A Escalada Do Homem - J. Bronowski PDF
A Escalada Do Homem - J. Bronowski PDF
A Escalada Do Homem - J. Bronowski PDF
DE ODINRIGHT
Sobre a obra:
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Titulo original:
THE ASCENT OF MAN
© Copyright by Science Horizons Inc., 1973
© Copyright by Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
através de acordo com the British Broadcasting Corporation,
para a presente edição
3ª edição brasileira: abril de 1992
Criação/formatação ePub: Relíquia
Produção gráfica: Geraldo Alves
Composição: Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Capa: Alexandre Martins Fontes
Impressão e acabamento:
Gráfica Brasiliana
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Bronowski, Jacob, 1908-1974.
A escalada do homem / J. Bronowski ; tradução de
Núbio Negrão. – São Paulo : Martins Fontes, 1992.
ISBN 85-336-0059-9
1. Ciência – Filosofia 2. Ciência – História
3. Homem I. Título.
92-0767 CDD-501
índices para catálogo sistemático:
1, Ciência : Filosofia 501
Todos os direitos para o Brasil reservados à
LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA.
Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 – Tel.: 239-3677
01325 – São Paulo – SP – Brasil
SUMÁRIO
PREFÁCIO
CAPÍTULO 1 – ABAIXO DOS ANJOS
Adaptação animal - A alternativa humana - Início na África - O dom da
antevisão - Evolução da cabeça - O mosaico do homem - As culturas do caçador
- Através das glaciações - Culturas transumânticas: os lapões - Imaginação na
arte rupestre.
CAPÍTULO 2 – AS COLHEITAS SAZONAIS
O passo da evolução cultural - Culturas nômades: os bakhtiari - Primórdios
da agricultura: o trigo - Jericó - Região dos tremores de terra - Tecnologia na
aldeia - A roda - Domesticação de animais: o cavalo - Jogos de guera: Buz Kashi
- Civilização sedentária.
CAPÍTULO 3 – A TEXTURA DA PEDRA
O Novo Mundo - Evidência de migrações na distribuição dos grupos
sanguíneos - As ações de moldar e de juntar - Estrutura e hierarquia - A cidade:
Machu Picchu - Arquitetura de ângulos retos: Paestum - O arco romano: Segóvia
- A aventura gótica: Rheims - A arquitetura como ciência - A imagem oculta: de
Michelangelo a Moore - O prazer de construir - A estrutura oculta à visão.
CAPÍTULO 4 – A ESTRUTURA INVISÍVEL
Fogo, o elemento transformador - Extração de metais: cobre - A estrutura
das ligas metálicas - A obra de arte no bronze - Do ferro ao aço: a espada
japonesa - Ouro - O incorruptível - A teoria alquímica do homem e da natureza -
Paracelsus e o surgimento da química - Fogo e ar: Joseph Priestley - Antoine
Lavoisier: combinações podem ser quantificadas - Teoria atômica de John
Dalton.
CAPÍTULO 5 – A MÚSICA DAS ESFERAS
A linguagem dos números - A chave à harmonia: Pitágoras - O triângulo
retângulo - Euclides e Ptolomeu em Alexandria - Ascensão do Islamismo -
Números arábicos - O Alhambra: padrões de espaços - Simetrias nos cristais -
Alhazen - Movimento no tempo, a nova dinâmica - A matemática da
transformação.
CAPÍTULO 6 – O MENSAGEIRO SIDERAL
O ciclo das estações - A falta de um mapa dos céus: a Ilha de Páscoa - O
sistema ptolomaico no relógio de Dondi - Copérnico: o Sol no centro - O
telescópio - Galileo inaugura o método científico - Proibição ao sistema de
Copérnico - Diálogo sobre os dois sistemas - A Inquisição - A retratação de
Galileo - A revolução científica se desloca para o norte.
CAPÍTULO 7 – O RELÓGIO MAJESTOSO
Leis de Kepler - O centro do mundo - As inovações de Isaac Newton: os
fluxions - A descoberta do espectro - A gravitação e o Principia - O ditador
intelectual - O desafio em sátiras - O espaço absoluto segundo Newton - O
tempo absoluto - Albert Einstein - O viajante leva consigo seus próprios espaço
e tempo - A relatividade é confirmada - A nova filosofia.
CAPÍTULO 8 – EM BUSCA DE PODER
A Revolução Inglesa - Tecnologia doméstica: James Brindley - A revolta
contra os privilégios - Fígaro - Benjamin Franklin e a Revolução Americana - Os
novos homens: os mestres ferreiros - A nova concepção: Wedgwood e a
Sociedade Lunar - A fábrica em movimento - A nova preocupação: energia - A
cornucópia de invenções - A unidade da natureza.
CAPÍTULO 9 – OS DEGRAUS DA CRIAÇÃO
Os naturalistas - Charles Darwin - Alfred Waliace - O impacto da América
do Sul - A multiplicidade de espécies - Wallace perde sua coleção - Concepção
da Seleção Natural - A continuidade da evolução - Louis Pasteur: dextrogiros,
levogiros - Constantes químicas na evolução - A origem da vida - As quatro
bases - Seriam possíveis outras formas de vida?
CAPÍTULO 10 – UM MUNDO DENTRO DO MUNDO
O cubo do sal - Seus elementos - O jogo da paciência de Mendeleiev - A
tabela periódica - J. J. Thomson: o átomo dividido - A estrutura na nova arte - A
estrutura do átomo: Rutherford e Niels Bohr - O ciclo de vida de uma teoria - O
núcleo dividido - Os neutrinos: Chadwick e Fermi - Evolução dos elementos -
Estatística, a segunda lei - Estabilidade estratificada - Imitando a física da
natureza - Ludwig Boltzmann: o átomo é uma realidade.
CAPÍTULO 11 – CONHECIMENTO OU CERTEZA
Não há conhecimento absoluto - O espectro de radiações invisíveis - O
refinamento dos detalhes - Gauss e a idéia da incerteza - A subestrutura da
realidade: Max Bom - O Principio da Incerteza de Heisenberg - O Princípio da
Tolerância: Leo Szilard - A ciência é humana.
CAPÍTULO 12 – GERAÇÃO APÓS GERAÇÃO
A voz da insurreição - O naturalista hortelão: Gregor Mendel - Genética da
ervilha - Esquecimento instantâneo - O modelo tudo-ou-nada da hereditariedade
- O mágico número dois: sexo - O modelo do ADN de Crick e Watson -
Replicação e crescimento - Clonação de formas idênticas - Seleção sexual na
diversidade humana.
CAPÍTULO 13 – A LONGA INFÂNCIA
Homem. o solitário social - Especificidade humana - Desenvolvimento
específico do cérebro - Habilidade da mão - As áreas da faia - O postergar de
decisões - A mente no papel de instrumento de preparação - Democracia do
intelecto - A imaginação moral - O cérebro e o computador: John von Neumann
- A estratégia dos valores - O conhecimento é o nosso destino - O compromisso
do homem.
BIBLIOGRAFIA
PREFÁCIO
Foi numa paisagem africana árida como a do Omo que o homem firmou os
pés na terra pela primeira vez. Esta pode parecer uma maneira um tanto quanto
prosaica de iniciar a Escalada do Homem; entretanto, ela é crucial. Há dois
milhões de anos o primeiro ancestral do homem firmou-se sobre um par de pés
que é quase idêntico ao do homem moderno. O fato é que, ao firmar os pés na
terra e andar na posição ereta, o homem assumiu um compromisso com um novo
tipo de integração de vida, e daí, também, de seus membros.
Concentraremos nossa atenção na cabeça, é claro, uma vez que, de todos os
órgãos humanos, ela sofreu as transformações mais importantes. Ao contrário
das partes moles, a cabeça deixa um ótimo fóssil, que, embora não tão
informativo quanto gostaríamos que fosse a respeito do cérebro, permite uma
boa avaliação do seu tamanho. Nos últimos anos foram encontrados, no sul da
África, fósseis de crânios cujo estudo permitiu determinar a estrutura
característica da cabeça, quando ela se tornou homínida. A figura 6 mostra um
espécime de dois milhões de anos. É um crânio histórico, encontrado ao sul do
equador, em uma localidade chamada Taung, e, portanto, não em Omo, pelo
anatomista Raymond Dart. Trata-se de uma criança entre cinco e seis anos de
idade e, como se pode ver, embora a face esteja completa, parte do crânio,
infelizmente, está faltando. Como primeiro achado de seu tipo, em 1924, ele se
constituiu em um quebra-cabeça, aceito com grande reserva, a despeito do
trabalho pioneiro de Dart.
Entretanto, Dart logo reconheceu duas características. Uma é que a
orientação do Foramen magnum (isto é, a abertura no crânio que dá passagem à
medula espinal) indicava tratar-se de uma criança capaz de manter sua cabeça na
posição ereta. E essa é uma característica humana, pois, nos macacos e nos
antropóides, a cabeça pende para a frente em relação à espinha, não se mantendo
verticalmente. A outra, é dada pelos dentes. Os dentes são sempre bons
informantes. Neste caso são pequenos, quadrados — os dentes-de-leite de uma
criança — e, portanto, muito diferentes dos ameaçadores caninos dos
antropóides. Isto significa que essa criatura usava muito mais as mãos do que a
boca para partir seus alimentos.
Os dentes também revelam especialização para mastigar carne, carne crua;
assim, esse manipulador certamente também era capaz de fabricar ferramentas,
tais como pontas de lança e facas de pedra para caçar e dividir a carne.
Dart deu-lhe o nome de Australopithecus. Esse nome não me agrada;
significa Antropóide do Sul, simplesmente, mas é impreciso, na medida em que
designa uma criatura africana recém-liberta de sua condição de macaco
antropóide. De minha parte, suspeito de um certo bairrismo na escolha de Dart;
ele nasceu na Austrália.
Transcorridos dez anos vários outros crânios foram encontrados — crânios
de adultos, agora — e somente em 1950 se esclareceu substancialmente a
história do Australopithecus. Começou na África do Sul, moveu-se para o norte,
na Garganta de Olduvai da Tanzânia, e, mais recentemente, os mais importantes
achados de fósseis e artefatos se deram na bacia do lago Rudolf. Essa história
representou uma das coqueluches científicas do século. Em todo o seu desenrolar
é tão excitante quanto as descobertas da Física antes de 1940, e as da Biologia
desde 1950; é, também, igualmente compensadora, pois esclareceu as origens de
nossa natureza humana.
De minha parte, estou pessoalmente ligado a essa criança Australopithecus.
Em 1950, quando ainda pairavam sérias dúvidas sobre sua humanidade, foram-
me solicitados alguns cálculos matemáticos. Minha tarefa seria a de tentar
encontrar um índice que representasse a correlação entre tamanho e forma dos
dentes da criança de Taung, de tal forma a tornar possível diferenciá-los dos
dentes dos antropóides. Eu jamais havia tocado em um crânio fóssil e, muito
menos, era especialista em dentes. Mas o mister se cumpriu; e, neste momento,
revivo o impacto da emoção em mim suscitada por esse trabalho. Tendo
dedicado toda uma vida à elaboração de cálculos abstratos sobre as formas das
coisas, de repente, com mais de quarenta anos de idade, surpreendi meu
conhecimento como se fosse um feixe de luz se projetando milhões de anos para
trás, e iluminando a história do homem. Foi extraordinário!
A partir daquele momento entreguei-me totalmente ao pensamento de como
o homem chegou ao que é: os trabalhos científicos que realizei, a literatura
escrita desde então, e esta série de programas tiveram todos a mesma intenção.
Quais foram os caminhos percorridos pelos hominídeos até o homem: destro,
observador, racional, apaixonado, capaz de trabalhar em sua mente os símbolos
da linguagem e da matemática, criar a arte e a geometria, a poesia e a ciência?
Como, em sua escalada, partindo do animal que era, acabou por atingir esse alto
grau de indagação sobre a natureza, essa atração pelo conhecimento, do qual
estes ensaios são exemplos? Como foi realmente a vida daquela criança de
Taung, podemos apenas imaginar; entretanto, para mim, ela se constitui no fato
primordial a partir de onde toda a aventura humana se desenvolveu. A criança, o
ser humano, é um mosaico de animal e anjo. Por exemplo, ainda no útero, um
reflexo é a causa do pontapé do feto — toda mãe sabe disso —, o que é comum a
todos os vertebrados. O reflexo é inato, mas se constitui na condição necessária
para o desenvolvimento de atos mais elaborados, os quais têm de ser praticados
para se tornarem automáticos. Aos onze meses aparece uma urgência para que o
bebê engatinhe. Esse ato suscita outros movimentos e, assim, se formam e se
consolidam novas vias neurais no cérebro (especialmente no cerebelo, onde são
integrados ação muscular e equilíbrio), formando um repertório de movimentos
sutis e complexos, que se tornam uma segunda natureza para ele. Assim, o
cerebelo assume o comando. Agora, tudo o que a mente consciente tem de fazer
é dar uma ordem. E, aos quatorze meses, a ordem é “Ande!”. A criança assumiu
a condição humana de andar ereta.
Cada ação humana retém pelo menos parte de sua origem animal; seríamos
criaturas frias e solitárias se tivéssemos sido separados dessa corrente sanguínea
de vida. Contudo, é justo que se tente distingui-las: quais as características
físicas que o homem deve ter em comum com os animais, e quais as
características que o tornam diferente? Tome-se qualquer exemplo, quanto mais
explícito melhor — digamos, a ação simples de um atleta ao correr e saltar. O
corredor ouve o tiro e sua resposta de partida é a mesma da de fuga de uma
gazela. A frequência cardíaca aumenta; ao atingir a velocidade máxima o
coração estará bombeando cinco vezes mais sangue do que normalmente, e
noventa por cento dele se destina aos músculos. Agora ele precisa de noventa
litros de ar por minuto, a fim de oxigenar seu sangue na medida das necessidades
dos músculos.
O aumento explosivo da velocidade do sangue e da tomada de ar pode ser
visualizado na forma de calor, através de fotografias com filme sensível ao
infravermelho. (As bandas azuis ou claras são as mais quentes e as vermelhas ou
escuras as menos quentes.) O rubor que pode ser visto, e que é analisado pela
câmera de infravermelho, é um subproduto sinalizador do limite da ação
muscular. A ação química principal consiste na obtenção de energia por parte dos
músculos através da queima de açúcares; mas, três-quartos dessa energia é
perdida sob a forma de calor. Há, ainda, um outro limite, tanto para o corredor
como para a gazela, o qual é mais estrito. A uma tal velocidade, a queima
química nos músculos é muito rápida para ser completa. Os subprodutos dessa
queima incompleta, o ácido lático principalmente, acabam invadindo a corrente
sanguínea. Essa é a causa da fadiga e do bloqueio da ação muscular, removíveis
apenas pela ação do oxigênio.
Até aqui nada há que distinga o atleta da gazela — tudo isso, de uma forma
ou de outra, compõe o metabolismo normal de um animal em fuga. Mas, uma
diferença é cardinal: o corredor não está fugindo. O tiro desencadeador de sua
corrida veio do revólver do juiz e ele sente, deliberadamente, não medo, mas,
sim, exaltação. O corredor age como uma criança brincando; suas ações são uma
aventura em liberdade, e o único propósito de ter chegado a esse estado ofegante
é o de explorar o limite de sua própria força.
Certamente há diferenças físicas entre o homem e os outros animais, e
mesmo entre o homem e os macacos antropóides. No salto-com-vara o atleta a
segura numa pega que nenhum antropóide pode igualar. No entanto, essa
diferença é secundária comparada àquela representada pelo fato do atleta ser um
adulto cujo comportamento não é determinado pelo seu ambiente imediato,
como seriam as ações de outros animais. Não sendo um exercício dirigido ao
presente, as ações do atleta se apresentam como que totalmente destituídas de
objetividade. Mas acontece que sua mente se fixa no futuro, e seu objetivo é
aprimorar sua habilidade; assim, em sua imaginação, dá um salto no futuro.
As posturas desse atleta representam uma cápsula de habilidades humanas:
a pega da mão, o arqueamento do pé, os músculos do ombro e do quadril — a
própria vara, na qual energia é armazenada e liberada, à semelhança de um arco
disparando uma flecha. O ponto culminante desse complexo é representado pelo
planejamento, isto é, a habilidade de escolher um objetivo futuro e manter-a
atenção fixa no mesmo, rigorosamente. O desenvolvimento do atleta revela um
planejamento continuado; a invenção da vara, em um extremo, e a concentração
mental de antes do salto, no outro, atestam sua humanidade.
A cabeça representa mais do que uma imagem simbólica do homem; é a
sede do planejamento e, assim, a mola propulsora da evolução cultural. Portanto,
ao me propor a traçar a escalada do homem a partir de suas origens animalescas,
minha intenção tem de se concentrar na evolução da cabeça e do crânio.
Infelizmente, dos cinquenta milhões de anos ou mais de que vamos tratar, apenas
seis ou sete crânios podem ser tomados como marcos dessa evolução.
Escondidos nos registros fósseis, muitas outras etapas intermediárias devem
estar à espera de quem as encontre. Até que isso aconteça temos de nos contentar
com uma reconstrução conjectural do passado, de modo a preencher os vazios
entre os fósseis conhecidos. O computador se apresenta como o melhor
instrumento no sentido de calcular transições geométricas de crânio para crânio;
para determinar continuidades basta apresentar os crânios ao computador que os
ordena e nos mostra, na tela, essa sequência.
Comecemos há cinquenta milhões de anos atrás com um pequeno
arborícola, um lemuróide; esse nome, para os romanos, designava o espírito dos
mortos. Este fóssil, encontrado em depósitos calcários dos arredores de Paris,
pertence à família Adapis dos lemuróides. Virando-se o crânio de cabeça para
baixo pode-se ver a localização bem posterior do Foratnen magnum — nesta
criatura, portanto, a cabeça pende da espinha, em vez de ser sustentada por ela. É
bastante provável que sua alimentação incluísse tanto frutas como insetos; ele
exibe mais dentes do que os trinta e dois da maioria dos primatas atuais.
O fóssil lemuróide apresenta marcas essenciais dos primatas, isto é, a
família dos macacos, dos antropóides e do homem. A análise de peças do
esqueleto nos permite saber que ele tem unhas, e não garras. O polegar se opõe,
pelo menos em parte, à palma da mão. E, em seu crânio, duas marcas revelam os
primórdios do homem. O focinho é curto; os olhos são grandes e bem separados.
Isso indica que a seleção favoreceu a visão em detrimento da olfação. As
órbitas ainda são um pouco lateralizadas, mas, comparados aos olhos de outros
insetívoras, os do lemuróide começaram a se mover para o centro, aumentando o
campo de visão estereoscópica. Notam-se, também, pequenos sinais de
desenvolvimento evolutivo no sentido da estrutura requintada da face humana: o
homem começou a partir daí.
Em números redondos, isso aconteceu há cinquenta milhões de anos. Nos
vinte milhões de anos seguintes, na linha que leva aos macacos, surge um ramo
colateral na direção dos antropóides e do homem. Há trinta milhões de anos a
próxima criatura na linha principal é representada por um crânio fóssil
encontrado no Faium no Egito e denominado Aegyptopithecus. Exibe um
focinho mais curto do que o do lemuróide, seus dentes são mais próximos dos
antropóides e é mais corpulento — contudo, ainda vive em árvores. Entretanto,
daqui para a frente os ancestrais dos antropóides e do homem vão realizar no
solo pelo menos uma parte de suas atividades.
Dez milhões de anos depois, ou seja, há vinte milhões de anos, encontramos
no leste da África, na Europa e na Ásia o que já se poderia chamar macacos
antropóides. Um achado clássico de Louis Leakey, dignificado pelo nome de
Procônsul, aponta para a existência de pelo menos mais um gênero bastante
disseminado, o Dryopithecus. (O nome Procônsul é um gracejo antropológico;
foi dado, em 1931, com a intenção de sugerir tratar-se de um ancestral de um
famoso chimpanzé do zoológico de Londres, cujo apelido era Cônsul.) O cérebro
é bem maior e os olhos se colocam em posição para visão estereoscópica
completa. Esses desenvolvimentos mostram o sentido da transformação da linha
principal antropóide- -homem. Mas, presumivelmente, essa linha já havia dado
outra colateral, e, no tocante à evolução do homem, aquela criatura ocupa essa
colateral — a linha dos antropóides. Os dentes revelam tratar-se de um
antropóide, uma vez que grandes caninos cerram a mandíbula de uma forma
não-humana.
Diferenças nos dentes sinalizam a separação da linha em direção ao
homem. O prenuncio nos é dado pelo Ramapithecus, encontrado no Quênia e na
índia. Esta criatura tem quatorze milhões de anos, e dela possuímos apenas uns
fragmentos da mandíbula. Mas, está claro serem os dentes alinhados e mais
humanos. Evidentemente estamos próximos de uma bifurcação da árvore
evolucionária e isso é atestado pela ausência dos grandes caninos dos
antropóides e pela menor proeminência da face; um tanto quanto ousadamente,
os antropologistas colocam o Ramapithecus entre os hominídeos.
Há, agora, uma descontinuidade dos registros fósseis de dez milhões de
anos. Inevitavelmente, essa falha esconde a parte mais interessante da história,
qual seja, a da separação definitiva da linha homínida daquela dos antropóides
modernos. Entretanto, registros inequívocos ainda não foram encontrados a esse
respeito. Assim, há cinco milhões de anos, encontraríamos parentes próximos do
homem.
Um primo do homem, em uma linha colateral à nossa, é o vegetariano
Australopithecus. O Australopithecus robustus é semelhante ao homem e sua
linhagem termina aí; simplesmente extinguiu-se. Novamente são os dentes o
testemunho de seus hábitos alimentares, e a evidência é bastante direta: os dentes
apresentam ranhuras devido à ação dos abrasivos mastigados juntamente com as
raízes que comia.
Na linha do homem, seu primo é menos corpulento — o que é evidente
pelas mandíbulas — e, provavelmente, carnívoro. Nada mais próximo dele pode
ser apresentado como sendo, na antiga denominação, o “elo perdido”. O
Australopithecus africanus, representado por uma fêmea adulta, acha-se entre
um número de crânios fósseis encontrados em Steikfontain no Transvaal, e em
outros locais da África. A criança de Taung, com a qual começamos, teria, se
tivesse crescido, se tornando um adulto como essa fêmea: completamente ereta,
andando, e com um cérebro de certa forma maior, pesando entre quinhentos e
setecentos e cinquenta gramas.
Isso representa mais ou menos o peso do de um antropóide grande atual;
mas essa criatura era baixa, medindo por volta de um metro e vinte. Na
realidade, achados recentes de Richard Leakey sugerem que, há dois milhões de
anos, o cérebro seria até mesmo maior.
Com seus grandes cérebros, os ancestrais do homem chegaram a duas
importantes invenções, das quais uma deixou evidências observáveis, e a outra,
pelo menos, dedutíveis. Vejamos as observáveis em primeiro lugar. Há dois
milhões de anos o Australopithecus fabricou ferramentas rudimentares,
conseguindo lâminas cortantes mediante a aplicação de simples golpes entre
duas pedras. No milhão de anos seguinte o homem não inovou essa técnica. A
invenção fundamental havia sido feita: o ato proposital de preparar e guardar
uma pedra para utilização futura. Através desse passe de habilidade e
antecipação, ato simbólico da descoberta do futuro, ele cortou as amarras com as
quais o ambiente ata todas as outras criaturas. O uso continuado da mesma
ferramenta por tão longo tempo dá uma mostra da sua força. Era segura
mantendo a parte romba contra a palma das mãos (essa pega era firme porque,
embora esses ancestrais do homem apresentassem polegares curtos, estes
estavam em completa oposição aos outros dedos). Tratava-se, certamente, de
ferramenta de comedor de carne, destinada a golpear e cortar.
A outra invenção é social, e chegamos a ela por meio de uma aritmética
mais sutil. Os crânios e esqueletos dos Australopithecus, encontrados agora em
número relativamente grande, mostram que a maioria deles morreu antes de
completar vinte anos. Isso significa que devia haver muitos órfãos. Uma vez que
o Australopithecus devia ter uma infância prolongada, como é o caso de todos os
primatas, aos dez anos, digamos, os sobreviventes eram todos crianças. Dessa
maneira, alguma forma de organização social deveria se encarregar dos cuidados
com as crianças, sua adoção (se fosse o caso), sua integração na comunidade e,
de uma forma geral, sua educação. Eis aí um grande passo na evolução cultural.
Em que ponto teriam os precursores do homem se tornado verdadeiramente
humanos? Essa questão é delicada posto que tais mudanças não se dão do dia
para a noite. Seria tolice tentar fazê-las parecer mais bem-demarcadas do que o
foram na realidade - fixar uma transição abrupta ou argumentar em torno de
nomes. Nós ainda não éramos homens há dois milhões de anos. Mas, há um
milhão de anos, já o éramos, e aqui aparece o primeiro representante do Homo
— o Homo erectus. Este se espalhou para muito além da África. O achado
clássico do Hotno erectus se deu na China. Trata-se do homem de Pequim, o
qual, com seus quatrocentos mil anos de história, é a primeira criatura a fazer
uso do fogo.
As transformações sofridas pelo Hotno erectus até chegar ao homem atual
foram substanciais nesse milhão de anos, mas, comparadas às anteriores, podem
ser consideradas graduais. O sucessor mais conhecido foi encontrado na
Alemanha; outro fóssil clássico é representado pelo homem de Neanderthal,
portador de um cérebro com mil e trezentos gramas, tão grande quanto o do
homem moderno. Provavelmente algumas linhagens de homens de Neanderthal
se extinguiram; mas, aparentemente, uma linhagem do Oriente Médio foi a
precursora direta do Hotno sapiens.
Em um determinado momento, há cerca de um milhão de anos, o homem
conseguiu realizar uma mudança qualitativa em suas ferramentas —
presumivelmente isso indica um refinamento biológico da mão nesse período e,
principalmente, das estruturas nervosas que controlam o uso da mão. A criatura
mais requintada (biológica e culturalmente) dos últimos quinhentos mil anos era
já capaz de ir muito além do simples copiar o ato do lascador de pedra anterior
ao Australopithecus. Suas ferramentas requereram uma manipulação muito mais
refinada, tanto no fabrico como no uso.
O domínio de técnicas refinadas como essas e o uso do fogo não foram
fenômenos isolados. Ao contrário, devemos ter sempre em mente que o
conteúdo real da evolução (tanto biológica como cultural) consiste na elaboração
de novos padrões de comportamento. Na ausência de fósseis comportamentais,
não nos resta senão buscar correlatos, em ossos e dentes. Mesmo para as
criaturas às quais pertencem, ossos e dentes não são muito interessantes em si
mesmos; representam equipamentos para a ação — eles nos interessam na
medida em que, como equipamentos, revelam as ações para as quais foram
destinados, e alterações em suas estruturas atestam mudanças comportamentais e
de utilização.
Assim, podemos inferir que as transformações do homem durante sua
evolução não se deram aos blocos. A articulação da mandíbula de um primata no
crânio de outro não é a forma de reconstruir a estrutura física do homem — essa
concepção é muito ingênua para adquirir foro de verdade, e só pode acabar como
no blefe do crânio de Piltdown. Qualquer animal, e o homem especialmente, é
uma estrutura altamente integrada, e mudanças comportamentais alteram todas
as partes harmoniosamente. A evolução do cérebro, da mão, dos olhos, dos pés,
dos dentes, enfim, de toda a figura humana, compôs um mosaico de dons
especiais — e, em um certo sentido, cada um destes capítulos representa ensaios
sobre alguns desses dons especiais do homem. Eles fizeram do homem o que ele
é, mais rápido na evolução e mais plástico no comportamento do que qualquer
outro animal. Diferentemente de outras criaturas (alguns insetos, por exemplo)
que permaneceram imutáveis por cinco, dez ou mesmo cinquenta milhões de
anos, nessa escala de tempo ele mudou a ponto de não mais se reconhecer nos
seus ancestrais. O homem não é a mais imponente das criaturas. Mesmo antes
dos mamíferos, os dinossauros eram colossais. Mas, dele é o que nenhum outro
animal possui: uma tal conjunção de faculdades que, ela apenas, em mais de três
bilhões de anos de vida, se constituiu no substrato para o aparecimento da
criatividade. Qualquer animal deixa sinais do que foi; mas só o homem deixa as
marcas de sua inventividade.
Ao longo do quase inimaginável espaço de tempo de cinquenta milhões de
anos, variações nos hábitos alimentares são importantes para uma espécie em
transformação. Nos primeiros estágios da linha que levou ao homem,
encontramos criaturas de olhos ágeis e dedos delicados, comedores de frutas e
insetos, que se assemelham aos lemuróides. Antropóides e hominídeos
primitivos, do Aegyptopithecus e Procônsul ao pesado Australopithecus, são
tidos como basicamente vegetarianos. Mas o Australopithecus ágil quebrou esse
hábito milenar.
No Homo erectus, no homem de Neanderthal e no Homo sapiens persite a
dieta onívora. Do ancestral e ágil Australopithecus em diante, a família do
homem passou a comer carne: pequenos animais de início, e grandes animais
posteriormente. A carne apresenta uma maior concentração de proteínas do que
os vegetais, e sua ingestão diminui a dois-terços tanto a quantidade como o
tempo gasto em alimentação. As consequências para a evolução do homem
foram enormes. Ele passou a dispor de mais tempo livre, e assim a poder dedicá-
lo ao desenvolvimento de formas mais indiretas de obtenção de fontes de
alimentos (grandes animais, por exemplo), que a fome e a força bruta
combinadas não haviam realizado. Evidentemente, tal fato colaborou no
aparecimento (por seleção natural) da tendência de todos os primatas interporem
um intervalo de tempo aos processos cerebrais que medeiam estímulo e resposta,
até que isso se consolidasse na habilidade estritamente 42 humana de pospor a
satisfação de uma necessidade.
Entretanto, o efeito marcante de uma estratégia indireta do aperfeiçoamento
da obtenção de comida é o de ativar a interação social e a comunicação. Uma
criatura lenta como o homem pode defrontar, perseguir e encurralar um animal
de grande porte das savanas adaptado à fuga, somente quando trabalha em
cooperação com outros. A caça requer planejamento consciente e comunicação
por meio de linguagem, assim como o uso de armas especiais. Na realidade, a
linguagem, na forma em que a utilizamos, guarda semelhança com as
características de um plano de caçada, na qual (diferentemente dos animais), nos
instruímos mutuamente através de sentenças construídas pelo intercâmbio de
unidades móveis. A caça é uma atividade comunal, na qual o abate representa o
clímax, mas apenas isto.
A caça não pode prover uma população em crescimento em um local
circunscrito; a densidade demográfica possível para a sobrevivência nas savanas
não ia além de duas pessoas por dois e meio quilômetros quadrados. A essa
densidade, a superfície total da terra seria suficiente apenas para alimentar a
população atual da Califórnia, de cerca de vinte milhões, mas não a população
da Grã-Bretanha. Para os caçadores, a escolha era implacável: ou a fome ou o
nomadismo.
Assim, eles cobriram distâncias prodigiosas. Há um milhão de anos
estavam no norte da África. Há setecentos mil anos ou mesmo antes, atingiram
Java. Por volta de quatrocentos mil anos atrás haviam-se espalhado de tal forma
a alcançar a China, ao norte, e a Europa, a oeste. Essa inacreditável explosão
migratória dispersou amplamente a espécie humana, a despeito do fato dela
contar nos seus primórdios com um número pequeno de indivíduos — um
milhão, talvez.
Ainda mais temerária foi a migração para o Norte justamente quando a
região estava se tornando gelada. Nessa era o gelo como que brotava da terra. O
clima do Norte havia sido temperado durante eras imemoriais — literalmente,
por varias centenas de milhões de anos. Mesmo assim, antes do Homo erectus se
estabelecer na China e no norte da Europa, teve início uma sequência de três
glaciações.
A primeira já havia amainado há quatrocentos mil anos, época em que o
homem de Pequim vivia em cavernas. Não é de todo surpreendente encontrar,
pela primeira vez, o uso do fogo nessas habitações. O gelo se moveu para o Sul e
se retraiu três vezes, mudando o terreno em cada deslocamento correspondente.
As maiores crostas de gelo continham tamanha quantidade de água que chegou a
causar o abaixamento de cento e vinte metros no nível dos oceanos. Após a
segunda glaciação aparece o homem de Neanderthal, há uns duzentos mil anos,
que, com seu enorme cérebro, vai-se tornar importante na última glaciação.
Durante a glaciação mais recente, dentro dos últimos cem ou cinquenta mil
anos, é que se começa a reconhecer traços distintos de diferentes culturas
humanas. É quando são encontradas ferramentas elaboradas, sugerindo a prática
de formas requintadas de caça: o lançador de flecha, por exemplo, e um bastão
que devia servir para retificar outras ferramentas; o arpão farpado; e, é claro, as
ferramentas do artesão da pedra, necessárias para a fabricação das armas de caça.
É claro que, à semelhança do que ocorre atualmente, naquela época as
invenções podiam ser raras, mas se espalhavam rapidamente através de uma
cultura. Por exemplo, o arpão foi inventado pelos caçadores magdalenianos do
sul da Europa há quinze mil anos atrás. No início, os arpões magdalenianos eram
lisos; logo após já ostentam uma única fileira de farpas e, no fim do período,
quando houve o florescimento da arte das cavernas, apresentam-se completos,
com duas fileiras de farpas. Os caçadores do Magdaleniano tinham o hábito de
decorar suas ferramentas feitas de ossos, e o exame do estilo dos desenhos
permite determinar precisamente o período e a localização geográfica de origem
do artefato. De uma certa forma, representam fósseis que, em progressão
ordenada, recontam a evolução cultural.
O homem sobreviveu ao duro teste das glaciações porque sua flexibilidade
mental permitiu a valorização de invenções e a incorporação delas à propriedade
comunal. Evidentemente, as glaciações marcaram profundamente a forma da
vida humana. Elas forçaram-na a depender menos de plantas e mais dos animais.
Os rigores da caçada nas margens do gelo também influenciaram as estratégias.
Tornou-se menos atraente defrontar animais isolados, por maiores que fossem.
Uma melhor alternativa era oferecida pela perseguição de manadas e, para não
perdê-las, aprender como antecipar seus hábitos, acabando mesmo por adotá-los,
incluindo, entre eles, suas migrações. Esta adaptação é muito peculiar. É a vida
sem paradeiro certo, a transumância. O novo estilo de vida conserva algumas 46
características da caça, pois ainda se trata de uma perseguição (mas, onde os
caminhos e o passo são determinados pelo animal de abate), e prenuncia
algumas do pastoreio, uma vez que o rebanho é vigiado como se fosse um
estoque móvel de alimento.
Hábitos transumantes sobrevivem hoje como fósseis culturais. O único
povo ainda vivendo dessa maneira é constituído pelos lapões do extremo norte
da Escandinávia, os quais, como acontecia durante as glaciações, continuam
seguindo os rebanhos de renas. Os ancestrais dos lapões devem ter atingido o
norte a partir da região das cavernas franco-cantábricas dos Pireneus, ao
acompanharem as renas de doze mil anos atrás, quando a última crosta de gelo
se retraiu do sul da Europa. Esse estilo de vida, atualmente em extinção, reúne
trinta mil almas e trezentas mil renas. Em sua migração, os rebanhos cruzam
fiordes, de uma pastagem gelada de liquens para outra, tendo os lapões ao seu
encalço. Mas os lapões não são pastores; eles não controlam as renas, pois nunca
as domesticaram; simplesmente acompanharam os movimentos do rebanho.
A despeito do fato dos rebanhos de renas ainda serem selvagens, os lapões,
da mesma forma que outras culturas, descobriram meios de controlar animais
individualmente: por exemplo, eles castram alguns machos a fim de torná-los
mais dóceis e serem usados como animais de tração. É um relacionamento
estranho. Os lapões são inteiramente dependentes das renas — comem a carne,
meio quilo por cabeça, por dia; usam os tendões, os pêlos, os couros e os ossos;
bebem o leite e utilizam os chifres também. Contudo, os lapões são mais livres
do que as renas, pois sua adaptação é cultural e não biológica. Essa adaptação,
isto é, o estilo de vida transumante através de uma superfície gelada, é uma
escolha que pode ser mudada; não é irreversível como o são as mutações
biológicas. Uma adaptação biológica implica uma forma inata de
comportamento, enquanto que uma cultura representa um comportamento
aprendido — uma preferência que, à semelhança de outras invenções, foi
adotada por toda uma sociedade.
Aí se encontra a diferença fundamental entre adaptações culturais e
biológicas; e ambas podem ser demonstradas nos lapões. A construção de tendas
com peles de renas é uma adaptação que os lapões podem mudar amanhã — a
maioria deles já o fez.
Por outro lado, os lapões, ou linhas humanas ancestrais deles, também sofreram
algumas adaptações biológicas. Estas, no Homo sapiens, não foram de grande
monta; somos uma espécie bastante homogênea porque nos espalhamos
rapidamente para todos os cantos do globo, a partir de um único centro.
Entretanto, como sabemos, Há algumas diferenças biológicas entre grupos
humanos. Damos-lhes o nome de diferenças raciais, significando não poderem
ser alteradas mediante simples mudanças de hábitos ou de habitats. A cor da pele
é um exemplo. Mas, por que os lapões são brancos? O homem começou com
pele escura; os raios solares sintetizam vitamina D na pele e, assim sendo, na
África, uma pele clara sintetizaria demasiadamente. Mas, ao Norte, o homem
precisa de toda a energia solar que possa penetrar em sua pele a fim de sintetizar
uma quantidade de vitamina D suficiente para suprir seu metabolismo. Assim, a
seleção natural favoreceu aqueles com peles mais claras.
As diferenças biológicas entre diferentes comunidades são medidas nessa
escala modesta. Os lapões não subsistem por adaptação biológica, mas sim, pela
inventividade: pelo uso imaginativo dos hábitos das renas e de todos os seus
produtos; por torná-las animais de tração e pela criação de artefatos e do trenó. A
sobrevivência no gelo não dependeu apenas da cor da pele; não só os lapões,
mas todos os homens atravessaram as glaciações às custas de uma invenção
suprema — o fogo.
O fogo é o símbolo do lar, e ao tempo em que o Homo sapiens começou a
deixar as marcas de suas mãos nas cavernas, há trinta mil anos passados, a
caverna era o lar. Ao longo de pelo menos um milhão de anos, o homem, por
formas relativamente bem evidentes, obteve seu alimento ou como forrageador
ou como caçador. Esse imenso período de pré-história, muito mais longo do que
qualquer história registrada, quase não nos deixou monumentos. Somente no seu
final, às margens da camada de gelo européia, vamos encontrar em cavernas,
como a de Altamira (e em outras localidades na Espanha e no sul da França),
testemunhos do que ocupava a mente do caçador. Vemos aí a trama do seu
mundo e suas preocupações. As pinturas rupestres de há vinte mil anos
imortalizaram um momento dessa cultura, sua base universal representada pelo
conhecimento, adquirido pelo caçador, do animal que lhe fornecia alimento, e o
qual tinha de enfrentar.
A princípio se nos afigura estranho o aparecimento relativamente tardio e a
raridade das pinturas rupestres, uma arte tão vivida já na sua primeira
manifestação. Por que não há tantos monumentos da imaginação visual do
homem como os há de suas invenções? Contudo, ao refletirmos sobre esse fato,
o que mais nos surpreende 50 não é o pequeno número de tais monumentos,
mas, sim, a própria existência dos mesmos. O homem e um animal franzino,
lento, desajeitado, inerme, que em sua evolução teve de inventar a atiradeira, a
pedra de fogo, a faca, a lança. Mas por que, ainda nessa primitividade, teve de
acrescentar às suas invenções científicas, essenciais como tais à sua
sobrevivência, uma produção artística que nos confunde: decorações com formas
animais? Acima de tudo, qual a razão por que, embora vivendo em cavernas, não
decorou seu lar, mas escolheu lugares escuros, secretos, remotos e inacessíveis
para aí registrar os produtos de sua imaginação?
Nesses locais o animal se tornava um ente mágico, é a resposta óbvia. Não
se duvida de sua exatidão; mas, magia é apenas uma palavra, e não constitui
resposta. Por si mesma, magia nada explica. Ela permite inferir-se que o homem
acreditava possuir algum poder; Mas que forma de poder? Ainda hoje
gostaríamos de saber que poder os caçadores acreditavam emanar daquelas
pinturas de animais.
Posso apenas dar-lhes minha opinião pessoal. O poder lá expresso pela
primeira vez é o poder da antecipação: a imaginação do futuro. Através dessas
pinturas o caçador não só se familiarizava com os perigos da caça, mas também
podia antecipar as situações a serem enfrentadas. Quando, pela primeira vez, um
caçador era levado até esses lugares secretos e obscuros, e a luz projetava-se
bruscamente naquelas figuras, ele via o bisão a ser enfrentado, o veado em
carreira, a investida do javali. E o jovem caçador sentia-se tão sozinho diante
deles como em uma caçada real. Era a iniciação ao medo; a postura com a lança
tinha de ser aprendida, e o temor dominado. O pintor imortalizara o momento do
medo, e o caçador o vivia através das pinturas.
A arte rupestre, tal qual um lampejo histórico, recria o modo de vida do
caçador; através dela descortinamos o passado. Mas, para aqueles que a criaram,
foi mais uma fresta para olhar o futuro. Em qualquer direção, essas pinturas são
uma espécie de telescópio para a imaginação: eles dirigem a mente do percebido
ao inferido e à conjectura. Na verdade, a ação sugerida em uma pintura é isso
mesmo: por mais elegante que seja, uma tela significa alguma coisa aos olhos
somente na medida em que a mente é capaz de completá-la em forma e
movimento, uma realidade por inferência, onde a imaginação substitui a
sensação.
Arte e ciência são ações exclusivamente humanas, fora do alcance de
qualquer outro animal. E uma e outra derivam de uma só faculdade humana: a
habilidade de enxergar no futuro, de antecipar um acontecimento e planejar a
ação adequadamente, representando-o para nós mesmos em imagens projetadas
ou dentro de nossas cabeças, ou em um quadrado de luz nas paredes escuras de
uma caverna, ou, ainda, no vídeo de uma televisão.
Nós também estamos olhando através do telescópio da imaginação; a
imaginação é um telescópio no tempo e o que vemos é uma experiência no
passado. O homem que pintou essas figuras e os homens que ali estavam
presentes olhavam para uma experiência no futuro. Eles olharam na linha da
escalada do homem porque o que chamamos evolução cultural é,
essencialmente, o crescimento e a expansão contínua da imaginação humana.
Os homens que fabricaram as armas e aqueles que pintaram as figuras
estavam realizando a mesma coisa — antecipando um evento futuro de tal
maneira como apenas o homem é capaz, isto é, realizando o futuro no presente.
Muitos são os dons exclusivamente humanos; mas, no centro de todos eles,
constituindo a raiz que dá força a todo conhecimento, jaz a capacidade de tirar
conclusões que levam do visto ao não-visto, que levam a mente através do tempo
e do espaço e que levam ao reconhecimento de um passado, um degrau na
escalada para o presente. A mensagem das mãos impressas em todos os
recônditos dessas cavernas é inequívoca: “Esta é minha marca. Eu sou o
homem”.
CAPÍTULO 2 – AS COLHEITAS SAZONAIS
A Bíblia é uma história curiosa, em parte folclórica, em parte documentária.
A história é, evidentemente, contada pelos vencedores, e os israelitas ao
irromperem nesta região se tornaram os depositários da história. A Bíblia é a
história de um povo que teve de optar, e o fez, abandonando o nomadismo
pastoral pela agricultura tribal.
Agricultura e pecuária parecem-me atividades elementares, mas, note-se
que o alfanje natufiano é uma indicação de que elas não permanecem estáticas.
Cada estágio da domesticação de plantas e de animais requer invenções, as quais
surgem como inovações técnicas e acabam dando fundamento a princípios
científicos. Os instrumentos básicos da mente-de-dedos-ágeis estão espalhados,
despercebidos, em todas as povoações, em qualquer lugar do mundo. Formam
uma cornucópia de artefatos modestos e despretensiosos, mas tão engenhosa, e,
em um sentido profundo, tão importante na escalada do homem, como qualquer
equipamento da física nuclear: a agulha, a sovela, o jarro, o braseiro, a pá, o
prego e o parafuso, a linha, a laçada, o tear, o arreio, o anzol, o botão, o sapato
— poder-se-ia enumerar uma centena em um fôlego só. A riqueza deriva da
interação entre invenções; a cultura é uma multiplicadora de invenções, na qual
o surgimento de um novo artefato aperfeiçoa e amplia o poder dos outros.
A agricultura sedentária gera a tecnologia básica para o desenvolvimento da
física e de toda a ciência. Isso pode ser ilustrado estudando o aperfeiçoamento do
alfanje. Observados superficialmente não há diferenças evidentes entre o alfanje
de há dez mil anos, usado pelos forrageadores, e o de há nove mil anos, quando
o trigo já era cultivado. Mas examinemo-los mais atentamente. O usado na ceifa
do trigo de cultivo apresenta o fio serrilhado: isto porque se o trigo é golpeado os
grãos caem no solo, mas se as hastes são cuidadosamente serradas os grãos
permanecem nas espigas. Desde aí os alfanjes de segar trigo têm sido
construídos dessa maneira — na minha infância, durante a Primeira Guerra
Mundial, o alfanje curvo ainda era a ferramenta usada na ceifa do trigo. Tais
aquisições tecnológicas e seus conhecimentos físicos subjacentes nos chegam de
tantas partes da vida agrícola que, até, somos tentados a ponderar se não seriam
as idéias a descobrirem os homens, em vez do contrário.
A invenção mais poderosa da agricultura é, sem dúvida, o arado. Uma
lâmina sulcando a terra, essa é nossa concepção do arado. A lâmina, por si só, é
uma invenção mecânica antiga e importante. Entretanto, o arado é mais do que
isso, e esse mais é fundamental: é uma alavanca que revolve o solo, e nesse
sentido uma das primeiras aplicações desse princípio. Muito tempo depois,
quando Arquimedes explicava o princípio da alavanca aos gregos, afirmou que
com um ponto de apoio e uma alavanca moveria a Terra. Mas, milhares de anos
antes, o agricultor do Oriente Médio já havia dito: “Dê-me uma alavanca e eu
alimentarei a Terra”.
Mencionei acima o fato da agricultura ter sido inventada, pelo menos uma vez
mais, muito mais tarde, na América. Mas o arado e a roda não o foram, uma vez
que dependem de animais de tração. E o passo seguinte no desenvolvimento da
agricultura do Oriente Médio foi justamente a domesticação de animais de tiro.
Não tendo ensaiado esse passo biológico, o Novo Mundo ficou para trás, no
nível do semeio de vara e da trouxa às costas; nem mesmo chegaram perto da
roda do oleiro.
A existência da roda foi atestada, pela primeira vez, antes de 3000 a. C., no
que agora é chamado Sul da Rússia. Esses primeiros achados consistem em
sólidas rodas de madeira ligadas a plataformas mais antigas, usadas para arrastar
cargas, transformada assim em um carro. Daqui para a frente a roda e o eixo
tornam-se os pivôs de crescimento de todas as invenções. Por exemplo: aparece
um instrumento para moer o trigo, usando para tal as forças naturais: primeiro
animais e depois o vento e a água. A roda se torna o modelo de todos os
movimentos de rotação, a norma de explanação e o símbolo supra-humano de
poder, nas ciências e nas artes. O Sol é uma biga, o próprio céu é uma roda,
desde os tempos em que os babilônios e gregos mapearam o movimento do
firmamento estrelado. Para a ciência moderna o movimento natural (movimento
não perturbado) segue uma trajetória retilínea; mas para a ciência grega o
movimento natural (isto é, inerente à natureza), e portanto perfeito, seguia a
trajetória do círculo.
Ao tempo em que Josué ameaçava Jerico, por volta de 1400 a. C., os
engenheiros mecânicos da Suméria e da Assíria adaptaram a roda à forma de
polia de puxar água. Ao mesmo tempo desenvolveram grandes projetos de
irrigação. Suas torres de elevação ainda sobrevivem tais quais pontos de
exclamação na paisagem da Pérsia. Elas atingem noventa metros de
profundidade, onde alcançam os qanats ou rede de canais subterrâneos, em um
nível em que o lençol de água natural está protegido da evaporação. Três mil
anos após sua construção as mulheres da vila de Khuzistan ainda obtêm dos
qanats as quotas de água que lhes vão permitir levar a cabo os mesmos afazeres
domésticos das antigas comunidades.
Os qanats são construções que representam o produto de uma civilização
urbana e, portanto, subentendem a existência de leis regulando os direitos de uso
da água, de posse da terra e outras relações sociais. Em uma comunidade
agrícola (as grandes fazendas coletivas da Suméria, por exemplo), o sentido da
lei tem caráter diferente daquele de uma lei nômade sobre o roubo de cabras e
ovelhas. Agora, a estrutura social é mantida através de leis dirigidas a assuntos
que afetam a comunidade como um todo: o acesso à terra, a concessão e o
controle do direito de uso da água, o direito de usar e trocar aquelas preciosas
construções das quais dependem as colheitas sazonais.
A esta altura o artesão já conquistou o status de inventor. Ao incorporar
princípios mecânicos básicos em ferramentas elaboradas cria, de fato, as
precursoras das máquinas. Exemplos destas são tradicionais no Oriente Médio.
O torno-de-arco, por exemplo, usa um esquema clássico de transformação de
movimento linear em rotatório. A engenhosidade do esquema consiste no enrolar
um cordão em um tambor e amarrar suas pontas às extremidades de uma espécie
de arco de violino. A peça de madeira a ser trabalhada é fixada ao tambor que
gira de acordo com os movimentos ritmados do arco, enquanto a madeira é
cortada com o auxílio de um formão. O instrumento data de alguns milhares de
anos, mas eu o vi sendo usado por ciganos, no fabrico 78 de pernas de cadeiras,
em um bosque inglês em 1945.
A máquina é um dispositivo que aproveita o poder da natureza. Isto é
verdade tanto para o simplérrimo fuso usado pelas mulheres bakhtiari, como
para o histórico primeiro reator nuclear e toda a sua progenia. Contudo, à medida
que a máquina foi utilizando fontes de energia cada vez mais poderosas, ela foi
se desvinculando de sua utilidade natural. Como, cm sua forma atual, a máquina
passou a representar uma ameaça para nós?
O fulcro dessa questão está na escala do poder que a máquina pode gerar.
Coloquemos o problema em forma de alternativas: o poder da máquina está
dentro da escala de trabalho para a qual foi designada ou, então, é aquele tão
desproporcional a ponto dela poder dominar o usuário e distorcer sua utilidade?
Assim enunciada, a questão tem suas origens cm um passado longínquo; tudo
começou quando o homem disciplinou uma força muito maior que a sua própria:
a força animal. Toda máquina é uma espécie de animal de tiro — mesmo o reator
nuclear. Ela aumenta o rendimento que o homem vem obtendo da natureza desde
os primórdios da agricultura. Portanto, cada máquina reaviva o dilema original: a
produção de energia responde à demanda da sua utilização específica, ou sua
disponibilidade excede os limites da sua utilização construtiva? O conflito dessas
escalas de poder já estava presente na gênese da história humana.
A agricultura representa uma parte da revolução biológica; a domesticação e o
treino de animais, a outra. A domesticação se desenvolve em uma sequência
ordenada. O cão foi o primeiro, talvez mesmo antes de 10000 a. C. Depois
vieram os animais de abate, começando pelas cabras e ovelhas. Seguiram-se os
animais de carga, representados por espécies de jumentos selvagens. Os animais
aumentam a produção muito além do que consomem. Mas isso é verdadeiro
apenas na medida em que os animais permanecem modestamente nas funções
produtivas a eles destinadas, isto é, como servos no trabalho agrícola.
A primeira vista não era esperado que os animais domésticos
representassem, eles mesmos, uma ameaça às reservas de grãos, essencial à
sobrevivência de uma comunidade sedentária. Isso é surpreendente porque são
justamente o boi e o jumento que permitiram acumular essas reservas. (O Velho
Testamento recomenda cuidadosamente que lhes sejam dispensados bons tratos;
por exemplo, proíbe ao camponês atrelar boi e jumento a um mesmo arado, uma
vez que esses animais trabalham em passos diferentes.) Mas, em torno de cinco
mil anos atrás surge um outro animal de tração — o cavalo. Este último é
desproporcionalmente mais rápido, mais forte e mais dominador do que todos os
seus antecessores. E, daqui para a frente, vai se constituir na ameaça aos
estoques alimentares da comunidade.
Tal qual o boi, o cavalo começou puxando carros de rodas — mas, logo
ganhou em esplendor ao ser atrelado a charretes nas paradas reais. Então, mais
ou menos em 2000 a. C., o homem aprendeu como montá-lo. No seu tempo essa
invenção deve ter parecido tão surpreendente quanto a das máquinas voadoras.
Inicialmente o cavalo era um animal pequeno e, como o lhama da América do
Sul, não aguentava carregar um homem em seu lombo por muito tempo.
Portanto, foi preciso desenvolver uma variedade maior e mais robusta. O uso
regular do animal de sela começa em tribos nômades criadoras de cavalos. Eram
homens da Ásia Central, Pérsia, Afganistão e além; no Ocidente eram chamados
citas, denominação coletiva para uma criatura desconhecida e aterrorizadora, um
fenômeno da natureza.
Note-se que, para o espectador, o cavaleiro é mais do que um homem: ele
olha altaneiro para os outros e se movimenta com um poder impressionante,
deixando à margem o mundo vivente. Tendo domado plantas e animais para seu
uso, ao montar o cavalo o homem realizou muito mais do que um simples gesto,
ele estabeleceu um símbolo de domínio sobre toda a criação. Em tempos
históricos temos um exemplo desse fato representado pelo pavor e desconcerto
causado nos exércitos do Peru pelos cavaleiros espanhóis que os conquistaram
em 1532. Assim, muito antes, os citas haviam representado esse terror, vencendo
os povos ainda desconhecedores da técnica de montar. Para os gregos o cavaleiro
cita era uma só criatura (sintetizando homem e cavalo), e daí surge a lenda do
centauro. Na verdade, aquele outro híbrido humano da imaginação grega, o
sátiro, era, originalmente, não meio bode, mas, sim, meio cavalo; tão profundo
foi o impacto do tropel dessas criaturas vindas do Leste.
Não nos é possível, hoje, reconstruir o terror que o cavalo montado
imprimiu, em sua primeira aparição, nos povos do Oriente Médio e do Leste
Europeu. Há aí uma diferença de escala que só pode ser comparada à chegada
dos tanques na Polônia em 1939, arrasando tudo que encontravam pela frente.
De minha parte, acredito que a importância do cavalo na história européia tem
sido subestimada. Em um certo sentido, a guerra como uma atividade nômade
foi iniciada com o cavalo. Essa foi a contribuição dos hunos, depois dos frígios
e, ainda depois dos mongóis, até atingir um clímax muito mais tarde sob a égide
de Genghis Khan. As hordas móveis transformaram particularmente a
organização da batalha. Eles concebiam a estratégia de guerra de forma diferente
— uma estratégia semelhante a disputas ou jogos guerreiros; e como os
guerreiros gostam de jogar!
A estratégia das hordas móveis depende de manobras, de comunicações
rápidas, e de deslocamentos táticos estudados, os quais podem ser organizados
em diferentes sequências, mantendo a surpresa dos ataques. Os resquícios dessa
prática permanecem representados nos jogos bíblicos de origem asiática, ainda
hoje apreciados, como o xadrez e o pólo. Para os vitoriosos a estratégia de guerra
é sempre tomada como uma espécie de jogo. Ainda hoje é praticado no
Afganistão um jogo, o Buz Kashi, que tem suas origens nas competições
equestres introduzidas pelos mongóis.
Os homens que participam do jogo do Buz Kashi são profissionais — o que
significa que são empregados, e tanto eles como os cavalos são treinados e
mantidos unicamente para as glórias da vitória. Em grandes ocasiões cerca de
trezentos homens, de diferentes tribos, participavam da competição; já fazia
vinte ou trinta anos que isso não acontecia, até que nós organizamos uma.
Os participantes do Buz Kashi não formam equipes. A finalidade da
competição não é confrontar grupos, mas, sim, consagrar um campeão. Há
campeões famosos do passado que são reverenciados. O presidente desta
competição foi um campeão no passado. Ao presidente compete transmitir as
ordens através de um imediato, que pode ser um beneficiário do jogo, embora
menos importante. Esperaríamos ver uma bola, mas, fazendo as vezes dela, o
que encontramos é um bezerro decapitado. (Essa brincadeira macabra diz
alguma coisa a respeito do caráter do jogo: é como se os cavaleiros estivessem se
divertindo com o alimento dos camponeses.) A carcaça pesa uns vinte quilos, e
deve ser arrebatada e defendida contra as investidas dos outros, à medida que é
levada através de dois estágios. O primeiro consiste em levar a carcaça até a
haste de uma bandeira às margens do campo e contorná-la. O estágio crucial é a
volta; constantemente assediado, o cavaleiro tem de atingir o gol, que é um
círculo marcado no centro do campo, bem no meio da confusão.
O jogo é ganho quando o primeiro gol é marcado, assim, não há tréguas.
Isto não chega a ser um evento esportivo; as regras não tocam em lealdade e
respeito entre competidores. As táticas são essencialmente mongóis; uma
disciplina de truques: o aspecto surpreendente desse jogo foi o mesmo que
confundiu os exércitos inimigos dos mongóis; aquilo que mais parece um tropel
bárbaro e indisciplinado é, na realidade, cheio de manobras e termina em um
repente, quando o vencedor dispara desimpedido para o círculo central.
Tem-se a impressão de que o envolvimento emocional, toda a excitação,
vem da platéia e não chega a atingir os cavaleiros. Estes se mostram atentos mas
frios; cavalgam de forma brilhante mas rude, e estão absorvidos não no jogo
mas, sim, na vitória. Terminado o jogo, o campeão se deixa envolver pela
excitação geral. Ele deve solicitar a confirmação do gol ao presidente, uma vez
que, mesmo nessa confusão, o esquecimento dessa atitude cavalheiresca pode
invalidar o gol. Felizmente o presidente confirma o resultado.
O Buz Kashi é um jogo guerreiro. O que o torna eletrizante é a ética
equestre: cavalgar como num passe de guerra. Expressa a cultura monomaníaca
da conquista; o predador se portando como herói porque ele cavalga o
redemoinho. Mas o vento é vazio. Cavalo ou tanque, Genghis Khan ou Hitler ou
Stalin só podem existir montados no trabalho de outros homens. Em seu papel
histórico de guerreiro o nômade ainda é um anacronismo, e pior que isso, em um
mundo que descobriu, nos últimos doze mil anos, ser a civilização uma obra de
povos sedentários.
Subjacente a toda a extensão deste ensaio esteve sempre presente o conflito
entre nomadismo e sedentarismo como estilos de vida. Assim, à guisa de
epitáfio, seria apropriado irmos até o alto, inóspito e castigado pelo vento platô
de Sultaniyeh na Pérsia onde se frustrou a última tentativa da dinastia mongol de
Genghis Khan de consolidar a supremacia da vida nômade. Deve-se notar que a
invenção da agricultura há doze mil anos, por si só, nem estabeleceu e nem
confirmou a vida sedentária. Ao contrário, a domesticação de animais, que foi
um produto da agricultura, contribuiu para revigorar a economia nômade: a
domesticação de cabras e ovelhas e depois, mas principalmente, a domesticação
do cavalo. Este animal deu a base do poder às hostes mongóis de Genghis Khan,
e possibilitou a organização para conquistar a China, os Estados islâmicos e
chegar às portas da Europa Central.
Genghis Khan era um nômade e inventor de uma poderosa máquina de
guerra — essa conjunção pode esclarecer muita coisa sobre as origens da guerra
na história humana. É claro que podemos cerrar os olhos à história e ir especular
sobre algum instinto animal como responsável pela gênese desses conflitos:
como se nós, à semelhança do tigre, ainda tivéssemos de matar para viver ou, tal
qual o sabiá-laranjeira, defender o território do ninho. Mas a guerra, a guerra
organizada, não é um instinto humano. Ela representa muito mais uma forma
altamente organizada de cooperação para o roubo. E essa forma de roubo se
iniciou há dez mil anos quando os agricultores acumularam reservas de
alimentos, e os nômades assomaram do deserto com o objetivo de conseguir
aquilo que, por eles mesmos, não podiam produzir. Evidência para isso
encontramos nas muralhas de Jerico e em sua torre pré-histórica. Esse foi o
começo da guerra.
Genghis Khan e sua dinastia mongol trouxeram até o nosso milênio a
pilhagem como meio de vida. De 1200 e 1300 d. C. viu-se a última tentativa de
se estabelecer o domínio do salteador que nada produz sobre o camponês que
não tinha para onde fugir. Em seu modo irresponsável, o nômade vinha
apropriar-se das reservas acumuladas da agricultura.
Entretanto, a tentativa falhou. Falhou principalmente porque os mongóis
nada puderam fazer senão assimilar os costumes dos povos por eles
conquistados. Tendo dominado os muçulmanos, eles próprios se converteram ao
islamismo. Acabaram por se estabelecer em comunidades porque a pilhagem, a
guerra, não são estados permanentes que possam ser mantidos. É fato que os
ossos de Genghis Khan ainda foram espalhados entre seus seguidores através
dos campos. Mas seu neto, Kublai Khan, já era um construtor e monarca
estabelecido na China; vocês se lembram do poema de Coleridge;
Em Xanadu, de fato, Kublai Khan
Majestosa mansão mandou construir.
O quinto dos sucessores de Genghis Khan foi o sultão Oljeitu, que veio a
este tenebroso planalto pérsico a fim de construir uma nova cidade-capital,
Sultaniyeh; o que resta de seu próprio mausoléu foi, mais tarde, modelo para
grande parte da arquitetura islâmica. Oljeitu era um monarca liberal e para cá
trouxe 88 homens de todas as partes do mundo. Era inicialmente cristão, tornou-
se budista e, mais tarde, maometano e tentou, realmente, criar as condições para
que sua corte fosse internacional. Essa foi uma contribuição importante dos
nômades para a civilização; recolheram culturas dos quatro cantos do mundo,
juntaram-nas, misturaram-nas e então, mandaram-nas de volta para fertilizar a
terra.
A ironia da derradeira proposição dos nômades mongóis para o poder está
no fato de, ao morrer, Oljeitu ser conhecido como Oljeitu, o Construtor. A
agricultura e o modo de vida por ela criado formavam agora um degrau sólido da
escalada do homem, instalando uma nova forma de harmonia entre os homens,
que iria frutificar no futuro: a organização urbana.
CAPÍTULO 3 – A TEXTURA DA PEDRA
Na mão
Tomou o compasso dourado, da fábrica
Eterna de Deus, para circunscrever
O Universo, e todas as coisas criadas:
Uma ponta pousou, e a outra girou
À volta da vasta escuridão profunda,
E disse: eis a tua extensão, os teus limites,
Seja esta a tua Circunferência, Ó Mundo.
Milton, Paraíso Perdido, Livro VII
John Milton descreveu e William Blake desenhou a formação da Terra por
um único movimento rápido do Compasso de Deus. Mas essa é uma imagem
excessivamente estática dos processos naturais. A existência da Terra data de
mais de quatro bilhões de anos. Ao longo desse tempo ela tem sido plasmada e
transformada por dois tipos de ações. Forças ocultas no interior da terra têm
consolidado as camadas, elevado e deslocado as massas rochosas. Na superfície,
a erosão da neve, da chuva, da tempestade, dos rios e dos oceanos, o sol e o
vento, esculpiram a arquitetura natural.
O homem também acabou se tornando arquiteto do seu meio ambiente, mas
ele não comanda forças tão poderosas quanto as da natureza. Seu método tem
sido seletivo: uma abordagem intelectual na qual a ação depende do
entendimento. Eu escolhi acompanhar sua história tomando por base as culturas
do Novo Mundo, que são mais recentes do que as da Europa e da Ásia. Meu
primeiro ensaio teve como objeto a África Equatorial, porque foi aí que o
homem começou; e o segundo ensaio sobre o Oriente Médio, porque aqui nasceu
a civilização. Entretanto, agora, já é tempo de lembrar ter o homem alcançado
outros continentes em sua longa caminhada através da Terra.
O Canyon de Chelly que, sem interrupção, desde o nascimento de Cristo,
tem sido habitado por uma tribo de índios após outra, mostra os mais antigos
vestígios da presença humana na América do Norte. Na frase espirituosa de Sir
Thomas Browne: “Enquanto na América os caçadores estão acordados, na
Pérsia, já passaram pelo primeiro sono”. Por volta do nascimento de Cristo os
caçadores estavam se preparando para a agricultura no Canyon de Chelly,
ensaiando os mesmos passos já percorridos no Crescente Fértil do Oriente
Médio, ao longo da escalada do homem.
Qual a razão do grande atraso para o início da civilização no Novo Mundo
em relação ao Velho? Evidentemente porque o homem chegou mais tarde ao
Novo Mundo. Chegou antes da invenção do barco; o que implica uma travessia
por terra, através dos estreitos de Bering, quando estes ainda formavam uma
extensa ponte de terra durante a última glaciação. Indícios glaciológicos
apontam dois períodos possíveis para a caminhada do homem, desde os
promontórios do extremo leste do Velho Mundo, para além da Sibéria, até a
desolação rochosa do Oeste do Alaska, no Novo. Um período entre 28000 a. C. e
23000 a. C., e o outro entre 14000 a. C. e 10000 a. C. Depois disso, as torrentes
do degelo da última glaciação novamente elevaram o nível do mar uma centena
de metros, fechando, assim, a porta às migrações para o Novo Mundo.
Dessa maneira, o homem veio da Ásia para a América entre trinta e dez mil
anos atrás, e essa transferência não se deu, necessariamente, de uma só vez. Há
sinais arqueológicos (locais pré-históricos e ferramentas) de que duas correntes
distintas de cultura chegaram à América. Além disso, e parece-me ainda mais
significativo, há indícios biológicos sutis, mas persuasivos, que só posso
interpretar como significando que o homem veio em duas pequenas migrações
sucessivas.
As tribos indígenas das Américas do Norte e do Sul não são portadoras de
todos os grupos sanguíneos encontrados em outras populações. Esse inesperado
capricho biológico pode revelar-nos algo sobre a ascendência dessas tribos. A
natureza da transmissão genética dos grupos sanguíneos é tal que, analisada em
uma grande população, pode fornecer dados sobre o passado genético. A
ausência total do grupo sanguíneo A em uma população implica, com certeza
quase absoluta, a não-existência de ancestrais portadores desse grupo sanguíneo;
o mesmo acontece em relação ao grupo sanguíneo B. Na América isto é o que de
fato acontece. As tribos das Américas Central e do Sul (do Amazonas, dos
Andes e da Terra do Fogo) pertencem inteiramente ao grupo sanguíneo O; o
mesmo acontece com algumas tribos da América do Norte. Outras tribos, entre
elas os sioux, os chippewa e os pueblos, são portadoras de grupo sanguíneo O,
com uma mescla de dez a quinze por cento de grupo sanguíneo A.
Em resumo, a evidência é a de que não há grupo sanguíneo B representado
na América, como acontece em outras partes do mundo. Nas Américas Central e
do Sul toda a população indígena original é do grupo sanguíneo O. Na América
do Norte estão representados os grupos sanguíneos O e A. Não me ocorre
nenhuma outra forma sensata de interpretar esses achados, a não ser supondo
uma primeira migração de um grupo modesto e aparentado (todos de grupo
sanguíneo O) que, chegando à América se multiplicou, espalhando-se em
direção ao Sul. Uma segunda migração, ainda de pequenos grupos, mas, agora,
de portadores de grupos sanguíneos A somente, ou de A e O. Estes últimos se
fixaram na América do Norte apenas, e, por assim dizer, seriam mais recentes.
A agricultura do Canyon de Chelly reflete essa chegada tardia. Embora o
milho já fosse cultivado há muito tempo nas Américas Central e do Sul, aqui ele
só aparece no início da era cristã. O povo é muito despojado, não tem casas e
vive em cavernas. Por volta de 500 d. C. aparece a cerâmica. As choças eram
cavadas nas paredes das cavernas, tendo por cobertura tetos de barro moldado ou
de adobe. Até cerca do ano 1000 d. C. o Canyon permaneceu imutável nesse
estágio, quando a grande civilização pueblo chega com os tijolos de pedra.
Note-se que estou traçando uma nítida linha separando a arquitetura
baseada na moldagem e aquela resultante de ajustamento de partes distintas.
Essa distinção pode parecer simplória, entre casa de barro e casa de tijolo de
pedra. Na realidade isso representa uma diferença intelectual fundamental, e não
apenas tecnológica. Sempre que o homem a conseguiu, essa distinção
representou o mais importante passo na sua evolução: trata-se aqui de diferenciar
a ação manipulatória da mão da sua capacidade de dividir e analisar partes de um
todo.
Tomar uma quantidade de barro e moldá-lo na forma de uma bola, de uma
estátua, de uma caneca ou de uma choupana, parece-nos a coisa mais natural do
mundo. À primeira vista poderíamos pensar que esse molde foi tirado de uma
forma da natureza. Entretanto, isso não é verdade. O molde veio do homem. O
pote não representa senão a concavidade da mão em concha; a choupana reflete
a ação modeladora do homem. E a natureza esconde seus segredos ao homem
quando ele lhe impõe essas formas cálidas, roliças, femininas e artísticas. Nada
mais é refletido do que a forma da própria mão.
Uma outra ação da mão humana é diferente e oposta. Acontece quando ela
racha madeira ou quebra pedra; essas ações (com ajuda de ferramentas)
exploram além da aparência superficial das coisas e, portanto, se tornam
instrumentos de descobertas. Há um grande avanço intelectual no ato de rachar
um pedaço de madeira ou de rocha, desnudando à análise a forma que a natureza
lhes havia imposto. Os pueblos deram esse passo nos penhascos de rocha
vermelha que se elevam a trezentos metros nas construções do Arizona. Os
estratos tabulares ali estavam para serem cortados e os blocos foram assentados
em planos semelhantes àqueles do Canyon de Chelly.
Desde tempos remotos o homem vinha trabalhando diferentes tipos de
rocha no fabrico de ferramentas. Algumas vezes a rocha tinha uma textura
natural; algumas vezes o ferramenteiro, aprendendo a maneira exata de golpear a
pedra, criava as linhas de divagem. A idéia deve ter surgido, em primeiro lugar,
do trabalho de rachar madeira, porque esta tem uma estrutura visivelmente fácil
de ser aberta no sentido longitudinal das fibras, mas difícil de lascar no sentido
transversal. Assim, a partir desse modesto começo, o homem é agraciado com
uma visão reveladora das leis da composição das estruturas. A mão já não mais
se impõe às formas das coisas. Pelo contrário, ela se torna um instrumento que à
descoberta alia o prazer, no qual a ferramenta transcende o seu uso imediato,
penetrando e arrancando do material os segredos das qualidades que estavam
ocultos no seu bojo. A semelhança do lapidador que trabalha o cristal,
descobrimos as leis secretas da natureza na estrutura interna da matéria.
A descoberta de uma ordem subjacente à estrutura da matéria se constitui no
conceito humano básico para posteriores explorações da natureza. A arquitetura
das coisas revela uma estrutura sob a aparência, uma textura que, quando
desnudada, torna possível isolar as diferentes conformações naturais e reagrupá-
las em múltiplas combinações. Na escalada do homem isto representa para mim
o passo que marca o início da ciência teórica. Tal aquisição é pertinente tanto à
maneira pela qual o homem concebe sua própria comunidade como ao seu
conceito da natureza.
Nós, seres humanos, somos agrupados em famílias, as famílias em grupos
de parentesco, os grupos de parentesco em clãs, os clãs em tribos e as tribos em
nações. O senso de hierarquia, de uma pirâmide na qual uma camada se
superpõe à outra, manifesta-se no modo como olhamos a natureza. As partículas
elementares formam núcleos, os núcleos se agrupam em átomos, os átomos em
moléculas, estas em bases amídicas e as bases dirigem a combinação de ácidos
aminados que, por sua vez, se combinam para formar proteínas. Encontramos de
novo, na natureza, algo que parece corresponder profundamente à maneira pela
qual nossas relações sociais nos congregam.
O Canyon de Chelly é uma espécie de microcosmo de culturas, e seu
clímax foi atingido quando os pueblos construíram as grandes estruturas, pouco
depois do ano 1000 d. C. Elas representam, não apenas um tremendo
conhecimento da natureza do trabalho com a pedra, mas, também, de relações
humanas; tanto aqui como em outras localidades, os pueblos construíram cidades
em miniatura. As habitações nos penhascos às vezes se sobrepunham em cinco
ou seis andares, os pisos superiores apresentando recessos em relação aos
inferiores. O bloco frontal acompanhava o plano do penhasco, mas os fundos se
insinuavam para dentro da rocha. Esses grandes complexos arquitetônicos
chegavam a atingir uma área construída de dez a quinze mil metros quadrados,
abrigando quatrocentos ou mais aposentos.
Pedras constroem paredes, paredes constroem casas, casas formam ruas e ruas,
cidades. Uma cidade é pedra e gente; mas não é apenas pedras empilhadas e
gente amontoada. Na passagem da vila para a cidade surge uma nova
organização comunal, baseada na divisão de trabalho e em hierarquias de
comando. Ao andarmos pelas ruas de uma cidade desconhecida, de uma cultura
extinta, essa noção aflora claramente.
Na América do Sul, nas partes mais elevadas dos Andes, Machu Picchu se
encima a dois mil e quinhentos metros de altura. Foi construída no auge do
Império Inca, por volta de 1500 (quase exatamente ao tempo em que Colombo
tocava as índias Ocidentais), quando o planejamento urbano representava uma
de suas maiores conquistas. Ao conquistar e saquear o Peru em 1532, os
espanhóis, por assim dizer, não tomaram conhecimento de Machu Picchu e suas
cidades irmãs. Passaram, então, quatrocentos 96 anos de esquecimento até que,
no inverno de 1911, Hiram Bingham, um jovem arqueólogo da Universidade de
Yale, tropeçou em suas ruínas. Os séculos de abandono a haviam despojado a
ponto de parecer restos de um esqueleto. Mas esse esqueleto de cidade contém a
estrutura fundamental de toda a civilização urbana, em todas as eras e em todos
os cantos do mundo.
Uma cidade pressupõe a existência de uma infra-estrutura de terra que lhe
garanta a subsistência através de uma rica produção agrícola; assim, a infra-
estrutura visível da civilização inca era o cultivo de terraços. É claro que
atualmente esses terraços raspados nada mais produzem senão capim; mas, aqui,
já se cultivou a batata (que é nativa do Peru) e o milho, que agora nativo, tinha
sido trazido do norte. Além disso, como esta era uma cidade destinada a
cerimônias, certamente muitas especiarias tropicais eram cultivadas para a estada
dos incas que para aqui acorriam. Entre elas está a coca, uma espécie de erva
inebriante que só à aristocracia inca era permitido mascar e da qual extraímos a
cocaína.
O coração de uma cultura em terraços é o sistema de irrigação. E isso foi
desenvolvido pelos impérios pré-incaico e inca; ele percorre os terraços através
de canais, aquedutos e profundas ravinas, em direção ao Pacífico, pelo deserto
afora, fazendo-o florescer. O solo é tão fértil quanto o do Crescente Fértil e,
portanto, a sua produtividade dependia do controle sobre a fonte de água. Assim,
aqui no Peru, a civilização inca foi construída sob a égide do controle da
irrigação.
Um sistema de irrigação que se estende por todo um império requer uma
forte autoridade central. Foi assim na Mesopotâmia. Foi assim no Egito. Foi
assim no Império Inca. Isso significa que esta cidade e todas as cidades da região
possuem uma base de comunicação invisível por meio da qual a autoridade
podia estar presente e audível em toda parte, de modo a enviar ordens do centro
para a periferia e receber informações no sentido inverso. Três invenções
sustentaram a organização autoritária: as estradas, as pontes (numa região
selvagem como esta), as mensagens. Ao inca elas chegavam e dele elas
irradiavam. Esses são os laços que mantêm a ligação de qualquer cidade com
outra, mas, aqui, nesta cidade, notamos, imediatamente, a existência de
diferenças.
Em um grande império, estradas, pontes e mensagens constituem sempre
invenções avançadas, posto que, uma vez interrompidas, a autoridade se
desorganiza e desaparece — em tempos modernos elas têm sido os alvos
preferidos dos revolucionários.
Sabemos que os incas dispensavam grandes cuidados a elas. Entretanto, nas
estradas não havia carros, sob as pontes não se notavam arcos e as mensagens
não eram escritas. A cultura incaica ainda não tinha feito essas descobertas no
ano 1500. Essas são as razões por que a civilização na América se iniciou com
um atraso de alguns milhares de anos, e foi conquistada antes de poder realizar
todas as invenções do Velho Mundo.
É estranho o fato de uma civilização capaz de transportar enormes blocos
de rocha para construções, rolando-as sobre toras de madeira, não ter inventado a
roda; nós nos esquecemos de que o fundamental a respeito da roda é o eixo fixo.
Além disso, também é de se estranhar a construção de pontes suspensas sem o
auxílio de arcos. Mas, mais estranhável ainda, é a existência de uma civilização
que mantinha cuidadosos registros de informações numéricas e, no entanto, não
chegou a escrevê-las — o inca era tão analfabeto quanto os mais pobres dos seus
cidadãos ou os aventureiros espanhóis que os destruíram.
As mensagens chegavam ao inca sob a forma de dados numéricos marcados
em pedaços de cordões chamados quipus. O quipu registra apenas números (na
forma de nós, em um arranjo semelhante ao nosso sistema decimal) e eu, sendo
matemático, sinceramente gostaria de poder dizer que os números são um
simbolismo tão humano e informativo quanto as palavras; mas eles não o são. Os
números que descreviam a vida de um homem no Peru eram coletados em uma
espécie de cartão perfurado ao reverso, um cartão de computador em braille,
organizado sob a forma de nós em um barbante. Quando casava, seu cordão era
ajuntado a um outro chicote familiar. Todo tipo de coisas pertencentes aos
exércitos incas ou estocados em seus silos e despensas eram registradas nos
quipus. O fato é que o Peru já personificava a terrificante metrópole do futuro, o
armazém de memória no qual o Império organiza os atos de cada cidadão,
mantém-no, atribui-lhe tarefas, e registra tudo impessoalmente, através de
números.
Era uma estrutura social extremamente fechada. Cada um tinha seu lugar;
cada um recebia sua subsistência; e cada um — camponês, artesão ou soldado —
trabalhava para um homem, o Inca supremo. Este, era o chefe civil do Estado e
também a encarnação religiosa da divindade. Os artesãos que graciosamente
esculpiram a pedra a fim de representar a aliança simbólica entre o Sol e seu
deus e rei, o Inca, trabalhavam para o Inca.
Assim sendo, tratava-se, necessariamente, de um império
extraordinariamente frágil. Em menos de cem anos, a partir de 1438, os incas
conquistaram quatro mil e oitocentos quilômetros de costa, em quase toda a
extensão entre o Pacífico e os Andes. A despeito disso, em 1532, um aventureiro
espanhol semi-analfabeto, Francisco Pizarro, cavalgou para o Peru com não mais
do que sessenta e dois terríveis cavalos e cento e sessenta soldados a pé, e, da
noite para o dia, conquistou o grande império. Como? Simplesmente capturando
o Inca e, assim, decapitando a pirâmide. A partir desse momento o império ruiu,
e as cidades, as lindas cidades, se quedaram inermes à mercê dos pilhadores de
ouro e dos abutres.
Mas, certamente, a cidade representa mais do que uma autoridade central. O
que é uma cidade? Uma cidade é povo. Uma cidade tem vida. Representa uma
comunidade sustentada por uma infra-estrutura agrícola, mas muito mais rica do
que uma vila, a tal ponto que pode prover todas as categorias de artesãos e torná-
los especialistas em suas profissões.
Os especialistas desapareceram, suas obras foram destruídas. Os
construtores de Machu Picchu — o ferreiro, o artesão de cobre, o tecelão, o
oleiro — foram roubados. Os tecidos apodreceram, o bronze pereceu e o ouro foi
levado. O que restou foi o trabalho dos pedreiros, o lindo artesanato dos homens
que construíram a cidade — pois a cidade nasceu das mãos dos artesãos e não da
dos incas. Mas é natural que, se você trabalha para o Inca (ou para qualquer
outro homem), as idiossincrasias dele dirijam seus atos, e você nada inventa. No
ocaso do império, esses homens ainda utilizavam os dormentes; eles não
chegaram a inventar a arcada, esta é a medida do atraso entre o Novo e o Velho
Mundo, uma vez que esse é exatamente o ponto atingido dois mil anos antes
pelos gregos, que aí também pararam.
No Sul da Itália, Paestum foi uma colônia grega cujos templos são mais antigos
do que o Partenon: cerca de 500 a. C. Seu rio foi-se sedimentando, e hoje
monótonas bacias de sal separam-no do mar. Mas sua glória ainda é espetacular.
A despeito de ter sido saqueada pelos piratas sarracenos no século IX e pelos
cruzados no XI, Paestum, em ruínas, é uma das maravilhas da arquitetura grega.
Paestum é contemporânea ao surgimento da matemática grega; eLivros,
Pitágoras ensinou em Crotona, uma outra colônia grega não muito longe daqui.
A semelhança da matemática peruana de dois mil anos mais tarde, no
acabamento dos templos gregos estão presentes os ângulos retos e os pórticos
quadrados. Os gregos também não inventaram a arcada, e, dessa maneira, seus
templos são avenidas congestionadas de pilares. A aparência de amplidão surge
com as ruínas, mas, na realidade, são monumentos com pouco espaço de
circulação. Isto se deve ao fato de a ampliação se dar pela adição de travessas
retas e, neste caso, cada vão é limitado pelo comprimento da viga e pelo peso
que ela pode suportar.
Tendo-se uma viga apoiada em duas colunas, a análise computacional
mostra que a tensão na viga aumenta à medida que afastamos uma coluna da
outra. Quanto mais longa for a viga, maior será a compressão que seu peso
produz na face superior e maior a tensão na face inferior. E pedra suporta pouca
tensão; as colunas não se partem porque são comprimidas, mas as vigas se
partem quando a tensão se torna demasiada. É a face inferior que arrebenta
primeiro, a não ser que as colunas sejam mantidas bem próximas.
A engenhosidade dos gregos se manifestava no sentido de tornarem a
construção mais leve, por exemplo, superpondo colunas. Mas isso era apenas um
artifício; fundamentalmente, as limitações físicas da pedra não podiam ser
superadas senão por uma nova invenção. Tendo-se em conta a fascinação grega
pela geometria, o fato deles não terem concebido o arco é curioso. Acontece,
porém, que o arco é uma invenção da engenharia, e, assim, apropriadamente, foi
a invenção de uma cultura muito mais plebéia do que as do Peru e da Grécia.
O aqueduto de Segóvia na Espanha foi construído pelos romanos, por volta do
ano 100 de nossa era, sob o reinado do imperador Trajano. Canaliza as águas do
Rio Frio, que desce de suas nascentes na Sierra, numa distância de dezesseis
quilômetros. O aqueduto corta o vale numa extensão de uns oitocentos metros,
com mais de uma centena de arcos com pilares sobrepostos, feitos de blocos
toscos de granito lascado, assentados sem argamassa ou cimento. Suas
proporções colossais de tal forma impressionaram os cidadãos espanhóis e
mouriscos de eras posteriores, e também mais supersticiosas, que hoje é
alcunhado El Puente dei Diablo.
A prodigalidade e o esplendor dessa estrutura podem parecer
desproporcionais para uma simples rede de água. Entretanto, esquecemos os
enormes problemas de uma civilização urbana, dada a facilidade com que
obtemos água pelo simples abrir de uma torneira. Mas, qualquer cultura
avançada, que concentra os melhores de seus homens nas cidades, depende do
tipo de facilidades e organização representadas pelo aqueduto romano de
Segóvia.
A invenção romana do arco não apareceu primeiramente em pedra, mas,
sim, em uma forma de concreto moldado. Estruturalmente, o arco é um método
de ampliar o vão, de modo a não sobrecarregar o centro mais do que as
extremidades; a tensão se distribui de forma mais homogênea. Ainda mais, o
arco pode ser montado a partir de partes separadas: os blocos de pedra que a
carga vai comprimindo. Nesse sentido, o arco representa um triunfo do método
de dividir as formas naturais e recombiná-las em novos arranjos mais poderosos.
Os arcos romanos são sempre semicirculares; chegaram a uma forma
matemática que funcionava bem e não se inclinaram a inová-la. O círculo ainda
permaneceu como a base da construção do arco, mesmo quando os árabes o
utilizaram na produção em massa de suas obras arquitetônicas. Tal fato é
evidente na arquitetura religiosa dos mosteiros árabes: por exemplo, na grande
mesquita de Córdoba, também na Espanha, construída em 785, depois da
conquista árabe. Embora seja uma estrutura muito mais espaçosa que o Paestum
grego, aparentemente se defrontou com dificuldades semelhantes; isto é, a
grande quantidade de blocos isolados que não podiam ser dispensados, a não ser
por uma nova invenção.
Descobertas teóricas com consequências radicais são rapidamente reconhecidas
como originais e revolucionárias. Mas, descobertas práticas, mesmo quando se
tornam de grande alcance, frequentemente se apresentam como mais modestas e
menos memoráveis. Assim, a inovação estrutural que veio remover as limitações
do arco romano chegou, provavelmente de fora da Europa, quase que
clandestinamente. A invenção se constitui em uma nova forma de arco baseada
não mais no círculo, mas, sim, na elipse. Embora pareça uma modificação de
somenos importância, seu impacto na articulação das construções foi
espetacular. Evidentemente, um arco pontiagudo e mais alto permite a ampliação
do espaço e melhor iluminação. Entretanto, a contribuição mais importante do
arco gótico foi a de uma nova concepção no aproveitamento do espaço interno,
como se pode ver na Catedral de Rheims. As paredes são liberadas da carga, e
assim podem ostentar janelas e vitrais; o efeito do conjunto é o de uma gaiola
suspensa pelas arcadas do teto, uma vez que o esqueleto é externo.
John Ruskin descreve admiravelmente o efeito do arco gótico.
As construções egípcias e gregas, na sua maior parte, se mantêm devido ao próprio peso e massa,
cada bloco segurando o adjacente; mas, nas abóbadas góticas e suas ornamentações, há uma solidez
semelhante ao esqueleto ósseo de um membro ou às fibras de uma árvore; uma tensão elástica e
comunicação de força de parte a parte e, também, uma deliberada expressão do conjunto em cada linha
visível do prédio.
Entre todos os monumentos da audácia humana nenhum pode ser
comparado a essas torres de ornamentação e vidro que brotaram ao norte da
Europa antes do ano 1200. A construção desses gigantescos e imponentes
monstros representa um enorme feito da previsão humana — ou, mais
apropriadamente, eu diria que, tendo sido construídos na ausência de
conhecimentos matemáticos capazes de calcular as forças neles envolvidas, são
obras da intuição humana. É claro que isso não aconteceu sem ter havido erros e
mesmo consideráveis fracassos. Mas o que o matemático deve notar em relação
às catedrais góticas é o fato de, a partir de uma intuição fecunda, haver um
desenvolvimento tão harmonioso e racional a partir de cada uma das
experiências com as estruturas sucessivas.
A decisão de construir as catedrais dependia do consenso dos cidadãos de
uma localidade, os quais confiavam as obras a pedreiros locais. Elas não
guardam nenhuma relação com a arquitetura utilitária da época, mas as
improvisações que tais obras exigiam multiplicavam-se em invenções de toda
sorte. No que diz respeito à mecânica, o desenho havia trocado o arco
semicircular romano pelo arco gótico, pontiagudo e elevado, de tal forma que as
tensões se distribuem através dos arcos para pontos no exterior da construção.
No século XII surgiu o semi-arco, outra inovação revolucionária que introduziu
o arcobotante. Neste, a tensão se distribui na coluna, da mesma forma que se
distribui em meu braço, quando levanto a mão e empurro contra a parede, como
se a estivesse apoiando — onde não há tensão não há necessidade de tijolos.
Nenhum princípio básico em arquitetura foi acrescentado a esse realismo, até a
invenção do aço e dos prédios de cimento armado.
Tem-se a impressão de que os homens que conceberam essas elevadas
construções estavam alucinados pelo recém-descoberto domínio da força na
pedra. De que outra forma se pode explicar a proposição de construir abóbadas
de 40 e 45 metros de altura, em uma época em que não havia meios de se
calcular a distribuição de forças? Pois bem, a cúpula de 45 metros — construída
em Beauvais, a menos de cento e cinquenta quilômetros de Rheims — ruiu.
Mais cedo ou mais tarde, os seus construtores inevitavelmente tinham que
deparar com algum tipo de desastre. Há um limite físico para o tamanho, mesmo
em se tratando de catedrais. E este aconteceu com o desmoronamento do teto de
Beauvais, em 1284, apenas alguns anos após ter sido terminada. A partir daí, a
aventura gótica tornou-se mais modesta, e nenhuma outra estrutura tão alta foi
projetada. (Contudo, a planta empírica pode ter sido correta; provavelmente o
solo de Beauvais não era suficientemente firme e cedeu sob o peso da estrutura.)
Mas, em Rheims, a cúpula de 40 metros manteve-se firme, e desde 1250 tem-se
constituído em um centro artístico da Europa.
O arco, as escoras, a abóbada (que é uma espécie de arco de 110 rotação)
ainda não constituem a última etapa de nossa capacidade de modificar a textura
da natureza em nosso proveito. Mas o que nos espera deve ter uma tessitura mais
delicada, devemos olhar para os limites dos próprios materiais. E como se a
arquitetura acompanhasse a física na sua mudança de enfoque, isto é, indo
examinar a matéria no seu nível microscópico. De fato, modernamente o
problema não é tanto o de projetar uma estrutura a partir dos materiais
disponíveis, mas, sim, o de projetar os materiais para uma determinada estrutura.
Os pedreiros traziam em suas cabeças um estoque, não tanto de formas como de
idéias, que se desenvolvia com a experiência, à medida que se deslocavam de
uma obra para a outra. Suas bagagens incluíam conjuntos de ferramentas leves.
Os compassos serviam para marcar as formas ovais das abóbadas e os círculos as
rosáceas das janelas. Intersecções eram determinadas com o uso de compassos
de calibre, podendo assim alinhar as peças de modo a ajustá-las para a
reprodução de padrões. Verticais e horizontais eram obtidas com o auxílio da
régua em T que, à semelhança da matemática grega, utilizava o ângulo reto
(veja-se pág. 157). Isto é, a vertical era alinhada por meio de um prumo, e para a
horizontal, em vez de nível de bolha, usava-se outra linha de prumo
perpendicular à vertical.
Os construtores itinerantes constituíam uma aristocracia intelectual (à
semelhança dos relojoeiros de quinhentos anos mais tarde) e, certos de
encontrarem trabalho e de serem bem recebidos, deslocavam-se para todos os
cantos da Europa. Já no século XIV esses homens se auto-intitulavam
freemasons (pedreiros livres). A habilidade de suas mãos e de suas mentes
passou a representar tanto um mistério como uma tradição, uma congregação
secreta de conhecimentos que se manteve à margem do formalismo estéril do
ensino magistral oferecido pelas universidades. No século XVII, quando o
trabalho dos freemasons já estava minguando, eles passaram a admitir membros
honorários, os quais gostavam de atribuir ao tempo da construção das pirâmides
as origens dessa atividade. Na realidade, essa lenda não os enaltecia, uma vez
que as pirâmides foram construídas dispondo-se de uma geometria muito mais
primitiva do que a das catedrais.
Há alguma coisa na visão geométrica que é universal. Quero explicar por
que me interesso pelas belas obras arquitetônicas — tais como a Catedral de
Rheims. O que tem a ver a arquitetura com a ciência? Particularmente, o que tem
ela a ver com a ciência da maneira como concebíamos esta, no início deste
século, quando a ciência era toda números — o coeficiente de expansão deste
metal, a frequência daquele oscilador?
O ponto que desejo destacar é o de que nosso conceito de ciência,
atualmente, no final do século XX, mudou radicalmente.
Agora vemos a ciência como uma maneira de descrever e explicar as
estruturas subjacentes às coisas; assim, palavras tais como estrutura, padrão,
plano, arranjo, arquitetura nos ocorrem constantemente em toda tentativa de
descrição. Por coincidência, esse problema tem acompanhado toda a minha vida,
e me proporcionado um prazer especial; desde a infância tenho trabalhado com
matemática geométrica. Entretanto, isso já não é mais uma questão de
preferência pessoal ou profissional, porque é essa a linguagem hodierna do
discurso científico. Falamos sobre as formas de combinação dos cristais, da
maneira como partículas elementares formam átomos — e, acima de tudo,
falamos sobre as partes constituintes da matéria viva. No ano passado, a
estrutura helicoidal do ADN passou a representar a imagem viva da ciência. Essa
mesma vida se reflete na trama imaginosa daqueles arcos.
Mas, afinal, qual o feito dessa gente que construiu esta catedral e outras
semelhantes a ela? Simplesmente tomaram uma pilha de pedras sem vida, que
não é uma catedral, e a transformaram numa obra de arte ao explorar as forças
naturais da gravidade, da maneira pela qual os blocos de pedra se assentam
naturalmente nos planos de construção, abrilhante invenção dos arcobotantes, do
arco, enfim, e assim por diante. A estrutura por eles criada se desenvolveu a
partir da análise da natureza para atingir uma síntese majestosa. O mesmo tipo
de homem que hoje se interessa pela arquitetura da natureza foi o artífice dessa
obra de oitocentos anos passados. Há um dom humano que é só dele, do homem,
entre todos os outros animais, e esse dom se mostra por toda parte na arte gótica:
o imenso prazer do exercício e aprimoramento de suas próprias habilidades.
Um clichê popular da Filosofia diz que a ciência é análise pura ou,
reducionismo, como o que separa as listras do arco-íris; e arte, síntese pura,
reconstruindo o arco-íris. Tal concepção não é verdadeira. Toda imaginação
começa a partir de uma análise da natureza. Michelangelo disse-o vivamente,
por implicação, em suas esculturas (o que é particularmente claro em suas obras
inacabadas) e, explicitamente em seus sonetos sobre o ato da criação.
“Quando o que em nós é divino tenta
Moldar uma face, cérebro e mão se unem
Para dar, de um modelo fugidio,
Vida à pedra através da energia livre da arte.”
Cérebro e mão unidos”: o material toma forma através da mão e assim
prenuncia o escopo do trabalho para o cérebro. O escultor, tanto quanto o
pedreiro, perscruta a forma no seio da natureza, onde, para ele, ela já se encontra
perfeita. Esse princípio é uma constante.
“O melhor dos artistas nem pensou em mostrar
Aquilo que a pedra bruta sob a carapaça
Esconde: a magia do mármore quebrar
É mister da mão, que o cérebro realiza.”
Ao tempo em que Michelangelo esculpiu a cabeça de Brutus outros homens
extraíam o mármore para ele. Mas o artista iniciou sua vida como escavador de
mármore em Carrara, e sentia que o martelo em suas mãos, tanto agora como
antes, tateava na pedra à procura de formas nela escondidas.
Agora, os escavadores de mármore trabalham em Carrara para os escultores
modernos que aí chegam — Marino Marini, Jacques Lipchitz e Henry Moore.
Descrevendo seus próprios trabalhos, eles não são tão poéticos quanto
Michelangelo, mas o sentimento é o mesmo. As reflexões de Henry Moore são
particularmente relevantes, uma vez que se dirigem ao gênio de Carrara.
No princípio, como um jovem escultor, não podia pagar por pedras caras, de modo que as obtinha revirando
os estoques até encontrar o que era chamado “bloco de descarte”. A partir daí, então, tinha de pensar de
modo semelhante ao que Michelangelo talvez fizesse, que consistia em esperar até surgir uma idéia
adequada para a forma da pedra, e essa idéia era vista no próprio bloco.
É claro que não se deve entender literalmente que o que o escultor imagina
e esculpe já se encontra escondido no bloco. Contudo, a metáfora revela a
verdade sobre a relação da descoberta existente entre o homem e a natureza; e é
característico o fato de filósofos da ciência (Leibniz, em particular) terem usado
a mesma metáfora da mente instigada por um veio no mármore. Em um certo
sentido, tudo o que descobrimos já existia: uma figura esculpida e uma lei
natural estão ambas escondidas na matéria virgem. Em outro sentido, o que o
homem descobre é descoberto por ele; não teria exatamente a mesma forma nas
mãos de um outro — nem a figura esculpida, nem a lei natural se apresentariam
como cópias idênticas, quando produzidas por duas mentes diferentes, em duas
épocas distintas. Descoberta é uma relação recíproca de análise e síntese. Como
análise, investiga o existente; mas, então, como síntese, rearranja as partes de tal
maneira que a criação mental transcende os limites, o esqueleto, mostrados pela
natureza.
A escultura é uma arte sensual (os esquimós fazem pequenas esculturas que
não se destinam a ser olhadas e, sim, manipuladas). Assim, deve parecer
estranho o fato de eu tomar como modelo para a ciência, usualmente tida como
atividade abstrata e fria, as ações físicas, alegres, da escultura e da arquitetura. E
o fato é que isso está correto. Temos de aprender que o conhecimento do mundo
nos é revelado através da ação, e não da contemplação. A mão é mais importante
do que o olho. Não pertencemos às civilizações resignadas e contemplativas do
Extremo Oriente ou da Idade Média, para as quais o mundo tinha apenas de ser
visto e pensado, e não praticavam nenhuma forma de ciência do modo como a
concebemos. Nós somos ativos; e entendemos (veja-se pág. 417), como algo
mais importante do que um mero acidente simbólico durante a evolução do
homem, que a mão orienta o subsequente desenvolvimento do cérebro. Hoje
encontramos ferramentas construídas por homens antes de se tornarem homens.
Em 1778, Benjamin Franklin chamou o homem de “animal fabricante de
ferramentas”, o que é correto.
Descrevi a mão usando uma ferramenta como instrumento de descoberta;
esse é o tema deste ensaio. Observamos o fato cada vez que uma criança aprende
a ajustar a mão à ferramenta — amarrar os sapatos, enfiar uma agulha, soltar um
papagaio ou soprar um apito. A ação prática implica uma outra, que é o prazer
pela própria ação — na manipulação que se aperfeiçoa, o aperfeiçoamento
ocorre pelo prazer que causa. No fundo, isso responde por toda obra de arte, e
científica também: nossa 116 apreciação poética sobre o que os seres humanos
fazem existe porque eles são capazes de fazer. E a maior exaltação que vem
disso é porque o uso poético encerra, em última instância, o significado mais
profundo. Mesmo na pré-história o homem construía ferramentas com corte mais
afiado do que era necessário. O corte mais fino, por sua vez, destinou a
ferramenta a um uso mais delicado, um refinamento prático e uma extensão de
uso para a qual a ferramenta não havia sido construída.
Henry Moore chama de The Knife Edge a esta escultura. A mão é a lâmina
cortante da mente. Civilização não é uma coleção de artefatos acabados mas,
sim, a elaboração de processos. Enfim, a escalada do homem é representada pelo
refinamento da mão em ação.
O incentivo mais poderoso na escalada do homem é o prazer que ele extrai de
sua própria habilidade. Compraz-se com aquilo que faz bem e, obtendo esse
resultado, delicia-se em aperfeiçoá-lo. Vê-se isso na ciência. Vê-se também na
magnificência das esculturas e construções humanas, no carinho, na exuberância,
na audácia. Os monumentos pretendem homenagear reis e religiões, heróis,
dogmas, mas, ao final, o que realmente homenageiam são os construtores.
Assim, a grande arquitetura religiosa de cada civilização exprime a
identificação do indivíduo com a espécie humana. Chamá-la de veneração aos
ancestrais, como na China, é pouco. A questão é que o monumento fala em nome
dos mortos para os vivos e, assim, estabelece um sentido de permanência que é
uma visão caracteristicamente humana: o conceito de que a vida humana forma
uma continuidade que transcende e flui através do indivíduo. O homem
sepultado a cavalo ou venerado em seu navio Sutton Hoo torna-se, nos
monumentos de pedras de eras subsequentes, um arauto da crença de que há uma
entidade chamada humanidade, da qual cada um de nós é um representante — na
vida e na morte.
Não poderia terminar este ensaio sem falar de meus monumentos favoritos,
construídos por um homem tão pobremente equipado quanto os pedreiros
góticos. Trata-se das Watts Towers de Los Angeles, construídas pelo italiano
Simon Rodia. Este veio da Itália para os Estados Unidos com a idade de doze
anos. Então, aos quarenta e dois anos, depois de ter trabalhado como pedreiro e
mestre de obras, decidiu construir em seu quintal 118 essas tremendas estruturas,
usando tela de galinheiro, pedaços de dormentes, hastes de aço, cimento,
conchas, cacos de vidro e, é claro, azulejos — enfim, tudo o que encontrasse ou
que os garotos da vizinhança pudessem trazer. Passaram-se trinta e três anos até
o término da construção. Ninguém o auxiliou, principalmente porque, em suas
próprias palavras, “na maior parte do tempo eu mesmo não estava certo do que
iria fazer”. A obra se completa em 1954 e ele contava setenta e cinco anos.
Então, doou a casa, o jardim e as torres a um vizinho e, simplesmente,
abandonou tudo.
O que Simon Rodia pensava a respeito de sua obra foi assim expresso: “Eu
tinha em mente realizar alguma coisa grande. E o fiz. A gente tem de ser ou
muito bom ou muito ruim para ser lembrado”. Ele aprendeu sua engenharia
empiricamente, à medida que ia fazendo, e extraía prazer de sua realização.
Como era de se esperar, o Departamento Municipal de Obras considerou que as
torres não apresentavam segurança e consequentemente, em 1959, realizaram
nelas os testes adequados. Esta é a torre que o Departamento tentou pôr abaixo.
Para minha felicidade não se conseguiu o intento. Assim, as Watts Towers
sobreviveram; o trabalho das mãos de Simon Rodia, um monumento no século
XX a nos reportar à habilidade simples, feliz e fundamental da qual se
originaram todos os nossos conhecimentos das leis da mecânica.
A ferramenta que amplia a mão humana é igualmente um instrumento de visão.
Revela a estrutura das coisas e permite sejam elas rearranjadas em novas e
imaginativas combinações. Mas, é claro, a estrutura revelada não é a única
existente no mundo. Sob ela há uma outra estrutura mais delicada. Assim, a
etapa seguinte na escalada do homem vai consistir na descoberta de uma
ferramenta que permite expor a estrutura invisível da matéria.
CAPÍTULO 4 – A ESTRUTURA INVISÍVEL
Saleiro de ouro esculpido, Benvenuto Cellini, estatuetas do século XVI,
encomendadas pelo rei Francisco I. Cellini registrou as palavras de seu patrão
francês a respeito de sua obra:
Quando expus o trabalho perante o rei, ele perdeu o fôlego, maravilhado; não conseguia tirar os olhos da
peça. Então, exclamou cheio de admiração: “Isto é cem vezes mais divino do que eu jamais poderia ter
pensado! Que ser extraordinário é o homem!”
Os espanhóis saquearam o Peru por seu ouro, o qual a aristocracia inca
coletava como nós colecionaríamos selos, com um toque de Midas. Ouro da
avareza. Ouro do esplendor, ouro do adorno, ouro da reverência, ouro do poder,
ouro sacrificial, ouro da vivificação, ouro da ternura, ouro do barbarismo, ouro
da volúpia …
Os chineses descobriram a qualidade que torna esse metal irresistível.
Assim falou Ko-Hung: “Ouro amarelo, mesmo fundido uma centena de vezes,
nunca se deteriora”. Através dessa frase tomamos conhecimento de uma
propriedade física que torna o ouro singular, a qual pode ser testada ou
experimentada na prática, e demonstrada em teoria.
É fácil ver que o homem encarregado da feitura de artefatos de ouro não era um
simples artesão, mas sim um artista. Igualmente importante, mas menos fácil de
reconhecer é que o homem encarregado da experimentação com o ouro também
era mais do que um simples técnico. Para ele, o ouro era um elemento científico.
Dominar uma técnica é útil; mas como qualquer outra habilidade, o que lhe dá
força e importância é sua posição em um esquema natural geral — numa teoria.
Os homens que tentaram e refinaram o ouro colocaram a descoberto uma
teoria da natureza: uma teoria pela qual, embora o ouro seja único, ele pode ser
obtido de outros elementos. Essa é a razão pela qual grande parte da antiguidade
despendeu seu tempo e engenhosidade elaborando maneiras de testar a pureza do
ouro. No início do século XVII Francis Bacon definiu a questão claramente.
O ouro apresenta essas naturezas — grandeza do peso, intimidade de partes, fixação, maleabilidade ou
maciez, imunidade à ferrugem, cor ou tintura amarela. Se alguém conseguir fazer um metal com todas essas
propriedades, deixemos que os homens discutam se trata ou não de ouro.
Entre os vários testes clássicos de pureza do ouro, um deles apresenta mais
visivelmente suas propriedades diagnosticas. Trata-se do teste pela cupelação.
Um pote de cinza de osso, o cadinho (cupel), é aquecido em fornalha a uma
temperatura muito mais alta do que a do ponto de fusão do ouro puro. Colocado
no cadinho, o ouro contaminado por escória se funde. (O ouro apresenta ponto
de fusão bastante baixo, pouco acima de 1000°C, quase igual ao do cobre.) O
que acontece então é que a escória se desprende do ouro e é absorvida nas
paredes do cadinho: assim, repentinamente, acontece a separação visível, como
se fosse entre a impureza do mundo e a pureza oculta do ouro. O sonho dos
alquimistas de fabricar ouro sintético tinha que passar pelo teste concreto da
sobrevivência da pérola de ouro no fundo do cadinho.
A capacidade do ouro resistir ao que era chamado degeneração (e nós a
chamaríamos ataque químico) era ímpar, e, portanto, 136 valiosa e diagnostica.
Implicava, também, um poderoso simbolismo, explícito mesmo nas fórmulas
mais antigas. A primeira referência escrita à alquimia data de dois mil anos e é
chinesa. Relata um método de obtenção de ouro e seu uso para prolongar a vida.
Para nós, essa é uma conjunção extraordinária. Em nossa civilização o ouro é
precioso pela sua raridade; mas para os alquimistas de todo o mundo o ouro era
precioso por ser incorruptível. Nenhum ácido ou álcali conhecido naquele tempo
o atacava. Essa, aliás, era a maneira pela qual o ourives do imperador atestava a
pureza do ouro; o tratamento com ácido era muito menos laborioso do que o da
cupelação.
Em um tempo em que a vida era considerada (e para a maioria o era de
fato) solitária, pobre, desagradável, brutal e curta, o ouro representava para o
alquimista a centelha eterna no corpo humano. A procura da fórmula para
conseguir ouro e o elixir da vida era uma só. O ouro simboliza a imortalidade —
mas devo dizer que para o alquimista não era símbolo, mas, sim, a expressão, a
materialização da incorruptibilidade, nos mundos físico e vivente.
Assim, ao tentar a transmutação de metais básicos em ouro, o alquimista
buscava, com a ajuda do fogo, transformar o corruptível no incorruptível;
tentava extrair a qualidade de permanência a partir do cotidiano. E tal empresa
era afim da busca da eterna juventude: todas as poções destinadas a combater o
mal da velhice continham ouro, ouro metálico como ingrediente essencial, e uma
recomendação para que fosse bebida em taça de ouro, para prolongar a vida.
A alquimia representa muito mais do que um simples conjunto de truques ou
uma crença vaga em uma magia benigna. Desde seus primórdios se constitui em
uma teoria de como o mundo se relaciona com a vida humana. Em uma era em
que não se fazia distinção clara entre substância e processo, e elemento e ação,
os elementos alquímicos eram também aspectos da personalidade humana — da
mesma forma que os quatro elementos dos gregos representavam humores que o
temperamento humano combinava. Portanto, subjacente ao trabalho deles havia
uma teoria profunda: derivada inicialmente das idéias gregas sobre os quatro
elementos, evoluiu na Idade Média tomando uma forma nova e muito
importante.
Para o alquimista havia uma afinidade entre o microcosmo do corpo
humano e o macrocosmo representado pela natureza. Um vulcão era uma
chaleira em grande escala; uma tempestade seguida de chuva torrencial equivalia
a um acesso de choro. Sob essas analogias superficiais jaz um conceito mais
profundo: o de que o Universo e o corpo são feitos dos mesmos materiais, ou
princípios, ou elementos. Havia dois desses princípios para o alquimista. Um era
o mercúrio, representando tudo que fosse denso e permanente. O outro era o
enxofre, representando tudo o que fosse inflamável e fugaz. Todos os corpos
materiais, incluindo o corpo humano, eram feitos a partir desses dois princípios,
e também podiam ser refeitos a partir deles. Por exemplo, os alquimistas
acreditavam que todos os metais cresciam no seio da terra a partir do mercúrio e
do enxofre, da mesma forma que os ossos crescem no embrião a partir de um
ovo. Para eles essa analogia era concreta e ainda permanece no simbolismo da
medicina de hoje. Ainda usamos o símbolo alquímico do cobre para a fêmea,
isto é, o que é tenro: Vênus; para o homem o símbolo alquímico do ferro, isto é,
o que é duro: Marte.
Hoje, isso tudo pode parecer uma teoria infantil, uma mistura de fábulas e
falsas comparações. Entretanto, nossa química irá parecer infantil daqui a
quinhentos anos. Toda teoria se apóia em algum tipo de analogia e, mais cedo ou
mais tarde, a teoria falha porque a analogia se mostra falsa. No seu tempo, uma
teoria auxilia a solução dos problemas cotidianos. E todos os problemas médicos
permaneceram insolúveis até cerca de 1500 devido à crença de que as curas
deviam vir ou de plantas ou de animais — um tipo de vitalismo incapaz de
admitir o pensamento de que os elementos químicos do corpo são iguais aos
outros, confinando, assim, a medicina à procura de curas por ervas.
Então, os alquimistas introduzem o uso de minerais na medicina. O sal, por
exemplo, foi uma substância chave nessa virada conceituai, e um teórico da
alquimia elevou-o à categoria de terceiro elemento. Esse mesmo homem
desenvolveu um método de cura bastante característico para uma moléstia que se
alastrava por toda a Europa por volta de 1500, o flagelo da sífilis, até então
desconhecida. Ainda não sabemos de onde a sífilis apareceu. Pode ter sido
trazida através dos marinheiros que acompanharam Colombo; ou ter-se
expandido a partir do Oriente durante a conquista mongol, ou simplesmente não
era, antes dessa época, reconhecida como entidade mórbida isolada. Mas a sua
cura veio a depender do uso do mais poderoso elemento alquímico, o mercúrio.
O homem que fez essa descoberta é um marco na transição da velha alquimia
para a nova, a caminho da química moderna: iatroquímica, bioquímica, a
química da vida. O seu descobridor batalhou na Europa durante o século XVI. O
lugar, Basiléia, na Suíça. O ano, 1527.
Há instantes na escalada do homem em que ele emerge do país das sombras dos
conhecimentos secretos e anônimos para um novo sistema de descobertas
públicas e pessoais. Para simbolizar esse passo, escolhi um homem batizado com
o nome de Aureolus Phillipus Theophrastus Bombastus von Hohenheim.
Felizmente ele próprio escolheu para si o nome mais compacto de Paracelsus, a
fim de tornar pública sua discordância em relação a Celsus e outros autores que,
embora mortos há mais de mil anos, ainda eram considerados autoridades
através de seus textos médicos amplamente difundidos na Idade Média européia.
Em 1500 os trabalhos dos autores clássicos ainda eram tidos e aceitos como
fonte de sabedoria inspirada em uma época de ouro da medicina, das ciências e
das artes também.
Paracelsus nasceu perto de Zurique em 1493 e morreu jovem, com apenas
quarenta e oito anos, em 1541, em Salzburg. Sua atividade era uma perpétua
ameaça a tudo que fosse acadêmico: por exemplo, foi o primeiro homem a
reconhecer uma moléstia industrial. Na corajosa batalha travada por Paracelsus
contra as idéias tradicionais e a prática da medicina de seu tempo, contam-se
episódios tanto grotescos como ternos. Sua cabeça era fonte perpétua de teorias,
muitas das quais contraditórias, a maioria delas ultrajantes. Portador de um
caráter indomável, picaresco, rabelaisiano, bebia com estudantes, dava em cima
de mulheres, viajava muitíssimo através do Velho Mundo, e, até recentemente,
figurou na história da ciência como um charlatão. Mas isso ele certamente nunca
o foi. Era um homem dispersivo, mas profundamente genial.
Acontece que Paracelsus era o que hoje chamaríamos de uma figura.
Descobrimos nele, talvez pela primeira vez, de uma forma por assim dizer
transparente, que uma descoberta científica flui a partir de uma personalidade e é
vivificada na medida em que a identificamos com o homem que a trouxe à luz.
Paracelsus era um homem prático, entendia a importância do diagnóstico correto
no tratamento de um paciente (ele próprio era um excelente propedeuta) e a
aplicação direta do remédio pelo próprio doutor. Ele quebrou a tradição do
médico se comportar como um erudito, academicamente treinado em antigos
textos, administrando tratamentos ao pobre doente por intermédio de um
assistente que nada mais fazia senão aplicar passivamente as instruções
recebidas. “Não pode haver cirurgião onde não haja também um médico”,
escreveu Paracelsus. “Quando o médico não consegue ser também um cirurgião,
ele não passa de um ídolo, mera pintura de um macaco.”
Tal aforismo não conquistou as boas graças de seus rivais, mas atraiu para
si o interesse de outras mentes independentes da época da Reforma. Assim,
aconteceu dele ter sido trazido à Basiléia para gozar um único ano de triunfo em
sua desastrada carreira mundana. Nessa cidade, no ano de 1527, o eminente
protestante e editor humanista Johann Frobenius padecia de seríssima infecção
na perna, a ponto dela estar para ser amputada. Em desespero, apelou para
amigos do novo movimento, os quais lhe enviaram Paracelsus. Este enxotou os
acadêmicos do quarto do paciente e salvou-lhe a perna, efetuando uma cura que
ecoou por toda a Europa. De Erasmo ele recebeu as seguintes palavras: “Do país
dos mortos trouxestes de volta Frobenius, a quem pertence metade de minha
vida”.
Não constitui apenas uma coincidência o fato de idéias novas e
iconoclásticas em medicina e na terapêutica química terem aparecido ligadas, no
tempo e no espaço, à Reforma iniciada por Lutero em 1517. Basiléia era o foco
desse momento histórico. Aqui havia florescido o humanismo, mesmo antes da
Reforma. A universidade mantinha uma tradição democrática, que tornou
possível ao Conselho Municipal conceder licença e garantir a Paracelsus o
direito de aí ensinar, a despeito dele ser olhado de esguelha pelos seus colegas. A
família Frobenius editava livros, entre eles os de Erasmo de Roterdã, espalhando
a nova concepção por todos os lugares e sobre todos os campos do
conhecimento.
Um vento de mudança sacudia a Europa, muito mais forte talvez que a
própria reformulação religiosa e política iniciada por Lutero. Aproximava-se o
ano que se tornaria o seu símbolo, 1543. Neste ano foram publicados três livros
que mudaram a mentalidade da Europa: o atlas anatômico de Andreas Vesalius; a
primeira tradução, do grego, da matemática e da física de Arquimedes; e o livro
de Nicolau Copernicus, Das Revoluções do Orbe Celeste que, ao colocar o Sol
no centro do céu, iniciou o que hoje conhecemos como Revolução Científica.
Toda essa batalha entre o passado e o futuro foi resumida profeticamente
por um simples ato realizado em Basiléia. Paracelsus atirou à tradicional
fogueira dos estudantes um exemplar do livro de Avicena, um clássico texto de
medicina do discípulo árabe de Aristóteles.
Há um simbolismo oculto naquele gesto junto à fogueira de meio-verão que
tentarei trazer para o presente. O fogo é o elemento alquímico com o qual o
homem penetra profundamente na estrutura da matéria. Então, seria o próprio
fogo uma forma de matéria? Tomando essa asserção como verdadeira, teríamos
de lhe atribuir toda sorte de impossíveis propriedades — tais como, ser ele mais
leve do que nada. Ainda em 1730, duzentos anos depois de Paracelsus, os
químicos tentaram, com a teoria de flogisto, vestir o fogo com uma última
roupagem material. Entretanto, viu-se que a substância flogística, da mesma
forma que o princípio vital, não podia ser demonstrada — o fogo não é matéria,
e a vida não é matéria. O fogo é um processo, transformação e mudança, através
do qual elementos materiais são reagrupados em novas combinações. A natureza
das reações químicas só pôde ser entendida quando o fogo foi compreendido
como um processo.
Aquele gesto de Paracelsus dizia: “A ciência não pode ficar presa ao
passado. Nunca existiu uma Idade de Ouro”. Duzentos e cinquenta anos depois
do tempo de Paracelsus, um novo elemento foi descoberto, o oxigênio, o que
propiciou a explicação da natureza do fogo e arrancou a química do atoleiro da
Idade Média. O fato insólito em relação a essa descoberta é que Joseph Priestley
não estudava a natureza do fogo quando descobriu o oxigênio; sua inquirição se
dirigia a um outro elemento dos gregos, o ar, invisível e onipresente.
Quase tudo do que resta do laboratório de Joseph Priestley encontra-se na
Smithsonian Institution em Washington, capital dos Estados Unidos. Mas,
estando aí, está deslocado. Esse equipamento deveria ser exposto em
Birmingham, na Inglaterra, o centro da Revolução Industrial, onde Priestley
realizou a maior parte de seu esplêndido trabalho. E por que, então, esse
deslocamento? Porque em 1791 uma corja expulsou Priestley de Birmingham.
Este evento é um outro exemplo característico do conflito entre
originalidade e tradição. Em 1761, aos vinte e oito anos, Priestley foi convidado
a lecionar línguas modernas em uma das universidades dissidentes (ele era
unitariano) as quais se ofereciam àqueles estudantes discordantes da orientação
das universidades controladas pela Igreja da Inglaterra. Dentro de um ano,
entusiasmado com as conferências sobre ciências de um colega seu, começou a
escrever um livro sobre eletricidade; e, esse foi o primeiro passo no caminho que
o levou à experimentação química. Tornou-se, também, admirador da Revolução
Americana (Benjamin Franklin o havia encorajado) e, mais tarde, da Revolução
Francesa. Por essa razão^no segundo aniversário da queda da Bastilha, cidadãos
leais à realeza atearam fogo ao laboratório que Priestley descreveu como um dos
mais cuidadosamente equipados da Europa. Emigrou, então, para a América mas
não 144 foi bem recebido. Apenas seus pares intelectuais o apreciavam; já
Presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson assim se dirigiu a Priestley:
“A sua é uma das poucas vidas preciosas para a humanidade”.
Eu gostaria de dizer-lhes que a turba que destruiu a casa de Priestley em
Birmingham destroçou o sonho de um belo homem, amável e encantador. Mas
receio que isso não seja verdade. Não creio que Priestley fosse amável, não mais
do que Paracelsus. Minha suspeita é de que se tratava de um homem difícil,
irascível, frio, preciso, afetado e puritano. Mas a escalada do homem não é feita
por gente amável. É feita por pessoas que têm duas qualidades: grande
integridade e, pelo menos, um pouco de genialidade. Priestley reunia as duas.
Sua descoberta consistiu em mostrar que o ar não era uma substância
elementar: compunham-no vários gases, entre os quais o oxigênio — chamado
por ele “ar desflogisticado” — este sendo essencial para a vida dos animais.
Priestley era um bom experimentador, de modo que avançou cautelosamente em
várias etapas. No dia primeiro de agosto de 1774 conseguiu isolar um pouco de
oxigênio e, maravilhado, observou o intenso brilho de uma chama queimando
nele. Em outubro do mesmo ano, foi a Paris onde comunicou seu achado a
Lavoisier e outros. Entretanto, só aconteceu depois de seu retorno, no dia 8 de
março de 1775, dele ter a idéia de manter um camundongo no oxigênio e, em
seguida, verificar como era fácil a respiração em uma atmosfera desse gás. Um
ou dois dias depois escreve uma deliciosa carta na qual comunica a Franklin que
“Até esta data, apenas dois camundongos e eu próprio tivemos o privilégio de
respirá-lo”.
Também é de Priestley a observação de que as plantas eliminam oxigênio
quando iluminadas pelo sol, contribuindo, assim, para a manutenção da vida
animal. Nos cem anos seguintes constatou-se tratar-se de fenômeno crucial; o
reino animal não teria existido se as plantas não tivessem produzido oxigênio.
Mas, no fim da década de 1770 ninguém ainda havia pensado nesse assunto.
A importância fundamental da descoberta do oxigênio atingiu sua exata
dimensão graças à mente clara e revolucionária de Antoine Lavoisier (o qual foi
executado pela Revolução Francesa). Lavoisier repetiu um experimento de
Priestley que consistia em quase uma caricatura de um dos experimentos
clássicos da alquimia, já descrito acima (p. 123) neste ensaio. Os dois homens
148 aqueceram o óxido vermelho de mercúrio, usando uma lente de aumento
para focalizar energia solar (que estava na moda naquela época), dentro de um
recipiente no qual podiam ver o gás sendo formado e coletá-lo. O gás era o
oxigênio e a demonstração era qualitativa. Entretanto, para Lavoisier, tal evento
se constituiu na imediata sugestão de que a decomposição química era
quantificável.
A idéia era simples e radical; realizar o experimento alquímico nos dois
sentidos e, então, medir exatamente as quantidades permutadas. Primeiramente,
em um sentido direto: queimar mercúrio (de modo que ele absorva oxigênio) e
medir exatamente a quantidade de oxigênio gasta no vaso selado, entre o início e
o fim da queima. Em seguida, o processo é revertido: toma-se o óxido de
mercúrio obtido, aquecendo-o vigorosamente de forma que liberte novamente o
oxigênio. O mercúrio é deixado no fundo, o oxigênio flui para dentro de um
vaso, e a questão crucial é: “Mas, quanto?” Exatamente a quantidade gasta
anteriormente. De repente, o processo se revela como na realidade ele é, nada
mais do que o acoplamento e o desacoplamento de quantidades 150 fixas de
duas substâncias. Essências, princípios, flogistos, todos desaparecem. Dois
elementos concretos, oxigênio e mercúrio, foram realmente demonstrados como
podendo se combinar e descombinar.
Pode parecer desvario querermos, partindo do processo primitivo dos
primeiros forjadores do cobre e das especulações mágicas dos alquimistas,
atingir a idéia mais poderosa da ciência moderna: a idéia do átomo. No entanto,
o caminho, o caminho daqueles que pisam em brasas, é direto. Apenas um
degrau se interpõe entre a noção de elemento químico quantificada por Lavoisier
e sua expressão em termos atômicos pelo filho de um artesão em tecelagem de
Cumberland, ao noroeste da Inglaterra, na fronteira com a Escócia, John Dalton.
Depois do fogo, do enxofre e do mercúrio em chamas, era inevitável que o
clímax da história acabasse por acontecer na fria umidade de Manchester. Aqui,
entre 1803 e 1808, um mestre-escola quaker chamado John Dalton transformou
o vago conhecimento das combinações químicas, ainda que iluminado
brilhantemente por Lavoisier, e isto de uma hora para a outra, no preciso
conceito moderno da teoria atômica. Foi um tempo de descobertas espetaculares
na química — naqueles cinco anos, dez novos elementos foram encontrados;
ainda assim, o interesse de Dalton estava muito longe de tudo isso. Para dizer a
verdade, ele era, por assim dizer, um homem apagado. (Cego para cores, ele era
de fato, e o defeito genético de confundir vermelho com verde, que ele
descreveu a partir de si mesmo, foi chamado, desde então, “daltonismo”.)
Dalton era homem de hábitos regulares. Todas as tardes de quintas-feiras
andava até os arredores para jogar criket. Além disso, as coisas que prendiam
seu interesse eram aquelas encontradas no campo e que ainda caracterizam a
paisagem de Manchester: água, gás dos pântanos, dióxido de carbono. Dalton
dirigiu a si próprio questões muito concretas a respeito de como os elementos se
combinavam em peso. Por que razão, sendo a água composta de oxigênio e
hidrogênio, sempre acontece das mesmas quantidades desses elementos se
combinarem a fim de produzir uma certa quantidade de água? Por que razão isso
acontece na formação do dióxido de carbono, do metano? Por que essas
constâncias de peso?
Dalton passou todo o verão de 1803 trabalhando nessas questões. Seu relato
é o seguinte: “O inquérito sobre os pesos relativos das partículas elementares é,
até onde vai meu conhecimento, inteiramente novo. Ultimamente tenho
prosseguido nesse inquérito com inusitado sucesso”. A partir daí, chegou à
conclusão de que, sim, a antiga teoria atômica dos gregos, de há muito
abandonada, era verdadeira. Mas o átomo não é apenas uma abstração; em um
sentido físico ele possui um peso que caracteriza este ou aquele elemento. Os
átomos de um elemento (Dalton chamava-os “partículas essenciais ou
elementares”) são todos iguais e diferentes das do átomo de um outro elemento;
e, fisicamente, essa diferença se manifesta na diferença entre os respectivos
pesos. “Eu entenderia a existência de um número considerável do que se deveria
propriamente chamar partículas elementares, as quais jamais se
metamorfoseassem uma em outra.” Em 1805, Dalton publica, pela primeira vez,
suas idéias sobre a teoria atômica que, resumidamente, exprimia o seguinte: se
uma quantidade mínima de carbono, um átomo, se combina para formar dióxido
de carbono, ela o faz, invariavelmente, com uma determinada quantidade de
oxigênio — dois átomos de oxigênio.
Se água se torna com dois átomos de oxigênio, cada um combinando com a
quantidade necessária de hidrogênio, teremos uma molécula de água a partir de
um átomo de oxigênio e outra molécula de água a partir de outro átomo de
oxigênio.
Os pesos estão corretos: o peso de oxigênio que produz uma molécula de
dióxido de carbono irá produzir duas moléculas de água. E para um composto
que não apresenta oxigênio em sua molécula, estariam os pesos igualmente
corretos? Para o gás dos pântanos ou metano, por exemplo, resultante da
combinação direta do carbono com o hidrogênio, estariam corretos os pesos?
Sim, exatamente. Removendo-se os dois átomos de oxigênio de uma única
molécula de dióxido de carbono e os dois átomos de oxigênio de duas moléculas
de água, o equilíbrio é perfeito: têm-se as quantidades corretas de hidrogênio e
de carbono para formar metano.
As quantidades, expressas em peso, dos diferentes elementos que se
combinam entre si, exprimem, através de suas constâncias, um esquema
subjacente à combinação entre seus átomos.
A aritmética exata dos átomos faz da teoria química a base fundamental da
moderna teoria atômica. Esta se constitui na primeira lição penetrante, a emergir
de toda aquela multitude de especulações sobre o ouro, o cobre e a alquimia,
vindo alcançar seu cume com Dalton.
Uma outra lição se dirige à questão do método científico. Dalton era
homem de hábitos regulares. Durante cinquenta e sete anos, todos os dias,
percorria os arredores de Manchester medindo a quantidade de precipitação de
água e a temperatura — empresa particularmente monótona, em se tratando
desse clima. Mas desse enorme volume de dados nada brotou. Entretanto,
naquela busca, nascida de uma pergunta quase infantil sobre o significado dos
pesos que entram na composição de algumas moléculas simples — naquela
busca, encontrou a moderna teoria atômica. Tal é a essência da ciência: fazer
uma pergunta impertinente e estarás no caminho de receber uma resposta
pertinente.
CAPÍTULO 5 – A MÚSICA DAS ESFERAS
Tanto a reflexão na linha horizontal como na vertical apresentam pares
simétricos dos padrões coloridos. Mas, ignorando as cores, vemos que a simetria
é quádrupla. Esta aparece impondo-se uma rotação, em etapas de ângulos retos
repetidos quatro vezes, que é uma operação semelhante àquela por mim utilizada
na demonstração do teorema de Pitágoras; dessa maneira, os padrões não
coloridos equivalem, em simetria, ao quadrado pitagórico.
Vejamos, agora, um padrão muito mais sutil. Esses triângulos, em forma de
catavento, e apresentados em quatro cores, mostram apenas um tipo puro de
simetria em duas direções. O padrão passa a ocupar posições idênticas, quando
deslocado horizontal ou verticalmente. A forma de catavento não é irrelevante. É
incomum encontrar sistemas simétricos que não permitam reflexões. Entretanto,
esses triângulos em forma de catavento não o são, não se pode refletir uma
figura sem torná-la sua imagem especular.
Suponhamos, agora, que as cores desapareceram e o verde, o amarelo, o
preto e o azul-real passem a ser identificados apenas como triângulos escuros e
claros. Ainda assim, permanece uma simetria de rotação. Fixemos nossa atenção
em um ponto de junção: aí há confluência de seis triângulos, alternando-se
escuros e claros. Um triângulo escuro pode ser rodado para a posição dos
triângulos escuros seguintes, voltando, na terceira vez, a ocupar sua posição
original — essa simetria tripla roda todo o padrão.
Na realidade, as simetrias possíveis não param aí. Desconhecendo as cores
por completo aparece uma outra rotação possível, fazendo-se um triângulo
escuro ocupar o lugar de um claro, uma vez que são idênticos em suas formas.
Esta operação de rotação levando de um escuro a um claro vai revelar uma
simetria sêxtupla que também gira todo o padrão. Este padrão de simetria nós
conhecemos bem — é o apresentado pelos cristais de neve.
A esta altura, o não-matemático tem o direito de perguntar: “E daí?”. É essa a
preocupação principal da matemática? Será que os professores árabes e os
matemáticos modernos gastam seu tempo com essa espécie de jogo elegante? A
resposta é, talvez, inesperada: Bem, não se trata propriamente de um jogo. Ele
nos coloca face a face com algo difícil de lembrar, isto é, que vivemos em um
tipo especial de espaço — tridimensional, plano — cujas propriedades são
inextrincáveis. Assim, procurando saber que operações podem reverter um
padrão de figuras de volta a ele mesmo, estamos no caminho da descoberta das
leis invisíveis que governam nosso espaço. E este comporta apenas alguns tipos
de simetria, tanto para os desenhos feitos pelo homem como para as
regularidades que a própria natureza impõe às suas estruturas atômicas
fundamentais.
As estruturas que, por assim dizer, simbolizam os padrões naturais de
espaço são representadas pelos cristais. Quando se olha para um exemplar que
jamais foi tocado pela mão humana — por exemplo, um cristal da Islândia —
experimenta-se uma inesperada surpresa ao perceber não ser intuitiva a noção de
que suas faces sejam regulares. Mesmo o fato de suas faces serem planas não é
intuitivo. Assim são os cristais; estamos habituados com o fato de eles serem
regulares. Mas, por quê? Não foi o homem quem os criou e sim a natureza. A
superfície plana é a forma pela qual os átomos se juntam uns aos outros. O
espaço impõe a superfície plana e a regularidade à natureza com a mesma
irrevocabilidade com que deu simetria aos motivos mouriscos por mim
analisados.
Tomemos um belo cubo de pirita. Ou o que, para mim, é o mais interessante
de todos os cristais, o octaedro da fluorita (o cristal de diamante tem esta mesma
forma). Suas simetrias são imposições do espaço no qual vivemos — as três
dimensões, a superfície plana na qual nos movimentamos —, e nenhuma
agregação de átomos pode-se desviar dessa lei crucial da natureza. A semelhança
das unidades componentes de um padrão, no cristal 174 os átomos se empilham
em todas as direções. Dessa maneira, imitando o que vimos para o padrão, o
cristal tem de apresentar uma forma que possa ser entendida ou replicada
indefinidamente. Por essa razão as faces de um cristal apresentam apenas
algumas formas definidas; isto porque os padrões de simetria têm de ser
mantidos. Por exemplo, as únicas rotações possíveis para turnos completos se
compõem de repetição de dois e de quatro, de três e de seis, e só. Repetições de
cinco nunca aparecem. Não se consegue agregar átomos de modo a formarem
triângulos que se ajustem, cinco de cada vez, mantendo uma regularidade
espacial.
Pensar sobre as formas desses padrões, esgotando na prática as
possibilidades de simetria espacial (pelo menos em duas dimensões) , foi o
grande feito da matemática árabe. E seu propósito é maravilhoso, a despeito de
seus mil anos. O rei, as mulheres nuas, os eunucos e os músicos cegos
compunham um esplêndido padrão formal no qual se podia atingir a perfeição na
exploração do que existia, sem pretensões de buscar nenhuma inovação. Aqui
não há nada de novo na matemática, porque nada de novo há no pensamento
humano, até que a escalada do homem arranque em busca de uma nova
dinâmica.
A cristandade começou a ressurgir no norte da Espanha por volta do ano 1000
em focos de resistência jamais conquistados pelos mouros, como a vila de
Santilhana e outras localidades espalhadas na faixa costeira. Aqui, a religião
estava arraigada às coisas simples da vida do campo — o boi, o jumento, o
Cordeiro de Deus — imagens animais eram inconcebíveis na adoração
muçulmana — mas muito mais que imagens animais se permitiam representar o
Filho de Deus na forma de uma criança. A mãe desta criança era uma mulher
depositária de adoração pessoal. Ao ser carregada em procissão, a Virgem
compõe um universo diferente de visão: não mais de padrões abstratos mas, sim,
de vida exuberantemente expressiva.
Na reconquista da Espanha pela cristandade, as fronteiras foram palco da
luta mais intrigante. Mouros, cristãos e também judeus se mesclaram em uma
extraordinária cultura tecida de diferentes credos. Em 1085 Toledo foi por algum
tempo o centro de tal cultura. A cidade de Toledo se constituiu no porto de
entrada para a Europa cristã de todos os clássicos recolhidos pelos árabes da
Grécia, do Oriente Médio e da Ásia.
Para nós a Itália representa o berço do Renascimento. No 176 entanto, sua
conceituação vamos encontrá-la na Espanha, no século XII, simbolizada e
expressa nos trabalhos da famosa escola de tradutores de Toledo, onde os textos
antigos eram vertidos do grego (que a Europa havia esquecido), através do árabe
e do hebraico, para o latim. Entre outros avanços intelectuais, em Toledo foram
compostas algumas séries de tabelas astronômicas na forma de uma enciclopédia
da posição das estrelas. As tabelas são cristãs, mas a numeração é arábica, fato
esse que caracteriza a cidade e a época, ainda hoje se nos apresentando
reconhecidamente atuais.
Geraldo de Cremona foi o mais famoso dos tradutores de Toledo, e o mais
brilhante também. Veio da Itália especialmente em busca de uma cópia do
Almagesto, o livro de astronomia de Ptolomeu, mas acabou permanecendo na
cidade e traduzindo Arquimedes, Hipócrates, Galeno, Euclides — os clássicos
da ciência grega.
Contudo, para mim, a tradução mais importante e que acabou tendo uma
influência duradoura não foi a de um grego. Isso tem a ver com meu interesse
pela percepção de objetos no espaço. Aliás, este é um assunto sobre o qual os
gregos se equivocaram redondamente. Mas tal fato foi compreendido, pela
primeira vez, por volta do ano 1000, como produto do trabalho de um
matemático excêntrico, ao qual chamamos Alhazen, a única mente realmente
científica produzida pela cultura árabe. Os gregos pensavam que a luz ia dos
olhos para o objeto. Alhazen foi o primeiro a reconhecer que a visão de um
objeto se deve à reflexão e direcionamento, para os olhos, de raios de luz
incidindo em cada ponto do mesmo objeto. A conceituação grega não permitia
explicar a mudança de forma aparente de um objeto; de minha mão, por
exemplo, quando em movimento. Na explanação de Alhazen, fica perfeitamente
esclarecido que o cone de raios emergentes do contorno e da forma de minhas
mãos diminui de diâmetro à medida que o afasto dos olhos de um observador.
Aproximando minha mão dos olhos desse mesmo observador, o cone de raios,
entrando nos olhos dele, aumenta de diâmetro, subentendendo, dessa maneira,
um ângulo maior. E isso, e apenas isso, dá conta da diferença de tamanho
percebida. A noção é tão incrivelmente simples que é de se admirar como os
cientistas não lhe deram atenção (Roger Bacon foi uma exceção) durante
seiscentos anos. Entretanto, artistas levaram-na em conta muito antes, e o
fizeram de uma forma prática. A idéia do cone de raios que vai do objeto para o
olho se constitui no fundamento da perspectiva. E a perspectiva é a nova idéia
que revivifica a matemática.
A perspectiva foi incorporada à arte no norte da Itália, em Florença e
Veneza, no século XV. Na Biblioteca do Vaticano há uma cópia manuscrita de
uma tradução da Óptica de Alhazen, anotada por Lorenzo Ghiberti, autor da
famosa perspectiva em bronze das portas do Batistério de Florença. Mas este não
foi o pioneiro da perspectiva — Filippo Brunelleschi é um candidato mais
provável — e, na realidade, pode-se identificar um número deles, a tal ponto de
formarem uma escola de Perspectivi. Era uma escola de pensadores, uma vez
que se propunham, não apenas imprimir vida às suas figuras, mas, também, criar
a impressão de seus movimentos no espaço.
O movimento se apresenta evidente, mesmo em uma rápida confrontação
de um trabalho de um dos Perspectivi com outro, anterior a eles. A “Santa
Ursula” de Carpaccio, representando uma figura feminina se afastando de um
porto veneziano vagamente delineado, foi pintada em 1495. O efeito pretendido
é o de dar uma terceira dimensão ao espaço visual, à semelhança da nova
profundidade e dimensão das harmonias então recentemente introduzidas na
música européia. Mas o efeito buscado não era tanto profundidade como
movimento. Na música e na pintura, os habitantes possuem mobilidade. Acima
de tudo, temos a impressão de que os olhos do pintor estão em movimento
contínuo.
Examinemos, agora, um afresco florentino pintado há uma centena de anos
anteriormente, por volta de 1350. Reproduz uma visão da cidade, tomada de fora
dos muros, o pintor olhando ingenuamente por cima destes e dos telhados, como
se fossem dispostos em andaimes. Entretanto, esse quadro não reflete uma
habilidade ou falta dela, mas, sim, uma intenção. A perspectiva não é
considerada, porque o pintor se pensa a si próprio como um reprodutor das
coisas como elas são, e não como elas parecem ser: uma visão do olho de Deus,
um mapa da verdade eterna.
O pintor da perspectiva é portador de uma intenção diferente. Qualquer
visão absoluta ou abstrata é deliberadamente afastada.
O reproduzido não é um lugar, mas um momento, e um momento fugaz: um
ponto de vista no tempo, mais do que no espaço. Tudo isso foi conquistado
através de métodos exatos, matemáticos. O equipamento então utilizado foi
cuidadosamente descrito e ilustrado pelo artista alemão Albrecht Dürer, que foi à
Itália em 1506 a fim de aprender a “arte secreta da perspectiva”. O próprio Dürer
fixou um momento no tempo; se recriarmos sua cena, veremos o artista em
busca do momento dramático. Ele poderia ter interrompido mais cedo sua
inspeção à volta do modelo. Um momento mais tarde poderia igualmente ter
sido escolhido para ser fixado na tela. Mas, aconteceu que ele decidiu abrir os
olhos, tal qual o diafragma de uma câmera, e isso compreensivelmente, no
instante exato em que o modelo se mostrou por inteiro. A perspectiva não
representa a penas um ponto de vista; naquilo que toca ao pintor é um trabalho
ativo e contínuo.
Nos primórdios da perspectiva costumava-se usar um visor e uma grade
como ajuda para fixar o momento na tela. O equipamento de observação vinha
da astronomia, e o papel quadriculado no qual a cena era desenhada constitui,
hoje, um dispositivo auxiliar da matemática. Todos os detalhes naturais nos quais
Dürer se delicia são expressões da dinâmica do tempo: o boi e o asno, o corado
juvenil na face da Virgem. A tela é A Adoração dos Magos.
Os três sábios do Leste encontraram a estrela, e esta anunciava o nascimento do
tempo. A taça, no centro da pintura de Dürer, era uma peça-chave no ensino da
perspectiva. Por exemplo, temos a análise de Uccello sobre as maneiras de se ver
e desenhar uma taça; hoje, podemos entregar essa tarefa a um computador. Mas
o artista da perspectiva trabalhava intensamente; seus olhos giravam tal qual
uma mesa giratória, a fim de explorar a forma cambiante do objeto, a elongação
dos círculos em elipses e, então, apanhar um instante no tempo, na forma de uma
pincelada no espaço. Analisar as variações dos movimentos de um objeto, como
eu posso fazer com a ajuda de um computador, era uma atividade totalmente
estranha às mentes dos gregos e dos muçulmanos. Estes procuravam sempre o
imóvel, o estático, um mundo intemporal de perfeita ordem. Para eles, a forma
perfeita era representada pelo círculo. O movimento tinha de progredir, suave e
uniformemente, em círculo; aí estava a harmonia das esferas.
Essa é a razão pela qual, no sistema de Ptolomeu, as órbitas eram circulares,
pois, assim, o tempo podia transcorrer uniforme e imperturbavelmente.
Acontece, porém, não existirem movimentos uniformes no mundo real.
Velocidade e direção variam a cada instante, de modo que só puderam ser
analisadas quando se criou uma matemática na qual o tempo era uma variável.
Este problema pode ser teórico tratando-se dos céus, mas é prático e de aplicação
imediata na terra — na trajetória de um projétil, no crescimento explosivo de
uma planta, no simples cair de uma gota de líquido, passando por variações
abruptas de tamanho e direção. A Renascença não dispunha de equipamento
capaz de fazer parar, de instante a instante, a imagem de uma cena em
movimento. Mas a Renascença havia conquistado o equipamento intelectual: o
olho penetrante do pintor e a lógica do matemático.
Dessa maneira, depois do ano 1600, Johannes Kepler se convenceu de que
o movimento de um planeta não é nem circular nem uniforme. A órbita é uma
elipse que o planeta percorre em velocidades variáveis. Isso significava que a
velha matemática dos padrões estáticos já não era mais suficiente; nem a
matemática do movimento uniforme. Havia a necessidade de uma matemática
capaz de definir e operar com movimentos instantâneos.
A matemática do movimento instantâneo foi inventada por duas mentes
privilegiadas do fim do século XVII — Isaac Newton e Gottfried Wilhelm
Leibniz. A nós nos parece tão familiar que tendemos a considerar o tempo como
um elemento natural na descrição da natureza; mas isso não foi sempre assim.
Foram eles que criaram a idéia de tangente, a idéia de aceleração, a idéia de
inclinação, a idéia de infinitesimal, de diferencial. Há 184 uma palavra, já agora
esquecida, mas que representa a melhor descrição para aquele fluxo de tempo o
qual Newton fez parar como que com um golpe de guilhotina: Fluxions. Este era
o nome dado por Newton ao que, depois de Leibniz, passou a ser chamado
cálculo diferencial. Considerá-lo sob o aspecto de apenas mais uma técnica
avançada equivaleria a não entender o seu significado real. Com ele a
matemática se torna uma maneira dinâmica de pensamento, e essa conquista
representa um enorme salto mental na escalada do homem. O conceito técnico
subjacente a toda a sua aplicação é, por estranho que isso possa parecer, o de um
deslocamento infinitesimal; e o avanço intelectual consistiu em se ter atribuído
um rigoroso significado ao mesmo. Mas podemos deixar o conceito técnico aos
profissionais, e nos contentarmos em chamá-la matemática das variações.
As leis da natureza têm sido sempre formuladas através de números, desde
que Pitágoras os considerou a linguagem da natureza. Entretanto, agora já se
tornava necessário que a linguagem da natureza incluísse números capazes de
descrever o tempo. As leis naturais tornam-se leis do movimento, e a própria
natureza já não é mais uma sequência de quadros estáticos, mas, sim, um
processo em movimento.
CAPÍTULO 6 – O MENSAGEIRO SIDERAL
Ao ser pressionado a responder questões tais como: “Você não respondeu ao
porquê da ação da gravidade”, “Você não explicou como uma ação pode ser
exercida à distância”, ou mesmo, “Você não explicou por que os raios de luz se
comportam dessa maneira”, sua resposta era sempre nos mesmos termos: “Eu
não elaboro hipóteses”. Para ele essa frase significava: “Eu não me envolvo em
especulações metafísicas. Uma lei foi descrita, e a partir dela eu deduzo
fenômenos”. Isso corresponde exatamente ao que ele havia dito em seu tratado
sobre óptica, e era exatamente aquilo que não podia ser entendido pelos seus
contemporâneos, isto é, uma abordagem diferente dos problemas da óptica.
Por outro lado, tivesse sido ele um homem simples, muito teimoso
e terra-a-terra, tudo isso seria facilmente explicável. Mas vou mostrar-
lhes que esse não era o caso. Newton era, na verdade, possuidor de um
temperamento dos mais extraordinariamente imprevisíveis. Praticava a
alquimia. Em segredo, escreveu volumes imensos sobre o Livro da
Revelação. Estava convencido de que a lei do inverso dos quadrados já
podia ser encontrada nos trabalhos de Pitágoras. O caráter inescrutável
de Newton se exprime de maneira extraordinária no fato desse homem
— que em segredo vivia imerso em especulações metafísicas e místicas
— ter o topete de dizer em público: “Eu não elaboro hipóteses”. No seu
Prelúdio, William Wordsworth encontrou uma frase felicíssima
Newton, com seu prisma e sua face silenciosa que o define
perfeitamente.
No entanto, sua imagem pública revelava grande sucesso. É claro
que Newton não conseguia promoção na Universidade, mas isso se
prendia ao fato dele ser um Unitarian, não aceitando a doutrina da
Trindade, a qual, na verdade, se constituía em um ponto sensível para
todos os cientistas de seu tempo. Portanto, não poderia chegar a Pastor,
etapa necessária para galgar o posto de Mestre de um Colégio
Universitário. Dessa maneira, em 1696 ele se transferiu para Londres,
ligando-se à Casa da Moeda, da qual acabou sendo presidente. Depois
da morte de Hooke ele aceitou a presidência da Royal Society em 1703.
Em 1705 foi sagrado par do reino pela Rainha Ana. Ao morrer, em
1727, já dominava completamente o ambiente intelectual de Londres. O
garoto provinciano ascendeu na vida.
Em sua história há, para mim, um ponto triste: julgado pelos padrões do
século XVIII ele, sem dúvida, alcançou grande sucesso 234 social, mas, segundo
os seus próprios padrões, acho que não.
Infelizmente, a fim de se tornar um ditador nos conselhos do Poder Constituído,
assimilou os critérios daquela sociedade e considerou tal situação uma conquista
pessoal.
Um ditador intelectual não é uma figura agradável, mesmo quando tenha
origens humildes. Contudo, em seus escritos mais íntimos Newton não se mostra
a figura arrogante, tão frequente e diversamente representada em sua vida
pública.
Explicar toda a natureza é uma tarefa muito difícil para um homem ou mesmo para uma era. Muito melhor
é fazer um pouco com segurança, deixando o resto para outros que venham depois de você, do que tentar
tudo de uma só vez.
Em uma outra passagem, mais famosa, ele diz a mesma coisa, mas em um
contexto mais compassivo.
Não sei que tipo de imagem o mundo faz de mim; mas, eu me sinto como se tivesse sido apenas um garoto
brincando à beira do mar, contente em achar aqui uma pedrinha mais lisa, ali uma concha mais atraente do
que de ordinário, tendo sempre diante de mim, ainda por descobrir, o grande oceano da verdade.
Aos setenta anos Newton presidia uma Royal Society onde se realizava
muito pouco trabalho científico de valor. Sob os Georges, a Inglaterra
estava muito mais preocupada com dinheiro (estes eram os anos da
Exaltação dos Mares do Sul), com política e com escândalos. Nos cafés,
ágeis homens de negócios organizavam companhias a fim de
explorarem invenções fictícias. Os escritores ridicularizavam os
cientistas, em parte por despeito e em parte por motivos políticos, uma
vez que Newton era figura importante do governo.
No inverno de 1713 um grupo de escritores do Partido Conservador
(então Tory) constituiu uma sociedade literária. Até a morte da Rainha
Ana, no verão seguinte, eles se reuniam regularmente no Palácio de St.
James, sob o patrocínio do médico da monarca, Dr. John Arbuthnot.
Essa sociedade, que adotou o nome de Scriblerus Club, se entregou ao
mister de ridicularizar as agremiações culturais da época. O ataque
dirigido contra a comunidade científica por Jonathan Swift no terceiro
livro das Viagens de Gulliver, brotou das discussões desse grupo. Esses
Tories que mais tarde ajudaram John Gray em sua sátira do governo em
The Beggar’s Opera (A Ópera dos Mendigos) também o assessoraram em
1717 ao escrever a peça Three Hours After Marriage (Três Horas Após o
Casamento). Nesta, o alvo da sátira 236 é representado por um cientista
idoso, cheio de pompa, ostentando o nome de Dr. Fossile. Abaixo
reproduzimos algumas passagens nas quais contracenam o Dr. Fossile e um
aventureiro, Plotwell, que, no momento, entretém um caso amoroso com a dona
da casa.
Fossile: Prometi minha “pedrinha” a Lady Longfort. A pobre senhora está prestes a abortar, mas acho que
isso irá impedir. Ah! Quem está aqui! Não me agrada o aspecto do sujeito. Em todo caso não serei
demasiadamente severo.
Plotwell: Illustrissime domine, huc adveni —
Fossile: Illustrissime domine — non usus sum loquere Latinam — se você não falar inglês não poderemos
entreter nenhuma conversação verbal. Plotwell: Eu poder falar só um pouco englese. Eu tenho ouvido
muito do fama do grande luminário de todos os artes e ciências, o ilustrado doutor Fossile. Eu gostar de
fazer comutações (como dizer isso?). E troca alguns de meus coisas por alguns de seus coisas.
Naturalmente, o primeiro tópico da brincadeira gira em torno da alquimia; o
jargão é bastante preciso ao longo de todo o texto.
Fossile: Por favor, meu senhor, qual a sua universidade?
Plotwell: O famosa universidade de Cracow. . .
Fossile: . . . mas de que arte Arcana o senhor é mestre?
Plotwell: Vê aqui, senhor, este caixa de rapé.
Fossile: Caixa de rapé.
Plotwell: Certo. Caixa de rapé. Este ser o verdadeiro ouro.
Fossile: Mas, afinal, o que isso significa?
Plotwell: Significar? Eu fazer aquele ouro eu mesmo, do chumbo do grande Igreja de Cracow.
Fossile: Através de que operações?
Plotwell: Por calcinação; reverberação; purificação; sublimação; amalgamação; precipitação; volatilização.
Fossile: O senhor deveria ser mais cuidadoso em suas afirmações. A volatilização do ouro não é um
processo óbvio …
Plotwell: Eu não precisar ensinar o ilustroso Dr. Fossile que todo metal não ser senão ouro ainda verde.
Fossile: O senhor se expressou talqualum filósofo. No entanto, ainda acho que o parlamento deveria exarar
um ato proibindo a mineração do chumbo, assim como a derrubada de árvores jovens.
Em seguida, referências científicas são despejadas rápidas e
maldosamente: os problemas em foco se referem ao trabalho espinhoso
da determinação das latitudes no oceano, à invenção dos fluxions ou
cálculo diferencial.
Fossile: No momento não estou disposto para experimentações.
Plotwell: O senhor mexe com latitudes?
Fossile: Eu não me ocupo com impossibilidades. Apenas procuro o grande elixir.
Plotwell: O que pensar o senhor sobre o novo método dos fluxions?
Fossile: Não conheço nenhum outro a não ser através do mercúrio.
Plotwell: Há, há, mim dizer fluxions de quantidade.
Fossile: A maior quantidade jamais vista por mim foram três quartos por dia.
Plotwell: Haver algum segredo em hidrologia, zoologia, minerologia, hidráulica, acústicas, pneumáticas,
logarítmica, sobre o qual querer você saber?
Fossile: Estão todos fora de meu campo de interesse.
A nós parece uma grande irreverência essa sátira a Newton; mesmo uma crítica
séria por parte de seus contemporâneos o pareceria.
O fato é que toda teoria, por mais majestosa que seja, subentende suposições
abertas à contestação e, na realidade, terão de ser substituídas no tempo devido.
Aconteceu o mesmo com a teoria de Newton, a despeito de sua maravilhosa
aproximação dos fenômenos naturais. Newton confessou-o. A suposição
primária de Newton, enunciada desde o início, foi a seguinte: “Considero o
espaço como sendo absoluto”. Com isso queria dizer ser o espaço sem preplano
e infinito, da forma que o entendemos em nossa própria vizinhança. Desde o
início, essa suposição foi criticada por Leibniz, e corretamente. A final de contas,
ela não é sequer provável em nossa experiência ordinária. Embora estejamos
habituados a viver em um espaço plano, basta olharmos ao largo para nos
convencermos de nosso erro.
A Terra é esférica; assim, um ponto localiza do no Pólo Norte pode ser
mirado por dois observadores colocados na linha do Equador, mas separados por
grande distância, e os dois afirmarem estar olhando em direção Norte. Tal
arranjo seria inconcebível para um habitante de uma terra plana, ou para
qualquer pessoa acreditando que a planura de sua vizinhança se estende por toda
a superfície da Terra. Dessa maneira, Newton estava se comportando como um
habitante de uma terra plana em uma escala cósmica: viajando através do
Universo, tendo a trena em uma das mãos e o relógio de bolso na outra,
mapeando o espaço como se este fosse, lá fora, semelhante ao percebido aqui.
Necessariamente, tal suposição não é verdadeira.
Não se trata mesmo de o espaço ser uniformemente esférico — isto é, que
deva ter uma determinada curvatura. Pode acontecer dele ser arqueado ou
ondulado. A existência de locais de depressão no espaço é possível, para eles
deslizando corpos em maior proporção do que para outros. É claro, entretanto,
que os movimentos dos corpos celestes devem permanecer os mesmos — nossas
explanações têm de ser coerentes com a maneira pela qual eles se nos
apresentam. Mas, para cada concepção há uma explanação adequada. Então,
segundo o último caso considerado, a Lua e os planetas obedeceriam leis
geométricas e não gravitacionais.
Naquele tempo todas essas considerações eram especulações futuras e,
mesmo quando formuladas, a matemática da época não oferecia condições para
lhes dar tratamento formal. No entanto, às mentes inquiridoras e filosóficas, não
tinha passado despercebido o fato de que, ao estender o espaço como se fora
uma grade absoluta, Newton havia dado uma simplicidade irreal à percepção das
coisas. Contrastando com esse mundo de idéias, Leibniz havia pronunciado as
palavras proféticas: “Para mim, espaço, da mesma forma que tempo, são
entidades puramente relativas’’.
O tempo é um outro absoluto no sistema newtoniano. O tempo é fundamental no
mapeamento dos céus: em primeiro lugar, não sabemos a que distância as
estrelas se encontram de nós, sabemos apenas o momento que elas passam pelo
nosso campo de visão. Dessa maneira, para aperfeiçoar os conhecimentos
marítimos, dois instrumentos eram fundamentais: o telescópio e o relógio.
O aperfeiçoamento dos telescópios veio em primeiro lugar, e agora já se
encontravam instalados no Observatório Real de Greenwich. O ubiquitário
Robert Hooke o havia planejado ao tempo em que ele e Sir Christopher Wren
reconstruiam Londres depois do Grande Incêndio. De agora em diante o
marinheiro, ao fixar sua posição — latitude e longitude — em um local distante
da terra, podia comparar suas leituras das estrelas com aquelas de Greenwich. O
meridiano de Greenwich torna-se, então, um marco fixo no mundo tempestuoso
de qualquer marinheiro: o meridiano e o Tempo Médio de Greenwich.
Em seguida o relógio tinha de ser aperfeiçoado, de forma a ser uma ajuda
na determinação de posições. Esse instrumento torna-se o problema da época,
uma vez que, a fim de se utilizarem praticamente as teorias de Newton para a
navegação marítima, era imperioso o desenvolvimento de um relógio capaz de
marcar hora certa nos navios. O princípio é bastante simples. Desde que o Sol
completa o seu ciclo em torno da Terra em vinte e quatro horas, cada um dos 360
graus de latitude ocupa quatro minutos de tempo. Assim, um marinheiro
comparando meio-dia em seu navio (a posição mais elevada do Sol) com meio-
dia marcado em um relógio que mantenha a hora de Greenwich, poderá ficar
sabendo que cada quatro minutos de diferença entre as duas leituras o colocam
um grau afastado do meridiano de Greenwich.
O governo ofereceu um prêmio de vinte mil libras para o marcador de
tempo que provasse sua precisão, com erro mínimo de meio grau, em uma
viagem de seis semanas. Evidentemente, um tal prêmio acendeu a competição
entre os relojoeiros londrinos (a de John Harrison, por exemplo) os quais
construíam relógios cada vez mais engenhosos, tentando compensar, por meio da
combinação de pêndulos, os distúrbios causados pelos movimentos dos navios.
Esses problemas técnicos deram origem a uma explosão de invenções e
criaram a preocupação com a medida do tempo, que veio a dominar a ciência e a
vida cotidiana até nossos dias. Na realidade, um navio pode ser comparado a
uma estrela. De que maneira uma estrela se desloca no espaço e como podemos
determinar o tempo gasto em suas deslocações? O navio se apresenta como um
ponto de partida para se pensar na relatividade do tempo.
Os relojoeiros dessa época passaram a formar a elite dos trabalhadores, à
semelhança da confraria dos pedreiros da Idade Média. O marcapasso amarrado
em torno de nossos pulsos, o ditador dos tempos modernos, foi, desde a Idade
Média, embora, nesta época, de interesse apenas diletante, um sonho intrigante,
que estimula a habilidade dos artesãos. Nesses dias, porém, o relojoeiro
pretendia, não propriamente acompanhar as horas do dia, mas, sim, o movimento
das estrelas do céu.
O universo de Newton manteve seu tique-taque ininterrupto por cerca de
duzentos anos. Viesse seu fantasma à Suíça, em qualquer tempo antes de 1900,
todos os relógios cantariam aleluia, em uníssono, em seu louvor. Entretanto, logo
após 1900, em Berna, a uns duzentos metros da antiga torre do relógio, surge o
jovem que, em tempo, vai tirar muito do entusiasmo daquela aleluia: Albert
Einstein.
Luz e tempo começaram a se dissociar, exatamente por volta dessa época.
Em 1881 Albert Michelson realizou um experimento (repetido posteriormente
com a colaboração de Edward Morley), no qual, projetando feixes luminosos em
diferentes direções, teve a estonteante surpresa de verificar que,
independentemente dos movimentos impressos ao aparelho, a luz mantinha
sempre a mesma velocidade. Esse fato não podia ser esperado a partir das leis de
Newton, e, dessa maneira, foi aquele primeiro ruído no coração da física, que,
em 1900, começou a provocar um certo pânico nos cientistas de então.
Não se sabe ao certo o quanto o jovem Einstein estava a par desse
problema, uma vez que não era estudante muito aplicado.
Em todo caso, ao tempo de sua chegada a Berna, sua mente de adolescente
de há muito havia planteado para si mesma a questão de como seria nossa
concepção do mundo se ela fosse encarada do ponto de vista da luz.
A resposta a essa pergunta é repleta de paradoxos, o que a torna intrincada.
E, como acontece com todo paradoxo, o mais difícil não é explicá-lo, mas, sim,
concebê-lo. A genialidade de homens tais como Newton e Einstein tem aí sua
base; eles formulam perguntas transparentes, inocentes, mas, cujas respostas são
catastróficas. O poeta William Cowper chamou a Newton o “sábio infantil”,
tendo em conta essa qualidade, que descreve perfeita- mente o ar de surpresa em
relação ao mundo, marcando indelevelmente a face que conhecemos de Einstein.
Quer ele falasse sobre uma viagem em um raio de luz ou uma queda no espaço,
Einstein sempre ilustrava esses princípios com lindos exemplos; assim, vou
arrancar uma página ao seu livro, dirigindo-me ao subsolo da torre do relógio e
tomando o mesmo bonde do qual se servia todos os dias para chegar ao seu
trabalho, onde era funcionário do Escritório de Patentes da Suíça.
O pensamento que ocorreu à mente do adolescente Einstein foi o seguinte:
“Como se me apresentaria o mundo se eu pudesse viajar em um raio de luz?”.
Suponham o caso deste bonde estar se afastando daquela torre do relógio,
montado no mesmo raio de luz que usamos para enxergá-lo. O relógio estaria
congelado em uma posição. Eu, o bonde, esta caixa cavalgando o raio de luz,
estaríamos fixos no tempo. O tempo teria de parar.
Analisemos essa proposição mais pormenorizadamente. Suponhamos que o
relógio que está ficando para trás marque meio-dia, quando eu parto. Agora, eu
estaria viajando à velocidade da luz, a 297.600 quilômetros de distância dele;
isso tomaria um segundo de tempo. Entretanto, o relógio, como o vejo, ainda
marca “meio-dia”, uma vez que o feixe de luz e eu nos afastamos juntamente do
relógio. Da mesma forma que para o relógio, acontece com o universo dentro do
bonde: ao me manter à velocidade da luz fico indiferente ou independente da
passagem do tempo.
Esse paradoxo é extraordinário, mas vamos deixar de lado suas
implicações, ou outras com as quais Einstein estava preocupado.
Concentremo-nos, porém, em um ponto: ao viajar em um raio de luz, o
tempo deixa de ter significado para mim. Isso deve significar que, ao me
aproximar da velocidade da luz (o que vou simular aqui neste bonde), estarei
ficando sozinho em meu compartimento de tempo e espaço, e progressivamente
me afastando das normas daquilo que me cerca.
Esses paradoxos revelam dois pontos claramente. Um deles é óbvio: não há
um tempo universal. O outro é mais sutil: são diferentes as experiências daqueles
que viajam e daqueles que ficam, e, assim, para cada um de nós em seu caminho.
Minhas percepções dentro deste bonde são coerentes: as leis por mim
descobertas em relação ao tempo, distância, velocidade, massa e força serão
iguais às de qualquer outro observador. Mas os valores numéricos por mim
atribuídos ao tempo, à distância, e assim por diante, não serão os mesmos
igualmente atribuídos por parte de um observador que permanece na calçada.
Esse é o cerne do Princípio da Relatividade. Entretanto, aí fica uma
questão óbvia: Bem, e o que mantém nossos compartimentos, o seu e o
meu, ligados? A passagem da luz: a luz carrega a informação que nos
une. Essa também é a razão pela qual o fato experimental crucial vinha
desnorteando as pessoas desde 1881: quando trocamos sinais,
descobrimos que não medimos tempo durante a permuta de
informações; temos sempre o mesmo valor para a velocidade da luz.
Assim sendo, tempo, espaço e massa têm de ser diferentes para cada um
de nós, porque as leis deles extraídas devem ser consistentes, tanto para
mim aqui dentro do bonde, como para o homem lá fora na calçada —
mantendo, entretanto, o mesmo valor para a velocidade da luz.
A luz e as outras radiações são sinais que se espalham a partir de um
evento, como se fossem ondulações através do Universo, não havendo nenhuma
possibilidade de informação daquele evento trafegar a uma velocidade maior. A
luz ou as ondas de rádio e os raios X são veículos de mensagens por excelência,
e formam uma rede básica de informações, as quais mantêm interligado o
universo material. Mesmo que a mensagem a ser enviada seja simplesmente
tempo, não podemos obtê-la, indo de um local para outro, mais rapidamente do
que a luz ou a onda de rádio que a transporta. Não há tempo universal para o
mundo, nenhum sinal emitido a partir de Greenwich, para que acertemos nossos
relógios, está isento de sua ligação inextrincável com a velocidade da luz.
Nesta dicotomia, uma dessas manifestações tem de ser primordial. Note-se
que a trajetória de um raio de luz (da mesma forma que a trajetória de um
projétil) não se apresenta igual a um observador casual e ao homem que o
disparou. A trajetória parecerá mais longa ao espectador; e, assim, o tempo em
que a luz permanece na trajetória também parecerá mais longo para ele, posto
que ele toma o mesmo valor para a velocidade da luz.
Isso é real? Sim. Nossos conhecimentos atuais sobre processos cósmicos e
atômicos nos autoriza a dizer que, para grandes velocidades, o fenômeno ocorre.
Se eu estivesse viajando a uma velocidade igual à metade da velocidade da luz,
então, nos três minutos e um pouco mais marcados em meu relógio, a viagem de
bonde de Einstein pareceria meio minuto mais longa para um homem
observando-o da calçada.
Tomemos, agora, a velocidade do bonde como sendo igual à da luz,
para ver o que acontece. O efeito da relatividade faz com que as coisas
mudem suas aparências. (As variações de cor observadas não são
devidas à relatividade.) Os topos dos edifícios parecem envergar para
dentro e para a frente. Os próprios edifícios parecem se aproximar uns
dos outros. Minha viagem é horizontal, e, portanto, distâncias no plano
horizontal parecem mais curtas; mas as alturas permanecem as mesmas.
Automóveis e pessoas apresentam distorções nesse mesmo padrão:
estreitos e altos. Além disso, o que é verdadeiro para mim que estou
olhando para fora, também o é ao homem olhando para dentro. O
mundo de relatividade de Alice no País das Maravilhas é simétrico. O
observador vê o bonde como se este tivesse sido comprimido: fino e
alto.
Evidentemente, essa se constitui em uma visão do mundo completamente
diferente daquela da de Newton. Para este, espaço e tempo formavam uma
estrutura absoluta, dentro da qual os eventos do mundo material se sucediam em
uma ordem imperturbável. Sua visão do mundo era semelhante à de Deus:
imutável ao observador, independente de sua posição e do meio através do qual
ele se desloca. Por outro lado, Einstein olha o mundo com os olhos do homem,
isto é, varia dependendo da posição do observador e do tipo e qualidade dos
deslocamentos durante a observação — portanto, influenciado pelo tempo e pela
velocidade. E essa relatividade não pode desaparecer. Não podemos conhecer o
mundo como ele é em si mesmo; conseguimos apenas comparar as diferentes
maneiras pelas quais ele se apresenta a mim e a você, através de permuta de
informação entre nós dois. Eu em meu bonde e você em sua cadeira não temos
nenhuma possibilidade de comungar uma visão divina, instantânea, do mundo
dos eventos — estamos limitados a comunicar nossas impressões um ao outro.
Note-se que a comunicação não se dá instantaneamente; dela não podemos
dissociar o atraso experimentado por todos os sinais, trafegando à velocidade da
luz.
Contudo, o bonde não atingiu a velocidade da luz; ao contrário, ele parou,
calmamente, em frente do Escritório de Patentes. Einstein desceu, cumpriu sua
jornada de trabalho e, como acontecia frequentemente, à saída dá uma passada
pelo Café Bollwerk. O trabalho no Escritório de Patentes não era muito difícil.
Para dizer a verdade, vistas agora, a maior parte das solicitações parecem bem
idiotas: registro de um tipo aperfeiçoado de espingarda de pressão; registro de
um controlador de corrente alternada, aos quais Einstein apunha a observação
sucinta: “Incorreto, impreciso e confuso”.
Às tardes, no Café Bollwerk, ele iria discutir um pouco de física com seus
colegas, enquanto bebia café e fumava charutos. Entretanto, sempre foi um
homem introspectivo, indo diretamente ao cerne dos problemas, como por
exemplo: “De que maneira os seres humanos em geral, e não apenas os físicos,
se comunicam entre si? Que tipos de sinais enviamos uns aos outros? Como o
conhecimento é adquirido?”. Nessas perguntas encontramos a trilha seguida em
todos os seus escritos; pétalas arrancadas uma a 252 uma como os véus que nos
separam do coração do conhecimento.
Assim, o magnífico artigo de 1905 não trata apenas da luz ou,
como seu título diz: Eletrodinâmica dos Corpos em Movimento. Ele continua
em um pós-escrito do mesmo ano com a afirmação de que energia e
massa são equivalentes: E = mc2 . Para nós, é digno de nota que a
primeira explicação da relatividade devesse instantaneamente acarretar
a predição prática e devastadora da energia atômica. Para Einstein, era
apenas um meio de alcançar o entendimento da unidade do mundo; a
exemplo de Newton e outros pensadores científicos, ele era, no fundo,
um unitariano. Tal visão se estriba em uma profunda intuição sobre o
sentido dos processos naturais, particularmente nas relações entre
homem, conhecimento e natureza. A física não se compõe de eventos
mas sim de observações. Muitos anos depois ele assim se expressou,
dirigindo-se ao meu amigo Leo Szilard: “Foram os anos mais felizes de
minha vida. Ninguém esperava que eu pusesse ovos de ouro”. Na
realidade ele manteve a qualidade de sua prole: efeitos quânticos,
relatividade geral, teoria dos campos. Com ela veio a confirmação dos
primeiros trabalhos de Einstein e a messe de suas predições. Em 1915
ele predisse, na Teoria Geral da Relatividade, que o campo
gravitacional nas proximidades do Sol causaria a deflexão de um raio
de luz — como se fosse uma distorção do espaço. Duas expedições da
Royal Society, uma ao Brasil e outra à costa oeste da África, testaram a
previsão durante a eclipse de 29 de maio de 1919. Segundo relato do
próprio Arthur Eddington, encarregado da expedição africana, as
primeiras medidas efetuadas a partir das fotografias lá obtidas
permaneceram em sua memória, fixando o momento mais importante de
sua vida. Membros da Royal Society sofregamente passavam a notícia de
uns para os outros; Eddington, por telegrama, ao matemático
Littlewood, e este, em uma nota apressada, a Bertrand Russel,
Caro Russel:
A teoria de Einstein foi totalmente confirmada. O deslocamento
previsto era de 1”. 72 e o observado foi de l”. 75 .6.
Do seu, J. E. L.
A relatividade adquiria foros de um fato, na teoria especial e na
geral. E = mc2 acabou sendo confirmada, evidentemente. Mesmo a
questão a respeito dos relógios se atrasando foi finalmente isolada por
um assim dizer destino inexorável. Em 1905 Einstein havia descrito um
experimento, em tom quase jocoso, 254 como o meio ideal para testar o
efeito.
Se tivermos dois relógios sincronizados em A, sendo que um deles se move em curva cerrada à velocidade
constante v até seu retorno a A, deslocamento esse que supomos ter gasto o tempo de t segundos, então
este relógio ao chegar a A se atrasou em 1/2 t (v/c) 2 segundos em relação ao relógio que permaneceu
estacionário. Daí concluímos que um relógio fixo junto ao Equador terrestre andará mais lentamente, por
uma pequena fração, do que um relógio idêntico mas fixo junto a um dos pólos da Terra.
Einstein morreu em 1955, cinquenta anos após a publicação do artigo de 1905.
Mas agora o tempo podia ser medido com a precisão de mil milionésimos de
segundo; e, portanto, já era possível pensar-se na estranha proposição de “Dois
homens na Terra, um no Pólo Norte e outro no Equador. Este último está se
deslocando mais rapidamente do que seu companheiro no Pólo Norte; assim, seu
relógio perderá a corrida”. As coisas se confirmaram exatamente dessa maneira.
O experimento foi levado a cabo por um jovem chamado H. J. Hay em
Harwell. Imaginou a Terra achatada na forma de um disco, de modo que o Pólo
Norte estivesse no centro e o Equador na beirada. Colocou um relógio radioativo
no centro e outro na borda do disco e pôs este a girar. Esses relógios medem
tempo por processo estatístico, contando o número de desintegrações dos átomos
radioativos. O resultado foi o previsto: o relógio da borda do disco de Hay se
atrasou em relação ao do centro. E isso é verdadeiro para qualquer disco que
gire, ou mesmo para qualquer toca-discos. Assim, neste momento, em qualquer
disco de vitrola que esteja sendo tocado, o centro está envelhecendo, em cada
revolução, mais depressa do que a periferia.
A contribuição de Einstein foi muito mais filosófica do que
matemática. Seu gênio consistiu em encontrar idéias filosóficas que
permitiam reinterpretar a experiência prática. Sua abordagem da
Natureza não era do ponto de vista de Deus, mas, sim, a de um guia,
isto é, de um homem imerso no emaranhado dos fenômenos naturais,
que acreditava existir um padrão visível na organização dos mesmos,
passível de ser encontrado desde que fosse buscado sem preconceitos.
No seu O Mundo como o Vejo ele escreveu:
Nós nos esquecemos das propriedades do mundo das experiências responsáveis pela formação de conceitos
(pré-científicos); assim, é com grande dificuldade que representamos o mundo da experiência para nós
mesmos, se não contamos com a concorrência de interpretações conceituais firmemente estabelecidas. Uma
outra dificuldade é apresentada pela nossa linguagem, compelida a trabalhar com palavras as quais são
inseparavelmente ligadas àqueles conceitos primitivos. Tais são os obstáculos encontrados ao tentarmos
descrever a natureza essencial dos conceitos pré-científicos de espaço.
No decurso de sua vida Einstein ligou luz a tempo e tempo a
espaço; energia a matéria, matéria a espaço e espaço a gravitação. Ao
fim de sua vida ainda trabalhava no sentido de tentar descobrir a
unidade subjacente à gravitação e às forças manifestadas na eletricidade
e no magnetismo. Lembro-me dele nessa fase de sua atividade,
lecionando na Senate House em Cambridge, trajando seu velho suéter e
calçando pantufas, sem meias, tentando nos colocar a par do tipo de
relações que havia entre aquelas forças, bem como das dificuldades que
vinha encontrando em estabelecê-las.
O suéter, as pantufas, a ojeriza para com meias e suspensórios não
caracterizavam uma afetação. Antes, ao vê-lo assim trajado, nos ocorria à
memória um artigo de fé de William Blake: “Malditos suspensórios; abençoado
relaxamento”. Ele se ajustava mal a, e mal compreendia, o sucesso mundano, a
respeitabilidade e o conformismo; a maior parte das vezes ele não tinha a menor
noção do que se esperava de um homem eminente como ele. Odiava a guerra, a
crueldade e a hipocrisia; mas, acima de tudo, o dogma lhe era intolerável —
note-se que ódio é uma palavra imprópria para exprimir a repulsão e tristeza por
ele experimentadas em relação a essas coisas, uma vez que o próprio ódio era,
segundo entendia, uma forma de dogma. Recusou-se a ser presidente do Estado
de Israel sob a alegação de não saber tratar dos problemas humanos; critério
modesto que, adotado por outros candidatos à presidência, deixaria muito poucos
elegíveis.
Falar sobre a escalada do homem na presença de Newton e Einstein chega a
ser uma impertinência: eles caminham como se fossem deuses. Dos dois,
Newton representa o deus do Velho Testamento. Einstein é mais uma
personagem do Novo Testamento: humano, compassivo, irradiando enorme
simpatia. Para ele a natureza é vista como se um ser humano estivesse na
presença de um deus. Adorava falar sobre Deus: “Deus não joga dados”, “Deus
não é malicioso”, a tal ponto que Niels Bohr chegou a lhe dirigir a seguinte
observação: “Basta de dizer a Deus o que Ele deve fazer”, que, a bem da
verdade, não foi muito justa. Einstein era homem capaz de formular questões
extremamente simples, mostrando através de sua vida e de seu trabalho que,
quando as respostas são igualmente simples, então ouve-se o pensamento de
Deus.
CAPÍTULO 8 – EM BUSCA DE PODER
Franklin e seus amigos viviam a ciência; ela estava constantemente
em seus pensamentos e, mais frequentemente, em suas mãos; para eles,
entender a natureza era um prazer prático e intenso. Eram homens
sociáveis: Franklin agia sempre como político, quer imprimindo papel-
moeda, quer editando seus intermináveis e espirituosos panfletos. E sua
política era tão direta quanto seus experimentos. Eliminou os floreios
da abertura da Declaração da Independência, tornando-a uma afirmação
simples de confiança: “Entendemos essas verdades como auto-evidentes,
que todos os homens são criados iguais”. Ao eclodir a guerra entre os
revolucionários americanos e a Inglaterra, escreveu abertamente a um
político inglês, que tivera por amigo, as seguintes palavras flamejantes:
Vocês começaram a incendiar nossas cidades. Reparem em suas mãos: elas estão manchadas com sangue de
parentes seus.
As irradiações vermelhas do braseiro incandescente tornam-se, na
Inglaterra, a imagem da nova era — presente nos sermãos de John Wesley e na
fornalha dos céus da Revolução Industrial, como da paisagem flamejante de
Abbeydale em Yorkshire, centro pioneiro nos novos processos de fabricação de
ferro e de aço. Os senhores da indústria eram os mestres-ferreiros: figuras
poderosas, quase sobrenaturais, demoníacas que, com razão, davam aos
governantes a impressão de que acreditavam realmente que todos os homens
nascem iguais. Os trabalhadores no norte e no oeste já não eram lavradores,
formavam agora uma comunidade industrial. Tinham de ser pagos em
moeda e não em espécie; entrementes, o governo central em Londres
desconhecia o sentido dessa transformação. Recusava-se, por exemplo,
a cunhar maior quantidade de moedas, de modo que mestres-ferreiros
como John Wilkinson passaram a cunhar suas próprias moedas-vale
salariais, trazendo impressas nelas suas faces plebéias. O alarme chega
a Londres: seria isso indício de um complô. Mas não é menos verdade
que invenções radicais se originam em cérebros radicais. O primeiro
modelo de estrutura de ferro para pontes, exibido em Londres, foi
proposto por Tom Paine, contestador na América e na Inglaterra e
protagonista de Os Direitos do Homem.
Nesse ínterim, o ferro fundido estava sendo usado de maneira
revolucionária por mestres-ferreiros como John Wilkinson. Este construiu o
primeiro barco de ferro em 1787, vangloriando-se de que nele seria carregado
seu caixão quando morresse. Na verdade, foi enterrado em caixão de ferro em
1808, e o barco navegou sob uma ponte de ferro a qual Wilkinson havia ajudado
a construir, em 1779, nos arredores da cidadela de Shropshire; ainda hoje a ponte
é chamada Ironbridge (Ponte de Ferro).
Mas, chegou a arquitetura do ferro a rivalizar a arquitetura das Catedrais?
Sim. Essa época foi heróica. Thomas Telford sentiu isso, ao ampliar a paisagem
com ferro. Nascido pastor de ovelhas 274 e pobre, trabalhou depois como
pedreiro diarista e, por iniciativa própria, tornou-se engenheiro de estradas c
canais, e amigo dos poetas. O grande aqueduto que sustenta o canal Llangollen
sobre o rio Dee, por ele construído, atesta sua maestria no uso do ferro fundido
em larga escala. Os monumentos da Revolução Industrial exibem uma
grandiosidade romana, grandiosidade republicana.
Os construtores da Revolução Industrial são pintados como imperturbáveis
homens de negócio, sem nenhuma outra motivação senão o próprio interesse.
Certamente, isso não é correto. Por um lado, porque muitos deles eram
inventores que entraram para os negócios por essa via, e por outro lado porque a
maioria deles não pertencia à Igreja da Inglaterra e, sim, a uma tradição puritana
do tipo Unitariano ou similar. John Wilkinson estava sob a forte influência de
seu cunhado Joseph Priestley, que se tornou um químico famoso, mas era, antes
de tudo, Ministro Unitariano e provavelmente pioneiro do princípio “maior
felicidade para o maior número”.
Joseph Priestley por sua vez era conselheiro científico de Josiah
Wedgwood. Pois bem, Wedgwood é habitualmente lembrado como o
fabricante de maravilhosos serviços de louça para a aristocracia e
realeza, o que ele realmente fez, mas em raras ocasiões, quando recebia
encomendas. Por exemplo, em 1774 fabricou um conjunto de louça de
cerca de mil peças ricamente decoradas para Catarina a Grande, da
Rússia, que custou duas mil libras — enorme quantia de dinheiro para a
época. Entretanto, a base daqueles objetos de mesa era sua cerâmica
ordinária, creamware; sem a decoração, as mil peças custariam menos de
cinquenta libras, com as mesmas formas e qualidade das de Catarina a
Grande, mas sem os cromos idílicos. O creamware que o tornou famoso e
próspero não era porcelana e sim uma argila branca para cerâmica, de
uso comum. O homem das ruas podia comprar essas peças por cerca de
um shilling cada uma. Com o tempo, foi isto que transformou as
cozinhas da classe trabalhadora da Revolução Industrial.
Wedgwood era um homem extraordinário: inventivo, em sua
profissão, é claro, e também em todas as técnicas científicas que
pudessem aperfeiçoar sua arte. Inventou um meio de medir a
temperatura no interior do forno, usando uma espécie de escala
deslizante por expansão, na qual uma peça-teste de cerâmica se movia.
A medição de altas temperaturas era um problema antigo e de difícil
solução que interessava sobremaneira as indústrias de metal e cerâmica;
portanto (dentro do contexto da época), foi justa a eleição de
Wedgwood para a Royal Society.
Josiah Wedgwood não era exceção, havia dezenas de homens como ele. Na
realidade, fazia parte de um grupo de cerca de doze homens, a Sociedade Lunar
de Birmingham (Birmingham ainda era um aglomerado de distritos industriais),
assim chamada por eles próprios devido ao fato de os encontros se darem na lua
cheia. Para homens como Wedgwood, que vinham de lugares relativamente
afastados de Birmingham, essa era uma medida de segurança, pois podiam
cruzar estradas desoladas, perigosas, em noites escuras.
No entanto, Wedgwood não era o industrial mais importante da região: essa
distinção cabia a Matthew Boulton, que trouxe James Watt para Birmingham
porque aí poderiam construir a máquina a vapor. Boulton adorava conversar
sobre métodos de medida; dizia que a natureza o havia destinado à engenharia ao
fazê-lo nascer no ano de 1728, sendo esse o número de polegadas cúbicas em um
pé cúbico. A medicina também ocupava um lugar importante naquele grupo,
posto que grandes avanços estavam sendo conseguidos nesse campo. O Dr.
William Withering descobriu o uso dos digitálicos em Birmingham. Um outro
médico, pertencente à Sociedade Lunar e cuja fama persistiu, foi Erasmus
Darwin, avô de Charles Darwin. O outro avô? Josiah Wedgwood.
Sociedades tais como a Sociedade Lunar representam o espírito dos
construtores da Revolução Industrial (um espírito muito inglês) de que
eles tinham responsabilidades sociais. Ao chamá-lo espírito
essencialmente inglês comete-se uma injustiça; a Sociedade Lunar
sofria grande influência da parte de Benjamin Franklin e de outros
americanos a ela associados. O que a mantinha era um ato simples de
fé: uma boa vida caracteriza-se por algo mais do que decência material;
mas uma boa vida deve estar baseada na decência material.
Passaram-se cem anos até que os ideais da Sociedade Lunar se tornassem
realidade na Inglaterra vitoriana. Quando chegou, a realidade parecia lugar-
comum, mesmo cômica, tal qual uma pintura vitoriana em um cartão postal. É
cômico pensar que roupas íntimas de algodão e o sabão causaram tão profunda
transformação na vida da população pobre. Contudo, coisas simples como essas,
e mais, carvão em fogão de ferro, vidro nas janelas, alimentos à escolha,
significaram uma maravilhosa elevação nos padrões de vida e de saúde. Julgados
segundo critérios atuais, os distritos industriais eram favelas, mas para aqueles
egressos de palhoças, uma casa representava libertação da fome, da sujeira e das
doenças; ela oferecia uma infinidade de novas oportunidades. O quarto de
dormir com um texto religioso pendurado na parede pode nos parecer engraçado
ou mesmo patético, mas para a dona-de-casa da classe trabalhadora representava
a primeira experiência de vida privada decente. Provavelmente, a cama com
estrado de ferro salvou mais mulheres de infecções puerperais do que a mala
preta do doutor, por si só, uma inovação médica da época.
Esses benefícios vieram como consequência da produção em massa das
fábricas. E o sistema fabril era horrendo; os manuais escolares o descrevem
corretamente. Mas o horrível foi herdado de outros sistemas tradicionais. As
minas e oficinas eram insalubres, superlotadas e tirânicas, muito antes da
Revolução Industrial. As fábricas simplesmente mantiveram o padrão, de há
muito vigente nas indústrias provinciais, de descaso impiedoso para com aqueles
que nela trabalhavam.
A poluição causada pelas fábricas também não era assunto novo; minas e
oficinas tradicionalmente degradavam os seus respectivos ambientes. Pensamos
em poluição ambiental como se fosse uma desgraça moderna, mas essa é apenas
uma outra forma de manifestação da sórdida indiferença para com a saúde e a
decência, que nos séculos passados convidavam a Peste para sua visita anual.
Entretanto, o horrível da fábrica foi a introdução de um mal de
outra ordem: a subordinação do homem ao ritmo das máquinas. Pela
primeira vez, os trabalhadores eram conduzidos sob as ordens de um
relógio impessoal: primeiro da energia hidráulica, e depois da do vapor.
A nós nos parece desvario (e era um desvario) o fato de os operários
serem intoxicados pelos contínuos jatos de vapor das caldeiras.
Pregava-se uma nova ética na qual o pecado capital não era mais o vício
ou a crueldade mas, sim, a preguiça. Até as escolas dominicais
advertiam as crianças de que
Satã sempre encontra malefícios
Para mãos desocupadas realizarem.
A mudança da escala do tempo introduzida pelas fábricas foi cruel e
destrutiva, mas a mudança da escala de poder abriu caminho para o futuro. Por
exemplo, o Matthew Boulton da Sociedade Lunar construiu uma fábrica luxuosa,
uma vez que o tipo de trabalho em metal por ele produzido dependia da
habilidade de artesãos. E foi aí que James Watt veio construir o deus-sol de todo
o poder, a máquina a vapor, único lugar onde poderia encontrar padrões de
precisão necessários aos ajustes de seu invento.
Em 1776 Matthew Boulton exultava de entusiasmo pela sua associação com
James Watt. Nesse mesmo ano declarou grandiloquentemente ao biógrafo James
Boswell: “Aqui eu vendo, meu senhor, aquilo que todo o mundo deseja possuir
— potência”. Linda frase! E verdadeira também.
Potência torna-se uma nova preocupação, em um certo sentido, uma nova idéia
da ciência. A Revolução Industrial, a revolução inglesa, revelou-se uma grande
descobridora de fontes de potência. Fontes de energia eram buscadas na
natureza: vento, sol, água, vapor, carvão. Repentinamente uma pergunta se
concretiza:
Por que razão todas elas fazem a mesma coisa? Que relação existe
entre elas, então? Essa pergunta jamais havia sido formulada
anteriormente. Até aqui a ciência havia-se preocupado com a natureza,
mas apenas explorando sua constituição. Mas, agora, a concepção
moderna de se poder transformar a natureza, a fim de extrair dela
energia, e mudar uma forma de energia em outra, atingia as fronteiras
do pensamento científico. Em particular, tornou-se claro que o calor era
uma forma de energia, transformável em outras, segundo proporções
fixas. Em 1824, Sadi Carnot, engenheiro francês, examinando as
máquinas a vapor, escreveu um tratado sobre o que ele chamou la
puissance motrice du feu, no qual foi fundada, em essência, a ciência da
termodinâmica — a dinâmica do calor. Energia havia-se tornado
conceito científico fundamental para a ciência; assim, a indagação
principal da ciência passa a ser sobre a unidade da natureza, da qual a
energia constitui o cerne.
Essa indagação não atingia apenas a ciência. Para surpresa M
nossa, vamos encontrá-la igualmente nas artes. Enquanto tudo isso se
passa, o que estava acontecendo na literatura? O surgimento da poesia
romântica, em torno de 1800. Mas como podiam os poetas românticos
estar interessados na industrialização? Muito simplesmente: o novo
conceito da natureza como fonte de energia colheu-os tal qual uma
tempestade. Eles simplesmente adoravam a palavra “tempestade”, com a
conotação de energia, em frases tais como Sturrn and Drang, “tempestade
e impulso”.
O clímax de Rime of the Ancient Mariner (Rimas do Velho Marinheiro] de
Samuel Taylor Coleridge é conseguido lançando mão de uma
tempestade quebrando uma calma mortiça e libertando a vida
novamente.
Os ares, de repente, se animaram!
Flâmulas de fogo, às centenas, brilhavam como que agitadas de cá pra
lá!
De cá pra lá, acendendo e apagando,
Pálidas estrelas também dançavam.
O vento forte não atingiu o barco,
No entanto, o barco, agora, se movia!
Sob os relâmpagos e à luz da lua,
O gemido dos mortos se ouvia.
Justamente por essa época, 1799, um jovem filósofo alemão, Friedrich von
Schelling, inaugurou uma nova forma de filosofia que criou raízes profundas na
Alemanha, Naturphüosophie — filosofia da natureza. Através de Coleridge ela
chegou à Inglaterra tornando-se, assim, conhecida pelos Labe Poets (poetas do
Distrito de Lake) c pelos Wedgwoods, amigos e também patronos do poeta, uma
vez que lhe destinavam um estipêndio anual. Poetas c pintores foram
rapidamente envolvidos pela idéia de que a natureza é uma fonte de poder, cujas
diferentes formas nada mais são do que diferentes manifestações de uma única
força central, isto é, a energia.
E não apenas a natureza. A poesia romântica se afirma com clareza
meridiana de uma energia divina ou, pelo menos, natural. A Revolução Industrial
criou liberdade (na prática) para que, querendo, os homens pudessem realizar
aquilo que clamava por se expressar de dentro deles mesmos — tal conceito era
inconcebível uma centena de anos antes. Assim, o pensamento romântico
inspirou aqueles homens a transformarem suas liberdades individuais em um
novo sentido, em uma personalidade natural. William Blake, o maior dos poetas
românticos, definiu esse ponto magistralidade: “Energia é Prazer Eterno”.
A palavra-chave é “prazer” c o conceito-chave é “liberação” - um sentimento de
alegria, um direito humano. Naturalmente, os homens da linha de frente da
época expressaram esse impulso cm invenções, produzindo uma infinidade de
idéias excêntricas para alegrar as tardes de sábado das famílias trabalhadoras. (A
partir de então, a maioria dos pedidos de registro de patentes, abarrotando os
escritórios de patentes, beiram a insanidade, como acontece com seus próprios
autores.) Poderíamos pavimentar uma avenida, indo daqui até a Lua, com tais
loucuras; c isso seria tão inútil ou tão engenhoso quanto chegar até o satélite.
Veja-se, por exemplo, a idéia do zootrópio, que consiste em um tambor circular
para a animação de um quadro cômico vitoriano, por meio de gravuras
projetadas sucessivamente em um visor. E quase tão divertido como uma sessão
de cinema, transmitindo a mensagem de forma bastante direta. Ou a orquestra
automática, com a vantagem de um repertório restrito. Tudo isto em pacote
grosseiro, sem qualquer toque de bom gosto, mas conseguindo se impor. Para
cada invenção supérflua de uso doméstico — como a do cortador de legumes —
há uma outra, extraordinária, como a do telefone. Finalmente, fechando a
avenida dos prazeres, deveríamos colocar a máquina representativa da essência
da maquinaria: a que não faz absolutamente nada!
Os homens responsáveis pelas invenções tresloucadas e pelas de grande
valor vêm do mesmo caldo de cultura. Consideremos a estrada de ferro,
invenção derradeira da Revolução Industrial; lembrem-se que esta se iniciou
com a construção de canais. Pois bem, a estrada de ferro tornou-se realidade pela
ação de Richard Trevithick, originariamente ferreiro em Cornwale; este homem
fortíssimo, lutador de luta-livre, fez da máquina a vapor uma unidade móvel de
potência ao transformar o invento de Watt em uma máquina de alta pressão. Foi
um ato vivificante, estabelecendo uma rede arterial de comunicação em um
mundo cujo coração passou a ser a Inglaterra.
Estamos apenas a meio curso da Revolução Industrial; e, ainda bem, pois temos
muito a dizer sobre ela, que fez o mundo mais rico, menor e, pela primeira vez,
nosso. Literalmente, nosso mundo, o mundo de todos nós.
Em seus primórdios, quando ainda dependente do poder da água, a
Revolução Industrial foi cruel para com aqueles cujas vidas ou meios de vida
eram por ela ultrapassados. Todas as revoluções o são — faz parte de suas
naturezas, uma vez que, por definição, as revoluções vão muito depressa para
aqueles atingidos por elas. Contudo, acabou-se tornando uma revolução social,
estabelecendo a igualdade social, a igualdade de direitos, e, principalmente, a
igualdade intelectual, das quais todos nos beneficiamos. Onde estaria um homem
como eu ou como você, se tivéssemos nascido antes de 1800? Como ainda
estamos vivendo no bojo da Revolução Industrial é-nos difícil ver claro suas
implicações, mas, sobre ela, o futuro dirá ter sido um passo, um salto mesmo, na
escalada do homem, tão importante quanto o foi a Renascença. A Renascença
estabeleceu a dignidade do homem. A Revolução Industrial estabeleceu a
unidade da natureza.
Moldou-se devido à atividade de cientistas e poetas românticos que viram o
vento, o mar, os cursos d’água, o vapor como criação do calor do sol, e o próprio
calor como uma forma de energia.
Muitos homens pensaram sobre isso, mas, um deles, mais do que todos os
outros, foi o responsável pelo estabelecimento dessas relações — James Prescott
Joule, de Manchester. Nascido em 1818, a partir dos vinte anos dedicou sua vida
à experimentação intrincada e detalhada da determinação do equivalente
mecânico do calor — isto é, do estabelecimento da proporção exata em que a
energia mecânica se transforma em calor. Parecendo esse um empreendimento
um tanto quanto acadêmico e cansativo, prefiro contar uma história engraçada a
seu respeito.
No verão de 1847, o jovem William Thompson (que posteriormente se
tornou o grande Lord Kelvin, a prima-dona da ciência britânica) estava
caminhando — e onde, nos Alpes, poderia um cavalheiro britânico estar
andando? — de Chamonix ao Mont Blanc. Aí encontrou — e quem poderia uma
cavaleiro britânico encontrar nos Alpes? — um inglês excêntrico: James Joule,
carregando um enorme termômetro e acompanhado, à pequena distância, por sua
esposa em uma carruagem. Joule sempre quis fervorosamente demonstrar que a
água, caindo de 260 metros, aumenta sua temperatura em um grau Fahrenheit.
Assim, aproveitando sua lua-de-mel, via uma oportunidade de justificar a visita a
Chamonix (mais ou menos pela mesma razão que leva casais americanos a
visitarem Niagara Falis) e deixar a natureza se encarregar do experimento. A
queda d’água era ideal. Não atingia os 260 metros, mas ele se contentaria com a
elevação de apenas meio grau Fahrenheit. A título de informação, posso dizer
que ele — evidentemente — não foi bem-sucedido; na queda, as colunas de água
se quebram e espirram muito, tornando impossível a medida.
A anedota do cavalheiro britânico levando a sério suas
excentricidades não é irrelevante. A esses homens devemos a visão
romântica da natureza; o Movimento Romântico da poesia seguiu suas
pegadas. Constatamos isso em um Goethe (que era cientista também) e
em músicos tais como Beethoven. Mas foi com Wordsworth que a
manifestação clara se revelou pela primeira vez: a visão da natureza
sentida como uma nova vibração do espírito, porque a unidade da
natureza é apreendida imediatamente pelo coração e pela mente.
Wordsworth havia atravessado os Alpes em 1790, atraído ao Continente
pela Revolução Francesa. Em 1798, em Tintem Abbey, ele se exprimiu
melhor do que qualquer outro poderia ter conseguido.
A natureza era …
Para mim, tudo em tudo — não consigo saber
O que então eu era. A sonoridade da catarata
Me envolvia como uma paixão.
“Para mim, natureza era tudo em tudo.” Joule jamais chegou a dizê-lo tão bem,
mas o que disse: “Os poderosos agentes da natureza são indestrutíveis” significa
a mesma coisa.
CAPÍTULO 9 – OS DEGRAUS DA CRIAÇÃO
Darei uma prova de meu zelo: certo dia, puxando a casca de uma velha árvore, vendo dois besouros raros,
segurei-os um em cada mão; então, vi um terceiro, diferente dos outros dois, que eu não queria perder de
forma alguma; assim, não titubeei em guardar um deles em minha boca.
Seu pai se opôs à viagem e o capitão do Beagle não tolerava a forma
de seu nariz, mas o avô Wedgwood se empenhou em seu favor e ele foi.
O Beagle levantou suas âncoras no dia TI de dezembro de 1831.
Os cinco anos passados no navio o transformaram. Até então havia sido um
apreciador e observador atento de pássaros, de flores, da vida do campo; mas, a
América do Sul fez com que essa atitude explodisse nele em forma de paixão.
Voltou para casa convencido de que quando isoladas umas das outras as espécies
seguem diferentes direções; as espécies não são imutáveis. Entretanto, não lhe
ocorria nenhum mecanismo que pudesse revelar a causa dessa diferenciação.
Estávamos em 1836.
Dois anos mais tarde ele encontrou uma explicação possível para a
evolução das espécies, mas relutou em publicá-las. Talvez não tivesse chegado a
fazê-lo em toda sua vida se um outro homem, diferente dele, não tivesse seguido
quase as mesmas etapas de experiência e pensamento, e chegado à mesma teoria.
Este homem é a personagem esquecida, embora vital, na teoria da evolução pela
seleção natural.
Seu nome era Alfred Russel Wallace, um gigante de homem com uma família
dickenseniana tão cômica quanto a de Darwin era empertigada. Aquele tempo,
1836, Wallace era um garoto em sua adolescência; nascido em 1823, era,
portanto, quatorze anos mais jovem do que Darwin. Mesmo nesta época a vida
de Wallace não era nada fácil.
Se meu pai tivesse sido moderadamente rico … toda minha vida teria sido diferente, e, embora pudesse,
sem dúvida, ter dedicado alguma atenção à ciência, considero pouco provável que tivesse sido tentado a
empreender … uma viagem a florestas, quase que totalmente desconhecidas, do Amazonas, a fim de
observar a natureza e levar a vida de um colecionador.
Esse é o relato de Wallace sobre os primeiros tempos de sua vida, quando
tinha de ganhá-la nas províncias inglesas. Adotou a profissão de agrimensor,
para a qual não era exigida formação universitária, podendo aprendê-la com seu
irmão. Este morreu em 1846 de um resfriado contraído ao voltar para casa em
uma carruagem aberta, depois de ter participado da reunião de um comitê da
Comissão Real sobre disputas entre companhias de estradas de ferro.
Evidentemente, viviam uma vida ao ar livre, e Wallace acabou se
interessando por plantas e insetos. Enquanto trabalhava em Leicester encontrou
um outro homem com os mesmos interesses, mas muito mais instruído do que
ele. Seu amigo surpreendeu-o fazendo-o ver que, a despeito de ter coletado
várias centenas de espécies de besouros, havia muitas ainda a serem descobertas.
Se me fosse perguntado antes quantas espécies de besouros poderiam ser encontradas em um distrito perto
de uma cidade, eu provavelmente teria arriscado dizer cinquenta … mas agora havia aprendido … que
dentro de um raio de dez milhas havia milhares delas.
Foi uma revelação para Wallace, e isso definiu sua vida e a de seu amigo. Este
era Henry Bates, mais tarde famoso pelos seus trabalhos sobre mimetismo em
insetos.
Entrementes, o jovem tinha de ir trabalhando para viver. Felizmente, a
época era favorável para a agrimensura, devido à expansão das estradas de ferro
da década de 1840. Wallace foi contratado para fazer o levantamento de uma
possível rota para uma linha no Vale Neath no Sul de Gales. Ele era um técnico
consciencioso, como seu irmão havia sido, e como eram todos os vitorianos, mas
logo percebeu ser um peão no jogo dos poderosos. A maioria dos levantamentos
eram realizados com a finalidade de justificarem direitos de propriedade contra
investidas de roubo por parte de outro barão de estrada de ferro. Wallace
calculara que apenas um décimo das linhas levantadas naquele ano poderiam
jamais ser construídas.
A paisagem campestre de Gales era uma delícia para um naturalista de fim
de semana, tão feliz em sua ciência como um pintor de fim de semana em sua
arte. Agora Wallace observava e colecionava para si mesmo, cada vez mais
entusiasmado com a variedade da natureza, que guardou afetuosamente na
memória por toda a sua vida.
Mesmo quando tínhamos muito trabalho, meus domingos eram totalmente livres, e integralmente usados em
longas caminhadas nas montanhas com minha caixa de coletar, a qual voltava sempre repleta de tesouros …
A esse tempo descobri a alegria que a descoberta de uma nova forma de vida propicia ao amante da
natureza, quase igual aos arrebatamentos dos sentidos que experimentei a cada captura de uma nova
borboleta no Amazonas.
Em um de seus fins de semana, Wallace encontrou uma caverna na qual um
rio corria subterrâneo e decidiu acampar ali aquela noite. Era como uma
preparação inconsciente para uma vida de explorador.
Queríamos experimentar por uma vez o que seria dormir ao relento e sem cama, com apenas o que a
natureza pudesse prover … Penso que, propositadamente, tínhamos evitado qualquer tipo de preparação, de
forma que era como se, acidentalmente, tivéssemos de escolher um local em um país desconhecido, sendo
compelidos a dormir aí mesmo.
Na realidade, ele pouco dormiu nessa ocasião.
Aos vinte e cinco anos Wallace decidiu dedicar-se inteiramente ao
naturalismo. Era uma estranha profissão vitoriana. Significava ganhar a vida
coletando espécimes em países estrangeiros e vendendo-os a museus e
colecionadores ingleses. Bates o acompanhava. Assim, os dois se associaram em
1848 com um capital conjunto de 100 libras. Velejaram então até a América do
Sul, subindo cerca de mil milhas pelo Amazonas acima, até Manaus, na
desembocadura do Rio Negro.
Embora antes não tivesse ido mais longe do que Gales, Wallace não
se deixou embasbacar pelo exótico; desde o momento em que
desembarcaram, seus comentários foram claros e seguros. A respeito
das aves de rapina, por exemplo, seus pensamentos estão registrados
nas Narrative of Traveis on the Amazon and Rio Negro (Narrativas de Viagens
ao Amazonas e Rio Negro), publicadas cinco anos depois.
Os urubus pretos comuns eram abundantes, e por isso o alimento era escasso para eles, o que os obrigava a
comer frutos de palmeiras nas florestas quando nada mais conseguiam.
Estou convencido, por observações repetidas, que as aves de rapina se valem inteiramente da visão, e
não do olfato, quando buscam alimento.
Os dois amigos se separaram em Manaus, Wallace empreendendo a subida
do Rio Negro. Procurava lugares ainda não muito explorados por naturalistas;
para ganhar a vida como naturalista se via obrigado a coletar espécies novas ou,
pelo menos, raras. Como o rio havia transbordado devido às chuvas, Wallace e
seus índios puderam levar a canoa até a floresta. Os galhos das árvores pendiam
quase tocando a água. De início, Wallace se espantou com a escuridão ali
reinante, mas também maravilhou-se com a rica variedade da floresta, o que o
levou a especular sobre como ela se apresentaria se vista do alto.
O que podemos dizer com justiça a respeito da vegetação tropical é que há um número muito maior de
espécies, e uma maior variedade de formas, do que nas zonas temperadas.
Talvez nenhuma outra região do mundo contenha tal quantidade de matéria vegetal em sua superfície
como o vale do Amazonas. Toda a sua extensão, exceto em pequenas porções, é coberta por floresta
antiquíssima, alta e densa, a mais extensa e contínua na face da Terra.
O esplendor dessa floresta só poderia ser apreciado em sua plenitude se viajasse em um balão, acima
de sua superfície superior, ondulante e florida: tal regalo talvez esteja reservado ao viajante de uma época
vindoura.
Em seu primeiro contato com uma aldeia indígena experimenta um misto
de excitação e medo, mas, como sempre acontecia com Wallace, seu último
sentimento é de prazer.
A … mais inesperada sensação de surpresa e satisfação foi a de conviver com homens vivendo em estado
natural — selvagens absolutamente não-contaminados! … Ocupavam-se de trabalhos e prazeres que nada
tinham a ver com os do homem branco; andavam despreocupados como senhores livres da floresta onde
habitavam e … não nos dedicavam a menor atenção, a nós estrangeiros de uma raça diferente.
Em cada pormenor eram originais e auto-suficientes, tal como os animais selvagens das florestas,
absolutamente independentes da civilização, vivendo suas vidas à sua própria maneira, da mesma forma que
vinham fazendo através de incontáveis gerações antes da América ter sido descoberta.
Aconteceu que os índios acabaram sendo muito mais prestativos que
temíveis. Assim, Wallace os introduziu na tarefa de coletar espécimes.
Durante minha estada aqui (quarenta dias) consegui pelo menos quarenta espécies de borboletas, todas
novas para mim, além de considerável coleção de outras classes.
Um dia foi trazido até mim um curioso jacarezinho de uma espécie rara, apresentando numerosas
protuberâncias e tubérculos cônicos (Caimagibbus), do qual tirei a pele e embalsamei, para a estupefação
dos índios, meia dúzia dos quais acompanharam atentamente toda a operação.
Inevitavelmente, entre a faina e os prazeres da floresta, a mente aguda de
Wallace começou a flamejar com uma intrigante pergunta. Como poderia ter
surgido toda essa variedade, tão semelhante no esquema básico, mas tão mutável
em seus detalhes? À semelhança do que havia acontecido com Darwin, Wallace
estava intrigado com a existência de diferenças entre espécies vizinhas, e, como
Darwin, começou a procurar uma explicação para tantas diferenças de
desenvolvimentos.
Não há nada de mais interessante e instrutivo na história natural do que o 300 estudo da distribuição
geográfica dos animais.
Locais distando não mais que cinquenta ou cem milhas abrigam espécies de insetos e aves
encontradas em um, mas não no outro. Deve haver alguma fronteira definindo o território de distribuição de
cada espécie; alguma peculiaridade exterior demarcando a linha que não deve ser cruzada.
Problemas de geografia sempre o atraíram. Mais tarde, trabalhando no
arquipélago de Málaga, foi capaz de mostrar a proveniência asiática dos animais
das ilhas a oeste, c australiana, daqueles das ilhas a leste: a linha dividindo esses
dois grupamentos ainda mantém o nome de Linha de Wallace.
Wallace era observador tão arguto dos homens como da natureza, e com o
mesmo interesse voltado para a origem das diferenças. Em uma era em que os
vitorianos apunham a denominação “selvagem” à população do Amazonas, ele
manifestava uma rara simpatia em relação às suas culturas. Compreendeu o que
para elas significavam linguagem, invenções c costumes. Ele talvez tenha sido o
primeiro a se aperceber do fato de que a distância cultural entre a civilização
deles c a nossa é muito menor do que se pensa comumente. Depois dele
conceber o princípio da seleção natural isso lhe pareceu não somente verdadeiro,
mas biologicamente óbvio.
A seleção natural poderia apenas ter dotado o homem selvagem com um cérebro alguns graus
superiores ao do macaco antropóide, enquanto, na realidade, ele é um pouquinho inferior ao de um
filósofo. Com o nosso advento, passou a existir um ser no qual aquela força sutil por nós chamada “mente”
tornou-se de importância muito maior do que a mera estrutura corporal.
Havia devotamento em seu interesse em relação aos índios, o que o levou a
escrever uma narrativa idílica sobre a vida na aldeia de Tavita, onde esteve em
1851. Nesse ponto o diário de Wallace irrompe em poesia — ou melhor, em
versos.
Há uma aldeia índia; a toda volta,
A sombria, eterna floresta sem limites espalha
Sua ramagem variada.
Aqui de passagem, único homem branco
Entre, talvez, duas centenas de almas viventes.
Cada dia uma tarefa os ocupa. Agora vão
Afrontar a orgulhosa floresta, ou em canoas,
Com seu anzóis, flechas e arcos apanhar peixes;
Uma esteira de folhas de palmeira dá
Proteção contra tempestades invernais e chuva.
Mulheres desenterram raízes de mandioca
Que depois de muita labuta se transformam em pão.
Todas se banham, manhãs e tardes, nas correntes,
Brincando como se fossem sereias nas ondas marulhantes.
As crianças pequenas andam nuas.
Meninos e homens usam um cordão apenas.
Que prazer contemplar esses corpos nus!
Pernas bem feitas, pele macia, luzidia e bronzeada,
Movimentos cheios de graça e vigor;
Vendo-os correr, gritar e saltar,
Nadando e mergulhando na correnteza,
Tenho pena dos meninos ingleses,
As pernas ágeis presas em roupas apertadas.
E muito mais pena tenho das meninas
de cintura, tórax e busto confinados
no instrumento de tortura que é o corpete!
Eu bem que seria índio aqui, contente
A caçar e pescar na minha canoa,
Vendo meus filhos crescerem quais potros selvagens
de corpo sadio e espírito tranquilo,
Ricos sem riquezas e felizes sem ouro!
Muito diferente foi o sentimento experimentado por Charles Darwin ao
entrar em contato com índios sul-americanos. Os nativos da Terra do
Fogo horrorizaram-no: essa impressão é registrada em suas próprias
palavras e nos desenhos de seu livro The Voyage of the beagle (Viagem do
beagle). Evidentemente, a inclemência do clima influenciou os costumes
dos fueguinos, mas as fotografias do século XIX não conseguem
mostrar neles a bestialidade descrita por Darwin. Em sua viagem de
volta Darwin publicou um panfleto em colaboração com o capitão do
beagle, com a finalidade de, na Cidade do Cabo, aprovar o trabalho
desenvolvido por missionários empenhados na transformação da vida
dos selvagens.
Depois de ter vivido quatro anos na bacia do Amazonas Wallace empacotou
sua coleção e voltou para casa.
Febre e tremores me atacaram novamente, de modo que passei vários dias em grande desconforto. Chovia
quase ininterruptamente; assim, cuidar das minhas numerosas aves e animais era um grande aborrecimento,
dado o estado superlotado da canoa, e a impossibilidade de limpá-los apropriadamente enquanto chovia.
Mortes ocorriam todos os dias, e eu quisera nada mais ter a ver com eles, mas, desde que os havia tomado
sob meus cuidados, decidi preservá-los.
De uma centena de animais que eu havia comprado ou ganho, restavam apenas trinta e quatro.
A viagem de volta foi desastrada desde o início. A má sorte sempre acompanhou
Wallace.
No dia 10 de junho partimos [de Manaus], iniciando, para mim, uma viagem desafortunada; logo ao subir a
bordo, após ter dito adeus aos meus amigos, vi que meu tucano tinha desaparecido. Sem ser notado, ele
deve ter caído para fora do barco e se afogado.
Sua escolha do navio também foi das mais infelizes; a carga era constituída
de resina inflamável e, três semanas depois, a 6 de agosto, se incendiou.
Desci até à cabina, agora sufocante de calor e fumaça, a ver o que poderia ser salvo. Peguei meu relógio e
uma pequena caixa de zinco contendo algumas camisas e dois velhos cadernos de anotações, que continham
desenhos de plantas e animais, e, com eles, me arremessei para o convés. Muitas roupas e um grande porta-
fólio com desenhos e esquemas permaneceram em meu catre, mas não tentei descer para recuperá-los,
tomado que me encontrei de tal apatia, até hoje incompreensível para mim.
O capitão acabou mandando todos para os botes, ele mesmo deixando o navio em último lugar.
Com que desvelo eu havia cuidado de cada um dos insetos raros ou curiosos de minha coleção!
Quantas vezes, mesmo quando quase inutilizado pelos tremores, havia me arrastado através da floresta, para
lá ser recompensado com uma nova espécie! Quantos lugares, jamais tocados por pés europeus a não ser os
meus, permaneciam nos recônditos de minha memória, ligados que ficaram aos raros pássaros e insetos de
minha coleção!
E agora, tudo perdido; nenhum espécime para ilustrar as terras desconhecidas que percorri ou evocar
as cenas silvestres presenciadas! Entretanto, compreendia a inutilidade dessa tristeza, de modo que tentei
esquecer o passado e me ocupar das coisas no seu estado de existência.
Da mesma forma que Darwin, Alfred Wallace retornou dos trópicos
convencido de que as espécies divergem a partir de um núcleo comum,
e perplexo quanto ao porquê das divergências. Mas o que Wallace não
sabia era o fato de Darwin já ter encontrado a explicação dois anos
depois de ter retornado de sua viagem no Beagle. Darwin relata que, em
1838, lendo o Essay on Population (Ensaio sobre População) do Reverendo
Thomas Malthus (“para se distrair”, enfatiza Darwin, indicando, assim,
não ser essa obra parte de suas leituras sérias), foi surpreendido por um
pensamento expresso no trabalho. Malthus dizia que a população cresce
mais rapidamente do que as fontes de alimento.
Se isso era verdade, então os animais tinham de competir entre si a fim de
garantir suas respectivas sobrevivências: assim, a natureza deve agir na
qualidade de uma força seletiva, matando os mais fracos, e formando novas
espécies com os sobreviventes que mais se adaptam ao meio.
“Aqui, finalmente, encontrava eu uma teoria sobre a qual podia trabalhar”,
comenta Darwin. Era de se esperar que, chegado a essa conclusão, ele passasse
imediatamente ao trabalho, escrevendo, fazendo conferências. Mas ele não fez
nada disso. Por cinco anos Darwin nem mesmo registrou sua teoria em papel.
Somente em 1842 é que escreveu um primeiro rascunho, a lápis, de trinta e cinco
páginas; e, dois anos mais tarde, o estendeu a duzentas e trinta páginas, agora à
tinta. Este manuscrito foi por ele guardado, juntamente com algum dinheiro e
instruções para que sua esposa o publicasse, no caso dele morrer.
“Terminei o manuscrito delineando minha teoria das espécies”, escreveu-
lhe, em uma carta formal, datada de 5 de julho de 1844, estando em Downe, e
prossegue:
Portanto, escrevo para, no caso de ser acometido de morte súbita, ficar como meu pedido mais solene e
último, ao qual, estou certo, você considerará como se fosse parte de meu testamento legal, que seja
destinada a importância de 400 libras para cobrir despesas com a publicação e, ainda, que você se ocupe da
divulgação, pessoalmente ou com a ajuda de Hensleigh (Wedgwood). É meu desejo que este manuscrito
seja entregue a uma pessoa competente, bem como essa soma em dinheiro para que o manuscrito seja
corrigido e ampliado.
Em relação a editores, Mr. (Charles) Lyell seria a melhor escolha, no caso dele vir a aceitar; acredito
que ele achará o trabalho agradável, ao mesmo tempo que terá oportunidade de tomar conhecimento de
alguns fatos novos.
O Dr. (Joseph Dalton) Hooker seria, também, muito bom.
Darwin nos dá a impressão de ter preferido ver o trabalho publicado após
sua morte, desde que a prioridade lhe fosse assegurada. Não resta dúvida de que
era um caráter estranho. Revela um homem perfeitamente consciente do fato de
estar dizendo algo profundamente chocante para o público (mais chocante ainda
para sua esposa), e, até certo ponto, chocante para ele mesmo. A hipocondria
(embora tivesse como desculpa algumas infecções contraídas nos trópicos), os
vidros de remédios, a atmosfera reclusa e de certa forma sufocante de sua casa e
sala de estudo, os cochilos vespertinos, a relutância em escrever, a recusa ao
debate público: tudo isso compõe o quadro humano de alguém que não queria
enfrentar os outros.
No jovem Wallace, evidentemente, nenhuma dessas inibições
encontravam guarida. A despeito de todas as adversidades se lançou
impetuosamente em direção ao Extremo Oriente em 1854, viajando, nos
oito anos seguintes, por todo o arquipélago Malaio em busca de
espécimes da vida selvagem para serem vendidos na Inglaterra. Agora
já se convencera de que as espécies não eram imutáveis: em 1855
publica um ensaio On the Law which has regulated the Introduction of New
Species (Sobre a Lei que tem regulado a Introdução de Novas Espécies). Daí
em diante “a questão de como as espécies variavam, raramente
abandonava meu pensamento”.
Em fevereiro de 1858 encontrava-se enfermo em uma pequena ilha
vulcânica das Molucas, Ilha Ternate do conjunto das Ilhas Spice, entre Nova
Guiné e Bornéu. Sua febre intermitente, com calores e calafrios alternando-se,
tornava espasmódicos seus pensamentos. E aqui, em uma noite de febre,
lembrou-se do mesmo livro de Malthus e a mesma explicação relampejou em
sua mente, igual ao que havia acontecido com Darwin.
Ocorreu-me fazer a seguinte pergunta: Por que alguns morrem e outros sobrevivem? E a resposta foi clara:
no conjunto, o mais bem-equipado sobrevive. Acometidos por doenças, os mais sadios resistem;
perseguidos por inimigos, os mais fortes, os mais ágeis, os mais espertos; pela fome, os melhores caçadores
ou aqueles com melhor capacidade digestiva, e assim por diante.
Então eu percebi imediatamente que a interminável variabilidade de todas as coisas viventes fornecia
o material através do qual, pela simples eliminação dos menos adaptados às condições vigentes, apenas os
mais equipados davam continuidade à raça.
Ali, naquele mesmo momento, a idéia da sobrevivência do mais bem-dotado se revelou à minha
mente.
Quanto mais pensava sobre o assunto mais me convencia de que havia, finalmente, encontrado a lei
natural há tanto tempo procurada, através da qual podia resolver o problema da Origem das Espécies …
Ansiosamente esperei pelo término do acesso de febre, a fim de que pudesse tomar algumas notas para
serem usadas na elaboração de um futuro trabalho sobre esse assunto. Na mesma tarde eu o fiz, cabalmente,
e nas duas tardes subsequentes escrevi-o cuidadosamente, com o intuito de enviá-los a Darwin,
aproveitando a mala postal que partiria dentro de um ou dois dias.
Wallace sabia do interesse de Darwin pelo assunto e sugeriu que esse
mostrasse o trabalho a Lyell, no caso deste ver nele algum valor.
Quatro meses depois, em 18 de junho de 1858, Darwin recebeu o
trabalho de Wallace em seu escritório na Down House. Ficou sem saber o
que fazer. Durante vinte anos ele havia cuidadosamente acumulado
fatos a favor de sua teoria, e eis que tal qual um raio, cai em sua mesa
um trabalho sobre o qual ele laconicamente escreveu no mesmo dia:
Jamais vi tamanha coincidência; se Wallace tivesse conhecimento de meu MS. (manuscrito) em 1842, ele
não poderia ter feito melhor resumo do mesmo!
Entretanto, amigos resolveram o dilema em que Darwin se encontrava.
Lyell e Hooker, que por essa época já tinham tido acesso a partes do trabalho
dele, providenciaram para que, na ausência dos dois — Wallace e Darwin — um
trabalho de cada um fosse lido, no mês seguinte, em uma reunião da Sociedade
Lineana.
Os trabalhos não provocaram a menor agitação. No entanto, Darwin
sentiu-se forçado a tomar uma atitude. Wallace era, segundo descrição
de Darwin, “generoso e nobre”. Assim, a Origem das Espécies foi escrita.
Sua publicação, em 1859, se constituiu em sensação imediata e sucesso
de vendagem.
A teoria da evolução pela seleção natural foi, sem a menor dúvida, a inovação
cientifica de maior importância do século XIX. Passada 308 toda a onda de
comentários jocosos por ela suscitada, o mundo dos seres vivos ficou diferente,
porque agora era um mundo cm movimento. A criação não é estática, varia no
tempo, em contraste com os processos físicos. Há dez milhões de anos o mundo
físico se apresentava tal qual o conhecemos hoje, e suas leis eram as mesmas.
Mas o mundo dos seres vivos não era o mesmo; por exemplo, há dez milhões de
anos não havia seres humanos capazes de discuti-lo. Diferentemente do que
ocorre com a física, qualquer generalização em biologia representa um corte no
tempo; e a evolução é o agente criador da originalidade c da novidade no
Universo.
Assim sendo, cada um de nós traça sua própria construção desde os
processos evolucionários primordiais do aparecimento da vida. Darwin, é claro,
e Wallace examinaram comportamentos, mediram esqueletos nas formas agora
apresentadas, c fósseis nas formas que tinham, a fim de reconstruir os pontos da
via percorrida por você e por mim. Entretanto, comportamento, ossos, fósseis já
representam formas complexas de manifestação de vida, organizadas a partir da
combinação de unidades menores, mais simples, que devem ser mais antigas.
Como deveriam ser as primeiras unidades simples? Presumivelmente moléculas
simples com características de vida.
De maneira que, ao procurarmos vislumbrar a origem comum da vida, hoje
temos de olhar, ainda mais profundamente, para a estrutura química comum a
todos nós. O sangue, fluindo neste momento em meu dedo, veio, através de
milhões de etapas, a partir das moléculas primordiais capazes de se reproduzirem
ao longo de mais de três bilhões de anos. Tal é o conceito de evolução em sua
forma contemporânea. Os processos através dos quais ela se desenvolve
dependem, em parte, da hereditariedade (a qual nem Darwin, nem Wallace
compreenderam) e, também, em parte, da estrutura química (a qual, novamente,
era feudo da ciência francesa, e não de naturalistas britânicos). As explicações
emanam conjuntamente a partir de diferentes campos, mas tendo entre elas um
ponto em comum. Representam as espécies separando-se umas das outras em
estágios sucessivos — implicação necessária ao se aceitar a teoria da evolução.
Assim, a partir desse momento, não mais era possível acreditar na possibilidade
da vida ser recriada, de novo, a qualquer momento.
A implicação da teoria da evolução de que algumas espécies animais apareceram
depois de outras era contestada por alguns de seus críticos com citações da
Bíblia. Alguns acreditavam que o Sol, agindo sobre a lama do Nilo, podia gerar
crocodilos. Camundongos podiam brotar espontaneamente de montes de trapos;
e, obviamente, varejeiras se originavam de carne estragada. Larvas deviam ser
criadas no interior de maçãs — fosse de outra forma, como poderiam ter
entrado? Todas essas criaturas eram supostas surgirem espontaneamente, sem o
concurso de progenia.
As fábulas tratando de criaturas geradas espontaneamente são
antiquíssimas, e ainda acreditadas, a despeito de Louis Pasteur ter claramente
exposto a falácia dessa crendice na década de 1860. A maior parte do seu
trabalho foi realizado na casa no Jura francês onde havia vivido durante sua
infância, e para a qual adorava voltar todos os anos. Ele já havia trabalhado em
fermentação antes disso, particularmente sobre a fermentação do leite (a palavra
“pasteurização” nos faz lembrar disso). Mas, em 1863, ele vivia o auge de seu
poder criativo (contava quarenta anos) quando foi encarregado, a pedido do
Imperador, de estudar as causas das dificuldades que vinham sendo
experimentadas com a fermentação do vinho. O problema foi resolvido em dois
anos. Note-se que, por-ironia, aqueles foram dois dos melhores anos para a
produção de vinho; até hoje, a safra de 1864 é considerada como sem rival.
“O vinho é um oceano de organismos” disse Pasteur. “Alguns lhe conferem
vida e outros o destroem.” Dois pontos são fulminantes nesse pensamento. O
primeiro dá conhecimento de organismos capazes de viver na ausência de
oxigênio. Naquele tempo isso era apenas um aborrecimento para os produtores
de vinho, mas, com o tempo, se tornou mais importante para a compreensão da
origem da vida, simplesmente porque, em seus primórdios, a Terra não dispunha
de oxigênio. O segundo ponto atesta o fato de que Pasteur dispunha de uma
técnica poderosa, capaz de identificar a presença de traços de vida no interior de
líquidos. Aos vinte anos tinha ficado conhecido por ter mostrado a existência de
moléculas portadoras de formas características. E, desde então, acumulara
indícios no sentido de mostrar que isso se devia às suas origens, a partir de
processos vitais. Essa descoberta passou a ter um significado tão profundo, e até
hoje de certa forma enigmático, que não podemos deixar de ir até o laboratório
de Pasteur e rever seu próprio relato.
Qual seria a melhor comparação para dar conta do que acontece com o vinhaço no interior da cuba? Massa
de pão deixada crescer, azedamento do leite se transformando em coalhada, ou o apodrecimento de folhas
mortas se transformando em húmus? Devo confessar que minhas pesquisas têm sido, desde longa data,
dominadas pela idéia de que as estruturas das substâncias, tomadas do ponto de vista de suas conformações
levogira e dextrogira (se tudo mais for igual), desempenham papel importante nas mais íntimas leis da
organização dos seres vivos, interessando aos recônditos mais obscuros de suas fisiologias.
Dextrogiro, levogiro; esse foi o veio fértil seguido por Pasteur em suas
pesquisas sobre a vida. O mundo está repleto de exemplos de estruturas que se
apresentam aos pares, como imagens especulares umas das outras, onde as
propriedades de uma delas, esquerda, são diferentes da outra, direita. Sacarrolha
para a direita e sacarrolha para a esquerda; caramujos com espirais para a
esquerda ou para a direita. Acima de tudo, as duas mãos; cada uma espelha a
imagem da outra, mas não podem ser intercambiáveis. Mesmo no tempo de
Pasteur se sabia da ocorrência do fenômeno em alguns cristais, cujas faces são
arranjadas segundo imagens especulares, de um para outro.
Pasteur construiu modelos de madeira desses cristais (era habilidoso com as
mãos e exímio desenhista), que eram sobretudo modelos intelectuais. Na
primeira fase de suas pesquisas chegou à noção de que havia moléculas cujas
estruturas eram imagens especulares de outras; assim, se isso era verdade para os
cristais, esse arranjo diferente devia implicar diferentes propriedades para as
moléculas também. E isso devia ser demonstrável através do comportamento das
moléculas, em situações de dissimetria. Por exemplo, se em uma solução se fizer
atravessar um feixe de luz polarizada (isto é, assimétrica), as moléculas de um
tipo (digamos, as dextrogiras) devem impor uma rotação do plano da luz
polarizada para a esquerda. Uma solução de cristais, todos de um mesmo tipo,
irá se comportar assimetricamente em relação a um raio de luz assimétrico
obtido por meio de um polarímetro. Ao se girar o disco de polarização, a solução
aparecerá escura e clara, e escura e clara novamente.
O fato importante é que soluções químicas de células vivas se comportam
da mesma maneira. Ainda não sabemos por que a vida apresenta essa estranha
propriedade; mas essa propriedade estabelece que a vida é portadora de
características químicas específicas, mantidas durante todo o processo da
evolução. Pela primeira vez, Pasteur ligou todas as formas de vida a um tipo de
estrutura química. A partir desse poderoso pensamento segue-se que podemos
ligar a evolução à química.
A teoria da evolução deixou de ser um campo de batalha. Isto porque as
evidências a seu favor são hoje muito mais ricas e variadas do que eram na
época de Darwin e Wallace. E a evidência mais interessante e moderna é
fornecida pela química de nosso corpo. Vejamos um exemplo prático: sou capaz
de mover minha mão neste momento porque os músculos contêm uma reserva de
oxigênio, aí mantida graças à existência de uma proteína chamada mioglobina,
composta de cento e cinquenta ácidos aminados. Este número é o mesmo em
mim e em todos os animais possuidores de mioglobina, embora os ácidos
aminados possam apresentar pequenas diferenças. Entre a minha e a do
chimpanzé há apenas uma diferença em um ácido aminado; entre a minha e a do
musaranho (que é um primata primitivo) há várias diferenças entre os ácidos
aminados; e, enfim, entre a minha e a do carneiro ou do camundongo, o número
de diferenças aumenta. A medida da distância evolucionária entre mim e os
outros mamíferos é dada pelo número de diferenças entre os ácidos aminados.
É evidente que devemos buscar o processo evolucionário da vida na
estruturação das moléculas químicas. E essa estruturação deve ter começado nas
matérias que ferviam na Terra em formação. Para falar sensatamente sobre o
início da vida devemos adotar uma atitude bastante realista. A pergunta a ser
formulada é histórica. Como eram a superfície da Terra e sua atmosfera há
quatro bilhões de anos, antes do aparecimento da vida?
Muito bem, temos uma resposta aproximada. A atmosfera era expelida a
partir do interior da Terra, e, portanto, devia ser semelhante à vigente nas
imediações de um vulcão em atividade — uma mistura de vapor, nitrogênio,
metano, amônia e outros gases redutores, assim como um pouco de dióxido de
carbono. Um gás não está presente: não há oxigênio livre. Este pormenor é
crucial, uma vez que o oxigênio é produzido pelas plantas e não existia em sua
forma livre antes do aparecimento da vida.
Fracamente solúveis no oceano, esses gases formavam uma atmosfera
redutora. Como, então, reagiriam sob a ação de raios, descargas elétricas e,
particularmente, sob a ação da luz ultravioleta - a qual ocupa lugar de
importância em qualquer teoria da vida, uma vez que pode penetrar na ausência
de oxigênio — ? Essa pergunta foi respondida nos Estados Unidos, na década de
1950, por meio de um elegante experimento realizado por Stanley Miller. Tendo
colocado a atmosfera em um frasco - metano, amônia, água e assim por diante -
passou a, dia após dia, aquecê-la e submetê-la a descargas elétricas (simulando
raios) e a outras forças violentas. A mistura tornou-se mais escura. Por quê? Nos
testes pôde-se mostrar que ácidos aminados haviam-se formado no seu interior.
Essa verificação se constituiu em um grande avanço, uma vez que os ácidos
aminados são os tijolos com os quais a vida é construída. A partir deles as
proteínas são formadas, e estas são constituintes de todas as coisas vivas.
Até há poucos anos atrás pensávamos que a vida só poderia ter-se iniciado sob
condições de aquecimento, vapores e descargas elétricas. Aos poucos, entretanto,
foi ficando claro na mente de alguns cientistas que outro tipo de condições
extremas eram igualmente poderosas: isto é, a presença de gelo. É um
pensamento estranho; mas o gelo apresenta duas propriedades muito
interessantes para a formação de moléculas simples, básicas. Em primeiro lugar,
o processo de resfriamento concentra material, que, no início dos tempos, devia
se apresentar sob forma bastante diluída no oceano. E, em segundo lugar, pode
acontecer que a estrutura cristalina do gelo torne possível a organização de
sequências de moléculas, as quais são certamente importantes a cada estágio da
vida.
Seja como for, Leslie Orgel realizou uma série de elegantes
experimentos dos quais descreverei o mais simples. Tornou alguns dos
constituintes fundamentais os quais deviam estar presentes na atmosfera
da Terra em qualquer estágio dos tempos primordiais: o ácido cianídrico
é um deles; a amônia é outro. Depois de preparar uma solução diluída
desses componentes, congelou-a durante vários dias. Como resultado
observou que o material concentrado era empurrado para a superfície, aí
permanecendo sob a forma de minúsculos icebergs e a presença de
coloração, ainda que pálida, revelando a formação de moléculas
orgânicas. Alguns ácidos aminados, sem dúvida; mas, principalmente,
Orgel constatou a formação de um dos quatro constituintes
fundamentais do alfabeto genético, do qual dependem todos os
processos vitais. Havia sintetizado adenina, uma das quatro bases do
ADN (v. pág. 390). Assim, é possível que o alfabeto da vida no ADN se
tenha formado nessas condições, e não, como se pensava, em condições
tropicais.
O problema da origem da vida gira em torno, não das moléculas 316 mais
complexas, mas, sim, das mais simples, capazes de se reproduzirem. A
capacidade de reproduzir cópias ativas da mesma molécula c a característica da
vida; c a questão da origem da vida é, portanto, a questão de se saber se as
moléculas básicas identificadas nos trabalhos da presente geração de biólogos
poderiam ter sido formadas através de processos naturais. A respeito da origem
da vida, sabemos muito bem o que estamos procurando: moléculas simples,
elementares, tais quais as assim chamadas bases (adenina, timina, guanina,
citosina) componentes das espirais do ADN, as quais se reproduzem a si próprias
durante a divisão de qualquer célula. O curso subsequente, através do qual os
organismos tornaram-se mais e mais complexos, envolve um outro tipo de
problema, o estatístico: isto é, a evolução da complexidade por meio de
processos estatísticos.
É justo que se pergunte se as moléculas automultiplicadoras foram
formadas muitas vezes, cm diferentes locais. Essa questão só pode ser
respondida por inferências baseadas em interpretações fornecidas por indícios
colhidos junto aos seres vivos atuais. Atualmente, a vida é controlada por umas
poucas moléculas — as quatro bases do ADN. Elas encerram as mensagens da
hereditariedade em cada uma de todas as criaturas conhecidas; da bactéria ao
elefante; do vírus à rosa. Uma conclusão possível, tendo em vista a uniformidade
do alfabeto da vida, é a de que esses são os únicos arranjos atômicos capazes de
manter a sequência de auto-reprodução.
Contudo, há apenas alguns biólogos favoráveis a essa hipótese. A
maioria prefere pensar que a natureza seja capaz de inventar outros
arranjos automultiplicadores; as possibilidades seguramente seriam
maiores do que as quatro mencionadas. Se isso for correto, então, a
razão pela qual a vida, tal como a conhecemos, é dirigida pelas mesmas
quatro bases, é que simplesmente aconteceu da vida ter começado com
elas. Sob essa interpretação, as bases são prova de que a vida só
começou uma vez. Depois disso, quando surgia qualquer outro arranjo,
não conseguia ligar-se às formas de vida já existentes. Evidentemente,
ninguém mais pensa que a vida ainda esteja sendo criada do nada aqui
na Terra.
A biologia teve a fortuna de descobrir, no espaço de tempo de uma centena de
anos, duas grandes idéias fecundas. Uma foi a da teoria da evolução pela seleção
natural, de Darwin e Wallace. A outra foi a descoberta, por parte de nossos
contemporâneos, de como expressar os ciclos da vida numa fórmula química que
os vincula à natureza como um todo.
Seriam as substâncias, presentes aqui na Terra, enquanto a vida se formava,
exclusivas de nosso planeta? Costumávamos pensar que sim, mas os indícios
mais recentes mostram o contrário. Nos últimos anos tem-se encontrado, nos
espaços interestelares, traços espectrais de moléculas, as quais pensávamos
jamais poderem-se formar nessas frígidas regiões: ácido cianídrico, ciano- -
acetileno, formaldeído. Não se suspeitava pudessem tais moléculas existir fora
da Terra, o que aponta para o fato de a vida poder-se manifestar em começos e
formas variadas, mas não nos autoriza a supor que a vida descoberta em outros
planetas (se tal chegar a acontecer) tenha seguido os mesmos estágios
evolucionários da nossa. Não é mesmo necessário que a reconheçamos na
qualidade de vida como tal — ou que ela nos reconheça.
CAPÍTULO 10 – UM MUNDO DENTRO DO
MUNDO
Evidentemente, há alguma coisa na sequência dos pesos atômicos, não
apenas acidental, mas sistemática. Na terceira coluna vamos encontrar
novamente a mesma organização. Os elementos que se seguem ao Cloro, na
ordem dos pesos atômicos, são o Potássio e depois o Cálcio. Assim, até aqui, a
primeira fila contém o Lítio, o Sódio e o Potássio, todos metais alcalinos; e a
segunda fila contém o Berílio, o Magnésio e o Cálcio, todos metais com
afinidades familiares. O fato é que a disposição horizontal nesse 324 arranjo faz
sentido: agrupa elementos de uma mesma família.
Mendeleiev havia descoberto ou, pelo menos, encontrado indícios da existência
de uma chave matemática entre os elementos. Ordenando-os pelos seus
respectivos pesos atômicos, cada sete estágios constituem uma coluna vertical,
iniciando outra em seguida, mantendo a sequência dos pesos atômicos. Usando
esse procedimento, as famílias serão encontradas nos arranjos horizontais. Até
este ponto, o esquema de Mendeleiev pode ser acompanhado sem dificuldade, e
assim ele o tinha organizado em 1871, dois anos depois de ter a primeira idéia
nesse sentido. Tudo se ajusta perfeitamente bem até chegarmos à terceira coluna
— então, inevitavelmente, surge o primeiro problema. Por que inevitavelmente?
Porque, como se viu para o caso do Hélio, Mendeleiev não dispunha de todos os
elementos. Dos noventa e dois, apenas sessenta e três eram conhecidos; dessa
forma, mais cedo ou mais tarde teriam de apareceras falhas. E uma delas
apareceu justamente onde havíamos parado — no terceiro lugar da terceira
coluna.
Disse que Mendeleiev havia identificado uma falha, mas essa forma
abreviada de expressão esconde o que havia de mais formidável em seu
raciocínio. No terceiro lugar da terceira coluna Mendeleiev encontrou-
se frente à frente com uma dificuldade, resolvendo-a através de uma
interpretação de que ali faltava um elemento. Essa escolha se deveu ao
fato de o próximo elemento conhecido, o Titânio, simplesmente não
exibir as propriedades que o colocariam na mesma família (fila
horizontal) do Boro e do Alumínio. “O elemento a ocupar essa posição
não é conhecido, mas quando o for, seu peso atômico o colocará antes
do Titânio. Assim, deixando essa posição aberta, o Titânio se alinha, na
quarta fila, com os elementos de sua família: Carbono e Silício.” Na
realidade foi isso que aconteceu no esquema básico.
A concepção das falhas ou elementos ausentes foi uma inspiração científica.
Em termos práticos expressava aquilo que Francis Bacon havia formulado em
termos gerais há muito tempo atrás, ou seja, que novas aplicações de uma lei
natural podem ser propostas ou induzidas a partir das antigas conhecidas. Na
verdade, Mendeleiev demonstrou ser a indução um processo muito mais sutil nas
mãos de um cientista do que Bacon e outros filósofos haviam suposto. Em
ciência não marchamos simplesmente seguindo uma progressão linear — dos
eventos conhecidos para os desconhecidos. Mais do que isso, trabalhando pomo
se estivéssemos diante de um problema de palavras cruzadas, seguimos duas
progressões independentes na procura do ponto onde elas se interceptam: aí é
que devem ser encontrados os esconderijos dos eventos desconhecidos.
Mendeleiev seguiu a progressão dos pesos atômicos nas colunas e a da família
de afinidades nas horizontais, a fim de identificar os elementos faltantes nas
intercepções. Agindo assim, conseguiu elaborar predições práticas, além de
tornar explícito (o que ainda hoje é mal compreendido) o uso do processo
indutivo no raciocínio científico.
Muito bem: os pontos de maior interesse estão representados pelas falhas
existentes nas terceira e quarta colunas. Embora eu não pretenda continuar no
processo de construção da tabela além desse ponto, gostaria de chamar a atenção
para o fato de que, se contarmos as falhas e seguirmos adiante, a coluna termina
onde deveria, no Bromo, na família dos halogênios. Havia um certo número de
falhas e Mendeleiev apontou três delas. A primeira já nos referimos: a da terceira
coluna na terceira fila. As outras duas estavam na quarta coluna, terceira e quarta
filas. Sobre elas Mendeleiev profetizou que, uma vez descobertos, os elementos
que as preenchessem, apresentariam não só os pesos atômicos correspondentes
às suas posições nas colunas, mas, também, afinidades familiares às suas
posições nas filas.
Por exemplo, a previsão mais famosa de Mendeleiev, e a última a
ser confirmada, foi a relativa à terceira — o que ele chamou Eka-silício.
Ele enunciou as propriedades desse elemento estranho e importante, que
só vinte anos depois foi descoberto na Alemanha; no nome dado a esse
elemento não ficou sinal de homenagem a Mendeleiev, pois se chamou
Germânio. Partindo do princípio de que o “Eka-silício apresentaria
propriedades intermediárias entre o Silício e o Zinco” predisse que seria
5,5 vezes mais pesado do que a água: e isso verificou-se ser correto.
Também determinou que seu óxido seria 4,7 vezes mais pesado do que a
água; igualmente correto. E assim por diante, em relação às
propriedades químicas e outras.
Essas previsões o tornaram famoso por toda parte - exceto na Rússia: lá ele
não era um profeta, mas, sim, um homem de idéias liberais, e o Tsar não gostava
disso. A descoberta posterior, na Inglaterra, de toda uma nova fila de elementos,
começando com o Hélio, Neônio, Argônio, ampliou seu triunfo. Não conseguiu
se eleger para a Academia Russa de Ciências, mas, no resto 326 do mundo, seu
nome passou a ter um sentido mágico.
Que o padrão subjacente ao arranjo dos átomos era numérico, estava fora de
dúvida. Contudo, isso não encerra a história; alguma coisa devia estar faltando.
Não teria sentido algum acreditar que todas as propriedades dos elementos
estejam contidas em um número, o peso atômico: o que está escondido aí? O
peso de um átomo pode ser a medida de sua complexidade. Se assim for, ele
deve ocultar uma organização estrutural interna, alguma forma de coerência
física, responsável pelas propriedades dos elementos. Entretanto, essa idéia era
inconcebível, na medida em que se acreditava na indivisibilidade do átomo.
Dessa maneira, a descoberta do elétron por J. J. Thomson, trabalhando em
Cambridge em 1897, causa uma reviravolta nas concepções físicas. Sim, o
átomo tem partes constituintes; não é indivisível como seu nome grego implica.
O elétron representa uma pequeníssima parte de sua massa ou peso, mas é um
dos seus componentes reais, portador de uma carga elétrica unitária. Cada
elemento é caracterizado pelo número de elétrons em seu átomo. Ainda mais, os
seus números são exatamente iguais ao número do local, na tabela de
Mendeleiev, ocupado por aquele elemento quando o Hidrogênio e o Hélio são
colocados no primeiro e no segundo local, respectivamente. Isto é, o Lítio possui
três elétrons, o Berílio quatro, o Boro cinco, e assim por diante, até o fim da
tabela. O local da tabela ocupado por um elemento é chamado seu número
atômico, agora com foro de realidade física dentro do átomo — dada pelo
número de elétrons. A ênfase se transferia do peso atômico para o número
atômico, o que significa, na essência, para a estrutura atômica.
A física moderna nasceu com essa conquista intelectual. Uma grande época
se inicia. Nestes anos, a física reúne a maior soma de trabalho coletivo da ciência
— não, muito mais do que isso: o grande trabalho artístico coletivo do século
XX.
Digo “trabalho de arte” porque a noção de que há uma estrutura
subjacente, um mundo dentro do mundo do átomo, captou
imediatamente a imaginação dos artistas. A arte posterior a 1900 é
diferente de toda a arte que a precedeu, como pode ser constatado em
qualquer pintor original da época: em Umberto Boccioni, por exemplo,
no As Forças de uma Rua ou no Dinamismo de um Ciclista. A arte moderna e
a física moderna nasceram ao mesmo 330 tempo, porque a mesma idéia
lhes deu origem.
A partir da Opticks de Newton os pintores descobriram a face
colorida das coisas. O século XX mudou o objeto de seus interesses. A
semelhança do que fazem os raios X de Röntgen, passaram a buscar os
ossos por baixo da pele, e as estruturas sólidas profundas, que, de
dentro para fora, suportam a forma total de um objeto ou de um corpo.
Pintores tais como Juan Gris estão engajados na análise da estrutura,
tanto em se tratando de formas naturais em Natureza Morta, como do
corpo humano em Pierrot.
Os pintores cubistas, por exemplo, obviamente se inspiram nas
formas dos cristais. Nelas eles vêem a forma de um vilarejo construído
em uma encosta, como o fez Georges Braque em sua Casas em L’Estaque,
ou um grupo de mulheres, como Picasso as pintou em As Donzelas de
Avignon. No seu famoso começo da pintura cubista, Pablo Picasso — a
simples face, o Retrato de Daniel-Henry Kahnweiler — desvia a atenção da
pele e da fisionomia para a geometria subjacente. A cabeça foi resolvida
e dissociada em formas matemáticas, e, então, reconstruída, em uma
recriação, de dentro para fora.
Essa nova procura da estrutura oculta é marcante nos pintores da
Europa do Norte: Franz Marc, por exemplo, ao representar uma
paisagem natural em Coisa na Floresta; e também (este favorito dos
cientistas) o cubista Jean Metzinger, cuja Mulher em um Cavalo foi
comprada por Niels Bohr para a coleção de quadros de sua casa em
Copenhage.
Existem duas diferenças nítidas entre uma obra de arte e um escrito
científico. A primeira é que na obra. de arte o pintor divide o mundo em
pedaços e o recompõe novamente, em uma mesma tela. A segunda é
dada pelo fato de podermos acompanhar seus pensamentos enquanto
trabalha. (Por exemplo, Georges Seurat dispondo pequenas manchas de
diferentes cores até chegar ao efeito total em Jovem com Esponja de Pó ou
em O Bico.) O escrito científico é deficiente nessas duas atribuições.
Frequente- mente é apenas analítico; e, quase invariavelmente, esconde
o processo do pensamento em sua linguagem impessoal.
Escolhi falar sobre um dos pais da física do século XX, Niels Bohr, porque
ele era um artista consumado nesses dois aspectos. Nunca tinha respostas
prontas. Suas aulas eram sempre iniciadas pela frase introdutória: “Cada
sentença minha deve ser interpretada por vocês não como uma afirmativa, mas,
sim, como uma pergunta”. Seu questionamento era dirigido à estrutura do
mundo, e aqueles que com ele trabalhavam, moços ou velhos (ele ainda estava
entrando em seus setenta anos), também estavam quebrando o mundo em
pedaços, repensando-o e tornando a reconstruí-lo.
Aos vinte anos de idade Bohr foi trabalhar com J. J. Thomson e o antigo
estudante deste, Ernest Rutherford, o qual, por volta de 1910, era o mais
importante físico experimental do mundo. (Tanto Thomson como Rutherford
haviam sido induzidos à carreira científica pelos desejos de suas respectivas
mães viúvas, tal qual havia sido o caso de Mendeleiev.) Rutherford era então
professor junto à Universidade de Manchester. Em 1911 havia proposto um novo
modelo para o átomo, no qual representava praticamente toda a massa
concentrada em um núcleo pesado ou cerne central, e os elétrons girando em
órbitas ao redor, em movimentos semelhantes aos dos planetas em relação ao
Sol. Era uma concepção brilhante — e uma bela ironia da história o fato de, em
três centenas de anos, a idéia ultrajante de Copérnico, Galileo e Newton ter-se
afirmado como o modelo mais comum, aceito por qualquer cientista. Isso
acontece frequentemente em ciência: a teoria inaceitável de uma época torna-se
uma imagem cotidiana para suas sucessoras.
Entretanto, nem tudo ia bem com o modelo de Rutherford. Se o átomo fosse
uma pequena máquina, então o que, em sua estrutura, seria responsável pelo fato
dele nunca parar — sendo uma pequeníssima máquina, nessas condições
representaria o único exemplo conhecido de movimento perpétuo? Os planetas, à
medida que percorrem suas órbitas, perdem energia, e, assim, suas órbitas se
tornam cada vez menores — uma quantidade desprezível, se considerada de ano
para ano, mas que, fatalmente, os levará a ir de encontro ao Sol. Dessa maneira,
se os elétrons se comportarem à semelhança dos planetas, eles se projetarão no
núcleo, donde se conclui que alguma coisa deve estar impedindo a perda
contínua de energia por parte dos elétrons. Tal consideração requeria a existência
de um novo princípio físico capaz de limitar a valores fixos a energia perdida por
um elétron. Essa seria a única maneira de aceitar uma medida, uma unidade
definida, que mantivesse os elétrons em órbitas de dimensões invariáveis.
Na busca dessa unidade, Niels Bohr foi encontrá-la em um trabalho
publicado por Max Planck em 1900. Planck havia mostrado, uma
dezena de anos antes, que em um mundo no qual a matéria se apresenta
em forma de pedaços ou pacotes, a energia também deve se apresentar
em pacotes ou quanta. Em retrospectiva, essa idéia não nos parece
estranha. Mas Planck a reconheceu como revolucionária desde o dia em
que a concebeu, o que é ilustrado por ele ter convidado seu pequeno
filho para um desses passeios professorais, tão familiares a todos os
acadêmicos do mundo, e, durante o qual, assim se expressou: “Hoje me
ocorreu uma idéia tão revolucionária e tão grande como a de Newton”.
E era mesmo.
É claro que agora, em um certo sentido, a tarefa de Bohr estava
facilitada. Em uma das mãos tinha o átomo de Rutherford e, na outra, o
quantum. O que havia de tão maravilhoso no trabalho de um jovem
cientista de vinte e sete anos, em 1913 juntar os dois e sair-se com a
imagem moderna do átomo? Nada mais do que a maravilhosa
explicitação de um processo de pensamento: nada mais do que um
esforço de síntese. Além disso, também a idéia de ir buscar o dado no
lugar exato onde ele podia ser encontrado: na impressão digital do
átomo, no espectro através do qual seu comportamento se faz visível
para nós, quando olhado de fora.
A maravilhosa idéia de Bohr foi justamente essa. O interior do átomo é
invisível, mas há uma janela por onde se olhar, uma janela de vidro colorido: o
espectro do átomo. Cada elemento tem seu próprio espectro, o qual não se
apresenta contínuo como aquele descrito por Newton para a luz branca, mas,
sim, mostra uma série de faixas ou bandas brilhantes características. Por
exemplo, o Hidrogênio apresenta três bandas muito vivas no seu espectro
visível: uma banda vermelha, uma banda azul-esverdeada e uma banda azul.
Bohr explicou o significado de cada uma delas como sendo o resultado da
liberação de energia por parte de um único elétron, quando este salta de uma
órbita externa para outras mais internas.
Nenhuma energia é liberada pelo elétron do átomo de Hidrogênio
se ele permanecer na mesma órbita. Entretanto, toda vez que ele saltar
de uma órbita externa para outra órbita interna, a diferença de energia
entre as duas será liberada sob a forma de emissão de um quantum de
luz. As emissões simultâneas de bilhões de átomos se manifestam
naquilo que enxergamos como uma banda característica do Hidrogênio.
A banda vermelha é produzida por saltos eletrônicos da terceira órbita
para a segunda; e a banda azul-esverdeada quando o elétron salta da
quarta órbita para a segunda.
O artigo de Bohr: On the Constitution of Atoms and Molecules (Sobre a
Constituição dos Átomos e das Moléculas) tornou-se um clássico
imediatamente. A estrutura do átomo era, agora, tão matematicamente
determinada como o universo de Newton. Contudo, incluía o princípio
adicional do quantum. Niels Bohr acabara de construir um mundo no
interior do átomo, avançando a física do seu tempo para além de onde
ela havia permanecido, por dois séculos, depois de Newton. Em triunfo,
retornou a Copenhage. A Dinamarca era seu lar novamente, um novo
lugar onde trabalhar. Em 1920 construíram para ele o Instituto Niels
Bohr, em Copenhage. Este tornou-se um centro procurado por jovens da
Europa, América e Oriente, onde podiam discutir a física dos quanta.
Werner Heisenberg era um frequentador assíduo, e ali mesmo foi
incitado a desenvolver algumas de suas idéias fundamentais: Bohr
jamais permitia a alguém estacionar em uma idéia inacabada.
Reconstruir as etapas da história da confirmação do modelo do átomo de Bohr é
uma tarefa interessante uma vez que elas espelham a recapitulação do ciclo de
vida de qualquer teoria científica. Em primeiro lugar vem o artigo. Neste,
resultados conhecidos são utilizados na validação do modelo; assim, mostra-se
que o espectro do Hidrogênio em particular possui bandas, de há muito
conhecidas, cujas posições correspondem a transições quânticas do elétron de
uma órbita para outra.
A etapa seguinte consiste em estender aquela confirmação a um
novo fenômeno: neste caso, as bandas no espectro de energia mais alta
dos raios X, embora invisíveis ao olho, são igualmente formadas por
saltos de elétrons. Este trabalho estava sendo desenvolvido no
laboratório de Rutherford em 1913, e acabou fornecendo lindos
resultados, confirmando fielmente as previsões de Bohr. O responsável
pelo trabalho foi Henry Moseley, então, contando vinte e sete anos, mas
cuja carreira brilhante foi interrompida por sua morte no malfadado
ataque britânico a Gallipoli em 1915 — essa campanha ceifou,
indiretamente, outras vidas jovens e promissoras, entre elas a do poeta
Rupert Brooke. A semelhança do trabalho de Mendeleiev, o de Moseley
também apontava para a existência de alguns elementos desconhecidos,
e um deles foi descoberto no laboratório de Bohr, recebendo o nome de
Háfnio, em homenagem a Copenhage, através de sua denominação latina.
A descoberta foi anunciada, a propósito, por Bohr, no discurso de
recebimento do Prêmio Nobel em 1922. O tema do discurso é
memorável, uma vez que, nele, Bohr descreve pormenorizadamente
aquilo que, quase poeticamente, foi por ele mesmo resumido em outra
ocasião: a maneira pela qual o conceito do quantum tinha levado gradualmente a
uma classificação sistemática dos tipos de ligações estacionárias de qualquer elétron em um átomo,
oferecendo, assim, uma explanação completa das notáveis relações entre as propriedades físicas e químicas
dos elementos, da maneira como eles aparecem na famosa tabela periódica de Mendeleiev. Uma tal
interpretação das propriedades da matéria surgiu como a realização, ultrapassando os sonhos dos
pitagóricos, do antigo ideal de poder reduzir a formulação das leis da natureza a considerações de números
puros.
Entretanto, neste mesmo momento, quando tudo parecia deslizar
suavemente, sente-se, de chofre, que a teoria de Bohr se encontra, como mais
cedo ou mais tarde acontece com qualquer teoria, no limite daquilo que pode
realizar. Começa a emperrar em algumas fraquezas, uma espécie de dor
reumática. E esse estado de coisas nos revela claramente que de forma nenhuma
tinha sido resolvido o problema real da estrutura do átomo.
Apenas a casca havia sido partida. Mas, dentro da casca, o átomo se revela um
ovo, com gema, o núcleo; e, mesmo o núcleo, tinha apenas começado a ser
entendido.
Niels Bohr era pessoa afeita à contemplação e ao lazer. Ao ganhar o Prêmio
Nobel gastou o dinheiro comprando uma casa no campo. Seu gosto pelas artes
incluía a poesia. De certa feita, disse a Heisenberg: “Ao considerar os átomos, a
linguagem só pode ser usada como em poesia. Também o poeta não está, nem de
longe, interessado em descrever fatos, mas, sim, em criar imagens”.
Esse é um pensamento inesperado: em se tratando de átomos, a linguagem
não está descrevendo fatos, mas, criando imagens. E assim é. Além do mundo
visível está sempre o imaginário, literalmente: um jogo de imagens. Não há
nenhuma outra forma de se falar sobre o mundo invisível — na natureza, na arte
e na ciência.
Ao cruzarmos a cancela do átomo, encontramo-nos em um mundo no qual
nossos sentidos não nos podem valer. Ali existe uma nova arquitetura, uma
maneira de organizar as coisas, a qual não podemos conhecer: apenas tentamos
apreendê-la através de analogias, novamente um ato da imaginação. As imagens
arquiteturais são calcadas no mundo concreto de nossos sentidos, porque esse é o
único mundo passível de descrição através de palavras. Ao descrever o mundo
invisível sempre acabamos em metáforas, semelhanças tomadas de empréstimo
ao mundo mais amplo dos olhos, dos ouvidos e do tato.
Desde que descobrimos não serem os átomos os tijolos com os quais a
matéria se constrói, só nos resta fazer modelos mostrando a maneira pela qual
esses tijolos se agrupam e agem em conjunto. Modelos pretendem mostrar,
através de analogias, a constituição da matéria. Assim, ao testar os modelos
temos de fragmentar a matéria, como se fôssemos lapidadores de diamante em
busca da estrutura do cristal.
A escalada do homem se constrói numa sucessão de sínteses cada vez mais
ricas, mas cada degrau representa um esforço de análise: de análise mais
profunda, mundos dentro de mundos. Ao ser mostrada a divisibilidade do átomo,
restava um centro indivisível, o núcleo. Mas, por volta de 1930 constatou-se que
esse modelo precisava ser revisto. No centro do átomo, o núcleo tampouco
representava o fragmento último da realidade.
No findar do sexto dia da Criação, dizem os comentadores hebraicos do
Velho Testamento, Deus presenteou o homem com um certo número de
ferramentas, que lhe conferiam o poder de criar também. Se esses
comentadores pudessem reaparecer hoje, eles diriam: “E Deus criou o
neutrino”. Ei-la, aqui em Oak Ridge, no Tennessee, a cintilância azul,
atestando a existência do neutrino: o dedo visível de Deus tocando
Adão, como no quadro de Michelangelo, não com alento, mas com
poder.
Não. Eu não vou retroceder tanto no tempo. Comecemos já em 1930. Nesta
época o núcleo do átomo ainda parecia tão invulnerável como o átomo parecera
outrora. A dificuldade estava em não se conseguir uma divisão elétrica do
núcleo: os números 340 simplesmente não se ajustavam. O núcleo é portador de
uma carga positiva (equilibrando-se com os elétrons do átomo) igual ao número
atômico. Contudo, a massa do núcleo não é um múltiplo constante da carga:
varia desde a igualdade (no Hidrogênio) a muito mais do que duas vezes o valor
da carga (nos elementos pesados). Tal fato era inexplicável, uma vez que todo
mundo estava convencido do fato de a matéria só poder ser construída a partir da
eletricidade.
Devemos a James Chapinhada a destruição dessa idéia arraigada na mente
dos físicos, quando, em 1932, provou a existência de dois tipos de partículas na
composição do núcleo: o próton, eletricamente positivo, e o nêutron, partícula
destituída de carga elétrica. As massas dessas duas partículas são quase iguais,
nominalmente iguais (aproximadamente) ao peso atômico do Hidrogênio.
Apenas, o núcleo do Hidrogênio não contém nêutrons, sendo formado por um
próton somente.
Portanto, o nêutron se oferecia como um novo tipo de ferramenta, uma
espécie de chama alquímica, porque, não sendo portador de carga elétrica, podia
ser projetado de encontro aos núcleos dos átomos, sem o perigo de provocar
perturbações elétricas, mas impondo alterações nos mesmos. O alquimista
moderno, o homem que maior vantagem conseguiu com a manipulação dessa
nova arma, está representado na figura de Enrico Fermi, trabalhando em Roma.
Enrico Fermi era uma criatura peculiar. Conheci-o muito mais tarde porque,
como é sabido, em 1934 Roma estava nas mãos de Mussolini, Berlim nas de
Hitler, e homens como eu não iriam se meter nessas paragens. Entretanto, ao vê-
lo mais tarde em Nova Iorque, fiquei intrigado: era o homem mais inteligente
que meus olhos haviam visto — bem, talvez o mais inteligente, com uma única
exceção. Era sólido, pequeno, poderoso, penetrante, muito informal, e sempre
senhor de si, tudo controlando em sua mente clara, dando a impressão de poder
enxergar no fundo das coisas.
Fermi disparou nêutrons em todos os elementos que estavam ao seu
alcance, e a fábula da transmutação se tornou uma realidade em suas
mãos. Os nêutrons usados por ele podem ser vistos espirrando para fora
do reator, uma vez que se servia de um vulgarmente chamado reator de
“piscina”, porque a velocidade dos nêutrons era diminuída pela água.
Mas eu darei o nome correto, trata-se de um Reator de Isótopo de Alto
Fluxo, desenvolvido em Oak Ridge, no Tennessee.
A transmutação, está claro, era um sonho acalentado há eras. No entanto, para
uma mente com tendências teóricas como a minha, a contribuição mais
estimulante da década de 1930 foi a abertura do caminho à evolução da natureza.
Explico esta frase. Comecei esta etapa citando o dia da Criação, e o farei
novamente.
Por onde principio? O arcebispo James Ussher, há muito tempo atrás, em
1650, afirmou ter sido o Universo criado no ano 4004 a. C. Entrincheirado como
estava no dogma e na ignorância, ninguém o contestou; ou ele ou outro clérigo
qualquer sabiam o ano, o dia do mês, o dia da semana e a hora, dos quais,
afortunadamente, me esqueci. Mas o enigma da idade do mundo permaneceu
indecifrado, e com ele um paradoxo, até o século XX: conquanto se admitisse a
idade da Terra em milhões e milhões de anos, não se conseguia conceber qual
fosse a fonte de energia do Sol e de outras estrelas, que os mantêm ativos há
tanto tempo. Tinha-se, é claro, a equação de Einstein mostrando que a perda de
matéria produzia energia. E a matéria, como era reorganizada?
Muito bem: essa é realmente a questão essencial sobre a energia e
foi a porta do conhecimento aberta pela descoberta de Chadwick.
Trabalhando na Universidade Cornell, Hans Bethe explicou, pela
primeira vez, em 1939, em termos precisos, a transformação do
Hidrogênio em Hélio no interior do Sol. Através dela, a perda de massa
escoa para nós sob a forma de uma dádiva preciosa de energia. É com
paixão que falo sobre esse assunto, porque, para mim, ele é portador da
qualidade, não da memória, mas da experiência. A explanação de Hans
Bethe se me apresenta tão vivida como o dia de meu casamento, e as
etapas subsequentes, como as dos nascimentos de meus filhos. Isto
porque, nos anos seguintes, tomamos conhecimento (e finalmente
confirmado, naquilo que considero a análise definitiva, em 1957) de
que, em todas as estrelas, há processos em curso responsáveis pela
construção, um após outro, de átomos de estruturas cada vez mais
complexas. A própria matéria evolui. A palavra foi cunhada por Darwin e
pela biologia, mas foi ela que transformou a física dos meus dias.
A primeira etapa na evolução dos elementos transcorre nas estrelas
jovens, tais como o Sol. É a passagem do Hidrogênio ao Hélio,
requerendo o grande calor interior; aquilo que observamos na superfície
do Sol são apenas tempestades produzidas por essa atividade. (O Hélio
foi identificado pela primeira vez através de uma b an da espectral
observada durante o eclipse do Sol de 1868; daí a razão pela qual foi
chamado helium, pois nessa época ainda não era conhecido na Terra.)
Efetivamente, o que acontece, de tempos em tempos, é a fusão de dois átomos de
Hidrogênio pesado, dando origem a um núcleo de Hélio.
Lentamente, o Sol acabará constituído de Hélio apenas. Aí, então, se
transformará em uma estrela mais quente, onde os núcleos irão colidir e formar
átomos mais pesados. O Carbono, por exemplo, é formado em uma estrela
sempre que três núcleos de Hélio colidem em um ponto, dentro de um intervalo
de tempo menor do que um milionésimo de um milionésimo de segundo. Todo
átomo de Carbono presente no corpo de qualquer criatura é formado como
resultado dessa colisão tão fantasticamente improvável. Depois do Carbono são
formados Oxigênio, Silício, Enxofre e outros elementos mais pesados. Os
elementos mais estáveis são aqueles que ocupam posições mais centrais na
tabela de Mendeleiev, aproximadamente entre o Ferro e a Prata. Contudo, o
processo de formação dos elementos vai muito além deles.
Por que razão a natureza interrompe em um ponto a formação de elementos,
se eles são construídos uns em seguida aos outros? Por que temos apenas
noventa e dois elementos, o último sendo representado pelo Urânio?
Evidentemente, só podemos resolver essa questão se pudermos construir
elementos além do Urânio, e provar que, ao se tornarem maiores, os elementos
se tornam mais complexos e tendem a se quebrar em fragmentos. Entretanto, ao
procedermos dessa maneira, não só iremos produzir elementos novos, mas,
também, fazer alguma coisa potencialmente explosiva. O elemento Plutônio,
conseguido por Fermi no primeiro e histórico Reator Grafite (nós o chamávamos
a “Pilha” naqueles velhos tempos coloquiais), foi o elemento feito pelo homem
que demonstrou isso ao mundo inteiro. Em parte, ele é um monumento ao gênio
de Fermi; mas prefiro pensá-lo como se fosse um tributo ao deus das trevas,
Plutão, que deu seu nome ao elemento, quando penso nas quarenta mil pessoas
mortas em Nagasaki, sob a ação da bomba de plutônio aí despejada. Estamos em
um outro tempo da história do mundo, em que um monumento reverencia um
grande homem e muitos mortos, conjuntamente.
Nesta altura, tenho de retornar à mina de Wieliczka a fim de explicar uma
contradição histórica lá iniciada. Embora os elementos estejam sendo formados
constantemente nas estrelas, costumávamos pensar no Universo sob um processo
contínuo de desgaste. Por quê? Ou como?
A idéia do desgaste do Universo vem da sua comparação com as máquinas
ordinárias. Toda máquina consome mais energia do que fornece. Uma parte dela
é gasta em atrito, e a outra pelo uso. Em algumas máquinas, mais requintadas do
que as antigas engrenagens de madeira de Wieliczka, as perdas se dão,
necessariamente, por outras formas — por exemplo, através de amortecedores e
através de radiadores. Todos esses são meios através do quais há degradação de
energia. Existe sempre uma quantidade inacessível de energia na qual, para toda
energia fornecida, uma parte se perde inexoravelmente, sem possibilidade de
recuperação.
Em 1850, Rudolf Clausius organizou esse problema na forma de um
princípio elementar. Para ele havia energia disponível e energia residual
inacessível. A esta última chamou entropia e formulou a famosa Segunda Lei da
Termodinâmica: a entropia aumenta continuamente. No Universo, o calor drena
para uma espécie de lago da igualdade, de onde não pode mais ser recuperado.
Cem anos atrás, essa era uma bela idéia, uma vez que o calor ainda era
considerado ser um fluido. Mas calor já não mais podia ser considerado como
sendo mais material do que o fogo, ou mesmo do que a vida. Calor é um
movimento casual dos átomos. Assim, foi Ludwig Boltzmann, na Áustria, quem
apreendeu a idéia brilhantemente, dando a ela o poder de interpretação sobre o
que ocorre em uma máquina comum, em uma máquina a vapor, e no Universo.
Quando energia é degradada, disse Boltzmann, o átomo passa a um estado
de maior desordenação, e a entropia é uma medida dessa desordem: essa foi a
concepção profunda gerada pela nova interpretação de Boltzmann.
Estranhamente, a desordem pode ser medida; representa a probabilidade de um
estado particular — aqui definido como o número de maneiras capazes de ser
organizado a partir de seus átomos. A relação foi definida precisamente,
S = K log W;
S, a entropia, é representada como sendo proporcional ao logaritmo de
W, a probabilidade de um determinado estado (K sendo uma constante de
proporcionalidade, agora chamada constante de Boltzmann).
Evidentemente, os estados desordenados são muito mais prováveis do que
os estados ordenados, desde que qualquer conjunto ao acaso de átomos será
desordenado; assim, de maneira geral, qualquer arranjo ordenado tende
a se desorganizar. Mas “de maneira geral” não significa “sempre”. Não
é verdade que os sistemas ordenados tendam continuamente a se
desorganizar. E uma lei estatística, postulando que a ordem tende a
desaparecer; mas, a estatística nunca afirma “sempre”. A estatística
permite a formação de sistemas ordenados em algumas ilhas do
Universo (aqui na Terra, em você, em mim, nas estrelas, em toda sorte
de lugares) enquanto a desordem dá conta do restante.
A concepção é linda, mas ainda falta uma questão a ser resolvida. Se é verdade
que foi a probabilidade que nos permitiu existir, não poderia ela ser tão baixa a
ponto de não termos o direito à existência?
As pessoas preocupadas com essa questão formulam-na da maneira que se
segue. Considere-se o conjunto de todos os átomos que neste momento estão
constituindo nosso corpo. Seria incrivelmente improvável eles virem todos a este
local e, neste instante, formarem meu corpo. Realmente, se as coisas se
passassem dessa maneira não seria apenas improvável — seria virtualmente
impossível.
Entretanto, a natureza não age dessa forma. Os átomos formam moléculas,
as moléculas formam bases, as bases dirigem a formação de ácidos aminados, os
ácidos aminados formam as proteínas, e estas se organizam na formação de
células. As células dão existência aos animais mais simples em primeiro lugar,
em seguida aos mais complexos, e, assim por diante, etapa após etapa. As
unidades estáveis, compondo um nível ou estrato, constituem matéria-prima para
encontros ocasionais, dando origem a configurações mais complexas, algumas
das quais têm a oportunidade de ser estáveis. Assim, desde que reste um
potencial de estabilidade ainda não concretizado, a manifestação de um evento
ocasionalmente tem outra forma como se exprimir. A evolução representa uma
escalada que vai do simples para o complexo, degrau por degrau, todos eles
estáveis.
Como esse é meu campo de trabalho, tenho um nome para o
processo: chamo-o Estabilidade Estratificada. A vida surgiu através dele,
em passos lentos, mas subindo continuamente os degraus da
complexidade — os quais constituem o problema e a maneira de
progredir essenciais da evolução. E, agora, sabemos que tal é verdade,
não só para a vida, mas, também, para a matéria. Se as estrelas tivessem
de formar um elemento pesado como o Ferro, ou outro mais pesado ainda
como o Urânio, pela combinação instantânea de todas as suas partes, isso seria
virtualmente impossível. Mas não. Uma estrela forma Hélio a partir de
Hidrogênio; então, em um outro estágio, em uma estrela diferente, o Hélio se
combina na formação de Carbono, de Oxigênio e dos outros elementos mais
pesados; e assim por diante, estágio após estágio, até a formação dos noventa e
dois elementos naturais.
Não podemos reproduzir inteiramente os processos estelares porque não
dispomos das elevadíssimas temperaturas necessárias à fusão da maioria
dos elementos, mas já começamos a firmar os pés no primeiro degrau da
escada: conseguimos obter Hélio a partir do Hidrogênio. Em outro setor
de Oak Ridge tenta-se a fusão do Hidrogênio.
Evidentemente, não é fácil recriar a temperatura de dentro do Sol —
superior a dez milhões de graus centígrados. Ainda mais difícil é conseguir um
tipo de material capaz de sobreviver a uma tal temperatura, mantendo-a por uma
fração de segundo que seja. Não há esse tipo de material; um continente para um
gás nesse estado violento só pode ter a forma de uma armadilha magnética. E
esta dá origem a um novo tipo de física: a Física dos Plasmas. Estimula, sim, e é
importante por se tratar da física da natureza. Por uma vez, pelo menos, os
rearranjos realizados pelo homem não vão contra a natureza, mas, sim,
reproduzem o mesmo caminho por ela seguido, no Sol e nas estrelas.
Termino este ensaio contrastando imortalidade e mortalidade. A física do
século vinte é um trabalho imortal. A imaginação humana em seu
trabalho comunitário jamais produziu monumento que a igualasse, nem
as Pirâmides, nem a Ilíada, nem as baladas e nem as catedrais. Os
homens responsáveis, uns após os outros, por essa concepção são os
heróis pioneiros de nossa era. Mendeleiev arrumando os cartões; J. J.
Thomson derrubando a crença grega da indivisibilidade do átomo;
Rutherford transformando-o em um sistema planetário; e Niels Bohr
oferecendo condições para que o modelo funcionasse. Chadwick
descobrindo o nêutron e Fermi usando-o para abrir e transformar o
núcleo. E, à frente de todos eles, os iconoclastas: Max Planck, que deu
à energia uma característica atômica, à semelhança da matéria; e
Ludwig Boltzmann, a quem devemos, mais do que a qualquer outro, o
fato de o átomo — o mundo no interior do mundo — se tornar tão real
para nós como tão real é o nosso próprio mundo.
Quem podería imaginar que chegássemos tão longe, se, ainda em 1900, era
travada uma batalha, digamos, de morte, entre partidários da realidade e da
irrealidade do átomo. O grande filósofo alemão Ernst Mach dizia: não tem
realidade. O mesmo o fez o grande químico Wilhelm Ostwald. No entanto,
naquela crítica virada do século, um homem manteve-se convicto, baseado em
dados teóricos fundamentais, da realidade do átomo. Este homem foi Ludwig
Boltzmann, ao pé de cujo túmulo eu lhe rendo homenagem.
Boltzmann era irascível, extraordinário, difícil, um dos primeiros
seguidores de Darwin, briguento e encantador, e tudo o mais que qualquer ser
humano deveria ser. A escalada do homem oscilou em um tênue equilíbrio
intelectual naquele momento, uma vez que, tivessem as doutrinas-anti-atômicas
vencido a batalha naqueles dias, nosso progresso teria sido atrasado de muitas
décadas ou, talvez, de centenas de anos. Não apenas o avanço da física teria sido
cortado, pois a biologia depende fundamentalmente dessa concepção.
Boltzmann apenas argumentou? Não. Ele viveu e morreu aquela paixão.
Em 1906, aos sessenta e dois anos de idade, sentindo-se solitário e derrotado, no
exato momento em que a doutrina atômica ia vencer a disputa, avaliou mal e
pensou tudo estar perdido. Suicidou-se. Restou sua fórmula, uma eterna
homenagem à sua inteligência,
S = K log W,
gravada em seu túmulo.
Não tenho, de minha, nenhuma frase que possa fazer jus à frase
compacta, de penetrante beleza de Boltzmann; assim, citarei o poeta
William Blake, dando os versos iniciais de seu Auguries of Innocence
(Augúrios da Inocência):
Ver o Mundo em um Grão de Areia
E um Céu em uma Flor Silvestre
Tomar o Infinito em sua mão
E a Eternidade em uma hora.
CAPÍTULO 11 – CONHECIMENTO OU CERTEZA
Um dos objetivos das ciências físicas era o de dar uma descrição exata do mundo
material. A conquista da física do século XX foi mostrar que esse objetivo é
inatingível.
Tome-se um objeto bastante concreto como a face humana.
Estou ouvindo uma mulher cega, enquanto ela corre seus dedos pelas faces
de um homem desconhecido, pensando em voz alta:
“Eu diria que ele é idoso. Penso, obviamente, não ser ele inglês.
Sua face é mais arredondada do que a da maioria da dos ingleses.
Diria mesmo ser ele europeu; e até mais: do Leste da Europa. As linhas de
seu rosto parecem de sofrimento. A princípio pensei tratar-se de cicatrizes. Não é
uma face feliz”.
O rosto era o de Stephan Borgrajewicz, que, como eu, era polonês. Na
figura 175 ele pode ser visto segundo a concepção do artista polonês Feliks
Topolski. Sabemos que essas pinturas não somente retratam uma face como
também a analisam; o artista delineia os detalhes de tal forma que parece os estar
tocando; e que cada linha adicionada reforça o retrato, sem nunca chegar a
terminá-lo. Nós o aceitamos como o método do artista.
Mas a física também chegou ao ponto de mostrar ser esse o único método
de conhecimento. Não há conhecimento absoluto.
E os defensores deste, quer cientistas, quer dogmáticos, nada mais fazem do
que abrir a porta à tragédia. Toda informação é imperfeita. Assim, devemos
tratá-la com humildade; essa é a condição humana e é o postulado da Física
Quântica. Esta afirmação não é retórica: deve ser tomada ao pé da letra.
Observemos esse rosto submetido à cada faixa de todo o espectro
eletromagnético. O ponto ao qual quero chegar é este: quão minucioso e quão
exato é o detalhe desse rosto, que podemos ver com os melhores instrumentos do
mundo — mesmo que fosse um instrumento perfeito se é que podemos concebê-
lo?
Além disso, ver os detalhes não está confinado a vê-los através de luz
visível. Em 1867 James Clerk Maxwell propôs ser a luz uma vibração
eletromagnética, e as equações por ele montadas para demonstrá-lo indicaram
existir outras. O espectro de luz visível, do vermelho ao violeta, é somente uma
oitava, ou mais ou menos isso, no contínuo das radiações invisíveis. Há todo um
teclado de informação, desde os comprimentos mais longos das ondas de rádio
(notas graves), até os comprimentos de onda mais curtos dos raios X (notas mais
agudas). Vamos iluminar uma face humana com cada uma dessas ondas.
As ondas mais longas do espectro invisível são representadas pelas ondas
de rádio, cuja existência foi provada há cerca de cem anos, em 1888, por
Heinrich Hertz, confirmando a teoria de Maxwell. Sendo as mais longas são,
também, as mais grosseiras. Uma varredura de radar, trabalhando com ondas de
alguns metros, não acusará o rosto, a não ser que se trate de um rosto de alguns
metros de largura, como os das esculturas mexicanas. Somente quando usamos
ondas mais curtas é que vamos perceber algum detalhe nessa cabeça gigantesca:
se a onda for inferior a um metro, as orelhas. E praticamente no limite das ondas
de rádio, de alguns centímetros, detectamos o primeiro traço de uma figura
humana ao lado da estátua.
Em seguida, olhamos a face, a face do homem, agora, através de uma
câmera sensível à banda seguinte de radiações, com comprimento de onda menor
do que um milímetro, os raios infravermelhos. Estes foram descobertos cm 1800
pelo astrônomo William Herschel, ao notar o calor produzido quando focalizava
seu telescópio para além da luz vermelha: os raios infravermelhos são raios de
calor. A chapa da câmera translada a imagem dos raios infravermelhos para a luz
visível segundo um código um tanto arbitrário: os raios mais quentes aparecem
em azul e os mais frios em vermelho ou simplesmente escuro. Podemos perceber
os acidentes mais salientes da face: os olhos, a boca, o nariz — vemos, também,
a nuvem de vapor saindo das narinas. Não há dúvida de que aprendemos
algumas coisas novas sobre a face humana, mas isso sem nenhum detalhe.
Nos limites inferiores de seu comprimento de onda, alguns
centésimos de milímetro ou menos, há uma transição gradual do
infravermelho para o espectro visível. O filme agora usado é sensível a
ambos, e a face adquire vida. Não é mais apenas a face de um homem,
mas, sim, do homem que conhecemos: Stephan Borgrajewicz.
A luz branca o revela visivelmente ao olho em detalhes: a penugem, os
poros da face, uma pequena mancha aqui, uma veiazinha ali. A luz branca é
formada de uma mistura de comprimento de onda do vermelho, do laranja, do
amarelo, do verde, do azul e, finalmente, do violeta, as ondas visíveis mais
curtas. Os detalhes deveriam aparecer mais finamente quando observados
através de luz violeta do que quando através de luz vermelha, mas, na prática,
dentro de mais ou menos uma oitava, não há grandes diferenças.
O pintor analisa a face, isola suas partes, separa as cores, amplia a imagem.
Assim, podemos perguntar: Não deveria o cientista usar um microscópio para
isolar e analisar os traços mais delicados? Sim, deveria. Entretanto, devemos ter
presente que embora o microscópio amplie a imagem ele não a melhora: a
nitidez do detalhe é determinada pelo comprimento de onda da luz. Dessa
maneira, para qualquer comprimento de onda, os raios de luz só podem ser
interceptados por objetos mais ou menos das mesmas dimensões do
comprimento de onda dos raios; um objeto menor simplesmente não produzirá
sombra.
Uma ampliação de mais de duzentas vezes pode isolar uma única célula da
pele, quando olhada com luz branca. Mas, para obter maior detalhe, precisamos
de luz de menor comprimento de onda. O próximo passo seria, então, a luz
ultravioleta, com comprimento de onda de um milionésimo de milímetro ou
menos — mais curto para mais de dez vezes do que a luz visível. Se nossos
olhos fossem capazes de enxergar com luz ultravioleta, o que veríamos seria uma
paisagem fantasmagórica de fluorescência. O microscópio de luz ultravioleta
olha, através de uma luz tremeluzente, o interior da célula, ampliada de três mil e
quinhentas vezes, ao nível dos cromossomos. Mas esse é o limite: nenhuma luz
irá ver os genes dentro dos cromossomos.
Uma vez mais, querendo ir mais profundamente, temos de encurtar o
comprimento de onda: o próximo são os raios X. Entretanto, estes são tão
penetrantes, a ponto de não poderem ser focalizados por nenhum tipo de
material; não se pode construir um microscópio de raios X. Assim, temos de nos
contentar em projetá-los em uma face e obter uma espécie de sombra; os
detalhes dependem, agora, de sua penetração. Vemos o crânio sob a pele — por
exemplo, vemos que o homem havia perdido os dentes. Esta capacidade de
escrutinar o corpo conferiu grande interesse aos raios X imediatamente após
terem sido descobertos por Wilhelm Konrad Röntgen em 1895; aqui estava um
achado da física que parecia ter sido destinado pela natureza ao serviço da
medicina. A descoberta deu a Röntgen um ar de benévola figura paternal e o
primeiro Prêmio Nobel em 1901.
Algumas vezes, um feliz acaso nos leva a um resultado inesperado quando,
por inferência, descobrimos algo que não pode ser visto diretamente. Os raios X
não mostram os átomos, uma vez que estes são ainda muito pequenos para
produzir sombras, mesmo sob esse diminuto comprimento de onda. Contudo,
podemos mapear os átomos, em um cristal, porque seus espaçamentos são
regulares, de maneira que os raios X produzirão um padrão regular de ondas, a
partir das quais a posição dos átomos obstrutores pode ser inferida. Este é o
padrão dos átomos em uma espiral do ADN: representa um retrato de um gene.
O método foi inventado em 1912 por Max von Laue, e consistiu em um golpe
duplo de engenhosidade, uma vez que foi a primeira prova da realidade dos
átomos, e, também, a primeira prova da natureza eletromagnética dos raios X.
Ainda podemos dar mais um passo nesse sentido e chegar ao microscópio
eletrônico, onde os raios são de tal maneira concentrados, a ponto de não mais
podermos dizer se tratar de ondas ou de partículas. Os elétrons são disparados
contra um objeto de maneira a traçar os contornos deste, à semelhança do que
faz um atirador de facas em um circo. O menor objeto identificado por esse
método foi um átomo isolado de Tório. Isso é espetacular. No entanto, a imagem
indefinida confirma o fato de que, como acontece com as facas delineando a
figura da jovem do circo, mesmo os elétrons mais duros não produzirão uma
imagem nítida. A imagem perfeita permanece ainda tão distante como a das
estrelas mais remotas.
Neste ponto nos defrontamos face a face com o paradoxo fundamental do
conhecimento. Ano após ano divisamos instrumentos mais precisos a fim de
observar a natureza com maior precisão, mas, ao examinarmos as imagens
obtidas ficamos decepcionados ao constatar serem elas ainda muito indefinidas,
trazendo-nos a sensação de que a incerteza é tão grande como sempre foi. É
como se estivéssemos perseguindo um objeto que foge para o infinito no
momento mesmo em que o avistamos.
O paradoxo do conhecimento não está confinado à diminuta escala atômica;
pelo contrário, está também presente na escala do homem, e mesmo na das
estrelas. Vamos colocá-lo no contexto de um observatório astronômico. O
observatório de Karl Friedrich Gauss em Göttingen foi construído em 1807.
Desde então, os instrumentos astronômicos têm sido aperfeiçoados. Ao
examinarmos a posição de uma estrela, tal como foi determinada naquele tempo
e agora, temos a impressão de estarmos chegando perto de determinar
exatamente onde ela se encontra. Entretanto, ao compararmos nossas próprias
observações individuais notamos, com pesar, que elas não coincidem;
esperávamos eliminar os erros humanos e sermos, nós mesmos, dotados da
Visão Divina; mas o fato é que não há observação sem erro. E, note-se, tal
contingência é válida tanto quando observamos estrelas ou átomos, como
quando olhamos uma face humana, ou quando ouvimos contar o que o outro
falou.
Gauss reconheceu esse fato com aquele gênio maravilhoso e brincalhão que
sempre o acompanhou até sua morte, aos oitenta anos de idade. Contando apenas
dezoito anos, ao vir para Göttingen, em 1795, a fim de ingressar na universidade,
já havia resolvido o problema da melhor estimativa para uma série de
observações portadoras de erros internos. Seu raciocínio de então era o mesmo
que os estatísticos continuam utilizando hoje.
Ao olhar para uma estrela, um observador sabe existirem múltiplas
causas de erros. Dessa maneira, ele anota várias observações na
esperança de, naturalmente, encontrar, na média, a melhor estimativa da
posição da estrela — o centro da dispersão dos pontos. Até aqui, o
óbvio. Entretanto, Gauss foi além, e perguntou qual seria o significado
de tal dispersão. O resultado apareceu na forma do que hoje é conhecido
como curva gaussiana, na qual a dispersão é representada pelo desvio,
ou espalhamento, da curva. A partir daí veio uma idéia de longo
alcance: a dispersão representa uma área de incerteza, uma vez que não
podemos estar certos de que a posição real esteja localizada no centro.
Tudo o que podemos dizer é que a posição se encontra na área de
incerteza, área esta passível de ser calculada a partir da dispersão das
observações individuais.
Portador dessa visão sutil do conhecimento humano, Gauss se
sentia particularmente irritado com aqueles filósofos que afirmavam
possuir um acesso ao conhecimento muito mais perfeito do que o
fornecido pela observação. Dentre muitos exemplos escolherei apenas
um. Há um filósofo chamado Friedrich Hegel, a quem, devo confessar,
detesto em especial, mas com certo sentimento de felicidade por
constatar ser esse sentimento comum ao de um grande homem como
Gauss. Em 1800 Hegel apresentou uma tese, provando que, embora a
definição de planeta tenha mudado desde os Antigos, ainda poderiam
existir, filosoficamente, somente sete planetas. Ora bem, não apenas
Gauss sabia responder a isso; Shakespeare já havia respondido há muito
tempo. Na maravilhosa passagem do Rei Lear, onde, quem mais poderia
dizer, senão o Bobo, dirigindo-se ao Rei: “A razão por que as sete
estrelas não são mais do que sete é uma razão gozada”. O Rei acena
astutamente e diz: “Porque elas não são oito”. E o Bobo replica: “Sim,
isso mesmo, e você daria um ótimo bufão”. Hegel também daria. No dia
primeiro de janeiro de 1801, antes de ter havido tempo para secar a
tinta da dissertação de Hegel, um oitavo planeta foi descoberto — o
planeta Ceres.
A história está repleta de ironias. Na curva de Gauss estava escondida uma
bomba-relógio, que explodiu após a sua morte, a do descobrirmos que não temos
visão divina. Os erros estão inextrincavelmente ligados à natureza do
conhecimento humano. Ironicamente, essa descoberta foi feita em Göttingen.
As cidades universitárias antigas são maravilhosamente parecidas
entre si. Göttingen é semelhante à Cambridge da Inglaterra ou à Yale
dos Estados Unidos: muito provincianas, afastadas das rotas para
qualquer outro lugar — ninguém se dirige a essas paragens estagnadas a
não ser para desfrutar da companhia de professores. Mas os professores
estão certos de ocuparem o centro do mundo. Aqui, há uma inscrição no
Rathskeller, onde se lê, “Extra 360 Göttingen non est vita”, “Fora de
Göttingen não há vida”. Este epigrama, ou deveria chamá-lo epitáfio, não é
levado tão a sério pelos estudantes como o é pelos professores.
O símbolo da Universidade é representado pela estátua de ferro na
porta do Rathskeller, de uma menina com um ganso, que cada estudante
tem de beijar em sua graduação. A Universidade é uma Meca, a qual os
estudantes buscam com algo menos do que a perfeita fé. E é importante
que os estudantes sejam imbuídos de uma certa irreverência em seus
estudos; eles não estão aqui para adorar, e, sim, para questionar o que é
conhecido.
A semelhança de toda cidade universitária, Göttingen tem suas longas
alamedas que são cenários para as caminhadas que os professores fazem depois
do almoço, às vezes acompanhados de estudantes extáticos, quando agraciados
com a deferência de um convite. No passado, Göttingen deve ter sido
pachorrenta. As pequenas cidades universitárias alemãs são anteriores à
unificação do país (Göttingen, por exemplo, foi fundada por George II, quando
ainda Senhor de Hanover), e, assim, exibem um ar de burocracia local. Mesmo
depois de terminado o domínio militar e o Kaiser ter abdicado em 1918, elas
continuaram mais conformistas do que as universidades de fora da Alemanha.
A ligação entre Göttingen e o mundo exterior era feita através de uma
estrada de ferro. Por essa via chegavam os visitantes de Berlim, e de outras
cidades, ansiosos por trocar idéias sobre as questões momentosas da física que
estivessem agitando o mundo lá fora. Em Göttingen, costumava-se dizer que a
ciência ganhava vida no trem para Berlim, uma vez que aqui era onde as pessoas
argumentavam, eram questionadas, e tinham novas idéias. E onde novas idéias
eram contestadas também.
Nos anos da Primeira Guerra Mundial a ciência em Göttingen, como em
toda parte, era dominada pela Relatividade. Mas, no após-guerra, em 1921, a
Cátedra de Física foi ocupada por Max Bom o qual, com seus seminários, passou
a atrair a atenção da comunidade dos físicos atômicos. É interessante notar que
Max Bom foi guindado à cátedra quando contava já perto de quarenta anos, fato
incomum, pois que, de maneira geral, os físicos realizam seus melhores
trabalhos antes dos trinta anos (matemáticos ainda mais cedo e biólogos talvez
um pouco mais tarde). Entretanto, Bom era dotado de um extraordinário dom
socrático, muito pessoal. Atraía os jovens, estimulava-os, e as idéias discutidas e
contestadas entre eles constituíram o melhor do seu trabalho. Dentre uma
multidão de nomes, qual deles deveria eu escolher? Werner Heisenberg,
obviamente, que realizou aqui, com Born, o seu melhor trabalho. Quando Erwin
Schrödinger publicou uma forma diferente de física atômica básica, foi também
aqui onde ocorreu o principal debate, atraindo gente de todo o mundo.
Pode parecer inadequado falar nesses termos sobre uma atividade
que mais parece brotar como resultado de vigílias noturnas à luz
mortiça de lampiões. Assim, teria mesmo a física da década dos 20
consistido em argumentos, seminários, discussões e debates? Sim,
consistiu. E ainda consiste. As pessoas que aqui se reuniam, as pessoas
que ainda se reúnem em seus laboratórios, só dão seus trabalhos por
terminados quando conseguem expressá-los em formulações
matemáticas. Começam tentando resolver enigmas conceituais. Os
enigmas das partículas subatômicas — dos elétrons e do resto —
representam enigmas mentais.
Pensem no quebra-cabeça que o elétron representava naquele tempo. Os
professores até diziam brincando (devido à maneira pela qual os horários das
universidades são organizados) que às segundas, quartas e sextas os elétrons se
comportavam como se fossem partículas e às terças, quintas e sábados, como se
fossem ondas eletromagnéticas. Como se poderiam conciliar esses dois aspectos,
tomados à escala muito mais ampla do mundo exterior, e socados nesse mundo
liliputiano do interior do átomo? Os argumentos e especulações de então
giravam nesse tipo de roda. A fim de resolvê-los eram necessários não apenas
cálculos, mas, sim, inspiração, imaginação — metafísica, se vocês quiserem.
Lembro-me de uma frase de Max Born, usada por ele quando, muitos anos mais
tarde, veio para a Inglaterra, e que está registrada em sua autobiografia: “Estou
convencido de que física teórica é, na realidade, filosofia”.
Max Born entendia que as novas idéias da física eram endereçadas a uma
visão diferente da realidade. O mundo não é imutável, não consiste em um
arranjo fixo de objetos externos, e não pode ser inteiramente separado da
percepção que temos dele. Ele se transforma sob nosso olhar, ele interage
conosco, e o conhecimento daí derivado tem de ser por nós interpretado. Não há
meio possível de trocar informações sem a concorrência de julgamentos. Seria o
elétron uma partícula? Comporta-se como tal no modelo de Bohr, mas em 1924,
de Broglie (figura 167) construiu um lindo modelo de ondas, no qual as órbitas
estão representadas 364 por posições onde todo um número exato de ondas se
concentram em torno do núcleo. Max Born imaginou um trem de elétrons no
qual cada um deles estava preso a uma manivela, de forma que, em conjunto,
constituíam uma série de curvas gaussianas, uma onda de probabilidades. Uma
nova concepção estava sendo gerada no trem para Berlim e nas caminhadas
professorais pelos bosques de Göttingen: quaisquer que fossem as unidades
fundamentais a partir das quais o mundo se construía, elas eram mais delicadas,
mais fugidias, mais lépidas do que aquilo que conseguimos apanhar na rede de
caçar borboletas de nossos sentidos.
Todas essas caminhadas pelos bosques e conversações atingiram um clímax em
1927. No início desse ano Werner Heisenberg deu uma nova caracterização ao
elétron. Sim, trata-se de uma partícula, disse ele, mas uma partícula capaz de
transmitir apenas uma quantidade limitada de informação. Isto é, pode-se
especificar onde ela se encontra neste instante, mas, ao se deslocar, não se
consegue impor a ela velocidade e direção específicas. Ou, posto de outra forma,
se insistimos em dispará-la a velocidade e direção determinadas, torna-se
impossível especificar exatamente seu ponto de partida, e, consequentemente,
seu ponto de chegada.
Essa caracterização pode parecer muito grosseira. Mas não é.
Heisenberg tornou-a profunda ao fazê-la precisa. A informação da qual
o elétron é portador é limitada em sua totalidade. Isto quer dizer que,
por exemplo, sua velocidade e sua posição se ajustam de tal forma a
estarem confinadas pela tolerância do quantum. Aí está a idéia profunda:
uma das grandes idéias científicas, não só do século XX, mas, da
história da ciência.
A essa formulação Heisenberg deu o nome de Princípio da
Incerteza. Em um certo sentido, representa um sólido princípio do dia a
dia. Sabemos não podermos pedir ao mundo para que seja exato. Se um
objeto (uma face conhecida, por exemplo) tivesse de ser sempre
exatamente o mesmo para que o pudéssemos reconhecer, não seria
possível identificar uma mesma pessoa de um dia para o outro.
Reconhecemos o mesmo objeto em diferentes ocasiões porque ele
permanece o mesmo e não porque permanece exatamente o mesmo; as
coisas permanecem toleravelmente semelhantes a si mesmas. No ato do
reconhecimento entra um julgamento — uma área de tolerância ou de
incerteza. Dessa maneira, o princípio de Heisenberg postula que
nenhum evento, nem mesmo os eventos atômicos, pode ser descrito com
certeza, isto é, com tolerância zero. A profundidade do princípio se
deveu ao fato de Heisenberg ter podido especificar o grau de tolerância
que pode ser alcançado. E a unidade de medida é dada pelo quantum de
Max Planek. No mundo do átomo, a área de incerteza é sempre mapeada
através do quantum.
Contudo, Princípio da Incerteza é um nome infeliz. Em ciência e fora dela
não estamos incertos: meramente nosso conhecimento está confinado dentro de
uma certa tolerância. Portanto, deveria ser chamado Princípio da Tolerância, e
esta minha proposição implica dois sentidos. O primeiro, um princípio de
engenharia. A ciência tem progredido degrau após degrau, o empreendimento
mais bem-sucedido na escalada do homem, porque ela compreendeu ser a troca
de informação entre o homem e a natureza, e dos homens entre si, possível
somente se trabalha dentro de uma certa margem de tolerância. O segundo
sentido é afetivo, e interessa ao mundo real. Todo conhecimento, toda
informação entre seres humanos só pode ser negociada tolerantemente. Tal
assertiva é verdadeira, quer se trate de ciência, de literatura, de religião, de
política e mesmo de qualquer forma de pensamento que pretenda ser dogma. A
grande tragédia do meu tempo e do de vocês consistiu justamente no fato de que,
enquanto aqui em Göttingen os cientistas estavam apurando ao máximo o
Princípio da Tolerância, se esqueceram do mundo à sua volta e não perceberam
estar a tolerância sendo destroçada, a ponto de não mais poder ser reparada.
Nuvens sombrias cobriam o céu da Europa. Mas Göttingen tinha uma
nuvem particular, ensombreando-a há uma centena de anos. Por volta de 1800
Johann Friedrich Blumenbach organizou uma coleção de crânios, conseguidos
através de cavalheiros eminentes espalhados por toda a Europa e com os quais se
correspondia. No trabalho de Blumenbach não havia nenhuma sugestão de que
aqueles crânios iriam dar suporte a uma divisão racista da humanidade, embora
ele usasse medidas anatômicas com a finalidade de classificar as diferentes
famílias humanas. De qualquer forma, a partir da morte de Blumenbach em
1840, a coleção foi se ampliando até se tornar o cerne da teoria racista
pangermânica, sancionada pelo Partido Nacional-Socialista quando este tomou o
poder.
O aparecimento de Hitler em 1933 provocou, quase que da noite para o dia,
o esfacelamento de toda a tradição acadêmica alemã. Agora, o trem para Berlim
simbolizava fuga. A Europa já não era mais um lugar hospitaleiro à imaginação
— e não apenas à imaginação científica. Toda uma concepção de cultura batia
em retirada: a concepção de que o conhecimento humano é pessoal e
responsável, uma aventura sem limites às fronteiras da incerteza. Cerrou-se a
cortina do silêncio, como havia acontecido depois da condenação de Galileo. Os
grandes homens fugiram, mas para um mundo ameaçado. Max Born. Erwin
Schrödinger. Albert Einstein. Sigmund Freud. Thomas Mann. Bertolt Brecht.
Arturo Toscanini. Bruno Walter. Marc Chagall. Enrico Fermi. Leo Szilard,
chegando finalmente, depois de muitos anos, ao Instituto Salk na Califórnia.
O Princípio da Incerteza ou, em minha versão, O Princípio da Tolerância,
consagrou de uma vez por todas o entendimento de que todo conhecimento é
limitado. Ironicamente, ao mesmo tempo que este estava sendo formulado,
avolumava-se sob o jugo de Hitler na Alemanha, e de outros tiranos em outros
países, a sua contrapartida: o princípio da monstruosa certeza. Analisada
retrospectivamente, a década dos 30 irá se apresentar às gerações futuras como
um palco onde se confrontaram duas culturas: uma é aquela sobre a qual venho
discorrendo, a escalada do homem, e a outra, a da crença despótica da posse da
certeza absoluta.
Entretanto, todas essas abstrações precisam ser colocadas em termos
concretos, e eu lhes darei vida na forma de uma personalidade. Leo Szilard as
vivia intensamente, e, durante o último ano de sua vida, muitas de minhas tardes
foram dedicadas, em sua companhia, à discussão daquelas abstrações, em seu
laboratório no Instituto Salk.
Leo Szilard era húngaro, mas sua vida acadêmica transcorreu na Alemanha.
Em 1929 havia publicado um importante trabalho sobre o que atualmente se
conhece como Teoria da Informação, tratando das relações entre conhecimento,
natureza e homem.
Mas, nessa época, Szilard já estava convencido de que Hitler chegaria ao
poder e a guerra seria inevitável, de forma que, desde então, manteve duas malas
prontas em seu quarto e, em 1933, ele as fechou e as levou para a Inglaterra.
Em setembro de 1933, Lorde Rutherford, dirigindo-se a uma reunião da
Associação Britânica, expressou algumas dúvidas sobre a viabilidade de
utilização da energia atômica. Mas acontece que Leo Szilard pertencia
justamente àquela espécie de cientista, talvez àquele tipo de homem inquieto e
bem-humorado, que detesta qualquer tipo de afirmação contendo a palavra
“nunca”, particularmente quando emitida por um colega eminente. Assim, ele se
decidiu a pensar sobre o problema. A história é contada por ele mesmo, naquela
maneira que todos nós que o conhecíamos podemos imaginar perfeitamente.
Estava vivendo no Strand Palace Hotel — ele adorava viver em hotéis. Certo
dia, caminhando em direção ao Hospital Bart, onde trabalhava, ao chegar a
Southampton Row parou diante do sinal vermelho. (Esta é a única parte da
história a qual considero improvável: jamais tive notícia de Szilard ter respeitado
um sinal vermelho.) Então, antes mesmo do sinal ter mudado para verde,
ocorreu-lhe claramente a idéia de que, se um átomo fosse atingido por um
nêutron e, rompendo-se, liberasse dois átomos, o que estaria ocorrendo seria uma
reação em cadeia. Diante disso, escreveu as especificações para uma patente, na
qual aparecia o termo “reação em cadeia”, registrada em 1934.
Agora, desvendaremos uma faceta da personalidade de Szilard que, embora
comum a muitos cientistas daquela época, nele se expressava de forma clara e
gritante. Queria manter secreta a patente, em uma tentativa de impedir o uso
indevido de descobertas científicas. Assim o fez, confiando-a aguarda do
Almirantado Britânico, de forma que só foi publicada depois da guerra.
Entrementes, a guerra se tornava cada vez mais ameaçadora. A marcha do
progresso da Física Nuclear e a marcha de Hitler avançavam passo a passo, etapa
cobrindo etapa, de uma forma que hoje tendemos a nos esquecer. No início de
1939, Szilard escreveu a Joliot-Curie perguntando se era possível proibir uma
publicação. Estava tentando impedir a publicação do trabalho de Fermi. Mas, em
agosto de 1939, ele escreveu uma carta a qual Einstein assinou e enviou ao
Presidente Roosevelt, dizendo (aproximadamente): “A Energia Nuclear está
aqui. A guerra é inevitável. Fica a cargo do Sr. Presidente decidir o que os
cientistas devem fazer a esse respeito”.
Entretanto, Szilard não parou aí. Em 1945, a guerra européia já tendo sido
ganha, sabendo a iminência do uso da bomba atômica sobre o Japão, ele
protestou quanto pôde. Escrevia memorandos atrás de memorandos. Um dos
memorandos, endereçado ao Presidente Roosevelt, só não chegou ao seu
destinatário devido à morte deste no mesmo tempo em que Szilard o estava
redigindo. Szilard lutava para que a bomba fosse testada abertamente perante os
japoneses e uma assistência internacional, de modo que o governo japonês
conhecesse seu poder de destruição e se rendesse, antes do povo ser sacrificado.
Como todos sabem, Szilard falhou, e com ele toda a comunidade dos
cientistas. Fez o que um homem íntegro deveria ter feito. Abandonou a física e
se interessou pela biologia — e essa foi a razão que o trouxe ao Instituto Salk —,
convencendo outros a fazerem o mesmo. A física tinha sido a paixão dos últimos
cinquenta anos, e também a obra-prima dessa época. Contudo, sabíamos, agora,
estar maduro o tempo de trazer ao entendimento da vida, da vida humana em
particular, a mesma unidade de mente que havíamos conferido ao entendimento
do mundo físico.
A primeira bomba atômica foi detonada em Hiroshima no dia 6 de
agosto de 1945, às 8 e 15 da manhã. Pouco depois de minha volta de
Hiroshima, ouvi alguém dizer, na presença de Szilard, ser aquilo uma
tragédia para os cientistas, o fato de suas descobertas serem usadas para a
destruição. “É a tragédia da humanidade” replicou Szilard, autorizado como
nenhum outro para tal desabafo.
O dilema humano se divide em duas partes. Uma delas é a crença de que o fim
justifica os meios. É a filosofia dos apertadores de botões, dos deliberadamente
surdos ao sofrimento que gerou o monstro da máquina da guerra. A outra, é a
traição do espírito humano: o dogma que obtura a mente e transforma uma nação
ou uma civilização em um regimento de fantasmas — fantasmas obedientes, ou
fantasmas torturados.
Diz-se que a ciência acabará por desumanizar as pessoas, transformando-as
em simples números. Isso é falso, tragicamente falso. Tome cuidado. Vê-se aqui
o campo de concentração e o crematório de Auschwitz. Neste local é que as
pessoas eram transformadas em números. Esta lagoa recebeu as descargas
contendo as cinzas de uns quatro milhões de pessoas. E não foi uma obra do gás.
Foi obra da arrogância. Foi feito pelo dogma. Foi feito pela ignorância. Quando
as pessoas acreditam estar possuídas do conhecimento absoluto, sem nenhuma
base na realidade, elas se comportam dessa maneira. Isto é o que o homem
realiza quando pretende ter a ciência de deuses.
A ciência é uma forma de conhecimento essencialmente humano. Sempre
nos encontramos à beira do conhecido, sempre sentimos por antecipação aquilo
que pode ser esperado. Todo julgamento científico se equilibra nas margens do
erro, e é pessoal. A ciência é um tributo àquilo que podemos conhecer, embora
sejamos falíveis. No fim, as palavras foram ditas por Oliver Cromwell: “Eu lhe
imploro, pelas entranhas de Cristo, pense pelo menos na possibilidade de você
poder estar errado”.
Na qualidade de cientista, o meu dever para com meu amigo Leo Szilard;
na qualidade de ser humano, o meu dever para com os muitos membros de
minha família, mortos aqui em Auschwitz, é estar aqui à beira desta lagoa, como
sobrevivente e testemunha. Devemos nos curar do prurido do conhecimento e do
poder absolutos. Temos de eliminar a distância entre o apertar o botão e o ato
humano. Temos de entrar em contato com as pessoas.
CAPÍTULO 12 – GERAÇÃO APÓS GERAÇÃO
Inicio este meu último ensaio na Islândia pelo fato de ser a sede da mais antiga
democracia do Norte da Europa. No anfiteatro natural de Thingvellir, que jamais
recebeu qualquer tipo de construção, todo ano reunia-se o Allthing da Islândia
(toda a comunidade dos nórdicos da Islândia), a fim de fazer e receber leis. Tal
prática data de 900 d. C., antes da chegada do cristianismo, a um tempo em que a
China ainda era um grande império, e a Europa o espólio das querelas entre
principados e barões rapaces. Temos de concordar ter sido esse um começo
extraordinário para a prática democrática.
Entretanto, há algo de mais extraordinário sobre este lugar brumoso e
inclemente. Eu o escolhi porque o fazendeiro, seu antigo dono, foi condenado
por ter morto não um outro fazendeiro, mas um escravo. E isso é importante,
uma vez que sabemos que em culturas escravagistas a justiça raramente era tão
imparcial. Contudo, a justiça está universalmente presente em todas as culturas.
É como se ela fosse uma corda esticada sobre a qual o homem tem de andar
equilibrando, de um lado, o desejo de satisfazer suas aspirações e, do outro, a
obediência à sua responsabilidade social. Nenhum outro animal tem de enfrentar
um tal dilema: um animal ou é social ou é solitário. Apenas o homem aspira a
ser as duas coisas ao mesmo tempo, um solitário social.
Para mim, essa é uma característica biológica sui generis, constituindo o
tipo de problema que me envolve no estudo da especificidade humana, e o qual
pretendo discutir.
Pensar na justiça como representando uma parte do equipamento biológico
do homem pode ser chocante, de certa forma. No entanto, foi exatamente o
pensamento que me levou da física à biologia, e, desde o início, me fez
compreender que a vida do homem, seu lar, é o lugar adequado para se estudar
sua singularidade biológica.
Tradicionalmente, é natural que a biologia seja abordada de uma maneira
diferente: isto é, a semelhança entre o homem e os animais é que a domina. Há
muito tempo, lá pelos idos de 200 d. C., Cláudio Galeno, o grande autor clássico
da medicina, estudou, por exemplo, o antebraço do homem. E como o fez?
Dissecando o antebraço de um macaco antropóide. Tal foi a abordagem inicial, e
necessária, usando-se indícios colhidos em animais muito antes da teoria da
evolução tê-los justificado. Assim, mesmo nos dias de hoje, o maravilhoso
trabalho de Konrad Lorenz sobre o comportamento animal nos induz,
naturalmente, a buscar pontos comuns entre o pato, o tigre e o homem; ou, da
mesma forma, os estudos de B. F. Skinner com o pombo e o rato. Todos eles nos
dizem alguma coisa a respeito do homem, mas não podem nos dizer tudo. Não
poderia ser de outra maneira, porque, se o homem não tivesse algumas
qualidades que lhe fossem únicas, os patos estariam fazendo conferências sobre
Lorenz e os ratos escrevendo trabalhos sobre Skinner.
Mas, não fiquemos atirando a esmo. O cavalo e o cavaleiro têm em comum
muitas características anatômicas. Entretanto, é a criatura humana que monta o
cavalo e não o contrário. E este é um exemplo muito apropriado, uma vez que o
homem não foi criado para cavalgar. Não há nenhum circuito dentro de nosso
cérebro que nos determine a montar um cavalo. Andar a cavalo é uma invenção
comparativamente recente, data de há menos de cinco mil anos. No entanto, sua
influência em nossa estrutura social foi imensa.
A plasticidade do comportamento humano tornou possível essa prática.
Essa plasticidade é que nos caracteriza em nossas instituições sociais, é claro,
mas, para mim, ela se encontra sobretudo nos livros, porque estes representam o
produto total e permanente dos interesses da mente humana. Para mim eles se
assemelham à memória de meus pais: Isaac Newton, o grande homem
dominando a Royal Society, no início do século XVIII e William Blake,
escrevendo Songs of Innocence (Canções da Inocência) no final do mesmo
século. Eles representam dois aspectos de uma mesma mente, e ambos são o que
os biólogos do comportamento costumam denominar “espécie-específica”.
Como poderia eu expor esse problema de uma maneira mais simples?
Escrevi um livro recentemente intitulado The Identity of Man (A Identidade do
Homem). Só vi a capa da edição inglesa depois de o livro impresso. No entanto,
o artista apreendeu com exatidão o que estava em minha mente, ao compor a
capa colocando um desenho do cérebro juntamente com a. Mona Lisa, um sobre
o outro. Em sua composição, mostrou o que o livro dizia. A singularidade do
homem está no fato, não dele ser capaz de fazer ciência ou de realizar trabalhos
artísticos, mas, sim, da ciência e da arte de serem expressões de sua maravilhosa
plasticidade mental. Neste contexto a Mona Lisa representa um bom
exemplo; por que, afinal de contas, em que consistiu o trabalho da
maior parte da vida de da Vinci? Desenhar estudos anatômicos, como no
caso da criança no útero materno, exposto na Coleção Real em Windsor.
E no cérebro e na criança que se inicia a plasticidade do comportamento
humano.
Dentre as coisas que possuo há uma que me é particularmente cara: um molde do
crânio de uma criança de há dois milhões de anos, a criança de Taung (v. página
29). É claro que não se trata exatamente de uma criança. No entanto, se ela — eu
sempre a considero uma menina — tivesse vivido o suficiente, poderia ter sido
um de meus ancestrais. O que diferencia seu pequeno cérebro do meu? O
tamanho, se pensarmos de forma simplificada. Esse cérebro, se ela tivesse
chegado à maturidade, iria pesar em torno de meio quilo, ao passo que meu
cérebro humano médio atual pesa pouco menos de um quilo e meio.
Mas não esperem que eu vá falar sobre as estruturas neurais, sobre a
condução unidirecional nas fibras nervosas, ou mesmo sobre os cérebros antigos
e os recentes, porque esses todos são pontos que nos unem aos outros animais.
Falarei, sim, a respeito do cérebro, mas naquilo que o torna específico da criatura
humana.
Uma primeira pergunta surge inevitavelmente: o cérebro humano é
um computador aperfeiçoado — ou um computador mais complexo? Os
artistas em particular tendem a pensar no cérebro como uma espécie de
computador. Assim, no Portrait of Dr. Bronowski (Retrato do Dr. Bronowski),
Terry Durham inclui símbolos espectrais e de computação, revelando a
concepção que os artistas têm do cérebro dos cientistas. Certamente,
essa concepção não é correta. Fosse o cérebro um computador, ele
estaria somente levando a cabo um conjunto de ações pré-determinadas
e em uma sequência inflexível.
A guisa de exemplo, consideremos o excelente estudo do
comportamento animal, descrito na obra do meu amigo Dan Lehrman,
sobre o acasalamento no pombo (ring-dove). Desde que o macho arrulhe
e se incline de uma maneira apropriada, a fêmea explode em excitação,
secretando hormônios e realizando uma sequência completa de
comportamentos, que levam à construção de um ninho perfeito. As
ações dela são exatas nos detalhes e na ordem, embora não tenham sido
aprendidas e sejam invariáveis; esses pombos nunca mudam o seu
comportamento. Ninguém jamais deu a ela um conjunto de materiais
para que aprendesse a construir um ninho. No entanto, o homem nunca
chegará a construir coisa nenhuma se em criança não aprender a brincar
com blocos. Daí surgiram o Partenon e o Taj-Mahal, a cúpula de
Sultaniyeh e as Torres de Watts, o Machu Picchu e o Pentágono.
Não somos computadores seguindo rotinas impressas na infância. Se
fôssemos um tipo de máquina, seríamos uma máquina de aprender, e nosso
aprendizado se faria em áreas específicas do cérebro. Assim, vemos que o
cérebro fez mais do que apenas 416 aumentar de duas ou três vezes o seu
tamanho durante a evolução.
Seu crescimento se deu em áreas muito específicas: onde está o controle das
mãos, por exemplo, onde a fala é controlada, onde há controle da previsão e do
planejamento das ações. Pedirei a vocês que as examinem uma por uma.
Tomemos a mão em primeiro lugar. A evolução recente do homem começa,
certamente, com o avançado desenvolvimento da mão, e a seleção de um cérebro
o qual é particularmente adaptado à capacidade manipulatória desenvolvida.
Esse prazer, nós o sentimos nas ações que praticamos, de tal forma que a mão se
tornou o grande símbolo para o artista: as mãos do Budha, por exemplo,
transmitindo aos homens o dom da humanidade em um gesto calmo, exprimindo
a ausência do medo. Também, para o cientista, reserva um gesto especial:
podemos opor o polegar aos outros dedos. Bem, mas os antropóides o fazem
igualmente. Não igualmente. A oposição perfeita do polegar contra o dedo
indicador é uma característica única do homem. E esse ato pode ser realizado
porque há no cérebro uma área tão grande que só poderei descrevê-la da seguinte
maneira: há mais matéria cinzenta cerebral alocada ao controle do polegar do
que a reservada ao controle do tórax e do abdome juntos.
Lembro-me de minha admiração, de jovem pai, debruçado sobre o berço de
minha primeira filha, quando ela contava não mais de quatro ou cinco dias.
Pensava: “Esses dedinhos maravilhosos, perfeitos em cada junta, até as unhas.
Nem se me dessem um milhão de anos de prática eu os teria planejado com tanto
detalhe”. Mas, no entanto, foram exatamente um milhão de anos que gastei, um
milhão de anos que gastou a humanidade, para a mão chegar a dirigir o cérebro,
o cérebro retroalimentar a mão e ambos alcançarem o presente estágio de
evolução. E tudo isso ocorrendo em uma região muito específica do cérebro.
Todos os movimentos da mão são controlados essencialmente por uma parte do
cérebro que pode ser identificada perto do topo da cabeça.
Tomemos agora uma outra área, especificamente humana e não
encontrada em nenhuma outra espécie animal: a do controle da fala. Tal
controle está localizado em duas áreas interconectadas do cérebro
humano; uma delas próxima ao centro da audição e a outra mais à frente
desta e para cima, no pólo frontal. Estariam seus mecanismos pré-
estampados em seus circuitos neurais? Sim, em um certo sentido, uma
vez que se os centros da fala forem lesados, essa atividade se torna
impossível. Contudo, ela tem de ser aprendida, não? É claro que sim.
Estou falando inglês, língua que só vim a aprender aos treze anos; mas
eu não poderia falar inglês se antes não tivesse aprendido uma
linguagem. Se uma criança for deixada sem aprender a falar até os treze
anos, então ela será praticamente incapaz de aprender qualquer
linguagem. Eu falo inglês por ter aprendido polonês aos dois anos.
Embora tenha esquecido praticamente tudo do polonês, aprendi uma
linguagem. O mesmo acontece com outros dons que o cérebro humano tem a
potencialidade de aprender.
As áreas da fala são singulares em uma outra maneira, que é peculiar ao
homem. Vocês sabem que o cérebro humano não apresenta simetria entre as suas
duas metades ou hemisférios. A prova disso nos é familiar, posto que,
diferentemente de outros animais, o homem é marcadamente destro ou canhoto.
A fala também é controlada por apenas um hemisfério central, mas o lado não
varia. Quer sejamos destros ou canhotos o controle da fala se localiza quase que
exclusivamente no hemisfério esquerdo.
Há exceções, é claro, da mesma forma que algumas pessoas têm seus
corações localizados no lado direito, mas as exceções são raras: as áreas de fala
podem, assim, ser consideradas como estando na metade esquerda do cérebro. E
o que estaria nas áreas correspondentes da metade direita? Até agora ainda não
sabemos com precisão. Não sabemos exatamente qual é a função das áreas
cerebrais do hemisfério direito, correspondentes às áreas da fala no hemisfério
esquerdo. Entretanto, há indicações de que elas transformariam a imagem
bidimensional do mundo projetada na retina do olho em uma imagem com
profundidade, isto é, tridimensional. Se isso for correto, então, em minha
maneira de ver, estaria claro que a linguagem é também uma forma de organizar
o mundo em suas partes, ou construí-lo por combinação de palavras, como se
estas fossem imagens móveis.
A organização da experiência atinge um longo alcance no homem, e seus
mecanismos se alojam na terceira área de especificidade humana do cérebro. A
organização da atividade superior do homem se localiza nos lobos frontais e pré-
frontais. Eu, igualmente a todos os outros homens, tenho a fronte alta e a testa
arredondada, o que nós dá um pretenso ar intelectual. Mas a criança de Taung
não apresenta essa característica. Seu crânio não pode ser confundido com o de
uma criança que morreu e se fossilizou; há um grande contraste entre os dois,
evidente na fronte curta e inclinada do fóssil.
Exatamente, qual é então a função desses grandes lobos frontais? Elas
podem ser várias, mas nenhuma delas muito específica ou importantes por si só.
Elas nos permitem planejar ações futuras e esperar por recompensas.
Experimentos lindos foram realizados por Walter Hunter sobre essa capacidade
de resposta retardada, em torno de 1910, os quais foram refinados
posteriormente por Jacobsen na década de 1930. O que Hunter fez foi o seguinte:
tomava uma recompensa qualquer, mostrava ao animal, e, em seguida, a
escondia. Os resultados encontrados no animal predileto dos laboratórios, o rato,
foram típicos. Mostrada a recompensa posteriormente escondida, quando liberto,
imediatamente ele a encontra sem dificuldade. Entretanto, se o rato for mantido
esperando por alguns minutos, então ele não saberá escolher o caminho que o
levaria à recompensa.
Evidentemente, crianças agem diferentemente. Hunter realizou o mesmo
tipo de experimento com crianças, e o resultado era o mesmo, se crianças de
cinco ou seis anos esperassem alguns minutos, meia hora ou mesmo uma hora.
Uma das garotas do experimento de Hunter, que ele tentava entreter com
histórias, enquanto deixava transcorrer o tempo programado, depois de vários
minutos de conversa fez a seguinte observação: “Sabe, eu acho que você está
apenas tentando me fazer esquecer”.
A habilidade de planejar ações no futuro, para as quais a
recompensa está muito distanciada no tempo, aparece como elaboração
da resposta retardada, e os sociólogos a chamam “postergamento da
gratificação”. Trata-se de uma característica fundamental do cérebro
humano, sem nenhum equivalente, mesmo rudimentar, nos outros
animais, a não ser aqueles mais avançados na linha evolutiva; é o caso
dos nossos primos, os primatas não-humanos. Esse desenvolvimento
humano significa que nossa educação precoce tem a ver de fato com o
adiantamento de decisões. Notem que estou divergindo um pouco dos
sociólogos. Nós temos de adiar o processo de tomar decisões, de modo a
poder acumular conhecimentos, a fim de nos prepararmos para o futuro.
Essa afirmação pode lhes parecer surpreendente; no entanto, ela encerra
o significado da infância, da adolescência e também da juventude.
Desejo, agora, dar uma grande ênfase, dramatizar mesmo, ao
adiamento de decisões — e este termo tem de ser tomado em seu sentido
literal. Qual é o maior drama da língua inglesa? É Hamlet. E a peça, do
que trata? Conta a história de um jovem — um garoto — enfrentando a
primeira grande decisão de sua vida. Uma decisão além de sua
capacidade: matar o assassino de seu pai. De nada adianta a instigação
do Espectro: “Vingança! Vingança!”. O fato é que Hamlet, sendo
adolescente, ainda não adquirira maturidade. Intelectual e
emocionalmente ainda não estava maduro para poder realizar o ato que
dele se exigia. A peça toda é uma sequência sem fim de adiamentos de
decisões, enquanto Hamlet luta consigo mesmo.
O ponto alto da peça vamos encontrá-lo no meio do terceiro ato. Hamlet
observa o Rei enquanto este reza. A disposição do cenário é deixada de tal forma
indefinida que ele poderia mesmo ouvir as preces do Rei, e nelas a confissão do
crime. E o que diz Hamlet? “Sim, agora tenho de fazê-lo — pronto!” Mas não o
faz; simplesmente não está preparado para um ato dessa magnitude em sua
adolescência. Assim, no final da peça, Hamlet é assassinado. Entretanto, a
tragédia não está na morte de Hamlet; está no fato de ele morrer exatamente no
momento em que está preparado para se tornar um grande rei.
No homem, o cérebro, antes de ser um instrumento de ação, tem de ser um
instrumento de preparação. Nesse processo são envolvidas áreas bastante
específicas; por exemplo, os lobos frontais não podem ter sofrido lesões.
Entretanto, muito mais importante é o longo período de preparação transcorrido
durante a infância da espécie humana.
Em linguagem científica somos neotênicos; isto é, ainda guardamos
características embrionárias ao nascer. Essa característica talvez seja a
responsável pelo fato de nossa civilização, nossa civilização científica, preferir,
sobre todos os outros, o símbolo da criança. Notamos essa tendência desde a
Renascença: o Cristo menino pintado por Rafael e recriado por Blaise Pascal; o
jovem Mozart e Gauss; as crianças de Jean-Jacques Rousseau e Charles Dickens.
Que outras civilizações pudessem ser diferentes jamais havia passado pela minha
cabeça; mas aconteceu de eu viajar para muito longe, saindo da Califórnia e
navegando na direção Sul, no Pacífico, até encontrar a Ilha da Páscoa, e aqui ser
surpreendido por uma diferença histórica.
É muito frequente a invenção de utopias por parte de alguns visionários:
Platão, Sir Thomas More, H. G. Wells. Nessas, acalenta-se a esperança de que a
imagem heróica dure, como disse Hitler, por milhares de anos. Mas, na
realidade, as imagens heróicas acabam mais se assemelhando às figuras rústicas,
inermes das faces ancestrais das estátuas da Ilha da Páscoa — vejam que elas até
se parecem com Mussolini! Mesmo em termos biológicos essa representação não
retrata a essência da personalidade humana. Biologicamente o ser humano é
mutável, sensível, plástico, adaptado a diferentes ambientes, e não estático. A
verdadeira visão do ser humano está representada no mistério da infância, na
Virgem e o Menino, na Sagrada Família.
Quando garoto, em minha adolescência, costumava, nas tardes de sábado,
andar da Extremidade Leste de Londres até o Museu Britânico, somente para
contemplar o único exemplar de estátua da Ilha da Páscoa que, de alguma forma,
acabara dentro do Museu. Assim, vocês podem avaliar meu interesse por essas
antigas faces ancestrais. No entanto, no final das contas, todas elas juntas não
chegam a ter o valor da face rechonchuda de uma criança.
Embora tenha me desviado do nosso assunto ao fazer essas considerações a
respeito da Ilha da Páscoa, o fiz com propósito. Considerem, por exemplo, o
investimento enorme despendido pela evolução até chegar a produzir o cérebro
de uma criança. Meu cérebro pesa cerca de mil trezentas e cinquenta gramas e
meu corpo cerca de pelo menos cinquenta vezes mais do que isso. Entretanto, ao
nascer, meu corpo era um mero apêndice da cabeça; pesava apenas cinco ou seis
vezes mais do que o cérebro. Esse enorme potencial tem sido grosseiramente
negligenciado pela maior parte da história das civilizações. Na realidade, a
infância mais longa tem sido destas mesmas, das civilizações, tentando aprender
o significado daquela.
De modo geral, às crianças tem-se pedido que imitem simplesmente a
imagem dos adultos. Viajamos com os bakhtiari da Pérsia enquanto realizavam a
migração da primavera. Eles se assemelham, tanto quanto seria possível, a
qualquer outro povo sobrevivente de vida nômade em extinção, em costumes
vigentes há dez mil anos passados. O fenômeno está claramente presente em
todas as manifestações dessa civilização ultrapassada: a imagem do adulto
brilhando nos olhos das crianças. As meninas são pequenas mães em
desenvolvimento. Os meninos se comportam tal e qual pequenos pastores.
Mesmo em suas maneiras de andar copiam a dos pais.
A História, evidentemente, não se congelou no período mediano entre o
nomadismo e o Renascimento. A escalada do homem jamais se interrompeu. No
entanto, a escalada do jovem, a escalada do talento, a escalada da imaginação;
estas sim, foram, por muitas vezes, reprimidas naquele intervalo.
Grandes civilizações existiram, certamente. Não seria eu que iria denegrir
as civilizações do Egito, da China, da índia, e mesmo da Europa na Idade Média.
Contudo, todas elas falharam em um ponto: limitaram a liberdade de imaginação
dos jovens. Representam culturas estáticas, culturas de minorias. Estáticas
porque o filho imitava o pai e este o avô. De minorias porque apenas uma ínfima
parte do talento total da humanidade era aproveitado; aprender a ler, aprender a
escrever, aprender uma outra língua, e então subir a morosa escalada da
promoção.
Na Idade Média a escada da promoção passava pela Igreja; não havia outro
caminho à escolha de um jovem inteligente e pobre. No final da escada, no
último degrau, havia sempre a recomendação da imagem do ícone da divindade:
“Agora atingiste o derradeiro mandamento: não questionarás”.
Erasmo de Roterdam, por exemplo, vendo-se órfão em 1480, teve
de se preparar para a carreira eclesiástica. Os rituais de então eram tão
lindos como o são atualmente. O próprio Erasmo deve ter tomado parte
na comovente Missa Cum Giubilate do século XIV, a qual eu assisti em uma
igreja ainda mais antiga, San Pietro, em Gropina. Entretanto, para Erasmo, a
vida de monge era como que uma porta de ferro fechada ao conhecimento.
Somente depois de, desobedecendo as ordens, ter lido os clássicos é que o
mundo se revelou a ele. “Um herético escreveu estas coisas para heréticos” disse
ele, “no entanto, elas revelam justiça, santidade, verdade”. E eu mal posso me
conter de dizer “Santo Sócrates, orai por mim!”.
Erasmo fez duas amizades sólidas e duradouras, uma na Inglaterra com Sir
Thomas More, e a outra na Suíça com Johann Frobenius. De More, recebeu
aquilo que eu mesmo recebi quando cheguei à Inglaterra: o sentimento do prazer
de conviver com mentes civilizadas. Com Frobenius, aprendeu o significado do
poder do livro impresso. Frobenius e sua família eram os grandes 428 editores
dos clássicos em 1500, incluindo clássicos da medicina.
Sua edição dos trabalhos de Hipócrates é, em minha opinião, um dos livros mais
lindos jamais impresso, no qual a felicidade da paixão do impressor se revela tão
poderosa quanto o conhecimento.
O que significam esses três homens e seus livros? — os trabalhos
de Hipócrates, a Utopia de More e O Elogio da Loucura de Erasmo? Para
mim representam a democracia do intelecto; e essa é a razão pela qual
Erasmo, Frobenius e Sir Thomas More permanecem em minha mente
como marcos gigantescos dessa época. A democracia do intelecto foi
gerada com o livro impresso, e os problemas por ela criados em 1500
persistem ainda hoje na base das nossas agitações estudantis. Por que
morreu Sir Thomas More? Porque seu rei o considerou um detentor do
poder. Mas, afinal, qual era a aspiração de More, e a de Erasmo ou a de
qualquer intelecto forte, senão a de ser um guardião da integridade?
O conflito entre a liderança intelectual e a autoridade civil se perde no tempo.
Quão antigo e amargo ele se me apresentou quando, vindo de Jerico, pela mesma
estrada trilhada por Jesus, divisei, no horizonte, os primeiros sinais de Jerusalém,
da mesma forma que deve ter acontecido a Ele no caminho de sua morte. Morte,
porque Jesus era então o líder intelectual e moral de seu povo, mas enfrentando
um poder constituído de tal maneira que a religião se tornara apenas um
instrumento do governo. Essa crise decisória foi reiteradamente o problema
central na vida dos líderes: Sócrates em Atenas; Jonathan Swift na Irlanda,
lutando entre a piedade e a ambição; Mahatma Gandhi na índia; e Albert
Einstein ao recusar a presidência do Estado de Israel.
Menciono o nome de Einstein deliberadamente porque ele era um cientista,
e estes constituem a liderança intelectual do século XX. Esse fato gera um
problema grave, porque a ciência também é uma fonte de poder que caminha
próxima ao governo, e a qual este tenta dominar. Mas, se a ciência se permitir
caminhar nessa direção, as aspirações do século XX vão se esboroar em uma
farsa de cinismos. Não nos devemos permitir alimentar nenhuma crença, uma
vez que crença alguma pode ser construída neste século, a não ser que esteja
baseada na ciência, na forma de um tácito reconhecimento da peculiaridade
humana, e no orgulho de seus dons e realizações. A ciência não cabe herdar a
Terra, mas, sim, herdar a imaginação moral; pois, sem isso, perecerão o homem,
suas crenças e sua ciência.
Devo trazer essas idéias para uma realidade concreta, e, para mim, o homem que
melhor as personifica é John von Neumann. Filho de uma família judia húngara,
nasceu em 1903. Se tivesse nascido cem anos antes, jamais teríamos ouvido falar
nele; pois teria passado sua vida fazendo o que fez seu pai e o avô antes deste,
isto é, tecendo comentários rabínicos sobre o dogma.
Em vez disso, foi uma criança prodígio da matemática, “Johnny”, até o fim
de seus dias. Em sua adolescência já escrevia artigos matemáticos. Antes de
completar vinte e cinco anos tinha realizado o grande trabalho nos dois campos
do conhecimento que o tornaram famoso.
Os dois assuntos estão relacionados, acho eu, com atividades lúdicas ou
jogos. Notem que, em um certo sentido, toda a ciência, todo raciocínio humano,
é uma forma de brinquedo. O raciocínio abstrato é uma neotínea do intelecto,
através da qual o homem se capacita a continuar levando a cabo atividades
destituídas de finalidade imediata (os outros animais brincam apenas enquanto
jovens), a fim de se preparar nas estratégias de longo alcance e no planejamento.
Trabalhei com Johnny von Neumann na Inglaterra, durante a
Segunda Guerra Mundial. Foi no interior de um táxi em Londres que ele
me falou pela primeira vez sobre sua Teoria dos Jogos — esse era um dos
seus locais favoritos para discussões sobre matemática. Sendo um
entusiasta do xadrez logo lhe perguntei se ele se referia à teoria dos
jogos afins àquela modalidade. Mas sua resposta foi negativa. “Não”,
disse ele. “O xadrez não é um jogo. O xadrez é uma forma bem-definida
de computação. Você pode não ser capaz de encontrar a solução correta,
mas, teoricamente, sempre há uma solução, um procedimento correto
para cada posição.” Agora, “jogos reais”, continuou, “em nada se
assemelham a isso. A vida real não é como no xadrez. A vida real
consiste em blefes, em pequenas táticas de despistamento, em perguntar
a si próprio o que o parceiro está pensando sobre qual será nosso
próximo movimento. É esse o tipo de jogo sobre o qual minha teoria se
interessa”.
Seu livro trata exatamente desse assunto. Não deixa de ser um tanto
quanto estranho encontrar em um livro volumoso e sério o título Theory
of Games and Economic Behavior (Teoria dos Jogos e Comportamento
Econômico), e no qual deparamos com um capítulo chamado “Poker e
Blefe”. Surpreendente e desanimador, mormente por estar coberto de
equações que lhe confere uma aparência pomposa. Aparência apenas, pois a
matemática não é uma atividade pomposa, menos ainda quando nas mãos de
uma mente extraordinariamente rápida e penetrante como a de Johnny von
Neumann. As páginas são percorridas por um tema intelectual que se desenvolve
tal qual uma melodia, em que o peso das equações nada mais representa do que a
orquestração de fundo, nos tons mais graves.
Nos últimos anos de sua vida John von Neumann tratou esse assunto de
uma maneira que considero ser a sua segunda grande idéia criativa. Tendo-se
conscientizado da importância tecnológica que os computadores iriam adquirir,
não descuidou de apontar claramente quão diferentes são as situações
enfrentadas na vida real daquelas simuladas nos computadores, exatamente
porque a elas não se pode impor as soluções precisas do xadrez ou dos cálculos
de engenharia.
Usarei meus próprios termos na descrição do trabalho de John von
Neumann, em vez de me valer de sua linguagem técnica. Ele fazia uma
clara distinção entre táticas a curto prazo e estratégias ousadas a longo
prazo. As táticas podem ser calculadas exatamente, mas as estratégias
não. O sucesso matemático e conceituai de Johnny foi justamente o de
mostrar que, a despeito disso, há maneiras de se planejar as melhores
estratégias.
O seu maravilhoso livro The Computer and the Brain (O Computador e
o Cérebro) foi escrito no último ano de sua vida; eram as Silliman Lectures
que deveria ter proferido, mas estava muito doente para fazê-las em
1956. Nelas, o cérebro é analisado como sendo possuidor de uma
linguagem, na qual as atividades de suas diferentes partes (do cérebro)
têm de ser interligadas e harmonizadas, de tal forma que apareça um
plano, um procedimento, integrando um majestoso concerto de vida —
nas ciências humanas receberia o nome de sistema de valores.
Na personalidade de Johnny von Neumann havia algo de afetuoso e
singular. Foi o homem mais inteligente que conheci, sem exceções. Era,
também, um gênio, na medida em que um gênio é um homem que teve
duas grandes idéias. Sua morte em 1957 representou uma grande
tragédia para todos nós. Certa feita, quando trabalhávamos juntos
durante a guerra, enfrentamos um problema, mas sua resposta foi
imediata: “Ah, não, não”, disse ele, “você não está vendo. O seu tipo de
visualização mental não lhe permite ver isto corretamente. Pense
abstratamente. Nesta fotografia de uma explosão o coeficiente diferencial
primário desaparece identicamente, em vista disso é que o coeficiente diferencial
secundário se torna visível”.
Como ele observou, essa não é minha maneira de pensar. Contudo, deixei-o
voltar para Londres. Eu fui para meu laboratório no campo. Trabalhei
intensamente noite adentro. Por volta da meia-noite havia chegado à resposta
que ele queria. Bem, John von Neumann sempre se deitava muito tarde, assim,
eu fui compreensivo e só o acordei depois das dez horas da manhã. Atendeu
minha chamada telefônica ainda na cama de seu hotel. Eu lhe disse: “Johnny,
você está absolutamente certo”. Sua resposta? “Você me acorda tão cedo assim
só para confirmar que estou certo? Por favor, espere até que eu cometa um erro”.
Embora isso possa soar como vaidade, não o era. Representa, sim,
uma definição real da maneira pela qual conduzia sua vida. No entanto,
ela encerra algo que me faz lembrar de como seus últimos anos de vida
foram desperdiçados. Não terminou o grande trabalho que, depois de
sua morte, tem sido muito difícil de continuar. E a razão disso está no
fato dele ter parado de perguntar a si mesmo sobre a maneira das outras
pessoas verem as coisas. Paulatinamente, foi-se assoberbando de
trabalho encomendado por firmas particulares, pela indústria e pelo
governo. Eram atividades que o situavam no centro do poder, masque,
de nenhuma maneira lhe acrescentavam conhecimentos ou intimidade
com as pessoas — as quais, ainda hoje, não decifraram a mensagem de
sua proposição sobre o que fazer da matemática da vida humana e da
mente.
Johnny von Neumann era um amante da aristocracia do intelecto. Mas essa
crença só pode destruir a civilização na forma que a concebemos. Se tivermos de
optar, que sejamos uma democracia do intelecto. Não podemos nos dar ao luxo
de perecer devido ao distanciamento entre o povo e o governo, entre o povo e o
poder, que se constituiu no fator determinante do fracasso, tanto da civilização
egípcia, como da babilônica, e da romana, igualmente. Esse distanciamento só
pode ser evitado, só pode ser eliminado, se o conhecimento permanecer nos lares
e nas cabeças daquelas pessoas sem nenhuma ambição de exercer controle sobre
as outras; de forma nenhuma deverá ser entronizada no centro do poder
decisório.
Não deixa de ser uma dura lição. Afinal de contas, este é um mundo
dirigido por especialistas: mas não representa ele o que chamamos uma
sociedade científica? Não, não representa. Em uma sociedade científica
o papel do especialista consiste em tarefas tais como fazer com que as
instalações elétricas funcionem. Entretanto, cabe a você, cabe a mim,
saber como a Natureza funciona, e de que forma (por exemplo) a
eletricidade é uma de suas expressões na luz e em meu cérebro.
Nós não progredimos na solução do problema da vida e da mente que, por
um tempo, se constituiu na preocupação de John von Neumann. Será possível
encontrar fundamentos felizes para as formas de comportamentos que julgamos
convenientes para o homem global ou a sociedade realizada? Vimos que o
comportamento humano é caracterizado por um longo atraso interno,
preparatório para o desencadeamento de ações. A atividade biológica subjacente
a essa inércia se estendeu ao longo de toda a prolongada infância e a lenta
maturação do homem. Mas, o constrangimento da ação no homem tem
significado mais amplo. Nossa maturidade, nossa responsabilidade e nossa
humanidade são mediadas por valores, interpretados por mim como sendo
estratégias globais, através das quais equilibramos os efeitos de impulsos
conflitantes. Não é verdade que conduzimos nossas vidas à semelhança de um
programa computacional para solução de problemas. Seguindo uma tal
abordagem os problemas da vida se tornam insolúveis. Ao contrário, moldemos
nossa conduta sobre princípios que a orientam. Elaboramos estratégias éticas ou
sistemas de valores, de tal forma que as recompensas a curto prazo sejam
pesadas na balança do objetivo final, das satisfações a longo prazo.
Realmente, estamos em um maravilhoso limiar do conhecimento. A
escalada do homem está sempre oscilando em uma gangorra. Ao elevar o pé, na
esperança de galgar mais um degrau, há sempre uma sensação de incerteza
quanto a se esse movimento nos levará realmente para frente. E o que temos pela
frente? Pelo menos a tarefa de organizar tudo aquilo que já aprendemos, em
física e em biologia, no sentido de um entendimento da situação a que
chegamos: enfim, no que é o homem.
O conhecimento não se constitui em um borrador de fatos. Acima de tudo é uma
responsabilidade pela integridade do que somos, primariamente daquilo que
somos enquanto criaturas éticas. Mas, 436 uma integridade esclarecida não pode,
de maneira nenhuma, permitir que outras pessoas dirijam os destinos do mundo
enquanto nós mesmos continuamos a nos nortear por uma colcha de retalhos de
preceitos morais, extraídos de crenças absolutas. Aí está a questão realmente
crucial dos nossos dias. Pode-se considerar dispensável aconselhar as pessoas a
aprenderem equações diferenciais ou a seguir cursos de eletrônica ou de
programação de computador. No entanto, se daqui a cinquenta anos não se tiver
chegado ao entendimento das origens do homem, sua história, seu progresso, e
se isso não constituir matéria comum a qualquer livro escolar, nós simplesmente
deixaremos de existir. A matéria curricular dos livros escolares de amanhã será
tecida na aventura de hoje; e nessa aventura é que estamos engajados.
A contemplação desta nossa paisagem ocidental atual me carrega de
profunda tristeza, na medida em que detecto uma perda de determinação, um
sentimento de fuga do conhecimento — fuga para onde? Para o Zen Budismo;
para questionamentos falsamente profundos, tais como “Não seríamos, no fundo,
apenas uma espécie animal?”; para percepções extra-sensoriais e mistérios.
Essas paisagens não fazem parte do caminho o qual agora estamos aptos a
percorrer, se a isso nos devotarmos: o que leva ao conhecimento do homem.
Somos o experimento singular da natureza, no sentido de provar que a
inteligência racional é mais rica e frutífera do que o reflexo. O conhecimento é
nosso destino. O autoconhecimento, reunindo finalmente a experiência das artes
e as explanações da ciência, nos espera à nossa frente.
Essas considerações pessimistas sobre um retraimento da civilização
ocidental podem parecer insólitas no contexto da visão essencialmente otimista
que tenho adotado em relação à escalada do homem; meu entusiasmo teria
arrefecido nesta altura? É claro que não. A escalada do homem continuará. Mas
não se pretenda que prossiga empurrada pela civilização ocidental da maneira
como ela hoje se encontra. Neste momento estamos sendo avaliados na balança.
Se desistirmos, sempre haverá um degrau seguinte — mas não será pisado por
nós. Não recebemos nenhuma garantia que não tenha sido fornecida à Assíria, ao
Egito e a Roma. Também estamos esperando nos tornar o passado de alguém, e
não, necessariamente, nosso futuro.
Representamos uma civilização científica: e isso significa uma civilização
na qual o conhecimento e sua integridade são cruciais. Ciência é apenas a
palavra latina para designar conhecimento. Se não galgarmos o próximo degrau,
isso será feito por outros povos, da África, da China. Deveria eu tomar essa
eventualidade tristemente? Não, não em si mesma. A humanidade tem o direito
de mudar sua cor. No entanto, ligado como estou à civilização que me nutriu, eu
realmente me sentiria infinitamente triste. Eu, a quem a Inglaterra formou, a
quem ela ensinou sua língua e sua tolerância e entusiasmo pela busca intelectual,
certamente ficaria muito desolado (como vocês também) se, daqui a uns cem
anos, Shakespeare e Newton fossem considerados fósseis históricos na escalada
do homem, à semelhança do que acontece com Homero e Euclides.
Iniciei esta série no vale do Omo, na África Oriental, e aqui retorno
porque algo que aconteceu neste lugar permaneceu em minha mente
desde aquele primeiro encontro. Na manhã do dia em que éramos para
dar início à organização do primeiro capítulo da série, um pequeno
avião decolou de nossa pista levando a bordo o cameraman e o técnico
de som, mas, segundos após ter subido, o avião caiu. Milagrosamente, o
piloto e os dois outros homens saíram ilesos.
Naturalmente, esse evento mau agourado me marcou profundamente. No
momento em que me preparava para fazer o passado desfilar, o presente insinua
sorrateiramente sua mão na página escrita da história e diz: “É aqui. É agora”.
História não são eventos, mas, sim, pessoas. Além disso, não são pessoas apenas
recordando; é o homem vivendo seu passado no presente. História é o ato
instantâneo de decisão do piloto, que cristaliza em si todo o conhecimento, toda
a ciência, tudo aquilo que foi aprendido desde o surgimento do homem.
Permanecemos inativos por dois dias à espera de outro avião. Nesse
intervalo, em conversa com o cameraman, perguntei-lhe delicadamente,
mas, talvez, sem muito tato, se ele não preferia que algum outro
realizasse a filmagem aérea. Ao responder-me, disse: “Tenho pensado
nisso. Vou sentir medo de subir amanhã, mas eu vou fazer a filmagem.
Esse é meu dever”.
Estamos todos com medo — de nossa presunção, de nosso futuro, do
mundo. Tal é a natureza da imaginação humana. Contudo, cada homem, cada
civilização, foi para a frente em razão de seu engajamento naquilo que havia
decidido realizar. O compromisso pessoal de um homem com seu ofício, o
compromisso intelectual e o compromisso emocional, unidos em um só
propósito, fizeram a Escalada do Homem.
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