Psicopatologia Crítica Vírginia Moreira
Psicopatologia Crítica Vírginia Moreira
Psicopatologia Crítica Vírginia Moreira
Virginia Moreira**
Universidade de Fortaleza, Brasil
Uma Psicopatologia Crítica não tem a ambição de ser um enfoque ou, menos ainda,
uma disciplina. Trata-se de uma compreensão des-ideologizadora das manifestações
psicopatológicas onde, a partir da compreensão do complexo arcabouço ideológico que
sustenta a psicopatologia hoje, se construam caminhos para uma prática clínica que vá
além, perpassada pela utopia de uma psicologia realmente comprometida com o humano.
No lastro da Psicologia Crítica, esta compreensão crítica da psicopatologia põe em
cheque a epistemologia individualista que perpassa as abordagens tradicionais da
psicopatologia, marcadas pela ideologia individualista que faz parte do mundo ocidental
como um todo. Transcende o modelo etiológico onde a origem e responsabilidade da
doença mental é atribuída a um indivíduo e de um ponto de vista interno. Entende a
psicopatologia como mutuamente constituída em seus múltiplos contornos – não apenas
biológicos e psicológicos como também históricos, sociais, políticos, antropológicos –
portanto, culturalmente produzidos a partir de processos ideológicos.
Mas antes de apresentar para vocês o que estou chamando de psicopatologia crítica,
vejamos a perspectiva que estou tomando para pensar esta psicopatologia crítica:
Em La doute de Cézanne Merleau-Ponty (1966) faz uma analogia entre sua filosofia
e a pintura de Cézanne, mostrando que nesta pintura se pode constatar que o real se mistura
com a realidade, deformando, assim, a realidade. Para Merleau-Ponty (1966) a pintura de
Cézanne, assim deformada e com múltiplos contornos é muito mais real que uma
fotografia, por exemplo, que pretende retratar a realidade exata de um determinado
momento. A fotografia perde o movimento e separa o real do imaginário, o que a
transforma em algo fictício, irreal, já que a realidade, tal como percebida, está sempre em
movimento e é sempre deformada, sobretudo porque não existe uma demarcação definida
entre o real e o imaginário (Moreira, 1998 e 2001). Nas palavras de Merleau-Ponty (1966)
“Não assinalar nenhum contorno seria privar os objetos de sua identidade. Assinalar
somente um, significaria sacrificar a profundidade, quer dizer, as dimensões que nos facilita
*
O texto desta palestra foi elaborado a partir do livro Moreira, V. & Sloan, T. (no prelo). Personalidade,
Ideologia e Psicopatologia Crítica. São Paulo: Escuta, com fins de apresentção em forma de conferencia.
**
Psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica, Visiting Scholar como Fulbright Fellow no Programa de
Medicina Antropológica do Medical School da University of Harvard, E.U.A., Professora Titular do
Mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza. Av. Washington Soares 1231, Fortaleza, Ceará,
Brasil. E-mail: [email protected]
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a coisa” (p. 25). O desenho resulta, assim, da cor, e não de um traço único e o mundo se
coloca em sua espessura, como uma massa densa, um organismo de cores, e de linhas. A
cor lhe dá textura e consistência através de seus múltiplos contornos e não de um traço
único e limitante, de maneira que a pintura de Cézanne retrataria, assim, o pensamento de
Merleau-Ponty pela ruptura definitiva das dicotomias, através do reconhecimento das
ambigüidades inerentes ao ser humano na idéia de múltiplos contornos (Moreira, 1998 e
2001).
Em estudos anteriores (Moreira, 1998 e 2001) utilizei esta idéia de múltiplos
contornos para uma compreensão fenomenológica mundana da psicopatologia, propondo a
compreensão do psicótico como a aquele que fica sem contornos. O vivido na psicose,
fazendo uma analogia com a pintura de Cézanne, é pura cor que se dispersa sem limites,
ocasionando muito sofrimento psíquico. Por outro lado o neurótico contemporâneo (que
incluiria as síndromes de caráter enrijecedor da personalidade caracterizadas por
comportamentos impulsivos e ansiosos) tão pouco vive um múltiplo contorno com o
mundo, mas um contorno rígido, supostamente exato e definido com pouca ou nenhuma
cor, sendo puro traço, com a mesma exatidão mentirosa que Merleau-Ponty (1966) com
aponta na fotografia. Nesta perspectiva, o doente mental teria sua existência estacionada,
sem movimento, seja por encontrar-se sem contornos com a realidade, seja por encontrar-se
com contornos rígidos, vivendo, em ambos os casos, em um mundo descolorido.
Retomo, agora, esta compreensão da psicopatologia a partir dos múltiplos contornos
para desenvolver uma psicopatologia crítica compreendida de forma des-ideologizadora a
partir da relação entre o endógeno, a cultura e a situação.
Perspectiva histórica
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De lá para cá surgiram várias abordagens em psicopatologia. No entanto, uma
rápida visão histórica da psicopatologia mostra que esta em nenhum momento adotou uma
perspectiva realmente crítica do fenômeno psicopatológico em nenhuma de suas principais
perspectivas tais como a Psicopatologia Geral, a Psicopatologia Fenomenológica, a
Psicopatologia Fundamental, a Etnopsicopatologia ou a Psicopatologia Social.
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Penso que uma compreensão filosófica da psicopatologia, baseada na superação de
um pensamento dualista através de uma visão mundana da psicopatologia, será fundamental
para os princípios que se seguem, prioritariamente vinculados a uma perspectiva
desenvolvida pela psicologia crítica (Fox & Prilleltensky, 1996; Sloan, 2000).
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de tratamentos psi, tais como a psicoterapia ou a psicofarmacologia, está dirigido ao
tratamento do indivíduo, dado que a doença mental é vista de forma totalmente
individualista, o que pretende ser superado em uma psicopatologia crítica.
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Uma psicopatologia crítica prioriza a etiologia [aitología, do grego e aetilogia, do
latim], enquanto o estudo da origem do fenômeno psicopatológico. Trata-se de
compreender o que determina a experiência psicopatológica para, então, poder tratá-la a
partir de sua constituição. O tratamento dos sintomas sem o tratamento da origem da
doença é simples paliativo, por isso uma psicopatologia crítica resgata sua vocação
etiológica. O que se encontrará no estudo das origens das manifestações psicopatológicas,
entendidas de forma não individualista e com uma lente cultural, tal como indicam os itens
anteriores, é que, em grande parte, os doentes mentais são fruto de sociedades doentes, de
desigualdade social, de pobreza e exploração humana, além dos inúmeros processos
ideológicos que instauram o vazio, a despotencialização e a falta de significado da vida.
Esta é uma descoberta assustadora porque, se assumimos que esta constitui a doença, o
tratamento da psicopatologia será muito mais complexo que o que vem sendo pensado
tradicionalmente no âmbito da Psiquiatria ou da Psicologia Clínica, devendo priorizar
processos políticos e comunitários que possibilitem e preservem a saúde mental.
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6. A psicopatologia crítica é des-ideologizadora. Este é talvez o principio
central desta abordagem da psicopatologia. Na medida em que entende a doença mental
com as lentes dos princípios anteriores, sua compreensão será essencialmente des-
ideologizadora, utilizando-se deste conceito tal como definido por Martin-Baró (1985). Ou
seja, na medida em que se entende a patologia mental como culturalmente produzida,
também a partir de processos ideológicos, a psicopatologia, enquanto o lugar de seu estudo,
deverá ser des-ideologizadora.
Entendendo ideologia como idéias ou imagens que sustentam injustiças sociais
promovendo interesses particulares (Sloan, 1997), uma psicopatologia crítica buscará a
compreensão ideológica da situação do doente mental dentro da estrutura sócio-histórica
em que este vive, se relaciona, trabalha e adoece. Ou seja, se perguntará qual a função da
doença neste contexto ou em que medida existe um grupo específico da sociedade que tem
interesse em que ela exista. O exemplo mais óbvio desta situação é o da atual epidemia da
depressão. Esta doença existe agora, como existiu desde a Grécia antiga. Mas se, por um
lado, os modos de viver narcísicos do mundo contemporâneo incentivam a depressão, fica
difícil identificar até que ponto se diagnostica a depressão de fato ou o simples sofrimento
psíquico. Afinal de contas a palavra « triste » está quase desaparecendo do vocabulário do
sujeito pós-moderno, que cada vez menos expressa sua tristeza, enquanto sofrimento
psíquico, para pensar-se cada vez mais como alguém que está « deprimido », necessitando,
portanto, tratamentos psi de toda ordem. E está aí todo o mercado psi para tratá-lo (ou
explorá-lo?).
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