Confronto Armado
Confronto Armado
Confronto Armado
Militar norte-americano chega ao local onde um carro-bomba atacou um comboio da OTAN, em Cabul, Afeganistão, 16 Mai 13.
Hizb-e-Islami, um grupo militante muçulmano, aceitou responsabilidade pelo ataque durante a madrugada que matou muitas pessoas na
explosão e feriu várias outras.
A Ética, o Combate e a
Decisão do Militar de
Matar
Capelão (Maj) Sean Wead, Exército dos EUA
o que deixa os comboios vulneráveis a ataques. Caso combate. Na noite anterior, esses mesmos insurgentes
se depare com crianças na estrada, o soldado recebeu haviam ferido militares norte-americanos com um
a ordem de atropelá-las, se elas se recusarem a sair do dispositivo explosivo improvisado detonado ma-
caminho1. nualmente — os feridos eram integrantes da mesma
Quatro SEALs (integrantes das Forças Especiais da fração que agora detinham os insurgentes sob a mira
Marinha dos EUA) são lançados em uma aldeia isola- de armas. Depois de conferir com o comandante do
da no Afeganistão para identificar o paradeiro de um batalhão, o sargento do pelotão — que havia jurado
comandante do Talibã. A operação é exposta quando proteger a vida de seus soldados — movimenta-se
são descobertos por um menino pastor e seus compa- lentamente, posicionando-se atrás dos insurgentes
nheiros. Os SEALs se angustiam ao terem de decidir se ajoelhados. Retira sua pistola M9 Beretta e dispara na
devem matar os pastores e continuar com a missão ou cabeça de cada um dos prisioneiros.3
deixar que eles escapem. Caso os libertem, outros se- Esses tipos de dilema moralmente complexo da
rão, sem dúvida, avisados sobre sua presença, levando guerra podem ser considerados parte do que é co-
ao provável fracasso da missão e às suas mortes2. mumente chamado “névoa da guerra”. Essa ideia,
Quatro insurgentes, com os olhos vendados, ajoe- atribuída ao célebre estrategista Carl von Clausewitz,
lham-se diante da fração de militares que os capturou. refere-se à incerteza e à ambiguidade que permeiam
Esses mesmos insurgentes haviam sido capturados as operações militares4. O ex-Secretário de Defesa,
e entregues ao governo iraquiano duas vezes antes. Robert S. McNamara, explica: “O que a névoa da
Em ambas as ocasiões , foram soltos e voltaram ao guerra significa é — a guerra é tão complexa que
está além da capacidade da mente humana com- que é vinculado intrinsecamente à confiança e à fé no
preender todas as suas variáveis. Nosso juízo, nosso governo dos Estados Unidos da América (EUA).
entendimento, não é adequado e matamos pessoas As decisões da Nação precisam ser percebidas como
desnecessariamente”5. justas e implementadas para proteger o povo norte-a-
mericano ou seus aliados, ao invés de serem motivadas
Uma Decisão Moral Complexa por ganhos egoístas. Isso significa que, para manter a fé
No combate, os militares tomam decisões de vida e no governo, os militares precisam acreditar que a guer-
morte. A magnitude dessas decisões absolutas está quase ra em que combatem é justa. O padrão para determinar
além da compreensão; não existindo remédio que possa se a guerra é justa é conhecida como teoria da guerra
mudar o resultado de matar, seja justificável ou não. justa, ou guerra justificada6.
Quando frente a frente com a possibilidade de matar A teoria da guerra justa consiste nos critérios que
alguém, militares tentam, frequentemente, sintonizar tratam da justiça de ir à guerra (jus ad bellum, ou direito
seus valores morais e legais com sua missão, sua seguran- à guerra), da justiça durante a guerra (jus in bello, ou
ça e a segurança dos companheiros. Talvez lutem contra direito na guerra) e da justiça após a guerra (jus post
a decisão de matar e, depois, tenham dificuldades com a bellum). A teoria abrange a aplicação sistemática do ra-
lembrança de seu ato muitos anos mais tarde. ciocínio moral para a decisão de empreender o conflito
Ao tomarem decisões sobre matar, os militares armado contra outro Estado. Inclui a conduta durante
fazem escolhas morais. Quando têm tempo para e após a conclusão da guerra. A teoria da guerra justa
considerar um problema moral e tomar uma decisão, defende que, às vezes, a guerra talvez seja justificada
seu processo mental geralmente integra uma base ética e preferível a uma paz imoral7. Contudo, se a guerra
de conceitos pessoais de virtude que influenciam a ocorrer, precisa ser orientada pela moralidade, e os
intenção, as regras que orientam ações e as prováveis aspectos mais perversos da guerra precisam ser dimi-
consequências resultantes da decisão. Ainda se todas nuídos, limitados ou eliminados.
essas coisas sejam entendidas teoricamente, a aplicação Tanto o jus ad bellum e o jus post bellum são de
desses conceitos morais não é um costume do militar grande importância quando a liderança de uma nação
comum. Portanto, quando uma decisão precisa ser considera a guerra. Suas implicações são estratégicas
tomada e uma ação feita imediatamente, a consciência porque se aplicam ao Estado, provendo parâmetros das
está desengajada moralmente. A gravidade da decisão é ações durante e após a guerra. Além disso, as implica-
apenas considerada posteriormente. ções estratégicas das decisões tomadas pelas autorida-
Sob a densa névoa da guerra, os militares precisam des políticas e militares superiores têm efeitos táticos e
mais do que esses enquadramentos frequentemente operacionais imediatos nas forças militares que execu-
conflitantes que são classificados pelo valor dominante tam a guerra.
e apenas contemplados quando oferecido a oportunida- Os militares solicitados de dar as suas vidas ou
de após o fato. Os militares precisam de uma maneira de tomar vidas na defesa do seu país merecem uma
de entender e aplicar as orientações morais e internali- justificativa muito bem pensada pelo seu sacrifício e
zar os padrões morais quase como instintivo para todas labor. Apenas exigir que os militares façam seu dever
as suas ações. Este artigo propõe que os princípios da com obediência cega é um abuso em uma força militar
teoria da guerra justa podem ajudar os militares a de- profissional. Os militares sofrerão dos efeitos posterio-
senvolver uma visão moral clara sobre o momento em res de tais ações pelo resto de suas vidas. Eles merecem
que tiverem de tomar a decisão de matar ou não. entender o significado e finalidade das suas ações para
Idealmente, militares tiram vidas com a crença de que possam controlar e dar um peso as consequências.
que farão do mundo um lugar melhor — ou pelo menos Da mesma forma, civis de uma democracia exigem
prevenir que piore. Acreditam que suas ações na guerra, a justificativa para prover tanto sangue quanto fundos
embora desagradáveis, são necessárias. Eles se sentem a qualquer empreendimento. Sun Tzu, no manuscri-
moralmente responsáveis pela proteção e defesa de to mais antigo sobre a guerra, alega em seu “Primeiro
outros contra ataque malicioso e agressão ilegal. Claro, Fator Fundamental” que antes de ir à guerra, o Estado
esse é um entendimento idealizado do dever do militar, deve considerar que é a Lei Moral que faz com que o
comandantes no campo de batalha10. No entanto, para Justin Watt, que serviu no pelotão Black Hearts,
entender as decisões morais no combate, precisa-se, Companhia B, 1o Batalhão, 502o Regimento de
também, entender a comunidade do combatente. Infantaria, 2a Brigada de Combate, 101a Divisão
Aeroterrestre, descreve como seus chefes, após nove
A Sociedade do Combatente e a meses em uma das áreas mais hostis do Iraque, para-
Liderança Moral ram de se importar com a disciplina com respeito das
A sobrevivência pessoal no campo de batalha é pequenas coisas:
um efeito de grupo. A ética individual e a aderência Eles pararam de corrigir os soldados quando
aos princípios do jus in bello são utilizadas dentro do usavam os termos pejorativos [como “cabeça
contexto do grupo, dentro da sociedade dos comba- de trapos”] ao referir-se aos iraquianos por
tentes. O militar pertence a círculos concêntricos de causa dos seus turbantes. Essa era a atitude
grupos, desde equipe, esquadra, pelotão e companhia, geral. Simplesmente não se importavam
até batalhão, brigada, Divisão e até escalão mais alto. mais. Isso transmitiu um sinal imediato aos
A dinâmica do grupo é essencial para a sobrevivência, soldados que certas atitudes e até ações agora
e soldados lutam nos menores grupos da sociedade do eram permissíveis. A partir desse ponto, tudo
combatente. piorou rapidamente14.
Nem todos são iguais dentro do grupo, alguns têm Alguns integrantes do pelotão de Watt cometeriam
status devido ao posto, habilidade técnica ou personali- algumas das piores atrocidades da Guerra do Iraque,
dade forte. Não obstante, o medo de perder a reputação envolvendo estupro e assassinato. Da mesma forma,
nesses grupos devido a um deslize moral, a uma falta um militar que participou no infame massacre de My
de coragem, ou à ineptidão durante a luta pode ser um Lai durante a Guerra do Vietnã descreve as suas ações
motivador mais forte do que evitar a perda de vida11. depois da liderança ter abandonado toda a orientação
Esses pensamentos são compartilhados por Albert moral:
Bandura em sua teoria cognitiva social, onde declara: Não foi necessário buscar pessoas para matar,
As pessoas não operam como entidades mo- simplesmente estavam lá. Cortei as suas
rais autônomas impermeáveis às realidades gargantas, decepei as mãos, cortei fora as
sociais nas quais estão imergidas. A entidade suas línguas e os escalpei. Eu fiz isso. Muitas
moral é situada socialmente e empregada em pessoas fizeram isso, e eu apenas segui seu
formas particulares, dependendo das condi- exemplo. Eu simplesmente perdi todo o senso
ções de vida, sob as quais as pessoas efetuam de direção15.
seus negócios12. As índoles básicas e cruéis escondidas nas profun-
Infelizmente, as normas de um grupo podem didades da alma humana podem vir à tona durante o
levar um indivíduo a cometer infrações extremas dos estresse do combate, surpreendendo aqueles que acre-
padrões éticos derivados do jus in bello. O grupo e os ditam que tais naturezas não existem por si próprias.
líderes, também, podem enfatizar o comportamento Alguns atos de crueldade procedem naturalmente
imoral que leva ao desengajamento do sentido moral do das falhas do caráter, enquanto outros são um efeito
militar13. colateral da brutalidade mecanizada do Estado que é
Se a liderança da Unidade começa a deixar de intrínseca à guerra. Sem uma autoridade externa para
considerar mesmo as pequenas infrações da disciplina, enfatizar e manter os padrões, até aqueles que entram
especialmente aquelas relacionadas com a dignidade no combate com um sentido de princípios morais po-
humana, os militares podem facilmente perder suas dem perder o seu caminho.
crenças morais centrais. Também, o tipo de compor- Os comandantes, aprovados oficialmente ou esco-
tamento que deve proceder das crenças morais pode lhidos pelo consenso do grupo, são essenciais para a
ser perdido. Esse processo pode mudar rapidamente conduta moral da Unidade. A liderança moral daqueles
o ambiente moral até mesmo das melhores Unidades, em comando, exemplificada pelos princípios morais
fazendo com que sejam suscetíveis ao desengajamento e estabelecidos no jus in bello, pode acalmar aqueles ao
aos resultantes crimes de guerra. redor deles que estão afligidos pelos horrores da guerra.
pela vitória. Tal visão é moralmente repugnante para e da violência leva a condição humana aos seus limites
os seguidores das religiões cristãs, como ilustrado no e, nessa atmosfera, a sobrevivência física pode dominar,
Evangelho Segundo Mateus: “Pois que aproveita ao ho- relegando todos os outros interesses a uma posição
mem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma?”17 secundária. As noções da vitória, honra e obediência à
Uma visão mais mundana, contudo, aprecia a vitória lei recuam enquanto os instintos básicos de matar ou
muito mais, como podemos ver da história de Henrique ser morto emergem.
V da Inglaterra. Um estudo mostra que a maioria das pessoas favo-
As ações de Henrique na batalha de Agincourt, em rece o autointeresse acima do raciocínio baseado em
1415, mostram um caso da escolha da vitória acima da princípios20. Isso apoia a famosa teoria psicológica da
honra. Acossado por uma força superior de cavaleiros hierarquia de necessidades do Abraham Maslow, onde
franceses em terreno francês, Henrique quebrou o uma deficiência na segurança física faz que a necessi-
código cavalheiresco medieval para conseguir a vitória. dade de sobrevivência seja o ímpeto principal21. Alguns
Depois de sobreviver duas ondas de atacantes franceses, militares farão qualquer coisa que seja necessário para
Henrique esperava um terceiro assalto que derrotaria sobreviver, mesmo se isso significa uma infração da
as suas defesas. Com medo de um levante da multidão sua própria consciência. Além do mais, os seres huma-
de prisioneiros que tinha capturado durante as primei- nos talvez acreditem que contanto que estejam vivos,
ras duas ondas, ele mandou que seus cavaleiros matas- podem buscar o perdão. Quando alguém morre, tudo
sem os prisioneiros. acabou. A Escritura Sagrada transmite a ideia de que
Depois da recusa dos cavaleiros nobres, Henrique onde há vida, há esperança: “Até um cachorro vivo é
apelou aos arqueiros, que ficavam fora do sistema cava- melhor do que um leão morto!”22 Os instintos básicos
lheiresco. Mais de 200 dos seus arqueiros começaram a da sobrevivência e da vitória são expressões materiais
matar os prisioneiros. Logo que o rei percebeu que o ata- da existência humana e sua visão tende a ser limitada
que francês não iria se materializar, rescindiu sua ordem. ao “aqui e agora” e a excluir a existência transcenden-
A moralidade foi colocada de lado para a meta prá- tal após a morte. Esses ímpetos, contudo, podem ser
tica da vitória. Henrique, um rei nominalmente cristão, suprimidos por emoções poderosas que apelam a uma
sabia que tais ações eram consideradas assassinato, mas resposta até mais primitiva.
foram calculadas para obter a vitória. Sua vitória foi
glorificada e romantizada por Shakespeare, e o deslize Vingança Acima da Honra
moral de Henrique se desvaneceu gradualmente18. Sem As emoções como a vingança podem desencadear
dúvida, as ações de Henrique endureceu a resistência uma raiva dominadora nos combatentes que veem
francesa contra as reivindicações inglesas e prolonga- a vida arrancada diante dos seus próprios olhos. A
ram uma das guerras mais longas da história mundial, a moralidade e os conceitos das regras da guerra fogem à
Guerra dos Cem Anos. lembrança — desengajados — e os militares tornam-se
Para o Exército dos EUA, ser vitorioso fora da sua relutantes testemunhas às atrocidades. Uma vez que a
própria identidade ética e moral seria o equivalen- paixão pela vingança, dissipa e, a consciência se esfor-
te de ser derrotado interiormente19. A abordagem çará para voltar e começará uma batalha separada pela
do Exército para a vitória é baseada na moralidade paz dentro do indivíduo. Muitas vezes, as emoções
esperada dos seus soldados, que representam o povo vingativas dominantes se concentram no inimigo, mas
norte-americano. Se a busca da vitória na guerra pode em psicoses posteriores, talvez pressionem o indivíduo
motivar alguém a deixar de lado os parâmetros morais, a atacar inocentes.
a sobrevivência pessoal pode ser até mais poderosa. O No seu livro Achilles in Vietnam (“Aquiles no
instinto humano básico pela sobrevivência é universal. Vietnã”, em tradução livre), Jonathan Shay opina que a
vingança na guerra é frequentemente vinculada com a
Sobrevivência Acima da Honra profunda necessidade psicológica e cultural de ressusci-
O combate é um ambiente turbulento física e emo- tar amigos caídos. Shay cita um veterano que lembra as-
cionalmente, em que se oscila de forma imprevisível en- sassinatos vingativos: “Cada [palavrão] que morreu, eu
tre extremos emocionais oscilam. A realidade da morte digo '___, este foi para você, irmão. Eliminarei esse filha
da [palavrão] e vou arrancar seu [palavrão] coração Os norte-americanos não devem iludir-se acre-
para você'”23. O militar falou ao seu companheiro como ditando que seus militares têm qualquer imunidade
se estivesse vivo e presente. Isso mostra não apenas que especial contra as pressões morais e as tentações da
os mortos são trazidos de volta à vida por meio desse guerra. Como qualquer um, os militares podem sofrer
ato sacrificial de carnificina, mas, também, sentimentos de deslizes no caráter quando provados pelas condi-
de impotência e medo estão banidos. Manter a fé com ções extremas do combate. Até soldados da chama-
os espíritos dos amigos que assombram o campo de da “Grande Geração” cometeram crimes de guerra.
batalha, na mente do sobrevivente, dá um sentido de Durante a libertação de Saint-Lô na França, após os
justiça na insanidade da guerra, mesmo que esta seja horrores de lutar nos sebes, as Forças dos EUA se
vingativa. espalharam em grupos de soldados, colhendo tropas
alemãs rendidas, fuzilando-as sumariamente conforme segundo Roy L. Swank e Walter E. Marchand, o ser hu-
se entregavam. Vários capelães testemunharam essas mano típico pode sobreviver apenas 60 dias de combate
ações brutais e ficaram horrorizados. Um dos militares duro contínuo antes de sucumbir mentalmente30. A
norte-americanos passou a mão pelos bolsos da sua ví- testemunha ou a perpetração de um assassinato injusto
tima alemã e descobriu uma fotografia da esposa e bebe é uma experiência particularmente traumática.
do soldado. Sentindo culpa, buscou o capelão e tentou Em um artigo, de 2008, o Cabo Earl Coffey descreve
justificar sua ação com o raciocínio “era ou ele ou eu”. O uma profanação que causava muito angústia durante
capelão salientou, com raiva, que isso não era verdade, a Guerra do Iraque ao correspondente Billy Cox31. No
já que o alemão não portava uma arma e que tinha as incidente, de 2003, um veículo particular não conseguiu
mãos elevadas para render-se quando foi assassinado parar, e isso foi interpretado como uma ameaça:
pelo soldado24. Eu vi um Abrams [carro de combate] disparar
Muitos militares morrem espiritualmente no um tiro super sabot em uma camionete, e a
combate porque se sentem forçados a trair o que mulher que saiu nos implorou para matá-la
acreditam estar certo. Isso os persegue pelo resto da enquanto ela via seu marido e seus filhos
vida. É necessário apenas olhar através das fileiras de queimarem até a morte [...] em inglês perfei-
veteranos norte-americanos para encontrar altas taxas to, ela dizia, “Por quê? Por que está fazendo
de suicídio25. Além disso, o índice de abuso de drogas isso? Somos cristãos!”32
é mais alto entre veteranos que no resto da popula- Segundo Shay, a arruinação da alma causada pelo
ção26. Além disso, a falta de moradia e o alcoolismo são desfeito do caráter moral em face do combate contínuo
desenfreados entre os veteranos de combate27. A alma e das experiências traumáticas são chamadas danos
pode morrer antes do corpo; mas o colapso físico leva morais, e são associadas com o transtorno de estresse
mais tempo. Tais soldados tornam-se mortos-vivos, pós-traumático (TEPT)33. Durante a Guerra Civil dos
cuja alegria da vida foi desvanecendo no dia da batalha EUA, foi chamado o “coração do soldado”. Na Primeira
e voltam para casa como sombras de si mesmos, com Guerra Mundial, foi chamado de “trauma de guerra”.
danos na consciência. Portanto, para evitar essa tragé- Na Segunda Guerra Mundial, foi chamado de “fadiga
dia, é imprescindível que cada comandante forme um de combate”. No Vietnã, seria chamado de “reação de
ambiente de comando ético, como descrito na ADRP estresse de combate”.
6-2228. Esse ambiente precisa ser construído acima da O transtorno de estresse se concentra no trauma de
fundação do jus in bello, como descrito no Manual de um evento enquanto o dano moral enfoca a tristeza, o
Campanha 27-10, A Lei da Guerra Terrestre (FM 27- arrependimento, a traição, a vergonha e outros aspectos
10, The Law of Land Warfare)29. espirituais do combate. O estresse de combate opera-
cional afeta todos os soldados que participam da guerra,
A Profanação Humana e Danos e a maioria dos sintomas diminui ao longo do tempo.
Morais No entanto, o combate prolongado — ou experiências
A guerra, pela natureza, causa a morte e o sofrimen- particularmente traumáticas — pode deixar militares
to de inocentes. As nações em guerra cometem erros, afetados por toda a vida.
e o custo deles é pago em vidas. Às vezes, as ordens Um estudo pelo Institute of Medicine of the
estabelecidas para proteger o todo ocasionam as mortes National Academies relata que a maioria dos soldados
não intencionadas de civis, uma circunstância referida, que voltam do Iraque e do Afeganistão tem tido poucos
de modo eufêmico, como danos colaterais. No entanto, problemas de se reajustar. O estudo constata que 44%
essas mortes podem ser perdoadas pela lei de conflito relatam algumas dificuldades, que talvez inclua depres-
armado como um caso de duplo efeito, significando que são e uso de álcool. Desse grupo, outros 3 a 20% serão
as mortes como um risco medido não foram intencio- afetados com o que é agora referida como “transtorno
nais, tampouco um instrumento de ganho no conflito. de estresse”34.
Contudo, causar a morte de qualquer tipo ainda cria Segundo Dr. Bridget Cantrell, um especialista em
angústia no coração humano. O peso dessa angústia transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), solda-
esmaga o ser humano e enlouquece a mente. De fato, dos sem uma base moral parecem ter mais dificuldade
moderação, lealdade e candor nos seus soldados. A obviamente com muita dor, reposicionou com cuidado
maioria dos oficiais britânicos acreditava que esse o norte-americano gravemente ferido em uma posição
modelo de virtudes cristãs era resistente durante os mais confortável. Isso foi o último ato de carinho do
estresses do combate, proporcionando uma melhor soldado alemão. Ele morreu mais tarde naquela noite47.
chance de sobrevivência45. Mais uma vez, era a socieda- Em outro lugar no campo de batalha, dois enfermei-
de do grupo que enfatizava o código moral de conduta. ros paraquedistas, Cb Robert E. Wright e Cb Kenneth
Exemplos semelhantes aparecem por toda a história. J. Moore, do 2o Batalhão, 501o Regimento de Infantaria
Um forte arcabouço ético, também, orientava os milita- Aeroterrestre, da 101a Divisão Aeroterrestre, estabele-
res individuais durante a Segunda Guerra Mundial. ceram um posto de socorro na pequena igreja na aldeia
Durante a invasão da Normandia, militares ale- de Angoville ao Plain na Normandia, na França. Era
mães e norte-americanos, às vezes, se encontraram Dia-D, 6 de junho de 194448.
lado a lado, tendo os seus ferimentos tratados por Suas ordens eram tratar apenas os soldados
forças oponentes nos postos de socorro por toda a norte-americanos. Não podiam aceitar prisioneiros
área de operações. Donald Crosby descreve como alemães vivos durante as primeiras 48 horas. Devido à
um capelão norte-americano, Francis Sampson, viu sua fé cristã, eles ignoraram essa ordem. O controle do
um soldado alemão gravemente ferido rastejar até terreno do seus posto de socorro mudou de dono várias
um norte-americano ferido que tinha escorregado vezes enquanto o combate se arrastou ao redor deles.
da padiola e caído no chão duro46. O soldado alemão, Ficaram inundados com mais de 80 militares feridos
alemães e norte-americanos que estavam sangrando possa tomar vidas e destruir as estruturas da civili-
nos bancos e até no altar da pequena igreja de pedra. zação, não é necessário que se destrua a identidade
Esse posto de socorro foi defendido apenas por do militar na forma de tratamento de outros seres
uma bandeira da Cruz Vermelha quando a porta de humanos e de adesão às crenças sagradas. Até a toma-
madeira da igreja abriu com força. Um oficial alemão da de vidas pode ser feita com intenção equilibrada
se postou preparado com uma metralhadora segurada em relação à gravidade da ação. O jus in bello orienta
apertadamente, cheio de ira nos olhos. Quando viu o militar para reconhecer a humanidade do inimigo,
que militares alemães estavam sendo tratados pelos assim prevenindo a desumanização que pode levar à
enfermeiros, as feições dele tornaram-se rapidamente atrocidade e até à genocídio.
serenas conforme a raiva amainou. Ele agradeceu os
enfermeiros norte-americanos pelo tratamento dos A Vitória por meio da Honra
seus soldados e prometeu enviar um cirurgião para No combate, o provérbio “a morte antes da deson-
ajudar com os feridos49. ra” exprime a virtude, custe o que custar. Contudo, tal
Esses exemplos mostram como militares, até no sacrifício não é sempre necessário. De fato, frequen-
meio da confusão do combate, podem ficar centrados temente, a honra e outras virtudes podem ajudar na
na sua moralidade e na sua crença espiritual, fortale- vitória. Há ocasiões quando o comportamento moral
cidos pelos princípios do jus in bello. Embora a guerra e a adesão ao jus in bello podem apoiar o triunfo, não
apenas para o indivíduo, mas também para a Força. A prêmio desse tipo de guerra é os corações e as mentes
ação moral não é apenas a decisão certa, mas também é do povo. É o centro de gravidade do combate.
a coisa mais efetiva. No Iraque, segundo o Gen Bda (da Reserva re-
Segundo Dave Grossman, durante a Primeira munerada) Najim Abed Al-Jabour, muito do sucesso
Guerra Mundial, militares norte-americanos tinham operacional dos EUA foi um subproduto da brutalida-
uma reputação tão elevada sobre a sua conduta que de da Al Qaeda contra o povo iraquiano56. A Al Qaeda
durante a Segunda Guerra Mundial, muitos alemães no Iraque e outros grupos insurgentes usavam seques-
avisavam os seus parentes mais jovens entrando no ser- tros, assassinatos e intimidação para ganhar apoio. Essa
viço, de “Ser corajoso, alistar-se a infantaria e render-se abordagem teve o efeito oposto, virando os civis contra
ao primeiro norte-americano que vir”50. eles e a sua causa57.
A reputação norte-americana de bom tratamento Em contrapartida, em sua maioria, os soldados
sobrevivera de uma geração até a próxima51. Quando norte-americanos provaram ser parceiros do povo
a Alemanha se aproximou da derrota na Segunda iraquiano e os políticos locais, alguns dos quais tinham
Guerra Mundial, as Unidades lutando contra o sido insurgentes, tornaram-se aliados. Isso significava
Exército Soviético se moviam para fora do setor para a extensão da confiança, que na guerra pode levar a ser
renderem-se às tropas norte-americanas. O derrama- exposto ao inimigo. Por sua vez, muitos iraquianos tam-
mento de sangue foi evitado porque eles esperavam, e bém fizeram concessões às tropas da coalizão. O início
tipicamente, eram concedidos, bom tratamento. dessa reviravolta foi conhecido como o “Despertar de
Segundo Andrew Roberts, atitudes eram bem Anbar”, sendo ampliado em um programa que abrangia
diferentes na frente russo-alemã52. Os dois lados foram o país inteiro. Antigos insurgentes iraquianos mudaram
arrastados para dentro de ciclos de atrocidades contra de lado para trabalhar para o Iraque e guarneceram
militares e civis. Antes do final da guerra, militares centros de controle que forneciam segurança contra
alemães e soviéticos lutavam até o último homem, ra- combatentes estrangeiros.
ramente tomando prisioneiros. Os militares soviéticos Não obstante, tal postura é tênue. Se desfizesse, as
foram avisados de que não seriam responsáveis pelos Forças Armadas poderiam ter perdido rapidamente
crimes civis cometidos na terra alemã e que os bens e esses ganhos. Os militares e outras entidades de apoio
as mulheres eram seus por direito e eram considerados precisam aderir ao jus in bello e agir com disciplina e
pilhagens da guerra. Mais de dois milhões de mulheres comedimento moral, ou arriscarão estender a guerra
e meninas alemães foram estupradas53. Essa política indefinidamente.
vingativa era a reação às atrocidades nazistas cometidas
na União Soviética durante a invasão e ocupação por Conclusão
tropas alemães54. Os efeitos das decisões éticas tomadas no combate
A boa conduta moral e uma reputação pela justiça são de longo alcance e se refletem mais tarde durante a
têm resultados benéficos no campo de batalha tradicio- vida, sendo que talvez se tornem a força mais significa-
nal, mas também têm resultados positivos na contrain- tiva na vida do soldado e nas vidas de outros no campo
surgência. Por exemplo, a moralidade exerceu um papel de batalha. As decisões éticas podem causar uma guerra
estratégico na guerra de guerrilha no Vietnã, como fez dentro do espírito do guerreiro mesmo enquanto a bata-
nas guerras no Iraque e no Afeganistão. lha se trava ao redor dele. As fortes emoções martelam
Embora insurgentes frequentemente usem táticas o combatente, combinadas com estresse extremo e pro-
terroristas, as forças contrainsurgentes são limitadas fanações indescritíveis, para empurrar os militares até
em suas ações. Em seu livro clássico Counterinsurgency seus limites espirituais e psicológicos. É imperativo que
Warfare: Theory and Practice (No Brasil é intitulado o Exército prepare os militares para que possam tomar
“Teoria e Prática Contra Rebelião”), David Galula ex- decisões morais difíceis durante o combate e uma forma
plica que insurgentes são julgados por suas ações, e são de prepará-los é por meio do estudo da aplicação do jus
vinculados com a sua responsabilidade bem como ao in bello, que é explicada na lei de combate terrestre.
que têm feito55. Se mentirem ou enganarem, perderão Além disso, um forte fundamento em uma fé, uma
os seus ganhos, e serão desacreditados para sempre. O base moral e um caráter desenvolvido parecem fixar
O Capelão (Maj) Sean Wead, do Exército dos EUA, é professor assistente da Ética no U.S. Army Command
and General Staff College. É mestre em Divindade e Teologia e doutorado em Ministério com ênfase na Ética pelo
Virginia Theological Seminary. Previamente foi oficial de infantaria e polícia civil que serviu em posições de comba-
te no Iraque e no Afeganistão.
Referências
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Exército dos EUA), durante uma discussão com o autor, outubro vernment Printing Office [GPO], August 2012), p. 3-38.
de 2006, Forte Drum, Nova York. 10. Martin L. Cook, The Moral Warrior (Albany, NY: New
2. Marcus Luttrell e Patrick Robinson, Lone Survivor: The York Press, 2004), p. 32.
Eyewitness Account of Operation Redwing and the Lost Heroes of 11. John Keegan, The Face of Battle (New York: Penguin
SEAL Team 10 (New York: Little, Brown and Company, 2007). Books, 1983), p. 72.
3. Nome omitido por acordo mútuo (militar do Exército dos 12. Albert Bandura, “Moral Disengagement in the Perpetra-
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Base de Operações Avançada Warrior, em Kirkuk, no Iraque. Special Issue on Evil and Violence 3 (1999): p. 208.
4. Carl Von Clausewitz, On War, Anatole Rapoport editor., 13. Irving Lester Janis, Victims of Groupthink: A Psychological
J.J. Graham tradutor. (Middlesex, UK: Penguin Books, 1968), p. Study of Foreign-Policy Decisions and Fiascoes (Boston: Houghton
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