Cuidado Pastoral em Tempo de Insegurança

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Ainda feminismo e gênero:

histórias, gênero e sexualidade,


sexismo, violência e políticas
públicas, religião e teologia

Resenha: MUSSKOPF, André Sidnei; BLASI, Márcia. (Orgs.). Ainda femi-


nismo e gênero: histórias, gênero e sexualidade, sexismo, violência e
políticas públicas, religião e teologia. São Leopoldo: CEBI, 2014, 266p.

Tainah Biela Dias

Organizado por André S. Musskopf e Márcia Blasi, o livro trata dos


motivos pelos quais ainda se deve falar em questões de gênero, tônica
levantada por diversas correntes do movimento feminista e apropriada
por outros movimentos sociais no combate às assimetrias de gênero,
opressões, sexismos, homofobias e formas de violência. Organizado em
quatro principais eixos temáticos de discussão, a obra comporta artigos
de pesquisadoras e pesquisadores dos estudos de gênero, na qual são
abordadas histórias de vida, questões de gênero e sexualidade, sexismo,
violência e políticas públicas, religião e teologia.
A despeito de avanços no que se refere às questões dos direitos das
mulheres e daqueles sujeitos que compõem as chamadas sexualidades
alternativas, ainda hoje as relações de poder, na qual estão calcadas as
assimetrias de gênero, persistem enquanto fatores entendidos como
componentes de uma suposta “normalidade” das coisas. Daí a necessi-
dade de ainda ser imprescindível investir nos debates apresentados ao
longo dos artigos que compõem a obra. É em meio a tentativas de se
silenciar e secundarizar as discussões de gênero, não só nos debates que
envolvem poderes públicos (haja vista as recentes investidas de corren-

* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista


de São Paulo (UMESP). Bacharela e licenciada em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade
Católica de Campinas (PUC-Campinas). Endereço eletrônico: [email protected]

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tes conservadoras contra o que se convencionou chamar de “ideologia
de gênero”), como também na marginalidade dos estudos de gênero
na academia, concatenadas à persistência de formas naturalizadas de
hierarquização, discriminação e violência cotidianas que se evidencia a
pertinência de “Ainda Feminismo e Gênero” (não à toa, todas as vezes
em que a palavra ainda aparece ao longo dos textos, recebe destaque
especial em itálico).
A primeira parte do livro recebe o título de “Histórias”. Ocupa-se do
relato das histórias de mulheres que subvertem, seja no mundo religioso,
no mundo do trabalho ou em ambos, as condições e posições que lhes
são impostas pela cultura patriarcal. Também sugere metodologias para
que mulheres possam narrar suas próprias histórias e ser protagonistas
de sua vida. Essa é a proposta de Márcia Eliane Leindcker da Paixão,
na medida em que propõe trabalhar uma hermenêutica feminista atre-
lada à metodologia de histórias de vida no trabalho com mulheres em
situação prisional. Segundo a autora, dar voz a essas mulheres, para
falarem de si e de suas experiências, proporcionaria um caminhar para
si que lhes devolveria a dignidade perdida, criando novas possibilidades
de transformação na articulação entre o fazer e o pensar.
As histórias também são mostradas por meio da subversão política
realizada por mulheres através da formação em Técnica Manual, mais
especificamente a técnica do bordado. Mantida pela Associação Evan-
gélica de Ensino e realizada pelo Instituto de Educação Ivoti (IEI) e pelo
Instituto Superior de Educação Ivoti (ISEI), percebe-se como o trabalho
manual, historicamente relegado à mulher por conta da naturalização
de sua postura de cuidadora (em detrimento do trabalho intelectual
atribuído aos homens como expoentes da razão), adquire um caráter
político, no qual o saber artesanal passa a ser visto como trabalho e
o conhecimento técnico-artístico passam a ser entendido como saber
cultural. O ato de bordar, neste deslocamento epistemológico, é enca-
rado como expressão de si própria.
Amanda Motta Castro, por sua vez, apresenta a história de uma
tecelã e fiel da Assembleia de Deus (AD). No ateliê em que trabalha, esta
mulher passa a realizar um processo pedagógico não formal de ensina-
mentos religiosos em meio a uma crise econômica que colocava incer-

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tezas da continuidade em seu próprio emprego e das demais tecelãs. A
situação a lhes assolar produziu certo sentimento de solidariedade, no
qual palavras de conforto, dotadas de profundo sentimento religioso e
de fé em Deus, assim como breves leituras da Bíblia antes do expediente
de trabalho, passaram a fazer parte da rotina do ateliê. Esta liderança
é identificada pela autora sob o nome fictício de Algodão, e explicita o
paradoxo de ser alguém que, embora reproduza os argumentos religio-
sos que corroboram para submissão da mulher, consolida-se, por outro
lado, como uma liderança feminina, desafiando a ideia institucionalizada
de que o exercício de liderança não é permitido às mulheres.
Versando sobre o papel das mulheres na Pastoral Popular Urbana
(PPU) na periferia de cidades da Diocese de Caxias do Sul, Maria Bren-
dalí Costa salienta como a atuação destas foi influenciada pela Teologia
Feminista. Partindo das contribuições de Ivone Gebara a autora salienta
a invisibilidade das questões de gênero para pensar-se a opressão das
mulheres nas reflexões da Teologia da Libertação. Mesmo ocupando
os mais variados espaços na ação prática nas Pastorais Populares, o
da elaboração teórica ainda não lhes era dado; seu trabalho, por ex-
celência, era o cuidado. O surgimento desta teologia, a partir de uma
hermenêutica das mulheres, dá-se pura e simplesmente por ousadia
destas, e não por espaços concedidos pelos altos escalões, dominados
por homens. Embora mulheres participem ativamente nas atividades
e práticas da PPU, algumas assimetrias de gênero são salientadas pela
autora, como, por exemplo, o fato de a atuação destas ser, ainda, uma
espécie de serviço, geralmente voluntário. As novas leituras da Bíblia
por parte das mulheres não possibilitou superar as assimetrias de gê-
nero dentro da PPU.
Ainda na linha da atuação das mulheres em movimentos ligados
às causas populares, Vera Sirlei Martins contribui com algumas refle-
xões sobre o Movimento de Mulheres Camponesas do Rio Grande do
Sul (MMC-RS) através do jornal Desperta Mulher. O esforço da autora
concentra-se na análise de conteúdos de destaque explicitados nas
edições do referido jornal (a exemplo da violência doméstica). As rei-
vindicações por justiça social no ambiente rural se mesclam, a todo o
momento, com a vivência de mulheres militantes engajadas que são

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desafiadas, mas, que também, desafiam noções naturalizadas do que
é “ser mulher”, na medida em que vão ao espaço público, este enten-
dido como lugar “natural” de homens. Investe no empoderamento e
na emancipação das mulheres camponesas, dá visibilidade às mulheres,
comumente invisibilizadas pela grande mídia.
Em artigo que abre a segunda parte do livro, intitulada “Gênero
e Sexualidade”, Daniela Senger discorre sobre as formas de pensar-se
a sexualidade humana, homossexualidade, família e matrimônio no
meio protestante luterano, a partir de discussões realizadas na 10ª As-
sembléia da Federação Luterana Mundial (FLM), cuja temática central
foi “Matrimônio, Família e Sexualidade Humana”. Trazer à tona tais
discussões no meio luterano, sob o primado da defesa dos direitos
humanos e da dignidade da pessoa humana como expressão da vonta-
de de Deus, consolidaram-se como passo fundamental no respeito às
famílias em suas mais diversas configurações. A análise das Escrituras
e das questões morais nestas explicitadas de forma contextual, assim
como proposto por Lutero, é um dos critérios utilizados pela FLM para
proferir sua percepção acerca dos assuntos relacionados à família e à
sexualidade humana. Realizado sobre bases bíblicas e teológicas, as
igrejas-membro da FLM adotam postura menos tradicionalista com
relação à sexualidade humana e, de maior abertura no que se refere
às homossexualidades, ainda que o assunto seja tratado apenas de
maneira superficial em documentos oficiais, tanto da FLM como da
Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB). É um tema
ainda em aberto. A igreja, que se coloca como defensora dos direitos
humanos, não deve silenciar-se frente à temática da homossexualidade,
ainda controversa para a religião.
Luciana Steffen contribui para a temática de gênero e sexualida-
de apresentando reflexões sobre diferenças de gênero em meninos e
meninas com deficiência. Demonstra como se dá a desigualdade nessa
inter-seccionalidade em que se mesclam relações de gênero e o fato de
ser deficiente físico. Segundo a autora, os papéis de gênero definidos
socialmente têm impacto na vida de meninos e meninas deficientes. O
espaço doméstico, culturalmente relegado à mulher, e o espaço público
como lugar “natural” do homem na sociedade são negados às crianças

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deficientes na medida em que não atendem àquilo que se espera dentro
dos papéis de gênero. É na crítica de desconstrução desses pressupostos
e do estimulo ao empoderamento de forma independente, também, das
questões de gênero, que está o cerne da ética feminista do cuidado,
através da busca pela equidade no cuidado de pessoas com deficiência,
e na não-reprodução de estereótipos e preconceitos sexistas.
O artigo de Thayane Cazallas do Nascimento inicia-se com a imagem
de uma mulher gestante que representa o cansaço para com as opres-
sões de gênero que ainda se perpetuam na sociedade contemporânea.
A mulher da referida fotografia chama-se Luiza e em sua barriga lê-se o
seguinte protesto escrito à tinta: “por um mundo sem sexismo”. Através
da história de vida de Luiza, a autora trata do ser mãe e do processo
de educar a partir de uma perspectiva queer. Luiza, como mãe, investe
em uma educação que foge aos padrões sexistas e assimétricos de
gênero, que questiona as normalizações correntes do “rosa” e “azul”,
na medida em que desconstrói classificações, a exemplo de “coisas de
menino” e “coisas de menina”. A vivência enquanto ativista, mulher e
mãe permitiram à Luiza perceber todas as potencialidades da educação
queer para com seu filh@ (a @ é utilizada tanto pela mãe como pela
autora do artigo), e mostra possibilidades para além das formas que
reproduzem assimetrias e opressões de gênero.
Encerrando essa segunda sessão temática do livro, Lori Altmann
traz sua experiência com o povo indígena Kulina, em diálogo com a obra
“O gênero da dádiva” de Marilyn Strathern, marco na literatura sobre
as questões de gênero na Melanésia, na medida em que percebe, nos
rituais de troca, assimetrias de gênero, no qual a postura daquele que
dá algo representa o masculino, o ativo; aquele que recebe, ou o que é
objeto de troca, representaria o feminino. Desta forma, e considerando
que aquele que deu algo também receberá, e que aquele que recebeu
também dará em determinado momento, feminino e masculino se mos-
tram construções culturais nada estáveis, mesmo que os processos de
normalizações de nossa cultura ocidental o façam parecer. Ao demons-
trar que as relações de gênero se dão de forma diferenciada entre os
Melanésios, Strahern auxilia na própria desconstrução de um modelo
ocidental que estabelece papéis sociais, e que é tido como natural.

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A terceira parte do livro versa sobre questões referentes ao sexis-
mo, violência e políticas públicas. As manifestações de julho de 2013,
o suposto “acordar do gigante”, as proporções tomadas e os discursos
evocados foram objeto da discussão de Daniéli Busanello Krob, que
identificou, em meio às passeatas nas ruas de todo o país, uma gama
de discursos machistas e sexistas que se fizeram ecoar. Salienta que as
reivindicações do movimento de mulheres, historicamente secundariza-
das e invisibilizadas, nunca interessaram àqueles que saíram às ruas na
“primavera brasileira”, o que se comprova pelos numerosos bordões
sexistas proferidos através de falas, cartazes e outros instrumentos
utilizados nas manifestações, sobretudo com o intuito de ofender a
presidente Dilma Rousseff. Maior que a oposição política e ideológica às
posturas adotadas pelo governo Dilma, observam-se discursos a ofen-
dem única e exclusivamente por ser mulher. Mais ainda, por ser mulher
atuante no espaço público e, portanto, fora dos padrões de gênero por
ocupar um lugar que não lhe pertence. Neste contexto, a autora traz
as contribuições da teologia feminista como instrumento de libertação
de estereótipos enraizados em nossa cultura misógina, salientando a
necessidade do trabalho na igreja no enfrentamento e prevenção da
violência contra a mulher.
Rogério Oliveira de Aguiar, por sua vez, traz uma reflexão acer-
ca da diaconia cristã ensinada por Jesus como oposição ao discurso
sexista e, este último, como negação da própria mensagem cristã.
Coloca a diaconia enquanto a própria essência da Igreja Cristã e como
componente fundamental da identidade do cristão. Paradoxalmente,
a prática da diaconia, do “servir”, associada ao papel relegado às mu-
lheres no meio religioso recheado por assimetrias de gênero, pode, à
luz da teologia feminista, converter-se em práxis libertadora, através
do empoderamento e do fazer-se sujeito do próprio destino. Para isso,
torna-se fundamental o diálogo com a teologia feminista que, há tem-
pos, investe no resgaste do cerne da mensagem cristã, e que fornece
subsídios teológicos para a crítica e enfrentamento do sistema patriar-
cal, sexista, homofóbico e androcêntrico que compõem, ainda hoje, as
bases das estruturas eclesiásticas.
A violência doméstica e o papel, muitas vezes exercido pela reli-

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gião, de fortalecimento e perpetuação das opressões de gênero são
explicitados no artigo de Lilian Conceição da Silva Pessoa de Lira e
Roberto E. Zwetsch. A perspectiva dos/as autores/as aborda questões
inter-seccionais, na medida em que se detêm na análise a respeito das
mulheres negras em situação de violência doméstica e o acolhimento
feito a estas. Consideram como pressuposto fundamental que a religião
tem sua “parcela de culpa” na situação a que ainda são submetidas
muitas mulheres, mas, consideram que se a religião é capaz de reforçar
assimetrias de gênero também o é no sentido contrário, ou seja, na des-
construção da cultura de violência contra a mulher, sendo componente
de libertação e de promoção da dignidade das mulheres. Com Ivone
Gebara, consideram imprescindível o trabalho de feministas nas cadeias
religiosas dos meios populares, sobretudo quando se considera que são
as mulheres pobres e negras aquelas que majoritariamente constituem
o público das igrejas. Salientam a existência de grupos em luta pela
dignidade da mulher no meio religioso, apoiados na teologia feminista,
como o grupo Católicas pelo Direito de Decidir (CDD). Salientando a
escassez de escritos sobre o enfrentamento da violência nos terreiros,
trazem para a discussão o Projeto Ajuenbó e a Campanha Ponto Final
como instrumentos para romper cadeias religiosas, em um cenário de
pobreza que tem cor e sexo. O acolhimento de mulheres negras nestes
locais e o claro enfoque feminista nas ações contra a violência doméstica
propiciam, a essas mulheres. Um local no qual podem lutar por seus
direitos de cidadania.
A temática da violência doméstica é trazida novamente por Marilu
Nörnberg Menezes, o que demonstra sua importância. A autora aborda
a iniciativa desenvolvida pela Fundação Luterana de Diaconia (FLD) no
campo dos direitos humanos das mulheres, que recebeu o nome de
“Nem Tão Doce Lar” e que busca tanto dar visibilidade à questão da
violência doméstica, como mobilizar estratégias de enfrentamento para
um problema que não diz respeito somente à mulher, mas à sociedade
como um todo (assola mulheres, crianças, idosos e faz parte de um
sistema patriarcal que coloca a superioridade construída do homem
como algo natural). As intervenções realizadas pelo Nem Tão Doce
Lar revelam, também, uma dimensão diaconal pública e profética que

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pensa, como parte da missão da igreja, ir ao encontro dos sofrimentos
e das dores do mundo, dos quais, evidentemente, faz parte a violência
doméstica, a qual também se define como violência de gênero.
Por fim, também Adriana Dewes Presser dá sua contribuição ao
fundamental debate acerca da violência de gênero no âmbito doméstico,
desta vez evidenciando como a violência causa graves problemas à
saúde física e mental das mulheres. Aponta as Conferências Mundiais
Sobre a Mulher, realizadas pela Organização das Nações Unidas (ONU),
como momentos de suma importância para que se começasse a pensar
a violência de gênero e seus impactos na saúde de mulheres. As prin-
cipais conferências que introduziram e prosseguiram com o debate no
Brasil também foram pontuadas, tendo sido realizada, no ano de 2004,
a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (CNPM). Aponta
importantes políticas públicas instituídas no país com o intuito de com-
bate à violência doméstica, como as Delegacias de Defesa da Mulher,
as Casas-Abrigo, os Serviços de Aborto Previsto em Lei, os Comitês de
Vigilância à Morte Materna e os Centros de Referência de Atendimen-
to às Mulheres em situação de violência, nos quais a violência contra
a mulher deixa de ser um assunto do campo exclusivamente privado,
tornando-se necessária, também, a intervenção do poder público. Deixa,
também, de ser caso de polícia, e torna-se questão de saúde pública,
sendo um dos marcos dessa virada a criação do Programa de Atenção
Integral à Saúde da Mulher (PAISM). Entretanto, o abandono do PAISM
como proposta nacional mostrou negligência para com a saúde de
mulheres pobres, que passaram a utilizar-se de métodos contracepti-
vos muitas vezes sem a orientação necessária de como fazê-lo, o que
traz malefícios à própria saúde da mulher, além de poder resultar em
gravidez indesejada e aborto. A saúde reprodutiva da mulher é, ainda,
questão de urgente investimento por parte do poder público. Esta tem
sido uma das principais pautas do movimento feminista.
A última sessão do livro, que recebe o título de “Religião e teolo-
gia” É inaugurada por artigo de Edla Eggert e Marcia Leindcker Paixão.
As autoras se propõem a dar foco, no que se refere à Reforma Pro-
testante impulsionada por Martinho Lutero e demais teólogos, a uma
personagem muitas vezes esquecida na história escrita pelos homens:

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Katharina Von Bora, esposa de Lutero, e que também contribuiu para
a Reforma através da produção de uma teologia do cotidiano, pensada
e refletida a partir do espaço doméstico da cozinha, naturalizado como
lugar da mulher por excelência. Ao utilizar-se de uma hermenêutica femi-
nista da suspeita, as autoras salientam que Katharina pode, efetivamen-
te, ter contribuído para os debates teológicos que originaram a Reforma
à sua própria maneira, o que também transformaria a forma de ver as
próprias bases teológicas da Reforma contadas pelos homens. Através
do exemplo de Katharina Von Bora, as autoras afirmam a importância
de que haja mais mulheres latino-americanas feministas interessadas
na produção do conhecimento teológico. Salientam a importância de
mostrar essas mulheres, criadoras de suas próprias teologias, que foram
invisibilizadas na história contada pelos homens.
Marcia Blasi propõe uma reflexão acerca dos princípios do acon-
selhamento pastoral em perspectiva feminista, ou seja, um processo
de aconselhamento dedicado às mulheres, que se desenvolva com
base na teologia feminista, de forma consciente e crítica em relação às
assimetrias de gênero e a outras formas de opressão e discriminação.
Seguindo a proposta de Christie Cozad Neuger, um primeiro princípio do
aconselhamento pastoral em perspectiva feminista é a percepção do pa-
triarcalismo e da depressão como elementos que afligem e que causam
sofrimento à vida das mulheres e que estão intimamente relacionados,
na medida em que a depressão é consequência da desvalorização da
mulher, do sexismo presente em seu cotidiano, desvalorização esta que
se dá no mundo do trabalho, na violência doméstica, na imagem criada
pela mídia etc. O relacionamento de igualdade entre aconselhadora e
aconselhada é outro princípio destacado, no qual o foco não são as fra-
quezas de quem está sendo aconselhado, mas as potencialidades. O pa-
pel primordial da aconselhadora é dar subsídios para o empoderamento
de sua aconselhada. A necessidade de um grupo é o terceiro elemento
fundamental, pois permite o sentimento de pertença à comunidade e
a percepção de que são injustiçadas da mesma forma, através do com-
partilhamento de experiências, de histórias de vida. Com a perspectiva
centrada na mulher, o quarto princípio destacado por Marcia Blasi
enfatiza a necessidade de explorar criticamente os assuntos trazidos

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pela aconselhada e de observar as opressões que se entrecruzam (raça,
etnia, sexualidade, geracional etc.). Por fim, a percepção, por parte da
aconselhadora, de que toda a psicologia tradicional e a teologia foram
elaboradas por homens e que, portanto, sua atividade deve ser cuida-
dosa e de questionamento.
A questão de mulheres portadoras do vírus HIV/Aids e o aconselha-
mento pastoral também são elementos contemplados na obra através
do artigo de Elisa Fenner Schröder. O HIV/Aids era considerado, na
década de 1980, uma espécie de “peste gay” por atingir, no início, prin-
cipalmente homens homossexuais. Esse quadro tem se modificado com
o passar dos anos e, por conta das desigualdades de gênero, o que se
tem visto é uma “feminização” da epidemia, que atinge principalmente
mulheres de baixa renda e escolaridade, negras em sua maioria. Nestes
casos, serem portadoras do HIV/Aids, somados à condição de serem
mulheres, pobres e negras, faz com que estejam submetidas a uma
gama de fatores de discriminação. A autora considera que a comunidade
cristã, através do aconselhamento pastoral, pode configurar-se como
ponto de apoio e como espaço que permita o compartilhamento de
experiências por parte dessas mulheres. Daí a necessidade de trabalhar-
-se a Bíblia, relacionando-a com a realidade de mulheres portadoras do
HIV/Aids, propiciando, a essas pessoas vulneráveis, a possibilidade do
encontro com Deus.
Por fim, o trabalho que encerra a obra é de autoria de André Sidnei
Musskopf, no qual trata do impacto da produção teológica feminista
e de gênero no contexto da academia, mais especificamente, nas
graduações em teologia das Faculdades EST, instituição esta que tem
destaque nesta área de conhecimento, dada a existência de disciplinas
obrigatórias sobre Teologia Feminista e a criação do Projeto “Cadei-
ra de Teologia Feminista”, posteriormente substituído pelo Projeto
“Programa Gênero e Religião”, além do fomento e reconhecimento
dos estudos feministas e estudos de gênero na relação com a religião.
Através de trabalhos acadêmicos produzidos por estudantes de gradua-
ção, o autor procura demonstrar como se tem apresentado os estudos
sobre teologia feminista e de gênero, e as formas de (in)visibilidade
que marcam a presença destes na academia. Os dados apresentados

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pelo autor revelam que, a despeito das várias formas de invisibilidade
às quais são submetidas, por muitas vezes, as produções intelectuais
de mulheres e homens que abordam a teologia feminista e de gênero,
como consequência do próprio contexto social e cultural ainda repleto
de desigualdades de gênero, as Faculdades EST tem se destacado nesta
área do conhecimento. Entretanto, a mudança da Cadeira de Teologia
Feminista para o Programa Gênero e Religião e cortes de orçamento
que marcaram a história da instituição, revelam fragilidades a serem,
ainda, enfrentadas.
Visibilidade, este é o tópico que encerra as discussões levantadas na
presente obra, mas que perpassa o texto por completo. Em palestra na
Universidade de São Paulo, o sociólogo português Boaventura de Sousa
Santos salientou, referindo-se à sociologia das ausências, que aquilo
que não existe é construído para que, justamente, passe despercebido.
Os debates sobre gênero e sexualidade, sobretudo nas perspectivas da
teologia e das ciências da religião, fazem parte dessas inexistências que,
inclusive, a própria academia tem ajudado a construir e a naturalizar.
É, portanto, nesta briga de “cachorro grande” que a presente obra
se insere e mostra sua pertinência em uma luta que ainda é de nossa
responsabilidade: uma luta pela visibilidade, pelo fim do silenciamento
e pela voz daquelas e daqueles que sofrem, emudecidos, as opressões
de gênero.

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