são
mecanismos utilizados nos processos de topicalização. Apesar da imagem ser pequena,
percebemos que nosso colaborador não eleva as sobrancelhas (aspecto também não observado em
4 dos 5 colaboradores surdos) Na sequência, “M” traz todas as demais informações. É como se
ele dissesse: A foto, o homem olhando para a foto, o homem (o homem) beijou a foto. Apesar de
trazer o paciente para a posição típica de sujeito em Libras (início do enunciado, antes do verbo e
do objeto), não cremos que o colaborador tenha transformado o paciente em sujeito. Nesse único
enunciado, há uma referência a homem três vezes, ao fazer: i) o sinal do homem olhando a foto;
ii) no próprio sinal para o item ‘homem’; e iii) ao combinar em composição o sujeito homem com
verbo beijar. Essa sobremarcação de “homem” pode estar indicando que ele continua sendo o
sujeito da sentença e que o paciente deslocado para o início do enunciado não deve ser
interpretado como sujeito. Para confirmar essa proposta de análise, precisaremos de mais dados
com sujeito e objeto de 3ª pessoa humano.
7)
Mais uma vez, percebemos que se topicaliza o paciente e, a partir daquele tópico, se
inserem informações no discurso. Um dado que nos chamou a atenção é a necessidade de
evidenciar referência à foto da sentença. “R” faz o sinal de foto e, na sequência, faz um sinal para
retrato, como se dissesse “uma foto, aquela foto, o homem beijou”. A foto é capaz de denotar,
mas é o retrato sinalizado no segundo quadro que designa não ser uma foto qualquer e sim,
aquela foto, foi a foto beijada. Essa construção de referência, tão recorrente em línguas de sinais,
por utilizar referências anafóricas, através de pontos estabelecidos no espaço, exclui
ambiguidades possíveis na Língua Portuguesa (cf. QUADROS & KARNOPP 2004). Seria essa
60
8)
9)
14
Não conseguimos melhorar a imagem porque a filmagem não foi realizada com uma câmera de qualidade e não
temos habilidade suficiente, mas vamos tentar corrigir essa falha pedindo a um especialista em edição de imagens.
61
10)
“C” e “L” optam por também trocar a ordem, colocando o paciente na posição de tópico.
O que difere as escolhas lexicais entre o primeiro e o segundo colaborador, “C” e “L”,
respectivamente, é somente o sinal utilizado para marcar o verbo. Ambos produziram enunciados
gramaticais, em 9), “C” sinaliza o verbo “beijar” como se duas pessoas estivessem se beijando,
enquanto em 10) “L” sinaliza como se o homem beijasse “no rosto”. Nesse contexto, o verbo
costuma se combinar em composição com o objeto; porém, assim como os ouvintes falam de
formas diferentes, os surdos também sinalizam de formas diferentes, e os dois colaboradores
escolheram itens lexicais distintos para o mesmo verbo. O idioleto não torna os enunciados
agramaticais. Percebemos que
todos os colaboradores colocaram o paciente em posição inicial de enunciado, o que nos parece
uma forma de topicalização, mesmo sem a elevação das sobrancelhas. Mas não usaram uma
forma passiva para essa topicalização. Ao menos, não nos ficou evidente que haja uma mudança
nas funções sintáticas dos argumentos, em que o paciente teria assumido a função de sujeito.
Também não parece haver qualquer indício de que o verbo em Libras tenha assumido uma forma
morfológica específica, como é o caso do particípio passado da passiva do Português.
O colaborador “M” não compreendeu a sentença que ele leu em português, embora tenha
tentado sinalizá-la em Libras. E, como resultado, tivemos em Libras: “A foto, eu não sei, difícil.
Beijou o retrato?”
12)
Depois do sinal utilizado para topicalizar A foto do retrato, quem aparece na sequência é o
agente, que parece continuar funcionando aí como sujeito sintático. Optamos por traduzir como
mudança de ordem e não como passiva. Isso nos parece mais um tipo de topicalização e não uma
passiva propriamente dita. Essa sinalização é idêntica ao que coletamos no exemplo 7 acima.
Vejamos o que nos disse o colaborador “A” para A foto foi beijada pelo homem:
63
13)
“A” fez um sinal separado para quase todas as palavras apresentadas no enunciado, uma
espécie de tradução literal do Português. Não conseguimos uma legenda em língua portuguesa
por surgir aqui uma sentença agramatical em Libras. Interessante mencionar que, após a
sinalização, o surdo explicou que a sentença não é Libras. E, ao questionarmos como seria
expressa essa informação em Libras, ele respondeu não saber. “A” poderia não ter sinalizado,
porém preferiu traduzir um sinal para cada palavra em português e, ao final, dizer que, em Libras,
essa estrutura não é utilizada.
14)
Essa foi a tradução correspondente; porém, o colaborador deixou bem claro, após a
sinalização, que o enunciado estava errado, perguntando-nos: “Como uma foto beijaria um
homem? A frase está certa? Acho que as palavras HOMEM e FOTO estão trocadas”. Novamente,
o colaborador não compreendeu a forma passiva do Português. Essa constatação nos coloca
diante de uma situação bem importante: é preciso haver uma política real de ensino de Português
escrito para surdos ou eles não terão realmente pleno acesso aos bens democráticos que giram em
torno da leitura de textos em Português.
Logo, a construção passiva seria transformada numa ativa que, ainda assim, não
corresponderia à sentença proposta. Concluímos que o enunciado em Libras do colaborador “C”,
assim como o colaborador “A”, é agramatical.
65
A colaboradora “L” leu o enunciado A foto foi beijada pelo homem e traduziu para Libras,
depois de muito pensar:
15)
Solicitamos que ela explicasse o que havia sinalizado, e a colaboradora afirmou que não
tinha entendido a sentença ao ler no português escrito e, em consonância com o relato do
colaborador “C”, também afirmou que uma foto não pode beijar um homem. A sentença
produzida em Libras é agramatical. Mais uma vez, temos um decalque. Isso também nos leva a
pensar que esses surdos da pesquisa não compreendem as construções passivas do Português,
mesmo sendo escolarizados. Isso pode estar revelando uma falha grave na formação de surdos
pelas escolas brasileiras, que não ensinam realmente a leitura para eles. Poderíamos dizer que
eles foram alfabetizados, mas não letrados em Português. Dos quatro homens, três são formados
em Letras Libras; o quarto é formado em Design; um dos quatro ainda é mestre e doutorando em
Linguística, e outro tem especialização. A surda é formada em Gestão de Recursos Humanos.
Após a análise da sentença “A foto foi beijada pelo homem”, concluímos que os surdos
produziram sentenças agramaticais por não compreender a relação dos participantes com o verbo.
Exceto o colaborador “R” (exemplo 12), que recorrendo à mudança de ordem, topicalizou a
sentença, fazendo da foto o ponto de partida da enunciação (GIVÓN, 2001). E, nesse mesmo
contexto, pensamos num último enunciado também na forma passiva, semelhante ao anterior, em
que propositalmente retiramos o agente:
“A foto, ao observarmos cada uma das pessoas, alguém beijou uma por uma, com um beijo, isso
beijou naquela imagem.”
O colaborador topicalizou o paciente foto e, embora não tenhamos falado o que, quem ou
quantas pessoas estavam na foto, ele sinalizou que alguém beijou todas as pessoas do retrato. O
colaborador “M”, por possivelmente não compreender a sentença em português, reformula o
enunciado, evidenciando inclusive o agente alguém, que aparentemente continua como sujeito
sintático. Percebemos que “M” recorre às referências anafóricas e utiliza o verbo beijar três
vezes. Nessas três vezes, o agente está ali, composto na configuração de mão utilizada para a
execução do sinal beijar. Apesar de termos um enunciado em Libras, que diverge da proposta
inicial em português, a sentença é gramatical e facilmente compreensível. Vejamos o que nos
disse o colaborador “R”:
17)
A foto o homem já
beijou.”
para isso. Qual seria o papel do “JÁ”? Só marcar tempo passado? Por que ele não apareceu antes?
Para essas perguntas, ainda não temos respostas.
Os próximos três colaboradores leram o mesmo enunciado A foto foi beijada, porém,
construíram sentenças agramaticais em Libras:
18)
19)
20)
Além da coleta de dados com os roteiros, buscamos vídeos na internet, em redes sociais
por exemplo, para analisarmos falantes de Libras em discurso natural. Apesar de termos visto
vários vídeos, não encontramos o que poderia ser chamado de passiva. Também não nos ficaram
evidentes muitos exemplos de topicalização. A seguir, mostramos trecho de um vídeo em que
podemos verificar, possivelmente, topicalização. O vídeo é de livre acesso e circulação. O vídeo
é um convite da surda para celebrar o aniversário do esposo:
69
“Bom dia, grupo. Sobre uma festa surpresa do meu marido, meu amor. Quero convidar todos
vocês para comemorarmos no próximo sábado, às 8h.”
Selecionamos parte do vídeo em que ela inicia desejando bom-dia e introduz o assunto “a
festa surpresa do marido”. Nesse momento ela dá uma pequena pausa e prossegue sinalizando
“Quero convidar todos...”. Percebemos, nessa pequena pausa, a topicalização da sentença,
fazendo, da festa surpresa do marido, o ponto de partida da enunciação (GIVÓN, 2001), dado
semelhante que surgiu nas análises dos roteiros. Lembramos que, para Quadros & Karnopp
(2004), a mudança de ordem associada à elevação das sobrancelhas são premissas básicas para
topicalização em Libras. Embora tenhamos percebido a mudança de ordem, essa elevação da
sobrancelha não foi observada.
Durante a nossa pesquisa, registramos horas de gravação de conversas entre surdos e não
conseguimos extrair dos vídeos estruturas que pudessem ser classificadas como passiva.
Percebemos, sim, a presença frequente da topicalização, mas sem passiva.
Refletimos, por fim, como descrito na metodologia, sobre a dificuldade de coleta de dados
a partir de textos escritos em português. Pensamos em recorrer a ilustrações e dramatizações das
sentenças, mas não foi possível fazê-lo por causa do tempo. Baker e Padden (1978 apud LEITE
2008, p.94) destacam “a necessidade de adotar, no estudo das línguas de sinais, metodologias que
minimizem a influência da estrutura da língua oral sobre os dados sinalizados”. Deixam como
sugestão, em sua pesquisa, a necessidade de se observar conversas entre surdos com o objetivo de
buscar o que eles chamam de “pistas” para perceber a presença ou não de determinados
fenômenos linguísticos observados em algumas línguas orais.
70
CAPÍTULO 6 - CONCLUSÃO
(Fonte: http://bonecofrigido.blogspot.com.br/)
espaço, utilizaria qual estratégia para buscar essa isenção de culpa, do exemplo citado na aula? A
pesquisa surgia ali, naquela aula. O tema me interessou e iniciamos um longo processo de
análise. Observar os surdos nessa interação discursiva me apetecia cada vez mais. E quando
algum colega da área perguntava sobre meu tema de pesquisa e eu respondia Passiva em Libras,
inúmeras eram as perguntas. “Mas existe?”
com os demais colaboradores, que a Libras não apresenta estrutura que possa ser classificada
como passiva. Percebemos que nessa língua é possível colocar o paciente em posição de tópico
com a mudança de ordem, mas não foi usada uma forma passiva para essa topicalização, afinal os
dados não revelaram mudança nas funções sintáticas dos argumentos, em que o paciente teria
assumido a função de sujeito.
A pesquisa também revelou que o verbo em Libras não assume uma forma morfológica
específica como é o caso do particípio passado da construção passiva da Língua Portuguesa.
Entendemos que a Libras carece de inúmeras pesquisas porque vários conceitos, ainda
pouco discutidos, necessitam ser analisados. É preciso aprofundar, estudar novas teorias, fazer
outras análises e assim contribuir com a linguística da Língua Brasileira de Sinais.
74
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASTILHO, A. T. de. Nova Gramática do Português Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010.
CHAFE, W. L. Meaning and the structure of language. Chicago: The University of Chicago
Press, 1970 Trad. Maria Helena de Moura Neves et ali. Significado e estrutura lingüística. São
Paulo: Livros Técnicos e Científicos, 1979. 376 p.
CIRÍACO, L. S. A alternância causativo/ergativa no PB: restrições e propriedades
semânticas. Dissertação (Mestrado em Linguística). 114 f. Faculdade de Letras, Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.
CUNHA, A. F. da. Funcionalismo. In: MARTELOTTA, M. E. (Org.) Manual de Linguística.
Ed. Contexto. São Paulo, 2011.
CUNHA, K. M. M. B. A Estrutura Silábica na Língua Brasileira de Sinais. 181f. Dissertação
(Mestrado em Linguística). Faculdade de Letras, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2011.
DOWTY, D. ‘On the Semantic Content of the Notion of ‘Thematic Role’’, in Gennaro
Chierchia, Barbara H. Partee, and Raymond Turner, eds., Properties,Types, and Meaning II,
Kluwer, Dordrecht, 69–129, 1989.
DOWTY, D. ‘Thematic proto-roles and argument selection’, Language 67.3:547–619, 1991.
75
KLIMA, E.; BELLUGI, U. The signs of language. 1.ed. Cambridge, Mass.:Harvard University
Press. 1979.
76
APÊNDICE A
QUESTIONÁRIO SOCIOLINGUÍSTICO
Data _______/_____/_______
1- Nome: ______________________________________________________
2- Nascimento: __________________________________________________
3- Naturalidade: ______________________________________________________
6- Escolarização: ______________________________________________
7- Conhecimento de LIBRAS:
( ) Excelente ( ) Regular
( ) Boa ( ) Nenhuma
( ) Excelente ( ) Insuficiente
( ) Bom
( ) Regular
80
APÊNDICE B
A coleta de dados será realizada por meio de gravações de vídeo. É para estes
procedimentos que você está sendo convidado a participar. Sua participação na pesquisa não
implica em nenhum risco.
Se você tiver qualquer dúvida em relação à pesquisa, você pode me contatar através do
telefone 61 829530XX ou pelo e-mail [email protected].
Este documento foi elaborado em duas vias, uma ficará com o(a) pesquisador(a)
responsável pela pesquisa e a outra com o senhor(a).
__________________________ _________________________
Assinatura do (a) participante Assinatura do (a) pesquisador (a)