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e-ISSN 2175-1803

Precisamos falar sobre o lugar epistêmico na Teoria da História

Resumo:
O debate sobre a geopolítica da produção Ana Carolina Barbosa Pereira
intelectual tem uma longa e respeitável tradição. Doutora em História Universidade de
Dela participam intelectuais do continente africano, Brasília (UnB). Professora Universidade
desde o contexto de libertação do jugo colonial Federal da Bahia (UFBA).
(décadas de 1950-1970), intelectuais que integram Salvador - BA - BRASIL
os paradigmas pós-colonial, decolonial e, mais [email protected]
recentemente, as chamadas teorias ou
epistemologias do Sul. Mas se a questão da
geopolítica de produção do conhecimento é
amplamente conhecida no cenário das teorias
sociais, existe um contraste em relação ao campo da
Teoria da História. Seria possível dizer que a Teoria
da História, como ela é praticada no Brasil, se
apresenta como emblema desse contraste, como
expressão do que os(as) intelectuais vinculados(as)
às tradições acima mencionadas têm denominado
“extroversão”, “imperialismo intelectual”,
“dependência acadêmica”, “mentalidade cativa”,
ou “metrocentrismo”. O objetivo desse artigo é
pensar, a partir da realidade brasileira, a geopolítica
de produção e consumo da Teoria da História. Para
tanto proponho uma particular definição da
categoria de lugar epistêmico.

Palavras-chave: Teoria da História. Historiografia.


Geopolítica.

Para citar este artigo:


PEREIRA, Ana Carolina Barbosa. Precisamos falar sobre o lugar epistêmico na Teoria da História.
Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 24, p. 88 - 114, abr/jun. 2018.

DOI: 10.5965/2175180310242018088
http://dx.doi.org/10.5965/2175180310242018088

Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 24, p. 88 - 114, abr/jun. 2018. p.88
Tempo
Precisamos falar sobre o lugar epistêmico na Teoria da História
Ana Carolina Barbosa Pereira

&Argumento
We need to talk about the
epistemic place in Theory of
History

Abstract:
The debate on the geopolitics of intellectual production
has a long and respectable tradition. It is attended by
intellectuals from the African continent, from the context
of liberation from the colonial yoke (1950s-1970s),
intellectuals who integrate the postcolonial, decolonial,
and, more recently, so-called Southern theories or
epistemologies. But if the question of the geopolitics of
knowledge production is widely known in the context of
social theories, there is a contrast in relation to the field of
Theory of History. It would be possible to say that the
Theory of History, as it is practiced in Brazil, presents itself
as an emblem of this contrast, as an expression of what
the intellectuals linked to the above-mentioned traditions
have called "extraversion"; "Intellectual imperialism";
"Academic dependence"; "Captive mentality"; or "metro-
centrism". The objective of this article is to think, from the
Brazilian reality, the geopolitics of production and
consumption of Theory of History. To this end I propose a
definition of the category of epistemic place.

Keywords: Theory of History. Historiography. Geopolitics.

É prática comum entre professores(as) de todas as áreas, inclusive de Teoria da


História, o repensar contínuo da bibliografia utilizada nos cursos de graduação e pós-
graduação. Essa atualização da bibliografia também costuma ser acompanhada de uma
revisão de objetivos e, eventualmente, de um repensar sobre estratégias de avaliação e
outras questões relacionadas, estritamente, à didática e metodologia do ensino. Como
os(as) demais, também eu tenho o hábito de repensar constantemente a bibliografia
adotada em meus planos de curso, além das estratégias didáticas e metodológicas que os
tornam executáveis.

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Recentemente, no entanto, experimentei uma mudança um tanto maior na
bibliografia e nos objetivos de um plano de curso de Teoria da História para a graduação.
O objetivo principal era o de mobilizar um debate importantíssimo a respeito da
geopolítica da produção de conhecimento, especialmente em relação à formulação de
modelos teóricos. Resumidamente, propunha trazer para o domínio da Teoria da História
um debate que há décadas tem sido desenvolvido no campo das teorias sociais.

A recepção da proposta entre os(as) estudantes foi, em geral, empolgante. A


maior parte manifestou interesse imediato e imensa curiosidade foi despertada pelos
títulos e autorias dos textos. A montagem de um quadro de seminários, a partir da
escolha de temas e datas para as apresentações, se deu sem grandes dificuldades e quase
nenhuma indisposição. Enfatizo o “quase” porque uma vigorosa reação destoou das
demais. O desagrado de um(a) dos(as) estudantes foi manifestado de forma impetuosa,
quase colérica. E sua demanda, com ares de cobrança, dizia respeito ao cânone da Teoria
da História difundido entre nós no Brasil e praticamente ausente na bibliografia que eu
apresentava.

Na ocasião, me lembro que a reação foi precedida por um “Professora, precisamos


falar sobre seu plano de curso”. Penso que este artigo é uma resposta ao imenso desafio
que me foi colocado por um público de jovens estudantes de História, conforme um
movimento de aceitação e recusa da crítica à bibliografia canônica, àquela que nos
habituamos a citar e utilizar como referência no Brasil.

A minha posição é a do reconhecimento de que o modo como ensinamos e


desenvolvemos pesquisa em teoria da História, no Brasil, nos coloca em posição de
consumidores(as) de referenciais importados, especialmente de países como Alemanha,
França, Inglaterra, Estados Unidos da América e, em menor escala, Holanda e Itália. Não
se trata de assumir uma postura de recusa imprudente, ou de rejeição irrefletida de um
cânone, mas de perguntar como se construiu, por que e de que modo se perpetua esse
cânone. O que está em questão, portanto, é a urgência em extrapolar a categoria de lugar
social dos(as) historiadores(as) e de considerar a existência de um a priori epistêmico que
o antecede, regula e condiciona.

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Esse a priori epistêmico é geralmente imperceptível e contestá-lo pode soar contra
o “bom senso”, pois ao mesmo tempo em que funda, também retroalimenta um
conjunto de textos que se torna de leitura e citação obrigatórias. Esse a priori epistêmico
também funciona como critério silencioso no ranqueamento das universidades,
possibilitado por dispositivos de medição como as taxas de citação, contagem da
produtividade acadêmica ou fator de impacto das revistas (CONNELL, 2017).

Em casos como o das universidades australianas descritos por Raewyn Connell, em


que o impacto das políticas liberais é sentidos ainda mais diretamente, estes critérios
definem quem permanece dentro e quem fica fora delas, quem tem e quem não tem um
posto de trabalho. Nas universidades públicas brasileiras, se esses critérios ainda não
ameaçam a permanência de pesquisadores(as) e professores(as) do quadro efetivo,
definem a distribuição de recursos para pesquisa, o credenciamento/descredenciamento
em programas de pós-graduação, o prestígio/desprestígio de pesquisadores(as) e revistas
acadêmicas, dentre outras formas que, todos(as) sabem, nutrem a concorrência e muitas
vezes a hostilidade entre colegas de ofício.

Comecemos pelo hábito. Em uma passagem reveladora, Raewyn Connell (2011)


afirma que no Brasil e na Austrália tomou-se por hábito citar autores como Foucault,
Bourdieu, Giddens, Beck ou Habermas, não por se conhecermos profundamente a
realidade de ambos os países. Nós os citamos, continua Connell, porque suas ideias,
paradigmas e conceitos se tornaram referência nas universidades euro americanas e nós
fomos formados(as) para receber instruções dessas instituições.

Basta um breve exercício de memória para substituir os nomes mencionados por


Connell por outros nomes da Teoria da História com os quais estamos familiarizados(as).
Desnecessário dizer que o argumento não precisa qualquer alteração. Assim, não citamos
Koselleck, Hartog, Rüsen, Hayden White, Paul Veyne, Frank Ankersmit, Paul Ricoeur,
Michel de Certeau, o próprio Foucault, Chris Lorenz, dentre outros, por conhecerem a
realidade brasileira como ninguém! Então, por que os citamos? A pergunta é
fundamental. E algo me leva a pensar que todos(as) nós, teóricos(as) da história, ao
menos intuímos uma explicação para esse fenômeno. Afinal, ela não é diferente daquela
apresentada por Raewyn Connell. Nós o fazemos, antes de tudo, por hábito.

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Hábito é também o ponto de partida de Syed Hussein Alatas (1972) para
caracterizar a mentalidade cativa de intelectuais do sudeste asiático, marcada pela prática
da imitação acrítica de modelos teóricos de origem europeia e estadunidense. Segundo
Alatas (1972), a dinâmica imperial forjou nos países subdesenvolvidos um hábito de
imitação que permeia praticamente toda a atividade intelectual e científica. Esse padrão
incide sobre a produção do conhecimento desde a formulação do problema de
investigação, passando pela análise, abstração, generalização, conceitualização,
descrição, explicação e interpretação dos dados.

Um outro conceito poderoso, desenvolvido pelo mesmo autor, é o de imperialismo


intelectual (ALATAS, 2000). Longe de atuar em apenas um domínio da experiência, o
imperialismo para Alatas deve ser pensado como um cluster e, portanto, como prática
pluridimensional de poder e dominação. Nesse caso, a dimensão intelectual do
imperialismo, isto é, a dominação de um povo sobre o outro no plano do pensamento, é
por ele entendida como um efeito do imperialismo direto, sobretudo de caráter político
e/ou econômico (ALATAS, 2000).

Na esteira de Syed Hussein Alatas, seu filho Syed Farid Alatas (2008) desenvolveu
uma teoria da dependência acadêmica. Segundo essa teoria, a dependência acadêmica
opera em dois níveis, um estrutural e outro intelectual. No primeiro caso, a solução para a
dependência envolve consciência, vontade e determinação de dirigentes,
administradores, burocratas e outros atores políticos, sem os quais é impossível
desmantelar essa estrutura de dominação. No segundo caso, a ruptura é uma questão de
autonomia individual.

Em ambos os casos, para romper com a dinâmica da dependência acadêmica é


preciso, antes, entender como ela funciona. Dependência de ideias, de financiamento
para pesquisa, de investimentos na educação, de treinamento nas universidades norte-
centrais, dentre outras, evidenciam uma complexa e intricada estrutura de poder. E é no
nível das ideias que Alatas deposita suas maiores expectativas. Isso se deve, em parte, ao
fato de enxergar nessa dependência uma realidade compartilhada por todos os países do
Sul, que em diferentes épocas foram submetidos à violência colonial empreendida pelo

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Ocidente. Algo como uma resistência coletiva, motivada pela autonomia intelectual e
individual, parece nutrir as expectativas de Alatas.

O otimismo de Farid Alatas, nesse sentido, se alimenta da noção de autonomia dos


intelectuais como potencial de superação da dependência acadêmica no plano das ideias
e, por consequência, do que Hussein Alatas já havia diagnosticado como mentalidade
cativa e imperialismo intelectual. Nessa direção, a dependência acadêmica é algo que se
resolve combatendo o eurocentrismo nos currículos, o que implica investir na
criatividade, na valorização do conhecimento autóctone e na superação da dicotomia
sujeito-objeto que restringe a posição de sujeito ao Ocidente, restando às demais
realidades do globo a estrita condição de objeto (ALATAS, 2008).

De modo semelhante, Paulin Hountondji (2009), crítico da tradição ocidental da


filosofia da consciência, assinala a necessidade de se opor à extroversão da produção
acadêmica em África. Com essa terminologia, Hountondji descreve a atividade científica
orientada para o exterior, voltada para a satisfação das necessidades teóricas de
intelectuais ocidentais e, portanto, destinadas a responder às perguntas que são postas
por eles e também por eles debatidas nas línguas europeias que funcionam como veículo
de expressão científica que tendem, ainda, a reforçar a alienação e o isolamento de
intelectuais que não as entendem (HOUNTONDJI, 2008, p. 128).

Não por acaso, Hountondji denuncia os chamados estudos africanos praticados nas
universidades europeias e norte americanas que, especialmente no campo filosófico, há
séculos reproduzem o pressuposto da inconsciência dos africanos nativos e consequente
incapacidade de organização de seu próprio sistema ontológico. Rebatizando-os de
estudos africanistas, Hountondji é um exemplo importantíssimo de postura combativa em
relação à prática acadêmica extrovertida, tão comum em África como em outras partes
do que tem se convencionado chamar Sul Global.

O quadro descrito parece exigir que examinemos como e por que um pequeno
conjunto de textos extrapola fronteiras continentais e se converte em leitura obrigatória
em todos os cantos do globo. Em um texto recentemente publicado, Ramón Grosfoguel
(2016) formulou algumas perguntas que seguem nessa direção e as explicações históricas

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que ele oferece para esse fenômeno, conforme a perspectiva decolonial, têm relação
com a violência da experiência da Modernidade/Colonialidade. A exemplo, o autor
pergunta:

Como é possível que o cânone do pensamento em todas as disciplinas da


ciências sociais e humanidades nas universidades ocidentalizadas
(Grosfoguel, 2012) se baseie no conhecimento produzido por uns poucos
homens de cinco países da Europa Ocidental (Itália, França, Inglaterra,
Alemanha e os Estados Unidos)? (GROSFOGUEL, 2016, p.26)

Ou ainda:

Por que o que hoje conhecemos como teoria social, histórica, filosófica,
econômica ou crítica se baseia na experiência sócio histórica e na visão
de mundo de homens destes cinco países? (GROSFOGUEL, 2016, p. 27)
Como é que no século XXI, com tanta diversidade epistêmica existente
no mundo, estejamos ancorados em estruturas epistêmicas tão
provincianas camufladas de universais? (GROSFOGUEL, 2016, p. 27)

Para Grosfoguel, esse fenômeno tem origem em quatro diferentes experiências


históricas de genocídio praticado pela Europa Moderna durante “o longo século XVI”
(GROSFOGUEL, 2016). Referindo-se à conhecida formulação de Enrique Dussel (1994)
sobre o ego conquiro como antecedente histórico do cogito cartesiano, Grosfoguel
identifica uma lacuna entre “conquistar” e “conhecer”. E para preenchê-la propõe a
categoria mediadora de ego extermino como condição sócio histórica estrutural que
conecta a experiência da conquista da América à formulação da máxima cartesiana
(GROSFOGUEL, 2016).

Os quatro genocídios/epistemicídios que gestam o ego conquiro e o ego cogito


europeus envolvem a ofensiva contra judeus e muçulmanos na conquista de Al-Andalus,
contra os povos nativos da América e da Ásia, contra os povos africanos submetidos à
condição de escravidão nas Américas e contra as mulheres europeias queimadas vivas
sob acusação de bruxaria. Com a categoria ego extermino, Grosfoguel identifica uma
conexão entre os quatro eventos, ao mesmo tempo em que a delimita como a origem da
estrutura epistêmica do “sistema-mundo capitalista, patriarcal, ocidental, cristão,
moderno e colonialista” (GROSFOGUEL, 2011, apud GROSFOGUEL, 2016).

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Esses quatro genocídios, que são também e simultaneamente quatro
epistemicídios, formam as bases sobre as quais se constrói o privilégio epistêmico dos
homens ocidentais. A expansão colonial iniciada no emblemático 1492 é, em resumo, a
origem de uma episteme racista/sexista que opera até os dias de hoje nas universidades
ocidentalizadas, por meio dos textos canônicos fundacionais das disciplinas de ciências
sociais e humanidades, bem como a descendência direta destes textos.

Em diálogo com todas essas perspectivas e mediante o rico instrumental teórico-


conceitual que oferecem, estou de acordo com Raewyn Connell quanto a considerar o
processo de produção de conhecimento como uma dentre outras formas de trabalho
(CONNELL, 2011). Ao compreender a produção do conhecimento como trabalho
intelectual, somos levados(as) a perceber as complexas relações de poder que o
envolvem, notadamente as que decorrem da divisão social, sexual e racial do trabalho e
que remontam à experiência colonial iniciada no século XVI e aprofundada no século XIX.

Essa divisão é observável em cada etapa do processo de produção do


conhecimento, conforme a atividade de coleta de dados, processamento teórico desses
dados e disseminação/aplicação dos seus resultados (CONNELL, 2011). Essa dinâmica
obedece, evidentemente, a uma geopolítica do poder em que se observam as assimetrias
entre centro e periferia, replicando a mesma dinâmica de dependência colonial entre
metrópole e colônia. Foi pensando sobre esta assimetria que Raewyn Connell (2011)
chegou ao conceito de metrocentrismo para nomear o fenômeno da divisão imperial do
trabalho intelectual.

Ao considerar que toda teorização e criação de conceitos reificam, em alguma


medida, determinadas experiências sociais, Connell argumenta que as teorias produzidas
pela metrópole reificam as experiências sociais do Norte e as projetam para o restante do
mundo como se fossem experiências universais. O conceito de metrocentrismo sintetiza
esse processo complexo e sofisticado de universalização da experiência euro-americana e
de consequente indiferença em relação às experiências sociais que contestam esse
universalismo. Efeito disso, o metrocentrismo do Norte projeta sua sombra para as
universidades do Sul, dando origem a um comportamento servil em relação às
autoridades intelectuais do Norte. (CONNELL, 2011)

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Este diagnóstico feito por Alatas (1972, 2000), Hountondji (2009), Connell (2011),
Alatas (2008) ou Grosfoguel (2016) sobre a realidade das ciências sociais praticadas nos
países do Sul também espelha a dinâmica de produção e consumo da Teoria da História
no Brasil. Também, por aqui, habituamo-nos a consumir referenciais teóricos euro-
americanos numa relação de dependência acadêmica. Também fomos formados(as) e
seguimos formando para receber instruções das instituições euro-americanas, assim
como reproduzimos agendas de pesquisa norte-globais, aplicando essas referências
teóricas à nossa realidade. Enfim, também por aqui seguimos fornecendo dados e
consumindo modelos teóricos.

Ao considerar, contudo, tais assimetrias e principalmente a imprecisão com que


lugar epistêmico vem sendo utilizado em alguns dos textos mencionados, proponho uma
definição para essa categoria de análise tão promissora e potente. Por meio dela, talvez,
possamos delinear, com alguma nitidez, caminhos próprios de enfrentamento dessa
mentalidade cativa, dessa dependência acadêmica que é, também, uma realidade no
domínio da Teoria da História.

Lugar Social e Lugar Epistêmico


A categoria de lugar social, associada ao nome de Michel de Certeau (2008) e sua
análise sobre a operação historiográfica, é bastante conhecida entre os(as)
historiadores(as) no Brasil. Ela é uma ferramenta importante que possibilita retraçar as
relações de poder de caráter institucional e pessoal por sob o conjunto da produção
historiográfica, implícita nas páginas dos livros de História. Todos(as) temos de
reconhecer que se trata de uma categoria útil à História da Historiografia e outras
abordagens sobre o ofício do(a) historiador(a) e a prática historiográfica.

Mas essa categoria, apesar do vigor, tem alcance limitado. Embora seja capaz de
desvelar “a realidade de bastidores” da produção historiográfica, isto é, as relações de
poder subjacentes à instituição histórica e ativas na fundação e perpetuação dos
institutos, faculdades, departamentos, núcleos, grupos, sociedades acadêmicas,
associações e linhas de pesquisa, a categoria de lugar social não afirma o locus
(epistêmico) de enunciação (BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL, 2016). A questão foi

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Argumento
notavelmente elaborada na seguinte passagem, extraída do artigo “Decolonialidade e
perspectiva negra”, ainda que operando com outro conceito de lugar social:

O fato de alguém se situar socialmente no lado oprimido das relações de


poder não significa automaticamente que pense epistemicamente a
partir do lugar epistêmico subalterno. Justamente, o êxito do sistema-
mundo moderno/colonial reside em levar os sujeitos socialmente
situados no lado oprimido da diferença colonial a pensarem
epistemicamente como aqueles que se encontram em posições
dominantes. Em outras palavras, o que é decisivo para se pensar a partir
da perspectiva subalterna é o compromisso ético-político em elaborar
um conhecimento contra hegemônico (BERNARDINO-COSTA;
GROSFOGUEL, 2016, p. 19).

Estou inteiramente de acordo com essa perspectiva. Uma definição da categoria


de lugar epistêmico não poderia partir senão desse compromisso ético-político
mencionado pelos autores. Por outro lado, penso ser preciso ir além da menção ao
compromisso com a elaboração de um conhecimento contra hegemônico. Considero
fundamental definir caminhos para sua operacionalidade. Devemos perguntar, por
exemplo, mediante quais estratégias podemos marcar o locus de enunciação desse
conhecimento hegemônico; reconstruir o processo de formação do cânone; denunciar o
provincianismo travestido de universalidade; evidenciar as assimetrias não apenas no
domínio da produção do conhecimento, mas também do acesso a ele.

Em outras palavras, a categoria de lugar epistêmico não pode prescindir de uma


dimensão operacional. Ao pensar nisso, elaborei um par de procedimentos que
possibilitem evidenciar a localização geopolítica oculta em modelos teóricos
hegemônicos e de pretensão universalista. Resumidamente, a proposta consiste em
pensar a categoria de lugar epistêmico, simultaneamente, como compromisso ético-
político, como já haviam notado Bernardino-Costa e Grosfoguel (2016), e como
instrumento teórico-metodológico de investigação e análise.

1. Crítica ao cânone (problematizando narrativas fundacionais)


O que nos revela o pensamento canônico? Como essa forma de pensamento pode
ser revelada? Experimento trazer para o campo da Teoria da História a análise de Raewyn

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Connell (2012), respectiva à formação do cânone da teoria sociológica clássica. Esse
experimento pode ser pensado como o mais fundamental exercício de afirmação do locus
de enunciação. Ele consiste, basicamente, em remontar a linhagem dos textos
fundacionais de uma disciplina científica e seus descendentes diretos.

Para identificar o cânone de uma disciplina, basta recorrer aos manuais de


apresentação do campo, aos chamados livros introdutórios. No caso da Teoria da
História, dispomos de livros e artigos que cumprem com esse objetivo, muitos dos quais
escritos e/ou organizados por autores(as) brasileiros(as) nos últimos anos. Entre as
publicações mais recentes, observa-se um fenômeno comum que é, no próprio título da
obra, a referência direta aos historiadores ilustres, sejam eles os fundadores ou seus
sucessores diretos.

A exemplo, publicados em quatro volumes, Os Historiadores - Clássicos da História


(2012; 2013; 2014; 2018) incluem uma vasta lista de historiadores, desde Heródoto até
Roger Chartier. Essa coleção se completa com uma iniciação aos historiadores clássicos
da História do Brasil cuja linhagem, segundo a narrativa e disposição dos capítulos da
obra, se inicia com os primeiros relatos e se encerra com José Honório Rodrigues. Outro
exemplo, Historiadores de nosso tempo (2010) traz ao público uma lista de dezesseis
historiadores(as) contemporâneos(as) de diferentes nacionalidades euro-americanas. Já
A constituição da História como ciência: de Ranke a Braudel (2013), com se pode
depreender, aborda historiadores desde a virada historicista à segunda geração dos
Annales. Há ainda Afirmação da História como ciência no século XX – de Arlette Farge a
Robert Mandrou, cuja lista inclui renomados historiadores marxistas como Christopher Hill
e Edward Palmer Thompson, mas também teóricos do tempo histórico como Reinhart
Koselleck, Jörn Rüsen e Hans Ulrich Gumbrecht, além do controverso Hayden White e do
francês Michel de Certeau.

As tendências desses manuais de história da ciência da história não diferem


substancialmente e seu objetivo, em geral, é o de tornar acessível aos estudantes de
História e demais interessados(as) uma respeitável linhagem de historiadores fundadores
e consolidadores do campo. Somam-se a essas publicações, outras, de autorias variadas,
que aludem ao processo de escrita da História. Há também esforços individuais como o

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de José D’Assunção Barros, que oferece uma perspectiva abrangente sobre o ofício do(a)
historiador(a) e a história da ciência da História em numerosas publicações.

No primeiro caso, encontram-se coletâneas como A História Escrita: teoria e


história da historiografia (2006), A História pensada: teoria e método na historiografia
europeia do século XIX (2010), Lições de História: da história científica à crítica da razão
metódica no limiar do século XX (2013), também História e narrativa: a ciência e a arte da
escrita da história (2016).

Como se pode observar, os últimos 12 anos, aproximadamente, foram bastante


profícuos na produção de coletâneas que remontam ao longo percurso de formação da
história como gênero narrativo e como ciência especializada. Também estão presentes
em parte das coletâneas mencionadas uma certa agenda temática cada vez mais
conhecida do público brasileiro. Em conjunto, essas obras são expressões de um processo
de consolidação do campo da Teoria e História da Historiografia no Brasil,
particularmente impulsionado pela criação da Sociedade Brasileira de Teoria e História da
Historiografia (SBTHH), em 2009.

Afora algumas divergências, o que há de comum entre essas coletâneas de textos


e excertos? É certo que há variações quanto ao ponto de partida, algumas recorrendo aos
“pais fundadores” do gênero historia (Heródoto e Tucídides), outros aos pais fundadores
da história científica (Leopold von Ranke, Johann Gustav Droysen, T. Mommsen, Langlois-
Seignobos, dentre outros). Em todo caso, com pequenas modificações, essas obras
inscrevem as raízes da reflexão histórica na Antiguidade Clássica e descrevem o processo
de institucionalização da ciência da História no século XIX e, consequentemente a
constituição de dois grandes paradigmas: o historicismo e o positivismo. Ambos os
paradigmas fundacionais da disciplina histórica são apresentados como uma resposta às
transformações ocorridas na Europa desde o final do século XVIII, notadamente a crise no
pensamento europeu originada pelas revoluções francesa e industrial, a gestação de uma
nova concepção de tempo e de história, além de uma tendência à valorização do
conhecimento científico e de um otimismo alimentado pelo desenvolvimento técnico-
científico.

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Em geral, o que ensinam os manuais de introdução à história da ciência da história,
é que destacados autores como Leopold von Ranke, Wilhelm von Humboldt, Johann
Gustav Droysen, Wilhelm Dilthey, Langlois e Seignobos elaboraram um programa teórico-
metodológico e uma sistematização do conhecimento histórico que resultou na
disciplinarização da história, no final do século XIX. Não raro, esse momento fundacional é
genericamente qualificado de “positivista”, em função de um suposto excesso de
confiança metódica e busca por objetividade e imparcialidade no trato das fontes,
embora muitos sejam os esforços para contestar essa interpretação, recriminada pelo
simplismo.

Demarcado esse período, a linha sequencial dessa história inclui a renovação


operada pelos historiadores dos Annales, seguida de outros paradigmas que marcaram a
prática historiadora do século XX, como a Micro História, a Escola Marxista Britânica, a
História Cultural, a Nova História Cultural e o Novo Historicismo. Nesse sentido, de um
conjunto restrito e privilegiado de textos fundacionais da disciplina histórica, é traçada
uma filiação, “uma linha direta que descende deles para nós”, como afirma Connell a
respeito dos fundadores da sociologia e seus descendentes diretos (CONNELL, 2012, p.
311).

A formulação dessa lista de notáveis historiadores fundacionais da disciplina


histórica, embora costume vir acompanhada de uma análise das condições políticas em
que se encontravam os autores quando escreviam, pouco se referem à realidade exterior
às fronteiras do continente europeu. Costuma-se, isso sim, referenciar o historicismo
como parte do processo de unificação tardia da Alemanha e da tentativa de garantir os
interesses germânicos na Europa, ou o desenvolvimento da escola metódica francesa
como desdobramento da guerra franco-prussiana. Dificilmente, contudo, há qualquer
menção sobre o cenário de disputas entre as potências europeias, consolidadas ou em
processo de consolidação, por novos domínios coloniais, com destaque para o que
ocorria nos domínios coloniais.

É preciso notar que esse processo de fundação da disciplina histórica se desenrola


no interior da cultura imperialista europeia do século XIX. Como afirma Connell a respeito
da criação da sociologia:

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Os lugares onde a disciplina foi criada foram os centros urbanos e
culturais dos principais poderes imperiais na grande onda do
imperialismo moderno. Eles eram a “metrópole”, no termo corrente
francês, para o abrangente mundo colonial. Os intelectuais que criaram a
sociologia eram muito conscientes disto (CONNELL, 2012, p. 315).

Ao ter tais evidências em mente, a leitura que se pode fazer sobre a fundação e
sistematização da disciplina histórica muda consideravelmente. Diante disso, fica difícil
ignorar que, no contexto de institucionalização de disciplinas como a história e a
sociologia, a procura por provas irrefutáveis do progresso/desenvolvimento se
alimentava do contraste entre as sociedades metropolitanas e as sociedades colonizadas,
ditas primitivas ou “mais primitivas”. (CONNELL, 2012) O olhar dos historiadores
fundacionais era, portanto, um olhar imperial.

Se considerarmos casos de autores contemporâneos como Reinhart Koselleck e


Jörn Rüsen que, intencionalmente, se dedicaram à atualização de alguns desses trabalhos
fundacionais – de Dilthey e Droysen, respectivamente – a necessidade de leitura crítica
dessas referências torna-se ainda mais importante (PEREIRA: 2013). Afinal, em alguma
medida se atualizam também aqueles olhares imperiais, especialmente quando está em
jogo a elaboração de interpretações de pretensão universalista. A crítica a esse tipo de
interpretação é o objeto do segundo procedimento que aqui proponho como forma de
afirmação do locus de enunciação.

2. crítica ao a priori das teorias universalistas


Um passo importantíssimo na marcação do locus de enunciação é, sem dúvida, a
problematização do a priori das teorias universalistas. Problematizá-las significa denunciar
o provincialismo travestido de universalidade, significa desmascarar o irredutível
particularismo destas interpretações e a sobranceria de proclamá-las universais. Gostaria
de propor esse caminho a partir de um breve estudo de caso. Me refiro à teoria da
História de Jörn Rüsen, autor cujo prestígio entre os(as) pesquisadores(as) brasileiros(as)
cresceu significativamente na última década, especialmente no campo da Didática da
História.

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Assim como outros, Rüsen (2001) parte de uma constante antropológica, de uma
(suposta) experiência humana universal como pressuposto teórico. Pelo caráter de
pressuposto estamos diante de uma assertiva que nos é apresentada sem qualquer
contraste e sem qualquer preocupação com a verificabilidade de sua pertinência
(empírica e teórica). Somos apenas apresentados(as) a um pequeno conjunto de
pressupostos que pouco a pouco vai se dissolvendo até tornar-se quase imperceptível.

Como obra de sistematização, a Historik, de Rüsen (2001; 2007; 2010), disponibiliza


um conjunto amplo de recursos conceituais, reflexivos e analíticos, cujo alcance é
compatível com a extensão do saber histórico em sua inteireza. Tendo em vista a
amplitude do projeto de Rüsen e, a rigor, de todo trabalho semelhante de síntese, seus
pressupostos tendem a ecoar em cada dependência e em cada vão deste edifício teórico,
cuidadosamente arquitetado. Sendo assim, o apontamento da inconsistência dos
alicerces tende a abalar essa segurança e revelar a debilidade da interpretação
universalista. Vejamos.

O primeiro pressuposto teórico da teoria de Rüsen (2001) nos é apresentado como


uma constatação antropológica:

Pressuposto dessa definição [de consciência histórica] e pilar de toda a


argumentação seguinte é a tese de que o homem tem de agir
intencionalmente para poder viver e de que essa intencionalidade o
define como um ser que necessariamente tem de ir além do que é o caso,
se quiser viver no e com que é o caso. A consciência histórica está
fundada nessa ambivalência antropológica: o homem só pode viver no
mundo, isto é, só consegue relacionar-se com a natureza, com os demais
homens e consigo mesmo se não tomar o mundo e a si mesmo como
dados puros, mas sim interpretá-los em função das intenções de sua
ação e paixão, em que se representa algo que não são (RÜSEN, 2001, p.
57).

Só? Como foi que Rüsen chegou a tal conclusão? Está implícita uma longa tradição
do pensamento filosófico, restrito à experiência sócio histórica do Ocidente europeu, que
oculta outras metafísicas e ignora, sem cerimônia, outras epistemologias não ocidentais.
Numa única passagem, Rüsen silencia quaisquer formas de vivência e de pensamento,
que contrastem com essa experiência particular. É a mera presunção de universalidade a
partir da projeção da própria experiência como se fosse toda a experiência humana

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possível. Esse é um dos efeitos da subjetividade solipsista problematizada por Dussel
(2009), essa metafísica do ego individual moderno que presume a existência de si
eclipsando a existência de outros. Continuemos.

Decorre dessa pressuposição de Rüsen uma outra que é fundamental para


entender os significados de pensamento histórico e de consciência histórica. Refiro-me ao
princípio segundo o qual haveria, de um lado, uma unidade originária entre as dimensões
de passado, presente e futuro, experimentada como uma forma de insciência do tempo e,
de outro, a experiência de diferenciação intencional destas três dimensões, na forma de
uma consciência do tempo. Esse binômio insciência/consciência do tempo, que aqui
proponho como ferramenta de análise, é central para a visualização da falsa
universalidade da teoria de Rüsen e para a identificação da manutenção de um princípio
teleológico na concepção que o autor tem da história.

Na Historik de Rüsen, o duplo operador da insciência do tempo e da consciência do


tempo se refere a uma diferença qualitativa na capacidade de orientação temporal. No
nível desta diferença concorre uma outra, complexa e sutil, entre pensamento histórico e
consciência histórica. Essa diferença é quase imperceptível e sugere uma certa
ambiguidade do conceito de consciência histórica, ora utilizado por oposição a
pensamento histórico, ora como seu correlato.

Ao considerar essa ambiguidade, talvez seja melhor concentrarmos não na


definição de consciência histórica, mas em sua dimensão ativa, isto é, naquilo que ela
realiza. E nesse sentido, cabe perguntar pelos resultados que ela produz. Afinal, se as
operações realizadas pela consciência histórica são descritas por Rüsen em diversas
passagens, muito mais difícil é encontrar uma síntese a respeito daquilo que ela é.

Dito isso, podemos entender porque não se deve ao acaso a apresentação deste
conceito vir sempre acompanhada de informações adicionais. É por meio delas que Rüsen
descreve o lugar que a consciência histórica ocupa na interpretação da dinâmica do agir e
sofrer humano no tempo e, consequentemente, no contexto geral de sua Historik.
Testemunhos disso, as passagens a seguir nos servem de indício desta dimensão ativa
própria à consciência histórica. Nas palavras do autor:

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A consciência histórica é o trabalho intelectual realizado pelo homem
para tornar suas intenções de agir conformes com a experiência do
tempo. Esse trabalho é efetuado na forma de interpretações das
experiências do tempo. Estas são interpretadas em função do que se
tenciona para além das condições e circunstâncias dadas da vida (RÜSEN,
2001, p. 59).
Entendo por construção histórica de sentido a suma dos procedimentos
mentais e atividades mediante as quais a experiência do passado é
interpretada e apresentada como “história”. Com esta categoria
descrevo, portanto, o que é a atividade da consciência histórica (RÜSEN,
2006, p. 135).

“Trabalho intelectual” ou “suma de procedimentos mentais e atividades”, a


consciência histórica atua com a função de interpretar e apresentar a experiência do
passado como “história”. Isto é, ela relaciona as experiências do passado às intenções
quanto ao futuro de modo que se extrapole, temporalmente, as circunstâncias dadas da
vida. A consciência histórica, por conseguinte, tem suas raízes fincadas naquela
supostamente universal “ambivalência antropológica”: a de que sofremos todos de uma
carência estrutural que nos move sempre a ir além do que é o caso num dado tempo
presente.

Essa ambivalência, afirma, é uma resposta humana à ação do tempo natural


experimentado como obstáculo à ação, de modo que o sujeito é forçado a lidar com as
transformações de seu mundo e de si mesmo, se pretende continuar a realizar suas
ações. E, uma vez que a contingência é uma constante na vida dos sujeitos, lidar com as
interrupções, mudanças de curso, boas e más surpresas é também uma exigência que se
faz permanentemente presente. Afinal, entre expectativa e ação, atua sempre um
universo de imprevisibilidade. Mais uma vez, toda a argumentação de Rüsen se ampara
na presunção de universalidade de uma dentre outras experiências possíveis.

Se, como afirma Rüsen, somente é possível viver no mundo se o interpretarmos


em função de nossas próprias intenções e paixões, sempre ameaçadas pela ação da
contingência, consciência histórica é também uma atividade da consciência humana em
geral, uma vez que deita raízes no cotidiano da vida prática, “nas situações genéricas e
elementares” do mundo da vida. Nisso consistem “o pressuposto e o pilar” de toda a
argumentação de Rüsen, apresentados especialmente em Razão Histórica (2001). Mas isso
não é tudo.

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Além dos resultados produzidos pela consciência histórica, há outra questão, tão
fundamental quanto a primeira. Trata-se do processo de desenvolvimento de suas
competências. E aqui parece residir a ambiguidade entre os conceitos de pensamento
histórico e consciência histórica. Como o processo de formação da consciência histórica é
gradativo, não existindo um “marco zero” a partir do qual se desenvolve, ele se dá
sempre a partir de um quadro prévio de sentido. Isso significa que ela enforma um tipo,
ou manifestação específica do pensamento histórico.

Com outras palavras, se pensamento histórico serve para se referir a toda e


qualquer forma de interpretação da experiência humana no tempo, incluindo as
inscientes de sua própria natureza, consciência histórica serve especificamente à
significação do processo de construção de sentido pela articulação intencional das três
dimensões temporais. A questão fica mais nítida na seguinte afirmação de Rüsen:

A consciência histórica representa, portanto, uma diferenciação e uma


expansão da consciência do tempo, realizada na tradição como
orientação temporal da vida prática. Na medida em que só descobre o
passado, como passado, nessa orientação, a consciência histórica projeta
a orientação temporal da vida prática atual para trás, de forma que as
lembranças possam ingressar nesta a fim de superar os déficits de
orientação temporal intrínsecos à tradição, diante das novas experiências
do tempo e expectativas no tempo da vida prática atual. (RÜSEN, 2001, p.
84)

Como instituidora de sentido, a consciência histórica serve, enfim, à elaboração de


um curso de ação cujo nexo ou continuidade entre as dimensões temporais revela a
atualidade da experiência passada para o presente e, consequentemente, para as
expectativas futuras. Como essa continuidade não é dada, mas construída, o principal
resultado que ela produz é o domínio intelectual da contingência. Mas para chegar a este
resultado, a consciência histórica obedece a certas “etapas de desenvolvimento
estrutural”. E estas estruturas, afirma, podem ser explicadas na forma de uma tipologia
geral do pensamento histórico.

O curioso é que, apesar de se referir ao pensamento histórico, o esquema dessa


tipologia recorre a quatro diferentes tipos da consciência histórica (RÜSEN, 2010). Nesse
caso, ambos os conceitos parecem dizer absolutamente a mesma coisa. Por outro lado,

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se nos atermos às “origens da consciência histórica” apresentadas por Rüsen em Razão
Histórica (2001), veremos que o que a diferencia, fundamentalmente, do pensamento
histórico é a tensão entre insciência do tempo e consciência do tempo.

Nesse caso, se os critérios de orientação próprios ao pensamento histórico são


“pré conscientes”, ou “pré históricos” – o que equivale a dizer que são meros reflexos da
unidade de sentido originária entre as três dimensões do tempo – os produzidos pela
consciência histórica são “históricos”, ou seja, resultam de uma articulação intencional,
cujos resultados extrapolam as chances de orientação previamente disponíveis na
tradição (pré-história). E mais, se no primeiro caso orienta-se apesar da não percepção da
contingência, no segundo há o domínio intelectual dela, donde se conclui que a
consciência histórica garante, formalmente, o domínio sobre o tempo natural, promovido
pela determinação de objetivos e consequente superação das condições dadas na
realidade do tempo presente.

Se a interpretação do passado é sempre uma atividade a posteriori e, mais do que


isso, é uma exigência que se faz presente sempre que os critérios prévios de sentido não
são mais suficientes, a consciência histórica é sempre despertada por “estalos”. São
aqueles momentos em que a tradição não mais é capaz de atribuir sentido ao presente,
ou ao menos não sem passar por uma crítica de princípios e valores. São aqueles
momentos em que, em síntese, (supostamente) sofremos a ação de um tempo
impediente e independente da nossa vontade, a transformar nosso mundo interno e
externo. E esse movimento é, nesta perspectiva, inevitável, ou seja, ele irá
necessariamente acontecer e se repetir porque é da própria dinâmica da vida.

Com isso, quero dizer que a consciência histórica, em Rüsen, só admite uma
tipologia em quatro modos por ser concebida como uma potência em contínuo e
ininterrupto desenvolvimento. Com outras palavras, não há propriamente uma
consciência histórica de tipo tradicional ou exemplar, senão uma pré-história do agir que,
em algum momento, tende a ser submetida à crítica. Nas palavras de Rüsen:

Nessa pré-história, o passado ainda não é, enquanto tal, consciente, nem


inserido, com o presente e o futuro, no conjunto complexo de uma
“história”. Impossível, portanto, querer antecipar e localizar nessa

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síntese originária das três dimensões temporais, nessa pré-história dos
feitos, todos os resultados interpretativos da consciência histórica, de
forma que não lhe sobrasse espaço algum para realizar uma apropriação
consciente do passado, reflexiva, interpretativa, pois, no âmbito das
referências de orientação da vida pratica contemporânea (RÜSEN, 2010,
p. 74-75).

Ao admitir a crítica como prerrogativa de seu próprio campo e modo de atuação, a


consciência histórica não poderia, efetivamente, ocupar um lugar ou desenvolver uma
atividade que não fosse, por princípio, a superação do tradicional e do exemplar. É por
esse e não por outro motivo que a consciência histórica significa expandir a consciência do
tempo.

Em síntese, pensar historicamente significa, para Rüsen, construir sentido sobre a


experiência e “sentido” só pode ser construído mediante operação da consciência
histórica. Nesse caso, a consciência histórica é entendida como “operação mental” ou
“trabalho intelectual” comum a todo pensamento histórico. Por outro lado, quando o que
está em questão são os resultados que ela produz, consciência histórica se difere do
pensamento histórico em geral na medida em que assinala uma expansão da consciência
do tempo. Em poucas palavras, consciência histórica ora serve para se referir a uma
operação genérica e elementar do pensamento histórico, ora para se referir aos
resultados de seu pleno desenvolvimento.

Para simplificar, é possível dizer que a consciência histórica tem duas dimensões: a)
uma dimensão ativa (potência), relacionada àquilo que ela realiza, portanto, à construção
histórica de sentido; b) e uma dimensão processual (estrutura), correspondente ao
desenvolvimento de suas competências, portanto, pertencente ao domínio da formação
(Bildung). Em conjunto, o que ambas as dimensões revelam é a realização plena desta
potência que é a razão histórica.

A Historik de Rüsen, nesse sentido, não pode ser compreendida sem o


reconhecimento de uma racionalidade especificamente histórica. Afinal, a razão histórica
é concebida por ele como fundamento antropológico de todo pensamento histórico
(tradição), e seu alcance se deve à pressuposição de uma universalidade da experiência
humana de construção e perda de sentido.

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Se, como afirmou Pedro Caldas (2004, p. 44.), “sempre se pode falar em teleologia
quando se verifica um descompasso entre o desenvolvimento e a consciência deste
mesmo desenvolvimento”, temos o direito de chamar teleologia mesmo quando esta
admite a liberdade de ação. Com outras palavras, ainda que presuma conteúdos variáveis,
a teoria da história de Rüsen permanece teleológica porque reafirma a necessidade de
um sentido para o devir histórico, ainda que este não seja predeterminado e sofra a
exigência de constante reelaboração.

A teleologia resulta da relação mimética (supostamente) existente entre tempo


natural e tempo histórico, ou consciência histórica. Ao pontuar a manutenção de um viés
teleológico na perspectiva de Rüsen a questão está menos em negar a natureza
ontológica do tempo do que em evidenciar o modo como esta ontologia é invocada em
direção à elaboração de uma espécie de “segunda natureza” ou “ontologia artificial”.
(BUTLER, 2014)

Esse processo pode ser percebido pelo reencontro entre “tempo natural” e
consciência histórica, cujo primeiro passo é o reconhecimento da ação da contingência
sobre o sujeito, e o segundo o domínio da imprevisibilidade do tempo pela projeção
utópica do futuro. O reencontro se processa pela identificação desta “segunda natureza”
(consciência histórica) como coincidente ao processo de tomada de consciência da
realidade do tempo “em si mesmo”. Por esse motivo, história se confunde com o
continuum temporal, ou se preferir, confunde-se com a descoberta e conscientização de
uma realidade que é pressuposta desde o princípio.

Diante disso, cabe-nos perguntar sobre possíveis desdobramentos da pretensão


de universalidade de modelos teóricos como o fornecido por Jörn Rüsen. Em linhas
gerais, penso que a crítica ao a priori de teorias como esta deve ser feita para evitar o que
Chimamanda Adichie (2009) denominou o “perigo de uma história única”, em uma
conferência memorável sobre sua trajetória como leitora e escritora literária. Essa crítica
deve funcionar como antídoto às narrativas solipsistas e de forte teor epistemicida. Ela
também deve impedir a perpetuação da dicotomia sujeito-objeto que reproduz as
assimetrias e hierarquias entre formas de conhecimento, como a problemática distinção
entre “saberes” e “epistemologias”, ou “cultura” e “pensamento científico”. Ela deve,

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enfim, interromper o circuito de perpetuação desta estrutura geopolítica que opõe o
Centro como proeminente lugar de elaboração das teorias e a Periferia como lugar de
coleta de dados e aplicação de resultados (CONNELL, 2011).

Considerações Finais:
Depois desse excurso sobre a geopolítica da produção intelectual, é importante
perguntar sobre as possibilidades de superar os limites da dependência. Algumas
sugestões podem ser encontradas nos trabalhos já mencionados na primeira parte deste
texto, respectivos às teorias sociais. No mesmo campo também podemos encontrar
caminhos promissores na abordagem de Marcelo Rosa (2015), especialmente a proposta
de elaboração de uma “sociologia não-exemplar”.

No caso da teoria da História, temos um desafio anterior, pois diferente da


realidade das ciências sociais, estamos falando de uma discussão que nós ainda não
fizemos. Nesse sentido, antes de pensar em superar a dependência, nosso campo exige
que enxerguemos e problematizemos a dependência. Essa é, inclusive, a minha
justificativa para estas reflexões teóricas mediante a mobilização deste debate sobre a
geopolítica da produção intelectual, recorrendo às teorias sociais críticas da dependência
acadêmica.

Um passo importante neste debate tende a ser dado mediante o conhecimento


de uma bibliografia riquíssima que possibilita contrapontos à teoria da História de caráter
universalista. Para ficar com o mesmo exemplo, Rüsen tem sido utilizado como referência
teórica inconteste em diversas pesquisas referentes à Didática da História. Alguns de seus
livros mais recentes que aproximam o debate sobre o novo humanismo e a comunicação
intercultural já foram traduzidos para o português e seguem influenciando as pesquisas
naquele campo.

Que impacto, contudo, teria sobre tais pesquisas o conhecimento de outras


abordagens como as desenvolvidas por intelectuais latino-americanos(as) sobre
educação intercultural em perspectiva crítica, como as propostas de Fidel Tubino (2002) e
Catherine Walsh (2007)? Ou, ainda, que impactos teriam o conhecimento de propostas

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pedagógicas formuladas no interior do Movimento Negro Brasileiro, como é o caso da
Pedagogia Interétnica de Salvador (1978), estudada por Ivan Costa Lima (2004)?

Outro caminho promissor é, sem dúvida alguma, ouvir as demandas estudantis.


Quantos(as) de nós, professores(as), não fomos confrontados por estudantes que
questionam uma bibliografia que não investe na diversidade de perspectivas com recorte
de gênero e raça, por exemplo? Quantos(as) de nós ouvimos essas demandas,
modificamos a bibliografia e investimos em novas leituras? Tudo isso requer, antes de
tudo, uma mudança de hábitos.

Nós somos diariamente bombardeados(as) com convites para mudar


determinados hábitos se quisermos garantir uma vida melhor. Esses convites são feitos
por médicos(as), familiares e até desconhecidos que se sentem no direito de chamar
nossa atenção para a importância de parar de fumar, perder peso, comer alimentos
orgânicos, reduzir o açúcar ou praticar exercícios físicos. Esses convites são geralmente
incômodos, às vezes inconvenientes e podem, ainda, ser invasivos. Não precisamos
concordar com eles, podemos inclusive boicotá-los deliberadamente em sinal de
resistência. Quem não o faz?

Fenômeno parecido ocorre com o trabalho intelectual. Temos hábitos


profundamente arraigados e nem sempre queremos ou somos capazes de mudá-los. A
decisão de mudar deve ser sempre fruto de uma escolha, de uma escolha epistêmica. O
que, contudo, me parece fundamental, é ter ciência das relações geopolíticas geralmente
invisíveis em nossas referências bibliográficas. Algo como “saber a procedência” do que
nos alimenta e, preferencialmente, privilegiar o que preparamos nós mesmos de acordo
com nossas próprias necessidades, recorrendo a uma infinidade de ingredientes
disponíveis. Em resumo, importante mesmo, me parece, é superar a subnutrição
epistemológica e metafísica, investindo em um cardápio mais diversificado.

Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 24, p. 88 - 114, abr/jun. 2018. p.110
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Tempo
Precisamos falar sobre o lugar epistêmico na Teoria da História
Ana Carolina Barbosa Pereira

&
Argumento

Recebido em 15/12/2017
Aprovado em 19/05/2018

Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC


Programa de Pós-Graduação em História - PPGH
Revista Tempo e Argumento
Volume 10 - Número 24 - Ano 2018
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Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 24, p. 88 - 114, abr/jun. 2018. p.114

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