Mito Do Amor Materno
Mito Do Amor Materno
Mito Do Amor Materno
(Prof. Leandro)
1 INTRODUÇÃO
1
Bacharel em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. [email protected]
É possível constatar através de Ariès (1986) e Poster (1979) que os conceitos de famí-
lia, infância e de maternidade, encontram-se articulados na história, afetando-se mutuamente e
variando conforme os diversos contextos culturais, sociais, econômicos e políticos de cada
época. Poster (1979) apresenta quatro modelos de estrutura de família existentes entre os sé-
culos XIV e XX, o que confirma o argumento de que a família é uma construção social e,
portanto, apresenta múltiplos modelos contextualizados no tempo e no espaço geográfico,
histórico e social.
A família aristocrática, dos séculos XVI e XVII, se constituía em um agrupamento
constituído de várias pessoas: parentes, dependentes, criados e clientes. Segundo Ariès
(1986), dentro desta família a criança era mal vista e tão logo perdia a sua fragilidade física
era misturada aos adultos em suas atividades produtivas.
As esposas dos aristocratas eram figuras cuja função constituía em ter filhos e organi-
zar a vida social sem se preocupar com a criação das crianças. Conforme Ariès (1986, p.117),
nesse contexto “a aprendizagem não se exercia na condição formal da escola, mas confundia-
se com o exercício das tarefas domésticas cotidianas, sendo o convívio com os adultos parte
importante deste processo”. Poster (1979) ressalta que como a vida das crianças nas famílias
aristocráticas acontecia em meio a várias figuras adultas, que moravam com elas, não havia
identificação parental e a suas experiências emocionais eram independentes das de seus pais.
Após a revolução industrial, Poster (1979, p.215) afirma que “a família transitou entre
a sociabilidade aldeã para a privacidade isolada”. De acordo com Ariès (1986), esta transição
ocasionou principalmente a retirada das crianças da vida comum.
Para Poster (1979), é a partir de meados do século XIX que floresce uma abundante li-
teratura sobre a importância da conservação das crianças para o fortalecimento das famílias.
Segundo ele, nesse momento, médicos, administradores e também militares colocavam em
questão os costumes educativos de seu século visando afirmar o sentimento de família e pro-
duzindo a normatização social e familiar. Ariès (1986) ressalta que nos tempos modernos pas-
sou-se a admitir que a criança não estivesse madura para a vida, viu-se que era preciso subme-
tê-la a um regime especial, o regime da educação, antes de deixá-la unir-se aos adultos.
De acordo com Poster (1979), a partir do século XIX instaura-se um novo padrão fa-
miliar associado à burguesia. Nele, os filhos foram reavaliados tornando-se seres importantes
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v. 2, n. 4, jul./dez. 2017 – ISSN 2448-0738
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tempo. Neste período, como uma prática generalizada, o recém-nascido era entregue a uma
Ama-de-leite, logo quando saia do ventre materno.
Esse sentimento pode existir ou não existir; ser e desaparecer. Mostrar-se forte ou
frágil. Preferir um filho ou entregar-se a todos. Tudo depende da mãe, de sua histó-
ria e da História. Não, não há uma lei universal nessa matéria, que escapa ao deter-
minismo natural. O amor materno não é inerente às mulheres, é adicional.
(BADINTER, 1985, p. 367).
Para Andolfi (1988) o mito pode ser considerado como um conjunto de realidades em
que coexistem elementos reais e da fantasia. Percebe-se o Mito do Amor Materno surgindo
apoiado nos discursos médico, religioso e político, para legendar principalmente uma realida-
de de interesse econômico. De acordo com Badinter (1985) e Venâncio (2002) era preciso
diminuir a taxa de mortalidade das crianças abandonadas e entregues às amas de leite, para
aumentar a produtividade e satisfazer os ideais de uma economia regida pelo modo de produ-
ção capitalista e sob o domínio da família burguesa.
Entende-se que uma vez instaurado, o Mito do Amor Materno foi inscrito na memória
familiar dos indivíduos e transmitido entre as gerações como uma crença irrefutável a partir
do fim do século XVIII. Desde esta época percebe-se que o Mito do Amor Materno atuou
como um elemento organizador das sociedades, de forma a possibilitar, através da crença no
amor materno inato, o estabelecimento de regras de comportamento, que interessavam aos
Estados, concernentes às mulheres mães.
Como um lugar sagrado, interditado de conversação, a maternidade passou a ser vista
como algo do instinto da mulher, que se realizaria plenamente ao ser mãe. Badinter (2011,
p.20) aduz o amor materno como “dogma inquestionável da subjetividade daquela que não
desejaria nada mais do que ser a mãe perfeita”. E nesta lógica, esta autora aponta que o bebê
seria construído como objeto da suposta “natureza maternal da mulher”.
Atualmente, no século XXI, a realidade observada por Badinter (2011), é de uma mu-
lher em conflito com o Mito do Amor Materno. Depreende-se que hoje em dia, este mito ain-
da permeie o imaginário social coletivo, contudo, acredita-se que ele é posto em questão a
partir dos outros domínios que a mulher veio a conquistar.
so de educação formal e, assim, toda a educação dada até então à mulher tinha o propósito de
convencê-la do seu dever de ser submissa ao pai e/ou ao marido, obedecendo-os e respeitan-
do-os.
Em concordância com essa visão Badinter (1985, p.145) escreveu que os homens se
dirigiam às mães para dizer-lhes que não havia ocupação mais agradável do que zelar pelos
filhos: “Não há dever mais delicioso”. Badinter (1985) ainda observa que a sociedade assegu-
rava à boa mãe que seu marido lhe seria mais fiel, e que viveriam uma união mais doce por
ela ser uma boa mãe.
De acordo com Badinter (2011) a transformação desse lugar recluso da mulher passou
a se instalar no início do século XIX, quando o governo reconheceu a necessidade de educa-
ção da população feminina. Esta autora observa que ao final desse mesmo período, algumas
publicações abordavam a relação entre a mulher e a educação, mas sem pensar em um projeto
amplo a todas as mulheres porque o conhecimento não passava de um instrumento de reco-
nhecimento daquelas provenientes das classes mais abastadas.
Moreira (2009) mostra que com advento da Revolução Industrial e a consolidação do
sistema capitalista, no fim do século XIX, inúmeras mudanças ocorreram no modo de produ-
ção e organização do trabalho feminino, uma vez que houve necessidade de que boa parte da
mão de obra feminina se concentrasse nas fábricas a fim de contribuir com o aumento de sua
produtividade.
Além desse fator, Moreira (2009) ressalta que o contexto das duas Guerras Mundiais,
no século XX, também favoreceu o acesso da mulher ao mercado de trabalho, uma vez que
quando os homens iam para as frentes de batalha as mulheres passavam a assumir os negócios
da família. Conforme explicita esse autor, a transição de um modelo tradicional de maternida-
de, em que a mulher era definida essencial e exclusivamente como mãe, para um modelo mo-
derno de maternidade, em que a mulher, entre outras possibilidades, é também definida como
mãe, emerge com a consolidação da sociedade industrial, com o crescente acesso da mulher à
educação e seu ingresso no mercado de trabalho, apesar de que a presença da figura feminina
no lar ainda tivesse força hegemônica.
Para Badinter (2011) com o advento do movimento feminista, a partir da metade do
século XX, a maternidade passa a assumir uma dimensão reflexiva a ser analisada pensando
nas condições econômicas, sociais e culturais das mulheres e do casal. Scavone (2001) aponta
que desde 1949 com Simone Beauvoir na França, antecedente de Elisabeth Badinter (1985)
neste mesmo país, contesta-se o determinismo biológico ou destino divino associado à mater-
nidade ao afirmar que o ser era tornar-se, que o amor materno era uma conquista advinda da
relação entre mãe e filho e não algo da ordem somente do instinto.
Nesse sentido, Scavone (2001) aponta que a maternidade como escolha é um fenôme-
no contemporâneo, que historicamente foi se consolidando no decorrer do século XX, no qual
as transformações econômicas, familiares, os avanços tecnológicos e os movimentos feminis-
tas constituíram-se como elementos importantes para esse processo e para a relação que então
se estabeleceu com o ser mãe e o ser mulher.
Sobre os avanços tecnológicos, ressalta-se a descoberta das pílulas anticoncepcionais e
a disseminação das técnicas contraceptivas também no fim do século XX que, conforme
observam Barbosa e Coutinho (2015), permitiram que as mulheres se tornassem responsáveis
pela sua fecundidade/fertilidade, podendo optar por ter ou não ter filhos. Ainda ressalta-se o
início do uso das mamadeiras, que possibilitou de acordo com Scavone (2001) tanto a divisão
de tarefas, pois permitia a participação do homem no cuidado com a criança, como facilitava a
entrada das mães no mercado de trabalho.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
a respeito das práticas relacionadas à maternagem produzidas e marcadas por discursos soci-
ais e científicos de cada época, que nos levam a concluir que a concepção sobre ser mãe seria
produto das condições e circunstâncias de um dado momento histórico.
Como discutido neste artigo, foi entre os séculos XVIII e XIX que, na Europa, devido
à diminuição da mão de obra produtiva e do alto índice de mortalidade infantil, que se im-
plantou a representação da maternidade tal como a conhecemos hoje: baseada na idéia do
amor natural e espontâneo das mulheres por seus filhos.
A partir do século XVIII, as mulheres passaram a ser consagradas como eixo da famí-
lia responsáveis pelo cuidado e pela educação dos filhos. E, nesse contexto, a devoção e a
presença vigilantes da mãe surgiram como valores essenciais, sem os quais os cuidados e a
atenção necessários ao bem-estar da criança não poderiam efetivar-se.
Logo, a partir da pesquisa bibliográfica realizada neste trabalho foi possível obter uma
comprovação de que a maternidade está envolta em um Mito engendrado por vários discursos.
Um mito que contempla concepções de amor incondicional; maternidade como felicidade
feminina suprema; instinto materno e que permeia o imaginário social até a atualidade.
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