O Conto A Infancia de Um Chefe e A Prime PDF
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PAUL SARTRE1
Resumo:
O presente artigo busca estabelecer uma relação entre alguns momentos do conto A infância de um chefe
de Jean-Paul Sartre (1905-1980) e os elementos presentes na primeira fase de seu pensamento. De
maneira fenomenológica, há duas realidades distintas: o em-si (o mundo) e o para-si a (a consciência). A
narrativa mostra o personagem do conto, Lucien Fleurier, em três momentos que se referem ao
questionamento do homem diante das dúvidas sobre sua existência, a existência do mundo e a justificativa
de ambos. Porém, tais dúvidas tornam-se mais complexas no instante em que se pretende compreender os
instrumentos da consciência para seu estar e relacionar com o mundo. No entanto, a intencionalidade não é
apenas um instrumento, é o modo de ser da consciência, de maneira que merece uma atenção especial.
I. Introdução
No final da década de 30, Jean-Paul Sartre ainda se encontra na primeira fase de sua
atividade intelectual. É manifesta, nesse período, a forte influência da fenomenologia de Edmund
Husserl sobre seu pensamento, principalmente em relação às idéias relativas à distinção entre o
mundo (em-si) e consciência2 (para-si). São dessa fase obras importantes para a compreensão de
sua subseqüente filosofia como A imaginação (1936), A transcendência do ego (1937), A Náusea
(1938) e O muro (1939). A obra Le Mur é dividida em cinco contos – O muro, O quarto, Erostrato,
Intimidade e A infância de um chefe. A publicação desta obra se dá um ano após o lançamento do
principal romance do autor, A náusea, que, junto de outros títulos, é parte de uma extensa lista de
romances e peças teatrais que figuram ao lado de suas obras filosóficas. Dentre esses escritos,
destacar-se-á o conto A infância de um chefe como uma espécie de roteiro no qual Sartre
apresenta implicitamente sua concepção fenomenológica da existência. O objetivo é fazer um
paralelo entre o conto e temas abordados na primeira fase para, por conseguinte, obter melhor
compreensão de sua principal obra O ser e o nada (1943), sobretudo, no aspecto fenomenológico.
Os três parágrafos seguintes explicitam os momentos e os temas a serem trabalhados aqui.
O protagonista de A infância de um chefe, Lucien Fleurier, é um adolescente que nasceu
pouco antes do início da Primeira Guerra Mundial. É filho único de um casal burguês, Senhor e
Senhora Fleurier, da cidade de Férolles, França. Desde muito pequeno, conviveu com a bajulação
1
Comunicação apresentada na VIII Semana de Filosofia da UFSJ, 2005.
2
Ver, REALE, 1991, p. 606
4
dos empregados de seu pai, principalmente durante o crescimento do poder liberal-capitalista, que
posteriormente, grosso modo, será responsável pela Primeira Grande Guerra. A narrativa imerge
no mundo infantil explicitando as primeiras dúvidas que buscam afirmar a identidade da
consciência diante do mundo, dos outros e de si mesmo. As perguntas, “será que existo?”, e “o
que são o mundo e as pessoas que me cercam?” estarão presentes o tempo todo. A partir daí, a
análise terá como itens os problemas do “em-si” e do “para-si” delimitando seus domínios e
evidenciando seus elementos.
Para abordar a problemática da existência e da justificação do “eu” diante do possível nada
da consciência, a atenção se volta para o momento em que, na adolescência, após refletir sobre
sua existência e cogitar a idéia de suicídio como forma de advertir aos outros de seu nada, Lucien
entra em contato com a psicanálise freudiana. A questão feita é “será que uma teoria que trabalha
os conteúdos psíquicos poderia justificar por completo a existência?”.
Por último, busca-se verificar os instrumentos da consciência que trariam, através do
projeto, a justificação da existência. Para tanto, o momento demarcado é o engajamento de
Lucien numa luta política, tendo como pano de fundo o projeto pueril de se tornar um chefe;
decisão tomada, por sua vez, em uma visita à fábrica de seu pai. Este projeto de infância
permeará toda sua adolescência. Observa-se um constante enfrentamento diante de outras
decisões e posturas com um único propósito: saber se essas decisões e posturas o tornarão um
chefe tão bem sucedido e certo de seu papel como o Senhor Fleurier. O desenrolar da narrativa
apontará para um constante projetar ontológico do ser humano.
Outra justificativa para a utilização do conto mencionado é o fato de Sartre enveredar ao
máximo no pensamento e na vida de Lucien, não se desvencilhado deles um só instante. Cabe
dizer, no entanto, que os temas trabalhados não esgotam a grande quantidade de
questionamentos que podem ser levantados a partir da leitura e análise de A infância de um
chefe. Mas, pretende-se que, para os fins, isso seja o necessário.
3
Transliteração fonética francesa do latim ‘Cogito ergo sum’ (N. do A.).
4
Para Lucien, essa seria a medida correta a ser tomada diante do nada de sua existência. De acordo com a narrativa,
não era somente a angústia que o levava a pensar assim, mas, sobretudo, o desejo de servir como mártir. Ao invés de
escrever um tratado sobre o nada, sua morte. Todos refletiriam muito mais.
7
consciências particulares criando uma consciência mais universal5, como a consciência do ódio.
Daí a afirmação de que o ódio, como consciência, é uma idéia muito vaga, pois não se pode senti-
lo, apenas em seus momentos particulares.
Da mesma maneira, o eu se torna para a consciência um transcendente. Não está dentro
dela, mas dela é objeto a partir de seus momentos vividos (Erlebnis) – portanto, não pode ser
objetivada em sua completude. Se ocorresse o contrário, preencheria toda a consciência
tornando-a opaca, incapaz de refletir sobre si mesma. Além disso, faria dela uma realidade inerte,
sem a dinâmica da intencionalidade, assim como a realidade do em-si. A falta de translucidez
ofuscaria a própria imaginação. Destarte, cheia do eu, a consciência não poderia se voltar para
sua exterioridade. Isso não significa que o eu não exista. Porém, só se pode ter consciência dele
quando se apresenta em sua particularidade intencionada. Uma consciência pura é um absoluto
não substancial. Uma consciência pura é um absoluto porque é consciência de si mesma. Ela
permanece, pois um ‘fenômeno’, no sentido muito particular em que ‘ser’ e ‘aparecer’ são apenas
um. A crítica de Sartre a Husserl é por trazer o eu para dentro da consciência conferindo a ela um
enorme peso.
A ligação que pode ser estabelecida entre as avaliações acima e o conto A Infância de um
chefe é que, ao buscar colocar na teoria dos complexos a justificativa e comprovação da
existência da consciência (e, desse modo, do eu), Lucien queria trazer conteúdos à matéria
psíquica. No entanto, os complexos seriam um tipo de reflexão impura presa ao passado e que
perpassaria toda a existência. Assim, só poderiam ser observados em momentos (consciências)
particulares. Como simples conteúdos seriam apenas matéria inerte sem significado no processo
dinâmico da intencionalidade, ou, pior, poderiam trazer à consciência a ilusão de uma
dinamicidade causal, como acontece no em-si6. Lucien se frustra por, após toda essa trajetória,
deparar-se novamente com o vazio existencial.
Ao tentar preencher o vazio deixado pela descrença na teoria dos complexos, Lucien se
engaja na luta de um grupo político nacionalista e racista no qual se torna um de seus principais
oradores e militantes. É nele que encontrará, se não a comprovação da existência de sua
consciência e de seu eu, a justificação para estar no mundo. Já não se sentia impulsionado por
nenhum determinismo. Eram as escolhas baseadas em seu projeto de se tornar um chefe que
justificariam sua existência.
5
A sentença mais correta é “criar uma consciência transcendente”.
8
Ele tinha acreditado por muito tempo que existia ao acaso, porque não
havia refletido o bastante. Bem antes do seu nascimento, seu lugar estava
marcado ao sol, em Férolles. (...) Se tinha vindo a esse mundo era para
ocupar esse lugar: “eu existo”, pensou, “porque tenho o direito de existir”. E
pela primeira vez, talvez, teve uma visão fulgurante de seu destino
(SARTRE, s.d., p. 233).
Continuando sua reflexão, Lucien passa a elencar seus projetos: casar com uma boa
garota, ser um chefe semelhante ao seu pai entre outros.
Há uma tendência natural em acreditar que o tempo é um fluxo contínuo que segue na
direção do passado para o presente e deste para o futuro. Deste modo, o presente é
experimentado como conseqüência do passado e o futuro como conseqüência do passado e do
presente. Isso acontece porque, ao perceber a ação causal no em-si, cria-se a ilusão que
classifica a ação causadora como um passado (motivo) e o evento causado como o futuro (fim)
daquela. Moutinho explica que, para Sartre, “a temporalidade é estrutura interna da consciência;
para esta, ser é o mesmo que passar, e isso é a temporalidade” (MOUTINHO, 1995, p.69). Entre
os objetos do em-si há apenas o espaço disponível para a ação causal e o tempo inexiste. Uma
coisa não foi e nem será, ela apenas é.
Classificar a temporalidade da consciência de maneira a considerar o futuro como pura
conseqüência do passado é um erro. Na verdade, ambos coexistem e se determinam. No futuro
se encontra a consciência que o intencionou (passado) enquanto o seu motivo, e na consciência
que intenciona se encontra o futuro enquanto um fim. Uma forma de exemplificar isso é através
da ação humana. A intenção de uma ação se encontra já em sua realização. Por outro lado, no
momento em que se realiza a ação é possível refletir sobre os motivos que a visaram. É na
consciência que se projeta a ação.
Na base dessa projeção (desse intencionar para o futuro) se encontra a negação do “nada
de ser” da consciência. Essa projeção intenta a realização de si mesmo a partir das possibilidades
que se apresentem à consciência. Ora, como o próprio termo possibilidade sugere, o que há é
“um possível” e não “um existente”. A linha psíquica que distingue os instantes da temporalidade é
muito tênue. O passado é um presente que acabou de se realizar que, por sua vez, torna-se o
futuro visado. A consciência intenciona o futuro enquanto um “ainda não” que, no momento do ato,
indentifica-se com um “já sido”, um “já realizado”. Assim sendo, a consciência preserva sua
característica de não possuir nada de ser. O realizado permanece nela simplesmente como a
imagem de um vivido – um instante particular.
Num sentido prático, na obra O ser e o nada, ao tratar da questão da “situação”,
determinados fenômenos são designados como “entorno” (entours), meus “arredores”, opondo ao
6
Sergio Moraiva comenta que: “Destituído de sua capacidade intrínseca de livre escolha, o homem freudiano surge
condicionado de um absoluto por toda série de determinismos, eventos e situações que o restringem a uma certa
‘natureza’ e a um certo ‘passado’(...)”. (MORAVIA, 1985, p. 68)
9
para-si certo grau de adversidade e utensilidade (SARTRE, 1943, p. 585). Dessa maneira, a
consciência ao escolher – à medida que o entorno se coloca diante do meu projeto -, estabelece
com o mundo uma relação de liberdade. Enquanto esse escolhe, o faz entre todas as coisas que
poderão ou não servir para a realização de si mesma. O homem é ontologicamente livre para
escolher e, assim, determinar seu projeto7. Porém, acreditar que o projeto, por si só, é suficiente
para justificar a existência humana é uma ilusão.
Como última tentativa de se justificar no mundo – e que ainda não se mostra
inequivocamente efetiva -, Lucien se envereda nas práticas anti-semitas. Em 1939, Sartre ainda
não tinha consciência do que o anti-semitismo seria responsável nos próximos seis anos. No
entanto, antecipa suas conseqüências através de reflexões trazidas pelo próprio texto. Ao entrar
num grupo político nacionalista e racista convidado por André Lemordant, um colega de escola,
Lucien torna-se um de seus principais oradores e militante. Pensava que uma luta política
preencheria o vazio deixado pela descrença nos complexos freudianos. Além disso, essa luta
reavivava seu espírito de liderança e sua moralidade abalada por sua relação com Bergère. Suas
práticas anti-semitas podem ser observadas em dois momentos: o primeiro é quando espanca um
judeu na Rue Saint-André-des-Arts com seus colegas e o segundo num encontro com Guigard e
Maud, sua irmã, quando recusa a apertar a mão de outro judeu. O restante da narrativa seguirá no
sentido de esclarecer que a posição assumida por Lucien diante desse novo grupo lhe conferirá a
certeza de que estava preparado para ser o grande chefe que sonhava desde pequeno.
V. Considerações finais:
7
Não se deve descartar a idéia de liberdade situada que impõe certos limites a realização de todos os projetos.
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Por último, embora várias discussões da primeira fase do pensamento sartriano pareçam
não delinear os elementos de sua filosofia de maneira tão clara como se perceberá em uma fase
mais madura, não é razoável classificá-las como obsoletas e absolutamente dispensáveis. Um
estudo sério e sistemático pode identificar uma espécie de lapidação que engendrará concepções
de grande valor em suas obras subseqüentes.
VI. Bibliografia:
MORAVIA, Sergio. Introduzione a Sartre. Roma: Gius, Latera & Fligi Spa, 1985.
MOUTINHO, Luiz Damon Santos. Sartre: existencialismo e liberdade. São Paulo: moderna, 1995.
REALE, Giovanni; Antiseri, Dario. História da filosofia: Do romantismo até os dias de hoje. Trad. Álvaro
Cunha. São Paulo: Paulus, 1991.
SARTRE, Jean-Paul. L’être et le néant: essai d’ontolologie phénoménologique. Paris: Gallimard, 1943.
______________. L’imagination. Paris: PUF, 1936.
______________. La nausée. Paris: Gallimard, 1938.
______________. O muro. Trad. Alcântara Silveira. São Paulo: Nova Fronteira, s.d.