APOLONIA - AEpistolaAoDeusDoAmor
APOLONIA - AEpistolaAoDeusDoAmor
APOLONIA - AEpistolaAoDeusDoAmor
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ISSN printed: 1983-4675
ISSN on-line: 1983-4683
Doi: 10.4025/actascilangcult.v37i3.24284
Instituto Histórico Geográfico de São Paulo, Rua Benjamin Constant, 158, 01005-000, São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]
RESUMO. N’ A Epístola ao deus do amor (1399), surpreendemos a primeira querela literária instaurada por
uma mulher. Christine de Pisan comparece à tribuna palaciana, para combater em favor do feminino na
réplica contra a misoginia do Romance da rosa, de Jean de Meung. É nosso intuito analisar a carta no contexto
medieval; e, em função da distância que dele nos separa, incluímos alguns dados biográficos e históricos
antes da análise do corpus. Na Epístola, a autora se fez herdeira das Cortes de amor, em que à dama
correspondia a função de magistrado. A carta tem a força de uma sentença após julgamento do delito,
culminando com a solicitação de ser o veredicto executado. Da função de magistrado para a de educadora,
Christine dá continuidade ao processo civilizatório cristão, que propôs novas formas de relacionamento
entre homem e mulher. Ela sobressai pela habilidade em conduzir o debate até pôr em evidência os
‘sofismas’ da tese contrária. Na linha da dialética escolástica, cede a palavra aos opositores, mas quem
domina a estratégia de converter a agressividade do inimigo em força do aliado é quem rege a polifonia. A
Epístola ultrapassará o espaço da Corte para chegar à sociedade francesa, granjeando adeptos e adversários.
Palavras-chave: Idade Média, literatura, história, análise do discurso.
The letter of the god of love (1399): the first literary quarrelling set up by a woman to be
found in the french language
ABSTRACT. The letter of the god of love (1399) is the first literary quarreling surprisingly set up by a woman
to be found in the French language. Christine de Pizan appears at the palace tribunal to stand for women
by replying against the misogyny present in Roman de la rose [The Romance of the Rose]. It is our aim to
analyze Christine de Pizan’s discourse in the cultural context. Due to the long period of time between that
context and ours, we have included some biographical and historical data. She makes herself heir of the
Courts of love in which ladies took on the role of magistrates. The letter carries the force of a sentence passed
by a judge who has completed judging the offence, culminating with the instruction that the verdict shall
be executed. Playing a magisterial or educator role, Christine continues the Christian civilizing process by
proposing new forms of relationship between men and women. The outstanding quality of the author is
seen in her ability to conduct the contention and in bringing to light the sophisms included in her
opponent’s thesis. In accordance with the scholastic dialectical method, she gives the floor to her opponents
butis the one who rules the polyphony.The Lettermoves beyond the Court to reach the French society,
gaining supporters and enemies.
Keywords: Middle Ages, literature, history, discourse analysis.
Agostinho. O hábito de leitura das hagiografias, Meun (1240-1305), que se pauta por uma visão
gestas, novelas de cavalaria e lírica trovadoresca diminuída da mulher. A produção literária de
conquista um número cada vez maior de leitores. De Christine de Pisan não é um verso solto: integra o
acordo com Jacques Le Goff, o século XIII será o conjunto de obras e pronunciamentos de cunho
século da leitura e da escrita (cf. LE GOFF, 2008). pedagógico que, na França, desde o período
A partir da fundação das universidades (1088), carolíngio, tiveram o intuito de civilizar o
assistiríamos aos primeiros passos rumo à instância comportamento rude, por vezes bárbaro, do homem
secular do conhecimento. Reitores, mestres e alunos com relação à mulher. De fato, já nas homilias de
inauguraram um ambiente de estudo e discussão de Hicmar, do século VIII, defende-se a simetria
temas polêmicos de cunho religioso e profano. A homem-mulher na fidelidade conjugal do
busca da verdade: “É para dar testemunho da
casamento monogâmico:
verdade, que nasci e vim ao mundo. Todo aquele
que é da verdade, ouve a minha voz” (Jo 18, 37), A violência sexual é denunciada e equiparada aos
legitimada pelas palavras de Cristo e interpretada nos crimes mais hediondos da justiça pública. Essas
âmbitos sobrenatural e humano, não se restringiu à condenações veementes num Hicmar, por exemplo,
são o oposto de uma moral abstrata. Elas se dirigem a
academia ou às ordens religiosas, alargando-se como
um público real, àqueles aristocratas francos para os
meta acessível ao leigo, sobretudo aos que vivem nas
quais a violência e, em particular, o rapto eram ainda
cidades: homens de Estado, nobres, cortesãos, uma prática habitual. O modelo conjugal que a elite
médicos, juristas, comerciantes e mulheres de clerical busca, nessa altura, propor como regulador
prestígio. da violência sexual implica, além disso, num
Ampliam-se as referências filosóficas da fé e da reconhecimento da mulher como pessoa, como
vida humana. Conhecer é uma delas. Para consorte de pleno direito na sociedade familiar
compreender as verdades naturais e reveladas, é (TOURBET, 1986, p. 137)2.
necessário estudá-las. Na perspectiva de São Tomás A epístola ao deus do amor, com que Christine
(1225-1274), a fé não se opõe ao conhecimento inaugura a sua atuação pública, bem como A cidade
filosófico da Antiguidade, que lhe serviu de das mulheres (1405) e O livro das três virtudes (1406),
fundamento na Suma teológica (1265-1273). Ao em que igualmente defende o gênero feminino, dão
contrário, a leitura, o estudo e o cultivo das ciências
continuidade ao processo civilizatório cristão, que
humanas contribuíram para que a cristianização se
transformou a relação homem e mulher, sobretudo a
fizesse completa no ritual e na doutrina salvífica. Por
partir do casamento monogâmico. Segundo Jacques
sua vez, as manifestações artísticas e literárias, ao
Le Goff, a maior contribuição da Idade Média à
lado dos estudos filosóficos, buscaram instaurar o
humanidade foi a valorização da mulher, oficializada
cristianismo como referência do agir humano.
pela sacralidade da aliança nupcial:
Harmonia inerente à cultura medieval, que
preconizou a unidade entre o crer, o saber e a vida. [...] o que me parece absolutamente notável nessas
Por isso, não causa estranheza que os mosteiros, as disposições do Concílio de Latrão é evidentemente o
abadias e os conventos se fizessem núcleos de fato de que o casamento seja impossível sem o
salvaguarda da cultura clássica, de incentivo aos acordo do esposo e da esposa, do homem e da
mulher: a mulher não pode ser casada contra sua
estudos humanísticos e de fomento da pesquisa
vontade, ela tem de dizer sim (LE GOFF, 2008,
científica (cf. BARBOSA, 2001) ou o fato de as p. 123).
primeiras escolas se vincularem, arquitetonicamente,
à igreja sede. A partir do século XII, nas cidades em Em consonância, agregaram-se argumentos
que havia uma catedral, abria-se ao lado uma escola racionais e antropológicos ao imperativo de conferir
de alfabetização para crianças sem a exclusão das à mulher uma nova função e identidade no convívio
meninas, embora o avanço ainda não atingisse senão familiar e na vida social.
uma parte da população (BAUMGARTNER, 2002). Em sintonia com o novo paradigma de
É nesse largo panorama em que o conhecimento relacionamento feminino-masculino, produziram-
é objetivo a atingir que emerge a escrita de A epístola
ao deus do amor, como réplica contra o Romance da cortês e da visão da mulher em Lorris. Meun faz apologia do erotismo e dos
métodos de rapto e traição como recursos para subjugar a mulher (MEUNG;
rosa1, de Guillaume de Lorris (1200-1238) e Jean de LORRIS, 1798).
2
“La violence sexuelle y est dénoncée et assimilée aux crimes majeurs de la
justice publique. Ces condamnations véhémentes, chez um Hincmar par
exemple, sont à l’opposé d’une morale abstraite. Elles s’adressent bien à um
1
O ‘Romance’ alegórico contém duas partes escritas em octassílabos. A public réel, ces aristocrates francs pour lesquels la violence et, en particulier, le
primeira, redigida entre 1230 e 1240, com 4058 versos, de autoria de Lorris, rapt étaient encore pratique courante. Le modèle conjugal que l’élite clericale
dirige-se ao ambiente palaciano e se assemelha a um manual sobre a arte de cherche alors à imposer comme um régulateur de la violence sociale implique en
amar na perspectiva do fin’ amors. A segunda, com 17724 versos, foi escrita outre une reconnaissance de la femme comme personne, comme consors de
cerca de quarenta anos mais tarde, por Jean de Meun, que se afasta do amor plein droit dans la société familiale” (TOURBET, 1986, p. 137).
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The letter of the god of love (1399) written by Christine de Pisan 223
pois demonstraram coragem, bons sentimentos e papiro originária do Egito do primeiro século D.C:
cortesia. A seu ver, o destino faz justiça aos homens “Se tiveres um filho e se ele for menino, boa sorte!
maledicentes e hipócritas: são os mais trapaceados Deixe-o viver, mas se ele for mulher, exponha-o ao
pelas mulheres fúteis. A vulgaridade sempre se deixa relento” (MASSEY, s/d, p. 2).
atrair pelo baixo nível. Quanto aos princípios Nessa linha de análise, o código masculino de
religiosos, que servem de escudo à defesa do comportamento do Romance representava um
feminino, faz alusão às mulheres que ficaram junto à retrocesso e um desprezo pelas conquistas femininas
Cruz de Cristo, enquanto os apóstolos traíram o alcançadas na Idade Média (cf. MACEDO, 1995;
Mestre. Tece elogios à mãe de Jesus, às virtudes e à DUBY, 1997; LE GOFF, 2008). Christine quebra o
doutrina cristãs com ênfase para o apreço que Deus, silêncio e conclama a aristocracia cortesã parisiense a
contínuas vezes, manifestou pela mulher na história tomar partido e combater contra a maledicência e o
da salvação. Na presença do rei e da sociedade incentivo à caça e à sedução de mulheres. Para obter
palaciana, Christine conclui a Epístola, solicitando a adesão do público palaciano, a escritora participa
uma rigorosa punição para o comportamento como protagonista do costume cortesão dos serões
abominável de nobres e letrados que, em lugar da literários, respeitando as normas em vigor do gênero
gratidão devida à mãe e às irmãs, praticam e elogiam, epístola. No século XIV, as cartas eram coletivas:
sob o influxo do livro de Meun, os mais variados preenchiam uma função social, publicando-se, em
métodos de ludíbrio contra a mulher. um primeiro momento, de boca, na presença das
N’A epístola ao deus do amor3, surpreendemos a autoridades a que se dirigiam (cf. WATT, 1990).
primeira querela literária, em língua francesa, Nota-se que Christine teria levado em conta o
instaurada por uma mulher (ROUX, 2006). A poesia Dictaminis ephitalamium, acerca da arte de escrever
palaciana da Baixa Idade Média já contara, na França, cartas, redigido por Juan Gil Zamora no século XIII,
com a participação feminina nos debates literários com especial divulgação na França por meio de
(BAUMGARTNER, 2002). Na Península Ibérica, o preceituários de redação (cf. MONGELLI,
Cancioneiro geral de Garcia de Resende registra a FRATESCHI; 2003).
atuação de treze mulheres e quinze homens no Na quarta seção de sua obra, Zamora refere-se às
desafio poético lançado por Francisco da Silveira, e partes de que se devem compor as cartas: as
de sete poetisas na réplica de Nuno Pereira a saudações, a narração, a súplica e a conclusão. De
Henrique de Almeida sob a rubrica: ‘ajuda das acordo com as regras do Dictaminis ephitalamium, A
donzelas da senhora dona Felipa’. Nos serões da Epístola ao deus do amor configurar-se-ia como carta
Corte do século XIV a XVI, tal como mostra o de exortação e repreensão, incluindo a habitual
Cancioneiro, as mulheres declamam e compõem saudação ao deus Cupido e a seus súditos, mais
trovas, além de oferecer motes a serem glosados frequente nas cartas de amor. A narração, de teor
(CARVALHO, 2001). didático-doutrinário, abrange a maior parte da
Porém, com a Epístola, Christine é quem toma a Epístola, assumindo o caráter de argumentação em
iniciativa de combater, com palavras e em nome das favor da imagem e identidade femininas contra a
damas, contra o hedonismo do Romance, repercussão das máximas de Meun.
fundamentado na convicção de ser a mulher um É digno de nota que a carta se assemelhe a uma
mero complemento destinado à procriação e aos petição advocatícia e que a súplica final tenha a força
desejos instintivos do homem, como fora e a formalidade de uma sentença legal proferida após
considerada na Antiguidade. De acordo com Massey, análise e julgamento do delito, concluindo com o
na Grécia antiga, não obstante o fato de as leis requerimento de que seja o veredicto executado sem
atenienses distinguirem entre a mulher livre e a demora. Essa visão quase jurídica da relação amorosa
escrava, ou entre a ateniense e a estrangeira; entre não é senão uma das facetas de uma tendência mais
elas havia algo em comum: “[...] não dispunham de ampla da civilização medieval: representar-se no
nenhuma espécie de direito político e em qualquer exercício da justiça e tratar sob a forma de processo,
estágio de suas vidas, estavam sob o controle do com debate e julgamento, os problemas teológicos,
homem” (MASSEY, s/d, p. 1). Na mesma obra, o amorosos ou antropológicos (BAUMGARTNER,
historiador comenta que, desde os primeiros dias de
2002). Eis o final da Carta, em que a autora adota a
vida, a mulher carregava o fardo da sua inferioridade.
condição de promotora naquela contenda que em
Para atestar, cita o fragmento de uma carta em
breve ultrapassaria o espaço da Corte.
3
As citações do corpus foram extraídas de: ‘L’epistre au Dieu d’ Amours’, de Que sejam insultados, punidos
Christine de Pisan, traduzido do francês arcaico para o português pela autora vergonhosamente,/Presos e atados por corda, e que a
deste artigo. Texto original por Gállica Bibliothèque Nacionale de France (PISAN,
1399). justiça seja feita,/Sem que se sofra mais e nenhuma
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injúria [seja] feita, /Nós o desejamos assim e é de escritora aos olhos da realeza e dos fidalgos. Ao lado
direito,// Executada seja sem nenhuma da legitimação circunstancial e, em parte, em
prorrogação./Publicada oralmente, em nosso grande
decorrência dela, confirma-se a autoridade
palácio, /No dia de Maio durante a solene festa/ Na
qual os amantes nos fazem muitas súplicas, /No ano enunciativa de Christine na instância de advogada
de graça de mil trezentos e noventa e nove [...] das mulheres e de promotora contra a selvageria de
(v. 790-795)4. nobres e cavaleiros. Ninguém melhor do que a
depositária da confidência de damas e donzelas para
Portanto, Christine não é apenas tributária do
exercer a cátedra de amparo das vítimas e de
gênero carta, mas ainda da tradição medieval das
acusação contra o código masculino em vigor.
Cortes de amor. A sociedade francesa, a partir do
Ainda contribui, para validar o direito à palavra, a
século XII, confiara a mulheres ilustres como inegável qualificação enunciativa da escritora,
Aliénor d’Aquitaine, Adèle de Champagne, evidente no conhecimento literário, religioso e
Ermengarde de Narbonne, ou ainda à própria Marie histórico presente n’ A epístola ao deus do amor. Alude
de Champagne, a possibilidade de julgar impasses aos protagonistas da Odisséia e da Eneida, à Medeia e a
amorosos (PERNOUD, 1980). A atenção do Ovídio, cuja obra e biografia conhece. No campo da
público convergia para os cavaleiros, mas às damas cultura bíblica, comenta e interpreta a atuação de
correspondia a palavra final nas Cortes de amor: personagens em episódios paradigmáticos do Novo e
espécie de tribunal em que as mulheres emitiam o do Antigo Testamento, sabendo conjugar
veredicto, implantando as normas de uma verdadeira originalidade e apreço pela ortodoxia eclesiástica.
ética e jurisprudência do amor. Damas e cavaleiros Afirmará a respeito da natureza feminina, sob o
examinavam os casos que lhes eram submetidos, influxo do culto mariano: “Do que se pode dizer, e
discutiam-nos, recorrendo à arbitragem dos nobres, não é heresia, /Que muito lhe fez o alto Deus
mas, em especial, das mulheres, por serem cortesia” (v. 695-696). Manifesta ainda estar a par de
acontecimentos do passado próximo: refere-se a
consideradas as mais exímias na arte da cortesia5.
cavaleiros e intelectuais notáveis na França como:
Como implicação desse privilégio confiado ao
Hutin de vermeilles e Othe de grançon (PISAN, 1399,
gênero feminino, entendemos por que foi acessível a v. 225-226; 223). Observa-se, assim, ao longo da
Christine de Pisan o direito de salvaguardar a carta, a sutileza que tem a autora para ler os fatos da
reputação feminina e de julgamento, acompanhado contemporaneidade e delimitar as causas das
de punição, contra os adeptos do neopaganismo do mudanças sociais e dos costumes em prejuízo da
Romance, obra com vigorosa força de penetração a mulher.
partir dos séculos XIV e XV. Por sua vez, o cunho pedagógico da escrita de
Apesar das prerrogativas concedidas à mulher no Christine dá sequência ao sulco forjado por outras
Direito Canônico e na administração política com mulheres nos núcleos de cultura religiosa e leiga da
ressonâncias no ambiente palaciano, Christine tem o sociedade medieval. A esse respeito, afirma Verdon
cuidado de construir e consolidar a sua legitimação que não era raro haver mulheres escritoras cujo
perante o público cortês. No status de advogada da objetivo era educar ou ensinar normas de
condição feminina, ela é instada a revelar, ainda nos comportamento (VERDON, 1999). Também
primeiros versos da carta, os bastidores da Régine Pernoud, desta vez citando Karl Bartsch,
enunciação, isto é, as circunstâncias que justificaram estudioso dos manuscritos femininos, registra a
a decisão de redigir e proferir oralmente A epístola ao informação surpreendente de que as mulheres, na
deus do amor: Idade Média, liam mais do que os homens. E
Levamos ao seu conhecimento, em síntese,/Que à
comenta a historiadora francesa que se poderia ir
nossa Corte vieram compungidas/Diante de nós, mais longe e acrescentar que elas não se
muito piedosas lamentações/ Da parte de damas e contentavam com ler, mas com frequência
donzelas,/ Nobres, burguesas e virgens,/ E todas escreviam, e que esses manuscritos, que
essas mulheres, em geral,/ Requerendo nosso testemunham o saber de sua época, foram, muitas
socorro humildemente [...] (v. 8-14). vezes, copiados por mãos femininas (PERNOUD,
Fica claro tratar-se de narração e defesa 1980).
delegadas, o que fortalece a representatividade da Apesar do percurso intelectual encetado pela
mulher e da representatividade de que gozava
4
“Injuriez, punis honteusement,/Pris ct liez, et justice en soit faitte,/Sanz plus Christine de Pisan, a poetisa revela perfeita lucidez
souffrir nulle injure si faitte,/Ne plus ne soit souffert telle laidure./Nous le voulons
ainsi et c'est droitture”.
quanto à ousadia do seu status e ao risco que corre,
5
No ‘Tratado do amor cortês’, André Capelão apresenta um capítulo com a pois tem a diligência de tecer, no interior do texto, a
arbitragem da mulher em casos complexos de julgamento do amor
(cf. CAPELÃO, 2000). sua autodefesa:
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E se a esse respeito eu quisesse tudo dizer//Eu teria E ainda assim, do que mais se doem,/Dos nobres que
receio de me expor a alguns que leem/ Pois muitos mais costumavam guardá-las./Pois no presente são
com frequência por dizer a verdade/ São muitos cavaleiros/E escudeiros e muitos duques e
importunados e contrariados (v. 629-632)6. investidos/[De quem se queixam] de traí-las com
belos elogios.//Eles fingem ser leais enamorados/E se
De fato, A epístola ao deus do amor não tem origem na cobrem de variadas fantasias; (v. 31-37)10.
iniciativa temerária de uma mulher cuja coragem Juram de fato e prometem e mentem/Ser leais,
decorre da inexperiência ou da precipitação emotiva. discretos, e depois se vangloriam disso./De ir com
Em várias estrofes, nós a flagramos na delicada frequência e de vir sofrem,/Por aqui e lá andam a
tensão de entrelaçar o dizer com o não dizer, pé,/Olhando-se, apoiam-se uns aos outros.
(v. 45-49)11.
sabendo discernir entre as ocasiões que tornam mais
oportuno o silêncio ou a palavra: Na contramão do Romance da rosa, no qual a
Se me for suficiente louvar sem criticar;/Pois se pode dissimulação e a astúcia são recursos necessários para
alguma coisa boa divulgar [...] //Se é melhor do dizer submeter a mulher (MEUN, LORRIS; 1798, v. 5),
repousar/ Por isso me calo, que cada um julgue por para Christine, esses são os vícios que mais repudia
si (v. 635-636; 640-642)7. nos cavaleiros e letrados. Refere-se, em várias
Ao lado da arte sutil de fazer da discrição um estrofes, às calúnias e à conivência na perversidade
recurso, a autora atenua a possível rigidez da audácia com que se injuriam as mulheres. Com idêntico
com o caráter lúdico das tertúlias literárias. Não se critério, descreve os traços da nobreza de caráter de
trata de um expediente aleatório ou de pura fantasia. quem efetivamente sabe amar:
É mais eficaz convencer e granjear adeptos num Se eu lhes proíbo vilania e maldade,/E lhes ordeno
clima de descontração, que ameniza as asperezas do de aderir à honra de fato,/Ser leais, discretos e, de
embate. Christine aproveitou-se do entretenimento fato, bendizentes,/Generosos, corteses, e fugir dos
para eleger como interlocutor O deus cupido e, como maldizentes,/ Humildes, e doces, galantes e
testemunhas de sua reivindicação, outras figuras amáveis// Firmes e francos [...] (v. 75-80)12.
mitológicas: O paradigma que Christine delimita não decorre
Cupido, rei pela graça dele mesmo,/ Deus dos que somente da sua sensibilidade e percepção, antes
amam, sem ajuda de ninguém/Reinando na corresponde à expectativa da opinião pública
atmosfera muito reluzente do céu,/Filho de Vênus, a plasmada pelas instituições medievais. À sombra de
deusa poderosa. (epígrafe)8
qualidades como honra, generosidade, firmeza,
Estando presentes deuses e divindades, /Pelo deus do
amor poderoso/ E mais ao conjunto de cem deuses humildade e sinceridade, divisamos os ideais da
de grande poder,/ Para que confirmem e atendam cavalaria, embora os bons modos pudessem ser
nosso querer (v. 800-804)9. incluídos nesse rol, pois faziam parte dos princípios
cavaleirescos. N’O livro de ordem da cavalaria,
Em particular, graças à linguagem alegórica da
do século XIII, acrescenta-se à lealdade,
saudação e da súplica final, a Epístola configura uma
à liberalidade e à piedade, a cortesia, como
relação dialógica ambígua, implantando dois níveis
virtude que honra a Instituição (LLULL, 2010). Em
de interlocução: o primeiro, mitológico ou de
comicidade, que vai ao encontro dos passatempos outro trecho da mesma obra, Llull caracteriza
palacianos, capaz, no entanto, de legitimar a segunda a têmpera do cavaleiro, salientando que a ele
interlocução; esta, de relevo, de cunho educativo e não bastam a linhagem, o cavalo, ou a
repercussão social, o que confere à Epístola a destreza para fazer jus à honra de pertencer à
categoria de reportagem concreta, circunstanciada e Ordem:
precisa, a que não faltou a interpretação dos fatos e a Logo, se desejas encontrar nobreza de coragem
acusação dirigida a um alvo específico: os cavaleiros demanda-a à fé, esperança e caridade, justiça,
e os aristocratas dos quais cobra mudança de fortaleza, lealdade, e às outras virtudes, porque
[nelas] está nobreza de coragem, e por aquelas o
conduta:
10
6 “Et meismement, dont plus griefment se deulent,/Des nobles gens qui plus
“Et se sur ce je vouloie tout dire//Doubte aroie d'encorir d'aucuns l'ire;/Car moult garder les seulent./Car a present sont pluseurs chevaliers/Et escuiers mains duis
souvent pour dire verité/Mautalent vient et contrarieté”. et coustumiers/D'elles traÿr beaulx blandissemens./Si se faignent estre loyaulx
7
“Si me souffist de louer sanz blasmer;/Car on peut bien quelque riens bon amans/Et se cueuvrent de diverse faintise;”.
clamer [...]//Si se vault mieulz du dire reposer. Pour ce m'en tais, si en soit 11
“Et jurent fort et promettent et mentent /Estre loiaulx, secrez, et puis s'en
chascun juge”. vantent./D'aler souvent et de venir se peinent,/Par ces moustiers ça et la se
8
“Cupido, roy par la grace de lui,/Dieu des amans, sanz aide de nullui/Regnant en pormenent/En regardant, s'apuient sus aultelz”.
l'air du ciel trés reluisant,/Filz de Venus la deesse poissant,”. 12
“Si leur deffens villenie et meffait,/Et leur commans poursuivre honneur de
9
“[...] present dieux et divins./ par le dieu d'amours poissant / A la relacion de fait,/Estre loiaulz, secrez et voir disans,/Larges, courtois, et fuïr
cent/ Dieux et plus de grant pouoir,/ Confermans nostre voloir:”. mesdisans,/Humbles et doulz, jolis et assesmés”.
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The letter of the god of love (1399) written by Christine de Pisan 227
nobre cavaleiro se defende da maldade e do engano e de julgamento da poetisa impôs enérgica repreensão.
dos inimigos da Cavalaria (LLULL, 2010, p. 55)13. As frívolas também infringem as leis do amor cortês,
Tanto A epístola ao deus do amor quanto o livro de que não dispensam a mulher do domínio sobre a
Llull priorizam, como fundamento do agir, a paixão e o transbordamento das emoções. O zelo da
espiritualidade cristã; e como juízo de valor, o privacidade, o recato e a discrição eram de tal modo
mérito. A bondade do coração deve preceder às inerentes à identidade feminina que André Capelão
iniciativas e à audácia para implementar a justiça e a só fala dessas virtudes indiretamente, quando cobra
ordem social. Como ideário dos cavaleiros, sobressai dos homens o apreço pela delicada interioridade da
a defesa das viúvas, dos órfãos, dos anciãos e de mulher. A exposição do que é íntimo não se coaduna
todos os incapazes de impor-se contra a injustiça. com o status feminino e medieval de obra-prima da
Em consonância, a Epístola combate em favor da criação, atribuído à Maria, a Nova Eva (PELIKAN,
reputação feminina num momento histórico em que 2000), e, de Maria, por contágio, a todas as
a honra era prezada mais do que os bens materiais, e mulheres.
ser como Christine era uma exceção. Chama-nos a atenção a destreza intelectual de
Igualmente na Epístola avulta a exigência de Christine, patente na construção lógica e dialética da
refinamento nos gestos e nas palavras. Os atributos carta. O texto reproduz a estrutura dos debates
do padrão masculino – ‘discretos, doces, galantes e acadêmicos (NUNES, 1978; ROPS, 1993), pondo
amáveis’ – manifestam o apreço pela elegância em relevo a finura e a sutileza de argumentação da
cortesã. Em destaque, o entrelaçamento do escritora. Em sintonia com a dialética escolástica,
paradigma cavaleiresco com a essência das normas Christine propõe o problema: a mulher está sendo
de cortesia. No amor cortês, é preciso manter as difamada por nobres, letrados e cavaleiros, que a
rédeas do cavalo para dominar o imediatismo do consideram vulgar, leviana e inconstante. Depois de
instinto e alcançar a virtude (BURIDAN, 2000, narrado o fato em circunstâncias pormenorizadas, a
p. XLIX). O sentimento amoroso se enobrece com a proponente formula a questio, isto é, o tema polêmico
contenção dos impulsos e a disciplina do desejo; e responsável pela divergência de opiniões. A mulher
quando a razão e o alto conceito da mulher é, por natureza, inferior ao homem? Têm ou não
subjugam a impulsividade, conquista-se a razão, aqueles que a diminuem?
sublimação do amor (CAPELÃO, 2000), implícita
Christine examina os argumentos da tese
na mesura do relacionamento humano; em especial,
misógina.
na arte de cortejar as damas. Em síntese, nota-se em
Ramon Llull, Capelão e Christine o intuito de Em versos dizem: Adão, Davi, Sansão,/E Salomão e
instruir ou resgatar o comportamento de amantes e outros foram seduzidos cabalmente pela mulher;
(v. 267-268) Outros dizem que muitas são
cavaleiros nos moldes da ascese cristã e do amor
mentirosas,/Variáveis, instáveis e frívolas
cortês num período em que se assiste ao declínio dos (v. 273-274)15.
fundamentos e das diretrizes que construíram a
Civilização Ocidental (COULANGES, 2003). Várias vozes comparecem na cenografia da Epístola,
N’A epístola ao deus do amor, Christine amplia a instaurando uma autêntica polifonia, em que a
sua função de educadora: não se reportando somente autora cede a palavra aos adversários, para em
aos homens, dirige-se à plateia feminina para alertar seguida, na linha de argumentação tomista
contra a postura ingênua e simplória que fazia das (GILSON, 2001), fazer luzir os sofismas da visão
donzelas, vítimas fáceis das estratégias masculinas de redutora da mulher. Eis a resposta que dirige àqueles
sedução. Tem consciência de que ao desmascarar a que mencionam os reis de Israel para ressaltar a
devassidão masculina, contribui igualmente para o nociva sedução feminina:
amadurecimento e a capacidade de percepção da
Sem guardar lealdade, faro às mais belas./O que
mulher: “Pois as virtudes dominam os vícios./E, se nesse sentido ousaram Davi e Salomão, o rei ?//Deus
há entre as mulheres algumas ingênuas,/Esta se encarregou e puniu o desregramento
Epístola lhes pode servir de ensinamento” (v. 318-312)16.
(v. 767-769)14. Das críticas perspicazes de Christine,
Ora, a culpa, Deus a imputou ao homem, e não à
não escaparam as mulheres fúteis às quais a isenção
mulher. A tese da leviandade feminina, em pauta nas
13
“On, si vols trobar nobelitat de coratge, demana a fe, sperança, caritat, justícia,
15
fortitudo, leyaltat e a les atres virtuts, cor en aquelles stà noblea de coratge, e per “En vers dient, Adam, David, Sanson,/Et Salemon et auitres a foison/Furent
aquellas noble cor de cavayler se deffèn a malvestat e angan e a los enamics de deceuz par femme […]//Autres dient que trop sont mencongieres,/Variables,
cavaylaria” (LLULL, 2010, p. 54). inconstans et legieres,”.
14 16
“Car les vertus si enchacent les vices./Et, s'il est des femmes aucunes “Sanz loiaulté tenir, nez aux plus belles./Qu'en ot David et Salemon le
nyces,/Cest' Epistre leur puist estre dottrine”. roy?/Dieu s'en courça et puni leur desroy”.
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228 Apolonia
assembleias dos homens, serve de eco a Ovídio17 e à encontrar// Para seduzir nada mais que uma virgem,/
misoginia de Jean de Meun18. As vozes e os Só esse é o objetivo, por fraude e com cautela!/A um
argumentos dos opositores ressoam N’A epístola ao lugar fraco é então necessário um grande
assalto?/Como se pode ao alcance da mão fazer-se
deus do amor. Porém, Christine mostra-se exímia na
um grande assalto?/Eu não sei conceber ou
técnica retórica de levar às últimas consequências a
compreender isso. (v. 390-399)20.
inconsistência da hipótese adversária:
A autora parece saborear o golpe de mestre que
E como então sendo frágeis e levianas,//E
infringe ao oponente, de que decorre a ironia e a
inconstantes, simplórias e totalmente ingênuas/ São
as mulheres, tal como dizem alguns letrados,/ que redundância do texto, que não agregam fatos novos
necessidade há para aqueles que pregam/De tanto se ao relato, para tão só revelarem a vibração de quem
armar de cautela?/E por que rapidamente não se ataca com júbilo, exultando na convicção da vitória:
submetem elas//Sem que faça falta arte ou engenho “Que grande esforço faz falta para um fraco lugar
para capturá-las?/Porque para castelo conquistado dominar,/Ou arte ou engenho ou grande sutileza”
não é necessário guerra empreender (v. 379-386)19. (v. 400-401)21. Eis agora o arremesso decisivo,
Na referência aos letrados e na alusão ao castelo e construído com palavras e delicada maestria para
à arte, vem à tona o diálogo intertextual da Epístola derrubar o antagonista:
com o Romance da rosa. A sátira ao amor cortês, em Para quem tudo é necessário, /Pois convém arte,
Meun, reproduz uma ascese às avessas: a aventura e grande engenho e grande esforço,/Para enganar
os riscos na floresta para chegar ao castelo e colher a mulher nobre ou burguesa,// É porque elas não são
rosa, a jovem virgem, não representam o heroísmo nada instáveis,/Tal como diz alguém, nem as faça tão
de quem serve à mulher. Os obstáculos funcionam flexíveis (v. 403-406)22.
como ritual de iniciação para vencer o equilíbrio Conquista merecida, ainda mais valiosa, porque
racional, o medo e a vergonha. O desejo carnal deve arrancada a um forte interlocutor em combate
se impor à voz da consciência na captura da donzela. desigual:
O autor subverte as pregações religiosas e ensina
E se alguém me diz: todos os livros estão cheios
como dar ouvido à tentação e vencer o conflito
dessas qualificações,/É a resposta de que mais eu me
interior entre respeitar a liberdade da mulher e
lamento,/Eu lhes respondo que os livros não os
obedecer à lascívia de Júpiter e ao ímpeto instintivo fizeram// As mulheres [...] (v. 407-410)23.
de Vênus. Não há apreço pela sensibilidade e pela
inteligência das mulheres solteiras ou casadas. Em Mais uma vez nos deparamos com a velada
realce, a sagacidade do homem que alcança justificar, interlocução da Epístola com o Romance, no qual se
aos próprios olhos, o uso da emboscada na conquista afirma ser a mulher infiel e dissoluta, não
da jovem por meio de uma concepção merecendo que nenhum homem com ela se
preconceituosa da mulher: todas são pervertidas, comprometa em matrimônio (MEUN; LORRIS,
indiscretas e maliciosas (MEUNG; LORRIS, 1798). 1798). A esse desprezo pelo feminino, Meun
Em contrapartida, Christine denuncia, como acrescenta que, uma vez e infelizmente casado, o
sofisma, o aviltamento das damas e donzelas no homem não faça gastos com a mulher; ao contrário,
Romance e na Corte de Paris; o que fortalecerá a tese deve se apossar de seus bens e nunca permitir que
que defende. Eis a estratégia retórica de converter, ela tenha mais instrução do que ele, sob a ameaça de
nessa guerra verbal em que está em jogo a honra ser subjugado pelo muito saber da esposa
feminina, a agressividade do inimigo em força e (cf. MEUN; LORRIS, 1798, v. 5). De fato, como
comenta Christine, é lamentável que a literatura
conquista do aliado:
esteja sob o domínio dos homens. Porém, essa não é
Que longo processo!/Que difícil coisa!/E ciências a última palavra. A poetisa, que foi a primeira
claras e obscuras/São introduzidas nessa [arte] e mulher a defender por escrito a mulher e a viver do
grandes aventuras!/E a quantas pessoas suplicar e retorno financeiro de suas obras, não se calará até o
contestar/E quanto sofrimento e obstáculos
final de sua vida.
17
Na ‘Arte de amar’, Ovídio salienta que as promessas atraem as mulheres. 20
Aconselha, portanto, ao amante prometer e, para ter credibilidade perante a “Quel long procès! quel difficile chose!/Et sciences et cleres et obscures/Y met
amada, invocar todo e qualquer deus, pois nas alturas celestes Júpiter ri dos il la et de grans aventures!/Et que de gent soupploiez et rovez/Et de peines et de
juramentos dos amantes e ordena aos ventos de Éolo que os anulem (OVÍDIO, baraz trouvez//Pour decepvoir sanz plus une pucelle,/S'en est la fin, par fraude et
1992). par cautelle!A foible lieu faut il donc grant assault?/Comment peut on de près
18 faire grant saut?/Je ne sçay pas ce veoir ne comprendre”.
O ‘Romance da rosa’ também propõe a entrega de presentes e o fingimento 21
como meio para o homem granjear a satisfação sexual. (cf. MEUNG; LORRIS, “Que grant peine faille a foible lieu prendre,/Ne art n'engin, ne grant soubtiveté”.
22
1798, v. 5). Meun foi leitor e admirador de Ovídio. “Dont convient il tout de neccessité,/Puis qu'art convient, grant engin et grant
19
“Et comment donc quant fresles et legieres,/Et tournables, nyces et pou peine,/A decevoir femme noble ou villaine,//Qu'elz ne soient mie si variables,”.
23
entieres/Sont les femmes, si com aucuns clers dient,/Quel besoing donc est il a “Et s'on me dit li livre en sont tuit plein,/C'est le respons a maint dont je me
ceulz qui prient/De tant pour ce pourchacier de cautelles?/Et pour quoy tost ne s'i plain,/Je leur respons que les livres ne firent//Pas les femmes, ne les choses n'i
accordent elles//Sanz qu'il faille art n'engin a elles prcndre?” mirent”.
Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 37, n. 3, p. 221-231, July-Sept., 2015
The letter of the god of love (1399) written by Christine de Pisan 229
Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 37, n. 3, p. 221-231, July-Sept., 2015
230 Apolonia
mulher introduzida pela leitura e a produção de BAUMGARTNER, E. Moyen age. In: CHRISTIANE,
livros inspirados em autores da Antiguidade. As O.; GUILLEMOT, M. (Org.) Histoire de la
littératureFrançaise. Paris: Larousse, 2002. p. 5-153.
duras palavras de Christine contra Ovídio e Meun
BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Claretiana, 2012.
abalaram o mundanismo palaciano e repercutiram
BURIDAN, C. Introdução ao tratado do amor cortês. In:
nos círculos acadêmicos e de cultura da França, CAPELÃO, A. Tratado do amor cortês. São Paulo:
instigando a opinião pública a tomar partido em Martins Fontes, 2000. p. IX- LXXVII.
favor da Epístola ou do Romance. Em destaque, a CAPELÃO, A. Tratado do amor cortês. São Paulo:
dimensão social da arte e o compromisso da autora Martins Fontes, 2000.
com a defesa das virtudes da mulher. Damas e CARVALHO, J. S. O cancioneiro geral, de Garcia de
donzelas, que Christine não apenas representou, Resende. In: CASTRO, F. L. (Org.). História da
mas igualmente elevou, graças ao vigor humano e ao literatura Portuguesa: das origens ao cancioneiro de
Garcia de Resende. Lisboa: Alfa, 2001. p. 513-599.
cunho emblemático de sua obra.
COULANGES, F. A cidade antiga. São Paulo: ERT,
A beleza plástica das alegorias e dos espaços do 2003.
Romance de Meun e a sátira expressiva dos defeitos DUBY, G. Damas do século XII: a lembrança das
femininos também ganharam discípulos entre jovens ancestrais. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
e intelectuais de prestígio. Dentre eles, Jean de GILSON, E. A filosofia na Idade Média. São Paulo:
Montreuil e Gontier Col. e o posterior poeta francês Martins Fontes, 2001.
Rabelais. Christine, por sua vez, contou com aliados HAUSER, A. História social da arte e da literatura.
no mundo acadêmico e religioso, como Martin São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Franc e Jean Gerson; este, chanceler da LE GOFF, J. Uma longa Idade Média. São Paulo:
Universidade de Paris. Professores de renome Companhia das Letras, 2008.
escreveram dissertações em defesa da honra LLULL, R. O livro da ordem de cavalaria. Trad.
Ricardo da Costa. São Paulo: IBFC Raimundo Lúlio,
feminina e do casamento cristão contra a misoginia 2010.
do Romance da rosa. Porém, foi Christine quem MACEDO, J. B. Mulheres e política no século XV
liderou o litígio oralmente e por escrito contra seus português: considerações críticas. In: MOURA, V. G.
opositores. A polêmica exacerbou-se: Gontier Col (Ed.). Oceanos: mulheres no mar salgado. Lisboa:
impôs à poetisa que se retratasse da crítica contra o Comissão Nacional para as Comemorações dos
Romance da rosa, o que ela não fez (ROUX, 2006). Ao Descobrimentos, 1995. p. 18-20.
contrário, Christine não agiu sob pressão e MASSEY, M. Women in ancient greece and rome.
Sydney: Cambridge University Press, s/d.
continuou a pensar por conta própria. No poema: Le
MEUNG, J.; LORRIS, G. Le roman de la rose. Paris:
ditié de Jeanne D’ Arc (PISAN, 1429), com que ela se Gállica Bibliothèque Nacionale de France, 1798.
despede da vida, e na contramão das tendências em MONGELLI, L. M.; FRATESCHI, Y. A estética
vigor, a escritora ainda empresta a palavra a Jeanne medieval. Cotia: Íbis, 2003.
D’Arc (1412-1431), que não terá voz nem vez para NUNES, R. A. C. História da educação na Idade
se defender e, com mentiras e ignomínias do Média. São Paulo: Edusp, 1978.
interesse político, seria condenada à morte no OVÍDIO, P. Arte de amar: ars amatoria. São Paulo: Ars
simulacro do julgamento que não houve27. Christine Poética, 1992.
falou por ela!28. PELIKAN, M. Maria através dos séculos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
Referências PERNOUD, R. Les femmes au temps des catédralles.
Paris: Stock, 1980.
BARBOSA, P. G. Uma introdução à literatura
portuguesa. In: CASTRO, F. L. (Org.). História PISAN, C. L’epistre au Dieu d’ Amours. Paris: Gállica
da literatura Portuguesa: das origens ao cancioneiro Bibliothèque Nacionale de France, 1399.
de Garcia de Resende. Lisboa: Alfa, 2001. PISAN, C. Le ditié de Jeanne D’ Arc. Paris: Gállica
p. 13-33. Bibliothèque Nacionale de France, 1429.
BASCHET, J. A civilização feudal: do ano mil à ROPS, D. A igreja das catedrais e das cruzadas. São
colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. Paulo: Quadrante, 1993.
ROUX, S. Christine de Pisan: femme de tête, dame de
27
Jeanne D’ Arc foi capturada em Paris em 1430, vendida aos ingleses pelos coeur. Paris: Payot, 2006.
borguinhões e queimada viva, em 1431, por um tribunal eclesiástico manipulado
pelos ingleses, falsamente acusada de heresia. Contou com a defesa de Gerson TOURBET, P. Le moment carolingien. In:
(cf. BAUMGARTNER, 2002). Em 1920, foi canonizada pela Igreja Católica.
28
BURGUIÈRE, A.; KLAPISCH, C.; SEGALE, M.;
O texto original de ‘Le ditié de Jeanne D’Arc’ pode ser encontrado em Gallica
Bibliothèque Nacionale de France, 2014. ZONABEND, F. (Dir.). Histoire de la famille:
Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 37, n. 3, p. 221-231, July-Sept., 2015
The letter of the god of love (1399) written by Christine de Pisan 231
Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 37, n. 3, p. 221-231, July-Sept., 2015