José Luiz Fiorin Entrevista Revista Letramagma

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José Luiz Fiorin

Por Artarxerxes Modesto


Letra magna.com
É licenciado em Letras pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras
de Penápolis (1970), tem mestrado em Lingüística pela Universidade de São
Paulo (1980) e doutorado em Lingüística pela Universidade de São Paulo
(1983). Fez pós-doutorado
na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris) (1983-1984) e na
Universidade de Bucareste (1991-1992). Atualmente é Professor Associado do
Departamento de Lingüística da FFLCH da Universidade de São Paulo. Foi
membro do Conselho Deliberativo do CNPq (2000-2004) e Representante da
Área de Letras e Ligüística na CAPES (1995-1999). Tem experiência na área
de Lingüística, com ênfase em Teoria e Análise Lingüística, atuando
principalmente nos seguintes temas: enunciação, estratégias discursivas,
procedimentos de constituição do sentido do discurso e do texto, produção dos
discurso sociais verbais.

LETRAMAGNA: Poderíamos dizer que a Lingüística Textual se


firmou como uma ciência autônoma, deixando de ser apenas
uma subárea da ciência lingüística – se isso realmente
aconteceu, a partir de qual referencial?

FIORIN:: Melhor do que falar em Lingüística Textual, que é apenas


uma das teorias que estudam o texto, seria falar em Estudos do
Discurso e do Texto. Poderíamos dizer que, grosso modo, a
Lingüística reparte-se em dois grandes domínios: a) o que
poderíamos chamar Estudos de Língua, que examinam dos
fonemas à frase; b) o que poderíamos denominar Estudos do
Discurso e do Texto, que analisam as unidades transfrásticas,
aquelas que se formam com períodos e, portanto, estão acima
deles. No entanto, dizer que os Estudos de Língua analisam as
unidades que vão do fonema ao período e que os Estudos de
Discurso e de Texto examinam as unidades transfrásticas é dizer
qual é o objeto empírico desses dois grandes ramos da ciência da
linguagem. No entanto, o que cria um domínio científico não é um
objeto empírico, mas um objeto teórico, que é um recorte feito no
objeto empírico a partir de um ponto de vista teórico. Como dizia
Saussure, o ponto de vista cria o objeto. Nesse sentido, a
Lingüística é um conglomerado de objetos teóricos: a língua, a
competência, a mudança, a variação, o uso, o discurso, o texto, etc.
Apesar disso, a Lingüística define-se como campo disciplinar e
institucional por um objeto empírico. Nesse sentido, mesmo que os
Estudos do Discurso e do Texto englobem domínios com diferentes
objetos teóricos e não se debrucem sobre os mesmos objetos
teóricos que os Estudos de Língua não devem ser considerados um
campo autônomo, mas devem ser vistos como parte desse campo
institucional, que é a Lingüística.

LM: Qual a noção mais coerente para “texto” atualmente?

FIORIN: Como se disse acima, os Estudos do Discurso e do Texto


criaram diferentes objetos teóricos, porque cada um deles se dedica
a um aspecto dessa realidade “multiforme e heteróclita” que é a
linguagem. Isso não é um defeito das teorias, mas é uma
característica do discurso científico. Ele, ao contrário do discurso
religioso, que pretende explicar tudo, busca elucidar um aspecto da
realidade. Cada objeto teórico vê o texto de maneira diferente. Vou
dar uma definição a partir da Semiótica Discursiva e Narrativa: é
uma unidade de manifestação, que constitui um todo organizado de
sentido, delimitado por dois brancos.
Se ele é uma unidade de manifestação significa que é a
manifestação de um conteúdo por um plano de expressão. Isso
quer dizer que um texto não é apenas manifestado verbalmente,
isto é, por meio de uma língua natural, como o inglês, o francês, o
árabe, o português. Na verdade, ele pode manifestar-se
visualmente, como uma pintura, por meio da linguagem verbal,
visual e musical, como o cinema, por meio da linguagem verbal e
visual como nos quadrinhos. Assim, um romance é um texto; um
trecho de um romance é um texto; uma poesia é um texto; uma
escultura é um texto; uma ópera é um texto.
Dizer que é um todo organizado de sentido implica afirmar
que o sentido de uma parte depende do sentido das outras. No
caso dos textos verbais, isso significa que ele não é um amontoado
de frases, ou seja, nele as frases não estão simplesmente dispostas
umas depois das outras, mas mantêm relação entre si. Isso quer
dizer o sentido de uma frase depende dos sentidos das demais, o
sentido de uma parte do texto depende do sentido das outras.
Um texto é delimitado por dois brancos, ou seja, dois espaços
de não sentido. Os espaços em branco antes e depois de um texto
verbal são seus limites. A moldura de um quadro delimita o espaço
de sentido e o de não sentido. O início de um filme e a
palavra fim separam o espaço do texto fílmico do espaço do não
sentido.

LM: Quais foram os marcos da elaboração de uma Lingüística


do Texto, se é que podemos falar em “uma”, visto que há uma
constante instabilidade teórica atualmente entre os estudiosos
do texto?

FIORIN: Como expliquei acima, a instabilidade teórica não é um


defeito dos estudos discursivos e textuais, mas é a própria condição
do discurso científico. Por isso, há diferentes teorias de Estudos do
Discurso e do Texto. No entanto, parece-me que se pode dizer que
a preocupação com as unidades acima da frase tem como
referência inicial os estudos de Benveniste a respeito da
enunciação. Esta foi definida por ele como a instância de mediação
entre a língua e a fala. O resultado da enunciação era o discurso e
não a fala nos termos concebidos por Saussure. A partir daí,
diferentes teorias têm distintos marcos de elaboração. Por exemplo,
a Semiótica Narrativa e Discursiva tem origem na Semântica
estrutural e demais obras de Algirdas Julien Greimas; a Análise do
Discurso de linha francesa fundamenta-se nas obras de Pêcheux e
assim sucessivamente.

LM: Com relação aos estudos do texto e do discurso, quais as


relações entre discurso, enunciação, fatores sócio-históricos e
o texto enquanto objeto de análise?

FIORIN: O discurso é produto de uma enunciação, que é realizada


por um dado sujeito, num dado tempo e num determinado lugar. Por
isso, o discurso é integralmente lingüístico e integralmente histórico.
O texto é a manifestação do discurso. Portanto, analisar o texto é
estudar um discurso produzido por uma enunciação radicada numa
dada formação social, num determinado momento da história. As
teorias do discurso, no entanto, dividem-se, grosso modo, em dois
blocos, segundo a maneira que analisam os fatores sócio-históricos
que determinam o processo enunciativo. O primeiro é constituído
por aquelas que pensam que é preciso conhecer as circunstâncias
em que o texto foi produzido: explicar quem é seu autor, em que
época foi escrito, em que lugar foi produzido. Em suma, contar
histórias acerca de suas condições de produção. No entanto, se
isso fosse necessário para desvendar o sentido do discurso, certos
textos, principalmente os produzidos na Antigüidade, não teriam
sentido. Tomem-se, por exemplo, a Ilíada e a Odisséia. Não
sabemos quem é seu autor, pois muitos estudiosos afirmam que a
epopéia homérica é uma criação coletiva, que foi, mais tarde,
compilada e fixada. Mas mesmo que tenha sido escrita por Homero,
não sabemos quem é realmente esse homem, não conhecemos as
circunstâncias de sua produção épica. E os textos
egípcios? Sabemos muito pouco a respeito das condições de sua
produção. E, no entanto, eles ajudam-nos a desvendar a cultura
faraônica.
O segundo grupo de teorias é daquelas que afirmam que todo
discurso é constituído a partir de outro discurso, é uma resposta,
uma tomada de posição em relação a outro discurso. Isso significa
que todo discurso é ocupado, atravessado, habitado pelo
discurso do outro e, por isso, ele é constitutivamente heterogêneo.
Assim, um discurso deixa ver seu direito e seu avesso. Nele, estão
presentes pelo menos duas vozes, a que é afirmada e aquela em
oposição à qual se constrói. Quando se afirma Mulheres e homens
são idênticos em capacidade, esse enunciado deixa ver duas
vozes: de um lado, a que preconiza a igualdade dos homens e das
mulheres; de outro, aquela que afirma a superioridade dos homens
sobre as mulheres. Numa sociedade não machista, o enunciado
acima sequer faria sentido. Essa propriedade do discurso é o que
se poderia chamar o dialogismo constitutivo: a palavra do outro é
condição necessária para a existência de qualquer discurso, sob um
discurso há outro discurso. Por ser dialógicos é que os discursos
são históricos. Sua historicidade não é algo externo, que é dado por
referências a acontecimentos da época em que foram produzidos
ou por curiosidades a respeito de suas condições de produção (por
exemplo, a biografia do autor ou relatos do período em que viveu).
A historicidade dos enunciados é captada no próprio movimento
lingüístico de sua constituição. É na percepção das relações com o
discurso do outro que se compreende a História que perpassa o
discurso. Com a concepção dialógica, a análise histórica dos textos
deixa de ser a descrição de uma época, a narrativa da vida de um
autor, para se transformar numa final e sutil análise semântica, que
vai mostrando aprovações ou reprovações, adesões ou recusas,
polêmicas e contratos, deslizamentos de sentido, apagamentos, etc.
A História não é exterior ao sentido, mas é interior a ele, pois ele é
que é histórico, já que se constitui fundamentalmente no confronto,
na contradição, na oposição das vozes que se entrechocam na
arena da realidade. Captar as relações do texto com a História é
apreender esse movimento dialético de constituição do sentido.

LM: De que forma os novos conhecimentos lingüísticos,


principalmente os incluídos no campo da lingüística textual,
podem contribuir para o aprimoramento de operações
didáticas no ensino da língua portuguesa?

FIORIN: O objetivo central do ensino de português nos níveis


fundamental e médio é fazer do aluno um leitor eficaz e um
competente produtor de textos. Isso é condição necessária para o
desenvolvimento de suas plenas potencialidades humanas, para o
exercício da cidadania, para o prosseguimento dos estudos em
nível superior e para a inserção no mercado de trabalho. Ensina-se
a redigir períodos, já que a análise sintática é uma teoria do
período, e solicita-se que o aluno escreva textos, como se
estes fossem uma grande frase ou um amontoado de frases. No
ensino da leitura, as questões de interpretação de textos, em geral,
não passam de solicitações para localizar informações na superfície
textual. Nos livros didáticos, com raras exceções, não há questões
que levem ao entendimento global do texto e à compreensão dos
mecanismos de constituição do sentido. O texto é um todo
organizado de sentido, o que significa suas partes se inter-
relacionam, ou seja, que ele possui uma estrutura. Além de ser um
objeto lingüístico, é um objeto histórico. Isso quer dizer que o
sentido do discurso se constrói por meio de mecanismos intra e
interdiscursivos, ou seja, o sentido organiza-se por meio de uma
estruturação propriamente discursiva e pelo diálogo que mantêm
com outros discursos a partir dos quais se constitui.
Paul Ricoeurdizia que o sentido do texto é criado no jogo interno de
dependências estruturais e nas relações com o que está fora dele.
Esses dois aspectos não se excluem, mas se complementam. O
ensino do texto precisa fundamentar-se no estudo cuidadoso de
mecanismos intra e interdiscursivos de constituição do sentido. Sem
isso, ensina-se a ler um texto determinado e não a ler qualquer tipo
de texto. A explicitação dos mecanismos intra e interdiscursivos de
constituição do sentido do texto, objeto das teorias do discurso e do
texto, contribui para melhorar o desempenho do aluno no que
concerne à compreensão e à produção do texto.

LM: Quais as principais contribuições dos estudos brasileiros


na área?

FIORIN: São muitas as direções teóricas dos Estudos do Discurso e


do Texto, para, nos limites desta entrevista, analisar as
contribuições dos estudos brasileiros na área. Por isso, falarei das
contribuições no âmbito da Semiótica Narrativa e Discursiva. Uma
das principais contribuições dos semioticistas brasileiros foi a de
estudar, nos quadros teóricos da Semiótica, a questão da
historicidade do discurso. Além disso, seus últimos esforços
teóricos têm sido o de teorizar a dimensão do sensível, seja na
Semiótica das Paixões, seja na Semiótica Tensiva. Além das
contribuições teóricas, os estudos semióticos têm cooperado no
desenvolvimento de métodos para o ensino/aprendizagem da
competência discursiva, em língua materna e em segunda língua;
bem como, para que se conheçam melhor, por meio dos discursos,
a cultura e a sociedade brasileiras.

LM: Quais as principais direções teóricas a que o Brasil


caminha nos estudos sobre o texto?

FIORIN: Seis são as orientações teóricas mais seguidas no Brasil: a


Semiótica Narrativa e Discursiva, a Análise do Discurso de linha
francesa, a Análise Crítica do Discurso, a Análise da Conversação,
a Lingüística Textual e o que poderíamos chamar a Análise
Dialógica do Discurso, que se fundamenta nos trabalhos de Bakhtin.
LM: Segundo sua visão, quais são os limites da Lingüística do
Texto e quais são suas perspectivas para o futuro?

FIORIN: De novo, prefiro falar numa corrente dos Estudos do


Discurso e do Texto, a Semiótica Narrativa e Discursiva. Creio que
ela deve caminhar no sentido de estudar mais detidamente a
dimensão sensível do discurso, aproximando-se cada vez mais da
Retórica e herdando-a. Por outro lado, é preciso teorizar, de
maneira mais fina, os diferentes objetos textuais criados pelos
novos meios de comunicação. Esses objetos são sincréticos, ou
seja, manifestam o sentido por meio de diferentes linguagens.

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