Psicologia e Subjetividade Eletronico
Psicologia e Subjetividade Eletronico
Psicologia e Subjetividade Eletronico
Expediente
Fuad Kyrillos Neto
Walter Melo
Organização
Daniele Alves
Revisão
Thales Santos
Projeto gráfico e diagramação
Comissão Científica
Daniela Paula do Couto | UEMG
Rosane Zétola Lustosa | UFPR
Maddi Damião Júnior | UFF
112 p.
Inclui bibliografias
ISBN: 978-85-5478-022-7
CDU: 159.979
Ficha Catalográfica: Cileia Gomes Faleiro Ferreira – CRB 6/236
Sumário
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Fuad Kyrillos Neto e Walter Melo
| 10 Apresentação
A alteridade inscrita na identidade: uma
problemática freudiana
Toda essa discussão foi feita com base na pressuposição da equivalência entre
“mente” e “consciência”: experimentamos diretamente a nossa consciência,
mas nada sabemos acerca da consciência das outras pessoas senão de modo
indireto por via analógica. Ora, ao examinar os fenômenos psicopatológicos e
clínicos nos quais o sujeito sente, percebe, recorda e pensa sem o controle da
mente consciente, Freud aplicou o procedimento analógico para inferir outro
domínio psíquico na interioridade do próprio sujeito. Somente assim podemos
compreender por analogia o que pensam as outras mentes; caso contrário,
seria impossível interagir na vida social. Da mesma forma, devemos inferir por
analogia a existência em nós de um domínio estranho à consciência e fora do
controle do eu; caso contrário, quase nada poderíamos compreender acerca da
nossa própria vida psíquica e também do comportamento dos outros sujeitos.
Pode-se dizer, por conseguinte, que a investigação clínica e a criação conceitual
freudianas consistiram na paciente exploração desse domínio psíquico estranho
e irredutível ao agenciamento do eu, ou, em outras palavras, a fundação da
psicanálise coincide com o reconhecimento da alteridade inscrita em nós,
colocando em questão a certeza e a consistência de nossa identidade.
Certamente aqui nos deparamos com um paradoxo, mas este deve ser susten-
tado por um discurso que não o dissolva, porque a subjetividade humana não
é nem uma coisa entre outras coisas, como quer certo materialismo ingênuo,
nem é pura transparência da consciência para si mesma, como quer certo
psicologismo não menos ingênuo. A estranheza de um inconsciente não
somático e de um psiquismo não consciente não pode ser dissipada, porque o
ser humano não é um problema a ser resolvido, e sim uma interrogação a ser
enfrentada e continuamente reposta. Tal enigma já havia sido apreendido pelos
trágicos gregos no momento aparentemente luminoso da democracia ateniense
e também o foi por Freud, no momento em que as luzes da razão pareciam se
espraiar por todo o ocidente afastando os temores das antigas crenças e velhas
superstições. A investigação por ele iniciada, quando a persistência na escuta
subverteu a neurologia de sua formação científica inicial, atravessou quatro
décadas para se adensar cada vez mais.
2 O outro no Eu
A exposição freudiana acerca das relações entre as duas instâncias utiliza uma
linguagem francamente antropomórfica. Fala-se de um Eu pobre, desamparado,
ofendido, maltratado, humilhado. Longe de ser um equívoco, um modo de
expressão alheio ao rigor científico, trata-se de uma descrição pertinente por
ressaltar a alteridade inscrita no interior do Eu como se fosse alguma outra
pessoa a agir dentro de nós, como também por assinalar a origem externa da
consciência moral: “se a consciência moral [Gewissen] é também algo dentro
de nós [in uns]; apesar disso, não é assim desde o início [...] o papel assumido
posteriormente pelo Supereu [Superego] foi anteriormente desempenhado por
um poder externo, pela autoridade parental” (FREUD, 1933/1999, p. 67-68).
Quando “o obstáculo externo é internalizado, o Supereu [Superego] se coloca
no lugar da instância parental, e agora observa justamente como antes [faziam]
os pais da criança” (FREUD, 1933/1999, p. 68).
Não é difícil perceber como o corpo atravessado pela natureza e pela cultura foi
desde os estudos sobre a histeria o meio pelo qual o inconsciente se manifestou
e se tornou conhecido (ratio cognoscendi). Todavia, o imperativo pulsional não se
submete aos ditames da razão, pois sua essência é o cego querer-viver (Wille
zum Leben). Esse querer-viver nada tem a ver com a vontade racional e sensata
de conservar a vida. Ao contrário, trata-se de um impulso carente de lucidez
e finalidade, de controle e limite, algo como um “para além” de todo esforço
de ordenação individual e social. O “querer-viver” é manifestação da vontade
cega, e esta
Considerações finais
______. 1913. Totem and tabu. In: FREUD, Sigmund. Gesammelte Werke. Bd. II,
III. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 1999.
______. 1914. Zur Einführung des Narzissmus. In: FREUD, Sigmund. Gesam-
melte Werke. Bd. X. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch
Verlag, 1999b.
______. 1915. Das Unbewusste. In: FREUD, Sigmund. Gesammelte Werke. Bd.
X. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 1999a.
______. 1915. Die Verdrängung. In: FREUD, Sigmund. Gesammelte Werke. Bd.
X. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 1999b.
Alexandre Simões
Lembremo-nos que este foi o momento preciso no qual obras marcantes, que
protagonizaram a formação de boa parte de toda uma geração da intelectua-
lidade brasileira pós-1960, vieram a lume. Vale ressaltar, sem pretendermos
aqui estabelecer uma lista exaustiva, que Gilles Deleuze, Michel Foucault,
Roland Barthes, Claude Lévi-Straus, Pierre Bourdieu, Jacques Derrida e
Louis Althusser (DOSSE, 1992a) intensificaram, cada um a seu modo muito
peculiar, suas presenças na cena da intelligentsia. As obras desses autores,
provocativas em boa medida, juntamente de discursos instigantes e incursões
públicas reverberantes, usualmente tangenciavam a tese que, sinteticamente,
pode ser enunciada como a “dissolução do sujeito” (DOSSE, 1992b, p. 53). É
passível de notar, sem entramos em grandes detalhes quanto a esse momento
profícuo, que tal tese fazia fronteira com os argumentos acerca das “mortes do
sujeito” (FERRY; RENAUT, 1988, p. 313), sempre em prol da estrutura, como
corolário inevitável de um “processo-sem-sujeito-nem-fim” (ALTHUSSER,
1978, p. 66).
Nessa cena, temos Jacques Lacan que, por conta exatamente daquilo que a
experiência analítica lhe permitia sustentar e lhe levava a operar (e isso faz toda
a diferença para que ultrapassemos a dimensão do theóros e consideremos o
plano da práxis), demarca um posicionamento da Psicanálise bem distinto do
Estruturalismo de seu tempo. Em alguma proporção, o percurso do psicanalista
francês passou, sobretudo em sua base, pelo Estruturalismo em sua versão
francesa. Entretanto, ele aí não se alojou, aí não se deteve, uma vez que a
experiência analítica não parte do, nem desagua no ocaso do sujeito. A estrutura,
para Lacan, longe de ser um modelo teórico é “[...] máquina original que nela
põe em cena o sujeito” (LACAN, 1961/1998, p. 655).
Por esta via, trata-se de se discernir outro estatuto de sujeito; um sujeito, certa-
mente, não mais aderente à miragem subjetivista e, muito menos, excludente
de uma estranheza que lhe é inerente: o objeto (não um objeto qualquer ou
comum, todavia, particularmente, a via que leva Lacan à invenção do chamado
objeto pequeno a): “o que se trata de precisar concerne à miragem proveniente
de uma perspectiva que podemos chamar de subjetivista, uma vez que, na
constituição de nossa experiência, ela deposita toda a ênfase na estrutura do
sujeito” (LACAN, 1962-1963/2005, p. 114).
Não nos parece, de modo algum, que tenhamos aqui, por meio desta exortação,
apenas um detalhe ou uma formulação acessória e contingente que poderia
ser considerada ou não, ao bel-prazer do condutor da análise, sem comportar
maiores riscos ou comprometimentos para a prática e o devido posicionamento
da Psicanálise (posicionamento epistêmico e ético) face aos outros saberes e
práticas presentes em nossa atualidade. Entendemos que a articulação tripla
entre a prática analítica, o lugar do psicanalista e a contemporaneidade comporta
ingredientes e nuances que, integralmente, repercutem sobre as condições e
possibilidades da Psicanálise e a manutenção de seu vetor ético. Neste ponto
de nossa argumentação, remetemos o leitor à reflexão que, em outra ocasião,
já tivemos a oportunidade de elaborar (SIMÕES, 2017).
Alexandre Simões 35 |
A partir do momento em que se faz esta observação,
parece que não é necessário ser psicanalista, nem mesmo
médico, para saber que, no momento em que qualquer um,
seja macho ou fêmea, pede-nos, demanda alguma coisa,
isto não é absolutamente idêntico e mesmo por vezes é
diametralmente oposto àquilo que ele deseja (LACAN,
1966/2001, p. 10).
Pois bem, uma formulação desta ordem, que aponta para a abolição do sujeito
a despeito da fina e perspicaz argumentação que Lacan engendra entre o
ato freudiano e o “cogito cartesiano”, em muito alimenta cenários dicotô-
micos que tendem a apresentar a Psicanálise como uma prática eticamente
valorizadora da subjetividade e, em antítese à mesma, a ciência como um
empreendimento alienante e sufocante, uma vez que excluiria radicalmente
(forcluiria, portanto) aquilo que ela, a Psicanálise, valoriza. Apressada e equivo-
cadamente, abrem-se, por esse viés, discursos e mapeamentos maniqueístas que
tendem, usualmente, a localizar tudo que é do âmbito da ciência e da técnica
Alexandre Simões 37 |
como maquinarias meramente capturantes e promovedoras de fascínios
alienantes (LIMA, 2006).
Em outras palavras, um não vai sem o outro, ad initio. Por intermédio do “cogito
cartesiano”, ciência e sujeito irão se articular, tal qual as abas de uma dobradiça.
A coexistência, porém, comporta internamente uma oposição recíproca: ali
onde vigora o discurso da ciência (organicismo, consumo, tecnologia, substrato
material do pathos, psicopatologia contemporânea etc.), o sujeito encontra-se
enclausurado do lado de fora (RABINOVITCH, 2001).
Todavia, o sujeito se faz presente, tal qual o retorno do recalcado, nas lacunas
e interstícios desse discurso. Mais do que se fazer presente, o sujeito é, preci-
samente, o outro da “sutura” (LACAN, 1966/1998, p. 891): ele é a divisão, a
descontinuidade, o furo, o corte e a fenda que se manifestam – inevitalmente
– no discurso da ciência.
É nesse cenário que, a nosso ver, devemos localizar algo extremamente presente
em nosso tempo: encontra-se recorrentemente ao alcance de nossas mãos,
quando não na ponta de nossos dedos. Está diante de nossos olhos, está em
nossas bolsas, está, sobretudo, em nossos corpos, a saber, os gadgets. Gadgets:
pequenos objetos, portáteis, engenhocas, atraentes, smart, marcados inevita-
velmente pela obsolescência programada (portanto, muito bem integrados ao
circuito explicitamente circular da demanda, tal qual o tonel das Danaides).
Gadget: palavra de difícil tradução, usualmente mantida em inglês e grafada
no plural (gadgets), dada a sua proliferação, que se coaduna muito bem com
o uso linguístico que nós, brasileiros, fazemos da palavra treco (“você trouxe
seus trecos?!”) e que o regionalismo mineiro autoriza sob a palavra-curinga
“trem” (“onde você arrumou este trem?!”). Em suma, gadget é um “trem
tecnológico” que faz cola: smartphone, relógio multifunção, aplicativo versátil,
monitor cardíaco portátil, fone de ouvido, caixa acústica wifi, termômetro a
laser, filmadora acoplada a capacete, calculadora de queima de calorias, contador
de passos etc. A lista é longa, diversificada e heterogênea, a ponto do jornal
britânico Independent ter lançado, em 2007, a notória matéria: “101 gadgets that
changed the world”1. Muito provavelmente, esta lista já foi vítima da obsolescência.
Alexandre Simões 39 |
É neste ponto que podemos localizar, com mais precisão, o “correlato antinô-
mico” entre a ciência (e já pensemos em suas diversas parafernalhas técnicas,
plasmadas, especialmente, nos gadgets) e a Psicanálise: o sujeito desta, não
poderia ser outro que não o da primeira. Porém, aquilo que nesta é patente (e
subvertido), naquela é forcluído, “abolido” (LACAN, 1966/1998, p. 813). Esse
correlato, vale destacar, não se deu instantaneamente: a partir da emergência
do sujeito da ciência, em seu momento inaugural (localizado por Lacan no
“cogito cartesiano”), este sujeito ficou à espera, em suma, en suffrance. Ele haverá
de aguardar Sigmund Freud para ser resgatado, ou seja, trazido de volta à sua
morada (o ethos do inconsciente).
É nesse cenário que, a nosso ver, devemos localizar algo extremamente presente
em nosso tempo: encontra-se recorrentemente ao alcance de nossas mãos,
quando não na ponta de nossos dedos. Está diante de nossos olhos, está em
nossas bolsas, está, sobretudo, em nossos corpos, a saber, os gadgets. Gadgets:
pequenos objetos, portáteis, engenhocas, atraentes, smart, marcados inevita-
velmente pela obsolescência programada (portanto, muito bem integrados ao
circuito explicitamente circular da demanda, tal qual o tonel das Danaides).
Gadget: palavra de difícil tradução, usualmente mantida em inglês e grafada
no plural (gadgets), dada a sua proliferação, que se coaduna muito bem com
o uso linguístico que nós, brasileiros, fazemos da palavra treco (“você trouxe
seus trecos?!”) e que o regionalismo mineiro autoriza sob a palavra-curinga
“trem” (“onde você arrumou este trem?!”). Em suma, gadget é um “trem
tecnológico” que faz cola: smartphone, relógio multifunção, aplicativo versátil,
monitor cardíaco portátil, fone de ouvido, caixa acústica wifi, termômetro a
laser, filmadora acoplada a capacete, calculadora de queima de calorias, contador
de passos etc. A lista é longa, diversificada e heterogênea, a ponto do jornal
britânico Independent ter lançado, em 2007, a notória matéria: “101 gadgets that
changed the world”2. Muito provavelmente, essa lista já foi vítima da obsolescência.
É comum que boa parte dos psicanalistas tende a adotar, por meio de uma
enrijecida leitura do binômio “alienação-afânise” (LACAN, 1964/1988, p.
199), uma compreensão que preconiza, nestes fenômenos, nestas colas dos
sujeitos a estas parafernalhas digitais, o índice, tão-somente, de uma alienação
(MILLER, 1994; BIALEK, 1994). Assim, a relação do sujeito com as imagens
postadas, com as mensagens trocadas, com os selfies, com os carfies, com os
devices, enfim, tudo isso que faz parte da galáxia dos gadgets (sob os atuais
algoritmos das hashtags e o paradigma da nuvem) seria, entremeado por uma
leitura narcísica, alienante. Seria nada mais, nada menos do que reedições hi-tech
de Narciso encantado com aquilo lhe é devolvido pela superfície do espelho
d’água (LIMA, 2006). Sem excluir a incidência de uma lógica alienante em todas
estas circunstâncias, valeria também considerar as formulações mais complexas
que o objeto a (a partir de 1964, no “Seminário 11”) e o Imaginário do Lacan
dos anos 1970 (para-além do Estádio do Espelho) ofereceriam para se localizar
aqueles acontecimentos na clínica psicanalítica da contemporaneidade.
Alexandre Simões 43 |
agudos das indagações sobre o seu lugar face ao desejo do Outro e o uso de
álcool e droga, a paciente emitia inúmeras mensagens, por meio do WhatsApp,
ao analista. As mensagens eram enviadas massivamente, com conteúdos que
variavam do balanço que ela mesma fazia da relação com o seu atual namorado,
bem como com insultos e impropérios remetidos a ela própria e ao parceiro.
Tal como Lacan nos instigou – “o importante é saber o que acontece quando
a gente entra verdadeiramente em relação com a latusa como tal” (LACAN,
1969-70/1992, p. 154) – cabe ao psicanalista, na atualidade, conduzir a análise
| 44 Sujeito, ciência e gadgets: operadores para a clínica psicanalítica na atualidade
junto aos trecos do sujeito. Considerar e acolher uma subjetividade para além da
miragem subjetivista implica em se proporcionar que a incidência daquilo que
se exclui internamente se apresente no itinerário analítico. Em suma, a análise
avança na medida em que, espiralarmente, circunavega-se a exclusão interna.
Para tal, mais do que um mapeamento narcísico (rota aberta para o locus da
alienação) ou imaginário desses acontecimentos que implicam nossos hodiernos
enlaces com o corpo, com as imagens e com a tecnologia caberia trazer para
mais perto da clínica a lógica pulsional, portanto, a rota do circuito, do gozo
não mais como fatídica afânise, mas como modo de apresentar o sujeito.
Alexandre Simões 45 |
Referências
FERRY, Luc; RENAULT, Alain. La pensée 68; essai sur l’anti-humanisme contem-
porain. Paris: Gallimard, 1988.
______. 1966. A ciência e a verdade. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro:
Zahar, 1988. pp. 869-892.
______. 1972-73. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985.
Alexandre Simões 47 |
LACAN, Jacques. La troisième. 1974. Disponível em <http://staferla.free.fr/
Lacan/la_troisieme.htm>. Acesso em: 15 fev. 2019.
SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico: a alquimia dos corpos e das almas à luz
das tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.
Não é de sem igual relevância trazer à baila o que Freud, no também texto dito
como técnico “A análise finita e a infinita”, afirma a respeito da importância
de articular o tratamento analítico com a teoria, sua bruxa: “sem especulação
metapsicológica e teorização – quase diria: sem fantasiar – não avançamos
nenhum passo sequer” (FREUD, 1937/2017, p. 326). Estendemos também
essa afirmativa de Freud ao ensino e à produção de pesquisas em psicanálise
na universidade e, especificamente, no PPGPSI da UFSJ. Assim, parece-nos
que foi o que procuramos realizar nesses dez anos de trabalho, cujos dados
apresentamos neste artigo.
Maria Calzavara, Roberto Calazans, Júlio Castro, Wilson Chaves, Fuad Kyrillos Neto e Pedro Sobrino 51 |
Em que pese as ressalvas freudianas elaboradas no início na primeira década
do século XX, acerca da presença da psicanálise na universidade, e a aversão
lacaniana ao discurso universitário, uma realidade se impõe a nós. Cada vez
mais alunos da graduação em Psicologia e profissionais da psicanálise prosse-
guem seus estudos através de mestrados e doutorados, e complementam sua
formação com supervisões e grupos de estudos informais (SOUZA, 2001). É
o que veremos a seguir.
Maria Calzavara, Roberto Calazans, Júlio Castro, Wilson Chaves, Fuad Kyrillos Neto e Pedro Sobrino 53 |
em Psicanálise, em que as pesquisas e demais atividades são realizadas apenas
em psicanálise. Mais especificamente na UERJ encontramos, além de um
Programa de Pós-graduação acadêmico em Psicanálise, também um Programa
de Pós-graduação Stricto Sensu Profissional. No Programa de Pós-graduação
em Psicologia Clínica e Cultura, encontramos uma linha de pesquisa intitulada
Psicanálise, Subjetivação e Cultura, assim como no Programa de Pós-graduação
em Psicologia Clínica, temos a linha de Pesquisa Investigações em Psicanálise,
e na UFPA, no Programa de Pós-graduação em Psicologia, temos a linha
de Pesquisa Psicanálise. Na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), no programa de Pós-graduação em Psicologia Social, temos uma
linha de pesquisa específica em psicanálise (Psicanálise e Sociedade). Os
demais programas desta instituição não têm uma linha de pesquisa exclusiva
em psicanálise e os pesquisadores-psicanalistas se agrupam em torno do
Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica. Esse fato acontece em
vários programas do país, em que os psicanalistas ora se congregam em torno
da Psicologia Clínica, ora em torno de Fundamentos da Psicologia, como é o
caso do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal
de São João del-Rei (PPGPSI/UFSJ).
3 A psicanálise no PPGPSI/UFSJ
Maria Calzavara, Roberto Calazans, Júlio Castro, Wilson Chaves, Fuad Kyrillos Neto e Pedro Sobrino 55 |
psicanálise, nos últimos dez anos, nos indica um número de 43 dissertações
concluídas sob o referencial psicanalítico em um total de 187 dissertações
publicadas em todo o programa.
Alguns teóricos surgem na articulação com Freud e Lacan, tais como Zizek
e Kant, que aparecem uma única vez, com o objetivo de demonstrar as
aproximações e distanciamentos do modelo de Razão, proposto por Kant,
e do esquematismo transcendental da experiência proposto por Zizek.
Melanie Klein marcou sua presença por duas vezes em articulações com
Freud e Lacan e suas contribuições para a constituição subjetiva da criança
no âmbito da acepção de família. Hanna Arendt aparece em uma dissertação
com o objetivo de estabelecer possíveis relações entre a teoria psicanalítica e
a práxis política.
Maria Calzavara, Roberto Calazans, Júlio Castro, Wilson Chaves, Fuad Kyrillos Neto e Pedro Sobrino 61 |
questão da transmissão do saber analítico, reflexão essa que é confluente a uma
crítica aos modelos de ensino tradicionais, calcados no binômio mestre/aluno.
Não cabe neste manuscrito realizarmos uma ampla reflexão histórica acerca
daquilo que entendemos por “modelos tradicionais” de ensino, a respeito
dos quais a psicanálise seria crítica. Entretanto, podemos relacioná-los em
linhas gerais ao que Michel Foucault (1979) chama de paradigma “disciplinar”,
que diz respeito às instituições dentro das quais os jogos de poder e saber
estabelecem rígidas hierarquias entre professores e alunos. De fato, a psicanálise
historicamente se posiciona como uma das principais correntes teóricas a
contribuir para o movimento de crítica às instituições disciplinares, que ocorre
a partir do movimento francês conhecido como “Maio de 1968”. Trata-se da
subversão da lógica de encarceramento e disciplinamento presente em diversos
âmbitos da sociedade, como hospícios, estabelecimentos prisionais, colégios
e universidades.
Maria Calzavara, Roberto Calazans, Júlio Castro, Wilson Chaves, Fuad Kyrillos Neto e Pedro Sobrino 63 |
Referências
______. 1921. Psicologia das massas e análise do Eu. In: FREUD, S. Obras
completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
______. 1923. Psicanálise e teoria da libido. In: FREUD, S. Obras completas. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011.
______. Prefácio. In: LEMAIRE, Anika. Jacques Lacan – uma introdução. Rio de
Janeiro: Ed. Campus, 1979.
Maria Calzavara, Roberto Calazans, Júlio Castro, Wilson Chaves, Fuad Kyrillos Neto e Pedro Sobrino 65 |
LO BIANCO, A. C. Sobre as bases dos procedimentos investigativos em psicaná-
lise. Psico-USF, v. 8, n. 2, p.115-123, 2003.
Fátima Caropreso
Fátima Caropreso 69 |
Um dos exemplos citados para ilustrar esse fenômeno é a fala de sua paciente “a
terra foi perfurada”, a qual significava “eu fui maculada no ato sexual”. Spielrein
esclarece que os antigos viam na terra uma mulher poderosa e que, portanto,
a paciente falava a língua do pensamento mitológico. Com essa substituição,
sua dor é diluída entre as várias representações análogas que abrigamos dentro
de nós como herança de nossos ancestrais, argumenta a autora. A mulher, de
maneira geral, teria sido maculada e não ela como indivíduo e, nesse processo,
as características pessoais seriam eliminadas.
Spielrein (1912) diferencia entre uma “psique do eu” e outra mais profunda,
denominada “psique da espécie”. A primeira conteria o material proveniente
de nosso passado individual e a segunda aquele derivado do passado da
espécie. Assim, além de conter experiências pessoais, o inconsciente conteria
experiências de inúmeras gerações, de forma que a assimilação inconsciente
de eventos que tivessem ocorrido em muitas gerações se encaixaria na cadeia
de pensamentos do presente, ou seja, transformaria uma experiência do eu
em uma experiência da espécie. A autora argumenta que, quanto mais nos
aproximamos de nossos pensamentos conscientes, mais diferenciadas são
nossas representações, ao passo que, quanto mais penetramos no inconsciente,
mais universais e típicas elas se apresentam. Dessa forma, diz ela: “o âmago
da nossa psique não conhece o eu, mas apenas seu somatório, o nós, ou o eu
presente, visto como objeto, é subordinado a outros objetos semelhantes”
(SPIELREIN, 1912a, p. 472).
Fátima Caropreso 73 |
que o instinto de morte e a tendência à dissolução seriam condições necessárias
para a criação, para o surgimento do novo. A pulsão de autoconservação, por
sua vez, não daria origem a nada de novo, uma vez que ela visaria manter o
estado presente do Eu. Assim, a autora argumenta que:
Como dissemos, nas cartas que Spielrein escreve a Jung entre 1917 e 1918 Spiel-
rein continua desenvolvendo suas especulações metapsicológicas. Passemos ao
comentário de algumas das ideias que ela elabora nessas cartas.
Entre os anos de 1908 e 1919, Spielrein e Jung trocaram uma série de corres-
pondências, nas quais tratavam de questões pessoais e discutiam hipóteses
teóricas de ambos, assim como algumas das concepções freudianas. Nas últimas
cartas, principalmente nas escritas a partir de 1917, Spielrein propõe algumas
concepções sobre a estrutura e a dinâmica da mente, as quais podem ser
consideradas como um desenvolvimento de parte das teses que ela elaborara em
seus textos de 1911 e 1912 que acabamos de comentar. Pode-se dizer que ela faz
uma tentativa de integrar suas concepções com as propostas metapsicológicas
de Freud sobre o aparelho psíquico - em particular, com a divisão estabelecida
por este entre as instâncias; consciente, pré-consciente e inconsciente. A autora
propõe que estas duas últimas instâncias são partes de um domínio psíquico
mais amplo, denominado “subconsciente”, e, com isso, formula algumas ideias
originais sobre o funcionamento mental.
3 Na carta de 15 de dezembro de 1917, ela usa o termo “pré-consciente” de uma forma mais ampla, como
abarcando o que, na carta de 17 de dezembro do mesmo ano, ela especifica como “consciência lateral”.
Nesta última carta, ela concebe o pré-consciente de uma forma mais restrita, como consistindo na agência
responsável pela censura. Na carta de 6 de janeiro de 1918, ela esclarece que sua terminologia, no que se
refere às instâncias psíquicas, é provisória, e diz que a mesma pode vir a ser alterada depois de ter sido
discutida com várias pessoas.
Fátima Caropreso 77 |
enfraquecido pelo cansaço, narcose ou por outros fatores. Spielrein considera
que os fenômenos hipnagógicos, descritos por Silberer (1909), constituiriam o
primeiro grau do pensamento subliminar e permitiriam compreender algumas
de suas características. Diz ela:
Como explica Cromberg (2014), Spielrein faz uma diferenciação entre Uter-
drückung (repressão) e Verdrängung (recalque). O primeiro mecanismo operaria
entre o consciente e o subconsciente (consciência lateral), enquanto o segundo
atuaria entre este último e o inconsciente. Tanto a parte subconsciente excluída
do pensamento direcionado (alvo da Uterdrückung) como a sua parte composta
por derivados de instintos censurados (alvo da Verdrängung) estariam ligadas à
experiência individual. Podemos inferir que aí estaria a “psique do eu”, descrita
por Spielrein em 1912. Todavia, o subconsciente conteria também um material
que transcenderia a vida individual, de forma que podemos inferir que nele
| 78 Entre Freud e Jung: a metapsicologia de Sabina Spielrein
também estaria contida a “psique da espécie”, proposta em 1912. Na carta
de 15 de dezembro de 1917, Spielrein diz que, no subconsciente (consciência
lateral), encontramos:
Nas cartas trocadas entre Jung e Spielrein, algumas vezes é discutida a hipótese
defendida por Jung de que o inconsciente teria um caráter prospectivo. Esse
é um dos principais pontos de discordância de Jung em relação à hipótese
freudiana do inconsciente. Na carta de 15 de dezembro de 1917, Spielrein argu-
menta que esse caráter prospectivo poderia estar presente no subconsciente,
mas não no inconsciente freudiano. Diz ela:
Essa questão volta a ser discutida na carta que Spielrein escreve a Jung em 6
de janeiro de 1918. Nela, ela reconhece a possibilidade de que o subconsciente
seja prospectivo, no entanto, demarca o seu diferencial em relação a Jung,
argumentando que, embora provavelmente o subconsciente de toda pessoa
seja, até certo ponto, preditivo, não devemos considerá-lo sempre profético.
O subconsciente, diz ela, elabora diversas tendências existentes em nós e nos
mostra possibilidades e probabilidades que estão suspensas no ar, ou seja,
que se acham próximas da realização. No entanto, ele também pode errar;
pode ser vítima de sugestão, ou seja, pode ser induzido a buscar a solução de
um problema em uma “forma mais elevada” ou “mais baixa”, argumenta a
autora. Essa possibilidade de erro e de ser influenciado pela sugestão impe-
5 A maior parte das vezes em que Spielrein usa a palavra “subconsciente” sem especificação (consciência
lateral, inconsciente, pré-consciente) é possível inferir, a partir do contexto do texto, que ela está se
referindo à consciência lateral.
Na mesma carta, Spielrein usa sua própria fantasia do Sigfrido – do filho que
ela desejava ter com Jung – para exemplificar essa possibilidade de erro do
pensamento subconsciente. Segundo ela, por um período, seu subconsciente
teria intuído a possibilidade de realização “real” dessa fantasia e a aconselhado a
não opor resistência a isso. No entanto, tal realização foi impedida pelas circuns-
tâncias da realidade e, então, seu subconsciente posicionou-se contra a solução
“real” do problema e a favor de um caminho sublimatório para solucioná-lo6.
Deste modo, diz ela: “Se bem que o subconsciente não nos indique uma meta
fixa, mas somente resolva os problemas segundo as circunstâncias, indique um
caminho, tenha efeito preventivo ou encorajador, etc. – a observação metódica
desses fenômenos é de enorme interesse” (SPIELREIN, 1980/1984, p. 148).
A autora não formula uma resposta direta a essas indagações. O que podemos
perceber é que ela defende que a parte não recalcada do subconsciente
6 Na carta de 27-28 de janeiro de 1918, ela volta a comentar a fantasia de Sigfrido e diz: “Lutei durante anos
até que consegui não considerar mais os símbolos do subconsciente de um ponto de vista prospectivo, mas
a lhes atribuir apenas o significado de desejos infantis” (SPIELREIN, 1980/1984, p.158). Dessa maneira,
ela reconhece que sua fantasia de Sigfrido consistia apenas em uma tentativa de realização de desejos
infantis, estando nela ausente o caráter prospectivo.
Fátima Caropreso 81 |
poderia ter um caráter prospectivo, o qual, contudo, seria influenciado pelas
circunstâncias e seria passível de erro, de forma que, apesar de prospectivo,
o subconsciente não seria necessariamente profético. Apesar de ser capaz
de formular predições com base nas circunstâncias atuais, o subconsciente,
segundo a autora, não seria necessariamente profético, ou seja, não teria
necessariamente a capacidade de antecipar algo que, de fato, viesse a acontecer.
Ela sugere também que talvez esse caráter prospectivo e profético não fosse
igualmente desenvolvido em todas as pessoas.
Considerações finais
Desde suas primeiras publicações, fica claro que Sabina Spielrein elaborou
uma teoria bastante original, a partir de suas observações clínicas, de hipóteses
freudianas, junguianas, além de outras concepções psicanalíticas. Nas cartas
a Jung do período de 1917 a 1918, contudo, ela parece fazer uma tentativa
explícita de inserir ideias freudianas e junguianas em uma teoria geral sobre a
mente. Nestas cartas, Spielrein tenta integrar algumas das ideias elaboradas em
seus textos de 1911 e 1912 com as hipóteses que Freud defendia na época sobre
o “aparelho psíquico”, assim como com algumas ideias de Jung. Entre essas
ideias, podemos destacar a hipótese do caráter prospectivo do subconsciente,
a presença dos dois tipos de pensamentos (direcionado e não direcionado) no
funcionamento mental e a existência de material psíquico que transcende às
experiências pessoais. O resultado desta tentativa de integração, no entanto, é
a formulação de uma teoria original, em muitos aspectos.
Fátima Caropreso 83 |
Referências
CAROPRESO, F. The death instinct and the mental dimension beyond the pleasure
principle in the works of Spielrein and Freud. International Journal of Psychoa-
nalysis, Londres, n. 98, p. 1741-1762, 2017a.
KERR, J. A most dangerous method: the story of Jung, Freud, and Sabina
Spielrein. New York: Alfred A. Knopf, 1993.
MARCHESE, F. J. Coming into being: Sabina Spielrein, Jung, Freud, and Psycho-
analysis. Toronto: Frank J. Marchese, 2015.
SKEA, B. R. S. Spielrein: out from the shadow of Freud and Jung. Journal of
Analytical Psychology, London, v. 51, p. 527-552, 2006.
Fátima Caropreso 85 |
SPIELREIN, S. 1912a. A destruição como origem do devir. In: CROMBERG,
R.U. (Org). Sabina Spielrein: uma pioneira da psicanálise. São Paulo: Livros da
Matriz, 2014. p. 227-277.
______. Beiträge zur Kenntnis der kindlichen Seele. Zentralblatt für Psycho-
analyse, Wiesbaden, v. 3, n. 2, p. 57- 72, 1912b.
VIDAL, F. Sabina Spielrein, Jean Piaget: going their own ways. Journal of Analyti-
cal Psychology, Londres, v. 46, n. 1, p. 139-153, 2001.
Walter Melo
Introdução
| 88 O Grupo Caminhos Junguianos como uma experiência de pesquisa e ensino-aprendizagem em Psicologia Analítica
A educação pelo trabalho se dá, ao longo dos anos, em um campo multifacetado
de práticas – Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), Centro de Testagem e
Aconselhamento (CTA), Acompanhamento Terapêutico (AT) e Serviço de
Psicologia Aplicada (SPA) –, possibilitando a organização de conhecimento
tácito1: “incorporado às capacidades afetivas, cognitivas, motoras e verbais de um
sujeito. [...] de natureza eminentemente pré-reflexiva” (FIGUEIREDO, 2015, p.
116). Como o conhecimento tácito corre o risco de se tornar mecânico, há um
esforço de sistematizar a produção de conhecimento em supervisões semanais
e em pesquisas que integram estudantes de diferentes âmbitos – iniciação
científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado – com a intenção de “abrir
no curso da ação o tempo da indecisão, o do adiamento da ação, tempo em
que podem emergir novas possibilidades de escutar e falar” (FIGUEIREDO,
2015, p. 125).
1 Em suas argumentações, Luiz Cláudio Figueiredo está apoiado nas concepções de Michael Polanyi (1974).
Walter Melo 89 |
Esses diálogos e narrativas são aprofundados durante o Seminário Caminhos
Junguianos2, na elaboração de relatórios, dissertações, teses e em publicações
(MELO; RESENDE; SILVEIRA; HENRIQUES; SOUZA, 2015; SOUZA;
MELO, 2018; HENRIQUES; MELO, 2019; MELO; RESENDE, 2019). A
partir dessas ações, o Grupo Caminhos Junguianos serviu de base para a criação
do GT de Psicologia Junguiana, vinculado à Associação Nacional de Pesquisa
e Pós-graduação em Psicologia (Anpepp), fundamental para a instauração de
um lócus para a Psicologia Analítica em meio acadêmico.
| 90 O Grupo Caminhos Junguianos como uma experiência de pesquisa e ensino-aprendizagem em Psicologia Analítica
Esta maneira de conceber o mundo e de produzir conhecimento sempre foi
extremamente criticada por Jung. Considerava que aspectos pessoais interferiam
de maneira direta nas observações dos fenômenos e nas concepções teóricas.
Isso se daria em qualquer área do conhecimento, mais ainda na Psicologia.
Temos, portanto, a afirmação da validade de diferentes concepções psicológicas
e a defesa enfática da variedade de maneiras de observação, de metodologias
empregadas e de concepções teóricas (JUNG, 2011a). Jung concebe a Psicologia
como um campo múltiplo, com tendência à ampliação de modelos teóricos.
Mitologemas e variações
Assim, temos, por exemplo, o núcleo central de uma experiência edípica, mas
temos, também, a trilogia teatral de Sófocles. Mas, onde Sófocles buscou o
material para compor os seus textos? Em inúmeras lendas com as variações
do mito (KERÉNYI; HILLMAN, 1995). O mito, portanto, passa a ter uma
versão canônica, principalmente quando é narrado de maneira escrita, e
relega as variantes ao segundo plano. No âmbito pessoal, a emergência de um
determinado conteúdo psíquico de base arquetípica evidencia a criação de um
mito canônico, de uma repetição e, ao mesmo tempo, de um impulso para a
repetição. Nesse caso, os paralelos com produções da cultura têm o caráter de
variações, possibilitando que o tema entre novamente em movimento.
A multiplicidade de significados
O arquétipo é definido como uma forma sem conteúdo, como uma possi-
bilidade, como “energia psíquica aglomerada” (JACOBI, 1986, p. 73). Em
uma situação emocional que afeta drasticamente o sujeito, o campo incons-
ciente produz, de maneira compensatória, material simbólico (imagem
arquetípica), formando uma representação da energia psíquica que precisa
escoar (JUNG, 2011o). O símbolo é definido como “a melhor designação ou
fórmula possível de um fato relativamente desconhecido” (JUNG, 2011a, p.
487). De maneira contrária, um conteúdo conhecido, que possui significação
determinada, é um signo. Portanto, o símbolo possui variadas significações.
Podemos deduzir, então, que a postura consciente frente a um material psíquico
pode reduzi-lo a um significado único (signo) ou buscar a multiplicidade de
sentidos (símbolo) (JUNG, 2011a). Para ganhar inteligibilidade, Jung recorre
Walter Melo 93 |
às analogias (amplificação). Há, aí, duas possíveis conclusões precipitadas:
(1) o terapeuta estaria inserindo conteúdos e, portanto, atribuindo significa-
ções (precipitação de psicólogos e/ou estudantes identificados com outras
referências teóricas); (2) as analogias podem variar de maneira indeterminada
(precipitação de psicólogos e/ou estudantes identificados com a abordagem
junguiana). A segunda precipitação acaba justificando a primeira.
| 94 O Grupo Caminhos Junguianos como uma experiência de pesquisa e ensino-aprendizagem em Psicologia Analítica
fórmula ideal, mas pela combinação de ambos no processo
psicológico vivo, pelo esse in anima. Somente através da
atividade vital e específica da psique alcança a impressão
sensível aquela intensidade, e a ideia, aquela força eficaz
que são os dois componentes indispensáveis da realidade
viva. Esta atividade autônoma da psique, que não pode ser
considerada uma reação reflexiva às impressões sensíveis
nem um órgão executor das ideias eternas, é, como todo
processo vital, um ato de criação contínua. A psique cria a
realidade todos os dias. A única expressão que me ocorre
para designar esta atividade é fantasia (JUNG, 2011a, p. 66,
grifo no original).
Desta longa citação, vamos destacar duas ideais interligadas: a fantasia é um ato
de criação contínua e, a partir dela, a psique cria mundo. Jung (2011f) já havia
postulado duas formas de pensamento: fantasia e dirigido. Enquanto o pensa-
mento dirigido se caracteriza como um esforço de inteligibilidade direcionado
para o outro, sendo cansativo e visando à adaptação, o pensamento “fantasia”
ocorre de maneira contínua, não tendo nenhuma finalidade produtiva. Nesse
primeiro momento, a fantasia é tida como algo que pode afastar o sujeito
da realidade e não possui nenhuma relação com o mundo compartilhado de
maneira cotidiana. Ao abrir mão da dualidade de pensamentos – fantasia e
dirigido – e sem excluir a possibilidade de afastamento da realidade objetiva,
Jung aprimora suas concepções e a fantasia passa a correlacionar ideia e
coisa, sendo um fator preponderante de criação, inclusive da criação científica
(PAULI, 1996).
Considerações finais
Walter Melo 97 |
Referências
| 98 O Grupo Caminhos Junguianos como uma experiência de pesquisa e ensino-aprendizagem em Psicologia Analítica
JUNG, C. G. Psicologia e alquimia. Petrópolis: Vozes, 2011g.
Walter Melo 99 |
MELO, W. Nise da Silveira. Rio de Janeiro/Brasília: Imago/CFP, 2001.
______. Maceió é uma cidade mítica: o mito da origem em Nise da Silveira. Psico-
logia USP, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 101-124, 2007.
| 100 O Grupo Caminhos Junguianos como uma experiência de pesquisa e ensino-aprendizagem em Psicologia Analítica
MELO, W. Il MuseodelleImmaginidell’Inconscio: storia, metodo, tranformazione-
culturale. Osservatorio Outsider Art, Palermo, 13, 2017.
p. 100-115.
| 102 O Grupo Caminhos Junguianos como uma experiência de pesquisa e ensino-aprendizagem em Psicologia Analítica
Sobre os autores
Alexandre Simões
Fátima Caropreso
Roberto Calazans