Artigo Sobre Karl Marx

Fazer download em docx, pdf ou txt
Fazer download em docx, pdf ou txt
Você está na página 1de 7

5 DE MAIO DE 1818, NASCE UM GÊNIO

Por Fábio Guedes Gomes 03/05/2018


FÁBIO GUEDES
Doutor em Administração com ênfase em Instituições e Políticas Públicas
[NPGA/UFBA]. Mestre em Economia Regional e Graduado em Ciências
Econômicas [UFPB]. Professor da Graduação em Ciências Econômicas da
Universidade Federal de Alagoas [UFAL] e das Pós-graduações em Economia
Aplicada [CMEA], em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia
para Inovação [PROFNIT] e em Administração Pública [PROFIAP]

No dia 5 de maio de 2018 comemora-se o bicentenário de nascimento


de Karl Marx. Natural da cidade de Trier, região da Renânia, antiga Prússia
Imperial, hoje Alemanha, de família judia, o Velho Mouro, como também era
chamado, é sem dúvida o pensador social mais lido da história do século XX.
Um dos mais fecundos analistas da sociedade moderna, com admiradores de
sua obra distribuídos pelos quatro cantos do planeta, onde também se encontra
um volume não desprezível de antipatizantes e críticos.

Suas ideias, em grande parte desenvolvida em parceria com Friedrich Engels,


companheiro inseparável de produção intelectual e compromissos políticos,
influenciaram os destinos de parcela considerável da humanidade, incalculáveis
cursos e disciplinas e formação de milhares de indivíduos. É claro que em
proporção ao tamanho dessa influência também não se deve subestimar a
magnitude das distorções sociais e políticas que derivaram da leitura enviesada
de suas teses e argumentos.

Assim como autores importantes, por exemplo, da economia política inglesa,


como Adam Smith e David Ricardo, e suas obras se tornaram clássicas porque
registraram, com elevado grau de sofisticação e compreensão, a realidade social
que se descortinava na época em que escreviam, Marx foi e continua sendo uma
das leituras mais oportunas para se reconstruir veredas de entendimento sobre
a formação e desenvolvimento da sociedade capitalista.
Se nossa preocupação com o mundo moderno e a natureza que nos cerca
obriga-nos passar, por exemplo, pela leitura de Sigmund Freud, Albert Einstein
e Charles Darwin, Karl Marx alcança a mesma estatura quando assumimos como
imprescindível que nosso presente está contido em nosso passado. Nesse
sentido, o grande ensaísta irlandês George Bernard Shaw, um dos fundadores
da London School of Economics, foi assertivo: “Ele realizou a maior proeza
literária que um homem pode almejar. Marx mudou a consciência do mundo”

Poderia apontar uma série de atributos que justificariam a necessidade de


continuar lendo Marx em pleno século XXI. A maioria dos argumentos em
contrário, que já constatei ao longo de minha vida acadêmica, se assenta em
bases explicativas frágeis ou toma posição científica aderente aos espectros
ideológicos e políticos completamente comprometidos com o status quo da
sociedade capitalista, sem ao menos vislumbrar, historicamente, a possibilidade
de sua superação, como aconteceu ao longo da formação da humanidade com
antigos regimes.

Invariavelmente, as críticas levantadas à Marx e suas obras são mais de cunho


moral e políticas, expondo em geral os insucessos dos regimes ditos “socialistas
ou comunistas” adotados ao longo do século XX, como se o próprio Marx, que
faleceu em 1883, avalizasse o que viria acontecer[1]. Em vários países onde
mudanças fundamentais aconteceram e o capitalismo foi preterido, o nome de
Marx foi evocado como principal referência, como guia central para essas
mudanças. Certamente esse aspecto colaborou, especialmente, para demonizar
os trabalhos de Marx por parte das elites intelectuais que não aceitavam
qualquer tipo de experiência alternativa ao capitalismo e, ainda, testemunhavam
ou conheciam os erros cometidos pelas mesmas.

Mas, no geral, o que há mesmo é muita distorção do pensamento marxiano ou


falta mesmo de compreensão, pois sua catedral foi erguida com a argamassa da
filosofia alemã e amarrações da economia política inglesa e do socialismo
utópico francês. É muito comum se criticar Marx usando trechos seus aqui e
acolá, descontextualizados. Nesse campo a ciência vai para o banco de reservas
e entra na escalação o poder de especulação, e o que mais encontramos são
críticas pseudocientíficas.

Costumo dizer em sala de aula, quando ministro a disciplina Economia Política,


que estudar a teoria marxiana e sua crítica à economia política de seu tempo,
exige se desprender de qualquer tipo de preconceito ideológico e encarar a
missão de maneira desinteressada, pois dessa maneira o leitor iniciante se
defrontará com o enorme edifício, teórico e filosófico, que o autor alemão erigiu,
com suas virtudes, mas também várias falhas.

As crises econômicas da última década reascenderam o interesse pela leitura


de Marx. O que não faltam são reedições de seus livros[2] e novas biografias,
muito bem escritas, abordando temas sobre a vida intelectual, política e pessoal
do autor de diferentes ângulos. Até mesmo algumas delas de viés mais crítico,
tratam o Velho Mouro com muito respeito, com o cuidado de não caírem numa
abordagem reducionista e preconceituosa, piegas.[3].

Ano passado a indústria cinematográfica lançou “O Jovem Marx”, do diretor


haitiano Raoul Peck, abordando os primeiros momentos de sua militância política
e reflexões críticas, até desembocar na produção de um dos documentos mais
acessados da política mundial, o Manifesto Comunista, escrito em parceria com
Engels e lançado em fevereiro de 1848[4].

Seria mais fácil abordar a obra de Karl Marx utilizando-se do que autores,
simpatizantes e defensores, já escreveram ou falaram sobre o autor alemão.
Entretanto, nos basta para esse artigo comemorativo os argumentos de uma das
mais privilegiadas mentes do século XX, autor erudito e um grande economista:
Joseph Schumpeter, o enfant terrible da Escola Austríaca, oráculo das teses
clássicas da inovação tecnológica e sua função na dinâmica da economia
capitalista.

No ano de 1942, Schumpeter publicou Capitalismo, Socialismo e Democracia.


Ao contrário da maioria absoluta dos autores da Escola Austríaca, como Ludwig
von Mises e Friedrich Hayek, tão apreciados na contemporaneidade,
Schumpeter acreditava na inevitabilidade da superação da economia capitalista
e a ascensão de um sistema socialista completamente contrário ao vislumbrado
pela maioria dos defensores do marxismo, mesmo que esse processo fosse,
também, contra sua vontade e ideologia política. Para se contrapor ao eixo
central do pensamento socialista ortodoxo dominante em sua época,
Schumpeter elabora uma crítica demasiadamente científica aos eixos centrais
dos argumentos da obra de Marx.

Na primeira parte do livro mencionado acima, Schumpeter dedica cerca de cem


páginas para destrinchar o pensamento marxiano. Evidentemente que comete
alguns deslizes, mas como afirma Vaz Costa, “as ideias de Karl Marx, a quem
Schumpeter admirava e respeitava, representaram uma das maiores influências
intelectuais em sua formação científica”.[5] De qualquer sorte, o austríaco
guardava grande autonomia e numa tradição podemos dizer dialética, buscava
em suas inquietações avançar sobre o pensamento dos grandes pensadores
que figuravam em sua biblioteca. Isso também aconteceu, principalmente, em
relação aos argumentos e teses de Marx. Mas, o quê sobre o Velho Mouro
Schumpeter tem a nos dizer nesse momento de seu bicentenário de
nascimento?

Schumpeter faz questão de mencionar que o autor alemão era extremamente


erudito e não se comparava com os “professores vulgares de sociologia que não
enxergavam um palmo adiante do nariz”[6], e tinha a capacidade de perceber os
valores que uma civilização reunia, por mais afastado dela estivesse. Nesse
sentido, para ele, Marx conseguiu traduzir melhor que muitos economistas
“genuinamente burgueses” as realizações do capitalismo, sua lógica orgânica e
necessidade histórica. Nesse aspecto, Marx assume todo o espírito de um
grande pensador da tradição iluminista. No Manifesto Comunista isso é
cristalino:

“A burguesia desempenhou na História um papel


iminentemente revolucionário [...] A burguesia foi a primeira a
mostrar do que a atividade humana pode realizar; criou
maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos
romanos, às catedrais góticas [...] A burguesia não pode existir
sem revolucionar incessantemente os instrumentos de
produção, por conseguinte, as relações de produção e [...]
todas a relações sociais [...] A burguesia arrasta [...] todas as
nações [...] para a civilização [...] criou grandes centros urbanos
[...] e, assim, tirou uma grande parte da população do
embrutecimento da vida rural [...] a burguesia, durante seu
domínio de classe apenas secular, criou forças produtivas mais
numerosas e mais colossais do que juntas fizeram todas as
gerações passadas”.[7]

Realizar uma interpretação econômica da história, é segundo Schumpeter, um


dos grandes feitos individuais da sociologia feito por Marx no século XIX,
inteiramente original, sem precedentes na literatura francesa e alemã. Ainda, ele
defende Marx contra o mal-entendido de que essa interpretação econômica da
história seja sinônimo de materialista.[8]

Do ponto de vista da análise econômica, Schumpeter ressalta que em Marx o


que não lhe cabia era a falta de conhecimento ou preparo na técnica da análise
teórica, ou seja, um autor extremamente sofisticado na metodologia, com um
cabedal de conhecimento sobre os principais autores de sua época. E ressalta
o caráter radical em Marx, uma característica fundamental na sua trajetória
intelectual: “criticando e rejeitando ou aceitando e coordenando, Marx ia ao fundo
das coisas”.[9]

A longa resenha crítica de Schumpeter sobre Marx é baseada em sua leitura do


primeiro volume de O Capital, mesmo com algumas passagens analíticas de
outros trabalhos do alemão. Sua pretensão é abordar eixos fundamentais das
teses, como, por exemplo: teoria do valor, luta de classes, ciclos econômicos,
crises, revolução e socialismo etc. O grande mérito de Schumpeter é construir
sua crítica com argumentos científicos, sem resvalar para o julgamento moral ou
simplório. Trata-se, de fato, de um leitor muito atento e intelectual sofisticado,
que soube valorizar e beber da fonte do autor alemão, especialmente na
construção de pensamento contra as teses da economia estacionária. Por essa
razão ele afirma que “Marx enxergou mais claramente esse processo de
mudança industrial e entendeu a sua importância essencial mais plenamente
que qualquer economista do seu tempo”[10].

É justamente por causa do entendimento sobre a dinâmica capitalista, sua


capacidade de revolucionar os métodos de produção e as relações sociais,
introduzir novos produtos e mercadorias, criar novas oportunidades de negócios
inéditas, subverter a ordem das coisas e progredir sob momentos de turbulência,
que Schumpeter considera Karl Marx um autor imprescindível.

Marx vai além de um mero expectador, um intérprete da sociedade moderna. Ele


descortinou as próprias contradições do sistema, as barreiras ao seu próprio
desenvolvimento e seus aspectos consequentes sobre a vida em sociedade,
especialmente dos elos mais frágeis do sistema. Nesse sentido, o conceito de
liberdade em Marx extrapola a interpretação usual lhe dada. Tomando o risco de
ser bastante resumido, liberdade em Marx pode ser compreendida como a
superação absoluta dos mecanismos que mantém os homens acorrentados, de
maneira objetiva ou subjetiva, a formas de opressão e exploração por interesses
objetivos de acumulação de poder e riqueza [11]. Liberdade não significa apenas
formas de comportamento humana e remoção de barreiras ao seu exercício, seja
na esfera política ou econômica. Assim, como um autêntico pensador iluminista,
liberdade para Karl Marx é mais abrangente do que apenas as condições
suficientes em que os homens possam se mover.

Enquanto a sociedade moderna, transfigurada em pós-moderna, conserva seus


alicerces essenciais, suas características fundamentais, as relações sociais de
produção, o regime jurídico de apropriação e propriedade, a cultura do consumo
e da riqueza e a necessidade, ad infinitum, de produção econômica material, o
Velho Mouro continuará figurando como essencial na compreensão desse
tempo.

NOTAS

[1]Sobre esse ponto, Shumpeter afirma corretamente que no caso da experiência


soviética, “não deixa de ser característico de tais processos de canonização que,
entre o verdadeiro significado da mensagem de Karl Marx e a prática e a
ideologia bolchevista, abra-se pelo menos um grande abismo como o que
separava a religião dos humildes galileus da prática e da ideologia dos príncipes
da Igreja ou dos senhores da guerra da Idade Média”. SCHUMPETER, Joseph
Alois. Capitalismo, Socialismo e Democracia. São Paulo: Editora da UNESP,
2017, p. 18.
[2]A Editora Boitempo executa um extraordinário projeto de reeditar conhecidos

textos do autor além de lançar outros inéditos do leitor brasileiro. São


publicações cuidadosamente bem traduzidas, com especiais apresentações de
especialistas renomados sobre o marxismo.
[3]GABRIEL, Mary. Amor e Capital: a saga familiar de Karl Marx e a história

de uma Revolução. São Paulo: ZAHAR, 2013; SPERBER, Jonathan. Karl


Marx: uma vida do século XIX. São Paulo: Amarilys, 2014; JONES, Gareth
Stedman. Karl Marx: grandeza e ilusão. São Paulo: Companhia das Letras,
2017.
[4]Ótima resenha sobre o conteúdo do filme foi escrita por CARCANHOLO,

Marcelo. Teoria e Sujeitos (Indivíduos) Revolucionários: uma apreciação


sobre “O Jovem Marx”. Disponível
em https://www.gz.diarioliberdade.org/artigos-em-destaque/item/204955-teoria-
e-sujeitos-individuos-revolucionarios-uma-apreciacao-sobre-o-jovem-marx.html
[5]COSTA, Rubens Vaz. Introdução In: SCHUMPETER, Joseph. Alois. Teoria do
desenvolvimento econômico: uma investigação sobre lucros, capital,
crédito, juro e o ciclo econômico. São Paulo: Nova Cultural, 1997, p. 8
[6]SHUMPETER, 2017, p. 22.

[7]MARK, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo

Editorial, 2005 [1848], pp. 42-44. “[...] mais que qualquer outro escritor da sua
época, Marx discerniu o advento da grande empresa e, além disso, algumas
características das situações consequentes”. SCHUMPETER, 2017, p. 75.
[8]SCHUMPETER, 2017, pp. 27-28. Mais à frente, o autor volta a esse argumento
com maior discernimento e comenta: “[...] Marx realmente conseguiu uma coisa
de importância fundamental para a metodologia da economia. Os economistas
sempre fizeram o trabalho do historiador econômico, ou então se serviram dos
trabalhos históricos dos outros – mas os fatos da história econômica eram
relegados a um compartimento separado. Entravam na teoria – quando
entravam – meramente no papel de ilustração ou, talvez, de confirmação das
conclusões. Só se misturavam com ela mecanicamente. Ora, a mistura de Marx
é química; quer dizer, ele as introduziu no próprio argumento que produz as
conclusões. Foi o primeiro economista de alta categoria que viu e ensinou
sistematicamente que a teoria econômica pode ser transformada em análise
histórica e que a narrativa histórica pode ser transformada em histoire raisonnée”
(p. 69). Difícil nessa longa transcrição é considerar Marx um economista, mas
isso é outro assunto.
[9]Idem, p. 41.
[10]Idem, p. 55.

[11]O clássico do cinema, Tempos Modernos, produzido e dirigido pelo genial

Charles Chaplin aborda de uma maneira esteticamente extraordinária, como um


indivíduo que aparentemente se comporta de maneira atrapalhada e confusa, na
verdade simboliza o homem que não consegue se adequar, se disciplinar e
deixar ser dominado pelos modernos métodos de produção e a cultura ilustrada
que brota das contemporâneas relações sociais de produção.

Você também pode gostar