Fundamentos de Ética
Fundamentos de Ética
Fundamentos de Ética
ORGANIZADORES:
Walter Luiz Moraes Sampaio da Fonseca
Marcilene Maria de Almeida Fonseca
2ª edição
FOA UniFOA
PRESIDENTE REITORA
Dauro Peixoto Aragão Claudia Yamada Utagawa
VICE-PRESIDENTE PRÓ-REITOR ACADÊMICO
Eduardo Guimarães Prado Carlos José Pacheco
DIRETOR ADMINISTRATIVO - FINANCEIRO PRÓ-REITOR DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
Iram Natividade Pinto Alden dos Santos Neves
DIRETOR DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS PRÓ-REITOR DE EXTENSÃO
José Tarcísio Cavaliere Otávio Barreiros Mithidieri
SUPERINTENDENTE EXECUTIVO
Jairo Conde Jogaib Editora FOA
SUPERINTENDÊNCIA GERAL
EDITOR CHEFE
José Ivo de Souza Laert dos Santos Andrade
RELAÇÕES PÚBLICAS
REVISÃO
Maria Amélia Chagas Silva Maria Aparecida Rocha Gouvêa
EDITORAÇÃO
Elton de Oliveira Rodrigues
CAPA
Ana Clara Barcelos (Estagiária)
FICHA CATALOGRÁFICA
Bibliotecária: Alice Tacão Wagner - CRB 7/RJ 4316
228 p.
ISBN: 978-85-5964-082-3
CDD 370.114
É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto
às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime
(Código Penal art. 184 e §§, e Lei nº 6.895, de 17/12/1980, e demais alterações), sujeitan-
do-se a busca e apreensão e indenizações diversas (Lei nº 9.610/98).
Sobre os autores
Introdução............................................................................................................ 9
Agradecimentos da 1ª edição ......................................................................13
Prefácio 1ª edição.............................................................................................14
Prefácio 2ª edição.............................................................................................16
Capítulo 1- Ética e Moral ...............................................................................19
Capítulo 2 - Fundamentos Filosóficos.........................................................35
Capítulo 3 - Fundamentos Antropológicos................................................93
Capítulo 4 - A liberdade............................................................................... 117
Capítulo 5 - Desafios éticos do Sistema Suplementar de Saúde...... 129
Capítulo 6 - Envelhecer e a liberdade para o esquecimento ............ 135
Capítulo 7 - Relação entre o Direito e a Medicina................................. 145
Capítulo 8 - Ciclo da vida............................................................................. 155
Capítulo 9 - Dilemas Éticos.......................................................................... 181
Referências .................................................................................................... 196
Glossário.......................................................................................................... 202
Anexo A............................................................................................................ 207
Anexo B............................................................................................................ 211
Anexo C............................................................................................................ 212
Anexo D............................................................................................................ 219
Anexo E............................................................................................................ 222
Introdução
9
trar que a realidade apresenta situações que complicam a distribuição
equitativa e justa da atenção à saúde.
O capítulo dois é dedicado a uma revisão das contribuições filo-
sóficas à reflexão ética na história do Ocidente, iniciando com o pen-
samento judaico pela sua importância na construção do pensamento
ocidental. Segue com uma breve descrição do pensamento grego anti-
go e do medieval, que também marcaram de forma indelével a cultura
ocidental. Finalmente, são apresentadas, de forma reduzida, as ideias
dos pensadores mais significativos de Descartes até os dias de hoje. Es-
sas ideias são, na opinião dos autores, muito importantes para conduzir
uma reflexão ética, inclusive com opiniões que não raro são discordan-
tes. O capítulo se encerra com uma pequena apresentação da bioética.
Esse capítulo, embora redigido de forma despretensiosa, tem o objetivo
de mostrar ao leitor de onde vêm as diversas interpretações do pensa-
mento contemporâneo.
O capítulo três se ocupa da antropologia, também de forma resu-
mida. A antropologia é conceituada, com a apresentação de suas clas-
sificações e objetivos que podem ajudar na realização da pretendida
reflexão ética. Segue uma pequena análise da importância da religião,
dos mitos e dos ritos, continuando com a antropologia filosófica e a
antropologia da doença. O objetivo desse capítulo é apresentar as bases
sociais, históricas e comportamentais, ainda que curtas, para a reflexão e
a discussão éticas e provocar a curiosidade para leituras mais profundas.
O capítulo quatro é reservado à reflexão sobre a liberdade, preo-
cupação que se iniciou com a revolução francesa e que tem impulsio-
nando, em todo o Ocidente, o pensamento ético, mas que apresenta
importantes pontos de discussão senão de discordância. A Liberdade
é tratada como uma situação que não é uma questão fechada ou re-
solvida, sendo nossa pretensão tratar pontos que podem enriquecer
uma discussão dos dilemas éticos, principalmente à luz do fenômeno
da globalização.
O capítulo cinco é uma brilhante colaboração do Doutor Rônel
Mascarenhas e Silva, ex-professor da escola e militante na área da me-
dicina complementar, que situa e fornece elementos para a discussão
ética no contexto nacional, face ao nosso sistema de saúde que com-
preende um forte setor de saúde pública (chamado de Sistema Único
de Saúde – SUS) e um também forte sistema de saúde complementar
– as empresas prestadoras de serviço.
10
Segue-se o capítulo seis, escrito pelo médico Lucas Pereira Jorge
de Medeiros, mestre e doutorando, acompanhado pela psicóloga Re-
nata Barboza Vianna Medeiros, também mestre e doutoranda, que nos
apresentam uma interessante reflexão sobre o direito de envelhecer e
os direitos que os velhos têm. É uma preciosa reflexão ética que se re-
veste de importância no momento de transição vivido no Brasil. Afinal,
estamos passando de um país jovem, com cerca de 8% da população
com mais de 60 anos, para 16% e em vistas de saltar para mais de 20%.
No capítulo sete, o advogado e professor Carlos José Pacheco nos
apresenta a interface que a ética tem com o sistema jurídico, em parti-
cular a medicina. Esse capítulo é oriundo de sua dissertação de mestra-
do, tendo como respaldo sua militância no direito público. Ele pretende
demonstrar que nem o direito isolado é suficiente, nem a postura ética
é possível sem o conhecimento das leis do país.
O capítulo oito é denominado por nós de ciclo da vida, uma vez
que se inicia com uma rápida abordagem do que é vida, continua com
a questão da consciência – talvez o principal fator a diferenciar o ser
humano dos demais seres viventes – e termina com uma análise da
morte. Esse capítulo pretende fornecer elementos para que a discussão
ética não seja baseada apenas em conceitos filosóficos e antropológi-
cos, mas também biológicos e psicológicos.
O capítulo nove destina-se a tornar este livro um instrumento
dinâmico. São apresentados oito dilemas passíveis de discussão ética,
retirados da imprensa via internet ou de livros. São situações atuais e
que não têm solução pré-fabricada. A ideia é fortalecer os elementos
discutidos ao longo de todo o livro, permitindo ao leitor/debatedor che-
gar às suas próprias conclusões, que esperamos não sejam definitivas.
Esperamos mais ainda, que a leitura dos dilemas e a releitura do livro
possam suscitar novos dilemas e novas conclusões, num processo con-
tínuo e dialético de problema, tese e antítese.
As referências bibliográficas são relativamente extensas, forma-
da de livros acessíveis e de fontes eletrônicas acompanhadas das datas
de acesso. Os capítulos 6 e 7, escritos pelos colaboradores acima men-
cionados, têm suas referências discriminadas para facilitar eventuais
consultas. O capítulo 5 não apresenta bibliografia específica, porque foi
agradavelmente escrito sob a forma de crônica. As teses, dissertações e
relatórios da OPAS e OMS citados estão disponíveis na internet.
11
Finalmente, são apresentados glossário e anexos, em número
de cinco, que têm por finalidade enriquecer o conteúdo de alguns ca-
pítulos e podem ser interessantes aos leitores. Eles são assim distri-
buídos: Glossário - termos destinados principalmente aos estudantes;
Anexo A – Mito da caverna, de Platão; Anexo B – Transcrição do trecho
de Os Irmãos Karamazov, de Dostoievsky, em que o Diabo discute a es-
pecialização médica; Anexo C – Pequena introdução à fenomenologia
e ao estruturalismo, importantes movimentos que contribuíram para
o pensamento contemporâneo e a definição de alguns termos usados
por Sartre para a discussão de liberdade; Anexo D - Transcrição de O
significado da evolução; Anexo E – Declaração de Helsinki, que trata da
pesquisa.
12
Agradecimentos da
1ª edição
13
Prefácio 1ª edição
Francis Bacon
14
Formar um médico significava respeito ao paciente, compreen-
são das suas limitações e crises e preocupação prioritária com o domí-
nio do método clínico.
Entretanto essas diretrizes sempre foram informais, dependen-
tes da iniciativa pessoal do professor, o que certamente facilitou muito
a sua corrupção na História que se seguiu.
No Brasil, como em todo o mundo capitalista, a mercantilização
da Medicina e a política adotada para os financiamentos público e pri-
vado da Saúde (principalmente depois dos anos 70 do século passado)
entronizaram o consumo tecnológico em detrimento da cultura da rela-
ção médico-paciente e da valorização do método clínico.
Essa distorção culmina hoje com a apologia da alta complexidade
enquanto desvaloriza a atuação clínica, base da práxis médica, desen-
corajando inúmeras vocações idealistas e já causando sérios prejuízos
à sociedade pela carência de médicos de especialidades relegadas pela
visão de lucratividade.
Não podemos inocentemente pregar restrições à utilização de
tecnologia, desde que intencionada a favor das soluções dos dramas de
nossos pacientes, mas é evidente que temos que recuperar a primazia
estratégica dos valores humanísticos.
Nesta obra, o Prof. Walter Luiz Moraes Sampaio da Fonseca resga-
ta a temática essencial para o conhecimento e reflexão das bases para
o desenvolvimento humano do estudante de Medicina, propondo uma
influência transversal e contínua em todos os momentos da grade curri-
cular, enriquecendo a compreensão do ser humano e contribuindo para
o ressurgimento de um modelo cada vez mais humanizado de médicos.
Trata-se de um raro esforço autoral, típico de um Mestre que sem-
pre permeou sua atuação docente com a pregação insistente e muitas
vezes incompreendida dos valores que dignificam o médico muito além
do simples conhecer científico e do domínio das técnicas.
O estudante terá neste livro os substratos de formação humanís-
tica em um inteligente formato que compila sem resumir e desafia com
dúvidas a busca das certezas.
Rônel Mascarenhas e Silva
Ex-Professor da Escola de Ciências Médicas de Volta Redonda
Curso de Medicina do UniFOA (1979-2009).
15
Prefácio 2ª edição
16
após a graduação ao serviço diuturno em prol do bem-estar de outros
seres humanos, assume papel mais do que relevante. Os neófitos da
Medicina encontrarão neste livro um aprofundamento necessário nos
conceitos históricos e filosóficos da ética, em uma narrativa extrema-
mente bem-feita, mas que não se prende aos ditames do rigor acadê-
mico puro, que enche as letras de verniz, mas apaga o calor humano
das idéias. Encontrarão ainda um cabedal de conhecimentos bem es-
truturados sobre a antropologia e a bioética, contando com os recursos
de autores eruditos no tema, sem delongar-se em aspectos que não
trarão resultados práticos para a prática da saúde, e que trazem para a
realidade do médico os ditames éticos sob uma visão contemporânea.
E para concluir a leitura deste rico material, uma proposta de uma série
de ditames éticos, propícios para a reflexão, e moldagem de uma nova
práxis em Saúde.
Alden dos Santos Neves
Pró-reitor de Pesquisa e Pós-graduação do UniFOA
17
18
FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA A REFLEXÃO ÉTICA
NO ENSINO DA ÁREA DA SAÚDE
Capítulo 1
Ética e Moral
1.1 Conceitos
As ações na área de saúde vêm sendo regidas cada vez mais pela
ética e bioética, não apenas após as dramáticas experiências médicas
realizadas nos campos de concentração nazistas durante a 2ª Guerra
Mundial, mas também pelo extraordinário progresso que a ciência mé-
dica adquiriu desde então.
Sob forte influência da tragédia das experiências médicas com
seres humanos, ainda durante o julgamento dos criminosos de guerra
no tribunal de Nuremberg, foi promulgado, em dezembro de 1946, o
primeiro código de pesquisas médicas, que ficou conhecido como Có-
digo de Nuremberg. Desse estudo pioneiro, seguiram novos encontros
internacionais, dos quais se destaca o encontro de Helsinki, em 1964,
que resultou no primeiro Código que estabeleceu critérios e normas
para a relação médico- paciente (Anexo VI). Outros encontros interna-
cionais se seguiram.
A UNESCO, na 33ª sessão da Conferência Geral, em 2005, adotou
por aclamação, no dia 19 de outubro, a Declaração Universal de Bioética
e Direitos Humanos que, no Artigo 23, que trata da Informação, Forma-
ção e Educação em Bioética, recomenda:
1. Com vista a promover os princípios enunciados
na presente Declaração e assegurar uma melhor
compreensão das implicações éticas dos progres-
sos científicos e tecnológicos, em particular entre os
jovens, os Estados devem esforçar-se por fomentar
a educação e a formação em matéria de bioética a
todos os níveis, e estimular os programas de infor-
19
mação e de difusão dos conhecimentos relativos à
bioética.
20
sabedoria, que é tão desesperadamente necessária: conhecimento
biológico e valores humanos.” (RAMOS, 2009) (grifo nosso).
Pelo que foi dito, podemos deduzir que enquanto a palavra “bioé-
tica” é recente, o vocábulo “ética” é muito antigo, com sua origem no
grego antigo – ethos, que se refere aos costumes, estilo de vida e regras
de comportamento. Outro vocábulo também antigo é “moral”, de ori-
gem latina (Morales), que é relativo aos costumes. Diferentes autores
apresentam os conceitos de ética e de moral com significados diferen-
tes, alguns empregando os termos como sinônimos e outros com dis-
tinções entre ambos.
Leonardo Boff assinala, poeticamente, dois significados para a
palavra ética. Uma grafada com e minúsculo – (ethos) morada, abrigo –,
e outra com E maiúsculo – (Ethos) costumes, conjunto de valores. (BOFF,
2003) Portanto, são dois significados para a mesma palavra, mas ambos
convergindo para um mesmo significado.
Assim, o filósofo brasileiro Mário Sérgio Cortella apresenta uma
definição que é objetiva e prática:
21
As definições propostas por Cortella, pensador brasileiro, estão
em acordo com os conceitos emitidos pelo mexicano Adolfo S. Vàzquez,
filósofo de renome mundial:
22
Embora distintos em sua origem, os termos ética e moral são uti-
lizados muitas vezes como sinônimos. Neste livro, para fins de clareza,
os termos serão empregados com seus significados distintos, conforme
as definições apresentadas por Cortella e Vàzquez.
A seguir, algumas expressões muito utilizadas quando se discute
ética, como as introduzidas por Kant (1724-1804):
23
Enfim, esse é o objetivo deste livro: fornecer os elementos e no-
ções que a sociedade, ao longo do tempo, utilizou para elaborar os prin-
cípios éticos.
24
ponível no site da Abril.com.br2, são regulamentadas por Leis e Normas
governamentais e regidas pelos respectivos Códigos de Ética.
Em passado recente, os códigos de Ética não existiam, talvez por-
que a mais antiga profissão regulamentada da saúde, a medicina, não
oferecia ao médico opções além da cura ou a diminuição do sofrimento
do paciente. Também não havia tão grande divisão do trabalho, que
era restrito ao médico, ao cirurgião ou o cirurgião barbeiro3. Tampouco
havia a noção de saúde como obrigação do estado, nem sistemas de
saúde público ou privado e muito menos transplantes, estudos genéti-
cos e seus desdobramentos, além das múltiplas opções de tratamento
com sucesso total ou parcial para uma mesma condição, assim como
cirurgia plástica e reparadora e muitos outros avanços.
Os códigos de ética têm origem nas corporações profissionais,
após discussões entre os pares, e objetivam determinar o comporta-
mento do indivíduo frente à comunidade e às leis. Os redatores das
leis, normas e códigos de ética sempre escutam a sociedade, em seus
clamores e anseios.
Existem tantos códigos de ética quanto profissões. A título de
exemplo, apresentamos alguns códigos disponíveis e em vigor, com
suas datas de aprovação pelos respectivos conselhos profissionais:
25
O primeiro Código de Ética Médica do Brasil teve por base con-
ceitual o Medical Ethics, elaborado pelo inglês Thomas Percival, entre
1792 e 1825. A regulamentação da profissão médica em nosso país só
ocorreu em 1850 e durante o império não se criou nenhum código de
ética. Apenas, em 1929, foi adotado o Código de Moral Médica, que foi
uma tradução do código cubano. O primeiro Código de Deontologia Mé-
dica brasileiro foi elaborado em 1931, durante o 1º Congresso Médico
Sindicalista, e, em 1945, o governo homologou o citado código, quando
criou os Conselhos de Medicina. Em 1953, a Associação Médica Brasi-
leira adotou o Código de Ética, acolhido em 1957, pela lei 3.268/57, que
também regulamentou os Conselhos de Medicina. Em 1988, a I Confe-
rência Nacional de Ética Médica aprovou uma nova versão do Código
de Ética Médica. Finalmente, temos a versão atual publicada no Diário
Oficial da União, em 24 de setembro de 2009, que entrou em vigor em
13 de abril de 2010.
A situação não era apenas nacional. Sabemos que a morte era
vista como uma questão divina e alguns procedimentos, como a cirur-
gia cardíaca, eram muitas vezes considerados crimes4. Os cuidados pa-
liativos não existiam, havendo apenas a compaixão, magistralmente de-
monstrada pela famosa pintura The Doctor, de Samuel Luke Fields, que
retrata um médico ao lado de uma criança deitada sobre duas cadeiras
à frente de seus pais cansados e ansiosos. Essa pintura revela as limita-
ções dos recursos da medicina do século XIX e a solidão do profissional.
Concluindo, a preocupação com o sofrimento, a tragédia dos
campos nazistas e o progresso da ciência em todos os cantos do mun-
do resultaram na preocupação ética com o tratamento e a pesquisa,
incluindo o consentimento esclarecido, a utilidade potencial de exames
e tratamentos e a responsabilidade profissional.
Portanto, é natural que a ética esteja na ordem do dia e levantan-
do questões em todos os níveis – científicos, médicos, socioculturais ou
econômicos. Ela tem fortes laços com a moral, a deontologia e a justiça,
assim como com a regulamentação legal da profissão e as relações dos
profissionais entre si e os demais membros da equipe de saúde.
Resumidamente, a questão ética é norteada pelas ideias de bene-
ficência, não maleficência, autonomia e justiça.
26
A beneficência é o primeiro princípio que representa a
preocupação em praticar o bem ao outro, dirigindo as
ações para o melhor interesse do paciente.
27
res, pacientes e familiares, meios de comunicação científicos e comuni-
tários, etc. É a postura ética, fruto da reflexão, que define as melhores
condutas possíveis, respeita a dignidade humana, a moral, os ditames
deontológicos e as leis. A ética regula as atitudes profissionais e ajusta a
prática ao juramento Hipocrático.
As relações dos profissionais com os pacientes entre si e com ou-
tros profissionais de saúde, e também as relações com os estudantes,
por se tratarem de relações humanas, desencadeiam frequentes situa-
ções conflituosas, tornando a reflexão ética cada vez mais importante.
Com frequência surge a necessidade de tomada de decisões que ultra-
passa os conhecimentos teóricos e técnicos, o que pode dar origem a
dúvidas e a questionamentos.
Os conflitos fazem parte da vida, como bem demonstra Vàzquez
logo no início de sua clássica obra sobre ética, destacando alguns exem-
plos de situações problemáticas:
devo cumprir a promessa x que fiz ontem ao amigo
Y, embora hoje perceba que o cumprimento me cau-
sará certos prejuízos? (…) Devo dizer sempre a ver-
dade ou há ocasiões em que devo mentir? (…) Se um
indivíduo procura fazer o bem e as consequências de
suas ações são prejudiciais àqueles que pretendia
favorecer, porque lhes causa mais prejuízo do que
benefício, devemos julgar que age corretamente de
um ponto de vista moral, quaisquer que tenham sido
os efeitos de sua ação” (VÀZQUEZ, 1993, p.6).
28
Fica evidente que os códigos de ética não podem definir o certo
ou o errado, ou em outras palavras, o bem e o mal, porque são concei-
tos que passam por todos os campos do conhecimento, da sobrevivên-
cia natural à necessidade religiosa. É, portanto, um tema filosófico ou
religioso. Aos códigos de ética é reservada a responsabilidade essencial
de discriminar o que pode ou não pode ser feito, entretanto, quando
chega o momento da ação, com um objetivo final de decidir como fazer
o bem ao paciente, a decisão final é do profissional.
Nas atividades da área de saúde, a lista de exemplos pode au-
mentar indefinidamente, algumas vezes com características dramáti-
cas: é válido ressuscitar um paciente terminal5? Quando ordenar para
não ressuscitar? Qual o critério para admitir ou recusar um paciente
numa unidade de terapia intensiva, quando só há uma vaga e dois dela
necessitam? Como comunicar aos parentes que um familiar está com
morte encefálica, embora as funções vitais se mantenham com drogas,
tubos e aparelhos? Como explicar que um corpo que respira artificial-
mente e que o coração bate, mas que tem morte encefálica é um ca-
dáver? É válido negar esperanças a um paciente portador de doença
terminal sob o pretexto de dizer a verdade?
Como os códigos não conseguem abranger todas as circunstân-
cias, o que fica bem claro, quando se lê no Código de Ética Médica, em
suas disposições transitórias, que “as omissões deste Código serão sa-
nadas pelo Conselho Federal de Medicina”, são criadas as Comissões ou
Comitês de Ética, para auxiliarem e orientarem o profissional em suas
decisões.
No citado Código, se encontra que o médico deve ter a capaci-
dade de decidir sobre qual o melhor caminho a ser tomado, como se
pode depreender do estudo de alguns artigos, como os apresentados a
seguir, em que é vedado ao médico:
Art. 26. Deixar de respeitar a vontade de qualquer
pessoa, considerada capaz física e mentalmente, em
greve de fome, ou alimentá-la compulsoriamente,
devendo cientificá-la das prováveis complicações do
jejum prolongado e, na hipótese de risco iminente de
morte, tratá-la.
29
Art. 32. Deixar de usar todos os meios disponíveis de
diagnóstico e tratamento, cientificamente reconheci-
dos e a seu alcance, em favor do paciente.
30
uma eugenia possível” (VEYNE, 2011, p.55). É a postura do profissional
que distribui o seu saber e poder entre a tecnologia das máquinas e o
paciente. Não é um problema técnico, mas sim um problema de poder,
ou seja, ético.
Já no século XIX, o escritor russo Dostoievski (1821-1881) alerta-
va para a necessidade cada vez maior da medicina se tornar mais e
mais científica, com o advento das especialidades. De forma deliciosa,
Dostoievski faz uma interessante crítica dessa necessidade de especia-
lização, relatando uma experiência com o próprio Diabo que conversa
com um dos principais personagens do romance Irmãos Karamazov. No
Anexo A, encontra-se uma transcrição do referido texto.
A questão da necessidade crescente da especialização não ficou
restrita à medicina, atingindo todas as profissões mais novas.
31
nanciamento internacional. A taxa das enfermidades
transmissíveis continua sendo elevada, em especial
nos menores de cinco anos e nas populações de bai-
xa renda e de menor nível de escolaridade.
Entretanto,
as enfermidades crônicas não transmissíveis (ECNT),
principalmente as enfermidades cardiovasculares, o
câncer, o diabetes e as enfermidades respiratórias
crônicas, constituem a principal causa de mortalida-
de e de custos sanitários evitáveis na Região. A in-
cidência de mortes prematuras e de incapacitações
por ECNT acarreta graves consequências para o de-
senvolvimento social e econômico, e pode aumentar
as desigualdades entre países e populações. A perda
da produtividade e o impacto no crescimento eco-
nômico pelas ECNT põe em risco a estabilidade dos
sistemas de pensões em vários países da Região.
(OPAS, 2013)6.
6 No original: “Entre 1992 y el 2012, la Region registro avances con respecto a la prevencion y el
control de las enfermedades transmisibles, como la malaria y las enfermedades desatendidas. La
mortalidad, por enfermedades infecciosas a lo largo de lós dos ultimos decenios, se redujo significa-
tivamente gracias al posicionamiento del tema a un alto nivel de prioridad regional y de los paises, a
la adopcion de directrices fundamentadas en datos probatorios, a la cooperacion entre los paises y
a un importante financiamiento internacional. La carga de las enfermedades transmisibles continua
siendo elevada, en especial en los menores de cinco anos y en las poblaciones de ingresos bajos y un
menor nivel de escolaridad. (p. Las enfermedades cronicas no transmisibles (ECNT), principalmente
las enfermedades cardiovasculares, el cancer, La diabetes y las enfermedades respiratorias cronicas,
constituyen la principal causa de mortalidad y de costos sanitários evitables en la Region. La carga
de muertes prematuras y de discapacidad por ECNT plantea graves consecuencias para el desarrollo
social y economico, y puede aumentar las desigualdades entre paises y poblaciones. La perdida de
productividad y el impacto en el crecimiento economico de las ECNT pone en riesgo la estabilidad de
los sistemas de pensiones em varios paises de la Region.”
32
numa estimativa conservadora, cerca de 20-40% dos
recursos gastos em saúde são desperdiçados, recur-
sos que poderiam ser redirecionados para atingir a
cobertura universal. Todos os países, independen-
temente do seu nível de rendimento, podem tomar
medidas para reduzir a ineficiência, algo que requer
uma avaliação inicial da natureza e causas das inefi-
ciências locais. (OMS, 2010).
7 No original: “A trend toward improving the health status of the population and providing better
access to health services hás been noted in the literature. Yet, health gains have not been equal for
all Brazilians and the gap between health status and utilization of health services by the poor and the
rich remains wide.”
33
Outro fator de desigualdade social é o anonimato, denunciado
em todas as nações, uma vez que o trabalhador e o cidadão comum
das cidades ou do campo são anônimos ou simples desconhecidos (EA-
GLETON, 2010) e, para enfrentar esse problema, é necessário enfrentar
a falta de coragem política, confrontar o assombroso poder do capi-
talismo empresarial global e a “má fé dos vira-casacas ex-trotskistas”.
(EAGLETON, 2010, p.322).
Talvez a solução para a desigualdade induzida pelo anonimato
esteja na corajosa – e talvez utópica – proposta de Chomsky, de que,
numa sociedade democrática, os trabalhadores devem ser os senhores
de seu próprio destino social e não instrumentos. (CHOMSKY, 2002)
Portanto, uma boa reflexão ética dos dilemas enfrentados não
deve ficar limitada às opiniões pessoais, mas devem ser enriquecidas
pelos vários aspectos filosóficos pertinentes, pelas questões antropo-
lógicas que a influenciam significativamente, como religião, mito, rito,
tabus, conceitos de família e a percepção de saúde e doença. Nos dias
atuais, a liberdade adquiriu um valor extraordinário e, portanto, não se
pode discutir ética sem considerá-la.
34
FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA A REFLEXÃO ÉTICA
NO ENSINO DA ÁREA DA SAÚDE
Capítulo 2
Fundamentos Filosóficos
35
Mas o pensamento não é formado por um turbilhão de ideias, uma vez
que ele deve ser sistemático, procurando ordenar e esclarecer as coisas
e fatos. A semelhança do pensamento filosófico com a ciência não é
mera coincidência, pois da filosofia nasceu o espírito científico.
A filosofia estuda:
As paixões e os vícios humanos, a liberdade e a von-
tade: analisa a capacidade da nossa razão para impor
limites aos nossos desejos e paixões.
8 Dogmática – expressão derivada da palavra grega “dogma”, que significa uma crença ou doutrina
que não admite contestação.
36
yy A metafísica – ramo que se ocupa em estudar a essência do
mundo, procurando respostas sobre a natureza, a realidade fun-
damental das coisas, o que é natural e o sobrenatural.
37
mamente severa e complexa, cuja visão não era discutida. O filósofo Pe-
ter Singer afirma que a postura humana esperada era a de aceitar a lei
divina sem questionar – “o próprio significado de bom é apenas o que
Deus aprova” (SINGER, 2002, p.27). Essa postura permaneceu inalterada
durante séculos, passando ao Ocidente juntamente com o Cristianismo.
Foi por causa dessa visão absoluta do poder de Deus que Espi-
nosa9 (1632-77), filósofo de origem judaica, considerou o Deus bíblico
como um Ser absoluto, constituído por infinitos atributos, sendo que
“os atributos não o compõem, pois composição supõe partes extrínse-
cas, mas o constituem” (apud CHAUÍ, 1999, p.47). A constituição divina
seria perfeita, exigindo do Homem10 que O servisse e honrasse, mas, Es-
pinosa demonstra que, em contrapartida, é retirada a autossuficiência
do ser humano. Esse mandamento divino representava o destino ou o
fim que o homem deveria perseguir, sendo considerado como finalis-
mo, uma vez que
pede obediência das criaturas a Deus, mas na verda-
de, obtém a submissão da divindade aos desejos de
seus efeitos. Pensado como relação de mando e de
serviço, frustração e satisfação, dependência e sub-
missão, o finalismo oculta sob a capa da metafísica
uma relação precisa entre Deus e o mundo: a relação
da autoridade. (CHAUI, 1999).
9 Adotamos neste livro a grafia Espinosa, embora também se encontra Espinoza e Spinoza.
10 O termo Homem, com H capital é utilizado aqui em coerência à linguagem bíblica, compreenden-
do todo ser humano independentemente do gênero. Essa forma de grafia será utilizada em outros
locais do texto, sempre significando a generalização do ser humano.
38
bom para Deus e o que não é nesse episódio bíblico e, portanto, não há
uma distinção clara do Bem e do Mal.
Mais recentemente, outro filósofo judeu, Martim Buber (1878-
1965), afirma que Deus cria o Bem e o Mal, pois no próprio Livro da Lei,
Isaías um dos maiores profetas bíblicos, escreve em nome de Deus que
“Eu formo a luz, e crio as trevas; faço a paz, e crio o mal; Eu o SENHOR,
faço todas estas coisas” (Bíblia, Isaías 45:7). Para Buber, essa afirmação
anuncia que o homem tem consciência dos opostos.
Fica evidente que a Bíblia não trata da ética como a entendemos
hoje, uma vez que ela preconiza um julgamento de obediência e não
julgamento de valor. Pelos preceitos bíblicos, o Homem apenas deve
cumprir o que a Lei Divina prescreve.
Outro motivo que dificulta as comparações é a pouca importân-
cia dada ao indivíduo isoladamente. Podemos constatar na leitura do
texto bíblico que o Homem não tem importância individual. O impor-
tante é o povo e, quando existem castigos divinos, estes atingem indis-
tintamente justos e pecadores. Tanto o erro como o acerto é diluído nas
atitudes coletivas. As exceções são pontuais.
39
da criação do homem. Iniciemos com a reflexão, considerada como
uma atitude fundamental para o filosofar. Reflexão significa movi-
mento de volta ou de retorno a si mesmo. A reflexão filosófica é um
movimento radical, porque pergunta como é o pensamento em si mes-
mo e busca a raiz dos problemas. É pela reflexão que o indivíduo pro-
cura o conteúdo, o sentido e a finalidade das coisas e também com a
intenção do que fazemos, através de perguntas como “Por quê?” “O
quê?” e “Para quê?” sempre na busca de respostas sobre o conheci-
mento. Não é uma curiosidade infantil, porque exige uma forma de
pensar sistemática. O pensar filosófico não é um pensamento do tipo
“eu acho” ou “eu gosto” e, também não é uma pesquisa de opinião ou
de mercado.
Como a Grécia representava na época a parte mais evoluída do
mundo ocidental, muitos fatores foram responsáveis pela expansão de
suas ideias:
40
Período pré-socrático – também chamado de cosmológico, por-
que nessa época os filósofos se preocupavam em apresentar uma ex-
plicação racional e sistemática para a origem e a ordem da Natureza e
do Homem. Os gregos não eram criacionistas, ou seja, não acreditavam
que o mundo tivesse se originado do nada. Ao contrário, acreditavam
que a Natureza (ou physis) era eterna e que tudo se originava dela, in-
cluindo os seres, e que os seres evoluíam e se transformavam.
A essa mudança contínua – nascer, morrer, mudar de qualidade
ou quantidade – os gregos deram o nome de movimento. Cada filósofo
desse período encontrou diferentes motivos e razões para a origem das
coisas e para as mudanças da natureza.
Logo a seguir, a democracia se instalou na Grécia e a virtude cívi-
ca (Arete) passou a ser a maior preocupação. Os educadores gregos se
voltaram para a política, procurando ensinar aos jovens um meio de
ter sucesso, denominado de retórica. A retórica se constitui na “arte”
de defender uma posição por intermédio da oratória e, imediatamente
após, defender com igual brilhantismo, a posição contrária. Esses edu-
cadores eram os filósofos que foram denominados de sofistas.
Outras escolas filosóficas se estabeleceram nesse período, mas
não é de interesse a sua apresentação para não estender o capítulo e
assim perder o foco.
Período socrático – assim chamado em homenagem a Sócrates,
considerado o patrono da filosofia. Não considerava os sofistas verda-
deiros filósofos, porque não tinham respeito pela verdade, uma vez que
buscavam soluções apenas na retórica e não na essência das coisas e
das ideias e, além disso, cobravam pelos seus ensinamentos. Esse pe-
ríodo se tornou conhecido como período antropológico (anthropos =
homem, logus = conhecimento).
Sócrates propunha que, antes do homem conhecer a Natureza,
deveria conhecer a si próprio, e dedicar-se ao estudo da verdade e da
essência, porque a opinião varia de uma pessoa para outra, de um
lugar para outro, assim como de uma época para outra. A opinião é
instável e mutável, enquanto a essência é imutável, não dependendo de
local, época ou pessoas. Assim, Sócrates não perguntaria se um jovem
é belo, mas perguntaria qual a essência do belo e a preocupação do ho-
mem deveria ser o conhecimento das virtudes. A virtude era a excelên-
cia e a superioridade, própria dos melhores, os aristocratas (ou aristói),
41
que tinham de conquistá-la pelo conhecimento consciente, porque ela
não é algo que seja dado.
Como Sócrates acreditava que a construção do Universo era o
resultado de um plano inteligente, a sua preocupação era voltada para
as ideias. A visão do mundo poderia ser ilusória, porque a percepção
pode ser falha, devendo o homem procurar a essência das coisas, uma
vez que o verdadeiro conhecimento seria a herança de uma vida ante-
rior em um mundo imaterial. Dessa forma de pensamento se originou
o seu método de ensinar, denominado maiêutica, que consiste em fazer
perguntas e analisar as respostas até que, num momento se chegue ou
à verdade ou à contradição do enunciado. Esse método parte de sua
famosa frase “eu só sei que nada sei”, estabelecendo normas profundas,
como a humildade para aprender, a predisposição para o novo, a rejei-
ção do dogma, a liberdade da discussão, a não aceitação de preconcei-
tos (ou ideias pré-concebidas).
Aparentemente sofreu forte influência de outro filósofo e mate-
mático que o antecedeu, Pitágoras de Samos (570-496 a. C.), conforme
se pode deduzir de frases atribuídas a esse pensador, como “não é livre
quem não consegue ter domínio sobre si” ou “educai as crianças e não
será preciso punir os homens”, com evidentes conotações éticas.
Sócrates não deixou nada escrito, sendo seus pensamentos co-
nhecidos pelos escritos de Platão, seu discípulo. Sócrates e Platão fize-
ram uma profunda separação entre as ideias (que são a essência) e as
opiniões e as imagens. Consideravam as opiniões e as imagens como
sendo mentirosas, falsas, inconsistentes e transitórias.
Aristóteles, que foi discípulo de Platão, sistematizou o conheci-
mento humano. Ele classificou os conhecimentos em áreas e em graus
de complexidade, indo do mais simples ao mais complexo, criando uma
forma de pensar particular, a lógica. A lógica não é uma ciência, mas um
instrumento de qualquer ramo do conhecimento.
De acordo com a lógica aristotélica, as ciências mais simples se-
riam as produtivas, que se preocupam com as técnicas, seguidas das
ciências práticas que se ocupam da ética, das virtudes morais (coragem,
generosidade, amizade, justiça, honradez, temperança) e da política. As
ciências mais evoluídas são as teoréticas, que incluem a contemplação
(theoria em grego significa contemplação) e os estudos da física (nature-
42
za), a biologia, a astronomia, a teologia e, finalmente, a metafísica, que
seria a ciência mais elevada, pois estuda o próprio ser.
Não estenderemos a apresentação do período pré-socrático e,
do período pós- socrático, nos deteremos no estoicismo, filosofia de
Zenão de Cício (334-262 a. C.), ateniense do qual sobreviveram apenas
fragmentos de suas obras. Os estoicos acreditavam que o cosmo é for-
mado e guiado por uma razão, ou logos, que representa a ordem, o
destino e as leis naturais, dando origem a uma harmonia no Universo.
Assim, a dor e o sofrimento existem para dar equilíbrio, assim como o
escuro existe para dar forma à luz. Como a dor, o sofrimento e o mal es-
tão além do nosso controle, porque eles existem para dar o equilíbrio. É
recomendada a indiferença (apatheia em grego), que seria um caminho
para alcançar a tranquilidade. As emoções irracionais, como o remorso,
devem ser suprimidas, aceitando-se a inevitabilidade e mantendo-se a
ordem cósmica. Essa forma de pensar retornou no Renascimento e in-
fluencia ainda hoje o pensamento ético.
A filosofia estoica adquire força e vigor em determinadas situa-
ções de doença, como no caso de dores crônicas e doenças incuráveis,
assim como a resignação com situações adversas.
Outra forma de pensar pós-socrática é o ceticismo, sistema filo-
sófico de Pirro (318-272 a. C.), que afirma que o homem não tem capa-
cidade do conhecimento absoluto da verdade ou do conhecimento. É
uma corrente oposta ao dogmatismo.
43
Seu discípulo Platão (427-327 a. C.) acreditava que a virtude é a for-
ma de desenvolver o conhecimento moral que pode ser aplicado a situa-
ções particulares e a contextos políticos. Ela pode ser interpretada como
uma habilidade e talvez não tenha o mesmo significado em nossos dias.
Foram muitos os escritos atribuídos a Platão, porém um deles re-
presenta uma grande alegoria do pensamento humano – o Mito da Ca-
verna (ANEXO 2). A leitura crítica desse mito nos permite compreender
que o indivíduo analisa apenas parte do problema, o que resulta numa
análise fracionada e incompleta, originando conclusões erroneamente
consideradas verdades completas e absolutas.
Por sua vez, Aristóteles (384-322 a. C.) tratou a ética de forma
muito próxima como ela é vista hoje: como uma “ciência dos costumes”,
influenciando de modo significativo S. Tomás de Aquino. Distinguiu dois
enfoques no estudo da ética, sendo o primeiro de ordem metafísica,
com a participação do divino no homem, e o segundo, de ordem polí-
tica, em que o enfoque é propriamente humano, originando um pen-
samento dialético. Aristóteles afirmou que o ser humano é feito para a
convivência social, e o bem supremo não se realizaria na vida individual,
mas no coletivo – ou no estado – de modo que a ética culminaria na
política. O adágio sofista de que “vício e virtude são tais por convenção
social” parece ter influenciado Aristóteles, que defendeu serem arbitrá-
rios tanto o vício como a virtude, pois dependem da comunidade. Acre-
ditava ainda que cada um julga corretamente aquilo que conhece.
Aristóteles exerceu importante influência, que se mantém até
hoje graças a seus conceitos de virtude, que seriam um hábito ativo que
deveria ser estudado juntamente com a ética, e as duas com a felicida-
de. O estudo da Virtude compreende a liberalidade, a temperança, a
fortaleza, a magnificência, a magnanimidade, a brandura, a amabilida-
de, a sinceridade, a urbanidade e o pudor.
Para ele, a virtude podia ser classificada em uma escala de va-
lores, iniciando com a Virtude Física – aquela que advém da nature-
za – e evoluindo para a Virtude Ética – que surge, quando se aplica a
inteligência.
Finalmente, o último grau seria a Virtude Dianoética – grau supe-
rior que engloba a arte, a ciência, a sabedoria, a prudência e o que ele
denominou intelecto. Ela não é originada da natureza nem é contra a
natureza, mas é conquistada com o exercício de atos virtuosos. É a per-
44
feição do ato humano propriamente dito, implicando no equilíbrio ou
meio termo. O excesso resulta em erro e a falta é censurável.
Para a filosofia grega em geral, a virtude mais importante era a
justiça, cujo significado geral implicava na obediência às leis e o signi-
ficado restrito estava ligado à distribuição de honras, riquezas e coisas
divisíveis. A justiça também devia regular as aquisições e os contratos,
a distribuição equitativa dos bens (justiça distributiva), propiciar a uma
parte prejudicada um proveito igual ao seu dano (justiça corretiva) e
assegurar que os culpados fossem tratados como iguais.
Num contraste com as ideias contemporâneas, podemos assi-
nalar que Aristóteles acreditava que as discussões sobre justiça impli-
cam em debates sobre a honra, a virtude e a natureza de uma vida
boa, enquanto os contemporâneos acreditam que justiça implica em
neutralidade.
Assim, embora os gregos continuem a nos influenciar de mui-
tas formas, uma importante diferença separa do pensamento grego do
contemporâneo, pois hoje, as
teorias modernas de justiça tentam separar as ques-
tões de equidade e direito das discussões sobre
honra, virtude e mérito moral. Elas buscam princípios
de justiça que sejam neutros, para que as pessoas
possam escolher e buscar seus objetivos por conta
própria. (SANDEL, 2013, p. 234).
45
a religião judaica foi transformada numa dissidência, dando origem à
religião cristã.
A filosofia cristã medieval tornou-se uma mistura de pensamen-
tos judeus e gregos, sofrendo influência das ideias árabes ao longo da
Idade Média. Uma das consequências mais notáveis foi a separação en-
tre o infinito (Deus) e o finito (homem), isolando a fé da razão.
A razão deveria subordinar-se à fé, numa hierarquia semelhante
à dos seres, que se iniciava com Deus e descia sucessivamente com ar-
canjos, anjos, alma, corpo, animal, vegetal e, finalmente, mineral. Essa
hierarquia tornava natural a subordinação dos seres: os vassalos de-
viam obediência aos nobres, os nobres aos reis, os reis à Igreja. Tam-
bém evidente era a separação entre corpo e espírito, em que o corpo é
subordinado ao espírito (alma).
A era patrística colocou o conflito entre a fé e a razão, tendo mui-
tos nomes importantes, com destaque especial para Santo Agostinho.
Outros povos também exerceram influência, embora limitada, desta-
cando-se os árabes e, dentre eles, Avicena e Averróis, e os judeus, com
Maimônides e Yeudah Bem Levi. A filosofia do final desse período foi
chamada de Escolástica, pois se baseava na autoridade dos estudiosos.
Os primeiros séculos do primeiro milênio foram muito contur-
bados. Os imperadores romanos que expandiram o império passaram
de heróis nacionais a tiranos sanguinários. O povo sofreu muito nesse
período decadente, pagando impostos altíssimos e sofrendo com guer-
ras contínuas e invasões estrangeiras. Até a diversão era brutal, pois
o esporte máximo era o teatro de arena, com festas que chegaram a
durar 90 ou mais dias, e traziam a morte de milhares de gladiadores e
animais, além do sacrifício de prisioneiros, entre eles os cristãos.
No ano 313, o imperador Constantino concedeu liberdade ao cris-
tianismo e, com a liberdade, talvez em decorrência da própria brutalida-
de da época, os cristãos passaram a ter acesso às armas, poder político
e dinheiro que foram utilizados para matar os inimigos do cristianismo.
Em apenas um século, surgiram dezenas de formas de religiões cristãs
e a disputa entre elas foi feroz, uns eliminando fisicamente os outros.
Todas as igrejas diziam ser a ‘única e verdadeira’.
Nessa época viveu Santo Agostinho (354-430), fruto do casa-
mento de um funcionário público romano ateu com uma cristã (mais
tarde, Santa Mônica). Aos 6 anos, começou a estudar e encheu-se de
46
horror pelos livros, jurando guerra contra eles. Em suas memórias, afir-
ma que não suportava “um mais um são dois, dois mais dois são quatro
– que odiosa cantilena era isso!”. Tornou-se um farrista, conforme ele
mesmo disse.
Entre os 12 e 13 anos de idade, ocorreu uma reviravolta: ele des-
cobriu prazer na leitura, principalmente na poesia grega e na oratória.
Tornou-se mestre em retórica que mais tarde iria criticar violentamente
– “Aqui se aprendem palavras! Aqui se adquire a arte de falar, arte indis-
pensável quando se trata de violentar a verdade e adulterar o sentido
dos conceitos”.
Casou-se, teve um filho chamado Adeodato (dado por Deus).
Anos depois, numa outra reviravolta por pressão da mãe, separou-se,
abandonou o filho, agora chamado “filho do pecado”, e casou-se com
uma jovem cristã com quem faz um pacto de castidade. Estudou pro-
fundamente a Bíblia, abandonando a seita maniqueísta (forma de cris-
tianismo que admitia dois seres eternos: um bom e luminoso e outro
mau e tenebroso) e converteu-se ao cristianismo romano.
Aproximadamente oitocentos anos se passaram. O Império Ro-
mano não mais existia como estado único, quando um novo grande
pensador cristão surgiu – S. Tomás de Aquino (1225-74). Nascido perto
de Nápoles de uma família importante, ingressou na Ordem Dominica-
na, ensinou em Paris e Colônia (Alemanha) e foi conselheiro do Papa.
O mundo ocidental havia mudado profundamente e a Europa era uma
associação de estados feudais em que o comércio prosperava e a Igreja
era rica e florescente.
Novos ventos sopraram sobre a velha Europa que havia mudado
definitivamente. A separação do estado laico do religioso desencadeou
uma revolução no pensamento que não teve mais retorno. Entretan-
to, as repercussões dessas ideias revolucionárias foram muito lentas,
porque a divulgação do conhecimento estava reservada aos grandes
mosteiros e conventos. Os livros eram poucos e raros, sempre copiados
à mão e, portanto, caros. Soma-se o analfabetismo que atingia inclusi-
ve a nobreza e o baixo clero, dificultando ainda mais a propagação de
novas ideias.
47
2.4.1 A Ética no pensamento cristão medieval
O Cristianismo dominou totalmente o pensamento do Ociden-
te na Idade Média e o tema que predominou foi a divisão entre o
Bem e o Mal.
O Bem foi definido como aquilo que seria útil para a comunidade,
como a solidariedade, a ajuda mútua, a disciplina, o amor aos filhos e a
luta pela defesa do grupo. O Mal continuou, como no Velho Testamen-
to, como o que desagradava a Deus, agora com influência grega e com
uma segunda interpretação: era aquilo capaz de enfraquecer a união
do grupo e promover a dispersão de esforços ou o isolamento.
A preguiça passou a ser um vício terrível, porque debilitava o gru-
po e atingia seus interesses vitais.
A escravidão deixou de ser um hábito dominante entre os euro-
peus, mas, por outro lado, as pessoas foram “divididas” em classes: a
de homem livre (nobres e sacerdotes) e a de servo. Esse fato produziu
duas morais: a do indivíduo livre, baseada nos ensinamentos éticos dos
grandes pensadores gregos e a do não livre, desenvolvida com dificul-
dades óbvias. O servo não era nominalmente escravo, mas, na prática,
não tinha o direito da livre locomoção, não podia abandonar a terra de
seu senhor e, quando esta era vendida, era objeto integrante da transa-
ção. Na prática, o servo era propriedade à disposição do senhor feudal
embora tivesse adquirido o direito à vida (BATISTA NETO, 1989).
Santo Agostinho, alguns séculos após, adotou uma posição es-
sencialmente determinista, embora dissesse acreditar no livre arbítrio
dos homens. Para ele, o livre arbítrio consistia em apenas duas opções:
obedecer ou desobedecer a Deus. Apresentou o Mal como a ausência
do Bem ou a incapacidade de atingir o Bem. Sua ética apresenta Deus
como o Bem Supremo e a Causa Final de toda a aspiração da criação.
Sua teoria do Pecado Original incluía o conceito de imperfeição absolu-
ta do homem, que passaria a correr o risco de terminar no inferno. En-
sinava que o mundo criado seria uma obra perfeita e aquele que peca,
ou seja, o que vai contra a vontade do Deus Criador, é inteiramente
responsável por seus atos (ALBERONI; VECA, 1990). Para contornar esse
destino trágico originado pelo nascimento, atribuiu a Cristo o poder de
salvar os homens pela Graça.
Ele pregou a separação entre os poderes da Igreja e os do gover-
no, assim como a dignidade e os direitos de todos os homens. Procurou
48
uma síntese entre o pensamento cristão e o paganismo de Aristóteles,
insistindo que um bom pagão pode ser capaz de captar a verdade. Pre-
gou que o pecado da queda podia ser neutralizado pela Graça de Deus
– “a graça não elimina a natureza, mas a aperfeiçoa”. Pregou que o ser
humano era bom na sua essência, mas que sofreu uma queda no mo-
mento da criação. A diferença parece pequena, mas ela confere a capa-
cidade da regeneração ou da recuperação do estado de pureza original.
A influência de Aristóteles é perceptível, pois
na ética aristotélica, a justiça é uma virtude moral ine-
rente à pessoa, como disposição subjetiva de fazer
ações conforme a lei geral e particular. Isto significa
que o valor qualitativo das ações recai primeira e fun-
damentalmente sobre a qualidade moral do sujeito.
(PEGORARO, 1995, p. 34).
49
abrandou as penas impostas pelas leis dos romanos
e bárbaros. Condenou com todo rigor a imoralidade
sexual. … Criou e manteve uma lei moral para todas
as cidades e pequenos Estados europeus concor-
rentes entre si.…Criou e manteve uma lei moral para
todas as cidades e pequenos Estados europeus con-
correntes entre si. (DURANT, sd, p. 744-755).
50
2.5 A Modernidade e a revolução na Filosofia
A filosofia dita Moderna não tem uma data específica para o seu
início, mas certamente o ambiente do Renascimento foi propício a ela. O
Renascimento também não foi um período com datas precisas, nem ocor-
reu em toda a Europa ao mesmo tempo, aparecendo primeiro nas cidades
estado da Itália, depois na França e mais tarde na Inglaterra e Alemanha.
O Renascimento foi um movimento de ordem artística, cultural e
científica que transformou radicalmente o mundo ocidental, encerran-
do a Idade Média e deflagrando a Idade Moderna. Como em todos os
processos de mudança, houve resistências maiores ou menores, sendo
talvez a mais importante a perseguição religiosa. A Inquisição pode ser
dividida em duas fases: a primeira, a mais branda (séculos XIII e XIV), em
que geralmente a pena máxima era a excomunhão, e a segunda, mais
feroz, nos séculos XV ao XIX.
Essa segunda fase da Inquisição é a que nos interessa, porque teve
como alvo principal inicial os judeus e os recém-convertidos – os cristãos
novos. Logo, a perseguição se propagou aos “falsos convertidos”, com
a fiscalização de “hábitos secretos” tendo o apoio de muitos reis, o que
aumentou o poder do Santo Ofício (órgão encarregado da Inquisição).
Nesse momento, a perseguição facilmente se estendeu aos protestantes
e pensadores que ousavam manifestar suas ideias – já vimos antes que
até mesmo Descartes, que era católico, teve suas obras proibidas.
No que diz respeito à ética, que é nossa preocupação principal,
o interesse se dirige aos grandes homens que marcaram a cultura Oci-
dental, como Copérnico, René Descartes, Isaac Newton, Maquiavel,
Dante, Erasmo, Tomas Morus e Kepler. Os conflitos entre a Igreja e os
pensadores tiveram início com as críticas de Dante ao comportamento
de nobres e clérigos na Divina Comédia (1555), ao perfil nada lisonjeiro
dos soberanos que Maquiavel descreve em O Príncipe (1532) e também
com as ideias revolucionárias de Copérnico, defendidas por Galileu.
As críticas de Dante e Maquiavel, as posturas científicas de Ga-
lileu, Newton e a liberdade da dúvida iniciada por Descartes abalaram
a certeza absoluta da criação do Homem como finalidade máxima da
Obra Divina. A teoria da terra como centro do Universo foi cancelada
e os dogmas foram abalados. Estava estabelecido o conflito entre as
religiões e a filosofia, iniciando um período de lutas mais ou menos fe-
rozes. A ciência, fruto da filosofia, nasceu num clima de conflito.
51
A velocidade de propagação das novas ideias foi vertiginosa
para os padrões da época, graças à recente invenção da imprensa e
sua disseminação a todos os confins do mundo, propiciada pelos des-
cobrimentos marítimos. A revolução industrial contribuiu para a popu-
larização das novas ideias, que incluíam a liberdade e a distribuição da
riqueza e do poder. A igualdade e a fraternidade passaram a ser temas
de filósofos e revolucionários.
Outro fator de instabilidade foi que a obtenção da riqueza conti-
nuou a ser dependente do trabalho e exploração dos mais fracos, não
havendo mudanças sociais na revolução industrial que se iniciava.
O sistema funciona eficazmente só no caso de garan-
tir lucros, o que exige por sua vez, que o operário seja
considerado exclusivamente como um homem eco-
nômico, isto é, como meio ou instrumento de produ-
ção e não como homem concreto (com seu sofrimen-
to e desgraças). … A economia é regida, antes de mais
nada, pela lei do máximo lucro, e essa lei gera uma
moral própria. (VÀZQUEZ, 1993, p. 69).
2.5.1 Racionalismo
O Racionalismo é uma corrente filosófica centrada na razão, que
é uma operação mental em forma discursiva e lógica, usada para extrair
conclusões e também para constatar se uma proposição é verdadeira,
falsa ou provável. Difere da posição racional de Sócrates e Platão, por-
que eles acreditavam na verdade da razão e na ilusão da percepção,
enquanto o Racionalismo preconizado por Descartes instituía a dúvida
metódica não apenas do testemunho dos sentidos e do senso comum,
mas avançava nos argumentos das autoridades até as informações da
consciência e das verdades deduzidas pelo raciocínio ou pela razão. A
própria realidade do mundo exterior e do próprio corpo deve ser ques-
tionada. O Racionalismo afirma que tudo o que existe tem uma causa, e
essa causa é inteligível, mesmo que não possa ser demonstrada empi-
ricamente – como, por exemplo, o Universo, que tem como causa Deus.
52
Essa foi a base do pensamento cartesiano, originado das ideias
de René Descartes (1569-1650), um intelectual francês com forte com-
ponente aventureiro que lutou junto as tropas do holandês Maurício de
Nassau, do Imperador da Baviera e na Guerra dos Trinta Anos. Desta-
cou-se pelos estudos de filosofia, matemática e física. Embora católico
praticante, foi perseguido pela Inquisição (1629) e suas obras colocadas
no Index dos livros proibidos pela Igreja.
Acreditava na Razão como a capacidade de bem julgar e discer-
nir o verdadeiro do falso. Seu princípio máximo, “Penso, logo existo”
tornou-se um marco filosófico. Para ele, o homem é essencialmente
um animal racional, sendo o bom senso a coisa mais bem dividida do
mundo – todos têm. Instituiu a dúvida sistemática: “jamais devemos
admitir como verdadeira alguma coisa que não a reconheçamos como
tal”. Como nem todos os homens utilizam bem a razão, introduziu um
método para conduzir o raciocínio. Esse método possuía regras que
permitiam procurar a verdade nas ciências:
53
para a existência de Deus que, por ser um Ser perfeito, não poderia ser
explicado por um ser imperfeito, o Homem.
A queda de uma maçã era vista muito provavelmente como o
resultado de uma força mística: Deus fez o mundo assim e então seria
natural que tal fato ocorresse, até que um físico e matemático, usando
a dúvida sistemática, não aceitou o evento como sendo uma qualidade
oculta do universo. Isaac Newton (1643–1727) foi o sábio inglês que
também se destacou como astrônomo, alquimista e teólogo e que, com
sua obra Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (1687), descreveu
a gravidade universal e as três leis que fundamentam a mecânica clássi-
ca (conhecidas como leis de Newton).
Ao aplicar a crítica radical à escolástica e às leis de Kepler, desenvol-
veu os seus próprios postulados e demonstrou que os movimentos dos
objetos, da Terra e dos demais corpos celestes são governados pelo mes-
mo conjunto de leis. Foi o fim da ideia da Terra como centro do Universo.
O racionalismo se expressou mais claramente em Benedito (ou
Baruch) Espinosa (1632-77), que exerceu de forma fenomenal para a
época o espírito crítico de Descartes, acreditando que os homens são
livres para afirmar, negar ou duvidar, como se depreende do seu clás-
sico texto:
os homens supõem comumente que todas as coisas
da Natureza agem, como eles mesmos, em conside-
ração de um fim, e até chegam a ter por certo que
o próprio Deus dirige todas as coisas para um de-
terminado fim, pois certo que o próprio Deus dirige
todas as coisas para um determinado fim, pois dizem
que Deus fez todas as coisas em consideração do ho-
mem, e que criou o homem para que lhes prestasse
culto. (ESPINOSA, 1997, p. 202)
54
yy A servidão é a falta de capacidade do ser humano em moderar
e controlar suas emoções, porque se um homem é submisso às
suas paixões, ele é incapaz de exercer poder sobre si mesmo.
yy O bem é aquilo que se sabe com certeza que será útil, e mal, o
que com igual certeza, se sabe será prejudicial.
Enquanto entre os gregos a ética era entendida como o estudo
dos meios para o homem ser feliz e na Idade Média a ética tinha como
foco a moral, obtida pela obediência aos princípios religiosos, Espinosa
procurou demonstrar que a alegria advém do afeto e da libertação das
paixões, situações que aumentam a nossa potência de agir. A sua defi-
nição de virtude é muito próxima da noção de poder, na medida em que
o indivíduo tem o poder de realizar alguma coisa.
A alegria consiste no aumento do nosso poder e todas as paixões
são passagens, pois entende que Virtude e Poder são a mesma coisa:
uma virtude é um poder de agir, uma forma de capacidade. “Quanto
mais um homem puder preservar o seu ser e procurar o que lhe é útil,
maior a sua virtude”.
Ele discutiu três sistemas éticos. O primeiro foi a Ética de Buda e
Jesus – que considera todos os seres igualmente preciosos, resistindo
ao mal com o bem e identificando a virtude com o amor. O segundo
foi a Ética de Maquiavel – que aceita a desigualdade entre os homens,
apreciando o combate, a conquista e o domínio, identificando a virtu-
de com o poder, e exaltando uma aristocracia hereditária. Finalmente,
ele discutiu a Ética de Sócrates, Platão e Aristóteles, em que a mente
informada e madura pode julgar, segundo circunstâncias diversas, im-
perando o amor e o poder; e identificando a virtude com a inteligência.
Espinosa conciliou essas filosofias aparentemente hostis, trans-
formando-as numa unidade harmoniosa e fornecendo um sistema mo-
ral que é a realização suprema do pensamento moderno. Admitiu que
o objetivo da conduta humana é a felicidade, definida como a presença
do prazer e ausência de sofrimento: “o prazer é a transição do homem
de um estado inferior de perfeição para um estado mais elevado”.
O pensamento e a vida de Espinosa representaram muito bem o
conflito entre a filosofia e as igrejas, pois ele viveu na época em que as
religiões católica, protestante e judaica eram predominantemente con-
55
templativas, procurando o isolamento monástico como ideal de pureza
e santificação. Como acreditava que a liberdade e a bem-aventurança
deviam ser transformadas em ações pelo uso da inteligência, conflitou
com todas as religiões, sendo ateu e obrigado a viver recluso.
2.5.2 Iluminismo
Como resultado do Racionalismo Cartesiano, houve um desper-
tar para o conhecimento, o que acabou por revolucionar o pensamento
ocidental. O conjunto de ideias que passou a dominar foi denominado
de Iluminismo, porque as pessoas acreditavam que o conhecimento se-
ria capaz de conduzir os homens de forma livre, ou seja, o conhecimen-
to poderia iluminar a vida das pessoas.
Mais do que uma corrente filosófica, o Iluminismo foi um movi-
mento iniciado no século XVII e que se estendeu por todo o século XVIII,
defendendo o uso da razão como o melhor caminho para se alcançar
a liberdade e a autonomia, procurando a emancipação do Homem. De-
fendia o secularismo, o afastamento da religião do Estado, propugnan-
do que as decisões dos dirigentes fossem independentes das ideologias
religiosas. Por se tratar de um movimento, utilizava todas as formas de
conhecimento filosófico, político, social, econômico e cultural, inclusive
aplicando os métodos das novas ciências newtonianas aos problemas
intelectuais. Surgiu graças ao racionalismo cartesiano, se caracterizan-
do pelo enfoque individualista associado a uma postura antirreligiosa e
livre pensadora.
Suas ideias eram urbanas, embora alguns morassem no campo.
Nomes como os escoceses Adam Smith e David Hume; na Alemanha,
Emanuel Kant, que liderou o movimento; na França, o destaque perten-
ce aos filósofos escritores da famosa Enciclopédia que pretendia reunir
todo o conhecimento humano; na Inglaterra, diversos nomes também
se destacaram, inclusive entre os ingleses que fundaram a nova nação
Americana, como Benjamin Franklin.
Como foi dito acima, um dos seus grandes momentos foi a idea-
lização, a confecção e a publicação, entre 1751 e 1780, de uma Enci-
clopédia, em 35 volumes, que pretendia resumir todo o conhecimento
existente até então. Foi organizada pelos filósofos franceses D’Alambert
e Diderot, juntamente com o pensamento político de J-J Rousseau, por-
que eles acreditavam que o simples conhecimento seria capaz de mo-
dificar o Homem.
56
A característica dominante era a existência de um senso moral e
de liberdade individual, ambos dependentes do conhecimento.
Os pensadores iluministas acreditavam que a razão humana,
uma vez livre dos dogmas religiosos e dos conceitos tradicionais, se-
ria capaz de resolver os mais importantes problemas da humanidade.
Seu maior representante, Diderot, afirmava que as questões religiosas
e morais deveriam ser decididas empiricamente, o que resultou num
protesto muito grande e que terminou com a proibição da maior parte
de suas obras.
Embora houvesse a proibição das obras de Diderot, o que se ob-
serva é que a atitude antidogmática e a crença de que o conhecimento
científico possa resolver a maior parte dos problemas tornou-se forte.
Essa crença no conhecimento livre de preconceitos resultou na espe-
rança de que o pensamento e a evidência podem levar ao melhoramen-
to da humanidade e ao progresso.
O Iluminismo não foi uma corrente filosófica, porque utilizava di-
versas correntes do pensamento (idealismo, materialismo, empirismo
etc.) que deveriam servir de base para a libertação do Homem, recu-
sando os dogmas, inclusive os religiosos. Essa última posição frequen-
temente acabava por negar a existência de Deus.
Passaremos a seguir a descrever muito resumidamente os
pontos que consideramos fundamentais que podem influenciar a re-
flexão ética.
57
A discussão era metafísica, podendo ser colocada pela pergunta
sobre o que veio primeiro – a matéria ou o espírito? Portanto, é natural
que a discussão retornasse com o fim do dogmatismo religioso.
Muito embora as questões metafísicas não dominem mais as
discussões e as filosofias idealistas e materialistas sejam, em geral,
opostas, a mesma pessoa pode ter posições idealistas ou materialistas,
conforme o assunto tratado. Aliás, é fato que não se consegue com-
preender bem o que seja um sem conhecer o seu oposto, portanto as
duas posições serão estudadas a seguir quase em conjunto.
yy Materialismo
Os materialistas insistem que o Homem sente em primeiro lugar
a existência do seu próprio corpo – o material. Em outras palavras, a es-
cola materialista afirma que tudo o que existe está na matéria, no corpo
e que tudo na natureza é objeto dos nossos sentidos, sendo, portanto, o
pensamento humano resultado da matéria, ou seja, o pensar é atributo
da matéria. O Materialismo sustenta que a única coisa certa da existên-
cia é a matéria e pressupõe que todas as coisas são compostas por ela
e todos os fenômenos são o resultado de interações materiais, sendo a
matéria a única substância.
yy Idealismo
Em contrapartida, os idealistas afirmam que o Homem sente a si
mesmo e que esse sentimento é uma manifestação interna, pelo pen-
sar, sentir, saber, sendo que primeiro é necessário que o pensamento
conceba. O Homem percebe um fenômeno com os olhos, mas o ato de
ver não é material e não pode ser tocado. Assim, a escola idealista tem
como base o espírito, sendo o pensamento e a matéria tomados como
corporificação do espírito.
Como o Homem percebe o que está em sua mente, a realidade
é sempre algo construído na consciência humana e a percepção de um
objeto é que determina o real.
Conforme anunciado acima, o Idealismo e o Materialismo foram
conceituados em conjunto, sendo natural então que alguns dos princi-
pais pensadores das duas correntes sejam vistos também em conjunto.
58
O critério de seleção foi a participação de suas ideias na formação dos
conceitos atuais de ética.
yy Principais pensadores
O primeiro é John Locke (1632-1704), para quem perceber é ter
ideias que correspondam às propriedades dos objetos, incluindo a ex-
tensão, comprimento, a figura ou forma, o movimento ou o repouso, a
quantidade e a solidez, assim como o que considerava aspectos secun-
dários, como, por exemplo, as cores. As ideias são aspectos da mente,
que é vazia ao nascer.
Um dos mais importantes foi Emanuel Kant (1724-1804), que
modificou para sempre os conceitos filosóficos, comerciais e legais, ao
estabelecer a proibição de tratar o ser humano como meio e determi-
nar que ele deve ser sempre o fim das ações e intenções. Ele imagina-
va que seria possível desenvolver uma ética baseada exclusivamente
na razão, com princípios morais capazes de controlar os impulsos, os
ideais, os desejos e as preferências.
Seu pensar constitui uma filosofia não contemplativa e se baseia
na ação, mas é idealista, porque, para Kant, “agir livremente não é es-
colher as melhores formas para atingir determinado fim; é escolher o
fim em si – uma escolha que os seres humanos podem fazer.” (SANDEL,
2013, p. 141).
É clara a importância que Kant atribuía à intenção, pois a ação é
determinada por necessidades as mais variadas, inclusive as fisiológicas
(ou naturais), sendo que a satisfação dessas necessidades não repre-
senta um ato moral nem significa que a ação foi livre. Em contrapartida,
um ato seria moral, se o indivíduo agisse com boa intenção, sendo eti-
camente importante o princípio que determinou a ação.
Assim, ele elaborou o seu imperativo categórico, que era uma
forma de agir que “não está relacionado com objetivo da ação e seus
supostos resultados, e sim com sua forma e com o princípio do qual
ele partiu.” (SANDEL, 2013, p. 151) Seu imperativo determinava que o
Homem deveria agir segundo uma máxima, segundo a qual, poderia se
tornar uma lei universal.
Kant não aceitava o Empirismo: “Não pode haver dúvida que todo
nosso conhecimento principia com a experiência… mas embora todo
59
ele comece com a experiência, não se segue que tudo nasça da expe-
riência.” Ele conferiu um valor secundário à experiência. Daí sua filoso-
fia ser denominada de criticismo. Para ele, a razão humana tende a se
achar como a única detentora dos conhecimentos, formando conceitos
ou imagens, às quais deu o nome de “ideias”. Ele admitiu que a razão
poderia deduzir a existência de Deus, da alma e do mundo, que trans-
cendem o conhecimento (isto é, são fenômenos transcendentes).
Mas a razão por si só não basta, não é suficiente, porque o homem
tem de ser crítico, deve ter posições independentes e refletidas e ser capaz
de pensar por si próprio, não aceitando como verdadeiro o que foi simples-
mente estabelecido pelos outros. Só após um exame livre e fundamentado
é que o conhecimento deve ser aceito. Por outro lado, a experiência por si
só não seria capaz de elaborar o material do conhecimento.
Kant concebeu o conhecimento como uma ação teórica comple-
xa capaz de conferir ao sujeito a iniciativa da experiência, portanto o
conhecimento é necessário à experiência. O conhecimento aliado à ex-
periência forma o juízo, que é uma capacidade de reflexão, de discerni-
mento, que não se aprende na escola, mas se desenvolve pelo exercício
das faculdades teóricas (razão) e práticas (experiências).
O homem não apenas busca o conhecimento, mas tem o dever
de fazê-lo.
O método de Kant pode denominar-se método re-
flexivo. Com efeito, é refletindo sobre os aconteci-
mentos racionais que nós possuímos que Kant ten-
tará obter uma ideia precisa da própria natureza da
razão. E a reflexão nada mais é senão aquele movi-
mento pelo qual o sujeito, a partir de suas próprias
operações, se volta sobre si mesmo. (PASCAL, 2001).
60
parte e, paradoxalmente, se julga senhor dos demais seres. A força é
um poder físico e, por consequência, a moralidade não resulta de seus
efeitos. Ceder à força é um ato de necessidade e não de vontade e é
antes de tudo um ato de prudência, uma vez que a força não produz
direito. Preconizou um Contrato Social que deveria reger as relações
humanas e é considerado por muitos como um pensador iluminista.
A essência de seu pensamento é que o Homem é naturalmente bom,
embora ele se corrompa, porque vive sob o domínio da sociedade. É
interessante que ele discutiu dois dos três lemas dos revolucionários
– liberdade, igualdade – e, o último, a fraternidade, não foi objeto de
exame profundo, à semelhança do que fez o pensador italiano Norber-
to Bobio, mais de 150 anos depois. Sua obra foi muito admirada pelos
líderes da Revolução Francesa e exerce influência ainda hoje nos estu-
dos éticos e educativos.
2.5.4 Empirismo
O Empirismo é um movimento filosófico radicalmente oposto ao
racionalismo, porque aborda o conhecimento como fruto das ciências
exatas, afirmando que as experiências são únicas e fundamentais, por-
que são elas que formam as ideias. O empirismo acredita que, ao se
perceber as coisas, originam-se as ideias, independente de seus obje-
tivos e significados, transformando-se no conhecimento científico, ou
seja, a sabedoria é adquirida por percepções.
A origem do Empirismo estava na burguesia, que, a partir do sé-
culo XVII, detinha os poderes políticos e econômicos, sendo Francis Ba-
con, Thomas Hobbes, John Locke, George Berkeley, David Hume, e John
Stuart Mill os principais expoentes.
Os empiristas adotaram o princípio que as ideias nasciam da ex-
periência – todo o conhecimento provém da percepção que se tem do
mundo externo, valorizando a observação científica. É pelas observa-
ções que se estabelecem as leis científicas, que seriam o resultado de
generalizações, pregavam os pensadores ingleses. O método foi deno-
minado de indutivo (Bacon), em contraposição ao dedutivo, de Des-
cartes. Nada está no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos.
Essa é uma proposição extremamente importante do empirismo.
61
Raciocínio dedutivo – se as premissas são verdadeiras,
a conclusão também deve ser verdadeira. É uma ques-
tão de lógica.
62
Como na ciência o experimento é controlado e na prática médica
o experimento nem sempre é, o uso do termo empírico na prática mé-
dica se torna muitas vezes negativo, fazendo com que a expressão vire
sinônimo de tratamento baseado unicamente na experiência pessoal,
sem base científica prévia.
2.5.5 Ceticismo
O Ceticismo ou pensamento cético teve início no século 3 antes
de Cristo, na Grécia, sendo uma corrente de pensamento que acredi-
ta ser impossível o conhecimento de qualquer verdade. Essa filosofia
rejeita qualquer tipo de dogma e um dos mais notáveis defensores do
Ceticismo foi o empirista escocês David Hume.
Hume foi dominado por sua opinião cética quanto ao poder da
razão em discernir a natureza real das coisas, em contraposição a Des-
cartes e seus seguidores, que afirmavam o poder da razão. Ele esten-
deu o ceticismo à religião, tecendo críticas ao cristianismo e, em relação
à moral, afirmou que “a moral e o juízo são objetos mais do gosto e do
sentimento que do entendimento.”
2.5.6 Utilitarismo
O Utilitarismo, desenvolvido por dois pensadores ingleses, Mill e
Bentham, foi uma doutrina ética consequencialista, por considerar que
as ações morais devem ser úteis aos indivíduos, assim como eles devem
perseguir a felicidade. Essa doutrina estabelece que os interesses de
uma pessoa não são mais importantes do que a de qualquer outro, de-
vendo haver uma igualdade de interesses, de modo que o objetivo final
deve ser a promoção da felicidade de forma igualitária.
Embora considerada por muitos uma doutrina moral ou ética, é
uma filosofia alvo de muitas críticas, porque não promove a discussão
de pontos importantes, como discutir o que seja a felicidade e nem os
compromissos morais envolvidos. Por exemplo, o Utilitarismo não dis-
cute os aspectos éticos e morais da realização do aborto ou da prática
da eutanásia, bastando a felicidade que essas ações possam produzir
em um número significativo de pessoas.
O Utilitarismo impregna a ética até os dias de hoje, após os tra-
balhos dos dois ingleses, porém ele surgiu mais ou menos na mesma
época do Empirismo. O seu fascínio é explicado pela sua fórmula de
63
que o bem é aquilo que traz vantagens a muitos. Além disso, como o
Utilitarismo propõe alcançar a felicidade no aspecto coletivo e não no
sentido apenas individual e, além disso, a vantagem de todos deve ser-
vir de guia para uma decisão, aparenta ser o oposto ao egoísmo.
Porém, como a natureza do homem é de estar sempre em busca
do prazer e, ao mesmo tempo, fugir da dor, Stuart Mill não concorda
com a simples busca quantitativa da felicidade. Não seria a quantidade
de prazer o importante, mas sim os melhores e mais valiosos, como
os intelectuais e os afetivos. Importantes pensadores de nossos dias,
como Singer e Popper, defendem essa filosofia.
Os que criticam o Utilitarismo adotam exemplos que poderiam
justificar medidas questionáveis, como sacrificar uma pessoa se isso
pudesse trazer benefícios a muitos. Uma das situações-problema apre-
sentada no capítulo 8 é o fato real ocorrido entre náufragos que opta-
ram por sacrificar o mais fraco e sem família para servir de alimento
aos mais fortes e com família. Atingiu-se assim o bem maior a um maior
número de pessoas, mas não se discutiu a ética e muito menos o que é
o bem ou o mal. O objetivo da moral é maximizar a felicidade, assegu-
rando a hegemonia do prazer sobre a dor.
Para muitos é uma filosofia determinista que acredita ser o indi-
víduo um produto do meio, ou seja, se nasceu na favela, será sempre
um favelado; se nasceu no crime, será ladrão; e dificilmente algo pode
ocorrer que mude esse quadro, impedindo sua progressão. Não há es-
paço para o livre arbítrio, portanto, para alguns críticos, não há lugar
para a ética.
Os filósofos utilitaristas também foram duramente criticados por
Kant, porque
os utilitaristas viam os seres humanos como capa-
zes de raciocinar, mas um raciocínio apenas instru-
mental. A função da razão, para os utilitaristas, não
é determinar quais são os objetivos que vale a pena
buscar. Sua função é descobrir como maximizar a uti-
lidade por meio da satisfação dos desejos que por-
ventura tivermos.
64
O conceito kantiano de razão – de razão prática,
aquela que tem a ver com a moralidade – não é de
uma razão instrumental, e sim “uma razão prática
pura, que cria leis a priori, a despeito de quaisquer
objetivos empíricos”. (SANDEL, 2013, p. 150).
2.5.7 Pragmatismo
Charles Peirce, em 1905, elaborou um método de atribuir signifi-
cação baseado numa relação dualista de teoria e prática, pensamento e
ação. Inicialmente não foi uma proposta filosófica, mas, firmou-se como
tal, quando Willian James (1842-1910) afirmou que “a verdade é o que
funciona”, ou seja, as nossas ações têm de dar resultado.
O pensamento pragmático acabou seduzindo muitos por ser
simples, tornando a filosofia um pensar de modo prático. Nessa forma
de pensar, não se precisa mais encontrar razões para as crenças do
mundo, tornando-as apenas algo prático e de uso individual. É um sis-
tema de resolução de problemas em que hipóteses são apresentadas
e testadas. Se a hipótese for coerente com a experiência e tiver aplica-
bilidade prática, está aprovada. A hipótese, então aprovada, passa a
ser considerada parte das experiências, o que leva a novas hipóteses e
testes.
O indivíduo é considerado pragmático, quando é prático, realista,
dotado de objetivos bem definidos, que evita agir de improviso e consi-
dera o valor prático como critério de verdade.
É uma teoria sedutora, mas comporta riscos para o agir ético,
porque considera apenas os resultados e pode ignorar o Homem. Sabe-
mos que o pragmatismo teve sua origem nas ideias de Kant, mas é uma
filosofia que ignora o princípio de que o Homem não pode ser tratado
como meio.
65
2.6 A Filosofia Alemã pós-Kant
A importância de Hegel, Comte e Marx para a ética se deve a
grande influência de suas ideias, embora não tenham apresentado tra-
balhos ou estudos específicos.
yy Hegel e a dialética
G. W. Friedrich Hegel (1770-1831), filósofo alemão admirador de
Kant, Rousseau e Espinosa, exerceu forte influência em muitos pensa-
dores posteriores (Marx, entre eles) e foi criticado por outros, como
Nietzsche. Criou uma forma de pensar depositária da filosofia grega e
do racionalismo cartesiano, que consistia numa construção lógica, ra-
cional, capaz de captar o real em sua totalidade. O sistema incluiu a
lógica, a filosofia da natureza e a filosofia do espírito, que compreende
a razão e a sensação e ou a percepção pelos sentidos.
Foi uma diferença fundamental, porque, desde Sócrates e Platão,
os sentidos estavam colocados em segundo plano. Para Platão, os sen-
tidos deviam ser desprezados, porque eles são enganadores e a busca
devia ser pela essência do ser, que não é exterior e nem transcende o
real. O mito da caverna, constante no Anexo A, é excelente para discutir
o engano gerado pela ilusão dos sentidos, segundo os gregos. Já para
Hegel, a essência é inseparável da aparência, porque o conjunto das
aparências constitui a manifestação total da essência.
O método dialético consiste numa ideia inicialmente apresentada
– denominada tese – a que se contrapõe uma ideia de sentido oposto
que entra em discussão, a que ele denominou antítese ou tese con-
trária. Da discussão da tese e da antítese, se origina uma conclusão, a
síntese. Na dialética hegeliana, a síntese se torna em nova tese, e todo
o círculo se reinicia. Essa metodologia permite que uma discussão não
se encerre definitivamente, porque toda conclusão pode ser o início de
uma nova discussão.
O grande benefício do método dialético nas discussões é permi-
tir que não haja ideias vencedoras, ocorrendo a assimilação de pontos
antes divergentes na formulação de uma terceira, então denominada
síntese. Por sua vez, a síntese estará sujeita a novas discussões e assi-
milações ao ser transformada em nova tese.
66
yy Comte e o Positivismo
Augusto Comte (1798-1875) desenvolveu uma forma de pensar
bem cartesiana, denominada de positivismo, fortemente influenciada
pelo empirismo. O positivismo dominou grande parte da cultura euro-
peia (inclusive no Brasil), sendo um importante fruto da revolução in-
dustrial, mudando radicalmente o modo de vida de todos.
A característica do positivismo foi a romantização da ciência, que
deveria se tornar no único guia da vida individual e social do homem.
Comte afirmava que o homem já havia passado por dois estágios que
pertenciam ao passado. O primeiro foi o estado teológico, em que todo
o pensamento estava voltado para a ideia de Deus e que o mundo es-
tava impregnado do divino. O segundo, denominado de estágio meta-
físico, ocorreu quando o homem começou a pensar por si, mas ainda
acreditava que o mundo havia sido criado por Deus. Finalmente, o ho-
mem estava vivendo o estágio mais avançado, denominado por Comte
de estado positivo. Nesse último estágio, o homem encontra a ciência,
que é o estágio definitivo e que pode dispensar a existência de Deus.
No estágio positivista, o homem deve observar os fatos, racioci-
nar sobre eles e procurar as relações que foram chamadas de leis. São
as denominadas leis da física, química, sociais, etc, que Comte imaginou
serem definitivas e imutáveis.
Para Comte, seguindo a linha do movimento iluminista, a utili-
dade do conhecimento é fundamental. Ele classificou as ciências em
categorias, sempre atendendo às prioridades, buscando atingir a com-
plexidade do conhecimento. Assim, a mais importante é a sociologia,
porque sendo resumo das ciências, é a mais complexa e útil. Por sua
vez, a sociologia representa o ponto de partida para o estudo da moral,
a política e a religião.
A sua ideia básica foi o amor como princípio, a ordem por base e
o progresso por fim. A moral de Comte apresenta como teses principais
a exaltação do sentimento e do altruísmo e a preponderância dos de-
veres sobre os direitos (que é o princípio básico de Kant). Na área eco-
nômica, os ricos deveriam ser perfeitos administradores de seus bens e
os pobres deveriam ser dependentes satisfeitos com sua posição social.
As duas classes deveriam colaborar para a prosperidade, a grandeza e a
realização da humanidade.
67
Como principais repercussões, temos a recusa e o desprezo pela
metafísica, a valorização extremada do fato, da experiência e da prova,
a confiança sem reservas na ciência, o esforço para dar forma científica
aos fenômenos sociais, a proposta de uma sociedade científica, plane-
jada, organizada e controlada em todos os seus níveis.
68
2.7 O princípio do século XX e o Existencialismo
A segunda parte do século XIX foi caracterizada por um entusias-
mo desmedido. O homem acreditava que poderia dominar a natureza
com a ciência, eliminar os problemas sociais com a sociologia e contro-
lar a mente com a psicologia.
Três pensadores questionaram esse estado ilusório: Marx, Freud
e Nietzsche. No final do século XIX, eles deram início a uma nova forma
de pensar. Assim, Marx afirmou que o Homem pensa e age de acordo
com um poder invisível, de ordem social, a que ele deu o nome de ideo-
logia – seria uma ilusão acreditar que o Homem poderia pensar e agir de
acordo com a própria cabeça, pois não há uma vontade racional e livre.
Freud, por sua vez, afirmou que desconhecemos o poder invisível que
nos domina, uma força interna denominada inconsciente. Finalmente,
Nietzsche questionou o pensamento transcendental, afirmando que o
homem busca um sentido para a sua vida, impossível de ser alcançado,
porque está contido no que ele chama de vontade de potência, negan-
do qualquer possibilidade de um conhecimento que esteja em nossa
mente antes de qualquer coisa. Em outras palavras, estavam mudando
o legado de Descartes e Kant.
Como uma confirmação da perda das ilusões, ocorre a I Grande
Guerra, com suas tragédias, destruições e sofrimento nas nações mais
cultas da época. A crença iluminista de que a simples posse da informa-
ção bastaria para melhorar o homem foi destruída juntamente com as
guerras. A filosofia do século XX demonstrou que o acúmulo de conhe-
cimento não é suficiente e a cultura adquire grande importância.
Em razão dessa quebra de ilusões, no século XX ressurge o pen-
samento céptico (ver 2.5.5), que sistematiza a razão em duas formas
principais:
69
Um importante grupo de filósofos de linha marxista na primei-
ra metade do século XX, que inclui Theodor Adorno, Walter Benjamin,
Herbert Marcuse e Max Horkheimer, e que foram obrigados a fugir do
nazismo e se exilar nos Estados Unidos (exceto Benjamin, que se sui-
cidou para não se entregar a Gestapo) desenvolveu a Teoria Crítica. O
grupo se dedicou aos estudos sobre a classe operária, acreditando que
o capital alienava cada vez mais os operários.
As novas ideias mudaram mais uma vez o foco da discussão filo-
sófica, que passou da discussão sobre quem veio primeiro – o ser ou a
ideia – para a liberdade. As questões agora são: o Homem é ou não é
livre? Ele tem ou não liberdade de pensar e agir?
Outras escolas filosóficas marcaram a primeira metade do século
XX, como a Fenomenologia, a Gestalt, o Estruturalismo e o Existen-
cialismo. Apenas o Existencialismo será discutido aqui por suas signi-
ficativas implicações nos conceitos de responsabilidade e ética. Alguns
conceitos dessas correntes de pensamento estão sumarizados no Ane-
xo C, que o leitor interessado pode consultar.
yy Existencialismo
As perguntas no século XX passaram dos conceitos de infinito
(preocupação dos antigos) para o finito (preocupação atual), ou seja, a
preocupação se deslocou para o que inicia e acaba no tempo limitado
da existência humana. A mais influente dessas correntes foi chamada
de Existencialismo, com vários e importantes pensadores, tanto ateus
como cristãos. A preocupação comum era o indivíduo e o particular,
abandonando o estudo dos universais e das essências, comum a todos
os seres. Alguns autores chegam a citar o Existencialismo como uma
filosofia das diferenças, em contraste com a filosofia dos universais e
das essências.
Kierkegaard, nascido em 1813, filho de um comerciante dina-
marquês, teve uma vida carregada de culpas, imaginárias ou não, mas
que o conduziram a uma filosofia do desespero. Atacou fortemente a
filosofia especulativa, em particular o sistema hegeliano mencionado
anteriormente, porque acreditava que a “existência corresponde à rea-
lidade singular, ao Indivíduo... Um homem singular certamente não tem
existência conceitual”. (REALI&ANTISERI, vol III, p. 241) Assim sendo, a
existência não é um conceito, não sendo possível a pretensão de “expli-
70
car tudo” nem demonstrar a “necessidade” dos acontecimentos, porque
o Indivíduo, ética, religiosa ou existencialmente, está sempre fora do
sistema. Cada um deve viver, dando ênfase à importância de suas es-
colhas e compromissos, com enfoque na realidade humana concreta e
não ao pensamento abstrato.
Morreu em 1855, sempre vivendo num isolamento, mas foi
ressuscitado por outros pensadores, entre eles, o alemão Heidegger
(1889-1976), o pensador ateu francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), o
pensador católico francês Gabriel Marcel (1899-1973) e o escritor fran-
cês Albert Camus (1913-1960).
O Existencialismo representa uma das mais importantes corren-
tes filosóficas do século XX, sendo fruto da fenomenologia (REALE & AN-
TISERI, 1991). Sob esse título se grupam todas as filosofias que se ocu-
pam da “análise da existência”, desde que existência se entenda como
“o modo de ser do homem no mundo” e o próprio mundo.
A análise da existência se propõe a esclarecer ou interpretar os
modos como o Homem se relaciona com o mundo e também a escla-
recer e interpretar os modos como o mundo se manifesta ao Homem e
assim determina e condiciona suas possibilidades.
Portanto, o tema central do Existencialismo é a relação Homem-
-Mundo, privado de qualquer característica idealista, ou seja, sem pré-
-conceitos. Utilizando a terminologia comum a alguns existencialistas, o
Homem é um ente, que é simultaneamente finito (limitado) nas suas
possibilidades e poderes e um ente lançado no mundo, ou seja, está
abandonado ao determinismo desse mesmo mundo, o que resulta em
outra característica do ente: a possibilidade.
Como o Existencialismo se debruça sobre os aspectos negativos
e destrutivos da existência humana no mundo e trata do indivíduo ou
ente, a subjetividade deixa de ser fundamental. Entretanto, é interes-
sante notar que os filósofos existencialistas são oriundos da escola
de fenomenologia de Husserl (ver Anexo C), que descreve os fatos,
não procurando nem explicar e nem analisar. Seu principal objeto é
o mundo vivido, ou seja, os sujeitos de forma isolada, sendo necessá-
rio ir além das manifestações imediatas para captá-las e desvendar o
sentido oculto das impressões imediatas. É um modo de pensar que
busca as essências.
71
Porém, a figura central do Existencialismo foi Sartre, que tinha
como ideia central a existência preceder a essência. Em outras pala-
vras, não faz sentido procurar a essência do indivíduo porque esta,
a essência, é construída pelas ações. Alguns pontos do pensamento
sartreano parecem ser fundamentais para o pensamento ético em
qualquer época.
Em primeiro lugar, o homem é livre, tão livre que está condenado
a ser livre. Em segundo lugar, o homem é responsável, inclusive por atos
não praticados por ele, porque o ponto de partida é a consciência, vista
agora como um movimento – a consequência de uma intencionalidade.
A consciência é sempre consciência de alguma coisa, determinada pela
intencionalidade. É a intenção que determina o processo de constitui-
ção da consciência. O indivíduo para não ser vazio – ou nulo – deve ter
um plano adquirido pelas significações que ele atribui às coisas.
Para Sartre, a filosofia deveria ser uma antropologia, porque im-
plica num “conhecimento integral do homem, de um indivíduo conside-
rado ao mesmo tempo como singular e como universal”, porém o seu
Existencialismo não tem a pretensão de se colocar no ponto de vista
de um “expectador desinteressado” e alcançar um conhecimento pura-
mente teorético.
Concluindo, embora a preocupação dos existencialistas não te-
nha sido a ética, a sua discussão girando em torno da ação, da existên-
cia do Ente ou Indivíduo e a responsabilidade inerente a cada um, torna
essa filosofia um interessante modo de análise.
72
2.8.1 A desobrigação com o dever denunciada por Lipovetsky
Iniciar a discussão por Lipovetsky (1944-) torna evidente que
a preocupação não é com a cronologia e sim com a clareza do tema.
Dessa forma, iniciar por esse pensador tem por fim caracterizar os dias
atuais que se definem pelo individualismo e pela busca da boa vida,
limitada por uma tolerância que beira à indiferença.
Para entendermos a postura atual frente à ética, é necessário
acompanharmos o raciocínio de Lipovetsky. Assim, enquanto no perío-
do das Luzes o comportamento humano era ditado por normas exter-
nas, que mesmo não partindo da Igreja, atendiam o coletivo, podemos
constatar que já
na segunda metade do século XVIII, Rousseau abre
caminho à religião cívica moderna, exigindo o sacrifí-
cio dos interesses pessoais à vontade geral; um pou-
co mais tarde, o jacobinismo revolucionário denuncia
sistematicamente o maquiavelismo e o utilitarismo
e procura assegurar a vitória republicana da moral
sobre os interesses individuais. (LIPOVETSKY, 1994,
p. 31).
73
Esse modo de pensar se manifestou no início do século XX pelo
princípio de sacrifício e abnegação citado nos discursos oficiais, na
construção de monumentos aos mortos e na elaboração de manuais de
instrução moral e cívica para uso nas escolas. Essa mudança continuou
por boa parte do século XX, conforme observa o pensador: “a esquerda
revolucionária de inspiração marxista e inimiga declarada da utopia mo-
ral retomou uma ética disciplinar e dogmática ao nível de ação militar.
Renúncia a si mesmo, deveres de ortodoxia”. (LIPOVETSKY, 1994, p. 33)
No Brasil da era Vargas e também no período militar após 1964,
encontramos as mesmas manifestações oficiais do poder constituído,
inclusive o pensamento de esquerda, tão ao gosto das camadas intelec-
tuais da segunda metade do século XX, era dogmático.
Porém, paralelamente às ideias acima, no século XIX e início do XX,
se observa a evolução do comportamento moral para a direção oposta.
A Idade Moderna conseguiu impor a ideia de uma
vida moral separada da fé, a igualdade de princípio,
em matéria de moral, entre crente e não crente: a
vida ética abriu-se a todos, independentemente das
opiniões metafísicas. … Só existem indivíduos livres e
semelhantes, que são inteiramente responsáveis por
si próprios. Todos são iguais frente ao dever. (LIPO-
VETSKY, 1994, p.38).
74
e o self-interest. O “é preciso” cedeu lugar ao encanto
da felicidade… A cultura sacrificial do dever morreu,
entramos no período pós-moralista das democra-
cias. (LIPOVETSKY, 1994, p.56)
75
nada tem importância. Não há pró nem contra, o as-
sassino não está certo nem errado…malícia e virtude
tornam-se acaso ou capricho. (CAMUS, 1997, p. 15).
76
A forma de pensar de Camus foi magnificamente entendida por
Hanna Arendt (1906-1975), que demonstrou o poder maligno desses
regimes em sua clássica obra “Origens do Totalitarismo”11.
Essas reflexões sobre a moral e a revolta culminam por desenca-
dear a necessidade de ação. Lembremos Epicuro (341-270 a. C): “de espe-
ra em espera consumimos nossa vida e morremos todos no sofrimento.”
11 Hanna Arendt, Origens do Totalitarismo, tradução de Roberto Raposo. São Paulo. Companhia
das Letras, 2012.
77
2.8.4 A questão das normas éticas em Alberoni e Veca
Os italianos Francesco Alberoni (1931), filósofo formado em me-
dicina e, Salvatore Veca (1943-), filósofo, que têm uma posição muito
clara quanto à ética nos dias atuais.
As normas perderam o seu caráter obrigatório e abso-
luto. Tornaram-se algo parecido com as leis de estado:
expedientes práticos para impedir comportamentos
nocivos, para resolver conflitos e para conciliar interes-
ses pessoais e coletivos. (ALBERONI; VECA, 1990, p. 8).
78
A) cada indivíduo, comportando-se moralmente, se
sujeita a determinados princípios, valores ou normas
morais. (…) B) O comportamento moral é tanto com-
portamento de indivíduos quanto de grupos sociais
humanos, cujas ações têm um caráter coletivo, mas
deliberativo, livre e consciente. (…) C) As ideias, as
normas e relações sociais nascem e se desenvolvem
em correspondência com uma necessidade cultural.
(VÀZQUEZ, p. 53-4).
79
Deve-se evitar a situação na qual “a ética defina o ho-
mem como uma vítima.” (BADIOU, 1994, p.25)
80
De posse dessa informação, o conhecimento deve orientar-se
não apenas para as ciências, mas também às letras e às artes e à pró-
pria condição humana, porque “conhecer o humano é, antes de mais
nada, situá-lo no universo, e não separá-lo dele” (MORIN, 2000, p.17).
O conhecimento representa uma percepção, uma tradução e uma re-
montagem de sinais e símbolos, comportando operações de separação
e ligação, pois,
o processo é circular, passando da separação à liga-
ção, da ligação à separação, e, além disso, da análise
à síntese, da síntese à análise. Ou seja, o conheci-
mento comporta, ao mesmo tempo, separação e li-
gação, análise e síntese. (MORIN, 2001, p.24).
81
não haveria de namorar uma mulher e gerar filhos,
construir casas e promover um intercâmbio econô-
mico. … Por isso este instinto é chamado “fermento
da massa”, uma espécie de matéria prima para a fer-
mentação que Deus colocou na alma e sem a qual a
massa humana não cresce. (…) A tarefa do homem
não é extirpar de dentro de si o mau instinto, mas
coaduná-lo com o bom instinto. (idem BUBER p.30).
82
se torna EU em face ao TU, a quem o ser EU estabelece a sua relação e,
finalmente, a sua identidade.
Ser verdadeiro significa, em última análise, fortalecer
o ser exatamente na própria existência, isto é, defen-
dê-lo e afirmá-lo. E ser falso significa enfraquecer o
ser precisamente na própria existência, isto é, arrui-
ná-lo e privá-lo dos direitos. (BUBER, p. 43).
83
o mais nobre, mas ainda um deles, submetido à me-
dida e à limitação. (BUBER, 1977, p.19).
12 A expressão refém do sistema médico, embora forte, foi utilizada porque o paciente, principal-
mente, quando hospitalizado, embora possua aparente domínio sobre o seu corpo, com o direito
de permitir ou não os procedimentos médicos ou cirúrgicos, não dispõe, na realidade, de meios
suficientes para decidir. Por exemplo, ao se pedir autorização para amputar a perna gangrenada de
um paciente diabético, tem ele outra opção? Ou se ele tem, será que dispõe de todas as informa-
ções? Ou ainda, se tem todas as informações e opções, a sua compreensão da situação médica é
suficiente para bem entender o que está assinando? Será que ele compreende que a não amputação
implica em sofrimento e risco de morte e que a amputação gerará uma mutilação, necessitando de
tratamento clínico, de fisioterapia, de uso de prótese? E mais, será que ele é informado que, mesmo
tendo plano de saúde, alguns procedimentos não são cobertos? Ou, pior ainda, se ele não tem plano
de saúde, será que ele sabe que eventualmente uma cirurgia de revascularização com próteses, nem
sempre custeadas pelo SUS, poderia salvar seu membro? E, finalmente, ele pode tornar-se refém de
um advogado interessado num processo médico com objetivos financeiros?
84
TU significa, que se estende além do ser espiritual ou mental,
que é capaz de rir, chorar e sofrer, até o ser que é tido como
corpo. Acreditamos que a visão buberiana da palavra princípio
EU-TU deve se estender ao corpo.
O pensamento de Buber merece ser aplicado à ciência médica e,
para tanto, vamos recorrer a Maria Michela Marzano Parisoli, doutora
em Filosofia. A ciência médica evoluiu para uma racionalização quase
absoluta, com uma objetivação crescente graças ao progresso científi-
co, havendo um abandono das ideias de intervenção divina nos proces-
sos de tratamento e cura.
85
uma coisa é o dilema dramático que se coloca a uma
mulher que deve escolher entre um aborto e, por-
tanto, a supressão da vida que ela traz em si, e o nas-
cimento de uma criança destinada a sofrimentos ex-
tremos ou a uma morte prematura: a outra coisa é o
dilema que se coloca a mulher quando ela descobre
que seu filho não é completamente normal, porque
é portador de uma deficiência física mais ou menos
grave, segundo os padrões médicos e sociais. (MAR-
ZANO-PARISOLI, p. 101).
13 Alteridade – ver o mundo com os olhos do outro, colocar-se no lugar do outro.
86
Numa visão mais profunda que a de Buber, o Outro para Lévinas
não ser resume a um alter-ego, simplesmente a confirmar a própria
existência. O Outro é o hóspede que deve ser acolhido e que “não é
abstrato, é real, tem rosto, é relação”. O Outro apresenta o seu “olhar
que suplica e exige”. (LÉVINAS apud PINTO, p. 142). Ao se reconhecer o
Rosto, reconhece-se a carência do Outro, e esse reconhecimento termi-
na por obrigar a doação.
O Rosto de Outrem seria o próprio começo da filosofia. A relação
EU-TU de Buber é simétrica, enquanto que, para Lévinas a relação com
o Outro é assimétrica, porque esse Outro é um outro EU. O “Rosto não
é absolutamente como um retrato”, (LÉVINAS apud PINTO, p. 142), mas
é nele que se encontra o absolutamente fraco, exposto, nu e despojado,
que se encontra no supremo isolamento que é a morte.
Avançando com as ideias, “o carrasco é aquele que ameaça o pró-
ximo e, nesse sentido, chama a violência e já não tem rosto”. (LÉVINAS,
2004, p.145). E o carrasco, não será aquele profissional que assusta o
paciente com vaticínios sombrios? Ou quem sabe o carrasco não pode
ser aquele que tem por obrigação amputar uma perna gangrenada? E
o médico que faz um aborto, como fica? Será justo afirmar que o pro-
fissional que o pratica pode ser o carrasco da paciente ou pelo menos
do feto?
A questão de aborto pode ser vista como um exemplo da
complexidade.
É fácil acusar de carrasco um profissional que comercialize o
aborto (sem discutir as implicações legais). Mas, o que dizer do profis-
sional que realiza um eventual aborto para interromper a gestação de
um feto deformado? O ato médico pode estar ligado à solidariedade,
num processo de compaixão pelos que sofrem ou que poderão vir a
sofrer por deficiências físicas ou estigmas sociais.
87
A dualidade conceitual do corpo apresenta importante significa-
ção ética, porque não significa simplesmente o atendimento físico a um
enfermo, mas um atendimento global, integral – corpo e espírito.
O cuidar é uma atividade humana essencial, porque “o ser huma-
no é um ser de cuidado, mais ainda, sua essência se encontra no cuidar.
Colocar o cuidado em tudo o que projeta e faz. Eis a característica sin-
gular do ser humano”. (BOFF, 2004, p. 35)
A não atenção ao cuidar resulta em graves consequências, porque
2.9 A Bioética
Os problemas éticos literalmente explodiram nos últimos anos
– mais acentuadamente a partir dos anos 80 do século XX. Eles consti-
tuem um desafio para a sociedade como um todo e em particular para
a medicina. As mudanças são cada vez mais profundas e o progresso
científico não tem paralelo na história. A medicalização, cada vez maior,
se faz acompanhar de uma socialização que permite a uma grande par-
cela da população ter acesso à assistência médica, mas que exclui outra
parcela também significativa. A emancipação do paciente pela aquisi-
ção de direitos e reivindicações limitaram o poder médico. Todos esses
fatores conduziram a criação de múltiplos conselhos de ética, gerando a
necessidade de princípios morais. Esses princípios, por sua vez, devem
ser compartilhados por pessoas de formação moral diferente, forçando
um despertar crescente do interesse pela ética, tanto no domínio da
filosofia, como da teologia (CLOTET, p. 15-9).
A força política e econômica da ciência e da técnica biológica, in-
cluindo a medicina, transformou os conceitos de vida, saúde, doença,
morte e até de nascimento. Algumas situações, anteriormente designa-
88
das como fatalidade, foram transformadas em opções, como permitir
ou não o nascimento de um feto portador de deficiências genéticas. O
capítulo da ética que se ocupa de questões como essas é denominado
de bioética. Entretanto,
se procurarmos o verbete Bioética num dicionário ou
enciclopédia, teremos, provavelmente, a desagradá-
vel surpresa de não achá-lo. Trata-se de um conceito
novo. O neologismo Bioética foi cunhado e divulgado
pelo oncologista e biólogo americano Van Rensselaer
Potter no seu livro Bioethics: bridge to the future. O
sentido do termo Bioética tal como é usado por Pot-
ter é diferente do significado ao mesmo hoje atribuí-
do. (CLOTET, p. 21).
Para Potter, a bioética seria uma ciência que teria por fim garantir
a sobrevivência do planeta. É assim que ele descreve:
ar e água poluída, explosão populacional, ecologia,
conservação – muitas vozes falam muitas definições
são dadas. Quem está certo? […] O homem realmen-
te colocou em risco o seu meio ambiente? Ele não
necessita aprimorar as condições que ele criou? A
ameaça de sobrevivência é real ou trata-se de pura
propaganda de teóricos histéricos? (DRANE; PESSINI,
2005, p.38).
89
a obrigatoriedade da existência dos Comitês de Ética em Pesquisa em
todas as instituições que pratiquem pesquisa biomédica.
Já existem leis que regulam a engenharia genética, remoção de ór-
gãos e tecidos, transplantes, embora o rápido progresso e as novas des-
cobertas obriguem que novas leis e regulamentações sejam elaboradas.
Bernard aborda com muita clareza sobre as dificuldades encon-
tradas pelos legisladores e pesquisadores: “as questões de bioética se
apresentam, muitas vezes, sob a forma de tensões entre deveres con-
traditórios ou aparentemente contraditórios. Não há, para estas ques-
tões, respostas únicas”. (BERNARD, 1998, p.62).
Dois pontos nessa curta sentença merecem atenção. O primeiro
refere-se à questão do dever. Eis que ele retorna com força total. Não
há sequer menção a eventuais dúvidas quanto à sua validade. O segun-
do, não menos importante, é a contradição, aparente ou não, produzin-
do tensões. Como resolver as contradições sem o livre pensar?
Esse livre pensar não é fácil. Envolve compromissos e envolve conhe-
cimentos. Entretanto envolve também a questão dos juízos de valor, que é
o grande problema ético. Daí a questão epistemológica do conhecimento.
Parecia absolutamente normal confiar ao médico,
ao doente ou à família do doente a responsabilida-
de das decisões. Essas soluções se revelaram pouco
satisfatórias, pois as pessoas envolvidas se mostram,
mesmo no sentido nobre do termo, muito interessa-
das para serem imparciais. (BERNARD, p.63).
90
Essa separação proposta por Bernard pode ser útil e aparente-
mente simplificadora, mas não atende à complexidade da ciência atual.
Ela se torna talvez impossível, porque vai, mais uma vez, dividir o ser
humano, separar a questão do ser, do seu relacionamento com o Outro
e com Deus, alienando o médico inclusive das questões legais.
A ética é importante, fazendo parte de um contexto amplo, com-
plexo (como define Morin) e de relação interpessoal (como define Bu-
ber). Deve ser aprendida respeitando as capacidades e ou estágios,
como define Piaget ou Kohlberg, para quem o indivíduo evolui por está-
gios conforme a sua maturação. (FONSECA, 2001, p. 101).
A ética, ou bioética, se esse termo for preferido, deve ser refletida
em sua complexidade e não mais atendendo ao paradigma da disjunção.
A bioética é uma expressão de criação recente (1970), introduzi-
do pelo cancerologista norte-americano Potter, que a definiu como uma
ética da sobrevivência, da vida e de todas as formas de vida, incluin-
do ecologia, pesquisa animal e os problemas de população. (UNESCO,
2007) A bioética de Potter é otimista, porque ele se inspirava na convic-
ção da evolução da humanidade.
A comunidade de escritores acadêmicos deu uma nova definição
ao termo bioética.
É o estudo do comportamento desejável em relação
a intervenções médicas e biomédicas na vida huma-
na (…), também consiste no estudo e análise concreta
dos problemas médicos e biomédicos, na formulação
de juízos práticos e de políticas que dizem respeito a
escolhas, decisões e atos (…) numa sociedade plura-
lística, onde indivíduos ou grupos discordam sobre
questões envolvendo medicina e ciências da vida.
(BERNARD, p.7).
91
92
FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA A REFLEXÃO ÉTICA
NO ENSINO DA ÁREA DA SAÚDE
Capítulo 3
Fundamentos Antropológicos
93
Atualmente, a antropologia emite sinais de articulação e compa-
ração, ao se ocupar do homem por meio de uma “abordagem integra-
tiva que objetiva levar em consideração as múltiplas dimensões do ser
humano em sociedade” (LAPLANTINE, 2000), sendo a cultura vista como
um sistema simbólico que engloba as formas de pensar e os valores
pelos quais as pessoas dão sentido ao mundo em que vivem.
Foucault (2002) assinala que três ciências deram origem aos dife-
rentes saberes que vão influenciar o estudo antropológico:
94
O estudo das raças vem sendo substituído pela observação das
características antropométricas, que caracterizam as etnias, como a for-
ma do crânio, relacionando comprimento e largura, a forma do nariz
(comprimento e largura), as características do cabelo (fino ou grosso,
ondulado, liso, acarapinhado, cor loura, castanha, preta), a forma do
lábio (fino, polpudo), a cor da pele, a cor e forma dos olhos etc.
A segunda repercussão ética é tornar ultrapassado o conceito
de tipologia, oriundo de alguns trabalhos fantasiosos com ares de
ciência, que pretendiam prever tendências criminosas, homicidas e de
preguiça, pela simples observação do fenótipo ou aparência do indiví-
duo. (SURÓS, 1977).
Lombroso (1835-1909) atribuiu tendências criminosas ou más a
pessoas que tinham determinadas características físicas, como testa
curta e olhos juntos. Essa tipologia é hoje encarada como uma falsa
ciência, embora ainda encontre repercussões em muitos segmentos da
nossa sociedade, não havendo sentido em falar de “biótipos de crimi-
nosos”. Essa falsa ciência conduziu a erros terríveis, como os crimes
contra a humanidade desencadeados pelo regime nazista ou as discri-
minações racistas de diversos governos.
Um aluno de Lombroso, Ferri (1856-1929), buscou explicações
nos fatores econômicos e sociais para as tendências criminosas, em lu-
gar das alterações fisiológicas e anatômicas, criando a antropologia cri-
minal. Essa propensão atualmente está sendo igualmente contestada,
uma vez que torna o indivíduo potencialmente criminoso por ser pobre
e sem instrução e inocente por ser rico e bem instruído.
95
importância das instituições, das famílias, da moral e da religião. Negou
o destaque dado às produções simbólicas, que seriam “representa-
ções do social”, termo consagrado por Durkhein (1858-1917). Assim,
a antropologia social não atribui valor isolado à religião, arte ou magia,
porque estão vinculadas a outros fatores, como relações de parentes-
co, produção, grupos sexuais e faixas etárias. São sempre relações de
poder. Muitos autores importantes consideram a antropologia social
como uma sociologia comparativa. (LAPLANTINE, 2000).
A antropologia cultural tem o mesmo campo de investigação
da social, porém o que as difere é que a antropologia social se ocupa
da totalidade das relações que os grupos mantêm entre si (produção,
exploração, dominação) e a antropologia cultural considera o grupo
sob o ângulo dos comportamentos individuais dos membros do gru-
po, embora estudando também suas produções. Como consequência,
a passagem do modelo social para o cultural tornou a antropologia uma
disciplina autônoma, separando-a da sociologia.
A palavra cultura vem do latim colere (cultivar ou instruir) e tem
múltiplos empregos e significados. Já foram catalogadas mais de 160
definições para o termo. Cada ciência utiliza a palavra com significado
próprio. Citamos duas definições a título de exemplo:
96
yy Integração – é a mudança progressiva. (MARCONI;PRESOT-
TO, 1998).
yy Religião
A palavra religião deriva do latim “Re-Ligare”, que significa “religa-
ção” com o divino. Outras origens atribuídas à palavra religião também
provém do latim: Religio, que significa uma releitura e Re+elegere = ree-
leição – definição dada por Sto. Agostinho, como sendo a reeleição pelo
povo de um novo Deus como entidade única
A religião é uma das mais importantes formas de manifestação
humana, com a crença em seres espirituais ou sobrenaturais e uma vi-
são específica do universo. Constituída de Crença ou Fé, inclui senti-
mentos de respeito, submissão, reverência, confiança e até medo em
relação ao sobrenatural. Utiliza Mitos, Rituais e Cultos na veneração ou
comunicação com seres sobrenaturais.
97
Religião pode ser conceituada como um conjunto de princípios,
crenças e práticas de doutrinas de aspecto místico, englobando qualquer
forma de pensamento que contemple seitas, mitos, doutrinas ou formas
de pensar que tenham como fundamentos um conteúdo Metafísico.
A maioria das religiões pode ser baseada em livros e mistérios,
considerados sagrados, que unem seus seguidores numa mesma co-
munidade, reunindo-os em Igrejas e realizando cerimônias em locais
especiais frequentemente chamados de templos. Todas as religiões
adotam mistérios que buscam explicar as origens do Universo e do Ho-
mem, por meio de doutrinas filosóficas denominadas teologias – teolo-
gia do grego theos = divindade + logos = palavra, estudo.
As práticas religiosas implicam também em mitos, lendas, ritos e
tabus, palavras com múltiplos significados, sendo utilizados neste livro
os conceitos de Mircea Eliade (1907-1986), romeno naturalizado fran-
cês, Joseph Campbell (1904-1987), norte-americano e Ernest Cassirer
(1874-1945), filósofo alemão.
yy O que é um mito?
O mito é uma narrativa, fantástica ou não, que conta como uma
realidade passa a existir graças às façanhas de entes sobrenaturais, a
criação dos próprios entes sobrenaturais e a manifestação de seus po-
deres sagrados.
A principal função do mito consiste em revelar os modelos exem-
plares das atividades humanas significativas e seus ritos: a alimentação,
o casamento, o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria. Ele narra a
origem do Mundo, dos animais, das plantas e do Homem e também de
todos os acontecimentos iniciais em consequência dos quais o Homem
se converteu no que é hoje — um ser mortal, sexuado, organizado em
sociedade, obrigado a trabalhar para viver e viver de acordo com deter-
minadas regras.
Em alguns locais, os mitos só podem ser contados em épocas
especiais, não raro durante o outono ou inverno, à noite e somente em
locais sagrados. O mito é periodicamente representado e vivido como
se estivesse acontecendo novamente. Todas as condições e situações
são preparadas e as pessoas que praticam o ritual mítico vivem e so-
frem como se fossem os primeiros personagens, como afirma Cassirer:
“o mito se tornou um problema da filosofia na medida em que expressa
98
uma direção original do espírito humano, uma configuração indepen-
dente da consciência do ser humano”. (CASSIRER, 1994).
Os mitos nascem do desejo humano de entender o mundo e
afugentar o medo provocado pelas forças naturais assustadoras, trans-
formando as coisas de matéria morta em coisas impregnadas de qua-
lidades, que podem ser boas ou más, amigas ou inimigas, familiares ou
sobrenaturais, fascinantes ou ameaçadoras, atraentes ou repelentes.
O mito acomoda e tranquiliza frente a um mundo assustador, propor-
cionando confiança por meio de ações mágicas, além de estabelecer
modelos exemplares de todas as funções e atividades humanas.
yy O que é um rito?
O rito ou ritual é a repetição dos atos executados pelos deuses
no início dos tempos e que devem ser imitados e repetidos para que as
forças do bem e do mal sejam mantidas sob controle. Desse modo, o
ritual “atualiza”, torna atual o acontecimento sagrado que teve lugar no
passado mítico. O ritual é a repetição sagrada do mito. É a reversibilida-
de do acontecimento primordial.
Na prática, não basta conhecer o mito da origem, é preciso reci-
tá-lo de cor, porque ele é uma demonstração do próprio conhecimento.
Recitando ou celebrando o mito, o indivíduo deixa-se impregnar pela
atmosfera sagrada na qual se desenrolou o milagre. O tempo mítico é
forte, porque foi transfigurado pela presença ativa e criadora do ente
99
sobrenatural, o que faz o Homem se reintegrar no tempo fabuloso, tor-
nando-o contemporâneo do evento evocado, compartilhando a presen-
ça dos Deuses.
Resumidamente, poderíamos dizer que, ao viver um mito, o Ser
sai do tempo profano, cronológico e ingressa num Tempo Sagrado, pri-
mordial e indefinidamente recuperável.
yy O que é um tabu?
A transgressão do mito compromete o transgressor, pode atingir
sua família e até a comunidade, porque o mito é dogmático, sendo uma
verdade que não precisa ser provada e não admite contestação. O mito
não é racional e não pode ser provado nem questionado. A aceitação do
mito se dá por meio de fé e crença.
Desse modo, a desobediência envolve o sobrenatural e é extre-
mamente grave. Surge, então, o tabu, que é a proibição de transgredir
um rito ou tocar um objeto sagrado e está envolto em clima de temor. A
reparação implica em ritos de purificação ou o sacrifício do “bode expia-
tório”, quando o pecado é transferido para um animal ou mesmo outro
ser humano (caso dos sacrifícios). Só então o equilíbrio da comunidade
pode ser restaurado e assim evitar o castigo dos deuses.
100
toriografia – é como se não existisse! É o mito da herança sanguínea, da
hereditariedade.
Tal paixão pela história se repete hoje no Brasil. Nessa perspecti-
va, a história não é vista como ciência, mas como um meio de glorificar
o presente.
Nem a principal doutrina materialista escapou dos mitos, porque
Marx retomou um dos grandes mitos do mundo asiático-mediterrâneo:
o papel redentor do Justo, agora transformado no proletário, cujo sofri-
mento é invocado para modificar o “status” do mundo. A sociedade sem
classes de Marx e o consequente desaparecimento das tensões histó-
ricas encontram o seu precedente mais exato nos mitos da Idade de
Ouro. Marx enriqueceu esse mito com toda uma ideologia messiânica
judeu-cristã: de um lado, o papel profético que atribuiu ao proletariado;
de outro lado, a luta final entre o Bem e o Mal, que pode ser facilmente
comparada ao conflito apocalíptico entre Cristo e Anticristo, seguido da
vitória definitiva do primeiro.
Pesquisas recentes trouxeram à luz as estruturas míticas das
imagens e comportamentos impostos às coletividades por meio da mí-
dia. Esse fenômeno é constatado especialmente nos personagens das
histórias em quadrinhos, que apresentam a versão moderna dos heróis
mitológicos ou folclóricos. Eles encarnam a tal ponto o ideal de uma
grande parte da sociedade, que qualquer mudança em sua conduta
típica ou pior ainda – sua morte provoca verdadeiras crises entre os
leitores; eles reagem violentamente e protestam, enviando milhares de
telegramas aos autores e aos diretores dos meios que os vinculam.
O romance policial se presta a observações análogas. De um lado,
o leitor assiste à luta exemplar entre o Bem e o Mal, entre o detetive e o
criminoso ou o herói e a encarnação do demônio. De outro lado, por um
processo inconsciente de projeção e identificação, o leitor participa do
mistério, do drama e tem a sensação de estar pessoalmente envolvido
numa ação paradigmática, isto é, perigosa e heroica. Os mitos presen-
tes nos grandes sucessos de livraria passam para o cinema – vejam os
exemplos do Senhor dos Anéis ou de Harry Poter.
Comportamentos míticos contemporâneos podem ser reconhe-
cidos na obsessão pelo sucesso. Como exemplo, temos o culto do au-
tomóvel sagrado, cujo templo é o salão do automóvel. Nesse templo,
ocorre um autêntico ofício litúrgico com cores, luzes, música, a atitude
101
reverente dos adoradores, as manequins, comportando-se como sacer-
dotisas, a pompa e a multidão compacta. O culto do carro tem seus
iniciados, que aguardam ansiosamente os novos modelos assim como
os fiéis esperam a revelações dos oráculos. (ELIADE, 1991).
102
Estranhamente, o mito moderno quando vulgariza as coisas,
parece fazer renascer o pensamento do filósofo grego Epíteto “o que
perturba e assusta o homem não são as coisas, mas as opiniões e
fantasias sobre as coisas” (CASSIRER, 2001 p.49). Essa vulgarização é
utilizada pela arte médica em seu sentido amplo, se tomarmos como
exemplo a vulgarização da morte. Conforme bem expressou Bacon:
“as pompas da morte aterrorizam mais que a própria morte” (MORIN,
1997, p. 27), porque
não estamos num universo meramente físico (…) O
homem vive em um universo simbólico. A linguagem,
o mito, a arte e a religião são parte desse universo.
… Todo o progresso humano em pensamento e ex-
periência é refinado por essa rede, e a fortalece. O
homem não pode mais confrontar-se com a realida-
de imediatamente; não pode vê-la, por assim dizer,
frente a frente. A realidade física parece recuar em
proporção ao avanço da atividade simbólica do ho-
mem (CASSIRER, p.48).
103
3.3 Conceito de Família
Ética na família é um assunto tão comum e tão corriqueiro que se
torna difícil falar sobre ele. Implica em responsabilidade, solidariedade,
altruísmo, renúncia, cuidado, deveres e direitos. Mas implica também
nos costumes morais da sociedade em que se vive. Como exemplos
temos as sociedades em que a fidelidade conjugal é exigida a apenas
um dos participantes, aos dois membros ou quando um dos membros
pode ter vários cônjuges e assim por diante. Portanto, para refletir
sobre a ética na família, é necessário estudar o que é família.
Família é uma palavra polissêmica, ou seja, com múltiplos signifi-
cados. A origem é do latim familius e significava escravo ou conjunto de
escravos e servidores de uma pessoa. O tempo foi acrescentando novos
usos da palavra. O dicionário Michaelis apresenta um grande número
de significados, dos quais destacamos os primeiros: 1. Conjunto de pes-
soas, em geral ligadas por laços de parentesco, que vivem sob o mesmo
teto, particularmente o pai, a mãe e os filhos. 2. Conjunto de ascenden-
tes, descendentes, colaterais e afins de uma linhagem ou provenientes
de um mesmo tronco; estirpe. 3. Pessoas do mesmo sangue ou não,
ligadas entre si por casamento, filiação, ou mesmo adoção, que vivem
ou não em comum; parentes, parentela. Os significados continuam com
os figurados, biológicos, de categorização, taxionômicos, químicos, so-
ciológicos, religiosos, etc.
A família no Brasil, como entendida nos significados de 1 a 3 do
parágrafo anterior, é um elemento importante da sociedade, sendo
considerada como sua célula mater, em frase atribuída a Ruy Barbosa.
Para o antropólogo Levi-Strauss, família implica em
uma união mais ou menos duradoura, socialmente
aprovada, entre um homem e uma mulher e seus
filhos, fenômeno que estaria presente em todo e
qualquer tipo de sociedade. Como modelo ideal, a
palavra família designa um grupo social possuidor de
pelo menos três características: tem sua origem no
casamento; é constituído pelo marido, esposa e fi-
lhos; os membros de uma família estão unidos entre
si por laços legais, direitos e obrigações econômicas,
religiosas ou de outra espécie. (GOLDEMBERG, p.79).
104
– pater, em latim – tanto pode significar genitor ou “pai biológico”, como
quem cria o filho. Em algumas sociedades, o papel do pai é tradicional-
mente desempenhado pelo tio – irmão da mãe. (MARCONI; PRESOTTO,
1998)
Os valores e funções da família variam ao longo do tempo e da
região. No nosso próprio país, as diferenças são muito grandes confor-
me a época e local de estudo. Assim, entre os índios brasileiros, José
de Anchieta menciona que a noção de família se revestia de costumes
muito particulares, com conotações diferentes para a participação da
mãe e do pai:
as mães não são mais que uns sacos, em respeito
dos pais, em que se criam os filhos, e por esta causa
os filhos dos pais, posto que seja havidos de escravos
e contrárias cativas são sempre livres e estimados
como os outros; e os filhos das fêmeas, se são filhos
de cativos, os têm por escravos e os vendem, e às
vezes matam e comem, ainda que sejam seus netos,
filhos de suas filhas (MIRADOR, verbete família.3)
105
yy Mudanças no conceito de família
No mundo ocidental, a constituição da família apresentou mu-
danças ao longo do tempo, destacando-se:
106
duzem em escala menor as questões culturais, dinâmicas e genéticas,
com influência nos problemas de saúde, terapêutica, comportamentais,
alcoolismo, droga adição e outros.
107
e a essência do Homem e, para a antropologia filosófica, ficou a missão
de entender o ser humano como um animal de uma espécie própria,
com características psicológicas e cognitivas específicas.
Entretanto, se sentimento religioso ou espiritual não for discutido
com o paciente, este fato torna o profissional “frio e distante”, embora
essa noção pareça pouco científica aos cientistas. Sem dúvida, a ciência
substituiu as afirmações teológicas (ou dogmáticas♦) de causa, fim e es-
sência com seus mitos, ritos e símbolos, pelo empirismo e pela pesqui-
sa. Porém, já vimos que os sentimentos humanos envolvem aspectos
religiosos e a imaginação mítica e artística, de modo que “não podemos
ingressar em todos esses mundos sem um sólido método psicológico
científico. Não podemos entender a forma de pensamento mítico pri-
mitivo sem levar em consideração as formas da sociedade primitiva”.
(CASSIRER, 116).
Daí uma pergunta salta aos olhos do profissional de saúde preo-
cupado em ver o paciente como ser humano complexo:
108
O profissional dialoga com jovens e velhos, cultos e incultos, re-
ligiosos e ateus, portanto precisa conhecer o ser humano em sua inte-
gralidade, não se limitando à “máquina biológica” ou ao psiquismo. Ho-
mem e mulher são sujeitos que se relacionam consigo mesmos e com
os outros. Eles não são objetos passíveis de simples pesquisas.
Serão apresentadas, a seguir, algumas teorias, estudadas pela
antropologia filosófica e que tentam explicar o comportamento huma-
no frente aos problemas filosóficos/teológicos da vida. A importância
dessas teorias não reside em que elas sejam discutidas com os pacien-
tes ou seus familiares – aliás, na maioria das vezes, nem pacientes nem
familiares têm noção delas. Mas a importância de conhecê-las reside no
fato de que eles agem e pensam conforme um dos modelos. O conhe-
cimento sobre elas instrumentaliza o profissional, tornando-o capaz de,
independente das convicções pessoais, compreender como o paciente
encara a vida, o sofrimento e a morte.
Teorias dualistas – o Homem é composto de duas partes: corpo
e alma (ou espírito). Essas teorias têm grande participação na vida afeti-
va e religiosa, embora não sejam explicitamente citadas nas conversas
e nem sempre são reconhecidas. Elas se dividem em:
109
Teoria da união substancial – é a teoria dos “mistérios”, aceita
pela Igreja Católica e de outras religiões protestantes. Propugna pela
existência do corpo e da alma, consideradas como substâncias hete-
rogêneas e incompletas, representantes de uma verdade revelada por
Deus e que deve permanecer secreta.
110
3.5.1 Visões da doença
As representações da doença e as consequentes formas de vê-las
variam de acordo com a pessoa envolvida, seja o médico (aquele que
age sobre a doença), o paciente (aquele que sofre as ações da doença)
ou um terceiro que pode escrever sobre a doença ou escrever sobre o
que sofre a doença. São formas diferentes de ver e descrever a mesma
doença e o sofrimento causado por ela.
14 Vitalismo = a existência de uma força ou impulso vital sem a qual a vida não poderia ser explicada.
15 Sitematismo ou sistemismo = método que percebe e estuda a realidade e seus elementos cons-
tituintes, em sua totalidade, visualizando como sistema com uma finalidade específica.
111
yy Doença na terceira pessoa: O paciente é um ser passivo. O
centro da narrativa está focalizado no profissional de saúde e
a história da doença é baseada na vida ou vivência do médico,
enfermeiro etc.
112
Atualmente, filmes como Philadelphia, que trata da AIDS; e As Invasões
dos Bárbaros, que apresenta a eutanásia como solução para o sofrimen-
to de doenças, vêm influindo nas formas de ver e pensar das pessoas.
No Brasil, os filmes contando as histórias de Cazuza e de Henfil são
exemplos marcantes.
Também a visão da doença como uma metáfora pode influenciar
muito o comportamento humano.
113
yy Falta – a doença é vista como consequência da falta, carência
ou fraqueza.
114
yy Modelo de Doença Represália – quando é vista como repre-
sália e tem a sua causa no próprio paciente, como é fruto do
pecado. Contra esse mal, parte-se para uma luta, uma cruzada,
que sempre é uma guerra santa.
A terceira forma de representação da doença tem origem no
sistema social. Algumas doenças corrompem o sistema social, como a
lepra e a peste. Outras corroem moralmente o sistema, como a sífilis:
ela está ligada à sexualidade, em que alguém recebe confiante a felici-
dade, ignorando a doença.
Essas visões opostas são muito antigas, oriundas das mais primi-
tivas escolas médicas:
115
tal à doença, uma vez que ela é vista como entidade específica
e inimiga. São terapias ativas. Sem dúvida, são eficazes, porém
podem ser brutais, com efeitos colaterais importantes, algu-
mas vezes mais graves que a própria doença inicial.
116
FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA A REFLEXÃO ÉTICA
NO ENSINO DA ÁREA DA SAÚDE
Capítulo 4
A liberdade
117
As ideias se divulgam velozmente. Newton e Leibniz, mesmo sem
se conhecerem, descobrem fórmulas matemáticas quase ao mesmo
tempo. Talvez porque as ideias estivessem soltas num momento em
que todos os sábios estivessem pensando em como solucionar os enig-
mas do universo, esperando apenas que os mais iluminados as desco-
brissem e divulgassem. O homem descobre que os gases, se colocados
em condições ideais, tem força e podem produzir movimento. A gravi-
dade explica porque uma maçã cai e porque São Jorge não pode matar
dragões na Lua. A metafísica se transmuta em física, a alquimia em quí-
mica, a especulação em ciência, a virtude em psicologia.
Algo muito profundo mudou. Lavoisier, que chegou a desconsi-
derar a hipótese de Deus, não foi assado numa fogueira, rompendo
uma tradição de séculos.
O Renascimento foi, sem dúvida, uma época fantástica, sem da-
tas definidas de início e fim. O indivíduo podia acreditar em Deus, mas
também podia acreditar na evolução. Podia acreditar no belo, mas tam-
bém podia criar o belo. Podia acreditar na virtude, mas também acredi-
tava que podia se tornar virtuoso.
Se o Homem podia crer sem obstáculos, pesquisar verdades, pro-
curar soluções para os problemas, criar belezas, ele estava se tornan-
do livre. E esse foi um conceito novo na história da humanidade. Para
muitos, ele foi fruto do movimento iluminista. A divisa da revolução
francesa sintetizou muito bem o espírito que dominava, de liberdade,
igualdade e fraternidade.
Em nosso país, em que pesem as discussões sobre a Inconfidên-
cia Mineira, é fato que o seu lema permanece como um dístico: Libertas
quae sera tamen – liberdade ainda que tardia.
118
Porém, só é livre o indivíduo dotado de inteligência e vida social,
uma vez que a liberdade se manifesta nos momentos de tomada de
decisões capazes de comprometer sua vida. O indivíduo livre reconhece
a responsabilidade de suas ações, razão pela qual pode ser premiado
por seus méritos ou castigado por seus erros. Considerar alguém não
responsável por seus atos implica em reduzir a sua dignidade ou suas
faculdades humanas.
As discussões sobre liberdade são tão importantes e tão atuais
que até a expressão liberdade, no singular, foi substituída por liberda-
des no plural.
Numa primeira divisão, encontra-se:
119
Quando se discute se há liberdade ou se estamos submetidos
a um determinismo, alguns pontos interessantes considerados pelos
grandes pensadores merecem ser vistos, porque podem influir muito
na condução de uma discussão ética:
120
Ser livre é ser AUTÔNOMO. O indivíduo deve dar a si
mesmo as regras a serem seguidas racionalmente.
121
vontade. Como o Homem não escolhe o que deseja e nem o que quer,
ele não é livre. Ao contrário, é absolutamente determinado a agir se-
gundo sua vontade particular, objetivação da vontade metafísica por
trás de todos os eventos naturais. O que parece deliberação é uma ilu-
são ocasionada pela mera consciência sobre os próprios desejos.
122
Não eram os nobres e os clérigos que queriam ser livres. Para
eles, o conceito de liberdade não fazia sentindo, porque eles não traba-
lhavam nem produziam. Apenas viviam – e viviam bem – com o paga-
mento do chefe supremo, o rei.
O terceiro conceito importante foi o de fraternidade.
4.5 A fraternidade
Além de livre e igual, o homem devia ser fraterno.
Esse é um tema tão profundo que, já no século XX, Norberto Bob-
bio, filósofo italiano falecido recentemente, apesar de sua incontestável
competência, disse não ter competência para falar dele.
A fraternidade estabelece a igualdade entre estranhos e, no sé-
culo XVII, essa atitude era de uma profundidade tremenda. Como, até
então, o Estado-nação não existia e os homens não podiam sair de seus
territórios, todos os que saíssem ou chegassem se tornavam estrangei-
ros e, portanto, inimigos em potencial. Em um país dos Balcãs, a segre-
gação era tanta que os marinheiros estrangeiros eram colocados em
quarentena imediatamente após a chegada, porque a eles eram atri-
buídas todas as doenças e malefícios que aconteciam na comunidade.
E agora, num repente, esses estrangeiros perdem o status de es-
tranhos perigosos e se tornam irmãos!
O Ocidente vivia alterações galopantes com correntes filosóficas
durando apenas algumas décadas e as ideias mudando de forma drás-
tica, atingindo, no século XIX, o paroxismo dos ismos (comunismo, so-
cialismo, democratismo, positivismo, ateísmo, evolucionismo etc.). Os
ídolos máximos dessa sociedade diziam que a religião é o ópio do povo,
a fé é uma carência e chegaram a anunciar a morte de Deus.
123
dade, com a liberdade sendo considerado um direito natural. (CHAUÍ,
2005) A esses direitos se somaram os direitos à segurança e à resistência
à opressão.
Não foi um momento fácil, como bem compreendeu Rousseau,
ao afirmar que o homem nasce livre, porém em todo lugar está acorren-
tado, propondo um contrato social. Os democratas em todo o mundo
não negam a importância do Contrato Social, mas ele não está expres-
so em nenhum país, em nenhuma constituição. Apesar da inexistência
do referido contrato, a promessa da liberdade como condição essencial
dos seres humanos em sociedade tornou-se um princípio que modela a
vida coletiva nas democracias.
A liberdade integra os princípios da cidadania baseados nos va-
lores da emancipação e da escolha individual. Os súditos de uma nação
transformam-se em cidadãos.
Como os conceitos de Cidadania, de Contrato Social e de Liberda-
de são vagos, porém importantes, eles passam a exigir, de todos e de
cada um, um autêntico exercício intelectual e moral.
O desejo de liberdade é, atualmente, um sentimento profun-
damente enraizado no ser humano e se manifesta pela vontade. Por
exemplo, a vontade de escolher a profissão, a pessoa com quem se ca-
sar, o direito de assumir um compromisso político e até a religião. A
liberdade permite ao Homem tomar decisão própria.
124
ciedade como líquida, porque está ocorrendo uma dissolução das for-
ças ordenadoras e dos padrões sociais de referência em que nada dura
para sempre. A sociedade não é mais determinada por bens sólidos,
lembrando a clássica frase de Marx: “tudo que é sólido se desmancha”.
Atualmente, a sociedade foi individualizada e fragmentada – ela
perdeu seu cunho coletivo. A vida se tornou dividida e fracionada em
episódios e sem padrões de referência, nem códigos sociais e culturais.
É o indivíduo que conta, na sua busca pelo significado e propósito
da vida, na procura da felicidade e da identidade individual. Aliás, Bau-
man afirma que, numa sociedade líquida, o indivíduo não busca mais a
sua identidade. Ele a cria e passa a vida redefinindo essa identidade. A
vida passa a ser uma “fase de transição”.
A relação humana ser tornou instantânea, podendo a pessoa, em
um único dia, fazer dezenas ou centenas de “novos amigos”, mas, com
mesma facilidade, desfazer ou “deletar”. Há o risco de possível elimina-
ção dos traços humanos nessa nova relação.
Aparentemente a “relação humana” é autônoma, porque o indiví-
duo faz e desfaz amizades. Mas esse fazer e desfazer é isolado, individual,
negando a participação da comunidade. Bauman, citando Castoriadis,
afirma que só pode haver autonomia individual em conjunto com a au-
tonomia comunitária, ou seja, o indivíduo solitário perde sua autonomia.
Inicialmente o projeto do iluminismo serviu para a emancipação,
libertando a humanidade da tirania, da escravidão física e espiritual,
porém, nos dias atuais a liberdade está intimamente ligada à seguran-
ça, sendo muitas vezes trocada por ela. Essa afirmação de Bauman se
baseia no fato de que o mundo atual não está mais transparente nem
mais previsível como desejavam os iluministas.
Ao contrário, o mundo para Bauman, não está nem mais amisto-
so nem mais seguro e a fórmula para buscar a felicidade está passando
de Liberdade, Igualdade, Fraternidade para Segurança, Paridade, Rede.
O sentimento de insegurança deriva de múltiplos fatores comuns
ao mundo globalizado: carência de proteção, expectativas crescentes
acompanhadas de promessas científicas frustradas, insegurança das
instituições (hospitais, fábricas de alimentos, supermercados, unidades
de tratamento de água etc.), fragilidade dos vínculos humanos (terroris-
tas, assaltantes, mendigos etc.), causando perda de autossuficiência e
sensação de abandono.
125
A consequência é que a:
126
yy Não deveria haver redistribuição de renda ou riqueza, seja por
intermédio de impostos, cotas ou qualquer outro meio.
Essas teorias libertárias, embora causem estranheza a muitos,
não são impossíveis de serem aplicadas. Elas encontraram eco nas polí-
ticas de Ronald Reagan e Margareth Tatcher, que chegaram a condenar
o programa previdenciário obrigatório, sob alegação de que a taxação
dos rendimentos equivaleria ao trabalho forçado, retirando dinheiro
oriundo do esforço individual.
Na área da saúde, os libertários adotam políticas que necessitam
vigorosas discussões éticas, como as que validam a compra e venda de
órgãos, baseando-se na noção de que o indivíduo é dono de si mesmo.
Vejamos os exemplos recentes da Índia e da China, que vendiam órgãos
de pobres ou de fuzilados por crimes.
Outra questão altamente pertinente aos dias atuais diz respeito
ao hedonismo, o prazer. Epicuro (341-271 a. C.) afirmou que o bem úl-
timo é o prazer, embora possamos dizer em defesa do filósofo que ele
não era defensor do prazer em curto prazo. Stuart Mill também defen-
deu que havia prazeres inferiores, como comida, água, sexo, e prazeres
superiores, como leitura, reflexão e estudo. Entretanto, parece que a
sociedade contemporânea não reflete como Epicuro nem como Mill. Os
prazeres da sociedade atual são para serem gozados imediatamente e
não são classificáveis.
A Liberdade, de início, deu o direito ao prazer sexual, sem a culpa
de um pecado original e isento da obrigatoriedade de gerar filhos. A
liberdade oriunda da pílula se estendeu à liberdade da procriação sem
sexo, graças à fertilização in vitro (FIV).
Casais estéreis, casais do mesmo sexo exigiram a FIV, constituin-
do hoje um fato em alguns locais e uma luta judicial em outros.
A liberdade de poder ter filhos seguiu-se de outros desejos, como
os de ter filhos perfeitos, sem anomalias. Nesse momento, surge uma
nova discussão de liberdade e ética, não apenas ligado à fecundação,
mas também ligado à seleção de um filho já gerado, mas gerado com
imperfeições, gerando discussões sobre a liberdade de abortar um feto
mal formado.
O anseio de liberdade vai além, pois há pais que não se limitam
a querer filhos perfeitos, exigem deles características específicas – é a
eugenia retornando sob o manto da clonagem.
127
As questões de liberdade e ética continuam com os casais que
ultrapassaram a idade fértil e que desejam ter filhos ou da pessoa que
deseja ter um filho do parceiro querido já morto.
Bauman alerta que a sociedade vem sendo dominada pela técni-
ca e pelo progresso científico, com uma nova epistemologia do conheci-
mento, uma nova práxis, um novo caminho para a felicidade, presentes
em programas sem fins específicos ou claros, frequentemente denomi-
nados de “nova era”, “qualidade de vida”, “gestão do caos”, “liderança”,
“alta eficiência” e outras tantas. Na verdade, o que ocorre é que a socie-
dade está vendendo e comprando “fumaça”.
128
FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA A REFLEXÃO ÉTICA
NO ENSINO DA ÁREA DA SAÚDE
Capítulo 5
Desafios éticos do Sistema
Suplementar de Saúde
129
Quem sabe, também, os processos suplementares poderiam aju-
dar a aperfeiçoar o gerenciamento do SUS..., parecendo como hoje se
espera que a concessão dos grandes aeroportos “ensine” – finalmente!
– a INFRAERO a administrá-los.
Ao longo dos anos, os sistemas Suplementar e o SUS, na verdade,
se distanciaram cada vez mais, sob o manto de metas muito diferentes
e sem qualquer integração.
A tal “suplementação”, avaliada em seu conceito primário e rigo-
roso, ainda não vingou.
O sistema suplementar cada vez mais se estrutura como um ne-
gócio privado, que a cada dia descobre a irracionalidade de seus custos
e, assim, persegue cortes e glosas, se transformando em um “SUS real”
(sem trocadilho, por favor), paralelo e dificilmente “suplementar”.
Repete-se no sistema suplementar a falta de hierarquização e re-
ferência que superlota hospitais, serviços de diagnóstico e consultórios.
Certamente, o cliente do sistema Suplementar não está satisfeito.
Por outro lado, um sistema que tem que ser um negócio para
sobreviver, em um país de elevadíssimos custos de operação empresa-
rial, procura o tempo todo se “otimizar”, o que vai além de se preocupar
somente com suas compras e penetra a fundo na gestão das pessoas.
O que é notório nas equipes multiprofissionais, excetuando-se os
médicos, é a busca pela redução numérica de colaboradores até o limite
crítico de operação.
Há fadiga precoce, talvez a psicológica prepondere, aumentando
os riscos de feitos adversos que envolvam os clientes. São muitos os
relatos de descuidos que redundam em acidentes ou consequências
danosas, resultado de situações ou atitudes em que é fácil identificar a
pressão laborativa excessiva sobre o profissional.
Para os médicos as instituições que aderem ao sistema Suplemen-
tar procuram o discurso de que eles são o “segundo cliente”, que “sem o
médico não existem” e que é no trabalho médico o nascedouro da receita
sustentável que alimenta e garante a sobrevivência institucional.
Esse ambiente que fortemente associa o trabalho médico à soli-
dez financeira, seleciona quais são as especialidades médicas e especia-
130
listas que efetivamente contribuem economicamente, como também já
identifica aqueles que não têm qualquer potencial para tal.
Nesse cenário, surgiram os formatos institucionais de “alta com-
plexidade” e “prioritariamente cirúrgico”, em que passa a valer mais o
médico capaz de realizar procedimentos com alto consumo de mate-
riais e medicamentos, cuja comercialização é, hoje, a fonte principal de
recursos dos hospitais privados.
Esse médico de “alta complexidade” evidentemente aufere uma
renda maior e busca se manter nesse patamar financeiro ou ainda maior.
Também consegue recursos a partir dos fornecedores dos insu-
mos que consome em seus procedimentos, de tal forma que os valores
de honorários pagos pelas Operadoras passam a ter pouco significado
financeiro e que esses médicos não se preocupam mais com seus even-
tuais reajustes.
Sabedoras disso, as Operadoras praticam reajustes inferiores à
inflação do Sistema (que é maior que a inflação oficial do país), aplica-
dos a todos os atos médicos, sufocando os que se sustentam apenas
com tais honorários.
Sofrem muito aqueles que não se beneficiam do business de ma-
teriais e medicamentos, o que, hoje, já é uma segunda categoria de es-
pecialistas, mal remunerada, decepcionada e com especialidades que
julgam não são mais atrativas. É o caso real da Pediatria e outras espe-
cialidades da Medicina Interna, por exemplo.
Se o melhor – para o médico e para o hospital – for o ambiente
de business, até que ponto se mantém e se pratica o rigor técnico e
científico das indicações de procedimentos diagnósticos e de cirurgias
eletivas? Ou será que muitas ações são decididas, precoce ou injustifi-
cadamente, para atender às metas de produção e de faturamento da
Instituição e de interesse pessoal do médico?
Há, com certeza, um viés cada vez mais estreito entre a indi-
cação clínica e o business, não apenas perigoso para o cliente, mas,
certamente, contribuindo para custos cada vez mais elevados para as
fontes pagadoras.
Haverá caixa no futuro para esse financiamento caríssimo, pro-
gressivo e à beira do incontrolável?
131
É fato que essa atmosfera comercial que pauta a operação dos
serviços suplementares de saúde corre o risco de se transformar em
um paradigma de gestão para os serviços públicos, também se foca-
lizando na “alta complexidade” e insistindo em não hierarquizar o seu
modelo de atendimento.
Como também inexiste uma política nacional de formação de
recursos humanos para os serviços de saúde, continuaremos criando
atrativos para as especialidades valorizadas pelo business e desencora-
jando, cada vez mais, a formação das competências que não obtêm o
mesmo nível de remuneração.
Hoje, isso já ocorre e percebe-se nitidamente uma tendência
agravante, porque a nossa política de saúde não está administrando as
diferenças naturais de remuneração profissional, permitindo que haja
uma divisão de categorias em que a menos favorecida passou a ser
uma forma de exercício humilhante e desprestigiada, socialmente ina-
ceitável por quem despendeu tanto tempo e dinheiro na sua formação.
Como também a formação de recursos humanos para a saúde
tem, nesse momento histórico nacional, uma insignificante tônica de
cidadania, não há conquista de corações e mentes para uma causa que
seja altruísta e sanitarista, ainda que mal remunerada.
Por outro lado, o Governo precisa muito de profissionais para as
bases do Sistema de Saúde, daí o seu Programa Mais Médicos. Entretan-
to, o faz de modo açodado, sem um plano operacional hierarquizado e
integrado, e, ainda por cima, paga o profissional utilizando um modelo
absolutamente fora das leis trabalhistas.
O sistema suplementar, por sua vez, não cria condições para a
interiorização, porque só se considera viável em regiões populacionais
maiores e não se dedica à atenção básica de saúde.
É hospitalcêntrico por excelência.
A formação dos médicos, no Brasil, é ainda sabidamente facilita-
dora de especializações mais rentáveis e de baixa interiorização, já que
as fontes pagadoras – SUS e Operadoras de Saúde Suplementar – em
seus modelos, não conseguem ou não desejam contemplar coberturas
em rincões.
Salvo exceções missionárias, o médico brasileiro recém-forma-
do não atenderá o perfil de recursos humanos que seria necessário
132
ao país. Será imprescindível e natural a importação de médicos, ainda
que não haja no mundo tanta disponibilidade assim. Nem pelo mode-
lo terceirizador do Governo de Cuba, que avaliamos como escraviza-
dor, mas nos esquecendo de que, já na Residência Médica, o médico
brasileiro é submetido a uma jornada de 60 horas semanais, definida
em lei, enquanto qualquer outra profissão nesse país não pode ultra-
passar 44 horas.
Como falamos antes, como há de ser preparar os recursos huma-
nos se não temos um Sistema que oriente as diretrizes educacionais?
Nesse palco complexo com múltiplos atores que, sob o mesmo
tema, atuam com textos diversos, angustia como poderá ser o seu futuro.
Repensar os processos de assistência como ações dedicadas ao
acolhimento e à atenção humana, fazendo desses valores a base inego-
ciável do Sistema, talvez seja um bom começo.
Essa valoração, se orientar a formatação de um Sistema de Saúde
Nacional – contemplando a integração SUS e Suplementar – e, assim,
também balizando a formação dos seus recursos humanos, é provável
que em duas ou três gerações tenhamos uma integração e hierarquiza-
ção capazes de não apenas modificar nossos indicadores de saúde, mas
sustentar uma política eficiente de controle sanitário.
Não há qualquer conflito entre a visão humanista que orienta o
planejamento e os necessários recursos financeiros para manter o Sis-
tema, desde que todos os envolvidos responsáveis mantenham sempre
visível o objetivo de trazer bem-estar e cidadania por meio das ações
de saúde.
O desafio à sabedoria dos gestores é saber moldar o cuidado
com a saúde do negócio, inclusive do SUS, garantindo a sua sobrevivên-
cia e eficácia social.
Ao médico talvez se reserve um desafio maior, de “alta
complexidade”.
Até um passado não muito distante, o médico era efetivamente o
protagonista do Sistema de Saúde. Seu envolvimento com a gestão era
primitivo, já que sua prioridade era o exercício técnico. Acreditava que o
serviço funcionava bem quando era clinicamente resolutivo.
Esse primeiro modelo foi atropelado com a chegada dos adminis-
tradores profissionais, inicialmente nos hospitais privados, pouco antes
133
do alastramento das operadoras de saúde suplementar. Esses novos
gestores, muitos em sua primeira experiência profissional, colocaram
os médicos restritos à atividade técnica, com raras exceções. Como ad-
ministradores profissionais, implementaram nas instituições de saúde
o modelo de perseguição à eficiência e ao lucro. Exceto no SUS, claro.
Em algum tempo, talvez menos do que imaginamos, os médicos no-
vamente serão – pela dor – estimulados a rediscutir seu papel no Sistema.
As especialidades, hoje tão atraentes, em algum tempo estarão
saturadas, e as famigeradas leis de mercado realinharão as necessida-
des e as oportunidades.
A direção em que isso se orientará dependerá fundamentalmen-
te de um Plano Nacional de Saúde, não apenas programático, mas tam-
bém ético e capaz de contextualizar efetivas ações de acompanhamen-
to e mudança do perfil sanitário brasileiro.
Com seu histórico de passividade e de acomodação, às vezes
oportunista, além de seu comportamento frequentemente solitário, o
médico poderá demorar a perceber esse rodamoinho que se anuncia, e
que o valor da sua existência humana e profissional está além do busi-
ness e do resultado financeiro das instituições.
É o entendimento do sentido histórico da sua profissão, com o
resgate do compromisso de ser o efetivo agente de melhoria social que
a sociedade ainda espera.
134
FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA A REFLEXÃO ÉTICA
NO ENSINO DA ÁREA DA SAÚDE
Capítulo 6
Envelhecer e a liberdade para o
esquecimento
135
Ó que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais. (ABREU, 1947, p.37)
136
nesse jogo. A memória é condição para permanecer vivo, na medida
em que são as regras, as lógicas, os conceitos nela imprimidos que nos
localizam em meio ao caos das forças que incidem sobre a vida. Vida
que nos leva ao sabor de suas circunstâncias.
O descortinar da análise deste artigo não é a crítica à memória.
Criticar-se-á a reverência ao excesso de memória e, mais do que isso,
criticaremos o esquecimento como incondicional sinônimo de sombra,
de extravio, de erro.
Importante desviar a trilha do caminho argumentativo para breve
consideração. A gerontologia, na medicina do envelhecimento, traz pará-
grafo sublinhado no que tange o esquecimento patológico: as demências.
Conta a história que Oribasius, médico pessoal de um imperador
de Roma, propunha uma condição patológica em que a observação da
calvície e da lentidão dos movimentos corporais estavam associadas à
perda intelectiva, o que caracterizava a existência de uma atrofia cere-
bral (TAVARES, 2005, p.15). Séculos passados, vemos o conhecimento
científico médico, hoje, descrever os quadros clínicos das demências
com maior precisão.
As demências, com uma prevalência estimada nas populações ido-
sas em taxas que variam de 1,5% a 12%, em concordância progressiva
com o aumento da faixa etária (FRATIGLIONE, 1999, p.365), são questões
de saúde mental as quais as frases desta crítica não contemplarão. De-
mência, diagnóstico médico, fonte de impacto psicológico e comporta-
mental, é condição patológica que merece outro tipo de contorno, em
que o obstáculo é outro, a reflexão filosófica outra, um possível enfrenta-
mento saudável outro, e a experiência de julgamento conceitual distinta.
Retornando do viés, nos propomos a jogar uma luz sobre o mito
do esquecimento como perda de vida, como falha, como somente de-
feito e perturbação de um estado normal. Lugar comum na contempo-
raneidade, ainda mais no universo do idoso, daquele que se percebe
envelhecendo, é o medo de esquecer. É o medo de ser traído pela me-
mória. Um medo de ver escorrer por entre as mãos e as rugas, a sua
história, sua memória, seu passado.
Focos de luz sobre os ídolos que fazem do esquecimento apenas
desvantagem para a vida.
“Derrubar ídolos (minha palavra para ideais) – isto
sim é meu ofício.” (NIETZSCHE, 2004, p.18) .
137
Esquecimento não é apenas sombra. Esquecer pode ser luz. Es-
quecimento é, ao mesmo tempo, sombra e luz. Esquecer para envelhe-
cer bem é a bandeira que, agora, defenderemos. Pedimos licença para
trazer a ilustre companhia de Friedrich Nietzsche nessa empreitada.
138
animal. A resposta não vem. O animal gostaria de responder ao homem
que é feliz porque sabe esquecer. Mas até a resposta que daria acaba
na sombra de seu esquecimento, e, por isso, ele silencia. O homem sob
o olhar de um animal que sabe esquecer, também silencia e se admira.
(NIETZSCHE, 2003, p.7).
A admiração do homem pelo animal, aquele outro, é o que Nietzs-
che vem trazer para introduzir a ideia que vai de encontro ao tempo em
que vivia, e como ele mesmo caracterizava como uma ideia intempestiva
– uma ideia que não mora no tempo em que é dita. Nietzsche (2003), em
sua consideração intempestiva, nos desloca de nossos assentos comuns
do senso comum e lança para os nossos dias a ideia da “desvantagem
da história para a vida”. A vantagem do esquecimento para viver, “[...]
padecemos todos de uma ardente febre histórica e ao menos devíamos
reconhecer que padecemos dela.” (NIETZSCHE, 2003, p.6).
A febre histórica a que se refere, fala do pesado fardo que pode
representar o passado de quem já passou pela vida, atravessado pelas
marcas de ferro e fogo inerentes a quem vive. “Por mais longe que vá,
por mais depressa que corra, as suas algemas seguem-no” (NIETZSCHE,
1973, p.105). Fantasmas, entulhos de emoções, barulhos de correntes
arranhando o chão, feridas abertas, feridas cicatrizadas, mas feridas
que nos lembram a todo momento de nosso sentido histórico.
O homem como uma coleção de muitas páginas de história, e
de algumas extraordinárias, páginas que se amassaram e se dobram
no nosso passado a reivindicar uma tortuosa estrada de retorno. O ho-
mem dobra-se em si mesmo e retorna ao passado para rever memórias
quer queira ou não, pois se tratam de páginas mal viradas. Páginas que
exigem lembrança – “que torna pesada sua caminhada como um invi-
sível fardo de trevas” (NIETZSCHE, 1973, p.106). Lembranças que cris-
talizam, paralisando o presente e deixando o homem com as costas
viradas para o seu futuro, costas viradas para o que virá.
Será, então, que deveríamos olhar o esquecimento como ape-
nas sombra? Esquecimento pode, então, realmente ser luz? O homem
idoso deve aprender a esquecer? São essas as perguntas que tentare-
mos responder.
139
yy O homem, memórias para esquecer
A literatura de 1942 nos traz um personagem pitoresco criado
pelo escritor argentino Jorge Luís Borges. Irineu Funes, “o memorioso”
é o protótipo daquilo que Nietzsche chamaria de excesso de sentido
histórico, e é ele, Funes, o observado no conto de Borges (2001).
Funes possuía uma memória prodigiosa, cronométrica, gigantes-
ca. Dizia que tinha ele, sozinho, mais recordações que as que somadas
tiveram todos os homens desde que o mundo é mundo. Recordava-se
de tudo:
[...] as formas das nuvens austrais do amanhecer do
trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e po-
dia compará-las na lembrança aos veios de um livro
encadernado em couro que vira somente uma vez e
às linhas de espuma que um remo levantou no Rio
negro na véspera da batalha do Quebracho. (BOR-
GES, 2001, p.25).
140
nunca sai de nada” (NIETZSCHE, 1987, p.28). Se não funciona, de manei-
ra harmoniosa e funcional, o estômago do espírito - essa faculdade do
esquecimento -, o diagnóstico é o de dispepsia.
O alimento oferecido pela vida ao homem, aquilo que, enfim, es-
tará guardado dentro desse homem, essa sua história, ficará mal as-
similada. O resultado é uma ruminação do conteúdo de história mal
digerida, um apodrecimento do passado, um desconforto da doença de
si mesmo. Um mal-estar de si mesmo.
Quando doentes do excesso de memória, nos tornamos fracos,
incapazes de levantar do leito de enfermos, e olhando somente para
dentro, para a interioridade, deitamos sob os lençóis do ressentimento
– “o ressentido é alguém que nem age nem reage realmente” (MACHA-
DO, 1999, p.64). Sem ação, o ser humano é corroído pela ferrugem da
inércia, corroído pelo tempo que corre e não espera esse homem que
permanece imóvel. Esse homem que permanece com os olhos colados
nas fotografias de seu museu.
yy A história e a vida
“Somente na medida em que a história serve à vida
queremos servi-la.” (NIETZSCHE, 2003, p.5).
141
da e conduzida por uma força mais elevada e não quando ela mesma
domina e conduz.” (NIETZSCHE, 2003, p.17).
Coloque agora frente a frente o idoso e a criança. Anos de vida e
o ponteiro do relógio a marcar com sensibilidades distintas a passagem
de mais um segundo em suas histórias.
O idoso é nosso personagem principal. Sua interioridade enri-
quecida, seus bens de valor tão caros. Do outro lado, o lado de fora de
um idoso, sua pobre exterioridade, com frequência, dita desinteressan-
te, a ser moldada pelos óculos, moldada pela comparação das expe-
riências interiores e anteriores. Olhos que se desacostumaram ao olhar
de surpresa, um olhar em que não se tenha sempre o metro, a medida
prévia, como fonte de comparação. O idoso de interioridade imensa e
de exterioridade tão tímida.
A criança, esse antípoda do idoso. O mundo interior da criança é
precário, incompleto por imaturo, e, por isso, ávido pela exterioridade.
A criança brinca, entre as cercas do passado e do futuro, cercas que ela
não toca e não vê. Desconhece passado e futuro. Ocupa-se com o novo.
Esse mundo da criança, na profundidade do seu instante, em uma
“bem-aventurada cegueira.” (NIETZSCHE, 2003, p.8). Para a criança é na
exterioridade que mora o que realmente interessa. A criança brinca em
experimentar o instante, o presente.
O idoso corre sérios riscos de vida – leia vida com a simbologia
mais rica, de nascer e renascer que a palavra traz. Quando o idoso nega
a possibilidade de vida inesperada, quando não abre o abraço para o
devir, quando se fecha para a exterioridade, passa a segurar com vigor
as relíquias do seu passado. Relíquias que se tornam fonte de descren-
ça, diminuição e depreciação do futuro, do novo, da mudança.
O idoso está descrente, esse idoso que expulsou a possibilidade
de se perceber criança. Ele mora dentro de seu próprio museu. Na in-
terioridade das memórias, desse “supermemorialismo” (FEITOSA, 2000,
p.15), o idoso deixa, então, de correr no compasso do tempo, do tempo
presente, no flash do instante, na luz surpreendente da exterioridade e
opta, em definitivo, por uma aposentadoria precoce.
No envelhecer supermemorioso, pode passar a receber, como
aposentado da vida, os proventos e vencimentos para os quais contri-
buiu e fomentou: ressentimento, saudade do que teve, angústia pelo
que perdeu, sofrimento pelo que é sua vida, fraqueza por ser agora idoso.
142
yy Conclusão: o idoso e a criação
“Parei de lutar contra o tempo
Ando exercendo instante
Acho que ganhei presença.” (MOSÉ, 2004, p.84)
143
rante a sua duração.” Esse estado a-histórico nos transporta para uma
imagem a todos familiar: uma festa. Sim, uma festa, uma verdadeira
festa, onde há comemoração e afirmação da vida. Afirmação do nosso
mundo; “este mundo, nosso mundo.” (NIETZSCHE, 2001, p.74).
A festa seria um momento de “suspensão do tempo ordinário em
um tempo glorioso” (FEITOSA, 1999, p.58). A festa, no olhar de Nietzs-
che, é tempo de excesso, de plenitude, de transbordamento, é tempo
de surpreender-se pelo inesperado, é tempo de perder o equilíbrio. “A
lei da festa exige que seus participantes se entreguem totalmente, cor-
rendo risco de perderem-se de si mesmos”.
O idoso pode desarmar-se de preconceitos. Uma festa é lugar
de jovem – diria aquele que envelhece. O idoso pode se permitir entrar
numa festa. Aos cinquenta ou aos noventa anos, é sempre tempo de se
arriscar a esquecer das lembranças que paralisam, lembranças que en-
fraquecem. É sempre tempo de esquecer e se entregar à festa da vida.
As pernas podem realmente faltar, a lembrança dos passos ou-
trora ensaiados podem se perder, o ritmo de uma ou outra música
pode parecer não ideal. Mas é possível deixar-se receber o convite para
a festa e aceitar o convite para dançar. Ali, no compasso do passo, no
inebriamento do instante, estaremos fora da história, nos esquecere-
mos de ser o que esperamos de nós. E só assim podemos criar e recriar
nossas vidas.
Envelhecer é mudar. O irrefreável movimento das horas no com-
passo de uma dança de quem chega para vida e vai dela se despedir.
Na infância, na juventude, ou na melodia dos cinquenta até os
cem anos é sempre tempo de mudança. É tempo de festejar, de dançar,
de lembrar, de esquecer, de morrer e renascer.
144
FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA A REFLEXÃO ÉTICA
NO ENSINO DA ÁREA DA SAÚDE
Capítulo 7
Relação entre o Direito e a
Medicina16
145
que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
[…]
146
cionada ao direito de continuar vivo e a segundo de se ter vida digna
quanto à subsistência”.
Apesar da efetividade desses direitos dependerem de diversos
fatores, tais como a elaboração de políticas públicas, gestão responsá-
vel dos recursos públicos destinados à saúde, moradia, meio ambiente
equilibrado, entre outros, quando se parte para uma concepção biológi-
ca, são os profissionais da área da saúde (em sentido amplo) que atuam
na atenção e cuidados à saúde, possibilitando uma melhor qualidade
de vida das pessoas.
A vida está corporificada no corpo humano. Essa complexa uni-
dade, apesar da existência de mecanismos próprios de defesa, está su-
jeita a interferências externas e internas que afetam seu funcionamen-
to e por consequência seu pleno desenvolvimento.
Com isso, diante da fragilidade dessa complexa estrutura, “toda
vez que uma pessoa busca um tratamento de saúde, é porque há um
desequilíbrio ocorrendo em sua vida, de forma a manifestar-se em sua
saúde, seja física ou mental.” (ROBERTO, 2010, p. 28)
Essas adversidades fizeram com que a sociedade elegesse o pro-
fissional médico com a missão de cuidar e combater os desajustes que
interfiram na harmonia da máquina humana e seu restabelecimento.
Diante do exposto, é forçoso concluir que o Direito e a Medicina
são ramos do saber que estão relacionados, pois ao mesmo tempo em
que o Direito tutela, através das normas legais, os valores necessários
para que o ser humano se desenvolva (vida e dignidade da pessoa hu-
mana), a sociedade atribui ao profissional médico a tarefa de manter as
potencialidades físicas e psíquicas da pessoa em plena ordem para que
ela alcance com qualidade seus ideais.
Nesse sentido, é o Código de Ética Médica (resolução CFM nº
1931/2009), ao retratar a atividade médica como instrumento a ser-
viço da vida:
Capítulo I
Princípios Fundamentais
147
II – O alvo de toda atenção do médico é a saúde
do ser humano, em benefício da qual deverá agir
com máximo de zelo e o melhor de sua capacidade
profissional.
[…]
148
necessidades de paz, ordem e bem comum levam a sociedade à cria-
ção de um organismo responsável pela instrumentalização e regência
destes valores. Ao Direito é conferida esta importante missão.” (NADER,
2012, p. 19).
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
149
utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento
físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou
para permitir e acobertar tentativa contra sua digni-
dade e integridade.
[…]
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
[…]
150
Capítulo II
DIREITOS MÉDICOS
[…]
Capítulo III
RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL
É vedado ao médico:
[…]
[…]
151
Em segundo lugar, já foi comprovado que, muitas vezes, poderá o
médico não se dar conta de que está diante de uma situação que requer
um mínimo de conhecimento de regras básicas em Direito para subsi-
diar sua decisão, o que poderá ocasionar a prática de um ato de boa-fé,
mas contrário ao Direito por desconhecimento de regras que incidiriam
em determinadas situações.
Em terceiro lugar, existe, em Direito, uma regra basilar imposta
a todos de que ninguém poderá alegar o descumprimento de uma re-
gra por desconhecê-la. Essa imposição legal está disposta no artigo 3º
do Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942 – Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro com a nova redação dada pela Lei nº
12.376, de 2010. “Art. 3º Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando
que não a conhece.”
Destaca-se também que vem crescendo nos tribunais brasileiros
ações de responsabilidade em que pacientes (ou familiares) questio-
nam perante os profissionais médicos sua atuação profissional por da-
nos causados ou resultados esperados, mas não alcançados.
Essa constatação é preocupante e tem causado a inquietação de
diversos estudiosos (GIOSTRI, 2011; DINIZ, 2011), pois essas demandas,
muitas vezes sem fundamento, poderão desencadear um enfraqueci-
mento da relação médico-paciente, o surgimento de uma relação onde
se eleve a quantidade de precauções e garantias e trato com o paciente,
visando cercar-se e precaver-se de aborrecimentos futuros. (GIOSTRI,
2011).
O conhecimento desses valores (vida, dignidade humana, auto-
nomia da vontade, intimidade, etc.) seguramente proporciona mais se-
gurança e legitimidade na tomada de decisões; evita dissabores futuros
pela não observância de limites impostos à profissão e desgaste peran-
te o paciente e seus familiares.
Nesse sentido, destacamos,
como a sociedade delega ao profissional de saúde
a responsabilidade para cuidar da saúde dos indi-
víduos e das populações humanas, é indispensável
que ele procure, com uso da razão crítica, avaliar per-
manentemente sua prática e questioná-la quanto a
repercussão efetiva de seus atos e decisões. (REGO;
PALACIOS; SHURAM, 2004, p. 169).
152
Quanto ao paciente, ele submeteria seu bem maior – a vida –, a
um profissional conhecedor das especificidades da arte médica, e, so-
bretudo, dos limites e condições de amparar e, muitas vezes, antece-
dendo sua atenção.
Desse modo, possibilitaria um relacionamento alicerçado ainda
mais na confiança e no respeito mútuo marcante e sempre presentes
nessa relação, evitando-se assim consequências indesejadas.
Finalmente, a sociedade teria seus valores reconhecidos e posi-
tivados em diversas regras jurídicas respeitadas por todos aqueles que
estão sob sua égide, uma vez que “a definição do que determinada so-
ciedade considera legítimo e/ou legal é uma construção estabelecida
pela história, pela cultura e pelo desenvolvimento técnico-científico e
ético-cultural dessa sociedade.” (LIMA, 2004, p. 125).
Devemos advertir que num Estado Democrático de Direito, as re-
gras jurídicas não constituem obstáculos às relações humanas. O Direi-
to é um importante instrumento balizador e harmonizador das relações
sociais, pois “para o homem e para a sociedade, o Direito não constitui
um fim, apenas um meio para tornar possível a convivência e o progres-
so social.”
153
154
FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA A REFLEXÃO ÉTICA
NO ENSINO DA ÁREA DA SAÚDE
Capítulo 8
Ciclo da vida
155
Com a finalidade de estimular a reflexão sobre esses temas, des-
taca-se neste momento a citação provocativa de James Lovelock de que
“a vida é algo que se come, que se ama, que é letal.” (MARGULIS; SAGAN,
2002, p.15).
8.1 Vida
Desde a Antiguidade os fenômenos da Vida têm sido
caracterizados com base em sua capacidade de auto
produção, vale dizer, com base na espontaneidade
com que os seres vivos se movem, se nutrem, crescem,
se reproduzem e morrem, de um modo que, pelo me-
nos aparentemente e relativamente, não dependem
das coisas externas. (ABBAGNANO, 1998, p.1001).
156
Adão e Eva numa simples lenda e a pergunta que todos passaram a fazer
é: de onde vem o homem? Ele se originou dos macacos? A religião não foi
capaz de responder à essa simples curiosidade humana.
A certeza foi substituída pela dúvida e, onde há dúvida, há especu-
lação. Assim, muitas teorias especulativas tiveram origem, sendo que duas
predominaram, uma não aceitando a outra:
157
Não é pretensão, neste momento, discutir a validade ou não das
teorias criacionistas, evolucionistas ou religiosas. A pretensão é apre-
sentar, com o máximo de isenção, a teoria de que vida e evolução estão
ligadas, de forma indissolúvel e que uma precisa da outra.
Sabemos que a pergunta da origem da vida continua sem resposta.
Mas a pergunta, hoje, é ainda mais simples e paradoxalmente mais difícil de
responder. A pergunta principal não é mais a origem da vida, porque muitos
cientistas acham que, primeiro, devemos responder à pergunta:
yy O que é vida?
Essa é a pergunta atual da ciência, da filosofia, das religiões. É a
pergunta que desencadeia os debates sobre ressuscitação, eutanásia,
aborto, controle da natalidade, pena de morte e até qualidade de vida.
É fato conhecido que todos os seres vivos compartilham fenô-
menos que vão determinar a sua diferença em relação aos seres não
animados, com características que estão presentes desde as menores
formas microscópicas até as mais gigantescas. Assim:
158
Para que o processo de nutrição se ponha em ação, é necessá-
ria uma fonte de energia, e a mais comum é o ATP. As plantas retiram
sua energia, pelo menos parcialmente, diretamente dos raios solares,
enquanto a maioria dos animais fabrica o ATP, obtendo a energia pela
decomposição de açúcares e gorduras. Alguns seres fazem essa trans-
formação anaerobicamente, enquanto outros precisam de oxigênio,
realizando o que chamamos de respiração.
As atividades de crescimento, nutrição e respiração são metabóli-
cas, portanto são atividades que transformam substâncias, que podem
ser recicladas dentro do próprio corpo e também podem ser eliminadas
como dejetos. Nos animais, temos como exemplos de dejetos a ureia,
o ácido úrico e o dióxido de carbono, que devem ser eliminados para o
exterior.
Os organismos que se reproduzem sexuadamente têm de en-
contrar companheiros para unirem suas células sexuais e garantirem a
perpetuação da espécie. Para muitos organismos, a reprodução implica
em locomoção e percepção sensorial.
Resumindo, a maioria dos seres vivos se distingue por apresentar
os chamados “sinais de vida”, que são: reprodução, crescimento, nutri-
ção, respiração, excreção, percepção sensorial e locomoção.
Porém, há seres que não apresentam todos esses fatores, sendo
exemplo notável o vírus, que não dispõe, por exemplo, de mecanismo
respiratório.
Outra característica do ser vivo é a informação, transmitida de
uma geração a outra. As moléculas que têm a capacidade de copiar a si
próprias e transmitir as informações são o ADN e o ARN.
Maturana e Varela acreditam estar no metabolismo a essência
fundamental da vida. Este metabolismo dá ao ser a capacidade de se re-
fazer continuamente, como a pele no homem, que é refeita a cada seis
semanas. A esse fenômeno dão o nome de “autopoese”, que significa
fazer a si mesmo através do metabolismo contínuo juntamente com a
atividade química e a movimentação das moléculas. Esse é o fenôme-
no da vida. Somente as células e os organismos feitos de células são
autopoéticos e capazes de efetuar o metabolismo. (MARGULIS; SAGAN,
2002)
Para muitos cientistas o DNA não contém a vida porque ele não
metaboliza nada. Por esses motivos, alguns cientistas discutem se o ví-
159
rus é um ser vivo, porque ele não tem genes nem proteínas para se
manter e é incapaz de realizar sozinho o metabolismo, portanto, é inca-
paz da autopoese.
Por outro lado, existe a ideia de que a Terra é um organismo vivo,
conhecida como teoria de Gaia. Nessa teoria, o planeta é comparado
a uma árvore, na qual o tronco está vivo apenas na sua camada su-
perficial, enquanto que o cerne é constituído de matéria já morta. Por
semelhança, toda camada superficial da Terra é viva, porque é capaz de
realizar autopoese, através do metabolismo contínuo. Como exemplo,
os adeptos da teoria lembram que consumo contínuo do CO2 encontra-
do na atmosfera se mantém estável ao longo dos séculos, porque ele é
efetuado pelas plantas, algas e bactérias fotossintéticas. Essa autopoe-
se permite que o oxigênio esteja em níveis de 20%, há 700 milhões de
anos. (MARGULIS; SAGAN, 2002).
Essa teoria, embora controvertida, é hoje defendida por impor-
tantes ecologistas. Como motivação para discussão, no Anexo se trans-
creve um trecho do livro de Margulis e Sagan, denominado O Significado
da Evolução. Esse anexo também justifica a inserção do próximo item:
a consciência.
8.2 Consciência
160
e ação que culmina em nossos atributos mentais mais
reverenciados. A “mente” talvez seja o resultado de
uma interação celular. (MARGULIS; SAGAN, p.42).
161
Enquanto a consciência do “eu” é individual, a do sujeito é uni-
versal, porque está ligada a conhecimentos que têm o mesmo valor em
todos os tempos e lugares. Por exemplo, o círculo é uma figura geomé-
trica que é comum a todos, portanto é uma consciência do sujeito.
162
coma, ou um juiz arbitra sobre as ações de um indivíduo, e assim por
diante. São várias as formas que podem ser utilizadas para essa quan-
tificação, como a escala de Glasgow, utilizada por médicos para medir
o nível de consciência de um paciente. Aqui, a consciência é objeto de
estudo da neurologia.
De qualquer ótica que seja abordada, seja filosófica ou científi-
ca, a definição de consciência é semelhante, como podemos confirmar
com esta definição de Paulo Carameli, médico: “consciência pode ser
definida como um estado de total percepção ou conhecimento de si
mesmo e do meio ambiente”. (BENSEÑOR, p. 446).
Enquanto a filosofia tem interesse na consciência em si, a ciência
se ocupa com seus distúrbios, que podem ser de
natureza variada, com manifestações quantitativas,
qualitativas ou ambas. As alterações quantitativas in-
cluem os estados de sonolência (aumento da relação
entre sono/vigília normal da pessoa, geralmente com
redução da atenção), estupor (a pessoa só acorda
com estímulos externos vigorosos) e coma (arres-
ponsividade, mesmo estímulos fortes não suscitam
resposta), enquanto as qualitativas se referem a qua-
dros de confusão mental aguda, também chamados
de delirium. (Idem, p. 446).
163
pela percepção dos sentimentos e desejos, foi chamada de experiência
interior. (REALE; ANTISERI, vol. 2, p. 513).
As discussões continuaram com outros empiristas britânicos que
discutiram se havia uma “substância” na ideia, de modo que o limite en-
tre o real, o imaginário e o delírio se obtinha pela compreensão das di-
ferenças entre o mundo objetivo e o subjetivo. Berkeley admitia (1685-
1753) que nenhum conhecimento é possível, uma vez que aquilo que
sabemos da realidade é baseado na experiência, que é essencialmente
uma experiência subjetiva.
Para fugir das abstrações e das soluções verbais, William James
lançou o pragmatismo como filosofia em 1898. Ele afirmou que o pes-
quisador devia tomar a atitude pragmática para realizar pesquisas, com
“a disposição em afastar o olhar das coisas primeiras, dos princípios,
das ‘categorias’, das pretensas necessidades e, ao contrário, voltar os
olhos para as coisas últimas, os resultados, as consequências, os fatos”.
(RELAE; ANTISERI, vol. 2, p. 493).
Se inicialmente as escolas filosóficas do idealismo e do empirismo
faziam distinção entre sensação e percepção, a fenomenologia e a teoria
da Gestalt defendiam a impossibilidade da separação (CHAUÍ, 2005).
A percepção é o conhecimento sensorial de formas ou totalida-
des dotadas de sentido e não apenas a soma de sensações elemen-
tares. É sempre uma vivência dotada de significação, uma vez que o
percebido tem um sentido na história da vida do sujeito. A percepção é,
antes de tudo, uma relação do sujeito com o mundo exterior e com seu
próprio interior.
A percepção é a própria origem do conhecimento científico, pois
é através dos órgãos dos sentidos que os objetos se apresentam corpo-
ralmente e são formadas as suas imagens em nosso interior.
Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência,
eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma expe-
riência do mundo sem a qual os símbolos da ciência
não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência
é construído sobre o mundo vivido, e se queremos
pensar a própria ciência com rigor, apreciar exata-
mente o seu sentido e seu alcance, precisamos pri-
meiramente despertar essa experiência do mundo
da qual ela é a expressão segunda. (CASSIRER, p. 3).
164
Portanto, das percepções evoluímos para as representações das
imagens dos objetos e dos fenômenos, que são as construções realiza-
das pelas experiências. Essas representações podem ser secundárias às
percepções anteriores e evocadas de modo voluntário ou involuntário.
Em psicologia, as representações são entendidas como um ato de co-
nhecimento consequente à reativação de uma lembrança ou de uma
imagem sem a presença real do objeto.
A essa representação das imagens evocadas, as diferentes esco-
las psicológicas darão diferentes nomes, como a própria representação,
apercepção etc.
Neste momento, retornamos à visão antropológica da doença e
também à visão psicológica, com representação ontológica e reacional
(JEAMMET, p.268). A primeira, conferindo uma existência autônoma à
doença e, a segunda, como uma reação do organismo a uma perturba-
ção do seu equilíbrio.
Podemos dizer que todo ser humano tem uma maneira própria de
perceber e representar a sua realidade, o que faz com um arbítrio que o
torna capaz de criar, abstrair, pensar além do real e, finalmente, sonhar.
O mesmo se dá com a percepção da vida e da morte.
8.3 Morte
Não tendo podido suprimir nem a doença nem a
morte, o homem achou que o melhor, para ser feliz,
era não pensar nisto. (Pascal)
165
animal convive numa residência com outro de espécie diferente, por
exemplo, um cão com um gato. A explicação que tem sido encontrada é
que, nessas duas situações, o animal não está no seu ambiente natural,
perdendo algumas de suas características básicas.
Entretanto, o medo da morte e, às vezes, até a sua simples lem-
brança, persegue o Homem como nenhum outro, porque ele tem cons-
ciência de que esse é o seu destino final. A morte é a proposição final
do ser humano.
Acredita-se que o temor da morte não era tão forte entre os po-
vos antigos, como se depreende das festividades que eram praticadas,
quando de seu evento. E isso se daria porque acreditavam que a morte
seria a promoção suprema, a última elevação ritual para uma forma de
vida superior. Entretanto, se o medo da morte não era tão grande entre
os homens primitivos, o pensamento de que o espírito do morto pode-
ria voltar e “assombrar” os vivos produzia um efeito aterrorizante. Des-
sa forma, os mortos eram enterrados longe, queimados, ou se faziam
rituais de magia para impedir a sua volta. Para muitos, essa é a origem
dos rituais, até hoje, presentes de enterrar os mortos em lugares lon-
gínquos, de cremar ou de rezar missas.
Para o homem moderno, envolvido pela ciência, descrença e pelo
consumismo, há uma negação da morte, o que faz com que o medo
mude de sentido, embora continue a ser importante, adquirindo papel
destacado na psicologia humana.
166
tal. Para Adler, outro psicanalista, isso é saudável, pois o homem não
é apenas um protoplasma errante pelo universo. Ele necessita de um
pouco de narcisismo, de amor próprio, de valorização de si mesmo,
para sentir-se seguro.
Esse temor da morte parece que não está presente nas crianças
até a idade de três ou cinco anos. Como a criança é absolutamente de-
pendente da mãe, ela sente solidão, desconforto, frustração e assim
por diante, mas a noção de morte ainda não faz parte de seu imagi-
nário. Apenas aos nove ou dez anos de idade a criança adquire esse
sentimento.
Admitem muitos especialistas que quando a criança tem uma
boa relação com a mãe, ela adquire um sentimento básico de seguran-
ça e não está sujeita aos temores mórbidos de perda de apoio ou de
aniquilação. À medida que cresce e passa a compreender a morte de
forma racional, por vota dos nove ou dez anos, irá aceitá-la como parte
do mundo.
O medo da morte pode, entretanto, retornar, por influência da
sociedade. Os psiquiatras colocam em evidência os mecanismos cultu-
rais utilizados pela sociedade para submeter o indivíduo. Marcuse fala
em ideologias que criam o medo da morte para submeter o homem.
yy Contribuição de Kübler-Ross
Elizabeth Kübler-Ross (1926-2004) foi uma médica suíça que vi-
veu entre a Europa e os Estados Unidos. Ela lidou com a questão da
morte, colocando-se muitas vezes numa posição entre o médico e o
paciente que morre de uma doença terminal.
Ela foi a pioneira no estudo dos pacientes portadores de doenças
terminais, questionando fortemente a expressão “paciente terminal”,
porque ele acaba levando ao abandono e à desesperança. Lutou contra
o estigma da expressão “não há nada mais a se fazer”, manifestando o
seu repúdio à postura de relaxamento adotada, quando não há mais
possibilidade de cura, porque esse é o momento em que o paciente e
sua família mais necessitam de apoio.
Apresentamos, a seguir, de forma bem resumida, os estágios por
ela observados quando um paciente recebe uma má notícia. (KÜBLER-
-ROSS, 1969).
167
yy Negação: é a primeira fase, quando a pessoa recebe uma má
notícia. A autora acredita que a negação funciona como um
anestésico que ajuda o paciente a suportar a má perspectiva e,
assim, se preparar para o futuro.
yy Raiva: quando o paciente não pode mais negar o fato, ele pas-
sa a ter sentimento de perda e impotência. Nesse momento,
em que o faz de conta da negação se desmorona, o paciente
se pergunta “por que eu?”. É o momento que começam as in-
dagações sobre o que ele teria feito de errado para merecer
aquilo. A sensação é ora de uma tremenda injustiça, ora de
frustração, porque o seu corpo se deteriora – perda de cabe-
los, mutilações, destruição da beleza. Também há raiva, pois o
paciente não se sente ouvido, inclusive pelo seu médico, que
nem sempre o profissional está preparado o esse diálogo com
quem vai morrer. O medo de ser esquecido aumenta a raiva,
com a sensação de que a pessoa não tem mais valor, não se
sente mais amada por Deus e nada mais tem significado.
168
aceitar a morte ou está havendo apenas uma resignação fren-
te ao inevitável.
É importante salientar que Kübler-Ross apresenta, ao longo de
todos os seus trabalhos, uma mensagem de esperança, negando qual-
quer vantagem numa postura pessimista.
Outros autores apresentam trabalhos que tratam de análises psi-
cológicas da morte, porém este é um capítulo tão vasto, que o estudo
de Kübler-Ross, hoje considerado como um estudo clássico, é aqui colo-
cado como um incentivo a leituras posteriores.
169
res de câncer passíveis de tratamento, mas não de cura total.
Esses pacientes geralmente, evoluem, preenchendo todas as
etapas descritas por Kübler-Ross;
170
de mito de eterno retorno seria a reencarnação em outros planetas do
universo, mais evoluídos ou atrasados, sempre conforme os méritos do
indivíduo, de modo a estimular que o homem melhore.
Os ritos de passagem têm sua origem nas lendas cosmogônicas,
ou seja, nas lendas que tratam da origem do universo. No Velho Tes-
tamento da Bíblia está registrado que o santuário criado por Moisés
deveria ser construído, conforme o modelo mostrado por Deus. Exis-
tem registros anteriores a esses da Bíblia, como o do santuário de La-
gash, construído segundo a visão que o rei tinha tido da deusa Nidaba
(3.000 a.C.). Assim, tudo que o homem constrói na Terra tem um mo-
delo divino.
No pensamento mitológico, assim como nas religiões modernas,
o centro do mundo está ligado a alguns pontos, como uma montanha
mágica ou sagrada, onde o Céu e a Terra se encontram. No judaísmo e
cristianismo, temos o monte Tabor, que poderia significar tabbur, que,
em hebraico, quer dizer umbigo ou o centro do mundo. Existem tem-
plos e palácios que seriam a representação desses locais e que por ex-
tensão, pode ser toda uma cidade, que passa a se tornar sagrada. São
inúmeros os exemplos que vemos, hoje, de cidades sagradas conside-
radas como o “centro de fé”.
Essa repetição da cosmogonia ou do eterno renascimento é a re-
criação a partir do centro do mundo e é manifestada de muitas formas,
como, por exemplo, nos contos infantis, com o tradicional “era uma
vez”, que faz com que a criança se imagine num local onde se criou
alguma coisa.
Misturando a camuflagem da morte física com os mitos dos dias
atuais, dominados pelo consumismo capitalista ou pelo cientificismo,
o eterno retorno apresenta-se de forma camuflada, nas festas do Ano
Novo, de formatura etc., com a morte do velho e o nascimento do novo.
O mito do renascimento é também chamado de jornada do herói por
psiquiatras e psicólogos, porque ele representa a evolução psicológica
do indivíduo, na sua luta pelo desenvolvimento, crescimento e liberda-
de. (COUSINEAU, 1994).
171
do moribundo quanto da família tiveram grandes diferenças, confor-
me a época. Esse item tem como referência principal a obra clássica do
historiador francês Philippe Ariés, que estudou profundamente como
o homem ocidental encarou esse fenômeno ao longo da história cristã
do Ocidente.
A análise que ele fez dos documentos históricos inclui desde os
monumentos aos mortos, passando pelos livros, romances, manifes-
tações artísticas, representações religiosas e outras. Constitui-se, hoje,
uma obra de referência para quem pretende aprofundar o assunto.
A primeira constatação de Ariés (2003) é que, entre os antigos, a
fronteira entre o natural e o sobrenatural não é nítida. Em relação aos
mortos, havia a crença de que eles estavam sempre presentes entre os
vivos. Havia mesmo a certeza de que apareciam aos vivos para anunciar
que iriam morrer.
Essa visão da morte em futuro próximo por ação das “almas pe-
nadas” tinha por fim dar ao vivente o tempo necessário para a sua pre-
paração para morrer. Ele deveria controlar as suas emoções e prepa-
rar-se para o arrependimento, a fim de gozar das bênçãos de uma vida
eterna no Paraíso.
A Boa Morte não deveria nunca ser repentina – o indivíduo deve-
ria estar preparado para interpretar corretamente os avisos e assim to-
mar as medidas necessárias para a salvação. Aquele que não soubesse
interpretar ou recusasse a mensagem podia ser acusado de ser ridículo.
Em contrapartida, a morte repentina, sem aviso prévio, que podia
acontecer em decorrência de um assassinato ou mesmo um acidente,
era vista como infamante. Era tão degradante que, muitas vezes, eram
negados os rituais funerários cristãos aos que assim morressem. Era
infamante, porque o morto não tinha tido tempo de se arrepender de
seus pecados.
Em princípio, a morte não devia ser repentina, porque o indivíduo
devia se preparar para ela, recebendo e interpretando a mensagem das
almas penadas. Havia condições em que a morte não era comunicada,
mas o indivíduo devia se preparar para ela, como quando se partia para a
guerra ou se ficava doente. Nessas duas situações o indivíduo podia não
ter aviso prévio, mas ele devia se preparar para a eventualidade – assim
ele participaria da ritualística da confissão e absolvição dos seus pecados.
172
Esse preparo para a morte conduziu ao que Ariés denominou de
“Morte Domada”.
O ritual preparatório para a morte era simples, mesmo entre os
poderosos. Tinha início pelo cerimonial da confissão dos pecados, se-
guida pela absolvição e a recomenda da alma e, finalmente, a despe-
dida dos amigos. O morto era enterrado frequentemente envolto em
uma simples mortalha e seu corpo ficava em uma sepultura rasa, de
modo que a exposição fosse fácil.
A morte era um evento público que implicava em resignação
e até mesmo com certa indiferença em relação a ela, sendo, muitas
vezes, comparada a um sono. Essa indiferença passou a nossos dias
como “descanso”.
Essa indiferença com a morte deve ser diferenciada da banaliza-
ção de nossos dias. Enquanto hoje a morte é banalizada, pelos eventos
cruéis a que todos estamos expostos pela mídia e pelas artes cênicas,
a morte medieval era uma cerimônia que congregava os familiares e as
pessoas próximas. Em ambas as situações a morte é mostrada como
algo que ocorre naturalmente, mas, nos dias atuais, se aceita a mor-
te produzida por assassinatos, terrorismos e outros atos de violência,
como algo inevitável.
Voltando à Idade Média, a vulgarização da morte associada à
crença de que os mortos continuavam rondando os vivos, produziu al-
guns fatos que nos influenciam até hoje:
yy Por outro lado, o morto deveria ser sepultado perto dos santos
ou de suas imagens, para que eles os protegesse até o dia do
Julgamento Final.
Em contrapartida, os mortos considerados como malditos
eram abandonados nos campus, muitas vezes, nos “monturos de
lixo”, ou ainda, tinham seus corpos pendurados para apodrecer sob
exposição pública.
Os suicidas também não tinham melhor sorte. Não podiam re-
ceber os rituais cristãos, nem seus corpos podiam entrar no cemitério
173
pela porta da frente: em caixões fechados, eram conduzidos sobre os
muros do cemitério.
Os mortos eram catalogados segundo seus méritos em vida. O Con-
selho de Rouen, no século VII, classificou os mortos em três categorias:
174
bundo e logo após a sua morte. A essas obras deu-se o nome de Arte de
Morrer (ars moriendi, em latim).
As obras passaram a reproduzir a dor sofrida pelos pecadores e o
alívio ou gozo do que haviam vivido de acordo com as normas da Igreja.
Algumas pinturas mostravam a figura da morte como sorrateira, outras
como violenta ou ainda como opressora, com imagens de alto simbolis-
mo, como a carruagem que colhia os mortos e a tudo esmagava. A arte
dedicada à morte procurou mostrar o que não se vê, a decomposição, a
recompensa e a punição. Esse espetáculo, frequentemente assustador,
tinha por objetivo inculcar o medo pelos prazeres terrenos e não pela
morte em si.
Outra forma de manifestação artística foi o surgimento de “ima-
gens” reproduzindo os santos, que tinham por missão reconfortar os
sobreviventes e proteger os mortos, facilitando o psiquismo da fé.
As orações, que foram aumentando de número com o passar dos
séculos, tinham por objetivo acalmar o espírito do morto e impedir que
ele viesse assombrar os vivos. Daí o grande número de missas rezadas
pelos mortos, a partir do século IX.
Os cortejos fúnebres, conduzidos pelos clérigos, teriam um signi-
ficado especial de assinalar que o morto não mais pertencia à família,
passando ao domínio da Igreja. Simultaneamente o corpo, antes expos-
to em público e, no máximo, coberto pela mortalha, passa a ser oculta-
do pelo caixão.
No século XVII, começa a aparecer a cruz, como indicativo do local
da cova. A cruz torna-se comum no século XIX e chega a ser o indicativo
de morte de uma pessoa, quando colocada ao lado de seu nome.
A partir do século XIX, o “médico” começa a tomar o lugar do sa-
cerdote na cabeceira do moribundo. O progredir da ciência médica in-
troduz o médico no cerimonial da morte, mas sob um prisma diferente,
ele não fala da morte, ao contrário do sacerdote. O médico fala de sin-
tomas e da doença, mas evita falar da morte.
A Morte Domada não mais existe.
Por outro lado, a doença torna-se algo sujo. Os romances passam
a descrever as dores, os odores, os excrementos e as secreções que ema-
nam dos moribundos. O exemplo mais notável é o romance “A morte
de Ivan Ilitch”, do escritor russo L. Tólstoi (1828-1910), em que o perso-
175
nagem, sofredor de doença incurável e provocadora de sofrimento, vai,
pouco a pouco, passando de personagem amado da família a um estor-
vo, chegando ao momento em que a morte é bem-vinda por todos.
Nos dias atuais, a morte, antes um evento familiar, foi transferida
para o hospital. A morte, antes um evento público, torna-se um momen-
to de solidão no CTI. A morte, um evento considerado um fenômeno
natural, torna-se um mal que deve ser combatido a qualquer custo e
com todos os sacrifícios possíveis ao moribundo, aos familiares e aos
profissionais de saúde.
A morte tornou-se algo feio, que deve ser escondida e os mortos
devem ser rapidamente descartados, seja enterrando ou cremando. A
exceção são as personalidades públicas e famosas. Às personalidades
públicas, o desfecho do corpo é demorado, lento, com cortejos e exibi-
ção do cadáver, com direito a choros e discursos. Aos famosos, o enter-
ro também é demorado, mas a título de preservação da intimidade, as
cerimônias podem ser até mesmo secretas.
176
Esse fato, que poderia ser encarado como aparentemente inó-
cuo, reveste-se de importância, quando, ao negar as causas naturais, o
médico torna implícito que a morte poderia não ter ocorrido, se a medi-
cina houvesse evoluído ou se equipe houvesse aplicado mais esforço no
diagnóstico e tratamento. A morte, portanto, poderia ter sido evitada.
A banalidade da morte ocorre, porque ela está presente em 24
horas por dia na vida de todos, do nascimento ao longo de toda a vida.
Todas as atitudes de promoção da saúde e prevenção de doenças con-
sideram a morte como uma alternativa, tornando-a um evento sem
maior importância, uma vez que ela é anunciada e produzida por vezes
sem fim.
A morte tornou-se tão banal que é comum ouvir “- se der tempo,
quero hoje dar uma passada no velório de um amigo.”
177
yy A alma no limbo, cercada pelos rituais do luto, que têm início
logo após a morte da pessoa.
8.3.5 O luto
O luto é uma das mais interessantes manifestações de revolta
contra a morte. Os rituais do luto vêm sofrendo mudanças acentuadas
desde a desconstrução e a banalização da morte. Porém, alguns fatos
permanecem de forma mais ou menos estável, como os costumes de
enterrar os mortos, cremar, cobrir com pedras e mumificar, represen-
tando o medo da decomposição do corpo. Em alguns casos, pode signi-
ficar uma forma de garantir que o espírito do morto não volte para in-
comodar os vivos. O luto acompanha esse medo, esse tempo. De forma
inconsciente, o tempo do luto é o mesmo que leva para a decomposição
do corpo.
A morte pode ser vista como uma metáfora, ou seja, pode ser
negada. Nesses casos, a referência a ela é feita como um fato não ter-
minal: um sono, uma viagem, um nascimento, uma passagem para a
morada celestial.
As pompas fúnebres podem ultrapassar o fenômeno da morte,
traduzindo certas manifestações emocionais que podem ser a manifes-
tação até mesmo de uma alegria ou a perda de um sonho ou ideal.
178
O horror à decomposição do cadáver pode se manifestar de for-
mas variadas. Morin (1997) assinala os casos de se apressar a decompo-
sição, com a cremação e o canibalismo, de evitar a decomposição (embal-
samar e congelar) ou pelo afastamento do corpo, quando é transportado
para locais distantes (por exemplo, um cemitério fora dos limites da ci-
dade). A decomposição do morto é sentida como contagiosa. Por isso os
rituais de tristeza e de afastamento dos parentes do morto.
Resumindo, a morte apresenta um “triplo dado antropológico”,
conforme demonstra Morin (1997), que tem como características (1)
o traumatismo da morte, (2) a consciência da morte e (3) a crença na
imortalidade. Esse traumatismo da morte é, de certo modo, a distância
que separa a consciência da morte à aspiração da imortalidade, confor-
me afirmou Freud.
179
180
FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA A REFLEXÃO ÉTICA
NO ENSINO DA ÁREA DA SAÚDE
Capítulo 9
Dilemas Éticos
181
Dilema 1
yy Material adicional
Corpo Clínico - A Santa Casa de Ribeirão Preto apresenta em seu
Corpo Clínico, um grupo seleto de médicos especialistas de renome, ca-
pacitados em oferecer alta qualidade em serviços hospitalares.
Plano de Saúde - A Santa Casa Saúde oferece planos de saúde
individuais, familiares e empresariais.
Dilema proposto: Terceirização da saúde pública. Ética e respon-
sabilidade social.
Site da Santa Casa de Ribeirão Preto
http://www.santacasarp.com.br/ acesso em 14/01/2014
182
Dilema 2
183
Dilema 3
184
Os sobreviventes foram questionados quanto ao ocorrido e a resposta
era a de que não lhes ocorreu que tinham cometido qualquer crime.
Dilema proposto: Semelhança com a triagem de pacientes (CTI,
ambulatório, cirurgia). Bem maior e bem individual.
185
Dilema 4
186
“Nós não estamos sugerindo que haja um benefício para a socie-
dade a partir das doenças relacionados ao fumo.”
A Philip Morris produz cerca de 80% dos cigarros na República
Tcheca, onde 46% da população de um total de 10 milhões são fuman-
tes. Os estudos que avaliam os gastos em saúde provocados por fu-
mantes ao longo da vida, que morrem cedo mas têm gastos anuais al-
tos, são controversos.
Alguns apontam que, ao longo da vida, fumantes gastam o mes-
mo que não-fumantes. Mas estimativas mostram que fumantes têm
maior probabilidade de ter complicações pós-operatórias e demoram
mais para se recuperar, o que implica mais gastos.
Incentivo à morte - Especialistas antitabagistas não aceitam os
resultados apontados no relatório. “Existe alguma outra empresa que
encoraje o tesouro público a ganhar dinheiro através da morte de clien-
tes?”, questionou o economista Kenneth Warner, da Universidade de
Michigan (EUA).
Para Warner, o estudo é falho pois não considera o im-
pacto econômico produzido se fumantes abandonassem o ci-
garro e utilizassem o dinheiro para consumir outros bens.
Eva Kralikova, médica na Universidade de Charles, em Praga, diz que o
relatório “subestimou” os gastos usados para o tratamento de fumantes.
Segundo Kralikova, o câncer de pulmão e outras doenças causa-
das pelo cigarro são responsáveis por cerca de 20% das mortes no país,
matando 23 mil pessoas anualmente.
Dilema proposto: Liberdade individual. Morte consentida. Solu-
ção econômica.
187
Dilema 5
188
Dilema 6
189
O ministro Salomão afirmou que, caso fosse seguida a decisão
paranaense, a criança seria retirada do lar onde recebe cuidados do pai
registral e mulher e transferida a um abrigo, sem nenhuma garantia de
conseguir recolocação em uma família substituta. Além disso, passaria
por traumas emocionais decorrentes da ruptura abrupta do vínculo afe-
tivo já existente.
Ainda conforme o ministro, o tribunal paranaense afastou o vín-
culo afetivo apenas porque o tempo de convivência seria pequeno, de
pouco mais de dois anos à época da decisão.
Conduta irregular – “Ainda que toda a conduta do recorrente te-
nha sido inapropriada, somado ao fato de que caberia a ele se inscrever
regularmente nos cadastros de adoção, nota-se, ainda assim, que tal
atitude inadequada do recorrente não pode ter o condão de prejudicar
o interesse do menor de maneira tão drástica, e nem de longe pode ser
comparada com subtração de crianças, como apontado pela sentença”,
ponderou o ministro.
“Na verdade, a questão foi resolvida praticamente com enfoque na
conduta dos pais (a mãe biológica e o pai registral), enquanto o interesse
do menor foi visivelmente colocado em segundo plano”, completou.
Má-fé - De acordo com os depoimentos dos envolvidos, a má-fé
vislumbrada pela Justiça do Paraná consistiu apenas no pagamento de
medicamentos e alugueis pelo pai registral à mãe biológica, que não
estava em condições de trabalhar. Não houve reconhecimento de ajuda
financeira direta.
Ele destacou ainda que não se trata de aceitar a “adoção à brasi-
leira”, informal, mas de analisar a questão do ponto de vista do interes-
se real da criança.
A decisão do ministro ocorreu em recurso especial do pai, é in-
dividual e foi tomada na última quinta-feira, durante o plantão judicial.
Dilema proposto: consentimento comprometido. Degradação
humana. Terceirização da gravidez/amor materno. Ética e desigualda-
des sociais.
190
Dilema 7
yy Tráfico de órgãos
O tráfico de órgãos é a prática ilegal de comércio de órgãos hu-
manos (coração, fígado, rins, etc.) para o transplante de órgãos. Há uma
escassez mundial de órgãos disponíveis para transplante, contudo o co-
mércio de órgãos humanos é ilegal em todos os países, exceto no Irã. O
problema do tráfico ilegal de órgãos é generalizado, embora os dados
sobre a escala exata do mercado de órgãos é difícil de obter. Se deve ou
não legalizar o comércio de órgãos, e a maneira adequada de combater
o tráfico ilegal, é um assunto de muito debate.
Os traficantes de órgãos operam de várias maneiras: as vítimas
podem ser sequestradas e forçadas a desistir de um órgão, algumas,
por desespero financeiro, concordam em vender um órgão, ou são en-
ganadas ao acreditar que precisam de uma operação cirúrgica e o ór-
gão é removido sem o seu conhecimento; algumas vítimas podem ser
assassinadas.
A falta de fiscalização em hospitais e em autópsias facilita ação
das máfias e alimenta o comércio clandestino que vende órgãos espe-
cíficos ou até cadáveres inteiros. Como resultado, os criminosos fazem
uma fortuna em clínicas antiéticas que vão comprar um coração, rim ou
pâncreas para pacientes ricos.
O tráfico de órgãos é feito muitas vezes às custas de pessoas po-
bres em países de baixo ou muito pouco desenvolvimento.
China - Na China, os órgãos são frequentemente adquiridos de
prisioneiros executados. Nicholas Bequelin, pesquisador da Human Ri-
ghts Watch, estima-se que 90 por cento dos órgãos de China são de
presos mortos. Apesar da legalidade do processo no país, há evidências
de que o governo tentou minimizar o alcance de extração de órgãos
através de acordos de confidencialidade e as leis, tais como as normas
temporárias relativas à utilização de cadáveres ou de órgãos de cadá-
veres de prisioneiros executados. Mesmo com essa regulamentação
frouxa, a China ainda sofreu uma escassez de órgãos para transplante.
191
O governo chinês, depois de receber escrutínio severo do resto
do mundo, aprovou legislação terminando com a venda legal de órgãos.
Nenhuma legislação atualmente proíbe a retirada de órgãos de presos
falecidos que assinam acordos antes da execução. Recentemente, a
China introduziu uma nova legislação, a fim de uniformizar o proces-
so de coleta de órgãos. Esta legislação inclui normas que indicam que
os hospitais podem realizar operações e qual seria a definição legal de
morte cerebral. Pacientes estrangeiros transplantados não são mais
aceitos. Desde que a China suspendeu a venda legal de órgãos, os pre-
ços globais são estimados por ter aumentado 40%.
Índia - Antes da aprovação da Lei de Transplante de Órgãos Hu-
manos, em 1994, a Índia tinha um mercado legal bem sucedido na ne-
gociação de órgãos. O baixo custo e disponibilidade trouxeram aos ne-
gócios ao redor do globo e transformaram a Índia em um dos maiores
centros de transplante renal do mundo. Vários problemas começaram
a surgir durante o período de comércio legal de órgãos na Índia. Em
alguns casos, os pacientes não tinham conhecimento que um proce-
dimento de transplante de rim ocorreu mesmo. Outros problemas in-
cluíam promessa aos pacientes de uma quantia muito maior do que
a que foi realmente paga. As questões éticas que cercam a doação de
contribuição empurraram o governo indiano a aprovar uma legislação
que proíbe a venda de órgãos. Apesar destes avanços, ainda existem
brechas nas leis atuais que permitem que os doadores não relaciona-
dos para doarem órgãos aos que estiverem emocionalmente próximos
do receptor. Em muitos casos, o doador não pode ser do mesmo país
que o paciente, ou até mesmo falar a mesma língua.
Irã e Filipinas (não transcritas)
Dilema proposto: a posse do corpo. O comércio de órgãos. So-
ciedade de consumo. Ética e desigualdades sociais.
192
Dilema 8
193
and Ernest Machado, had argued that she had died shortly after arriving
at the hospital and they said they were disturbed by the move to keep
her on life support.
“The Muñoz and Machado families will now proceed with the
somber task of laying Marlise Muñoz’s body to rest, and grieving over
the great loss that has been suffered,” Mr. Muñoz’s lawyers, Heather L.
King and Jessica Hall Janicek, said in a statement. “May Marlise Muñoz
finally rest in peace, and her family find the strength to complete what
has been an unbearably long and arduous journey.”
The hospital did not dispute that Ms. Muñoz was brain-dead, say-
ing in court papers that she met the clinical criteria two days after she
was first brought to the hospital. But the hospital’s lawyer said the law
still applied to her, insisting it was part of the Texas Legislature’s “com-
mitment to the life and health of unborn children.” The lawyer, Larry M.
Thompson, pointed to a section of the Texas Penal Code that states a
person may commit criminal homicide by causing the death of a fetus.
The law “must convey legislative intent to protect the unborn
child, otherwise the Legislature would have simply allowed a pregnant
patient to decide to let her life, and the life of her unborn child, end,”
wrote Mr. Thompson, with the Tarrant County district attorney’s office,
which represented the hospital.
Ms. Muñoz, 33, was 14 weeks pregnant with her second child
when she first arrived at the hospital, on Nov. 26, and on Sunday had
been at the end of her 22nd week of pregnancy. The fetus was not vi-
able, the hospital acknowledged in court papers. It suffered from hy-
drocephalus — an abnormal accumulation of fluid in the cavities of the
brain — as well as a possible heart problem, and the lower extremities
were deformed. One of Mr. Muñoz’s lawyers said medical records indi-
cated some of the doctors treating his wife had recommended taking
her off life support.
Groups that oppose abortion had expressed support for the hos-
pital’s legal argument. A statement released by the National Black Pro-
Life Coalition and Operation Rescue said that the fetus deserved not
to be killed, and that numerous people had expressed an interest in
adopting the child when it was born, even if it had disabilities.
It was unclear on Sunday who would end up paying the hospital
bill. Hospital officials had said previously that they were focused on car-
194
ing for Ms. Muñoz, and that it was inappropriate for them to comment
on or estimate the cost of a patient’s care. “At the appropriate time, the
finance department will pursue the customary avenues to identify pay-
ers and reimbursement,” Ms. Labbe said.
Dilema proposto: Eutanásia. Aborto. Custos e pagamentos de
contas médicas.
195
Referências
Capítulos 1, 2, 3, 4, 5 e 6
ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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VÀZQUEZ, A.S. Ética. 14. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993.
Capítulo 6
200
FEITOSA, C. Assim falou Nietzsche: memória, tragédia e cultura. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2000.
MOSÉ, V. Receita para lavar palavra suja: poemas escolhidos. Rio de Ja-
neiro: Arteclara, 2004.
NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2001.
NIETZSCHE, F. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César
de Souza. 2. ed. São Paulo: Companhia das letras, 1995.
201
Glossário
202
cultura tem um centro, ao menos enquanto ela é florescente e autênti-
ca; (6) há uma pluralidade de culturas.
Deontologia – parte da filosofia que trata dos princípios, fundamentos
e sistema de moral; estudo dos deveres. Estudo dos deveres de uma
situação determinada, por exemplo, a deontologia médica.
Disjunção – separação, desunião, divisão.
Dogma – 1. opinião ou crença; 2. decisão, juízo, decreto ou ordem.
Um dogma é uma afirmação baseada em opinião, sem comprovação
experimental.
Empírico – em filosofia é a espécie de saber que se adquire através da
prática e se opõe ao racional, que é o conhecimento obtido através do
pensamento. Para os empiristas, as ideias provêm das percepções e
sensações. Em ciência, indica a experiência bruta, não controlada.
Ente – o que é. O que é em qualquer significado existencial. Às vezes,
essa palavra é usada para designar Deus. Para Heidegger: “Chamamos
de ente muitas coisas, em sentidos diferentes. Ente é tudo aquilo de
que falamos, aquilo a que, de um modo ou de outro, nos referimos.
Epistemológico - teoria ou ciência da origem, natureza e limites do co-
nhecimento.
Escatologia – ciência ou teoria dos destinos ou propósitos. Teoria do
destino último do homem (morte, ressurreição, juízo final) e do mundo.
O outro significado da palavra é o de literatura obscena.
Étnico – relativo ou pertencente a uma raça, relativo à comunidade de
traços físicos e mentais dos membros de um grupo como produto de
sua hereditariedade.
Etnologia – ciência que trata da divisão da humanidade em raças, sua
origem, distribuição e peculiaridades.
Fenomenologia – escola filosófica desenvolvida por Husserl que in-
vestiga os fenômenos como eles mesmos, significando um método de
estudo, procurando não o que está na aparência, mas o que seria a
essência das coisas.
Heurístico - Método de ensinar que consiste em que o educando
chegue à verdade por seus próprios meios.
Idealismo – termo introduzido na linguagem filosófica no século XVII
para se referir à doutrina platônica das ideias. O idealismo comporta al-
gumas definições: “idealista é quem admite que os corpos têm somente
existência em nosso espírito, negando assim a existência real dos pró-
203
prios corpos e do mundo”, ou “aquele admite neste mundo somente os
espíritos”, ou ainda “é a teoria que declara que os objetos existem fora
do espaço ou simplesmente que sua existência é duvidosa e indemons-
trável, ou falsa e impossível” (KANT).
Ideologia – maneira de pensar que caracteriza um indivíduo ou grupo
de pessoas.
Indagar – averiguar, buscar saber, investigar, pesquisar.
Inferno – nas religiões primitivas, era a morada dos mortos, sem nenhu-
ma conotação de punição: todos morriam, todos iriam para o inferno.
No Velho Testamento, o inferno era descrito como morada dos mortos.
Na Bíblia Cristã, a palavra inferno é tradução de três vocábulos originais,
Seol, Hades e Geena. Seol era a morada dos mortos, provavelmente com
forte influência babilônica. Hades, do grego, foi introduzida na tradução
do hebraico para o grego, denominada Septuaginta, sendo a palavra
usada na morte de Cristo e Geena tem origem obscura, provavelmente
da antiga língua aramaica. Foi apenas com Tertuliano, padre da Igreja
Primitiva, que o inferno se tornou a última morada dos pecadores, ideia
que S. Agostinho transformou em sofrimento eterno, sem possibilidade
de salvação (afirmação inexistente na Bíblia).
Metafísica – a ciência primeira, que tem como objeto o estudo de todas
as outras. Em teologia, consiste em reconhecer como objeto de estudo
o ser mais elevado e perfeito, do qual provêm todos os outros seres e
coisas do mundo.
Metáfora – emprego de uma palavra com sentido diferente do próprio,
por semelhança ou analogia.
Mito – Do grego – contar, narrar. O mito é uma narrativa sobre a origem
de alguma coisa, de forma sagrada porque vem de uma revelação divi-
na – é incontestável e inquestionável.
Ontologia – estuda as características fundamentais do ser.
Paciente terminal – termo de difícil conceituação. Significa que o “pa-
ciente está de alta para sempre?”, “o paciente não tem mais solução e,
portanto, terminou o trabalho do médico?”, “que a agência de saúde,
pública ou privada não vai mais pagar a conta?”. Qual o destino a dar
ao paciente, aquele “quartinho no fim do corredor” ou uma “enfermaria
depósito de pacientes sem esperança que ninguém visita?”. Não exis-
te um conceito claro de paciente terminal, não havendo no Código de
Ética nenhuma referência explícita a paciente terminal (MARTIN, 1993,
p.210). Aliás, Martin aponta que a palavra morte não aparece no Código
(de ética) (Idem, p.76). Aceitamos o conceito de que paciente terminal
[…] é o que sofre de uma doença incurável em fase avançada, para a
204
qual não há recursos médicos capazes de alterar o prognóstico de mor-
te em curto ou médio prazo (PORTO et al, 2005, p.32).
Polissêmico – propriedade de abarcar toda uma gama de significações,
que se definem e precisam dentro de um contexto. É a palavra ou ex-
pressão que possui mais de um significado.
Pragmático – vocábulo com múltiplos significados, sendo o seu uso
mais comum o de referir à ação e ao bom êxito; utilitário, realista, ob-
jetivo, prático. Mas também pode ser o conjunto de regras ou fórmu-
las oficiais ou religiosas, etiqueta, preceito do poder público acerca de
assuntos públicos que necessitam regulamentação, ramo da semiótica
que trata das relações entre as expressões linguísticas e aqueles que
as usam.
Pragmatismo – filosofia utilitária; ênfase nas causas, condições e resul-
tados; consideração das coisas de um ponto de vista prático.
Preconceito – conceito ou opinião formada antes de se ter conheci-
mentos adequados
Razão – Do latim ratio, que vem do verbo reor – contar, reunir, medir,
juntar, separar, calcular. Semelhante ao Logos grego. Significa pensar e
falar ordenadamente, com medida e proporção, com clareza e de modo
compreensível para outros. No dia a dia, a palavra razão é usada com
muitos sentidos, alguns usados na filosofia: certeza, lucidez, motivo,
causa. Também é usada para significar que somos seres racionais mo-
vidos por razões. Existe uma razão♦ movida pela consciência moral e
intelectual e uma ligada às emoções.
Síntese – Reúne os traços semelhantes.
Solipsismo – tese de que só eu existo e de que todos os outros entes
(homens e coisas) são apenas ideias minhas.
Substância - algo que pode ser sólido e concreto ou abstrato. O filósofo
não diria “coisa”, que seria a expressão popular moderna.
Teogonia – Do grego: Teo (seres divinos, deuses) + gonia (gerar, fazer
nascer e crescer).
Teologia – qualquer estudo, discurso ou pregação que trate de Deus ou
das coisas divinas.
Torá – livro religioso da religião judaica. É constituído pelos cinco pri-
meiros livros da Bíblia cristã, cuja autoria é atribuída a Moisés.
Virtude - A expressão Virtude era frequentemente utilizada pelos gre-
gos como um sinônimo de ética […] A ética exposta em A República (de
205
Platão) é uma ética das virtudes, e as virtudes são funções da alma (ABBAG-
NANNO, 1999, p.380). As virtudes éticas são: coragem, temperança, libe-
ralidade, magnanimidade, mansidão, franqueza e justiça, que é a maior
de todas (idem, p.387). A virtude também era vista por Aristóteles como
o hábito que torna o homem bom e lhe permite cumprir bem a sua tare-
fa (idem, p. 1003). As virtudes, segundo a Igreja Católica, podem ser di-
vididas em teologais – fé, esperança e caridade – e cardeais – coragem,
justiça, temperança e prudência. As virtudes morais são: sobriedade,
prodigalidade, trabalho, castidade, mansidão, generosidade, modéstia.
Xamã – curandeiro primitivo, que fazia, por vezes, o papel de médico,
de bruxo, de exorcista.
206
Anexo A
Mito da caverna
Do livro A República, v. II, de Platão, 6° ed. Ed. Atena, 1956, p.
287-291. Disponível em: http://ateus.net/ebooks/geral/platao_o_mito_
da_caverna.pdf. Acesso em: 23 jun. 2009.
Trata-se de um diálogo metafórico. No diálogo, é dada ênfase ao
processo de conhecimento, mostrando a visão de mundo do ignorante,
aquele que vive de senso comum, e do filósofo, na sua eterna busca da
verdade.
SÓCRATES – Figura-te agora o estado da natureza humana, em
relação à ciência e à ignorância, sob a forma alegórica que passo a fazer.
Imagina os homens encerrados em morada subterrânea e cavernosa
que dá entrada livre à luz em toda extensão. Aí, desde a infância, têm
os homens o pescoço e as pernas presos de modo que permanecem
imóveis e só veem os objetos que lhes estão diante. Presos pelas ca-
deias, não podem voltar o rosto. Atrás deles, a certa distância e altura,
um fogo cuja luz os alumia; entre o fogo e os cativos imagina um cami-
nho escarpado, ao longo do qual um pequeno muro parecido com os
tabiques que os pelotiqueiros põem entre si e os espectadores para
ocultar-lhes as molas dos bonecos maravilhosos que lhes exibem.
GLAUCO - Imagino tudo isso.
SÓCRATES - Supõe ainda homens que passam ao longo desse
muro, com figuras e objetos que se elevam acima dele, figuras de ho-
mens e animais de toda a espécie, talhados em pedra ou madeira. En-
tre os que carregam tais objetos, uns se entretêm em conversa, outros
guardam em silêncio.
GLAUCO - Similar quadro e não menos singulares cativos!
SÓCRATES - Pois são nossa imagem perfeita. Mas, dize-me: as-
sim colocados, poderão ver de si mesmos e de seus companheiros algo
mais que as sombras projetadas, à claridade do fogo, na parede que
lhes fica fronteira?
207
GLAUCO - Não, uma vez que são forçados a ter imóveis a cabeça
durante toda a vida.
SÓCRATES - E dos objetos que lhes ficam por detrás, poderão ver
outra coisa que não as sombras?
GLAUCO - Não.
SÓCRATES - Ora, supondo-se que pudessem conversar, não te
parece que, ao falar das sombras que veem, lhes dariam os nomes que
elas representam?
GLAUCO - Sem dúvida.
SÓRATES - E, se, no fundo da caverna, um eco lhes repetisse as
palavras dos que passam, não julgariam certo que os sons fossem arti-
culados pelas sombras dos objetos?
GLAUCO - Claro que sim.
SÓCRATES - Em suma, não creriam que houvesse nada de real e
verdadeiro fora das figuras que desfilaram.
GLAUCO - Necessariamente.
SÓCRATES - Vejamos agora o que aconteceria, se se livrassem a
um tempo das cadeias e do erro em que laboravam. Imaginemos um
desses cativos desatado, obrigado a levantar-se de repente, a volver a
cabeça, a andar, a olhar firmemente para a luz. Não poderia fazer tudo
isso sem grande pena; a luz, sobre ser-lhe dolorosa, o deslumbraria,
impedindo-lhe de discernir os objetos cuja sombra antes via. Que te
parece agora que ele responderia a quem lhe dissesse que até então
só havia visto fantasmas, porém que agora, mais perto da realidade e
voltado para objetos mais reais, via com mais perfeição? Supõe agora
que, apontando-lhe alguém as figuras que lhe desfilavam ante os olhos,
o obrigasse a dizer o que eram. Não te parece que, na sua grande con-
fusão, se persuadiria de que o que antes via era mais real e verdadeiro
que os objetos ora contemplados?
GLAUCO - Sem dúvida nenhuma.
SÓCRATES - Obrigado a fitar o fogo, não desviaria os olhos dolo-
ridos para as sombras que poderia ver sem dor? Não as consideraria
realmente mais visíveis que os objetos ora mostrados?
GLAUCO - Certamente.
208
SÓCRATES - Se o tirassem depois dali, fazendo-o subir pelo ca-
minho áspero e escarpado, para só o liberar quando estivesse lá fora,
à plena luz do sol, não é de crer que daria gritos lamentosos e brados
de cólera? Chegando à luz do dia, olhos deslumbrados pelo esplendor
ambiente, ser-lhe ia possível discernir os objetos que o comum dos ho-
mens tem por serem reais?
GLAUCO - A princípio nada veria.
SÓCRATES - Precisaria de algum tempo para se afazer à clarida-
de da região superior. Primeiramente, só discerniria bem as sombras,
depois, as imagens dos homens e outros seres refletidos nas águas; fi-
nalmente erguendo os olhos para a lua e as estrelas, contemplaria mais
facilmente os astros da noite que o pleno resplendor do dia.
GLAUCO - Não há dúvida.
SÓCRATES - Mas, ao cabo de tudo, estaria, decerto, em estado
de ver o próprio sol, primeiro refletido na água e nos outros objetos,
depois visto em si mesmo e no seu próprio lugar, tal qual é.
GLAUCO - Fora de dúvida.
SÓCRATES - Refletindo depois sobre a natureza desse astro, com-
preenderia que é o que produz as estações e o ano, o que tudo governa
no mundo visível e, de certo modo, a causa de tudo o que ele e seus
companheiros viam na caverna.
GLAUCO - É claro que gradualmente chegaria a todas essas
conclusões.
SÓCRATES - Recordando-se então de sua primeira morada, de
seus companheiros de escravidão e da ideia que lá se tinha da sabe-
doria, não se daria os parabéns pela mudança sofrida, lamentando ao
mesmo tempo a sorte dos que lá ficaram?
GLAUCO - Evidentemente.
SÓCRATES - Se na caverna houvesse elogios, honras e recompen-
sas para quem melhor e mais prontamente distinguisse a sombra dos
objetos, que se recordasse com mais precisão dos que precediam, se-
guiam ou marchavam juntos, sendo, por isso mesmo, o mais hábil em
lhes predizer a aparição, cuidas que o homem de que falamos tivesse
inveja dos que no cativeiro eram os mais poderosos e honrados? Não
preferiria mil vezes, como o herói de Homero, levar a vida de um pobre
209
lavrador e sofrer tudo no mundo a voltar às primeiras ilusões e viver a
vida que antes vivia?
GLAUCO - Não há dúvida de que suportaria toda a espécie de
sofrimentos de preferência a viver da maneira antiga.
SÓCRATES - Atenção ainda para esse ponto. Supõe que nosso ho-
mem volte ainda para a caverna e vá assentar-se em seu primitivo lugar.
Nesta passagem súbita da pura luz à obscuridade, não lhe ficariam os
olhos como submersos em trevas?
GLAUCO - Certamente.
SÓCRATES - Se, enquanto tivesse a vista confusa -- porque bas-
tante tempo se passaria antes que os olhos se afizessem de novo à obs-
curidade -- tivesse ele de dar opinião sobre as sombras e a esse respeito
entrasse em discussão com os companheiros ainda presos em cadeias,
não é certo que os faria rir? Não lhe diriam que, por ter subido à região
superior, cegara, que não valera a pena o esforço, e que assim, se al-
guém quisesse fazer com eles o mesmo e dar-lhes a liberdade, merece-
ria ser agarrado e morto?
GLAUCO - Por certo que o fariam.
SÓCRATES - Pois agora, meu caro GLAUCO, é só aplicar com toda
a exatidão esta imagem da caverna a tudo o que antes havíamos dito. O
antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o ilumina é a luz do sol.
O cativo que sobe à região superior e a contempla é a alma que se eleva
ao mundo inteligível. Ou, antes, já que o queres saber, é esse, pelo me-
nos, o meu modo de pensar, que só Deus sabe se é verdadeiro. Quanto
à mim, a coisa é como passo a dizer-te. Nos extremos limites do mundo
inteligível está a ideia do bem, a qual só com muito esforço se pode
conhecer, mas que, conhecida, se impõe à razão♦ como causa universal
de tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível,
autora da inteligência e da verdade no mundo invisível, e sobre a qual,
por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos
negócios particulares e públicos.
210
Anexo B
211
Anexo C
IV.1. Fenomenologia
A fenomenologia trata de tudo aquilo que se apresenta ou que
se mostra ao conhecimento – são os fenômenos da consciência. Esses
fenômenos são os objetos ideais, ou seja, os objetos que existem na
mente, e são eles que devem ser estudados, cada um designado por
uma palavra que representa a sua essência.
Coube a Max Scheler (1874-1928) introduzir o método fenome-
nológico na teoria dos valores. Para ele os valores são qualidades objeti-
vas das coisas, apreensíveis mediante ações do sentir intencional, equi-
distantes do psicologismo e do logicismo. O conhecimento não consiste
em criar, produzir ou deduzir o objeto, como queria o idealismo de Kant
e Descartes, mas em captar algo preexistente a qualquer conhecimento
e independente dele. Toda consciência consta de algo transcendente,
pois ela apreende os conteúdos dos objetos, mas ela (a consciência) não
pode sair de si mesma. A consciência transcende o objeto da consciên-
cia ao perceber o viver, o sofrer, o esperar, o temer, etc.
Edmond Husserl (1859-1938) demonstrou a forte influência
da intencionalidade na consciência. Como a consciência é consciência
de alguma coisa, o que importa é a intenção da consciência em rela-
ção ao objeto, ou melhor, em relação ao fenômeno. Pretendendo que
a filosofia fosse uma ciência rigorosa e atacando ao mesmo tempo o
empirismo, o positivismo, o psicologismo, o relativismo e o idealismo,
212
Husserl combateu qualquer tipo de filosofia especulativa ou dedutiva.
Ele preconizou que a ciência pura deveria consistir na descrição pura e
simples do que se vê, desprezando qualquer juízo de valor que pudesse
ser emitido pelo observador.
Esta posição, denominada fenomenológica, se atém ao fenôme-
no e à intenção da consciência do observador e apresenta característi-
cas que são importantes porque impregnam, direta ou indiretamente,
a forma de pensar do século XX. A fenomenologia introduz uma nova
forma de pensar e pesquisar. A descrição de um fenômeno deve ser:
17 Não confundir reducionismo, que é a simplificação, o desmembramento para análise, em que o
todo é ignorado ou passado para secundário, com a redução eidética de Husserl, que é o método
fenomenológico para estudo científico, em que o fenômeno é visto como um todo, deixando de lado
os juízos de valores do pesquisador. Esse método não será visto neste momento.
213
yy Provocante – que consiste numa crítica ao behaviorismo, por-
que esse não coloca valor no estímulo (para o behaviorismo
o simbolismo não importa). Uma descrição fenomenológica
não se contentará em dizer de que maneira estão sendo da-
das as respostas, mas de que outras maneiras elas poderiam
ou deveriam ser dadas. O sujeito deve ser provocado para dar
alternativa, para o engajamento consciente e livre ou mesmo
da alienação.
214
e objeto. Engajou-se na direção do naturalismo, privilegiando os mode-
los de “campos”, tomados por empréstimo à física. Um campo de forças
– como o eletromagnético – é uma totalidade organizada, na qual sua
composição adquire forma segundo as direções e intencionalidades.
Outro ramo importante do início do século XX é o estruturalis-
mo, da palavra estrutura que vem do latim Structura, cujo significado
é “edificação, construção, organização, estruturação”. Desde o início o
estruturalismo se revestiu de formas variadas, não sendo uma doutrina
científica ou filosófica, e sim uma tendência metodológica válida para a
sistematização e previsão de fatos observáveis em vários campos. Ad-
mite que o real é a estrutura conhecida ou a conhecer. Ele se opõe a
qualquer interpretação subjetivista idealista – cada estrutura é um mo-
delo hipotético que torna possível reconhecer todas as relações entre
fatos e conjunto de fatos. A estrutura é um modelo constituído por ele-
mentos, sendo a base dos principais estudos linguísticos já realizados.
215
sartriano é ateu, ele não admite a existência de um criador que tenha
predeterminado a essência e os fins de cada pessoa.
É durante a existência que o Para-si define, a cada momento, o
que é sua essência. Cada pessoa só tem como essência aquilo que já
viveu. O ser pode saber que o que é pelos atos que já realizou. Mas o
ser tem a liberdade de mudar sua vida a cada momento, nada o obriga
a manter a essência.
O Para-si só existe no presente, porque o passado é um Em-si
que possui uma essência conhecida porque só existe no passado. Por
isso se diz no existencialismo que “a existência precede e governa a
essência”, e como consequência, cada Para-si tem a liberdade de fazer
de si o que quiser.
Liberdade – Para Sartre, cada pessoa pode a, cada momento, es-
colher o que fará de sua vida, sem que haja um destino previamente con-
cebido. As escolhas de cada um são direcionadas por projetos. Há vários
tipos de projetos movidos por um projeto fundamental, que é o projeto
de auto-realização, ou, como diz Sartre, o projeto de transcendência. To-
dos sonham serem pessoas que já realizaram todos os projetos, mas, um
ser que já realizou tudo o que podia se torna um Em-si, o que só pode
acontecer ao morrer. Nesse momento a consciência deixa de existir, e o
ser se torna um ser de essência conhecida, completo e acabado.
Mas a morte é uma contingência18, algo que acontece sem que
possamos evitar porém e que impede a concretização dos projetos,
mas não é necessariamente o resultado de nossos atos. Portanto, a
morte não é a transcendência desejada. O projeto fundamental é tor-
nar-se um ser que já realizou tudo e que preserva a consciência, um ser
Em-si-Para-si. Tal ser corresponde à noção que temos de Deus, um ser
completo, sem limitações e com todas as suas potencialidades já reali-
zadas, mas ainda consciente de si e do mundo. Em outras palavras, para
Sartre, o homem é um ser que “projeta tornar-se Deus”.
Responsabilidade – o homem é livre e a liberdade se manifes-
ta pelas escolhas. Cada escolha carrega consigo uma responsabilida-
18 Vimos no capítulo 4, que trata de Liberdade, que uma ação é contingente quando uma ação
oposta é possível e que uma ação é necessária quando ela é inevitável e é realizada porque é indis-
pensável. Entretanto, embora a morte seja o destino final do ser humano, ela é contingente porque
em um determinado momento ela pode ou não ocorrer.
216
de porque ao ser posta em ação provoca mudanças no mundo que
não podem ser desfeitas. A responsabilidade pelos atos não pode ser
atribuída a nenhuma força externa, seja o destino ou Deus. Em cada
momento, diante de cada escolha, o ser torna-se responsável não só
por si próprio e por toda a humanidade.
Eis a essência da responsabilidade segundo os existencialistas:
o indivíduo, por sua vontade escolhe e age no mundo, e assim, afeta o
mundo todo. É uma responsabilidade da qual não se pode fugir.
Como a liberdade do indivíduo é que determina as suas ações
e as ações é que determinam a sua essência, aí tem origem a máxima
do existencialismo de que a existência precede a essência, e como o
Homem é sempre responsável pelas ações, a evolução natural do pen-
samento sartreano é que o Homem está condenado à liberdade.
Angústia – a filosofia existencialista é considerada uma filosofia
da angústia, porque a responsabilidade por todo o mundo é um fardo
pesado para qualquer pessoa. A angústia existencial decorre da cons-
ciência de que são as escolhas dessa pessoa que definem o que ela é
ou se tornará, e porque estas escolhas podem afetar, de maneira ir-
reparável, o próprio mundo. A angústia é gerada pelo medo de usar a
liberdade de forma errada.
Os existencialistas têm a consciência de que é muito mais fácil
acreditar que existe um plano ou um propósito para o universo, e que
os atos são guiados por um poder invisível em direção a esse propósito.
Pensando assim, os atos não são uma responsabilidade individual, por-
que o indivíduo representa apenas um papel num cenário maior. Mas
Sartre não acredita num propósito ou um destino universal, gerando o
desalento e angústia. A angústia surge com a constatação de que nada
externo define o próprio futuro. Apenas a liberdade individual.
Má-fé – a angústia e o desalento podem se tornar maiores que os
projetos do homem, e ele se defende pela renúncia à própria liberdade.
É uma defesa equivocada, que faz o homem escolher opções que o afas-
tam do projeto fundamental. Sartre chama de má-fé, porque o homem
atribui confortavelmente estas escolhas a fatores externos, como o des-
tino, Deus ou um plano sobre humano. É interessante que, para Sartre,
o conceito freudiano de inconsciente é um exemplo de má-fé, porque
transfere para um outro ser a responsabilidade por atos individuais.
217
Outro – cada pessoa tem um projeto diferente, o que faz com
que elas entrem em conflito sempre que os projetos se sobreponham.
Os outros são fontes permanentes de contingências, porque todas as
escolhas de todas as pessoas levam à transformação do mundo para
que ele se adapte aos seus projetos. Sartre não defende o solipsismo19,
porque o homem por si só não pode se conhecer em sua totalidade.
Só através dos olhos de outras pessoas é que alguém consegue se ver
como parte do mundo, só com a convivência a pessoa pode se perceber
por inteiro. Esta ideia – “O ser Para-si só é Para-si através do outro” –
Sartre herdou de Hegel, e ela se manifesta nos pensamentos de Buber
e Lévinas, apresentados em capítulos anteriores. Cada pessoa, embora
sem acesso às consciências dos outros, pode reconhecer nelas têm de
igual. Só através dos olhos dos outros o ser pode ter acesso à própria
essência, ainda que temporária. Só a convivência é capaz de dar a cer-
teza de que o ser está fazendo a escolha que deseja, o que dá origem a
ideia sartreana de que “o inferno são os outros”.
19 O solipsismo é uma teoria filosófica de que nada existe fora do pensamento individual. Ver glos-
sário.
218
Anexo D
O Significado da Evolução
Material retirado de MARGULIS & SAGAN, páginas 56 a 60.
219
comum entre todas as formas de vida. Kant admitia que a totalidade
da vida poderia ter surgido por um processo mecânico, parecido com
aquele pelo qual a natureza produzia os cristais, mas julgou que se-
ria absurdo esperar por “um Newton” capaz de tornar compreensível
até mesmo o crescimento de uma folha de capim, usando tão somente
uma teoria mecanicista. Haeckel propôs Darwin como o próprio “New-
ton” que Kant havia julgado impossível.
Projetando a história da Terra para milhões de anos antes dos
seis mil admitidos pelo livro de Gênesis, James Hutton (1726-97) fundou
a geologia moderna. Filho de um comerciante escocês, Hutton distin-
guiu pedras depositadas como sedimento das que tinham surgido em
forma derretida expelida por vulcões. […] Charles Lyell aprovou Hutton
e afirmou que o tempo era muito mais vasto do que ele presumira em
seu livro anterior – Os Princípios da Geologia […]
Darwin leu Lyell durante sua viagem no Beagle e adotou a visão
de mundo lyelliana. Décadas depois, por sua vez, Lyell abraçou a visão
de mundo darwiniana. Em 1863, publicou A Antiguidade do Homem,
onde sugeriu, antes de Darwin fazer esta extensão, que a evolução se
aplicava a toda a humanidade.
Enquanto isso, na Europa Continental, o naturalista berlinense
Christian G. Ehrenberg (1795-1876) recolocou a vida na biologia. […]
Através de suas viagens travou conhecimento com Friedrich W. A. von
Hunboldt (1769-1859). O barão von Hunboldt considerado o maior
naturalista alemão da sua época […] descrito como um “Napoleão”
da ciência. […] compartilhou a descoberta do alcance global da vida.
“A universalidade da vida é tão profundamente distribuída”, salientou
Humboldt,
Que os menores infusórios (ciliados e outros pro-
tistas) vivem como parasitas e, por sua vez, são ha-
bitados por outros. […] A influência forte e benéfica
exercida no sentimento de humanidade pelo exame
da disseminação da vida por todos os campos da
natureza é comum a todas as regiões, […] As formas
orgânicas não só descem até o interior da terra, onde
a indústria da mineração abriu amplas escavações e
cavou poços profundos, como também encontrei es-
talactites alvas como neve, cercadas pela teia delica-
da de uma usnea (líquen) […]
220
Embora as teorias sobre a evolução estivessem no ar por meio
século ou mais, a objetividade metódica de Darwin, a diplomacia de sua
prosa e, na qualidde de inglês, sua exposição de uma teoria mecânica
na época em que a teoria gravitacional de Isaac Newton era a última
palavra na ciência, tudo isso contribuiu pafa fazer do surgimento de
seu livro um evento épico. Como observou secamente uma dama da
alta sociedade, ao ouvir as notícias de suas origens simiescas não muito
nobres, “vamos esperar que não seja verdade. Mas se for, esperemos
que não venha a ser de conhecimento público.”
Desde Origem das Espécies, a idéia da evolução passou a ser cada
vez mais aceita – esmagadoramente pelos cientistas e de maneira res-
peitosa pelo público. Mas também foi execrada. Por exemplo, em uma
ilustração popular, Haeckel retratou o ápice da evolução como uma ale-
mã nua, mas recatada, no alto de uma escala evolutiva. Seu erro não
consistiu tanto na tendenciosidade germânica (ou em sua escolha do
sexo feminino), mas na escolha de qualquer ser humano. Isto porque
todas as espécies são igualmente evoluídas. Todos os seres vivos, desde
a minúscula bactéria até o membro de um comitê do Congresso, evo-
luiram do antigo ancestral comum que desenvolveu a autopoese e que,
com isso, tornou-se a primeira célula viva.
221
Anexo E
Declaração de Helsinque
Associação Médica Mundial
Princípios éticos para as pesquisas médicas em seres humanos
Adotado pela 18ª Assembléia Médica Mundial Helsinque, Finlân-
dia, junho do 1964 e emendada pela 29ª Assembléia Médica Mundial
Tóquio, Japão, outubro de 1975; 35ª Assembléia Médica Mundial Vene-
za, Itália, outubro de 1983; 41ª Assembléia Médica Mundial Hong Kong,
setembro de 1989; 48ª Assembléia Geral Somerset-West, África do Sul,
outubro de 1996 e a 52ª Assembléia Geral Edimburgo, Escócia, outubro
de 2000.
A. Introdução
1. A Associação Médica Mundial desenvolveu a Declaração de
Helsinque como uma declaração de princípios éticos para
fornecer orientações aos médicos e outros participantes
em pesquisas clínicas envolvendo seres humanos. Pesqui-
sas clínicas envolvendo seres humanos inclui pesquisas
com material humano identificável ou dados identificáveis.
222
4. A evolução médica é baseada na pesquisa que se fundamen-
ta, em parte, na experimentação envolvendo seres humanos.
223
11. A pesquisa clínica envolvendo seres humanos deve estar
em conformidade com os princípios científicos geralmente
aceitos e deve ser baseada no conhecimento minucioso da
literatura científica, em outra fonte de informação relevan-
te e em experimentação laboratorial e, quando apropriado,
experimentação animal.
224
impede a participação de voluntários saudáveis em pesqui-
sa clínica. O desenho de todos os estudos deve estar publi-
camente disponível.
225
consentimento informado espontâneo, preferencialmente
por escrito. Se o consentimento não puder ser obtido por
escrito, o consentimento não-escrito deve ser formalmente
documentado e testemunhado.
226
ser obtido, o mais rápido possível, do indivíduo ou repre-
sentante legalmente autorizado.
227
32. No tratamento de um paciente, quando métodos profiláti-
cos, diagnósticos e terapêuticos comprovados não existirem
ou forem ineficazes, o médico com o consentimento infor-
mado do paciente, deverá ser livre para utilizar medidas
profiláticas, diagnósticas e terapêuticas não comprovadas
ou inovadoras, se, em seu julgamento, estas oferecerem a
esperança de salvar a vida, restabelecer a saúde e aliviar o
sofrimento. Quando possível, essas medidas devem ser ob-
jeto de pesquisa, programada para avaliar sua segurança ou
eficácia. Em todos os casos, as novas informações devem ser
registradas e, quando apropriado, publicadas. As outras di-
retrizes relevantes desta Declaração devem ser seguidas.
228