Cultura - Viveiros de Castro e Velho

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 12

O conceito de Cultura e o estudo das sociedades

complexas:
uma perspectiva antropológica
Gilberto Velho
Eduardo Viveiros de Castro

A constituição da antropologia, Kultur  foi um tema caro ao romantismo


enquant ntoo cam amppo de saber, está alemão,, inicia
alemão inicialme
lmente nte ins instru
trumen
mento to da
profun
profundamdament entee associ
associada ada à noç noçãoão de bur
burgue
guesia contrntra a aristocracia
cultur
cultura.a. Esta
Esta dis discip
ciplilina,
na, desdesde
de o seu influ
nfluen
enciciaada pela ela cor corte fran franccesa
esa
início em fins do século XIX, se apropria (identificada a Zivilisierheit, a civilização
do termo “cultura” e o erige em conceito como polidez superficial, cortesã); mais
totêmico, símbolo distintivo. Difundindo- tarde, veio a definir o espírito alemão,
se pelo campo intelectual moderno, a símbol
sím boloo da uni unificficaçã
açãoo nacnacion
ionalal (Elias
(Elias
noção de cultura carrega 196
1969).
9). A idéia de “civilização”,
definitivamente a marca antropológica. domi
domina nantntee da Fran França ça e Ingl Inglatater
erra
ra,,
“Cultura ou civilização... é este comp
compre reenendi
diaa desd
desdee os mo modo doss das das
todo complexo que inclui conhecimento, clas
classesess supe superi rior
ores
es até até conq conqui uist
stas
as
crença
crença,, arte,
arte, leis,
leis, moral,
moral, costum
costumes, es, e tecnológicas do Ocidente. Na
quaisquer outras capacidades e hábitos Alemanha, “civilização” veio indicar as
adqu
adquir irid
idos
os pelopelo home homem m enquenquan anto
to real
realiz
izaç
açõe õess ma mate teri
riai
aiss de um povo povo;;
membro da sociedade” (Tylor 1871:1). A “cultura”, por outro lado, referia-se aos
famosa definição de Edward Tylor, por  aspectos espirituais de uma
incl
inclus
usivivaa e conf
confus usaa que que foss
fosse,
e, abriu
abriu comunidade. Enquanto a primeira noção
caminho a toda uma nova problemática. trazia em si em seu uso francês a
     

Depois dela, muita coisa se passou na idéia de progresso, a outra voltava-se


Antropologia, em volta deste conceito: para
para a tradiçtradição;
ão; aqu aquelaela ins
inseri
eria-s
a-see no
escolas inteiras organizaram-se a partir  expa
expans nsioioni
nism
smoo colo coloni nial
al (a miss missão ão
de ênfases, alternativas, definições de civili
civilizat
zatóri
óriaa do hom homem em branco
branco), ), est
estaa
“Cul
“Cultu
turara”.
”. O termtermoo entr entrou
ou em pare paress marcava singularidade de cada povo. E,
conceituais variados: cultura/sociedade, com
com efei efeitoto,, a noçã noçãoo de Civi Civililiza
zaçã
çãoo
cultura/personalidade, sem permanece tingida pelo sentimento de
esquecermos o tradicional especi
esp ecific
ficida
idadede do Ocide Ocidentente com
comoo um
cultura/ci
cultura/civili
vilização
zação,, presente
presente na citação citação todo,
tod o, de aut autoco
oconsc nsciên
iência
cia satsatisf
isfeit
eita;
a; a
de Tylor. Kroeber e Kluckhon, em 1952, “cultura”, por sua vez, foi assumida pela
transcrevera eram, classificaram e Antropologia, discurso ocidental sobre a
comentaram
comen taram 164 defi definições
nições diferentes
diferentes alteridade.
de “cult
“cultura
ura”:
”: des
descri
critiv
tivas,
as, normat
normativa ivas,
s, Note-se, contudo, na definição
psicológicas, estruturais, históricas, etc. de Tylor, a equação “cultura-civilização”;
(Kr
(Kroebe
oeberr e Kluc Kluckh
khon on 19521952)). EstaEsta aqui
aqui,, estaesta distdistininçã
çãoo deix
deixaa de faze fazer 

espant
esp antosa
osa prolif
prolifera
eração
ção indicindicaa o pap papelel sent
sentidido;
o; agoragoraa trat trata-a-se
se de defi defini
nir 

estr
estrat
atég
égicicoo do conc concei eito
to,, que,
que, nestnestee conceitos de valor universal. Mas, se o
sentido, vai integrar o acervo cultural do conceito de Cultura veio a predominar 
Ocidente moderno: ele já foi comparado sobre “civilização”, é porque
à segu
segunda nda leilei de term termod odin
inâm
âmic ica,
a, ao originalmente ele se adequava melhor à
principio da seleção natural, à proposta da Antropologia. Enquanto a
motivação inconsciente do idéi
idéiaa de civi civililiza
zaçã
çãoo pres pressusupõ
põee um
comp
compor orta
tame
mentntoo (Gee
(Geert rtzz 1973)
1973)    aspecto territorial dado, uma
tópico
tóp icos-c
s-chave
have da mit mitolo ologia
gia “culta
“culta”” do contin
con tinuid
uidade
ade espespaci acialal (não
(não por aca acaso
so
século XX. surge em sociedades há muito
Com Tylor, a história do termo unific
uni ficada
adas), s), a idé idéia
ia de cul cultur
turaa sug
sugere
ere
“cultura” passa a uma nova fase. Até uma ligaçligaçãoão espespiri iritua
tuall ent
entre
re hom
homens ens,,
então, seu foco era predominantemente mesm
esmo separ eparaados dos por por front onteir
eiras
uma reflexão sobre as descontinuidades político-
polít ico-geográ
geográficas
ficas.. E essa ligação ligação é
sociais e nacionais dentro da Europa. A inescapável; consciente ou

1
inconscientemente, põe o ser humano não remontava, evidentemente, apenas
individual em contato com um universo ao século XIX; os canibais de
social de valores. Assim, o homem Montaigne já tinham provocado um forte
acede a sua essência “enquanto impacto no pensamento europeu. Mas,
membro de sociedade”    como diz por que a Antropologia — discurso que
Tylor. associa o postulado da unidade
Estes significados marcaram o biológica ao da diversidade cultural —
uso de da noção de Cultura dentro da só vem se constituir recentemente?
Antropologia, ciência que se desenvolve Questão inevitável, embora talvez
como subproduto da expansão colonial irrespondível. Cabe notar, contudo, que
européia. Se originalmente a idéia de a consciência ocidental de Outro se
Cultura era resultado de um esforço de insere historicamente em contextos
conscientização de diferenças dentro da variáveis. A gênese da Antropologia se
Civilização Ocidental, a diferença faz em um momento em que a relação
imediata, visível, que se estabelecia no com as colônias muda de sentido —
confronto com sociedades exóticas, tratava-se agora de transformar  as
africanas, asiáticas, americanas, populações coloniais, adequá-las ao
propunha um enigma para consciência sistema capitalista, não apenas como
ocidental. Este enigma, em seu sentido ocupantes indesejáveis de território a
profundo revelava a finitude, relatividade ser predado, ou como fonte de mão-de-
da civilização européia. “Nós, obra escrava, mas como participantes
civilizações, agora sabemos que somos em um grande mercado internacional,
mortais” sentencia Paul Valéry.
  
aonde também serão consumidores,
Apesar das teorias racistas, a tendo que, mal ou bem, adotar valores
crença na unidade fundamental do de uma cultura ocidental. A unidade do
gênero humano ganhava solidez no final gênero humano, assim, não deixava de
do século passado. A biologia encobrir, sob a capa piedosa do
darwinista foi um dos principais cristianismo ou do cientificismo, uma
instrumentos da legitimação desta necessidade histórica da expansão
crença; é ela que redefine as teorias colonial.
evolucionistas a partir do postulado da Com efeito, o primeiro momento
unidade biológica do homo sapiens; e o da Antropologia foi o de esforço de
evolucionismo, a primeira teoria redução da diferença cultural. Se os
propriamente antropológica da diferença homens eram iguais, e suas diferenças
cultural, deve ser julgado como discurso “apenas” culturais, é porque na verdade
que, embora terminando por sonegar a tais diferenças mascaravam uma
especificidade das culturas não- unidade básica. As variedades não
ocidentais, fundava-se neste postulado. passavam de etapas distintas de um só
Uma vez aceita    não sem processo evolutivo, liderado pela cultura
dificuldades — a crença no ocidental. A percepção de uma
monogenismo da espécie, surgia variedade sincrônica passava a ser uma
automaticamente um novo problema, aparência, que ocultava uma unidade
que vai constituir a Antropologia: como diacrônica mais básica. A história da
explicar a evidência cegante da enorme cultura — das culturas — era unificada,
diversidade de modos de vida de todos tornando-se epifenômeno da história da
esses povos, e, sobretudo, a diferença Humanidade; assim, a inserção forçada
entre nós, “civilizados”, e os “outros”? O dos povos colonizados da história do
universalismo da perspectiva européia Ocidente era duplicada por uma
(fenômeno inédito na história das idéias) reflexão teórica — o evolucionismo —
tem de enfrentar este problema; e o faz que discorria sobre a naturalidade
de várias maneiras. dessa inserção. Afinal, o fardo do
homem branco era educar seus
Diversidade Cultural “contemporâneos primitivos”, acelerar 
seu crescimento, que necessariamente
Deve-se observar que a ciência iria culminar em um estado idêntico ao
da diversidade cultural da humanidade  já atingido pela civilização do Ocidente.

2
A idéia da civilização, assim, perde seu em sua infância, a Antropologia
sentido de processo, e passa a definir  inscreve-se definitivamente no
um estado — a sociedade ocidental — movimento geral de
que deve ser atingido pelos ainda não- autoquestionamento da civilização
civilizados. ocidental. O espelho do Outro assola a
Mas o destino da Antropologia consciência do século XX. Os
não era o de serva demasiado fiel do movimentos culturais fundamentais que
colonialismo; seu movimento histórico iniciam esta época — o surrealismo, a
pode ser resumido na idéia de uma lingüística, a psicanálise e o socialismo
crescente percepção da especificidade — estão marcados pela negação dos
das diferenças culturais em si; o que “centrismos” narcísicos que dominaram
melhor caracteriza a posição o Ocidente. E tais movimentos muito
antropológica é o esforço de reconstituir  devem à Antropologia, como se pode
os critérios internos que cada cultura observar.
utiliza para sua auto-reflexão; não se
trata agora de julgar os aborígines
australianos por sua (altamente 2
discutível) pobreza tecnológica, e assim
colocá-los numa hipotética “idade da O dilema que mencionamos —
pedra” comum a toda a Humanidade; como conciliar a unidade biológica e a
mas sim de verificar em que domínios diversidade cultural da espécie humana
a(s) sociedades australianas (ou sul- — tem sido enfrentado, modernamente,
americanas, etc.) atingiram maior  pelo consenso sobre a não-
elaboração. operatividade da noção de uma
A abordagem da diferença “natureza” humana. O aspecto
cultural como um dado irredutível — “instintual” do organismo do homo
que, no limite, levou a um certo sapiens, comparado com o dos demais
relativismo quase-solipsista, mas animais superiores, é frouxamente
saudável na medida em que se opunha organizado, fornecendo apenas
à pulsão devoradora do Ocidente — determinações gerais para o
ganhou força a partir da entrada da comportamento. O essencial
Antropologia em seu estado inacabamento biológico do ser humano
experimental: a pesquisa etnográfica após o nascimento, sua plasticidade e
detalhada, paciente, muito contribuiu abertura para o mundo (Berger 1974),
para a falência de esquemas levam à conclusão de que a Cultura
apriorísticos de interpretação das ergue-se como a instância propriamente
culturas humanas como variantes de um humanizadora, que dá estabilidade às
mesmo movimento universal. A síntese, reações comportamentais, e funciona
agora, pressupunha a análise; e ainda como o mecanismo adaptativo básico
estamos imersos nessa tentativa de da espécie. Mas esta estabilização se
reunir a gigantesca quantidade de caracteriza por ser não-determinada
informações recolhida pelos universalmente. A humanização do
antropólogos em todos os pontos do homem se faz de várias maneiras
globo. Em certo sentido, é verdade, a possíveis. A seleção natural, i. e.,
Antropologia completou a “devoração” particular, das capacidades biológicas a
ocidental das diferenças, ao se propor  serem desenvolvidas ou inibidas, tudo
como “tradutora” para o discurso isto “poderia ser de outro modo” — o
científico da multiplicidade vivida de domínio da Cultura, como o viu Mauss,
esquemas cognitivos e emocionais que é o domínio da modalidade. A
os homens usaram para se pôr no humanização do homem se faz sempre
mundo. Mas esse canibalismo evita um através de um modo de vida particular 
outro pior — a destruição cega, em — o homem não se realiza através de
nome dos benefícios da civilização uma humanidade abstrata (Levi-
ocidental, de tudo aquilo que é Strauss, 1973).
diferente. Assim, com a decadência do Tais conclusões podem ser 
evolucionismo ingênuo que a marcou inclusive aplicadas ao clássico problema

3
da origem da Cultura. As discussões de Tylor é um todo coerente, aonde
mais recentes (Geertz, 1973) apontam a cada “costume”, regra, crença ou
interpenetração histórica entre a comportamento faz parte de um
evolução final do organismo do homo conjunto que dá sentido às partes.
sapiens e as primeiras aquisições Tratá-la como sistema, portanto,
culturais — a mão e ferramenta se significa admitir a racionalidade
codeterminam. Neste sentido, tanto os intrínseca de qualquer cultura — e aqui
aspectos ontogenéticos quanto os o evolucionismo redutor perde suas
filogenéticos do desenvolvimento bases. O exame etnológico das culturas
humano supõem a inseparabilidade de não-ocidentais revelou a alta
Cultura e Natureza — literalmente a complexidade, sutileza e coerência de
Cultura faz, e fez, o homem. práticas tidas como “bárbaras” ou
Evidentemente, como os recentes irracionais (um exemplo pode ser o
estudos de etologia animal demonstram estudo das concepções Azande sobre
(de maneira ainda pouco clara), a Bruxaria, por Evans-Pritchard 1937).
variedade dos comportamentos culturais
baseia-se em certos mecanismos Regras Inconscientes
biológicos. Mas o que distingue o
humano é a elaboração particular sobre Por outro lado, a concepção da
esta base natural. cultura como sistema levou a tese de
Este instrumento de que a atividade e o pensamento
humanização é um instrumento de humanos estão submetidos a regras
comunicação. A Cultura tem sido inconscientes (aqui, Freud, Saussure e
definida como um conjunto complexo de a antropologia de Marcel Mauss se
códigos que asseguram a ação coletiva encontram); e que, portanto, “Cultura” é
de um grupo (Lévi-Strauss-1950). A menos a manifestação empírica da
noção de código, que veio marcar  atividade de um grupo (como a definia
profundamente as teorias Tylor), que o conjunto de princípios que
antropológicas atuais sobre a questão subjazem a estas manifestações.
da Cultura, procede da Lingüística — da Inconsciente, mas social: essas regras
revolução de Saussure, que apontou o não se encontram no aparelho psíquico
caráter ao mesmo tempo social, “natural” de cada individuo, mas
inconsciente e sistemático da definem um sistema que é comum ao
linguagem, domínio central da cultura. grupo. Assim o homem cada vez mais
Claude Lévi-Strauss pode ser apontado se vê ligado sem querer à sociedade. O
como o Antropólogo que elaborou mais estudo das “classificações primitivas”
detalhadamente esta noção vinda da por Durkheim e Mauss ([1903] 1969)
lingüística, mas ela surge na obra de chamou a atenção para a matriz social
vários cientistas. A noção de cultura das formas de percepção e
como código — conjunto de regras de classificação do mundo, um tema que a
interpretação da realidade, que antropologia vem desenvolvendo de
permitem a atribuição de sentido ao maneira privilegiada (v.p. ex. Douglas
mundo natural e social — implica [1966] 1976).
fundamentalmente a idéia de sistema. Estes códigos que vão constituir 
Aqui a Antropologia se levanta contra as a Cultura consistem essencialmente em
tradicionais concepções de cultura aparelhos simbólicos. A natureza
como agregado histórico de “traços”, simbólica da Cultura é outro aspecto
elementos culturais, cuja relação interna importante desta noção em
não era examinada. Esta tradição Antropologia. A Cultura pode ser 
encontra sua origem nas escolas concebida como um sistema de
difusionistas alemãs, que, diga-se de símbolos, organizados em diversos
passagem, apresentavam analogias subsistemas. Neste sentido, o
com a gramática histórica pré- comportamento humano é percebido
Linguística. como apresentando, para além dos
Tratar a cultura como sistema aspectos puramente técnicos ou
significa admitir que o “todo complexo”

4
pragmáticos, um componente simbólico, empregada pela Antropologia, e situou-
i.e., expressivo. a mais claramente numa perspectiva
A noção de cultura como sociológica.
sistema simbólico aponta, ademais,
para natureza social do comportamento:
esses símbolos são decodificados a
partir de um código comum a um grupo. 3
Desta forma, um dos métodos de Toda discussão sobre o
identificação das fronteiras de uma conceito de cultura assume novas
cultura particular é o exame da dimensões quando é contextualizada no
capacidade ou não de um dado símbolo que se chama de sociedade complexa
ser decodificado identicamente por dois e/ou heterogênea. Em princípio a noção
grupos. de complexidade está ligada à divisão
O estudo do simbolismo, assim, social do trabalho mais especializada,
tem constituído outra vertente mais segmentadora na sociedade
dominante nos estudos de cultura (ver  urbana industrial contemporânea, com a
Turner 1967, 1974). formação de uma rede de instituições
Mas, se a descoberta do caráter  diversificadas, mais ou menos ligadas
sistêmico da cultura foi algo dentro de um sistema, mas com
revolucionário, levou por outro lado a fronteiras discerníveis. Sahlins (1976)
certos impasses, que marcam a coloca que na sociedade ocidental
moderna Antropologia. Em primeiro capitalista particularmente, embora com
lugar, como explicar a mudança cultural, a distinção em domínios e instituições, o
se o essencial de uma cultura está no foco da produção simbólica, i. e.,
inconsciente; e se o homem só cultural, se dá ao nível das relações de
consegue atribuir sentido ao mundo a produção, ao contrário de sociedades
partir de um sistema — i. e., um código tribais onde o foco estaria nas relações
estável de interpretação de símbolos? de parentesco. Isto não significa que
Em segundo lugar — esta é a questão não existam outras áreas de produção
que nos interessa mais diretamente — simbólica significativas mas que
como estudar sociedades complexas, i. estariam mais ou menos contaminadas
e., as sociedades onde a divisão do ou fortemente influenciadas pelas
trabalho e o desenvolvimento das forças relações de produção. Em outros tipos
produtivas levou a uma diversificação de sociedade podem ser encontradas
interna considerável? Nestas situações exatamente inversas, onde as
sociedades — habilmente esquecidas relações de produção seriam menos
pela Antropologia clássica, que significativas como focos de produção
estudava pequenas comunidades onde simbólica. Sahlins está preocupado em
os indivíduos participavam quase que mostrar que a produção simbólica
identicamente de uma única visão de cultural pode variar em termos de focos
mundo, de uma única matriz cultural — e ênfases de acordo com o tipo de
certos elementos levavam a sociedade e momento histórico, mas
constatação da existência de “uma” que em qualquer sociedade ela dá
cultura dominante; outros indicavam a sentido, significado e intencionalidade
existência de uma pluralidade de modos às ações e comportamentos sociais.
diversos de interpretação do mundo. Tal Isto não significa que em toda
pluralidade, evidentemente, decorria da sociedade complexa, ao se atingir um
diferenciação social: não se tratava certo nível de especialização na divisão
mais, como nas sociedades simples, de social do trabalho, se encontre a área
uma divisão do trabalho cultural em das relações de produções como o foco
“especialistas” orientados a partir de um principal de produção simbólica. Há
referente cultural comum, mas de uma outros tipos de complexificação que não
verdadeira diversidade cultural, por  estão associados ao capitalismo ou ao
vezes um antagonismo. Assim, o estudo industrialismo, como a da sociedade
das sociedades complexas levou ao indiana tradicional analisada por 
refinamento da noção da cultura Dumont (1966), que teria como

5
referência cultural básica um modelo de a partir daí se entende que o modo de
organização social hierárquico com vida, os valores, a visão de mundo
grande independência em relação ao burgueses constituiriam uma cultura,
sistema de produção, que, contudo, poder-se-ia falar em uma cultura
apresentava grande variedade e riqueza dominante. Enquanto Ideologia
institucional. Há, portanto, que distinguir  enfatizaria mais os aspectos
vários tipos de sociedade complexa, propriamente políticos de conflito e
mais ou menos tradicionais, capitalistas dominação, a noção de cultura seria, de
ou não, de base industrial ou de base certa forma, mais ampla ou menos
agrária, etc. precisa, desde que uma cultura
A noção de heterogeneidade burguesa incorporaria várias tradições,
por sua vez é mais cultural, enquanto a heranças — humanismo, cristianismo,
de complexidade seria mais sociológica, por exemplo —, que não estariam na
embora certamente estão vinculadas. origem necessariamente ligadas à
Não só a divisão social do trabalho, condição de classe da burguesia.
gerando experiências sociais e visões Ideologia estaria vinculada as relações
de mundo altamente diferenciadas, mas sociológicas entre tipos específicos de
a própria coexistência de grupos de grupos sociais, enquanto cultura referir-
origens éticas e regionais muito se-ia a produção simbólica em geral e
variadas concorrem para a existência de que, portanto, também traria dentro de
várias tradições que, embora tenham, si as contradições existentes ao nível da
obviamente, pontos comuns, podem sociedade propriamente dita. Na cultura
apresentar forte especificidade. A noção burguesa há lugar para manifestações e
de subcultura normalmente esta expressões de símbolos mais ligados a
associada à sociedade complexa, quer  experiências aristocráticas,
esteja se falando de classe, região ou contemporâneas ou não, operárias,
etnia, como, por exemplo, cultura ou camponesas ou indígenas, e na própria
subcultura operária, gaúcha, negra, etc.1 medida em que está se falando de
Aí se coloca o problema da capitalismo, o foco da produção
dominância. Em uma sociedade simbólica são as relações de produção
estratificada, organizada em torno de inclusive com os conflitos existentes.
um Estado Nacional, há desequilíbrios e Assim, enquanto a ideologia está colada
distribuição desigual em termos de aos interesses de classe específicos,
poder, prestígio, recursos em geral. sendo um instrumento de dominação, a
Neste caso é preciso distinguir as cultura da classe dominante abarca
noções de cultura e ideologia. Dentro da manifestações dos grupos sociais mais
tradição marxista ideologia está variados, podendo se confundir em um
basicamente associada à classe social. determinado momento histórico com a
Assim, dentro de uma sociedade cultura nacional. Assim, quando se fala
capitalista clássica a burguesia é a em cultura brasileira, italiana ou
classe social que controla os meios de marroquina, não se está
produção e que domina mais ou menos necessariamente ignorando os aspectos
diretamente o poder político, o aparelho sócio-políticos que acompanham os
de Estado, as instituições em geral. Aí fenômenos culturais, mas
se diz que a ideologia burguesa, por  reconhecendo-se que em uma
todas essas razões, é dominante, determinada conjuntura ou período
fazendo com que os seus interesses histórico é possível traçar-se o perfil da
passem por ser os interesses da cultura de uma sociedade em que
sociedade como um todo, mascarando possam inclusive ficar claros, ao nível
as contradições existentes, sendo a da produção simbólica, as contradições
principal, no caso, capital X trabalho. Se e conflitos existentes. Enquanto a
ideologia uma vez assumida ou,
1 conscientizada, superadas as distorções
O conceito de subcultura pode ser aplicado ainda a
e mascaramentos, tenderia a ser 
unidades menores como profissão, família, área, etc.
coerente, a cultura seria o locus da
Dependerá da eficácia e operacionalidade emprega-lo
própria contradição e, até certo ponto,
ou não.

6
da incoerência, pois a produção intelligentzia, administradores, etc.
simbólica, manifestando-se em vários Embora obviamente existam aspectos
níveis, inclusive os mais inesperados, comuns e mesmos interesses político
não pode ser compreendida apenas em determinados momentos
como uma produção, resultado, coincidentes, isto está longe de
conseqüência, reflexo de conflitos de constituir categorias explicativas para
classe. compreensão da lógica da produção
simbólica da sociedade. Ou seja, a
oposição elite X povo em termos de
Cultura Erudita e Cultura Popular  cultura é muito vaga e pouco precisa.
Quanto à cultura de massa, sua
Uma outra distinção que se própria definição e limites são altamente
costuma fazer é entre cultura de elite ou problemáticos. Como distinguir na
erudita e cultura popular ou, em certos sociedade urbana industrial, onde o
casos, de massa (Gans, 1974). A idéia jornal, o rádio, a televisão, a
básica é que haveria uma diferença propaganda atuam e estão presentes
qualitativa entre esses dois tipos de em quase todos os níveis da
cultura — uma mais sofisticada, tendo informação, uma cultura que não seja
como foco as principais contribuições e de alguma forma de massa?
realizações da sociedade em suas Evidentemente existem segmentos da
formas mais refinadas e de maior valor  sociedade mais vinculados ou mais
estético e criativo, enquanto a segunda exclusivamente vinculados a certos
seria mais rústica, menos cosmopolita, meios de comunicação de atuação mais
e de valor até duvidoso. No caso da ampla, mas, por exemplo, o consumo
cultura de massa então o seu valor seria de discos de música erudita ou de
ainda mais contestado, apontando-se o livros, por mais esotéricos ou refinados
seu caráter barateador e vulgarizante. É os seus assuntos, não esta dentro da
claro, portanto, que é uma classificação lógica da sociedade industrial de
carregada de julgamentos de valor, e consumo? A questão então se desloca
até, de preconceitos. No caso da cultura para julgar o mérito das obras ou dos
popular pode-se cair numa posição produtos que estão sendo consumidos e
inversa e passar a valorizá-la como este é um dos terrenos mais
mais autêntica, mais pura, escorregadios e talvez improdutivos em
principalmente quando tida por intocada que as ciências sociais possam entrar.
e não contaminada. A cultura de elite, Se, como já foi visto, uma das grandes
em contraposição, seria considerada conquistas da antropologia foi,
artificial, decadente, inautêntica. De  justamente, passar a procurar captar o
uma forma ou de outra polariza-se a ponto de vista do outro, tentar perceber 
classificação e fica-se no nível do a visão de mundo dos grupos estudados
estereótipo. É claro que existem modos em seus próprios termos, essas
de vida, visões de mundo mais tentativas de hierarquização
característicos das camadas populares, representam uma possibilidade de
mas a categoria  popular  é muito pouco retrocesso. Da mesma forma a noção
precisa em termos sociológicos e de cultura da pobreza, que teve em
pressupõe uma homogeneidade que Oscar Lewis seu principal teórico,
está longe de ser comprovada nos também conduz uma armadilha teórica,
estudos existentes sobre camponeses, pois inverte a questão ao colocar a
operários, camadas médias baixas ou categoria pobreza como razão
outros seguimentos e setores que explicadora universal de determinado
pudessem ser incluídos nessa tipo de estilo de vida e visão de mundo
classificação. Da mesma forma, falar  sem realmente analisar  
em elite pressupõe um monolitismo nas sistematicamente as relações entre os
camadas mais altas da sociedade que grupos sociais e suas produções
poderia colocar na mesma categoria simbólicas.
grandes proprietários rurais, alta Gans, preocupado em fazer 
burguesia, oficiais generais, setores da análise mais complexa da sociedade

7
americana, procura distinguir  taste questão de pesquisa científica, a
cultures em que a idéia de uma opção verificar.
por determinado estilo de consumo
cultural permitiria traçar um quadro mais Cultura como um Código
flexível e rico sem deixar de identificar 
variáveis sociológicas capazes de É importante distinguir os
estabelecer limites e possibilidades, possíveis diferentes sistemas simbólicos
como a classe social, a etnia e a faixa que existem em uma sociedade
etária (Gans, 1974). A noção de que complexa, procurar perceber suas
existe uma certa margem de liberdade e fronteiras e suas ambigüidades. Por 
iniciativa parece ser útil, especialmente, outro lado é fundamental compreender 
para a compreensão da sociedade como indivíduos concretos interpretam
complexa onde os indivíduos participam os símbolos e signos que estão à sua
de forma desigual em diferentes volta, como internalizam e a que
“mundos’’ com produções simbólicas de decisões chegam em momentos de
alguma especificidade e até, em certos opção tanto em situações
casos, conflitantes. Assim é que, explicitamente dramáticas da história de
movendo-se do trabalho para a família uma sociedade quanto ao nível do
como membro de alguma religião, no cotidiano, no que Raymond Firth
seu lazer, participando de alguma chamou de organização social (Firth,
associação ou grupo político, 1945). Esta idéia de que a sociedade e
interagindo em geral com diferentes a cultura estão sempre se fazendo, que
pessoas de sua rede de relações, o não são entidades estáticas pairando
habitante da grande metrópole, sobre os indivíduos também é uma
especialmente, se vê participando de contribuição importante a ser assinalada
códigos e valores que podem guardar  (Leach, 1954). Os indivíduos concretos,
pouca coerência entre si, provocando em suas biografias, interpretam, mudam
respostas e decisões muitas vezes e criam símbolos e significados,
contraditórias (Wirth, 1966). Ou seja, o evidentemente vinculados a uma
mapa social está longe de ser claro e as herança, a um sistema de crenças. Com
pessoas são levadas, consciente ou isso recupera-se a idéia de que os
inconscientemente, a tomarem decisões indivíduos também desempenham o
que vão marcar tipos de trajetórias papel de agentes na transformação e
possíveis dentro de uma sociedade. A mudança da cultura e da sociedade e
busca da lógica dessas decisões pode não são meros joguetes de forças
ser um dos caminhos para entender a impessoais. O fato de que as pessoas
maior ou menor eficácia dos sistemas nascem dentro de um sistema sócio-
simbólicos envolvidos. Sahlins cultural já dado não quer dizer que este
argumenta que na sociedade capitalista sistema não esteja sempre se fazendo
ocidental as relações de produção através das biografias individuais. Não é
constituem o principal foco de necessário ter consciência e percepção
manifestação da produção simbólica, do sistema enquanto totalidade
mas isto não deve implicar em uma (problemática) para influenciá-lo através
forma de reducionismo que desconheça de ações e interpretações em que os
não só as mediações como o fato de símbolos são manipulados e
que outros focos existem e podem ser  transformados diante de circunstâncias
decisivos e determinantes em várias e situações novas. Embora um indivíduo
situações e momentos da vida social. sozinho não invente uma cultura, é
Por outro lado, assinalar a importância através das interações dos indivíduos
das relações de produção na desempenhando e reinventando papéis
atualização de significados na vida sociais que a história se desenrola.
social não implica em reconhecer uma Entendendo-se a cultura como um
única direção ou tendência no código, como um sistema de
desenvolvimento das relações de comunicação, percebe-se o seu caráter 
produção propriamente ditas. Isto é uma dinâmico ao produzir interpretações,
significados, símbolos diante de uma

8
realidade permanentemente em elas, fazendo a pergunta sobre quando,
mudança. Já se disse, em diversas onde e como pode-se falar num
oportunidades, que a sociedade urbana predomínio de uma sobre a outra. O
industrial contemporânea apresenta um trabalho de decodificar essas culturas
ritmo e velocidade de mudança ou de traduzir os códigos é, na
particularmente acelerado, em grande realidade, o trabalho básico de todo
parte em função da importância relativa antropólogo.
das relações de produção. Ficam mais
claras ainda, portanto, as alterações e
transformações ao nível da cultura que
não são meras conseqüências ou 4
resultados da infra-estrutura, mas que
dão sentido e intencionalidade aos Se a unidade de análise, os
processos sociais, seja tendo como foco limites do código–objeto, são o
a religião, o sistema de parentesco ou problema central para o estudo
as relações de produção como no caso antropológico das sociedades
da sociedade complexa moderna. complexas, o método, ou melhor, a
Um dos grandes problemas do postura diante do objeto, também
antropólogo ao estudar a sociedade coloca questões importantes. O que se
complexa moderna é conseguir  pode conhecer, e como? Diante de uma
identificar os diferentes códigos “outra” cultura, estas perguntas
existentes e, ao mesmo tempo, procurar  necessariamente se impõem. Mas
verificar até que ponto e como estão quanto uma cultura é “outra”? No estudo
interligados e se formam, constituem de subculturas dentro da sociedade do
uma totalidade que possa ser descrita e observador, esta é uma dúvida adicional
analisada. Muitas vezes o investigador é mais premente do que no caso
levado a pressupor uma totalidade que facilmente “exotizável” de culturas
coincide com as fronteiras estabelecidas indígenas, não-ocidentais, etc. A
politicamente. Isto pode corresponder  natureza e o grau de alteridade que
ao resultado de investigação científica separam a cultura do observador da
ou pode ser simplesmente, um recurso cultura observada sugerem problemas
perigoso. É o ponto em que se colocam epistemológicos que vão constituir o
velhas questões: o que é mais ponto cego da Antropologia.
significativo, por ex., uma população Esta questão é a do relativismo,
rural que é identificada e a da comunicação intercultural, não é
sociologicamente como sendo privilégio da Antropologia: o historicismo
camponesa, tendo, portanto, defronta-se com ela igualmente. Mas foi
características semelhantes a outras a disciplina antropológica quem mais
populações espalhadas pelo planeta, ou elaborou o tema.
o fato dela estar situada no território de Se cada cultura é um universo
uma nação específica — Brasil, Índia, em si mesmo, se cada homem está
Noruega? Há casos inclusive da língua penetrado por ele em seus menores
ou dialeto falado não corresponder à atos e pensamentos, como pode o
língua oficial do país, como muitas observador sair de si, colocar-se no
vezes no México. Até que ponto pode- lugar do outro (mas será isto mesmo?);
se falar em uma cultura nacional? e retornar? Que ele tenha que retornar,
Parece-nos, como já foi mencionado, é das regras do jogo — ou não haveria
que só se pode superar essa dificuldade Antropologia.
com a noção de dominância, em que Em primeiro lugar, pode-se
fique claro que, nos casos de supor ingenuamente uma capacidade
coexistência, em um determinado inata de efetuação de uma redução
território com fronteiras políticas, há que fenomenológica que permita ao
não pressupor uma homogeneidade observador esquecer suas
mas sim identificar as relações entre os determinações histórico-culturais —
códigos ou culturas ou subculturas graças, quem sabe, a uma “caridade”
existentes e examinar as relações entre (em sentido literal); a um “altruísmo” que

9
implique a renegação do EU em meta código coloca algumas questões
benefício do Outro. Um altruísmo fundamentais para a Antropologia. A
intelectual, diríamos. Na verdade, isto Lingüística mesma, que exportou esta
não é ingênuo assim: a recordação de concepção, cada vez mais tem
J. J. Rousseau feita por Lévi-Strauss é preocupado os aspectos da  parole (vs.
esclarecedora do sentido profundo da langue), do empenho (vs. competência),
Antropologia (Lévi-Strauss, 1973, cap da enunciação (vs. enunciado). Em
II). Antropologia, isto significa uma
A possibilidade desse acesso ao preocupação detida em observar as
Outro — problemática desde que se formas pelas quais as “regras” culturais
admite o caráter sistêmico e são atualizadas pelos agentes. Assim,
hiperdeterminístico de cada cultura em não basta construir modelos: trata-se de
particular — pode ser fundamentada, soldar o espaço entre modelo e ação,
como esforço para escapar-se ao entre representação e prática. Desde
solipsismo relativista, na natureza que se admite que a ação é modelada,
humana. Assim, a Antropologia pode que a prática representa, exprime
postular a universidade dos simbolicamente aspectos da Cultura,
mecanismos básicos da mente humana, vai-se aceitar que o comportamento
que sustentam as diversas culturas, e individual só tem sentido a partir da
consideram esta diversidade como Cultura — mas isto não esgotaria a
variação a partir do mesmo repertório. análise, sob pena de um formalismo
Donde, aceder ao Outro é realizar um enrijecedor.
esforço – fundado teoricamente, admite- No caso do estudo de
se — de estabelecer a transformação sociedades complexas, o problema se
relativa que distancia duas culturas a desdobra pela ambigüidade do objeto: o
partir do mesmo repertório (esta é a que é comum ao observador e ao
posição clássica de Lévi-Strauss,1950). observado, o que é diferente — em
termos de Cultura? Não se pode mais
Em outra direção, a concepção recorrer ao fácil inconsciente que
da Cultura como código sustentaria a garante uma comunicação por baixo
seguinte formulação: uma vez em que das barreiras culturais. Trata-se aqui de
uma cultura consiste em um conjunto de reconhecer estas barreiras sob pena de
regras para a ação (e o pensamento), projetar etnocentricamente — com
determinar estas regras e seu implicações políticas — a visão do
funcionamento permite que observador. E há ainda problemas mais
“entendamos” de dentro o concretos. Reconhecer as distâncias, e,
comportamento dos membros de uma portanto, esforçar-se por superá-las
outra cultura. Uma visão gramatical: cientificamente, no caso de contato
como se falar chinês bastassem entre o antropólogo e uma sociedade
algumas aulas de chinês. O que esta radicalmente “exótica”, talvez seja mais
visão não leva em conta, é que o fácil que fazer o mesmo quando se
sistema de “regras” que define uma estudam subgrupos dentro da
cultura é agido, e a competência se sociedade do antropólogo. Neste último
atualiza em um desempenho. O domínio caso, o problema epistemológico está
das regras efetuado por um nativo é socialmente ancorado. O observado é
radicalmente diferente do conseguido parte da sociedade do observador.
por qualquer estrangeiro. Esta diferença Assim, o confronto não é apenas — ou
é a questão. Talvez ela seja irredutível, sobretudo – entre antropólogo e objeto,
e a Antropologia deva se contentar em mas entre representantes de segmentos
codificar o vivido pelos Outros. Talvez de um mesmo sistema social. As
não seja, mas neste caso corre-se o relações entre estes segmentos
risco do subjetivismo e, pior, do determinam previamente o curso da
etnocentrismo disfarçado em reflexão, o que vai exigir uma vigilância
compreensão vivida. epistemológica de outro tipo. O que é
Em qualquer caso, o que parece ser “observador” em casos como este?
claro é que a noção de Cultura como Quem pode observar, e o que a posição

10
de observador deixa ver, e o que ela
não deixa?
Se, no caso da Antropologia das
sociedades não-ocidentais, o VELHO, G. e VIVEIROS de CASTRO,
movimento era o da transformação do E.B. O Conceito de Cultura e o Estudo
exótico (dado previamente) em familiar  das Sociedades Complexas: uma
(através da reflexão), o estudo de perspectiva antropológica. Artefato:
sociedades complexas supõe a Jornal de Cultura. Rio de Janeiro:
transformação do familiar (dado e dado Conselho Estadual de Cultura, n. 1, Jan.
pré-conceitualmente) em exótico — o 1978.
distanciamento antropológico (ver Da
Matta, 1974).
No entanto, essas noções de Bibliografia :
distância entre pesquisador e objeto são
problemáticas e a própria noção de BATESON, Gregory - Naven, Stanford, Stanford
familiar deve ser examinada com University Press, 1958.
cuidado. “O que sempre vemos e BENEDICT, Ruth – Patterns of Culture, Boston,
encontramos pode ser familiar, mas não Hougthon Mifflin, 1961.
é necessariamente conhecido. No BERGER, Peter e LUCKMAN, Thomas
entanto estamos sempre pressupondo   – A Construção Social da Realidade,
familiaridades e exotismos como fontes Rio de Janeiro, Vozes, 1974.
de conhecimento ou desconhecimento, BOAS, Franz – Race, Language and Culture,
respectivamente” (ver Velho, Gilberto). New York, Free Press, 1966.
Ou seja, estamos, no nosso cotidiano, BOURDIEU, Pierre – Esquisse d´une
como membros de uma sociedade, Théorie de La Pratique – Genéve –
lidando com situações e pessoas com Paris. Librairie Droz,1972.
que ou quem podemos estar   DA MATTA, Roberto A. – “O Ofício do
acostumados, habituados, mas isso não Etnólogo ou como ter Anthropological
significa que saibamos, conheçamos a Blues” Cadernos do programa de pós-
sua inserção na vida e no processo graduação em Antropologia Social –
social, que entendamos a lógica desta Rio, 1974.
inserção. A familiaridade pode ser, em DOUGLAS, Mary – Purity and Danger,
muitos casos, uma fonte de distorções, London: Routledge and Kegan
pois os nossos mapas sociais são, em Paul,1966(traduzido e publicado no
grande parte, construídos em cima de Brasil pela editora Perspectiva).
estereótipos e rótulos. Por outro lado, o DUMONT, Louis – Homo Hierarchicus, Paris,
fato de ser membro de uma Gallimard, 1966.
determinada sociedade e participante DURKHEIM, Emile e MAUSS, Marcel –
em uma cultura específica pode permitir  “De qualquer formes primitives de
um tipo de percepção e sensibilidade, a classification” em Mauss, Marcel, Essais
partir de uma vivência, difíceis de serem de Sociologique. Editions de Minuit,
atingidas por um observador de fora. Paris, 1968 e 1969.
Portanto, a possibilidade do antropólogo ELIAS, Norbert – La Civilisation des
procurar decodificar a própria cultura em Moeurs – Calman-Lévy. Paris, 1973.
que está inserido, por mais que envolva EVANS – PRITCHARD, E. E. –
riscos e dificuldades, parece ser uma Witchcraft, Oracles and Magic Among
etapa inevitável do desenvolvimento da the Azande, Oxford, Clarendon Press.
pesquisa antropológica, em que o 1937.
esforço de relativização chega a um FIRTH, Raymond – Elementos de
ponto crucial. Isto só pode ser possível Organização Social. Rio: Zahar, 1974.
num momento em que já existe um GANS, Hebert J. – Popular Culture
vasto conhecimento a respeito das and High Culture – Basic Books, 1974.
“outras” culturas, o que pode dar uma GEERTZ, Clifford – The Interpretation of Cultures,
dimensão comparativa como referência New York – Basic Books, 1973.
ao pesquisador de sua própria KROEBER A. L. and Kluckhon. C. –
sociedade e cultura. Culture: A Critical Review of Concepts

11
and Definitions, Vintage Books, New VELHO, Gilberto — Observando o
York,1952. Familiar em Nunes Edson . Org. O
LÉVI–STRAUSS, Claude – “Introduction Quotidiano da Pesquisa em Ciências
L´Oeuvre de Marcel Mauss” em Mauss, Sociais. Zahar, no prelo.
Marcel, Paris, P. U. F., 1950.
LINTON , Ralph – The Study of Man , New York, WIRTH, Louis – Urbanismo como Modo
Apleton- Century , 1936 de Vida. Em O Fenômeno Urbano,
LEACH . E. – Political Systems of Highland Zahar, 1966.
Burma, Harvard University Press, 1954.
MALINOWSKI, Bronislaw – Argonauts Gilberto Velho, Doutor em Cinências
of the Western Pacifc, London, Humanas, Mestre em Antropologia
Routledge and Kegan Paul, 1950. Social Professor e Subcoordenador do
  ___________ Uma teoria científica da Programa de Pós - Graduação em
cultura, Rio, Zahar, 1966. Antropologia Social do Departamento de
SAHLINS, Marshall D. – Culture and Antropologia do Museu Nacional da
Practical Reason – The University of  UFRJ. Professor Visitante e
Chicago Press, 1976. Conferencista em universidades nos
TURNER, Victor - The Forest of  Estados Unidos (Northwestern,
Symbols, Ithaca N. Y. Cornell University Columbia, Wisconsin, Boston).
Press.1967.
  _______ O Processo Ritual – Vozes, E. B. Viveiros de Castro, Mestre em
1974. Antropologia Social. Professor de
História da Cultura do Centro Unificado
Profissional (CUP).

12

Você também pode gostar