Tocqueville, Sarmiento e Alberdi: Três Visões Sobre A Democracia Nas Américas
Tocqueville, Sarmiento e Alberdi: Três Visões Sobre A Democracia Nas Américas
Tocqueville, Sarmiento e Alberdi: Três Visões Sobre A Democracia Nas Américas
Essa ambição revelou-se profética, pois tão logo Facundo foi pu-
blicado no Chile em 1845, a obra obteve ampla repercussão internacio-
nal,11 celebrizando o nome de Sarmiento como intérprete ilustrado da
realidade latino-americana. Nos anos de forte perseguição às forças li-
berais derrotadas pelos caudilhos federais, os intelectuais assumiram
um destacado papel na crítica aos aspectos autoritários impostos pelo
novo sistema de poder, cujo principal expoente era o governador Juan
Manuel de Rosas, à frente dos demais caudilhos que dirigiam as pro-
víncias integrantes da Confederação Argentina. Recordemos que o Es-
tado centralizado fora praticamente uma ficção desde a independência
das Províncias Unidas do Rio da Prata, em 1816, em vista dos desen-
tendimentos entre províncias, as quais, em 1820 e novamente em 1827
puseram abaixo o poder central sediado em Buenos Aires. À frente de
Buenos Aires entre 1829 e 1852, com um intervalo entre 1832 e 1835, o
governo de Rosas representou o conjunto da confederação nas relações
exteriores e ao mesmo tempo exerceu o monopólio das rendas do por-
to de Buenos Aires, assim como o controle sobre a navegação do rio da
Prata, o que lhe conferiu um poder excepcional. Extremamente habili-
Agora e desde esses últimos anos, tenho-me voltado para outro sol que
não se eclipsa, que nenhuma nuvem oculta: os Estados Unidos. Como
teoria, como ação prática, como poder, como influência, como futuro,
sob todos os aspectos, a democracia ali encontro-a forte, consistente em
si mesma e dominante também como fato.14
O objetivo dos antigos era compartilhar o poder social entre todos os ci-
dadãos de uma mesma pátria. A isso chamavam liberdade. O objetivo
não eram unívocas, o que em parte pode ser creditado à sua posição
social e política em seus respectivos países. Enquanto Tocqueville era
integrante de uma classe social posicionada defensivamente em face
das mudanças políticas e sociais da França e do mundo, Alberdi e Sar-
miento pertenciam a uma elite dirigente em ascensão, cujos principais
obstáculos tinham sido derrubados com a desarticulação do poder dos
caudilhos.
Em tais circunstâncias, as expectativas quanto ao futuro obede-
ciam a critérios diferentes e contrapostos. Num extremo, Tocqueville,
embora tivesse desenvolvido um diagnóstico positivo da situação de-
mocrática vivida nos Estados Unidos, mostrava-se muito receoso quan-
to às ameaças que a democracia norte-americana oferecia para a ma-
nutenção do direito à liberdade individual. Em contraste, Sarmiento e
Alberdi, apesar da realidade adversa da Argentina em meados do século
XIX e das muitas divergências que tiveram entre si, identificaram-se na
crença otimista de um futuro próspero e democrático para o seu país.
A leitura e apropriação das idéias tocquevilleanas implicou tam-
bém uma certa dose de traição. A despeito da admiração pelas idéias
de Tocqueville, os dois argentinos subverteram o seu juízo pessimista
a respeito do futuro político da América Latina, território em que a de-
mocracia seria impraticável. Pois Tocqueville tinha a convicção de que
as constituições dos países latino-americanos, por melhores que fos-
sem, não conseguiriam tornar a democracia uma realidade em vista do
seu povo ser desprovido de costumes consoantes com as exigências des-
se regime político.41 Como para muitos outros artistas, escritores, re-
formadores e revolucionários do mundo político e social latino-ame-
ricano, a crença na transformação também foi para Sarmiento e Alberdi
mais forte que os obstáculos interpostos pela realidade.
As três visões aqui analisadas conceberam a democracia nos ter-
mos e limites do pensamento ilustrado oitocentista. Na Argentina —
mas também no restante da América Latina —, a construção da ordem
liberal atendeu aos interesses de segmentos políticos, intelectuais e de
classe em contraposição aos setores populares, à Igreja, aos caudilhos e
às correntes conservadoras. Instituições e direitos foram afirmados co-
NOTAS
1
Versões preliminares deste trabalho foram apresentadas no seminário Tempora-
lidade, Memória e História Política: Alexis de Tocqueville, realizado em maio de
2002, na FCL-UNESP, e no XXII Simpósio Nacional de História, em julho de 2003.
2
Departamento de História – FCL – UNESP – CEP – 19806-900 – Assis – SP.
3
BOTANA, N. La tradición republicana. Buenos Aires: Sudamericana, 1984, p. 492.
4
GUERRA, F. X. Modernidad e independencias. Ensayos sobre las revoluciones his-
pánicas. Madrid: Mapfre, 1992, p. 370.
5
Neste trabalho utilizamos a tradução brasileira mais recente, acompanhada das
17
O conceito de democracia presente em A democracia na América é multifaceta-
do, pois Tocqueville não formulou uma única e conclusiva definição do que en-
tendia por isso. Oscila entre a sua compreensão como governo dotado de certas
leis e formas políticas (lois) e como estado social que tende à igualdade (moeurs).
Ver: SCHLEIFER, J. T. Como nació “La democracia en América” de Tocqueville. Mé-
xico: Fondo de Cultura Económica, 1987, pp. 287- 298.
18
TOCQUEVILLE, A. de. Op. cit., pp. 548-561; 712-717.
19
Idem, p. 329.
20
SARMIENTO, D. F. Op. cit, pp. 45-46.
21
GALVÃO, C. Q. Dos Infortúnios da Igualdade ao Gozo da Liberdade. Uma Análise
do Pensamento Político de Alexis de Tocqueville. São Paulo: Discurso Editorial, 2001,
p. 64.
22
SARMIENTO, D. F. Op. cit., pp. 70 e 145.
23
Idem, p. 115.
24
Idem, p. 63.
25
Tratava-se de Achille Murat e Michel Chevalier. BOTANA, N. La tradición repu-
blicana. Buenos Aires: Sudamericana, 1984, p. 353.
26
BOTANA, N. Op. cit., p. 299.
27
ROMERO, J. L. El Pensamiento Político de la Emancipación. In: Situaciones e
Ideologías en Latinoamérica. México: UNAM, 1981, pp. 49-81.
28
ALBERDI, J. B. Algunas notas explicativas del autor. In: Op. cit., p. 236. Essa nota
foi redigida em Paris em 1873, e acrescida às edições posteriores do livro.
29
ALBERDI, J. B. Op. cit., p. 72.
30
Idem, pp. 36-38.
31
Natálio Botana desenvolveu tal distinção em dois trabalhos: La tradición republi-
cana, Buenos Aires: Sudamericana, 1984, e em El Orden Conservador. La Política
Argentina entre 1880 y 1916. Buenos Aires: Sudamericana, 1985.
32
TOCQUEVILLE, A. Op. cit, pp. 785-786.
33
O texto aprovado apenas diferiu ligeiramente do sugerido por Alberdi, segundo
o qual cada província deveria indicar o mesmo número de deputados e senadores
representantes no Congresso para compor o colégio eleitoral que escolheria o pre-
sidente. ALBERDI, J.B. Op. cit., pp. 179-184; 203-213.
34
CONSTANT, B. Da Liberdade dos Antigos comparada à dos Modernos. Revista
de Filosofia Política. Porto Alegre, n. 2, 1985, pp. 9-25.