Foucault - O Que É A Crítica Crítica e Aufklärung PDF
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Foucault - O Que É A Crítica Crítica e Aufklärung PDF
[Crítica e Aufklärung]
Para a questão que gostaria de vos falar hoje, eu não dei título. O Sr. Gouhier
bem quis dizer a vocês com indulgência que é em função da minha estada no
Japão. Para dizer a verdade, é uma muito amável atenuação da verdade.
Digamos que, efetivamente, até esses últimos dias, por pouco não tinha
encontrado título; ou antes, tinha um que me perseguia mas que eu não queria
escolher. Vocês verão por que: foi indecente.
Na realidade, a questão que gostaria de falar a vocês, e que quero sempre vos
falar, é: O que é a crítica? Seria preciso tentar manter alguns propósitos em
torno desse projeto que não cessa de se formar, de se prolongar, de renascer
nos confins da filosofia, sempre próximo dela, sempre contra ela, às suas
custas, na direção de uma filosofia por vir, no lugar talvez de toda filosofia
possível. E parece que entre a alta empreitada kantiana e as pequenas
atividades polêmico-profissionais que trazem esse nome de crítica, me parece
relação com a sociedade, com a cultura, uma relação com os outros também, e
que se poderia chamar, digamos, de atitude crítica. É claro, vocês ficarão
espantados ao ouvir dizer que há alguma coisa como uma atitude crítica e que
seria específica da civilização moderna, então que houve tantas críticas,
polêmicas etc. e que mesmo os problemas kantianos têm, sem dúvida, origens
bem mais longínquas que aqueles séculos XV-XVI. Ficarão espantados também
de ver que se tenta procurar uma unidade para essa crítica, que ela parece
prometida pela natureza, pela função, eu ia dizer pela profissão, à dispersão, à
dependência, à pura heteronomia. Além disso, a crítica existe apenas em relação
a outra coisa que não ela mesma: ela é instrumento, meio para um devir ou uma
verdade que ela não saberá e que ela não será, ela é um olhar sobre um domínio
onde quer desempenhar o papel de polícia e onde não é capaz de fazer a lei.
Tudo isso faz dela uma função que está subordinada por relação ao que
constituem positivamente a filosofia, a ciência, a política, a moral, o direito, a
literatura etc. E, ao mesmo tempo, quais que sejam os prazeres ou as
compensações que acompanham essa curiosa atividade de crítica, parece que
ela traz, de modo suficientemente regular, quase sempre, não somente alguma
rigidez de utilidade que ela reivindica, mas também que ela seja subtendida por
uma sorte de imperativo mais geral - mais geral ainda que aquela de afastar os
erros. Há alguma coisa na crítica que se aparenta à virtude. E de uma certa
maneira, o que eu gostaria de dizer a vocês era da atitude crítica como virtude
em geral.
localiza-se uma questão perpétua que seria: "como não ser governado assim,
por isso, em nome desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de
tais procedimentos, não dessa forma, não para isso, não por eles"; e se se dá a
esse movimento da governamentalização, da sociedade e dos indivíduos ao
mesmo tempo, a inserção histórica e a amplitude que creio ter sido a sua,
parece que se poderia colocar deste lado o que se chamaria atitude crítica. Em
face, ou como contra-partida, ou antes como parceiro e adversário ao mesmo
tempo das artes de governar, como maneira de suspeitar dele, de o recusar, de
o limitar, de lhe encontrar uma justa medida, de os transformar, de procurar
escapar a essas artes de governar ou, em todo caso, deslocá-lo, a título de
reticência essencial, mas também e por aí mesmo como linha de
desenvolvimento das artes de governar, teria tido qualquer coisa nascida na
Europa nesse momento, uma sorte de forma cultural geral, ao mesmo tempo
atitude moral e política, maneira de pensar etc. e que eu chamaria
simplesmente arte de não ser governado ou ainda arte de não ser governado
assim e a esse preço. E eu proporia então, como uma primeira definição da
crítica, esta caracterização geral: a arte de não de tal forma governado.
Vocês me dirão que esta definição é ao mesmo tempo bem geral, bem vaga,
bem fluida. Seguramente! Mas eu creio mesmo assim que ela permitiria marcar
alguns pontos de ancoragem precisos do que eu tentei apelidar atitude crítica.
Pontos de ancoragem históricos, é claro, e que se poderia fixar assim:
1º. Primeiro ponto de ancoragem: numa época onde o governo dos homens
era essencialmente uma arte espiritual, ou uma prática essencialmente religiosa
ligada à autoridade de uma Igreja, ao magistério de uma Escritura, não querer
ser governado desta forma, era essencialmente buscar na Escritura uma outra
relação que não aquela ligada ao funcionamento da lição de Deus, não querer
ser governado era uma certa maneira de negar, recusar, limitar (digam como
quiserem) o magistério eclesiástico, era a volta à Escritura, era a questão do
que é autêntico na Escritura, do que foi efetivamente escrito na Escritura, era a
questão de qual é a sorte de verdade que diz a Escritura, como ter acesso a esta
verdade da Escritura na Escritura e a despeito talvez do escrito e até o que se
chega com a questão finalmente mais simples: a Escritura era verdadeira? E em
2º. Não querer ser governado, está aí o segundo ponto de ancoragem, não
querer ser governado assim, não é não mais querer aceitar essas leis porque
elas são injustas, porque, sob sua antigüidade ou sob o seu brilho mais ou
menos ameaçador que lhes dá a soberania de hoje, elas escondem uma
ilegitimidade essencial. A crítica é então, desse ponto de vista, em face do
governo e à obediência que ele exige, opor direitos universais e imprescritíveis,
aos quais todo governo, qual seja ele, que se trate do monarca, do magistrado,
do educador, do pai de família, deverá se submeter. Em suma, se vocês querem,
reencontra-se aí o problema do direito natural.
3º. E enfim, "não querer ser governado", é claro, não é aceitar como verdade,
e aqui eu passarei muito rápido, o que uma autoridade diz ser verdadeiro, ou ao
menos não é aceitar isso senão se se considera, por si mesmo, boas razões para
aceitar. E desta vez, a crítica toma seu ponto de ancoragem no problema da
certeza em face da autoridade.
mecanismos de poder que reclamam de uma verdade, pois bem, eu diria que a
crítica é o movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade
sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade; pois
bem, a crítica será a arte da inservidão voluntária, aquela da indocilidade
refletida. A crítica teria essencialmente por função a desassujeitamento no jogo
do que se poderia chamar, em uma palavra, a política da verdade.
seria fácil mostrar que para ele a autonomia está longe de ser oposta à
obediência aos soberanos. Mas disso não fica menos que Kant fixou para a
crítica em seu empreendimento de desassujeitamento em relação ao jogo do
poder e da verdade, como tarefa primordial, como prolegômeno a toda
Aufklärung presente e futura, de conhecer o conhecimento.
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Eu não gostaria de insistir por mais tempo sobre as implicações desse tipo de
deslocamento entre Aufklärung e crítica que Kant quis marcar por aí. Gostaria
simplesmente de insistir sobre esse aspecto histórico do problema que nos é
sugerido por isto que se passou no século XIX. A história do século XIX deu bem
mais engrenagens à continuação do empreendimento crítico tal como Kant o
havia situado de algum modo em recuo em relação a Aufklärung, que a alguma
coisa como a Aufklärung ele mesmo. Dito de outra forma, a história do século
XIX - e, claro, a história do século XX, mais ainda - parecia dever, senão dar
razão a Kant ao menos oferecer uma solidificação, a essa nova atitude crítica, a
essa atitude crítica em retirada por relação a Aufklärung e que Kant abriu a
possibilidade.
Essa tomada histórica que parecia ser oferecida à crítica kantiana muito mais
do que a coragem da Aufklärung, era simplesmente esses três traços
fundamentais: primeiramente, uma ciência positivista, isto é fazendo
fundamentalmente confiança nela mesma, quando ainda mesmo ela se achava
cuidadosamente crítica em relação a cada um de seus resultados; em segundo
lugar, o desenvolvimento de um Estado ou de um sistema estático que se dava,
a si próprio, como razão e como racionalidade profunda da história e que, por
outro lado, escolhia como instrumentos procedimentos de racionalização da
economia e da sociedade; daí, o terceiro traço, à costura desse positivismo
científico e do desenvolvimento dos Estados, uma ciência de um Estado ou um
estadismo, se vocês querem. Tece-se entre eles toda uma rede de relações
cerradas na medida em que a ciência vai desempenhar um papel cada vez mais
determinante no desenvolvimento das forças produtivas, na medida em que, por
outro lado, os poderes do tipo estático vão o exercer cada vez mais por entre
Ora, o devir dessa questão, creio eu, não foi absolutamente o mesmo na
Alemanha e na França, e isso pelas razões históricas que seria preciso analisar
já que são complexas.
Ora, creio que a situação na França mudou no curso desses últimos anos; e
que de fato, esse problema da Aufklärung, (tal como tinha sido tão importante
para o pensamento alemão desde Mendelssohn, Kant, passando por Hegel,
Nietzsche, a Escola de Frankfurt etc...), me parece que na França chegou-se a
uma época onde precisamente esse problema da Aufklärung pode ser retomado
numa proximidade, suficientemente significativa, com os trabalhos da Escola de
Frankfurt. Digamos, sempre para sermos breves, que - e isso não é espantoso -
é da fenomenologia e dos problemas postos por ela que nós voltamos à questão
do que é a Aufklärung. Ela nos fez voltar, com efeito, a partir da questão do
sentido e do que pode constituir o sentido. Como fazer com que haja sentido a
partir do não sentido? Como o sentido vem? Questão na qual se vê bem que é
complementar a esta outra: como fez-se para que o grande movimento da
racionalização nos tenha conduzido a tanto barulhos, a tanto furor, a tanto
silêncio e mecanismo triste? Apesar de tudo, não se pode esquecer que A
Náusea está há poucos meses da contemporânea Krisis. E é pela análise,
pós-guerra, disso, a saber, que o sentido não se constitui senão por sistemas de
constrangimentos característicos da maquinaria significante, é, me parece, pela
análise desse fato que não há sentido senão pelos efeitos de coerção próprios às
estruturas, que, por um estranho resumo, se reencontrou o problema entre
ratio e poder. Penso igualmente (e aí seria um estudo a fazer, sem dúvida) que
as análises da história das ciências, toda essa problematização da história das
ciências (que, ela também, se enraíza sem dúvida na fenomenologia, que na
França seguiu por Cavaillès, por Bachelard, por Georges Canguilhem, toda uma
outra história), me parece que o problema histórico da historicidade das
ciências não está sem ter algumas relações e analogias, sem fazer até um certo
ponto eco, a esse problema da constituição do sentido: como nasce, como se
forma essa racionalidade, a partir de que coisa que é absolutamente outro? Eis a
recíproca e o inverso do problema da Aufklärung: o que faz com que a
racionalização conduza ao furor do poder?
Ora, parece que, sejam essas buscas sobre a constituição do sentido com a
descoberta de que o sentido não se constitui senão pelas estruturas de coerção
do significante, sejam as análises feitas sobre a história da racionalidade
científica com os efeitos de constrangimento ligados a sua institucionalização e
à constituição de modelos, tudo isso, todas essas pesquisas históricas não
fizeram, me parece, senão confirmar como por um jogo rigoroso e como através
de uma espécie de assassinato universitário o que foi, apesar de tudo, o
movimento de fundo da nossa história desde um século. Pois, à força de
celebrar que nossa organização social ou econômica carecia de racionalidade,
nós nos encontramos frente eu não sei se demais ou insuficiente razão, em todo
caso seguramente frente a poder demais; à força de ouvir cantar as promessas
da revolução, eu não se aí onde ela se produziu ela é boa ou má, mas nós nos
encontramos frente à inércia de um poder que indefinidamente se mantém; e à
força de ouvir cantar a oposição entre as ideologias da violência e a verdadeira
teoria científica da sociedade, do proletariado e da história, nós nos
encontramos com duas formas de poder que se assemelhavam como dois
irmãos: fascismo e stalinismo. Retorno por conseqüência da questão: o que é a
Aufklärung? E se reativa assim os problemas que tinham marcado as análises de
Max Weber: o que convém dessa racionalização que ela caracteriza não somente
o pensamento e a ciência ocidentais desde o século XVI, mas também as
relações sociais, as organizações estatais, as práticas econômicas e talvez até
no comportamento dos indivíduos? O que fica dessa racionalização em seus
efeitos de constrangimento e talvez de obnubilação, de implantação maciça e
crescente e nunca radicalmente contestada de um vasto sistema científico e
técnico?
Esse problema, que nós somos obrigados na França de retomar sobre nossos
ombros, esse problema do que é a Aufklärung? pode-se abordar por diferentes
caminhos. E o caminho pelo qual eu gostaria de abordar, eu não o retomo
absolutamente - e eu gostaria que vocês acreditassem em mim – em um espírito
nem de polêmica nem de crítica. Duas razões conseqüentes fazem com que eu
não busque outra coisa que não marcar as diferenças e de alguma forma ver até
onde se pode multiplicar, dividir, remarcar uns em relação aos outros, deslocar,
se vocês querem, as formas de análises desse problema da Aufklärung, que é
talvez apesar de tudo o problema da filosofia moderna.
Eu gostaria de, logo em seguida, abordando esse problema que nos torna
fraternos em relação à Escola de Frankfurt, notar que de todas as maneiras,
fazer da Aufklärung a questão central, isso quer dizer com toda a certeza, um
certo número de coisas. Isso quer dizer de início que engaja-se numa certa
prática que se chamaria histórico-filosófica, que não tem nada a ver com a
filosofia da história e a história da filosofia, uma certa prática histórico-filosófica
Concedemos a essas vozes do lado toda a importância que elas têm, e esta
qual se referia Kant, Weber etc., período sem datação fixa, com múltiplas
entradas já que se pode defini-la tanto quanto pela formação do capitalismo, a
constituição do mundo burguês, a localização dos sistemas estatais, a fundação
da ciência moderna com todos os seus correlativos técnicos, a organização de
cara a cara entre a arte de ser governado e aquela de não ser governado de tal
modo. Privilégio de fato, por conseqüência, para o trabalho histórico-filosófico
que esse período, já que é aí que aparecem de alguma forma no âmago e na
superfície das transformações visíveis, essas relações entre poder, verdade e
sujeito que se trata de analisar. Mas, privilégio também no sentido de que
trata-se de formar a partir daí uma matriz para o percurso de toda uma série de
outros domínios possíveis. Digamos, se vocês querem, que não é porque se
privilegia o século XVIII, porque interessa-se por ele, que se encontra o
problema da Aufklärung; eu diria que é porque vê-se fundamentalmente colocar
a questão o que é a Aufklärung? que se reencontra o esquema histórico da
nossa modernidade. Não se tratará de dizer que os gregos do século V são um
pouco como os filósofos do século XVIII ou embora o século XII já tivesse uma
espécie de Renascença, mas sim de tentar ver sob quais condições, ao preço de
quais modificações ou de quais generalizações pode-se aplicar a algum
momento da história essa questão da Aufklärung, a saber as relações dos
poderes, da verdade e do sujeito.
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Eu dizia agora a pouco que queria em todo caso traçar muito vagamente
outras vias possíveis que não aquelas que me parecem ter sido até o momento
voluntariamente exploradas. O que não é de forma alguma os acusar nem os
conduzir a nada nem de dar-lhes qualquer resultado válido. Eu queria
simplesmente dizer isso e sugerir isso: me parece que essa questão da
Aufklärung desde Kant, por causa de Kant, e verossimelmente por causa desse
deslocamento entre Aufklärung e crítica que ele introduziu, foi essencialmente
posta em termos de conhecimento, isto é, partindo do que foi o destino histórico
Pois bem, antes desse procedimento que toma a forma de uma investigação
legítima dos moldes históricos do conhecer, se poderia talvez examinar um
procedimento diferente. Este, poderia tomar por entrada na questão da
Aufklärung, não o problema do conhecimento, mas aquele do poder; ele
avançaria não como uma investigação legítima, mas como algo que eu chamaria
uma experiência de acontecimentalização. Perdoem-me pelo horror da palavra!
E, já em seguida, o que isso quer dizer? O que eu entenderia por procedimento
de acontecimentalização, devessem os historiadores gritar de horror, seria isso:
de início, tomar conjuntos de elementos onde se pode perceber em primeira
aproximação, portanto, de modo absolutamente empírico e provisório, conexões
entre mecanismos de coerção e conteúdos de conhecimento. Mecanismos de
coerção diversos, talvez mesmo conjuntos legislativos, regulamentos,
dispositivos materiais, fenômenos de autoridade etc.; conteúdos de
conhecimento que se tomará igualmente em sua diversidade e em sua
heterogeneidade, e que se reterá em função dos efeitos de poder de que são
portadores enquanto válidos, como fazendo parte de um sistema de
conhecimento. O que se busca então não é saber o que é verdadeiro ou falso,
Então, nesse primeiro nível, não operar a divisão da legitimidade, não fixar o
ponto do erro e da ilusão.
E é porque, nesse nível, me parece que se pode utilizar duas palavras que não
têm por função designar entidades, potências ou algo como transcendentais,
mas somente operar em relação aos domínios aos quais se referem uma
redução sistemática de valor, digamos uma neutralização quanto aos efeitos de
legitimidade e um Iluminismo disso que os torna a um certo momento
aceitáveis e que faz com que efetivamente eles fossem aceitos. Utilização,
portanto, da palavra saber que se refere a todos os procedimentos e a todos os
efeitos de conhecimento que são aceitáveis num momento dado e em um
domínio preciso, e segundamente, do termo poder que não faz outra coisa senão
recobrir toda uma série de mecanismos particulares, definíveis e definidos, que
parecem susceptíveis de induzir comportamento ou discursos. Vê-se já que
esses dois termos não têm outro papel que o metodológico: não é o caso de
localizar através deles princípios gerais de realidade, mas de fixar de alguma
forma a frente de análise, o tipo de elemento que deve ser para ela pertinente.
Trata-se, assim, de evitar jogar desde o início com a perspectiva da legitimação
como fazem os termos conhecimento ou dominação. Trata-se igualmente, em
todo momento da análise, de poder lhes dar um conteúdo determinado e
preciso, tal elemento de saber, tal mecanismo de poder ; nunca se deve
considerar que exista um saber ou um poder, pior ainda o saber ou o poder que
fossem neles mesmos operantes. Saber, poder, são apenas uma grade de
análise. Vê-se também que esta grade não é composta de duas categorias de
Depois, vê-se que, a partir desse tipo de análise, ameaçam um certo número
de perigos que não podem não aparecer como as conseqüências negativas e
onerosas de uma tal análise.
Essas positividades são conjuntos que não vão de si, no sentido que, quais
sejam o hábito ou o desgaste que puderam nos tornar familiares, qual seja a
força da cegueira dos mecanismos de poder que elas fazem jogar ou quais
sejam as justificações que elas elaboraram, não tornaram-se aceitáveis por
algum direito originário; e o que faz-se preciso ressaltar para apoderar do que
pôde os tornar aceitáveis, é que justamente isso não vinha de si, não estava
inscrito em nenhum a priori, não estava contido em nenhuma anterioridade.
Liberar as condições de aceitabilidade de um sistema e seguir as linhas de
ruptura que marcam sua emergência, estão aí duas operações correlativas. Isso
não ia, em absoluto, de si, que a loucura e a doença mental se superpusessem
no sistema institucional e científico da psiquiatria; não era mais dado que os
procedimentos punitivos, o aprisionamento e a disciplina penitenciária, viessem
se articular num sistema penal; não era mais dado que o desejo, a
concupiscência, o comportamento sexual dos indivíduos devessem efetivamente
se articular uns sobre os outros em um sistema de saber e de normalidade
chamado sexualidade. O reconhecimento da aceitabilidade de um sistema é
indissociável do reconhecimento do que o tornava difícil aceitar: sua
arbitrariedade em termos de conhecimento, sua violência em termos de poder,
logo sua energia. Então, necessidade de tomar sob sua responsabilidade essa
estrutura, para melhor seguir os artifícios.
muitos dos elementos aceitos, muitas das condições de aceitabilidade podem ter
atrás de si uma longa carreira; mas o que se trata de retomar na análise dessas
positividades são, de alguma forma, singularidades puras, nem incarnação de
uma essência, nem individualização de uma espécie: singularidade da loucura
no mundo ocidental moderno, singularidade absoluta da sexualidade,
singularidade absoluta do sistema jurídico-moral de nossas punições.
Nenhum recurso fundador, nenhuma fuga em uma forma pura, está aí sem
dúvida um dos pontos mais importantes e mais contestados desse passo
histórico-filosófico: se ela não quer oscilar nem numa filosofia da história, nem
uma análise histórica, ela deve se manter no campo de imanência das
singularidades puras. Então qual? Ruptura, descontinuidade, singularidade,
descrição pura, quadro imóvel, sem explicação, sem passagem, vocês conhecem
tudo isso. Se dirá que a análise dessas positividades não levantam esses
procedimentos ditos explicativos aos quais se atribui um valor causal sob três
condições:
1. não se reconhece valor causal senão sob explicações que visam uma última
instância valorizada como profunda e ela somente, economia para uns,
demografia para outros;
2. não se reconhece como tendo valor causal senão o que obedece a uma
piramidalização pontuda em direção à causa ou ao foco causal, a origem
unitária;
3. e enfim, não se reconhece valor causal senão ao que estabelece uma certa
inevitabilidade ou ao menos o que aproxima da necessidade. A análise das
positividades, na medida em que se trata de singularidades puras
relacionadas não a uma espécie ou a uma essência, mas a simples
condições de aceitabilidade, pois bem, essa análise supõe o desdobramento
de uma rede causal ao mesmo tempo complexa e amarrada, mas sem
dúvida de um outro tipo, uma rede causal que não obedeceria justamente à
exigência de saturação por um princípio profundo unitário 'piramidalisante'
e carente. Trata-se de estabelecer uma rede que dê conta dessa
singularidade como um efeito: donde a necessidade da multiplicidade das
relações, da diferenciação entre as diferentes formas de relação, da
diferenciação entre as diferentes formas de necessidades de
encadeamentos, de decifração de interações e de ações circulares e o
prestar contas do cruzamento de processos heterogêneos. E nada, então,
mais estranho a uma tal análise que a recusa da causalidade. Mas o que é
importante é que não se trata em tais análises de reconduzir a uma causa
um conjunto de fenômenos derivados, mas de colocar em inteligibilidade
uma positividade singular no que ela tem justamente de singular.
Digamos, grosso modo, por oposição a uma gênese que se orienta em direção
à unidade de uma causa principal compacta de uma descendência múltipla,
haveria aí uma genealogia, isto é, algo que tenta restituir as condições de
aparição de uma singularidade a partir de múltiplos elementos determinantes, e
que aparece não como o produto, mas como o efeito. Posta em inteligibilidade,
então, mas que é preciso atentar que ela não funciona segundo um princípio de
fechamento. E aqui, não se trata de um princípio de fechamento para um certo
número de razões.
A primeira é que as relações que permitem dar conta desse efeito singular
são, se não na sua totalidade ao menos para uma parte considerável, relações
de interações entre indivíduos ou grupos, isto é, que elas implicam sujeitos,
tipos de comportamentos, decisões, escolhas: não é na natureza das coisas que
se poderia encontrar o sustento, o suporte dessa rede de relações inteligíveis, é
a lógica própria de um jogo de interações com suas margens sempre variáveis
de não certeza.
Sem mais fechamento, porque essas relações que se tenta estabelecer para
dar conta de uma singularidade como efeito, essa rede de relações não deve
constituir um plano único. São relações que estão em perpétuo desligamento
uns em relação aos outros. A lógica das interações, a um nível dado, se dá por
entre indivíduos podendo ao mesmo tempo guardar suas regras e sua
especificidade, seus efeitos singulares, constituindo com outros elementos das
interações que se dão a um outro nível, de forma que, de uma certa maneira,
nenhuma dessas interações aparece primária ou absolutamente totalizante.
Nenhuma pode ser recolocada num jogo que a invade; e inversamente,
nenhuma, tão local como ela, é sem efeito ou sem risco de efeito sobre aquela
da qual faz parte e que a desenvolve. Assim, se vocês querem e
esquematicamente, mobilidade perpétua, fragilidade essencial ou antes
emaranhado entre o que reconduz o mesmo processo e o que o transforma. Em
resumo, trataria aqui de liberar toda uma forma de análises que se poderia dizer
estratégicas.
se integra. É uma tal busca levando em conta ... [faltam algumas frases
perdidas quando do retorno da fita de gravação] ... se produz como efeito, e
enfim acontecimentalização no que tem a ver a alguma coisa cuja estabilidade,
cujo enraizamento, cujo fundamento não é nunca tal que não se possa de uma
maneira ou de outra, se não pensar em seu desaparecimento, ao menos
identificar pelo que e a partir de que seu desaparecimento é possível.
Vejam vocês que assim a questão não é mais: por qual erro, ilusão,
esquecimento, por quais falhas de legitimidade o conhecimento vem induzir
efeitos de dominação que manifeste no mundo moderno a influência [palavra
inaudível] ? A questão seria antes essa: como a indissociabilidade do saber e do
poder no jogo das interações e das estratégias múltiplas pode induzir ao mesmo
tempo singularidades que se fixam a partir de suas condições de aceitabilidade
e um campo de possíveis, de aberturas, de indecisões, de retornos e de
deslocamentos eventuais que os tornam frágeis, que os tornam impermanentes,
que fazem desses efeitos dos acontecimentos nada mais, nada menos que
acontecimentos? De qual forma os efeitos de coerção próprios a essas
positividades podem ser, não dissipados por um retorno ao destino legítimo do
conhecimento e por uma reflexão sobre o transcendental ou o quase
transcendental que o fixa, mas invertidos ou desfeitos no interior de um campo
estratégico concreto que os induziu, e a partir da decisão precisamente de não
ser governado?
Aufklärung no projeto crítico que era de fazer com que o conhecimento pudesse
se fazer de si próprio uma justa idéia, é esse movimento de gangorra, é esse
deslocamento, a maneira de desviar a questão da Aufklärung para a crítica, não
seria preciso tentar fazer agora o caminho inverso? Não se poderia tentar
percorrer esta via, mas num outro sentido? E se é preciso colocar a questão do
conhecimento na sua relação com a dominação, seria de início e antes de tudo a
partir de um certa vontade decisória de não ser governado, esta vontade
decisória, atitude ao mesmo tempo individual e coletiva de sair, como dizia
Kant, de sua menoridade. Questão de atitude. Vejam vocês porque eu nunca
pude dar, ousaria dar um título à minha conferência que tivesse sido: "o que é a
Aufklärung?".
Henri Gouhier - eu agradeço muito vivamente Michel Foucault por nos ter
trazido um conjunto tão coordenado de reflexões que eu chamaria filosóficas,
embora ele tinha dito "não sendo eu mesmo filósofo". Eu devo dizer que após
ter dito "não sendo eu mesmo filósofo", ele completaria "apenas crítico", isto é,
mesmo assim um pouco crítico. E após sua exposição, eu me pergunto se ser um
pouco crítico não é ser muito filósofo.
Michel Foucault - Você tem absoluta razão. É mesmo nessa perspectiva que a
atitude crítica foi engajada e que ela desenvolveu suas conseqüências de uma
maneira privilegiada no século XIX. Eu diria que é o canal kantiano, isto é, que o
momento forte, o momento essencial da atitude crítica deve mesmo ser o
problema da interrogação do conhecimento sobre seus próprios limites ou os
impasses, se você quer, que ele encontra em seu exercício primeiro e concreto.
Henri Birault - Não exatamente sobre sua generalidade senão sobre sua
situação muito difícil porque elas são de fato solidárias da técnica. Entre uma
ciência e os poderes que a utilizam, há uma relação que não é verdadeiramente
essencial; embora ela seja importante, ela permanece "contingente" de uma
certa maneira. São antes condições técnicas de utilização do saber que estão em
relação direta com o exercício de um poder de um poder fugidio à mudança ou
ao exame, antes que as condições do saber ele mesmo; e é nesse sentido que eu
não compreendo em absoluto o argumento. Além do mais, o Sr. Foucault fez
observações esclarecedoras que ele desenvolverá sem dúvida. Mas eu me ponho
a questão: há um elo verdadeiramente direto entre as obrigações e as
exigências do saber e as do poder?
Noël Mouloud - Eu não digo tanto isso, eu reconheço que o elo histórico, o elo
contingente é forte. Mas observo algumas coisas: que as novas investigações
científicas (aquelas da biologia, das ciências humanas) recolocam o homem e a
sociedade numa situação de não-determinação, lhes abrem vias de liberdade, e
assim os constrangem, por assim dizer, a exercer de novo decisões. Além do
mais, os poderes opressivos se apoiam raramente sobre um saber científico,
mas de preferência sobre um não-saber, sobre uma ciência reduzida
preliminarmente a um "mito": conhece-se os exemplos de um racismo fundado
sobre uma "pseudo-genética" ou mesmo de um pragmatismo político fundado
sobre uma deformação "neo-lamarckiana da biologia" etc. E enfim, eu concebo
muito bem que as informações positivas de uma ciência chamem a distância de
um juízo crítico. Mas me parece - e era o sentido próximo de meu argumento -
que uma crítica humanista, que retoma critérios culturais e axiológicos, não
pode se desenvolver inteiramente nem culminar senão com o apoio que lhe traz
inclui essa dimensão analítica no que ele chama a crítica das ideologias,
daquelas mesmas que são engendradas pelo saber.
Michel Foucault - Você me pega numa questão mais difícil. Eu diria que esse
retorno do socratismo (o sente, o percebe, o vê historicamente, me parece, no
ponto de transição dos séculos XVI e XVII) foi possível apenas no fundo disso,
no sentido que dou muito mais importante, que foram as lutas pastorais e o
problema do governo dos homens, governo no sentido mais pleno e mais amplo
que tinha no fim da Idade Média. Governar os homens era os tomar pela mão, os
conduzir até a sua salvação por uma operação, uma técnica de guiar detalhada,
que implicava todo um jogo de saber: sobre o indivíduo que se guiava, sobre a
verdade em direção a qual se guiava...
Henri Gouhier - Sua análise, você poderia retomá-la se fizesse uma exposição
sobre Sócrates e seu tempo?
Sobre o ponto das variações de formulações: eu não penso, com efeito, que a
vontade de não ser governado de jeito nenhum seja algo que se possa
considerar como uma aspiração originaria. Eu penso que, de fato, a vontade de
não ser governado é sempre a vontade de não ser governado assim, dessa
forma, por elas, a esse preço. Quanto à formulação de não ser governado em
absoluto, ela me parece ser de alguma espécie o paroxismo filosófico e teórico
de alguma coisa que seria essa vontade de não ser relativamente governado. E
quando no fim eu dizia vontade decisiva de não ser governado, então aí, erro de
minha parte, era não ser governado assim, dessa forma, dessa maneira. Eu não
me referia a algo que seria um anarquismo fundamental, que seria como a
liberdade originária absolutamente indócil e ao fundo de toda
governamentalização. Eu não disse isto, mas isso não quer dizer que eu o exclua
absolutamente. Eu creio que, com efeito, minha exposição pára aqui: porque já
tinha durado tempo demais; mas também porque eu me pergunto... se se quer
fazer a exploração dessa dimensão da crítica que me parece tão importante ao
mesmo tempo porque ela faz parte da filosofia e não faz parte dela, se se
explorasse essa dimensão da crítica, não seria devolvido como base da atitude
crítica a algo que seria ou a prática histórica da revolta, da não-aceitação de um
governo real, de um lado, ou, de outro, à experiência individual de recusa da
governamentalidade? O que me surpreende bastante - mas eu sou talvez
perseguido porque são coisas de que me ocupo muito agora - é que, se essa
matriz da atitude crítica no Mundo ocidental, é preciso buscá-la na Idade Média
em atitudes religiosas e concernindo ao exercício do poder pastoral, é mesmo
assim muito espantoso que você visse a mística como experiência individual e a
luta institucional e política fazer absolutamente corpo, e em todo caso
perpetuamente entregues um ao outro. Eu diria que uma das primeiras grandes
formas da revolta no Ocidente foi a mística; e todos esses focos de resistência à
autoridade da Escritura, à mediação pelo pastor, se desenvolveram seja nos
conventos, seja no exterior dos conventos, ou nos laicos. Quando se vê que
essas experiências, esses movimentos da espiritualidade serviram muito
freqüentemente de vestimentas, de vocabulário, mas, mais ainda, de maneiras
de ser, e de suportes à esperança de luta que se pode dizer econômica, popular,
que se pode dizer, em termos marxistas, de classes, eu acho que tem-se aí
alguma coisa de fundamental.
André Sernin - De qual lado você se ligaria antes de mais nada? Seria do lado
de Auguste Comte, eu esquematizo, que separa rigorosamente o poder
espiritual do poder temporal, ou, ao contrário, daquele de Platão que dizia que
as coisas não iriam nunca tão bem que os filósofos não seriam eles os chefes do
poder temporal?
André Sernin - Não, não é preciso escolher, mas para qual lado você
tenderia...?
Sylvain Zac - Eu queria fazer duas observações. Você disse, com justiça, que a
atitude crítica podia ser considerada como uma virtude. Ora, há um filósofo,
Malebranche, que estudou esta virtude: é a liberdade do espírito. Por outro lado,
eu não estou de acordo com você sobre as relações que estabelece em Kant
entre seu artigo sobre o Iluminismo e sua crítica do conhecimento. Esta fixa
evidentemente limites, mas ela mesma não tem limite; ela é total. Ora, quando
se lê o artigo sobre o Iluminismo, vê-se que Kant faz uma distinção muito
importante entre o uso público e o uso privado. No caso do uso público, essa
Michel Foucault - É o contrário, pois o que ele chama o uso público é...
Sylvain Zac - Quando alguém ocupa por exemplo uma cadeira de filosofia
numa universidade, aí ele tem o uso público da palavra e não deve criticar a
Bíblia: de outro lado, no uso privado, ele pode fazê-lo.
Michel Foucault - Estou completamente de acordo, não vejo bem em quê isso
contesta o que eu disse.
Sylvain Zac - Eu não creio que havia um elo histórico íntimo entre o
movimento da Aufklärung que você colocou no centro e o desenvolvimento da
atitude crítica, da atitude de resistência no ponto de vista intelectual ou no
ponto de vista político. Você não acredita que se possa indicar esta precisão?
do qual ele intervinha, não seria senão por esse artigo da Aufklärung, mas por
outros negócios...
Henri Birault - Eu creio, com efeito, que a filosofia crítica representa assim um
movimento ao mesmo tempo de restrição e de radicalização em relação à
Aufklärung em geral.
Michel Foucault - Mas a ligação com a Aufklärung era a questão de todo mundo
nessa época. O que nós estamos dizendo, o que é esse movimento que nos
precedeu um pouco, ao qual pertencemos ainda e que se chama Aufklärung? A
melhor prova, é que o jornal tinha que publicar uma série de artigos, aquele de
Mendelssohn, aquele de Kant... Era a questão da atualidade. Um pouco como
nós nos colocaríamos a questão: o que é a crise dos valores atuais?
Jeanne Dubouchet - Gostaria de lhe perguntar o que você coloca como matéria
no saber. O poder, eu creio ter compreendido, já que ele era questão de não ser
governado: mas qual ordem de saber?
Michel Foucault - Justamente, aí, se eu emprego essa palavra, é ainda uma vez
Henri Gouhier - Creio que me resta agradecer a Michel Foucault por nos ter
proporcionado uma sessão tão interessante e que vai dar lugar certamente a
uma publicação que será particularmente importante.