A Antropologia e A Esfera Pública No Brasil PDF
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A Antropologia e A Esfera Pública No Brasil PDF
ISBN 978-85-7650-584-6
Coedição Editora E-papers / ABA publicações
Revisão
Rodrigo Reis
Diagramação e Capa
Michelly Batista
O presente trabalho foi publicado com apoio: 1) da Faperj, por meio de Bolsa Cientistas do Nosso
Estado, para o período de 2014-2017 (processo n. E-26/201.172/2014); 2) do CNPq, através de bolsa
de produtividade em pesquisa (nível IB), no período 2016-2020 (processo n. 302706/2015-1),
projetos que foram desenvolvidos no âmbito do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e
Desenvolvimento (Laced)/Departamento de Antropologia/Museu Nacional-Universidade Federal do
Rio de Janeiro, sob a coordenação de Antonio Carlos de Souza Lima. Contou também com recursos
da Fundação Ford para a Associação Brasileira de Antropologia, sob a doação nº 130-1186-0 para o
projeto “Diversidade Étnica, Direitos Territoriais Diferenciados no Brasil Contemporâneo: Produção,
Sistematização de Conhecimentos, Disseminação de Informações e Intervenções em Debates
Públicos Promovidos pela Associação Brasileira de Antropologia”, desenvolvido de 2013 a 2016.
9
e dos estados, dos cursos de pós-graduação, assim como de espa-
ços de trabalho extrauniversitário. Os diversos autores convidados
a participar trataram de temas importantes para nosso campo dis-
ciplinar, utilizando-se de dados históricos fornecidos pelos pro-
gramas de pós-graduação então existentes, disponibilizados pela
Fundação Coordenação de Pessoal do Nível Superior (Capes), e ainda
outros documentos devidamente criticados, assim como um survey
feito através de entrevistas estruturadas, sob a segura e arguta con-
dução de Wilson Trajano Filho. O livro foi, em larga medida, ense-
jado em seu desenho pelo sistema de avaliação que preside o fomento
do governo federal à formação de mestres e doutores no Brasil (ou
seja, em última instância, pelos parâmetros da iniciativa estatal). Ess
esforço, sem iniciativas precedentes nos quadros de outras tradições
nacionais, suscitou outros levantamentos, como o da Associação
Portuguesa de Antropologia (APA), publicizado em 2016. Em anos
recentes, e com aspirações mais amplas, realizou-se de um survey
internacional pelo World Council of Anthropological Associations
(WCAA), cujos resultados são ainda desconhecidos.1
Pareceu-nos, assim, que era melhor olhar para frente em vez
de tentar preencher o hiato de uma década na chave da recupera-
ção de uma memória recente e amplamente compartilhada, regis-
trada e divulgada. E para olhar adiante, julgamos estratégica a qua-
lificação do amplo e disseminado truísmo sobre o “engajamento”
da antropologia social no Brasil com as coletividades e segmentos
sociais com que trabalha e sua participação na esfera pública de
modo mais amplo. Mariza Peirano (1981, 1992), entre outros auto-
res que a seguiriam, apontou-nos pioneiramente a importância,
para setores da antropologia produzida no país, do horizonte dos
processos de construção nacional no Brasil.2 Mas se é verdade que,
em comparação com os centros em que a disciplina se desenvolveu
10 Antonio Carlos de Souza Lima ET AL.
e mesmo com outros contextos de espraiamento (pós-)colonial, a
presença na esfera pública dos antropólogos é frequente, ela não é
regra, havendo até mesmo quem se paute por posturas distintas ou
que tenha mudado ao longo do tempo.
Constatávamos, numa conjuntura muito específica, que, desde a
Constituição de 1988, e após décadas de políticas públicas que pro-
curaram efetivar os direitos à diversidade preconizados na carta
constitucional, antropólogos e antropólogas nos vimos convocados
a tomar posições sobre esses e muitos outros temas não apenas como
cidadãos, mas também como especialistas, investigadores e produ-
tores de conhecimentos capazes de subsidiar a aplicação do novo
enquadramento jurídico e sua efetivação em medidas concretas.3
Foi na perspectiva de refletir sobre essa modalidade de participação
pública, que se faz pela via da construção do conhecimento e pelo
potencial dos saberes antropológicos para a crítica social, que julga-
mos oportuno refletir, pensando nos desafios do porvir.
Mas que conjuntura era aquela na qual sonhamos (ainda hoje o
fazemos) com +60 anos de apoio e luta pela diversidade e pela plura-
lidade sob o rigor teórico e metodológico característico de “nossa”
antropologia em todas as suas tendências e diversidade? Que cenário
era aquele no qual nos víamos convocados a contribuir, entre outras
direções, na construção verdadeiramente participativa de políticas
públicas de Estado de qualidade e inclusão social baseadas na capa-
cidade de crítica social e de retificação?
Quando nos propusemos a concorrer à diretoria da Associa-
ção, em inícios de 2014, tendo sido eleitos em agosto do mesmo
ano, durante a 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada em
Natal, nas dependências da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, conquanto já vivêssemos um quadro de crescente polariza-
ção política em vistas da eleição presidencial, nada nos autorizava a
reunir muitos sinais na antevisão de uma mudança muito radical na
vida pública brasileira. Em particular, em termos do nosso campo
disciplinar, o grande sucesso da RBA de 2014, com 3.761 inscritos e
sos lados, o que nos mostra que tal discussão é mais que oportuna e nos serve como
termômetro dos limites à ação crítica das Humanidades de modo mais geral.
3 Para alguns aspectos referentes a esses campos de participação e intervenção dos
antropólogos a partir do texto constitucional, ver Oliven, Ridenti e Brandão (2008).
4 Para diferentes referências sobre o período que se estendeu desde então, ver
Santos, 2013; Santos e Szwako, 2016; Fachini e Sívori, 2017; Sant’ana, 2017, entre
muitas outras de outros ângulos. Para análises referentes aos diversos temas
abordados neste livro, tratados pelos comitês e comissões da ABA no final do ano
de 2015, ver ABA, 2015 – Balanços parciais a partir de perspectivas antropológicas.
Disponível em: http://www.aba.abant.org.br/administrator/informativo/
informativo.php?inf=00115. Acesso em: 15 nov. 2018.
12 Antonio Carlos de Souza Lima ET AL.
Assim, se os contornos do presente não se delineavam ainda
plenamente, tínhamos já em mente a necessidade de apurar certos
posicionamentos da ABA, contribuindo para o trabalho de antro-
pólogas e antropólogos em situações de perícia, obviamente o alvo
primordial – mas não único – de possíveis questionamentos. Para
isso, e também para racionalizar recursos, o encontro foi antece-
dido, em 17 e 18 de agosto de 2015, por uma oficina para a produção
do documento intitulado Protocolo de Brasília. Laudos antropológi-
cos: condições para o exercício de um trabalho científico.5 O texto foi
lido por Alexandra Barbosa da Silva e debatido em suas linhas gerais
durante o evento.
O seminário foi concebido em diálogo com os comitês, comissões
e assessores de nossa gestão, tendo sido filmado e achando-se dispo-
nível para ser visualizado, os links estando no anexo do texto. Dessa
maneira, procuramos, seguindo a orientação desses interlocutores,
percorrer alguns dos principais temas da antropologia contemporâ-
nea feita no Brasil, na qual muitos/as de nós atuamos também com
o objetivo de avançar na compreensão analítica da realidade. Firmá-
vamos mais uma vez o compromisso ético com o respeito pelas plu-
ralidades, em um país que se acredita(va) e se quer(ia) democrático.
Da discussão em torno dos temas indígenas, constitutiva da pró-
pria ABA, como nos mostram as sessões das primeiras RBAs sobre
política indigenista, às questões de gêneros e sexualidades, hoje no
foco do agressivo conservadorismo tão atuante no cenário político,
combatidas pelos opositores da igualdade material em todos os cam-
pos, passando pelos temas referentes às terras de quilombos e ao
avassalador assaque aos povos e coletividades tradicionais por um
desenvolvimentismo fast track, para recuperar a arguta expressão
utilizada por Andrea Zhouri, em abordagens singulares e para muito
além da mera participação observante. Para isso, discutir o ensino da
disciplina foi fundamental, conquanto esse bloco temático não esteja
contemplado nesta coletânea, já que estão sobejamente tratados em
outros volumes da Associação, antes mencionados.
14 Antonio Carlos de Souza Lima ET AL.
dade do antropólogo em processos de intervenção ou acerca da ação
estatal junto a diferentes segmentos sociais.
De fato, cremos que, do segundo semestre de 2015 em diante,
outros temas demandaram a cada momento mais reflexão. Assim,
aquele ano veria a instauração da “Comissão Parlamentar de Inqué-
rito destinada a investigar fatos relativos à Fundação Nacional do
Índio (Funai) e ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrá-
ria (Incra) na demarcação de terras indígenas e de remanescentes de
quilombos”, que, não tendo encerrado com um relatório final, foi
renovada numa segunda CPI em 2016. Seu objetivo foi supostamente
investigar “fraudes” nos processos de reconhecimento de direitos
territoriais culturalmente diferenciados. Ainda que teoricamente
focada na ação da Funai e do Incra, e também incidente no tocante
a assentamentos rurais, a CPI centrou sua atenção na construção de
uma imagem deturpada dos antropólogos e do fazer pericial antro-
pológico no Brasil no tocante ao cumprimento das determinações
legais de reconhecimento dos direitos territoriais de indígenas e
quilombolas e atuou com a clara intenção de intimidar esses profis-
sionais e a própria ABA.6
A própria arquitetura dessa CPI, seu transcurso, pautado pelas
negociações para o impeachment de Dilma Rousseff e depois na
contenção às denúncias de corrupção feitas contra Michel Temer,
ou a associação nela estampada entre representantes da Frente Par-
lamentar da Agropecuária e da Frente Parlamentar Evangélica, ou
a assunção do controle da Funai pelo Partido Social Cristão, a pre-
sença ostensiva desses setores em toda a movimentação política daí
por diante, culminando nas eleições de 2018, decerto nos fariam,
hoje, delinear outros contornos, talvez um seminário mais extenso.
Seria um novo seminário, onde o peso da religião e do que vem sendo
7 Ver Almeida e Toniol (2018) para reflexões estimulantes nessa conjuntura sobre
esse feixe temático, assim como Sant’Ana (2017).
8 Ver Zhouri (2017, 2018).
16 Antonio Carlos de Souza Lima ET AL.
intelectual permanente. É como documento de um momento his-
tórico preciso, arco que se estende até o presente, que este livro se
apresenta ao público leitor.
Referências
ALMEIDA, Ronaldo de; TONIOL, Rodrigo (Orgs.). Conservadorismos, fascismos e
fundamentalismos. Campinas: Unicamp, 2018.
FACHINI, Regina; SÍVORI, Horácio. Conservadorismo, direitos, moralidades
e violência: situando um conjunto de reflexões a partir da Antropologia.
Dossiê Conservadorismo, Direitos, Moralidades e Violência. Cadernos Pagu,
n. 50, 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n50/1809-4449-
cpa-18094449201700500000.pdf. Acesso em: 15 nov. 2018.
OLIVEN, Ruben George; RIDENTI, Marcelo; BRANDÃO, Gildo Marçal (Orgs.). A
Constituição de 1988 na vida brasileira. São Paulo: Aderaldo & Rothschild: Anpocs,
2008. 400p.
PACHECO DE OLIVEIRA, João. Introduction. Fighting for lands and reframing the
culture. Dossiê Fighting for Indigenous Lands in Modern Brazil. The Reframing of
Cultures and Identities. Vibrant – Virtual Brazilian Anthropology, v. 15, n. 2, p. 1-21,
ago. 2018. Disponível em: http://vibrant.org.br/downloads/v15n2/vb15n2a01.pdf.
Acesso em: 15 nov. 2018.
PEIRANO, Mariza. The anthropology of anthropology: the Brazilian case. Tese
(doutorado). Cambridge: Harvard University, 1981. Disponível em: http://www.
marizapeirano.com.br/teses/the_anthropology_of_anthropology.pdf. Acesso em:
15 nov. 2018.
______. Uma antropologia no plural. Três experiências contemporâneas. Brasília:
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Acesso em: 15 nov. 2018.
SANT’ANA, Raquel. A nação cujo Deus é o Senhor: a imaginação de uma
coletividade “evangélica” a partir da Marcha para Jesus. Tese (doutorado). Rio de
Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, 2017. Disponível
em: http://objdig.ufrj.br/72/teses/857396.pdf. Acesso em: 15 nov. 2018.
SANTOS, Fabiano. Do protesto ao plebiscito: uma avaliação crítica da conjuntura
brasileira. Novos Estudos – Cebrap, n. 96, p. 15-25, jul. 2013. Disponível em: http://
www.scielo.br/pdf/nec/n96/a01n96.pdf. Acesso em: 15 nov. 2018.
______.; SZWAKO, José. Da ruptura à reconstrução democrática no Brasil. Saúde
em Debate, v. 40, p. 114-121, dez. 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/
sdeb/v40nspe/0103-1104-sdeb-40-spe-0114.pdf. Acesso em: 15 nov. 2018.
18 Antonio Carlos de Souza Lima ET AL.
Anexo
20 Antonio Carlos de Souza Lima ET AL.
Vídeo da sessão na TV ABA: https://www.youtube.com/watch?v=
7bZA1WcyzPE&list=PLrqSUafHHXYwS6ekkXdKnjZqFhCIfk8DG&in
dex=4
22 Antonio Carlos de Souza Lima ET AL.
“Cadê a ABA?”: a antropologia e
a esfera pública no Brasil1
Carmen Rial
23
Cenário um: novembro de 2012 – AAA em São Francisco
Café da manhã na suíte presidencial, cobertura do hotel Hilton, a
convite de Leith Mullings, presidente (2011-2013) da American Anth-
ropological Association (AAA). Ela reúne os presidentes das associa-
ções de antropologia que participam do congresso – uma associação
por país – e representantes de instituições financeiras e antropoló-
gicas importantes. Eu sou uma incoming-president, já eleita, mas
não empossada. Acompanho Bela Feldman Bianco, então presidente
da ABA da gestão Desafios Antropológicos (2011-2013). Estonteante
vista sobre a cidade de São Francisco, deliciosos croissants, e a con-
versa começa com uma bomba: o representante de uma instituição
britânica e irlandesa alerta para o que, a seus olhos, é a erosão com-
pleta do sistema de publicações na Grã-Bretanha. O governo teria
feito passar uma lei insidiosa que obrigaria os pesquisadores sub-
vencionados pelo Estado a disponibilizar publicamente os resulta-
dos, com acesso irrestrito. Em outras palavras: open access, acesso
aberto. Ele descreve um quadro de ameaça, de caos, de fechamento
de revistas acadêmicas, e o lenço que passa insistentemente sobre
a testa mostra bem quanto essa nova legislação o abala emocional-
mente. Defende o livre mercado, as liberdades individuais, com um
discurso político conservador extremado que eu, neófita nessas reu-
niões, nunca antes tinha pensado ouvir da boca de um antropólogo.
Todos escutam com atenção, contidos, e alguns – a representante
da Austrália – com evidente preocupação. Hesito entre iniciar uma
defesa do livre acesso a publicações, o que desencadearia provavel-
mente uma guerra, ou deixar assim e simplesmente buscar outro
pain au chocolate na farta mesa de café da manhã.
Depois de alguns minutos de apocalipse editorial, Bela e eu
começamos a explicar que as coisas “talvez não fossem assim tão
graves”, que, no Brasil, trabalhamos sob o sistema de acesso aberto
nas revistas acadêmicas há anos e que o sistema tem “funcionado”
– o argumento pragmático, no caso, pareceu mais eficiente que o
ideológico, acho até que usei oportunisticamente a expressão “com
lucros para todos”, mas não saberia precisar. Falei, sim, que o que
vemos no Brasil como um problema não é o livre acesso, mas, ao
contrário, os altos preços cobrados para acesso a artigos pelas gran-
des editoras anglo-americanas que detêm o monopólio do mercado
24 Carmen Rial
editorial, obrigando o governo brasileiro a pagar uma fortuna para
ter alguns desses periódicos internacionais disponíveis em livre
acesso nas universidades. Aos poucos, e timidamente, outros pre-
sidentes começaram a apontar fatores positivos no open access: a
representante do Canadá primeiro. Outros falam. O representante
da instituição britânica e irlandesa vai se recostando na poltrona e
se calando. Arrisco um golpe de misericórdia: “De todo modo, quer
se queira ou não, quase tudo está em open access hoje. Por exem-
plo, enviei a referência de um artigo a uma orientanda, avisando que
teria de pagar para lê-lo, e, em cinco minutos, ela colocou no Face-
book o link em que ele estava disponível gratuitamente”. Alguns
risos, alguns apoios: “Ah, sim, o Academic.edu. Os autores postam
seus artigos lá”.
Passamos a outro assunto. Esse início de reunião me fez cons-
tatar algo de que, ingenuidade minha, e talvez etnocentrismo, não
tinha me dado conta: os antropólogos na antropologia mundial for-
mam uma comunidade bastante heterogênea. A questão colocada
pelo colega britânico havia sido um choque para mim, pois, no Bra-
sil, já está consolidada a ideia do acesso aberto a revistas em sites e
portais – como o Scientific Electronic Library Online (Scielo), atual-
mente replicado amplamente por outros sistemas, como o Sistema
Eletrônico de Editoração de Revistas (SEER) – e essa posição já se
difunde também para a divulgação on-line dos livros. O CNPq tem
uma linha de financiamento para livros eletrônicos e a editora da
ABA também adota essa diretriz, com uma linha editorial exclusiva
para livros on-line. Já em outros países… Bem, estava conhecendo
outras histórias.
A reunião continuou sem outros temas tão apaixonantes – infor-
mações sobre próximos congressos, relatos da relação com o Conse-
lho Mundial de Associações Antropológicas (WCAA, instituição fun-
dada em Recife em 2004 na gestão de Gustavo L. Ribeiro), relatos de
possíveis financiamentos da Wenner-Gren – até que, ao final, a pre-
sidente da AAA pediu ao Brasil (ou seja, a nós) que explicasse como
conseguíamos entrada nos órgãos governamentais de modo a influir
nas tomadas de decisão, como ela tinha testemunhado quando par-
ticipou da RBA em São Paulo e se surpreendeu com a presença, em
26 Carmen Rial
A curiosidade demonstrada no café da manhã dos presidentes
das outras associações mostra um respeito se não novo, pelo menos
recente. Seria essa consideração devida ao fato de o Brasil ser visto
na economia e na política como um novo global actor? Talvez. Esse
novo olhar ficou mais claro três meses depois, quando voltei aos
Estados Unidos para participar de um colóquio na Flórida chamado
Emergent Brazil. (Estranho nome. Emergente como o monstro do
lago Ness? Foi o que pensei quando vi o título. Sem dúvida, um nome
datado, de antes da crise econômica e política de 2015, que mudou
muito da imagem do Brasil interna e externamente.) No Emer-
gent Brazil, desfilaram brasilianistas, sociólogos, economistas, um
embaixador, um ex-ministro da Agricultura e, claro, antropólogos
para falar das novas condições do país, ouvidos num misto de inte-
resse e admiração desproporcional.
A alta no preço das commodities que beneficiaram tanto o Brasil
economicamente parece ter influído também no olhar sobre as teo-
rias que se produz no país e nos seus impactos no poder.
Sem dúvida, houve um incremento da inserção internacional da
antropologia produzida no Brasil, paralelo ao novo protagonismo do
país no cenário político e econômico global. Minha geração mirava
o Norte industrial. Era nos países centrais que íamos buscar nos-
sas referências teóricas – França, Estados Unidos, Inglaterra – para
serem aplicadas em campos etnográficos restritos ao interior das
fronteiras nacionais. De fato, num movimento contrário ao das
antropologias centrais, que se dirigiam para uma alteridade distante
geograficamente, a nossa sempre se voltou para si. Queríamos teo-
rias que nos ajudassem a entender o local. Mas diferentemente dos
europeus e norte-americanos que buscavam nas Américas grupos
indígenas, procurávamos no Norte teorias que explicassem também
as sociedades urbanas, complexas, modernas e industriais.
Hoje, a antropologia brasileira e outras anteriormente tidas como
periféricas são fontes de teorias, dialogam em igualdade com outros
lugares, buscam relações com antropologias outras que as ditas cen-
trais, trabalham em campos que não são mais restritos aos territórios
nacionais. Mas a língua continua sendo uma grande barreira na cir-
culação das coisas antropológicas, dos nossos textos. Não para todos:
nota-se maior facilidade dos que se formaram no exterior de publi-
28 Carmen Rial
mente de pele escura, terno preto, camisa social branca, gravata
borboleta. Comumente sentado em um canto, cabeça baixa, muitas
vezes lendo um jornal de esportes. Pode ser que, na sala, tenha ape-
nas uma secretária, mas lá estará esse senhor. É só quando a reu-
nião começa que ele se ativa, empurrando um carrinho com copos
com água gelada, térmica, cafezinhos, ou simplesmente uma ban-
deja. E aí se inicia uma conversa de mudos feita de olhares, acenos de
cabeças, bocas que se abrem sem emitir som. Toda uma negociação
ocorre sem que a reunião se interrompa, o senhor de terno preto em
completa invisibilidade.
Em Brasília, me chama atenção também os bótons nas lape-
las dos casacos dos homens – menos frequentemente usados pelas
mulheres –, que parecem indicar o local de pertencimento do sujeito
e sua posição hierárquica. Seu código não é disponibilizado ao não
usuário, mas a impressão é de que basta ter um bóton para se ter
acesso a todos os lugares. Até pedi à Secretaria da ABA que fizesse
bótons para usarmos nessas visitas, e sempre trago os meus quando
venho aqui. Os senhores garçons, claro, não têm bótons, exceto um,
que usava na lapela o do Flamengo, o seu clube de futebol, reinter-
pretando, assim, um signo de distinção social do espaço ministerial.
Nas reuniões de Brasília, as conversas se dão por siglas e núme-
ros – que ninguém se dá ao trabalho de explicar, pois parecem ser de
amplo conhecimento: PEC, PAC, Iseb, Cimi, CPT, Funasa, RC; a 37, a
169, a 215, o 231, o 232… Lidar com os escritórios em Brasília pressu-
põe que se domine números, siglas e cargos.
Os cargos são outro mistério, ou melhor, ministério. São muitos
os “ministros”. Pensava que existiam uns 20 no país, mas não, ali
todo mundo é tratado como ministro. E, de novo, ninguém se dá ao
trabalho de completar com o nome, é só “o ministro me orientou”. E
que o interlocutor adivinhe se estão falando do ministro da Secreta-
ria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, do ministro da Justiça,
José Eduardo Cardoso, ou de outro, algum ocupante de uma secreta-
ria, mas que também é chamado de ministro. É como se “ministro”
fosse, a exemplo dos verbos, um substantivo intransitivo, não pre-
cisa de complemento. O complemento o ouvinte tem de imaginar,
contextualizando o sujeito que fala e o conjunto da fala. Esse não é o
30 Carmen Rial
sentimento? Como estudar a sexualidade entre adolescentes quando
são os pais que devem assinar e, muitas vezes, nem sabem que os
filhos têm uma vida sexual ativa? Guardamos no bolso esses e nume-
rosos outros exemplos que os colegas nos passaram ao longo de mui-
tos discussões, pois esse era um debate que tinha começado em 1996,
logo depois da promulgação do decreto-lei. Entramos na sala, mesa
enorme em madeira de lei. “Então é assim uma sala de reunião de
um ministério?”, pensei. O ministro entra, alto como um jogador de
basquete, corpulento como um atleta de rúgbi. Senta na cabeceira,
acompanhado de duas jovens secretárias, “admiradoras da antropo-
logia”, nos diriam mais tarde, na saída. O ministro pergunta: “Bem,
o que vos traz aqui?”. Gustavo se lança: “Ministro, nós representa-
mos a área de ciências humanas, o controle da ética está atualmente
no Ministério da Saúde, gostaríamos de passá-lo para o seu ministé-
rio”. Ele o interrompe: “Isso me parece óbvio”.
Pronto, não era preciso argumento nenhum. “Então, o senhor
nos dá sinal verde para iniciarmos o processo?” “Sim, vocês podem
ir adiante.” A reunião poderia terminar ali, dois minutos depois de
começar. Atacamos outros temas, mas o principal estava resolvido.
Vínhamos batalhando por isso há anos e agora, com uma palavra
mágica, o conflito “israelo-palestiniano” parecia se resolver. Saímos
caminhando em nuvens.
Podíamos convocar, e o fizemos, os presidentes de outras asso-
ciações de ciências humanas, criando um fórum reunindo 21 associa-
ções – sabemos a importância das alianças – que, em pouco tempo,
teve o acréscimo das áreas de sociais e sociais aplicadas. As coisas
andaram rapidamente, embora, sabemos, nunca seja fácil o consenso
entre as ciências humanas. Alguns colóquios e reuniões depois, já em
julho, tínhamos algo pronto para apresentar, elaborado inicialmente
por Luiz Fernando D. Duarte, Cynthia Sarti e Ceres Victora.
Porém… Nosso segundo encontro com o ministro já foi em uma
sala repleta de cientistas das ciências ditas duras. Ele estava na mesa,
nós na plateia. Otávio Velho já nos tinha alertado que o cenário
mudara: o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, se opunha a que
deixássemos seu ministério, sentia que perderia algo – “O quê?”,
pensei. E Raupp não iria descontentá-lo por algo tão pequeno; ou
seja, novos obstáculos. O diálogo foi menos fácil, mas ele manteve a
32 Carmen Rial
Cenário três: anexo do Palácio do Planalto
Chegamos no horário, já estava montado o esquema de segurança,
com dezenas de homens em uniforme men in black, e algumas
câmeras de TV ao longe. Nós, mas principalmente os índios, tería-
mos de passar pelos portais detectores de metal antes de ingressar-
mos no auditório. Entramos. As “autoridades” já estavam na frente
da porta – “autoridade” é como chamamos, no Brasil, os represen-
tantes governamentais, mas não só eles, também os que têm fácil
acesso a eles.
Os índios demoram a chegar, foram transportados desde Belo
Monte por aviões da Força Aérea Brasileira – a cobertura jornalística
deu ênfase a esse fato, como se se tratasse de um uso ilegítimo de
patrimônio público, como se tivessem viajado de primeira classe e
não em aviões militares desprovidos de conforto. Aproximei-me de
um militar, um general da Agência Brasileira de Inteligência (Abin,
órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência), e a conversa
começou de forma simpática, com ele citando a famosa frase do mare-
chal Rondon sobre os índios, que, sabia, agradaria uma antropóloga:
“Morrer se for preciso, matar nunca”. Responsável pela segurança
da Presidência, entre outras atividades nobres (como a segurança na
Copa do Mundo ou o controle do transporte do resíduo atômico), ele
me revela: a ocupação de Belo Monte pelos mundurucu não havia
sido pacífica. Havia veículos cheios de gasolina, à guisa de coque-
téis molotov móveis, prontos para fazer explodir a construtora. O
Exército nacional estava de prontidão nas proximidades. Uma inves-
tida e seria um massacre. Aquela reunião era vital, portanto. Nada
de estranhar que o “ministro” (este entre aspas) Paulo Malos tivesse
telefonado para minha casa num domingo depois das oito da noite
me convidando para a reunião.
Os índios entraram em fila indiana, cantando, muitos com coca-
res coloridos, algumas grávidas, muitas com crianças nas costas.
Contrastavam com o batalhão de terno escuro e gravata. O auditório
ficou completamente tomado pelos índios, mas havia uma ordem e
um silêncio solene, quebrado pelo choro de um bebê. Os jornalistas
também se alinharam ao longo de uma das paredes do auditório de
modo a não entrarem no enquadramento da imagem um do outro
e, assim que a mesa foi formada, os flashes pipocaram. Fotografa-
34 Carmen Rial
rada ali, enfim, de um deslocamento de uma posição anterior em que
dominavam o espaço e nele estavam integrados para uma condição
de vida precária, sem valor, obstáculo ao desenvolvimento do país
tão bem representado pela imagem de uma hidrelétrica no meio da
selva.
São muitos os levantes de índios no Brasil – não são novidade,
mas se acirraram no governo Dilma, cujo projeto de desenvolvi-
mento os tem, assim como as florestas, como um empecilho ao Pro-
jeto de Aceleração do Crescimento (PAC). São mais de 100 conflitos
entre indígenas e proprietários de terra. Os ruralistas – bancada de
deputados e senadores no Congresso – falam de uma foto de saté-
lite que mostra que 13% das terras brasileiras são indígenas, uma
área mais extensa que a dedicada à agricultura. Sua oposição é clara:
não querem mais demarcações, embora legalmente respaldadas. Os
levantes indígenas parecem dizer: é agora ou nunca.
A ocupação do canteiro de obras de Belo Monte foi precedida
de outra, no Rio de Janeiro, que teve grande repercussão na mídia
e que reuniu índios, estudantes, operários, “cidadãos de todo tipo,
músicos, entregadores de pizza e professores, funcionários de call
center e ativistas, motoristas, caixas de supermercado, empregadas
domésticas, enfermeiras, contadores, catadores e quem mais vies-
se”2 numa rede criativa no prédio do antigo Museu do Índio. Cha-
maram a rede de Aldeia Maracanã. A força simbólica do evento não
tinha como passar despercebida: índios lutando contra o capital,
representado pela Fifa, miseráveis defendendo o patrimônio histó-
rico contra o futebol, campo minado de milionários, e tudo se desen-
volvendo praticamente no centro do Rio de Janeiro, com fogueiras,
cocares, repressão e uso de força desproporcional pela polícia. A
ABA esteve presente desde o início, com os jovens antropólogos da
Comissão de Assuntos Indígenas.
Ninguém contestaria que esses acontecimentos, as ocupações
indígenas e especialmente a Aldeia Maracanã, foram pré-eventos do
que viria logo depois: as grandes manifestações de rua que tomaram
o país. E como tomaram!
36 Carmen Rial
pólogos, mas se espalhou depois por toda a rede. As redes são hoje
locais reais de sociabilidade, as ruas não fizeram mais do que trans-
formar em ato o que era palavra.
Outros denunciavam a onda de conservadorismo moralista
impulsionada por algumas denominações neopentecostais e por
setores da Igreja católica que tem fortes ecos no governo Dilma e con-
tra a qual o Comitê de Gênero e Sexualidade da ABA está em perma-
nente alerta – escreve notas e notas a favor da descriminalização do
aborto, contra o Estatuto do Nascituro (que outorga ao feto direitos
de cidadão), a favor da criminalização da homofobia (que, inclusive,
matou um associado da ABA professor em Tocantins), contra Mar-
cos Feliciano – o deputado federal, pastor neopentecostal, racista,
homofóbico, alçado à liderança da Comissão de Direitos Humanos
do Congresso durante a nossa gestão.
A política de alianças do governo do PT parece ter resultado em
uma guinada conservadora em questões crucias para minorias: a
demarcação de terras indígenas e quilombolas (há anos não esteve
tão ameaçada), os direitos sexuais e reprodutivos (com a extensão da
criminalização do aborto) etc. Que o futebol tenha sido um dos alvos
surpreende, mas se explica. Ele tornou visível uma corrupção que
antes não tinha a forma concreta de obras faraônicas. Como explicar
a construção de um estádio público em Brasília com um custo duas
vezes maior que outro, igual, privado, construído na mesma época
em Porto Alegre? E por que construir estádios em cidades onde não
haverá utilização depois da Copa, por não abrigarem clubes de fute-
bol importantes? Como justificar o desalojamento de comunidades
inteiras para abrir espaço para parques esportivos e valorizar áreas
que foram rapidamente adquiridas por preços irrisórios pelo capital
imobiliário?
O Brasil “emergente” vivia um momento de inegável transfor-
mação social, com diminuição da pobreza e acesso de grandes mas-
sas a direitos – embora as desigualdades permanecessem enormes
e muitos dos números otimistas já fossem questionados. Esse bom
momento foi um dos propulsores do “exijo mais”.
O que quero sublinhar aqui é que todas essas reivindicações já
vinham sendo propagadas nas redes e por ONGs em todo o país. O
papel da ABA seria mais efetivo politicamente? Não sei, mas é prová-
Considerações finais
Conciliar o acadêmico e o político tem sido, portanto, um desafio e a
marca da nossa associação. Todos sabemos da importância de sujei-
tos políticos coletivos como uma associação científica. Eles reforçam
identidades e pertencimentos, ecoam vozes mais fortemente, propi-
ciando intervenções políticas mais eficazes.
Belo Monte, o avanço acelerado das empresas mineradoras na
Amazônia e outros projetos desenvolvimentistas que potencial-
mente ameacem as populações indígenas e ribeirinhas são vigiados
e, se preciso, combatidos. Não porque a ABA se oponha ingenua-
mente ao desenvolvimento, mas porque pensamos que este deve ser
38 Carmen Rial
sustentável, respeitar a biodiversidade e o efetivo consentimento das
populações atingidas.
Para concluir, volto à pergunta inicial, que foi desaparecendo da
rede ao longo dos meses da nossa gestão. “Cadê a ABA?” A resposta
varia muito quando nos deslocamos. Entre meus colegas da diretoria
do Conselho Mundial de Associações Antropológicas (WCAA), a ABA
é exemplo de como usar seu potencial de convencimento junto à
sociedade brasileira; para os antropólogos brasileiros, é preciso fazer
mais, muito mais. Penso que, nesses 60 anos, nossa associação, emi-
nentemente científica, não se absteve do seu papel na arena política.
Cresceu. São outros os tempos. Mas a expansão recente da antropo-
logia brasileira, dentro e fora do país, mantém e densifica sua res-
ponsabilidade, que é a de continuar sendo, fundamentalmente, uma
instituição acadêmica que zela pela excelência da antropologia e,
ao mesmo tempo, tem a responsabilidade de estimular uma agenda
reflexiva capaz de contribuir para as políticas públicas do Brasil.
1 PPGA/UFPE.
41
cisões discutidas neste trabalho, tomando como premissa que tais
inquietações e imprecisões, por mais que sejam vividas como ple-
namente verdadeiras, também se inserem numa busca de práticas
astuciosas não somente dos mais fracos, como as entenderia Michel
de Certeau, mas também dos mais fortes, e assim se perpetuam as
diferenças entre programas. Essas diferenças marcam as singulari-
dades de cada área, mas também são alvo de disputas e negociações
de compreensão que se relacionam com as estratégias de forma-
ção de, e resistência a, uma pluralidade estratégica (SCOTT, 2014)
que age na geopolítica do campo da Antropologia, e por tabela, da
Arqueologia.
A imbricação Lattes – Sucupira – documento da área (a sigla seria
LSD?) é tratada como um sistema disciplinador que gera conceitos
que, instantaneamente, na sua vã finalidade de serem exatos, geram
imprecisões e inquietações cujas propostas de resolução se associam
à perpetuação de diferenças que servem para marcar a desigualdade
entre os programas em termos de qualidade, produtividade e, ainda
mais, concepção, organização e inserção social. Em outras palavras,
a busca do “exato” assegura a imprecisão e a inquietação, elementos
cuja resolução é mais política que técnica. Ninguém pode negar que
nos fazem pensar sobre muitos temas, mas todo cuidado é pouco.
Quando a astúcia é muito bem elaborada, ela escapa do discerni-
mento de quem gostaria de entendê-la; então, por prevenção, neste
trabalho, ficarei mais no terreno seguro de expor as inquietações e
as imprecisões, em vez de oferecer sugestões e interpretações explí-
citas sobre as astúcias. Ao mesmo tempo, me aventuro a sugerir, ou
mesmo especular sobre, as direções diferentes às quais interpreta-
ções dos conceitos podem levar.
Essas considerações são um alerta ou sinal de permanente aten-
ção para seguirmos dois nortes de esferas muito diferentes entre
si: uma proveniente do título instigante de um artigo de um colega
antropólogo, Luis Eduardo Soares, que é “Luz baixa sob neblina”
(1994), e outra dos setores acadêmico-disciplinares integrados
internacionalmente na reflexão sobre processos de avaliação de cur-
sos, sintetizada no Manifesto de Leiden (HICKS et. al., 2015), ao qual
voltaremos no final. Em ambos os casos, as imprecisões e inquie-
tações são exatamente elementos que geram prudência e adesão a
42 Parry Scott
procedimentos capazes de evitar falsas certezas e buscar contra-
balanças que possam contribuir para um processo de avaliação que
almeja justiça e respeito às muitas especificidades e diferenças que
permeiam não somente diferentes disciplinas acadêmicas, mas tam-
bém uma área disciplinar pretensamente única que abarca Antro-
pologia e Arqueologia. As reflexões são fruto de mais de três décadas
de participação em várias etapas de processos de registro e avaliação
de produção acadêmica que culminaram na minha indicação, pela
comunidade de antropólogos e arqueólogos, ratificada pela Coorde-
nação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes),
para assumir a responsabilidade de conduzir uma avaliação sensível
sobre a necessidade de mediar as demandas de ambas as comunida-
des: a da área e a do órgão disciplinador.
Organizo a exposição como se fosse um documento disciplina-
dor com itens IIA1 a IIA9 (novas siglas com as letras I, I, e A signifi-
cando “inquietações”, “imprecisões” e “astúcias”). Não garanto ter
acertado em todos os detalhes de definição disponíveis na miríade
de espaços esclarecedores e, por vezes, contraditórios fornecidos no
sistema LSD, mas, respeitando o lema que faz o mundo girar, é muito
importante que “o trabalho não acabe”. Então, haverá um momento
em que pararei de escrever, por enquanto, mas que não será o tér-
mino de minha reflexão sobre o assunto, na busca de uma avaliação
consciente das suas limitações e da capacidade de lidar com os desa-
fios à lisura do processo.
IIA1 – PERMANENTE/COLABORADOR
44 Parry Scott
IIA2 – A COAUTORIA
IIA3 – ENDOGENIA-EXOGENIA
46 Parry Scott
rência a uma porcentagem máxima de autoria interna. Esse número
“máximo” é um número que deve ser quase, quase, alcançado para
assegurar o benefício maior de integrantes do programa publicarem
num periódico bem qualificado. Também existe a possibilidade de
uma “troca restrita” realizada não tão informalmente entre pro-
gramas possuidores de periódicos qualificados, de participação nos
periódicos e dossiês dos outros,também bem qualificados.
Em outra publicação, anotei outra prática que pode ampliar em
muito o bom reconhecimento de colegas do mesmo programa que
organiza um periódico de estrato elevado. Isto é: “registrar prefá-
cios, introduções, traduções e resenhas como artigos originais em
revistas bem avaliadas cujos corpos editoriais fazem parte da rede dos
autores de programas também bem-conceituados (prática menos
disponível para antropólogos nas periferias internas)” (SCOTT, 2014,
p. 149). Se colar, colou!
Observo, então, que a exogenia é elogiada e que o sistema LSD
termina sendo alucinantemente contraditório, pois o D – docu-
mento da área procura compensações pelos excessos de endogenia,
mas a captação de informações individualizadas no L e S (Lattes e
Sucupira) oferece uma individualização de produção atribuível à
produção que promove a valorização da endogenia, mais claramente
reconhecível nos programas mais bem avaliados, mas também for-
temente presente na busca de novos veículos – coletâneas e perió-
dicos – nos programas não tão bem avaliados, que abrem espaços
onde se pode publicar e buscam, progressivamente, se fechar com a
passagem de tempo.
IIA6 – PROFISSIONAL-ACADÊMICO
O que é um mestrado profissional e o que é um mestrado acadêmico,
e porque só temos este e não aquele na nossa área? Como é que con-
vivemos com um discurso de uma abertura do mercado de trabalho
48 Parry Scott
e dos campos de atuação de antropólogos e arqueólogos que passa
por laudos periciais, documentos de impacto ambiental, projetos de
salvamento, reconhecimento de patrimônios culturais e patrimô-
nios tangíveis e intangíveis, e continuarmos sendo a única área dis-
ciplinar na Capes que não tem nenhum mestrado profissional? O que
tivemos, sobre patrimônio, fechou há alguns anos depois de uma
curta existência. Estamos formando profissionais nos nossos cursos
acadêmicos que estão ocupando espaços na esfera pública e na esfera
privada que vão bem além de sermos responsáveis pelo histórico SPI
e atual Funai. Criticamos os limites dos profissionais que atuam, sem
formação específica, como antropólogos em diversas instituições e,
talvez ainda mais ferrenhamente, os antropólogos com formação
acadêmica que se inserem numa produção de contralaudos (se
assim os podemos chamar) que revelam um desdém pelo histórico
posicionamento em defesa de populações excluídas e discriminadas
(para repetir os rótulos imprecisos já usados anteriormente neste
trabalho). Colaboramos intensamente com institutos, associações,
fundações e organizações não governamentais que aderem às causas
com as quais costumamos nos identificar. Ainda nos inserimos
em cursos de formação das mais variadas qualidades para tratar
assuntos de populações tradicionais, de minorias sexuais, de
movimentos feministas e de tantas outras causas, buscando apoio
das mais variadas fontes. Então, por que não organizamos cursos
profissionalizantes que, como regem as regras da Capes, são tão exi-
gentes academicamente quanto os mestrados acadêmicos e que não
são pontuais, de demandas passageiras, mas sim duradouras e que
se autossustentam, sendo que os produtos que comprovam o apren-
dizado são mais técnicos e menos acadêmicos? Desconfio que exista
certa reserva de mercado pelos antropólogos acadêmicos que usam
mais de um chapéu, mas que isso não seja suficiente para compreen-
der nossa reticência. Há outro processo, talvez mais nocivo, que se
identifica na constituição de mestrados profissionais – a enorme
quantidade de propostas que são assinadas por universidades par-
ticulares que, potencialmente, visam obter retornos das matrículas
dos seus alunos como objetivo maior do que assegurar produção
de qualidade nos diversos cenários de produção do sistema de pós-
-graduação. Muitas propostas são admiravelmente bem elaboradas
50 Parry Scott
IIA8 – INTERNACIONALIZAÇÃO
Circula um tenso consenso no mundo acadêmico e no mundo
de organizações burocráticas de que “quanto mais internacional
melhor”. Tanto que, após destacar, na parte narrativa, tudo que
cheira a internacionalização, o gestor das informações de cada curso
sabe que fez o que podia para defender a ascensão do seu programa
para estratos mais altos da avaliação. No documento da área, é um
dos elementos-chave para diferenciar os cursos muito bons dos que
são melhores ainda. Mas relutamos reportar a “fatores de impacto” e
indexações realizadas por sistematizadores internacionais de núme-
ros de citações e indicadores diversos de impacto por acharmos que
não refletem os nossos anseios de publicação. A nossa internaciona-
lização não seria tão regida por fatores que sofrem terrivelmente do
fato de escrevermos muito numa língua que não reúne um grande
número de leitores internacionais. Então, é preciso contar publica-
ções, programas, alianças, estágios, eventos, convênios, visitantes,
a nacionalidade de autores publicados em trabalhos produzidos pelo
programa e outros itens congêneres e caracterizar a internaciona-
lização de cada um. É um processo que não reporta rigidamente a
nenhuma quantificação, mas é o que diferencia entre os melhores,
pois o elemento de internacionalização é um pressuposto não men-
surado explicitamente (mesmo que, indiretamente, os “qualis” de
publicações possam ser sensíveis a essa questão) para os programas
até que cheguem a ser “muito bons” em todos os outros itens.
Quando seu vizinho geopolítico é outro país, atravessar a fron-
teira o torna “internacional”; quando é outro estado da nação, se
torna local ou, no máximo, regional. Ter estrangeiros no seu corpo
docente permanente não parece ser um fator dos mais importantes
para se considerar internacionalizado, pois não há propostas de usar
isso como indicação de internacionalização. Ter docentes que passa-
ram tempo e até se titularam no estrangeiro é mais facilmente incor-
porado na compreensão de uma diversidade internacionalizada de
formações. O segundo pode compensar parcialmente o primeiro,
mas parece estar deixando alguma coisa de fora.
A importância do open access no Brasil é um esforço de pro-
mover intercomunicação entre o nacional e o internacional a baixo
custo, o que nem sempre é a lógica que impera entre casas publi-
52 Parry Scott
IIA9 – POLÍTICA DE INFORMAÇÕES
Dado que estamos num ponto de inflexão histórica, quando estamos
trocando de espaços cadastrais que precisam ser cada vez mais aper-
feiçoados por terem gerado enormes inquietações e imprecisões,
vivemos um clima de abre e fecha da plataforma Sucupira na busca
da sua maior, e muito trabalhosa, eficácia e relativa simplicidade.
Também vivemos a continuação do aperfeiçoamento das categorias
de coleta da plataforma Lattes e suas novas formas de apresentação
e visualização. E, como exige o sistema, estamos sempre revendo os
instrumentos incluídos nos nossos autodisciplinados documentos
da área para respeitar as nossas especificidades na medida em que
estas reverberam sobre o processo de avaliação.
No meio do ano de 2015, a troca na direção do Departamento de
Avaliação da Capes freou um processo de exacerbada busca de uni-
versalização de indicadores comuns, mesmo colocado num linguajar
de respeito às diferentes áreas e suas práticas como uma “marca”
da instituição. Um dos maiores entraves estava sendo a definição
do processo de avaliar os livros e capítulos de livros, o que continua
inquietando a todos. A troca trouxe novas discussões num ambiente
de cautela e respeito a diferenças que em muito se sintoniza com este
trabalho, que, ao chamar atenção para imprecisões, inquietações e
astúcias, não abdica da responsabilidade de, andando “sob neblina”,
realizar uma avaliação tão precisa quanto possível e também das
mais transparentes (e ainda inquietantes!) possíveis. É a discussão e
adesão da Diretoria de Avaliação aos princípios do manifesto de Lei-
den que serão elencados aqui e que devem nortear uma prática que
nunca deixará de estar repleta de imprecisões, inquietações e astú-
cias, mas que se faz num ambiente de reflexão, cuidado e de melhor
qualidade possível. A discussão fica com os antropólogos e arqueó-
logos!
Os 10 princípios do manifesto de Leiden
1. A avaliação quantitativa deve dar suporte à avaliação qualitativa
especializada.
2. Medir o desempenho de acordo com a missão da instituição, do
grupo ou do pesquisador.
3. Proteger a excelência da pesquisa localmente relevante.
Referências
HICKS, Diana; WOUTERS, Paul; WALTMAN, Ludo; RIJKE, Sarah de; RAFOLS,
Ismael. The Leiden Manifesto for research metrics. Nature, v. 520, p. 429-431,
2015. Disponível em: http://www.nature.com/news/bibliometrics-the-leiden-
manifesto-for-research-metrics-1.17351.
SCOTT, Parry. Poder, pluralidade estratégica e hierarquização interna em
antropologias nacionais. In: ______.; CAMPOS, Roberto Bivar C.; PEREIRA, Fabiana
(Orgs.). Os rumos da antropologia no Brasil e no mundo: geopolíticas disciplinares.
Recife: UFPE: ABA, 2014. p. 127-158.
SOARES, Luiz Eduardo. Luz baixa sob neblina: relativismo, interpretação,
antropologia. In: ______. O rigor da indisciplina. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1994.
54 Parry Scott
Contradições e desafios da política
do Estado na implementação da
PNGATI e o papel do antropólogo
Jaime Garcia Siqueira Jr.1
55
viabilizando a conjugação do trabalho acadêmico com a ação polí-
tica. O estilo mais politizado da etnologia brasileira, que privilegiou
as relações interétnicas como enfoque principal dos estudos etno-
lógicos, não pode ser justificado simplesmente por uma questão de
gosto pessoal. Ele tem relação com a própria história da antropologia
no Brasil.
Antropólogos que trabalham em órgãos governamentais, em
associações não governamentais, em empresas privadas ou como
pesquisadores em instituições públicas defrontam-se hoje não ape-
nas com “comunidades locais”, mas com grupos sociais organiza-
dos com os quais tenderão – cada vez mais – a conversar de igual
para igual, sem um papel privilegiado, seja de “tradutores”, seja de
“intermediários”.
Questões globais ligadas aos rumos do desenvolvimento econô-
mico são, por um lado, discutidas agora pelos antropólogos e, por
outro, formuladas pelos povos por eles estudados, como ocorre, por
exemplo, com a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambien-
tal de Terras Indígenas (PNGATI). Quanto ao papel dos antropólogos
nessa nova conjuntura, ele se transferiu da atuação micro para a atu-
ação macro, envolvendo impactos regionais ou nacionais, projetos
interligados, influência nas políticas públicas etc. (ALMEIDA, 1992).
O que está em discussão é nossa especificidade como antropólogos
nesse campo de forças em que se desenrolam as “questões indíge-
nas” – quais as nossas habilidades específicas, a nossa importância, a
nossa estratégia e, por fim, como incorporar essas questões em nos-
sos trabalhos acadêmicos.
Não basta uma postura “ética” para pensar certas dimensões das
políticas públicas frente a diversos segmentos da sociedade entre-
tanto suscetíveis de produzir avanços consideráveis no plano do
conhecimento. A trajetória do indigenismo no Brasil permite refletir
sobre alguns obstáculos à inovação intelectual no campo das rela-
ções entre saberes de estado e disciplinas universitárias. Acompa-
nhar de maneira mais aprofundada essa trajetória permite também
observar certos elementos da gênese da antropologia social moderna
no Brasil, de suas heranças e de seus deslocamentos… (SOUZA LIMA,
2002, p. 180).
56 Jaime Garcia Siqueira Jr.
Minha posição durante alguns anos, como coordenador de ges-
tão ambiental da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Comitê
Gestor da PNGATI, envolvido desde a construção dessa política até
sua implementação atual, dialoga com as questões que acabo de
colocar. Um dos riscos a serem evitados é o desenvolvimento de
análises excessivamente centradas na posição do Estado, tendo em
vista a função de gestor público que exerci; por outro lado, trata-se
de explicitar e incorporar essa posição e esse olhar na perspectiva
metodológica da análise antropológica, situando social e historica-
mente sua construção.
58 Jaime Garcia Siqueira Jr.
Uma das possíveis maneiras de dar alguma concretude ao pro-
tagonismo indígena, seja na perspectiva de manter a “politização”,
seja em como garantir uma certa “indigenização” da PNGATI, é a
efetiva participação indígena no Comitê Gestor da PNGATI, instân-
cia de governança paritária composta por órgãos de governo e orga-
nizações indígenas responsável pela articulação da política numa
escala nacional. A participação indígena em comissões e programas
de governo é hoje uma realidade. Nos últimos anos, as organizações
indígenas têm se relacionado basicamente de duas maneiras com o
Estado nacional: 1) atuando como agências implementadoras, exe-
cutando projetos por meio de convênios e acordos de cooperação
técnica, ou 2) participando em comissões que analisam e direcionam
a implementação de ações ou mesmo a política indigenista como um
todo. Essa relação, no entanto, parece padecer de problemas sérios
tanto em um caso quanto no outro.
Durante muito tempo, o principal órgão responsável pela ação
de política indigenista se mostrou bastante refratário a esse tipo de
“protagonismo”, principalmente devido ao fato de que, mesmo a
partir da retomada da democracia no país, a ideologia da tutela, for-
jada durante o século XX e consolidada (durante a ditadura) em uma
legislação que permanece hoje no Estatuto do Índio, não se coaduna
facilmente com o protagonismo de quem haveria de estar no papel
de tutelado. Superar essa herança tutelar é um dos desafios para a
implementação da PNGATI com efetiva agência dos povos indígenas.
Inclusive, a I Conferência Nacional de Política Indigenista teve como
um de seus principais temas mobilizadores a discussão da descoloni-
zação da relação entre Estado brasileiro e povos indígenas.
A despeito do enorme avanço da participação indígena na dis-
cussão das políticas públicas que os afetam, é legítimo nos questio-
narmos sobre como ela tem ocorrido. Nesse sentido, questões sobre
a qualificação da participação indígena, a grande sobreposição de
instâncias de participação, a baixa efetividade da implementação das
decisões dessas instâncias pelos órgãos de governo, entre outras, são
relevantes para a análise.
60 Jaime Garcia Siqueira Jr.
a “máquina girar” o mais rápido possível; a outra metade, gasta-
-se “apagando incêndios”. O assumido emergencialismo presente
no órgão indigenista oficial, já destacado e reconhecido por outros
antropólogos, dificulta drasticamente iniciativas de planejamento de
ações estruturadas de médio e longo prazo. Novamente, a impressão
que se tem é que o antropólogo teria virado suco outra vez…
Gestor x indigenista/antropólogo
Nos últimos anos, a Funai vem perdendo vários de seus quadros,
seja por meio de aposentadorias dos servidores mais antigos, seja
simplesmente por um alto índice de desistência dos servidores mais
jovens, que ingressaram no concurso de 2010. Pior do que isso é a
crescente escassez de antropólogos nos quadros da instituição. Por
exemplo, um dos raros concursos realizados nos últimos anos, em
2010, foi direcionado a profissionais de praticamente todas as áreas,
não sendo exigidos conhecimentos antropológicos, sobre os povos
indígenas, nem sequer sobre ciências sociais. É verdade que os con-
troles administrativos e financeiros são importantes, mas há uma
excessiva valorização do conhecimento desses elementos da gestão
pública em detrimento do conhecimento realmente especializado de
antropólogos e indigenistas. Aparentemente, para a Funai, hoje, é
melhor a existência de bons gestores que de bons indigenistas/antro-
pólogos. Ou seja, é mais importante saber fazer a “máquina andar”,
constituir e acompanhar processos, enfim, saber administrar bem
a burocracia estatal do que conhecer propriamente a realidade do
Brasil indígena ou a etnografia de determinado povo indígena. Evi-
dentemente, existem raros casos de servidores que conseguem con-
ciliar esses diferentes perfis.
Atualmente, a Funai conta com cerca de 2.200 servidores ati-
vos, dos quais somente 26 estão identificados como antropólogos.
Dos mais de 400 “indigenistas especializados” do concurso de 2010,
já houve uma evasão de cerca de 30%, e não foi possível identifi-
car a formação desse pessoal, que certamente também deve conter
um pequeno contingente de antropólogos e cientistas sociais. Nos
próximos três anos, quase 800 servidores serão aposentados (sete
antropólogos), havendo uma previsão de novo concurso para cerca
62 Jaime Garcia Siqueira Jr.
Bahia, Mato Grosso do Sul, região Sul), aumentando os casos em que
a Funai precisa continuar “apagando diversos incêndios”.
Mas como criar condições para as bases de uma nova política
indigenista? Em grande medida, a PNGATI poderia servir de pano
de fundo para a construção desse processo. No entanto, mais do que
os temas e as questões indigenistas e ambientais colocados e aproxi-
mados por essa política, uma de suas principais características foi o
protagonismo e a participação indígena. Uma nova política indige-
nista deve ter em conta esse aspecto.
Em que pese o processo de restruturação da Funai instaurado há
cinco anos, observa-se que nada ou quase nada mudou no modus
operandi do órgão indigenista oficial. As práticas tutelares persis-
tem, apesar de muito se falar em consulta, protagonismo e parti-
cipação dos índios. Não que eles não participem ou reivindiquem
constantemente essa participação. O Comitê Gestor da PNGATI, por
exemplo, tem presença constante dos representantes das principais
organizações indígenas do Brasil, mas se observa, por outro lado,
da parte dos representantes dos órgãos de governo, um crescente
desinteresse e esvaziamento. A sobreposição com outras instâncias
de governança, o emergencialismo, a dificuldade de planejamento e
definição de prioridades, falta de quadros etc. contribuem para esse
cenário.
Os comitês regionais da Funai, fruto da restruturação, instân-
cias de governança da política indigenista e da PNGATI numa escala
macrorregional, também não se viabilizaram na prática. Provavel-
mente, uma das propostas mais promissoras do processo de restru-
turação, a criação desses comitês foi feita a toque de caixa na grande
maioria dos casos, não representando, de maneira adequada, a com-
plexa diversidade tanto étnica quanto de atores políticos existentes
em cada região. Assim, pode-se dizer que parte dos comitês sim-
plesmente não funciona e outra parte funciona burocraticamente,
sem legitimidade e sem poder de deliberação. Apesar de se tratarem
de instâncias de governança de caráter deliberativo, na prática, o
coordenador regional ainda decide o plano anual de trabalho e orça-
mento diretamente com a Funai-sede. Existem exceções, evidente-
mente, mas, muitas vezes, processos de planejamento das regiões
acabam não sendo assimilados pela Funai-sede em função da falta de
64 Jaime Garcia Siqueira Jr.
decisório em Brasília. Deve-se lembrar que outro dos princípios da
restruturação era a delegação de poderes às CRs, evitando que os
indígenas precisassem sempre se deslocar a Brasília para falar com
presidente, diretores e coordenadores gerais a fim de resolverem
seus problemas. A estrutura fortemente hierarquizada da instituição
não favorece essa mudança, em que pese a criação de instâncias mais
participativas e teoricamente “horizontais” de governança, como
colegiados e a chamada Comissão de Planejamento, Monitoramento
e Avaliação (CPMA), composta por todos os coordenadores gerais da
Funai-sede. Na prática, as estruturas de decisão são centralizadas e
as instâncias de participação vêm perdendo credibilidade e motiva-
ção de seus próprios participantes.
As coordenações técnicas locais (CTLs), que deveriam ter um
papel técnico de assessoria permanente às aldeias e organizações
indígenas, estão desestruturadas e mal qualificadas. Pior do que isso,
ocorreu uma concentração de servidores nas cidades em função de
uma leitura enviesada da proposta de restruturação, uma vez que
muitas dessas CTLs poderiam e deveriam atuar dentro de TIs. No
entanto, uma discussão interna complexa, de base corporativista,
sobre a questão de diárias de servidores em campo não avança e obs-
taculiza redefinições de localização de CTLs.
É possível admitir que a própria Funai (e não apenas a sede) sim-
plesmente vem boicotando o projeto de restruturação em função,
basicamente, de dois aspectos:
1. Grande resistência dos setores mais conservadores dentro da
própria instituição em consolidar estruturas mais participativas
de gestão, interferindo em tradicionais “feudos” de grupos de
servidores e indígenas.
2. Resistência do próprio movimento indígena, que, apesar de
reconhecer a necessidade de reformulação do órgão indigenista,
contestou fortemente o processo não participativo de elabora-
ção da proposta de restruturação.
Nesse processo, destaca-se o poder exercido internamente pela
chamada Diretoria de Administração e Gestão (Dages), que se coloca
como uma força extremamente conservadora e decisiva dentro da
instituição. A Dages é a diretoria com maior número de servidores,
66 Jaime Garcia Siqueira Jr.
atualizá-la e aperfeiçoá-la. Ao mesmo tempo, percebe-se o aumento
de uma certa “tecnificação” da Funai, com a consequente despoli-
tização de processos. Se é possível, por um lado, reconhecer clara-
mente, por exemplo, uma qualificação das análises dos estudos de
impacto ambiental de empreendimentos que afetam terras indíge-
nas e dos relatórios de identificação de TIs, por outro, vem ocor-
rendo uma progressiva despolitização desses processos, nos quais
a consulta e o diálogo com os índios nem sempre são realizados de
maneira adequada. Mais do que isso, o órgão indigenista oficial tam-
bém vem perdendo o poder de ingerência e condução desses proces-
sos. Por outro lado, deve-se sempre destacar as parcerias do Minis-
tério Público e da Secretaria-Geral da Presidência da República na
defesa dos direitos indígenas, com poucos resultados efetivamente
positivos, no entanto.
No caso do licenciamento, apesar de não ser e nunca ter sido
órgão licenciador, a Funai, durante algum tempo, teve um pouco
mais de governança sobre os prazos e sobre o diálogo com os outros
órgãos envolvidos. Aumentaram significativamente as ingerências
dos Ministérios do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG) e de
Minas e Energia (MME) e da Casa Civil e diminuíram as eventuais
parcerias com o MMA e o Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBio), por exemplo. No caso da identificação de
terras, o MJ vem obstaculizando novas declarações, exigindo “dili-
gências” absolutamente desnecessárias e aumentando sua influên-
cia no (não) desenvolvimento dos processos. Em relação ao processo
de demarcação de terras indígenas, Gilberto Azanha (2015), numa
palestra em evento da PGR em Brasília, afirma:
Portanto, desde 1983, os vários procedimentos têm consolidado
um rito no qual a Funai vai perdendo gradativamente seu poder de
decisão na delimitação das terras indígenas, elevando o poder de
decisão para níveis acima dela (ministro e depois, Presidência). À
Funai restou os estudos técnicos e estes cada vez mais orientados a
se tornarem um laudo, no sentido estrito do termo, isto é, uma peça
de um processo judicial, por conta da judicialização de todos os pro-
cessos em curso.
Cumpre à Funai, portanto, elaborar e estruturar as “peças técni-
cas” para deliberação de outras instâncias e órgãos, os quais o órgão
68 Jaime Garcia Siqueira Jr.
com os quais trabalha. Mais do que discutir o “papel” ou a “respon-
sabilidade social” do antropólogo, devemos assumir um maior pro-
tagonismo no indigenismo brasileiro e contribuir mais efetivamente
para a construção de um projeto para o Brasil indígena.
Referências
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Lygia (Orgs.). Antropologia, Impérios e Estados nacionais. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará: Faperj, 2002. p. 159-186.
71
Com isso, surge no espaço público a política, em que nenhuma
autoridade é legitima se for arbitrária, fruto exclusivo da vontade
individual do governante. A vocação da política no âmbito público
seria afastar a vontade despótica ou arbitrária, importando menos
a virtude e a ética do governante e mais a qualidade das leis e das
instituições. A política simboliza uma unidade que a sociedade não
tem, procurando tratar os conflitos de outro modo que não a guerra.
Em tese, o poder decorre das leis que exprimem uma vontade
coletiva depreendida das assembleias, submetendo-se a um con-
junto de instituições e práticas. Ninguém se identifica com o poder,
a autoridade é coletiva e a política deve combater o despotismo.
Mas o espaço público também é permeado pela esfera privada,
representada pelo cidadão e a sociedade civil, bem como pelas rela-
ções privadas e o mercado. Os elementos da vida privada estão pre-
sentes no âmbito público. A sociedade civil, na qual os indivíduos
existem, é parte da vida privada.
Tais contornos clássicos dessas noções, segundo Chauí (1992),
chegaram à pós-modernidade neoliberal com a passagem do espaço
público à condição de marketing, merchandising e midiatização e
do espaço privado à condição de privacidade intimista, com a perda
de fronteiras entre ambos, possibilitando a manifestação de for-
mas inéditas de despotismo. Segundo a autora, estamos diante do
encolhimento do espaço público e do alargamento do espaço pri-
vado, que, por meio da economia, ampliou-se em nível global com
os grandes conglomerados transnacionais, os centros planetários de
decisão financeira, a compressão temporal trazida pelos satélites e a
geopolítica renascida com a compressão do espaço.
Nesse contexto, no Brasil contemporâneo, o espaço público
está em grande parte regulado pelos interesses do mercado, hege-
monizado pelo capital financeiro enquanto instância definidora de
fato das prioridades coletivas e públicas, cabendo ao Estado o papel
subsidiário de gestor dessas prioridades. Estado esse, como definiu
Marx, que se constitui em um poder público que exerce autoridade
sobre o povo sem o controle do povo. Logo, também, um sistema
de dominação política e econômica. Gramsci acrescentaria que essa
dominação se legitima e mantém ora através da força, ora através da
72 Marco Paulo Fróes Schettino
hegemonia cultural, que é o exercício do poder de classe por meio da
cultura.
É no âmbito da cultura que, na minha visão, a inserção
profissional do antropólogo pode fazer alguma diferença no espaço
público. Principalmente em tempos sombrios, nos quais a sociedade
e suas necessidades estão subsumidas aos interesses e à cultura do
mercado financeiro global.
Sintoma disso foi a absorção dos derradeiros programas sociais
de distribuição de renda e “inclusão social” pelo mercado ao impor
tanto a governantes quanto a beneficiários desses programas sua
lógica cultural e valores, qual seja, transformar a inclusão social em
inclusão no mercado de consumo.
Os governantes de matriz progressista, pautados pela lógica
estrita do materialismo econômico, operaram esses programas,
consagrando as categorias de “pobre” e “rico”.
Desde a perspectiva de seus gestores políticos, toda a diversidade
sociocultural brasileira foi reduzida a essas duas categorias. Índios,
ribeirinhos, quilombolas, trabalhadores rurais e pequenos produ-
tores rurais, comunidades tradicionais de todas as matrizes foram
reduzidos a “pobres”. Pobres que, por meio dos programas sociais,
foram alçados ao mercado de consumo, acessando seus benefícios
materiais e incorporando sua lógica cultural de viés urbano e con-
sumista.
Muitos desses beneficiários, cuja principal motivação cultural
foi ter acesso ilimitado ao consumo, com a quebra da sustentação
financeira desses programas sociais, não poderão lançar mão de um
substrato cultural/político para reivindicar a realização da justiça
social no país, pois não o têm à disposição. Irão, com base no que
lhes foi oferecido, insurgir-se contra os autores desses programas
e aderir politicamente aos legítimos representantes do status quo,
pois verão neles a possibilidade de continuação da promessa do ideal
da mudança. Da mudança da categoria de “pobre” para a de “rico”.
Em resumo, as políticas progressistas de distribuição de renda
estão e estiveram submetidas culturalmente aos valores do mercado.
Não representaram, nesse aspecto, avanço cultural ou imaterial
relevante. Pelo contrário, vemos emergir desse contexto uma onda
conservadora que tem tomado a cena política e social brasileira, com
74 Marco Paulo Fróes Schettino
cidas, como as praticadas pelos empreendedores da Usina de Belo
Monte, no Pará, e o governo federal contra os povos do Xingu.
Nesse contexto, faz parte do ofício do antropólogo propugnar
o pluralismo jurídico e o epistêmico; debater o custo socioambien-
tal do desenvolvimento imposto sobre territórios e populações;
subsidiar o cumprimento dos licenciamentos das grandes obras e
empreendimentos em face da garantia dos direitos fundamentais;
defender e justificar a repartição de benefícios; buscar o reconhe-
cimento e a preservação da integridade dos territórios étnicos; lidar
com a reconstituição do espaço público por meio da ampliação da
participação social nas decisões que afetem a vida das minorias
socioculturais, entre tantas outras.
A ênfase excessiva nos laudos, conferindo-lhes uma centrali-
dade desproporcional na inserção do antropólogo no espaço público
como modalidade de ciência aplicada, contradiz a legitimação dos
direitos das minorias socioculturais pelo simples fato de existirem,
terem uma história e uma realidade etnográfica.
Constatamos que a principal fonte de legitimidade desses direi-
tos é conquistada pela luta política desses grupos e não pela cienti-
ficidade dos argumentos que a sustentam. Argumentos que, por sua
vez, são os mais explorados pelos detratores desses direitos e têm
como fonte de legitimidade a mesma que sustém o mundo oficial
“branco” e hegemônico, o mesmo que nega a existência de outros
modos de ser e viver.
O protagonismo das minorias socioculturais no espaço público
foi e continua sendo o principal instrumento de defesa de seus direi-
tos. Ao antropólogo, nesse âmbito específico, cabe um papel de
coadjuvante. Num sentido mais amplo que o da defesa estrita dos
direitos socioculturais, o antropólogo pode ser um agente cultural,
criador do possível, um descolonizador do pensamento, vetor de
reencantamento das relações sociais e, assim como nos ensinam os
“nativos”, um relativizador da separação entre natureza e cultura e
entre vida material e espiritual.
A inserção profissional do antropólogo no espaço público tem,
portanto, a possibilidade de trazer para o debate coletivo outros
referenciais culturais, outros valores, outras visões de mundo que
possam, pelo nosso compromisso ético com a diversidade da vida e
76 Marco Paulo Fróes Schettino
pólogo e que, muitas vezes, o expõe a ataques e difamações públi-
cas. Soma-se ainda o fato de boa parte das autoridades do Estado,
dos gestores e administradores em geral, assim como dos meios de
comunicação de massa, partilhar noções equivocadas sobre o que é
o trabalho da antropologia, principalmente no que diz respeito ao
campo pericial, predominando uma visão ideológica que contrapõe
a promoção de direitos coletivos ao desenvolvimento nacional. Visão
na qual está embutida a ideia de que seu conceito/modelo de desen-
volvimento é o único possível, incapaz de incluir a diversidade, uma
vez que se pauta por um paradigma etnocêntrico.
Nesse exercício profissional, a pesquisa em antropologia se
insere num campo interdisciplinar e é constituída pelo diálogo entre
saberes distintos, a exemplo da antropologia e do direito. A atividade
antropológica nesse campo, em razão de suas especificidades, cria
uma oportunidade única de desempenho profissional, suscitando a
“produção inédita de conhecimentos”.
Entre essas especificidades está o fato de que os destinatários do
trabalho antropológico não são, predominantemente, outros antro-
pólogos, mas um público diverso que vai de operadores do direito
aos próprios interessados na sociedade, cujos direitos se entrecru-
zam com esse conhecimento, ensejando novas perguntas.
Outro exemplo dessa especificidade diz respeito à questão
“tempo x qualidade”. Trata-se, na verdade, de um mito não muito
explícito e, ainda assim, reconhecido e genericamente aceito por
muitos de nós (peritos em antropologia incluídos) segundo o qual
nosso material etnográfico nunca alcançará um nível aceitável de
qualidade por causa do “pouquíssimo” tempo de que dispomos para
o trabalho de campo – o que decorreria das limitações do próprio
contexto institucional no qual estamos inseridos e do qual parte a
demanda para a realização da pesquisa empírica.
Contudo, o que a experiência tem nos demonstrado é que o
importante para garantir qualidade e legitimidade ao trabalho não
é dispor de um longo período de campo. O produto do fazer etno-
gráfico não pode – nem deve – ser aquilatado em termos tão genéri-
cos. No caso da perícia antropológica, o tempo de campo ideal para
garantir a qualidade do material etnográfico não é nem curto nem
longo, é apenas o suficiente. E essa suficiência temporal depende,
78 Marco Paulo Fróes Schettino
rica por excelência. Associa-se a isso o fato de os procedimentos de
controle ético e de qualidade vigentes no âmbito da antropologia não
terem tido a eficácia desejada no que diz respeito à sua aplicação para
o fazer pericial.
É, portanto, no sentido de qualificar as pesquisas antropológicas
no campo pericial que se faz necessário enfatizar os seguintes funda-
mentos, pois sua falta tem posto em xeque a credibilidade da perícia
antropológica. Podemos resumi-los em três:
a. O conhecimento antropológico deve estar embasado em pesqui-
sa empírica. O caminho do conhecimento do outro – para defi-
nir sua especificidade – é uma questão antes ética que ontoló-
gica (LÉVINAS, 2000). E passa também pela convicção de que
somente depois de enxergar o grupo e a questão a ser periciada
em seu contexto é que se torna possível empreender qualquer
exercício analítico. Esse exercício deve cuidar do rigor necessá-
rio para afastar a “fabricação da alteridade” ou a “homogeni-
zação do outro”, duas faces da moeda do ativismo político nes-
se campo. Peças ativistas, previamente engajadas, sintonizadas
mais com a ética política do Ocidente e a matriz de pensamen-
to do antropólogo que com a realidade sociocultural e histórica
do grupo estudado definitivamente não são trabalhos periciais.
Do ponto de vista da antropologia, não há nenhuma legitimi-
dade em afirmar direitos independentemente das relações so-
ciais etnograficamente constatáveis. Sem lastro metodológico
não há como sustentar uma pesquisa. Fazer perícia não significa
referendar incondicionalmente a fala nativa, mesmo porque ela
própria é constituída por vozes contrapostas. É, sim, trabalhar
no sentido de revelar a outros códigos culturais, de modo inteli-
gível, direitos de coletivos sociais que “se garantem” (VIVEIROS
DE CASTRO, 2006) enquanto comunidades diferenciadas. O an-
tropólogo deve ter a responsabilidade de se declarar impedido
de atuar pericialmente quando notar que, previamente a qual-
quer estudo e esforço analítico, presume uma convicção sobre o
objeto da perícia que independe do que possa vir a ser revelado
pela pesquisa.
b. O sujeito pesquisado deve ser respeitado, previamente informa-
do do objeto da pesquisa – suas informações não podem ser des-
contextualizadas, adulteradas ou expô-lo a riscos, e ele deve ter
Referências
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surgimiento de la antropología posmoderna. Barcelona: Gedisa, 1992. p. 117-137.
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Petrópolis: Vozes, 1987.
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Acesso em: 19 abr. 2009.
80 Marco Paulo Fróes Schettino
A Antropologia e os Direitos Indígenas
Breve balanço sobre a situação territorial
indígena após a Constituição Federal de 1988
no Brasil: conflitos fundiários, agronegócio
e políticas de Estado em questão
Fabio Mura1
Alexandra Barbosa da Silva2
83
que tem aí a estratégia de desqualificar e deslegitimar a antropolo-
gia como área de produção de conhecimento e seus profissionais,
estando em questão o ataque àqueles que, por sua específica exper-
tise, reconhecida pelo aparato legal do Estado, têm o papel de definir
o que são as terras indígenas.
Iniciemos, então, com um breve retrospecto sobre o que veio a
se definir no quadro da regularização fundiária a partir de 1988.
3 Como Oliveira (1998) destacou, essa é uma categoria jurídica cujos limites,
observara ele em outro trabalho (OLIVEIRA, 1991), não são nunca dados a priori,
mas antes o resultado de múltiplos fatores concertados em contextos históricos
variáveis.
84 Fabio Mura | Alexandra Barbosa da Silva
ambiental, cultural etc., permitindo ilustrar de forma ampla e diver-
sificada a situação em que se encontrem os grupos indígenas abor-
dados e suas dinâmicas territoriais.
Há de se constatar, contudo, que esses procedimentos admi-
nistrativos têm suas bases em critérios estabelecidos no Estatuto do
Índio de 1973 e em várias disposições transitórias que se sucederam
entre os anos de 1970 e 1980, padecendo diretamente das condi-
ções negativas em termos infraestruturais em que a Funai costumou
operar, acrescidas ainda do fato de que suas atividades são, quase
em regra, pautadas por lógicas emergenciais. Tal quadro acaba por
dificultar um adequado planejamento para a efetivação dos estu-
dos de fundamentação dos direitos territoriais de um determinado
povo indígena. Em meados dos anos 1980, Oliveira e Almeida (1998)
já haviam atentado para as péssimas condições de funcionamento
do órgão indigenista e o modo como condicionavam os trabalhos
dos GTs. Nesse sentido, a promulgação da Constituição e a referida
Portaria 14 do Ministério da Justiça não encontraram uma adequada
situação administrativa, com a execução das tarefas sob responsa-
bilidade da Funai não avançando, mas sendo, como veremos, nas
décadas a seguir, progressivamente obstaculizadas e mesmo para-
lisadas.
Pesa também nesse quadro o Estado brasileiro, que, não obstante
tenha promulgado uma Constituição que reconhece a diferença cul-
tural e étnica como constitutiva da nação, encontra parte signifi-
cativa de seus agentes operando ainda através de lógicas tutelares
formalmente extintas pelo artigo 232 da Carta Magna. Um primá-
rio entendimento do órgão indigenista oficial de que a diversidade
cultural e os estilos de vida diferenciados seriam transitórios per-
manece como referência da maioria das práticas de seus agentes.4
Mesmo quando não é assim, tal entendimento se manifesta de modo
preponderante no imaginário coletivo, baseado na ideia de que a
sociedade nacional seja ou deva ser culturalmente homogênea; daí,
pois, que toda diversidade deveria ser assimilada a um padrão tido
como moderno, desenvolvimentista e consumista.
4 Para uma análise desses pressupostos, ver, por exemplo, Souza Lima (1995).
Breve balanço sobre a situação territorial indígena após a Constituição Federal de 1988 no Brasil 85
É cavalgando e impulsionando esse senso comum que os
segmentos sociais contrários aos direitos indígenas vêm promovendo
suas ações, buscando influenciar as políticas públicas. As disputas
fundiárias, conforme sinalizado, representam o eixo fundamental
na tentativa de frear os direitos dos povos indígenas e é através
desse agir que se passa a questionar as próprias bases de uma nação
pluriétnica e multicultural.
86 Fabio Mura | Alexandra Barbosa da Silva
der, poderíamos ser levados a pensar o seguinte: que as atividades
administrativas a serem promovidas pelo Executivo para cumprir
esse ditame constitucional, bem como um imaginado reconheci-
mento da parte do Judiciário da legalidade jurídica desse processo –
pelo simples fato de que decorre da promulgação da Carta –, unidos
ainda a uma percepção de justiça que consideraria a dívida histórica
que um Estado colonial herdou para como os povos que sofreram
incisivamente o impacto da colonização e da formação desse mesmo
Estado, que tudo isso, enfim, seria suficiente para reverter o quadro
desproporcional aqui apresentado. Poder-se-ia também pensar que
se trataria de uma questão de tempo, com certos processos exigindo
uma temporalidade mais dilatada. Contudo, os dados sobre o pro-
cesso de regularização fundiária respeitante aos indígenas mostram
claramente uma tendência contrária.
Considerando as tabelas a seguir, tanto em nível geral quanto
no da Amazônia Legal, se analisadas por ano de atuação dos gover-
nos, constatam-se as especificidades de cada período. O governo
de Fenando Collor foi aquele em que se declarou e homologou mais
terras indígenas. Com Itamar Franco, esse procedimento diminuiu
significativamente, para, em seguida, no governo de Fernando Hen-
rique Cardoso, ocorrer um aumento significativo no número de ter-
ras declaradas e homologadas. A partir daí, já no governo Luiz Inácio
Lula da Silva, iniciou-se um constante declínio dessa regularização,
chegando-se primeiro a um drástico redimensionamento e depois,
nos dois governos de Dilma Rousseff, a uma quase total paralisia.
Com efeito, quando se cotejam as duas tabelas, percebe-se que, das
18 terras homologadas a partir de 2011, nenhuma se encontra fora
da Amazônia Legal. O impacto negativo dessa tendência sobre o
reconhecimento dos direitos territoriais indígenas se torna ainda
mais significativo quando levamos em conta as superfícies homolo-
gadas. Cotejando, por exemplo, o primeiro mandato de FHC com o
de Dilma, temos uma desproporção de 15/1 em termos de superfície
regularizada. Se compararmos governos temporalmente contíguos,
como o segundo mandato de Lula e o primeiro de sua sucessora,
temos também uma significativa desproporção de 4/1.
Breve balanço sobre a situação territorial indígena após a Constituição Federal de 1988 no Brasil 87
Demarcações – Brasil
TIs declaradas* TIs homologadas*
Presidente [período] Quantidade** Extensão Quantidade** Extensão
(ha)** (ha)**
Dilma Rousseff [jan.
3 8.441 7 479.110
2015-dez. 2015]
Dilma Rousseff [jan.
10 1.094.276 11 2.025.406
2011-dez. 2014]
Luiz Inácio Lula da Silva
51 3.008.845 21 7.726.053
[jan. 2007-dez. 2010]
Luiz Inácio Lula da Silva
30 10.282.816 66 11.059.713
[jan. 2003-dez. 2006]
Fernando Henrique
Cardoso [jan. 1999-dez. 60 9.033.678 31 9.699.936
2002]
Fernando Henrique
Cardoso [jan. 1995-dez. 58 26.922.172 114 31.526.966
1998]
Itamar Franco [out.
39 7.241.711 16 5.432.437
1992-dez. 1994]
Fernando Collor [mar.
58 25.794.263 112 26.405.219
1990-set. 1992]
José Sarney [abr. 1985-
39 9.786.170 67 14.370.486
mar. 1990]
88 Fabio Mura | Alexandra Barbosa da Silva
Demarcações – Amazônia Legal
TIs declaradas* TIs homologadas*
Presidente [período] Quantidade** Extensão Quantidade** Extensão
(Ha)** (Ha)**
Itamar Franco [out.
23 6.518.162 10 5.499.776
1992-dez. 1994]
Fernando Collor [mar.
35 23.390.618 74 25.795.019
1990-set. 1992]
José Sarney [abr. 1985-
34 11.009.449 21 9.452.807
mar. 1990]
Fonte: https://pib.socioambiental.org/pt/c/0/1/2/demarcacoes-nos-ultimos-governos e
https://pib.socioambiental.org/pt/c/0/1/2/situacao-juridica-das-tis-hoje. Acesso em: 25
fev. 2016.
* Inclui sete terras reservadas por decreto: uma no governo Sarney, três no governo Collor,
uma no primeiro mandato de Lula e duas no segundo.
** As colunas Quantidade de terras e Extensão não devem ser somadas, pois várias terras
indígenas homologadas em um governo foram redefinidas e novamente homologadas em
outro.
Breve balanço sobre a situação territorial indígena após a Constituição Federal de 1988 no Brasil 89
pois, descrever um mecanismo importante no delineamento dessa
situação: a judicialização dos processos administrativos de regulari-
zação fundiária.
Mas para compreender como esse caminho se desenvolveu,
importa descrever brevemente as características dos procedimentos
administrativos de identificação e delimitação de terras indígenas
que são judicialmente contestados.
A criação dos grupos técnicos (GTs) – por regulamento, uma
tarefa da Funai – objetiva identificar e delimitar terras indíge-
nas. Os GTs são compostos por um/a antropólogo/a, que é seu/sua
coordenador/a, com seus eventuais assistentes, um/a ambienta-
lista e profissionais como agrônomos/as e agrimensores/as, estes
últimos voltados para o trabalho de medição de benfeitorias even-
tualmente realizadas sobre a terra em questão. O/a antropólogo/a
coordenador/a e seus eventuais assistentes podem ser do próprio
quadro da Funai, mas, devido à sua precariedade em termos de pro-
fissionais qualificados, é comum a contratação de especialistas nos
grupos indígenas a serem abordados. O intuito é o de melhor aten-
der às demandas em termos de qualidade etnográfica e analítica. A
indicação dos ambientalistas segue o mesmo caminho. Os demais
profissionais são geralmente da própria instituição, e os agrimenso-
res e agrônomos (com exceção daquele que delimitará a área), espe-
cificamente, podem ser indicados pelos órgãos que lidam com ques-
tões fundiárias nos estados onde as áreas serão delimitadas.
As atividades de campo são públicas, conforme determinado pelo
Decreto presidencial nº 1.775/1996, e são anunciadas pela publica-
ção da composição do GT no Diário Oficial da União (DOU). Após as
atividades de campo, o/a coordenador/a do GT produzirá um cha-
mado “relatório circunstanciado”, seguindo o previsto na referida
Portaria 14/1996-MJ. Em seguida, a Funai analisará tais relatórios e,
se considerados bem fundamentados, publicará seu resumo nova-
mente no DOU. A partir daí, abrem-se 90 dias para eventual contes-
tação de quem for atingido pelo processo administrativo. Observe-
-se, porém, que o decreto prevê o direito de se apresentarem, desde
o início dos trabalhos, elementos de comprovação sobre a proprie-
dade da terra em questão. Após esse prazo, a Funai terá de analisar
e responder as contestações – isto é, o chamado contraditório – e,
90 Fabio Mura | Alexandra Barbosa da Silva
se essas não apontarem objetivamente eventuais irregularidades no
processo administrativo, a documentação seguirá para o Ministro da
Justiça, que deverá, no prazo de um mês, emitir a chamada portaria
declaratória, promovendo-se, então, a demarcação física da terra
delimitada. Na sequência, ocorre a homologação da terra pelo pre-
sidente da República, com o registro em cartório do imóvel como
“terra indígena”, bem como sua eventual desintrusão da população
não indígena.
Sobre esses procedimentos, não carece entrarmos em mais deta-
lhes; o que importa é indicar como eles têm sido objeto de recur-
sos judiciais e, ainda, como esse instrumento foi se tornando mais
incisivo ao longo dos anos, constituindo mesmo, ao que tudo indica,
uma estratégia a mais dos não indígenas que disputam terras com
indígenas.
É fundamental observar que os textos de contestação aos
relatórios aprovados pela Funai raramente entram no mérito dos
conteúdos científicos que estes apresentam. Os “contralaudos”
(como são comumente chamados) são encomendados pelos que são
afetados negativamente pelos relatórios originários. Neles, quase que
em regra, se busca desacreditar o/a antropólogo/a coordenador/a
do GT, sustentando que ele/a não seria apto/a a ocupar tal cargo.
Afirma-se que, sendo especialistas sobre o grupo indígena em pauta,
manteriam com ele uma proximidade tal que geraria uma suspeição
de parcialidade. Partindo de uma avaliação metodológica externa à
antropologia e, portanto, sem entrar no mérito das características
do método de pesquisa antropológica, acabam por atacá-lo.
Outro fator de crítica é a asserção (comum) de que o/a antropó-
logo/a que delimita as referidas terras seria simpatizante da causa
indígena e, portanto, defensor/a dos correspondentes direitos ter-
ritoriais. A própria Associação Brasileira de Antropologia (ABA) é
incluída nessa crítica, visto que, através de sua Comissão de Assun-
tos Indígenas (CAI), promoveria tal defesa. Importa remarcar que a
crítica pressupõe uma defesa prévia e irrestrita de tais direitos, ora
obliterando o fato de que todo relatório deve ser fundamentado em
dados, ora argumentando que os dados seriam forjados.
Um terceiro aspecto das contestações se refere ao fato de que
muitos relatórios considerariam um presumido esbulho das popu-
Breve balanço sobre a situação territorial indígena após a Constituição Federal de 1988 no Brasil 91
lações indígenas das terras reivindicadas. Nesse sentido, argumen-
ta-se que, no momento em que a Constituição foi promulgada, tais
indígenas não residiriam nos espaços reivindicados ou não o esta-
riam ocupando em sua totalidade. Essa é a tese do chamado “marco
temporal de 1988”.
Um derradeiro fator de contestação veiculado nos contraditórios
é de ordem metodológica, isto é, a alegação de que os procedimentos
em campo e a elaboração dos relatórios da Funai estariam viciados
por não apresentarem ou permitirem uma devida transparência, o
que negaria o pleno direito ao contraditório.
Todas essas argumentações têm de ser analisadas pela Funai, que
geralmente as refuta. Contudo, elas acabam sendo usadas em recur-
sos à Justiça Federal que são muitas vezes acatados por juízes de pri-
meira instância. Com isso, dá-se vida a uma temporalidade dilatada,
que freia o processo administrativo, ao mesmo tempo que acaba por
alimentar os conflitos entre indígenas e produtores rurais, visto que,
ao contemplar uma demanda destes últimos, não atende a parte
contrária. A solicitação de perícias judiciais passou, então, a ser um
modus operandi que faz parte desse mecanismo de dilatação tem-
poral. Com elas, têm ocorrido também pedidos de suspeição quando
da contratação de antropólogos/as especialistas para desenvolver a
atividade de peritagem.
Cientes (e beneficiários) do fato de que os juízes geralmente des-
conhecem as características metodológicas e teóricas da antropolo-
gia, as críticas dirigidas a cada antropólogo/a passam a ser definidas
de modo a justamente obstaculizar a possibilidade desse conheci-
mento. De fato, acabam sendo proferidos pelos magistrados enten-
dimentos que são próprios ao senso comum, como o de que os antro-
pólogos pretendem transformar todo o território brasileiro em ter-
ritório indígena ou ainda de que estariam envolvidos politicamente
num complô internacional, atentando contra a soberania brasileira.
A esse respeito, é emblemática a decisão que deferiu medida liminar
para suspensão do processo administrativo de regularização da TI
Jatayvary (MS).6 Argumentava-se que:
6 Emitida por um juiz federal da 1ª Vara de Ponta Porã (MS) à página 626 do pro-
cesso nº 2001.60.02.000747-7.
92 Fabio Mura | Alexandra Barbosa da Silva
Em artigo publicado pelos antropólogos Fábio Mura e Rubem
Thomaz de Almeida está escrito que os kaiowás se distribuem
no Mato Grosso do Sul numa área de quarenta mil quilôme-
tros quadrados. Esse território faz fronteira com os Terena,
ao norte, ao leste e sul com os Guarani Mbya e com os Guarani
Nandeva. Algumas famílias vivem nos litorais do Espírito Santo
e Rio de Janeiro. Os territórios ainda fazem divisas com outras
áreas indígenas de países vizinhos (www.socioambiental.org).
Se a tese acima for procedente, os não-índios terão que buscar
refúgio em Marte.
Breve balanço sobre a situação territorial indígena após a Constituição Federal de 1988 no Brasil 93
de particulares, traria consigo um vício original. Cria-se, assim, um
conflito entre, por um lado, o direito que tutela a propriedade pri-
vada, garantido no Código Civil, e, por outro, os ditames constitu-
cionais, que, em teoria, deveriam ser prevalentes. Tem ocorrido que,
efetivamente, a maioria das sentenças dos juízes vai na contramão de
aplicar de forma automática e insofismável essa hierarquia de pre-
ceitos legais e os correspondentes direitos. Nesse proceder, muitas
vezes, evita-se adentrar no mérito dos conteúdos dos relatórios, que
conduziriam a uma nítida definição: a de se tratar ou não de uma
terra indígena. Aqui, resta um possível entendimento de que, através
dessa parcela do Judiciário (mas também do Executivo, como vere-
mos adiante), embora o Estado chegue a reconhecer que, segundo
as diretrizes constitucionais, os espaços geográficos sob avaliação
devessem ser considerados terras indígenas, tal definição, por outro
lado, seria vista como problemática.
Em nossa opinião, as razões disso são fundamentalmente duas.
Por um lado, não se considera o pluralismo étnico e cultural como um
pluralismo também de escolhas de desenvolvimento econômico (ou
de etnodesenvolvimento). Nesses termos, reconhecer espaços terri-
toriais que ficariam sob jurisdição de povos que usam seus recursos a
partir de concepções de vida e de futuro de forma específica contras-
taria com uma lógica desenvolvimentista, uma ideia de progresso
monolítica e evolucionista. Nesse entender, nos julgamentos de uma
parcela do Judiciário e nas medidas tomadas pelos governos que se
sucederam nas últimas décadas, não se leva em consideração apenas
os ditames constitucionais, mas também, e de modo decisivo, a ava-
liação do quanto o reconhecimento dos direitos em pauta impacta
precisamente nos planos de execução de uma política desenvolvi-
mentista. Ademais, em larga medida, essa política vem sendo com-
partilhada por todos os representantes de partidos que têm partici-
pado e se sucedido no governo federal.
A outra razão que leva à paralisia, intimamente relacionada à
primeira, se refere à dimensão do conflito que ulteriores demarca-
ções, principalmente fora da Amazônia Legal, provocariam. Nesse
aspecto, as campanhas construídas por setores do agronegócio –
bem como pela grande imprensa – e as propostas de leis das banca-
das parlamentares que os representam atiçam e alimentam o senso
94 Fabio Mura | Alexandra Barbosa da Silva
comum, mantendo, desse modo, elevado o nível do conflito. Isso
porque é justamente através desse proceder que têm sido obtidos
importantes resultados na oposição aos ditames constitucionais.
Com efeito, por um lado, têm-se tomado decisões judiciais que bus-
cam, ao menos formalmente, impedir a escalada da violência, ao
passo que, por outro, as políticas governamentais, principalmente
nos últimos dois mandatos presidenciais, têm promovido as chama-
das “mesas de diálogo”, além de propostas de mudança no modo de
identificar e delimitar terras indígenas. Isso sempre com o propalado
intuito de favorecer o bom desenrolar dos processos administrati-
vos, numa possível evitação da judicialização dos mesmos. Na ver-
dade, como é possível ver principalmente em Mato Grosso do Sul,
em algumas áreas do Nordeste e do Sul do país, a violência aumentou
com a paralisação da regularização fundiária e as políticas federais,
bastante tímidas na tentativa de assegurar direitos territoriais aos
indígenas, se mostraram francamente ineficazes, pelo menos no que
seriam seus pressupostos formais.
O que fica evidente, uma vez instaurados os conflitos no nível
local, é o tratamento desigual que, com base no Código Civil, a jus-
tiça reserva às partes que contendem pelos espaços cobiçados. A
tutela absoluta de quem detém a posse de uma terra e a quase nega-
ção de direitos de ocupação e uso àqueles que, em casos comprova-
dos, sofreram o esbulho dessa mesma terra têm, invariavelmente,
implicado que, até que se chegue a uma sentença definitiva, somente
uma das partes poderá desenvolver suas atividades produtivas; a
outra, representando comunidades inteiras, na melhor das hipóte-
ses e através de acordos judiciais que se revelam instáveis, poderá se
circunscrever em precários (e exíguos) acampamentos. Fica patente,
então, quem se beneficia com tais trâmites, vindo-se, por isso, a se
estabelecerem e refinarem estratégias para que sejam impulsiona-
dos.
Na seção a seguir, veremos justamente algumas das mais impor-
tantes estratégias e práticas para que esse cenário se delineie.
Breve balanço sobre a situação territorial indígena após a Constituição Federal de 1988 no Brasil 95
Entre insufladores e bombeiros: estratégias e práticas
para o estancamento de direitos territoriais
Para alimentar um senso comum que considera o reconhecimento
dos direitos indígenas como uma involução da sociedade brasileira
e opositivo a um suposto caminho para chegar a competir com os
países considerados economicamente avançados, não era suficiente
colocar em destaque os produtores rurais como vítimas do Estado.
Sem dúvida, a defesa da propriedade privada constitui um dos basi-
lares pressupostos das campanhas que buscam definir o agronegó-
cio como o motor da economia do país rumo ao futuro. Mas apenas
esse posicionamento não é suficiente para orientar principalmente
o Judiciário a tomar decisões ante os ditames constitucionais. Desa-
creditar a qualificação dos responsáveis pelos estudos que permi-
tem que esses direitos sejam garantidos, bem como o organismo
do Estado responsável por conduzir tal atividade administrativa,
tornou-se, nos últimos tempos, algo central nas orquestrações da
referida paralisia. De fato, essas práticas se dedicam a colocar, aos
olhos dos juízes, do grande público e do Congresso, fortes dúvidas
sobre a validade científica do conhecimento que informa os relató-
rios circunstanciados e as perícias em processos judiciais, bem como
os mecanismos para que esses estudos se tornem peças administra-
tivas promovidas pelo Poder Executivo – como define a Constitui-
ção. Nesse proceder, o ataque aos estudos antropológicos se tornou
estratégico.
Alguns anos atrás, comunidades kaiowa que vivem em acam-
pamentos em Mato Grosso do Sul e que haviam sofrido constantes
ataques de seguranças das fazendas, chamando atenção nacional e
internacionalmente, lograram alcançar uma grande mobilização
nas redes sociais. Na sequência, foi publicada, no espaço de pou-
cas semanas, uma série de artigos na grande imprensa manifes-
tando uma opinião reiterada: os indígenas não precisariam de terra
e os estudos antropológicos que embasariam os relatórios da Funai
estariam equivocados, chegando a apresentar fraudes. A ministra
da Agricultura, Kátia Abreu,7 à época senadora, impulsionava essa
posição, afirmando, em artigo publicado na Folha de São Paulo, que
96 Fabio Mura | Alexandra Barbosa da Silva
tais estudos expressariam uma “antropologia imóvel”. A essa consi-
deração fazia eco outro artigo da própria Folha e um da revista Veja,
que passaram a falar de “antropologia do miolo mole” e de “visão
medieval dos antropólogos”. O argumento, partindo de dados de
uma pesquisa feita pela Datafolha, buscava promover a ideia de que
os desejos, hoje, dos indígenas seriam os mesmos que os do brasileiro
médio, centrados em certos bens e atingidos pelo engajamento no
mercado de trabalho e pelo acesso à educação escolar. Um artigo da
Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antro-
pologia (CAI-ABA) respondeu essa argumentação, apontando como,
além de superficiais, tais matérias jornalísticas distorcem e banali-
zam uma realidade bastante complexa e diversificada sobre a qual
existe uma larga produção científica de conhecimento – que, porém,
deliberadamente, não é levada em conta por elas.8
O intuito dessa parte da mídia era (e ainda é) o de esvaziar de
sentido a interpretação e o uso diferenciado que, em cada contexto,
é dado a objetos, técnicas e saberes que circulam em ampla escala
e que os indígenas integram em suas vidas seguindo os parâmetros
de sua própria organização social e econômica. A banalização tem
como objetivo principal criar uma imagem universal do senso prá-
tico (baseado na lógica do consumo ocidental) que permita a jorna-
listas e juristas se improvisarem como antropólogos e ainda propalar
um intuito pretensamente moralizante, afirmando-se que aqueles
pretendem que os índios vivam no passado.
Essas infundadas argumentações tiveram ampla repercussão,
chegando não apenas ao Congresso Nacional, mas também a mani-
festações do próprio Executivo. De fato, a então ministra da Casa
Civil, Gleisi Hoffmann, chegou a acusar a Funai de estar comprome-
tida com uma presumida ideologia que promoveria esse tipo espúrio
de antropologia. Ato contínuo, defendia enfaticamente a necessi-
dade de se modificarem os procedimentos para demarcação das ter-
ras indígenas no país, devendo-se envolver a Embrapa – com base
em seus critérios produtivistas – e representantes de vários minis-
térios, não apenas o da Justiça. A pretensão era de que estes também
teriam legitimidade de opinar na definição do que é uma terra indí-
8 Elaborado por Fabio Mura (2012) e publicado na revista Carta Capital, à qual
remetemos para aprofundamentos.
Breve balanço sobre a situação territorial indígena após a Constituição Federal de 1988 no Brasil 97
gena. Tal visão, de fato, acabou sendo cristalizada em uma minuta de
portaria apresentada pelo então ministro José Eduardo Cardoso em
fins de novembro de 2013 objetivando redefinir o modo como devem
ser conduzidos os trabalhos para identificação e delimitação de ter-
ras indígenas no país. Tratou-se de apresentação aos agentes e orga-
nismos com interesse na questão – como a CNPI. Em determinado
ponto, a minuta dizia que
98 Fabio Mura | Alexandra Barbosa da Silva
a uma proposta de delimitação que, desde que fundamentada pelos
estudos realizados, será a definitiva. A diretriz de se indicar uma
possível sobreposição de interesses reside numa intenção de equa-
cionar interesses distintos (e, em regra, contrários). Nesse sentido,
em março de 2014, o mesmo J. E. Cardozo concedeu entrevista a um
site de notícias em que ficava mais clara essa intenção:
Breve balanço sobre a situação territorial indígena após a Constituição Federal de 1988 no Brasil 99
Assim, vê-se que a ordem do dia não é seguir o que dita o pre-
ceito constitucional em si, mas se arrogar a tarefa (bastante distinta)
de conciliar interesses. O dispositivo legal, portanto, sai de primeiro
plano para entrarem as tais “mesas de diálogo”. Ora, se torna patente
que o apaziguamento de conflitos significaria de fato que os critérios
de uso e ocupação tradicionais das terras pelos indígenas, constitu-
cionalmente definidos, deveriam ser penalizados, sacrificando-se,
para isso, a dimensão do território a ser demarcado. Assim, apresen-
tada como “democrática” no intuito de evitar ou resolver os confli-
tos, tal proposta corresponderia a um instrumento de coação, indu-
zindo o grupo (e o/a antropólogo/a coordenador/a do GT) a se ade-
quar a critérios outros que, ademais, nem são legalmente previstos.
Nessa mesma direção, alega-se que o processo deveria ter uma
apreciação “mais imparcial”. Isso indica uma percepção de que seria
parcialidade seguir os parâmetros de orientação do uso e da ocu-
pação territorial daqueles que já foram originalmente penalizados
quando tiveram seus territórios titulados e vendidos pelo Estado
a particulares. Assim, aquelas populações autóctones deveriam,
uma segunda vez, terem terras suas de algum modo suprimidas. É
como se se reconhecesse a dívida, mas se quisesse negociá-la, não
pagando o que é devido. Poder-se-ia imediatamente perguntar em
nome de que os indígenas fariam isso. A resposta já foi também dada:
em nome de um projeto de nação e de desenvolvimento que exclui
seus modos de viver e de produzir, suas visões de mundo e de futuro
como cidadãos do Estado nacional brasileiro e como seres viventes
deste planeta.
Antes de aprofundar esse argumento, importa observar que, na
minuta, havia ainda a previsão de que as regras de funcionamento do
grupo técnico fossem previamente informadas aos representantes
dos órgãos públicos e dos entes federados que acompanhariam seus
trabalhos, sendo que, “excepcionalmente, em casos devidamente
fundamentados pelo antropólogo, as atividades diretamente vin-
culadas ao povo indígena poderão ser realizadas exclusivamente
pelos membros que compõem o grupo técnico”.
Ora, em questão está uma desconfiança sobre os métodos do
fazer antropológico. O que se busca é trazer para dentro de um pro-
cedimento que é eminentemente administrativo as condições (já
100 Fabio Mura | Alexandra Barbosa da Silva
muito negativas) de um procedimento judicial e que têm sido pra-
ticamente definidas como regra pela maciça maioria dos juízes de
primeira instância no país e, assim, impostas aos/às antropólogos/
as peritos/as. À argumentação de que faltaria “transparência” aos
procedimentos de campo destes últimos – que dariam voz exclusi-
vamente aos indígenas, com eles mancomunando-se –, tais árbitros
têm determinado que as partes em contenda fundiária estejam con-
temporaneamente em campo. Coloca-se, desse modo, frente a frente
partes adversárias, alimentando-se, em consequência, os conflitos
já estabelecidos, trazendo-os para dentro da própria perícia. Com
tais partes convivendo cotidiana e previamente ao momento da
perícia, em condições quase sempre assimétricas, com uma(s) mais
poderosa(s) em relação à(s) outra(s), estabelece-se claramente um
condicionamento prévio para a coleta de dados. A tendência é haver
distorções na possibilidade de livre manifestação da parte cotidiana-
mente subordinada, dificultando o trabalho pericial – o que acaba-
ria, evidentemente, favorecendo a parte que já detém a propriedade
particular da terra.
Esse quadro não é absolutamente considerado pelos magistra-
dos, mas é determinante para o antropólogo/a perito/a poder pro-
duzir os dados que orientarão esses mesmos magistrados em suas
futuras decisões. Não é demais lembrar que aquilo que cabe ao perito
antropólogo esclarecer é o uso e a ocupação tradicionais de uma
terra pelos indígenas ou não, pois a propriedade por parte de não
índios, se há de ser provada, não o será por meios atinentes a um
estudo antropológico.10 Sumarizando, o que foi posto na minuta em
causa como situação “excepcional” deveria, ao contrário, ser a regra
para as perícias antropológicas. Assim, em vez de levar tais condi-
ções negativas para o processo administrativo, dever-se-ia proceder
do modo inverso.
O ataque à antropologia vem tendo seu desenrolar também,
desde o fim de 2015 até o presente momento (abril de 2016), numa
chamada CPI da Funai e do Incra. Ali, numa sessão final de março
de 2016, o ministro da Defesa, Aldo Rebelo, chegou a apresentar a
antropologia brasileira como sendo de cunho colonialista. Isso atra-
10 Para argumentação mais ampla sobre esse assunto, ver Barbosa da Silva (2015).
Breve balanço sobre a situação territorial indígena após a Constituição Federal de 1988 no Brasil 101
vés de uma reconstrução histórica sui generis e bastante distorcida,
criando um evidente paradoxo. O ministro afirmou que, como os
antropólogos europeus contribuíram para o processo colonial na
África, permitindo que os povos daquele continente fossem mais
bem dominados, no Brasil ocorreria, hoje, algo análogo na tentativa
de impedir que os indígenas evoluíssem, sendo então assimilados
na população brasileira e entrando, assim, na modernidade. Em sua
reconstrução sumária do papel da antropologia no planeta, Rebelo
esqueceu de considerar (ou talvez omitiu) a lógica colonial (e pós-
-colonial) de uma antropologia que teve lugar e veiculação no SPI
e que buscava integrar os indígenas à sociedade brasileira, objeti-
vando, assim, extinguir suas especificidades – como ocorreu em toda
ação colonialista no planeta. Tem-se aqui, portanto, um argumento
absolutamente contraditório com a práxis efetivamente ocorrida no
país.
Considerações finais
Como foi possível ver através dos dados e das análises aqui apresen-
tados, em lugar de celebrar um crescente reconhecimento dos direi-
tos indígenas na direção de um Estado-nação efetivamente multiét-
nico e pluricultural, as décadas que se seguiram à promulgação da
Constituição revelam, ao contrário, uma orquestração progressiva
de ataques aos princípios consagrados na Carta Magna. Indicou-se
também que, embora tenha seus maiores ativistas entre os segmen-
tos ruralistas do país e nos políticos e jornalistas a eles associados, tal
orquestração não encontra nos governos federais que se sucederam
até hoje e na quase totalidade das ações judiciárias um movimento
contrário que busque, com firmeza, convicção e coerência jurídi-
co-administrativa, aplicar de forma insofismável o ditado pela Lei
Maior. Tais direitos passaram a ser considerados, em certa medida,
relativos e circunstanciais, submetidos à avaliação da conveniência
de sua aplicação, dependentes da natureza e da amplitude dos con-
flitos fundiários que poderão suscitar. Ocorre também que tais con-
flitos não passaram a ser vistos apenas como resultado da contenda
de dois segmentos em solo brasileiro: indígenas e empresários que
exploram commodities. O enfrentamento desigual em termos de
102 Fabio Mura | Alexandra Barbosa da Silva
relações de poder, algo que deveria estar evidente, foi, ao contrário,
encoberto, dando a ilusão de se estar diante de uma disputa simé-
trica que, como tal, exigiria negociação.
Tal proceder de ajustamentos, por sua vez, implica necessaria-
mente abrir mão de direitos constitucionais. As chamadas “mesas
de diálogo” promovidas pelo ministro da Justiça dos governos de
Dilma Rousseff são emblemáticas desse direcionamento. Ademais,
nessa aparente simetria, aos olhos da opinião pública, o enfrenta-
mento acabou por ser caracterizado como se dando entre as ideias de
passado e de atraso, supostamente constituídos pelo modelo de vida
indígena, e o futuro e o progresso, representados pelo agronegócio
e por outras formas de produção inscritas numa lógica desenvolvi-
mentista.
O quadro geral aqui trazido envolve a atuação dos antropólogos
e antropólogas que, a partir de diversas instituições, acadêmicas ou
não, são chamados a elaborar relatórios administrativos e perícias
judiciais. Às acusações de que esses profissionais quereriam man-
ter os indígenas no passado e atrasados têm se contraposto, muitas
vezes, os conteúdos dos laudos por eles elaborados, que apontam a
relatividade dos pontos de vista expressados, evidenciando as espe-
cificidades culturais e as visões de mundo dos povos nativos. Ocorre,
contudo, que ante as (cientificamente evidentes, mas politicamente
camufladas) dissimetrias nas relações de poder em jogo, as verda-
des relativas trazidas pela antropologia nos laudos e nos contex-
tos judiciais acabam por ser insuficientes para garantir os direitos
territoriais indígenas. Como bem coloca Ferreira (2015), seguindo
o pensamento de Foucault (1984), a antropologia, nos laudos e nos
contextos administrativos e judiciais, deveria trazer cada vez mais
à tona as verdades subversivas, isto é, tentar subverter, aos olhos de
quem analisa tais peças, esse processo de camuflagem que fragiliza
mais ainda a voz dos indígenas, bem como os direitos de que deve-
riam gozar.
Outro aspecto importante que a antropologia deveria enfrentar
nos laudos e nos debates em torno da questão indígena, como sus-
tenta Santilli (2015), se refere à diversidade de visões de futuro pos-
síveis, opondo-se ao pensamento único evolucionista e desenvol-
Breve balanço sobre a situação territorial indígena após a Constituição Federal de 1988 no Brasil 103
vimentista que tem sido transversal à atuação de todos os partidos
políticos que se sucederam no governo do país.
Concluindo, observamos que, se até o momento, os direitos ter-
ritoriais indígenas têm sido estancados, nada indica que tal situação
ficará estável, podendo regredir consideravelmente. A própria lógica
e a prática desenvolvimentista podem avançar no sentido de rever-
ter as conquistas constitucionais, inaugurando um novo processo
de “territorialização” no país. Tal processo se dedicaria a alterar
as formas de gestão territorial nas terras indígenas já reconhecidas
e, in extremis, a reduzir suas dimensões se consideradas “exagera-
das” em termos do quantitativo das populações nelas assentadas. As
pressões para se arrendar parcelas de tais espaços a fim de expandir
áreas de plantio e de pecuária para exportação, bem como a forma-
ção de grandes contingentes de mão de obra para abastecer as usi-
nas sucroalcooleiras, são indicadores que apontariam essa direção
do processo. Nesse sentido, a reflexão sobre os direitos territoriais
indígenas hoje não pode se restringir à reivindicação de que sejam
aplicados. Cabe, cada vez mais, adentrar na exposição e na análise
das implicações de se definir um país pluriétnico e multicultural,
observando-se que, para que isso se concretize, também as formas
de desenvolvimento – e, consequentemente, os projetos de futuro
– precisam ser plurais. Caso contrário, o que se tem é uma pro-
posta em que os povos indígenas novamente cedem seus territórios
em benefício de parâmetros de desenvolvimento que não são nem
os seus nem os de uma visão contemporânea de sustentabilidade,
para a qual a diversidade é via de possibilidade de sua realização. Em
outros termos, a proposta de alternativa para a sobrevivência plane-
tária que hoje é propalada até mesmo pelas forças impulsionadoras
das formas mais atuais do capitalismo é aqui contrastada. O ponto
fulcral recai sobre o fato de que não está em questão simplesmente
uma visão ideal de mundo, mas condições de vida efetiva, cotidiana
e concreta de várias coletividades humanas desenvolvidas milenar-
mente com base em experiências locais, como são aquelas dos povos
indígenas.
104 Fabio Mura
Referências
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indianidade e formação de Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995.
Breve balanço sobre a situação territorial indígena após a Constituição Federal de 1988 no Brasil 105
Antropologia e saúde indígena – 60 anos da ABA1
Carla Costa Teixeira2
1 O presente texto foi escrito para o seminário de celebração dos 60 anos da Asso-
ciação Brasileira de Antropologia, realizado em agosto de 2015 na Universidade de
Brasília. Para esta publicação, optei por manter o tom coloquial que distingue as
comunicações orais, fazendo apenas as atualizações necessárias à sua leitura cerca
de dois anos depois.
2 Departamento de Antropologia da UnB. Diretora, gestão 2015-2016.
3 Para os interessados no detalhamento do mapa que traçamos e que se encontra
aqui parcialmente reproduzido, conferir Teixeira, C.; Dias da Silva, C. Antropolo-
gia e saúde indígena: mapeando marcos de reflexão e interfaces de ação. Anuário
Antropológico 2012/I. [s. l.], 2013.
107
e na saúde coletiva, sendo marcada, contudo, por um crescimento
rápido e consistente. Assim é que, em consulta à base de teses e dis-
sertações da Capes, descobrimos que, na década de 1990, foram pro-
duzidas apenas seis dissertações sobre saúde indígena em antropolo-
gia e oito dissertações e uma tese em saúde pública – num total de 31
dissertações e teses sobre o tema no período. Se a saúde indígena não
era um recorte de investigação relevante para a antropologia, prin-
cipalmente se considerarmos que, apenas entre 1996 e 1999, foram
produzidas 305 dissertações e 91 teses em antropologia,4 tampouco
era uma questão para os estudiosos da saúde pública no Brasil. Como
veremos, essa marginalidade dos indígenas no campo de debate da
saúde pública tem raízes históricas profundas.
A primeira década do século XXI mudaria esse panorama, regis-
trando uma explosão de investigações no tema: 282 teses e disser-
tações sobre saúde indígena com diferentes inserções disciplinares
– direito, genética, psicologia, enfermagem, geografia, nutrição,
história, odontologia, educação, desenvolvimento sustentável, lin-
guística etc. Nesse período, os programas de saúde pública ou saúde
coletiva, com destaque para a Fiocruz, consolidaram sua liderança
nesse campo (77 teses e dissertações). Já os programas de ciências
sociais – ciências sociais, antropologia, sociologia, política pública/
social – ampliaram sua produção para 36 teses e dissertações. Con-
tudo, se tomarmos uma concepção menos restritiva de ciências
sociais e incluirmos abordagens afins como, por exemplo, os pro-
gramas de pós-graduação em direito, história, geografia, adminis-
tração e governo, sociedade e cultura e saúde e desenvolvimento,
esse número se eleva para 64 teses e dissertações – bem próximo da
produção dos programas de saúde pública e coletiva.
Considerando que não se pode analisar a importância da antro-
pologia nos estudos de saúde indígena apenas por essa expressão
quantitativa, o que pretendemos com esses argumentos é tomar
essas proporções como indicadores de algumas tendências nas
investigações em saúde indígena desenvolvidas nas pós-graduações
brasileiras nas duas últimas décadas: (1) ampliação significativa da
108 Carla Costa Teixeira
produção; (2) diversificação das abordagens disciplinares; (3) lide-
rança crescente dos programas de saúde pública e coletiva; (4) con-
solidação dos programas de ciências sociais (em sentido amplo) entre
os que mais produzem sobre o tema.
Com isso em mente, exploramos inicialmente o banco de dados
de teses e dissertações da Capes e investigamos os grupos de pesquisa
registrados no CNPq a fim de esboçar um panorama da produção das
ciências sociais sobre o tema e qualificar o lugar da produção antro-
pológica. Depois inserimos esses números em contextos mais abran-
gentes que nos possibilitam compreendê-los como parte de um pro-
cesso que se insere simultaneamente nas dinâmicas do campo cien-
tífico e do campo político brasileiros.
O banco de teses e dissertações da Capes traz registros a partir
de 1987. O que poderia ser um problema não se confirmou, pois a
primeira tese – quando o descritor “saúde indígena” foi inserido no
item “assunto” a ser pesquisado – surgiu em 1988.5 Em termos do
conteúdo disponibilizado, quem já teve oportunidade de pesquisar
no banco de teses e dissertações da Capes sabe do que estou falando,
chama atenção o fato de nem todas as informações estarem comple-
tas e a impossibilidade de pesquisar as teses/dissertações por pro-
grama de pós-graduação. Se, com relação à primeira observação, a
incompletude é responsabilidade de quem fornece as informações –
ou seja, os programas de pós-graduação –, a segunda limitação é da
própria estrutura do banco, que não permite, embora a informação
exista, fazer levantamentos específicos por pós-graduação segundo
sua inserção disciplinar. Caso se tente contornar essa dificuldade
pela “área temática”, descobre-se que esta se refere ao diálogo teó-
rico e/ou metodológico que o autor informa no resumo como sendo
relevante no desenvolvimento de sua tese ou dissertação. Assim, a
informação sobre se um trabalho foi desenvolvido ou não em um
programa de antropologia, nosso recorte privilegiado aqui, só pode
ser obtida por acesso à ficha individual de cada tese ou dissertação
indexada.
5 Langdon, E. J. M. The Siona medical system: beliefs and behavior. Tese (dou-
torado em Antropologia). Tulane University, Department of Anthropology, 1974.
Inserida no banco de teses da Capes em 1988.
110 Carla Costa Teixeira
de agenda de pesquisa que foi fundamental para o desenvolvimento
não só das pesquisas das ciências sociais em saúde indígena, mas
também para sua qualidade interdisciplinar e para a predominân-
cia de certos eixos de investigação. Para compreender tanto a inter-
disciplinaridade quanto as temáticas predominantes na saúde indí-
gena é preciso, como dito anteriormente, averiguar outras formas
de colaboração entre pesquisadores que não se expressam em teses
e dissertações ou grupos de pesquisa do CNPq – como abordado até
agora.
Rastrear a dimensão interinstitucional dessas redes é crucial e,
justamente nesse percurso, a ABA revelou sua importância quando
“garimpamos” a presença do tema da saúde indígena nos grupos
de trabalho, nas mesas-redondas, nos simpósios etc. realizados nas
RBA.7
A temática da saúde indígena esteve presente desde as primei-
ras reuniões da ABA. Já na segunda RBA, em 1957, Darcy Ribeiro
proferiu, no primeiro dia, a palestra “Efeitos dissociativos da depo-
pulação por epidemias entre os índios” – numa expressão clara da
preocupação com o poder dizimador das doenças oriundas do con-
tato que imperava no horizonte político e intelectual da época. Nem
sempre, contudo, há referências explícitas a essa questão (a saúde
indígena) na programação dos anais das RBA que se sucederam – daí
a metáfora do garimpo utilizada. À medida que as reuniões passa-
ram a congregar um número cada vez maior de participantes e suas
atividades se desdobraram em grupos de trabalho, fóruns, simpó-
sios, minicursos etc., foi preciso consultar o detalhamento dessas
atividades (nem sempre registradas nas programações) para locali-
zar as investigações em saúde indígena em meio a outras reflexões:
indigenismo, transformações indígenas, populações tradicionais e
meio ambiente, perspectivas de gênero, comida e simbolismo, polí-
ticas públicas de saúde, curas espirituais, itinerários terapêuticos,
corpo, saúde e doença, indígenas e participação nas políticas públi-
112 Carla Costa Teixeira
trabalho reuniu o maior número e a maior diversidade institucional
de pesquisadores em saúde indígena, dentro e fora do país, jamais
visto em outras RBA: 17 pesquisadores oriundos de universidades
brasileiras e latino-americanas. Expressando a tendência de incre-
mento observada ao longo da década, a 24ª RBA, reunida em 2004,
abrigou vários trabalhos em saúde indígena em atividades focadas
em questões afins e, especificamente em saúde indígena, ofereceu
um minicurso sobre Antropologia, Políticas Públicas e Saúde em
Territórios Étnicos, coordenado por Luiza Garnelo (Ufam-Fiocruz)
e Antonio Carlos de Souza Lima (MN/UFRJ).
Nesse percurso retroativo, há de se destacar a reunião de 2002,
a 23ª RBA, com uma atividade que teve repercussões duradouras
para o desenvolvimento das discussões e para o fortalecimento desse
espaço dentro das reuniões brasileiras de antropologia. Trata-se
do fórum de pesquisa Política de Saúde e a Intervenção Antropoló-
gica, coordenado por Jean Langdon (UFSC) e Luiza Garnelo (Ufam-
-Fiocruz), que resultou na coletânea Saúde dos povos indígenas:
reflexões sobre antropologia participativa, publicada em 2004 com
chancela da própria ABA. Essa coletânea se transformou num marco
para a reflexão antropológica sobre a saúde indígena e sobre a par-
ticipação dos antropólogos em contextos externos à academia ao
apresentar a diversidade de produções regionais no Brasil, na qual
essa preocupação com as interfaces de ação entre saúde pública e
saúde indígena se manifesta e se consolida como tema particular-
mente relevante para os antropólogos.
A partir desse cenário e da rede de relações que se formou no
acúmulo das experiências desses atores, a análise das políticas de
saúde indígena se tornaria frequente na década seguinte, tendo
como tema principal a restruturação da política de saúde indígena
e os novos contornos das relações entre os povos indígenas e as ins-
tâncias governamentais de saúde. Assim, nos anos 2000, além dos
trabalhos em saúde pública, a década correspondeu a um período
de ampliação e diversificação dos estudos em saúde indígena, apre-
sentando duas linhas de debate que são desdobramentos de um pro-
cesso anterior de encontros entre análises e propostas metodoló-
gicas produzidas por antropólogos, por profissionais de saúde, por
acadêmicos da área de saúde pública e, de forma mais ativa recen-
114 Carla Costa Teixeira
gena não fazia parte das populações interioranas eleitas como alvo
das intervenções.9 Apenas na década de 1940, com a expedição
Roncador-Xingu e as consecutivas aberturas de rodovias como a
Belém-Brasília e a Transamazônica, a demanda por conhecer e pro-
duzir diagnósticos sobre as condições de saúde dos povos indígenas
se tornou consistente. Os dois episódios que marcariam a entrada
das populações indígenas no imaginário sobre o interior brasileiro
e no horizonte das políticas nacionais de saúde foram a criação do
Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERu) em 1941 e do
Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (Susa), ligado ao SNT e Noel
Nutels, em 1956.
Entretanto, uma política de saúde indígena configurada em um
sistema próprio, mas não no âmbito das agências tutelares do estado
brasileiro – SPI e Funai –, surgiria apenas após a Constituição de
1988, um marco para toda a política de saúde feita no Brasil até então
com a criação do Sistema Único de Saúde. A 8ª Conferência Nacio-
nal de Saúde, dois anos antes da nova Constituição, foi também a
oportunidade para a realização da 1ª Conferência Nacional de Saúde
Indígena e já contava com a participação pioneira das antropólogas
Maria Rosário de Carvalho (UFBA), Jean Langdon (UFSC) e Regina
Muller (Unicamp). A vinculação explícita entre as duas conferências
permitiu articulações importantes entre o movimento da reforma
sanitária, o movimento indígena e os antropólogos. Para debater
especificamente a problemática de um modelo de saúde próprio,
foram realizadas outras quatro Conferências Nacionais de Saúde
Indígena até o ano de 2013, período em que se formulou e se estabe-
leceu a implantação de um modelo de sistema de atendimento cul-
turalmente diferenciado, com distintos modelos de gestão. Assim,
em 2010, vimos a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena
(Sesai), diretamente ligada ao Ministério da Saúde, retirando da
Funasa a responsabilidade de gestão da saúde e do saneamento indí-
gena, num processo em que as lideranças indígenas desempenharam
um papel fundamental. Articulados em suas organizações regionais,
10 A ABA deixou de indicar representação na Cisi em 2015 uma vez que, após 20
anos de titularidade, à associação foi reservada, sem nenhuma discussão, a suplên-
cia de uma representação não identificada claramente. Assim sendo, sua direção
decidiu não mais fazer parte da Cisi por discordar do procedimento e considerando
o processo político de esvaziamento dos espaços formais de participação social que
estava em curso – e se acentuou após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Nessa mesma oportunidade, a Abrasco também deixou de apontar representante.
116 Carla Costa Teixeira
trários à proposta. Lideranças indígenas, Ministério Público Federal
e organizações não indígenas aliadas históricas dos povos indígenas
se dividiram a favor e contra a proposta. Aqueles que falavam em
sua defesa alegavam que o instituto permitiria maior agilidade para
contratação de pessoal sem necessidade de concurso público; os
contrários chamaram o instituto de “paraestatal” e o acusaram de
ser uma tentativa de privatizar a saúde indígena e de fugir à delibe-
ração da ação civil pública de autoria do Ministério Público do Tra-
balho e do Ministério Público Federal que determina a realização do
concurso público.11 A informação que se tem é que o projeto de lei
se encontrava, em 2015, na Secretaria da Presidência da República,
aguardando para ser enviado ao Congresso, mas o aprofundamento
da crise do país após a reeleição da presidenta Dilma Rousseff parece
ter selado sua retirada da pauta de prioridades. Ainda no âmbito da
discussão sobre gestão e política pública, foi criado um grupo de
trabalho ministerial para revisão e discussão da Política Nacional de
Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (Portaria no 20, de 17 de abril de
2015), cuja composição suscitou protestos das lideranças indígenas
devido ao fato de os indígenas não deterem maioria dos assentos no
GT, o que poderia gerar um documento final que não representasse
suas posições. Ao longo de 2015, o GT teve dificuldade para se reunir
também em função do agravamento da crise e parece ter sido desati-
vado em consequência da redução de recursos financeiros no Minis-
tério da Saúde sob a presidência de Michel Temer.
Contudo, há de se destacar a evolução orçamentária positiva da
saúde indígena até 2015. Em reunião da Cisi em abril de 2015, a Sesai
apresentou dados que mostram o incremento dos recursos, que pas-
saram de cerca de R$ 350 milhões em 2009 para R$ 1 bilhão e 400
milhões em 2015, ou seja, um crescimento de 250%.
Tal incremento financeiro, no entanto, como se expressou na
melhoria da saúde indígena? Essa é uma resposta difícil de se encon-
trar porque os dados da saúde indígena não são públicos. É necessário
acionar a lei de acesso à informação, como têm feito vários pesquisa-
dores, para obter dados epidemiológicos mais recentes, o que em si
já merece reflexão e ação política no intuito de reverter essa impen-
118 Carla Costa Teixeira
Considerando, porém, a disjunção entre o reconhecimento polí-
tico expresso na crescente participação social indígena na saúde e
a desconsideração na efetivação dos direitos à saúde nas aldeias,
surge a indagação sobre se a eficácia política das lideranças indíge-
nas nas instâncias estatais continuará sem impactar positivamente
a vida cotidiana daqueles a quem representam. Cientes desse desa-
fio, as articulações políticas indígenas têm intensificado outros tipos
de ação além das previstas na governança democrática (tais como
ocupação do plenário da Câmara dos Deputados e de outros espaços
públicos, organização anual do Abril Indígena etc.) a fim de garan-
tir que o sucesso do protagonismo indígena na construção de políti-
cas públicas de saúde e em outras se torne uma realidade imediata e
duradoura na jovem democracia brasileira – em que pese a crescente
vocalização de forças políticas contrárias aos direitos indígenas e
outros direitos sociais e diferenciados, como temos observado nos
últimos anos. Essa estratégia implica escolhas difíceis que parecem
articular o aprofundamento de táticas de confronto em detrimento
da ampliação da presença indígena em espaços de participação social
e de administração do subsistema de saúde indígena – como parecia
ser a tendência antes da crise política que culminou com o impeach-
ment da presidenta.
121
conseguiu esboçar e entregar à coordenação da equipe de transição
uma proposta razoável com alguns pontos interessantes, que con-
tou com a participação de um bom número de lideranças indígenas
e de especialistas e indigenistas experientes. A proposta apresentada
refletia o resultado de mais de uma década de debates e três ocasiões
de eleições presidenciais disputadas por Lula. Já em 1988, represen-
tantes indígenas reunidos em Brasília tiveram um encontro com Luiz
Inácio Lula da Silva, expressando a ele suas principais reivindicações,
preocupações e propostas. No período de transição de governo, nos
meses finais de 2002, várias organizações indígenas e indigenistas
chegaram a elaborar e apresentar à equipe de transição do governo
do presidente Lula propostas voltadas para a modernização da polí-
tica indigenista brasileira, entre as quais a Coordenação das Orga-
nizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a Comissão de
Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil (Capoib), o
Conselho Indigenista Missionário, o Instituto Socioambiental (ISA) e
a Associação dos Trabalhadores da Funai. A Coiab, a Articulação dos
Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito
Santo (Apoinme), a Coordinadora de las Organizaciones Indígenas
de la Cuenca Amazónica (Coica) e o Instituto de Estudos Econômi-
cos (Inesc), com apoio do Senado Federal, realizaram, em novem-
bro de 2002, o seminário Índios e Parlamentos em um dos auditó-
rios do Senado em Brasília, o que suscitou a ideia de um parlamento
indígena no Brasil, apresentada como proposta ao governo Lula. A
Coiab, a Apoinme e o Laced-Museu Nacional/UFRJ realizaram, em
dezembro de 2002, um importante seminário, Bases para uma Nova
Política Indigenista, no Rio de Janeiro.
Como resultado de todo esse investimento do movimento indí-
gena e indigenista na tentativa de contribuir e subsidiar o primeiro
governo petista eleito, a Coordenação do Programa de Governo do
então candidato Lula publicou, em setembro de 2002, uma Carta
compromisso com os povos indígenas. Nessa carta, a Coordena-
ção reconhece que “a questão indígena é um aspecto importante na
transformação da sociedade e construção de um novo modelo polí-
tico, social e econômico para o país”. O documento de 16 páginas
começa delineando um “quadro lamentável” da política indigenista,
das realidades e dos direitos indígenas no Brasil. Na segunda parte
122 Gersem Luciano Baniwa
do documento, são descritas as novas diretrizes e pontos programá-
ticos propostos para uma política indigenista. Na eleição de 2005,
que reelegeu o presidente Lula, e na eleição de 2009, que elegeu a
presidenta Dilma, também foram elaborados programas de governo
muito semelhantes ao de 2002. A proposta de governo de 2005, por
exemplo, reconhece a inércia do primeiro governo Lula no campo da
política indigenista.
Dentre os aspectos mais importantes constantes das proposi-
ções apresentadas nos programas de governo de 2002, 2006 e 2010,
destacam-se:
criação de um Conselho Superior de Política Indigenista;
criação e implementação de uma Secretaria Especial de Promo-
ção dos Direitos Indígenas, com status de ministério, para coor-
denar as políticas indigenistas, vinculada diretamente à Presi-
dência da República;
criação e implementação de Distritos Especiais Indígenas (DEIs)
como unidades administrativas vinculadas à Secretaria Especial
e com autonomia de gestão orçamentária e de planejamento no
seu nível de atuação. Cada DEI contaria com um conselho distri-
tal e conselhos locais;
aprovação do novo Estatuto dos Povos Indígenas;
restruturação ampla do órgão indigenista federal;
combate tenaz à impunidade nos crimes contra índios, suas
comunidades e identidade étnica;
articulação de programa especial e emergencial – no âmbito do
órgão indigenista oficial – visando demarcar, homologar e regis-
trar todo o atual passivo de terras indígenas não demarcadas;
remodelação do sistema federal de promoção da educação
indígena, liberando-o das amarras técnico-burocráticas e do
menosprezo político-ideológico a que está relegado;
apoio aos povos indígenas nas discussões e na implantação gra-
dual do parlamento indígena como instância qualificada e repre-
sentativa dos povos indígenas no Brasil;
124 Gersem Luciano Baniwa
O programa de governo de 2002 da coligação Lula Presidente
foi um dos mais avançados da história brasileira e nele foi deposi-
tada toda a esperança dos indígenas e de seus aliados. Mas os senti-
mentos de otimismo e esperança logo deram lugar a preocupações,
decepções e frustrações. O primeiro sinal para isso foi a decepção
com o trabalho realizado pela subcomissão de assuntos indígenas da
equipe de transição, que sequer foi considerado e incluído no plano
de governo publicado a poucos dias da posse do presidente Lula.
Nunca ficamos sabendo as razões que levaram à sua desconsideração,
exclusão e esquecimento. Supomos que tenha sido por contar com
propostas bastante inovadoras, que devem ter assustado ou contra-
riado a equipe central do governo, ou que a cúpula do governo e do
PT teve de sucumbir aos interesses de sua base aliada formada para
garantir a governabilidade, notadamente o PMBD, conhecidamente
anti-indígena, pelo menos na maioria de sua bancada parlamentar e
de seus dirigentes partidários.
Os primeiros quatro anos de governo do presidente Lula foram
tristes e decepcionantes. Não houve uma iniciativa importante e
consequente no tocante à mudança da política indigenista, nem
mesmo alguma tentativa de abertura de canal de diálogo com os
movimentos sociais indígenas e indigenistas. A frustração foi geral.
As únicas medidas pontuais e importantes tomadas foram a homo-
logação da Convenção 169/OIT em 2004, mas sem nenhuma conse-
quência concreta de sua aplicação pelo próprio governo, e a criação
da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
(Secad) no âmbito do Ministério da Educação, em cuja pasta foi alo-
cada a coordenação da educação escolar indígena, mas de forma
bastante periférica diante de temas considerados mais importantes,
tais como: alfabetização, educação do campo, educação em direi-
tos humanos, educação especial, educação prisional, educação para
meio ambiente e educação para relações étnico-raciais. No entanto,
mesmo de seu lugar periférico, a Secad/Secadi foi sempre essencial e
continua sendo nas conquistas educacionais indígenas.
Muitos analistas explicam a decepção pelo fato de que Lula foi
eleito por uma ampla coalizão, que somou aos votos tradicionais da
esquerda os de outros setores descontentes com o modelo político
liberal, incluindo grupos de empresários industriais e a classe média.
126 Gersem Luciano Baniwa
e sujeitos ativos de seus projetos de vida, sem a intermediação de
nenhum órgão ou entidade indigenista. Isso exigia uma nova ins-
titucionalidade, um novo marco regulatório, de modo a produzir,
com ampla participação das organizações e comunidades indígenas,
a articulação das diversas políticas setoriais indigenistas, garantindo
maior sinergia e melhores resultados, superando a atuação frag-
mentada, sem coordenação, sem articulação interinstitucional que
marcou a política indigenista brasileira nos últimos anos. Isso signi-
ficaria trazer a política indigenista como um todo para o centro das
políticas de Estado e governo.
Outra diretriz esperada era a demarcação, a proteção e o desen-
volvimento sustentável das terras indígenas, considerando que mui-
tos povos vivem imersos em conflitos fundiários, envolvidos pela
violência dos invasores de suas terras. Seria necessário, portanto,
priorizar os processos de demarcação, desintrusão e proteção das
terras indígenas. Além disso, seria necessário criar e implementar
programas articulados de etnodesenvolvimento em harmonia com
os modos coletivos presentes e futuros de vida de cada povo.
Mas não se pode afirmar que tudo tenha sido decepção e frus-
tração. Considerando tudo que estamos vivendo na atualidade, após
o impeachment da presidenta Dilma, é importante fazer justiça aos
fatos para explicitar as conquistas, os avanços e também os proble-
mas e desafios identificados ao longo das referidas gestões gover-
namentais. Reproduzimos a seguir elementos de análise constantes
do programa de governo Lula Presidente de 2006, que certamente
refletiu a realidade do primeiro governo, mas que não se modificou
ou se modificou muito pouco no segundo mandato e nos mandatos
posteriores de Dilma Rousseff. O programa indicou diretrizes, estra-
tégias e ações para a efetivação das mudanças necessárias e ansiosa-
mente desejadas, capazes de resgatar a confiança e a esperança no
projeto político histórico do Partido dos Trabalhadores no tocante
ao dever moral e ético do resgate da dívida histórica do Estado brasi-
leiro com os povos indígenas, seus primeiros habitantes. O programa
não apenas reafirmou os princípios políticos e legais que precisavam
orientar a nova relação pretendida entre Estado/sociedade e povos
indígenas, como propunha um novo marco regulatório dessa relação
e de uma nova institucionalidade e estrutura orgânica, ágil, eficiente
128 Gersem Luciano Baniwa
se houve mudanças, estas foram no sentido inverso ao apontado
anteriormente, ou seja, no sentido de deterioração das relações, dos
direitos e das ações junto aos povos indígenas. A sensação geral é
de que se perdeu uma grande oportunidade para realizar mudanças
históricas, desejadas e necessárias na política indigenista oficial.
O paradoxo referido pode ser compreendido pelo entrelaça-
mento de alguns aspectos centrais da política indigenista nos gover-
nos petistas. O primeiro aspecto diz respeito ao crescimento do
orçamento para as políticas indigenistas, enquanto as ações e a exe-
cução orçamentária seguiram fragmentadas, sem coordenação, sem
uma articulação interinstitucional que produzisse maior sinergia e
melhores resultados. Houve claras dificuldades e conflitos para se ter
clareza, definição e determinação de qual era o plano programático
do governo quanto à política indigenista, as estratégias e as ações
prioritárias e quem tinha a responsabilidade ou autoridade para dar
ritmo e prioridade. Diante das dúvidas, contradições e desgovernos,
logo cresceram, dentro do governo, as antigas forças anti-indíge-
nas aglutinadas em torno do PMDB e de outros aliados de plantão
que, oportunisticamente, faziam parte da composição do governo,
desviando-o do caminho traçado inicialmente, expresso na Carta de
compromisso com os povos indígenas 2002.
O segundo aspecto diz respeito ao órgão indigenista oficial, a
Funai, que, enquanto órgão executor de parte da política indige-
nista, seguiu pautando sua ação pela mentalidade da tutela, que
nega aos povos e organizações indígenas a voz e o controle sobre as
políticas públicas que lhes dizem respeito. A Funai é o órgão mais
antigo que trabalha com os povos indígenas e que, até hoje, nunca
criou uma instância institucional de participação e controle social de
suas políticas e ações, servindo como um verdadeiro mau exemplo.
A Comissão Nacional de Política Indigenista, depois transformada
em Conselho Nacional de Política Indigenista, mantendo, contudo,
seu caráter consultivo, não pode ser considerada órgão de participa-
ção e controle social da Funai, uma vez que seu campo de atuação é
a política indigenista em geral. Outros órgãos que passaram a atuar
no campo indigenista a partir da Constituição de 1988 logo cria-
ram conselhos ou comissões participativos para acompanhamento,
aconselhamento e controle social de suas ações. Apenas a título de
130 Gersem Luciano Baniwa
O movimento indígena e seus aliados e parceiros bem que tenta-
ram ajudar o governo, problematizando a questão indígena e suge-
rindo caminhos concretos que lograram algumas poucas conquistas,
como a criação da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI)
e os diálogos e interlocuções abertas junto ao Grupo de Trabalho
Interministerial de Política Indigenista (GTPI) e ao grupo de trabalho
interministerial que tentou elaborar proposta de regulamentação da
Convenção 169/OIT. Em busca de diálogo qualificado, o movimento
indígena e seus aliados, desde o início do governo Lula, tentaram
uma aproximação institucional por meio do Fórum em Defesa dos
Direitos Indígenas (FDDI), que anualmente realizava o Abril Indí-
gena e o Acampamento Terra Livre como espaço representativo de
debate e diálogo, até a criação da Articulação dos Povos Indígenas
do Brasil (Apib), que passou a assumir e organizar tais eventos. Essas
iniciativas de diálogo produziram alguns avanços quanto a entendi-
mentos de pautas e agendas prioritárias comuns entre o governo e o
movimento indígena e seus aliados, mas o governo teve dificuldades
políticas e operacionais em efetivá-los. Alguns dos poucos resulta-
dos concretos alcançados a partir do diálogo travado no âmbito do
FDDI e das arenas do Acampamento Terra Livre foram a homologa-
ção da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol e a criação da CNPI.
Diante desse cenário de continuísmo da política indigenista
marginal, contraditória e ineficiente nos anos de governo petista,
o movimento indígena e suas organizações continuaram não sendo
reconhecidos pelo Estado e pelo governo como interlocutores legíti-
mos e autônomos. Tudo foi mediado pelo órgão indigenista, que não
tem, por sua história e cultura institucional, status, estrutura, ideo-
logia, missão, orçamento, corpo técnico, nenhuma possibilidade de
coordenação intersetorial. Dessa forma, persistiu a crítica de que,
apesar de mais ações e mais investimentos, em muitos aspectos, a
qualidade de vida e as perspectivas dos povos indígenas não muda-
ram, mudaram muito pouco ou mesmo pioraram nesses anos. Isso
alimentou a crítica persistente de que o governo perpetuou o regime
paternalista, antiquado e autoritário da tutela. Apesar da promulga-
ção da Convenção 169/OIT em 2004, que determina a participação
informada dos povos indígenas na formulação, no desenvolvimento
e na avaliação de todas as ações passíveis de afetá-los, essa partici-
132 Gersem Luciano Baniwa
No campo da legislação indigenista, o desenho da Funai e as prá-
ticas administrativas que continuaram sendo adotadas refletem cla-
ramente o espírito da Lei 6.001/1973 – o Estatuto do Índio –, elabo-
rada e aprovada durante a ditadura militar, num quadro jurídico que
regulava os direitos indígenas inteiramente antagônico às formula-
ções e pressupostos da Constituição federal de 1988. Uma legislação
específica que mudaria e adequaria esse quadro jurídico ultrapas-
sado, o Estatuto das Sociedades Indígenas (PL 205/1991) ou Estatuto
dos Povos Indígenas, como queriam estes, permanece sem aprova-
ção no Congresso Nacional desde 1991. Dessa forma, há enorme dis-
tância entre os princípios constitucionais em vigor e os princípios
que orientam as práticas políticas do Estado, num flagrante desres-
peito aos direitos indígenas.
O campo da saúde indígena, apesar de o modelo dos Distri-
tos Sanitários Especiais Indígenas (Diseis) e a criação da Secretaria
Especial de Saúde Indígena (Sesai/MS) serem os avanços mais sig-
nificativos na política indigenista dos últimos 20 anos, padece de
muitas imperfeições, como a falta de reconhecimento e promoção
das concepções e práticas tradicionais de saúde, a falta de autono-
mia de gestão administrativa e financeira dos distritos, uma per-
versa influência política (dos partidos políticos) nas indicações dos
seus gestores, a falta de sensibilidade dos gestores e técnicos centrais
de Brasília, o excesso de burocracia, a partidarização dos cargos nas
distintas instâncias do subsistema, a falta de política ou programa
de formação inicial e continuada para agentes indígenas de saúde e
a permanente cooptação de lideranças e agentes indígenas em favor
dos interesses do governo e desfavor dos direitos e interesses dos
povos e das comunidades indígenas. A cooptação foi muito explí-
cita no processo de discussão da proposta do Instituto Nacional de
Saúde Indígena (INSI), apresentada pelo Ministério da Saúde (MS),
como órgão que executaria as ações de saúde indígena, quando as
lideranças indígenas ligadas às estruturas da saúde indígena do MS
se posicionaram favoráveis à proposta, contrariando frontalmente
a posição do movimento indígena organizado e articulado pela rede
de organizações indígenas que compõem a Apib, que era contrária à
criação do INSI.
134 Gersem Luciano Baniwa
contribuído para o salto de qualidade que tanto se queria na relação
Estado/povos indígenas, mas que, por não terem sido implementa-
dos, conservaram a política indigenista frágil, incoerente e capenga.
Restruturação da Funai
Diante de um cenário lamentável da política indigenista refletido na
desestruturação, no enfraquecimento e no esvaziamento técnico,
político e orçamentário do órgão indigenista, reconhecido na Carta
de compromisso de 2002, o governo petista bem que tentou fazer
alguma mudança, mas sem sucesso. O governo Lula foi o que mais
tentou, no seu segundo mandato. Promoveu uma tentativa de reor-
ganização da estrutura do órgão, incluindo uma nova nomenclatura
para as coordenações regionais e locais, concurso público para repor
parte do quadro perdido nos últimos anos e inclusão, no Plano Plu-
rianual 2012-2015, de um Programa de Proteção e Promoção dos
Direitos dos Povos Indígenas. Essas ações foram realizadas, mas com
poucos impactos e resultados no cenário debilitado do órgão e da
política indigenista. Em alguns contextos, o quadro inclusive piorou.
No decorrer de 2010, ano das comemorações do centenário do
indigenismo no Brasil, iniciado em 1910 com a criação do Serviço de
Proteção ao Índio (SPI), foi concretizado um processo de restrutu-
ração da Funai amparado pelo Decreto Presidencial nº 7.056/2009.
A principal mudança foi a substituição das antigas administrações
regionais e locais (AER) e postos indígenas (PIN) por coordenações
regionais (CR) e coordenações técnicas locais (CTL) respectivamente.
As AERs e os PINs foram criados ainda no período do SPI (1910-1967)
e tinham como principal objetivo prestar assistência tutelar aos
índios. O decreto que criou as CRs e CTLs previu a criação de um
comitê gestor paritário (50% indígena, 50% servidor) para cada CR
a fim de garantir o protagonismo dos povos indígenas na implemen-
tação e execução das políticas públicas indigenistas. Foram criadas
36 coordenações regionais (as AERs eram 45) e 297 coordenações
técnicas locais.
O maior equívoco da medida, entre muitos, foi não ter con-
tado com ampla e qualificada participação dos povos indígenas. Em
razão disso, desde o início, as medidas foram duramente criticadas
136 Gersem Luciano Baniwa
Outra iniciativa tomada na tentativa de fortalecer o órgão indi-
genista foi a elaboração e inclusão, desde 2008, do Programa de Pro-
teção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígena, sob coordenação
da Funai, no Plano Plurianual. O programa contemplava um con-
junto de políticas e ações na perspectiva de articulação e transversa-
lidade das políticas públicas indigenistas. O programa de 2012-2015
deixa explícitas as intenções do governo por meio de nove objetivos,
cada um com a sua caracterização, metas, unidade orçamentária
e iniciativas correspondentes: A Lei nº 12.593, de 18 de janeiro de
2012 que institui o Plano Plurianual da União para o período de 2012
a 2015 prevê sob a responsabilidade da Fundação Nacional do Índio o
Programa de Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas,
que tem como objetivos:
Objetivo: 0943 - Garantir aos povos indígenas a plena ocupação
e gestão de suas terras, a partir da consolidação dos espaços e defini-
ção dos limites territoriais, por meio de ações de regularização fun-
diária, fiscalização e monitoramento das terras indígenas e proteção
dos índios isolados, contribuindo para a redução de conflitos e para
ampliar a presença do Estado democrático e pluriétnico de direito,
especialmente em áreas vulneráveis.
Objetivo: 0945 - Implantar e desenvolver política nacional de
gestão ambiental e territorial de terras indígenas, por meio de estra-
tégias integradas e participativas com vistas ao desenvolvimento
sustentável e à autonomia dos povos indígenas.
Objetivo: 0948 - Promover o acesso amplo e qualificado dos
povos indígenas aos direitos sociais e de cidadania por meio de ini-
ciativas integradas e articuladas em prol do desenvolvimento sus-
tentável desses povos respeitando-se sua identidade social e cultu-
ral, seus costumes e tradições e suas instituições.
Objetivo: 0949 - Preservar e promover o patrimônio cultural dos
povos indígenas por meio de pesquisa, documentação, divulgação e
diversas ações de fortalecimento de suas línguas, culturas e acervos,
prioritariamente aqueles em situação de vulnerabilidade.
Objetivo: 0950 - Articular as políticas públicas implementadas
pelos órgãos do governo federal junto aos povos indígenas, compa-
tibilizando suas estratégias de regionalização e sistemas de informa-
138 Gersem Luciano Baniwa
desprestígio da Funai no âmbito do governo, aliado a outros fatores
como as limitações orçamentárias e carência de recursos humanos,
foi o principal responsável pelos resultados pífios e frustrantes do
programa.
Convenção 169/OIT
Outra iniciativa não concluída pelo governo Lula foi a tentativa de
regulamentação da Convenção 169 da Organização Internacional do
140 Gersem Luciano Baniwa
Diante de resistências dos principais interessados na questão –
povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais –, o GT
não conseguiu apresentar nenhuma proposta de regulamentação
da lei. As resistências foram baseadas fundamentalmente na des-
confiança quanto aos propósitos do governo. Os povos indígenas,
os quilombolas e as comunidades tradicionais levantaram dúvidas
sobre as reais intenções do governo a partir das distorções na apli-
cação das disposições da própria convenção e do distanciamento
da proposta do governo dos padrões internacionais estabelecidos
quanto à forma, ao escopo e aos objetivos do instituto da consulta
prévia.
O processo metodológico adotado pelo GT teria se caracterizado
pela ausência ou insuficiência de participação dos próprios povos
indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, justamente
aqueles que deveriam ter a palavra final sobre assunto tão sério, pois
diz respeito à conveniência ou não de adoção de medidas que impli-
quem a restrição do usufruto de seus direitos, suas terras, suas cren-
ças, seus hábitos culturais, seus modos de vida, seu futuro, enfim,
suas riquezas materiais e imateriais.Além disso, a iniciativa poderia
apresentar risco maior de retrocesso quanto aos direitos internacio-
nalmente reconhecidos dos povos indígenas e tribais, pela falta de
confiança nos propósitos do governo, leitura essa tomada a partir do
cenário da política indigenista que se estava vivendo.
Referências
FLEURY, Sonia “Primer año del Gobierno Lula: la difícil transición”. Revista
CIDOB d’A fers Internacionais, nm. 65, p. 39-59.
145
jetos ao longo dos anos e nos deixaram um legado, um acúmulo de
conhecimento acerca das consequências desses projetos sobre os
modos de vida dos grupos afetados e seus ambientes. Assumindo o
risco de esquecimentos pelo resgate da memória, que é ela mesma
resultado do jogo entre lembrança e esquecimento (POLLAK, 1989;
HALBWACHS, 1990; PORTELLI, 1996), eu gostaria de recordar espe-
cialmente os trabalhos de Lygia Sigaud e Silvio Coelho, que já não
se encontram mais entre nós, bem como os trabalhos de Aurelio
Vianna, Parry Scott, Stephen Baines, Sonia Magalhães, Gustavo Lins
Ribeiro, enfim, alguns dos antropólogos que fizeram contribuições
inovadoras e relevantes para o tema das hidrelétricas e seus impac-
tos pelo menos desde os anos 1980. Sublinho também as contribui-
ções de Mauro Almeida, Manuela Carneiro da Cunha, Neide Esterci,
Henyo Barreto, entre outros, que tiveram papel fundamental para
a discussão sobre sociobiodiversidade, sustentabilidade e conheci-
mentos tradicionais.
Eu não pretendo, e não conseguiria, resgatar todos os nomes
que contribuíram para a temática socioambiental dentro da ABA,
de modo que me desculpo pelas omissões. Mas o que eu gostaria de
ressaltar nesta oportunidade é exatamente a existência de certa tra-
dição dentro da associação envolvendo reflexões acadêmicas e prá-
ticas na esfera pública relacionadas ao tema dos grandes projetos,
do meio ambiente e das comunidades tradicionais, embora o comitê
com essa configuração tenha sido criado somente em 2011, durante a
gestão de Bela Feldman-Bianco, quando a segunda fase do Programa
de Aceleração do Crescimento (PAC) já tinha evidenciado o retorno
das grandes obras, sobretudo as hidrelétricas da Amazônia, ao cen-
tro do projeto de crescimento econômico do país.
146 Andréa Zhouri
por exemplo, os encontros da rede Ciências Sociais e Barragens nos
anos de 2005, 2007 e 2010, todos com participação significativa de
antropólogos. Recordo que, em 2010, no encontro de Belém, Sonia
Magalhães (UFPA) e eu conversávamos com Gustavo Lins Ribeiro
(UnB e ex-presidente da ABA) sobre a necessidade de um espaço
específico dentro da ABA para reflexão sobre os grandes projetos. Em
seguida, por ocasião da minha inserção como membro da diretoria
da ABA (gestão 2011-2012), e contando com a valorosa experiência
de Henyo Barreto, essa proposta foi apresentada à presidente Bela
Feldman-Bianco, que a acolheu de imediato. É importante registrar
que o Comitê teve um trabalho muito intenso nos dois primeiros
anos de sua criação em função do licenciamento ambiental, à época,
da hidrelétrica de Belo Monte, uma obra paradigmática em vários
sentidos, sobretudo no que diz respeito à proposta de desenvolvi-
mento que se desenhava para o país, incluindo, obviamente, as suas
consequências.
Vale lembrar que o Comitê esteve envolvido em diversas situa-
ções, eventos, processos e iniciativas ligadas a Belo Monte, a come-
çar pelo seminário Belo Monte e a Questão Indígena, ocorrido na
Universidade de Brasília em setembro de 2011. À época, inúmeras
articulações foram feitas junto ao Palácio do Planalto e ao Congresso
Nacional. Entre tantas iniciativas, a ABA foi responsável pela articu-
lação de um posicionamento público sobre Belo Monte envolvendo
mais de 20 sociedades científicas naquele momento, a despeito de
uma diversidade de posições dentro da própria associação e entre
as diferentes instituições. De modo que, se toda essa movimenta-
ção não surtiu o efeito esperado e o licenciamento da obra prosse-
guiu a despeito das críticas, tal fato ocorreu menos em função de
uma ausência ou omissão dos antropólogos e mais em decorrência
das forças políticas hegemônicas constitutivas do Estado brasileiro
e sua crença inarredável no desenvolvimento via grandes obras de
infraestrutura.
O credo desenvolvimentista permanece firmemente encrustado
na forma de pensar o presente e o futuro da nação, de modo que os
desafios atuais e futuros para o trabalho científico dos antropólogos
permanecem e se avolumam. A agenda dos antropólogos que tra-
balham com os grupos afetados por projetos de desenvolvimento,
148 Andréa Zhouri
instância também de referência para a atuação do antropólogo, seja
como perito técnico em diferentes agências governamentais (Ibama,
ICMBio, Funai, Iphan), seja no Ministério Público, nas empresas de
consultoria, nas universidades etc. Uma análise dos desafios para
o antropólogo nessas instâncias foi publicada em artigo escrito em
coautoria com Raquel Oliveira para a coletânea editada por Bela
Feldman-Bianco intitulada Desafios da antropologia brasileira,
disponível em PDF no site da ABA. Nesta apresentação, retomo
alguns aspectos para explorar questões a serem enfrentadas no con-
texto atual, sobretudo a partir das medidas da Agenda Brasil anun-
ciadas pelo governo na semana passada (agosto de 2015), as quais,
entre outros aspectos, preveem:
150 Andréa Zhouri
dos lugares (ESCOBAR, 1995, 2001), quer dizer, a organização social
de base comunitária e seus espaços de viver. E isso tem implicações
diretas no entendimento e na conceituação acerca de quem é o atin-
gido.
A definição do universo dos atingidos depende, em geral, de um
planejamento abstrato e orçamentário estabelecido pelas políticas
do Estado e das empresas, conforme antropólogos têm apontado
desde os anos 1980, a exemplo de Lygia Sigaud, Aurelio Vianna, Sil-
vio Coelho, entre outros.
Que desafios essa perspectiva coloca para os antropólogos? Ora,
se o desenvolvimento pode ser compreendido como um projeto de
governo característico do Estado moderno, ou seja, na acepção de
Tania Murray Li (1999), como um esforço para produzir sujeitos
governáveis, então as noções de legibilidade e população se tornam
centrais para essa reflexão. Entendendo a população como categoria
nuclear para as ordens de justificativa ao desenvolvimento, ou seja,
como seu objeto, meio e fim, torná-la legível passa a ser condição
de governabilidade. As intervenções do Estado para o ordenamento
do espaço, com as classificações possíveis, legítimas e desejáveis a
respeito dos seus usos, implica uma capacidade de controle sobre os
sujeitos e seus respectivos territórios (SCOTT, 1998). A racionaliza-
ção e a padronização do tecido social são, portanto, impostas como
condições para torná-lo legível e governável (ZHOURI, 2014). Tal
processo constitui um dos desafios centrais para a abordagem e a
prática da antropologia.
Estamos diante de uma violência simbólica que, por conseguinte,
se alinha na prática à violência física, uma vez que a flexibilização
de normas e procedimentos, junto com a ineficiência do monitora-
mento, ou seja, o jogo da trama entre a ilegalidade e a alegalidade,
frequentemente abrem brechas para a emergência de ações violen-
tas nas localidades. O deslocamento compulsório e o deslocamento
in situ (FELDMAN, GEISLER e SILBERLING, 2003) acompanham,
em geral, as violações de direitos humanos, notadamente o direito a
informação, a água potável, a moradia, o direito de ir e vir, a segu-
rança alimentar, além do próprio direito diferenciado de cidadania
tal como prescreve a Constituição do país.
152 Andréa Zhouri
(ZHOURI, 2014). Essa demanda implica a politização do debate a par-
tir de uma perspectiva da diferença cultural e das relações de classe,
as quais sublinham, de fato, “a questão ambiental” e outras denomi-
nações relevantes para as políticas públicas do meio ambiente, tais
como as categorias de impacto e população atingida.
A perspectiva da negociação de conflito, institucionalizada pelo
paradigma da adequação ambiental e disseminada pelo Banco Mun-
dial, repousa em princípios liberais de individualização de sujeitos
e igualdade de tratamento, os quais são supostamente assegurados
pela universalidade da lei. Entretanto, tais princípios, que são apa-
rentemente democráticos e justos (solução todos ganham), quando
aplicados em sociedades estruturadas por diferentes modalidades de
desigualdade – isto é, desigualdades sociais, econômicas, culturais e
ambientais – e por grupos com direitos diferenciados de cidadania
(indígenas, quilombolas, entre outros), tendem a perpetuar essas
condições desiguais, como evidenciado pelas centenas de casos
registrados nas diferentes pesquisas de grupos que se reúnem no
âmbito da RBA, da REA, da RAM e demais fóruns de pesquisa do país
e das Américas, assim como pelas diferentes cartografias de confli-
tos ambientais e de comunidades tradicionais realizadas ao longo da
última década. Enfim, são registros das desigualdades socioambien-
tais em curso no país e no continente latino-americano que tendem
a se agravar com a nova onda extrativista e cujos desafios algumas
técnicas de mediação de conflito tentam resolver. Contudo, nesse
processo, as desigualdades são reproduzidas e perpetuadas, ainda
que inadvertidamente. Um dos desafios para as pesquisas antropo-
lógicas está justamente em desvelar as categorias do entendimento
que acabam por hierarquizar sentidos e sujeitos, replicando formas
de dominação pela colonialidade epistêmica e simbólica (MIGNOLO,
2003; QUIJANO, 2005).
Outros desafios resultam, ainda, das situações de conflito espe-
cíficas em que os antropólogos são, cada vez mais, chamados a par-
ticipar como mediadores. Portanto, necessária se faz uma reflexão
crítica que evidencie tanto a forma como os procedimentos são
estruturados nesse campo ambiental quanto as possibilidades de
atuação profissional do antropólogo resguardadas pelos cânones da
disciplina.
154 Andréa Zhouri
SCOTT, James C. Seeing like a State: how certain schemes to improve human
condition have failed. Yale University Press, 1998.
SIGAUD, Lygia; MARTINS-COSTA, Ana Luiza; DAOU, Ana Maria. Expropriação do
campesinato e concentração de terras em Sobradinho: uma contribuição à análise
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VIANNA, Aurélio. Estado e meio ambiente: a implantação de hidrelétricas e o Rima.
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ZHOURI, Andréa. Mapeando desigualdades ambientais: mineração e desregulação
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de resistir: limites da resolução negociada de conflitos ambientais. Belo Horizonte:
UFMG, 2014.
157
“Como iremos provar que existe problema de saúde pública só com
argumentos sociológicos e antropológicos?”. Dirigindo à assessoria
sua avaliação, ela completa: “A universidade também tem de deixar
suas ilhas”. Diante dos nossos esforços para o desenvolvimento de
um trabalho conjunto, os quais certamente haviam levado parte de
nossa equipe a estar presente na reunião com apoio de um especia-
lista em saúde, fiquei tentando digerir a intervenção da promotoria,
mas ela segue comentando as complicações que tornavam seu traba-
lho uma tarefa delicada: “Fazer o nexo das atividades com os even-
tos de saúde só será possível se a epidemiologia estiver organizada
de forma distrital, apenas se estiver setorizada”. E prossegue: “Tra-
çar esse nexo entre impacto e adoecimento hoje é fácil para alguns
impactos, mas não para outros. Hoje, a cidade é muito poluída e é
difícil traçar uma linha específica entre adoecimento e a atividade”.
O professor Tarcísio intervém e complementa a exposição da pro-
motora acerca dos obstáculos: “Há vários tipos de câncer que podem
ter um longo período de latência e é difícil desenhar um modelo de
pesquisa devido a esses fatores”. A promotora o interrompe – “É…
Tudo pode” –, mas Tarcísio procura trazer novos elementos para a
análise e acrescenta: “Há outros itens que poderíamos estar inves-
tigando, por exemplo, doenças respiratórias”. Nova interrupção da
promotora: “Mas está setorizada?”. Até então em silêncio e assis-
tindo à breve discussão entre o professor e a promotora, Dalva inter-
vém, dispondo sobre a mesa de reunião o dossiê preparado junto
com seus vizinhos. Ela procura questionar a natureza dessa “linha
específica” que a promotora e o professor procuram traçar: “Eu
já havia comentado que eu iria até carimbar de vermelho aqui [no
dossiê] os nomes dos que já morreram”. E, com indignação e iro-
nia, continua: “Cadê o nexo causal? A gente tá vendo que tá ali, mas
nem se colocar o defunto em cima, né?”. Retomando a palavra, a
promotora procura explicar: “Sim… Individualmente, é muito mais
fácil do que provar coletivamente. É muito mais fácil provar para um
trabalhador dentro de uma indústria do que de alguém que mora ao
lado”. O professor novamente complementa: “O mesotalioma tem
uma origem ocupacional que deve ser investigada, mas já para o lin-
foma, essa relação não é tão fácil, tão direta, se conhece pouco”.
158 Raquel Oliveira
A promotora reforça, então, a necessidade de um estudo epide-
miológico para estabelecer o que chama de “evidenciação” e acres-
centa: “Não posso ser leviana”. Dalva se manifesta novamente e res-
salta que são muitos os casos de câncer no bairro, incluindo casos
múltiplos em uma única rua. Salienta ainda que o dossiê preparado
pelos moradores indica “um risco de contaminação num raio de até
oito quilômetros do incinerador e efeitos mais intensos numa área
de até 500 metros”. A promotora insiste sobre a impossibilidade de
demonstração do nexo causal sem a realização de um estudo epi-
demiológico, já que, segundo sua avaliação, “não há nenhuma evi-
dência dessa relação”. A discussão prossegue em torno dos encami-
nhamentos possíveis de serem tomados pela promotoria, os quais,
na época, consistiam na remessa de uma série de ofícios preparados
pelo Ministério Público Estadual a fim de interrogar órgãos de pes-
quisa, monitoramento e regulação sobre a relação entre a incinera-
ção de resíduos especiais e o desenvolvimento de câncer.
Dalva e Geraldo haviam sido levados àquela reunião junto à Pro-
motoria de Saúde em função dos acontecimentos que vivenciavam
seis anos antes. Mobilizados em torno do Movimento de Defesa dos
Direitos Humanos e Meio Ambiente (MDDUMA), os moradores do
Camargos enfrentaram um longo e tortuoso percurso de luta na busca
pela exposição do dano provocado pela operação de um incinerador
de lixo industrial e hospitalar nas proximidades de sua moradia. O
incinerador pertencia à empresa Serquip, grupo cujos investimentos
se fazem no campo do tratamento de resíduos sólidos e que apre-
senta atividades em andamento nos estados de Minas Gerais, Paraná
e Alagoas.3 O empreendimento no Camargos fora licenciado4 em
160 Raquel Oliveira
montagem das chaminés na unidade, fato simbólico celebrado pelos
moradores como marco de sua conquista. Entretanto, a atuação dos
moradores através do MDDUMA ainda prossegue, com reivindica-
ções de realização de um estudo epidemiológico no bairro, avaliação
dos riscos a que foram expostos e monitoramento da situação de sua
saúde, o que nos leva à reunião junto à Promotoria da Saúde e aos
fatos inicialmente narrados.
Retrospectivamente, os fragmentos daquela reunião na Pro-
motoria de Saúde me parecem ilustrativos do drama mais longo e
pungente vivenciado pelos moradores do bairro Camargos. Embora,
como Dalva, eu estivesse indignada com a persistência sobre uma
“evidenciação” que já sabíamos inatingível, os acontecimentos da
reunião não me foram surpreendentes. No ano anterior, eu já havia
vivenciado a mesma dinâmica em outro contexto, no processo de
assessoria das comunidades rurais localizadas a jusante da barragem
de Irapé, no vale do Jequitinhonha. Desde 2006, essas comunidades
ribeirinhas tiveram seu abastecimento de água seriamente compro-
metido em função das alterações na qualidade da água do rio Jequi-
tinhonha, o qual, para muitas comunidades, constitui a única fonte
do recurso (ZHOURI, OLIVEIRA e LASCHEFSKI, 2011).
Dentre os problemas vivenciados pelas comunidades à beira do
Jequitinhonha, destacavam-se: coceiras e irritações na pele daqueles
que utilizam a água do rio para banho; mau cheiro da água; sabor
de ferrugem; impossibilidade de lavar roupas no rio em virtude das
manchas avermelhadas provocadas pela água; corrosão das bombas
de captação de água; problemas com a dessedentação de animais,
que se recusavam a beber a água do rio; temor quanto aos possíveis
problemas de saúde ocasionados pela qualidade da água, além da
impossibilidade do cultivo das tradicionais vazantes. Em fevereiro
de 2006, mediante demanda das comunidades locais, o Gesta enca-
minhou à Fundação Estadual de Meio Ambiente (Feam) e à Procu-
radoria da República em Minas Gerais relatório sobre a situação no
local, solicitando providências no sentido da restauração das con-
dições ecológicas adequadas à reprodução social das comunidades.
Um inquérito foi instaurado e uma controvérsia emergiu. O perito
judicial considerou que as queixas levantadas pelas comunidades
locais não seriam de responsabilidade ou competência da empresa
162 Raquel Oliveira
tinhonha realmente sofreram alterações de qualidade no período de
enchimento da represa, mas não há como estabelecer uma vincu-
lação entre os inconvenientes manifestados e a construção da usina
hidrelétrica” (BRASIL, 2013).
Enfim, a sentença do juiz evoca aquela mesma “ligação especí-
fica” mencionada pela promotora de saúde na reunião com os mora-
dores do bairro Camargos, em Belo Horizonte. Quando o drama
desses moradores se iniciou, eu estava envolvida na pesquisa e nas
atividades de extensão junto aos ribeirinhos do Jequitinhonha.
Transladando meu universo de investigação desse cenário rural para
a periferia urbana da capital, me deparei, contudo, com a estranha
sensação de que algo se repetia. Vivenciando a regulação ambiental
a partir da posição de pesquisadora e assessora, era possível obser-
var que a mesma lógica de causação político-científica e seu emara-
nhado semelhante de especialistas, laudos, hipóteses e probabilida-
des se faziam presentes. Nessa dinâmica, eram produzidos o esca-
moteamento da “geopolítica do risco” e o “silenciamento” daqueles
que buscam tornar visíveis os danos e o sofrimento que os levam aos
espaços institucionais de denúncia e defesa de seus direitos. Em con-
textos tão distintos, repetiam-se aquelas mesmas operações: inva-
lidação das narrativas locais, reafirmação da lógica de causalidade
assentada na verificação da qualidade físico-química do ambiente e
descarte do conhecimento das ciências sociais como algo incapaz de
prover o aporte técnico necessário ao entendimento dos casos.
O duplo engajamento
A diversificação gradativa da prática profissional antropológica no
contexto brasileiro revela suas múltiplas interfaces com os proces-
sos político-culturais envolvendo conflitos relativos aos direitos de
povos indígenas, tradicionais e/ou grupos afetados por projetos de
desenvolvimento. Nesse sentido, importa discutir as diferentes for-
mas de engajamento e a responsabilidade social do profissional impli-
cada em tais processos, nos quais a prática etnográfica é enredada no
tecido das relações que se travam em campos políticos e econômicos
colocados sob disputa. O objetivo deste ensaio é compartilhar relatos
para discutir alguns limites e algumas potencialidades da inserção
164 Raquel Oliveira
Desafios em três atos
No caso da barragem de Murta,6 o licenciamento da usina teve início
em 1998, quando o consórcio empreendedor deu início às “campa-
nhas de negociação”, reconhecendo como interlocutores legítimos
somente as comissões que haviam sido criadas por decreto pelas
administrações municipais. Com essa política, o consórcio evitava
deliberadamente o contato direto com os moradores das áreas rurais
afetadas pelo empreendimento. Em 2001, um grupo organizado des-
ses moradores contatou o Gesta a fim de solicitar auxílio na com-
preensão do próprio processo de licenciamento, bem como para
leitura e análise dos estudos de impacto ambiental. Nesse período,
a mobilização recrudesceu e culminou na criação de uma comissão
autônoma, que passou a ser chamada de Comissão de Atingidos pela
Barragem de Murta, em franca oposição às comissões municipais.
Dessa forma, a partir da organização própria, as famílias iniciavam
esforços para serem reconhecidas como agentes políticos com o sta-
tus de mobilização coletiva, em contraste às estratégias do setor elé-
trico, que caracterizava essa iniciativa como insatisfações pontuais,
reações isoladas e fragmentadas.
Nesse cenário, a assessoria emergia como possibilidade de sub-
verter a correlação de forças presente no campo, acrescendo às
mobilizações locais capital técnico e político. Impõe-se aí o desafio
da promoção de “políticas de articulação” (HARAWAY, 1999) em
uma atuação “coadjuvante” (OLIVEIRA, 2005; OLIVEIRA, 2012b). A
partir das demandas colocadas ao Gesta pela nova Comissão de Atin-
gidos, foi iniciada uma produção colaborativa cujos objetivos eram o
levantamento de informações sobre o modo de vida dessas comuni-
dades, visando à construção de dados que possibilitassem uma revi-
são crítica dos diagnósticos apresentados pelo empreendedor, além
da realização de reuniões junto às famílias e lideranças, difundindo
informações sobre as instâncias e os procedimentos constitutivos do
licenciamento e enfatizando as perspectivas de participação.
Ao longo de mais de 10 anos, essa atuação produziu resultados
positivos, destacando-se a emissão de um parecer técnico reco-
166 Raquel Oliveira
ciamento sequer figuravam como potenciais atingidos, modificaram
consideravelmente a vazão e a qualidade da água do rio Jequitinho-
nha. Diante de tais problemas, a atuação do Gesta foi novamente
solicitada para a produção de um relatório que pudesse fundamen-
tar uma denúncia apresentada ao Ministério Público Federal acerca
dos efeitos da implantação de Irapé sobre as comunidades ribeiri-
nhas situadas a jusante do barramento. Nessa ocasião, contamos
com a participação de técnicos que realizaram a coleta de amostras
da água em diferentes pontos do rio e as submeteram à análise de
um laboratório independente. Entretanto, no âmbito do inquérito
instaurado, o perito judicial considerou que “[…] o documento do
Gesta caracteriza-se pela ausência de abordagem mais aprofundada
sob o ponto de vista científico”. Conforme já relatei, as conclusões do
perito assinalavam a negação dos danos, a não responsabilidade do
empreendedor e a inscrição do uso da água em um registro mercantil
no qual o usuário é consumidor de um serviço, responsável, ele pró-
prio, por uma captação “inadequada” da água (ZHOURI, OLIVEIRA
e LASCHEFSKI, 2011).
Diante das contestações, o Gesta realizou novo trabalho de
campo e produziu outro relatório em que concluía que a perda das
vazantes e da faiscação constituía um dano grave, pois desestrutu-
rava a organização produtiva do sítio camponês. No entanto, o juiz
designado para o caso terminou por acatar a avaliação do perito e
concluiu que “[…] o que se observa é que o Relatório confeccionado
pelo Gesta possui cunho muito mais sociológico e antropológico, do
que técnico” e que “a lide está adstrita ao problema da qualidade da
água e não da resolução de problemas de cunho sociológico e antro-
pológico”.
Posicionamento semelhante encontramos quando da atuação na
assessoria aos moradores do bairro Camargos. Instados pelas Pro-
motorias de Saúde e Ambiental a demonstrar o inatingível nexo cau-
sal entre as emissões do incinerador e os casos de câncer que se mul-
tiplicavam, os moradores enfrentaram um longo percurso de luta na
busca pela exposição do dano que lhes fora provocado. Como relatei
inicialmente, acompanhando-os a uma reunião junto ao Ministério
Público Estadual para apresentação das denúncias, pude assistir à
reação da promotora, que nos questionou diretamente: “Como ire-
168 Raquel Oliveira
dinâmicas de monopolização tecnocrática baseada em uma lógica da
prova muito restrita nesses debates sobre os riscos.
Na contramão dessas avaliações, argumento que o conhecimento
antropológico tem uma ampla contribuição nos debates dedicados à
gestão dos riscos, afinal, a leitura do social realizada de modo his-
tórico, contextualizado e imerso nas experiências locais é capaz de
evidenciar as dinâmicas de poder envoltas na produção sistemática
desses conflitos e em sua “geopolítica do risco” (OLIVEIRA, 2014). No
caso do Camargos, por exemplo, o descarte do saber antropológico/
sociológico permitia esvaziar a inscrição histórica desses processos,
ignorando os fatores estruturais que conformam o cotidiano dos
moradores afetados, em particular os efeitos tóxicos de seu regime
de trabalho, da localização de sua moradia no espaço urbano, suas
restrições de acesso aos serviços de saúde, além de outros elementos
institucionais que reproduzem no campo da regulação ambiental os
riscos estratificados. Obscurece-se que a vulnerabilidade decorre de
iniquidades sociais historicamente forjadas e é agravada por proces-
sos sociais, econômicos e políticos relativos, inclusive, às formas de
tratamento institucional que são dispensadas aos segmentos afeta-
dos.
Levados a esse terreno de gestão de ambientes e corpos e suas
formas de “cidadania biológica” (PETRYNA, 2002), os moradores
são enredados em um processo doloroso de exposição e objetificação
de seu sofrimento. Nesse processo, conforme ilustra a intervenção
de Dalva durante a reunião na Promotoria de Saúde, é preciso exibir,
performar e traduzir as perdas enfrentadas em um idioma técnico
de “evidenciação” ao qual, no entanto, as narrativas dos morado-
res não podem aderir. Desse modo, os depoimentos dos moradores
e seus esforços de elucidação do conflito são capturados e transfi-
gurados em “artefatos verbais” (DAS, 2000). A culpabilidade, a res-
ponsabilização e o dano que os atingidos enfatizam desaparecem
porque assumidos nos espaços institucionais como estatisticamente
insignificantes e cientificamente controversos. Assim, submetidos a
um processo de contestação e esvaziamento de suas narrativas, os
moradores mobilizados experimentam um quadro perverso em que
o corpo sente e sabe, mas não pode provar.
170 Raquel Oliveira
empreendedor-atingidos, reduzindo, com efeito, as vias de ação,
escolhas e possibilidades colocadas às mobilizações contestadoras.
Tais investimentos têm os seguintes objetivos: (a) costurar alian-
ças, sobretudo junto aos agentes públicos e “atores estratégicos”,9
visando à constituição de uma poderosa rede de influência dedicada
a garantir a viabilização do empreendimento; (b) fomentar expec-
tativas e mesmo a “vontade de progresso” (FERGUSON, 1999; LI,
2007), crescimento e geração de emprego junto à população, produ-
zindo a ambiguidade dessas situações em que os atingidos são tam-
bém mão de obra (mesmo sob condições precárias e temporárias)
para os projetos; (c) identificar pontos de tensão e possíveis conflitos
emergentes (BRONZ, 2011), administrando-os com o auxílio de ato-
res locais e experts, entre os quais se destacam lideranças e peri-
tos dedicados à pacificação e à desmobilização dos antagonismos, o
que inclui o trabalho de advogados, assistentes sociais, psicólogos e
cientistas sociais.
O recurso a essas estratégias é bastante evidente no caso do pro-
jeto Manabi,10 no qual, antes do início e da formalização do licen-
ciamento, a empresa começou a negociar individualmente com os
proprietários, estabeleceu escritórios regionais e firmou convênios
com oferta de compensações às prefeituras. No município de Morro
de Pilar, onde está prevista a abertura de duas cavas, o empreen-
dedor contratou, três anos antes do início do licenciamento, uma
equipe especializada em reassentamentos, ironicamente designada
“Renascer”. Com escritório local, a Renascer conta com atuação de
9 “Atores estratégicos” são aqueles que podem contribuir para viabilizar a obten-
ção das licenças, seja por sua localização e pertencimento nos “quadros de poder
das políticas de gestão ambiental e territorial da região escolhida” (BRONZ, 2011, p.
228), seja porque têm algum potencial de influência e formação de opinião, como
acadêmicos e organizações com acesso às mídias.
10 O empreendimento Manabi consiste em um grande projeto minerário com-
posto por duas cavas de extração de minério de ferro a céu aberto no município de
Morro do Pilar, MG, um mineroduto de mais de 500 quilômetros de extensão para
o transporte da polpa e um porto destinado ao armazenamento e à exportação do
material, cuja instalação é prevista na localidade de Degredo, litoral norte do Espí-
rito Santo. O licenciamento é conduzido nas esferas estadual e federal; na primeira,
em novembro de 2014, o empreendimento recebeu sua licença prévia relativa às
estruturas associadas às cavas.
172 Raquel Oliveira
sociocultural” (ANTONELLI, 2009) gestadas e operacionalizadas
no campo da “responsabilidade social empresarial” e da “minera-
ção sustentável” (KIRSCH, 2010). Entendidas como mecanismos de
modulação moral e política da conduta, essas técnicas se destinam
a “provocar a participação e conter o desafio político” (LI, 2007, p.
193) em um horizonte no qual as palavras de ordem são “diálogo
social”, “parceria” e “oportunidades”. Para Bronz (2011), esse léxico
é característico do campo empresarial envolvido no licenciamento
de projetos de larga escala e engajado na produção da viabilidade
institucional dos empreendimentos.
No município de Morro do Pilar, o apoio da prefeitura ao
empreendimento é declarado em faixas e também na atuação de
funcionários dedicados a “acompanhar” nossas visitas às comu-
nidades. Sob clima de intensa vigilância e hostilidade para com as
ações de extensão da universidade, a interlocução dos antropólogos
com os moradores atingidos foi dificultada mesmo nas situações em
que fomos acompanhados oficialmente por representantes da Fun-
dação Cultural Palmares e do Ministério Público Federal. A hostiliza-
ção às atividades de assessoria em Morro do Pilar por funcionários e
representantes da administração municipal culminou em ameaças,
provocações e tentativas de deslegitimação do trabalho de pesquisa-
-assessoria durante reuniões públicas, chegando à efetiva agressão
física a uma antropóloga que se pronunciava durante a deliberação
sobre a concessão da licença prévia ao empreendimento.
No caso de Manabi, a temporalidade do empreendimento, que é
colocada em curso antes mesmo da formalização do licenciamento,
constitui um grande problema para a assessoria, que frequente-
mente entra em cena a partir da demanda dos grupos, quando as
dinâmicas que relatamos já se encontram em andamento, produ-
zindo efeitos cerceadores sobre os potenciais de mobilização. Nesse
processo, conforme destaca Stuart Kirsch (2014), o desafio está em
identificar novas ferramentas associadas a uma “política do tempo”,
acompanhando o ritmo das ações corporativas, já que a viabilização
institucional dos projetos constrói barreiras firmemente estabeleci-
das para a crítica. Nesse estágio, a proliferação de “fatos consuma-
dos” representa um enorme obstáculo às mobilizações, cujo hori-
Considerações finais
A partir do engajamento em três experiências de pesquisa-extensão
conduzidas pelo Gesta-UFMG, este ensaio procurou levantar e dis-
cutir algumas potencialidades e desafios colocados à atuação pro-
174 Raquel Oliveira
fissional do antropólogo na esfera pública em seu duplo papel de
pesquisador e assessor. Cada um dos casos examinados apresenta
condições singulares de exercício da prática antropológica engajada
e colaborativa, e meu intuito foi tomá-los como vivências ilustrati-
vas de certos constrangimentos e possibilidades colocadas ao nosso
desempenho profissional. Nas situações debatidas, os percalços e
desafios derivam da inserção do pesquisador-assessor no campo
ambiental, espaço estruturado de posições cujos constrangimentos
e constitutivas relações de força são conformadores da produção e
manejo do conhecimento antropológico em contextos de conflito.
Conforme discuti, nas disputas que se desenrolam no interior
desse campo, a regulação ambiental, que promove a distribuição dos
danos, custos e responsabilidades, frequentemente arrasta o debate
para um terreno em que a contribuição do antropólogo-assessor é
vista como meramente acessória. De outra parte, respondendo tati-
camente aos processos correntes no campo ambiental, observamos
a emergência de práticas corporativas destinadas a conter e gerir a
crítica social aos seus projetos. Antecipando-se e contendo os con-
flitos, essas estratégias impõem novas dificuldades e desafios não
só ao trabalho do pesquisador-assessor, mas também às iniciativas
locais de mobilização e resistência.
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179
IHGMS não reconhecer a existência de comunidades remanescentes
de quilombo no atual Mato Grosso do Sul.
Não obstante haver normas legais que legitimam o autorreco-
nhecimento das comunidades quilombolas, ou seja, que asseguram
a identidade quilombola,4 este paper é um exercício para pensar as
dimensões simbólicas do “reconhecimento” a partir da apresenta-
ção, de modo sucinto, da luta social pelo reconhecimento das comu-
nidades quilombolas de Mato Grosso do Sul. Para tanto, emprego
a noção de reconhecimento no sentido trabalhado por Honneth
(2003). De acordo com a “teoria crítica do reconhecimento” desse
autor, as interações ocorridas no campo social têm como base o con-
flito e o reconhecimento intersubjetivo da identidade, que parte da
negociação com o outro, e é o elemento fundamental na gramática
moral dos conflitos, pois essa gramática é revelada nas disputas pelo
reconhecimento recíproco da identidade. Quando o reconhecimento
não ocorre, surge o sentimento de desrespeito (HONNETH, 2003).
Nesse sentido, o não reconhecimento das comunidades quilom-
bolas sul-mato-grossenses por parte do IHGMS gerou um senti-
mento de desrespeito nos quilombolas, fato que motivou os movi-
mentos quilombola e negro daquele estado a se mobilizarem politi-
camente contra esse ato.
Campos conflitivos
A partir do ano de 2003, após a publicação do Decreto nº 4.887/2003,5
ocorreram, em muitos estados, várias manifestações de pessoas,
grupos, empresas, entidades sindicais e partidos políticos contrá-
rios aos direitos territoriais das comunidades negras rurais e urba-
nas quilombolas. Como exemplo, cito o Partido da Frente Liberal,
atual Democratas, que, em 2004, impetrou ação direta de inconsti-
tucionalidade contra o decreto; o Projeto de Decreto Legislativo nº
44/2007, que propõe a suspensão da aplicação do decreto; o Projeto
180 Raquel Oliveira
de Lei nº 3.654/2008, que pretende modificar o artigo nº 68 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias; as tensões entre o Ins-
tituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renová-
veis (Ibama) e as comunidades negras quilombolas do Erepecuru-
-Cuminá (O’DWYER, 2002a); as ações judiciais da empresa Aracruz
Celulose contra comunidades quilombolas no norte do Espírito
Santo; as tensões entre a Marinha e a comunidade quilombola da ilha
da Marambaia (MOTA, 2003); e os conflitos entre a Aeronáutica e a
comunidade quilombola de Alcântara.
No estado do Mato Grosso do Sul, as manifestações e os conflitos
datam do ano de 2007, quando o Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (Incra) iniciou a regularização fundiária de áreas
reivindicadas pelas comunidades quilombolas. Os conflitos envol-
viam dois polos antagônicos: de um lado, as comunidades quilom-
bolas; do outro, governo do estado, Sindicato Rural de Dourados,
Prefeitura Municipal de Nioaque, Prefeitura Municipal de Doura-
dos, Prefeitura Municipal de Sonora, grandes proprietários de ter-
ras, a Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul
(Famasul)6 e o IHGMS.
Os conflitos e as manifestações ganharam força principalmente
quando a Famasul fomentou, por meio de consulta, um posiciona-
mento do IHGMS sobre a existência ou não de quilombos em Mato
Grosso do Sul. Logo após a consulta, o IHGMS emitiu o denominado
Parecer Quilombolas, no qual afirma não reconhecer a presença de
núcleos quilombolas remanescentes em terras sul-mato-grossenses.
Parecer sobre a existência de quilombolas em Mato Grosso do
Sul. Os associados efetivos do Instituto Histórico e Geográfico de
Mato Grosso do Sul, em reunião, no dia 10 de setembro de 2008, após
analisar o relatório oral do associado Paulo Eduardo Cabral sobre a
existência, ou não, de quilombolas em Mato Grosso do Sul, aprova-
ram, por unanimidade, o seguinte:
Parecer sobre quilombolas em Mato Grosso do Sul
Os associados efetivos do Instituto Histórico e Geográfico de
Mato Grosso do Sul, Considerando que o sul de Mato Grosso despon-
7
Fonte: http://www.ihg/ms.com.br. Acesso em: 16 nov. 2008.
182 Raquel Oliveira
É necessário que nos libertemos da definição arqueológica, da
definição histórica stricto sensu e das outras definições que estão
frigorificadas e funcionam como uma camisa de força, ou seja, da
definição jurídica dos períodos colonial e imperial e até daquela
que a legislação republicana não produziu, por achar que tinha
encerrado o problema com a abolição da escravatura.
184 Raquel Oliveira
ridos os quilombolas sul-mato-grossenses. Destaca Bourdieu (1971,
1975) que o campo social representa um espaço social de domina-
ção e de conflitos. Cada campo tem certa autonomia e suas pró-
prias regras de organização e de hierarquia social. No interior desse
campo, o que existe é a luta constante entre os atores sociais para
a ocupação dos espaços, pois como percebe o autor, para que um
campo funcione, “é preciso que haja objetos de disputas e pessoas
prontas para disputar o jogo, dotadas de habitus que impliquem no
conhecimento e reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos
objetos de disputas” (BOURDIEU, 1983, p. 89).
É justamente no interior do campo social que ocorre a negação
da existência do outro. Negando a existência do quilombo, nega-se
a existência do “ser” quilombola e, consequentemente, seu direito
à terra – objeto de disputa. Ao ser negada a existência do “ser” qui-
lombola, tem início o prélio destes pelo seu reconhecimento.
Em resposta ao Parecer Quilombolas, assim como aos atos de
desrespeito tanto da Famasul quanto de órgãos públicos estaduais,
o Fórum Permanente das Entidades do Movimento Negro do Mato
Grosso do Sul8 encaminhou ao governador do estado um docu-
mento que, além de contestar as afirmações do parecer, destacava a
diferença entre quilombo histórico – que pauta tal parecer – e rema-
nescentes das comunidades dos quilombos – de que trata o Decreto
nº 4.887/2003. Vale a pena destacar que nem a mídia nem nenhuma
instituição, governamental ou não, divulgou o documento do Movi-
mento Negro.
186 Raquel Oliveira
ras quilombolas. Nos discursos realizados, os índios e os negros foram
colocados como obstáculos para o progresso de Mato Grosso do Sul.
Suas terras não poderiam ser regularizadas se estivessem localizadas
em áreas tituladas para particulares. Como observado nas matérias,
as terras tituladas eram as terras produtivas. As improdutivas, por
sua vez, poderiam ser tituladas para índios e negros, tidos como não
integrantes do “setor produtivo”. Nesse sentido, o “setor produtivo”
agrega as atividades diretamente ligadas ao agronegócio exportador,
enquanto o “não produtivo” está relacionado à pequena agricultura.
Outro discurso bem revelador foi feito no dia 14 de agosto de 2010
pelo ex-prefeito do município de Dourados ao diferenciar sua admi-
nistração na Prefeitura das anteriores: “Nós estamos fazendo serviço
de gente branca. Estamos fazendo serviço de gente”.10
Esses discursos procuram legitimar e colocar os negros numa
posição social subalterna, além, é claro, de sutilmente deslocar o
foco de discussão para desqualificar as reivindicações das comuni-
dades quilombolas. Ademais, a tentativa de qualificar a “classe de
produtores rurais” como “trabalhadores” e os grupos quilombolas
como “não produtores”, ou seja, não trabalhadores, é uma argúcia
para desvirtuar a realidade. Esse fato indica a presença de indisfar-
çáveis diferenças sociais e modelos explicativos urdidos a partir da
ótica de interesses econômicos e de estratégias políticas.
Ao introduzir no discurso estigmas negativos a respeito dos
quilombolas, reforça-se a dominação e exploração que esse grupo
sofre no âmbito da sociedade, desenhada por práticas ideológicas
da classe dominante, sem desestabilizar a estratégia legitimadora. A
base ideológica pela qual se atribui aos quilombolas estigmas nega-
tivos é formada a partir de descontinuidades ou oposições repou-
sadas num eixo moral. Em nome da “civilização”, do “progresso” e
do “trabalho”, os quilombolas e índios são inseridos numa posição
subalterna e excluídos da cidadania. Já no discurso do ex-prefeito de
Dourados, os negros não estão nem inseridos na categoria “gente”,
ou seja, de ser humano.
O interesse e o reconhecimento
O IHGMS, ao tentar desconstruir a existência das atuais comuni-
dades quilombolas e não reconhecê-las, criou uma prática ideoló-
gica que foi utilizada no campo político com o intuito de manter o
status quo das relações sociais no Mato Grosso do Sul. Essa prática
funciona produzindo um discurso cujo resultado último é a não
modificação da estrutura social vigente. O ingresso do IHGMS no
embate, fato inédito nos conflitos que envolvem comunidades qui-
lombolas no Brasil, traz também um ponto passível de discussão:
o “interesse”. Bourdieu (1996, p. 138) há muito se perguntava: “é
possível um ato desinteressado?”. Partindo dessa pergunta, e uti-
lizando do “princípio da razão suficiente”, um postulado da teo-
ria do conhecimento sociológico, Bourdieu (1996, p. 138) afirma
que:
188 Raquel Oliveira
minações históricas. Além disso, escreve para um público que lhe
imprime uma legitimação paralela.
O Mato Grosso do Sul, após seu desmembramento do Mato
Grosso em 1977, necessitava de uma história oficial capaz de sele-
cionar elementos do passado que alimentassem uma identidade
própria. Todos os elementos da memória estavam atrelados ao Mato
Grosso, por isso era necessário pincelar o passado para buscar ele-
mentos constitutivos de uma identidade sul-mato-grossense. Nesse
sentido, em 1978, foi criado o IHGMS, que tem o objetivo de “incen-
tivar e divulgar a história de Mato Grosso do Sul e de contribuir com
a construção, preservação e difusão da cultura desse estado”, con-
forme reza seu estatuto.11
A lógica de construção de identidade foi foco também do Insti-
tuto Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB), fundado em 1838 com a
missão de construir as bases da identidade política, social e territo-
rial do Império. Conforme afirma Pereira (2005, p. 113):
190 Raquel Oliveira
Parecer Quilombolas de que no Mato Grosso do Sul “nunca existiu
quilombo” e “quase não houve escravidão”.
A despeito de uma literatura histórica sobre a escravidão em
terras sul-mato-grossenses que é contrária às afirmações do Pare-
cer Quilombolas, o jornal O Progresso de 29 de dezembro de 2008
chegou a asseverar que “a própria região onde hoje está localizado
o Mato Grosso do Sul nunca chegou a explorar a escravidão”. Nessa
busca por uma história diferenciada do Mato Grosso, “tradições” são
inventadas (HOBSBAWM e RANGER, 2008). O quilombo e o negro,
que representam o antigo Mato Grosso, são invisibilizados e até
mesmo negados. Nesse sentido, Hobsbawm e Ranger (2008, p. 21)
afirmam que “toda tradição inventada, na medida do possível, uti-
liza a história como legitimadora das ações e como cimento da coe-
são grupal. Muitas vezes, ela se torna o próprio símbolo de conflito”.
Partindo do princípio de que cada campo social constrói seus
interesses – que pode até ser um interesse simbólico – como “capi-
tal simbólico”, o qual tem base cognitiva apoiada no conhecimento
e no reconhecimento (BOURDIEU, 1996), aponto brevemente algu-
mas perspectivas teóricas sobre “reconhecimento”, uma das pau-
tas do Parecer Quilombolas do IHGMS. Não me prolongarei nessas
perspectivas porque o espaço é curto para tal empreendimento, mas
lanço novas possibilidades de entendimento do “reconhecimento”
já trabalhadas por alguns antropólogos para uma melhor compreen-
são das discussões acerca dos conflitos sociais.
Ao trabalhar com a teoria de Charles Taylor sobre a política do
reconhecimento, Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2005b) define a
desconsideração ou os atos de desconsideração como o reverso do
reconhecimento. A desconsideração marca, para o autor, um insulto
moral que se apresenta quando a identidade do interlocutor, por
vezes de maneira incisiva, não é reconhecida. Segundo Cardoso de
Oliveira (2005a, p. 5),
192 Raquel Oliveira
Diferentemente de Lévinas, Honneth (2003) realiza uma relei-
tura do reconhecimento pautada na junção de Hegel e George Her-
bert Mead. Segundo Honneth (2003, p. 156):
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Este texto tem sua origem em uma comunicação oral preparada para o
Seminário ABA+60 e teve seus argumentos estruturados em função do
título da sessão onde tal comunicação foi apresentada: “Terra, territó-
rio, direitos e mercados. Movimentos sociais e modelos de desenvol-
vimento em transformação”. Estimulado pelo que me pareceu haver
de instigante nesse título, busquei balizar minha discussão por ele,
tanto na comunicação oral quanto neste texto escrito. Mas antes de
tomar tal balizamento por uma fidelidade estrita a esse título, encon-
tro neste último um ponto de partida (e, portanto, um ponto do qual
se “parte”) – por exemplo, via um rearranjo das categorias aí apre-
sentadas ou pelo exame das relações e tensões existentes entre elas.
Através dessas recombinações, chego, assim, ao meu objetivo neste
texto: elaborar algumas hipóteses a respeito de como certas concep-
ções acadêmicas e políticas a respeito dos “movimentos sociais” e dos
“modelos de desenvolvimento” podem ser apreendidas pelas “trans-
formações” que relacionam a “terra” e o “território”.
Inicialmente, interessa-me chamar atenção para o que pode
haver de relevante nesse convite para que pensemos os “movimen-
tos sociais” e os “modelos de desenvolvimento” em transformação.
Naturalmente, sabemos que tal perspectiva, privilegiando as trans-
formações, surge não apenas de dinâmicas objetivas ou reais, mas
também da perspectiva que adotamos, enfatizando, por exemplo, a
“descontinuidade na mudança como o ‘momento’ privilegiado da
nossa experiência e da nossa cognição reflexiva sobre ela” (PINA
CABRAL, 2007, p. 95). Em outras oportunidades (GUEDES, 2013,
2014, 2015), argumentei que é justamente pelo recurso a esse privi-
légio à descontinuidade que se organizam – com certeza para o caso
brasileiro, mas certamente não apenas nele – os principais deba-
197
tes contemporâneos a respeito dos efeitos nefastos decorrentes do
“desenvolvimento”.
Dito isso, seria legítimo e viável discutir esses movimentos
sociais e modelos de desenvolvimento de maneira inversa, ressal-
tando, então, as continuidades e permanências. Poderíamos assi-
nalar, assim, via outro exemplo, como o “neodesenvolvimentismo”
dos últimos anos pode se articular em relativa harmonia com os pla-
nos nacionais de desenvolvimento da ditadura militar. Ao evocar
essa possibilidade analítica alternativa, ressaltando que as transfor-
mações em questão nessa discussão incidem também sobre nossas
perspectivas, quero chamar atenção para a necessidade de consi-
derarmos igualmente as transformações (e/ou continuidades) refe-
rentes aos modelos e teorias de que nos servimos para pensar essas
mudanças nesses movimentos sociais e nos modelos de desenvol-
vimento. Nesse sentido, ao subtítulo da sessão para a qual foi pro-
duzido este texto – “Movimentos sociais e modelos de desenvolvi-
mento em transformação” –, acrescentamos esses elementos que, a
nosso ver, podem (e devem) ser pensados também em suas “trans-
formações”: as perspectivas acadêmicas e analíticas utilizadas para
dar conta desses movimentos sociais e modelos de desenvolvimento
(e de suas transformações).
É nesse primeiro sentido que oponho e relaciono a terra e o ter-
ritório aqui: antes de qualquer coisa, tais termos evocam metoni-
micamente distintas dessas perspectivas acadêmicas e analíticas.
Argumento, além disso, que a segunda vem gradativamente ocu-
pando uma centralidade intelectual e política anteriormente perten-
cente à primeira no contexto configurado pelas críticas direcionadas
ao desenvolvimento. Tais perspectivas e críticas são encaradas num
sentido amplo: tenho em mente, assim, as discussões a respeito do
“desenvolvimento do capitalismo no campo”; os debates relativos
à construção de usinas hidrelétricas, da produção de gás e petróleo
ou das grandes obras de infraestrutura (rodovias, ferrovias, portos,
aeroportos); e também os trabalhos acerca dos empreendimentos
voltados à produção de commodities agrícolas (soja, cana, celulose,
gado) e minerais para exportação. Essas iniciativas me interessam,
neste texto, na medida em que, via tais críticas, elas são representa-
das e debatidas sob a ótica de seus efeitos nocivos sobre grupos cam-
198 André Dumans Guedes
poneses, quilombolas, povos indígenas ou comunidades tradicio-
nais. Meu esforço aqui deve ser caracterizado, assim, à luz daquela
sociologia “da” crítica evocada por Boltanski e Chiapello (2009).
Sob a metonímia da terra, unifico os estudos das ciências sociais
sobre a “agricultura”, o “rural”, os “processos sociais agrários” e
as “sociedades camponesas”. Nisso estou seguindo o argumento de
Mauro Almeida (2007), autor que, ele próprio, evoca uma diver-
sidade de nomeações possíveis para seu objeto (“narrativas agrá-
rias”, “paradigma agrário-camponês”, “programa de pesquisa de
camponeses”, “programa de pesquisa do rural”). O território não
designa um conjunto tão claro ou “totalizante” (ALMEIDA, 2007, p.
170) quanto a terra e as dificuldades relativas a sua definição serão
consideradas com mais vagar no próximo item. Tendo em vista as
limitações de espaço e as dificuldades na apresentação de um argu-
mento ainda se esboçando, exagero deliberadamente nas diferenças
existentes entre a terra e o território, traçando aqui, com contornos
nítidos, distinções que, na maior parte das situações concretas, pro-
vavelmente não se apresentam de forma tão evidente.
Mas não basta, nem me parece razoável, conceber tais catego-
rias como referidas exclusivamente a conceitos acadêmicos. Assim,
os universos e contextos aqui considerados serão trabalhados via
movimento analítico em que a terra e o território aparecem – ora
alternada, ora simultaneamente – também como modalidades de
reivindicação associadas a diferentes segmentos, lutas e movimen-
tos sociais. Busco, assim, ressaltar as imbricações, no conjunto de
todas essas transformações, das formas de organização e construção
de sujeitos coletivos e dos modelos analíticos e teóricos privilegiados
pelas ciências sociais. Pretendo, dessa forma, levar em consideração
a importância do que Bourdieu (1989) chamou de “efeito de teoria”,
ou seja, o papel desempenhado pelas descrições científicas na pró-
pria constituição das realidades observadas. Como sugere Romano
(1989, p. 3), tal processo é particularmente relevante no que se refere
à constituição e mobilização de sujeitos coletivos no universo rural
brasileiro, onde “a incorporação ou exclusão das lutas nos discursos,
assim como sua caracterização enquanto tal, seria produto não tanto
da [sua] existência ou ausência […], nem da vontade de seus atores,
mas antes do seu enquadramento nos esquemas de lutas pensáveis”
200 André Dumans Guedes
rial rural”. 4) Temos ainda o território associado a uma instituição
ou ao produto de uma luta política ou ao objeto de uma reivindi-
cação perante o Estado. É esse o sentido que está em jogo quando
falamos, por exemplo, nos pleitos deste ou daquele povo ou comu-
nidade diante do Incra ou da Funai para a demarcação de tal ou qual
território. 5) Por fim, e de modo ainda mais próximo ao assunto tra-
tado aqui, argumento que o território vem se tornando cada vez mais
um conceito ou termo adequado para que certos cientistas sociais
possam evocar ou descrever um modo de vida particular – sobre-
tudo quando o que está em jogo são povos, grupos ou comunidades
ameaçados ou afetados por frentes ou projetos de desenvolvimento.
Tenho em mente perspectivas que focam e privilegiam a “espaciali-
zação” (e não qualquer espacialização, mas uma ancorada em cer-
tos modelos e pressupostos) desses modos de vida, como se o que
houvesse de mais relevante ou essencial neles fosse justamente sua
“dimensão territorial”.
Para além dessa polissemia, destaco igualmente a importância
assumida pela forma como alguns desses sentidos vêm se imbri-
cando e (con)fundindo. E ao me referir a essa “confusão”, deixo claro
desde já que não estou falando de algo como um erro ou equívoco a
ser corrigido. Meu objetivo, pelo contrário, é argumentar que parte
da popularidade recente da noção se deve a esses deslizamentos de
sentidos nos quais alguns desses diferentes significados se confun-
dem: por exemplo, quando a ideia de território enquanto “expressão
espacial de um modo de vida” se (con)funde com a ideia de território
enquanto “reivindicação” ou “instituição”.
Outra possibilidade de considerar a questão desses múltiplos,
cambiantes e imbricados sentidos do termo território consiste no
exame de como, em certa literatura acadêmica, ele é contraposto e
relacionado à noção de terra.2
Comecemos por Offen (2003, p. 47), que enfatiza o fato de que
as reivindicações por território, ao contrário das reivindicações
por terra, colocam em xeque certas “regras e regulações” relativas
2 Para uma análise dessa mesma distinção em um contexto político muito mais
que acadêmico, a propósito das relações concretas relacionando e separando movi-
mentos sociais camponeses e movimentos de povos e comunidades tradicionais no
norte de Minas Gerais, ver Guedes (2014).
202 André Dumans Guedes
É bastante diferente [o processo de territorialização das
comunidades tradicionais com relação às demandas] dos assentados
pelo Incra e dos posseiros stricto sensu, bem como dos que foram
expulsos de suas terras e utilizam a ocupação como recuperação de
territórios usurpados. No caso das comunidades tradicionais, elas já
estão ocupando efetivamente as terras e têm uma resposta pronta e
imediata aos interesses do agronegócio.
Num outro momento, o mesmo autor (BERNO DE ALMEIDA,
2008) ressalta que a necessidade de contrapor a “terra” ao “territó-
rio” se justifica pela necessidade de explicitar a inadequação da pri-
meira, enquanto categoria censitária e legal (das agências do Estado,
portanto), diante das práticas espaciais de certos grupos.
Os grupos que se objetivam em movimentos sociais se estrutu-
ram também para além de categorias censitárias oficiais. Importa
distinguir a noção de terra daquela de território e assinalar que as
categorias imóvel rural usada pelo Incra, e estabelecimento, acionada
pelo IBGE, já não bastam para se compreender a estrutura agrária na
Amazônia. Os critérios de propriedade e posse não servem exata-
mente de medida para configurar os territórios ora em consolidação
na Amazônia, haja vista que no caso do ‘babaçu livre’ os recursos
são tomados abertos e em uso comum, embora registrados como de
propriedades de terceiros (BERNO DE ALMEIDA, 2008, p. 26).
Os aparatos de Estado, ao lidarem com as comunidades tradicio-
nais, pensam na terra, enquanto as comunidades estão pensando em
território. As dimensões não coincidem e a ação fundiária, pensada
tão somente como regularização de imóveis, pode causar danos irre-
paráveis aos povos tradicionais ao estabelecerem uma limitação para
sua reprodução cultural. No entanto, agora o que nos parece fun-
damental é agilizar uma política de reconhecimento com a demar-
cação de terras indígenas, de terras de quilombos etc. (BERNO DE
ALMEIDA, 2008, p. 41).
A oposição em questão pode também servir para o argumento de
que o “território” remete a uma realidade mais ampla e complexa do
que aquela recoberta pelo termo “terra”, esta se vinculando, assim,
a apenas um dos aspectos daquele. Sauer e Almeida (2011, p. 418)
afirmam que “é necessário problematizar a distinção entre as noções
de terra e território. Se a segunda é entendida como lugar de vida
While most of the chapters in this book tend to treat land the way
that farmers often see it – as a productive resource – indigenous
peoples tend to see land as part of something greater, called ter-
ritory. Territory includes the productive function of land but
also encompasses the concepts of homeland, culture, religion,
spiritual sites, ancestors, the natural environment, and other
resources like water, forests, and below ground minerals. Agra-
rian reform directed at nonindigenous farmers in many cases
may reasonably seek to redistribute “any and all” arable land
to the landless, irrespective of where the landless come from.
For example, the Landless Workers’ Movement (MST) of Brazil
demands and occupies land all over the country, and the mem-
bers of their land reform settlements sometimes come from sta-
tes far away from the land they occupy. In contrast, indigenous
peoples’ movements do not demand just any land but, rather,
what they consider to be their land and territories.
204 André Dumans Guedes
[…] seu regime de propriedade, os vínculos afetivos que mantém
com seu território específico, a história de sua ocupação guardada
na memória coletiva, o uso social que dá ao território e às formas
de defesa dele.
206 André Dumans Guedes
da “modernização da agricultura”, destacando que, na consideração
da “presença do Estado no campo”, faz-se necessário levar em conta
“políticas […] não necessariamente vinculadas à agricultura […], mas
que [para ela] resultaram em mudanças importantes”. A construção
de usinas hidrelétricas – provocando “o deslocamento forçado de
milhares de famílias, a desativação de toda uma gama de atividades
econômicas e alterações significativas na organização social das
populações atingidas” – é, assim, avaliada no mesmo movimento
que considera como outras “grandes obras públicas”, tais como
açudes e rodovias, “provocaram a valorização das terras próximas,
[somando-se] às políticas […] [que culminaram] no estímulo à
especulação fundiária”. De modo análogo, é também na chave das
“políticas agrárias” que Tavares dos Santos (1991, p. 16) situa os
“impactos sociais das barragens”, referindo-se implicitamente aos
trabalhos de Sigaud. Sem citar esses trabalhos, em outra obra bas-
tante conhecida, Medeiros (1989) classifica as lutas contra as barra-
gens na mesma direção desses autores: ora como exemplo das lutas
pela terra associadas à “reforma agrária” (p. 138, 142), ora como vin-
culadas à ação do Estado no meio rural (p. 159).
Não há nada de muito surpreendente aí, uma vez que a própria
autora sempre definiu como “camponeses” os grupos em questão
nas suas análises a respeito das barragens. Quero sugerir, assim,
como, nos anos 1980 e 1990, esses trabalhos puderam ser situa-
dos sem maiores problemas em rubricas já estabelecidas no âmbito
dessas preocupações associadas à terra. Eles se enquadravam como
exemplos particulares de fenômenos, problemas e processos mais
gerais – “a modernização da agricultura”, “a ação do Estado no meio
rural”, os “movimentos de luta pela terra” –, todos eles relativa-
mente estabilizados como objetos legítimos para os estudiosos do
“rural”, do “agrário” ou do “campesinato”.
Por outro lado, mais de duas décadas depois, uma releitura des-
ses trabalhos pode encaminhar a análise em outra direção – especial-
mente se tivermos em mente as vicissitudes do “desenvolvimento”
e das críticas a ele dirigidas ao longo desse período. Ou melhor: é
possível identificar nesses textos a presença de movimentos analí-
ticos que já sinalizam certos traços das análises críticas ao desen-
volvimento que somente anos mais tarde estariam “amadurecidas”
208 André Dumans Guedes
– mais uma vez, anacronicamente – como “tradicionais” no sentido
político assumido por tal categoria recentemente.
Por outro lado, poder-se-ia argumentar que não há, na apre-
sentação desses aspectos, nenhuma inovação ou ruptura radical com
outras descrições então existentes de sociedades “camponesas”. As
articulações entre múltiplos aspectos anteriormente mencionadas,
além disso, em muito se aproximam daquela análise das relações
entre diferentes domínios da vida social preconizada pelo holismo
estrutural-funcionalista, uma das referências teóricas fundantes da
antropologia social. Assim, e conforme o argumento a ser desenvol-
vido a seguir, o que realmente nos interessa é considerar as variações
nos aspectos enfatizados ou privilegiados pelos analistas – elemen-
tos já presentes de modo secundário nessa ou naquela pesquisa, pas-
sando, por vezes, ao primeiro plano em outras.
Em segundo lugar, o caso dos atingidos por barragens abre a
possibilidade de conceber e conceituar de formas diversas a natu-
reza dos conflitos e lutas políticas em questão. Vimos anteriormente
como tais embates foram classificados, pela própria Sigaud e outros
autores, como formas de “luta pela terra”. É óbvio que tal classifica-
ção é pertinente (ou foi; afinal de contas, é também a historicidade
dessas classificações que está em jogo nessas discussões).
Comparativamente, consideremos como já está, hoje, relativa-
mente naturalizada ou consolidada “outra” classificação de situa-
ções como essa – grupos “tradicionais” ou “camponeses” atingidos
ou ameaçados por usinas hidrelétricas – como exemplo de um “con-
flito socioambiental”. Nesse caso, estamos diante de embates envol-
vendo formas distintas de apropriação, uso e significado de certos
espaços e recursos (ACSELRAD, 2004); ou que vão “além de um foco
restrito nos embates políticos e econômicos para incorporar ele-
mentos cosmológicos, rituais, identitários e morais” (LITTLE, 2006,
p. 91). Não estamos diante, nesse caso, de conflitos relativos às rela-
ções de produção ou a classes que se confrontam na disputa por um
mesmo “recurso”, a terra. Projetos de desenvolvimento de amplo
porte interessaram a Sigaud – como nos interessam hoje – nem tanto
em função do que ocorria no seu “interior” (o canteiro de obras, os
espaços fabris, as grandes propriedades modernas), como poderia
sugerir o foco de um marxismo mais ortodoxo centrado na luta de
210 André Dumans Guedes
esses modos como são conceituados os conflitos e, consequente-
mente, para como se constroem as críticas ao desenvolvimento.
Tanto na chave dos conflitos socioambientais quanto pela valo-
rização dos elementos étnicos ou identitários dos grupos atingidos,
está em primeiro plano o reconhecimento de que, nesses conflitos,
há um desacordo que, na falta de melhores termos, chamaremos de
“simbólico” ou “cognitivo”. Estamos aí diante do choque entre dife-
rentes concepções, representações ou interpretações do espaço, do
meio ambiente, da natureza. Presenciamos, assim, o enfrentamento
de “esquemas culturais”, “lógicas” ou “racionalidades” diversos e
opostos uns aos outros. Tal dimensão simbólica ou cognitiva não se
fazia presente com tamanha importância quando se falava (ou se fala)
em “luta pela terra”, “resistência à expropriação” ou “moderniza-
ção da agricultura”. Se, antes, “a luta de classes” ofereceria o modelo
por excelência para pensar essas relações, agora, tal papel parece
ser prerrogativa do “encontro colonial”. Ao invés das escaramuças
cotidianas de trabalhadores e patrões já há tempos envolvidos numa
promíscua proximidade, temos mundos opostos e incongruentes
que se chocam e, em consequência, “previously impervious enti-
ties are suddenly in touch” (DES CHENE, 1997, p. 66). Sugestiva
desse deslocamento é a própria popularidade das perspectivas “crí-
ticas” ao “desenvolvimento” que, nas últimas décadas, recuperaram
o “colonial” como elemento central de reflexão (o próprio marxismo
sendo, por vezes, submetido à crítica no que haveria nele de “oci-
dental”, “moderno”, “eurocêntrico” ou “desenvolvimentista”).
Cabe lembrar ainda que, na mesma década de 1980 conside-
rada aqui, outros autores (como MAGALHÃES, 1982; SANTOS e
ANDRADE, 1988) abordaram essa problemática das barragens, tendo
em vista seus efeitos nocivos sobre grupos indígenas. No entanto, o
desenvolvimento dessas discussões se deu de forma paralela e relati-
vamente independente, com estudiosos do campesinato pouco inte-
ragindo com os etnólogos. Hoje, pelo contrário, o território “con-
vida” os analistas a aproximar camponeses e indígenas muito mais.
Obviamente, isso está relacionado aos processos de “emergência
étnica” dos primeiros ao longo do período examinado aqui. Mas o
que mais nos interessa nesse momento é sugerir como tal aproxi-
mação se realizou não apenas politicamente ou do ponto de vista da
Conclusão
Na medida em que passamos a falar menos de “penetração do capita-
lismo no campo” (TAVARES DOS SANTOS, 1991) e mais em “dester-
ritorialização”, estamos afirmando que são outros os efeitos nefastos
da modernização ou do desenvolvimento privilegiados pelas críticas
a esses processos. O que o território aciona metonimicamente ocupa
agora um protagonismo que, nessas dinâmicas críticas, pertencera a
outras problemáticas – como aquelas centradas nas relações de coe-
xistência entre modos de produção diversos ou na questão da subor-
dinação, integração ou diferenciação do campesinato. Essas outras
problemáticas não desapareceram ou foram simplesmente “substi-
tuídas”. Elas são questões que permaneceram e permanecem ainda
orientando pesquisas e debates férteis e produtivos. Mas sua centra-
lidade acadêmico-política parece ter sido deslocada. Tal mudança de
foco, com toda probabilidade, vincula-se ao fato de que, objetiva-
mente, tais efeitos se fazem presentes de maneira diferenciada em
distintos momentos do tempo. Ou seja: hoje, o “desenvolvimento”
prejudica suas “vítimas” de maneiras diversas daquelas caracte-
rísticas de 30 e 40 anos atrás. Os trabalhos de Sigaud seriam, nesse
sentido, não apenas precursores dos estudos sobre barragens, elas
e eles multiplicando-se a partir dos anos 1980 e 1990. Pois o exame
dos impactos e efeitos sociais de usinas hidrelétricas se prestou tam-
bém à compreensão do que se passa com a instalação de uma série
de outros empreendimentos. Sem ter como aprofundar esse ponto,
apenas relembro como, pela referência à categoria “atingido”, as
discussões acadêmicas e lutas políticas nos mostram quão exem-
plares foram as barragens para as críticas desses outros empreen-
dimentos. Assim, analítica e politicamente, essa categoria tornou
inteligíveis, visíveis e comparáveis as experiências de grupos os mais
diversos em locais diferentes do país e em função de empreendimen-
tos e impactos também eles diversos. Existem hoje movimentos de
“atingidos” pela mineração ou por linhas de transmissão de energia
212 André Dumans Guedes
elétrica; organizaram-se também num movimento social os qui-
lombolas “atingidos” pela base espacial de Alcântara, assim como
algumas comunidades “atingidas” por parques naturais e parques
eólicos.
Mas isso é secundário para o meu argumento, que busca enfati-
zar – recorrendo mais uma vez ao já citado Romano (1988, p. 3) – que
“a incorporação ou exclusão das lutas nos discursos, assim como sua
caracterização enquanto tal, seria produto – não tanto da [sua] exis-
tência ou ausência […], nem da vontade de seus atores, mas antes
do seu enquadramento nos esquemas de lutas pensáveis”. Voltemos,
assim, a considerar aquelas críticas “territoriais” aos reducionismos
supostamente consubstanciais à “terra”. Tentando “deslocar” essas
problemáticas que são caracterizadas como essencialmente “eco-
nômicas” ou “produtivas”, essas críticas parecem, assim, buscar
espaço para que possam “visibilizar-se” outras dimensões e facetas
na consideração dessas violências. Interpretando com alguma liber-
dade Trouillot (1995, p. 49), eu diria que, tendo de “gain their rights
to existence in light of the field constituted by previously created
facts”, as críticas vinculadas ao território precisam “dethrone some
of these facts, erase or qualify others”. Essas diferentes perspectivas
– a terra versus o território – ocupariam, então, “competing posi-
tions” (TROUILLOT, 1995, p. 49) nessa paisagem constituída pelos
embates contra o desenvolvimento. Uma vez que “o paradigma agrí-
cola-camponês deixava na obscuridade uma miríade de situações
que eram classificadas como marginais” (ALMEIDA, 2007, p. 173), as
críticas ao reducionismo economicista insinuam, assim, que noções
como “terra” ou “campesinato” contribuíram para a “invisibiliza-
ção” de particularidades étnicas e singularidades culturais decisivas
para a consolidação não apenas do “território” enquanto categoria
e conceito, mas igualmente dos “territórios” (no plural e concreta-
mente) e das perspectivas e posturas críticas associadas a ele(s).
Mas é preciso destacar que não são somente os críticos do desen-
volvimento que, cada vez mais, vêm privilegiando o território em
detrimento da terra. Atuando numa direção análoga estão tam-
bém os entusiastas de alguns desses novos modelos de desenvol-
vimento, que vêm enfatizando cada vez mais as “abordagens ter-
ritoriais do desenvolvimento” (ABRAMOVAY, 2007). Tais modelos
214 André Dumans Guedes
academia) desempenharam um papel, mas também foram relevan-
tes as mudanças nos próprios modelos de desenvolvimento de uma
forma geral. Afinal, aquele “constant conceptual work” que a noção
de “desenvolvimento” requer para “remain politically and morally
viable” (MOSSE, 2005, p. 1) tem como implicação o fato de que esses
modelos de desenvolvimento buscam incorporar respostas às críti-
cas que lhe são dirigidas “e, frequentemente, na denúncia e na jus-
tificação daquilo que é denunciado, empregam-se os mesmos para-
digmas” (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2009, p. 53). O importante a ser
destacado, se seguirmos os autores mencionados neste parágrafo, é
a complexa dinâmica através da qual certas formas e ideias circulam
por entre diferentes universos e domínios, frequentemente impli-
cando que sujeitos situados antagonicamente no campo político se
vejam obrigados a compartilhar e disputar determinados repertó-
rios simbólicos. A questão ambiental oferece um bom exemplo disso.
Consolidando-se ao longo das últimas décadas, ela passa a se fazer
presente de modo cada vez mais explícito nas críticas ao desenvolvi-
mento, como vimos anteriormente a respeito da articulação entre o
território e a noção de conflito socioambiental. Ao mesmo tempo – e
como deixa claro uma noção como a de “desenvolvimento susten-
tável” –, são também os modelos de desenvolvimento que se veem
compelidos, via esse tipo de inovação conceitual, a mostrar que este
último não é tão nocivo ao meio ambiente ou pode coexistir com ele.
A “passagem” da terra ao território diz respeito também a isso: as
dinâmicas antagônicas entre o desenvolvimento e sua crítica tanto
os opõem quanto os relacionam. Há divergências aí, sem dúvida;
mas há também convergências e consensos, que seja no que se refere
aos objetos e temas dignos de atenção, debate e disputa. Essa “passa-
gem” que examinamos aqui remete, assim, também a deslocamen-
tos e transformações nos objetos e temas “preferencial” ou “privile-
giadamente” disputados.
Recuperando as formulações com que iniciei este texto, pode-
ríamos dizer, então, que temos aí um exemplo do modo como se
correlacionam transformações ocorrendo em âmbitos e domínios
diversos: nos modelos de desenvolvimento, nas críticas a eles, nos
movimentos sociais e nos enfoques analíticos e teóricos privilegia-
dos nesses debates.
216 André Dumans Guedes
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218 André Dumans Guedes
Antropologia e Direitos Humanos
Direitos humanos e desigualdade. Balanços
parciais a partir de perspectivas antropológicas
Lucía Eilbaum1
221
de gênero e de cidadania de forma geral. Em terceiro lugar, busco
apresentar uma reflexão sobre a atuação e intervenção da CDH na
articulação entre os casos particulares e a estrutura social. Busco
tecer algumas considerações de índole metodológica e antropológica
a partir da relação proposta por Marshall Sahlins (1990, p. 15) entre
evento e acontecimento. Por fim, discuto alguns efeitos e sentidos
possíveis da categoria “direitos humanos” no Brasil, apontando para
as tensões envolvidas nessa frente discursiva (FONSECA e CARDA-
RELLO, 2005, p. 10).
2 www.aba.abant.org.br/files/20180315_5aaa9f5352c90.pdf.
222 Lucía Eilbaum
memória de Marielle e Anderson, “pelos jovens mortos na chacina
de Maricá, na Rocinha, no Alemão e para que ninguém mais morra”.3
Passado um mês, na madrugada do dia 13 para 14 de abril, a
cidade “amanheceu por Marielle e Anderson”.4 Praças, ruas, viadu-
tos, estações e terminais foram redesenhados em homenagem a eles.
Cartazes, grafites, flores, desenhos com imagens e frases de sua luta.
Nesse mesmo dia, uma grande manifestação percorreu o trajeto que,
no dia e horário fatal, tinha realizado o carro de Marielle e Ander-
son da Lapa até o Estácio. Ao som de tambores, batuques e cantos
dos manifestantes, ao ritmo de performances e as cores de girassóis
amarelos, uma grande bandeira alçada por inúmeras pessoas gritava
Marielle e Anderson presentes. Essa foi, uma e outra vez, a chamada
replicada nos diversos eventos:
Marielle vive
Marielle presente
Hoje e sempre
Anderson presente
Hoje e sempre
Naquele dia, e durante vários outros, a notícia da execução de
Marielle e Anderson parecia difícil de aceitar. O sorriso aberto, o olhar
vivo, a voz ativa da Marielle ressoava e era reproduzida em imagens e
vídeos que circulavam nas redes sociais e em outros canais midiáticos.
Desde 2016, Marielle era vereadora pelo Partido Socialismo e Solida-
riedade (PSOL) na cidade do Rio de Janeiro. Tinha sido eleita com
mais de 46 mil votos, sendo a quinta vereadora mais votada naquela
eleição. Mulher, negra, favelada, “cria” da Maré, como ela costu-
mava se definir, Marielle tinha construído um mandato parlamentar
em garantia dos direitos das mulheres, da população negra, LGBT,
dos moradores de favelas, trabalhadores informais.5 Dias antes de
ser executada, havia sido nomeada relatora da comissão que acom-
3 https://www.facebook.com/events/2088968458040713/.
4 https://www.facebook.com/events/194246874524960/.
5 Alguns projetos são Espaço Coruja (PL 17/2017), Assédio não é passageiro (PL
417/2017), Dossiê Mulher Carioca (PL 555/2017), Assistência técnica pública e gra-
tuita para habitações de interesse social (PL 642/2017), Efetivação das medidas
socioeducativas em meio aberto (PL 515/2017), Dia de Thereza de Benguela no Dia
da Mulher Negra (PL 103/2017), Dia de Luta contra a Homofobia, Lesbofobia, Bifo-
224 Lucía Eilbaum
O embate com os direitos humanos
Em janeiro de 2016, Nilce de Souza Magalhães foi assassinada em
circunstâncias ainda não esclarecidas. Nilce era liderança do Movi-
mento dos Atingidos por Barragens na região de Porto Velho, em
Roraima. Filha de seringueiros, atuava em defesa das populações
que sofrem com os impactos causados por barragens e denunciava
as violações de direitos humanos cometidas pelo consórcio respon-
sável pelas hidrelétricas do rio Madeira. Em setembro de 2016, José
Colírio Oliveira Guajajara, cacique na Terra Indígena Cana Brava, no
Maranhão, foi executado com um tiro. Membro do povo indígena
guajajara, era uma das principais lideranças na luta contra a invasão
e a exploração de recursos de suas terras por madeireiros. No ano
seguinte, no dia 24 de maio de 2017, 10 pessoas foram assassinadas
em uma operação policial na ocupação da fazenda Santa Lúcia, loca-
lizada em Pau D’Arco (PA), caracterizando uma das maiores chacinas
de trabalhadores rurais. Aproximadamente um mês depois, uma das
lideranças da ocupação, Rosenildo Pereira de Almeida, que já vinha
recebendo ameaças por conta de sua defesa da reforma agrária e pela
luta dos acampados, foi assassinada em uma emboscada realizada
por motoqueiros na cidade onde estava.6
Em abril de 2018, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou7
o relatório anual Conflitos no campo no Brasil, apontando que o
número de assassinatos em conflitos no campo no país em 2017 foi
o maior desde 2003. Segundo o relatório, do total de 70 homicídios
no campo registrados em 2017, 28 ocorreram em massacres. O rela-
tório destaca quatro deles, ocorridos nos estados da Bahia, de Mato
Grosso, do Pará e de Rondônia, e chama atenção para “a suspeita de
ter ocorrido mais um massacre, de indígenas isolados, conhecidos
como ‘índios flecheiros’, do vale do Javari, no Amazonas, entre julho
e agosto de 2017. Seriam, pelas denúncias, mais de 10 vítimas”.
A CPT registra os dados de conflitos no campo de modo siste-
mático desde 1985. Entre os anos de 1985 e 2017, foram registrados
1.438 casos de conflitos no campo em que ocorreram mortes, com
226 Lucía Eilbaum
que vulneram os direitos civis, formalmente garantidos a todos os
cidadãos por igual.
Crianças xingadas e apedrejadas, templos e símbolos religiosos
queimados e outras agressões físicas e verbais em casos de “intole-
rância” por motivos religiosos;9 execuções e outras práticas ilegais
por parte das forças de segurança, em especial nos estados do Rio
de Janeiro e de São Paulo – resultando em índices quantitativos de
homicídios assustadores;10 ações violentas de grupos armados con-
tra comunidades indígenas, em especial no estado de Mato Grosso
do Sul, no contexto da demarcação de terras; iniciativas legislativas
impondo definições hegemônicas de “família” e “gênero”;11 pro-
jeto de lei de maior punição a jovens através da redução da maio-
ridade penal;12 políticas de “ordenamento urbano” com vistas aos
chamados “megaeventos” resultando na remoção de moradias,
expulsão de moradores de rua, priorização de interesses empresa-
riais em detrimento do comércio autônomo e redução da mobili-
dade urbana; projeto de lei definindo, de forma ampla e imprecisa,
o “terrorismo” no Brasil (PL 2.016/2015); iniciativas legislativas res-
tringindo os direitos das mulheres sobre seu corpo (PL 5.069/2013);
criminalização do estrangeiro no projeto de nova Lei de Migração
(PL 2.516/2015) são alguns exemplos dessas situações. Tal diversi-
dade de eventos e situações tem resultado em violações de direitos
fundamentais, envolvendo agressões físicas e insultos morais, como
“uma dimensão intangível e não reconhecida pelo direito nem pelo
Estado que agride direitos de natureza ético-moral” (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 2002, p. 22).
13 http://www.aba.abant.org.br/files/20180227_5a959839d6eb3.pdf.
14 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2018/04/28/atentado-
-em-acampamento-pro-lula-em-curitiba-deixa-dois-feridos-diz-pt.htm.
228 Lucía Eilbaum
cionamento político e a reflexão analítica através da ideia proposta
por Sahlins de “estrutura da conjuntura”. Tal articulação pode
aportar um debate qualificado de eventos sociais, entrelaçando “os
destinos mutáveis das pessoas e dos grupos” e “a projeção de uma
ordem permanente”, mostrando como as categorias culturais ten-
dem a se realizar de forma prática em um contexto histórico especí-
fico (SAHLINS, 1990, p. 15).
É nesse contexto social e político e com essa perspectiva que a
CDH/ABA tem se confrontado com, pelo menos, dois desafios de
natureza diversa. Em primeiro lugar, quando, como e onde se mani-
festar. Em segundo lugar, como analisar a própria disputa em torno
da categoria de direitos humanos e seus efeitos para a vigência de
direitos e para a denúncia de suas violações.
230 Lucía Eilbaum
Isso porque compreendo que é a partir do conhecimento empírico,
situado e eminentemente desnaturalizador que é possível qualificar
o debate sobre questões atuais, na maior parte das vezes extrema-
mente polêmicas, controvertidas e, em muitos casos, carregadas do
sensacionalismo e impacto que o calor dos acontecimentos tende a
impor.
Nesse quadro, as pesquisas etnográficas têm permitido sustentar
nossas intervenções na descrição e no conhecimento de práticas e
rotinas burocráticas e em moralidades e representações que dão vida
às intervenções e iniciativas políticas e institucionais e que explicam
sua eventual legitimidade, bem como os movimentos de oposição e/
ou resistência. Dessa forma, é possível entender que os eventos que
nos preocupam em termos de direitos não são episódios isolados,
exceções das rotinas cotidianas, atos desproporcionados ou exacer-
bados de pessoas “fora da ordem”, comumente classificadas como
“malucos”, “monstros” ou “desviantes”. Ao contrário, são eventos
que fazem parte de uma ordem que, no Brasil, como aponta Roberto
Kant de Lima (2009), tem a desigualdade jurídica como sua garantia
e baluarte. Essa desigualdade, como evidenciam diversas etnogra-
fias na área da antropologia do direito, estabelece padrões de huma-
nidade e regimes de consideração e reconhecimento distintos para
“tipos” de pessoas classificados diferencial e desigualmente; pode-
ríamos dizer, naquilo que Da Matta (1981, p. 22) distinguiu classica-
mente como “indivíduo” e “pessoa”.
Sendo assim, os eventos mencionados revelam uma dinâmica de
relações sociais e valores morais que sustentam determinadas formas
de fazer política e de fazer justiça. Formas estas fundadas na produ-
ção e reprodução da desigualdade e amparadas em formas violentas
e repressivas de administração de conflitos e gestão da diferença e
da diversidade. Nesse quadro, cabe ressaltar que a transformação de
certos acontecimentos em eventos raramente é dada pela dinâmica
dos fatos – o que aconteceu –, mas pela consideração ou não da subs-
tância moral das pessoas envolvidas – figuras públicas, status moral
e/ou social. Nesse sentido, as demandas por justiça e a construção de
uma memória sobre esses eventos parecem estar sempre atreladas,
no Brasil, à legitimação e, em alguns casos, reconstrução ou reivin-
dicação moral das figuras envolvidas. Esse processo de legitimação
232 Lucía Eilbaum
Assim, como sustenta Teresa Pires do Rio Caldeira (1991), o
discurso dos “direitos humanos” tem se dissociado da demanda e
expansão dos direitos sociais e civis e, em uma dessas derivações de
sentido, ganhado a oposição ou rejeição da maioria da população, que
o vincula à “defesa de criminosos”. Se, na década de 1990, segundo
Caldeira, os “direitos humanos” foram decodificados como “privi-
légios dos bandidos” contra os cidadãos de bem, atualmente, é pos-
sível assistir também a um processo de disputa com outro ator que se
reivindica, na lógica do antagonismo, como sujeito desses direitos:
os policiais. Não irei aqui desenvolver amplamente esse argumento,
mas, na minha percepção, a violência de Estado tem sido desdobrada
em duas discussões que se contrapõem e superpõem em diversos
discursos dos agentes de Estado, ora como acusados, ora como víti-
mas. As manifestações, denúncias, acusações públicas de casos de
violência policial, isto é, do uso excessivo, abusivo e ilegal da força
policial nos últimos anos têm sido replicadas por certos setores com
outra cara, da falta de proteção do Estado aos seus agentes. Os ater-
radores números de mortes causadas por policiais, na sua maioria
a jovens negros de áreas periféricas e pobres, têm sido recorrente-
mente confrontados, ou então replicados, com os números de poli-
ciais mortos, reivindicando que este último grupo tem sido menos-
prezado pelos “direitos humanos”, citados aqui como uma entidade
atribuída a grupos progressistas e/ou de esquerda. Tal embate carac-
terizou parte das reações à execução de Marielle Franco, através de
comentários que associavam sua morte a uma suposta defesa de ban-
didos em contraposição à defesa dos policiais,16 que reclamavam pela
mobilização pública em torno de seu assassinato contra a ausência
de clamor por outras mortes ou ainda com a organização de ato no
Centro da cidade, uma semana após a execução, clamando “pelos
PMs mortos”.17
16 Fazendo jus à trajetória de Marielle, esses discursos de ódio foram refutados
através de depoimentos de familiares de policiais que destacaram trabalho e apoio
fundamental da vereadora em casos de morte dos agentes.
17 A pauta da marcha incluía apoio total à intervenção militar, Lei do Abate Já,
redução da maioridade penal para 14 anos, fim do Estatuto do Desarmamento, entre
outros. Foi realizada no dia 23 de março de 2018 em frente à Alerj.
Final aberto
Neste texto, a partir da experiência da CDH/ABA, elenquei rapi-
damente casos de mortes, ameaças e outras violências contra ativis-
tas de direitos humanos, bem como situações de violação flagrante
desses direitos. É esse cenário que nos preocupa, não apenas por sua
recorrência e sistematicidade, mas pelo recrudescimento dos ris-
cos físicos e das ofensas morais que vêm colocando em xeque, como
234 Lucía Eilbaum
mencionado, o reconhecimento moral e social de pessoas e grupos
específicos e, com isso, o status de humanidade dos mesmos.
Nesse sentido, a lógica do contraditório,18 nos termos aqui men-
cionados, em torno da categoria de “direitos humanos” parece acio-
ná-la em um discurso, por um lado, de confronto e embate e, por
outro, de apropriação particularizada que está longe de promover a
universalização de direitos e a perspectiva de nos enxergarmos como
pares no espaço e na esfera pública. Ao contrário: silenciar vozes,
apedrejar, violentar e eliminar corpos e impor autoritariamente
pontos de vista e interesses particulares tem levado a outro cami-
nho, cujo preço estamos pagando como sociedade.
Contudo, é um caminho a ser trabalhado. Desde a CDH/ABA e,
sobretudo, desde nosso lugar na universidade pública, acreditamos
que, a partir da análise e discussão de dispositivos institucionais
acionados nas políticas públicas e nos projetos de intervenção social
que resultam em violações de direitos, bem como dos processos
de luta, demanda e/ou crítica que elas provocam em movimentos
sociais e políticos e na sociedade de forma geral, é possível traçar e
constituir, no diálogo, uma agenda política e analítica que considere
a diversidade de campos, sentidos e lutas na perspectiva da univer-
salização de direitos, da igualdade e da cidadania.
Referências
CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. Direito legal e insulto moral. Dilemas da
cidadania no Brasil, no Quebec e nos EUA. Rio de Janeiro: Relumé-Dumará, 2002.
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
EILBAUM, Lucia; KANT DE LIMA, Roberto; MEDEIROS, Flavia S. “Casos de
repercussão”: perspectivas antropológicas sobre rotinas burocráticas e moralidades.
Rio de Janeiro: Consequência, 2017.
18 Como mencionado, segundo Kant de Lima (2009), trata-se de uma lógica
que tende a um dissenso infinito entre partes em conflito, até que uma autoridade
decida pelo final, decretando um resultado, geralmente a partir de uma perspectiva
moral externa à realidade pretensamente arbitrada. Em palestra, o autor costuma
dizer que essa noção foi cunhada em associação com a socióloga Maria Stella Amo-
rim. Ambos distinguem a lógica do contraditório do princípio legal do contraditó-
rio, que garante a ampla defesa através da possibilidade de contestação das provas
da acusação.
236 Lucía Eilbaum
Inquisitorialidade, igualdade jurídica e direitos civis
no Brasil: afinal, direitos humanos para quem?1
Roberto Kant de Lima2
Glaucia Maria Pontes Mouzinho3
1 Versão preliminar deste artigo foi publicada pela revista Dilemas (KANT DE LIMA
e MOUZINHO, 2016).
2 Coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia, Instituto de Estu-
dos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC). Professor do Pro-
grama de Pós-graduação em Antropologia da UFF e do Programa de Pós-graduação
em Direito da UVA. Pesquisador de Produtividade 1-A do CNPq. Cientista do Nosso
Estado/Faperj.
3 Professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-gradua-
ção em Desenvolvimento Regional, Ambiente e Políticas Públicas da UFF/Campos
dos Goytacazes. Coordenadora do curso de especialização em Organização e Gestão
das Instituições de Justiça Criminal e Segurança Pública UFF/Senasp. Pesquisadora
do INCT-InEAC.
237
operário nas fábricas paulistas, da ocupação de empregada domés-
tica de sua mulher Letícia, recorda também seu sucesso político, a
aprovação de seu governo, fazendo menção às medidas sociais toma-
das ao longo dos seus mandatos. Lula, então, indignado, afirma que,
no Brasil, a lei foi invertida: agora, primeiro se encontra o culpado
para depois identificar o crime.
A condução coercitiva, no entanto, era um “evento” em meio
a inúmeros “acontecimentos” (SAHLINS, 1990)4 noticiados como
uma espécie de seriado televisivo ao longo de quase um ano. Os
“capítulos” se sucederam. O impeachment de Dilma, aprovado pela
Câmara dos Deputados e pelo Senado, o indiciamento de Lula pela
Polícia Federal e, finalmente, sua mudança para a condição de réu,
denunciado, condenado e preso. As acusações incluem benefícios
para campanhas eleitorais, para a construção da sede do instituto
que leva seu nome e para a compra de uma cobertura no Guarujá,
região turística valorizada pelos paulistas. Na ocasião de seu dis-
curso, entretanto, o que Lula parece não ter observado era que o tra-
tamento dado a ele e os desdobramentos judiciais possíveis, longe
de serem excepcionais, eram parte do cotidiano da justiça brasileira,
procedimentos inquisitoriais aplicados a muitos outros brasilei-
ros sem levantar protestos que não os dos seus próprios familiares.
Nesse sentido, sua reivindicação era a de ter um tratamento privile-
giado que não lhe foi concedido.5
Se a condução coercitiva de Lula tem um efeito simbólico impor-
tante, provocando reações e consequências judiciais e políticas rele-
vantes, outro episódio passa, recentemente, a ocupar a imprensa
238 Roberto Kant de Lima | Glaucia Maria Pontes Mouzinho
brasileira, ainda relacionado à Lava Jato: a prisão do ex-governador
do Rio de Janeiro Sergio Cabral.
Cabral era, até então, como Lula, um político de sucesso. Com
futuro promissor, era cogitado como possível candidato no seu par-
tido, o PMDB, à Presidência da República. Filho de um jornalista de
renome, morador do bairro do Leblon, lugar de classe média alta
do Rio de Janeiro, foi eleito com apoio de boa parte dos empresá-
rios cariocas. Suas propostas para governar o Rio foram amplamente
divulgadas pelos principais jornais cariocas, particularmente apre-
sentadas em oposição à então governadora Rosinha Garotinho, que,
junto com seu marido, o também ex-governador Anthony Garo-
tinho, era alvo de críticas, em especial no que dizia respeito à sua
política de segurança pública. Nessa área ocorrerá uma das princi-
pais ações do governo Cabral: a implantação das Unidades de Polí-
cia Pacificadora (UPPs). Aprovadas por boa parte dos moradores dos
bairros próximos às “comunidades” onde foram implantadas, são
anunciadas como uma política de enfrentamento efetivo do poder do
tráfico de drogas nessas localidades. Os recursos para sua implanta-
ção foram obtidos, em grande parte, através de doações do empre-
sário Eike Batista, durante muito tempo considerado um empresário
bem-sucedido, figurando em lista da revista Forbes como um dos
mais ricos do mundo. Além das UPPs, sua presença também podia
ser observada em contratos de obras com o governo do estado.
Logo após a prisão de Cabral, é a vez de Eike. Ele é acusado de
pagar propinas ao ex-governador e tem sua prisão preventiva decre-
tada. Nesse ínterim, viaja para os Estados Unidos usando seu passa-
porte alemão. O resultado da não apresentação à justiça brasileira
é sua inclusão na lista de foragidos da Interpol, que antecedeu sua
volta ao Brasil para, segundo ele, “ajudar a passar as coisas a limpo”.
Os dois exemplos aqui mencionados – Lula e Cabral – têm em
comum suas carreiras políticas até então exemplares e a rapidez com
que são tomadas as medidas judiciais, além da apresentação de indí-
cios que complicam gradativamente a situação de ambos, guardadas
as fases do processo em que cada um se encontra. Entretanto, tam-
bém apresentam diferenças importantes.
As acusações a Cabral não surpreendem pelos panelaços. Sua pri-
são não colocou em suspeição o atual governador Pezão (vice-gover-
240 Roberto Kant de Lima | Glaucia Maria Pontes Mouzinho
perceber claramente que, no Brasil, não há somente desigualdades
econômicas e uma alta concentração de renda, mas que abriga-
mos sem protestos uma desigualdade jurídica a cuja existência nem
mesmo Lula, com sua origem popular, se opôs publicamente. Final-
mente, não podemos esquecer que, no Brasil, não só os militares das
Forças Armadas, mas também os “militares estaduais”, integrantes
das polícias militares, além de terem direito à prisão especial (art.
295, V, CPP), têm uma justiça própria onde seus crimes são julga-
dos, com formas distintas da justiça comum e bastante peculiares de
construção da verdade jurídica e judicial, como mostra o trabalho de
Silva (2013, 2017).8
Este artigo, fruto de pesquisas desenvolvidas através de trabalho
de campo e investigação arquivística e bibliográfica, além de obser-
vação participante, nos últimos 30 anos com a polícia e a justiça cri-
minal brasileira (por exemplo, KANT DE LIMA, 1989, 1995; MOU-
ZINHO, 2007), pretende explicitar o fato de que os recentes acon-
tecimentos judiciários observados nos processos oriundos das ações
penais do chamado Mensalão e da Operação Lava Jato apenas torna-
ram mais transparentes e de domínio público procedimentos roti-
neiros da justiça criminal brasileira empregados pelos tribunais. As
diferenças fundamentais, nesses casos, e que causaram tanta como-
ção pública foram, por um lado, que o dito sistema de justiça crimi-
nal foi acionado articuladamente, obtendo alto nível de efetividade
242 Roberto Kant de Lima | Glaucia Maria Pontes Mouzinho
O financiamento de campanhas políticas por empresas priva-
das era, nessa época, permitido por lei no Brasil, mas o problema é
que os recursos obtidos não tinham sido declarados nas prestações
de contas dos políticos, tendo sido omitidos ao longo e depois da
campanha eleitoral, constituindo-se no que seria conhecido como
“caixa 2”, exatamente porque não se tratava de recursos oficiais e
declarados. As acusações de Roberto Jefferson foram levadas adiante
e inseridas no processo, levando à tipificação penal das atividades
denunciadas como crimes: corrupção, formação de quadrilha, lava-
gem de dinheiro, peculato etc.
Diversamente de processos criminais com acusações semelhantes,
o Mensalão foi o primeiro com início e término no Supremo Tribunal
Federal. Isso foi possível porque existe, no Código de Processo Penal
brasileiro, a prerrogativa do “foro por prerrogativa de função”, o que
significa que certas pessoas têm direito a um lugar próprio de julga-
mento que não o do cidadão comum em função de um status jurídico
específico que lhes é atribuído pelo exercício de certas funções públi-
cas.9 A prerrogativa, também prevista em constituições anteriores,
foi ampliada na nossa última Constituição, de 1988. Segundo notícias
da Empresa Brasileira de Notícias (EBC), 22 mil autoridades se bene-
ficiam, hoje, do dispositivo constitucional. Presidentes da República,
ministros, senadores, deputados, governadores, prefeitos, conselhei-
ros dos Tribunais de Contas, juízes, procuradores da República e pro-
motores, mesmo quando praticam crimes comuns, não são julgados
em tribunais de primeira instância por juízes singulares, mas por tri-
bunais superiores, de decisão colegiada.10
Desse modo, a distribuição de direitos constitucionais no Bra-
sil não se configura de maneira uniforme entre os cidadãos. Isso
porque a ideia de igualdade jurídica é ambígua: por um lado, está
associada à igualdade de todos perante a lei, própria das revoluções
244 Roberto Kant de Lima | Glaucia Maria Pontes Mouzinho
taminou aqueles que não o tinham. O ministro relator, oriundo do
Ministério Público, cercou-se de juízes federais auxiliares – inclu-
sive o juiz Moro, que futuramente conduziria o processo da Lava Jato
–, realizando a instrução do processo desde seus primeiros passos.
Assim, não só se emprestou inusitada celeridade ao processo, mas
credibilidade institucional indiscutível aos indícios apurados na
sua instrução, sob orientação do próprio STF, inviabilizando uma
das mais eficazes estratégias de defesa nas instâncias superiores.11
Ocorre que o STF também procedeu como muitas vezes procedem
os juízes de primeira instância, aceitando como provas indícios apu-
rados no inquérito policial.12 Ou seja, mesmo ocorrendo na vigência
das mesmas leis processuais, o resultado do julgamento surpreendeu
porque a instância que instruiu e julgou o processo era a última de
nosso sistema de justiça, evidenciando o alto grau de arbítrio que o
sistema permite, capaz de produzir resultados contraditórios com o
emprego dos mesmos procedimentos legais.
Ao cabo do julgamento, foram condenados deputados e minis-
tros, grande parte da liderança do PT, representantes partidários de
longa data e possíveis sucessores de Lula, empresários e banqueiros.
Segundo o sociólogo Alexandre Werneck (2012), foi o maior julga-
mento do Supremo Tribunal Federal, com 38 réus, cuja peça de acu-
sação, levada a cabo pelo procurador-geral da República, continha
mais de 50 mil páginas. A maioria dos réus foi condenada à prisão em
regime fechado, com penas severas. Foi também, segundo Werneck,
o primeiro caso em que uma grande autoridade (ministro da Casa
Civil) foi condenada por corrupção no Brasil: 10 anos e 10 meses de
prisão em regime fechado.
Os advogados se depararam com algo novo: com seus clientes
encarcerados, novas estratégias de defesa deveriam ser levadas em
11 Veja-se, por exemplo, o que aconteceu com a Operação Satiagraha, que teve seu
processo anulado pelo STF em razão de vícios processuais na colheita de provas na
instrução do processo. Disponível em: http://www.redebrasilatual.com.br/poli-
tica/2015/08/anulacao-total-da-operacao-satiagraha-transita-em-julgado-5374.
html. Acesso em: 15 ago. 2016.
12 Nesse caso, é interessante notar que uma referência citada para legitimar esse
procedimento foi João Mendes de Almeida Júnior, jurista paulista do fim do século
XIX e início do XX, defensor de um modelo misto, semi-inquisitorial, para o pro-
cesso penal brasileiro (ALMEIDA JÚNIOR, 1920; KANT DE LIMA, 2013b).
246 Roberto Kant de Lima | Glaucia Maria Pontes Mouzinho
em razão dos inúmeros volumes que os constituíam. Como disse
publicamente um famoso criminalista: “Hoje, 80% a 90% das cau-
sas que defendemos estão ligadas ao direito econômico e tributário.
[…] Cerca de 70% dos casos que atendo hoje são relativos a crimes
econômicos e financeiros” (Seminário de Advocacia Criminal, OAB
RJ, agosto de 2000).
Como já mencionado, uma das estratégias mais frequentes desses
criminalistas, segundo os procuradores federais, era procurar des-
qualificar “provas” apresentadas pelo Ministério Público, alegando
inconstitucionalidade e/ou erros no recolhimento de documentos ou
em escutas telefônicas realizadas pela polícia, nem sempre autoriza-
das nos prazos legais, como foi o caso mencionado anteriormente da
Operação Satiagraha. Essa e outras dificuldades justificavam a sele-
ção dos casos que deveriam ser levados adiante, recusando-se, por
exemplo, aqueles nos quais o “custo-benefício” não compensasse
a dificuldade na obtenção de provas aceitáveis pelo juiz, ainda que
essa seleção contrariasse o “princípio da obrigatoriedade”, ou seja,
a obrigação legal da denúncia caso se apurem indícios de autoria e
materialidade do crime imposta ao Ministério Público pela doutrina
processual penal brasileira (MOUZINHO, 2007).
Doutrinariamente, o “princípio da obrigatoriedade” se opõe ao
“princípio da oportunidade” e a prevalência legal explícita de um ou
de outro no controle das ações dos agentes públicos tem consequên-
cias não desprezíveis. No caso da obrigatoriedade, o não cumpri-
mento das ações prescritas, por erro ou omissão, ocasiona a culpabi-
lidade do agente, sendo seu controle exercido de acordo com o grau
de discricionariedade que possui, a ser apurado pela correspondên-
cia de suas ações com a sua competência e a letra da lei, independen-
temente das razões de seu erro ou omissão e do resultado positivo ou
negativo alcançado; seu cumprimento correto, por outro lado, não
enseja premiação, pois não é mais do que sua obrigação. No caso do
princípio da oportunidade, a ação é uma escolha do agente ante um
protocolo prévia e consensualmente estabelecido pela instituição e
ele, portanto, torna-se responsável por ela, justificando-a e pres-
tando contas, a posteriori, mesmo quando agiu contra as prescri-
ções legais. Se for bem-sucedido, muitas vezes é premiado por seu
senso acurado de discernimento e pelos riscos que aceitou correr
248 Roberto Kant de Lima | Glaucia Maria Pontes Mouzinho
cedência ou não da suspeita (MOUZINHO, 2007). Também não era
incomum que os procuradores iniciassem uma investigação a partir
de uma denúncia na imprensa utilizando o princípio da obrigato-
riedade, que, no entanto, era recusado em outros momentos, acen-
tuando o largo arbítrio que rege as escolhas (MOUZINHO, 2007).
Como se viu, o arbítrio dos procuradores é limitado por esse princí-
pio, enquanto os juízes têm seu amplo arbítrio na seleção da prova e
na interpretação da lei, definido como princípio do “livre convenci-
mento motivado do juiz”, garantido constitucionalmente (MENDES,
2012; DE SETA, 2015).
Como podemos notar, no cenário das acusações públicas, mui-
tos são os atores: a imprensa, a polícia, os funcionários da Receita,
os procuradores, os juízes. Outros, porém, anteriores à delação pre-
miada, eram muito importantes: parentes ou ex-sócios, persona-
gens comuns em investigações nas quais as suspeitas iniciais eram
resultado de denúncias encaminhadas ao Ministério Público, mui-
tas vezes por vingança, mas que contribuíam com informações fun-
damentais, tais como dados de contas bancárias no exterior, entre
outros. Foi o que aconteceu no processo contra o ex-prefeito da
cidade de São Paulo Celso Pitta, cujo esquema de corrupção foi iden-
tificado a partir do depoimento de sua ex-mulher, Nicéia Camargo
(VILELLA, 2014). Outro exemplo bastante conhecido foi o do irmão
do ex-presidente Fernando Collor, Pedro Collor, cujas denúncias
resultaram em processo e no impeachment do então presidente.
Entretanto, aqueles que procuravam o Ministério Público ou mesmo
a imprensa para suas denúncias eram tratados não como cúmplices
ou delatores, mas como testemunhas fundamentais no processo,
ainda que sobre eles pudesse cair a pecha moral de traidores dos seus
amigos e/ou familiares.
Os casos de sucesso que se iniciavam com a seletividade da polí-
cia e do Ministério Público acabavam coincidindo com os casos de
repercussão. Neles se concentram as “forças-tarefa”, operações que
reúnem policiais de diferentes locais, com acompanhamento direto
e constante do Ministério Público e contato frequente com juízes.
Nessas operações, como explica Vidal (2013), diferentemente dos
demais casos, há um objetivo comum e grande colaboração entre
os órgãos. Elas também devem ser formadas por policiais que res-
250 Roberto Kant de Lima | Glaucia Maria Pontes Mouzinho
torna efetivamente público e os envolvidos tomam conhecimento das
acusações. A partir daí, o processo passa a se desenvolver sob o princí-
pio e a lógica do contraditório público, só interrompido pela sentença
judicial. Não poucas vezes, ocorre de essas verdades judiciárias, cons-
truídas com lógicas diferentes, se desqualificarem umas às outras,
opondo as corporações que as produziram quanto à legitimidade do
resultado do processo em alcançar a desejada “verdade real”.18 Como
se vê, é uma repartição pública do Poder Executivo, o cartório da dele-
gacia, que primeiro tipifica e registra com fé pública a culpa do indi-
ciado, resultando disso uma promiscuidade de competências entre o
Poder Executivo e o Poder Judiciário.19
É evidente, portanto, a diferença de procedimentos entre
ocasiões em que essas várias corporações estão articuladas em
uma força-tarefa daquelas em que não estão, tendo sua atuação
efetividade diferenciada, embora, em ambos os casos, estejam sendo
desenvolvidas em obediência às mesmas leis e regras processuais.
Durante a fase do inquérito policial e do processo judicial, ao
juiz caberá autorizar procedimentos de instrução para garantir a
produção da “verdade real”, numa espécie de retrospectiva do que
ocorreu, quando se deverá conhecer o percurso desenvolvido até o
fato criminoso e depois dele. Na fase do inquérito, como já se disse,
esse procedimento é sigiloso para os envolvidos. Já na fase proces-
sual, conhecida a acusação pelos envolvidos, isso é realizado obe-
decendo-se ao princípio constitucional do contraditório, que
implica que a toda acusação corresponde o direito de defesa. Entre-
18 “O princípio da verdade real, informa que no processo penal deve haver uma
busca da verdadeira realidade dos fatos. […] Diferentemente do que pode acontecer
em outros ramos do Direito, nos quais o Estado se satisfaz com os fatos trazidos nos
autos pelas partes, no processo penal […], o Estado não pode se satisfazer com a rea-
lidade formal dos fatos, mas deve buscar que o ius puniendi seja concretizado com
a maior eficácia possível” (GOMES, 2016). Na prática, esse controverso princípio
dá poderes instrutórios aos juízes, que, por iniciativa própria, podem solicitar dili-
gências quando não satisfeitos com os fatos levados a juízo pelo Ministério Público e
pelos acusados.
19 Como já mencionado, essa promiscuidade, de acordo com a legislação e a dou-
trina, foi criada no final dos anos 1880, quando, diz a doutrina, o inquérito policial
separou a polícia da justiça (ALMEIDA JÚNIOR, 1920). Evidentemente, não houve
separação, mas criação de instâncias sucessivas de incriminação no Executivo e no
Judiciário, o que contradiz o princípio constitucional de presunção da inocência.
252 Roberto Kant de Lima | Glaucia Maria Pontes Mouzinho
Foi considerando essa organização do nosso sistema criminal
que Lula foi conduzido coercitivamente à Polícia Federal, com risco
de prisão ante sua recusa em se apresentar para depor, ainda que
sobre ele não pesasse nenhuma acusação formal. O que ninguém
observou – não importa se aqueles que criticavam a ação da justiça e
a condução policial ou os que a defendiam – foi a naturalização com
que trataram a tradição inquisitorial presente no processo criminal
brasileiro. Nota-se que o ex-presidente Lula, ainda que mencionasse
repetidamente sua origem operária e suas prisões à época da dita-
dura militar, também pareceu não se dar conta de que aquilo que
ele apresentava como um absurdo jurídico e uma injustiça, ou seja,
sua condução forçada e a decorrente suspeição que ela implicava, era
fato corriqueiro e previsível para qualquer cidadão investigado, coe-
rente com a lógica de nosso processo tradicional.
254 Roberto Kant de Lima | Glaucia Maria Pontes Mouzinho
Livro II do Regimento do Santo Ofício de 1640.23 Inclusive, no mesmo
regimento, consta que, quando não confessavam tudo, eram consi-
derados “diminutos”:
Livro II, Título VII: De como se hão as confissões aos presos, e das
admoestações que se hão de fazer antes de serem acusados por
diminutos
§ 2. Tanto que algum preso disser, que quer confessar suas culpas
os Inquisidores o admoestarão […], e lhe farão saber que está obri-
gado a dizer de vivos, mortos, ausentes, presos, soltos, ou recon-
ciliados, tudo o que tiver com ele comunicado contra a nossa Fé
[…] (grifo nosso).
23 Agradecemos à professora Lana Lage da Gama Lima a indicação das referências
legais e bibliográficas sobre os procedimentos inquisitoriais. Cf. Regimento do Santo
Ofício, 1996, Título VII, nos & 3,5 e 6: “ § 3. Tratarão os Inquisidores com grande
cuidado, de examinar, e inquirir o ânimo do confidente, se é verdadeiro, ou fingido,
se faz sua confissão com intento de escapar da pena, que merecia por suas culpas,
ou com zelo de livrar delas sua consciência, e de se converter na Fé de Cristo […].
Em primeiro lugar mandarão ao preso, que declare a pessoa, ou pessoas, que lhe
ensinaram os erros, de que se acusa, o tempo, e o lugar, em que foi, as pessoas, que
se acharam presentes, com toda a miudeza, e o mais que ali passou […]. § 5. Quando
o preso em sua confissão disser de pessoas, com que comunicou seus erros se lhe
tomarão as comunicações com muita miudeza […]. E quando na mesma comunica-
ção disser de muitos cúmplices depois de se haverem tomado com suas confronta-
ções, e que se passou na comunicação, serão segunda vez repetidos por seus nomes,
e após isso se continuará a declaração que com ele teve. § 6. Se o preso depois de
confessar suas culpas, no discurso de sua confissão acrescentar mais cúmplices em
alguma das comunicações, que tem declarado, ou depuser de outras diferentes em
substância, e no lugar, a respeito de pessoas de que tem dito, os Inquisidores se não
contentaram em remeterem umas comunicações a outras, antes farão, que o preso
declare particularmente e, cada uma os nomes de todas as pessoas, que se assina-
ram presentes […] com toda as circunstâncias, que parecerem necessárias para os
testemunhos ficarem claros, e contundentes, e as publicações, que deles houverem
de sair, se puderem fazer com certeza”.
[…] A família era a base da ação do Santo Ofício; em uma das ses-
sões do processo inquisitorial, a “Genealogia”, o réu declarava
quem eram seus pais, avós, bisavós […] e assim toda a família
ficava registrada na Inquisição como parte da nação dos cristãos-
-novos; durante o processo, era considerada culpa grave – ou
diminuição – a falta de denúncia contra algum membro da famí-
lia. Catarina da Silva Reis foi posta em tormento por não falar de
sua mãe, que já estava morta; quando era pronunciada a sentença,
os inquisidores registravam que o réu devia ser recebido no grê-
mio da Igreja, pois havia dito o suficiente sobre sua família, pais,
marido, filhos (GORENSTEIN, 2005, p. 125).
256 Roberto Kant de Lima | Glaucia Maria Pontes Mouzinho
No Brasil a delação premiada surgiu ainda na época em que o país
era uma colônia de Portugal. Foi no ano de 1789, no caso da incon-
fidência Mineira (Mota, 1991a, p. 8), na capitania de Minas Gerais
que o Coronel Joaquim Silveiro (sic) Reis, delatou todos envol-
vidos em um plano separatista idealizado por Tiradentes, com o
objetivo de superar as altas taxas da Coroa Portuguesa ao Brasil.
Senhores Conselheiros.
Cumprimentando-os, venho à presença de V. Exas., de acordo
com a deliberação do Plenário do Conselho Federal da Ordem
dos Advogados do Brasil, instá-los a pronunciarem-se sobre a
inconstitucionalidade da determinação de prisão provisória com
intuito de obtenção de delação premiada. A prisão provisória deve
ser utilizada quando preenchidos todos os requisitos legais, não
podendo servir como antecipação de pena nem como pressão psi-
cológica para obtenção de delação (OAB SE LEVANTA…, 2015).
24 A prisão preventiva pode ser decretada pelo juiz sempre que houver ameaça
de interferência na instrução do processo ou como garantia da ordem pública, esta
última condição definida abstratamente, servindo como instrumento de exercício
arbitrário do juízo (SARMENTO, 2017).
258 Roberto Kant de Lima | Glaucia Maria Pontes Mouzinho
Defensores alegam não ter as mesmas ferramentas que o Minis-
tério Público Federal: apontam tratamento desigual nos prazos,
ausência nos autos de provas produzidas na investigação (inclu-
sive delações) e dificuldade de localizar documentos citados nas
denúncias (as acusações falam em procedimentos que não eram
acessíveis) (ATALHOS PARA CONDENAR…, 2015).
260 Roberto Kant de Lima | Glaucia Maria Pontes Mouzinho
selhamentos porque corremos o risco de estarmos sendo moni-
torados.
25 Como no caso do chamado “caixa 2”, que chegou a ser banalizado pelo próprio
presidente Lula em discurso à época do Mensalão e que recentemente suscitou nova
polêmica em virtude de projeto de lei que pretende criminalizá-lo, ao propor tam-
bém a anistia para os que o teriam praticado antes da aprovação da lei, que poderia
ocorrer através de sua tipificação em outros artigos do Código Penal.
262 Roberto Kant de Lima | Glaucia Maria Pontes Mouzinho
tando um caráter moral diverso ao delator, ao ressaltar o termo uti-
lizado no texto legal, “colaborador”, ainda que a colaboração seja
uma das poucas saídas oferecidas aos acusados quando já presos,
e contra os quais já se produziam novas acusações.
A magistratura, por outro lado, ao ser questionada em suas
ações, defende o sucesso das delações e do modelo adotado, enfa-
tizando a colaboração de todos os responsáveis pelas investigações
no combate aos crimes dos poderosos, mas, aos poucos, retirando
a centralidade do delator e enfatizando o papel decisivo das provas
documentais obtidas, ainda que só possíveis a partir da delação.28
Considerações finais
A despeito dos debates entre juristas, da participação incisiva da
imprensa e das declarações dos inúmeros atores envolvidos, é fun-
damental enfatizar que as grandes operações realizadas através de
forças-tarefa são exceções que dependem de decisões políticas das
corporações envolvidas, de fina articulação entre seus agentes e deles
com os membros das demais corporações envolvidas nas investiga-
ções e no processo judicial e da quantidade de recursos aplicados,
que também resultam na seletividade dos casos. Não são, portanto,
universais nem organizadas para esse fim. Para os crimes “comuns”
continua valendo o de sempre. Como chama atenção Vidal (2013),
grande parte do trabalho policial se faz ao largo das grandes opera-
ções, com poucos recursos. Os resultados, longe de serem exempla-
res, são pífios, como constata pesquisa do Ministério da Justiça que
aponta para um número recorde de homicídios – 59.627 casos, atua-
lizando para o ano de 2016 (WAISELFISZ, 2016) números já impres-
sionantes publicados anteriormente (WAISELFISZ, 2011) – com índi-
ces de solução mínimos, na média entre 5% e 8%, quase todos resul-
tantes de prisões em flagrante ou da repercussão do caso na mídia, e
264 Roberto Kant de Lima | Glaucia Maria Pontes Mouzinho
todos com resultados ainda tímidos e controversos, como demons-
tram inúmeras pesquisas (por exemplo, AMORIM, KANT DE LIMA
e BURGOS, 2003; KANT DE LIMA, 2010; MISSE, 2010; SILVA, 2015;
FILPO, 2016).
Enfim, é em razão desse ethos inquisitorial que a sujeição crimi-
nal, sem que sejam necessárias alterações processuais, com a mera
mudança de alvo do processo criminal inquisitorial, atinge efeti-
vamente os segmentos mais favorecidos da sociedade brasileira,
sejam eles agentes públicos ou privados, dotados de prerrogativas
processuais ou não. Embora em proporções diminutas, inverte-se,
com isso, o padrão de punição do sistema processual penal no Bra-
sil, anteriormente dirigido quase que exclusivamente à punição dos
segmentos populares.
A pequena proporção dessa reversão, no entanto, obtém despro-
porcional repercussão, observada pela forte reação na mídia da deci-
são do STF que, recentemente, suspendeu a presunção de inocên-
cia após a condenação por órgão colegiado já na segunda instância
estadual ou federal, o que acarreta a prisão de muitos dos já conde-
nados na Lava Jato. O que passou quase desapercebido nesse debate
sobre em que nível a sentença condenatória transitada em julgado
extingue a presunção da inocência, se o acórdão do STJ ou do STF ou
o da segunda instância (tribunais de justiça estaduais e federais),29
é o fato de que estatísticas do CNJ apontam que aproximadamente
40% das centenas dos milhares de presos no Brasil estão detidos sem
terem nenhuma sentença de primeira instância, algo que não causa
nenhuma reação de revolta pela supressão, na prática, do seu direito
constitucional à presunção da inocência.30 Ainda mais que, quando
essa sentença é proferida, 30% desses presos preventivamente não
são condenados à pena privativa de liberdade.31
29 O STF julgou, no dia 2 de maio de 2018, a diminuição da extensão do foro por
prerrogativa de função em relação a alguns dos cargos e sobre o período de ocorrên-
cia dos fatos criminalizados.
30 http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopes-
quisa/150325_relatorio_aplicacao_penas.pdf. Acesso em: 15 ago. 2016.
31 http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-
-custodia/perguntas-frequentes. Acesso em: 15 ago. 2016.
266 Roberto Kant de Lima | Glaucia Maria Pontes Mouzinho
Essas desigualdades de tratamento jurídico e, principalmente,
mas não exclusivamente, processual penal32 impede a constituição
da crença de que há no Estado democrático de direito um mínimo de
direitos que são comuns a todos seus diferentes cidadãos, sendo os
tribunais a instituição que resguarda tais direitos quando, de alguma
maneira, são feridos por outros cidadãos ou pelo próprio Estado
(MARSHALL, 1967). Em consequência, associam-se direitos a pri-
vilégios estamentais, em uma representação de que se os semelhan-
tes têm os mesmos direitos, os diferentes deles terão outros direitos,
mas nunca os mesmos direitos. E os tribunais, em vez de serem os
guardiões dos direitos civis, transformam-se em um poder tute-
lar que tem por função tratar desigualmente aqueles conflitos que
ocorrem entre iguais e aqueles que ocorrem entre desiguais, “qui-
nhoando desigualmente os desiguais na medida em que se desigua-
lam”, nas palavras de Rui Barbosa.
É bom lembrar que esses fatos estão em consonância com o clás-
sico texto, tantas vezes citado – e muitas vezes reproduzido sem
citação –, de João Mendes de Almeida Júnior (1920), que apontava
para a correlação necessária entre a desigualdade social e jurídica e
a inquisitorialidade dos procedimentos penais, fossem eles policiais
ou judiciais. Por essa doutrina, o Estado seria o fiel da balança dos
conflitos da sociedade, definindo previamente, a seu critério (ou dos
seus agentes), qual deveria ser seu tratamento jurídico ou judiciá-
rio, conforme fossem conflitos entre iguais ou entre desiguais, con-
siderando-se seu respectivo status social e jurídico. Permanece e se
reproduz, assim, a tradição estatal de nosso direito público desde a
inauguração das faculdades de Direito no Brasil no século XIX, desti-
nadas a formar quadros para a administração do Estado e não advo-
gados para proteger os cidadãos contra os abusos do Estado (FAL-
CÃO, 1979; SHIRLEY, 1987).
Assim, as tradições jurídicas no Brasil continuam a enfatizar
seu papel secular de instrumentos de controle desigual da socie-
dade, da qual estão excluídos o Estado e seus agentes judiciários,
aparentemente infensas a mudanças culturais e sociais que se veri-
ficam no decorrer de nossa história. Reafirma-se, dessa maneira, a
32 Veja-se, por exemplo, as regras jurídicas extremamente excludentes que regem
a aquisição e transmissão, por registro público, do direito de propriedade.
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272 Roberto Kant de Lima | Glaucia Maria Pontes Mouzinho
O direito às origens: segredo e
desigualdade no controle de informações
sobre a identidade pessoal1
Claudia Fonseca2
1 Este capítulo é uma versão modificada do artigo de mesmo título publicado pela
autora na Revista de Antropologia, v. 53, nº 2, p. 493-526, 2011.
2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
3 ABA+60: os Antropólogos e a Antropologia na Esfera Pública. Cenários Contem-
porâneos e Políticas para o Futuro. Brasília, 19 a 21 de agosto de 2015.
273
Direitos, direitos humanos e a antropologia brasileira
Os direitos humanos têm sido uma preocupação central da Asso-
ciação Brasileira de Antropologia desde sua fundação há 60 anos. É
difícil encontrar um só antropólogo sênior no Brasil que não tenha
uma longa história de envolvimento na luta de diferentes catego-
rias por seus direitos fundamentais. Tive o privilégio de participar,
nesses últimos anos, em diversos concursos de titularidade.4 Fiquei
atônita ao constatar a quantidade e o leque de atividades em prol dos
direitos humanos realizadas por esses colegas ao longa da carreira –
parcerias, consultorias, cursos de especialização, negociações com
autoridades de governo, entre outros. (E tudo isso além de suas tare-
fas rotineiras de ensino e pesquisa.) Esses profissionais pautam um
trabalho contínuo, transformando seus conhecimentos nas mais
diversas áreas – saúde e políticas públicas, gênero e sexualidade,
meio ambiente, povos tradicionais – em arma para a promoção dos
direitos.
Há certo número de anos, a ABA tem consolidado essa temática
com a criação da Comissão dos Direitos Humanos, nos concursos do
Prêmio ABA de DH (ABA-Ford) e na publicação periódica de cole-
tâneas com as contribuições premiadas de jovens pesquisadores.
Consultando o caderno de programação da última reunião da ABA
(2015), encontrei a noção de direitos humanos em nada menos que
25 diferentes mesas-redondas e grupos de trabalho: aparece não
só em relação a tortura, policiamento, vítimas da ditadura e lei de
anistia. Está presente também nas discussões sobre migrações, qui-
lombolas, direitos indígenas, deficiência, conflitos ambientais, pós-
-colonialismo, arte etc. De forma semelhante, as diversas mesas-
-redondas no presente evento (ABA+60) atestam o papel central da
ABA no fomento aos direitos humanos. Como Mariza Peirano (1992)
já observou há décadas, o antropólogo brasileiro se distingue justa-
mente por essa tendência de estudar e se preocupar com problemas
perto de casa, participando dos acontecimentos tanto como cidadão
quanto como pesquisador.
4 Foram concursos dos professores Russel Parry Scott, Antonio Carlos de Souza
Lima, Miriam Grossi, Luiz Fernando Dias Duarte e Carmen Rial.
274 Claudia Fonseca
Olhando para essa vasta e contínua produção de antropólogos
brasileiros, cabe chamar atenção para um fio mestre que tem nos
acompanhado desde o início, sendo sofisticado e expandido nesses
últimos anos: a importância que atribuímos à “voz do nativo” e o
imperativo, sempre que possível, de trabalhar junto ou em diálogo
com as organizações coletivas. A era pós-colonial e a reconfigura-
ção dos espaços de participação democrática têm provocado, sem
dúvida, um amadurecimento nos modos de análise e engajamento
dos antropólogos. Esse reposicionamento do antropólogo tem pro-
vocado uma imensa quantidade de debates – tanto no Brasil quanto
no resto do mundo (vide demais trabalhos neste volume) – cuja
importância perpassa praticamente todos os campos da antropolo-
gia.
Contudo, no espaço deste capítulo, vou me concentrar numa
dimensão específica das pesquisas sobre direitos humanos: a ideia de
studying up (estudando para cima). Essa veia de análise, se bem que
já existia entre antropólogos no Brasil (vide DEBERT, 1986; KANT DE
LIMA, 1989; OLIVEIRA FILHO, 1989), recebeu um empurrão com a
conferência de abertura da XIX Reunião da Associação Brasileira de
Antropologia (Niterói, ABA/PPGACP-UFF, 1994), de Laura Nader
(1994). Tornou-se, então, consenso que nossas análises não podiam
se ater às dinâmicas das “vítimas” cujos direitos eram consisten-
temente violados. Era preciso usar os métodos etnográficos para
melhor entender os agentes, as normas e os mecanismos dos pode-
res instituídos com os quais esses grupos interagiam.
Por um lado, bom número de antropólogos passou a estudar as
disputas simbólicas envolvidas nos debates sobre direitos huma-
nos, fitando os dispositivos discursivos que subjazem ao campo,
dos sujeitos de direito (“mais e menos humanos”) até as “vítimas”
de infortúnios (FONSECA e CARDARELLO, 1999; RIBEIRO, 2003;
RIFIOTIS, 2014). Tornou-se evidente como essa arena estava inte-
grada em fluxos transnacionais carregados de filosofias de governo
que refletiam perspectivas e interesses bem situados. Por outro lado,
um grupo crescente de antropólogos elegeu como objeto de análise
as próprias leis nacionais e internacionais, dirigindo suas análises
aos atores e relações de força que desembocavam em uma versão
ou outra das normas oficiais (FONSECA, 2009b; TEIXEIRA, 1998).
O direito às origens: segredo e desigualdade no controle de informações sobre a identidade pessoa 275
Uma terceira vertente concentrava esforços nas próprias “práticas
de justiça” – detalhados estudos etnográficos sobre a implementa-
ção de determinadas normas jurídicas, suas condições de possibili-
dade e seus efeitos concretos. Mas tal abordagem se mostrou, afinal,
inseparável do estudo de “sensibilidades jurídicas” – que sublinhava
os variáveis sentidos e experiências de pessoas na sua convivência
cotidiana com a lei (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996; SCHUCH, 2009;
VIANNA, 2005; LUGONES, 2009; SCHRITZMEYER, 2012; MELLO,
MOTA e SINHORETTO, 2013).
“Estudar para cima” não excluiu a necessidade de olhar para
todos os elos do sistema, incluindo pessoas colocadas alto e baixo
nas hierarquias de poder. Porém, consistente com as transformações
que perpassavam o campo amplo da antropologia, o foco se deslocou
da cultura, dos valores e das mentalidades para os sistemas dinâmi-
cos de interação, as moralidades e as formas de subjetivização. No
bojo das novas perspectivas, as próprias “tecnologias de governo”
se tornaram objeto de análise. Os pesquisadores passaram a levar
mais a sério os mediadores embrenhados na implementação de leis e
políticas. Porém, cada vez mais, atentavam para a agência das pró-
prias estruturas burocráticas e administrativas que, em certas situa-
ções, pareciam encerrar um poder independente dos discursos e das
intenções dos administradores (SOUZA LIMA, 2014).
Esses múltiplos e entrecruzados vetores analíticos, situando os
direitos humanos entre as “tecnologias de governo”, já proliferavam
nas diversas reuniões regionais e nacionais no Brasil quando surgiu,
em 2009, o I Encontro Nacional de Antropologia do Direito (Enadir),
organizado por Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer na USP (hoje indo
para sua quinta edição). A reflexão a seguir, apresentada naquele
primeiro encontro, procura espelhar, na medida do possível, essa
riqueza de discussões que caracterizam o estudo do direito e dos
direitos humanos no Brasil.
276 Claudia Fonseca
Filhos Adotivos do Brasil durante o primeiro ano de sua existência.5
As reuniões, anunciadas pela mídia local, assim como pelo site na
internet, atraíam, antes de tudo, pessoas que queriam informação e,
eventualmente, contato com suas famílias de nascimento (ver FON-
SECA, 2015). Desde a primeira reunião à qual eu e outros membros
da equipe assistimos, fiquei comovida pela dramaticidade dos rela-
tos, quase sempre seguindo uma linha narrativa semelhante. Os pais
adotivos “esconderam” do filho (ou deixaram de mencionar) o fato
de que ele era adotado. Já adolescente ou jovem adulto, esse filho
recebeu um choque enorme quando alguém lhe atirou, em forma
de ofensa, que ele era “apenas” um filho adotado. Os pais adotivos,
mesmo confrontados com a verdade, se furtavam a qualquer discus-
são e muitos negavam (literalmente até a morte) o próprio fato da
adoção. (Não é por acaso que a maioria das pessoas que frequenta-
vam a associação nessa época tinha mais de 40 anos. Podemos supor
que, de tanto temer alienar seus pais adotivos, esperaram até eles
morrerem para começar a buscar informações sobre suas famílias de
origem.)
Espelhando o sucesso de organizações semelhantes nos EUA
(CARP, 2004), o site da associação recebeu, nos primeiros meses
depois de sua criação, centenas de cartas de adotados que, na espe-
rança de localizar parentes, relatavam dados de seu “abandono”.
Como explicar um retorno tão entusiasta? Há algo no contexto atual
que atiça o desejo do adotado de conhecer “suas origens”?
Sem dúvida, as inquietações da era genômica constam como
relevantes. A biomedicina enfatiza a importância dos genes, subli-
nhando a ameaça de doenças hereditárias e a relevância de paren-
tes consanguíneos para transplantes e outros procedimentos vitais
para a saúde do indivíduo. É praticamente impossível escapar dessa
“biologização” da vida social que permeia o cenário contemporâneo
(LUNA, 2005). As projeções (muitas vezes exageradas pela imprensa)
de descobertas na área da biotecnologia têm alimentado uma antiga
noção de que, no que diz respeito ao comportamento humano, a cul-
O direito às origens: segredo e desigualdade no controle de informações sobre a identidade pessoa 277
tura e a vida social são mera “cobertura” no bolo da biologia. Nesse
clima, temos a impressão de que o que realmente importa é de onde
viemos em termos genéticos. Não é, portanto, nada surpreendente
que o número de adotados em busca de suas “verdadeiras” origens
esteja aumentando.
Entretanto, apesar de importante, a ênfase na influência da
biotecnologia arrisca deixar na sombra outros aspectos igualmente
importantes da “busca de origens” – por exemplo, o papel da lei
(entre outros instrumentos da ordem pública) na construção e no
direcionamento dos sentimentos pertinentes à esfera familiar. Para
chegar a esses cantos mal iluminados de nosso tema, aciono uma
variedade de técnicas de investigação. Desde os anos 1980, realizo
pesquisas etnográficas entre famílias urbanas de baixa renda. Envol-
vida há tempo na questão dos direitos da criança, procuro entender
como o Estado – na forma de leis, políticas públicas e instituições –
intervém para promover o bem-estar social em situações de grande
adversidade (FONSECA, 1995, 2006a). Nos últimos anos, tenho rea-
lizado pesquisas também em instâncias institucionais – em abrigos,
juizados, ONGs, entre profissionais de direito, psicologia e serviço
social – para aprofundar minha compreensão da lógica embutida nas
orientações normativas formuladas por legisladores e administra-
dores em nome dos direitos da criança (FONSECA e SCHUCH, 2009).
Entre 2007 e 2009, ao focar, enfim, a “busca de origens”, realizei
entrevistas entre membros da Associação Filhos Adotivos do Brasil
e, depois, entre profissionais do Juizado de Infância e Juventude em
Porto Alegre. Tal como prevê a etnografia multissituada (MARCUS,
1998, p. 85), ao me deslocar da Associação para o Juizado, não estava
simplesmente acrescentando uma nova perspectiva (dos operadores
de justiça) para “completar” a dos adotados. Com cada nova etapa
da pesquisa, impunha-se uma reconfiguração do próprio objeto de
pesquisa, a progressiva diluição de oposições binárias (“nós” versus
“eles”, “usuários” versus “profissionais”) e certo questionamento
das “narrativas de resistência” que ouvira dos adotados. Em outras
palavras, enquanto conversas com os adotados me tinham “pre-
parado” para as observações que faria no juizado, o contato direto
com profissionais do juizado suscitou novas maneiras de interpretar
278 Claudia Fonseca
as narrativas dos que buscavam seus direitos.6 Enfim, partindo do
pressuposto de que a busca das origens encerra muitos dos proble-
mas encontrados nas discussões sobre outros direitos fundamen-
tais, sublinho ao longo do texto como os direitos são politicamente
construídos, envolvendo sujeitos que vivem num mundo relacional,
e como sua implementação passa pela microfísica dos espaços admi-
nistrativos.
O direito às origens: segredo e desigualdade no controle de informações sobre a identidade pessoa 279
A partir dos anos 1980, uma série de acontecimentos transfor-
mou a aparente indiferença estatal diante da questão da adoção. Um
aparato burocrático mais abrangente e a especialização de serviços
de atendimento à criança e ao adolescente foram elementos impor-
tantes. Também teve certa influência a adoção internacional, que
estava em crescimento ao longo dos anos 1980, colocando o Brasil
como um dos maiores exportadores mundiais de adotados. E, como
em outros países exportadores (a Índia passava pela mesma fase), a
“hemorragia” desses pequenos cidadãos passou a ser vista como um
atentado à honra nacional. A opinião pública conclamava os legis-
ladores a tomar medidas para estancar “a sangria” (ABREU, 2002;
FONSECA, 2006b). Não é por acaso que, ao final dessa década, o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990) tenha dedicado
considerável espaço à regulamentação da adoção internacional. Mas
no processo também emergiu uma nova normatização da adoção
nacional. A adoção simples (em que a filiação adotiva é adicionada
à biológica) foi abolida e a adoção plena (em que a filiação adotiva
substitui a anterior, obliterando a existência da família biológica) foi
estabelecida como única possibilidade. No artigo 41 do ECA, lê-se
(grifo nosso): “A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com
os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o
de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos
matrimoniais”.7
Para nos distanciarmos de análises que tendem a naturalizar a
evolução legislativa como se fosse inevitavelmente numa direção
mais moderna e progressista, cabe lembrar que, em outros lugares,
houve considerável controvérsia em torno da adoção plena. Pen-
semos, por exemplo, nos debates que acompanharam a Convenção
de Haia sobre a Proteção de Crianças e a Cooperação para a Adoção
Internacional (1993) – um documento que desaconselha qualquer
comunicação entre as famílias (de nascimento e adotiva), tendendo a
endossar o princípio da “ruptura limpa” da adoção plena. Em 2000,
280 Claudia Fonseca
um relatório comissionado para avaliar o andamento da convenção
chamou atenção para o fato de que certos países (em geral, os paí-
ses “fornecedores”) praticam apenas a adoção simples, enquanto a
maioria dos países do Norte exige uma adoção plena para as crianças
adotadas internacionalmente que entram no país. Muitos dos dele-
gados de países “fornecedores” contestaram a cláusula da convenção
que recomenda a conversão automática de adoção simples em plena.
Insistiam que: “Às vezes, a adoção simples é realizada não porque
não há outras alternativas, e sim porque os pais de nascimento não
querem cortar todos os laços legais com seu filho” (SPECIAL COM-
MISSION…, 2000, art. 78). Haveria a necessidade de proceder com
muita cautela, pois, em certos casos, a adoção plena representaria
uma espécie de desapropriação dos pais de nascimento, dando à
adoção efeitos que não foram previstos no termo de consentimento
que teriam assinado.
Alguns analistas comentaram a ironia de os países do Norte
defenderem a “ruptura limpa” na arena internacional enquanto
praticam outra política em casa. Referem-se ao fato de alguns países
do hemisfério Norte – os EUA e o Reino Unido, por exemplo – terem
modificado suas políticas de adoção nacional para admitir mais con-
tato entre as famílias (de nascimento e adotiva) e facilitar acesso dos
adotados às informações sobre o processo adotivo. Conforme uma
antropóloga britânica:
O direito às origens: segredo e desigualdade no controle de informações sobre a identidade pessoa 281
Encontros frustrantes com as burocracias institucionais
A Convenção dos Direitos da Criança das Nações Unidas (1989) –
outro documento de referência internacional (anterior à Convenção
de Haia) – estabelece claramente a responsabilidade do Estado em
preservar a identidade da criança, adotada ou não:
ARTIGO 8
1. Os Estados Partes se comprometem a respeitar o direito da
criança de preservar sua identidade, inclusive a nacionalidade, o
nome e as relações familiares, de acordo com a lei, sem interfe-
rências ilícitas.
2. Quando uma criança se vir privada ilegalmente de algum ou
de todos os elementos que configuram sua identidade, os Estados
Partes deverão prestar assistência e proteção adequadas com vis-
tas a restabelecer rapidamente sua identidade.
282 Claudia Fonseca
tinha, se seus pais viviam juntos quando nasceu etc. – mas ela queria
nomes. Quando os tribunais nacionais lhe negaram essa informação,
Mme. Odièvre invocou a Convenção dos Direitos da Criança, levando
seu pleito à Corte Europeia de Direitos Humanos. Passaram-se cinco
anos de debate. Disputavam-se pontos como a autonomia da mãe de
nascimento, seu direito à privacidade e a eficácia do procedimento
sous-x na prevenção do aborto e do infanticídio (LEFAUCHEUR,
2004). Finalmente, em 2003, a Corte deliberou contra a demanda de
Odièvre. Entre outros motivos, julgou que a Convenção dos Direitos
da Criança não se aplicava nesse caso, pois a autora do processo não
era mais criança (LEFAUCHEUR, 2004).8
As narrativas dos filhos adotivos que entrevistei em Porto Alegre
apontam para ainda outro exemplo de como as orientações quanto
à preservação da identidade da criança, “incluindo […] as relações
familiares”, têm sido traduzidas num contexto local – essa vez, no
Brasil. Conforme a redação original do ECA, as informações arqui-
vadas sobre a vida pré-adotiva da criança podem ser reveladas “a
critério da autoridade judiciária […] para a salvaguarda de direitos”
(art. 47, § 4º). Mas ao escutar o relato dos adotados que, partindo em
busca desses documentos, bateram contra a recusa persistente dos
poderes judiciários, temos a impressão de que muitos não tiveram
mais sorte do que Mme. Odièvre.
Uma primeira queixa (já mencionada) é de que a família adotiva
escondeu deles a “verdade” de seu status adotivo. Mas existe uma
segunda queixa dos adotados, igualmente carregada de mágoa, que
diz respeito à resistência das burocracias – do hospital, do cartó-
rio e do tribunal – em colaborar na sua busca por informações. Cabe
lembrar que muitas dessas pessoas não foram legalmente adota-
das. Nesse caso, não é no juizado que vão encontrar os documen-
tos relevantes. É nos hospitais, entre registros que coincidem com
sua suposta data de nascimento. Nesse caso, a não ser que o ado-
tado tenha conexões poderosas que lhe abram portas (e gavetas),
exige-se um mandato judicial para ter acesso aos registros. E mesmo
com o mandato em mãos, os adotados encontram novos obstáculos.
8 Cabe, contudo, observar que o caso marcou o cenário legal europeu, imprimindo
o direito às origens como direito humano fundamental e provocando diversos ajus-
tes legislativos.
O direito às origens: segredo e desigualdade no controle de informações sobre a identidade pessoa 283
Dizem-lhes que os arquivos do ano em que nasceram foram perdidos
ou queimados ou que não foram arquivados por dia, e sim por mês ou
por ano, complicando a localização de qualquer registro antigo. Se o
adotado chegou a ser registrado em cartório pela mãe de nascimento,
é possível seguir essa pista. Surge, porém, um obstáculo financeiro.
Conforme meus informantes, o cartório cobra uma pequena quantia
por cada registro entregue no balcão. Considerando que, quatro ou
cinco décadas atrás, os bebês não eram registrados logo após o nas-
cimento, mas meses, senão anos, depois, é difícil imaginar como o
adotado pagaria o preço de uma pesquisa de centenas ou milhares de
registros espalhados em diversos cartórios.
Quando se trata de uma adoção legal, o adotado pode solicitar
informações sobre sua identidade original ao juizado local. Entre-
tanto, mais uma vez, a narrativa dos adotados fala de prevaricações,
da sensação de estar sendo “enrolado” ou da recusa explícita. Uma
adotada insiste que o juiz da sua cidade recusou terminantemente
qualquer informação, sentenciando que, enquanto ele fosse respon-
sável pelos arquivos, nenhum adotado receberia informação sobre
sua família de origem.
Qual seria o motivo de tanta resistência? Conforme Weber, esse
tipo de segredo teria a ver com o interesse da administração buro-
crática em manter o monopólio de poder:
284 Claudia Fonseca
(subentendido, o nascimento de filhos adulterinos) para frisar a
necessidade de sigilo nos processos de adoção: “A não-publicidade
de processo e do registro […] visa a impedir as explorações do pai
natural” (Projeto nº 562/1955, de autoria do deputado Jaeder Alber-
garia, apud SIQUEIRA, 1997, p. 27, grifo nosso).
Contudo, pesquisas atuais sugerem que as circunstâncias, hoje,
são outras. A maioria das crianças adotáveis são fruto não dos “amo-
res espúrios” de homens casados, mas da simples miséria.9 É possível
que a desigualdade e o medo de exploração ainda ditem a necessi-
dade de sigilo, mas, nas circunstâncias atuais, o sigilo seria invocado
para proteger os pais adotivos contra qualquer tipo de chantagem.
Certos depoimentos dos entrevistados apoiam essa hipótese: “O juiz
diz que, em 30 anos, só revelou uma vez essa informação, porque a
filha adotada precisava de um tratamento médico. Mas o juiz tomou
cuidado para não revelar nenhuma informação específica à família
de origem, porque eram muito pobres e podiam querer tirar pro-
veito”.
Seja qual for o motivo dos administradores, meus interlocuto-
res enfatizam o que consideram como indiferença e até hostilidade
dos vários “porteiros” (autoridades nos hospitais, nos cartórios e
nos juizados) que controlam o acesso à informação dos arquivos.
Dizem ter ouvido frases como “O quê? Cinquenta anos nas costas
e ainda não resolveu seus problemas adolescentes de identidade?”
ou comentários dando a entender que é só o filho ingrato que busca
suas origens, quando sua “verdadeira” família é quem o salvou do
abandono. É irônico que tudo isso ocorra justamente num momento
quando, em debates públicos, há certa insistência na importância
da “voz da criança” nas decisões que lhe dizem respeito (LUGONES,
2009). Nossos entrevistados consideram que seus direitos foram
violentados durante sua infância. Entretanto, tal como no caso de
Mme. Odièvre, têm dificuldade de encontrar uma escuta para suas
“vozes”. Do ponto de vista dos adotados, o ECA – ao deixar a divul-
9 Uma pesquisa nacional do Ipea (2003) sugere que cerca de um quarto das crian-
ças e adolescentes abrigados foram institucionalizados por “carência de recur-
sos materiais da família”. Pesquisas qualitativas sugerem que outros motivos de
ingresso na instituição, tais como “negligência”, “abandono” e “violência”, são
frequentemente indistinguíveis de situações de falta total de recursos (FONSECA e
CARDARELLO, 1999).
O direito às origens: segredo e desigualdade no controle de informações sobre a identidade pessoa 285
gação de informação à discrição de autoridades jurídicas – simples-
mente trouxe para dentro das instituições públicas o “segredo de
origens” que tinha sido tão ferozmente defendido por seus pais ado-
tivos.
286 Claudia Fonseca
época, o controle cada vez mais acirrado de informações foi produto
e produtor dos significados negativos associados à procura de ori-
gens. Durante os anos 1950 e 1960, os poucos adotados que ousavam
procurar dados sobre suas famílias consanguíneas eram rotulados
de neuróticos – o resultado de adoções malsucedidas (SAMUELS,
2001). Reações contra a eugenia da Alemanha nazista tinham refor-
çado a convicção de que a “cultura” pesava infinitamente mais no
desenvolvimento infantil do que a “natureza”, abrindo caminho
para a autossuficiência da família adotiva. E interpretações simplis-
tas da teoria de apego insistiam que a criança precisava de um vín-
culo intenso com um cuidador principal. Na ausência dessa exclu-
sividade, previam-se consequências desastrosas para a criança: na
melhor das hipóteses, uma personalidade superficial; na pior, com-
portamentos antissociais ou mesmo delinquentes.
Depois da Segunda Guerra, uma nova orientação terapêutica fri-
sava a necessidade de comunicar ao jovem seu status adotivo, mas
não era visto como necessário, nem sequer desejável, revelar qual-
quer informação sobre sua família de origem. Foi apenas 20 ou 30
anos mais tarde, quando essas crianças adotadas chegaram à maio-
ridade, que os ventos começaram a mudar. Na Europa e na América
do Norte, os adultos que tinham sido adotados na infância passaram
a se organizar em associações coletivas reivindicando acesso aberto
aos dados de sua biografia. Não somente combatiam o monopólio de
controle dos tribunais sobre essas informações; em muitos casos,
conclamavam a ajuda ativa do Estado nessa sua “procura de origens”
(MODELL, 1997; SOLINGER, 2002). A Inglaterra foi um dos primei-
ros países a abrir seus registros aos filhos adotivos acima de 18 anos.
A partir de 1975, os pais que entregavam seus filhos em adoção eram
informados de que estes, chegando à idade adulta, teriam o direito
de saber todos os detalhes de suas adoções, inclusive a identidade e o
endereço (quando disponível) dos pais de nascimento.
Nos anos 1980, a preocupação com “o direito às origens” se
alastrou além da iniciativa de um ou outro governo nacional, aden-
trando as discussões da década internacional da criança declarada
pelo Unicef. Esse direito, já enunciado pelos adotados e suas asso-
ciações, foi reforçado através de dois itens de debate. Por um lado,
aumentava o número de adoções transnacionais. As crianças vinham
O direito às origens: segredo e desigualdade no controle de informações sobre a identidade pessoa 287
de longe – da China, da Coreia, da Índia, da Colômbia, da Etiópia,
do Brasil – para se integrar a famílias europeias e norte-america-
nas. Não tinham a mesma cor de pele que seus pais adotivos – o que
tornava praticamente inviável qualquer tentativa de “esconder” seu
status adotivo. Não é por acaso que foi logo com essas crianças que
se acirraram as discussões sobre o “respeito às origens”, abrindo a
possibilidade de elas cultivarem vínculos com elementos pré-adoti-
vos de suas biografias (YNGVESSON, 2007).
Por outro lado, vinham à tona os crimes da ditadura militar na
Argentina, que tinha se apropriado de centenas de bebês – filhos dos
“desaparecidos” presos, sequestrados ou mortos durante o regime.
Sob a liderança das Madres (e abuelas) de la Plaza de Mayo, os
debates sublinhavam os abusos potenciais ligados ao segredo de jus-
tiça, isto é, ao controle estatal de informações que pudessem enco-
brir crimes hediondos (VILLALTA, 2006, 2010; REGUEIRO, 2010;
SANJURJO, 2013). Depois de tudo, foi sob o sigilo de justiça envol-
vido na adoção rotineira que os militares tinham conseguido apagar
a genealogia das crianças para entregá-las “limpas” a novos pais.
Esses debates surtiram efeito. Ao longo da formulação da Conven-
ção dos Direitos da Criança (1989), as preocupações sobre o abuso
no campo da adoção se estenderam do rapto durante uma ditadura
à desapropriação indevida de crianças em qualquer população polí-
tica ou economicamente oprimida. Foi no bojo dessa discussão que
entraram as cláusulas na convenção sobre a preservação da identi-
dade das crianças.
O saldo desse processo tem sido certa abertura quanto à busca
de origens de pessoas que foram adotadas na infância, especialmente
quando vieram de longe. Nos últimos anos, na Europa e na América
do Norte, o desejo de adotados de “conhecerem suas origens” veio
a ser um tema não somente legítimo, mas apoiado, com certo entu-
siasmo, pela maioria das pessoas ligadas ao campo da adoção. Num
primeiro momento, houve tentativas de dirigir essa “busca” para
o exótico, interpretando a “origem” em termos da cultura nacio-
nal. Por exemplo, na Europa, para ajudar seus filhos a se sentirem
“conectados” a suas origens, pais adotivos de crianças brasileiras se
juntavam para festejar o carnaval. Providenciavam aulas de língua
portuguesa e, eventualmente, a família adotiva fazia uma viagem
288 Claudia Fonseca
“de retorno” para a criança conhecer a cidade ou o abrigo onde tinha
ficado antes da adoção (HOWELL, 2006; YNGVESSON, 2007). Mas,
aos poucos, se tornou evidente que, para boa parte dos que “bus-
cam”, os adornos culturais não substituem informação sobre rela-
ções concretas. Procuram nomes e endereços para poder encontrar
pessoas com respostas a suas perguntas: quem são meus parentes
consanguíneos? Tenho irmãos? Vivem ainda? Posso escutar deles o
porquê do meu “abandono”?
Ironicamente, no lugar da antiga censura, surgem agora teo-
rias psicológicas para justificar essa busca, apresentando-a como
algo “natural” e até necessário para a saúde emocional do adotado.
Conforme o novo dogma, conhecer as origens seria uma necessidade
universal que permite aos adotados sanar “sua perplexidade genea-
lógica” e remendar a “narrativa quebrada de si” (VOLKMAN, 2009).
Entretanto, pesquisas com adotados que cresceram na Europa e na
América do Norte têm dado visibilidade a um grande repertório de
narrativas sobre o “reencontro” entre o adotado e sua família de ori-
gem – o que põe em dúvida qualquer “solução” única (YNGVESSON,
2007). Em algumas narrativas, o reencontro consta apenas como
uma experiência passageira, depois da qual o adotado resume sua
vida sem mais contato. Em outras, é o início de uma nova relação a
ser elaborada através dos anos. Nesse caso, os adotados – sendo que
a maioria veio de situações de grande pobreza e foi adotada em famí-
lias de renda média ou alta – têm de lidar com a ideia de ter “primos
pobres”, muito pobres. Conscientes desse risco, há adotados que não
procuram contato com suas famílias de origem. Finalmente, exis-
tem adotados que dizem não sentir nenhum interesse particular em
“conhecer suas origens”, que desconhecem os problemas da “iden-
tidade fragmentada” supostamente inerente ao seu estado adotivo
(ver HOWELL, 2006). Nesse debate, fica patente a distância que ana-
listas assumem em relação a vieses essencialistas que sacralizam “o
apelo do sangue”. Pelo contrário, a variedade de narrativas sugere a
importância de conjunturas específicas e trajetórias particulares na
produção de noções sobre família, identidade pessoal e a necessi-
dade (ou não) de busca de origens.
O direito às origens: segredo e desigualdade no controle de informações sobre a identidade pessoa 289
Desafios administrativos e éticos enfrentados pelos mediadores
No Brasil, a preocupação com o direito à identidade dos adotados
tardou a se manifestar na legislação. Apenas em 2009, uma refor-
mulação do ECA chegou a tocar no assunto (Lei 12.010/2009). Entre
as várias cláusulas, esclarece quais as relações permitidas entre uma
criança adotada, a família que a engendrou e a família que a criou.
Consideremos em particular o artigo 48, sobre o direito de o adotado
ter “acesso irrestrito” à informação sobre suas origens:
290 Claudia Fonseca
Se encontramos, nos relatos dos adotados, insinuações quanto
à má vontade ou mesmo à recusa aberta das autoridades judiciárias
em apoiar sua busca por informações, os profissionais do JIJ falam
mais dos obstáculos administrativos que independem de sua von-
tade. Os adotados procuram dados sobre algo que aconteceu 30,
40 ou 50 anos atrás, época em que a organização administrativa do
Estado não gozava de eficiência sistemática. A digitalização dos dos-
siês começou apenas em torno de 2005 – os 20 anos anteriores ainda
existem no papel, guardados no JIJ. Mas os dossiês mais antigos estão
espalhados pela cidade em grandes galpões que juntam os arquivos
mortos de diversas instâncias jurídicas. Achar um processo nessa
situação é como procurar uma agulha num palheiro.
Sobre as “adoções à brasileira” (adoção por falsa certidão de nas-
cimento), os juizados não têm nenhum registro. Nesse caso, o jui-
zado pode emitir um mandato para as antigas maternidades abrirem
seus arquivos, mas não tem como garantir a plena colaboração dos
administradores hospitalares. Há um ou outro oficial do JIJ reconhe-
cido pelo seu talento de detetive em rastrear a história de adotados,
mas esses oficiais trabalham também com outros tipos de processo e
a sobrecarga de trabalho rotineiro deixa pouco tempo para se dedi-
car aos casos mais difíceis.
Confrontados por adotados em busca das origens, os profissionais
do juizado levantam ainda outro problema, esse de fundo ético. Diz
respeito ao direito de a mãe de nascimento ter sua identidade res-
guardada. Em geral, meus entrevistados frisavam que a grande maio-
ria das famílias de origem aceitaria de bom grado, e até com alegria,
um contato com seus filhos. Citavam casos paradigmáticos – como o
da mãe que telefona ao juizado todo ano, no aniversário de seu filho,
para marcar, de alguma maneira, sua lembrança desse filho dado em
adoção. Trata-se de uma mulher que, durante a primeira gravidez, se
encontrava numa situação intolerável de penúria. Não achando outra
solução para garantir o bem-estar de seu bebê, o entregou em adoção.
Seis meses depois, encontrou um “homem trabalhador” com quem
podia formar uma família, mas entendeu que já era tarde para incluir
seu primeiro filho no seu novo arranjo doméstico. Os termos da ado-
ção irrevogável tinham sido bem explicados e nunca lhe passou pela
cabeça pedir para reaver seu filho… Só queria informações.
O direito às origens: segredo e desigualdade no controle de informações sobre a identidade pessoa 291
Contudo – meus interlocutores me explicaram –, sempre há
exceções à regra. Para algumas mães, a revelação súbita de uma
criança dada em adoção décadas atrás pode representar uma intro-
missão dramática na sua vida. São mulheres que, depois de entregar
o filho, voltaram à rotina, sem nunca contar sua história a ninguém.
Casaram, viveram 30, 40 anos sem que seu marido ou filhos soubes-
sem do bebê dado em adoção. Nesse tipo de história, a intermediação
do juizado se torna vital. Antes de atender à solicitação do adotado
em busca de suas origens, antes de lhe entregar seu processo “no
balcão”, os profissionais estimam que devem entrar em contato com
a mãe de nascimento, sondando sua disponibilidade para um even-
tual reencontro. São considerações dessa ordem que podem susci-
tar a apreensão de profissionais diante do dispositivo da nova Lei de
Adoção que garante ao adotado com mais de 18 anos “acesso irres-
trito ao processo no qual a medida [de adoção] foi aplicada”.
Não por coincidência, em outros contextos nacionais, a con-
quista do direito do adotado à informação veio acompanhada de
ressalvas quanto à privacidade dos pais de nascimento. Nos Esta-
dos Unidos, onde, conforme algumas estimativas, 2,5% das famílias
incluem uma criança adotada, a “abertura dos arquivos” é debatida
em cada estado. Numa recente iniciativa popular no estado do Ore-
gon, a abertura foi provocada por um tipo de plebiscito que mobili-
zou todos os eleitores. Nesse estado, nos três anos seguindo a imple-
mentação da nova norma legal (2000-2003), mais de sete mil ado-
tados solicitaram e receberam sua certidão original (CARP, 2004).
Porém, é fundamental notar que, neste como em outros casos, as
objeções mais sérias à proposta de “abrir os arquivos” giraram em
torno do direito de a mãe de nascimento manter o anonimato
(ver CARP, 2004). No Oregon, os oponentes da “abertura”, lidera-
dos pelas associações de pais adotivos, conseguiram localizar e “dar
voz” a um punhado de mães de nascimento que reivindicavam seu
direito à privacidade. Não conseguiram impedir a aprovação da nova
lei. Entretanto, a “abertura de arquivos” veio condicionada ao esta-
belecimento de um cadastro em que as mães de nascimento podem
assinalar se querem ou não contato.11
11 O cadastro consta apenas como mais uma informação, não criando nenhum
obstáculo legal ou administrativo ao acesso do adotado à sua certidão original. Nos
292 Claudia Fonseca
A Inglaterra teve outra maneira de lidar com esse assunto. Desde
as mudanças na lei, em 1975 e 1976, todo adotado tem o direito de
exigir uma cópia de sua certidão original de nascimento, onde cons-
tam os nomes dos pais e, em certos casos, o endereço destes na época
do seu nascimento. Em anos recentes, o acesso a esse documento tem
sido facilitado pelo site na internet, aberto pelo Cartório Geral de
Registro Civil.12 Hoje, todo o procedimento pode ser feito por inter-
net e correio. O único “senão” diz respeito a pessoas nascidas antes
da lei de 1975. Nesse caso, para receber as informações almejadas,
elas devem passar por uma sessão de aconselhamento. Aí, aprende-
rão que, na época em que nasceram, a lei não previa a abertura dos
arquivos e que, portanto, é possível que seus pais de nascimento não
esperem ou não queiram contato.13
Nos dois casos anteriores (de Oregon, EUA, e da Inglaterra),
vemos como uma consideração pela família de nascimento pode ser
institucionalizada nos arranjos administrativos visando à imple-
mentação do direito do adotado à informação. No Brasil, a situação é
outra. Durante décadas, os pais de nascimento eram sumariamente
eliminados da biografia de seus filhos adotados. Agora, com a nova
Lei de Adoção e o “acesso irrestrito” do adotado à informação, as
famílias voltam subitamente à cena – quer queiram, quer não.
O direito às origens: segredo e desigualdade no controle de informações sobre a identidade pessoa 293
que estudam a circulação de crianças em populações tradicionais e
minoritárias – entre famílias indígenas da América do Sul, famílias
negras na América do Norte, famílias havaianas, maori ou outras –
têm sublinhado a conexão entre a reprodução biológica e a reprodu-
ção social e cultural. Constataram que, em certas situações, quando
autoridades públicas tiram crianças de suas famílias “negligentes”,
põe-se em risco a própria continuidade do grupo e seu direito de
socializar futuras gerações (ROBERTS, 2002; FERREIRA, 2000;
MODELL, 1997).
Na Europa e na América do Norte, houve reações contra essa
desapropriação de crianças. Surgiram associações de pais de nasci-
mento para exercer um peso político sobre os processos legislativos,
reivindicando formas mais “abertas” de adoção. Dessa maneira, vie-
ram à tona, entre outras novidades, políticas que permitem aos pais
maior acesso à informação ou mesmo certa participação, junto com
os profissionais do campo, nas decisões que afetam seus filhos (GRO-
TEVANT e MCROY, 1998; FINE, 2000).14
No Brasil, apesar de serem frequentemente oriundas de grupos
étnicos discriminados, as crianças entregues em adoção são vistas
em termos de casos individuais. Suas mães não gozam tradicional-
mente de um status favorecido na hierarquia dos “sujeitos de direi-
tos”. Até 20 anos atrás, os serviços de atendimento ofereciam pou-
cas alternativas aos pais que passavam por uma situação crítica: ou
eles se “organizavam” ou eram destituídos do pátrio poder, seu filho
sendo internado numa instituição da Febem e, possivelmente, dado
em adoção (FONSECA e CARDARELLO, 1999). A partir do fim dos
anos 1990, proliferaram programas visando garantir recursos bási-
cos para a convivência familiar – o aumento do salário-mínimo, o
auxílio bolsa-família e a lenta expansão da rede de educação infantil,
entre outros. Citando o ECA (artigo 23), alguns profissionais passa-
ram a insistir que: “A falta ou a carência de recursos materiais não
constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do pátrio
poder”. Entretanto, havia pouco investimento em famílias de aco-
lhimento, formas flexíveis de adoção ou qualquer outra medida que
pudesse oferecer uma alternativa às famílias que não conseguiam “se
294 Claudia Fonseca
organizar” em tempo hábil. Na época atual, com o encurtamento
de prazos legais para a estadia da criança no sistema institucional,
as famílias – e, em particular, as mães – vivendo em situações de
grande precariedade se encontram diante de um sistema rígido que
desemboca, com cada vez mais eficiência, na perda dos filhos, isto
é, na ruptura total entre a criança e sua família de nascimento, com
todas as implicações de anonimato e abandono.
Conforme as orientações legais, uma vez decidida a entrega, os
pais são destituídos de seu pátrio poder – não tendo direito a mais
nenhum envolvimento na vida do filho. A radicalidade dessa pro-
posta é exemplificada nas palavras de um juiz que, no intuito de dei-
xar bem claras as condições da “entrega”, disse a uma mãe: “[Depois
de assinar o consentimento para adoção,] você não saberá nunca mais
nada do seu filho. Será como se ele tivesse morrido”.15 Nesse caso,
a mãe, visivelmente sacudida pela violência dessas palavras, disse
que não concordava. Só depois de aprender que não tinha nenhuma
outra opção (e se considerando completamente sem condições de
ficar com a criança) assinou o documento à sua frente. Sugerimos
que essa falta de opções é reflexo da extrema desigualdade que atri-
bui um peso político negligenciável às famílias de nascimento.
Nos últimos anos, os grupos de apoio à adoção têm se espalhado
pelo país. Essas associações que agregam, antes de tudo, pais adoti-
vos gozam de interlocução rotineira (e, em geral, amistosa) com os
juizados. Dentro do Congresso Nacional, há pais adotivos. Por exem-
plo, um dos autores do projeto de lei sobre adoção apelou para seu
status de pai adotivo para acrescentar legitimidade à sua proposta.
Entretanto, nos debates dos legisladores brasileiros, procura-se em
vão um espaço que contemple a voz (anseios e ambivalências) dos
pais de nascimento.16 Considerando o silêncio que reina sobre essa
categoria, é quase como se, ao “resgatar o direito” do filho adotado,
se reforçasse a subcidadania dos pais “abandonantes”.
O direito às origens: segredo e desigualdade no controle de informações sobre a identidade pessoa 295
Nossa segunda consideração diz respeito aos processos adminis-
trativos propostos para garantir ao adotado o acesso à informação.
Diversos autores (BOURDIEU, 1989; MOORE, 2001) já discutiram o
poder discricionário do juiz que, sob a cobertura do aparente uni-
versalismo da lei, toma decisões que se orientam, antes de tudo,
por sensibilidades culturais (de classe, raça, nacionalidade, geração
e gênero). Autores como Vianna (2005), Schuch (2009) e Lugones
(2009) sofisticaram esse tipo de análise ao mostrar como o poder
discricionário se estende às várias malhas do sistema administrativo,
incluindo funcionários da administração. Esse poder é especialmente
visível no campo do atendimento à criança e ao adolescente, onde,
diante de situações de grande impacto emocional e apelo moral, os
anseios dos administradores – longe de censurados como anoma-
lias que “interferem” nas suas práticas – são tidos como elemento
“humanizador” que acrescenta legitimidade às decisões.
Considerando essa dinâmica administrativa, é possível que, ape-
sar da nova lei, os adotados continuem a depender da boa vontade
dos administradores para realizar sua busca de origens. Em alguns
tribunais, essa dinâmica pode produzir os resultados desejados por
adotados e previstos por legisladores; contudo, em outros, pode sig-
nificar a volta à estaca zero – tornando o direito dos adotados con-
tingente às sensibilidades de operadores ariscos e sobrecarregados
que nem sempre simpatizam com sua causa. Diante de tal quadro, o
desafio que se apresenta é: como desenhar procedimentos adminis-
trativos que garantam a implementação de direitos apesar das sen-
sibilidades variáveis dos administradores?
Não é por acaso que, em outros países, os adotados tenham for-
mulado sua demanda em termos de uma inovação administrativa: a
“abertura de arquivos chaveados”. Chamam atenção para o fato de
que, em muitos casos, o direito à informação existe, mas é contin-
gente à aprovação de diferentes perícias do tribunal que travam o pro-
cesso. No entender de ativistas da causa, implementar o direito signi-
fica transformar o pedido de informações em simples medida admi-
nistrativa. Se qualquer outra pessoa maior de idade consegue acesso
“automático” à sua certidão de nascimento mediante preenchimento
de formulários e pagamento de taxas, por que haveria de ser diferente
para as pessoas adotadas (CARP, 2004; SOLINGER, 2002)?
296 Claudia Fonseca
Entretanto, ao juntar as diferentes considerações suscitadas aqui,
somos levados a insistir no que certos analistas chamam de caráter
relacional dos direitos (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996). A certidão
de nascimento de uma pessoa adotada não é igual a “qualquer outra”
certidão, pois envolve a relação mediada pelo Estado entre a criança
e suas duas famílias. As discussões legislativas parecem ignorar esse
ponto. Numa ilustração daquilo que certos observadores chamam
de “viés individualista” na implementação dos direitos, o adotado
parece ser concebido como sujeito autônomo, sem conexão com as
relações sociais implicadas na garantia de seus direitos (REYNAERT,
BIE e VANDEVELD, 2009; WILSON, 1997). Por outro lado, a abor-
dagem relacional frisaria a importância de reconhecer as diferentes
personagens envolvidas na questão, incluindo-as como parceiras
legítimas de debate. Sugerimos que os pais adotivos têm gozado, nas
últimas décadas, de certa influência nas políticas de adoção, ao con-
trário dos pais de nascimento. Aproveitar o momento (da “busca”)
para propor a escuta da voz dos pais de nascimento pode ser um pri-
meiro passo para o maior reconhecimento desse terceiro elemento
da “tríade adotiva”. Ao mesmo tempo, é bem possível que a “voz”
dos pais de nascimento venha ao encontro do pleito dos filhos adota-
dos, reforçando o direito destes últimos de conhecer suas “origens”.
A ideia não é endossar algum ideal quimérico de harmonia em
que todas as partes da contenda saiam igualmente satisfeitas (vide a
crítica de NADER, 1994). É, antes, reconhecer as redes sociais, assim
como as relações de força, que subjazem aos direitos de qualquer
indivíduo. É dar-se conta de que, sem olhar de perto a complexa
trama de interações, a noção de direitos corre o risco de reforçar, em
vez de atenuar, os atuais processos de estratificação e discriminação
social (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996). Enfim, é evidente que não
existe uma solução “ideal” capaz de resolver os paradoxos inerentes
à nossa complexa realidade. Entretanto, ao manter em mente que
os direitos são politicamente construídos, envolvendo sujeitos que
vivem num mundo relacional, e que sua implementação passa pela
microfísica dos espaços administrativos, temos melhores chances de
ver o espírito de justiça que inspirou as inovações legislativas sair do
papel e entrar na vida das pessoas.
O direito às origens: segredo e desigualdade no controle de informações sobre a identidade pessoa 297
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O direito às origens: segredo e desigualdade no controle de informações sobre a identidade pessoa 301
Direitos humanos e as pessoas em situação
de rua no Brasil: discutindo a legibilidade1
Patrice Schuch2
Discutindo a legibilidade
James Scott (1998) situa a legibilidade como um dos problemas cen-
trais das práticas de formação do Estado. O conhecimento dos sujei-
tos, de sua localização, riqueza e identidade, assim como os proces-
sos de criação de métricas e medidas que permitem que tais elemen-
303
tos sejam traduzidos para padrões comuns, seriam fundamentais
para o monitoramento, registro e a inspeção que acompanham a
criação dos Estados. A invenção de sobrenomes, a padronização de
pesos e medidas, o estabelecimento de pesquisas cadastrais e regis-
tros populacionais, a padronização de linguagem e discurso legal,
o desenho das cidades e do transporte público são exemplos dessas
práticas de legibilidade. Para Scott (1998), as práticas de legibilidade
aumentariam a capacidade estatal e tornariam possíveis interven-
ções discriminatórias de todo tipo, tais como as políticas de vigi-
lância, de saúde, de assistência social etc. Segundo o autor, seriam
espécies de “mapas abreviados”, os quais possibilitariam refazer as
realidades que retratam através dos processos de racionalização,
padronização e simplificação.
Ao analisar um conjunto diverso de produção de legibilidade em
cenários muito variados – por exemplo, a coletivização soviética,
a construção de Brasília, as práticas de criação de vilas/aldeias na
Tanzânia (1973-1976) –, o autor destaca uma composição de fato-
res que caracterizaram tais esforços: ordenamento administrativo
da natureza e da sociedade; ideologia modernista na crença no pro-
gresso, na técnica e na ciência; Estado autoritário disposto a usar seu
poder coercitivo para construir seu projeto; finalmente, sociedade
civil apática. Entretanto, Scott (1998) também se interroga acerca
dos problemas na efetivação da legibilidade nos contextos analisa-
dos e conclui, ao responder a questão por ele mesmo colocada – por
que tais projetos falharam? –, que, fundamentalmente, isso se deu
porque tais propostas não levaram em conta o conhecimento prático
“local”, tampouco os processos informais e a improvisação diante
do imprevisível existentes nos cenários onde tais propostas tenta-
ram se efetivar.
Sem dúvida, é fundamental levar em conta analiticamente a
improvisação, os processos informais e o conhecimento prático das
pessoas às quais tais propostas se destinam. Scott (1985, 1990) já
mostrou, em seus estudos sobre resistência, quão importante pode
ser o que chama de “infrapolítica” dos dominados na configuração
da política. Embora tenham recebido algumas críticas – veja-se, por
exemplo, as colocadas por Monsma (2000) –, fundamentalmente
pela pouca atenção às diferenças e desigualdades presentes entre os
304 Patrice Schuch
próprios dominados, as análises de Scott (1977, 1985, 1990) são um
marco muito significativo e inovador nas abordagens sobre resistên-
cia. Ao abordar as práticas de legibilidade estatais, entretanto, fica-
-se com a sensação de que o problema na analítica de Scott (1998)
não está exatamente na consideração da criatividade e da improvi-
sação presentes nos cenários estudados, mas em algo inverso: uma
perspectiva muito homogênea do próprio Estado e da ação de suas
tecnologias de governo.
Análises como as de Das e Poole (2004b) já criticaram o duplo
efeito de ordem e transcendência imaginado nas análises mais clás-
sicas sobre o Estado, questionando sua construção. Em coletânea de
estudos antropológicos sobre o tema, essas autoras rejeitaram a ideia
do Estado como forma administrativa centralizada de organização
política que se torna enfraquecida ou menos articulada ao longo de
seu território e nas suas “margens”. Na analítica proposta por Das
e Poole (2004b), o Estado é imaginado como um projeto sempre
incompleto que deve ser constantemente criado e imaginado atra-
vés de uma invocação de selvageria e ilegalismos. Por outro lado, as
margens não são apenas territoriais, mas também espaços onde a lei
e demais práticas estatais são colonizadas por outras formas de regu-
lação. É nesse sentido que as interrogações de pesquisa podem abar-
car também as questões de como as práticas e a vida política desses/
nesses espaços conformam as práticas políticas, regulatórias e disci-
plinares que constituem o que se chama de “Estado”, convidando os
analistas a repensarem as dicotomias bem estabelecidas entre legal/
ilegal, centro/periferia, público/privado etc.
No caso das análises sobre a produção de legibilidade estatal, a
maior parte das abordagens tem privilegiado a relacionalidade entre
legibilidade e ilegibilidade, mostrando sua consubstancialidade (por
exemplo, DAS e POOLE, 2004b; DURÃO, 2009; SOILO, 2015). Entre-
tanto, acredito que a abordagem proposta por Das e Poole (2004b)
convida também a explorar sua produção a partir das “margens”.
Em minha opinião, o que é interessante nessa perspectiva é a pos-
sibilidade de abertura para considerar a produção de legibilidade
não apenas como uma dimensão unilateral de um Estado centrali-
zado que produz “mapas abreviados” que simplificam, controlam
e refazem as realidades que retratam (SCOTT, 1998). Na medida em
306 Patrice Schuch
realizaram estudos próprios com equipes locais (como aquela em que
eu estava incluída). A contagem nacional totalizou 31.922 pessoas
em situação de rua nos 71 municípios pesquisados; agregando-se os
dados das cidades que realizaram pesquisas específicas, calculou-se
que havia, na época, cerca de 50 mil pessoas em situação de rua no
país. A pesquisa de Porto Alegre, por sua vez, totalizou 1.203 adul-
tos e 383 crianças e adolescentes em situação de rua, contribuindo
com dados importantes acerca de seus modos de vida, relação com
serviços públicos, saúde, cotidiano e violência na rua (UFRGS, 2008;
SCHUCH et al., 2008).
Posteriormente, em 2011, engajei-me novamente no estudo de
tal população a partir do convite da Prefeitura Municipal de Porto
Alegre, que, às vésperas do lançamento do dito Plano de Enfrenta-
mento à População de Rua no município, desejava realizar o que se
chamou “cadastro” populacional dos adultos em situação de rua. Eu
e o sociólogo Ivaldo Gehlen assessoramos a realização do cadastro
populacional, que visava atualizar os dados de 2007 e subsidiar as
ações do governo previstas no Plano, obrigatório, por sua vez, a par-
tir das orientações da Política Nacional para a População em Situa-
ção de Rua, lançada em 2009. Sem prever o estudo mais amplo a
respeito dos modos de vida, educação, saúde, relação com serviços
públicos, sociabilidade e violência, o cadastro populacional contabi-
lizou o número de 1.347 pessoas adultas em situação de rua em Porto
Alegre. A partir da pesquisa, houve a articulação de acadêmicos e
profissionais envolvidos com a efetivação das políticas públicas em
seminários e discussões diversas, resultando na publicação de outra
coletânea sobre o tema (ESPÍNDOLA et al., 2012).
Isso também ocorreu a partir do censo mais recente da popu-
lação de rua em Porto Alegre, realizado em 2016, coordenado por
mim e por Ivaldo Gehlen, responsável pelo estudo quantitativo.
Nessa oportunidade, uma inovação importante foi a incorporação
do estudo da estrutura e dos modos de funcionamento dos abrigos
e albergues para a população de rua na cidade e das expectativas e
experiências dos trabalhadores da intervenção social sobre as políti-
cas da área. Essa pesquisa mostrou a coexistência de práticas de pro-
teção e de violação de direitos nos equipamentos institucionais, bem
como um debate sobre os processos de terceirização e precarização
4 Veja-se, por exemplo, os trabalhos de: Furtado (2017), Holanda (2017), Leite
(2016), Sarmento (2017) e Silva (2017).
308 Patrice Schuch
cedores… Agora está na hora de olhar para os perdedores, tem que
escrever sobre os perdedores”. Possivelmente, ele estava se refe-
rido às minhas participações nas pesquisas administradas pela
Fasc. A utilização dos termos “perdedores” e “vencedores” colo-
cava o MNPR e a Prefeitura de Porto Alegre em lados opostos e desi-
guais, minando minhas expectativas de atuar como uma espécie de
“mediadora” dessas relações.5 Foi, então, a partir desse convite e
chamada de atenção que passei a frequentar as reuniões semanais do
MNPR, assim como os intensos e frequentes encontros e seminários
de discussão sobre a política de gestão da população de rua em Porto
Alegre promovidos a partir das redes estabelecidas entre movimento
social, Estado, organismos judiciais e órgãos não estatais de prote-
ção e promoção de direitos. A própria existência dessa profusão de
encontros de discussão sobre a formulação e execução das políticas
mostrou que essas entidades se encontravam em direta e disputada
relação, podendo-se sugerir o mesmo para as próprias políticas ali
refletidas e inventadas.
Foi através desse acompanhamento das suas lutas e debates que
passei a perceber um modo de ação política bastante peculiar, que
analiso como sendo realizado simultaneamente contra e a partir do
Estado, hipótese que também persigo neste texto. Para acompanhar
esse modo de produção política, foram fundamentais duas refe-
rências clássicas da teoria social: de um lado, as análises de Michel
Foucault (1977, 1979, 1984, 1985) sobre as práticas de subjetivação
formuladas a partir da sua proposição do que ficou conhecido como
“paradoxo do sujeito”. Em seu entendimento, os sujeitos são for-
mados discursivamente por tecnologias que entrecruzam saberes e
poderes; a partir dessa constituição e do que Foucault (1984, 1985)
310 Patrice Schuch
Não obstante,este texto privilegiará acompanhar a partir da
dimensão da etnografia como um modo de conhecimento que privi-
legia a experiência (DAS e POOLE, 2004b) e que, portanto, é de fun-
damental importância para a afirmação da complexidade de dinâmi-
cas que, muitas vezes, extrapolam esquemas analíticos mais rígidos.
De forma original e dinâmica, a vivacidade do funcionamento das
lutas políticas empreendidas pela população de rua no Brasil consti-
tui uma rica teoria etnográfica e não deve ser encapsulada pelas teo-
rias sociais anteriormente destacadas. É um pouco da potência des-
sas práticas políticas dirigidas à reflexão sobre legibilidade e, espe-
cialmente, dos debates em torno da configuração, das característi-
cas, dos usos e efeitos das pesquisas censitárias que destaco a seguir.
7 Ver, por exemplo: Costa (2005), Pereira (2007), Vieira (2004), Vieira, Bezerra e
Rosa (1992), Rosa (2005) e Stoffels (1977).
312 Patrice Schuch
o movimento teria sucumbido. Alguns anos depois, foi articulado,
em conjunto com a organização não governamental Alice, o Fórum
da População Adulta em Situação de Rua, que funcionava a partir de
encontros semanais em uma sala do Mercado Público de Porto Alegre
e foi um movimento importante que originou conselheiros da assis-
tência social e de outras áreas no âmbito do orçamento participativo
de Porto Alegre (LIMA e OLIVEIRA, 2012; PIZZATO, 2012). Por sua
vez, a organização não governamental Alice é a entidade que coor-
denou a implantação do jornal Boca de Rua, existente há 14 anos em
Porto Alegre. O jornal foi propulsor na divulgação de reportagens
sobre a vida na rua escritas pelas próprias pessoas em situação de
rua, autointitulados jornalistas do Boca de Rua. Sem dúvida, o jor-
nal também vem ampliando significativamente a visibilidade e luta
política dessa população.
Relatos de pessoas participantes do MNPR contam ainda da exis-
tência do movimento Aquarela, o qual teria se desconstituído em
função de ser “um movimento de um homem só”. Simone, militante
do MNPR, jornalista do Boca de Rua e escritora, ao falar dos variados
movimentos de luta política, salienta que “É um movimento que se
movimenta” para exatamente apontar a dinamicidade dessas formas
de organização política, que perdem a força quando seus líderes pas-
sam a querer apenas se autorrepresentar e promover e/ou encon-
tram modos de vida alternativos à rua, pelos quais são lembrados
negativamente e destituídos pelo grupo, numa dinâmica que pode
ser aproximada daquela referida por Clastres (2003). Destaco que
esses diversos movimentos presentes no cenário porto-alegrense
tinham uma dinâmica regional, diferindo significativamente do
atual Movimento Nacional de População de Rua, criado em 2004
para atuar e representar nacionalmente tal população e que, no Rio
Grande do Sul, passou a ter uma sucursal com existência efetiva ape-
nas em 2013.
A própria criação do MNPR – agente fundamental na inscrição
política da população de rua no Brasil – decorre de um cenário de
inscrição da linguagem dos direitos no Brasil e processos mais abran-
gentes de transformações de instituições, normativas e modos de
intervenção junto a variadas populações ocorridas a partir do pro-
cesso de redemocratização política e no bojo da expansão da retó-
314 Patrice Schuch
moção dos direitos humanos (como Unicef e Unesco), se engajam
com o movimento social numa espécie de pedagogia informativa
dos direitos da população de rua no Brasil e das normativas legais
para sua proteção (SILVA, 2017). Tal pedagogia é explícita na inten-
siva publicação de cartilhas em relação aos direitos da população de
rua e às formas de intervenção que a essa população devem ser diri-
gidas. Numa rápida pesquisa na internet, e sem esgotar, portanto,
o universo dessas produções, encontrei, em outubro de 2014, cerca
de 30 cartilhas e guias de serviços produzidos no país, geralmente
através de redes governamentais e não governamentais, organismos
jurídicos e órgãos de defesa de direitos humanos, muitos com apoio
do MNPR.
Em geral, esses materiais trazem a conceituação de pessoa em
situação de rua, um arcabouço significativo de normativas legais em
torno dessa questão e, de acordo com a origem da cartilha ou guia de
serviços (governamental ou não governamental), instruções sobre
como intervir (nas abordagens policiais, nos Creas e SUS, por exem-
plo) ou denunciar violações de direitos humanos (órgãos a procurar,
como fazer um boletim de ocorrência, o que é um habeas corpus
etc). Embora não caiba aqui uma atenção maior às cartilhas e aos
guias de serviços, é meu argumento que também constituem um
material significativo de produção de legibilidade para a população
de rua, mostrando uma forma de coprodução das formas de gestão e
inscrição política dessa população no Brasil e quanto a preocupação
com o tema da população de rua e seus direitos se tornou uma ques-
tão nacional na década de 2000.
Um dos pontos interessantes de observar nesse processo de
nacionalização das preocupações com a população de rua, eviden-
ciado também nas cartilhas e guias de serviços, são os próprios
termos utilizados para defini-la. Na década de 2000, a visibilidade
crescente desse grupo colocou em debate também a própria termi-
nologia utilizada para defini-lo e classificá-lo, historicamente bas-
tante variada. Como já nos ensinou Didier Fassin (1996), ao trabalhar
com as terminologias de definição do “clandestino” ou “excluído”
na França, as palavras não servem apenas para nomear, classificar ou
definir: elas permitem também estabelecer ações e orientar as polí-
ticas. É nesse sentido que um dos pontos fundamentais da criação da
316 Patrice Schuch
mente por sua agência política, fornece uma visão ambígua da rua:
ao mesmo tempo que busca alternativas para a superação ou melho-
ria dessa situação social, também luta pelo próprio direito à rua (DE
LUCCA, 2007).
Assinalar essas diferenciações conceituais é importante porque
coloca em questão a luta política constante que é realizada em torno
dos significados legítimos para esse conjunto diverso de pessoas,
que, como destacou Fassin (1996), têm incidência direta no modo
como as práticas de governo serão orientadas e efetivadas. Explicita
também que as práticas de coprodução realizadas entre o MNPR e
organismos jurídico-estatais e o apoio do movimento a determi-
nadas tecnologias de legibilidade estatal – como vimos, através da
proposição das cartilhas e da celebração da Política Nacional para
a População de Rua – não devem ser compreendidos como adesão
direta aos próprios termos propostos, mas também como parte de
estratégias e táticas políticas nas quais variados modos de habitar
instrumentos e categorias são possíveis. Afinal, se o Estado deve ser
constantemente refundado e não é homogêneo ou completo (DAS
e POOLE, 2004b), será que não poderia também haver diferentes
modos de habitar suas normas e categorias, coproduzias e se copro-
duzir nesse processo?
318 Patrice Schuch
na confecção da pesquisa ou um mero erro de entendimento dos
temos do estudo por parte dos investigados. Acredito que traga uma
potência significativa de contrariedade à individualização das infor-
mações e de seu registro e uma prática de resistência importante em
relação às técnicas de legibilidade em seu nível molecular. A impor-
tância da distinção analítica entre os níveis molar e molecular é pre-
ciosa, pois quando consideramos o nível molar em que as técnicas de
legibilidade atuam, os esforços do movimento social parecem ser de
ampliar os processos de visibilidade política dessa população.
ções obtidas contrariam os dados oficiais, entre elas a mais alarmante relaciona-se
ao número total de moradores de rua no município. Integrantes do Fórum estima-
vam que, no ano de 2007, o número total de moradores sem domicílio institucional
daquele município ultrapassava a 4.000 pessoas, enquanto os dados oficiais apon-
tam para um número bem inferior” (LIMA e OLIVEIRA, 2012, p. 170).
11 Com relação às estimativas de 2011, ver a reportagem do jornal Zero Hora de 15
de agosto de 2014.
320 Patrice Schuch
proteção aos direitos humanos, organismos jurídicos, órgãos esta-
tais e não estatais de atenção à população de rua. Arrisco-me a dizer
que a pasta de Simone era, ela própria, um instrumento de produção
de legibilidade. Mais do que isso, é possível assinalar que tal instru-
mento incidia – ou, nos termos de Das e Poole (2004b), colonizava
– nos próprios modos estatais de produção de legibilidade. Isso por-
que a pasta de Simone, com seus incansáveis esforços para denunciar
“violações de direitos humanos” contra a população de rua, em con-
junto com outros esforços de uma rede heterogênea composta pela
Comissão de Defesa do Consumidor, Segurança Pública e Direitos
Humanos da Câmara Municipal de Vereadores de Porto Alegre, pelo
MNPR e pelo Ministério Público, conseguiram configurar, a partir de
2008, uma ação civil pública contra a Fasc.
Tal ação civil pública visava questionar a estruturação dos ser-
viços de assistência social à população em situação de rua em Porto
Alegre e, sobretudo, a capacidade de os abrigos e albergues acolhe-
rem tal população. Para encurtar um processo longo que não cabe
aqui especificar, mas que foi composto por visitas técnicas a abri-
gos para verificar suas condições, testemunhos de gestores e profis-
sionais ligados à assistência social e uso de informações disponíveis
sobre a rede de atendimento, a ação foi finalmente julgada proce-
dente ao fim de 2013 em função da inadequação das políticas estatais
de acolhimento à população de rua. A leitura do material disponível
para seu acompanhamento, entretanto, ressalta a importância que
os dados numéricos das pesquisas censitárias – tanto de 2007 quanto
de 2011 – tiveram na configuração dos debates legais e na decisão
judicial.
Considerações finais
A partir da análise de certas práticas de legibilidade, espero ter dei-
xado claro que tais tecnologias não apenas descrevem, nomeiam e
classificam, mas orientam e conduzem políticas. Isto é, não são ape-
nas meios técnicos neutros de conhecimento, mas instrumentos
político-morais pelos quais novos modos de governo são constituí-
dos. Ao refazerem as realidades que desejam retratar, são “mapas
322 Patrice Schuch
abreviados” que simplificam, padronizam e classificam seres e ele-
mentos, permitindo o governo (SCOTT, 2008).
Entretanto, ao produzi-las, o Estado também se dá a conhe-
cer – simultaneamente tornando visível seus modos de ação, per-
mitindo sua crítica e possibilitando formas variadas de habitar seus
instrumentos, normas e categorias. Ao envolverem um modo dinâ-
mico de “fazer o Estado” (SOUZA LIMA, 2012), colocam em xeque
perspectivas que trabalham a partir das noções de sua transcendên-
cia, homogeneidade ou completude (DAS e POOLE, 2004a; SOUZA
LIMA, 2012). Na medida em que o Estado deve ser sempre refun-
dado, pode haver também diferentes modos de habitar suas normas
e categorias, coproduzias e se coproduzir nesse mesmo processo.
As diferenças entre as apreensões moleculares (individualizantes) e
molares (massificantes) das pesquisas censitárias e cadastrais, a dis-
tinção entre as terminologias em torno da população de rua consti-
tuídas pelos organismos estatais e pelo movimento social e os usos
estratégicos das pesquisas censitárias para a abertura da ação civil
pública contra o município de Porto Alegre foram vias etnográfi-
cas que persegui para tentar confirmar tal argumento. Foi também
através desses elementos que busquei constituir o que considero a
principal contribuição deste texto: as práticas de legibilidade fazem
mais do que possibilitar o governo; elas são também vias relevantes
de produção de sujeitos e, sobretudo, oportunidades em que novas
lutas e inscrições políticas são possíveis.
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p. 1-27.
1 Uma primeira versão deste texto foi apresentada na mesa Antropologia e Direitos
Humanos no Brasil, coordenada por Patrice Schuch, tendo como debatedor Daniel
Schroeter Simião, durante o seminário ABA+60: os Antropólogos e a Antropologia
na Esfera Pública. Cenários Contemporâneos e Políticas para o Futuro.
2 Professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do Instituto de
Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC).
Bolsista de Produtividade 2 – CNPq.
3 Sobre a Comissão de Direitos Humanos da ABA, criada em 1998, ver Kant de
Lima (2001).
329
(KANT DE LIMA, 1990, 2003, 2004, 2005, 2008a; ARANTES, 1992;
CARDOSO DE OLIVEIRA e CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996; FON-
SECA e CARDARELLO, 1999; NOVAES, 2001; NOVAES e KANT DE
LIMA, 2001; FONSECA, FARIA e TERTO JR., 2004; RIBEIRO, 2004;
GROSSI, HEILBORN e ZANOTTA, 2006; SEGATO, 2006; FONSECA et
al., 2016). Entre os diferentes universos empíricos, é possível notar
trabalhos que têm como foco a análise de “doutrinas” de Direitos
Humanos,4 os atores, as situações e as instituições, que são toma-
dos como sujeitos à semelhança de outras pesquisas etnográficas.
Revela-se, assim, a polissemia da categoria direitos humanos, que
se apresenta com diversos usos, posições políticas e implicações teó-
rico-metodológicas no campo da antropologia.
Gostaria de iniciar destacando a dimensão “prática” dos direitos
humanos5 a partir da análise da administração dos conflitos (KANT
DE LIMA, 2008b; CARDOSO DE OLIVEIRA, 2010) e de políticas
públicas (TEIXEIRA e SOUZA LIMA, 2010), revelando como essas
representações interagem com distintas noções de igualdade e cida-
dania (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2002). Esse tipo de enfoque expli-
cita que é preciso cuidados ao lidar com os Direitos Humanos como
um discurso normativo, ou seja, entendidos como a política pública
jurídica “ocidental” voltada para o homem “universal”, que se
expressa no conceito de “indivíduo” (DUMONT, 1985). Por ser uma
construção ideal-típica sem conexão empírica com nenhum lugar
ou tempo, o conceito de indivíduo constitui sujeito político a par-
tir da qualidade moral de representante da “humanidade”, que se
330 Ana Paula Mendes de Miranda
opõe à concepção de animalidade, explicitando, assim, preconceitos
intelectuais e emocionais (INGOLD, 1995). Trata-se, então, de um
paradoxo do pensamento ocidental que se expressa pelo postulado
de que os seres humanos são animais, ao mesmo tempo que con-
firma que a humanidade. A solução lógica estaria no lugar atribuído
ao indivíduo nas teorias. Ele pertenceria a uma espécie, a categoria
biológica Homo sapiens, ao mesmo tempo que é classificado como
pessoa, o que possibilitaria destacar a sua condição moral de “ser
humano”.
Uma segunda perspectiva a ser destacada nesta introdução
é que a relação entre a antropologia e os Direitos Humanos não é
nem nunca foi consensual. A multiplicidade de abordagens permite
identificar posições analíticas e críticas dos atores em relação aos
direitos humanos. Há trabalhos que não fazem nenhuma referência
à categoria, mas que demonstram a relevância da pesquisa
antropológica sobre as concepções de direitos em vários contextos.
Há outros que enfocam a controvérsia entre os direitos locais e
a ideia do universalismo de direitos humanos (WILSON, 2007),
demonstrando quão complexas são as interações entre as legislações
e o sistema jurídico internacional de Direitos Humanos e a coexis-
tência com modelos normativos locais (SIMIÃO, 2015). Ressalta-se
aqui que os modos de enquadramento dos Direitos Humanos, com-
preendidos discursivamente como instrumentos legais universais,
resultam em práticas sociais que transformam conhecimentos e
moldam a ação social. Assim, é possível identificar as maneiras como
os atores constituem tanto os sistemas jurídicos, quanto os sistemas
éticos. Nesse aspecto, cabe outra observação referente às redes cons-
tituídas pelos “ativistas sem fronteiras”, designada como “transna-
cional” (ORENSTEIN e SCHMITZ, 2005, p. 24). A incorporação desse
termo para se referir às redes, que se expandem para além dos limi-
tes dos Estados-nações, expressam formas de regulação da conduta
que privilegiam as ações de pressão sobre os Estados, mas que dei-
xam de lado os efeitos sobre os ativismos locais, caracterizando o que
Sharma e Gupta (2006) designam como um “regime transnacional
de direitos humanos”. Consequentemente, as implicações sociais e
políticas dos direitos humanos são imprevisíveis.
332 Ana Paula Mendes de Miranda
de poder (CRAPANZANO, 1985;6 NADER, 1974;7 CASTILHO, SOUZA
LIMA e TEIXEIRA, 2014). Como Geertz salienta, na obra O saber
local (1997), a pesquisa antropológica depende menos da “empatia”
em relação aos interlocutores que do desenvolvimento de uma rela-
ção dialógica entre pesquisador e pesquisado. Assim, torna-se pos-
sível a realização de pesquisas em contextos antes não legitimados
na disciplina, sem que, no entanto, deixe de se considerar o quão
complexo pode ser o papel do pesquisador-consultor ao promover
interlocuções desafiadoras em trabalhos de consultorias e/ou asses-
sorias. Como analisam Pita e Miranda (2015), dedicar-se à avaliação
e/ou análise de políticas públicas pressupõe pensar sobre formas efi-
cazes de intervenção política e institucional, em áreas específicas,
em articulação com espaços de produção de conhecimento (univer-
sidades, institutos de pesquisa e organizações não governamentais).
Cada uma dessas instâncias está marcada pela produção de lingua-
gens próprias. Algumas são tradicionalmente caracterizadas como
extremamente analíticas, pouco “práticas”. Outras são identifica-
das como ágeis na capacidade de diagnóstico e resposta, mas, por
outro lado, podem ser rotuladas de superficiais ao focarem a busca
por soluções dos problemas sociais. As consultorias assumiriam,
assim, um papel de promover e fomentar reformas padronizadas,
que pouco contribuiriam para fornecer consistência analítica para o
desenvolvimento de políticas em nível local. Estamos diante de um
desafio ainda pouco explorado pela antropologia, apesar da cres-
cente participação de antropólogos nesse mercado de trabalho.
334 Ana Paula Mendes de Miranda
A construção de um problema público: a intolerância
religiosa como um “novo” tema nacional
Hofbauer (2011) afirma que só se pode pensar o fenômeno sociocul-
tural do candomblé, bem como de outras religiões de matriz afro-
-brasileira, a partir das complexas e conflituosas relações de domi-
nação entre os colonizadores, os representantes da Igreja católica e a
população negra escravizada. Esse processo teria propiciado o desen-
volvimento de formas de discriminação racial marcadas por relações
sociais de inclusão-exclusão, que resultaram em uma religiosidade
“afro-(luso)-brasileira”9 na qual a identidade étnico-religiosa dos
negros é singularizada pelo exotismo, inferiorizada em relação aos
brancos (católicos) e acusada de ter tendências à desorganização
social.
É nesse contexto que a política de embranquecimento
(SKIDMORE, 1976; HASENBALG, 1979; SCHWARCZ, 1993) e a fábula
das três raças (DAMATTA, 1984) se desenvolveram como narrativas
políticas que possibilitaram o ocultamento de conflitos sociais, em
especial as discriminações étnico-raciais-religiosas, e favoreceram
a constituição da ideia de uma identidade “pacífica” atribuída
à sociedade brasileira. Consequentemente, essa construção de
uma “identidade nacional brasileira” a partir de uma perspectiva
homogeneizante, inclusive no plano religioso, e branqueadora
relegou as práticas das religiões de matriz afro-brasileira a um
espaço marginal, submetido “a um novo tipo de sociedade baseada
na família patriarcal, no latifúndio, no regime de castas étnicas”
(BASTIDE, 1971, p. 30). Tais fatores foram decisivos para a construção
da identidade étnico-racial-religiosa que forçou a restrição da
dimensão religiosa afro-brasileira aos domínios íntimos da vida,10
ção que dias antes haviam desertado do Batalhão Policial. Contam que a cada chute
recebido de um dos invasores, Tia Marcelina gemia para Xangô (eiô cabecinha) a sua
vingança e, no outro dia, a perna do agressor foi secando, até que ele mesmo secou
todo” (RAFAEL, 2010, p. 304). Além da invasão de terreiros e agressões físicas a pais
e mães de santo, há registros de que roupas litúrgicas, objetos e adornos sagrados
foram retirados e queimados em praça pública por jovens comerciantes que inte-
gravam a Liga dos Republicanos. Após esse evento, desenvolveu-se uma modali-
dade religiosa, chamada Xangô tocado baixo, sem o uso de atabaques ou palmas
para evitar ruídos e despertar atenção dos vizinhos.
11 O espaço público é definido por Habermas (1984) como um local onde as pes-
soas compartilham, interagem e apresentam seus pontos de vista em um campo de
relações, fora do espaço doméstico, onde ocorrem as interações sociais (CARDOSO
DE OLIVEIRA, 2002). Assim, espaço público se diferencia de esfera pública, que
pode ser entendida como a construção discursiva dos direitos, no qual ideias e nor-
mas são difundidas e submetidas ao debate público (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2011).
12 Para Gusfield (1981), um problema público corresponde a uma situação social
quando se torna um tema de conflitos, de controvérsias, de debate de opiniões no
espaço público, o que demanda intervenções dos poderes públicos, das instituições
ou dos movimentos sociais.
13 Esclareço que, no momento, desenvolvo um projeto de pesquisa, com financia-
mento do CNPq (bolsa de produtividade), no qual tenho buscado analisar os casos
336 Ana Paula Mendes de Miranda
O objetivo deste texto, portanto, é problematizar como as reli-
giões de matriz afro-brasileira se apresentam contemporaneamente
como um fator que conforma as relações entre as pessoas e as insti-
tuições estatais, especialmente no que se refere às formas de admi-
nistração de conflitos no âmbito policial e judicial e à formulação de
políticas públicas diante de um “novo” problema público – a intole-
rância religiosa como expressão do racismo à brasileira.
Essa perspectiva privilegia pensar como conflitos cuja motivação
é de natureza religiosa são enfrentados por distintas agências públi-
cas que formalmente atestam que o Estado brasileiro é laico. Para
esse fim, tomo como base casos classificados como de intolerância
religiosa (MIRANDA, 2010, 2012, 2014, 2015) identificados a partir
de uma pesquisa etnográfica desenvolvida desde 2008 que, inicial-
mente, privilegiou analisar como as mobilizações políticas de reli-
giosos no espaço público delimitaram um modo particular de “fazer
política”. Nesse sentido, proponho pensar a religião como elemento
constitutivo do espaço público que deve ser inserido em um debate
mais abrangente relacionado à etnografia das políticas públicas vol-
tadas para a definição de identidades étnico-religiosas, o que pres-
supõe a autoidentificação e valorização de trajetórias históricas e
relações territoriais das religiões de matriz afro-brasileira, em espe-
cial o candomblé.
Não é propriamente uma novidade que os conflitos de natureza
étnico-racial-religiosa tenham sido historicamente invisibiliza-
dos na sociedade brasileira, tendo recentemente assumido algum
espaço nas mídias e no campo acadêmico. Pode-se dizer que, até
2005, eram identificados alguns trabalhos esparsos; desde então, é
possível notar uma constante produção acadêmica sobre a temática
“intolerância religiosa”, principalmente nas áreas de história, ciên-
cias da religião, direito e ciências sociais, principalmente sociologia
e antropologia.14
15 Há de se considerar que a ideia de ataque está em consonância com uma con-
cepção de mundo que entende o “sofrimento injustificado e riqueza inexplicável
como um sintoma de malevolência religiosa” (HOFBAUER, 2011, p. 54). É nesse
contexto que é interpretada a atuação das práticas religiosas neopentecostais como
uma forma de guerra santa contra as religiões de matriz afro-brasileira.
16 O termo é uma categoria de heterodefinição para classificar genericamente os
adeptos das religiões afro-brasileiras, mais notadamente os da umbanda e do can-
domblé.
17 Destaco a série de reportagens “Inimigos de fé”, produzida pelo jornal Extra e
publicada entre 25 e 31 de janeiro de 2009, que recebeu vários prêmios, dos quais
destaco Excelência Jornalística 2010, da Sociedade Interamericana de Imprensa,
para o infografista Ary Moraes e a repórter Clarissa Monteagudo.
338 Ana Paula Mendes de Miranda
No que diz respeito aos processos de mobilização política de
promoção da cidadania, no âmbito do desenvolvimento de políticas
públicas, tendo como principais atores os religiosos de matriz afro-
-brasileira, vale destacar como, no Rio de Janeiro e em outras locali-
dades, é possível observar algumas estratégias comuns:18
a. A organização de grupos para promoção de eventos no espaço
público voltados à realização de práticas religiosas inerentes às
religiões afro-brasileiras.
b. A construção de redes com diferentes atores do poder público
para a apresentação de demandas por respeito ao direito à liber-
dade religiosa.
c. A construção de parcerias com grupos religiosos que não são de
matriz afro-brasileira.19
d. Redação e publicação de manifestos, cartas-compromisso a se-
rem assinadas por candidatos a cargos eletivos e propostas de
planos (municipais, estaduais e nacional) que assegurem os di-
reitos de “liberdade religiosa”.
Essas ações são a base para formulação de uma agenda político-
-religiosa de matriz afro-brasileira. Elas podem ser pensadas como
equivalentes ao processo de “construção da cidadania”, na medida
em que explicitam uma série de dispositivos de disciplinamento dos
comportamentos e dos discursos (FOUCAULT, 1979, 1996) que resulta
340 Ana Paula Mendes de Miranda
cífica – a das demandas por direitos21 – através de aprendizagem de
um modo de atuar segundo o qual as falas e os gestos devem ser mol-
dados a partir de intervenções diretas e indiretas dos demais partici-
pantes na busca de um equilíbrio entre histórias pessoais e discursos
políticos legitimados.
A variedade de grupos e táticas políticas em torno do tema into-
lerância religiosa permite questionar as representações do senso
comum – que, às vezes, são naturalizadas em pesquisas acadêmi-
cas – em torno da ideia de que os religiosos afro-brasileiros não se
associam politicamente nem lutam por causas comuns em razão de
conflitos e hierarquias. A pesquisa etnográfica tem demonstrado
quão falaciosa é essa premissa; será que creem que não há conflitos
no interior da Igreja católica ou entre os protestantes?
Outra dimensão importante na construção da intolerância reli-
giosa como um problema público é sua introdução no campo jurí-
dico. Refiro-me ao fato de que, legalmente, no Brasil, não existe uma
tipificação para intolerância religiosa. A legislação se refere ao crime
de discriminação, que é inafiançável, conforme estabelece a Lei nº
7.716/1989 (conhecida como Lei Caó), que se referia, inicialmente,
apenas à discriminação racial, mas que incorporou outras expressões
de preconceitos a partir da Lei nº 9.459/1997 sob a forma de mani-
festações verbais e/ou comportamentais, ou seja, de visões precon-
cebidas acerca de qualidades físicas, intelectuais, morais, estéticas
ou psíquicas de sujeitos, ou ainda pela perpetração de ações discri-
minatórias que propiciem um tratamento diferencial em função de
características étnicas, raciais, religiosas (GUIMARÃES, 2004).
Há um esforço dos grupos de convencer as vítimas a apresentar
demandas judiciais para o reconhecimento de seus direitos e orga-
nizar manifestações públicas visando “combater o preconceito reli-
gioso”, lançando mão dos instrumentos legais com vistas ao cum-
primento da Constituição no que diz respeito à liberdade de credo.
342 Ana Paula Mendes de Miranda
dos internacionais assinados pelo governo brasileiro, em especial o
Pacto de San José da Costa Rica,24 o que reforça a ideia de uma viola-
ção de Direitos Humanos.25 Assim, é possível compreender por que
a intolerância religiosa aparece nos discursos dos religiosos como
contraposta à liberdade religiosa, representando um desafio ao con-
vívio numa sociedade plural, sem que se perceba que é o discurso da
liberdade que fundamenta as agressões às religiões de matriz afro-
-brasileira.
É preciso esclarecer, ainda, que os ativistas têm clareza de que a
demanda por reconhecimento de direitos não se esgota no registro
de ocorrência policial. É possível observar diversas manifestações
que expressam que o reconhecimento legal não é considerado
suficiente para lidar com os ataques, já que não dá conta da
dimensão do insulto moral (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2002, p. 31),
ou seja, reconhece-se que as agressões sofridas não são facilmente
definidas pela linguagem tradicional do direito, que tampouco
exprime o ressentimento e os sentimentos das vítimas. Porém, é
possível constatar que o encaminhamento dos conflitos ao Judiciário
é uma demonstração de desconfiança quanto à possibilidade de
autorregulação entre as pessoas em função de suas vinculações
religiosas e, consequentemente, por seus interesses manifestamente
opostos, o que está associado à visão de que a autoridade do juiz
pode representar um elemento fundamental no reconhecimento de
direitos.
26 Além dos casos citados por Silva (2007b) na Bahia e em São Paulo, há relatos de
destruição de imagens de orixás em João Pessoa (PB), Maceió (AL) e Brasília (DF).
344 Ana Paula Mendes de Miranda
cuja causa principal são os problemas estruturais que impedem
o cumprimento das obrigações constitucionais. Após a agressão
sofrida, a vítima tem sua história apresentada nas mídias e se
busca a intervenção dos poderes públicos. As duas ações servem
para expandir o potencial de divulgação do caso e demandar a
garantia do cumprimento dos direitos e de decisões pelas auto-
ridades públicas. Como exemplo, temos a agressão sofrida por
Kailane Campos em 14 de junho de 2015, uma menina de 11 anos
que foi apedrejada no subúrbio da cidade do Rio ao sair do ter-
reiro que frequenta com sua avó, a primeira a fazer a denúncia
numa rede social. A agressão partiu de dois homens que insul-
taram o grupo. Um deles jogou uma pedra, que teria batido num
poste e atingido a menina. Na delegacia, o caso foi registrado como
preconceito de raça, cor, etnia ou religião e também como lesão
corporal provocada por pedrada. Os agressores fugiram num ôni-
bus. Após um ano, nada aconteceu aos agressores, que não foram
identificados, mas o caso teve grande repercussão midiática.
b. Os conflitos familiares: trata-se de conflitos de natureza familiar
e/ou conjugal que se acirram a partir da explicitação de vivên-
cias religiosas, resultando em mudanças de comportamento na
vida familiar. O problema se manifesta, geralmente, em situa-
ções nas quais não é possível compatibilizar as individualidades
e reciprocidades familiares, redefinindo as relações de autorida-
de e interferindo nos vínculos de afetividade e de solidariedade,
demonstrando como o espaço familiar vem sofrendo alterações
substanciais a partir de processos de conversão e adesão às re-
ligiões evangélicas. Como exemplo, temos a perda de guarda de
filhos por conta do pertencimento religioso ao candomblé e a
proibição de visitas aos familiares por divergência de religião.
c. Agressões e destruições às casas de santo e terreiros: há vários re-
latos em todo o país de estragos e avarias causadas por incêndio,
pedradas e outros ataques sofridos por religiosos. Em comum,
a reclamação de que o Estado, através da polícia, não garante a
segurança, o que resulta num esforço e dispêndio de investir em
câmeras e alarmes. O que se fala é que essas ações geralmente
são perpetradas por evangélicos oriundos de pequenas igrejas
neopentecostais da localidade onde está situado o terreiro. É co-
mum que essas igrejas sejam mais novas na região, mas isso não
impede os ataques. Nos casos mais graves, os religiosos acabam
346 Ana Paula Mendes de Miranda
possibilidade de apresentar a diversidade de identidades étnicas que
compõem a chamada “tradição africana”.
Ao desqualificar conteúdos associados à identidade étnico-
-racial afro-brasileira, a escola se revela como um palco de ações
e mobilizações coletivas de grupos que tentam dar visibilidade às
suas demandas de reconhecimento de direitos, permitindo que um
repertório de problemas venha a se tornar público, legítimo, visível e
pertinente aos olhos dos distintos agentes que compõem e perfazem
o espaço público (MOTA, 2009).
Por outro lado, ao privilegiar a presença do ensino religioso como
disciplina escolar prevista no horário regular das escolas públicas do
país,27 assume-se que, em função da aproximação do Estado com
a Igreja católica, é a gramática cristã que prevalece, a despeito da
controvérsia na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de
1996, que não deixa claro se o ensino religioso deveria ser em cará-
ter confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou de seu
responsável e ministrado por professores ou orientadores religio-
sos preparados pelas respectivas igrejas e entidades religiosas, ou
em caráter interconfessional, resultante de acordo entre as diversas
entidades religiosas, que se responsabilizariam pela elaboração do
respectivo programa. Salienta-se que, nos dois casos, os conteúdos
estão a cargo das religiões e não sob controle do Estado, tal como
ocorre nas demais disciplinas.
A presença dos conteúdos cristãos é justificada tendo em vista
sua “universalidade”, em detrimento das demais tradições religio-
sas. Nesse sentido, o ensino religioso tende a assumir um caráter
etnocêntrico na medida em que os valores morais transmitidos nas
aulas são aqueles vinculados à gramática cristã.
Outro conflito está relacionado às disciplinas escolares como
biologia, filosofia, geografia, língua portuguesa e artes quando os
professores apresentam conteúdos previstos nos currículos oficiais
que contrariam a cosmologia e a cosmogonia de algumas religiões
cristãs, consideradas verdades absolutas.
27 A disciplina está presente desde 1934 nas Constituições federais. Ressalta-se
que, na Constituição federal de 1988, o ensino religioso é a única disciplina esco-
lar mencionada no que diz respeito aos conteúdos mínimos para o ensino, sem
nenhuma referência às disciplinas de matemática, língua portuguesa etc.
348 Ana Paula Mendes de Miranda
sentantes de ONGs. Um ponto sensível dessa interação é a realização
de oficinas voltadas para discutir com os religiosos a “reformulação”
das oferendas a partir do uso de elementos biodegradáveis. Tal ação é
objeto de contestação por religiosos que não participam desses pro-
jetos, que consideram uma interferência do Estado nas práticas reli-
giosas.
Outro tema controverso envolve o sacrifício de animais. No Rio
Grande do Sul,28 desde 2003, o debate envolve políticos evangélicos
que tentam aprovar a proibição do sacrifício de animais em cerimô-
nias religiosas, o que afeta diretamente as religiões afro-brasileiras.
A polêmica tem sido derrotada com base no dispositivo constitucio-
nal da liberdade religiosa. As tentativas de proibição têm resultado
em reações por parte das lideranças afrorreligiosas.29 Na defesa dos
rituais, os ativistas religiosos argumentam que os projetos represen-
tam um ato de racismo e de intolerância religiosa, já que os depu-
tados proponentes estão vinculados às religiões evangélicas. Outro
argumento acionado é a contestação de que haja sofrimento durante
a imolação; para isso, comparam com o tratamento a que os animais
são submetidos em matadouros comerciais, amplamente divulgado
pelas mídias, mas para o qual não há ameaça de proibição. Por fim,
alegam que esses animais também são utilizados para a alimentação
dos participantes dos rituais.
Segundo Oro e Carvalho Junior (2015), os discursos a favor da
proibição do sacrifício dos animais articulam os deputados evangé-
licos e grupos de defesa dos animais. Apesar das divergências entre
eles, seria possível identificar como pontos comuns: “a) a necessi-
dade de proibir a morte cruel dos animais durante os rituais; b) a
visão evolucionista que considera tais rituais como práticas primi-
tivas; c) a inconstitucionalidade da exceção legal à imolação animal
concedida às religiões de matriz africana”.
28 Segundo Oro e Carvalho Junior (2015), há outros três casos de tentativas de
proibição de sacrifícios, dois no estado de São Paulo e um na Bahia.
29 Com destaque para o Conselho Estadual de Umbanda e Cultos Afro-Brasilei-
ros (Ceucab); Federação Afro Umbandista e Espiritualista do Rio Grande do Sul
(Fauers); Grupo Inter-religioso de Diálogo da Unisinos; Conselho do Povo de Ter-
reiro do Estado do RS; Conselho Unidos Pelo Axé; Federação Africana Mensageiros
de Oxalá (Afro-rito).
350 Ana Paula Mendes de Miranda
Uma delas pode ser expressa pelas tensões entre os afrorreligio-
sos e os movimentos negros.30 Seria a intolerância religiosa uma face
da discriminação racial? Segundo Rosiane Rodrigues (2015), há visões
concorrentes. Há quem tome por referência o Decreto 6.040/2007
para definir a intolerância religiosa como
31 Sobre o sofrimento como narrativa de acesso a direitos, ver Mello (2010).
352 Ana Paula Mendes de Miranda
Vê-se, assim, um modo específico de associação que envolve os
afrorreligiosos. Ao não aceitarem a sua condição de subordinação,
demarcam uma linha entre a integração aos grupos religiosos majo-
ritários, em especial os católicos, e os que defendem a necessidade
de reparação às injustiças das discriminações raciais, recusando uma
reinserção na “miscigenação na grande massa branca” (BASTIDE,
1971, p. 424) e reforçando a ideia de que o candomblé seria o exem-
plo emblemático de “resistência negra cultural e política” (BASTIDE,
1983). No entanto, há de se destacar que Bastide via como antagôni-
cos e até excludentes o mundo da política (“movimentos de protesto
racial”), marcado por disputas, e o mundo da religião, que seria a
expressão da cultura negra por ser mais coeso e estático. A religião
representaria, portanto, a consagração da tradição, enquanto a polí-
tica seria o lócus do poder, do conflito e da discriminação. Tal per-
cepção ajudou a construir o mito do “pacifismo à brasileira” e relegar
a política a um lugar desqualificado da vida social, ao mesmo tempo
construindo a representação da religião como espaço do amor e da
solidariedade.
Considerações finais
A ideia de que os religiosos de matriz afro-brasileira não se organizam
politicamente está presente em discursos do senso comum e também
no meio acadêmico. Pode-se supor que tenha sido influenciada pela
ideia de que os movimentos negros no Brasil seriam desorganiza-
dos e sem rumo; pode-se também especular que a lógica faccional32
do candomblé e da umbanda, dividida em nações, linhas, casas etc.,
seja uma motivação para os limites da mobilização dos religiosos.
Nenhum dos argumentos, no entanto, é suficiente para dar conta da
questão: como se mobilizam contemporaneamente os religiosos de
matriz afro-brasileira? Quais práticas e gramáticas, marcadamente
religiosas, são expressas no espaço público e constituem um modo
próprio de fazer política? Essas perguntas são fundamentais para
refutar narrativas que tendem a despolitizar as estratégias de cons-
354 Ana Paula Mendes de Miranda
tiva que transcendem os limites das religiões (candomblé, umbanda
etc.), transcendem as diferenças de nações e as identidades particu-
lares na busca de construção do espaço público, no qual a participa-
ção dos religiosos não seja mais do “mostrar-se ocultando”, mas o
de se unir em público e incorporar princípios e valores religiosos às
agendas das políticas públicas, que são “coletivos” negros sob diver-
sas configurações.
Assim, a presença da religião na política se torna legítima e cons-
titutiva do espaço público, bem como dos modos como os confli-
tos se explicitam e são administrados fora dos limites dos terreiros,
resultando em outras formas de visibilidade e convivência entre os
diferentes atores.
Conclui-se que as formas de mobilização dos religiosos consti-
tuem os dispositivos dialógicos que levam à assimilação de um pro-
blema até então tratado como privado, a “intolerância religiosa”,
para o domínio político como um problema público. Tais estratégias
põem em questão o sentido da “política liberal que supõe, ao mesmo
tempo, a neutralidade do Estado diante das religiões e a oferta de
garantias jurídicas à expressão pública das opiniões e crenças”
(MONTERO, 2016, p. 148).
Outra consequência desse processo está associada às formas
como são registradas, no espaço da cidade, essas ações político-
-religiosas. Seja em caminhadas, seja na deposição de oferendas no
espaço urbano, a cidade é o lugar privilegiado de intercâmbio mate-
rial e simbólico, no qual se observa uma distribuição desigual de
capital simbólico. As queixas contra a realização de oferendas nas
áreas de preservação ambiental são tratadas de maneira diferenciada
das queixas contra as celebrações católicas ou evangélicas realizadas
nas mesmas localidades.
Unir-se em público é, por decorrência, uma estratégia de ação
que revela diferentes articulações e arranjos entre grupos (religiosos
e agentes públicos) na busca de garantir a permanência da religião
de matriz afro-brasileira no espaço público apesar das ameaças de
outros grupos religiosos e agências governamentais. Trata-se de um
processo dinâmico e em curso que não se esgota nesta análise, mas
que nos permite afirmar que essas mobilizações possibilitam cons-
truir simetrias provisórias por meio de ações interativas.
356 Ana Paula Mendes de Miranda
explorar como a subjetivação da experiência de “vitimização” asso-
ciada ao pertencimento religioso pode afetar os vínculos sociais e as
políticas públicas, tema ainda pouco explorado.
Nesse sentido, faz-se necessário desconstruir as premissas teó-
ricas e políticas que associam a modernidade à secularização, num
paradigma racional e linear sobre associação política e religião, de
modo a possibilitar uma reflexão mais pluralizante que retire a popu-
lação negra da tutela dos saberes e poderes ocidentais, presentes no
ideário cartesiano iluminista. É preciso, então, buscar reflexões que
superem a produção de lugares fixos para os sujeitos, abrindo espaço
para que indivíduos e coletividades expressem seus discursos, em
um processo constante de negociação sobre as formas de represen-
tação e a provisoriedade da produção dos significados em si.
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367
dos antropológicos sobre gênero e sexualidade no Brasil para tecer
reflexões críticas acerca de tais discussões com foco na atualidade:
Adriana Piscitelli (Unicamp), Lia Zanota Machado (UnB) e Júlio Assis
Simões (USP), além de Carlos Guilherme do Valle (UFRN) como
debatedor. Neste dossiê, o/a leitor/a encontrará os resultados desse
instigante diálogo.
Lia Zanotta Machado traz uma discussão a respeito do enga-
jamento na defesa dos direitos das populações e grupos estudados
pelos/as antropólogos/as e seus possíveis efeitos, simultaneamente
políticos e epistemológicos. Toma como ponto de partida a ques-
tão da inserção política como marca da antropologia realizada (não
apenas) no Brasil para defender que “o fazer antropológico supõe
a inserção social e política e o fazer metodológico, teórico e analí-
tico”, criticando, desse modo, certa artificialidade da postura dico-
tômica entre o fazer político e a produção de conhecimento teórico.
Traça um panorama histórico do “caráter da proliferação de outros
a partir da antropologia feminista”, em uma leitura crítica da recep-
ção brasileira de obras de Marilyn Strathern, para falar das relações
entre a antropologia e as críticas tecidas pelos feminismos e movi-
mentos homossexuais e LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis
e transexuais). Mostra, assim, como a antropologia construiu novas
questões e problemas – políticos e teóricos – a partir dos estudos
de gênero e sexualidade por meio de uma discussão retrospectiva
e prospectiva sobre as “marcas” desse fazer antropológico no Bra-
sil (e também para além dele) a partir de uma análise de questões
que já eram trazidas por Eunice Durham no artigo já mencionado.
Um campo de discussões que, se já estava presente nos anos 1980,
se complexifica nas últimas décadas a partir do “reconhecimento da
proliferação das outridades”. Assim, a autora parte de seu próprio
posicionamento para tecer reflexões e considerações densas a par-
tir da antropologia de gênero e da antropologia feminista, que, na
sua visão, fazem “proliferar os outros” e “deslocam a outridade”, a
partir da apresentação de sua própria pesquisa a respeito de gênero e
violência, com foco na aplicação da Lei Maria da Penha, por meio de
uma etnografia em um juizado especializado da Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher no Distrito Federal.
368 Camilo Braz
Adriana Piscitelli, em seu artigo, parte também de suas próprias
experiências como pesquisadora para trazer uma discussão sobre as
investigações a respeito do trabalho sexual e tecer comentários em
torno do posicionamento antropológico, tanto em termos de atua-
ção política quanto no que tange à produção de conhecimento no
campo dos estudos de gênero e sexualidade, na esfera pública. A
autora destaca variadas disputas políticas em tais arenas, partindo
do posicionamento de que elas envolvem diversos âmbitos de gover-
namentalidade em variados contextos nacionais – apontando, con-
tudo, suas nuances contemporâneas no cenário brasileiro.
A autora mostra como, nas produções antropológicas brasilei-
ras em torno da temática da prostituição, desde os anos 1970, havia,
por parte de pesquisadores/as, certa aproximação com os sujeitos
de pesquisa, além da marcada “preocupação por não reforçar as
conexões entre prostituição, desvio e delinquência”, embora não
houvesse, naquele momento, uma “identificação política” com tais
sujeitos – processo que aparece mais nitidamente nos estudos rea-
lizados a partir dos anos 2000, em um cenário de ampliação e poli-
tização dos campos de estudos sobre gênero e sexualidade no país.
É nesse cenário contemporâneo que, como nos mostra a autora, os
estudos, realizados, muitas vezes, concomitantemente à colabora-
ção estreita com a prática política, passam a dialogar “de maneira
crítica com políticas que têm restringido o sexo comercial e limitado
as mobilidades das pessoas vinculadas à prostituição no país e no
exterior”. Nesse cenário, em que o engajamento político é reconhe-
cido como tendo efeitos na produção de conhecimentos situados,
o lugar de pesquisador/a passa a ser cada vez mais problematizado
criticamente, levando a inovações nos fazeres etnográficos. A autora
ressalta, por exemplo, o modo como tais estudos têm contribuído
para o refinamento das discussões em torno de certas categorias
mobilizadas nas discussões sobre prostituição, tais como a de vio-
lência.
Se a ampliação das perspectivas analíticas e a complexificação
dos marcos explicativos no que diz respeito à prostituição são efei-
tos importantes do engajamento político na produção de conheci-
mentos em torno dessa temática, Piscitelli questiona e traz como um
dos desafios contemporâneos para tal campo de estudos a questão
370 Camilo Braz
mentos sociais quanto no de leis e da formulação, implementação e
gestão de políticas públicas. Os textos mostram como a atuação de
antropólogos/as em tais arenas, se não é algo exatamente recente,
foi ampliada e complexificada nos últimos anos. E tratam não apenas
dos debates contemporâneos em torno do posicionamento antropo-
lógico em relação a tais temáticas, num cenário de aproximações e
tensões entre ativismos e academia, mas também dos desafios que se
colocam para a efetivação de direitos no atual cenário político bra-
sileiro.
373
Colocava, assim, questionamentos sobre o que se convencionou
perceber como uma espécie de “marca” da atuação de antropó-
logos/as brasileiros/as no cenário da abertura política – e que, de
certo modo, mantém-se até hoje –, que dizia respeito ao modo
como a crítica à objetividade científica traduzia-se, aqui, em
engajamento político e em uma postura de aproximação e aliança
junto às populações estudadas. Tais questionamentos são ainda
bastante atuais para pensarmos possíveis aproximações entre
antropologia, política, gênero e sexualidade, constituindo o mote
central desta mesa (SEMINÁRIO ABA+60, 2015).
374 Lia Zanotta Machado
nha a Associação Brasileira de Antropologia. A história da ABA não
é somente a história de uma associação de pesquisadores cientistas,
mas é de uma associação que, claramente, se definiu e se define pelo
engajamento na defesa dos direitos indígenas. Como tal, tem se pro-
nunciado em momentos políticos cruciais e, de forma constante,
monitorado e acompanhado cada movimento de política estatal
ou de legislação relativo aos povos indígenas. A figura de intelec-
tual público imprime suas marcas no fazer da Associação, sua presi-
dência e suas diretorias. Assessorias, comissões e comitês temáticos
foram criados ao longo dos anos para acompanhar as diferentes pau-
tas temáticas políticas. A Comissão de Assuntos Indígenas é a mais
antiga. Mas não só. Outras surgiram.2 O Comitê de Gênero e Sexuali-
dade foi recentemente criado pela atual presidência, embora asses-
sorias já tivessem sido organizadas anteriormente. Responde, com
um certo lapso temporal, aos movimentos feministas e de diver-
sidade sexual e, mais de perto, à sua concertação ou conflagração
diante de contraditórias novas políticas governamentais referentes a
direitos de gênero e sexualidade.3
Ainda que a antropologia brasileira tenha recentemente se vol-
tado para outros continentes e nações, continua a privilegiar a antro-
pologia feita no Brasil, tanto por essas temáticas serem adequadas ao
que se entende por “perspectiva antropológica”, concebida em suas
matrizes mainstream (britânicas, americanas ou francesas), quanto
pelo seu estímulo político de responder e/ou se debruçar sobre pro-
blemáticas sociais.
É possível ver hoje como investimento político e teórico se com-
binam: antropólogos brasileiros se voltam para temas como diversi-
dade cultural e direitos das minorias no chão brasileiro. A história da
376 Lia Zanotta Machado
podem ser visibilizadas antinomicamente, a contragosto ou a gosto,
mas não se constituem em essências dicotômicas do fazer antropo-
lógico. O fazer antropológico supõe a inserção social e política e o
fazer metodológico, teórico e analítico. As relações sujeito/objeto
atravessam as práticas e experiências de investigador e investigados
e suas subjetividades em suas relações sociais.
Tornar inserção política e produção de conhecimento teórico
entes dicotômicos é um dualismo artificial que deve e pode ser supe-
rado. Esse pensamento “partido” tem, no entanto, muita eficácia:
perpassa a história de todo o processo de se fazer conhecimento
antropológico desde os nossos fundadores até as atuais cidadelas das
universidades e da legitimação do conhecimento científico e teórico:
o olhar antropológico deve sempre fazer primeiro dois movimentos,
o de distanciamento e o de familiarização no espaço e no trabalho
etnográfico, para somente depois fazer o terceiro movimento: o da
análise e da teoria, quer seja nomeado “descrição”, como faz Stra-
thern, “interpretação” ou “explicação”.
Em nome da neutralidade, se quer que esse terceiro momento
seja apartado por completo dos dois primeiros, apagando mesmo
o lugar de inserção social do sujeito pesquisador/a. Considero esse
terceiro movimento como específico e com autonomia relativa em
relação aos dois primeiros, mas deles não pode ser radicalmente
apartado. A inserção social e política do pesquisador deve ser tra-
zida à cena da etnografia. Tomar partido ou não de um movimento
social não pode excluir, na análise, a percepção de outros pontos de
vista e de sua inclusão em contexto e em relação. Relações sociais
são vividas e observadas criticamente, mas não há apartação radi-
cal possível. Acreditar na apartação tem a ver com a suposição da
neutralidade científica, tão presente nas ciências naturais e exatas,
ainda que já tão criticada pelas várias modalidades do pensamento
pós-estruturalista e do pensamento das ciências sociais.
378 Lia Zanotta Machado
“observação participante”, estariam fazendo uma “participação
observante”. O engajamento político os estaria afastando do investi-
mento etnográfico e teórico.
Mas não para aí a reflexão de Durham. Critica os parâmetros teó-
ricos então predominantes na antropologia brasileira dos anos 1980
de “estudos de comunidades e pedaços”; a prevalência do funcio-
nalismo, do estrutural-funcionalismo, do estruturalismo e do cul-
turalismo norte-americano. Para ela, o modo como estavam sendo
aplicados não fornecia respostas para as perguntas advindas daque-
les que queriam incorporar em seus estudos as visões críticas que
tinham os movimentos sociais do presente social. Tratava-se de uma
sociedade fragmentada, diversa, com conflitos e contradições, e a
metodologia disponível era a de estudos e comunidades que pres-
supunham o resultado de descrever/explicar um todo integrado e
coeso. A técnica funcionalista objetivista supunha a visão neutra do
observador e seu ponto de chegada era um todo integrado. Entendia
o “grupo”, o “segmento social”, “pedaços de sociedade como se fos-
sem o todo” (DURHAM, 1986). Para ela, tal como estavam sendo uti-
lizados, “confundiam observação e generalização”. A antropologia
dos “pedaços” se fazia percebendo estes como um todo integrado,
seja pelo sistema estrutural das relações, pelo sistema funcional das
partes, seja pelos valores simbólicos do culturalismo norte-ameri-
cano.
Tal como via, o engajamento político exigia a incorporação da
experiência, dos sentimentos e dos conflitos dos investigados e do
antropólogo investigador. Almejava “rever estruturas e processos
que não se reduzam à interpretação visível dos fenômenos” e “lidar
com a relação sujeito/objeto”. Se bem me lembro de seu excelente
estudo sobre Malinowski (DURHAM, 1978), no qual o critica e elo-
gia e no qual aponta seu olhar interpretativo a partir de inspirações
marxistas de trabalhar com a relação sujeito-objeto, seu propósito
é fazer modelos teóricos se moverem a partir de aprofundamentos
e contra interpelações que fossem não só teóricas, mas políticas. As
problemáticas sociais remetem a desigualdades e ao caráter frag-
mentário da sociedade brasileira. Daí a insuficiência de vários traba-
lhos da época de apenas aludir ao modelo teórico marxista ou a um
modelo não objetivista e trabalhar com a noção funcionalista ou cul-
380 Lia Zanotta Machado
que confunde observação com generalização e vê o “pedaço” como
se o todo fosse coeso – um “todo que é integrado” (diria eu um todo
“uniformatado”). Vê o funcionalismo no seu efeito de produzir um
todo coeso e integrado e entende que não é uma boa ferramenta para
trabalhar o conflito e a desigualdade.
382 Lia Zanotta Machado
Era assim entendido: “[…] a antropologia social ainda continua a se
reconhecer como o estudo do comportamento social ou da socie-
dade em termos de sistema e de representação coletiva. Se isto cons-
titui um paradigma, então está amplamente intacto” (STRATHERN,
2009, p. 89).
Como se, antes de tudo, o que estivesse em jogo fosse a ques-
tão ética díspar: o ataque ao outro ou a compreensão do outro. Mas
será esse outro o mesmo outro? As feministas estão apontando que
há outros (distinções de gênero, classe, raça) dentro do eu ociden-
tal, entendendo-se este como a prática cultural onde se inserem as
feministas. E também apontam que há outros dentro do outro indí-
gena não ocidental (homens, mulheres) e também outros (homens,
mulheres, castas, hierarquias) dentro do outro societário não oci-
dental não indígena.
Como esse é o meu “chão”, a partir do qual penso a alteridade,
a relação e a identificação, estranho a forma como Strathern, nesse
texto, pensa insuperável a distância metodológica entre a antropo-
logia e o feminismo. Triste seria viver e experimentar a posição da
antropologia feminista como insustentável, tal como posta por Stra-
thern. Onde eu me situaria?
Deixando meu estranhamento de lado, vou imergir no racio-
cínio de Strathern no que ele me desperta atenção. Talvez ele seja
revelador dos fundamentos pelos quais muitos ou alguns antropólo-
gos brasileiros colocam (naturalizam) a invisibilidade ou inexistên-
cia de efeitos teóricos negativos da inserção política (e mesmo mili-
tância) dos antropólogos quando tratam da defesa dos direitos do
outro (indígena). Os antropólogos que estudam os povos indígenas
podem se identificar com seus investigados, pois dada a diferença
cultural entre investigador e investigado, de fato, o que fazem é se
aproximar, estabelecer relações. A identificação política é pensada
como não contaminando a capacidade teórica, pois como não há
identificação cultural, o estranhamento se produz e, em nome dele,
se estabelece uma relação e um conhecimento. Sua “militância”
jamais poderia se tornar repetição da fala nativa, pois o antropólogo,
para se relacionar e conhecer, está sempre colocando em jogo seu
suposto e precedente etnocentrismo. Argumentos que deduzo como
impregnados da sacralidade de se pensar o todo da diferença cultu-
384 Lia Zanotta Machado
Quem é o outro? Outros/as e outros/as? Eu/s e outros/as?
O que permitiu a Strathern pensar o artifício de imaginar, abstrair e
essencializar o mesmo outro? O outro dos antropólogos clássicos foi
visto à luz da grande divisão primeva e radical entre sociedades e cul-
turas modernas industriais e sociedades e culturas indígenas. Esse é
o imaginário de um só tipo de “outro”. O eu ocidental é o outro para
o eu indígena e o eu indígena é o outro para o eu ocidental. Mas a
proliferação de “outros” já foi feita entre antropólogos seguindo essa
mesma partição, a meio caminho e em torno da diversidade cultu-
ral: sociedades rurais, camponesas, sociedades orientais, sociedades
hindus. O outro por excelência é o outro da diferença cultural.
O caráter da proliferação de outros a partir da antropologia
feminista se deu em torno da diferença e desigualdade entre homens
e mulheres, depois nomeada diferença de gênero, e logo em torno
da proliferação de gêneros no plural (além de dois), expandindo-se
para a diversidade sexual. Há aqui nitidamente uma dívida para com
o pensamento feminista e os movimentos homossexuais – depois
movimento LGBTT –, que se desenvolveram primeiramente fora dos
saberes universitários. O pensamento feminista se instituiu por não
aceitar a ideia de que qualquer cosmovisão compartilhada se colo-
que como equânime na fundação do eu entre homens e mulheres,
dado o paradoxo social presente nos séculos XIX e XX de maneira
nítida – de um lado, propor a igualdade entre homens e mulheres e,
de outro, o lugar desigual. Michelle Perrot (1994) e Carole Pateman
(1998) apontam, por caminhos diversos, esse mesmo paradoxo. Nas
terras brasileiras, Franchetto, Cavalcanti e Heilborn (1981) pontuam
como a emergência do feminismo supôs antes o individualismo.
Das distinções e relações de gênero passaram a imbricações com
as distinções e relações de classe e raça e a distinções e relações entre
sujeitos segundo a diversidade sexual, sem pararem aí. Os outros se
multiplicam se deixarmos de pensar o outro como entidades abs-
tratas; “sociedades com diferentes culturas”. O outro da antropo-
logia feminista é também o outro da diferença cultural societária e a
diversidade de sujeitos em relação e no interior de cada “sociedade/
cultura”.
Até aqui, empreguei o conceito de “sociedade” e de “cultura” no
sentido proposto e de longa duração no fazer antropológico, socio-
386 Lia Zanotta Machado
se desenvolvido pelo impacto de diferentes correntes – pós-estru-
turalista, pós modernista, pós-colonial e feminista – exigindo cada
vez mais a reflexão sobre as relações sujeito e objeto e sobre o diá-
logo entre sociedades e sujeitos imersos em diferentes cosmologias
(antropologia simbólica), criticando, em grande parte, o positivismo
– tal como queria Durham, então inspirada, ao que me parece, pelo
marxismo em confluência com a crítica weberiana à neutralidade
científica em relação ao valor.
Entendo que nem toda antropologia aderia, àquele tempo, ou
adere agora a esse quase paradigma, embora essa visão tenha estado
sempre presente, dada sua história de longa duração. O que se quer
dizer com compartilhar, cada vez mais, é percebido como dando
lugar a formas múltiplas em que compartilhar e diferir se apresen-
tam simultaneamente.5
Percursos de Strathern
Naqueles mesmos anos, se dava também o notório impacto da antro-
pologia feminista britânica e norte-americana. Strathern acompa-
nhava e fazia parte desses debates e embates.
Não posso deixar de apontar que, à época, o antagonismo entre
feminismo e antropologia pós-modernista não era tido como insu-
perável. Em 1985, Strathern dizia, como já assinalei, que o chamado
pós-modernismo da antropologia norte-americana teria reafirmado
a mesma visão clássica das práticas culturais como um todo inte-
grado, como um outro. Não foi assim que chegou às terras brasilei-
ras. James Clifford (1983), ao afirmar que o autor/pesquisador tem
voz e autoridade na escrita, que sua voz não é a do nativo e que é
preciso, então, inscrever e dar lugar ao diálogo, para mim e mui-
tos outros/as, abre a porta e é ponte para autorizar outras escritas,
outros diálogos – entre eles, os das antropólogas feministas, como
anotado mais tarde na introdução de Writing culture, de Clifford e
Marcus (1986).
388 Lia Zanotta Machado
corpos sexuados. A contragosto da antropóloga (em se fazer ao gosto
da fala feminista), quando já pensava poder dizer que não haveria,
entre os melanésios, uma categoria de homens e mulheres e não se
daria a dominação masculina, a encontra (tanto a categoria quanto a
dominação) no prestígio que os grandes homens circulam entre si ao
baterem em suas mulheres.
Não deve ter sido fácil para Strathern o trabalho subjetivo de ora
articular, ora contrastar o fazer antropológico e o fazer/saber femi-
nista. De um lado, o fazer antropológico inspirado na perspectiva
clássica da antropologia de devolver, de escrever o outro como o
diferente e assim superar o etnocentrismo. De outro, o saber femi-
nista, que deve tanto ser visto como crítico ao viés masculinista do
saber etnocêntrico ocidental como parte do etnocentrismo. Contra-
riamente ao que vaticina no artigo de 1985, articulou os dois pensa-
mentos, reinventou a forma de ver gênero e dominação de gênero.
Não fosse essa inspiração dupla, antropológica e feminista, não
teríamos tido a produção dessa dádiva teórica e etnográfica que foi O
gênero da dádiva, tornado clássico. Mas aponto que o percurso tal-
vez tenha sido traumático para ela, em seus próprios termos: entre
possíveis zombarias e escárnios, afinal, quem sabe, sentiu apenas
incômodo.
A antropologia de gênero e sexualidade, seja ou não feminista,
no meu entender, desde os anos 1980 e contemporaneamente, faz
proliferar os outros e desloca a outridade. Insere e multiplica a outri-
dade na relação e na socialidade, ou seja, há outridade em socialida-
des compartilhadas. Pode-se ser, ao mesmo tempo, numa mesma
relação, numa mesma subjetividade, o mesmo e o outro. Comparti-
lhar não é antônimo de diferir, distinguir, opor, impor, contrapor,
reciprocar, conflitar, violentar.
De volta a Durham
Depois dessa breve incursão à recepção brasileira de Strathern e
Clifford à época, é o momento de voltar a Durham.
Sem se colocar no dilema entre feminismo e antropologia,
Durham fez parte do grupo da Associação Nacional de Pós-Gradua-
ção em Ciências Sociais (Anpocs) chamado Cultura Popular e Ideo-
390 Lia Zanotta Machado
o da proximidade entre investigado e investigador. O que vê é o risco
da proximidade entre antropólogos ou identificados com as eclosões
dos movimentos sociais feministas, negros e homossexuais, o que
poderia prejudicar o uso da metodologia etnográfica e o saber teó-
rico e analítico.
Durham, no entanto, apresenta visão similar à de Strathern a
respeito do funcionamento, à época, de um “quase paradigma” da
metodologia antropológica. Para Strathern, se tratava do “estudo
do comportamento social ou da sociedade em termos de sistema e
de representação coletiva”; para Durham, do “pressuposto da inte-
gração social e cultural”, referindo-se ao fazer habitual (quase um
paradigma) da antropologia no Brasil. Contudo, aponta a crítica que
já se fazia no Brasil a esse pressuposto paradigmático, crítica por ela
assumida e elaborada nos termos que se seguem:
392 Lia Zanotta Machado
qualidade política e de subjetivação da agência humana, inserida nas
relações sociais, mesmo reconhecendo os limites e os efeitos simul-
tâneos das agências das tecnologias, dos objetos, dos híbridos e dos
espíritos. Os efeitos dessas outras agências, assim como das huma-
nas, podem ser políticos, mas é a agência humana que carrega a qua-
lidade de ser política e a da subjetivação, não se confundindo com a
direção política que seus efeitos tomem.
8 Não farei uma avaliação do estado da literatura. Não é pouca a produção que se
faz em teses, dissertações, livros, capítulos e artigos em revistas dedicadas à antro-
pologia e às ciências sociais. Mas, em especial, uma visão do que se faz na área pode
ser encontrada em Grossi e Schwabe (2006) e no mais recente Dossiê Antropolo-
gia, Gênero e Sexualidade no Brasil: Balanço e Perspectivas (Cadernos Pagu, nº 42,
2014). As revistas Cadernos Pagu e Estudos Feministas se dedicam prioritaria-
mente a essas temáticas.
394 Lia Zanotta Machado
Nesse mesmo texto, a autora sustenta ainda, acerca das Delega-
cias Especializadas no Atendimento à Mulher (Deams) que:
396 Lia Zanotta Machado
por poderes desiguais (disciplinares) de gênero que geraram a rei-
vindicação das feministas por direitos.
Eis que Durham parece ter se enganado quanto aos efeitos nega-
tivos naqueles e naquelas mais próximos a um movimento social, no
caso, o movimento feminista, de que pudessem ficar mais presos à
visão nativa. Sem abdicar de sua “energia” pela defesa dos direitos,
Debert analisa os efeitos em distintas direções e pensa sobre futuras
possibilidades. Rifiotis, colocando-se politicamente de forma radi-
cal contra as Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher,
talvez tenha se tornado preso a duas e não a uma visão nativa: à visão
hegemônica jurídica de longa duração de não criminalizar “agressões
no lar” (CARRARA, VIANNA e ENNE, 2002) e à visão política da cri-
minologia abolicionista (MENDES, 2012), que propugna um direito
penal mínimo e considera possível formas outras de solução de con-
flitos, como a conciliação entre vítima e agressor, desconsiderando
as desigualdades de poder de gênero entre os sujeitos em relação.
398 Lia Zanotta Machado
pensar gênero, subjetivação e relação, recorro, sem dúvida, tam-
bém à antropóloga feminista Henrieta Moore (2007), que faz um bri-
lhante estudo sobre subjetivação e as distintas formas de incidência
de gênero nas subjetivações em distintas configurações sociais, das
modernas às indígenas. Como interlocutoras/es, toda uma produção
brasileira sobre gênero e violência.
Decidi cobrir o leque amplo dos sujeitos em relação. Com uma
equipe de pesquisadores,9 entrevistamos declarantes/vítimas,
agressores/acusados, profissionais de direito (juízes e promotores)
e profissionais multidisciplinares (assistentes sociais e psicólogos).
Participamos como observadores em audiências de ratificação, ins-
trução e julgamento e de justificação, quando fizemos anotações em
cadernos de campo, e também em atendimentos das equipes mul-
tidisciplinares aos novos casos que chegavam. Participamos como
observadores com voz (tal como nos foi demandado) nos grupos
mistos oferecidos em três sessões coordenados por uma assistente
social ou uma psicóloga, servidora do Serviço de Assessoramento
aos Juízos Criminais (Serav), cuja função era analisar o risco de ocor-
rer novo episódio de violência e produzir relatório para o juiz, assim
como, a partir da interação no grupo, perceber e estimular a respon-
sabilização do agressor e o empoderamento da vítima. Ao lado disso,
foi elaborado formulário eletrônico de questionário sobre o con-
teúdo dos autos dos processos, selecionados por termos tido acesso
a uma de suas partes, quer na audiência, no grupo ou na entrevista.
Teoricamente, busquei inspirações em autores que me levassem
a pensar as relações sociais em produção, da socialidade em [399]
movimento, de tal forma a superar a dicotomia entre estabilidade/
ordem/reprodução e instabilidade/mudança/transformação. O
que se procurava é ver o quanto de reinvenção existe nas interações
sociais, para além da simples repetição, se faz também como rein-
venção. Valho-me tanto de Wagner (2010) quanto de Sahlins (1990).10
9 O trabalho da coleta foi feito em equipe formada por mim, pela mestranda em
Direito na UnB Renata Gonçalves Costa, com dissertação logo a ser defendida, pela
estudante de graduação em Direito Ingrid Martins e pelo então estudante de gra-
duação em Direito, hoje mestrando, Guilherme Crespo. Também esteve presente a
professora de Direito da UnB doutora Camilla Prando.
10 Há textos relevantes como o de Sahlins (1990), que fala da reinvenção das tra-
dições (ilhas da história) e explicita que o conhecimento antropológico advindo da
ciência da sabedoria dos povos tradicionais indígenas permite dizer que “uma tra-
dição sempre implica alguma consciência”, que a “consciência da tradição implica
alguma invenção” e que a “invenção da tradição implica alguma tradição” (SAH-
LINS ,1990, p. 89). Wagner (2011) enfatiza o sentido social da construção e trans-
formação das culturas no interior das relações sociais. As tradições são inventadas e
reinventadas, elas não são inertes nem se reproduzem inertemente.
400 Lia Zanotta Machado
Derrida (2010) propugna que o apelo sempre insatisfeito à jus-
tiça é o propulsor da transformação do direito. Rejeita a teoria jus-
naturalista de que é a justiça que funda o direito. Assim, de um lado,
entende o direito como um “corte” no processo de apelo à justiça
dada uma determinada correlação de forças e, de outro, a luta e o
apelo à justiça (sempre endereçada à singularidade, em razão mesma
de sua pretensão à universalidade). O apelo à justiça se faz por aquele
que se pensa como tendo direito aos direitos. As práticas judiciárias,
que, a partir das reflexões de Foucault (2008), nos aparecem como
funcionando como “relações entre o homem e a verdade”, apare-
cem para Derrida como “corte” (direito) que impõe uma verdade,
mas que apresenta fissuras e brechas. O direito, para Derrida, se
funda apenas no seu existir, que faz dessa mesma força de existir seu
“fundamento místico”. Pode sempre ser desconstruído pelo apelo
insatisfeito à justiça. A justiça, por sua vez, jamais é construída nem
desconstruída, é um apelo.
402 Lia Zanotta Machado
dado o peso e a distância de poder. Supõe a ideia do sujeito autô-
nomo liberal que escolhe fazendo um cálculo.
404 Lia Zanotta Machado
Os repertórios simbólicos dos profissionais de direito como vozes
de autoridade ainda se dividem nas fissuras de variantes de inovação
de relações de igualdade de gênero e de reprodução dos valores de
longa duração em torno da antiga “honra das famílias”, transmu-
tada em “harmonia familiar”.
Considerações finais
Não vejo “incômodo” ou “briga de vizinhos” entre antropologia e
feminismo, como temia Strathern. É que ela supunha, em 1985, a
continuidade do valor intocado da bipartição entre sociedade oci-
dentalizada e sociedade indígena pensada como um sistema coeso
de representações coletivas. Ela mesma realizou “traduções”, pri-
vilegiou as relações e não as representações e apontou alguns efeitos
produzidos pela interseção entre socialidades. Metodologicamente,
os fundamentos da antropologia não exigem a visão da “cultura do
outro” como se fosse uniformatada. A antropologia feminista inova,
mas se funda em metodologia presente nas mais variadas temáticas,
metodologia que não se baseia em nenhum pressuposto da unifor-
matação do social, atendendo ao que desejava Durham em 1986.
Vejo, tal como apontou Debert, a “indignação” movendo a
antropologia feminista em seu caminho de aprofundamento teó-
rico. As indagações e interpelações que se fazem estimulam reflexões
analíticas. Nem a antropologia feminista nem a antropologia que se
move pela luta pelos direitos à diversidade sexual esgotam o campo
da antropologia de gênero e sexualidade. Debates, convergências e
divergências aí se inscrevem nesse campo, enriquecendo-o.
Não vejo risco na inserção política do antropólogo. O risco é
apenas quando não se dá conta, quando se ilude sobre seu fazer. Ao
contrário, energiza e estimula o conhecimento e o aprofundamento
metodológico e teórico ao assumir sua posição como objeto de refle-
xão. O caso da antropologia de gênero e sexualidade não é particular.
A inserção política interpela o sujeito pesquisador e a produção de
sua narrativa nas mais variadas temáticas.
Mas se é preciso que aquele que reconhece sua posição política
queira fazer boa antropologia, é também necessário que aquele que
se propõe a fazer boa antropologia porque se pensa imune à inserção
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411
esfera pública, tema central desse encontro. Tomo como referência a
produção de conhecimento e a atuação política de antropólogos que
trabalharam no campo dos estudos sobre gênero e sexualidade no
Brasil, desenvolvendo estudos sobre prostituição e sobre os deslo-
camentos vinculados ao exercício dessa atividade através das fron-
teiras.
Essas duas problemáticas são promissoras para tratar dos desa-
fios enfrentados na relação entre prática antropológica e posicio-
namento político porque têm se tornado centro de disputa política
em arenas que envolvem diversos âmbitos de governamentalidade
(FOUCAULT, 2006), instâncias do Estado, Igrejas e movimentos
sociais, incluindo os feminismos. Esses enfrentamentos estão longe
de se limitar ao Brasil. No entanto, aqui parecem adquirir matizes
específicos.
Na primeira parte do texto, reflito sobre os efeitos da articu-
lação entre posicionamento político e produção de conhecimento
antropológico sobre essas problemáticas. Na segunda parte, consi-
dero alguns dos efeitos desse conhecimento na esfera pública. Con-
cluindo, formulo algumas questões sobre as possibilidades de atua-
ção das/os antropólogas/os nessa esfera.
412 Adriana Piscitelli
mática foram realizados entre finais da década de 1970 e a primeira
metade da década de 1980. Refiro-me à pesquisa de Regina Mazzariol
(1976),5 que analisa a prostituição feminina em Campinas no âmbito
da Operação Limpeza, procedimento mediante o qual foi deslocada
do centro da cidade para uma zona relativamente distante, num pro-
cesso de confinamento; o estudo de Jefferson Afonso Bacelar (1982)
baseado numa pesquisa realizada no final da década de 1970 sobre
famílias de prostitutas na região do Pelourinho, em Salvador; e as
dissertações de Maria Dulce Gaspar (1985) sobre prostituição femi-
nina em Copacabana e de Nestor Perlongher (1987) sobre prostitui-
ção masculina no centro de São Paulo.
São trabalhos extremamente ricos nos quais os autores mostram
posturas de aproximação com seus sujeitos de pesquisa, afastam-se
de leituras estigmatizantes e, particularmente no caso da etnogra-
fia de Perlongher (1987), explicitam a preocupação por não reforçar
as conexões entre prostituição, desvio e delinquência. No entanto,
nesses estudos, que foram realizados em momentos anteriores à
criação dos grupos organizados de prostitutas, não há uma “iden-
tificação política” com os sujeitos em estudo. Nesse ponto, há sig-
nificativas distâncias entre essas pesquisas e os estudos desenvolvi-
dos a partir dos primeiros anos da década de 2000.6 Nesses últimos,
414 Adriana Piscitelli
ações do Estado voltadas para o trabalho sexual e também as ações
de redes institucionais não estatais, instituições religiosas e articu-
lações feministas mediante as quais se consolidam e são legitimadas
normas vinculadas à regulação do sexo comercial (SKACKAUSKAS,
2014; TAVARES, 2014, 2016; CORRÊA e OLIVAR, 2014). Esse embasa-
mento político está presente em pesquisas que levam seriamente em
conta a operacionalização de disposições legais supranacionais rela-
tivas a questões como o tráfico de pessoas, com efeitos restritivos nas
atividades e deslocamentos de pessoas que são vinculadas ao traba-
lho sexual (PISCITELLI, 2013b; PISCITELLI e LOWENKRON, 2015a).
E também está presente em trabalhos que iluminam a diversidade de
dinâmicas sociais e de dimensões de agência presentes nos mercados
do sexo (TEDESCO, 2015; LUNA SALES, 2015; LOPES, 2016).
Retomo agora os problemas levantados por Eunice Durham. Parte
significativa dos estudos que menciono foi realizada de maneira arti-
culada com uma prática política na arena pública e, às vezes, a par-
tir dessa prática. Como mencionei no início deste texto, no Brasil,
diferentemente de pessoas homossexuais que estudam movimentos
homossexuais, esses trabalhos só recentemente estão começando a
serem produzidos por pessoas que ofereceram serviços sexuais. No
entanto, a maior parte desses estudos foi realizado colaborando com
a atuação política de prostitutas. Entre esses autores e autoras, há
antropólogos que participaram na criação de novos grupos organi-
zados de prostitutas, os apoiaram, integraram organizações volta-
das para apoiar seus direitos, fizeram parte da representação deles
em relevantes conselhos, inclusive com abrangência nacional, como
o Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Cona-
trap), e se manifestaram publicamente através de diferentes meios,
inclusive o Comitê de Gênero e Sexualidade da Associação Brasileira
de Antropologia, em apoio aos direitos das prostitutas.8
Esse engajamento político tem efeitos na produção de conheci-
mento que mantêm estreitas relações com o posicionamento das/
dos pesquisadoras/es. Observo que, nesse campo de estudos, as
9 Para uma análise de como esse conceito tem sido trabalhado na produção antro-
pológica recente sobre prostituição no Brasil, ver Piscitelli (2014).
416 Adriana Piscitelli
Diferentemente dos estudos antropológicos pioneiros sobre
prostituição, nos quais a violência, embora registrada,10 não adquire
lugar de destaque, nas pesquisas realizadas a partir do início da
década de 2000, ela ocupa um lugar relevante. No entanto, é um
lugar diferente daquele atribuído à violência em linhas de discussão
neoabolicionistas que combatem o exercício da prostituição (ABREU,
2009), considerando-a como sinônimo de violência e de violação de
direitos humanos, e também de perspectivas que, sem serem tão
extremas, percebem os espaços e as dinâmicas do trabalho sexual
como inerentemente violentos (RIBEIRO e SACRAMENTO, 2005).
Os estudos realizados no Brasil concedem destaque à violência con-
siderando os efeitos, nas vidas das/os trabalhadoras/es sexuais, das
ações do Estado e de outras instâncias que operam nos processos de
governança no âmbito nacional e de instituições que regulam a con-
duta de Estados e pessoas em planos transnacionais e supranacionais
(MANSUR, 2014).
A violência de Estado adquire importância em estudos sobre
políticas dirigidas à prostituição de rua e sobre as experiências de
trabalhadoras sexuais que se tornaram ativistas em prol dos direi-
tos das prostitutas. A violência policial adquire destaque em diversos
estudos, históricos e atuais, nos quais a violência da Polícia Militar
é situada no marco de complexas distribuições de poder, conside-
rando inclusive redes criminosas. Nesses estudos, nos quais a vio-
lência de Estado dirigida às trabalhadoras sexuais é localizada no
âmbito de um intricado campo político, são destacadas as reações
das organizações de prostitutas, nas quais elas parecem consoli-
dar suas próprias agendas políticas (OLIVAR, 2013; TAVARES, 2014;
SILVA, BLANCETTE E BENTO, 2013).
Paralelamente, esses trabalhos mostram a violência simbólica
que permeia as ações de diferentes redes sociais e institucionais que
colaboram na consolidação de regras e normas vinculadas ao sexo
comercial. Alguns consideram as práticas de não reconhecimento
das prostitutas por parte de certos setores do feminismo no Brasil
418 Adriana Piscitelli
planos dos processos de governança. Assim, um dos efeitos do enga-
jamento político na produção de conhecimento antropológico sobre
essas problemáticas no Brasil remete à ampliação das perspectivas
analíticas e à complexificação dos marcos explicativos.
Encerrando essa parte, quero destacar que, levando em conta
a produção desse campo de estudos, sou otimista em termos dos
efeitos do engajamento político na produção de conhecimento. No
entanto, como explico na segunda parte deste texto, esse otimismo é
mais modesto quando se trata de pensar no impacto desse conheci-
mento na esfera pública.
11 Uma nova lei de migração foi aprovada pelo Congresso Nacional em finais de
2016, devendo seguir para o Senado e, depois, para sanção presidencial. Embora
considere os migrantes como sujeitos de direitos e revogue o Estatuto do Estran-
geiro, da época da ditadura militar, que prioriza a segurança nacional, a nova lei
mostra a permanência da securitização. Ver contribuições de Bela Feldman-Branco
para o comunicado Antes y después de Trump, preocupación en torno a las migra-
ciones en la región (dezembro de 2016), do grupo de trabalho Migraciones, Desi-
gualdades y Tensiones da Clacso.
12 Um exemplo são as recentes deportações de venezuelanos em situação indo-
cumentada (que inclui populações indígenas) na fronteira da Venezuela com o Bra-
sil pela Polícia Federal, que foram suspensas por uma liminar da Justiça Federal de
Roraima.
420 Adriana Piscitelli
des obras de infraestrutura, foi palco para a repressão da prostitui-
ção em cidades de diversos portes no Brasil (BLANCHETTE e SILVA,
2016; LUNA SALES, 2015; PISCITELLI e LOWENKRON, 2015b).
Finalmente, a terceira linha é o debate sobre prostituição, no
qual têm avançado propostas de lei que, caso sejam aprovadas,
aumentariam a ilegalidade de seu exercício. No Brasil, a prostituição
é reconhecida como ocupação e, embora não seja ilegal, seu entorno
é criminalizado quando beneficia terceiras partes, que são aquelas
que obtêm benefícios com a prostituição alheia. As propostas de lei
às quais me refiro agravariam essa situação, pois pretendem eliminar
a prostituição do Código Brasileiro de Ocupações e criminalizar os
clientes.13 Diferentemente do que acontece com outros movimen-
tos vinculados aos direitos sexuais, essa discussão está produzindo
o acirramento das divisões entre feministas quanto ao exercício
dessa atividade. Uma das particularidades do Brasil no que se refere
a esse debate é que, apesar de posicionamentos heterogêneos, até
a década de 2010, os feminismos não mostravam posições abolicio-
nistas extremas (CORRÊA e OLIVAR, 2014), apesar de a aproxima-
ção entre prostitutas e feministas, presente na década de 1980, ter se
diluído parcialmente no contexto das crescentes articulações entre
feminismos transnacionais e do privilégio concedido pelo Estado
à voz de feministas contrárias ao reconhecimento da prostituição
como trabalho (PISCITELLI, 2013a). A partir de 2012, porém, seto-
res feministas abolicionistas, crescentemente visíveis e agressivos,
têm manifestado posições contrárias a esse reconhecimento, con-
vergindo, nesse ponto, com os setores mais conservadores do Con-
gresso Nacional e se opondo ao movimento das “putas-feministas” e
das pessoas que as apoiam.
Nesse marco, a apropriação de conceitos pode ter efeitos políti-
cos delicados e, às vezes, nefastos. Ofereço dois exemplos de como
as noções e a linguagem utilizadas na produção antropológica sobre
as problemáticas aqui consideradas são apropriadas e incorporadas,
14 Observo que, até a promulgação da recente Lei de Tráfico de Pessoas (Lei
13.344), sancionada em outubro de 2016, a fusão entre prostituição e tráfico era
facilitada pelas divergências entre a tipificação de tráfico de pessoas no Código
Penal, segundo a qual o favorecimento no deslocamento para exercer a prostituição
no âmbito nacional e internacional configurava tráfico de pessoas, e o Protocolo
de Palermo, que, ratificado pelo Brasil em 2004, considerava imprescindível que
alguma fase do processo de deslocamento envolvesse fraude, coerção ou abuso de
uma situação de vulnerabilidade.
422 Adriana Piscitelli
horário nobre e a ativa participação das Igrejas, com particular des-
taque para o envolvimento da Igreja católica através da Campanha da
Fraternidade de 2014. Chamávamos, então, atenção para a capilari-
zação desse debate (PISCITELLI e LOWENKRON, 2015b). Aludíamos
aos fluxos descentralizados de poder que se disseminam no tecido
social no âmbito do combate ao tráfico de pessoas (FOUCAULT, 1979).
Essa capilarização nos preocupava porque percebíamos que,
nessa disseminação, acionando o que alguns especialistas chamam
de caráter expansivo do tráfico de pessoas (GALLAGHER, 2015), a
noção de tráfico se ampliava, sendo utilizada como um guarda-
-chuva (SPRANDEL, 2016) para tratar de diversas formas de violên-
cia e de violações de direitos que não tinham relação com a tipifica-
ção nas leis e para estigmatizar migrantes nas fronteiras (OLIVAR,
2015). Nesse movimento, a expansão da categoria tráfico de pessoas
acabava ocultando problemas que tinham particular relevância em
algumas cidades estudadas, como o abuso sexual de crianças e ado-
lescentes, e, paralelamente, mediante a repressão ao sexo comer-
cial, ameaçavam os direitos das pessoas que os regimes de combate
ao tráfico afirmavam proteger. Fomos percebendo, em pesquisas
realizadas em diferentes partes do Brasil, e menciono a realizada por
Paula Luna Sales em Fortaleza (2015), que a “capilarização” à qual
nos referíamos numa perspectiva crítica ia se tornando um objetivo
a ser alcançado em instâncias do Estado voltadas ao combate a esse
crime. Pessoas ocupando importantes cargos nessas instâncias afir-
mavam que a capilarização era um dos seus objetivos e que uma das
dificuldades que enfrentavam e precisavam superar era que “não
conseguiam capilarizar”.
Um segundo problema que se coloca para a prática antropoló-
gica na arena pública se refere à utilização de nosso conhecimento
na realização de pesquisas governamentais sobre essas problemáti-
cas e nos limites que devemos estabelecer para essa participação. É
um dilema que enfrentei mais de uma vez, com respostas diferentes,
e que não está inteiramente resolvido.
Nas primeiras ocasiões, na segunda metade da década de 2000,
tive dúvidas, mas aceitei coordenar duas pesquisas sobre tráfico de
pessoas para o Ministério da Justiça em parceria com agências mul-
tilaterais. Pensei, no momento, que era melhor aceitar do que dei-
424 Adriana Piscitelli
pontos do termo de referência? Teria sido melhor, em termos de
efeitos políticos, aceitar do que não aceitar?
Uma terceira questão relativa à prática antropológica na esfera
pública se refere à relação da atuação dos antropólogos com as pes-
soas cujos direitos as/os pesquisadoras/es apoiam. No caso das pro-
blemáticas aqui contempladas, refiro-me sobretudo às prostitutas,
particularmente às ativistas. Até há pouco tempo, essas relações
estavam marcadas pelas alianças. Como assinalei no início, poucos
estudos antropológicos sobre essas problemáticas foram realiza-
dos por trabalhadoras sexuais. No entanto, num passado recente,
trabalhadoras sexuais e suas organizações tendiam a considerar os
estudos acadêmicos produzidos em perspectivas não abolicionistas
relevantes para as lutas das trabalhadoras sexuais por justiça social
e econômica e a incorporar suas/seus autoras/es em suas redes de
alianças e até em suas organizações de luta por direitos.
Num contexto marcado pela gradual intensificação de forças
abolicionistas, nos últimos anos, o ativismo das prostitutas no Brasil
cresceu e se diversificou, com a inclusão de uma nova geração na
qual há pessoas com mais anos de educação formal e com intenso
ativismo na web. No contexto da intensificação do conservadorismo
político, elas estão enfrentando violentas reações em vários âmbitos,
inclusive por parte de feministas, que se autodenominam radfems
e se opõem às posições de trabalhadoras sexuais que se consideram
“putas-feministas”. Nesse tenso processo, é possível perceber, entre
algumas trabalhadoras sexuais, certa ambivalência em relação às/aos
pesquisadoras/es acadêmicos, considerando que, às vezes, ocupam
o lugar que deveria ser destinado a suas vozes, mostrando também
uma percepção ambivalente sobre a produção, remetendo à ideia de
que não seria equivalente ao conhecimento de dentro, de quem rea-
liza serviços sexuais. Essas reações adicionam tensão à arena política.
Conflitos análogos têm sido enfrentados por pesquisadores em
outros movimentos, particularmente nos identitários. Eles adqui-
rem matizes particulares para a prática antropológica, sobretudo
para antropólogos que, politicamente engajadas/os, consideram que
as relações estabelecidas na pesquisa não devem ser exploradoras e
que esta não deve ser realizada apenas pela pura produção de conhe-
cimento, pois este deveria contribuir nas mudanças sociais.
Considerações finais
Nestas considerações, adiciono uma última reflexão a essa combi-
nação entre leituras otimistas no que se refere ao impacto da par-
ticipação política na produção de conhecimento e dúvidas sobre os
efeitos desse conhecimento na esfera pública. Apesar dessas incer-
tezas, tenho claro que esse conhecimento sobre gênero, sexualidade,
prostituição, migrações e tráfico de pessoas, embasando a discussão
crítica de propostas de leis e questionando ações de governo, tem
426 Adriana Piscitelli
aberto caminhos para implicações políticas positivas. Nesse sentido,
devo registrar que a participação e a contribuição de antropólogas/
os com conselhos, comitês, Comissões Parlamentares de Inquérito,
grupos de trabalho certamente teve efeitos positivos na formulação
de políticas públicas e de algumas leis que afetam as problemáticas
contempladas neste texto.
Em termos das questões vinculadas a tráfico de pessoas e migra-
ções, essa participação contribuiu para que a proposta de criação de
postos avançados de atendimento em aeroportos e portos, inicial-
mente voltados para identificar vítimas de tráfico de pessoas, fossem
dirigidos para auxiliar migrantes em termos amplos. Ela também
contribui para que as formulações das novas leis de migração (Pro-
jeto de Lei 2.516/2015, ainda em processo de votação) e de tráfico de
pessoas (Lei 13.344, sancionada em 2016) estivessem mais dirigidas
para a defesa dos direitos humanos do que nas versões iniciais. Já
esse sucesso não foi análogo no que se refere à reformulação das leis
voltadas para a prostituição (L-012.015-2009), que, longe de avan-
çar no apoio aos direitos das trabalhadoras sexuais, ampliaram as
possibilidades de criminalização dessa atividade ao confundir, em
diversas passagens, prostituição, que supostamente não é crime,
com o crime de exploração sexual (PISCITELLI, 2012).
Concluindo, observo que esse conjunto de aspectos, positivos
e negativos, está associado a uma ativa participação política que foi
viabilizada pela demanda e pela abertura de diversas instâncias de
governamentalidade, muitas delas no âmbito do Estado. O contexto
político atual, porém, nos obriga a nos perguntarmos quais serão as
possibilidades de futuras intervenções dos antropólogos na esfera
pública. Talvez, nesse momento, nossos esforços, indo além das
reflexões sobre os acertos e problemas da prática antropológica nessa
esfera, precisem se concentrar na reconstrução de nossos caminhos
de atuação nela.
Campinas, 13 de janeiro de 2017
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432 Adriana Piscitelli
Antropologia e diversidade sexual e de gênero
no Brasil: tramas de políticas e saberes
Júlio Assis Simões1
433
a partir de um punhado de pesquisas e análises influentes sobe
homossexualidade masculina (CARRARA e SIMÕES, 2007). A partir
dos anos 2000, assistimos a uma verdadeira explosão de estudos
sobre diversidade sexual e de gênero.3 Essa expansão se vincula,
certamente, à crescente autonomização da sexualidade e das iden-
tificações e expressões de gênero como domínios articulados cen-
trais de reivindicação e exercício de direitos – e, em particular, a
seus desdobramentos como direitos que se referem a prerrogativas
às quais determinadas pessoas e grupos sociais não teriam acesso por
estarem submetidos a formas de discriminação e violência social e
política por conta de suas sexualidades e/ou expressões de gênero
estigmatizadas. É nesses termos que podemos situar a emergência
dos direitos sexuais e, num recorte ainda mais particularizante, dos
direitos LGBT.4
Questões de diversidade sexual e de gênero experimentaram
consideráveis avanços em termos de visibilidade e reconhecimento
no país desde a virada do milênio. O ano de 2004 pode ser invocado
como marco nesse processo, em vista da criação, pelo governo fede-
ral, do programa Brasil sem Homofobia, destinado a “promover a
cidadania” de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais a
434 Júlio Assis Simões
partir da equiparação de direitos e do combate à violência e à dis-
criminação. Daí se seguiu a bem-sucedida realização da Primeira
Conferência LGBT, em 2008, e foram empreendidas iniciativas de
políticas públicas dirigidas a pessoas LGBT em diferentes níveis de
governo. No terreno legal, expandiram-se regulações em diversos
níveis voltadas a combater a discriminação por orientação sexual
e identidade de gênero, assegurando, por exemplo, o uso civil do
“nome social” por pessoas trans. Entre os principais avanços obti-
dos no Judiciário, temos o reconhecimento, pelo Supremo Tribunal
Federal, em 2011, da união homoafetiva estável como entidade fami-
liar, garantindo a casais do mesmo sexo direitos até então restritos a
casais heterossexuais, como herança, benefícios da previdência, inclu-
são como dependente em plano de saúde e adoção. Tal decisão ampliou
a interpretação legal do significado de família e estabeleceu, na prática,
os precedentes para a instituição do casamento civil entre pessoas de
mesmo sexo no Brasil (SIMÕES, CARRARA e FACCHINI, 2016).
Esse quadro é fruto de um processo complexo de articulações,
discussões e regulamentações envolvendo o poder público, o movi-
mento social organizado, cientistas e representantes de classes pro-
fissionais. Nele se evidencia que os direitos LGBT estão na ordem do
dia do debate público nacional, ao mesmo tempo que se revelam
impasses e desafios persistentes que serão apontados adiante. Vale
ressaltar que vozes e formas de atuação na defesa e na mobilização
em prol dessa causa têm se ampliado e diversificado para além das
pessoas diretamente atingidas e interessadas, incluindo familiares,
entidades religiosas e, em especial, diferentes produtores de conhe-
cimento. Documentos de referência de políticas públicas elabora-
dos a partir de processos participativos, como as Conferências de
Políticas para LGBT, realizadas em instâncias municipais, estaduais
e nacional, mostram resultados de um complexo processo partici-
pativo em que integrantes da comunidade acadêmica, notadamente
antropólogos e antropólogas, participaram ativamente do processo
de formulação de propostas de políticas e contribuíram para definir
o escopo de sua ação e implementação (FACCHINI, DANILIAUSKAS e
PILON, 2013; AGUIÃO, 2014).
Antropólogos e antropólogas têm desempenhado papel impor-
tante, pois, na conformação dessa arena que tem levado à promoção
436 Júlio Assis Simões
chamamos de “emergência gay-lésbica”, que se expressa na rup-
tura entre orientação sexual e papel de gênero associado à posição
de “ativo” ou “passivo” no ato sexual. Homens “homossexuais”,
muitos dos quais já se identificando como gays, rompiam com as
expectativas de feminilidade que, de modo geral, recaíam sobre
eles, afirmando, de diferentes maneiras, que não era porque se sen-
tiam sexualmente atraídos por pessoas do mesmo gênero/sexo que
se identificavam com o sexo/gênero oposto. Um processo similar,
menos visível socialmente, também ocorria com “mulheres homos-
sexuais/lésbicas”. Tornava-se concebível, e até mesmo desejável,
que os relacionamentos homossexuais envolvessem homens igual-
mente “viris” e mulheres igualmente “femininas” ou parceiros que
pudessem, alternativamente, ocupar posições ou performances
masculinas e femininas sem se fixar em nenhuma delas. Tratava-se
da emergência plena do que o antropólogo Peter Fry (1982) chamou
de “modelo igualitário”, cujo domínio sobre modelos concorren-
tes, também presentes na sociedade brasileira, tanto preocupava o
antropólogo no início dos anos 1980. No caso da homossexualidade
masculina, ao afirmarem essa primeira disjunção entre sexualidade/
orientação sexual e identificações/expressões de gênero, gays se
separavam de “travestis” e “transexuais”, negando uma “natureza”
ou “condição” comum.
A segunda grande fratura é a que chamamos de “emergência
trans”, situada na passagem do milênio e simultânea à produção de
um campo de direitos LGBT. Em relação especular à primeira fra-
tura, esta se dá a partir da crescente organização política de traves-
tis, de mulheres transexuais e, bem mais recentemente, de homens
transexuais. Como havia acontecido anteriormente no caso de gays
e lésbicas, tais sujeitos passam a articular um discurso público alter-
nativo àquele que, muitas vezes em seu nome ou supostamente em
seu favor, vinha sendo feito sobre eles e elas. Embora acarrete con-
sequências sociais e simbólicas distintas da emergência gay-lés-
bica, a emergência trans faz afirmação semelhante, mas em sentido
contrário. Tudo se passa como se dissessem: não é pelo fato de nos
identificarmos com o gênero/sexo oposto que nos sentimos neces-
sariamente atraídos ou atraídas sexualmente por pessoas do mesmo
sexo/gênero.
438 Júlio Assis Simões
tar em materializações de inteligibilidade surpreendente – como,
por exemplo, a figura de um “homem trans gay”, isto é, alguém
designado como “mulher” no registro de nascimento que passou
posteriormente a se identificar como “homem” e que sente atração
por outros homens.
A complexidade desses movimentos simultaneamente teóricos
e políticos não é, em absoluto, estranha a praticantes da antropolo-
gia. Acostumamo-nos a desnaturalizar taxonomias e práticas clas-
sificatórias, a tratá-las como produções cultural e historicamente
particulares, sujeitas à controvérsia e à transformação. Questiona-
mos as concepções de pessoa que se pretendem fundadas em atri-
butos supostamente essenciais e universalmente válidos e não temos
maiores dificuldades em compreender gênero, por exemplo, como
uma relação entre sujeitos socialmente constituídos em contextos
especificáveis. Interpretamos os “fatos” sobre os quais nos debru-
çamos como produções simbólicas, combinações singulares entre
representações e coisas. Tratamos os “comportamentos” que obser-
vamos como ações simbólicas, mesclas igualmente singulares de
aspectos técnicos e rituais, que envolvem conformidade e invenção,
reprodução e criatividade, coerção e questionamento, disputas e
negociações de sentido e valor.
A competência específica da antropologia para a coleta e o regis-
tro de experiências sociais, sustentada na “comunicação simbólica
que supõe e repõe processos básicos responsáveis pela criação de
significados e de grupos” (CARDOSO, 1986, p.103), torna-a espe-
cialmente afeita e sensível ao complexo de interações e transações
que viabiliza o trabalho de investigação científica, com eviden-
tes implicações políticas. As pesquisas antropológicas constituem
espaço de intenso tráfico de pessoas, ideias, linguagens, preocupa-
ções e, não menos importante, de legitimação mútua entre pesqui-
sadores e pesquisados. De modo que os pontos de vista dos múltiplos
atores sociais que participam desse emaranhado de negociações e
compromissos se incorporam, de um modo ou de outro, nos fatos
produzidos e configuram o discurso sobre eles. Ter consciência disso
é central, sobretudo quando se envolve pessoas e populações tidas
como marginais, estigmatizadas e subalternas em busca de reco-
nhecimento e protagonismo político. Não se trata, portanto, de uma
7 Regina Facchini foi a mediadora crucial dessas negociações. Ver, a respeito, Car-
rara, 2013.
440 Júlio Assis Simões
pergunta “Com que sexo você foi registrado ao nascer”, mesmo que
tal questão pudesse parecer estranha para muitos gays, lésbicas e
bissexuais (CARRARA et al., 2006, p. 15).
Tais negociações de categorias, temas e questões não são raras na
atividade de pesquisa antropológica nem põem em risco o compro-
misso básico com o conhecimento, o rigor e a crítica. Ao contrário,
permite que antropólogos e antropólogas refinem a compreensão de
seu próprio ofício, problematizando, por exemplo, em que contex-
tos e condições emergem os seus próprios discursos, e não apenas
os discursos de seus “objetos”. Escrevendo na época em que mino-
rias desprivilegiadas se constituíam como novos atores políticos no
Brasil, na virada dos anos 1970 para os anos 1980 – o contexto que
correspondia à fase inicial do movimento homossexual –, Eunice
Durham e Ruth Cardoso (DURHAM, 1986; CARDOSO, 1986) alerta-
vam para o risco de que a crítica necessária às ideias de neutrali-
dade e objetividade como formas apolíticas de legitimação científica
levasse a uma postura de valorização acrítica da identificação com
as populações estudadas, privilegiando a “participação” em prejuízo
da observação, sem que pesquisadores investissem mais fundo na
análise de seu próprio olhar, do modo de operar de seu próprio dis-
curso e das implicações de seu lugar de fala.
Cientes da inevitável dimensão política da atividade antropoló-
gica, aquelas autoras se preocupavam com o modo como a antro-
pologia “contornava” os problemas decorrentes da politização dos
temas de que tratava por meio do que Durham (1986, p. 25) cha-
mou de “deslizes semânticos”, enquanto permanecia imprecisa em
relação à própria posição política dos pesquisadores. Na atualidade,
parece importante recuperar essas reflexões em termos de nos res-
guardarmos contra um procedimento que pode levar a conferir uma
espécie de objetividade ingênua às categorias “nativas” e congelar
os processos de constituição social de pessoas e coletivos, subscre-
vendo uma concepção de alteridade como se fosse um encontro de
indivíduos plenamente autônomos e autossuficientes que buscam
“se identificar”. Cabe ressaltar que a intersubjetividade enquanto
meio de conhecimento implica não apenas proximidade e afetivi-
dade, mas também estranhamento e surpresa (CARDOSO, 1986, p.
103).
442 Júlio Assis Simões
gia praticada no Brasil já conta com um lastro bastante significativo
de contribuições em termos de conhecimentos e recursos humanos.
Permanece, porém, a desconfiança de que esse conhecimento pro-
duzido em outras instâncias poderá também conflitar, em diversas
medidas, com as estratégias ativistas (FACCHINI, DANILIAUSKAS e
PILON, 2013, p. 166). Ilustrativo disso é o consenso relativamente
problemático em torno da expressão “HSH” – homens que fazem
sexo com homens – como parte da estratégia epidemiológica que
visa contemplar, numa categoria abrangente, a especificidade de
pessoas do sexo masculino que se relacionavam sexualmente com
pessoas do mesmo sexo e não se reconheciam nas categorias dispo-
níveis homossexual, gay etc.
Quando pensadas no quadro atual de desenvolvimento inci-
piente de políticas públicas para LGBT, ampliação e relativa institu-
cionalização de espaços de participação da sociedade civil na defi-
nição dessas políticas – espaços que, por sua vez, incorporaram um
volume crescente de pesquisadores trabalhando nessa temática –, as
relações entre pesquisa e ativismo, academia e movimentos se reves-
tem de complexidade ainda maior. Na busca pelo reconhecimento
do saber e da competência para tratar de questões afeitas à “comu-
nidade LGBT”, pesquisadores e ativistas dialogam, colaboram, legi-
timam-se mutuamente, mas também podem disputar, competir e
divergir. Não é possível, com efeito, tratar “academia” e “ativismo”
como blocos homogêneos. Nesse cenário, nem sempre as posições
de cientista, ativista e gestor podem ser facilmente distinguidas. Os
mesmos indivíduos podem ocupar de forma múltipla e transitória
todos esses papéis e lugares, para lembrar uma velha lição da antro-
pologia social britânica. Além disso, atores sociais podem conferir
sentidos diferentes a suas ações (CARRARA, 2013). Mais produtivo,
como argumentam Facchini, Daniliauskas e Pilon (2013, p. 168), é
considerar uma multiplicidade de projetos coexistentes que pode
implicar alianças mais ou menos contingentes entre pesquisadores,
gestores e ativistas, assim como “disputas entre projetos construí-
dos, a partir de diferentes lugares e perspectivas, por sujeitos que se
identificam com a causa e desejam ter possibilidade de intervir nas
políticas” (FACCHINI; DANILIAUSKAS e PILON, 2013, p. 168).
444 Júlio Assis Simões
conservadores aumentou nas eleições de 2014 e não apenas tem blo-
queado a agenda de direitos LGBT, mas também vem acelerando o
encaminhamento de propostas na direção contrária.
Sob vários aspectos, parecemos vivenciar o diagnóstico feito por
Carole Vance para os EUA dos anos 1980: “A direita está tentando
reimplantar os acordos sexuais tradicionais e o vínculo, antes ine-
xorável, entre reprodução e sexualidade” (VANCE, 1992, p. 2-3).
Uma amostra disso é o estrondoso apoio da Igreja católica e de lide-
ranças de outras denominações religiosas à campanha voltada para
estigmatizar a “ideologia de gênero”, que resultou na eliminação das
referências a gênero, diversidade e orientação sexual dos planos de
educação em todo o país. Temos aqui um episódio emblemático de
conversão de um conceito cunhado em um campo científico interdis-
ciplinar, em colaboração com movimentações e movimentos sociais,
em ameaça à “família” e às “crianças”. Como bem notou Regina Fac-
chini, eliminar essas palavras dos planos que preveem metas e ações
para educação não suprimirá as numerosas formas de discriminação
e violência contra mulheres, homossexuais, travestis e transexuais
que permeiam a sociedade brasileira, muitas das quais têm lugar nas
próprias escolas. O que poderá desaparecer são os recursos e orien-
tações governamentais para preparar e orientar educadores e estu-
dantes para enfrentar esses graves problemas (FACCHINI, 2015).
Retrocessos podem advir também de forma menos direta. Dados
do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq mostram que houve,
ao longo da década de 2000, uma notável ampliação de estudos de
sexualidade e gênero no Brasil: mais de 70% dos grupos que com-
portavam esses descritores, registrados por Facchini, Daniliauskas e
Pilon (2013, p. 182), tiveram sua data de formação entre 2002 e 2011.
Há uma considerável concentração desses grupos em universidades
públicas (85%, conforme a pesquisa citada) e sua distribuição regio-
nal acompanha o modo como estão distribuídos os programas de
pós-graduação no Brasil, com predomínio das ciências humanas. O
atual ataque aos programas de pós-graduação, na forma da drástica
redução de recursos, pode comprometer seriamente os esforços de
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448 Júlio Assis Simões
Antropologia e Patrimônio Cultural
A antropologia nos processos de
patrimonialização: expansão e perspectivas
Renata de Sá Gonçalves
Izabela Tamaso
451
logia em fins dos anos 19602 e sua consolidação nas décadas de 1980
e 1990. Sua expansão mais recente ocorre particularmente em prin-
cípios desse segundo milênio, exercendo, ao longo do tempo, seu
papel de participação e condução de ações políticas e sociais.
Neste artigo, pretendemos apresentar brevemente o processo
dinâmico de expansão do campo de estudos antropológicos do
patrimônio cultural para indicarmos sua intensificação, na atua-
lidade, como objeto de estudo, bem como de atuação aplicada dos
profissionais da antropologia brasileira, mostrando alguns de seus
limites, desafios atuais e perspectivas na busca de reconhecimentos
de direitos.
Breve histórico
Nas décadas de 1970 e 1980, o Brasil passou por uma série de trans-
formações políticas, gerando novas configurações no quadro de
estudos e intervenção no campo do patrimônio cultural. No con-
texto da redemocratização brasileira na década de 1980, houve uma
expansão da visão de proteção do Estado em relação ao “patrimônio
cultural”.
Como destaca Abreu (2005), algumas teses e pesquisas sobre
patrimônio elaboradas por antropólogos e datadas dos anos 1980
contribuíram para abrir uma nova área de estudos, antes tratada
sobretudo por arquitetos e historiadores. A autora destaca o tra-
balho de Antonio Augusto Arantes, Produzindo o passado, publi-
cado em 1984, coletânea que reúne comunicações apresentadas em
seminário organizado no momento em que Arantes era presidente
do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Artístico, Arqueoló-
gico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat). Outra pesquisa
importante conduzida por um antropólogo naquele momento é a de
452 Renata de Sá Gonçalves | Izabela Tamaso
José Reginaldo Santos Gonçalves, intitulada A retórica da perda: os
discursos do patrimônio cultural no Brasil3 (ABREU, 2005, p. 38).
Na perspectiva do antropólogo José Reginaldo Gonçalves (2017),
os anos 1980 foram um período de mudanças sociais no qual a cate-
goria “cultura” esteve imbuída de um discurso antropológico da
diversidade e alteridade, de incorporação de um “outro” não só exó-
tico e distante, mas interno e familiar. O projeto nacional de patri-
monialização se pautou principalmente por frear o desaparecimento
ou a deterioração de obras artísticas e monumentos históricos, que
então se tornavam passíveis de proteção por meio do tombamento,
instrumento esse que se aplicou sobretudo a elementos da arte e da
arquitetura barroca e católica (GONÇALVES, 2017; FONSECA, 1997).
A “nação” passava a ser pensada na agenda de questões culturais
brasileiras como diversidade de “culturas” que compõem a unidade
“brasileira” como estratégia política de construção de uma imagem
de nacionalidade. Ao analisar as narrativas de intelectuais que esti-
veram à frente da principal agência de preservação no Brasil, o atual
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), ao
longo do século XX, dos anos 1930 aos anos 1980, Gonçalves (2017)
afere uma certa obsessão na busca por uma “identidade brasileira”
presente nos discursos de Rodrigo Melo Franco de Andrade,4 que
dirigiu o Setor de Patrimônio de 1937 a 1969, e Aloísio Magalhães,5
que, de modos distintos, defenderam intensamente o chamado
“patrimônio histórico e cultural brasileiro”. Gonçalves identifica
454 Renata de Sá Gonçalves | Izabela Tamaso
dos recursos para que equipes de pesquisadores realizassem mapea-
mentos, inventários, resultando em dossiês que poderiam levar a
“registros” como patrimônios nacionais e a futuros planos de “sal-
vaguarda”.
No Brasil, portanto, na virada do milênio, o campo se abriu
cada vez mais para absorver os antropólogos como pesquisado-
res, “inventariantes” (TAMASO, 2006) e gestores. Esse se tornou
um movimento de múltiplas vozes. Cada vez mais incorporada ao
repertório dos grupos populares, em especial daqueles organizados,
a categoria “patrimônio” pode ser entendida como polissêmica,
tendo determinadas apropriações e compreensões nativas que não
correspondem à apropriação jurídica do termo. Seus usos plurais
percorrem do plano jurídico ao plano nativo, enunciando concep-
ções, expectativas e estratégias não só distintas nos modos de operar
de seus enunciadores, mas frequentemente conflitantes, como mos-
trou Tamaso (2007).
Os novos desafios foram muito estimulantes para a antropolo-
gia brasileira e alavancaram linhas de pesquisa em patrimônios cul-
turais em diversos programas de pós-graduação em antropologia,
com a criação de mestrados e especializações em patrimônios cul-
turais, presenciais e a distância, em instituições privadas e públicas.
Em busca no diretório de pesquisa do CNPq em 2017, contabilizamos
45 grupos de pesquisa que trabalham diretamente ou indiretamente
com o tema do patrimônio. Os referidos grupos estão cadastrados
nas áreas de antropologia, arqueologia, arquitetura e urbanismo,
artes, direito, educação, história, museologia e turismo. Percebemos
maior concentração de grupos de pesquisa na antropologia, totali-
zando 17.
Notamos ainda um consequente aumento do número de pes-
quisadores em vários níveis de formação, contemplados com bolsas
de iniciação científica e bolsistas de projetos de extensão, passando
pelas especializações, mestrados, doutorados e pós-doutorados no
tema patrimônio. Além disso, houve ampliação da problemática
mônio cultural brasileiro, com respeito e proteção dos direitos difusos ou coleti-
vos relativos à preservação e ao uso desse bem. É um programa de apoio e fomento
que busca estabelecer parcerias com instituições dos governos federal, estaduais e
municipais, universidades, organizações não governamentais, agências de desen-
volvimento e organizações privadas ligadas à cultura e à pesquisa.
456 Renata de Sá Gonçalves | Izabela Tamaso
os grupos portadores das “referências culturais” patrimonializa-
das. No âmbito das publicações da ABA, destacamos três coletâneas:
Antropologia e patrimônio cultural: diálogos e desafios contempo-
râneos, organizada por Manuel Ferreira Lima Filho, Jane Felipe Bel-
trão e Cornélia Eckert em 2007; Antropologia e Patrimônio cultu-
ral: trajetórias e conceitos, organizado por Izabela Tamaso e Manuel
Ferreira Lima Filho em 2012; e Museus e atores sociais: perspecti-
vas antropológicas, organizado por Renato Athias, Manuel Ferreira
Lima Filho e Regina Abreu em 2016.
Consideramos oportuno aprofundar as reflexões sobre a rela-
ção entre o fazer antropológico e os processos de patrimonialização
de forma a investirmos no debate acadêmico relativo aos impactos
políticos, sociais, culturais e econômicos para os grupos portadores
dos patrimônios. Identificamos, na atualidade, uma multiplicidade
de sentidos atribuídos aos patrimônios tangíveis e intangíveis, bem
como percebemos os aspectos dissonantes e plurais de seus signifi-
cados e apropriações por parte dos diversos agentes envolvidos nos
processos de reconhecimento dos patrimônios imateriais.
Desde o olhar crítico de reflexões produzidas nos anos 1980,
como Arantes e Gonçalves, até a ampliação de trabalhos de cunho
etnográfico desenvolvidos desde então, observamos nesse campo a
atuação direta de profissionais da antropologia, tanto na participa-
ção em conselhos, consultorias, quanto na elaboração de metodolo-
gias e no desempenho de cargos de gestão pública. Como indica Car-
valho (2010), a participação dos pesquisadores, necessariamente, e,
em alguma medida, dos grupos informais ou organizados da socie-
dade civil que são “produtores/detentores” dos bens culturais refe-
renciais, os inventários e pedidos de registro de patrimônio imate-
rial se constituem também em processos de diagnóstico e projeção
de ações visando à garantia das condições sociais e objetivas para a
continuidade de tais bens. Esses processos se efetivam na forma de
planos de salvaguarda, que são projetos e planos de trabalho media-
dos e executados, algumas vezes, por antropólogos e pelos grupos
interessados em conjunto com o Iphan.
458 Renata de Sá Gonçalves | Izabela Tamaso
cepções sobre a natureza e os significados dos patrimônios (SMITH,
2006) –, o fazer antropológico tem se dedicado a investigar as con-
cepções e práticas dos grupos portadores dos patrimônios indepen-
dentemente de reconhecimentos oficiais. Os valores patrimoniais
dos sistemas locais são observados na articulação com afirmações
de identidade, sentidos de pertencimento, como práticas culturais
pelas quais se transmitem memórias e saberes coletivos, atravessa-
dos por relações de poder internas e externas aos grupos.
Nessa direção, vale ainda assinalar a participação de antropólo-
gos junto a outras formas e instrumentos de fomento do patrimônio
imaterial e das memórias sociais que não passam obrigatoriamente
pelas políticas do Iphan e de instituições congêneres. Os chamados
“museus comunitários” seriam um exemplo pertinente de modos
alternativos de desenvolvimento inovador dos patrimônios intan-
gíveis que acentuam inclusive a agência dos membros dos grupos
populares, “tradicionais” e não hegemônicos.
Os debates e ações em torno de novos conceitos de museus no
Brasil vêm avançando e são diversos os formatos de organização de
acervos, produção, circulação e uso da memória. Motta e Oliveira
(2015) nos indicam que, no âmbito do patrimônio e dos museus, nos
últimos anos, tal como ocorre em outros países, progressivamente
se vem assistindo à construção de diferentes formas de narrativas,
memórias, identidades e reivindicações por diversos grupos sociais
e étnicos. Segundo os autores, surgem, assim, na esteira do movi-
mento conhecido como museologia social, variados “museus de si”
que terminam por colocar em perspectiva as contradições estrutu-
rais da sociedade e seus conflitos sociais. Isto é, as novas dinâmicas
das políticas de identidade e de memória vêm construindo narra-
tivas sociais sobre diferenças e desigualdades (MOTTA e OLIVEIRA,
2015, p. 106).
Os museus comunitários, populares ou temáticos vêm ganhando
espaço significativo. Todas essas abordagens têm apontado para a
necessidade do diálogo com diversas disciplinas no entendimento da
noção de patrimônio, cujo caráter dinâmico não permite abordagens
estáticas nem classificações definitivas. É possível reconhecer os
avanços produzidos com a difusão da noção de “patrimônio imate-
rial”. Sua aplicação, bem como os instrumentos conceituais e legais
Desafios
É desafiador perceber como diferentes agentes sociais em diferen-
tes contextos constroem uma identidade política e afirmativa. Quais
são os papéis desempenhados? Nos diferentes museus e exposições,
460 Renata de Sá Gonçalves | Izabela Tamaso
quais os objetos escolhidos? Quais as estratégias de apresentação
desses objetos?
Interessa, portanto, perceber a interlocução, não menos crítica,
com os movimentos sociais e coletivos sociais que têm se colocado
à frente das demandas por patrimonializações e musealizações por
todo o Brasil. Nota-se, aqui, no que tange ao campo da antropolo-
gia, que houve, nos últimos 15 anos, um maior número de pesqui-
sas já concluídas e sendo realizadas sobre patrimônios imateriais do
que sobre patrimônios materiais. Muito embora saibamos que, na
maior parte das vezes, esses dois tipos de patrimônio, tratados com
frequência dicotomicamente, nada mais são do que partes de um
mesmo sistema simbólico.
Há grande interesse dos antropólogos em observar e analisar: (1)
a relação dos grupos portadores dos bens com as agências culturais
e de patrimônios; (2) as relações internas ao próprio grupo durante
o processo de patrimonialização; (3) os impactos, as mudanças, os
ajustes que porventura venham a acontecer em função do novo esta-
tuto assumido pela referência cultural patrimonializada ou em vias
de o ser – como, por exemplo, a inserção de apresentações espeta-
cularizadas (OSORIO, 2011) em ocasiões específicas, a adequação das
vestimentas a uma estética do mercado turístico, entre outras.
Os processos de patrimonialização, em tempos de consolida-
ção democrática no Brasil, são meios de dar visibilidade aos grupos
sociais, muitas vezes reivindicados por parcelas da população que
pretendem se fortalecer politicamente ante a sociedade mais ampla.
Nesse sentido, apresentam-se como afirmação de acesso a direi-
tos por meio da construção de identidades coletivas particulares.
Porém, esse processo é acompanhado também de ação de “objeti-
ficação cultural”, trazendo dilemas que somente o estudo aprofun-
dado dos modos de apropriação desse movimento pelos grupos vin-
culados pode revelar.
É oportuno, outrossim, pensarmos o fenômeno das demandas de
reconhecimento social pelo acionamento do pedido de tombamento
e/ou registro de bens culturais por parte de grupos historicamente
invisibilizados em contexto no qual a teoria decolonial cresce sobre-
maneira no Brasil, seja nas universidades, agências governamentais
ou não governamentais, seja nos movimentos e coletivos sociais. A
462 Renata de Sá Gonçalves | Izabela Tamaso
Se, por um lado, o país é referência pela formulação e imple-
mentação desse modelo de política, por outro, considera-se um
grande desafio a efetivação do processo junto às esferas estaduais e
municipais. A dimensão territorial, a complexidade das articulações
burocrático-legais e o ainda incipiente investimento em capacitação
na gestão pública se apresentam como obstáculos à normatização do
direito de salvaguardar o conjunto de conhecimentos tradicionais, a
oralidade, os saberes e as manifestações artísticas da população bra-
sileira e para ela como um todo. Há aqui a necessidade do diálogo
com outras disciplinas e com outras práticas profissionais na defini-
ção do patrimônio e na elucidação de seus significados, cujo caráter
dinâmico não permite abordagens estáticas nem classificações defi-
nitivas, dada a pluralidade de visões e de experiências dos sujeitos
envolvidos nas políticas públicas nessa área.
Referências
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467
pelos questionamentos a respeito do papel social das instituições
museais, surgiram variados “museus de si”4 que expuseram as con-
tradições estruturais da sociedade e seus conflitos sociais, cons-
truindo narrativas próprias sobre diferenças e desigualdades.
Em suma, tais eventos estão associados às mudanças semânti-
cas e políticas que incorporaram o conceito de cultura (legatário do
velho culturalismo) ao campo das políticas públicas. Passou-se, com
isso, a contemplar de modo progressivo (a exemplo do que ocorreu
com o Plano Nacional de Cultura proposto pelo MinC e aprovado no
final de 2010 por meio da Lei nº 12.343) demandas de reconhecimento
social e de desenvolvimento econômico de grupos que buscavam, no
espaço público, o exercício de maior autonomia ou autodetermina-
ção. Vale acrescentar que esses sentidos e usos políticos da noção de
cultura também estão inscritos na ordem discursiva internacional
sobre direitos humanos e suas derivações nos direitos culturais, que
converteu as tradições culturais, sobremaneira de povos ou grupos
étnicos ou tradicionais, em instrumentos políticos para reivindica-
ção de direitos.
A partir desse conjunto de questões, este trabalho objetiva refle-
tir, a partir do campo do patrimônio e dos museus, sobre o cená-
rio contemporâneo dos direitos e das políticas culturais no Brasil e
suas implicações na esfera pública tendo como foco cronológico o
período de 2003 a 2016. Sugere ainda a necessidade de se adotar uma
abordagem antropológica quanto ao uso e ao emprego do conceito
de cultura como categoria discursiva e aplicativa no âmbito das polí-
ticas públicas para se avançar e problematizar novas questões teóri-
cas nesse campo de investigações da teoria social.
4 Termo proposto por Benoît de L’Estoile (2010) para pensar o processo de cons-
trução de identidade nos museus de antropologia e de história, contrapondo os
museus de si, fundados na definição de um nós, aos museus dos outros, aqueles que
expõem “les choses des Autres”.
468 Antonio Motta | Luiz Oliveira
tante lembrar que essas disputas e lutas colocam em jogo estratégias
tanto de dominação quanto de resistência na expressão de raciona-
lidades típicas da esfera pública. Essas racionalidades – associadas à
ideia de agência – passam a ser vistas como constitutivas da noção de
cultura no âmbito do que se chama de políticas de identidade. Toda-
via, como se sabe, as construções de sentido e de usos da cultura não
têm sido uniformes ao longo do tempo.
Quando considerada na velha perspectiva da nation-building,
isto é, quando direcionada à construção de identidades nacionais, a
cultura é posta a serviço dos processos simbólicos de reprodução e
de atualização dos valores monoétnicos e monoculturais dos Esta-
dos-nação. Mas nos casos em que o chão social desse Estado-nação
era pluriétnico, colocou-se o problema de se imaginar a unidade de
sua cultura e identidade – pressuposta por aqueles valores – diante
da diferenciação e das desigualdades étnico-raciais e sociais de sua
população. Esse foi, por exemplo, o principal dilema da intelligen-
tsia brasileira que, de finais do século XIX à primeira metade do
século seguinte, esteve invariavelmente preocupada em integrar a
realidade nacional à cultura ocidental. Como resposta, o paradigma
da mestiçagem – poderosa ferramenta ideológica da cultura brasileira
– não só formou tradições nacionais do saber antropológico, mas
também direcionou os saberes de gestão das diferenças que orien-
taram políticas nacionalistas em mais de um período histórico. Tais
políticas tinham como objetivo precípuo o apagamento das diferen-
ças culturais e linguísticas da população em nome de uma pretendida
unidade étnica nacional. Exemplos paradigmáticos disso são dados
pela agenda nacionalista da Era Vargas e pelas políticas indigenistas
que, secularmente, visaram a assimilação dos diferentes povos ao
corpo integrador da nação.
Já no que se refere às atuais políticas de identidade, a questão
cultural traz o problema do reconhecimento e o desafio de articu-
lar diferenças e igualdades no campo da política e dos direitos nos
Estados democráticos constitucionais modernos. Como se sabe,
esse modelo de Estado é fundado na premissa contratual da igual-
dade entre os indivíduos.5 Ora, em tal premissa, não há lugar para
470 Antonio Motta | Luiz Oliveira
Dessa maneira, a politização da cultura – bem como seu simé-
trico inverso, a culturalização da política – tem por efeito dar sur-
gimento a variadas demandas políticas na esfera pública, expres-
sando a crescente complexificação e pluralidade da sociedade civil.
Esta passa a ser vista nos imaginários políticos mais contemporâneos
por meio de suas diferentes interseções na construção de múltiplas e
variadas identidades dos novos atores políticos ou sujeitos de direi-
tos, advindos dos novos movimentos sociais que ganharam maior
visibilidade a partir da década de 1970 no Brasil. Nesse sentido, vale
ressaltar que, oriundos de diversos estratos sociais, os atores polí-
ticos desses movimentos, ao trazerem as reivindicações de mulhe-
res, gays, jovens, negros, indígenas e populações do campo para a
arena pública, ressignificaram, de certo modo, os sentidos da desi-
gualdade, desafiando teóricos e operadores da política e do direito
a lidarem com uma gama variada de demandas cujos denominado-
res comuns não se reduziam a duas classes sociais antagônicas. Com
isso, tais reivindicações passaram a orbitar também em torno de um
conjunto de questões associado àquilo que os antropólogos chamam
de cultura: distintas formas de organização material e simbólica da
vida em sociedade apresentadas pelos diferentes coletivos sociais a
reivindicarem direitos de identidade ou à diferença.7
Por conseguinte, a presença ou os usos da cultura na cena pública
coloca em evidência dilemas que reeditam antigos debates sobre
“cultura e sociedade”. Sendo assim, a ideia da cultura, traduzida pela
imagem das sociedades tradicionais – aquelas orientadas pela lógica
natural do parentesco como princípio de organização social –, seria
contraposta à lógica que rege a constituição do aparato burocrático
8 Em sua discussão sobre a cultura com aspas, propõe Manuela Carneiro da Cunha
(2009) pensar os paradoxos e as reflexividades entre uma visão – ou um uso – prag-
mática da cultura por parte dos grupos étnicos e os seus “esquemas interiorizados”
de percepção, ação e comunicação. Haveria, assim, em função dos processos legais
dos seus reconhecimentos como sujeitos de direitos, estímulo à criação de novas
formas associativas entre os povos indígenas. Numa direção semelhante, chama
atenção Bruce Albert (2000) para a importância do “mercado de projetos” das
organizações não governamentais (ONGs), no campo das políticas e dos programas
de desenvolvimento sustentável na Amazônia, nas formas de mobilização dos povos
indígenas, dando origem a uma etnicidade de resultados.
472 Antonio Motta | Luiz Oliveira
mente excluídos, com destaque para aquelas relacionadas à garantia
daquilo que eles identificam como seus direitos fundamentais.
Nesse sentido, torna-se importante assinalar que a “aura eman-
cipatória” da cultura na cena pública esteve associada às constru-
ções discursivas a respeito de um modelo democrático participativo
que o governo federal, sobremodo a partir do início dos anos 2000,
passou a utilizar como instrumento político de legitimação pública.
No campo das políticas culturais, isso se refletiu na criação de pro-
gramas e ações voltados para os atores sociais da diversidade, cujos
direitos culturais, embora reconhecidos pela carta constitucional de
1988, na prática, foram secundarizados pela centralidade das políti-
cas de renúncia fiscal como modelo instituído de política pública de
cultura. Consolidado na década de 1990, sob a égide de programas
neoliberais dos governos vigentes naquele momento, o incentivo
fiscal tem sido apontado como elemento fundamental para a cons-
tituição desse campo, fornecendo ao próprio Ministério da Cultura
(MinC) uma rotina administrativa e um modelo de funcionamento
(GONÇALVES DIAS, 2014).9
Não por acaso, quando a ideia de democracia participativa ascen-
deu à esfera do Poder Executivo, ganhou maior definição, no âmbito
das ações do MinC, um conceito de cultura de matriz antropoló-
gica como referência manifesta para as políticas públicas de cultura.
Sendo assim, nos debates construídos nas instâncias de participa-
ção política e nos informes públicos dos programas e das ações do
ministério, passaram a ganhar maior visibilidade as demandas dos
diferentes atores sociais historicamente alijados do que se chamava
de políticas culturais.
Além disso, pode-se dizer que foi nesse contexto, em que as pro-
duções discursivas sobre um maior reconhecimento de direitos pas-
saram a ganhar mais espaço na arena pública, que houve algumas
transformações no aparato administrativo do Estado. No mesmo ano
da promulgação da Constituição federal, por exemplo, foi criada a
474 Antonio Motta | Luiz Oliveira
Patrimônio e museus no campo da política
Desde a proposta elaborada por Mário de Andrade na década de 1930
até o presente, as políticas culturais e patrimoniais têm passado por
significativas mudanças, refletindo as transformações ocorridas na
própria dinâmica de organização da sociedade.
Assim sendo, as transformações ocorridas no campo do patri-
mônio cultural como reflexo das lutas sociais e políticas atuais fize-
ram com que o foco das ações protetivas do Estado fosse deslocado
do “conjunto de bens móveis e imóveis […] cuja conservação seja de
interesse público”, vinculado “a fatos memoráveis da história do
Brasil” (Decreto-lei nº 25/1937, art.1º),11 para as “formas de expres-
são”, “os modos de criar, fazer e viver” dos “diferentes grupos for-
madores da sociedade brasileira” (CF/1988, art. 216). Nessa nova
ideia de patrimônio que passou a informar o conjunto das políticas
públicas na área da salvaguarda de bens culturais no Brasil, o pro-
cesso de patrimonialização das diferenças ganhou maior institu-
cionalidade com a vigência do Decreto nº 3.551/2000, que criou o
inventário e o registro do patrimônio cultural imaterial como forma
de regulamentação dos artigos constitucionais 215 e 216.
Na política patrimonial, inaugurada ainda em finais do segundo
mandato de Fernando Henrique Cardoso na Presidência da Repú-
blica, as narrativas locais ou de grupos étnicos e raciais ganharão
progressivamente maior visibilidade no campo das políticas públicas
de cultura, antes centradas apenas na produção das macronarrativas
nacionais.
11 Apesar da inscrição de bens culturais ligados às expressões populares nos livros
de tombo do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) logo no
início de suas atividades – como, por exemplo, a da Coleção Museu da Magia Negra
da Polícia Civil do Rio de Janeiro no Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico
e Paisagístico em 1938 –, há que se lembrar de que tal fato se dá no contexto de
construção do nacionalismo varguista. Isto é, a ideia de bem etnográfico, ligado à
promoção do folclore como instrumento ideológico estado-novista, não alterou o
programa de políticas patrimoniais que privilegiaram os bens culturais associados
às elites econômicas, culturais e políticas do País. Para uma provocativa análise das
ações do Sphan/Iphan como “refrigério da cultura oficial” ver o ensaio de Miceli
(2001). Sobre o processo de inscrição do Museu de Magia Negra do Rio de Janeiro
como o “primeiro patrimônio etnográfico do Brasil”, ocorrido no contexto de per-
seguição policial e psiquiátrica, consultar o trabalho de Corrêa (2009).
12 Com a inclusão do inciso III do artigo 2º pela Medida Provisória 2.216-37, de 31
de agosto de 2001, a Fundação Cultural Palmares seria a responsável pelos processos
de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras
dos “remanescentes de quilombos”. A partir de 2003, com a publicação dos Decre-
tos nº 4.883 e 4.887, ambos de 20 de novembro, a competência para a delimitação
e titulação das terras passa a ser do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra), pertencente ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
Nessa nova configuração burocrático-administrativa, cabe à Fundação Cultural
Palmares a emissão de Certidão de Registro no Cadastro Geral de Remanescentes de
Comunidades de Quilombos, documento que afere oficialmente a autodefinição das
comunidades, tornado obrigatório no processo de titulação das terras de quilombo
de acordo com a Instrução Normativa nº 49, de 29 de setembro de 2008, do Incra.
476 Antonio Motta | Luiz Oliveira
cas estatais de promoção das expressões culturais populares e étni-
co-raciais, teve-se, pela primeira vez, em muitos casos, acesso ao
Estado e às suas políticas.
É importante destacar ainda que é reeditada, na nova política
de patrimônio, a noção de referência cultural, de inspiração
antropológica, que remonta às propostas de Mário de Andrade, na
segunda metade da década de 1930, e de Aloísio Magalhães, ainda no
final da ditadura militar. Enfatizando a diversidade “dos sentidos e
valores atribuídos pelos diferentes sujeitos a bens e práticas sociais”,
a perspectiva plural das referências culturais, nos dizeres de Fonseca
(2000, p. 12-13) “de algum modo veio ‘descentrar’ os critérios, con-
siderados objetivos, porque fundados em saberes considerados legí-
timos, que costumavam nortear as interpretações e as atuações no
campo da preservação de bens culturais”. Assim, o decreto que ins-
titucionaliza a política de patrimônio imaterial consolidou as ações
de inventário cultural, surgidas no final dos anos 1970, como reflexo
de uma maior abertura e de um pretenso aprofundamento democrá-
tico, discursivamente capitalizados pelo governo federal, principal-
mente a partir do início dos anos 2000, como marca de uma política
pública de cultura mais popular e democrática.
Como resultado também da Recomendação sobre a Salvaguarda
da Cultura Tradicional e Popular expedida pela Unesco em 1989 –
surgida a partir de uma reação dos países do Terceiro Mundo, lide-
rados pela Bolívia, contra a definição de patrimônio mundial restrita
aos “bens móveis e imóveis, conjuntos arquitetônicos e sítios urba-
nos e rurais” presente na Convenção sobre a Salvaguarda do Patri-
mônio Mundial, Cultural e Natural de 1972 –, foi criada, no âmbito
do Iphan, uma comissão e um grupo de trabalho sobre o patrimônio
imaterial no final dos anos 1990 visando à criação de instrumentos
de proteção legal do patrimônio imaterial (IPHAN, 2006, p. 17).13
13 Embora, em seu início, o SPHAN tenha optado pelos bens de pedra e cal das
elites coloniais brasileiras, o conceito de patrimônio com o qual a instituição traba-
lhará ao longo do tempo sofrerá transformações, passando, a partir dos anos 1980
– período marcado pela ascensão pública de novos conflitos e atores sociais –, a ser
cada vez mais antropologizado. Com a nomeação, ainda em março de 1979, do per-
nambucano Aloísio Magalhães como diretor-geral do órgão, são iniciadas mudan-
ças no campo das políticas públicas de cultura em ações de valorização da diversi-
dade cultural brasileira consideradas pioneiras.
478 Antonio Motta | Luiz Oliveira
começam a dar maior visibilidade pública ao tema, tratando do
problema das diferenças e desigualdades nas periferias dos cen-
tros urbanos. É importante destacar que a organização dessas e de
outras experiências museais comunitárias se confundiram com um
novo momento de mobilização política dos movimentos sociais e das
lutas das comunidades periféricas. Em resposta a essas demandas,
foi criado, em 2009, o programa Pontos de Memória no âmbito do
recém-surgido Instituto Brasileiro de Museus (Ibram)14 com o obje-
tivo de apoiar a criação de museus nas regiões metropolitanas aten-
didas pelo Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
(Pronasci) do Ministério da Justiça (MJ), contando ainda com o apoio
da Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI).
Além das experiências museais de recortes socioeconômicos
nas periferias dos espaços urbanos, merecem destaque aquelas de
caráter étnico, como a dos museus indígenas, associados a um novo
cenário político nas práticas de colecionismo que dão voz aos grupos
que constituíram outrora as figuras de alteridade nas macronarrati-
vas nacionais.
Há vários exemplos dessa articulação entre a criação de museus
e formas de mobilização política ou de resistência étnica, como a
demonstrada pelo pioneiro museu Magüta, dos ticuna, em Benjamin
Constant, Alto Solimões, Amazonas, próximo à fronteira do Bra-
sil com o Peru e a Colômbia. O surgimento desse museu remonta a
meados da década de 1980, ainda no formato de uma ONG chamada
Centro de Documentação e Pesquisa do Alto Solimões, com impor-
tante papel político na trajetória de luta do povo ticuna (OLIVEIRA
FILHO, 2012b, p. 142). Vêm se formando, nos últimos anos, também
redes de museus indígenas, como as observadas em Pernambuco e
no Ceará, articulando dezenas de experiências museais diferentes
cujo denominador comum é a transformação das práticas de cole-
cionismo em recurso nas lutas políticas dos povos indígenas, além da
interface entre os museus e as escolas indígenas.
Com efeito, forças sociais são mobilizadas em torno das narra-
tivas museais, expressando, segundo modelo bourdieusiano, uma
14 O Ibram é criado pela Lei nº 11.906, de 20 de janeiro de 2009, sendo regula-
mentado apenas quatro anos depois, com a publicação do Decreto nº 8.124, de 17 de
outubro de 2013, que também regulamenta o Estatuto de Museus.
480 Antonio Motta | Luiz Oliveira
espaços na formulação das políticas públicas, tais como conferências
nacionais e instâncias colegiadas em órgãos do governo federal.16
Diante do que se propôs discutir neste texto, convém assinalar
que, no contexto de instauração de uma nova ordem discursiva pela
Constituição federal brasileira, a referência cultural ascendeu à con-
dição de princípio legitimador de “ações patrimoniais” por parte de
todos aqueles que se identificam e se sentem detentores de direi-
tos culturais. Dessa feita, as políticas culturais e patrimoniais, bem
como os espaços institucionais de participação e controle social das
políticas públicas, vêm sendo vistas como ferramentas privilegiadas
para o agenciamento de direitos.
É também nesse contexto que emergiram as primeiras iniciativas
de patrimonialização das diferenças, ancoradas na categoria do
chamado conhecimento tradicional e relacionadas ao campo dos
recursos genéticos, da biodiversidade e do patrimônio imaterial,
favorecendo, no caso dos povos indígenas, o seu reconhecimento
como sujeitos de direitos (CARNEIRO DA CUNHA, 2009).
Com isso, novas demandas políticas e novas maneiras de se
imaginar as relações entre Estado e grupos étnicos começaram a se
apoiar na nova discursividade para os direitos, que passou a infor-
mar, a partir de então, as lutas políticas e sociais dos povos indí-
genas, afrodescendentes, quilombolas e demais atores sociais da
diversidade. No âmbito das novas políticas culturais, o campo do
patrimônio e dos museus também pode ser visto como instrumen-
talizando as lutas sociais e políticas dos grupos étnicos ao favorecer
sua mediação com a sociedade nacional e o Estado, servindo, assim,
de canal institucional para o agenciamento de direitos e políticas na
esfera pública.
16 Nesse sentido, uma das principais estratégias do governo de Luiz Inácio Lula
da Silva (2003-2010) foi o investimento nos dispositivos de participação e con-
trole social, como colegiados, conselhos e conferências, estas últimas promovidas
a “marcas” de seu mandato presidencial. No entanto, sua agenda política de par-
ticipação popular – incluindo programas de redistribuição de renda, como o Bolsa
Família – foi também associada, sobretudo por seu antecessor e por grupos ligados a
ele, a uma espécie de neopopulismo ou “subperonismo”. Para um balanço dos dois
governos Lula, ver Anderson (2011).
482 Antonio Motta | Luiz Oliveira
Ainda que o uso e o emprego do conceito de cultura enquanto
categoria discursiva e aplicativa tenha adquirido certa evidência em
determinado momento dos debates sobre essas políticas, o mesmo
não se poderia afirmar em relação à presença dos antropólogos nas
discussões e decisões sobre políticas culturais e o alcance de suas
aplicações e resultados na esfera pública.
Convém notar que, mesmo no momento mais auspicioso, no
qual se iniciou a execução das políticas públicas aqui referidas, a
chamada cultura imaterial nunca chegou a se equiparar ao patamar
de investimentos destinados à cultura material, comumente cha-
mada de “pedra e cal”. Malgrado o esforço empreendido pelo Iphan
na promoção de uma política do patrimônio imaterial, bem como no
diálogo intelectual colaborativo mantido, circunstancialmente, com
alguns antropólogos filiados à Associação Brasileira de Antropologia,
seu quadro funcional atual permanece muito limitado no que tange
à participação de antropólogos em decisões políticas importantes.
Como é sabido, há, historicamente, uma preponderância de
arquitetos no quadro de pessoal do Iphan, justificada pelo fato de sua
proposta de criação ter sido inicialmente direcionada para o patri-
mônio histórico edificado. Essa perspectiva de entendimento e de
formação de quadros profissionais veio a se modificar nos últimos
anos, muito particularmente durante a breve gestão de Antônio
Augusto Arantes – entre março de 2004 e janeiro de 2006. Arantes
foi o primeiro e único antropólogo a presidir o Iphan, já que tanto
seus antecessores quanto sucessores são arquitetos. Durante a ges-
tão de Arantes, foi incentivada e ampliada a área do patrimônio ima-
terial através da implementação do Departamento de Patrimônio
Imaterial (DPI) e da consolidação do Programa Nacional do Patri-
mônio Imaterial (PNPI). Tal iniciativa não só possibilitou uma rela-
ção mais próxima do Iphan com o campo da pesquisa antropológica,
mas também assegurou a presença de alguns antropólogos naquele
órgão, por meio de concurso público realizado em 2005, para subsi-
diar a implementação do Inventário Nacional de Referências Cultu-
rais (INRC). Vale lembrar que, à época, o INRC era levado a cabo por
Arantes, que já vinha acumulando experiência com sua metodologia
desde o final da década de 1990.
484 Antonio Motta | Luiz Oliveira
Por exemplo, na hipótese de serem aprovados dois projetos –
um de restauro de uma igreja barroca mineira, orçado e aprovado no
valor de R$ 20 milhões, e outro também de restauro, mas de uma casa
quilombola, considerada como exemplo de arquitetura vernacular,
com propósito de se transformar num centro de memória, orçado
em R$ 70 mil –, provavelmente a igreja barroca, com maior visibili-
dade, teria mais chance de captar recursos na iniciativa privada. Isso
por se tratar de um ícone já consagrado pelo patrimônio material,
estrategicamente considerado de maior impacto e visibilidade para
ser agregado ao marketing cultural da empresa que supostamente a
financiaria.
Além disso, a dificuldade para preenchimento de formulários e
exigências da própria burocracia que envolve os trâmites de cadas-
tramento do projeto junto à Secretaria de Fomento e Incentivo à
Cultura (Sefic), no MinC, acaba desestimulando e afastando pro-
ponentes oriundos de grupos ou minorias étnico-culturais. Daí por
que se atribui à Lei Rouanet um caráter elitista, na medida em que
referenda a lógica de mercado e, portanto, a cultura hegemônica.
Tal postura, paradoxalmente, vai de encontro ao corolário da polí-
tica que o MinC havia proposto nos governos passados, baseado na
democratização do acesso à cultura e aos recursos da renúncia fiscal.
No que diz respeito ao Ibram, o curto espaço de tempo desde sua
criação, em 2009, não nos permite esboçar uma avaliação mais sis-
temática sobre suas dinâmicas internas e programas, que ainda se
encontram em processo. Todavia, um fato importante a ser desta-
cado é que, nos primeiros anos de sua fundação, houve uma tentativa
de aproximação do Ibram com a antropologia, notadamente através
do GT de Patrimônio da ABA. Tal iniciativa envolveu alguns antro-
pólogos nas ações e nos projetos desenvolvidos pelo Ibram, inclusive
promovendo, junto com o GT da ABA, dois grandes seminários sobre
antropologia e museus, realizados durante a 27ª e a 28ª Reunião da
Associação Brasileira de Antropologia.
Nos primeiros anos de sua criação, o carro-chefe do Depar-
tamento de Processos Museais (DPMUS) do Ibram foi o programa
Pontos de Memória, cujo objetivo, ainda hoje, é apoiar ações e ini-
ciativas de reconhecimento e valorização da memória social atra-
vés da criação de museus comunitários calcados nos princípios da
17 Logo no início do governo interino do presidente Michel Temer – que ocupou o
cargo com o impeachment de Dilma Rousseff –, foi publicada a Medida Provisória nº
726, de 12 de maio de 2016, que extinguia o MinC e o fazia voltar à condição de secre-
taria no âmbito do Ministério da Educação. Dez dias depois, com as repercussões
negativas e as mobilizações de intelectuais e artistas na cena pública, com ocupações
das representações regionais do Iphan, o Ministério da Cultura é recriado por meio
da Medida Provisória nº 728, de 23 de maio de 2016, transformada na Lei nº 13.345,
de 10 de outubro de 2016, embora notoriamente fragilizado diante da agenda gover-
namental de cortes orçamentários nas pastas do Executivo.
486 Antonio Motta | Luiz Oliveira
gos e antropólogas nos próximos anos seja uma maior participação e
intervenção na esfera pública e em suas decisões políticas.
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493
madas “comunidades patrimoniais” e de estimular a reflexão crítica
aprofundada sobre o tema.
A primeira articulação realizada com o intuito de criar tal meca-
nismo no âmbito regional (Américas e Caribe) ocorreu por ocasião
do Fórum das ONGs reunido na 7ª Sessão do Comitê Intergoverna-
mental da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial
(Paris, 3-7 de dezembro de 2012). Apesar do grande interesse mani-
festado pelos presentes (participaram organizações de Belize, Brasil,
França, Guadalupe, Jamaica, México, Países Baixos, Peru, República
da Coreia, Suíça e Síria), apenas durante a 29ª Reunião Brasileira
de Antropologia, em 2014, a proposta ganhou bases institucionais
suficientemente sólidas, com apoio do presidente eleito da ABA e da
então presidente da AAA, que responderam favoravelmente à inicia-
tiva que, nessa altura, já havia sido endossada pelo Departamento de
Antropologia da Unicamp.
Com o apoio da Universidade Estadual de Campinas, foi reunido,
a 11 e 12 de agosto de 2015, o Grupo de Trabalho Interamericano e
Caribenho do Patrimônio Cultural, com representantes da American
Anthropological Association (AAA); Associação Brasileira de Antro-
pologia (ABA); Asociación Latinoamericana de Antropologia (ALA);
Canadian Anthropological Society/Sociétè Canadiènne d’Anthro-
pologie (CASCA); Colégio de Etnólogos y Antropólogos Sociales,
México (CEAS); Society for American Archaeology (SAA); Sociedade
de Arqueologia Brasileira (SAB); e da Universidade Estadual de Cam-
pinas (Unicamp), estes vinculados aos Departamentos de Antropo-
logia, de História e ao Centro de Lógica, Epistemologia e História da
Ciência (CLE).
Os participantes elaboraram um esboço do documento de fun-
dação do Fórum, com o título Declaração sobre a Necessidade de
Proteger e Salvaguardar o Patrimônio Cultural nas Américas e
no Caribe. Em seguida, teve início o processo de ratificação desse
acordo. Durante a 30ª Reunião Brasileira de Antropologia (João Pes-
soa, agosto de 2016), houve nova reunião de representantes dessas
mesmas instituições. Após consulta, os integrantes do grupo de tra-
balho se dedicaram ao aprimoramento de aspectos da declaração,
que teve a segunda versão concluída em outubro de 2016. O docu-
mento foi oficialmente ratificado por todas as instituições partici-
494 Antonio Augusto Arantes
pantes e esta é sua formulação final. Pretende-se, agora, prosseguir
na consolidação do Fórum Interamericano e Caribenho do Patri-
mônio Cultural, tendo como tarefas prioritárias sua consolidação
enquanto atrator e estimulador de pesquisas na região e a ampliação
de sua capilaridade.
No período subsequente, têm início as atividades propriamente
acadêmicas do Fórum, no âmbito de dois congressos da Internatio-
nal Union of Anthropological and Ethnological Sciences (IUAES). No
Intercongresso em Ottawa, realizado com apoio da CASCA de 2 a 7
de maio de 2007, ocorre o “Open panel: Heritage in motion”, com
três sessões de apresentação de trabalhos e debates. Em 2018, esse
painel ocorre em segunda edição, com quatro sessões, no Congresso
Mundial de Antropologia realizado com apoio da ABA em Florianó-
polis. Nesse segundo encontro, é de mencionar também a “Plenary
session: The politics of value in cultural heritage practice”, com
participação de antropólogos, arqueólogos e arquitetos do México,
dos Estados Unidos, do Brasil e da Austrália.
Fórum Interamericano e Caribenho do Patrimônio Cultural - um breve histórico de sua constituição 495
Declaração sobre a proteção e salvaguarda do
Patrimônio Cultural nas Américas e no Caribe
Aprovada pelo Grupo de Trabalho Interamericano e Caribenho do
Patrimônio Cultural em seu Primeiro Encontro, em 12 de agosto de 2015,
na Unicamp, Campinas, Brasil. Ratificada por ABA, ALA, CASCA, CEAS,
SAA, SAB e Unicamp. Alterada em 18 de novembro de 2016 a partir de
discussões ocorridas no segundo encontro desse grupo de trabalho, em
6 de agosto de 2016, em João Pessoa, Brasil, e em consultas subsequentes
realizadas por correio eletrônico.
Preâmbulo
O segundo encontro do Grupo de Trabalho Interamericano e Cari-
benho do Patrimônio Cultural ocorreu durante a 30ª Reunião Bra-
sileira de Antropologia, nos dias 4, 5 e 6 de agosto de 2016, em João
Pessoa, Paraíba, Brasil. O objetivo dessa reunião foi dar andamento à
implementação do fórum Interamericano e Caribenho do Patrimô-
nio Cultural. Representantes da American Anthropological Associa-
tion (AAA), Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Associa-
ción Latinoamericana de Antropología (ALA), Society for American
Archaeology (SAA) e do Departamento de Antropologia da Unicamp
se reuniram para discutir sobre os procedimentos a serem adotados
para a implementação do fórum, sobre a agenda de trabalho do grupo
para 2017-2018 e aspectos do texto da Declaração (versão de 23 de
setembro de 2015), em resposta a questões levantadas pelo Grupo de
Trabalho do Patrimônio Cultural do Executive Board da AAA durante
a ratificação daquele documento por essa associação e por outros
signatários fundadores1 do fórum durante a mencionada reunião e
em consultas realizadas a partir de então por correio eletrônico.
496 Antonio Augusto Arantes
A versão modificada que se publica a seguir responde as preocu-
pações que surgiram após a preparação do texto original da Decla-
ração. Ela foi elaborada por Cristina Oehmichen (ALA), Elizabeth
Chilton (AAA) e Antonio Arantes (ABA e Unicamp) e aprovada pelos
membros do Grupo de Trabalho Interamericano e Caribenho do
Patrimônio Cultural para ser enviada aos signatários convenentes2
da Declaração para ratificação/rerratificação.
Declaração
Nós, signatários convenentes da Declaração sobre a Proteção e
Salvaguarda do Patrimônio Cultural nas Américas e no Caribe,
endossamos o acordo a seguir e encorajamos todos aqueles que con-
cordarem com suas metas e objetivos a igualmente endossá-lo.
I. CONSIDERANDO que o patrimônio cultural tem sido definido
de várias maneiras em convenções e cartas internacionais,
assim como em legislações nacionais; e que todas as definições
reconhecem a importância dos recursos e expressões culturais
tangíveis ou intangíveis, dinâmicos e mutáveis, que proveem
sentidos de identidade e de continuidade às pessoas, em escalas
local, nacional e internacional; e que essas definições variam em
suas particularidades ao se ajustarem às demandas de comuni-
dades de interesse específicas; nós adotamos, para os propósi-
tos da presente Declaração, esse entendimento compartilhado
como definição de trabalho, e
II. CONSIDERANDO que, em face de mudanças sociais, políticas
e econômicas, passadas e presentes, têm sido tomadas deci-
sões que afetam a sociedade civil, perturbando profundamente
práticas culturais tradicionais, modificando as sociedades de
maneiras inesperadas e, com frequência, indesejáveis e amea-
çando, por vezes, sua sobrevivência; e que o patrimônio é parte
integrante da identidade dos grupos sociais, situando uns em
relação aos outros e moldando as suas aspirações de futuro; nós
Fórum Interamericano e Caribenho do Patrimônio Cultural - um breve histórico de sua constituição 497
entendemos que proteger e salvaguardar esse patrimônio é cru-
cial não apenas para esses grupos, mas para a humanidade em
geral, e
III. CONSIDERANDO um direito humano inalienável a oportuni-
dade de se envolver com o patrimônio cultural de livre escolha,
desde que respeitados os direitos de outrem; e que o patrimônio
resulta de negociações complexas na esfera pública entre agen-
tes sociais, instituições do Estado, investidores privados e uma
gama ampla de mediadores, entre os quais se incluem pesqui-
sadores acadêmicos, consultores independentes e profissionais
trabalhando em instituições públicas e privadas, e
IV. CONSIDERANDO que reconhecemos a existência de diferen-
ças econômicas, políticas e jurídicas entre os vários países das
Américas e do Caribe, assim como constatamos que os patrimô-
nios culturais, particularmente os dos povos indígenas e os das
populações tradicionais, se encontram, de diversas maneiras,
ameaçados em toda a região; afirmamos que pesquisas sobre
os patrimônios culturais de todos os segmentos da sociedade
são necessárias e que elas devem ser conduzidas, quando apro-
priado, em colaboração com as comunidades patrimoniais na
condição de parceiras em iguais condições, ou seja, incorpo-
radas a todos os estágios da pesquisa, do planejamento à exe-
cução, inclusive na documentação dos resultados e no encami-
nhamento de recomendações, e
V. CONSIDERANDO que a pesquisa sobre o patrimônio cultural
deve ser encorajada nas Américas e no Caribe, julgamos neces-
sário fortalecer as teorias e os métodos usados no seu estudo, e
VI. CONSIDERANDO que reconhecemos a responsabilidade dos
consultores, assim como dos agentes de instituições públicas
ou privadas, afirmamos que toda pesquisa sobre o patrimônio
cultural deve ser conduzida de acordo com o código de ética de
cada sociedade científica e que todos os produtos derivados da
pesquisa, inclusive coleções (i. e., artefatos e registros), devem
ser curados de acordo com os protocolos e códigos de ética da
museologia e da gestão de coleções contemporâneas, assim
498 Antonio Augusto Arantes
como os adotados pelo International Center for the Study of the
Preservation and Restoration of Cultural Property (ICCROM) e
outras contribuições relevantes compatíveis com os princípios
éticos da antropologia e disciplinas afins, e
VII. CONSIDERANDO que o Estado é um ator-chave na salvaguarda
dos patrimônios culturais, é necessário trabalhar com vistas a
fortalecer leis e regulamentos de proteção do patrimônio cul-
tural e instar os agentes públicos sobre a necessidade premente
de cumprir suas responsabilidades legais de forma transpa-
rente para que a salvaguarda do patrimônio se faça no interesse
público, e
VIII.CONSIDERANDO que agentes sociais, tais como as organiza-
ções da sociedade civil e as populações afetadas,3 devem ser
politicamente fortalecidos em suas negociações com agências
públicas ou privadas direta ou indiretamente responsáveis pela
implementação de políticas ou projetos relativos ao patrimônio
cultural,
ASSIM, as sociedades científicas e instituições acadêmicas sig-
natárias desta Declaração se empenharão em realizar – da melhor
forma possível, reconhecendo que esta Declaração é endossada de
forma voluntária e sem outras obrigações –, o seguinte:
1. Através do Fórum Interamericano e Caribenho de Patrimônio
Cultural, coordenar esforços para estabelecer uma rede de par-
ceiros e encorajar a colaboração entre pesquisadores do patri-
mônio cultural em todos os subcampos da antropologia e disci-
plinas afins.
2. Promover simpósios, oficinas e outras atividades como forma
de contribuir para a troca de experiências e o aprimoramento
do nosso conhecimento sobre o patrimônio cultural, particu-
larmente em relação aos seguintes temas, entre outros:
a. Relações entre patrimônio tangível e intangível.
Fórum Interamericano e Caribenho do Patrimônio Cultural - um breve histórico de sua constituição 499
b. Relações entre patrimônio, direitos territoriais e repre-
sentações costumeiras de territorialidade.
c. Relações entre patrimônio e desenvolvimento econômi-
co.
d. O papel do patrimônio, inclusive conhecimentos tradi-
cionais, no desenvolvimento sustentável.
e. Direitos intelectuais sobre expressões culturais e conhe-
cimentos tradicionais.
f. Efeitos das políticas de patrimônio sobre a vida dos que
sejam por elas afetados, sejam portadores ou praticantes
de patrimônio cultural intangível, sejam proprietários,
posseiros ou habitantes de sítios protegidos, unidades de
conservação ou de centros históricos urbanos.
g. Ameaças de natureza econômica, política, moral, militar,
ecológica, demográfica ou outra à continuidade do patri-
mônio cultural.
8. Estimular e encorajar a pesquisa, publicação e divulgação de
trabalhos impressos ou eletrônicos sobre o patrimônio cultural.
9. Apoiar a criação de organismos independentes e não partidários
para monitorar os efeitos das políticas de patrimônio cultural e
promover a criação de políticas de patrimônio e instrumentos
de salvaguarda quando eles inexistirem.
10. Estimular a capacitação de grupos afetados por projetos ou polí-
ticas de patrimônio, bem como de profissionais que atuem em
instituições públicas ou privadas.
11. Estimular a inclusão de temas relacionados com o patrimônio
cultural na educação formal e informal e promover a capacita-
ção de educadores.
12. Incorporar sociedades científicas e instituições acadêmicas ao
fórum como parceiras a critério dos signatários convenentes e
seguindo os procedimentos por eles estabelecidos.
500 Antonio Augusto Arantes
SIGNATÁRIOS FUNDADORES
Jeffrey Altschul (ex-presidente, Society for American Archaeology);
Antonio Augusto Arantes Neto (professor, Departamento de Antro-
pologia, Unicamp); Michel Bouchard (presidente, Canadian Anth-
ropology Society/Société Canadienne d’Anthropologie); Flávio Rizzi
Calippo (vice-presidente, Sociedade de Arqueologia Brasileira);
Artionka Capiberibe (professora, Departamento de Antropologia,
Unicamp); Renata Sá Gonçalves (co-coordenadora, Comitê de Patri-
mônio e Museus, Associação Brasileira de Antropologia); Teresita
Majewski (co-coordenadora, Cultural Heritage Task Force, Ameri-
can Anthropological Association); Cristina Oehmichen (presidente,
Asociación Latinoamericana de Antropología e Colégio de Etnólo-
gos y Antropólogos Sociales, México); Silvana Rubino (professora,
Departamento de História, Unicamp); Antonio Carlos de Souza Lima
(presidente, Associação Brasileira de Antropologia); Izabela Tamaso
(coordenadora, Comitê de Patrimônio e Museus, Associação Brasi-
leira de Antropologia); Claudia Marinho Wanderley (pesquisadora,
Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, Unicamp).
SIGNATÁRIOS CONVENENTES
AAA – American Anthropological Association; ABA – Associação
Brasileira de Antropologia; ALA – Asociación Latinoamericana de
Antropología; CASCA – Canadian Anthropology Society/Société
Canadienne d’Anthropologie; CEAS – Colégio de Etnólogos y Antro-
pólogos Sociales, México; SAA – Society for American Archaeology;
SAB – Sociedade de Arqueologia Brasileira; Unicamp – Universidade
Estadual de Campinas, Departamento de Antropologia.
Fórum Interamericano e Caribenho do Patrimônio Cultural - um breve histórico de sua constituição 501
Antropologia, Universidade e Povos Indígenas
Interculturalizar ou guaranizar a escola?
Questão posta ao Brasil plural1
Almires Martins Machado2
Jane Felipe Beltrão3
505
No espaço, se potencializa o ser guarani sob a ótica e os modos
de ser tradicional ou o ava teé mbya, como afirmam nossos interlo-
cutores, evidentemente naquilo que os protagonistas conseguiram
manter e atualizar em suas longas caminhadas, que provavelmente
tiveram início na Argentina há mais de 100 anos até chegarem ao
Pará.
Nesses espaços apropriados pelo povo guarani ocorrem sessões
de grafismo corporal, embora os adultos maiores afirmem que os
guarani não usam pintura corporal, salvo em ocasiões especiais. O
fato indica uma das muitas mudanças ocorridas e a necessidade de
se apresentar a partir de suas insígnias étnicas, requerida de forma
contínua pelos não indígenas.
Pergunta-se: é imperativo, para o povo guarani, tornar a escola
da aldeia adequada aos objetivos do coletivo indígena? O fato é indí-
cio de ausência de práticas interculturais? Ou de interculturalidade
desprovida do conteúdo político original, oferecido pelos movimen-
tos indígenas? Se a pressuposição é correta, o desafio é descobrir o
que acontece quando se instala a escola em território indígena: como
ela é recebida?
506 Almires Martins Machado | Jane Felipe Beltrão
vezes, a condução escolar nem adentra a estrada vicinal, ficando nas
proximidades da PA 150, ponto bastante distante da aldeia.
A Kuriwassu não tem projeto político-pedagógico (PPP), que se
encontra em fase final de elaboração; pauta-se por educação bilín-
gue, usando as línguas guarani mbya e português, que abrange ações
de respeito à cultura do coletivo, conquistadas pela mobilidade polí-
tica do grupo e pelo aprendizado da “gramática” da sociedade civil
brasileira, por intermédio da qual os indígenas buscam garantir
direitos e interesses da comunidade.
Werá constata que:
[…] esse lado eu digo que a escola na aldeia, ela tem que respeitar
o dia de acordo com os índios, com a comunidade. Eu acho por-
que não é ainda, [a escola] não respeita a nossa vontade aqui den-
tro, eles marcam assim um dia que nós temos que ‘tá estudando
direto, quando não, manda um papel de Jacundá dizendo como
pode fazer a merenda. Não é nós que vamos escolher o que vamos
fazer amanhã pros meninos, o que que os meninos querem comer.
Então tudo já vem marcadinho no papel, tal dia esse aqui, tal dia
é esse, tal dia é esse aí. A gente faz isso aqui, aí os meninos não
comem, aí se perde. Então eu queria que a gente mesmo fizesse,
né? O que que a gente vai dar naquele dia pros meninos, fazer não
aquilo escrito. Aqui, os meninos vão comer, então vamos marcar
aqui, então isso que eu queria que todo mundo respeitasse, como
é nosso jeito dentro da aldeia.
Um pouco do passado
Agora, a partir das observações feitas por Werá, delineia-se e ana-
lisa-se o problema enfrentado pela escola. Antes dos não indígenas
aportarem em terras guarani e, com eles, a escola, os povos indíge-
nas tinham, por certo, pedagogia e metodologia de ensino. Alguns
princípios se destacam, assim acreditam nossos interlocutores.
Primeiro, os pais e a comunidade procuravam educar as crian-
ças para torná-las adultos conscientes dos deveres para com o cole-
tivo, a família e, principalmente, para considerar respeitosamente as
narrativas (mitos) tradicionais e a natureza. As crianças aprendiam,
desde tenra idade, com os demais membros do povo ao qual per-
tenciam o ser guarani. A criança aprendia por exemplo e imitação.
Os momentos de aprendizagem consistiam em sessões/aulas teó-
508 Almires Martins Machado | Jane Felipe Beltrão
rico-práticas (não circunscritas a um determinado espaço), todos
na aldeia podiam ser professores, se aprendia com muitos agentes
sociais – assim sendo, as crianças não eram necessariamente educa-
das por essa ou aquela pessoa, a comunidade agenciava o ensino. A
sala de aula era a grande e exuberante mãe natureza, as lições, quais-
quer que fossem (desde astronomia até conhecimentos tradicionais
associados à biodiversidade, passando por física, biologia, geografia,
história, filosofia), eram oferecidas durante as caçadas, a pescaria,
as excursões de coleta de frutos e raízes e a exploração do território
pertencente àquele povo. Nada era apartado do ambiente de convi-
vência e das práticas cotidianas.
À noite, as lições continuavam ao redor da fogueira ou nas opy
durante festas e rituais. A cada momento, novas lições podiam ser
ensinadas. As meninas realizavam o aprendizado com as mulheres
da comunidade, elas eram filhas de muitas mães, que ensinavam os
deveres e obrigações de mulher e esposa, principalmente articula-
vam a indicação do papel político na sustentação das bases familiares
que compunham os tekoas (aldeias) guarani.
No dia a dia, e em continuidade, se ensinava, no tempo ade-
quado, como participar nos rituais religiosos e em quaisquer outras
atividades. A premissa do aprendizado era/é tornar a criança um
adulto capaz de ser independente, obter seu sustento sem ajuda de
terceiros, trabalhar para o bem comum de sua comunidade e estar
pronto, ao final do aprendizado, para o casamento, que se dá como
rito de iniciação, quase sempre coincidindo com o início da puber-
dade, após o qual o iniciado passa a pertencer ao círculo dos adultos,
isso por volta dos 12 ou 13 anos. Portanto, a idade adulta e as respon-
sabilidades chegam cedo entre os guarani.
Toda a educação indígena é direcionada para a convivência em
um espaço de igualdade, não se exclui ninguém da vida social, porque
se busca potencializar, nas práticas sociais, as bases de uma sociabi-
lidade na qual as relações expressam o reconhecimento do indivíduo
na condição de sujeito de direito no âmbito da comunidade e, por-
tanto, de igual. É inerente ao processo de reconhecimento da tra-
jetória dos homens e mulheres como avaetes (idôneo, verdadeiro)
serem portadores do poder da palavra.
510 Almires Martins Machado | Jane Felipe Beltrão
A quarta fase se inicia na década de 1990. Em 1991, promulgou-
-se o decreto que delegou ao Ministério da Educação a coordenação
de políticas públicas e ações em prol da educação escolar indígena em
substituição à Funai. É o início do novo processo de política pública
para a educação escolar indígena, redundando na Lei de Diretrizes e
Bases para a Educação Nacional (LDBEN) em 1996; no Plano Nacio-
nal de Educação em 1998; e no Referencial Nacional para as Esco-
las Indígenas (RCNEI) também em 1998. A Lei nº 9.394/1996 dedica
dois artigos, no título Das Disposições Gerais, à educação escolar
indígena: aqui nos interessa o artigo 78, que prevê que o sistema de
ensino da União desenvolva sistemas integrados de ensino e pesquisa
para a oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos povos
indígenas, oferecendo lastro à existência de subsistema de ensino
voltado exclusivamente para a educação indígena, devendo ter uma
estrutura diferente da vigente nas escolas fora das comunidades. A
consequência imediata da LDBEN foi a elaboração do Plano Nacio-
nal de Educação, fundamentado nas previsões constitucionais que
asseguram o direito à educação escolar indígena: artigo 5º, caput,
CF/1988, artigo 4º, IV, artigo 205, artigo 206, I, artigo 208, I e IV –
respectivamente, igualdade de todos perante a lei; todos têm direito
a não ser discriminado; todos têm direito à educação; igualdade de
condições a todos de acesso e permanência na escola; ensino fun-
damental obrigatório e gratuito; acesso aos níveis mais elevados de
ensino, pesquisa e criação.
Esse novo despertar se deu na proposição do constituinte de
1988 quando previu as nuances da educação indígena voltada para a
valorização do ser indígena e não mais para sua integração na socie-
dade nacional. Com as normas constitucionais, o indígena deve ser
ele mesmo, o que sempre foi, um indivíduo com usos, costumes
e dotado de cosmovisão diferente, com reflexos na nova forma de
conceber a escola, não mais escola para indígena e sim uma escola
indígena, não que isso signifique uma radicalização, não é isso, mas
que muita coisa do que pertence à escola formal pode ser aprovei-
tado ou reinterpretado ao paradigma pedagógico indígena, que faz o
papel interlocutório no estabelecimento do diálogo dessa transição.
A preocupação com essa interlocução é que merece atenção
redobrada para que possa vir a bom termo. Vejamos as palavras
512 Almires Martins Machado | Jane Felipe Beltrão
longo de toda a história de relacionamento dos povos indígenas
com representantes do poder colonial e, posteriormente, com
representantes do Estado-nação.
514 Almires Martins Machado | Jane Felipe Beltrão
Diante das exigências legais, as secretarias de educação se apres-
saram em realizar cursos de qualificação de professores indígenas e
não indígenas para que, de qualquer modo, pudessem suprir a falta
de professores e atender à demanda interna crescente de estudantes
por bancos escolares nas aldeias, haja vista o crescimento da popu-
lação indígena no país.
O esperado é um professor preparado, é ser professor e não
estar professor; a tarefa de ensinar não deve ser pensada como um
emprego, mas como a substituição da outrora casa dos homens ou
casa das mulheres, isso sem ser pretensioso na substituição de uma
instituição por outra. O professor, apesar de não ser um sábio nos
moldes de experiência/idade, pode, sim, compreender, assimilar
e reproduzir, para sua clientela em sala de aula, os valores holísti-
cos de seu povo. O certo é que, através da língua materna, a criança
forma o seu mundo de significados, é o meio pelo qual ela entende
o que está a sua volta. Quando se deixa de falar a linguagem, é como
se a terra que antes era uma floresta abundante fosse derrubada para
dar lugar ao pasto dos bois: vai ser uma terra pobre e sem cobertura,
um semideserto; ou, ainda, como os piscosos rios que, perdendo a
floresta que os sustenta, ficam com as margens nuas, tornando-se
um rio assoreado, sem peixe e com água contaminada, o primeiro
passo para que seja um rio morto.
Diante desse dilema, o direito fundamental da pessoa humana à
educação segue a passos de tartaruga no que tange à sua implemen-
tação: não depende de leis, elas já são inúmeras, das mais avança-
das do mundo. Parece-nos que ainda falta o toque magistral de uma
caneta no papel, no despacho dos prefeitos e governadores, reco-
nhecendo e implementando a escola como indígena, e também, para
não ter o olhar distorcido, no momento de empenhar os recursos
recebidos para a educação indígena.
A caminhada com intencionalidade para se chegar à escola “sem
males” e que nelas não se veja mais o abandono, a falta de merenda,
de professor, de transporte escolar, o desrespeito às cosmologias e às
outras formas de educar.
Referências
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2016. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/
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516 Almires Martins Machado | Jane Felipe Beltrão
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Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me002078.
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repensando trajetórias. Brasília: MEC, Secad, 2006. p. 69-114.
519
discutindo a importância dos nativos negros e indígenas se tornando
antropólogos e também como nós, nativos, fazíamos antropologia.
Inclusive, gostaria de registrar a falta que Gersem Baniwa faz nesta
mesa. Uma pena que ele não pode estar aqui por motivo de doença.
Naquela ocasião, apresentei um texto intitulado “O nativo revestido
com as armas da antropologia” (VAZ FILHO, 2008) onde mostrava,
através da minha trajetória, como a antropologia podia se tornar
uma arma nas mãos dos próprios indígenas. E, ainda hoje, essa é a
minha condição ou o lugar de onde eu falo: indígena e antropólogo.
O que vou expor é resultado da minha observação como indígena,
professor e diretor de Ações Afirmativas na Ufopa.
O termo interculturalidade se refere a trocas, diálogos e inte-
rações entre grupos, culturas e pessoas que estejam em condições
horizontais para se relacionar. Que estejam em iguais condições
para efetuar tais trocas (PAULA, 1999). Se não for assim, o resultado
é outra coisa. Interculturalidade exige o respeito pelo diferente, pelo
outro. Esse respeito é uma condição para a interculturalidade. Nesse
sentido, o que vemos nas universidades brasileiras nos últimos anos?
520 Florêncio Almeida Vaz Filho
sala de aula? Certamente que há uma grande diferença entre uma
aula de etnologia indígena quando os nativos estão presentes ape-
nas no texto, objetivados, e uma aula onde os indígenas estão, como
sujeitos, sentados diante do/a professor/a, discutindo criticamente
sobre o que se diz ou se pensa deles. E essa cena está ficando mais
comum nos cursos de Antropologia e em outros cursos na área das
ciências humanas. E o que pode acontecer quando estudantes indí-
genas se levantam e questionam as próprias práticas e certas con-
cepções dos seus professores antropólogos? São muitas perguntas
que podemos fazer. E o debate só está iniciando.
Uma olhada inicial na nova realidade das universidades, ao
mesmo tempo que nos mostra sinais animadores de que estão ficando
mais democratizadas e plurais, traz um quadro preocupante que
vem se estabelecendo em muitas dessas instituições. E precisamos
discutir o preconceito contra indígenas e negros, que se manifes-
tou mais abertamente à medida que esses grupos se tornaram mais
visíveis e ativos em várias instâncias da vida acadêmica. Precisamos
ampliar o debate porque o clima de acirramento de preconceito e
racismo está se refletindo em várias instituições em diferentes esta-
dos do país, envolvendo um ataque a direitos étnicos conquistados,
dessa vez dentro da própria academia.
O que ocorre com indígenas e negros é que, de nativos distantes,
esses sujeitos hoje passam a integrar o corpo acadêmico das univer-
sidades no país e trazem novos desafios para a academia e, especial-
mente, para as ciências sociais, requerendo que ambas se posicio-
nem de forma mais efetiva em relação aos nossos campos de estudo,
garantindo que paradigmas teóricos bem resolvidos nos livros, como
a alteridade e o combate ao etnocentrismo, saiam do papel para o
dia a dia. O que está acontecendo na prática, no entanto, nem sem-
pre é condizente com propostas de respeito aos grupos estudados e
vem gerando problemas em algumas universidades, onde indígenas
afirmam que estão sendo desrespeitados no seu direito à identidade
étnica e sugerem que isso acontece por não se adequarem a um perfil
de índio exótico e bilíngue, em total desrespeito a conquistas políti-
cas e sociais de tais comunidades nas últimas décadas.
522 Florêncio Almeida Vaz Filho
oriundos do eixo Sul-Sudeste do Brasil ou da Europa e dos Estados
Unidos. Importa menos enfatizar os saberes e as tradições do seu
povo e os seus próprios.
Houve uma grande caminhada, é claro. Com a presença dos
indígenas nas universidades, inevitavelmente, houve alguma
mudança. Mas o padrão monocultural se mantém como a referên-
cia. Gersem Baniwa fala em colonização epistêmica, e esse processo
continua praticamente o mesmo. Porém, temos de destacar que os
indígenas, uma vez dentro das universidades, não ficaram somente
“assistindo às aulas” ou se adaptando ao ambiente acadêmico. Pela
própria necessidade, parte deles foi se agrupando e se mobilizando
para reivindicar bolsas e acompanhamento. Logo, esses estudan-
tes descobriram que não bastava entrar na universidade através de
algum processo diferenciado de seleção e que conseguir condições
adequadas para estudar e sobreviver lá dentro era outro desafio. E
os estudantes indígenas tomaram várias iniciativas, com apoio de
professores e gestores que acolhiam suas propostas e desenvolviam
projetos para favorecer a permanência e o aprendizado satisfatório
desses estudantes.
Posteriormente, as iniciativas pontuais foram elevadas ao nível
de políticas das próprias universidades ou do governo federal. Se
hoje muitas universidades têm coordenações, diretorias ou até pró-
-reitorias de ações afirmativas que garantem maior atenção a indíge-
nas, negros e quilombolas, isso foi resultado de cobranças e pressões
dos próprios estudantes beneficiados por essas políticas. O mesmo
se pode dizer das salas e espaços específicos para os indígenas ou
negros em algumas universidades ou, ainda, em nível de Brasil, da
bolsa permanência do MEC.
A existência dessa maloca aqui na UNB como espaço bem visível
dos estudantes indígenas é um dos exemplos dos resultados dessa
iniciativa de pressão exercida pelos índios diante da estrutura das
universidades. Nas demais universidades, há salas, pequenas ou
maiores, mas espaços de referência onde esses estudantes indígenas
podem usar computadores e fazer suas reuniões. São as “malocas”
que os indígenas vão criando nas universidades, sinais de um avanço
conquistado por eles mesmos. Podemos dizer que foi a partir da ini-
ciativa desses grupos que se instituiu nas universidades uma polí-
524 Florêncio Almeida Vaz Filho
A rebelião dos estudantes indígenas na
Ufopa e suas possíveis lições
E aqui eu gostaria de me referir ao fato que ocorreu no Programa de
Antropologia e Arqueologia (PAA) da Ufopa no primeiro semestre de
2015: uma espécie de rebelião dos estudantes indígenas contra seus
professores e também contra formas de tratamento que recebiam na
universidade como um todo. Naquela ocasião, foi possível consta-
tar como uma tensão pode ficar latente, acumulada durante algum
tempo, na forma de mágoas e rancores, e, de repente, explodir.
Quando puderam falar abertamente, os indígenas afirmaram que se
sentiam profundamente discriminados por seus próprios professo-
res de Antropologia e Arqueologia, além de outros estudantes não
indígenas e professores de outros cursos. Quando houve uma opor-
tunidade, aproveitada por aqueles indígenas, foi como o destampar
de uma panela de pressão.
Aconteceu, então, que os estudantes indígenas enfrentaram seus
professores, irrompendo em reuniões de colegiado e os obrigando a
escutá-los. Os professores, ainda tentando manter sua autoridade e
argumentação, foram obrigados a ouvir a palavra firme dos estudan-
tes indígenas: “Não! Agora vocês vão ter de nos escutar! Vocês estão
na nossa casa e precisam nos respeitar”. Até a reitora da universi-
dade foi a uma das tensas reuniões entre estudantes e professores
e teve de escutar os desabafos e as reivindicações dos indígenas por
mais respeito.
Existem atualmente na Ufopa 240 estudantes indígenas que
entraram pelo PSE e 15 que entraram pelo Processo Seletivo Regu-
lar (PSR), pela cota dos 50% oriundos de escola pública. Esses estu-
dantes são de aproximadamente 20 etnias e estão distribuídos em
todos os institutos, pois para o PSE indígena e quilombola, há vagas
em todos os cursos. E, desde 2011, quando da realização do primeiro
seminário sobre o PSE indígena, esses estudantes apresentam relatos
de discriminação por parte dos professores, de servidores e estudan-
tes não indígenas. Mas o quadro tem se agravado desde 2014 com o
crescimento da animosidade, inclusive entre os próprios indígenas.
Em geral, esses estudantes vêm de três áreas geográficas e cul-
turais distintas. Há os indígenas da região do baixo rio Tapajós, pró-
ximo à cidade de Santarém, com um intenso contato com a sociedade
2 A ABA chegou a lançar uma nota sobre essa sentença. Ver: http://jornalggn.
com.br/blog/mpaiva/nota-da-aba-antropologia-sobre-a-sentenca-judicial-que-
-nega-a-condicao-de-indigenas-ao-povo-borari-e-arapium. Acesso em: 13 jan.
2015.
526 Florêncio Almeida Vaz Filho
do PAA não tomaram nenhuma iniciativa no sentido de esclarecer
o pequeno grupo waiwai sobre o equívoco daquela ideia de “falsos
índios”. E, ao menos em público, aqueles waiwai não foram sequer
advertidos por seus mestres, continuando, em sua cruzada, a calu-
niar os indígenas do baixo rio Tapajós. A maioria dos líderes do Dain
são indígenas do baixo Tapajós, matriculados principalmente nos
cursos de Direito, Antropologia e Pedagogia.
Essa situação de animosidade entre estudantes de diferentes
etnias não é um caso isolado e envolve disputas políticas por legiti-
midade, recursos e espaço social que são comuns em outras partes do
país e já dispõem de uma boa base de estudos antropológicos. Essas
disputas reverberam em diálogos que vêm alimentando a reflexão
sobre uma perspectiva de respeito à diversidade de grupos com dife-
rentes momentos de organização social e política, mas semelhan-
tes na busca de respeito por sua identidade étnica. Uma realidade
que, se bem processada, passa sobretudo pelo respeito às diferenças.
Pelo desenrolar dos acontecimentos, se observa que, no âmbito dos
cursos de Antropologia e Arqueologia na Ufopa, tal respeito não está
ocorrendo.
Pois bem, aconteceu de o Anarq, um coletivo formado por parte
dos professores do PAA da Ufopa, convidar o doutorando em Antro-
pologia Daniel Bellik para proferir a palestra “Quem são os muitos
munduruku?”. O evento aconteceu no dia 11 de maio de 2015, em
uma sala da Ufopa em Santarém, e contou com a presença de muitos
estudantes e professores.
Após a apresentação feita pelo pesquisador, um grupo de estu-
dantes da Ufopa pertencente ao povo munduruku foi para a frente
e afirmou que ele deveria interromper sua pesquisa, pois não tinha
permissão desse povo para fazer trabalho de campo na terra indí-
gena dos munduruku, já tendo sido expulso cinco vezes de suas
aldeias. Em seguida, o grupo leu uma carta mediante a qual os líde-
res de organizações munduruku explicam que “estão apreensivos
por causa dos planos do governo federal de construir o Complexo
[hidrelétrico] Tapajós” e, nesse contexto, não sabem “quem são
as pessoas que chegam”. Por isso, sua posição é de que “nenhum
intitulado ‘pesquisador’ tem autorização para entrar no território
528 Florêncio Almeida Vaz Filho
cia muito claro na Ufopa. As coisas poderiam ter parado ali mesmo.
Mas foram além.
Diante da insistência de parte dos professores de que o PAA
manifestasse apoio público aos munduruku em relação ao seu pro-
testo diante do pesquisador Daniel Bellik,5 os estudantes indígenas
das outras etnias do baixo rio Tapajós se sentiram bastante incomo-
dados. Não aceitavam a insistência de solidariedade apenas para com
os munduruku e começaram a se articular, até irromper, em grande
número, na reunião do colegiado do PAA no dia 18 de maio de 2015.
Apresentaram um documento que, desde o primeiro parágrafo, usa
de tons bastante fortes contra seus professores de Antropologia e
Arqueologia: “Vimos por meio deste SOLICITAR deste colegiado UM
POSICIONAMENTO E AÇÃO com relação a conflitos políticos, e o
porquê da omissão deste programa frente a alguns acontecimentos
que vêm ocorrendo […]”.6
Os estudantes sugerem que a grande preocupação de parte dos
professores do PAA com os munduruku resulta do fato de se tratar de
um grupo bilíngue, pois o mesmo interesse não se voltaria aos indí-
genas do baixo Tapajós. A grande questão apresentada era: por que
tanta veemência na defesa dos índios munduruku do alto e médio
Tapajós e quase nenhuma reação em defesa dos índios do baixo rio
Tapajós?
530 Florêncio Almeida Vaz Filho
bilíngues? Ou por que não somos “exóticos” e selvagens, a ponto
de responder aos fatos da maneira como agiria o indígena de suas
concepções? Entendemos que para estes profissionais, de uma
forma geral, os indígenas que atualmente estão na Universidade
são apenas os Wai wai e os Munduruku. Talvez essa postura, não
percebida apenas por eles próprios, docentes, esteja contribuindo
para alguns grupos étnicos se acharem no direito de ser mais indí-
genas que outros, gerando toda essa “bola de neve”. Nesse sen-
tido, a omissão de tais fatos, para nós, configura-se como uma
conivente discriminação (ofício dos estudantes indígenas do baixo
rio Tapajós, 2015).
532 Florêncio Almeida Vaz Filho
dos professores do PAA no dia 11 de maio. Os mesmos professores se
opuseram a que fosse dado novamente espaço e oportunidade para
que Daniel Bellik pudesse se manifestar sobre o ocorrido. Diante
disso, os alunos indígenas e não indígenas do PAA convidaram o pes-
quisador para que voltasse à Ufopa para uma “palestra-continua-
ção” com o tema “Ética e Antropologia – um assunto a debater”.10
Os estudantes pareciam querer dizer a seus professores que podiam
discordar de seus pontos de vista e de suas preferências. O evento
aconteceu no dia 25 de maio de 2015, quando Daniel Bellik fez uma
exposição de seu ponto de vista sobre os fatos e suas reflexões a par-
tir deles. Nenhum dos membros do Anarq que haviam saído no meio
da palestra do dia 11 esteve presente.
A greve dos professores, servidores técnico-administrativos e
estudantes da Ufopa, iniciada em fins de maio de 2015, acabou ser-
vindo para dispersar a mobilização dos estudantes do PAA. E os pro-
fessores do Programa, com algum alívio, após muitas reuniões e dis-
cussões sobre o teor do documento e dos protestos indígenas, envia-
ram aos signatários do documento indígena uma nota de esclareci-
mento datada de 12 de junho de 2015. Nela, dizem repudiar “de forma
veemente qualquer ataque que vise prejudicar a integridade física,
cultural, moral e territorial de Povos Indígenas” e que consideram
a necessidade de “elaborar formas de apoio mais efetivas por direi-
tos dos Povos Indígenas do Baixo Tapajós, bem como de outros Povos
ameaçados […]”. Dizem ainda que “[o] PAA considera as acusações de
supostos ‘falsos índios’ infundadas e rejeita firmemente qualquer dis-
criminação ou acusação dessas ordens”. Com o esvaziamento da uni-
versidade, poucos indígenas leram a nota. Tampouco se preocuparam
em ter acesso a ela. Importava que o seu recado já havia sido dado. E,
pelo conteúdo da nota, os professores do PAA, ao menos em parte, já
estavam considerando a mensagem dos indígenas.
534 Florêncio Almeida Vaz Filho
2014, para protestar contra a sentença que negava a existência de
terras indígenas no rio Maró e a ocupação do prédio do ICMBio, exi-
gindo o cancelamento de um projeto de crédito de carbono florestal
na área da Resex Tapajós-Arapiuns, em agosto de 2015. Foram tam-
bém esses estudantes que, em agosto de 2015, durante a etapa regio-
nal da Conferência de Política Indigenista, em Santarém, exigiram e
conseguiram da Funai as passagens para que 25 representantes dos
povos do rio Tapajós fossem a Brasília para tratar da demarcação de
suas terras e da luta contra as hidrelétricas no Tapajós.
São esses os estudantes indígenas que estão nas universidades,
forçando para que se abram mais as portas e para que se abram mais
portas. Se a universidade não tem sido, por si mesma, intercultural,
se não tem favorecido a interculturalidade, os indígenas chegaram
para forçar esse processo. E é assim que as universidades no Brasil
estão sendo levadas a encarar de fato a necessidade de serem mais
interculturais. E esse caminho parece que não tem volta. Ao menos
no que depender dos estudantes indígenas.
Referências
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2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
MATA, Vera Lúcia Calheiros. A semente da terra: identidade e conquista territorial
por um grupo indígena integrado. Tese (doutorado). Rio de Janeiro: Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social, 1989.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo:
Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais, 1976.
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VAZ, Florêncio Almeida. Ribeirinhos da Amazônia: identidade e magia na Floresta.
Revista de Cultura Vozes, Petrópolis, 90, p. 47-65, mar.-abr. 1996.
537
Nos últimos 10 anos, observo que alguns indígenas já formados
e estudantes de Antropologia passam a assumir a função de relato-
res e porta-vozes de seus povos; tradutores das reivindicações e dos
projetos dos povos indígenas que foram e são enviados aos órgãos
do Estado e às organizações das sociedades nacional e internacional.
Além disso, um antropólogo indígena já começa a assumir a função
de professor da universidade, consultor, perito, assessor e tradutor
do governo e da justiça do Brasil. No contexto atual, em que o antro-
pólogo indígena passa a disputar o cargo com antropólogos não indí-
genas, na ocasião dessa disputa, o antropólogo indígena sempre foi
e é desclassificado do cargo concorrido, enfrentando novo desafio
para ocupar o cargo disputado com antropólogo não indígena. Há
relatos indígenas de que, no seio da universidade pública, quando
um antropólogo indígena conseguiu ocupar o cargo concorrido, foi
considerado, por uma parte dos antropólogos não indígenas, muito
importante, enquanto outros profissionais consideraram negativo e
se sentiram incomodados com a presença de antropólogo indígena
na universidade.
É importante destacar que, em diversos espaços dos órgãos
públicos, nas ocasiões das reuniões e assembleias intercomunitárias
e interétnicas, em geral, os antropólogos indígenas foram e são acio-
nados para escrever, explicitar e traduzir algumas políticas públi-
cas e programas sociais dos sistemas do Estado brasileiro para os
povos indígenas. Dessa forma, o indígena formado em Antropologia
começa a conviver e circular nos dois sistemas socioculturais e polí-
ticos, com conhecimentos complexos e distintos. Assim, os antropó-
logos indígenas passam a traduzir as políticas do governo aos povos
indígenas, isto é, esses estudantes indígenas tentam traduzir tanto
para os povos indígenas quanto para os agentes do Estado brasileiro.
Gostaria de destacar que, para se formarem nos cursos de Antro-
pologia, os indígenas pesquisam seus próprios povos, como ficará
claro a seguir. No momento atual, já como antropólogos/as, conti-
nuam pesquisando as demandas dos povos indígenas, que cada povo
tem uma trajetória específica, uma luta e resistência histórica diante
da política de dominação e territorialização promovida pelo Estado
brasileiro ao longo dos séculos XX e XXI.
538 Tonico Benites
Destaco que, diante desse fato histórico, hoje, um dos desa-
fios dos indígenas formados em Antropologia é a desconstrução
ou descolonização dessas imagens preconceituosas e dos modos de
vida negativos dos povos indígenas cristalizados historicamente na
educação brasileira. Esses trabalhos árduos de desconstrução de
“índios” dos livros didáticos e da grande mídia dominante desafiam
o antropólogo indígena no contexto atual.
Destaco ainda algumas de minhas novas experiências, vividas
no estado de Mato Grosso do Sul. Para analisar minha atuação como
antropólogo indígena, mencionei o contexto da história de luta e
resistência de meus povos guarani e kaiowa pelo reconhecimento e
demarcação de suas terras tradicionais tekoha. Cito que, em meados
de 1970 e no início de 1980, diante da resistência e da luta reiterada
dos povos indígenas guarani e kaiowa para permanecer nas suas ter-
ras tradicionais, o órgão indigenista do governo começou a envolver
antropólogos não indígenas na realização de estudos antropológicos
sobre as comunidades indígenas e suas terras tradicionais deman-
dadas.
Dessa forma, em meados de 1970, os antropólogos não indígenas
passaram a descrever as histórias, os relatos, as reivindicações das
terras e, sobretudo, as concepções vitais dos povos indígenas guarani
e kaiowa, demonstrando as terras tradicionais específicas ocupadas
e demandadas pelos povos indígenas. Assim, as narrações dos indí-
genas são sistematizadas pelos antropólogos, dando atenção mere-
cida aos relatos e, sobretudo, à memória do povo guarani e kaiowa.
Esses relatos indígenas constantes dos relatórios antropológicos
contestaram as versões, as argumentações e os documentos oficiais
dos fazendeiros, expedidos pelos órgãos do governo. Os povos gua-
rani e kaiowa resistentes e reivindicantes de reconhecimento de suas
terras tradicionais eram classificados ou acusados tanto pelos fazen-
deiros quanto pelos órgãos do Estado como índios criminosos, deso-
bedientes e invasores das propriedades particulares. Naquele con-
texto histórico, o antropólogo ou estudo antropológico provou de
forma oficial que as comunidades indígenas guarani e kaiowa eram
habitantes ou moradores originais das terras reivindicadas e perten-
ceram ao lugar específico desde há muitos séculos; por essa razão, o
antropólogo determinou a delimitação da extensão da área ocupada
540 Tonico Benites
tadas para os indígenas em geral). Dessa forma, antropólogos indí-
genas sempre estão passando por uma experiência múltipla e desa-
fiadora, uma vez que conseguiram e conseguem debater e perceber,
ao frequentar esses diversos espaços, as inúmeras opiniões, propos-
tas e soluções pensadas acerca da situação indígena no Mato Grosso
do Sul. As participações dos antropólogos indígenas nesses espaços
nos permitiram entender as diferentes “soluções” pensadas para os
povos indígenas em suas terras.
Enfim, quero destacar minha trajetória de antropólogo indígena.
Sendo minha pesquisa participativa e implicada, posso compreender
melhor o modo de ser, agir e pensar dos operadores de direito, dos
pesquisadores de universidades, dos agentes indigenistas do Estado
e de fora dele (ONGs), do governo e do Poder Judiciário brasileiro.
O curso de mestrado e de doutorado em Antropologia Social me
proporcionou uma sólida base para compreender e respeitar as pes-
soas distintas e suas opiniões sobre os povos indígenas no Brasil.
Os cursos e o trabalho acadêmico foram vividos como um estágio
muito árduo, mas também muito significativo para minha formação
pessoal e acadêmica. Com base nas experiências adquiridas no curso
de Antropologia e durante as pesquisas de campo, posso dizer que
a área de antropologia, quando feita com seriedade, torna-se fun-
damental para entender de forma aprofundada as concepções, os
interesses e as necessidades reais das famílias e dos povos indígenas
abordados, levando sempre em consideração a sua história e o seu
modo de viver e de ser múltiplo.
Como já dito, desde 1990 até os dias de hoje, na condição de estu-
dante indígena e porta-voz do povo guarani e kaiowa, participei ati-
vamente de diversos eventos locais, regionais, nacionais e interna-
cionais. Hoje, como antropólogo indígena, quero mencionar minha
participação em congressos, seminários e encontros nos quais pude
proferir muitas palestras e denunciar questões graves, abordando
temas complexos e polêmicos relacionados à questão da recuperação
ou demarcação das terras indígenas, da educação escolar indígena,
da saúde indígena, entre outros temas de importância para os gua-
rani e os kaiowa. Em meio a esses eventos e assembleias indígenas
importantes, elaborei, muitas vezes a pedido das lideranças indíge-
nas, documentos diversos escritos em português nos quais consta-
542 Tonico Benites
Antropologia, migrações e deslocamentos
Migrações e deslocamentos: políticas nacionais,
políticas globais e movimentos sociais
Bela Feldman-Bianco
545
transnacionais brasileiros é inegavelmente resultado dessas mobili-
zações sociais.
Por sua vez, Marcia Anita Sprandel, em “Lei de migrações:
avanços em contextos de atraso”, compara a tramitação no Con-
gresso Nacional dos projetos de lei que originaram o Estatuto do
Estrangeiro de 1980 e a nova Lei de Migração. Sua análise destaca
o forte protagonismo de associações de migrantes, entidades que
atuam junto àqueles, organismos internacionais e especialistas na
questão migratória nas audiências públicas no decorrer dos tra-
balhos da Comissão Especial da Câmara dos Deputados que criou a
nova Lei das Migrações (PL 2.516/2015). Mostra como esses prota-
gonistas contribuíram com sugestões concretas para o refinamento
de uma legislação baseada em migrantes como sujeitos de direitos
e, ainda, se mobilizaram em prol de uma sanção presidencial sem
vetos. Ao mesmo tempo, descreve os concomitantes e progressivos
embates entre esses defensores dos direitos humanos e aqueles que
continuaram a priorizar a defesa da soberania nacional, conjugada
à atual retórica que equaciona migrantes à ameaça do terrorismo.
Essas polarizações, que inclusive incidiram em manifestações de rua
contra a nova legislação, ocorreram com maior vigor a partir da sua
tramitação no Senado, quando, entre outros vetos, foram excluídos
os artigos referentes ao Conselho Nacional de Imigração (CNIg) de
seu texto, culminando, ainda, na sanção presidencial com 18 vetos.
Mesmo levando em conta esses retrocessos, Sprandel, como outros
ativistas, celebra a criação da nova lei. No entanto, adverte sobre os
desafios a serem enfrentados no processo de sua regulamentação
dada a contínua retirada dos direitos que vinham se consolidando
desde a Constituição de 1988. Esse seu prognóstico, infelizmente,
se concretizou: o decreto de lei resultante desse processo de regu-
lamentação respalda a continuidade e até acentuação da segurança
nacional e da judicialização da migração, trazendo à tona grandes
desafios para os que lutam pelos direitos humanos dos migrantes.
Comparativamente, Igor Machado, em “O imigrante e o Estado
da diferença”, se volta à análise antropológica de três propostas de
renovação de legislação migratória no Brasil a fim de explorar como
a criminalização da migração e dos migrantes foi produzida nesses
textos. Sua abordagem, realizada com o intuito de examinar a cons-
546 Bela Feldman-Bianco
trução da diferença, lhe permite distinguir que tipo de estrangeiro é
imaginado por agentes e atores políticos envolvidos com a produção
legislativa, bem como as formas de gerenciamento das migrações em
suas múltiplas e complexas relações internas nesses distintos pro-
jetos de lei, encaminhados pelo senador Aluísio Nunes (antigo PLS
288, redefinido como PL 2.516, que deu origem à Nova Lei de Migra-
ção), por uma comissão de especialistas do Ministério da Justiça e
pelo CNIg, órgão tripartite do Ministério do Trabalho.
No transcurso de sua investigação, Machado contrasta essas pro-
postas às ações do CNIg nos casos omissos com o intuito de entender
a configuração mútua estabelecida nesses textos, seja no que tange
à forma como o Estado define a diferença, seja no que se refere aos
modos como a diferença define o Estado. Argumenta que essa aná-
lise evidencia que, apesar dos conflitos, os três projetos de lei pensam
a diferença de forma um tanto semelhante, expondo tanto o medo
aos migrantes quanto a tendência de criminalizar a migração através
de uma hierarquia de alteridades que produz diferenciação entre os
migrantes. Desse ângulo, indica que a diversidade de agentes, inte-
resses e disposições políticas resulta numa luta intrínseca no âmbito
do Estado em prol da redefinição e constituição de novas topografias
girando especialmente em torno de três agentes principais: Ministério
da Justiça, Polícia Federal e CNIg. Desse modo, a análise dessas propos-
tas lhe permite explorar melhor como a figura do migrante opera para
redefinir o Estado em detrimento de uma política efetiva de migração.
Como corolário, sugere que a importância dada à Polícia Federal no
PL 2.516 é causa de uma acentuada criminalização da migração e da
consequente necessidade de esse órgão gerenciar a política migrató-
ria, eliminando, assim, a possibilidade de uma política efetivamente
dirigida aos migrantes enquanto sujeitos de direitos.
Na sequência, Guilherme Mansur Dias, em “Governabilidade
migratória e organismos internacionais”, se volta para o estudo da
reprodução de políticas globais de securitização e criminalização de
migrantes e, em especial, da noção de tráfico de pessoas. Seu objetivo
é refletir antropologicamente sobre o papel de determinadas orga-
nizações internacionais – como a Organização Internacional para as
Migrações (OIM) e o Centro Internacional para Migrações e Desen-
volvimento (ICMPD) – na disseminação de práticas de governabili-
548 Bela Feldman-Bianco
Mais de São Paulo e que inspirou sua própria designação. Argumenta
que, tanto no Brasil quanto na Argentina, esses grupos de familia-
res utilizam a linguagem do parentesco e dos direitos humanos em
suas demandas por memória, verdade e justiça, em suas interpela-
ções ao Estado e denúncias à comunidade internacional pelas vio-
lações cometidas contra seus entes queridos. Nesse sentido, mostra
que suas estratégias compartilhadas de ação política conformam um
campo de ação que visa construir memórias, visibilizar as vítimas e
denunciar a seletividade da violência praticada. Mas, como indica,
enquanto, no caso argentino, o movimento de desaparecidos tem
destacado a identidade política das vítimas para explicar a violência
de Estado, os movimentos de vítimas de violência policial no Bra-
sil têm enfatizado critérios raciais, etários, de classe e territoriais,
isto é: são os negros, jovens, pobres que vivem em periferias urbanas
ou favelas que sofrem repressão policial. Além do mais, essas cons-
truções de sentido para explicar o desaparecimento ou a violência
sofrida tendem a ser mais bem desenvolvidas no transcurso de suas
mobilizações através do tempo. Assim, atualmente, os movimen-
tos de familiares de vítimas do Estado ditatorial argentino acusam
o “terrorismo de Estado”, definindo juridicamente a figura de seus
desaparecidos como delito de lesa-humanidade. Comparativa-
mente, as ativistas dos movimentos de familiares de vítimas da vio-
lência policial estão recorrendo à noção de universalidade de direi-
tos a fim de postular a condição de cidadão da vítima, ressaltando
as próprias qualidades morais e as de seus filhos como parte de uma
“verdade silenciada”.
551
Comunidade Econômica Europeia e subsequente adesão às políticas
restritivas do Tratado de Schengen, trazem à tona indagações sobre
a relação entre migrações, nações e nacionalismo, bem como entre
movimentos sociais e Estados de origem e de radicação de migrantes
transnacionais na atual conjuntura global. Foi necessário, portanto,
levar em conta as reelaborações das ambíguas relações coloniais
entre Portugal e Brasil ante seus reescalonamentos diferenciados na
economia política global no bojo da crise do capitalismo das décadas
de 1980 e 1990. Consequentemente, tornou-se crucial examinar os
espaços de manobra e negociação utilizados por lideranças transmi-
grantes formadas por brasileiros, luso-brasileiros e até portugueses
que haviam emigrado para o Brasil e retornado à Portugal num cená-
rio de recorrentes jogos de semelhanças e diferenças culturais entre
os dois países.
Desse posicionamento, argumento que as mobilizações inicia-
das na antiga metrópole imperial por transmigrantes brasileiros e
de outras ex-colônias portuguesas contra as políticas restritivas do
Estado pós-colonial português foram decisivas para a formação de
um movimento social de emigrantes brasileiros por seus direitos no
Brasil. Além de explicitar a importância das articulações realizadas
desde Lisboa, indico o papel crucial desempenhado por vários pro-
tagonistas para a globalização desse movimento social, como trans-
migrantes, Igreja católica, estudiosos e ativistas da questão migra-
tória, núcleos do Partido dos Trabalhadores no exterior e autori-
dades governamentais. Nesse âmbito, revelo como um conjunto de
documentos reivindicativos lançado em colóquios realizados em
diferentes momentos e espaços desse movimento social se trans-
formou em pauta de uma agenda interministerial do Estado brasi-
leiro, influenciando a formulação de políticas públicas destinadas
aos assim chamados “brasileiros no exterior” durante a era Lula.
Sugiro, ainda, que essas lutas dos transmigrantes brasileiros revi-
talizaram e expandiram as mobilizações em prol dos imigrantes no
Brasil, incluindo lutas pela substituição do retrógrado Estatuto do
Estrangeiro de 1980, baseado em segurança nacional, por uma nova
legislação ancorada em direitos humanos.
552 Bela Feldman-Bianco
Novas concepções de nação, políticas de imigração e as
construções sociais dos imigrantes na era pós-Schengen
O Brasil, historicamente país de imigração, se tornou também
exportador de migrantes mundo afora, atraindo, ao mesmo tempo,
novos imigrantes do continente sul-americano, além de chineses e
africanos e, mais recentemente, haitianos e refugiados da Síria. Esse
reposicionamento na economia política global chama atenção para a
interligação entre emigração e imigração numa conjuntura de inter-
nacionalização da economia, flexibilização do capital e do trabalho e
predominância de políticas e ideologias neoliberais, trazendo à tona
dois processos simultâneos e aparentemente contraditórios. De um
lado, surgem, desde meados da década de 1980, novas concepções
de nação e nacionalismo que incorporam, por legislação ou por retó-
rica, suas populações emigrantes tanto por parte de ex-metrópoles
imperiais quanto de ex-colônias. No caso da União Europeia, a remo-
delagem das nações, incluindo a ampliação de direitos de naciona-
lidade e cidadania, foi realizada predominantemente através do jus
sanguinis (ou direito às raízes), com vistas ao controle da circulação
no espaço comunitário europeu. Antigos emigrantes e descendentes
passaram a ser identificados como “cidadãos no exterior” e “cida-
dãos comunitários” em contraposição aos “extracomunitários”,
delimitando, assim, os direitos de entrada e circulação no espaço
comunitário europeu. Por outro lado, desde o Tratado de Schengen,
legislações imigratórias europeias, cada vez mais restritivas, funda-
mentadas em políticas de governança tecnocrata de securitização,
criminalizam os cidadãos extracomunitários, sobretudo aqueles em
situação indocumentada, criando um virtual apartheid europeu
(BALIBAR, 2004). Já nos Estados Unidos, país de imigrantes e cujas
leis oscilaram entre abertura e fechamento dos portões de imigração
de acordo com os fluxos da economia, a associação entre migrantes e
terrorismo se inicia em 1996, com a bomba de Oklahoma, e se inten-
sifica no pós-setembro de 2001, com a assim chamada Guerra contra
o Terror. Se as legislações migratórias de diferentes países historica-
mente diferenciaram migrantes “desejáveis” dos “indesejáveis”,
desde a década de 1990, passou a prevalecer nos países centrais a
equação entre migração, terrorismo e tráfico, legitimando, assim, a
produção da ilegalidade. Essas legislações restritivas estão em con-
554 Bela Feldman-Bianco
fronteiras culturais ambíguas. Nesse cenário, retóricas de irman-
dade fundamentadas em similaridades de língua, cultura e história
entre antigos colonizados e ex-colonizadores possibilitaram espaços
de manobra tanto nas negociações bilaterais entre Brasil e Portugal
quanto na mobilização de imigrantes das ex-colônias portuguesas
na África, que, naquela época, constituíam a maioria da população
migrante em Portugal.3
Naquela conjuntura histórica, a Casa do Brasil de Lisboa (CBL)
se tornou protagonista na luta pelos direitos dos imigrantes em Por-
tugal. Fundada em 1992 por brasileiros, lusodescendentes e portu-
gueses com longa vivência no Brasil, em sua maioria profissionais
liberais, alguns dos quais antigos exilados contando com influentes
redes transnacionais, a CBL dispôs, desde o início, de acesso aos cen-
tros de poder em ambos os países. Suas lideranças começaram a se
reunir em Lisboa durante a campanha para as eleições presidenciais
brasileiras de 1989, quando Lula e sua delegação estabeleceram con-
tato com petistas e simpatizantes radicados na ex-metrópole impe-
rial. Posteriormente, em 1992, em decorrência das mobilizações em
favor do impeachment de Collor, essas lideranças criaram a Casa do
Brasil de Lisboa. No ano seguinte, algumas delas também constituí-
ram um núcleo do PT na cidade, indicando sua contínua participa-
ção na política institucional brasileira, bem como a estratégia desse
partido de favorecer a criação de núcleos no exterior.
Reconhecida legalmente como associação de imigrantes, a CBL
foi definida por um de seus fundadores como “uma associação civil
da sociedade portuguesa, ligada aos imigrantes e às coisas do Brasil
e dos brasileiros, composta por amigos do Brasil e dos brasileiros,
tenham a nacionalidade que tiverem”. Ao mesmo tempo que pro-
movia a cultura brasileira e a brasilidade – com suas noites de música
brasileira e seus cursos de samba, forró e maracatu –, procurava dar
“bastante visibilidade às dificuldades e reivindicações dos brasilei-
ros” (BEHR, 2010). Caracterizou-se, assim, por uma dupla constru-
ção social que abarca tanto “[a]s lutas pelos direitos dos cidadãos e a
afirmação da prática da cidadania dos (e pelos) imigrantes em Portu-
3 Ver Feldman-Bianco (2011) para uma análise desses conflitos diplomáticos entre
Portugal e Brasil e as mobilizações de transmigrantes brasileiros e de ex-colônias
portuguesas em prol de seus direitos no Brasil.
556 Bela Feldman-Bianco
foi o marco inicial da mobilização em prol dos “brasileiros no exte-
rior”, categoria construída para ressaltar os direitos de cidadania
dos que escolheram viver fora do Brasil. Numa ocasião em que a aca-
demia estava começando a pesquisar a emigração brasileira e o MRE
tinha pouco conhecimento sobre a questão migratória, esse evento
desempenhou papel importante para conscientizar pesquisadores
e representantes do poder público sobre a imprescindibilidade de
políticas públicas para essas populações desterritorializadas do Bra-
sil, não somente na esfera dos direitos humanos, mas como parte da
política externa brasileira.
Como consequência direta desse evento, um grupo de trabalho
sobre migrações internacionais foi criado no âmbito da CNPD, que
se responsabilizou pelo seminário internacional Migrações Inter-
nacionais: Contribuições para Políticas – Estrangeiros no Brasil e
Brasileiros no Exterior, realizado no Itamaraty (MRE) em dezembro
de 2001 com participação de acadêmicos e representantes de vários
ministérios.4 Mesmo contando somente com a representação dos
“brasileiros no exterior” de Portugal, Estados Unidos e Canadá, esse
evento foi importante por inserir debates simultâneos sobre emigra-
ção e imigração e, nesse sentido, a demanda por uma nova legislação
migratória em diferentes esferas do poder público do Brasil.
Seguiu-se o I Encontro Ibérico da Comunidade de Brasileiros
no Exterior, como parte do projeto Brasileiros no Exterior, lan-
çado pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Distrito
Federal. Esse projeto resultou de investigação instaurada em Brasí-
lia no âmbito da Subprocuradoria dos Direitos do Cidadão dirigida a
apurar as causas de um acidente ocorrido com vários brasileiros em
uma cidade mexicana próxima à fronteira com os Estados Unidos.
Porém, à medida que os desenvolvimentos desse inquérito revelaram
a situação crítica da comunidade de brasileiros no exterior, deci-
diu-se planejar um evento de caráter propositivo a fim de se obter
maiores informações e dar visibilidade aos brasileiros que migraram
para o exterior (MILESI e FANTAZZINI, [s. d.]). Realizado em Lisboa
558 Bela Feldman-Bianco
em 1972. Incluiu um modelo de legalização de imigrantes brasileiros
residentes em Portugal através de contrato de trabalho com o intuito
de “concretizar o regime processual de atribuição e registro do esta-
tuto de igualdade aos cidadãos brasileiros residentes em Portugal”.
Portanto, permaneceu vinculado à lei de imigração portuguesa, a
partir da qual a autorização de permanência para estrangeiros inte-
ressados em trabalhar no país foi condicionada a um contrato de
trabalho. Saudado como “um sinal de amizade entre os dois paí-
ses” e celebrado uma década após o primeiro caso de deportações de
brasileiros na era Schengen, representou, no contexto da legislação
portuguesa vigente, discriminação positiva a favor dos brasileiros.
Posteriormente, em 2004, um novo processo de legalização extraor-
dinária foi dirigido a todos os imigrantes em situação indocumen-
tada, independentemente de nacionalidade, que incluiu os brasilei-
ros. Apesar da lentidão e dos limites desse processo de regularização,
invariavelmente denunciados pela CBL, os brasileiros continuaram a
ocupar posição superior entre os demais migrantes, acentuando as
ambiguidades de suas relações com Portugal.
Essa discriminação positiva, defendida persistentemente pela
CBL, já havia sido incorporada na lei de 2000 no que concerne à auto-
rização de residência em Portugal para os trabalhadores provenien-
tes dos países que fazem parte da Comunidade de Países de Língua
Portuguesa (CPLP). Assim, enquanto os imigrantes das ex-colônias
portuguesas poderiam solicitar a residência depois de viver em Por-
tugal por seis anos consecutivos, o prazo para os demais imigrantes
era de 10 anos. Essa diferenciação indica a persistência de uma polí-
tica portuguesa reelaborada a partir de antigas hierarquias coloniais
na qual os brasileiros se situam logo após os cidadãos comunitários
e são seguidos pelos demais cidadãos lusófonos, ficando em último
lugar os imigrantes extracomunitários, cuja língua nativa não era o
português (BAGANHA, 2001; MACHADO, 2008, 2010).
Em comparação, a lei de nacionalidade, aprovada em Portugal
em 2006, é, de certa forma, mais completa. Além do princípio de
descendência baseado no jus sanguinis, incluiu também o jus soli
especificamente para o caso de filhos de estrangeiros nascidos em
território português cujos pais não se encontrem a serviço do res-
pectivo Estado e sempre que, no momento de nascimento, um dos
560 Bela Feldman-Bianco
brasileiras desterritorializadas. No entanto, o processo pelo qual esse
movimento se tornou global contou também com outros protago-
nistas e eventos realizados em outros contextos, como, aliás, reco-
nhecido por um de seus líderes por ocasião da II Conferência dos
Brasileiros no Mundo em outubro de 2009.
Foi uma longa caminhada até chegarmos à presente conferência.
Existem pelo menos cinco documentos que condensam dezenas de
outros documentos de todas as partes do mundo e que devem ser
valorizados: Documento de Lisboa (maio de 2002); Documento de
Boston (2005); Documento de Bruxelas (dezembro de 2007); con-
clusões da ata de consolidação de 2008 (I Conferencia dos Brasileiros
no Mundo); Documento de Barcelona (julho de 2009).
Esses documentos dos vários encontros fazem parte de uma
memória que foi sendo construída pelos próprios transmigran-
tes sobre esse movimento que, iniciado em Lisboa, se estendeu por
cidades de vários continentes. Aparentemente, o PT investiu nessas
comunidades no exterior mais do que qualquer outro partido polí-
tico brasileiro. Mesmo que lentamente e em resposta às insistentes
e recorrentes reivindicações, o governo Lula, em cumprimento às
suas promessas de campanha, finalmente respondeu às demandas
dessa população brasileira no mundo, passando a considerá-la, pelo
menos retoricamente, como parte de uma propalada “democracia
participativa”.
562 Bela Feldman-Bianco
que proibia o registro de filhos de brasileiros nascidos fora do Brasil
em repartições consulares e que, portanto, os deixava na condição
de apátridas.
Em finais de 2007, ainda no cenário europeu, lideranças do Ins-
tituto de Migrações e Direitos Humanos (IMDH) que haviam parti-
cipado do I Encontro Ibérico de Brasileiros no Exterior, realizado
em 2002 em Lisboa, organizaram um novo encontro em Bruxelas.
Ao denominá-lo II Encontro de Brasileiros e Brasileiras no Exte-
rior – Europa, os organizadores retomaram simbolicamente o pro-
jeto Brasileiros no Exterior, que havia sido desmobilizado, com o
intuito de formar uma rede de organizações na Europa.
564 Bela Feldman-Bianco
tão migratória se tornasse foco de uma agenda intergovernamental.
A realização do I Encontro dos Brasileiros no Mundo, com as reivin-
dicações das lideranças transmigrantes consolidadas em ata, resultou
na institucionalização do diálogo entre Estado brasileiro e sua diás-
pora e, portanto, no compromisso oficial de ações governamentais em
prol de seus direitos de cidadania.
Emigrantes brasileiros, reconhecidos pelo poder público do
Brasil como “brasileiros no mundo” ou “brasileiros residentes no
exterior”, passaram a fazer parte de uma pauta interministerial que
incluiu, como importante protagonista, por demanda das lideranças
transmigrantes, o Conselho Nacional de Imigração (CNIg) do Minis-
tério do Trabalho. Órgão de caráter tripartite, que envolve governo,
entidades sindicais e sociedade civil, com a atribuição legal de dis-
cutir e elaborar leis migratórias voltadas para o imigrante no Bra-
sil, o CNIg também passou a formular conjuntos de ações dirigidas à
diáspora brasileira.7 A centralidade de questões relacionadas ao tra-
balho migrante, junto com discussões sobre a possibilidade de esse
órgão ser transformado em um Conselho Nacional de Migrações,
uma recomendação feita ainda em 2007 e que consta do Documento
de Bruxelas, reflete a inseparabilidade entre imigração e emigração
defendida por ativistas e acadêmicos da questão migratória e, espe-
cialmente, por setores da Igreja católica com base em sua prática
com ambas as populações: imigrantes e emigrantes do Brasil.8
Nesse contexto, a substituição do malfadado Estatuto do Estran-
geiro do tempo da ditadura militar (1963-1984) por uma lei mais
abrangente voltada às migrações e aos migrantes como sujeitos de
direitos se tornou bandeira dessa articulação de movimentos sociais.
Tanto a anistia concedida pelo presidente Lula aos imigrantes em
situação indocumentada no Brasil quanto sua proposta de uma nova
lei migratória enviada ao Congresso Nacional (PL 2.655 ou Projeto
Lula), ambas de 2009, foram respostas a essas mobilizações. No
limiar de seu mandato, em dezembro de 2010, atendendo às deman-
E a luta continua
Essa análise demonstra a importância de uma perspectiva etno-his-
tórica transnacional para o entendimento dos processos sociopo-
líticos subjacentes à constituição de um movimento social de emi-
grantes brasileiros por seus direitos de cidadania no Brasil na glo-
balização contemporânea. Através dessa abordagem, o ponto inicial
na CBL permitiu delinear a mobilização de imigrantes em Lisboa por
seus direitos de cidadania em Portugal desde as primeiras deporta-
ções de brasileiros da era Schengen. Ao mesmo tempo, possibilitou
descrever a resultante formação, a partir da antiga metrópole impe-
rial, de um movimento social de emigrantes brasileiros por políticas
públicas em prol de seus direitos de cidadania no Brasil num período
marcado por processos de redemocratização do país.
Ambos os movimentos sociais estão inter-relacionados, tra-
zendo à tona a conexão entre migrações, nação e nacionalismo, assim
como questões sobre as especificidades, ambiguidades e espaços de
manobra subjacentes nas mobilizações de ex-sujeitos coloniais em
antigas metrópoles imperiais. Se pressões das lideranças transmi-
grantes tenderam a lograr somente conquistas pontuais, na era Lula
(2002-2010), as ações do governo brasileiro atenderam a reivindica-
ções que constavam do Documento de Lisboa e de documentos resul-
tantes dos demais encontros. Para além de os brasileiros da diáspora
constituírem eleitorado potencial nas eleições presidenciais e suas
remessas ativarem economias locais, as políticas governamentais de
incorporação dessa população refletiram o processo de redemocra-
tização do país.
566 Bela Feldman-Bianco
Desde o início de sua luta em Lisboa pelo reconhecimento de
seus direitos no Brasil, lideranças transmigrantes fizeram uso estra-
tégico de sua identificação de pertencimento nacional enquanto
“brasileiros no exterior” ou “brasileiros no mundo”, dirimindo,
assim, experiências diversificadas e todos os tipos de diferenças de
uma população diaspórica altamente heterogênea e com demandas
específicas de acordo com sua localização. Ao mesmo tempo, con-
tinuaram a utilizar estrategicamente as categorias “imigrante”,
“emigrante” e “migrante” de acordo com os seus posicionamentos
em situações específicas.
Porém, a partir dos Encontros de Bruxelas e de Barcelona, o
recorte de gênero começou a subverter essas construções homo-
gêneas, entrando finalmente na pauta de reivindicações no Encon-
tro de Roma de 2010. Essa pauta incluía sugestões de promoção de
campanhas institucionais dirigidas à desconstrução de estereótipos
históricos sobre a pressuposta sensualidade e permissividade das
mulheres brasileiras. Vale lembrar que esses estereótipos haviam
sido acionados durante os conflitos diplomáticos de 1993 entre Bra-
sil e Portugal – quando os brasileiros deportados foram referidos
como “mulatinhas de minissaia”, “vagabundos” e “travestis”. Se,
no contexto português, a reelaboração dos estereótipos está intrin-
secamente ligada às antigas e ambivalentes relações entre metró-
pole e colônia, em outros países europeus, também se continua a
distinguir os brancos civilizados do exotismo e, por extensão, da
sensualidade e permissividade racializada dos antigos sujeitos colo-
niais. Assim, 17 anos após as primeiras deportações de brasileiros na
Europa, as conexões entre gênero, trabalho e racialização – inclusive
no que tange a gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e transgêne-
ros – ganharam força nas mobilizações pelos direitos de cidadania
no Brasil, trazendo à tona a agência de lideranças femininas e LGBT.
Mas, nessa época, no bojo da crise econômica de 2008-2009
que eclodiu na Europa e nos EUA, o Brasil e seus projetos desenvol-
vimentistas, assim como outros países sul-americanos, passaram a
atrair novos imigrantes. Junto com o retorno de brasileiros da diás-
pora, jovens profissionais europeus e norte-americanos foram atraí-
dos pela oferta de trabalho em grandes projetos desenvolvimentistas.
O país também passou a receber fluxos migratórios de haitianos que
568 Bela Feldman-Bianco
Referências
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SOUSA SANTOS, Boaventura de (Org.). Globalização: fatalidade ou utopia. Porto:
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sescsp.org.br/online/artigo/compartilhar/9732_NOVAS+MIGRACOES. Acesso
em: nov. 2018.
571
Neste artigo, é feita breve análise da tramitação no Congresso
Nacional dos projetos de lei que originaram, respectivamente, o Esta-
tuto do Estrangeiro, de 1980, e a nova Lei de Migração e dos vetos fei-
tos a esta última, além de observações sobre os desafios que se colo-
cam para a participação social no processo de sua regulamentação.
572 Marcia Anita Sprandel
O Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 288, de 2013,8 é de auto-
ria de um parlamentar, senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP),9
que, na justificativa da matéria, reconhece que “o regime jurídico
brasileiro para estrangeiros apresenta defasagem evidente, já que à
época em que foi concebido, no início dos anos 80, ainda estávamos
em período autoritário e com grandes preocupações de segurança
nacional, o que se refletiu na regulação jurídica”.10
O parlamentar se propõe a inverter a centralidade da norma
em vigor. Enquanto o objetivo, no Estatuto do Estrangeiro, seria a
proteção diante do outro com base na defesa da segurança nacional,
dos interesses do Brasil e do trabalhador nacional, na sua proposta,
o objetivo seria a recepção do imigrante com lastro na cooperação
internacional, na assistência humanitária, na integração regional.11
Quando o PLS 288/2013 tramitava na Comissão de Relações
Exteriores do Senado Federal, houve uma grande articulação da
assessoria do governo (ainda sob a presidência de Dilma Rousseff)
com o relator, senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), para que ele
incorporasse em seu parecer sugestões da comissão de especialistas
criada pelo Ministério da Justiça com a finalidade de apresentar uma
proposta de anteprojeto de lei de migrações.12 É esse texto modifi-
cado que chega à Câmara dos Deputados, onde foi criada Comissão
Especial para examiná-lo, junto com outros projetos de lei apensa-
dos, inclusive o do governo Lula.
Durante a tramitação no Congresso Nacional do PL 9/1980, houve
forte resistência da oposição e, externamente, de setores importan-
tes da sociedade, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Bra-
sileira de Imprensa (ABI), a Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência (SBPC) e a Anistia Internacional.
574 Marcia Anita Sprandel
Nós, que estamos no Governo […], também defendemos os inte-
resses nacionais e não vamos permitir que, neste País, como está
acontecendo agora, entrem pelas fronteiras ocidentais, meri-
dionais e setentrionais pessoas de todas as nacionalidades com o
intuito de praticar o mal em nosso País, como se esta fosse uma
terra de ninguém. (Muito bem!)18
19 Diário do Senado Federal, 19 abr. 2017, p. 67. Disponível em: http://legis.
senado.gov.br/diarios/BuscaDiario?datSessao=18/04/2017&tipDiario=1.
576 Marcia Anita Sprandel
1980 2017
Jornal do Brasil, editorial de 9 de julho de Folha de São Paulo, editorial de 13 de abril
1980: “Por força de lei” de 2017: “Imigração na prática”
“O Governo parece haver fechado a “A despeito de algumas dúvidas quanto
questão, fechando o texto. Pois o objetivo a seus efeitos, o texto da nova Lei de
da nova lei é fechar. Fechar a fronteira Migração, aprovado pelo Congresso
aos imigrantes e, mais que isso, fechar o Nacional, é meritório e merece a sanção
espírito fraterno com que o povo brasileiro presidencial. Sua virtude mais indiscutível é
recebe os estrangeiros, e com eles convive, aposentar o arcaico Estatuto do Estrangeiro,
a tal ponto que ao longo de nossa História se legislação dos tempos da ditadura militar
evidenciou aqui um processo de aculturação repleta de dispositivos inspirados por
do alienígena, de cuja velocidade, amplitude preocupações caducas – como os que
e profundidade não há exemplo em outro proíbem os não brasileiros de participar
qualquer país. […] O nosso jeito de receber de atividades políticas, incluindo ‘desfiles,
vai mudar: vamos renunciar, por força da passeatas, comícios e reuniões de qualquer
lei, à nossa decantada arte da acolhida a que natureza’. O projeto votado pelo Legislativo
fez referência Sua Santidade. Não seremos o pode ser descrito como uma peça moderna
mesmo país.” e generosa, que desburocratiza as exigências
para a entrada de imigrantes e procura
combater a xenofobia e o racismo. Não
obstante, o texto tem sido alvo de ataques
veementes de grupos mais conservadores,
que chegam a pedir que o presidente
Michel Temer (PMDB) o vete por inteiro. Há
grande dose de exagero nas críticas. Parece
difícil sustentar, por exemplo, que o novo
diploma escancare as fronteiras do país
para terroristas e traficantes. […] Não raro o
senso comum vê estrangeiros como ameaça;
vários estudos acadêmicos mostram,
porém, que sua atração traz mais efeitos
positivos do que negativos para o progresso
da sociedade. Especialmente num momento
em que boa parte do mundo se fecha aos
imigrantes, é importante que o Brasil,
historicamente forjado por um mosaico de
povos e culturas, demonstre entender a
importância da contribuição deles.”
Os discursos de 2016/2017
Trechos de discursos e/ou pronunciamentos de parlamenta-
res durante a tramitação da nova Lei de Migração nos plenários da
Câmara e do Senado são indicativos tanto da constância de temores e
racismos quanto de novos elementos de análise referidos a posições
políticas de segmentos da elite política brasileira que se organizam
em “frentes”, notadamente a Frente Parlamentar da Agropecuária,
578 Marcia Anita Sprandel
Vocês estão escancarando as portas do Brasil para todo tipo de
gente! A Angela Merkel, atrás do seu quarto mandato, acabou de
endurecer a sua legislação sobre imigrantes, porque acabou de ser
assassinada uma menina, após ter sido estuprada, caso que como-
veu a Alemanha. O comportamento e a cultura deles são com-
pletamente diferentes dos nossos. Não podemos, neste momento
de crise mundial, escancarar as portas do Brasil para todo tipo
de gente! Isso vai virar – desculpem-me o termo – a casa da mãe
Joana. Este país é nosso! Não é de todo mundo! Não podemos fazer
isso. Até mesmo o Trump ganhou as eleições na Flórida, junta-
mente com os cubanos, exatamente em função disso. Nós não
podemos escancarar as portas do Brasil para o mundo! Nós não
comportamos esse tipo de gente aqui dentro, sem controle! […]
Pelo Brasil, peço o voto “não” (Jair Bolsonaro).
21 http://www.camara.leg.br/internet/plenario/notas/extraord/2016/12/
EN0612161849.pdf. Vale registrar que a Polícia Federa foi citada 30 vezes durante a
discussão da matéria.
22 A matéria passou a ter essa identificação quando voltou à casa de origem para
ser revisada.
580 Marcia Anita Sprandel
Brasil, para só depois ser deportado. […] Qual é o parâmetro para
definir e avaliar o que é o acolhimento humanitário? […] Onde é
que está o avanço dessa lei no momento em que o Brasil escancara
suas fronteiras, sendo um país que tem uma extensão enorme de
fronteiras secas, como nós chamamos? […] Sr. presidente, é ato
de soberania. O Brasil não pode renunciar à sua soberania. É inad-
missível, no momento que nós estamos vivendo, que o Brasil vá
escancarar ainda mais e criar um constrangimento e uma incapa-
cidade total de ação das polícias de fronteira. O cidadão, a partir
de hoje, vai ser policial de fronteira para quê? Eu vou chegar lá, eu
sou um índio. Aí, como é feito? Tem que ter o DNA para saber? O
cidadão vai alegar… Veja bem o quanto é subjetivo. Eu faço parte
de populações tradicionais. O que é isso? Qual é a subjetividade de
populações tradicionais? Quer dizer, aí o trânsito é livre?
582 Marcia Anita Sprandel
Foto 3. Ativistas pedem aprovação do texto em substituição ao
Estatuto do Estrangeiro (Alex Ferreira/Câmara dos Deputados).
24 Isso seria facilmente contornável com uma emenda de redação substituindo
o “M” por “I” ou fazendo referência ao fato de o substitutivo da Câmara ter sido
resultado também do exame do PL 5.655/2009, de autoria do Poder Executivo, que,
em sua ementa, já dizia que a nova lei transformaria o CNIg em Conselho Nacional
de Migração.
25 Em 12 de maio de 2016, o Senado aprovou, por 55 votos a 22, a abertura de
processo de impeachment, afastando Dilma Rousseff da Presidência até que o pro-
cesso fosse concluído. Michel Temer assumiu, então, interinamente o cargo de pre-
sidente. Em 31 de agosto de 2016, Dilma Rousseff perdeu o cargo de presidente da
República após três meses de tramitação do processo iniciado no Senado.
584 Marcia Anita Sprandel
surpreendidos pela velocidade com que se deram os retrocessos em
relação aos compromissos com as pautas internacionais de defesa de
direitos.
No início de maio de 2017, mais de 100 entidades da sociedade civil
e órgãos como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Re-
fugiados (Acnur) enviaram carta ao presidente Michel Temer de-
mandando a aprovação integral do texto sem vetos. A Mensagem nº
163, de 24 de maio de 2017,26 espantou a todos que participaram das
mobilizações pela aprovação da nova lei. Quando se imaginava que
seriam, no máximo, um ou dois vetos, foram encaminhados ao Con-
gresso Nacional 18 vetos, entre eles a anistia para migrantes que in-
gressaram no Brasil sem documentos até 6 de julho de 2016, grande
esperança para milhares de imigrantes.
O site Migramundo assim informou o acontecido:
28 A análise dos vetos apresentada a seguir foi produzida a partir de observações
de um coletivo de entidades que vêm trabalhando juntas na defesa de diretos de
migrantes, como Instituto Migrações e Direitos Humanos (MDH) e Conectas Direi-
tos Humanos. A responsabilidade sobre as críticas aos vetos, no entanto, é de abso-
luta responsabilidade da autora.
29 Da década de 1980 para cá, foram quatro as anistias concedidas: Lei 6.964, de
9 de dezembro de 1981; Lei 7.685, de 2 de dezembro de 1988; Lei 9.675, de 19 de
julho de 1998, regulamentada pelo Decreto 2.771, de 8 de setembro de 1998; e Lei
11.961, de 2 de julho de 2009. Todas essas legislações dispunham de uma data-base
para a concessão da regularização, sendo sua comprovação atestada por “declara-
ção expressa da data de seu ingresso no país” (Decreto 2.771/1998) ou por “compro-
vante de entrada no Brasil ou qualquer outro documento que permita à Administra-
ção atestar o ingresso do estrangeiro no território nacional até o prazo previsto no
art. 1º desta Lei” (Lei 11.961/2009).
Além da anistia, outra razão de veto surpreendente, suge-
rido pela Casa Civil da Presidência da República, foi ao conceito de
“migrante”,30 considerado
587
1) Artigo 37, parágrafo único, e artigo 40, IV – Dispositivos que
(i) garantem que a concessão de visto ou de autorização de residên-
cia para fins de reunião familiar poderá ser estendida, por meio de
ato fundamentado, a outras hipóteses de parentesco, dependência
afetiva e fatores de sociabilidade; e (ii) autorizam a admissão excep-
cional no país de criança ou adolescente que esteja acompanhado de
responsável legal residente no país desde que manifeste a intenção
de requerer autorização de residência com base em reunião familiar.
Para a Casa Civil da Presidência da República, tais dispositivos
poderiam “possibilitar a entrada de crianças sem visto, acompa-
nhada de representantes por fatores de sociabilidade ou responsável
legal residente e, com isso, facilitar ou permitir situações propícias
ao sequestro internacional de menores”.
Além de confuso, o veto é incompatível com o conceito moderno
de família, que incorpora pessoas que têm longo histórico de con-
vivência familiar, como prevê o Plano Nacional de Promoção, Pro-
teção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência
Familiar e Comunitária de 2013, que define família como um grupo
de pessoas que são unidas por laços de consanguinidade, de aliança
e de afinidade:
588 Marcia Anita Sprandel
e os menores desacompanhados. Para a Casa Civil da Presidência da
República, o dispositivo apresenta impropriedade, “ao arrolar inde-
vidamente como integrante de grupo vulnerável, passível, portanto
de benefícios no âmbito da política migratória, os indivíduos que
respondam criminalmente em liberdade”. Ora, mesmo estes preci-
sam regularizar sua situação migratória e, em sua maioria, não têm
recursos para tal. Com o argumento pífio do governo, ficou fora da
isenção praticamente a totalidade dos imigrantes que chegam ao
país em situação de pobreza.
3) Artigo 1º, § 2º – “São plenamente garantidos os direitos
originários dos povos indígenas e das populações tradicionais, em
especial o direito à livre circulação em terras tradicionalmente
ocupadas”. Para a Casa Civil da Presidência da República,
Desafios
Mesmo com os vetos, comemora-se uma nova lei migratória que
repudia a xenofobia e a discriminação em seus princípios, desbu-
rocratiza o processo de regularização, institucionaliza a política de
vistos humanitários, descriminaliza a irregularidade migratória,
amplia sobremaneira os direitos dos imigrantes (acesso a serviços
públicos e possibilidade de participar de manifestações políticas, por
exemplo), garante o devido processo legal em casos de repatriação e
inclui um capítulo a respeito dos brasileiros no exterior.35
590 Marcia Anita Sprandel
No entanto, a nova Lei de Migração ainda vai precisar ser regula-
mentada. Seu texto exige dois novos projetos de lei (para disciplinar
a promoção do reconhecimento acadêmico e do exercício profissio-
nal de imigrantes no Brasil e para disciplinar o direito do imigrante
de ter acesso aos serviços públicos de saúde e de assistência e previ-
dência social) e 38 decretos presidenciais.
As entidades defensoras de direitos dos imigrantes, com apoio
de organismos internacionais e associações científicas, estão bus-
cando formas de influenciar o processo de regulamentação. Para
tanto, participaram ativamente do evento Lei de Migração: Regu-
lamentação e Interfaces com o Pacto Global, organizado pelo Fórum
de Participação Social36 do CNIg e pelo Ministério do Trabalho com
apoio do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) e do
Ministério da Justiça.
Do evento, resultaram cerca de 30 propostas sobre temas como
a concessão de vistos, revalidação de diplomas, acesso a serviços e
programas sociais e participação dos migrantes nas decisões sobre
migração no país que deverão ser discutidas no Conselho Nacional
de Imigração. A expectativa das entidades é que as propostas tam-
bém subsidiem outras discussões em curso no Executivo sobre a
nova lei.37 Resta saber se as sugestões serão incorporadas pelo Poder
Executivo.
Analisando os processos políticos recentes, vemos que – por
ingenuidade e/ou certa crença cartesiana na evolução dos meca-
nismos institucionais – parece nos ter escapado justamente o que
Giralda Seyferth insistentemente demonstrou em seus trabalhos:
a suspeição contra o estrangeiro, a eugenia, a intolerância e a cri-
minalização, que fazem parte de toda a formulação legislativa dos
últimos anos do Império e da República, não deixariam de existir no
-externa/noticia/48252-mudanca-de-paradigma.
36 O Fórum de Participação Social (FPS) foi instituído em 2015 como espaço con-
sultivo para sugestões e propostas à formulação de políticas migratórias no âmbito
do CNIg e do Ministério do Trabalho. Seu objetivo é promover e ampliar o diálogo
entre o CNIg e a sociedade civil a fim de propiciar subsídios para a construção de
políticas migratórias no Brasil.
37 http://migramundo.com/sociedade-civil-e-migrantes-fazem-suges-
toes-para-regulamentacao-da-lei-de-migracao/.
38 Para entender a força desse pensamento conservador nos debates atuais, é pre-
ciso voltar sempre aos trabalhos de Giralda Seyferth, que mostram como tais filtros
e restrições estavam regulamentados em peças legislativas como os Decretos-lei nº
406, de 1938, e 7.967, de 1945, que só foram revogados em 1980. Também é impor-
tante lembrar o contexto da construção do sistema de controle migratório brasileiro
contemporâneo. Em 1964, o general Castelo Branco sancionou a Lei nº 4.473, que
determina, em seu artigo 1º, que a entrada de estrangeiros no território nacional,
incluindo o seu impedimento, ficará a cargo das “autoridades de Polícia”. Em 1969,
a junta militar que assumiu a chefia do governo por força do Ato Institucional nº 12
editou o Decreto-lei nº 941, que definiu caber à Polícia Federal o controle, o regis-
tro, a prorrogação do prazo de estada, a expedição de documento de identidade, a
expulsão e a naturalização de estrangeiros, além de prover orçamento específico
para que o órgão pudesse gerenciar as migrações. Tais informações são importan-
tes para entender, por exemplo, a atuação nunca explicitada da Polícia Federal nas
votações em plenário da nova Lei de Migração e seu provável papel na definição dos
vetos.
592 Marcia Anita Sprandel
força de pautas exógenas no processo de criminalização das migra-
ções,39 sobretudo a partir da introdução da agenda antitráfico de
pessoas no Brasil. Novos investimentos de pesquisa se fazem neces-
sários para entendermos por que tais pautas encontraram solo tão
fértil não só nas burocracias do Estado, mas em segmentos conside-
ráveis da sociedade brasileira.
Ainda em termos de pesquisa, sabe-se que períodos temporais
extensos são, por si só, desafiadores. Além disso, a identificação das
motivações dos diversos grupos de pressão que estiveram e estão por
trás de discursos, articulações e posicionamentos midiáticos exige,
cada vez mais, uma visão multidisciplinar, com aprofundamentos
teóricos que alicercem percepções mais sofisticadas do Congresso
Nacional e do próprio Estado.
É oportuna, nesse sentido, a posição da historiadora Sonia Regina
de Mendonça (1998 apud CAMPOS, 2017), para quem é preciso par-
tir do estudo da sociedade civil para chegarmos à análise do Estado,
não o contrário. A partir dessa orientação, e apoiado em textos de
Gramsci e Poulantzas, Campos (2017) faz reflexões que podem ser
úteis para a análise de processos legislativos:
Referências
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dez. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/remhu/v23n45/1980-8585-
REMHU-23-45-145.pdf.
594 Marcia Anita Sprandel
O imigrante e o Estado da diferença
Igor José de Renó Machado
1 Ver, entre muitos outros, Kant de Lima (1983, 2009), Cardoso de Oliveira (1989,
2010), Merry (1992), Snyder (1981), Moore (2001).
2 Ver, entre muitos outros, Teixeira (1998), Bezerra (1999), Borges (2003), Abreu
(2005), Bevilaqua e Leirner (2000).
3 Ver, entre outros, Castro (2008) e Giumbelli (2002).
4 Ver, entre outros, Clifford (1998), Mignolo (1993), Tsao (2011), Sluka (2007).
5 Ver, por exemplo, Rothenbuhler e Coman (2005), Ginsburg, Abu-Lughod e Lar-
kin (2002), Askew e Wilk (2002), Peterson (2003), Rial (2004).
595
vada recentemente depois de longa tramitação, foi à Presidência,
onde recebeu vários vetos, e atualmente está em fase de homolo-
gação. Na lei de 1980, foi criada uma figura legal chamada Conselho
Nacional de Imigração (CNIg), que seria a responsável por gerenciar
as políticas relativas aos estrangeiros. O CNIg tem uma composição
mista, com membros de várias instituições governamentais e alguns
assentos para entidades representativas de trabalhadores, da acade-
mia e da sociedade civil.
Num cenário onde a lei que rege os processos ligados aos estran-
geiros estava defasada, já que o cenário de 1980 é incomensuravel-
mente diferente do que encontramos hoje em dia, o CNIg tomou a
frente do processo e conduziu uma política “por remendos”. Isso
quer dizer que o CNIg produziu portarias e regulamentos que permi-
tiam uma atualização da política migratória mesmo com a inadequa-
ção da lei vigente. Para alguns, esse processo pareceu funcionar ao
arrepio da lei, já que as portarias não poderiam ter um estatuto legal
superior ao da própria lei, e parecia que algumas delas contrariavam
o “espírito geral” da lei vigente. Isso significaria uma contradição
jurídica que precisaria ser superada: uma legislação atrasada gover-
nada por portarias que a contradiziam, mas que faziam os processos
funcionarem.
Essa configuração produziu uma situação inusitada: ante o con-
servadorismo e a latente aversão aos estrangeiros na lei de 1980, o
CNIg tomou medidas de caráter progressista na condução do “geren-
ciamento da diferença”. Essas posturas, evidenciadas na publicação
de portarias que atendiam a problemas específicos, como a questão
dos haitianos, a flexibilização das questões de gênero na considera-
ção da união familiar, entre muitos outros, tinham relação com uma
configuração múltipla do CNIg, com uma tensão entre as diferentes
posturas dos representantes e com uma condução progressista dos
coordenadores do processo.
O caráter compósito do CNIg é de relevância para nossa aná-
lise do processo legislativo de renovação da lei, no qual concorrem
diferentes propostas produzidas por diferentes agentes políticos. De
uma forma ou outra, essas propostas lidam com a estrutura atual de
gerenciamento da diferença, mesmo que não o façam explicitamente.
Este artigo examina o substitutivo ao PLS produzido pelo senador
596 Igor José de Renó Machado
Aluísio Nunes (aprovado com vetos e em fase de regulamentação)
e, muito rapidamente, outras duas: a produzida pelo Ministério da
Justiça e a produzida pelo CNIg, mas, na verdade, fruto majoritário
do Ministério do Trabalho e Emprego.
Esses textos são produzidos por diferentes agentes, represen-
tam visões distintas e traduzem um pensamento sobre a diferença
em dois níveis: um é o tratamento e as regulações que pesam sobre
o estrangeiro e que, de certa maneira, o definem numa perspec-
tiva geral para cada projeto. Isso nos possibilita a produção de uma
antropologia da imaginação do estrangeiro que parte da cabeça dos
legisladores e atores políticos relacionados à presença dos estran-
geiros. Essa é a intenção primeira deste texto: produzir uma refle-
xão antropológica sobre que tipo de estrangeiro resulta dos proces-
sos legislativos em ação presentemente. No que convergem, no que
divergem, nos detalhes de cada proposta. Essa antropologia do texto
legislativo nos permitirá produzir uma antropologia da diferença
imaginada pelos atores de Estado em vários graus.
Outra dimensão nos textos é, de certo ponto de vista, tão impor-
tante quanto a primeira: a definição da estrutura de gerenciamento
da diferença em si. Que agentes, que ministérios, que instituições
gerenciarão a imigração? Que embates estão por trás das propostas
no sentido de constituir as estruturas de gerenciamento da diferença?
E, por fim, a questão mais importante: como a defesa de determina-
das estruturas resulta de uma e em uma definição em si da diferença?
Ou seja, a proposição de determinadas estruturas se relaciona com a
imaginação da diferença e das medidas propostas para gerenciá-la?
A intenção principal, aqui, é produzir uma reflexão essencialmente
antropológica sobre a imaginação da diferença tanto no texto das leis
quanto na forma de gerenciamento proposta para essas imaginações
em suas múltiplas e complexas relações internas.
Nesse segundo aspecto, é preciso considerar algo sobre a dife-
rença que talvez seja mais relevante em algumas propostas legisla-
tivas que em outras: o fato de que, ao caracterizar um “sujeito” de
Estado (na forma de instituições) que se define por gerenciar a dife-
rença representada pelos imigrantes, refugiados, apátridas, temos
que as legislações também são peças de definição não do outro, mas
do Estado em si, que passa a se configurar diferentemente para pen-
598 Igor José de Renó Machado
que permaneceu presente nesses termos até a versão que seguiu para
a Presidência. Mas um dos vetos foi justamente no artigo que dispu-
nha sobre esse órgão, mesmo que de forma anêmica. Assim, na lei
que entrou em vigor em 2017 (180 dias após a sanção presidencial,
em maio de 2017), não há nenhuma entidade a regular casos omissos
ou mesmo a administrar as políticas de migração.
Essa postura “purista”, diríamos, tem a seguinte consequência:
a única estrutura efetivamente mencionada como responsável pelo
gerenciamento cotidiano da diferença é a Polícia Federal, ao passo
que o sistema judiciário é chamado a resolver questões específicas.
Não há uma saída para a decisão de casos omissos e, pelo teor do pro-
jeto (e do texto aprovado em caráter final), pode-se imaginar que ela
seria tomada exclusivamente pela PF, num processo de policializa-
ção da diferença. Uma vez definida a diferença (o estrangeiro), tudo
o mais é apenas uma questão de gerenciamento cotidiano da PF. A
consequência efetiva dessa nova regulação da diferença é o fortale-
cimento da PF como responsável pelo único gerenciamento possível
no PL e na nova lei: o gerenciamento cotidiano. Esse poder discricio-
nário do gerenciamento cotidiano significa o processo de encaixe do
estrangeiro nas categorias definidas pelo PL por um agente da PF. E o
resultado de a PF decidir quem é ou não – ou o que é ou não – a dife-
rença “legal” ou “autorizada” é frontalmente contrário às próprias
definições gerais do espírito do PL, que seriam as de uma política que
evitaria violações dos direitos humanos. Desnecessário dizer que
deixar nas mãos de uma polícia a responsabilidade única de condu-
zir uma política de migração é um caminho rápido para a violação
dos direitos humanos. Nesse sentido, quando a polícia tem o tra-
balho único de categorizar as diferenças segundo um regulamento
específico (a própria lei que se propõe), é necessário reconhecer que
não há espaço para flexibilidade. O PL consegue, de fato, eliminar a
“proliferação de atos normativos” ao preço de congelar a imagina-
ção da diferença numa postura ainda mais rígida que a da lei de 1980.
Afinal, a lei de 1980, pelo menos, possibilitou a criação de uma insti-
tuição supraministerial que chamou para si o processo constante de
redefinição da diferença à medida que se alteraram imensamente os
fluxos de imigrantes no país.
600 Igor José de Renó Machado
são distintos, e veremos que isso faz algum sentido dentro de um
espírito geral de aversão à diferença que está por trás da legislação.
O primeiro sintoma dessa aversão é que o texto da proposta de lei
se preocupa mais em definir formas de retirada do estrangeiro do
solo nacional do que formas de permanência. O estrangeiro pode ser
impedido de ingressar no país (art. 45), ser repatriado (art. 47), ser
deportado (art. 48, 49 e 50) e ainda ser expulso (art. 53 a 58).
Em termos gerais, o PL é cercado pela ideia de “expulsão, extra-
dição, repatriação, deportação”. Essas categorias ganham muito
espaço, fazendo com que o clima geral seja o de criminalização da
imigração. Especialmente a parte relativa à extradição é desneces-
sária e exigiria um PL, pois tem pouca relação com o problema de
regulação da migração em si. Quando vem para o texto, o faz com
teor criminalizante, assim como o excesso de categorias de expul-
são. Essa proliferação de formas de negação da diferença traduz um
espírito contrário à diferença na gênese e no DNA dessa peça legis-
lativa: tem um interesse detalhado de deixar a situação da política
sobre a diferença sem uma instituição responsável além da Polícia
Federal e se preocupa em definir minuciosamente as formas de reti-
rada do estrangeiro do solo nacional. No texto, inclusive, se definem
primeiro as formas de expulsão e depois as possíveis formas de natu-
ralização. Ou seja, primeiro destacamos a vontade de evitar a dife-
rença; depois, com o fato de ter, no final das contas, de lidar com a
incorporação de alguma diferença no tecido social brasileiro.
Seguem, portanto, os mecanismos de naturalização. Eles são
o melhor indício de como a legislação vê a diferença, pois acabam
por escalonar quem é mais ou menos aceito para o legislador. É pre-
ciso ter residência no território brasileiro por, no mínimo, quatro
anos a fim de solicitar a naturalização ordinária, e é preciso também
“comunicar-se na língua portuguesa, consideradas as condições do
naturalizando”. Essa condição básica se encontra em todas as peças
legislativas e merece uma atenção especial. O legislador pressupõe
que falar português é um indício de assimilação, obviamente, e, por
isso, indica esse senão na questão meramente temporal: é preciso ter
passado quatro anos no Brasil, mas também se comunicar em por-
tuguês.
602 Igor José de Renó Machado
em sua cabeça ao propor as leis e que essas hierarquias constroem
um continuum que vai do mais ao menos aceitável.
Outra questão fundamental que está no espírito da proposta,
junto com a evidente aversão à diferença, é a questão do trabalho.
Temos um ambiente legal que possibilita e, de certa forma, até prevê
a exploração do trabalho. Ao imigrante em situação indocumentada
(que o PL chama, apenas uma vez, de “imigrante não registrado”)
é prevista em lei (e precisamos destacar o fato de que é prevista em
lei) a não cobertura de direitos básicos: ele não pode pedir reunifi-
cação familiar, não pode transferir recursos para o país natal, não
tem direito de associação, não tem acesso à justiça, não tem isenção
de taxas e, finalmente, não tem garantia de ver seus direitos traba-
lhistas contratuais e legais ressalvados. Isso implica a autorização
tácita para uma espécie de escravidão legal, pois, por um lado, não
pode reivindicar direitos (pagamento de salário, por exemplo) e, por
outro, sequer pode enviar dinheiro para a família no país de origem,
marcando uma vontade do Estado de manter no país os recursos do
imigrante “não registrado”. É um retrocesso em relação a outras
propostas, que davam mais chance ao imigrante não documentado
de conseguir a documentação sem ser marginalizado. Consideremos
também que o legislador já admite que o imigrante fique aqui por
15 anos sem “registro” e que, nesse período, ele não terá acesso a
direitos básicos. Isso é uma contradição em relação ao que se diz da
intenção inicial do projeto, o de garantir o pleno acesso do imigrante
a direitos, a não ser por uma lógica de expropriação do trabalho que
cria uma mão de obra de segundo escalão em termos de direitos.
Essa última reflexão nos dá o perfil final dessa peça legislativa:
uma lei para promover a precarização do trabalho do imigrante não
documentado, uma lei que constrói uma distinção entre as diversas
populações imigradas, dando mais facilidade a algumas e menos a
outras, assumindo um caráter discriminatório e excludente. Poucas
palavras para o PL 2.516: medo e trabalho precarizado, além da poli-
cialização da política migratória.
604 Igor José de Renó Machado
(que passaria a ser CMIg) é definido em termos simples e diretos em
apenas um artigo (106), que também prevê que a composição do
CMIg seria objeto de regulamento. O mais interessante na definição
do CMIg é a alínea VII do artigo 106, no qual se diz que caberia a ele
“solucionar casos omissos e situações especiais”. Esse artigo trans-
formaria o modo de operação do CMIg sob a lei de 1980 (aquilo que o
PLS 288 critica em sua abertura) em procedimento afirmado pela lei.
Em certo sentido, o APMT não define o imigrante, pois sabe que
essa é uma tarefa complexa. Define, em seu lugar, a si mesma, por
meio do CMIg, como responsável por definir, ao longo do caminho,
as várias diferenças que fatalmente se apresentarão. Ao definir a si
mesma, a instituição reconhece a impossibilidade de efetivamente
definir a diferença. O APMJ procede da mesma maneira, já que a
ANM seria um órgão executivo que teria por incumbência gerenciar
toda a diferença e dar conta de situações novas que se apresentas-
sem. Ambas reconhecem a complexidade da diferença, mas cada
uma a quer para si e a tem como motor de definição de topografias
alternativas do Estado.
Talvez por isso a parte que define os estrangeiros, os tipos de vis-
tos e as formas de naturalização sejam tão parecidas nos dois projetos.
O APMT e o APMJ têm regras de naturalização muito semelhantes.
No que se refere à questão da hierarquia das alteridades, que estru-
tura a percepção da diferença, as três peças legislativas são muito
parecidas: há um privilégio para os oriundos de países de língua ofi-
cial brasileira, que precisam de um ano de residência para pedir a
naturalização, assim como os oriundos de países do Mercosul (ou
associado); e pressupõem os mesmos mecanismos de facilitação de
naturalização para os demais imigrantes, quais sejam, o casamento
(união estável) e a produção de filhos brasileiros.
O APMJ, como vimos, tem uma vontade de deslocar a centra-
lidade da PF e do CNIg, substituindo-os por uma agência que teria
pleno controle sobre todas as dimensões da chegada, permanência e
burocracia para o imigrante. Dessa forma, acaba por destacar o imi-
grante como sujeito de burocracia específica. O APMT deixa claro,
entretanto, algo que vemos apenas nas entrelinhas do APMJ: um
desejo de pensar a migração também como fonte de recursos para
o Estado. O APMJ, preocupado em manter a estrutura de gerencia-
Considerações finais
Numa apresentação anterior, na RBA de 2014 (MACHADO, 2014),
argumentei que a hierarquização das diferenças nos projetos anali-
sados (o de 2006 e o APMJ) era uma característica permanente desde
a lei de 1980 e que tinha enraizamentos antigos, como demonstra
Seyferth (1996). Outra constatação era a permanência de um fan-
tasma da segurança nacional nos novos projetos, marcando uma
preocupação com o controle da movimentação dos imigrantes, com
seu potencial perigo à nação. Esse medo está espalhado nas novas
propostas, principalmente no que se refere às formas de perda de
nacionalidade por prática de crimes comuns, em posturas clara-
mente contrárias aos direitos humanos que todas as propostas pre-
tendem defender em seus preâmbulos laudatórios.
O que vimos ao estender a análise a outras proposições legisla-
tivas, como o PLS 288 e o APMT, é que as mesmas afirmações são
válidas, indicando uma unidade impressionante entre os diferen-
tes projetos, justamente no que têm de mais prejudicial ao imi-
grante: medo e discriminação. Mas novas questões emergiram nesse
momento, comparando as proposições recentes. Vimos que o PL
2.516, enquanto peça legislativa, avança na criminalização da imi-
gração por mecanismos alternativos: elimina as estruturas de geren-
ciamento dinâmico da diferença e congela o quadro de referência das
possibilidades, considerando que o próprio PL resolve os problemas
que exigiriam uma administração dinâmica por parte do CNIg.
Esse fechamento à dissonância no PLS que efetivamente deu ori-
gem à lei é extremamente preocupante, pois tem como corolário a
atribuição do gerenciamento da diferença à Polícia Federal, elimi-
nando a possibilidade de uma política mais humanista e afeita, efe-
tivamente, aos direitos humanos. Ao centralizar a gerência em uma
polícia, o PL (assim como a lei efetivamente aprovada) institui a
imigração como um problema de polícia e, portanto, criminaliza a
imigração. As alternativas que partiram do Estado para substituir a
606 Igor José de Renó Machado
lei vigente, entretanto, perderam muito de sua força política ao cen-
trarem suas energias num embate interno ao Estado pela topografia
hegemônica de gerenciamento da diferença. A intenção principal do
APMJ não é, surpreendentemente, uma política para o imigrante,
mas um imigrante que justifique uma nova instituição que desloque
do MT a centralidade no gerenciamento da diferença.
Essa superinstituição que desalojaria a PF, entretanto, não sig-
nifica uma descriminalização da imigração, pois as lacunas de direi-
tos aos não documentados previstas em lei surgem num espírito de
possível exploração do trabalho, no que destaco o potencial para um
novo tipo de trabalho precário. A defasagem entre a penalidade para
o emprego de imigrantes não documentados e o potencial lucro a
ser aferido pela expropriação do trabalho produzido por esse novo
coletivo mais que justifica essa afirmação. Por outro lado, a reação
interna do governo, a proposta originária no próprio CNIg, pouco fez
para avançar a situação, mais preocupada em legitimar a forma atual
de gerenciamento da diferença e sempre com um olho no potencial
econômico arrecadatório que paira sobre o coletivo dos imigrantes,
apátridas e fronteiriços no Brasil. As duas propostas do governo nos
indicam muito mais uma visão institucional que toma o imigrante
como justificativa de diferentes topografias de poder dentro do
Estado do que uma preocupação em efetivamente produzir uma lei
que dê conta de enfrentar os desafios da mobilidade humana sem
criminalizar ou transformar os imigrantes em potenciais fontes de
lucro.
O que podemos dizer como forma de conclusão é que o con-
flito entre as versões de projetos para uma lei de imigração no Brasil
expõe formas de pensar a diferença que não são tão diferentes entre
si: todas têm receio e tendem a criminalizá-la, todas defendem uma
mesma hierarquia de alteridades que produz diferenciações entre os
grupos de imigrantes. O que a diversidade de agentes, interesses e
disposições políticas sobre a legislação de imigração nos evidencia
é uma luta intestina ao Estado para se redefinir, constituindo novas
topografias, desalojando poderes, restruturando formas instituídas
e girando em torno de três agentes principais: Ministério da Jus-
tiça, CNIg e Polícia Federal. As proposições nos dizem mais sobre
a definição desses agentes que sobre os imigrantes em si, restando
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611
regionais que as financiam. Do mesmo modo, enquanto fóruns de
circulação de ideias e mecanismo de cooperação entre os Estados,4
os organismos internacionais têm ampliado de forma significativa
tanto o espectro quanto o âmbito de sua atuação. A ampliação da
extensão e influência de suas atividades, por sua vez, corresponde ao
aprimoramento de mecanismos de cooperação multilateral vigentes
no cenário internacional e tem despertado cada vez mais interesse
acadêmico sobre o assunto.
A abordagem antropológica desse campo ocasiona uma série de
dificuldades teórico-metodológicas. Talvez a maior delas esteja em
se desvencilhar ou lidar com uma pletora de representações e autoi-
magens produzidas por tais instituições. Como máquinas profissio-
nais de reprodução de categorias, a produção de estudos, relatórios
técnicos e material de marketing conforma parte fundamental de
sua dinâmica de funcionamento. Essa profusão de discursos autor-
referenciados tem o intuito de produzir sentido e, por isso, um dos
desafios centrais para o analista é o de não se deixar seduzir por sua
ambição interpretativa.
Uma primeira e importante constatação na análise da atuação
dessas instituições é a de que, embora outorguem um grau de inde-
pendência elevado a suas intervenções – concebidas como “técni-
cas” –, elas mantêm uma relação simbiótica e de dependência para
com os financiadores de seus projetos. Embora as visões e políticas
das organizações internacionais não se reduzam aos interesses dos
donors, a percepção conjunta de suas práticas é fundamental para
alcançar os sentidos mais abrangentes de sua atuação.5
4 Para Herz e Hoffmann (2004, p. 23), essas organizações são “ao mesmo tempo,
atores centrais do sistema internacional, fóruns onde ideias circulam, se legitimam,
adquirem raízes e também desaparecem, e mecanismo de cooperação entre Estados
e outros atores”.
5 Outras pesquisas etnográficas que abordam o papel das organizações interna-
cionais em contextos específicos têm destacado a questão do financiamento como
crucial para o entendimento das práticas dessas instituições. O trabalho de Kelly
Silva (2004) sobre os processos de state-formation e nation-building em Timor-
-Leste, por exemplo, destaca o financiamento como nó górdio para a compreensão
do processo de construção do Estado timorense. Para a autora, “o sistema de doa-
ção pode ser tomado como um fato social total (Mauss, 1974) quando tratamos de
analisar o processo de construção do Estado em Timor-Leste. Ele está implicado em
todas as faces e fases desse empreendimento, condicionando fenômenos tão diver-
612 Guilherme Mansur Dias
No que se refere à questão migratória, a premissa principal para
os atores que acessam fundos direcionados passa pelo domínio de
uma linguagem burocrática complexa. As organizações que dispu-
tam recursos no cenário internacional aliam conhecimento técnico
acerca de determinado tópico a um know-how exaustivo de mani-
pulação de formulários, prazos e outros itens caros à dinâmica buro-
crática delineada pelo financiador. Segundo uma funcionária inter-
nacional entrevistada em Viena:
sos como a consolidação de uma língua nacional e oficial aos sistemas de orçamento
adotados pelo Estado” (SILVA, 2004, p. 12).
6 Segundo Herz e Hoffman (2004, p. 38), “o novo ativismo da ONU e de suas agên-
cias foi uma característica marcante do período pós-Guerra Fria […]. Nesse período,
as organizações internacionais foram muito criticadas pela sua ineficiência, em
particular pela alocação de recursos sem a maximização dos benefícios […]. Em
resposta a essas pressões, muitas organizações adotaram práticas administrativas
análogas àquelas das empresas privadas, inclusive buscando consultar grupos de
interesse específicos”.
614 Guilherme Mansur Dias
Ademais, uma terceira e fundamental questão a ser salientada
é o fato de a ampliação temática e numérica dos organismos inter-
nacionais corresponder à aposta de Estados nacionais e supranacio-
nais em modelos descentralizados de gestão cada vez mais difundi-
dos contemporaneamente. No que se refere à temática migratória,
vale perguntar o que tem embasado essa dinâmica burocrática que
envolve Estados nacionais, supranacionais e organismos internacio-
nais na execução de projetos e políticas que tangenciam a mobilidade
humana.
Aparentemente, a reprodução de conceitos relacionados ao
campo das políticas migratórias – na qual as práticas dos organismos
internacionais estão visceralmente implicadas – corresponde a pro-
pósitos administrativos e gerenciais que irão, no limite, lidar com o
gerenciamento e controle de populações. Nesse sentido, o aparato
de instituições que gravita em torno do tema se apoia em modelos
de governança descentralizados e induzidos que têm se mostrado
demasiado efetivos no controle de populações estrangeiras. Sobre
esse ponto serão necessárias algumas linhas adicionais.
616 Guilherme Mansur Dias
cendo como uma instituição de caráter internacional e atuação em
outras regiões.
A OIM tem crescido de maneira exponencial nos últimos anos e
funciona fundamentalmente por meio de projetos que lidam com a
assistência e o retorno voluntário de migrantes, mas também com
temas afetos a “migração e desenvolvimento”, “tráfico de pessoas”,
“migração forçada” e “migração regular”.9 De acordo com a coor-
denadora do Escritório Regional para o Sudeste da Europa, Leste da
Europa e Ásia Central, 80% dos fundos da instituição decorrem de
projetos acordados entre Estados-membros ou ganhos por meio de
competições e editais. Essa dinâmica de funcionamento orientada
por projetos tem alicerçado sua expansão de maneira significativa.
O crescimento da OIM nos últimos anos está relacionado jus-
tamente a um perfil de atuação adequado a modelos descentraliza-
dos de gestão relativos ao mundo dos projetos. Embora sua amplia-
ção também decorra de estratégias organizacionais específicas, ela
só toma forma num contexto onde a “gestão ordenada dos fluxos
migratórios” se transformou em pauta prioritária para os países do
Norte global e onde modelos descentralizados de gestão ganham
espaço em detrimento de atuações estatais centralizadas.
Frank Duvell (2003) interpreta que o trabalho da OIM ao longo
dos últimos anos tem sido o de alinhar as políticas migratórias do
oeste da África e da América Latina às normas e aspirações do Norte
global. Nesse sentido, a organização pode ser interpretada como um
elemento a mais na consolidação de hierarquias globais de mobili-
dade que delineiam arranjos de mão de obra afetos ao capitalismo
flexível e aos interesses de financiadores do Norte.
Já Andrijasevic e Walters (2010, p. 985) consideram que as inter-
venções da OIM têm um papel construtivo e constitutivo da maneira
como diferentes Estados, através de seus especialistas nacionais,
burocratas e polícias, têm compreendido o “problema” da fronteira.
618 Guilherme Mansur Dias
que dificilmente destoam de um arcabouço conceitual e pragmático
inerente aos interesses daqueles que as patrocinam.
Nas intervenções dos organismos internacionais, a confluência
de noções-chave como “humanitarismo”, “liberalismo”, “segu-
rança” e “desenvolvimento” ajuda a sedimentar uma percepção
sobre a mobilidade humana que se pretende hegemônica. Usual-
mente, o conteúdo dos folhetos, publicações e materiais produzi-
dos repete as linhas gerais dos grandes financiadores do Norte, nas
quais os aspectos negativos da gestão das fronteiras são usualmente
minimizados por questões relacionadas à segurança e ao eventual
esforço em impedir práticas de violações dos direitos humanos dos
migrantes. A gestão eficiente das fronteiras, nesse caso, consiste não
somente em suavizar o “impacto” que decorre da movimentação de
pessoas e prevenir a migração irregular, mas em evitar a perpetua-
ção de práticas criminais associadas à violação dos direitos.
Tal veio interpretativo vem sendo exportado com sucesso para
diferentes contextos, inclusive para a América do Sul. O trabalho
de Silvana Pereyra, por exemplo, mostra o papel da OIM na cons-
trução das categorias “segurança” e “desenvolvimento” no âmbito
da agenda da Conferência Sul-Americana sobre Migrações, evento
que resultou na adoção da “governabilidade migratória” enquanto
paradigma pelos diferentes governos da região (PEREYRA, 2011).
Eduardo Domenech (2011), por sua vez, tem demonstrado como
as estratégias de governabilidade migratória argentinas das últi-
mas décadas incorporaram a linha discursiva dos direitos humanos,
resultando em um controle mais rígido e acentuado, com um número
bem mais expressivo de repatriações. No contexto brasileiro, igual-
mente, tal narrativa não tem se instalado sem uma percepção atenta
e crítica (DIAS e SPRANDEL, 2010, 2011).
Em síntese, as organizações internacionais que lidam com a
governabilidade migratória não diferem de uma série de outras
burocracias modernas que funcionam por projetos, respondendo
a modelos de governança descentralizados e atrelados aos interes-
ses de seus financiadores centrais. Essas estruturas empregam um
conjunto enorme de profissionais bem treinados e vêm ampliando
a influência de certa visão sobre o fenômeno migratório que atrela o
linguajar dos direitos humanos ao imperativo de controle da mobili-
620 Guilherme Mansur Dias
ções desenvolvem seus projetos, já que os editais para concorrência
pública seguem, por suposto, as diretrizes conceituais e políticas da
abordagem global delineada pela Comissão Europeia.
As linhas conceituais desses editais costumam ser bem defini-
das e os atores que pleiteiam a aprovação de seus projetos devem
necessariamente seguir tais orientações.12 Outra atividade que a UE
tem promovido desde 2008 são os Diálogos em Matéria de Migra-
ção, Mobilidade e Segurança. Esses Diálogos salientam a coope-
ração com países com tradição de envio de migrantes para a UE ou
que pleiteiam a entrada no bloco regional, incluindo a prestação de
assistência técnica e o reforço na gestão de suas fronteiras.
Tais Diálogos seguem, usualmente, os interesses da política
externa dos principais financiadores do bloco regional e priorizam a
intervenção em determinadas regiões e países, tendo em vista acon-
tecimentos sócio-históricos relevantes. Essa dinâmica de atuação da
Comissão por meio de projetos, diálogos e iniciativas regionais sina-
liza para aspectos referidos à governabilidade dos fluxos migratórios,
dado que a flexibilidade de tais instrumentos possibilita um alcance
inimaginável a partir de estruturas burocráticas centralizadas.
Nas linhas discursivas desse grande financiador, portanto, o
fenômeno migratório segue sendo tomado numa chave essencial-
mente “securitizada”, que incorpora como prioritária a “luta contra
a criminalidade transnacional organizada, o terrorismo e a corrup-
ção”, fazendo com que o enfoque das políticas recaia usualmente
sobre o controle fronteiriço. Por sua vez, a mobilização de uma
linguagem restritiva no endereçamento da temática migratória se
ancora em noções polarizadas de “vítima” e “violador”, servindo
para justificar ações de controle e vigilância.
Esses elementos ganharam uma materialidade sensível durante
a pesquisa de campo junto a algumas organizações internacionais em
Viena. O International Centre for Migration Policy Development
(ICMPD), por exemplo, é uma organização intergovernamental
622 Guilherme Mansur Dias
Além disso, elementos adicionais jogam luz sobre o destaque
com que a questão migratória tem se associado ao campo da segu-
rança. Em uma das salas de reunião da organização, por exemplo,
sobre uma prateleira adjacente a livros e publicações, consta um
conjunto de distintivos de corporações policiais de diferentes países
dados como presentes em treinamentos ou seminários organizados
pela instituição.
Essa constatação etnográfica reforça a percepção de que o
campo migratório europeu contemporâneo vem sendo dominado
por especialistas e experts da área de segurança que proferem pales-
tras tematizando, por exemplo, a “falsificação de documentos” e as
“soluções de fronteira inteligentes”.13 A abordagem policial se torna,
assim, uma linguagem rotineira para funcionários que atuam com
a questão migratória e a expansão da linguagem criminal se conso-
lida enquanto senso comum ao redefinir questões sociais em termos
de segurança e de preocupações com “contrabando de migrantes”,
“falsificação de documentos”, “tráfico de pessoas” e “imigração ile-
gal”.
Em um evento de capacitação e treinamento de autoridades de 14
países dos Bálcãs e do Leste Europeu na área de “tráfico para explo-
ração do trabalho forçado”, organizado pelo ICMPD, essa ênfase na
“segurança” restou evidente. A Organization for Security and Co-
-operation in Europe (OSCE), que tem uma representante especial
para o Combate ao Tráfico de Seres Humanos, enviou uma funcioná-
ria para a mesa de abertura, encarregada de tratar conceitualmente
da referida temática.
O próprio fato de uma organização como a OSCE ter uma repre-
sentação específica para lidar com o tráfico de pessoas evidencia a
maneira como a questão da segurança tem avançado sobre pautas
afetas à mobilidade humana. Preocupada com o fato de o tráfico de
pessoas ser uma “ameaça transnacional muito grave à segurança na
região da OSCE”, a representante falou da necessidade de se “reu-
13 Cito, por exemplo, minha participação no seminário Travel Documents – How
Secure Travel Documents are Today? Security Versus Smart Border Solutions, que
contou com a apresentação do sr. André Fake ten Caat, do Centro de Identificação
de Fraudes e Documentos do Royal Netherlands Marechaussee em Amsterdã. Viena,
ICMPD, 4 de setembro de 2012.
624 Guilherme Mansur Dias
instituições estatais. É nesse sentido que o papel das organizações
internacionais na difusão de estratégias, linguagens e tecnologias de
vigilância e controle de populações deve ser considerado.
Considerações finais
As reflexões apresentadas buscam descrever o papel de determina-
dos organismos internacionais na padronização de visões hegemô-
nicas acerca do fenômeno migratório e na consolidação de lógicas de
“governança internacional das fronteiras”. Nesse sentido, foi dado
destaque à reapropriação de discursos de direitos humanos para a
efetivação de práticas de vigilância e controle, o que concorre para a
transnacionalização de facto da política migratória (SASSEN, 2003).
Nunca é demais reiterar que, se a legitimidade dessas organiza-
ções é potencializada pela imparcialidade que outorgam a suas ati-
vidades “técnicas”, sua atuação se dá em estreita simbiose e depen-
dência dos financiadores de seus projetos. Por isso, também procu-
rei mostrar como essas instituições têm reforçado a aproximação da
questão migratória ao campo da justiça criminal, o que corresponde
a interpretações hegemônicas difundidas no âmbito do bloco regio-
nal europeu e de grandes financiadores internacionais.
As reflexões expostas enfatizam como essas organizações têm
ajudado os Estados que as financiam a construir uma nova semântica
da gestão migratória, tornando mais palatável a implementação de
sistemas eficazes de vigilância e controle da mobilidade.
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629
de São Paulo e do Rio de Janeiro – respectivamente, o movimento
Mães de Maio e a Rede de Comunidades e Movimentos Contra a
Violência.
A partir do enfoque comparativo, argumento como as rela-
ções estabelecidas entre esses coletivos permitem a construção de
estratégias compartilhadas de ação política, bem como a produção
de sentidos comuns ante as desigualdades e violências sofridas. O
intuito é problematizar em que medida os deslocamentos (por vezes
transnacionais) desses ativistas colocam em circulação práticas,
saberes, experiências e repertórios de ação política, conformando
um campo de ação que se dirige a construir memórias, visibilizar as
vítimas e denunciar a seletividade da violência perpetrada.
630 Liliana Sanjurjo
a federalização dos Crimes de Maio, assim sendo, o Ministério
Público Federal e a Polícia Federal poderiam passar a investigar
os assassinatos praticados por agentes policiais. Além da impor-
tante criação da Comissão Nacional da Verdade e da Justiça para os
Crimes do Estado Democrático contra a Juventude Pobre, Negra e
Periférica (de 1988 até os dias de hoje). 13 de Junho de 2013, Movi-
mento Mães de Maio da Democracia Brasileira.6
632 Liliana Sanjurjo
movimento Mães de Maio busca interpelar o Estado e a sociedade
recorrendo à mesma linguagem que confere capital social e político
aos familiares de vítimas das ditaduras civis-militares.
Contudo, enquanto na Argentina o movimento de familiares de
desaparecidos põe em relevo a identidade política das vítimas para
explicar a violência de Estado – no período ditatorial, a definição do
“inimigo” teria sido diretamente política8 –, no Brasil, as Mães de
Maio e outros coletivos de familiares de vítimas da violência policial
no período democrático buscam enfatizar o critério racial (negros),
etário (jovens), de classe (pobres) e territorial (periferias/favelas) da
repressão perpetrada.9 Diferenças à parte, em ambos os casos, é do
campo de luta por “memória, verdade e justiça” que esses ativis-
tas, pautados nos vínculos familiares que guardam com as vítimas
da violência institucional, buscam reconhecimento social, afirmar
narrativas, memórias e identidades, bem como abrir os caminhos
legais para a responsabilização penal de agentes do Estado acusados
de violações.
10 Parte das reflexões apresentadas aqui começaram a ser delineadas em outro
texto (SANJURJO e FELTRAN, 2015), em diálogo com Gabriel Feltran, a quem agra-
deço pelas análises críticas desenvolvidas conjuntamente. Ver também Feltran
(2011, 2014) para uma análise acerca da relação entre violência, política e formas de
gestão da morte nas periferias de São Paulo.
11 Seguindo Machado da Silva (2008) e Misse (2011), as expressões “segurança
nacional” e “segurança pública” (poderíamos acrescentar também “violência
urbana”) não são tomadas aqui como categorias analíticas, mas como represen-
tações na medida em que conformam categorias de entendimento que conferem
sentido à experiência de vida nas cidades, consolidando representações para a com-
preensão de práticas e relações às quais elas se referem.
634 Liliana Sanjurjo
tâncias e perspectivas que fazem com que certas vidas sejam lamen-
tadas e dignas de luto em público, enquanto outras não o são, já que
entendidas como vidas animando corpos que devem tombar numa
“guerra justa” (eram “terroristas”, “delinquentes”, “subversivos”,
“traficantes”, “do crime organizado”); corpos deslocados da huma-
nidade, considerados pelo poder como desimportantes, supérfluos,
vidas que deveriam ser corrigidas ou que não mereceriam ser vivi-
das.
No caso da ditadura militar argentina, o governo ditatorial jus-
tificaria moralmente a repressão se apresentando como combatente
de uma “guerra” travada “em nome de Deus”, pela “defesa nacio-
nal”, pelos “verdadeiros valores da nação” e da cultura “ociden-
tal e cristã” contra o “inimigo subversivo” e o “ateísmo marxista”.
Atrocidades seriam, assim, justificadas como sequelas, excessos,
imprecisões ou equívocos (fatos supostamente inevitáveis nas guer-
ras) cometidos no contexto de uma ação legítima.12 “Subversão” se
tornaria a categoria englobante utilizada para delimitar as frontei-
ras de pertencimento à nação. A figura do “delinquente subversivo”
surgia, então, como identidade dissonante da ordem social. Nessa
operatória, o governo ditatorial criminalizava a oposição política,
produzindo uma nova categoria de pessoa, os detenidos-desapa-
recidos, que, encarcerados clandestinamente e assim deslocados da
vida social, eram condenados à morte silenciosa, perdendo seu esta-
tuto político e legal: seriam os cadáveres sem nome ou história, os
corpos destituídos de identidade e privados do direito ao luto (CAL-
VEIRO, 2008; CATELA, 2001; CRENZEL, 2008). Ao serem excluídos
dos sistemas de inscrição da morte, a aposta era na impossibilidade
da memória dos desaparecidos pela ausência do corpo.
Foi através de uma série de disputas políticas, simbólicas e jurí-
dicas na qual se encontram empenhados há mais de 30 anos que os
coletivos de familiares de desaparecidos na Argentina foram adqui-
rindo legitimidade social, consolidando publicamente um conjunto
de representações sobre o passado ditatorial. Enquanto, na década
de 1980, os familiares buscaram despolitizar a questão dos desapare-
cidos (afirmando que as vítimas não eram terroristas, mas sim “bons
12 Para análises acerca das narrativas militares sobre a repressão ditatorial na
Argentina, ver Filc (1997), Salvi (2008, 2010) e Sanjurjo (2016).
13 Para uma discussão sobre a despolitização do relato sobre a ditadura argentina
no período de transição democrática, ver Crenzel (2008), Feld (2002) e Jelin (2008).
636 Liliana Sanjurjo
uma forma de supressão radical de pessoas cuja caracterização cen-
tral seria a tentativa de apagamento físico e simbólico do “outro”.
Já no Brasil contemporâneo, o que se evidencia – seja através
das estatísticas de homicídio, seja através das denúncias de orga-
nismos de direitos humanos e coletivos conformados por familia-
res das vítimas de ações policiais – é que o recurso à violência ins-
titucional se constitui também como um instrumento fundamental
da atual forma de governo conhecida como democracia, através da
ação direta que criminaliza determinados segmentos da população
para, em seguida, deslocá-los, expulsá-los, encarcerá-los ou exter-
miná-los como parte de procedimentos administrativos. As cifras
de homicídio e as denúncias dos familiares expõem precisamente a
seletividade dessa violência de Estado, caracterizada pelo flagrante
recorte racial (negros), etário (jovens), de classe (pobres) e territo-
rial (favelas/periferias) da população majoritariamente vitimada.
A violência letal dirigida a essa população é justificada e legiti-
mada moralmente como um mal necessário da política de “segu-
rança pública” visando combater o “crime” que se propaga em
favelas e periferias. As denúncias de homicídios (decorrentes de
intervenção policial e usualmente registradas como “autos de resis-
tência” ou “mortos por resistência”, a depender do estado da fede-
ração) não têm seguimento jurídico e são recebidas publicamente
com indiferença ou silêncio. Além do mais, como destacam Mallart
(2014) e Godoi (2011), não apenas “suspeitas” de serem criminosos,
mas também passagens pelo sistema de justiça criminal e pelo sis-
tema carcerário operam como critério privilegiado de seleção, mar-
cando uma linha entre aqueles que devem morrer e os que podem
viver. Chacinas como os Crimes de Maio de 2006 evidenciam como a
“ficha criminal” e “indícios de passagem” funcionam como critério
para a ação letal e, muitas vezes, o desaparecimento forçado.
Como reação a esse processo, de maneira crescente e cada vez
mais articulada no plano nacional e transnacional, distintos coleti-
vos de familiares de vítimas da violência policial se organizam para
denunciar a repressão e buscar legitimidade para suas demandas por
memória, verdade e justiça. A intenção é crescer em capacidade de
legitimação pública, consolidando sentidos acerca dos mortos, das
mortes e da violência sofrida a fim de assegurar direitos em sua vida
638 Liliana Sanjurjo
que acontece. Porque realmente é um genocídio. São assassina-
tos que têm endereço, que são as favelas e as periferias. É muito
difícil porque, para a polícia, não basta somente tirar a vida dos
nossos filhos. É preciso também criminalizá-los. Eu carrego a foto
do Jonathan no meu peito, mas eu tenho a consciência de que a
imagem dele não representa só ele. Representa vários jovens que
são assassinados todos os dias. Eu falo em nome de várias mães e
de vários filhos que foram assassinados. […] As mortes dos nossos
filhos e nas favelas não importam, não têm visibilidade aqui. Por
isso, sentimos a necessidade de sair lá fora para gritar e dar visibi-
lidade ao que acontece aqui, para mostrar o que está acontecendo.
Para nós, é importante que a verdade seja mostrada.14
14 Fala de Ana Paula Oliveira em 20 de junho de 2016. Ana Paula é mãe de Jonathan
de Oliveira Lima, jovem de 19 anos executado por policiais militares da Unidade de
Polícia Pacificadora (UPP) em 14 de maio de 2014 na favela de Manguinhos, no Rio
de Janeiro.
15 Durante o ano de 2015, as mães de São Paulo e do Rio de Janeiro protagoni-
zaram diversas atividades no Rio de Janeiro: debates públicos; realização da “Vigília
das Mães” em memória da Chacina da Candelária; audiências públicas; realização
do evento “25 anos de Acari 1990-2015”, em homenagem às vítimas da Chacina de
Acari e das Mães de Acari, pioneiras desse tipo de mobilização no Brasil; participa-
ção do lançamento do relatório Você matou meu filho, parte da campanha “Jovem
Negro Vivo” promovida pela Anistia Internacional visando divulgar os dados refe-
rentes aos homicídios decorrentes de intervenção policial entre 2010 e 2014 no Rio
de Janeiro. Poderiam ainda ser mencionadas inúmeras outras atividades que esses
coletivos realizam conjuntamente, além daquelas levadas a cabo junto a familiares
de outras regiões do Brasil, como é o caso do movimento Reaja ou Será Mort@ de
Salvador, Bahia.
640 Liliana Sanjurjo
tintas regiões da América Latina, bem como para debater estratégias
de mobilização conjunta.
Desse modo, os deslocamentos (por vezes transnacionais) des-
sas ativistas colocam em circulação práticas, saberes, experiências
e repertórios de ação política. Em grande medida espelhadas na luta
das Madres e Abuelas de Plaza de Mayo argentinas – que as Mães
de Maio viriam a conhecer por intermédio do grupo Tortura Nunca
Mais de São Paulo, servindo de inspiração para a designação do
movimento –, os coletivos de familiares no Brasil também emergem
na cena pública colocando suas demandas por “memória, verdade e
justiça” em linguagem de parentesco e de direitos humanos, anco-
rados nas relações de consanguinidade e afeto que seus integrantes
guardam com as vítimas da violência. Dessa forma, procuram inter-
pelar o Estado e denunciar à comunidade nacional e internacional as
violações cometidas em pleno governo democrático.
Suas ações se baseiam no reconhecimento de que compartilham
um vínculo de parentesco com pessoas assassinadas e desaparecidas
nas mãos de membros das forças de segurança, mobilizando (afetiva
e estrategicamente) representações de gênero, do lugar do feminino,
do vínculo materno e dos laços familiares na vida social. E se é pos-
sível dizer que a figura da mãe se encontra associada à ideia de afeto,
de natural, de doméstico, bem como de cuidado e geração da vida,
a imagem que essas ativistas marcam é o da “mãe” que deixa o seu
lugar doméstico “natural” para ocupar espaços públicos onde suas
denúncias possam ganhar sentido e repercussão social. Lançando
mão de retóricas e performances semelhantes às utilizadas (e consa-
gradas) pelas organizações de familiares de desaparecidos das dita-
duras argentina e brasileira, essas mães ativistas igualmente recor-
rem à figura da “vítima” (SARTI, 2011), aos laços de parentesco, às
metáforas do corpo, bem como às narrativas de dor, do sofrimento e
do luto.16 Se apresentam, ainda, como portadoras de uma “verdade
silenciada”, forjando uma narrativa e uma memória reativa para
16 Para uma etnografia que trata das mobilizações de familiares de mortos e desa-
parecidos da ditadura no Brasil, ver Azevedo (2016). Para trabalhos que exploram as
vinculações entre dor, emoção e ação política entre familiares de vítimas da violên-
cia no Rio de Janeiro, ver Araújo (2014), Freire (2010), Leite (2003), Vianna (2013) e
Vianna e Farias (2011). Para o caso argentino, ver Pita (2010), Salvi (2010) e Zenobi
(2014).
642 Liliana Sanjurjo
cursos públicos, que “o genocídio no Brasil tem cor [negro], tem
idade [jovem], tem classe [pobres], tem gênero [masculino] e tem
endereço [periferias/favelas]”.
Atualmente, a ação desses movimentos se dirige a denunciar que
a “ditadura para os pobres nunca acabou”, que as populações que
residem nas periferias e favelas vivenciam, em pleno regime demo-
crático, tanto violências de caráter excepcional, através de chacinas
– como os Crimes de Maio, que teriam vitimado um número maior
de pessoas do que a própria repressão ditatorial, se contabilizadas
apenas as vítimas da ditadura oficialmente reconhecidas17 –, quanto
violências cotidianas que têm lugar nas ações rotineiras das forças
de segurança nos territórios da pobreza. Além do mais, tais coleti-
vos, junto a diversos outros atores políticos, chamam atenção para
os impactos da militarização e para os efeitos do Estado penal na vida
das populações das periferias. Por isso, às demandas por “memória,
verdade e justiça”, soma-se a demanda por “liberdade”, em refe-
rência ao aumento da população carcerária e às políticas de encar-
ceramento massivo. Dessa forma, buscam demonstrar que a ideia de
“genocídio da juventude pobre, negra e periférica” não é uma ideia
abstrata, mas encontra materialidade por intermédio de metodolo-
gias diversas, tais como a política de combate às drogas, o encarce-
ramento, o desaparecimento forçado e as execuções sumárias.
Considerações finais
Através da construção de redes de solidariedade e ação política com
coletivos de outras partes do continente (como o Black Lives Mat-
ter e os familiares dos estudantes desaparecidos de Ayotzinapa),
os coletivos de mães de vítimas da violência policial no Brasil for-
jam comunidades transnacionais pautadas em identidades de raça
e classe (“povo pobre e preto”) acionando uma posição comum de
[…] um sistema que foi feito para nos destruir, a camada da socie-
dade empobrecida. Ser pobre não é crime, mas nós somos crimi-
nalizadas, incluindo nossos filhos. E eu não estou aqui para gritar
pelo meu morto. Estou aqui para gritar por todos os mortos do
passado e do presente. […] Porque mãe não precisa de lei nem de
dia, mãe é legítima. Nós queremos a memória dos nossos filhos.
Nós demos à luz, nós demos a vida. E ninguém vai fazer a gente
esquecer o pedaço que arrancaram de nós. Mãe não tem que pro-
var que filho não era traficante, que não era ladrão. Não interessa.
O que interessa é que eram vidas humanas e no Brasil não tem
644 Liliana Sanjurjo
pena de morte. […] Nós denunciamos que existe a vala de Perus,
existe o memorial do tempo da ditadura, mas existe muito mais na
democracia, onde as valas continuam, onde os massacres conti-
nuam, onde os pobres são exterminados e jogados nas valas clan-
destinas. Não existe o fim da ditadura porque a periferia está mili-
tarizada. A periferia, para nós, é a senzala, os presídios, para nós,
são os navios negreiros. E a chibata se transformou nas balas de
revólver que matam os nossos filhos na democracia.18
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M.; MACHADO, C. (Orgs.). Dispositivos urbanos e tramas dos viventes: ordens e
resistências. Rio de Janeiro: FGV, 2013.
650 Liliana Sanjurjo
Sobre os autores
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ambiente” e “Políticas sociais e desenvolvimento”. Áreas de inte-
resse: etnologia indígena, relações interétnicas, indigenismo e estu-
dos rurais.
Antonio Arantes
Ex-presidente e membro do Conselho Diretor da ABA, é professor
titular colaborador do Departamento de Antropologia da Universi-
dade Estadual de Campinas (Unicamp), vice-presidente do Comitê
Científico Internacional do Patrimônio Imaterial do Icomos e chair-
person do Interamerican and Caribbean Cultural Heritage Forum.
Foi presidente dos conselhos de defesa do patrimônio cultural de
Campinas (Condepacc), do Estado de São Paulo (Condephaat) e do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Publi-
cou livros e artigos sobre cultura e política, com ênfase em questões
relativas ao patrimônio e à dinâmica cultural.
Bela Feldman-Bianco
PhD em Antropologia (Columbia), com pós-doutorado em Histó-
ria (Yale), é professora colaboradora do Programa de Pós-gradua-
ção em Antropologia Social da Unicamp e bolsista 1A do CNPq. Suas
pesquisas e publicações sobre migrações transnacionais combinam
análises de cultura e política em perspectiva comparativa. Foi presi-
dente da ABA (2011-2012), representante da área de Antropologia e
Arqueologia da Capes (2005-2007) e co-coordenadora do GT Migra-
ción, Cultura y Política da Clacso (2010-2013), entre outras ativida-
des. Atualmente, coordena o Comitê Migrações e Deslocamentos da
ABA e é conselheira do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), onde
representa a SBPC.
Camilo Braz
Professor associado I de Antropologia, docente dos Programas de
Pós-graduação em Antropologia Social (PPGAS) e em Sociologia
(PPGS) e pesquisador do Ser-Tão, Núcleo de Estudos e Pesquisas em
Gênero e Sexualidade, na Universidade Federal de Goiás (UFG). Mes-
tre em Antropologia Social e doutor em Ciências Sociais pela Uni-
camp. Pós-doutor em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos
Aires (UBA). Membro da Latin American Studies Asociation (Lasa)
Carmen Rial
Professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC,
1982-2018). Foi presidente da ABA entre 2013 e 2015. Antes disso, foi
diretora nas gestões de Gustavo L. Ribeiro (2002-2004) e de Bela F.
Bianco (2011-2013), secretária no 28ª RBA (2012) e organizadora da
29ª RBA. Integrou o comitê de Antropologia Visual, a Comissão de
Ética e a Comissão de Relações Internacionais. Participou da criação
Claudia Fonseca
Doutora pela Universidade de Paris V e Pós-doutorado pela Univer-
sidade de Montreal, é professora no Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Seus interesses de pesquisa incluem parentesco, gênero,
ciência e direito, com ênfase nos temas de direitos humanos e tecno-
logias de governo. Foi secretária-geral da ABA (1992-1994), membro
do Conselho Científico (2000-2002) e coordenadora da Comissão de
Direitos Humanos (2013-2015).
Fabio Mura
Doutor e mestre em Antropologia Social pelo PPGAS/MN. Professor
do Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade
Federal da Paraíba (UFPB). Membro da diretoria da ABA (2017-2018),
coordenador do Comitê de Laudos Antropológicos e integrante da
Comissão de Assuntos Indígenas dessa associação.
Liliana Sanjurjo
Bacharel em Ciências Sociais, mestre e doutora em Antropologia
Social pela Unicamp. Atualmente, é pós-doutoranda junto ao Pro-
grama de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj), pesquisadora associada do Centro
de Estudos de Migrações Internacionais (Cemi) do IFCH/Unicamp
e integrante do Comitê Migrações e Deslocamentos da ABA. Autora
do livro Sangue, identidade e verdade: memórias sobre o passado
ditatorial na Argentina (UFSCar, 2018).
Lucía Eilbaum
Mestre e doutora em Antropologia pela UFF. Professora do Departa-
mento de Antropologia e do Programa de Pós-graduação em Antro-
pologia da mesma universidade. Coordenadora do Grupo de Etno-
grafias em Antropologia do Direito e das Moralidades (Gepadim/
Luiz Oliveira
Mestre e doutor em Antropologia pela UFPE, professor de Antropo-
logia na Universidade Federal do Piauí (UFPI) e pesquisador cola-
borador da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRGN).
É pesquisador no Observatório de Museus e Patrimônio (Observa-
mus) no Programa de Pós-graduação em Antropologia da UFPE e
tem atuado nas seguintes áreas temáticas: museus, patrimônio,
políticas culturais, educação.
Paula Lacerda
Doutora em Antropologia pelo PPGAS/MN. Professora adjunta da
Uerj. Foi secretária adjunta da ABA na gestão 2015-2016.
Patrice Schuch
Professora do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social
e do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da UFRGS.
Seus temas de pesquisa privilegiam as áreas dos direitos humanos,
políticas públicas, tecnologias de governo e ética em pesquisa antro-
pológica. Atualmente, é membro da Comissão de Direitos Humanos
da ABA (gestão 2017-2018), da qual foi diretora na gestão 2015-2016.
Patricia Osorio
Professora no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social e
no Programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contempo-
rânea da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), universidade
na qual ocupa atualmente o cargo de pró-reitora de Pesquisa. Sócia
da ABA, foi tesoureira adjunta na gestão 2015-2016 e é membro do
Comitê Patrimônio e Museus e do Conselho Editorial. Coordenadora
do grupo de pesquisa Estudos de Cultura Popular – Caleidoscópio,
atua nos seguintes temas: cultura popular e patrimônios.