Resenhas - Sesso 14 - Ritos e Mitos - SEMINRIO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL


DISCIPLINA:ANTROPOLOGIA CLÁSSICA
DOCENTE: JOSÉ GLEBSON VIEIRA
DISCENTES: LORENA KARLA COSTA BEZERRA
VILYVIA CARLA MARQUES DOS SANTOS
Sessão 14. Magia, eficácia simbólica e Mitos
RESENHA(s)

Texto 1- ​LÉVI-STRAUSS, Claude. Finale. In: ​O homem nu (Mitológicas IV). São Paulo: Cosac
Naify, 2011 [1971], p. 603-670.

A análise e comparação dos mitos ameríndios do norte e do sul das Américas, em busca
de uma unidade estrutural mais profunda, é o que o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss1 se
propõe a fazer em algumas de suas obras mais tardias, após ter se dedicado aos sistemas de
parentesco, com os quais estabeleceu as bases da teoria da aliança. No campo mitológico,
destacam-se entre seus estudos mais notáveis e volumosos aquele que vai nos interessar nesta
unidade, isto é, as chamadas “Mitológicas”. Nesta obra, o autor buscou analisar
aproximadamente 813 mitos de diferentes povos da américa do norte e do sul, empreitada que se
divide em quatro volumes: “O cru e o cozido” (1964 - Mitológicas I); “Do mel às cinzas”(1967
- Mitológicas II); “As origens dos modos à mesa” (1968 - Mitológicas III); e “O homem nu”
(19712 - Mitológicas IV). É quanto a este último volume, O homem nu, de que se trata a presente
resenha, em especial, o seu ​finale ​.
Antes de tudo, o autor dessubstancializa a noção de sujeito, explicando a opção pelo
"nós" ao longo do Homem Nu. Para Lévi-Strauss , o máximo de realidade que o "sujeito" pode
ter é o que ele chama de "singularidade", ao modo da concepção astronômica. Não mais,
portanto, do que um nó de eventos localizado no tempo e no espaço, ambos relativos, cuja maior
densidade nos permite diferenciá-lo de outros eventos, que em relação a ele, têm densidade
menor. Em seguida, destaca que o " fato da estrutura" é primeiro. Não importa o quanto
recuarmos no tempo, uma estrutura sempre precederá a outra. Somente uma estrutura prévia
pode gerar outras estruturas.
Põe-se então a responder algumas das críticas dirigidas a sua obra e ao método e pensamento
estruturalistas, como aquelas que lhes atribuem a pecha de estáticos (portanto, a-históricos) e

1
​O autor (1908 - 2009) foi antropologo, filosofo e professor, fundador da Antropologia estruturalista.
2
Data da publicação original, O homem Nu só foi traduzido para o português em​ ​2011 por Beatriz Perrone-Moisés.

1
estéreis, quer dizer, o vivido transformado em mera apreensão intelectualista, despojado dos seus
conteúdos emocionais e da espontaneidade criativa dos sujeitos. Contudo, o pensador francês
rebate e se impacienta com os rumos que a filosofia e parte das ciências humanas tomam ao se
agarrar aos direitos absolutos do sujeito, em detrimento da busca pela verdade.
Para ele, enfim, não se trata de negar os dados sensíveis, o vivido ou as emoções
envolvidas e, dessa forma, nos fornece o exemplo da música para ilustrar como a sensibilidade e
o intelecto estão imbricados, inclusive do ponto de vista psicológico e orgânico. Mas ele está
interessado, e não nega, nas estruturas que são moldadas pelas leis profundas e universais do
funcionamento da mente humana e que são atravessadas em suas manifestações empíricas por
fatores externos, de outras ordens, que não puramente simbólicas, tais como históricas e
econômicas, que provocam reajustamentos nas estruturas. Mito(-logia) se constitui no objeto de
análise privilegiado pelo autor no decorrer da tetralogia na busca pela lógica estrutural
subjacente a todas às transformações sucessivas observáveis nas múltiplas versões de um mesmo
grupo de mitos. Lógica que buscava em trabalhos anteriores nas relações de parentesco, agora
reaparece em seus investimentos mitológicos3.
Como não poderia ser de outra monta, Lévi-Strauss investe em um quadro complexo de
exposição no ​finale​, em que os modelos lógico-matemático, linguístico, musical e mitológico se
relacionam cartograficamente em planos distintos. Os critérios comparativos são as pertenças ao
som e ao sentido, que são dois atributos da linguagem. Dessa maneira, o modelo matemático se
encontra em flagrante oposição ao modelo linguístico, porque se distancia tanto do som como do
sentido, tendendo para as puras e abstratas relações formais. Em posições intermediárias, estão
os modelos musical e mitológico, aquele tendendo para o domínio do som sem sentido intrínseco
e este para o domínio do sentido sem som inerente. A música e a mitologia tocam a linguagem,
portanto,em níveis diferentes.
Ainda, mitologia e música possuem afinidades estruturais, que são exploradas
minuciosamente em várias e longas páginas. A música que está, aquém do sentido, ao ser
apreciada pelo ouvinte é preenchida com significado. Enquanto o mito, fato linguístico por
excelência, situa-se acima do nível do sentido convencional, que, contudo, necessita em cada
uma de suas atualizações pelo(a) narrador(a) do recurso ao som, pois tornado discurso. Ele dá
então o exemplo da partitura de um bolero, em que sequências musicais se digladiam entre
oposições binárias e sistemas ternários, entre simetria e assimetria, entre ritmo e melodia etc. até
atingir uma conciliação entre todas essas oposições através de uma modulação tonal. Aqui a
analogia com o mito se torna mais límpida, porque afinal, também as narrativas míticas se
confrontam com oposições e buscam resolvê-las. Também é possível analisar diacronicamente as

3
Marcela Coelho e Fausto (2004) mostram como a maneira com que Lévi-Strauss lida com essa lógica estrutural ao
longo de seu trabalho implode as fronteiras rígidas entre o social e o cultural, pois o que é encontrado em termos de
organização social pode ter seu equivalente cosmológico. É interessante notar aqui que o princípio da reciprocidade
que Lévi-Strauss extrai das trocas matrimoniais entre povos ameríndios como os Nambikwara e Bororo também se
aplica à análise de mitos.

2
mudanças estruturais da música, como ele próprio faz com suas análises mitológicas no plano da
história.
Os mitos perseguem uns aos outros,comunicam-se e, portanto, transformam-se. Existe,
pois, uma ​estrutura transformacional​. Um mito qualquer estará sempre se referindo a um mito
outro, quer a um do passado do mesmo grupo social que o relata, quer a mitos concorrentes de
povos vizinhos.Desse modo, suas histórias se permutam, invertem-se, deslocam-se em
combinações variadas, provocando afastamentos diferenciais umas em relação às outras. É neste
ponto que se pode captar o movimento da história no pensamento lévi-straussiano, como bem
destacam Marcela Coelho e Fausto (2004). Os mitos devem se transformar para responder às
mudanças históricas e paradoxalmente mantêm a impressão que nada mudou e que assim o
mundo continua tal como sempre foi. É talvez por esta razão que os mitos costumam se referir a
um passado longínquo e imemorial. Tanto a diacronia como a sincronia dos mitos devem ser
levados em conta como dois eixos que correspondem a níveis distintos de análise.
Seja como for, a função do mito seria a de responder a uma necessidade imperativa de
resolver contradições lógicas, os outros vetores (contingências históricas, por exemplo) que o
interceptam só podem assumir um lugar subordinado diante dessa função primordial. Neste
sentido, poderíamos olhar para os mitos legitimamente como jogos intelectuais, que são
desdobrados com um automatismo assombroso. Questionamo-nos com espanto como podem ser
os mitos analisados neles e por eles mesmos, em sua dinâmica inerente, por Lévi-Strauss, sem
que o sujeito que os relata assuma um papel relevante nessa construção – como sublinha
fortemente Robert Deliège (2004)4.
Estranhezas e críticas à parte, Lévi-strauss concedeu à análise dos mitos uma realidade
sui generis,​ ao mesmo tempo, que postulou que as leis fundacionais da estrutura dos mitos são
aquelas da psique humana e, portanto, universais. Há, no entanto, um corte intransponível entre a
ordem do real e do simbólico. Os mitos instauram a divisão do mundo em categorias relacionais
discretas,na verdade, mais especificamente, suas unidades constitutivas são os mitemas5. Mas
não há uma correspondência direta entre a coisa representada e sua simbolização. Há sempre e
em toda parte contradições lógicas a serem resolvidas, pares de oposição binária como aqueles
entre natureza e cultura, consanguinidade e afinidade, reciprocidade e hierarquia, identidade e
diferença. Essas descontinuidades geram movimento, pois tais oposições são acionadas para que
sejam solucionadas, logo outras oposições em cadeia aparecem sucessivamente sem que jamais
se consiga esgotar e pôr fim a todas as contradições.
Os ritos, por sua vez, cumprem o papel ou, mais precisamente, a tentativa frustrada,
porque inalcançável, de restabelecer a continuidade que o mito como esquema do mundo cindiu

4
DELIÈGE,Robert.​Lévi-Strauss today​. An introduction to structural anthropology.Oxford: Berg
publishers,2004.
5
Os mitemas são feixes ou grupo de relações que dispostos e relacionados entre si compõem a história
que o mito conta. O que lhes torna grandes unidades se comparados aos fonemas, semantemas e
morfemas que são unidades linguísticas menores.

3
em algumas poucas e grandes categorias. Os rituais procedem pelos mecanismos de
fracionamento e repetição, que são complementares. Enquanto o fracionamento tende a
estabelecer diferenças cada vez mais nuançadas em detalhes do ritual, como a maneira em que
objetos são manipulados, palavras proferidas e gestos articulados, a repetição funciona quase
como uma forma vazia ou de pouco sentido em que tudo o mais pode ser encaixado, pois
estabelece a identidade englobante do ritual em relação às suas partes menores e constitutivas.
Diferentemente de Victor Turner, por exemplo, Lévi-Strauss não acredita que os rituais
sejam momentos de criação de categorias, mas que acionam aquelas que são prévias em relação a
ele e que fazem parte da mitologia implícita, que está sendo mobilizada. Há aqui uma distinção
importante na terminologia empregada por Lévi-Strauss entre mitologia implícita e explícita a
partir da qual engendra o significado que extrai da especificidade do ritual frente ao mito.
Podemos opor a sua interpretação desta matéria àquela de Edmund Leach - para quem ritos e
mitos são apenas maneiras diferentes de falar sobre a mesma coisa. Para Lévi-Strauss, no
entanto, a função do rito não é a mesma do mito, porque aquilo que o rito “conta” não tem por
finalidade atestar simplesmente a narrativa mítica. Antes pretende apaziguar certa tensão que o
próprio mito cria com suas entidades descontínuas. Pretende, pois, encontrar a solução de
continuidade numa vã tentativa de superar o fosso entre as ordens simbólica, imaginária e do
real.
Ademais, os rituais não são exatamente um idioma com o qual se expressa alguma coisa.
De fato, os ritos estão impregnados de linguagem verbal e não verbal, mas estas pertencem ao
reino de mitologia implícita acionada durante o ritual e não constituem sua especificidade, que é
dada ao invés pela sua capacidade de lidar com essas linguagens para tapar os fossos
ontológicos, que, contudo permanecem abertos. Em resumo, a mitologia explícita são corpos
bem constituídos, relatos míticos unitários, enquanto a mitologia implícita são apenas fragmentos
dispersos selecionados implicitamente durante a execução ritual. Concepção pela qual
percebemos que Lévi-Strauss não está inclinado a ler os ritos como linguagem, entretanto como
algo a mais que implica em utilizá-la.
Lévi-Strauss também não está disposto a conceder tantas prerrogativas ao sujeito, a sua
suposta capacidade criativa, que não conhece limites ou leis. Não sucumbe ao “irracionalismo”
narcisista de seus acusadores, que abandonaram pretensões científicas para se deleitar com
caprichos estéticos. Afirma então finalmente a necessidade de reconhecer – contra quem o acusa
de intelectualista - a existência de dois tipos de racionalidade, uma que é intrínseca ao universo, à
vida e aos fenômenos naturais em geral, enquanto a outra é inerente à mente humana e por
extensão à ordem social, enquanto a última implicar a atualização de categorias. São as
inteligibilidades do mundo social/cultural e natural que devem ser buscadas, uma pelas ciências
humanas e a outra pelas ciências da natureza respectivamente.
Entretanto, há aqui uma homologia fundamental: como atesta aquela que é apresentada
entre o código genético e a linguagem. Para Lévi-Strauss, o estruturalismo tem como projeto
atrelar e aproximar esses dois campos semânticos ao dar ênfase às suas lógicas combinatórias e

4
ao ​texto que é escrito quer no nível genético quer no linguístico. Em última instância, a lógica da
reciprocidade e da binariedade, que aparece no plano simbólico, está fundada ela mesma na
própria dimensão orgânica, do corpo. O estruturalismo, Lévi-Strauss não teme em dizer, é
profundamente teleológico. Natureza e cultura estão prenhes de sentido e finalidade e devem ser
reconciliadas na abordagem estruturalista. Ainda, por fim, existe uma oposição mais fundamental
que antecipa todas as outras: aquela entre o ser e o não-ser. Dilema contra qual temos de nos
haver: os próprios mitos estão fadados a depois de se erguerem, se transformarem e substituírem
uns aos outros em seus jogos de combinações e possibilidades, a desaparecer no não-ser como se
nunca tivessem existido. Da mesma forma, se passa com todos os seres, instituições humanas,
invenções, e também com o mundo e com o próprio universo que após se desenvolverem dentre
algumas alternativas no campo dos possíveis também passarão à inexistência. Tudo isto nos
convida como sugere o autor nas entrelinhas a abandonar nossa costumeira soberba e a diluir o
sujeito ou ,no jargão da época, “o homem” nas estruturas, que se encontram aquém e além dele
mesmo.

Texto 2- LÉVI-STRAUSS, Claude. ​Visita às cabras da montanha. In: ​História de Lince.​ São
Paulo: Companhia das Letras, 1993 [1991], p. 68-86.

A “História de Lince” é o livro no qual Lévi-Strauss vai dar continuidade, de certa


forma, à análise estrutural de mitos ameríndios, há quem diga que pode ser considerado um
posfácio das “Mitológicas”. O livro é dividido em três partes: “Do lado do nevoeiro” (Parte 1);
“Clareando” (Parte 2); e “Do lado do vento” (Parte 3) em que cada parte tem suas subdivisões.
Iremos fazer um apanhado geral sobre o ponto 6. ​“Visita às cabras Cabras-das-Montanhas” da
primeira parte do livro.
Lévi-Strauss coloca que o que fez reabrir este debate sobre o “lugar consagrado aos
gêmeos nos mitos” foi justamente a aproximação entre os mitos da américa do norte e sul e essas
experiências teriam contribuições na análise mitológica. O autor vai partir de uma série de
transformações da América do Sul procurando identificá-las também na América do Norte.
Pode-se verificar no capítulo em questão alguns mitos encontrados nos continentes sul e
norte-americanos que apresentavam similaridades e diferenças, destaco aqui: ​“​Ladra de
dentais”; “Visita às cabras das montanhas”; “Pescadores de salmão” e “A História de Lince”
trazidos no capítulo em questão.
Os mitos seriam importantes para entender as sociedades das quais eles provêm e ​“ajuda
a expor os móveis íntimos de seu funcionamento, esclarecem a razão de ser de crenças,
costumes e instituições…” (p.616 - Levi-Strauss - O homem nu), as relações de parentescos
existentes e também diferenciá-las em algum nível . Os mitos poderiam mostrar a origem de algo

5
(como a caça, da carne, do fogo, do casamento, certos tabus e etc..) e poderiam ser identificados
como “estados de uma mesma transformação”.
O mito que dá nome ao capítulo retrata que as cabras eram seres da mesma natureza dos
homens e mudavam de forma, quando sentiam a necessidade/queriam e os indígenas sabiam
desse fato e, por conta disso, quando se matava uma cabra havia ritos especiais envolvidos ou
outros animais de dupla natureza, como a cabra, o urso ou um “grizzly” possuíam dentro de si,
de certo modo, um continuum humano-animal.
Os Thompson do planalto e os Salish da costa “observavam os mesmos ritos para caça à
cabra e ao urso”. Para caçar a cabra era necessário ter “dons especiais”, a pele era para fins
matrimoniais, era considerada símbolo de riqueza de acordo com o autor.
Voltando ao mito das Cabras das Montanhas retratado, é a versão Thompson do grupo
Utamqt do curso do Fraser : ​o autor conta que no mito um dia um homem foi caçar, e ele já tinha
duas mulheres, uma delas grávida, e apareceram duas cabras e eles começou a persegui-las e
perdeu-as de vista e de repente encontrou duas jovens mulheres e nenhum sinal das cabras, as
mulheres disseram que não tinham as visto, na verdade essas mulheres eram as próprias cabras
que naquele momento se transformaram em sua forma humana. O caçador foi convidado a
seguir as mulheres em questão, chegaram na caverna entre as montanhas. Lá moravam várias
pessoas-cabras,que apenas mostraram sua face humana . O homem em questão se casou com as
duas moças, mas ele foi advertido sobre as condições em que teriam relações sexuais, que seria
em um período estabelecido, ou seja, apenas no período do cio correspondente à natureza-cabra
delas. E o homem tinha que caçar para sua nova família, tinha uma série de regras, uma delas é
que ele só poderia caçar uma cabra por dia para ser o alimento deles. Mas um dia o homem
desconfiou que as cabras que estavam sendo mortas por ele eram na verdade seus cunhados, ele
não sabia, mas apenas a parte “animal” morria, a parte humana continuava. O caçador armou
uma emboscada, pois começou a desconfiar. Alguns meses depois, uma das moças teve um filho
pequeno que pede para visitar os avós-humanos, acontecem uma série de coisas nessa visita,
houve celebração da carne e gordura, há uma confusão e o homem e seu filho ficam no local​,
enquanto a esposa e seu irmão pequeno retornam para casa.
Lévi-Strauss diz que seria importante destacar nesse momento é que este mito tem
ressonância com aqueles da américa do sul que falam sobre a “origem da carne”, e as relações de
parentesco existentes, outras versões do mito são trazidas com finais bem diferentes e autor
frisou o caráter ritual do mito, através de uma série de instruções que as cabras dão ao “herói”,
preparação, as proibições e prescrições.
A mitologia explícitas(mítica e ritual) e a mitologia implícita são colocadas novamente,
já foram citadas no “O Homem Nu”, o mito e o rito se complementam de certa forma, nas
palavras do autor “caminham lado a lado, mas mantém distância e não se comunicam”, pois
dentro de um mito podem ter vários ritos, o mito só se explica por ele mesmo.
Além disso, como o autor coloca, o que liga a mitologia ao ritual vai além do relato e
não tem relação com os acontecimentos e pode consistir em ​“palavras (ou ausência de palavras)

6
- o silêncio, em gestos realizados, em objetos ou substâncias manipuladas, externo a qualquer
exegese requerida ou até permitida por esses três tipos de atividades”.
O que Lévi-Strauss está buscando na comparação entre a américa do sul e do norte é uma
camada estrutural mais profunda, procura o que estão dialogando, e ao interpretar os mitos, quais
oposições existem? o que elas estão querendo dizer? Um estado desde o qual há uma separação,
que a partir dela, vem a diferença, diferença entre natureza e cultura, afinidade e
consanguinidade, humano e não humano. Havia no passado mítico uma continuidade onde
essas distinções e fronteiras ontológicas tão rígidas não existiam.Onde tudo estava junto e
depois uma descontinuidade foi instaurada. Em algum momento que se confunde com a origem
do mundo, por algum motivo estabelecido pelo mito, houve essa separação ou ruptura.

Bibliografia:
LÉVI-STRAUSS, Claude. Finale. In: ​O homem nu (Mitológicas IV). São Paulo: Cosac Naify, 2011 [1971], p.
603-670.
LÉVI-STRAUSS, Claude. ​Visita às cabras da montanha. In: ​História de Lince​. São Paulo: Companhia das Letras,
1993 [1991], p. 68-86.
SOUZA, Marcela Coelho de; FAUSTO, Carlos. ​Reconquistando o campo perdido: o que Lévi-Strauss deve aos
ameríndios.​ Revista de Antropologia​.​ 2004, vol.47, n.1, p.87-131.

7
Anexo 1.
TABELA COM O RESUMO DOS PRINCIPAIS MITOS CITADOS no 6. Visita as cabras das
montanhas

MITOS AMÉRICA DO SUL AMÉRICA DO NORTE

Analogias com os mitos sul-americanos proveniente dos “Lembremos que o herói norte-americano espionando
1.As ladras Bororo. Esse mito trata da origem dos adornos (e o outro pela irmã também se dedica a uma atividade ritual. Ele
de dentais também). “Coloca em cena uma mulher indiscreta que encontra no fundo da água conchas que não precisa
Se assemelha espiona o os irmão enquanto ele inventa os adornos, perfurar, já que os dentais são tubos naturalmente
com o mito perfurando conchas com uma pedra pontiaguda abertos,”
dos Bororo encontrada no fundo da água.” p.68
Em ambos os casos: os irmãos se separam de suas Em ambos os casos: os irmãos se separam de suas
famílias. famílias.

-No mito bororo: Eles se jogam em uma fogueira da qual -No mito do Herói norte-americano: Descendo para um
uma vez queimados, se elevam ao céu e se transformam mundo inferior em que o herói leva uma vida alegre e
em pássaros aonde suas irmãs, que o molham com suas lágrimas (a
água, consequência da separação, substitui o fogo
-ambos: relativos à origem dos adornos são homólogos enquanto meio dessa separação), não poderão ir para
ficar junto dele.
- e se o mito bororo transforma um mito de um povo -ambos: relativos à origem dos adornos são homólogos
vizinho acerca da origem da carne, deve existir na
América do Norte, bem perto do mito da origem das
dentais (procedimento hipotético dedutivo /estados de
uma mesma transformação)

Notas do 1. -Essa atividade no mito tem um caráter ritual e os irmãos tem uma
vida alegre em casa de penas que evocam um morada celeste.
- Análise dos mitos verifica que, para uma mensagem invariante,
produz-se uma clivagem, em função do modo de descendência, entre
irmãos ou entre cônjuges.
-
-​Kayapó-Kubenkranken (matrilocais=residem perto dos pais da
esposa)
- Origem da carne

8
II- O mito das cabras das montanha se assemelha a por I -o autor conta que no mito que um dia um homem foi
2. ​Visita
as sua construção aos mitos sul-americanos que também caçar, e ele já tinha duas mulheres, uma delas grávida, e
cabras das tratam da ​origem da carne ou, mais precisamente da apareceram duas cabras e eles começou as persegui-las e
montanhas origem da caça à melhor carne. ​P.72 perdeu-as de vista e de repente encontrou duas jovens
mulheres e nada das cabras, as mulheres disseram que
não tinham as visto, na verdade essas mulheres eram as
próprias cabras que naquele momento se transformaram
em sua forma humana. O caçador foi convidado a seguir
as mulheres em questão, chegaram na caverna das
__________________________________________________ montanhas, lá moravam várias pessoas e o homem
p.73
acabou se casando com as duas moças, mas ele foi
Versão 1: a mulher e o seu irmão voltam para junto das
cabras, o homem e seu filho ficam com os humanos.
advertido sobre as condições em que teriam relações
sexuais, que seria em um período estabelecido, ou seja,
Versão 2: vai no mesmo sentido: o herói, que volta sozinho apenas no período do cio da parte cabra delas. E o
para junto dos seus, vai caçar e quer matar uma fêmea e o homem tinha que caçar para sua nova família, tinha uma
filhote, que são na verdade sua mulher-Cabra e seu filhote. Ela série de regras, uma delas é que ele só poderia caçar
o reprende, fazendo-o respeitar as regras. Então ele mata um uma cabra por dia para ser o alimento deles. Mas um dia
macho e, volta à aldeia, diz que a fêmea escapou. o homem desconfiou que as cabras que estavam sendo
mortas por ele eram na verdade seus cunhados, ele não
Versão 3: as cabras são substituídas por Cervídeos e uma
versão ​Okanagon​ não distingue as famílias.
sabia, mas apenas a parte “animal” morria, a parte
*as substituições são explicadas pela crença que em tempos humana continuava (...). (p.71-72)
míticos os selvagens eram tão ligeiros que não podiam ser -Komús (irmão cabra)
caçados - ​Versão Thompson de Utãmqt
oreamnos americanus
- As mulheres cabras não o acompanharam, ela não
podem, são diferentes do herói, apenas os filhos
vão com o herói, “pois os filhos são sangue do teu Cont.
sangue”. ​(“fica claro que em todos esses mitos a Antes do “herói” voltar para junto dos seus, as cabras
disjunção afeta: afins: Cônjuges ou cunhados) prometem a ele que se ele seguir algumas regras poderá se
tornar um GRANDE CAÇADOR. Regras:
- Komús: (final da 1° versão)- personagem -Tratar o corpo das cabras com respeito ao matá-las (pois tbm
barriguda / gases/ mito salish da costa, provoca são pessoas); Não matar as fêmeas e nem os filhotes; tira
um nevoeiro após ter sido atingida por gases da apenas o teu cunhados, os machos; Não tenha remorso ao
mesma natureza. (no registro meteotológico, o matá-las (elas não morrer, a parte humana continua viva); aa
vento se opõe ao nevoeiro, ao qual corresponde a carne e a pele pertencem a ele)
registro fisiológico)

-Skykomish (Versão etiológica) origem da caça e encheu o


mar de peixes.
-Outra versão é a dos Shuswap: apresentam anomalias:
substitui o jovem por velho, e ele tem que matar as cabras
velhas e nunca as jovens. P.74

- outra versão: Inverte os sexos: ​é um bode que visita os


índios, casa-se com uma humana e vai viver junto com os
seus.
- possíveis alterações de narrativas por conta da localização
geográfica

-​Um mito Kwakiutl: inverte a união sexual das cabras, e para

9
ter sucesso o herói deverá observar a abstinência sexual
durante 4 anos. Mas ele não respeitou e acabou sendo
transformado em urso grizzly. P.75

-Versão Tlingit: o caçador se tornou um grande xamã. As


pessoas da aldeia caçavam demais e não faziam caso dos
ritos(..) p.75-76

*As versões “anormais” se diferenciam das outras por


uma série de de oposições: jovem ou velho; cônjuge
humano ou cônjuge cabra; sexo liberado do cio com as
fêmeas ou abstinência obrigatória. (versão thompson:
metamorfose / e tlingit explica porque razão os muflões se
parecem com humanos) p. 76

Notas do 2 -Caça / os mitos a identificam a cunhados, relações de -Como os porcos-do-mato na América do sul, e essas cabras
parentesco na qual insiste uma das versões de thompson eram importantes na alimentação e eram objeto de numerosas
crenças. p.70
- “as cabras eram consideradas muito espertas e difíceis de
caçar, mas era alimento de primeira.” (de acordo com os
-A ambiguidade do modelo, tendo em visto do outro lado. O Kutenai​).
herói, dizem os mitos, tem duas esposas, que troca por duas - Os ​Thompson ​do planalto e os |​Salish da costa ​observavam
mulheres-cabras, as quais posteriormente o liberam. O motivo os mesmos​ ritos​ para a caça à cabra e ao urso.
da separação dos cônjuges admite, portanto, duas leituras em -Os ​Squamish​, Salish da costa, consideravam os que a caça
sentidos contrários, dependendo se o herói se afasta de suas as cabras eram perigosas e exigia dons especiais, tanto físicos
mulheres humanas ou é delas afastado por suas como sobrenaturais, dos caçadores e seus cães.
mulheres-cabras. p.77 - A pele era muito boa (matrimônios-presente)/ Símbolo de
riqueza / capas com pele usadas em ocasiões especiais.
- As cabras viviam em limite zonas rochosas, acima das
árvores e onde outros animais não conseguem chegar.

3. Origem da p.79 P.79


pesca dos Um certo dia os homens voltaram da pesca de mãos Houve uma grande fome, os homens foram pescar longe
Salmões vazias, suas mulheres diziam que iam pescar mas se da aldeia e conseguiram pescar alguns salmões, eles não
prostituiam para as Ariranhas em troca de peixe… Os o levaram para as mulheres e crianças, comeram tudo
homens desconfiaram e mandaram uma ave espioná-las, sozinhos e abandonaram a famílias. Um rapaz que
as ariranhas(lontras) estrangularam as aves e por acompanhou os pescadores contou tudo a mãe. As
vingança, as mulheres deram a seus maridos uma poção mulheres ficaram com raiva e realização uma operação
mágica que os transformaram em porcos​. mágica nas camas, cobertas e outras posses de seus
maridos que levou à transformação destes em
passáros​… Eles, já como pássaros, voaram para a beira
do rio e foram encontrar os castores, os castores
indicaram o país dos salmões e ajudou-os a se
reconciliar com suas esposas.

10
Notas do 3 -(...) Na américa do norte os salish, possuem um mito sobre a
origem dos salmões muito parecido com os Bororo, vizinhos
do Jê, que explicam a seu modo o- diferente do Jê a origem
dos porcos-do-mato.

-O autor analisou, em O homem nu, o interesse do mito bororo


sobre a origem dos porcos-do-mato para compreender o que
há de comum entre os mitos do Brasil central e do Noroeste da
América do Norte. P79 (um conflito entre cônjuges, se
transforma em um conflito entre afins)

-Mito sobre as cabras e a origem do salmão há uma armação


complicada, que envolve esposas humanas e não-humanas,
cunhados animais, e conflitos entre os casais e as rupturas com
certos desaparecimentos.

-Tem por heroína uma moça aversa ao casamento


4.A história - uma versão meridional da história de Lince
de Lince pretende ​explicar a origem dos casamentos
descombinados p.81

Nota 4 Análise de Lévi-Strauss:


2-Tanto na História de Lince, quanto no mito das Ladras de
dentais, formulada em termos de aliança ou de proximidade de
grau.

6- “O extremo é quando o homem vai até as cabras e torna-se


uma dela (continuidade atestada de modo indireto)”

3​-A ambiguidade do modelo, tendo em visto do outro lado. O


herói, dizem os mitos, tem duas esposas, que troca por duas
mulheres-cabras, as quais posteriormente o liberam. O motivo
da separação dos cônjuges admite, portanto, duas leituras em
sentidos contrários, dependendo se o herói se afasta de suas
mulheres humanas ou é delas afastado por suas
mulheres-cabras. p.77

*Todas as informações da tabela foram retiradas praticamente na íntegra/e resumidas (dispensei as aspas dos
trechos, pois praticamente estão na íntegra, mas organizado) da História de Lince - 6. Visita as cabras das
montanhas, escrito por Lévi-Strauss. Quadro organizado por nós.

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