A Multivocalidade Da Arqueologia Publica

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A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:

Comunidades, práticas e direitos

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A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

2017 ©Copyright UNESC – Universidade do Extremo Sul Catarinense


Av. Universitária, 1105 – Bairro Universitário – C.P. 3167 – 88806-000 – Criciúma – SC
Fone: +55 (48) 3431-2500 – Fax: +55 (48) 3431-2750

Reitora
Luciane Bisognin Ceretta
Vice-Reitor
Daniel Ribeiro Preve
Pró-Reitora de Ensino de Graduação
Indianara Reynaud Toreti Becker
Pró-Reitor de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão
Oscar Rubem Klegues Montedo
Pró-Reitor de Administração e Finanças
Thiago Rocha Fabris

2 Conselho Editorial
Dimas de Oliveira Estevam (Presidente)
Ângela Cristina Di Palma Back
Fabiane Ferraz
Marco Antônio da Silva
Melissa Watanabe
Merisandra Côrtes de Mattos Garcia
Miguelangelo Gianezini
Nilzo Ivo Ladwig
Reginaldo de Souza Vieira
Ricardo Luiz de Bittencourt
Richarles Souza de Carvalho
Samira da Silva Valvassori
Vilson Menegon Bristot
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

Editora da UNESC
Editor-Chefe: Dimas de Oliveira Estevam

Preparação e revisão ortográfica e gramatical: Margareth Maria Kanarek


Projeto gráfico, diagramação e capa: Luiz Augusto Pereira

As ideias, imagens, mapas, gráficos, tabelas e demais informações


apresentadas nesta obra são de inteira responsabilidade de seus(uas)
autores(as) e de seus(uas) organizadores(as).

Dados Internacionais
Dados Internacionaisde
deCatalogação naPublicação
Catalogação na Publicação
M961 A multivocalidade da arqueologia pública no Brasil [recurso
eletrônico] : comunidades, práticas e direito / Juliano
Bitencourt Campos, Marian Helen da Silva Gomes
3 Rodrigues, Pedro Paulo Abreu Funari, organizadores. –
Criciúma, SC : UNESC, 2017.
276 p. : il.

ISBN: 978-85-8410-082-8
DOI: http://dx.doi.org/10.18616/arq
Modo de acesso: <http://www.unesc.net/portal/capa/
index/300/5886/>.

1. Patrimônio arqueológico. 2. Arqueologia Pública. 3.


Arqueologia. 4. Patrimônio cultural. 5. História cultural. 6.
Preservação cultural. I. Título.

CDD – 22.ed. 363.69


Bibliotecária
Bibliotecária ElizianededeLucca
Eliziane Lucca Alosilla
Alosilla - -CRB
CRB14/1101
14/1101
Biblioteca Central Prof. Eurico Back - UNESC
Biblioteca Central Prof. Eurico Back – UNESC

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produzida, arquivada ou transmitida por qualquer meio ou forma sem
prévia permissão por escrito da Editora da Unesc.
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(ORGANIZADORES)

Juliano Bitencourt Campos


Marian Helen da Silva Gomes Rodrigues
Pedro Paulo Abreu Funari

Criciúma
UNESC
2017
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SOBRE OS(AS) AUTORES(AS),


PREFACIADORES(AS) E
ORGANIZADORES(AS)
Juliano Bitencourt Campos possui doutorado em
Quaternário, Materiais e Culturas pela Universidade de Trás-
os-Montes e Alto-Douro, Portugal (UTAD/2015), com reco-
nhecimento de diploma no Brasil de Doutor em Arqueologia
pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de
São Paulo (MAE/USP/2016). Mestre em Ciências Ambientais
pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC/2010).
Especialização em Arqueologia pela Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai (URI/2008). Graduação em História
pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC/2002). É professor titu-
lar no Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais (PPGCA/UNESC),
5 coordenador do Laboratório de Arqueologia Pedro Ignácio Schmitz (LAPIS/
UNESC). Líder do Grupo de Pesquisa em Arqueologia e Gestão Integrada do
Território, certificado pela UNESC e pelo CNPq. Membro do corpo editorial da
Revista de Iniciação Científica e da Revista de Extensão da UNESC. É sócio efe-
tivo na Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB). Tem experiência na área de
Arqueologia, atuando principalmente nos seguintes temas: arqueologia regio-
nal, educação patrimonial, Arqueologia e Gestão Integrada do Território. E-mail:
[email protected]

Marian Helen da Silva Gomes Rodrigues é licencia-


da em Letras/Português pela Universidade Estadual do
Piauí (UESPI), especialista em Patrimônio Cultural pelo
Programa de Especialização em Patrimônio do Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (PEP/IPHAN);
mestre em Arqueologia Pré-Histórica e Arte Rupestre pela
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e
Instituto Politécnico de Tomar (IPT) Portugal (diploma reva-
lidado pelo MAE-USP); doutora em Quaternário, Materiais
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e Culturas pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (PT); coordena-


dora do núcleo de Acervos e Sustentabilidade do Grupo Documento (SP); di-
retora executiva e pesquisadora do Instituto Olho D’Água, na Serra da Capivara
(PI); pesquisadora associada ao Instituto Terra e Memória (PT) e Centro de
Geociências da Universidade de Coimbra (PT). Possui experiência nas áreas
de Arqueologia e Educação, com ênfase em Arqueologia Colaborativa com
comunidades tradicionais, Etnoarqueologia, tratamento de acervos arqueoló-
gicos, Patrimônio cultural (material e imaterial) e Gestão do território. E-mail:
[email protected]

Pedro Paulo Abreu Funari é bacharel em História (1981),


mestre em Antropologia Social (1986) e doutor em
Arqueologia (1990) pela USP; livre-docente em História
(1996) e Professor Titular (2004) da Unicamp. Professor
de programas de pós da UNICAMP e USP, Distinguished
Lecturer University of Stanford, Research Associate –Illinois
State University, Universidade de Barcelona, Université
Laval (Canadá). Líder de grupo de pesquisa do CNPq, as-
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sessor científico da FAPESP e orientador em Stanford e Binghamton. Foi cola-
borador da UFPR e UFPel, docente da UNESP (1986-1992) e professor de pós
das Universidades do Algarve (Portugal), Nacional de Catamarca, del Centro de
la Provincia de Buenos Aires e UFRJ. Na Unicamp, coordenador do Núcleo de
Estudos Estratégicos (2007/09) e do Nepam (2014/16). Representante do IFCH
na CADI (2005-2009) e dos titulares no DH (2015/6); membro da CAI/Consu
(2009), assessor de gabinete do reitor e coordenador do Centro de Estudos
Avançados da Unicamp (2009-2013). Apresentador do programa da RTV
Unicamp, desde 2011, com mais de 220 entrevistas. Participa do conselho edi-
torial de mais de 50 revistas científicas estrangeiras e brasileiras. Membro dos
conselhos de Encyclopaedia of Historical Archaeology, Oxford Encyclopaedia of
Archaeology e Encyclopaedia of Archaeology (Academic Press). Foi Secretary,
World Archaeological Congress (2002-2003), membro permanente do conselho
da Union Internationale des Sciences Préhistoriques e Protohistoriques (UISPP) e
sócio da ANPUH, ABA, SAB, SBPH, SHA, SAA, WAC, ABIB, AAA e Roman Society.
Académico estranjero de la Academia de Historia de Cuba desde 2013. Líder de
Grupo de Pesquisa do CNPq, sediado na Unicamp, e vice-líder de dois outros.
E-mail: [email protected]
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Lucio Menezes Ferreira possui graduação em História pela


UFS (1995), mestrado (2002) e doutorado (2007) em História,
área de concentração em História Cultural, pela Universidade
Estadual de Campinas (SP). Realizou pós-doutorado no
Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp (2008). Tem ex-
periência nas áreas de História e Arqueologia, com ênfase
em: História da Arqueologia no Brasil e América do Sul e
Arqueologia Histórica. Atua principalmente nos seguintes te-
mas: Teoria Arqueológica, Arqueologia da Diáspora Africana
e Patrimônio Cultural. Desde 2008, é professor do Bacharelado em Antropologia
(linhas de formação em Antropologia Social e Cultural e Arqueologia) da UFPEL.
É professor efetivo dos seguintes programas de pós-graduação: Memória Social
e Patrimônio Cultural (UFPEL) e Antropologia e Arqueologia (UFPEL). Tem atuado
como professor visitante nos seguintes programas de pós-graduação: Mestrado
e Doutorado em Antropologia e Arqueologia do Instituto Interdisciplinario de
Tilcara (Universidade de Buenos Aires); Mestrado em Antropología de la Cuenca
del Plata da UDELAR (Montevidéu); Mestrado Internacional em Arqueologia da
Universidade de Trujillo (Peru); Master Amériques da Universidade de Rennes II,
7 França; e no Afro-Latin American Institute at the Hutchins Center da Universidade
de Harvard. É Professor Colaborador do Master Internacional em Arqueologia
(PREFALC) da Universidade de Rennes I, França, e do Master em Antropologia
Iberoamericana da Universidade de Salamanca, Espanha. Desde 2010, é bol-
sista de produtividade do CNPq (PQ2). Integra o conselho editorial da Editora
Annablume (Coleção História e Arqueologia em Movimento) e da editora The
University of Alabama Press (Historical Archaeology in South America Series).
É editor da Revista Memória em Rede, ligada ao Programa de Pós-Graduação
em Memória Social e Patrimônio Cultural da UFPel, e da Revista Fragmentos del
Pasado: revista de arqueología.

Luiz Miguel Oosterbeek concluiu a licenciatura em História


pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1982)
e o PhD em Arqueologia pelo University College London
(1994), com equivalência ao grau de Doutor em Pré-História
e Arqueologia pela Universidade do Porto (1995). Dirigiu ou
codirigiu trabalhos de arqueologia em Portugal, Senegal,
Angola, Brasil e Colômbia, com apoios do Estado Português,
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da Comissão Europeia, da Fundação Calouste Gulbenkian e de diversas empre-


sas. Dirige também trabalhos em gestão do patrimônio e em gestão do território
em Portugal, Itália, Senegal, Angola, Namíbia e Brasil. É membro corresponden-
te do Deutschen Archäeologischen Institut (Römische Germanische Kommission
Frankfurt, DE), do Centro Universitario Europeo per i Beni Culturali (Ravello, IT),
e de diversas sociedades científicas, sendo autor ou coautor de cerca de três de-
zenas de livros e mais de duas centenas de artigos publicados. É coordenador de
diversos projetos europeus de arqueologia, arte rupestre e gestão do patrimô-
nio cultural. É membro do conselho editorial de diversas revistas da especialida-
de. É Investigador Principal do Grupo de Quaternário e Pré-História do Centro
de Geociências (unidade 73 da rede da FCT em Portugal). É Secretário-Geral
da União Internacional das Ciências Pré-Históricas e Proto-Históricas desde
2006, reeleito em 2011. É membro da direção do CEIPHAR – Centro Europeu
de Investigação da Pré-História do Alto Ribatejo e Presidente do Instituto
Terra e Memória. É membro do Conselho Internacional de Filosofia e Ciências
Humanas (CIPSH), associado da Unesco; do Comitê Científico da Organização
do International Year for Global Understanding, a convite da União Geográfica
Internacional; e da comissão de aconselhamento da Conferência Internacional
8 sobre as Humanidades na sociedade atual (2012). Foi Vice-Gestor da área de
Ciência e Sociedade do programa Iberoamericano de Ciência e Tecnologia para
a Sociedade (CYTED) e coordena atualmente projetos de Gestão do Território
no Brasil. É professor coordenador do Instituto Politécnico de Tomar, professor
convidado da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (onde dirige o curso
de Doutoramento em Quaternário, Materiais e Culturas). Professor tutor convi-
dado da Universidade de Siena; professor ordinário convidado da Universidade
de Ferrara; e professor convidado de diversas outras universidades da Europa e
do Brasil. É regente de diversas disciplinas de Arqueologia, Pré-História, Gestão
do Patrimônio e Gestão do Território, lecionadas no Instituto Politécnico de
Tomar, no qual integrou o Conselho Científico da Escola Superior de Tecnologia.
Também é Pró-Presidente para as Relações Internacionais e a Cooperação.
Colaborou na organização do Departamento de Arte, Arqueologia e Restauro,
em particular no domínio da Arqueologia e da Pré-História, e coordenou a
criação do Departamento de Gestão do Território, que dirigiu até setembro
de 2005. É Diretor do Mestrado em Arqueologia Pré-Histórica e Arte Rupestre
ministrado pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e pelo Instituto
Politécnico de Tomar. Recebeu, em 1994, o Prêmio Erasmus da União Europeia,
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na categoria docentes para Portugal. Colaborou com o Gabinete de Assuntos


Europeus do Ministério da Educação (designadamente como Promotor do
Programa Sócrates). É perito convidado da DGEducação e Cultura da Comissão
Europeia para o Ensino Superior (programas Erasmus e Tempus). Coordenou os
Programas Intensivos Erasmus em Arte Rupestre e em Gestão do Patrimônio no
IPT, que foram reconhecidos pela Comissão Europeia com o Prêmio Ouro, em
2008. Coordenou os processos de obtenção dos selos de qualidade DS e ECTS do
IPT. No domínio da Gestão do Patrimônio, foi vogal da Comissão Instaladora do
Instituto Português de Arqueologia em Portugal. É Diretor científico do Museu
de Mação e Vice-Presidente da ONG HERITY (Heritage and Quality), sediada em
Roma.

Alfredo Gonzalez Ruibal possui doutorado em Pré-história


pela Universidad Complutense de Madrid (2003). Tem expe-
riência na área de Arqueologia, com ênfase em Arqueologia
Histórica. Arqueólogo do Instituto de Ciências do Patrimônio
(Incipit) no Conselho Nacional de Pesquisa da Espanha (CSIC).
Concentra pesquisas na arqueologia do passado contempo-
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râneo, séculos XX e XXI: guerra, colonialismo, ditadura e ca-
pitalismo. Coordena projeto sobre a arqueologia da Guerra
Civil Espanhola e a ditadura de Franco (1936-1975) desde 2006. E-mail: alfredo.
[email protected]

Renata Senna Garraffoni possui graduação em História pela


Universidade Estadual de Campinas (1997), mestrado em
História pela Universidade Estadual de Campinas (1999) e dou-
torado em História pela Universidade Estadual de Campinas
(2004). Foi bolsista da British Academy, atuando como pesqui-
sadora na Universidade de Birmingham, Reino Unido (dez. 2008
a março de 2009). É professora no Departamento de História da
Universidade Federal do Paraná (associado II), com experiência
na História Antiga, atuando principalmente nos seguintes temas: antiguidade clássi-
ca, cultura popular, cultura material e literatura latina, gladiadores romanos e relei-
turas do mundo antigo na modernidade. No momento, é líder do grupo de pesquisa
Encruzilhadas de narrativas: discursos biográficos, história e literatura, da UFPR, e
vice-líder do grupo de pesquisa CNPq Antiguidade e Modernidade: História Antiga
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e Usos do Passado. É parceira do Centro de Pensamento Antigo (CPA) da Unicamp


(Universidade Estadual de Campinas); membro da Sociedade Brasileira de Estudos
Clássicos (SBEC), da Associação Nacional dos Professores de História (ANPUH), da
Roman Society for Classical Studies e do World Archaeological Congress (WAC).
Foi tutora do PET-História de setembro de 2010 a agosto de 2016, presidente da
Associação Paranaense de História (APAH) no biênio 2008-2010, editora da Revista
História: Questões e Debates entre março de 2010 a março de 2012, vice-presidente
da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC) no biênio 2012-2013 e editora da
Revista Clássica da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos no biênio de 2013-2014.
E-mail: [email protected]

Jorge Eremites de Oliveira é licenciado em História pela


Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), mestre
e doutor em História/Arqueologia pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e concluiu estágio de pós-
-doutoramento em Antropologia Social pelo Museu Nacional
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente
é professor e pesquisador na Universidade Federal de Pelotas
10
(UFPel), onde atua como docente no curso de graduação e
no Programa de Pós-Graduação em Antropologia, ambos
articulados nos campos da Antropologia Social e da Arqueologia. Na mesma insti-
tuição, faz parte do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio
Cultural. Também é bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e possui experiências nas áreas
de Arqueologia, Antropologia Social e História, com ênfase em Etnoarqueologia,
Etnologia Indígena e Etno-história, bem como na produção de laudos administrativos
e judiciais sobre terras indígenas no Brasil. E-mail: [email protected]

Jóina Freitas Borges é licenciada e mestre em História pela


Universidade Federal do Piauí (UFPI), doutora em História
Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e vem
desenvolvendo, há mais de quinze anos, pesquisas interdis-
ciplinares na área de História e Arqueologia. Foi arqueóloga
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e
atualmente é professora adjunta do Curso de Arqueologia e
Conservação de Arte Rupestre da Universidade Federal do
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Piauí, onde realiza trabalhos relacionados à Costa Norte (Ceará, Piauí, Maranhão
e Pará) com concentração na área de ocupação dos índios Tremembés. Trabalha
com arqueologia colaborativa, desenvolvendo projetos junto aos Tremembés de
Almofala (CE), articulando arqueologia, história, memória, patrimônio cultural e
educação diferenciada indígena. Atuou como professora do Magistério Indígena
Tremembé Superior, primeira licenciatura intercultural do Nordeste a ser realiza-
da inteiramente nas comunidades indígenas. E-mail: [email protected]

Sebastião Ovildo dos Santos é formado em pedagogia pela


Universidade Federal do Ceará (UFC), por meio do curso de
Magistério Indígena Tremembé Superior (MITS). Estudante
entusiasta dos sítios arqueológicos existentes em sua área
Tremembé, participou das escavações realizadas pelo IPHAN
na região de Jericoacoara. Atua como professor na Escola
Indígena Diferenciada José Cabral de Sousa, onde leciona
as disciplinas de História Geral e História Tremembé. É de-
fensor dos direitos dos povos indígenas, no que diz respeito
ao passado e vivência de seu povo. E-mails: sssebastiã[email protected] ou
11 [email protected]

José Getúlio dos Santos é formado em Licenciatura


Intercultural Tremembé, pela Universidade Federal do
Ceará, por meio do Curso de Magistério Indígena Tremembé
Superior (MITS). Professor Indígena Tremembé, atualmente
é gestor e professor da disciplina de História Geral do Curso
de Ensino Médio Intercultural Tremembé (EMIT) na Escola
Indígena Tremembé Maria Venância, situada na Aldeia Praia
de Almofala, no município de Itarema (CE). Liderança ativa
do Povo Tremembé e do Ceará, defensor dos Direitos Indígenas e disseminador
da Cultura e História Tremembé. Representante do Povo Tremembé de Almofala
no Grupo Interinstitucional de Educação Escolar Indígena, coordenado pela
Secretaria de Educação do Ceará (SEDUC). E-mail: [email protected]
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Alexandre Guida Navarro é historiador; mestre em Arqueologia


pela Universidade de São Paulo (USP); doutor em Antropologia
pela Universidade Nacional Autônoma de México (UNAM),
com estágio no Laboratório de Arqueologia da Paisagem do
Instituto de Estudos Galegos Padre Sarmiento, Galícia, Espanha
(2005); e possui pós-doutorado em Arqueologia Histórica
pela Unicamp. É coordenador do Laboratório de Arqueologia
(LARQ) e professor do Programa de Pós-Graduação em História
Social da Universidade Federal do Maranhão (PPGHIS/UFMA)
e do curso de História da mesma instituição (DEHIS). Especialista em cultura maia,
escavou no porto de Chichén Itzá e Calakmul, uma das mais importantes cidades
maias. Atualmente desenvolve um projeto de arqueologia acadêmica sobre as
estearias maranhenses, interessando-se por temas como formação dos cacicados
amazônicos e comércio de longa distância, envolvendo a Amazônia, o Circum-Caribe
e os Andes. E-mail: [email protected]

João Costa Gouveia Neto é licenciado em História pela


Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e em Música
12 pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Mestre em
História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí (UFPI),
atualmente é professor e pesquisador na Universidade Estadual
do Maranhão (UEMA), onde atua como docente do Curso de
Música Licenciatura, ministrando as cadeiras de História da
Música. Possui experiências nas áreas de História e Música,
com ênfase em História da Música e Musicologia, nos eixos de
cultura material das elites, espetáculos teatrais, aulas de música, ensino de música
e análise da produção musical maranhense do oitocentos. Também atua como
assessor da Pró-Reitoria de Graduação (PROG). E-mail: [email protected]

Isabela Barbosa Frederico é bacharel em Turismo (UFSCar) e


mestre em Geografia (Unicamp). Doutoranda em Ambiente
e Sociedade, Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais
(Unicamp), com bolsa Capes, desenvolve o projeto de pes-
quisa “O papel da espiritualidade no turismo e na gestão
de áreas protegidas: o caso da RPPN Santuário do Caraça/
MG”. Realizou estágio sanduíche no mestrado da Escuela
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Superior de Turismo, Instituto Politécnico Nacional, México, atualmente reali-


zando o período sanduíche do doutorado no Center for Global Change and Earth
Observations, Michigan State University, Estados Unidos. Tem experiência em
pesquisas interdisciplinares nas áreas de ecoturismo, valores culturais e espiri-
tuais da natureza e educação ambiental. E-mail: [email protected]

Carlos dos Passos Paulo Matias é professor do Ensino


Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de Santa
Catarina, Campus Caçador. Historiador licenciado e bacha-
rel, com mestrado em Educação pela UNESC (Universidade
do Extremo Sul Catarinense). Atualmente é coordenador
de Extensão e Relações Externas do IFSC, Campus Caçador.
Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Arqueologia e Gestão
Integrada do Território Certificado pela UNESC e pelo CNPq.
E-mail: [email protected]

Delmir José Valentini é licenciado em Filosofia pela


Universidade Católica de Pelotas (UCPel) e mestre e dou-
13 tor em História das Sociedades Ibéricas e Americanas
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS). Pesquisador do Grupo de Investigação sobre o
Movimento do Contestado do CNPq e professor adjunto de
História na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS).
Atualmente é coordenador do Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal da Fronteira Sul (PPGH/
UFFS). Entre as publicações está o Livro: Memórias da Lumber e da Guerra do
Contestado. E-mail: [email protected]

Tobias Vilhena de Moraes, desde outubro de 2017, é servi-


dor técnico do Museu Lasar Segall (IBRAM), lotado na área
educativa. Foi profissional técnico do IPHAN (2007-2017),
instituto ligado ao Ministério da Cultura. Concluiu, no ano
de 2017, pós-doutorado na Unicamp, sob a supervisão do
Prof. Dr. Pedro Paulo Funari. Possui experiência nas áreas de
Educação e Ensino, História e Educação Patrimonial. Possui
graduação em Bacharelado e licenciatura em História pela
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002) e mestrado em Arqueologia


Clássica pela Universidade de São Paulo (2006). Participou de diversos proje-
tos culturais e educacionais nas Missões e no estado do Rio Grande do Sul. No
ano de 2012, foi selecionado pelo governo americano para participar de estágio
de estudos no National Park Service (NPS), em New Bedford. Entre os anos de
2012 e 2013, desenvolveu doutorado sanduíche na Universidade de Coimbra,
em Portugal, com financiamento da CAPES. Desde 2014 desenvolve Pesquisa de
Pós-Doutorado na Unicamp sobre projetos de Educação, Memória e História,
financiados pela FAPESP. Faz parte do Corpo Editorial da Revista de Arqueologia
Pública da Unicamp. Atua como editor associado da revista virtual História
e-História, publicação organizada pelo Grupo de Pesquisa Arqueologia Histórica
da Unicamp. Atualmente é vice-coordenador do GT de Arqueologia e Cultura
Material da ANPUH-RS. E-mail: [email protected]

Glória Tega É graduada em Comunicação Social – Jornalismo,


pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2002).
Especialista em Divulgação Científica pelo Núcleo José Reis
de Divulgação Científica da ECA/USP (2008). Mestre em
14 Divulgação Científica e Cultural pelo Laboratório de Estudos
Avançados em Jornalismo da UNICAMP (2012). Trabalha
com a Divulgação Científica da Arqueologia desde 2004,
em projetos de empresas de Licenciamento Ambiental e
Universidades, desenvolvendo atividades de assessoria de
imprensa, planos de comunicação, publicações, vídeos, programas de educação
patrimonial, administração de redes sociais e revisão de relatórios. Tem experiên-
cia na área de Comunicação, Jornalismo, com ênfase em Divulgação Científica,
sobretudo na área de Arqueologia. Desde 2014, é assessora de imprensa da
Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB). E-mail: [email protected]

Flávio Rizzi Calippo é doutor (2010) e mestre (2004)


em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia
da Universidade de São Paulo (MAE/USP). Bacharel em
Oceanologia (1999) pela Universidade Federal do Rio Grande
(FURG) (1999). Professor Adjunto do Curso de Arqueologia
e Conservação de Arte Rupestre da Universidade Federal do
Piauí (UFPI) e coordenador do Programa de Pós-Graduação
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em Arqueologia (PPGArq/UFPI). Participa de projetos acadêmicos e de licen-


ciamento ambiental em Arqueologia desde 1995, atuando principalmente em
pesquisas relacionadas às áreas de Arqueologia Subaquática, Arqueologia de
Sambaquis, Arqueologia Costeira, Arqueologia de Naufrágios, Pré-História,
Processos de Formativos, Paleoambientes, Geoarqueologia e Zooarqueologia.
Foi Vice-Presidente da Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) (Gestão
2013-2015). Atualmente ocupa o cargo de Presidente da SAB (2016-2017).
E-mail: [email protected]

Marcia Bezerra é bacharel em Arqueologia/Faculdades


Integradas Estácio de Sá/RJ, mestre em História Antiga e
Medieval/Universidade Federal do Rio de Janeiro e douto-
ra em Arqueologia/Universidade de São Paulo. É professora
do Programa de Pós-Graduação em Antropologia/PPGA, da
Universidade Federal do Pará e associada ao Departamento
de Antropologia da Indiana University, nos Estados Unidos.
Foi Presidente da Sociedade de Arqueologia Brasileira en-
tre 2013 e 2016. Principais interesses: estudos de cultu-
15 ra material, etnografia da arqueologia, ruínas, colecionamento, arqueologia
amazônica e ensino da arqueologia. É líder do grupo de pesquisa “Arqueologia
no Contemporâneo”, com K. Anne Pyburn/Indiana University e bolsista de
Produtividade/CNPq. E-mail: [email protected]

Inês Virgínia Prado Soares é graduada em Direito pela


Universidade Federal do Ceará (UFC), mestre e doutora em
Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), com tese sobre questões legais da Arqueologia.
Concluiu estágio de pós-doutoramento pelo Núcleo de
Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP).
Atualmente é colíder do Grupo de Pesquisa Arqueológica
da Resistência da CNPq/Unicamp e autora e coordenadora de diversos livros,
dentre os quais “Direito ao (do) Patrimônio Cultural Brasileiro” (Ed. Fórum) e
“Proteção Jurídica do Patrimônio Arqueológico no Brasil: Fundamentos para
Efetividade da Tutela em Face de Obras e Atividades Impactantes” (Ed. Habilis).
É membro do Ministério Público Federal, onde ocupa o cargo de Procuradora
Regional da República, em São Paulo. E-mail: [email protected]
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
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NOTA DOS(AS)
ORGANIZADORES(AS)
ARQUEOLOGIA PÚBLICA: DIÁLOGOS SOBRE
EXPERIÊNCIAS E PRÁTICAS NO BRASIL

A Arqueologia surgiu no século XIX como parte da aventura naciona-


lista e imperialista, mas também como parte do elã iluminista pela busca do
conhecimento. Desde o início, houve duas faces do poder na disciplina: sobre
pessoas, no primeiro caso, e sobre o mundo, no segundo. Aos poucos, com as
mudanças na sociedade, em direção ao respeito à diversidade e à dispersão
dos meios de conhecimento, a ciência aproximou-se das pessoas e ampliou
suas perspectivas. A Arqueologia, antes masculina, hierárquica e militar, pas-
sou a incluir mulheres e indígenas, introduziu as qualificações acadêmicas como
parâmetro de atuação e passou a levar em conta e atuar junto com as pes-
16 soas em sua imensa diversidade. Consubstanciou-se isso com a Arqueologia
Pública, a partir do final do século XX, preocupada em relacionar a teoria e a
prática arqueológica com a sociedade. A Arqueologia no Brasil apresenta, em
sua trajetória complexa e contraditória, veias humanistas precoces e fortes, in-
tensificadas e reforçadas com o retorno do poder civil e do estado de direito
na década de 1980. A multiplicação dos estudos de graduação e de pós em
temas arqueológicos contribui para a inclusão de questões sociais, assim como
as normativas patrimoniais, procedimentos éticos e de relacionamento parti-
cipativo das comunidades. A prática da Arqueologia Pública vem crescendo ao
longo das últimas duas décadas, uma vez que os pesquisadores cada vez mais
se cruzam de forma complexa e matizada com uma gama de comunidades (in-
dígenas e não indígenas) através de esforços colaborativos. Nessa arena, a inte-
gração dos diferentes Stakeholders envolvidos, aliada a uma gestão integrada,
tem suscitado discussões e experiências positivas em todo o planeta, portan-
to, merecem ser compartilhadas. À luz dessas premissas, em 2015, o Grupo de
Pesquisa Arqueologia e Gestão Integrada do Território (LAPIS – Laboratório de
Arqueologia Pedro Ignácio Schmitz, UNESC), em parceria com o Instituto Olho
D’ Água (IODA/DOCUMENTO/PI) e o Laboratório de Arqueologia Pública Paulo
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

Duarte (LAP, UNICAMP), publicou o livro “Arqueologia Pública e Patrimônio:


questões atuais”, trazendo um arcabouço conceitual e de boas práticas (forma-
do por uma rede de pesquisadores multidisciplinares do Brasil e Exterior). Com
o sucesso dessa parceria, surgiu o desafio de ampliar a rede de colaboração,
nascendo a proposta deste Livro “A Multivocalidade da Arqueologia Pública
no Brasil: Comunidades, práticas e direitos”. Congregamos contribuições de
variadas regiões do país e perspectivas tanto teóricas quanto disciplinares, ao
englobarmos à Arqueologia, Letras, História, Ciências Ambientais, Pedagogia,
Música, Turismo, Geografia, Ambiente e Sociedade, Filosofia, Comunicação
Social, Jornalismo, Oceanologia, Direito, Antropologia Social, acadêmicos, pro-
fissionais, indígenas, reflexo tudo isso da fertilidade da área.

Boa Leitura!
Juliano Bitencourt Campos
Marian Helen da Silva Gomes Rodrigues
Pedro Paulo Abreu Funari

17
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

PREFÁCIO I
Dr. Lúcio Menezes Ferreira
Laboratório de Estudos Interdisciplinares de Cultura Material/UFPEL
Pesquisador do CNPq

Desde que surgiu nos anos 1990, a arqueologia pública recebeu diver-
sas críticas. Algumas delas, inclusive, destilaram o sabor azedo das diatribes.
Foi o caso, por exemplo, do arqueólogo social Felipe Bate, ao ironizar a arqueo-
logia pública como simultaneamente democrática e comovedoramente pater-
nalista. A partir dos anos 2000, contudo, reformularam-se as metodologias da
arqueologia pública. Deram-lhe novos adjetivos para ressignificar suas práticas
de pesquisa: arqueologia comunitária, arqueologia colaborativa, arqueologia
participativa, arqueologia multivocal, dentre outras.
Mais recentemente ainda, uma nova onda crítica, cujas oscilações ad-
vieram de contextos periféricos, notadamente sul-americanos, atingiu em cheio
18 a arqueologia pública (e a arqueologia em geral). Criaram-se, uma vez mais,
novos adjetivos para conceituar a disciplina – ou para afastar-se radicalmente
dela. Intitularam-se como arqueologia relacional, arqueologia simétrica e, até
mesmo, arqueologia indisciplinada!
Essas novas disciplinas, ao criticarem a arqueologia pública, repousam
numa premissa teórica que se convencionou designar como “virada ontológi-
ca”. Procuram questionar os fundamentos modernos da disciplina e considerar
simetricamente as ontologias humanas e não humanas. Ainda percorrendo a es-
teira da “crise da representação” dos anos 1980, essa reinvenção contemporâ-
nea da arqueologia pública intenta abalar alguns dos fundamentos ontológicos
que constituíram historicamente a disciplina: a lógica da modernidade capita-
lista, o tempo linear e teleológico, as políticas logocêntricas e etnocêntricas de
preservação do patrimônio cultural e o primado do passado como seara única
da arqueologia.
Por mais plural que possam ser essas arqueologias, elas, assim como
os autores desta obra, recapitulam a pergunta que Rebeca Panameno e Enrique
Nalda lançaram no final dos anos 1970: “Arqueologia para quem?”. Valendo-se
de métodos e abordagens diversas, autores e autoras deste volume partilham
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

uma resposta similar: “para aqueles que veem a arqueologia como uma manei-
ra de criar benefícios coletivos”. Assim, na diversidade que os atravessa, os dife-
rentes capítulos deste livro mostram as comunidades no centro do palco. Como
no teatro de Augusto Boal, as comunidades são vistas, aqui, como protagonistas
e poetas. Afinal, como disse Haroldo de Campos, “O povo é o inventa línguas”.
Ele percebe e constrói paisagens e coisas, sem fetichização, sem apartá-las dos
fluxos e articulações que as formam. E à arqueologia, como nos ensinam os au-
tores e autoras desta obra, cabe misturar-se ao vernáculo do povo, tanto para
pensar-se como para reinventar-se. Seja lá que adjetivação usemos para carac-
terizá-la, a arqueologia, como a vemos estampada neste livro, pretende trans-
formar a disciplina como prática engajada e ativista junto às comunidades.

19
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

PREFÁCIO II
Dr. Luiz Oosterbeek
Secretário-Geral da União Internacional das Ciências Pré-Históricas e
Proto-Históricas
Professor Coordenador do Instituto Politécnico de Tomar – Portugal
Investigador principal do Grupo de Quaternário e Pré-História do Centro de
Geociências da Universidade de Coimbra

Num contexto global de refundação global das humanidades (www.


cipsh.net), é essencial repensar a relação da arqueologia com a sociedade, nos
planos da sua natureza epistemológica (desde a origem multidisciplinar, sendo
por isso não uma disciplina, mas um campo de conhecimento), da sua orga-
nização (na articulação com universidades, museus, empresas, departamentos
públicos, redes internacionais) e da sua relação com a sociedade (intervindo
na compreensão da distinção entre história e memória, na valorização das ma-
20 terialidades e sua relação com o intangível, na compreensão das dinâmicas
territoriais). Em nenhum plano o é, mas especialmente nesta relação com as
comunidades não acadêmicas das sociedades, a arqueologia não é inocente e
pode promover a convergência multicultural tal como pode promover a xenofo-
bia das identidades “puras”. Num mundo marcado por crescentes migrações e
interações culturais, mas também por processos de dispersão, fragmentação e
conflito, a construção do passado é um exercício determinante para a perspec-
tivação do futuro.
A obra que a UNESC dá à luz, com a organização de Juliano Bitencourt
Campos, Marian Helen da Silva Gomes Rodrigues e Pedro Paulo Abreu Funari,
é um documento de intervenção direta neste debate, suscitando, com grande
qualidade, um debate que se deve desejar forte, claro e aberto à diferença.
Desde logo, na consideração das questões indígenas, e dessa complexa relação
feita de continuidades, mas também de descontinuidades e integração étnico-
-cultural entre povos indígenas atuais e registos indígenas arqueológicos, como
focal os dois capítulos iniciais (cap. 1 e 2). Mas debate, também, em torno da ne-
cessidade de avaliação crítica de alguns dos melhores programas que têm sido
desenvolvidos pela arqueologia, em contextos muito reconhecidos nos planos
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

nacional e internacional, como o Parque Nacional da Serra da Capivara (cap. 3).


Ou, ainda, focando eixos estruturantes da arqueologia pública, na sua relação
com as escolas (cap. 4), as áreas protegidas (cap. 5) e comunidades específicas,
frutos dos diversos contatos (cap. 6).
O volume inclui, ainda, reflexões sobre as temáticas transversais da
preservação (cap. 7), da comunicação (cap. 8) e de como ambas se cruzam entre
si e com a pesquisa no domínio, hoje dominante, dos licenciamentos ambientais
(cap. 9). E cumpre o objetivo essencial que toda obra acadêmica deve almejar:
obriga a (re)pensar, afirmando de forma clara as opiniões dos autores, mas fa-
cultando, também, amplas referências que possibilitam uma leitura crítica. A
arqueologia lusófona ganha, assim, um valioso contributo.

21
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

PREFÁCIO III
Dr. Alfredo González Ruibal
Consejo Superior de Investigaciones Científicas (CSIC), Espanha

É de multivocalidade o que verdadeiramente precisa a arqueologia


pública? Isso foi o que primeiro pensei quando este volume chegou às minhas
mãos. A multivocalidade é um fenômeno ambíguo, que tem servido para justi-
ficar uma prática arqueológica mais liberal que propriamente radical ou crítica:
um jeito de silenciar vozes por nivelação mais do que escutá-las. Porém a multi-
vocalidade no Brasil é bem diferente da de outros contextos. Nele, a arqueologia
unicamente pode ser multivocal, porque o Brasil é um país de muitas vozes. Ou,
mais precisamente, é um país de vozes múltiplas e diversas que devem ser es-
cutadas. Porque a multivocalidade não é apenas uma questão de número, não
é mesmo uma questão de diversidade. É, em primeiro lugar, uma questão de
justiça. O que uma arqueologia crítica e emancipatória tem que fazer é mediar
22 no concerto das vozes. Isso quer dizer que algumas vozes têm que ser ouvidas
mais do que outras: as vozes dos que nunca tiveram voz ou dos que nunca foram
ouvidos. É essa a multivocalidade que o leitor vai achar neste livro: as vozes, as
práticas e as memórias dos que nunca foram considerados importantes (indíge-
nas, caboclos, classe trabalhadora).
A importância da multivocalidade talvez não esteja tanto nas palavras
mesmas, senão na visibilidade que outorga os coletivos que foram esquecidos
ou vilipendiados – caso de índios e de caboclos. Contudo a reivindicação dessas
vozes não pode ser uma operação acrítica: a multivocalidade nunca deve ser
confundida com populismo. As identidades, como demostram vários trabalhos
no presente livro, são complexas e mutáveis. Uma correta aproximação multi-
vocal deve celebrar as culturas das margens, mas tem que oferecer também
reflexão e análise sobre as apropriações locais do patrimônio, sobre os direitos
sobre a terra e o passado, sobre a criação de novas identidades, sobre o papel
do conhecimento arqueológico em tudo isso. Reflexão e análise é que oferece
este livro.
Em relação estreita com a multivocalidade fica a questão educativa.
A educação é uma das tarefas imprescindíveis na arqueologia pública, embora
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

isso não seja sempre reconhecido. A educação virou, algumas vezes, fenôme-
no negativo, associado ao autoritarismo e ao imperialismo epistêmico. O que a
arqueologia precisa hoje é outra forma de educação, na qual o Brasil está a se
converter em um referente: uma pedagogia crítica, na linha de Paulo Freire, ba-
seada no diálogo, na interação entre mestre e aluno, na preocupação pelo ou-
tro, na aprendizagem mútua. A arqueologia pública tem que ensinar com humil-
dade e estar pronta sempre para escutar, com a certeza de que o conhecimento
que pode oferecer é valioso cientificamente e, acima de tudo, socialmente. A
verdadeira educação, como a verdadeira multivocalidade, consiste em fazer re-
tornar às comunidades que ficaram marginadas na produção e no usufruto do
patrimônio o que é delas, legal e moralmente. Mas essa não é uma tarefa fácil,
porque esse retorno tem que ter instruções de uso. É nessa tarefa que estão
envolvidos vários dos autores deste volume, ou seja, na produção de instruções
que permitirão às coletividades recuperarem o que, por direito, é delas. Tais
instruções, no entanto, não devem ser escritas unicamente pelos arqueólogos:
eles têm que escutar as pessoas, as coisas e a paisagem para compreenderem
valores culturais, naturais e espirituais que, às vezes, ficam longe da especiali-
dade – da ontologia mesmo – do pesquisador. Essa atitude de escuta também
23 está evidente no livro.
O terceiro eixo da obra, junto com a multivocalidade e a educação, é a
comunicação. Ela também é o terceiro pilar da arqueologia pública. Enquanto
a multivocalidade convida coletivos marginados a participarem na construção
da memória comum, a educação forma cidadãos críticos, especialmente jovens
gerações. Já a comunicação é a forma pela qual a arqueologia participa na pro-
dução cultural em um nível mais amplo. Os novos meios de comunicação são
um aliado fundamental. Nesse sentido, os arqueólogos os empregam cada vez
mais para dar a conhecer as suas pesquisas e engajar públicos mais amplos,
porque as comunidades não são apenas aquelas que moram ao lado dos sítios
arqueológicos – embora as que moram sejam as mais importantes do ponto
de vista social –, elas pertencem também a uma comunidade ampla e virtual.
Sendo assim, todos aqueles interessados no passado e no patrimônio fazem
parte desse público, no sentido de “conjunto de pessoas que se interessa por
algo”. Ao mesmo tempo, muitas das plataformas on-line oferecem ferramen-
tas de análise, que permitem conhecer melhor os nossos públicos. Como as-
sinalam os colaboradores deste livro, a comunicação é muito mais que contar
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

histórias atrativas; é, sobretudo, uma reivindicação do papel da arqueologia na


construção do presente.
O livro que o leitor tem nas mãos é mais uma demonstração da ma-
turidade da arqueologia brasileira. Abraçando a sua função social, sem perder
a perspectiva crítica, a arqueologia vira uma ciência melhor na qual todos ga-
nham: o público (o povo) e os pesquisadores.

24
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
ARQUEOLOGIA PÚBLICA: DIÁLOGOS SOBRE EXPERIÊNCIAS E 27
PRÁTICAS NO BRASIL
Renata Senna Garraffoni

CAPÍTULO 1
REVISITANDO UMA DISCUSSÃO SOBRE ARQUEOLOGIA, 32
IDENTIDADE ÉTNICA E DIREITOS TERRITORIAIS DOS POVOS
INDÍGENAS NO BRASIL
Jorge Eremites de Oliveira

CAPÍTULO 2
DAS TAPERAS DOS ÍNDIOS ANTIGOS AOS SÍTIOS: APROPRIAÇÕES 76
DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO ENTRE OS TREMEMBÉS DE
25
ALMOFALA (CEARÁ)
Jóina Freitas Borges
Sebastião Ovildo dos Santos
José Getúlio dos Santos

CAPÍTULO 3
PARQUE NACIONAL SERRA DA CAPIVARA E COMUNIDADE LOCAL: 96
EDUCAÇÃO, VALORIZAÇÃO, FRUIÇÃO SOCIAL E PERSPECTIVAS
FUTURAS – O CASO DO MUNICÍPIO DE CORONEL JOSÉ DIAS (PI)
Marian Helen da Silva Gomes Rodrigues

CAPÍTULO 4
ARQUEOLOGIA PÚBLICA E PATRIMÔNIO NAS ESTEARIAS: 123
DIÁLOGO ENTRE A CIÊNCIA, A COMUNIDADE E A ESCOLA
Alexandre Guida Navarro
João Costa Gouveia Neto
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

CAPÍTULO 5
OS VALORES CULTURAIS E ESPIRITUAIS NA GESTÃO DE ÁREAS 146
PROTEGIDAS: ENFOQUES E OLHARES SOB A PERSPECTIVA
AMBIENTAL
Isabela Barbosa Frederico

CAPÍTULO 6
EM BUSCA DO PATRIMÔNIO CULTURAL (IN)VISÍVEL: O CABOCLO 167
DA REGIÃO DO CONTESTADO
Carlos dos Passos Paulo Matias
Delmir José Valentini
Juliano Bitencourt Campos

CAPÍTULO 7
A PRESERVAÇÃO CULTURAL COMO CAMPO DE PESQUISA 191
Tobias Vilhena de Moraes

CAPÍTULO 8
26
COMUNICANDO A ARQUEOLOGIA: DISCUTINDO O PAPEL DA 208
SOCIEDADE DE ARQUEOLOGIA BRASILEIRA
Glória Tega
Flávio Calippo
Marcia Bezerra

CAPÍTULO 9
A VARIÁVEL ARQUEOLÓGICA NO LICENCIAMENTO AMBIENTAL 226
Inês Virgínia Prado Soares

ÍNDICE ONOMÁSTICO
264
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

APRESENTAÇÃO
ARQUEOLOGIA PÚBLICA: DIÁLOGOS SOBRE
EXPERIÊNCIAS E PRÁTICAS NO BRASIL

Dra. Renata Senna Garraffoni


Professora do Departamento de História da Universidade Federal do
Paraná (DEHIS/UFPR)

Barbara Little (2007), ao se questionar sobre as razões pelas quais o


passado importa, apresenta uma discussão ética e política instigante, uma vez
que, já no início do livro, declara-se contra os usos que sustentam exclusiva-
mente o poder, além de defender que a Arqueologia pode e deve questionar
esse pressuposto. Se o passado é fundamental para a vida moderna e nossa
27 relação com ele molda sensibilidades e identidades, posicionar-se criticamente
é indispensável quando se defendem princípios democráticos ou se ressigni-
ficam momentos históricos traumáticos. Seria exatamente nesse ponto que a
Arqueologia Pública deveria se centrar, na mediação ética das relações entre
passado e presente. Para Little (2007), praticar a Arqueologia Pública, portanto,
é um posicionamento político diante do trabalho com a cultura material, ou
seja, é um processo de engajamento entre arqueólogos e comunidade, envol-
vendo um sentido mais amplo de responsabilidade e justiça social no contexto
profissional.
Essa reflexão aponta para o fato de que cada vez mais se torna impres-
cindível avaliar como estudamos e comemoramos o passado, o que entende-
mos por patrimônio e memória. Se, por um lado, Little afirma que é preciso ter
clareza teórico-metodológica sobre como abordamos e preservamos o passado,
por outro, ela defende a importância da comunicação. Para que a relação entre
arqueólogos e comunidade seja ética e fundamentada no respeito mútuo, pen-
sar a educação patrimonial como um meio de diálogo é fundamental para a pro-
dução de novas formas de narrar o passado. Passamos a lidar, então, com uma
série de questões que norteiam as reflexões e ações: como lidar com passados
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

difíceis? Como lidar com culturas de guerra, com processos de colonização?


Como praticar justiça social? Perguntas como essas são complexas, e as inúme-
ras respostas possíveis provocam transformações nos membros das comunida-
des e nos profissionais que lidam com a cultura material, por isso podem ser
entendidas como ferramentas de empoderamento e de lutas por direitos e re-
conhecimento social. Estamos, portanto, diante dos desafios da multiplicidade
das visões sobre o passado, que indicam silêncios e ambiguidades dos discursos.
Nesse sentido evocado por Little, a Arqueologia Pública pode ser en-
tendida como um risco. Penso risco, aqui, no sentido filosófico, proposto por
Duarte (2010), de formulação de propostas críticas que permitam o surgimen-
to de um pensamento inquieto, desprovido dos fundamentos normativos,
mas aberto às transformações do mundo, aos moldes propostos por Arendt e
Foucault. Refletir sobre passado e presente, nessa perspectiva, evita, segundo
Duarte (2010), a busca de um tempo pretérito idílico ou de um futuro pessimis-
ta, bem como propõe enfrentamentos aos silêncios e promove resistências e
abertura para o novo.
A reflexão crítica possibilita a produção de conhecimento na sua mul-
28 tiplicidade, desestabiliza certezas e amplifica as capacidades de ação humana.
Por isso inspira e desafia. No caso do Brasil, a Arqueologia Pública, entendi-
da como um fazer ético-político, é relativamente recente. Segundo Funari e
Bezerra (2013), ela teria em torno de quinze anos de prática. No entanto, os
autores, ao se referirem às origens dessa forma de percepção do fazer arqueo-
lógico na América Latina, afirmam que, na década de 1970, Venezuela, México,
Peru e alguns países do Caribe criaram o conceito de Arqueologia Social Latino-
Americana. Tamanini (2013), nesse sentido, destaca, no Brasil, as reflexões de
Freire. Enquanto as experiências dos primeiros abriram a discussão sobre a im-
portância de a Arqueologia alcançar diferentes públicos (cientistas sociais, es-
colas, universidades, mídia em geral), colocando a América Latina em lugar de
destaque na crítica ao discurso científico, Freire, no Brasil, foi fundamental para
pensar sobre o papel do conhecimento e sobre a responsabilidade social do
educador. Essas ideias e práticas, espalhadas pela América Latina nas décadas
de 1960, 1970 e 1980, foram fundamentais para o desenvolvimento de uma
educação patrimonial que focasse na dimensão compartilhada do saber.
As experiências mencionadas propiciaram uma relação de abertura
das perspectivas da crítica ao status quo e permearam o desenvolvimento da
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

Arqueologia Pública no Brasil. Ao longo desses últimos quinze anos, mesmo


que ainda haja resistência por parte dos arqueólogos, como apontaram Funari
e Bezerra no trabalho já mencionado, os avanços na área são notáveis. Ao focar
nos sentidos críticos e libertadores que o trabalho com a cultura material pode
proporcionar, várias experiências realizadas no país têm indicado como a rela-
ção entre comunidade e academia pode promover políticas de inclusão social,
pautadas nos direitos humanos, resultando em formas compartilhadas de ges-
tão de patrimônio. É exatamente nesse contexto que se encontra a obra que os
leitores têm em mãos.
A Multivocalidade da Arqueologia Pública no Brasil: Comunidades,
Práticas e Direitos, obra organizada por Juliano Bitencourt Campos, Marian
Helen da Silva Gomes Rodrigues e Pedro Paulo Abreu Funari, traz nove capítu-
los e um panorama sobre diferentes perspectivas e projetos recentes no país.
Jorge Eremites de Oliveira inicia o livro com uma discussão sobre arqueologia,
identidade étnica e direitos territoriais, fazendo um balanço das relações entre
academia e comunidade. Na sequência, Jóina Freitas Borges, Sebastião Ovildo
dos Santos e José Getúlio dos Santos apresentam outra faceta das questões
indígenas: partindo de conceitos da antropologia cultural, os autores discutem
29
sobre patrimônio e suas formas subjetivas de apropriação. Ao analisarem a re-
lação dos Tremembés de Almofala com o sítio arqueológico, apresentam as múl-
tiplas formas de relação entre elementos materiais e imateriais na constituição
de uma visão de mundo sobre passado e presente da comunidade.
Marian Helen da Silva Gomes Rodrigues, por sua vez, analisa as com-
plexas relações dos moradores de Coronel José Dias e o sítio arqueológico da
Serra da Capivara, propondo inspiradoras alternativas para a educação patri-
monial. As ações realizadas e, posteriormente, analisadas abrem caminhos para
discutir a percepção da comunidade dos programas educativos e como sua par-
ticipação é importante para o equilíbrio e a sustentabilidade local. Alexandre
Guida Navarro e João Costa Gouveia Neto, ao continuarem as reflexões sobre
a relação entre comunidade e arqueologia, apresentam suas experiências no
Maranhão. Ao articularem atividades com estudantes universitários e do ensino
médio, os autores discutem sobre a importância de projetos de inclusão social
para a preservação de sítios. Isabela Barbosa Frederico, no entanto, apresenta
uma dimensão menos explorada quando se trata de preservação: a espiritua-
lidade. A partir de um estudo de caso, o Santuário do Caraça, a autora argu-
menta que sustentabilidade e preservação, em determinados contextos, não
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

podem prescindir da ação articulada entre cultura, natureza e espiritualidade.


Sua proposta rompe binarismos e articula diferentes saberes, defendendo a im-
portância do diálogo para a preservação.
Já Carlos dos Passos Paulo Matias, Delmir José Valentini e Juliano
Bitencourt Campos deslocam nossa atenção para o sul do país. Ao partirem da
perspectiva de que o cotidiano vai além das questões materiais, os autores de-
fendem a importância da memória e da oralidade para a reconstrução da re-
sistência cabocla e das suas narrativas sobre a Guerra do Contestado. Em uma
região onde predomina a versão dos vencedores, a conexão entre materiali-
dade e oralidade é fundamental para a pluralidade de visões e de ações sobre
a guerra de fronteiras. Ainda na região sul do país, Tobias Vilhena de Moraes
apresenta análises sobre gestão patrimonial na região das Missões. Ao analisar
projetos de escavação com preocupações voltadas ao público, o autor discute
sobre a importância da arqueologia no processo de proteção e preservação do
patrimônio.
Por fim, os dois últimos capítulos apresentam duas facetas importan-
tes das relações entre arqueologia e comunidade: comunicação e legislação de
30 proteção ao patrimônio. No primeiro caso, Glória Tega, Flávio Calippo e Marcia
Bezerra defendem a importância da divulgação cultural para um maior conhe-
cimento do patrimônio arqueológico brasileiro. Por meio de ações da área de
comunicação da SAB (Sociedade Brasileira de Arqueologia) para inovar o diálogo
com a comunidade acadêmica e extra-acadêmica, os autores argumentam que
engajamento político e divulgação são facetas basilares da preservação. Já Inês
Virgínia Prado Soares, no campo do direito, traz uma discussão atual sobre pro-
teção de patrimônio submetido ao licenciamento ambiental. A autora encerra
o livro analisando a legislação brasileira e reforçando a necessidade de diálogo
com a administração pública para rever problemas de fiscalização e criar políti-
cas para evitar danos ao patrimônio.
Esses capítulos reunidos na obra dão uma dimensão dos impactos das
práticas da Arqueologia Pública pelo país. Com estudos de caso de diferentes
regiões, discussões sobre legislação e formas de comunicação com a sociedade,
o livro proporciona um panorama de práticas e experiências que questionam a
noção tradicional de arqueologia e desafia a pensar no plural. Mesmo com as
dificuldades que possam surgir, discussões críticas sobre a quem se destina a
preservação patrimonial, a cultura material e imaterial ajudam a construir for-
mas alternativas de gestão, e, mais do que isso, o trabalho conjunto cria novos
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

sentidos e percepções, proporciona narrativas mais plurais do passado e ações


mais democráticas no presente. Cada texto, portanto, combina elementos éti-
co-políticos que nos instigam a pensar a potencialidade do trabalho coletivo na
construção de novas políticas de preservação de patrimônio e, por isso, é uma
leitura imprescindível.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DUARTE, A. M. Vidas em risco: crítica presente em Heidegger, Arendt e Foucault.


Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
FUNARI, P. P. A.; BEZERRA, M. Arqueologia Pública na América Latina. In:
MACHADO, G.; SOUZA, F. C. A.; STEINBACH, J. (Orgs.). Educação Patrimonial e
Arqueologia Pública. Joinville: Casa Aberta Editora, 2013, p. 75-100.
LITTLE, B. J. Historical Archaeology: why the past matters. Walnut Creek: Left
Coast Press, 2007.
TAMANINI, E. Educação em Museus como anúncio e resistência popular: o
31 desafio da construção de política pública. In: MACHADO, G.; SOUZA, F. C. A.;
STEINBACH, J. (Orgs.). Educação Patrimonial e Arqueologia Pública. Joinville:
Casa Aberta Editora, 2013, p. 07-17.
CAP. 1
A MULTIVOCALIDADE DA REVISITANDO UMA DISCUSSÃO SOBRE
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: ARQUEOLOGIA, IDENTIDADE ÉTNICA E DIREITOS
Comunidades, práticas e direitos TERRITORIAIS DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL

CAPÍTULO 1
REVISITANDO UMA DISCUSSÃO SOBRE
ARQUEOLOGIA, IDENTIDADE ÉTNICA E
DIREITOS TERRITORIAIS DOS POVOS
INDÍGENAS NO BRASIL

32

DOI: http://dx.doi.org/10.18616/arq01

Jorge Eremites de Oliveira

SUMÁRIO
CAP. 1
A MULTIVOCALIDADE DA REVISITANDO UMA DISCUSSÃO SOBRE
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: ARQUEOLOGIA, IDENTIDADE ÉTNICA E DIREITOS
Comunidades, práticas e direitos TERRITORIAIS DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL

Até fins do século XX, discussões a respeito das relações entre arqueo-
logia, identidade étnica e direitos territoriais dos povos indígenas eram escassas
no Brasil. À época, prevalecia a ideia de que a maioria dos arqueólogos estuda-
ria os “índios mortos”, ao passo que etnólogos, linguistas e outros profissionais
trabalhariam com os “índios vivos”. Essa dicotomia simplifica questões episte-
mológicas demasiadamente complexas, minimiza a responsabilidade social e
a ética na prática arqueológica e, consequentemente, favorece um processo
de alienação em relação à situação histórica dos povos originários no tempo
presente. Chama ainda a atenção para a colonialidade que caracteriza o pro-
cesso de institucionalização do campo da arqueologia no Ocidente, verificado
especialmente a partir do século XIX, sob a égide de percepções eurocêntricas,
evolucionistas e nacionalistas acerca do mundo e da humanidade. Soma-se a
isso uma grande influência da presença dos Estados-nações e do colonialismo
interno característico de cada país. Nesse contexto mais amplo está situada a
legislação brasileira, voltada ao reconhecimento, à proteção, ao estudo e ao
uso do patrimônio arqueológico, concebida em desconsideração aos sistemas
jurídicos originários, o que dificulta a prevalência de um pluralismo jurídico para
tratar do assunto. Esse é o caso, apenas para exemplificar, da ideia de que o
33 patrimônio arqueológico relativo ao passado dos povos indígenas é um bem
estatal e, como tal, deve permanecer sob a tutela de órgãos governamentais,
bem como de pessoas e instituições por eles autorizadas.
Posteriormente, a partir de meados do século XXI, devido a um conjun-
to de fatores que favoreceu o crescimento quantitativo e qualitativo do campo
da arqueologia, o cenário apresentado começou a mudar. Essa transformação,
acompanhada de novos desafios, dilemas e perspectivas, impulsionou o surgi-
mento de brisas descolonizantes, que passaram a soprar em muitas direções.
Por conseguinte, assuntos relativos aos interesses e aos direitos dos povos in-
dígenas se tornaram recorrentes na prática de alguns arqueólogos, como veri-
ficado nos trabalhos de Pereira da Silva (2014 [2007]), Bespalez (2009, 2014),
Stuchi (2010) e Wanderley (2016 [2013]), dentre outros. Tais estudos foram ori-
ginalmente apresentados para a conclusão de cursos de pós-graduação stricto
sensu e remetem, portanto, ao papel da academia na promoção de mudanças
de nuance e a eventuais viradas ontológicas na arqueologia e em outras ciências
sociais.
Com o propósito de trazer essa discussão para um estudo de caso
localizado no Brasil profundo, apresento a análise revisitada sobre uma situa-
CAP. 1
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ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: ARQUEOLOGIA, IDENTIDADE ÉTNICA E DIREITOS
Comunidades, práticas e direitos TERRITORIAIS DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL

ção pontual observada em Mato Grosso do Sul, qual seja: a existência de uma
perícia arqueológica feita em 2000 para a Justiça Federal, na qual problemas
relativos à associação direta entre cultura material e identidade étnica reme-
tem a questões que superam os debates acadêmicos intramuros. Trata-se, es-
pecificamente, do laudo judicial elaborado por um conhecido arqueólogo sobre
a Terra Indígena Sucuri’y, uma das áreas de onde famílias indígenas foram ex-
pulsas na segunda metade do século XX, embora algumas tenham retornado
ao lugar no âmbito do movimento Guarani e Kaiowá de retomada de parte de
seus territórios tradicionais no Estado, chamados tekoha. Esta área fica locali-
zada no município de Maracaju, na bacia hidrográfica do rio Paraná, em uma
zona inserida no bioma Cerrado, que tem influências do bioma Mata Atlântica.
Configura-se como um espaço afetado pela expansão de frentes econômicas da
sociedade nacional, especialmente por meio do desmatamento para posterior
desenvolvimento de atividades agropecuárias. Foi identificada e delimitada em
1996 e possui uma extensão de 535 hectares. Quando este trabalho foi finaliza-
do e entregue para publicação, em fins de 2016, encontrava-se em processo de
regularização junto ao Estado brasileiro. Até então, a comunidade permanecia
dentro da área enquanto aguardava o desfecho de um processo judicial em que
34 ruralistas disputavam com os Kaiowá a posse da terra. À época, ao consultar um
servidor da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), em Dourados, sobre a popu-
lação local, fui informado de que a comunidade era constituída por umas 320
pessoas, distribuídas em cerca de 90 famílias.
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Mapa 1 – Mapa com a localização da Terra Indígena Sucuri’y no contexto dos biomas pre-
dominantes no Brasil

Observação: Nesta representação cartográfica é possível observar que a área está situada
no Cerrado, próximo da Mata Atlântica, isto é, em uma espécie de zona de transição ou
ecótono entre os dois biomas.
35
Mapa 2 – Mapa com a localização da Terra Indígena Sucuri’y no contexto das terras indíge-
nas regulamentadas ou em processo de regulamentação no Brasil

Observação: Nota-se que as maiores áreas estão localizadas na região amazônica, realida-
de essa que corrobora a tese de que há poucas terras para muitos índios em Mato Grosso
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do Sul, estado onde está a segunda maior população indígena no país, estimada no censo
de 2010 em mais de 73.000 pessoas. Verifica-se, ainda, que fora da Amazônia as terras
indígenas são menores, muitas delas bastante diminutas e insuficientes para a reprodução
física e cultural das comunidades. Essa realidade atesta a existência, no âmbito da política
indigenista oficial, de diferentes critérios para a identificação e a delimitação de terras tradi-
cionalmente ocupadas por comunidades indígenas no país, a exemplo do que ocorre no Sul
e em parte do Centro-Oeste.

Mapa 3 – Mapa com a localização do município de Maracaju e da Terra Indígena Sucuri’y, no


qual também aparecem duas áreas tradicionalmente ocupadas por comunidades Terena, a
Terra Indígena Buriti e a Terra Indígena Nioaque

36
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Mapa 4 – Mapa com a localização da Terra Indígena Sucuri’y

Observação: Nota-se na imagem de satélite inserida na representação cartográfica o des-


matamento feito no contexto da expansão das frentes econômicas da sociedade nacional
no município de Maracaju, motivo de impactos socioambientais negativos sobre o território
37 Kaiowá na região.

Faz-se necessário explicar que, nos anos de 1990 e 2000, laudos ar-
queológicos judiciais foram feitos pelo referido profissional para a Justiça
Federal no estado, mas a maior parte desses trabalhos permanece desconhe-
cida pelo grande público. Chamam a atenção para um tipo de estudo técnico-
-científico que exige expertise em antropologia social, embora, para a época,
talvez esse pré-requisito não fosse tão claro assim para alguns magistrados. Isso
resultou na determinação da produção de laudos periciais em que a chamada
arqueologia pré-histórica aparece distante e desconexa em relação à etnologia
indígena, com repercussões negativas no que se refere ao esclarecimento dos
fatos sobre terras tradicionalmente ocupadas, conforme estabelece o Art. 231
da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988).
Antes de apresentar o estudo realizado, cumpre ainda esclarecer que
no período de 2003 a 2012 participei, ora como arqueólogo, ora como antropó-
logo social, da produção de dois tipos de laudos que envolveram comunidades
indígenas no Centro-Oeste. O primeiro diz respeito à elaboração de dois laudos
periciais e um laudo administrativo sobre terras indígenas. O segundo tem a ver
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com a realização de estudos complementares de relatórios sobre impactos so-


cioambientais de empreendimentos que afetam comunidades estabelecidas em
áreas regularizadas ou em processo de regularização. De todas essas experiên-
cias, a participação na produção do laudo pericial de natureza antropológica, ar-
queológica e histórica sobre a Terra Indígena Buriti, localizada nos municípios de
Sidrolândia e Dois Irmãos do Buriti, em Mato Grosso do Sul, foi a mais relevante
no que se refere à prática etnográfica em ambientes colonialistas (EREMITES
DE OLIVEIRA e PEREIRA, 2010). Trata-se de um trabalho realizado em 2003 a
respeito de uma área tradicionalmente ocupada por uma comunidade Terena,
cuja população, em 2013, era de aproximadamente 2.500 pessoas (EREMITES
DE OLIVEIRA; PEREIRA, 2007, 2011 [2003]; EREMITES DE OLIVEIRA, 2011). O
laudo foi alvo de duras críticas apresentadas em um tipo de contralaudo de
16 páginas repleto de inconsistências e impropriedades, uma espécie de junk
science, cujo propósito maior era construir a “verdade” que interessava aos pa-
trões ou aos contratantes, conforme analisado em outra publicação (ALMEIDA,
2015; EREMITES DE OLIVEIRA, 2015a)1.
No começo de 2005, ciente de que havia participado da produção do
laudo pericial sobre a Terra Indígena Buriti, o Ministério Público Federal, em
38
Dourados, solicitou-me um parecer sobre a referida perícia arqueológica a res-
peito da Terra Indígena Sucuri’y. O laudo analisado tinha sido elaborado pelo
mesmo arqueólogo que, em 2003, tinha produzido o contralaudo citado ante-
riormente, cujos resultados eram análogos, pois afirmaram que as áreas não
seriam terras tradicionalmente ocupadas por comunidade indígena. Foi exata-
mente desse parecer que resultou a primeira versão deste trabalho, inicialmen-
te apresentada durante o VIII Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira,
realizado no ano de 2005 na cidade de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Na
ocasião, estiveram presentes arqueólogos, antropólogos sociais e uma liderança
Kaiowá para debaterem o assunto, mas a maioria dos participantes do evento
demostrou pouco interesse pela temática. Algum tempo depois, a referida li-

1
Contralaudos podem ser produzidos ou não por assistentes técnicos, mas, via de regra, são feitos
por pessoas contratadas como experts pelas partes envolvidas em litígios judiciais, especialmente as
que são contrárias aos interesses das comunidades indígenas. São trabalhos feitos por técnicos que
são parciais, porque estão ligados à defesa das partes que representam, as quais contrataram o seu
serviço. Apenas os experts do Juízo são peritos, auxiliares do magistrado, aqueles que devem atuar
com imparcialidade, algo que deve ser atestado pelo rigor científico empregado na produção do laudo
judicial (EREMITES DE OLIVEIRA, 2012a; EREMITES DE OLIVEIRA e PEREIRA, 2009, 2010, 2011; BECKER,
SOUZA e EREMITES DE OLIVEIRA, 2013).
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derança Kaiowá se tornou um dos mais importantes indígenas antropólogos do


país, o professor Tonico Benites.
Em suma, a análise crítica que ora (re)apresento parte de um lócus
diferenciado e até certo ponto distante dos debates arqueológicos desprovidos
de uma prática etnográfica vis-à-vis, simétrica e descolonizante com o Outro.
Refiro-me ao ambiente colonialista verificado em Mato Grosso do Sul e em ou-
tras partes do Centro-Oeste, de onde passei a refletir sobre certos temas po-
lêmicos, que emergem na arqueologia e em outros campos do conhecimento
científico.

O PASSADO ARQUEOLÓGICO E A IDENTIDADE


ÉTNICA NO PRESENTE ETNOGRÁFICO

Ao longo da história da arqueologia brasileira, notadamente a partir


dos anos de 1960, a associação direta entre a cultura material de populações
indígenas do período anterior à invasão europeia, aqui chamado pré-colonial,
com povos conhecidos etnograficamente, tem sido muito comum e, até certo
39
ponto, naturalizada. Salvo melhor juízo, essa tendência foi acentuada por causa
de influências teórico-metodológicas difundidas a partir do Programa Nacional
de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA), desenvolvido entre 1965 e 1970, sob
a coordenação de Betty J. Meggers e Clifford Evans. Daquela época em diante,
muitos trabalhos passaram a ser pensados a partir de orientações que conju-
gam abordagens histórico-culturais com técnicas, métodos e teorias, difundidos
posteriormente no país, a contar da década de 1980. Exemplo disso são os tra-
balhos produzidos sob inspiração da arqueologia processual e da arqueologia
pós-processual, dentre outras orientações. Em todos os casos, o método com-
parativo tem sido recorrido de maneira deliberada para interpretar processos
de ocupação e expansão territorial em contextos espaço-temporais bastante
amplos. Parte dos estudos que assumiram essa perspectiva busca a sistemati-
zação de uma gama considerável de dados empíricos, em geral na tentativa de
produzir sínteses regionais, rever certos paradigmas e propor novos modelos
interpretativos. Para esse propósito, o diálogo interdisciplinar tem sido bastante
profícuo, como, aliás, caracteriza a disciplina desde suas origens. Reporto-me
ao uso da arqueologia como forma de perceber a história indígena na longa
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duração e ao profícuo diálogo com a etnologia e a etno-história, dentre outros


campos do conhecimento científico.
Importa ressaltar que tais estudos precisam ser analisados no contexto
de sua época, o que requer a verificação das relações existentes entre autoria,
obra e meio social. Entendo que um dos principais problemas verificados em
certos trabalhos reside, exatamente, na naturalização da associação direta entre
tecnologias ceramistas com populações identificadas a partir de registros tex-
tuais incompletos, produzidos no contexto do encontro colonial e das situações
históricas dele decorrentes. O caso mais conhecido está ligado à interpretação
da trajetória de povos vinculados ao tronco linguístico tupi, à família linguística
tupi-guarani (com hífen) e à língua guarani, aos quais é atribuída uma identida-
de genérica de “Guarani”. Em situações desse tipo, certa tecnologia ceramista,
denominada na arqueologia brasileira de Tradição Tupiguarani (sem hífen), tem
sido diretamente associada a populações falantes do idioma guarani2. A partir
desses dois elementos (tradição tecnológica ceramista e língua indígena), mui-
tos arqueólogos frequentemente identificam, classificam e nominam, de um
ponto de vista etic (autoridade científica) e não emic (percepção nativa), vá-
rias populações como “Guarani”. No entanto, sabe-se que, na atualidade, ape-
40
nas um povo se autoidentifica dessa maneira: os Guarani que vivem em Mato
Grosso do Sul e em outras partes do país, mencionados na literatura etnológica
pelo apelativo de “Ñandeva” (ñande = nós, todos nós; ava = gente, homem, ser
humano), também conhecidos no Paraguai como Ava Guarani e Chiripá.
Associações desse tipo são sedutoras, embora não sejam tão simples
assim. Muitas vezes, são recorridas para a produção e a divulgação de conheci-
mentos científicos ao grande público, como verificado em livros didáticos e pa-
radidáticos publicados desde os anos de 1990. Dessa maneira, podem contribuir

2
O termo Tupi-Guarani, grafado com hífen, refere-se a uma família linguística. Valendo-se da analogia
direta, uma tradição tecnológica ceramista foi definida com o mesmo nome durante o PRONAPA, po-
rém grafado sem hífen (Tupiguarani) para evitar o inevitável: a confusão entre tradição arqueológica,
família linguística e identidade étnica na longa duração. Essa ambiguidade contradiz convenções então
em voga na arqueologia histórico-cultural, as quais apontam para a nominação de padrões tecnoló-
gicos a partir do nome do lugar onde estão localizados os primeiros sítios arqueológicos estudados,
como verificado em Willey e Phillips (1958). Exemplo: tradição Taquara (ou Taquara-Itararé), tradição
Vieira, tradição Pantanal etc. Isso não significa, que se faça bem entendido, que as nomenclaturas es-
tabelecidas para tradições tecnológicas correspondem a apelativos ou etnônimos de povos indígenas.
Logo, seria equivocado falar em “os Taquara”, “os Vieira”, “os Pantanal” e assim por diante. A mesma
regra também e válida para indústrias líticas conhecidas na arqueologia europeia para o período pa-
leolítico: Acheulense, Magdalenense, Musteriense etc.
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para o rompimento com visões eurocêntricas e evolucionistas sobre a história


dos seres humanos no continente. Aponto, para ser mais específico, a necessi-
dade de superação do termo “pré-história” por uma forma descolonial de con-
ceber a trajetória dos antigos ameríndios. Nessa direção está uma arqueologia
percebida como o estudo dos povos originários das Américas, também conheci-
dos genericamente como indígenas, primeiras nações, etnias nativas etc. A par-
tir daí, é possível pensar em uma arqueologia indígena para além dos conceitos
e neologismos que costumamos importar de outras latitudes. Essa perspectiva
também abrange, obviamente, uma arqueologia com, para e pelos indígenas,
mas não se restringe a isso. Chama para a arqueologia a responsabilidade de ser
um campo do conhecimento que, por excelência, é capaz de produzir história
indígena em seu sentido mais amplo, quer dizer, desde a chegada dos primei-
ros humanos ao continente americano, em temporalidades pleistocênicas, até
os povos e comunidades nativas no tempo presente (EREMITES DE OLIVEIRA,
2002, 2003b, 2005, 2012b; ALVES DA SILVA e EREMITES DE OLIVEIRA, 2005).
Ciente de que o termo “índio” é uma categoria colonial, inventada pe-
los europeus para nominar os nativos das Américas, importa registrar que cada
povo possui um etnônimo próprio e, portanto, diferentes culturas e historici-
41
dades. Mesmo assim, o sentimento de indianidade faz com que se percebam
como parentes uns dos outros, isto é, como povos originários, cujos antepassa-
dos aqui chegaram antes dos primeiros invasores cruzarem o Atlântico em suas
caravelas.
A partir dessa perspectiva, o passado arqueológico deixa de ser for-
malmente estudado de maneira descontínua em relação ao presente etnográ-
fico dos povos originários. Essa seria uma forma de ruptura com a dicotomia
entre história (tempo com escrita) e pré-história (tempo sem escrita), conforme
institucionalizado nos anos de 1850 (TRIGGER, 2004). Logo em seguida, o termo
“pré-história” foi naturalizado nas Américas como forma de relegar os indígenas
a uma suposta era, fase, idade ou etapa de selvageria, barbárie e primitivismo,
em que as culturas humanas permaneceriam estáticas ou fossilizadas por longos
períodos. Somente com as luzes trazidas do encontro colonial, a partir de fins
do século XV e meados do XVI, é que as populações originárias teriam saído das
“trevas” da pré-história e alcançado as “luzes” da história, isto é, o tempo linear
e eurocêntrico da civilização e do progresso material. Nada mais equivocado!
Em que pese defender certa ideia de arqueologia como história indí-
gena, tenho constatado a existência de trabalhos em que situações históricas
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e mudanças socioculturais decorrentes dos contatos interétnicos, registrados


no contexto do encontro colonial, têm sido pouco enfatizadas ou praticamente
ignoradas. Acontece que o foco maior desses estudos está nas continuidades
socioculturais, geralmente percebidas a partir de tecnologias ceramistas. As
análises são baseadas, portanto, em leituras essencialistas, sincrônicas e homo-
geneizantes de dados arqueológicos, etnográficos, linguísticos e etno-históricos.
Por esse motivo, insisto no argumento de que a arqueologia brasileira carece
de estudos realizados a partir de uma prática etnográfica vis-à-vis com e para
comunidades indígenas. Uma prática desse nível pode ser chamada por muitos
neologismos (colaborativa, simétrica, comunitária, multivocal, pública etc.) e, às
vezes, até simplificada do ponto de vista metodológico. Contudo, o fato é que
serve como forma de descolonizar a disciplina e incluir outros sujeitos e saberes
nos estudos arqueológicos, os quais devem estar sintonizados com os interes-
ses das comunidades com as quais trabalhamos. Nessa direção é que defendo
uma arqueologia indígena como forma de suplantar o termo “arqueologia pré-
-histórica” nas Américas, inclusive no currículo dos cursos de graduação e dos
programas de pós-graduação destinados à formação de arqueólogos no Brasil.
Um dos maiores estímulos à realização de analogias entre o passado
42
arqueológico e o presente etnográfico parte da tese de doutorado de Brochado
(1984), dentre outros estudos de sua autoria. Este trabalho foi apropriadamen-
te considerado por Funari, Neves e Padgomy (1999, p. 1) como a “síntese mais
genial” já feita por um arqueólogo brasileiro. Infelizmente, a tese ainda não foi
integralmente traduzida para o português e publicada sob forma de livro. O ar-
queólogo assim afirmou em uma célebre frase bastante conhecida e reproduzi-
da por muitos de nós:

Portanto, a primeira coisa que considerei aqui é que a arqueo-


logia do leste da América do Sul deve ser vista como a pré-his-
tória das populações indígenas históricas e atuais. Se não forem
estabelecidas relações entre as manifestações arqueológicas e
as populações que as produziram, o mais importante terá se
perdido. Assim as conotações etnográficas das tradições e esti-
los cerâmicos não devem ser evitadas, mas, pelo contrário, de-
liberadamente perseguidas. (BROCHADO, 1984, p. 565).

Sua proposta é inspiradora sob muitos aspectos. Ela remete à ideia de


uma arqueologia como forma de perceber a história indígena e não desestimula
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a realização de pesquisas com os povos originários, pelo contrário. Brochado,


aliás, segue e seguirá como uma inspiração a muitos de nós, especialmente às
pessoas que, como eu, tiveram a oportunidade de ter aulas com ele durante a
formação pós-graduada. Nessa linha de argumentação, a trajetória das popula-
ções indígenas pré-coloniais, portadoras de tecnologias ceramistas devidamen-
te identificadas na arqueologia, teria uma continuidade histórica e cultural em
tempos coloniais e até mesmo no tempo presente. Sem levar em conta esse
paradigma, o mais importante terá se perdido, ou seja: 1) a possibilidade de um
profícuo diálogo entre arqueologia, etnologia e etno-história, não apenas para
apontar continuidades ou permanências, mas também descontinuidades e mu-
danças socioculturais decorrentes do encontro colonial; 2) as vantagens de se
ter um corpus de dados etnográficos e etno-históricos para a formulação de mo-
delos arqueológicos relevantes para a interpretação do passado pré-colonial. Na
opinião do arqueólogo, as analogias (diretas e indiretas) entre povos indígenas
atuais e as tradições e os estilos cerâmicos pretéritos devem ser, portanto, deli-
beradamente perseguidos.
A sofisticada construção teórica de Brochado (1984) tem sido utilizada,
dentre outras coisas, para explicar rotas de deslocamento e expansão territorial
43
de populações linguisticamente filiadas ao tronco tupi e à família tupi-guarani.
Esses coletivos, na condição de agricultores e ceramistas, ao menos a maioria,
teriam partido da Amazônia para ocupar outras áreas mais ao sul e a leste da
América do Sul. A partir de estudos dessa natureza, trajetórias milenares dos
povos originários têm sido revistas e reconstituídas por arqueólogos, muitas ve-
zes na tentativa de repensar a tradição Tupiguarani e edificar uma arqueologia
“Guarani” ou “Tupi” ou “Tupi-Guarani” na América do Sul. À época em que a
primeira versão do presente trabalho foi publicada, em 2007, havia uma biblio-
grafia básica e uma discussão muito interessante sobre o assunto (LA SALVIA e
BROCHADO, 1989; NOELLI, 1993, 2000; NOELLI, VIVEIROS DE CASTRO e URBAN,
1996; SOARES, 1997, 2003; TENÓRIO, 1999; NEVES, 2000; FUNARI e NOELLI,
2002; SCHIAVETTO, 2003; etc.). De lá para cá, as publicações têm aumentado
significativamente, ano após ano, especialmente em termos de dissertações de
mestrado, teses de doutorado e coletâneas, como verificado no recente livro
organizado por Milheira e Wagner (2014).
Em linhas gerais, entendo que o maior problema da proposta de
Brochado (1984) talvez esteja no estímulo ao uso deliberado de analogias en-
tre tecnologias ceramistas do passado pré-colonial e povos indígenas conheci-
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dos na literatura etnológica e etno-histórica. A situação é mais bem observada


na vinculação da tradição ceramista Tupiguarani, assim definida no âmbito do
PRONAPA, do qual fez parte e atuou de maneira positiva, com povos da família
linguista tupi-guarani. Nesse caso em particular, língua e cerâmica são aponta-
das como elementos que identificariam populações indígenas de língua gua-
rani nas terras baixas da América do Sul. O paradigma apresentado é datado,
sabemos, e por isso mesmo desconsidera a autoidentificação dos povos indí-
genas e o fato deles possuírem diferentes formas de organização social da cul-
tura. Também não problematiza os apelativos atribuídos a diferentes coletivos,
cunhados em situações históricas particulares, bem como o fato de artefatos
líticos e cerâmicos não serem indicadores objetivos de etnicidade. Portanto, cul-
mina por creditar aos arqueólogos uma autoridade científica para identificar,
classificar e nominar coisas e pessoas sem uma prática etnográfica vis-à-vis e
simétrica com o Outro. Essas ponderações devem ser observadas em atenção
à teoria da etnicidade, principalmente se levados em conta os aportes de Barth
(1998 [1969]), Jones (1997) e outros autores, acrescidos dos debates em torno
do reconhecimento étnico no Brasil, como discutido por Pacheco de Oliveira
(1998a, 1998b, 1999). Por outro lado, o conjunto da obra de Brochado não se
44 limita à sua tese de doutorado, tampouco todas as suas ideias estão ali registra-
das. Recordo-me de suas aulas no curso de mestrado em História/Arqueologia
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), nos anos de
1992 e 1993, quando estimulava a todos nós, à época jovens arqueólogos, à
realização de pesquisas nas comunidades indígenas. Isso seria, assim entendo,
um dos desafios que muitos de nós, seus ex-alunos, deveríamos ter assumido
na arqueologia brasileira.
A título de exemplo, entendo que uma comunidade linguisticamente
aruák, como a Terena de Lalima, pode se identificar com a indústria ceramista
encontrada em sítios arqueológicos existentes em seu território, mas que em
tese corresponderia a uma antiga população linguisticamente guaikuru, como
verificado por Bespalez (2009, 2014). Em casos assim, vale compreender as si-
tuações históricas regionais e o sentido tradicional que dada cultura material
possui para as comunidades no tempo presente, especialmente no contexto de
processos de territorialização, reivindicação de direitos e resistência ao colo-
nialismo interno (ver Santos e Pacheco de Oliveira, 2003; Eremites de Oliveira,
2011, 2012b, 2015a, 2015b, 2016; Eremites de Oliveira e Pereira, 2007, 2009,
2010, 2011; Stuchi, 2010; Wanderley, 2016). Ademais, embora as analogias di-
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retas exerçam certo fascínio sobre nós, sabe-se, ainda, que povos agricultores
e linguisticamente aparentados podem ter distintos estilos ceramistas e alguns,
como os Aché, falantes do idioma guarani no Paraguai, sequer produzirem vasi-
lhas cerâmicas. Questões dessa natureza não devem ser ignoradas para o longo
período que antecede à invasão europeia, tampouco para temporalidades pos-
teriores, mas igualmente consideradas para pensarmos no estudo de uma histó-
ria indígena mais plural em termos de historicidade e diversidade sociocultural.
Exemplo disso reside na possibilidade de estudar a dispersão de elementos da
cultura material, como artefatos cerâmicos e líticos, no âmbito das dinâmicas
plurais e heterogêneas das redes interétnicas de relações sociais, constituídas
no tempo e no espaço.
Para finalizar este item e deslindar eventuais dúvidas que minhas
ideias possam suscitar sobre a associação entre agricultura e cerâmica, passo
a descrever rapidamente parte de uma observação feita em 2008, quando esti-
ve por alguns dias na comunidade Katitaurlu, linguisticamente nambikwara, da
Terra Indígena Sararé, localizada no vale do rio Guaporé, em Mato Grosso. Na
ocasião, após ter registrado a existência de fragmentos cerâmicos nas proximi-
dades de algumas aldeias, perguntei a um ancião se no passado eles produziam
45
vasilhas cerâmicas. Respondeu-me que não. Fiquei curioso, por isso, em segui-
da, eu o indaguei sobre como faziam para preparar alimentos cozidos. Ele olhou
para mim e disse que isso era algo simples. Bastava impermeabilizar um cesto
com cera e depois colocar carnes, vegetais e água dentro do recipiente para, em
seguida, acrescentar algumas pedras aquecidas em fogo e cozinhar a comida.
Apontou o dedo para alguns seixos rolados que havia nas proximidades de sua
casa e assim também o fez para indicar pedras que poderiam servir para esse
propósito. Eis alguns dados etnográficos que podem servir para interpretar as
chamadas pedras termóforas, encontradas em sítios arqueológicos associados
à presença de diversas populações indígenas pretéritas, incluindo as tidas como
“aceramistas” e, portanto, supostamente não agricultoras. Logo, situações aná-
logas podem ter existido entre comunidades linguisticamente tupi-guarani.
O que abordo aqui é sobre a necessidade de aprendermos a fazer et-
nografia, tal qual fazem os antropólogos sociais, porém com o necessário foco
na cultura material. No caso apresentado, ainda estou tratando do uso do mé-
todo comparativo, por meio de analogias indiretas ou relacionais e não, neces-
sariamente, de analogias diretas.
CAP. 1
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MUITOS POVOS SOB UM ÚNICO APELATIVO


GENÉRICO

Uma das questões que mais me intrigava até 2005 diz respeito à atri-
buição de uma identidade “guarani” à cerâmica da tradição Tupiguarani, que
ocorre na região platina, assim como uma identidade homônima, que arqueó-
logos, etnólogos e etno-historiadores sistematicamente atribuem aos Guarani,
Mbyá e Kaiowá. Em Mato Grosso do Sul, torno a registrar, apenas os chama-
dos Ñandeva se autoidentificam como Guarani, conforme discutido por Landa
(2005). Os Kaiowá que vivem no estado, por seu turno, autoidentificam-se por
esse etnônimo e não raramente marcam sua identidade aos mais desavisados
que se referem a eles como Guarani. No Paraguai, por outro lado, eles se au-
todenominariam como Paĩ-Taviterã, segundo consta no conhecido estudo de
Melià, Grünberg e Grünberg (1976, 2008). Não obstante, há muitas semelhan-
ças socioculturais entre esses povos, e as similitudes não sustentam a atribui-
ção, de nossa parte, dessa ou daquela identidade a eles, em desconsideração à
maneira como se percebem em situações relacionais. Talvez a maior dessas se-
46 melhanças esteja no plano cosmológico e religioso, segundo apontam Viveiros
de Castro (1987) e Pereira (2003), do que propriamente na organização social,
na territorialização ou até mesmo na cultura material. Significa dizer que um
povo linguisticamente guarani pode compartilhar de certa cosmologia e religião
sem, necessariamente, ter ou ser portador da tradição tecnológica ceramista
Tupiguarani. O contrário também seria possível, principalmente quando consi-
derada a trajetória dessas populações na longa duração.
Entendo que o termo “Guarani” tem sido usado, desde os tempos
coloniais, para se referir a um povo genérico, “de papel”, assim criticado por
Santos (1999)3. No entanto esse mesmo “Guarani” tem sido de grande utilidade
para a confecção de colchas de retalhos etnográficos, costuradas por meio do
método comparativo para a construção de um “monstro” do tipo Frankenstein,
conforme amiúde aponta Soares (2003). Isso geralmente é feito com o propó-
sito de formular modelos interpretativos globalizantes de longo alcance e am-
biciosos em termos de abrangência espaço-temporal. Para essa tarefa, alguns
3
No citado trabalho, a autora faz algumas apreciações inconsistentes e pouco elegantes em relação à
obra da antropóloga de origem eslovena, Branislava Susnik, ex-diretora do Museu Etnográfico “Andrés
Barbero”, de Assunção, Paraguai, falecida em 1996. Algumas de suas apreciações foram por mim re-
futadas em um ensaio elaborado em 2003 e publicado naquele país (EREMITES DE OLIVEIRA, 2003a).
CAP. 1
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ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: ARQUEOLOGIA, IDENTIDADE ÉTNICA E DIREITOS
Comunidades, práticas e direitos TERRITORIAIS DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL

arqueólogos têm atribuído um incomensurável valor etnográfico às obras do


padre jesuíta Antonio Ruiz de Montoya, produzidas no contexto colonialista do
século XVII4. Às vezes, parece que seus escritos equivaleriam a uma obra clássica
da etnografia no século XX. Acredito que, em alguns casos, as obras de Montoya
não têm merecido a devida apreciação crítica e a necessária relativização, como,
aliás, convém fazer a qualquer fonte textual analisada para a construção de mo-
delos interpretativos nos campos de arqueologia, etnologia e etno-história.
Exemplo disso pode ser observado no uso exagerado que se tem feito
de palavras em guarani para a criação de modelos referentes à subsistência,
ao sistema de assentamentos, ao território, a artefatos e à organização social
de populações que têm, nesse idioma, sua língua originária. Como ocorre en-
tre muitos povos indígenas na América do Sul, uma mesma espécie de planta
ou animal pode ter duas ou mais denominações na taxonomia indígena. Essa
realidade pode levar o pesquisador menos familiarizado com a observação di-
reta, valendo-se da classificação utilizada na biologia ocidental, a interpretar de
maneira simplista uma única espécie como sendo várias, sem, contudo, obser-
var a cosmologia de cada povo. Situação semelhante é verificada em relação às
palavras polissêmicas, a exemplo do termo tekoha (como dizem os Guarani e
47
Kaiowá) ou tekoa (assim chamado pelos Mbyá), o qual tem sido mais emprega-
do em Mato Grosso do Sul no sentido de território tradicional e menos usado
como rede dinâmica de relações sociais que ocorre em determinado espaço (ver
discussão em Noelli, 1993; Mura, 2004; Pereira, 2004). A questão se torna ainda
mais complexa se consideradas as variações dialetais entre os grupos de língua
guarani, algo que, inclusive, foi observado pelo referido padre da Companhia
de Jesus. Nesse sentido, parafraseando Viveiros de Castro, autor do prefácio do
livro As lendas da criação e destruição do mundo como fundamentos da religião
dos Apapocúva-Guarani, de Nimuendaju (1987 [1914]), diria que essa contro-
vérsia lembra o “[...] etimologismo” que, “diga-se de passagem, é endêmico nos
arraiais da tupinologia [...]” (VIVEIROS DE CASTRO, 1987, p. xxii).
De todo modo, os valorosos esforços de alguns arqueólogos em pros-
seguirem e irem mais além com o paradigma de Brochado (1984) têm culmi-
nado na elaboração de trabalhos brilhantes sobre os “Guarani genéricos”.
4
Ver, por exemplo, as seguintes publicações do sacerdote da Companhia de Jesus: 1) MONTOYA,
A. R. de. Vocabulário de la lengua guaraní (1640). Transcrição e transliteração de Antonio Caballos.
Introdução de Bartomeu Melià. Asunción: CEPAG, 2002; 2) MONTOYA, A. R. de. Arte de la lengua
guaraní (1640). Edição fac-similar. Transcrição de Antonio Caballos. Introdução de Bartomeu Melià.
Asunción: CEPAG, 1993.
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ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: ARQUEOLOGIA, IDENTIDADE ÉTNICA E DIREITOS
Comunidades, práticas e direitos TERRITORIAIS DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL

Dissertações acadêmicas, como as de Noelli (1993) e Soares (1997), seguem


importantes para a arqueologia brasileira, e, por esse motivo, as críticas aqui
apresentadas não devem ser vistas como uma forma de depreciação. A mo-
nografia de Noelli (1993), por exemplo, constitui-se na melhor dissertação de
mestrado já feita por um arqueólogo brasileiro, um trabalho de fôlego, que, sem
dúvida alguma, equivale a ou supera muitas teses de doutorado defendidas em
universidades do país e do exterior. Posteriormente, também inspirado nesses e
em outros autores, Corrêa (2014) concluiu uma interessante tese de doutorado
sobre os povos linguisticamente Tupi.
O que quero dizer, portanto, é que o termo “Guarani” não correspon-
de a um único e grande povo indígena monolítico e fossilizado no tempo e no
espaço. Os chamados subgrupos, parcialidades ou fragmentos, esses, sim, cor-
respondem a povos específicos, que se identificam e são identificados como
Guarani, Kaiowá e Mbyá, apenas citando três deles. Cada um possui historicida-
des particulares, que não podem ser desconsideradas em estudos mais gerais.
Essa ideia parte da concepção barthiana de que a identidade étnica é relacio-
nal, isto é, observável em situações de contato e definição de limites entre as
culturas.
48
Desde fins do século XIX e meados do XX, muitas dessas diferenças
emergiram e ainda seguem emergindo a partir da definição das fronteiras en-
tre os estados nacionais. Argentina, Brasil e Paraguai são exemplos bastante
conhecidos. Segundo Melià (2004), com a definição das fronteiras entre esses
Estados nacionais, foram erguidos os muros de Berlim, os quais dividiram ter-
ritórios transnacionais de povos originários linguisticamente guarani. Inclui-se
aqui parte da Bolívia e do Uruguai nesse grande território. Nos séculos XVI, XVII
e XVIII, outrossim, muitas comunidades de língua guarani se identificavam para
os padres jesuítas e para outras autoridades coloniais de acordo com o nome de
sua principal liderança ou do lugar de ocupação tradicional, conforme analisado
por Becker (1992), uma das precursoras da etno-história no Brasil.
A questão central reside no fato de termos elegido um determinado
tipo de tecnologia ceramista, associando-a a uma língua nativa, para construir-
mos elementos de identidade étnica a grupos que identificamos como “Guarani”,
mas que, em sua maioria, não se identificavam e não se identificam dessa ma-
neira. Ora, se a ideia de raça, língua e cultura foi superada para a identificação
dos grupos étnicos, conforme discutido por Barth (1998), por que teríamos que
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Comunidades, práticas e direitos TERRITORIAIS DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL

atribuir esta ou aquela identidade a partir de uma tradição tecnológica ceramis-


ta supostamente ligada a grupos de língua guarani? Esse é um grande problema
a ser (re)pensado na arqueologia brasileira. Ao parafrasear Nelson Rodrigues,
citado por Viveiros de Castro (2002), tenho a percepção de que o “Guarani” ou
o “Tupi” genérico, tal qual imaginado e idealizado na academia, nunca existiu ao
longo da história dos povos ameríndios.

A PERÍCIA ARQUEOLÓGICA SOBRE A TERRA


INDÍGENA SUCURI’Y

O estado de Mato Grosso do Sul, criado em 1977, durante o regime


militar (1964-1985), é considerado o mais anti-indígena entre todas as unidades
federativas e o recordista nacional no assassinato de lideranças do movimento
de retomada de territórios tradicionais, muitas delas vítimas do agrobanditis-
mo. Nessa parte do país, existem conflitos fundiários de proporções alarman-
tes, uma verdadeira situação histórica de guerra genocida, sobretudo contra
comunidades Guarani e Kaiowá. Grande parte desses litígios envolve a aprecia-
49
ção de direitos territoriais pela Justiça Federal. Por esse motivo, geralmente os
magistrados requerem o trabalho de profissionais que deveriam ter expertise
na produção de laudos periciais sobre terras tradicionalmente ocupadas, o que
exige conhecimento de etnologia e direito indigenista (EREMITES DE OLIVEIRA,
2012a, 2015a, 2015b).
Ao longo da história de Mato Grosso do Sul, o que tem sido observado
são processos de esbulho e outras formas de violência contra os povos originá-
rios, verificados no âmbito da expansão das frentes econômicas da sociedade
nacional e de suas repercussões. Essa situação foi acirrada após o término da
guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (1864-1870), quer dizer, a partir das
últimas décadas do século XIX e no decorrer do século XX, quando o Estado
promoveu o arrendamento e a titulação de terras indígenas em favor de tercei-
ros. A partir das décadas de 1970 e 1980, notadamente, os Guarani e Kaiowá
iniciaram um movimento étnico-social pela retomada de parte de seus terri-
tórios, algo que parece estar longe de terminar (BRAND, 1997; MOREIRA DA
SILVA, 2002; PEREIRA, 2003; STEFANES PACHECO, 2004; EREMITES DE OLIVEIRA
e PEREIRA, 2007, 2009, 2011; CAVALCANTE, 2013; BENITES, 2014; EREMITES DE
OLIVEIRA e ESSELIN, 2015).
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Nesse contexto regional, desde a década de 1990, que, como dito


antes, certo especialista em arqueologia pré-histórica tem sido intimado pela
Justiça Federal a elaborar laudos periciais. Estudos desse tipo são produzidos
com a finalidade de averiguar se determinadas áreas em litígio são ou não ter-
ras tradicionalmente ocupadas, conforme estabelecido na Lei Maior. Por isso,
durante a produção de uma perícia judicial, a busca pelo “Guarani” genérico,
monolítico e fossilizado no tempo e no espaço, supostamente identificado por
fragmentos cerâmicos da tradição Tupiguarani, pode se converter em um gran-
de imbróglio.
Para ser mais específico, passarei a analisar o laudo judicial sobre a
Terra Indígena Sucuri’y, cuja perícia arqueológica foi apresentada à 1ª Vara da 1ª
Seção Judiciária de Campo Grande, conforme consta no Processo nº 97.0864-9.
Por razões de natureza ética, em princípio não citarei o nome do perito. Essa
terra indígena foi identificada e delimitada nos anos de 1990 de modo a ficar
com um tamanho diminuto, apenas 535 hectares. Esse procedimento, aliás,
fez parte do modus operandi da agência indigenista oficial, quer dizer, foi uma
política oficial implementada pelo Estado brasileiro em Mato Grosso do Sul
(ver Cavalcante, 2013). Segundo dados obtidos em fins de novembro de 2006,
50
quando lá estive, à época apenas 65 hectares da área eram ocupados por 167
pessoas, divididas em 39 famílias. Atualmente, contudo, a situação é outra, de
acordo com os dados apresentados no início deste trabalho.

Imagem 1: Vista panorâmica de parte da Terra Indígena Sucuri’y

Fonte: Acervo de Jorge Eremites de Oliveira (Nov./2006).


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Imagem 2: Habitação de uma família Kaiowá na Terra Indígena Sucuri’y

Fonte: Acervo de Jorge Eremites de Oliveira (Nov./2006).

Ao analisar o laudo judicial em questão, cheguei à conclusão de que o


perito do juízo direcionou grande parte de suas investigações para a “pré-his-
51 tória” da área em litígio. Além disso, demonstrou não ter habilidade na prática
etnográfica e promoveu violência epistêmica contra os Kaiowá de Sucuri’y. Fez
isso como estratégia de centrar sua análise mais na imemorialidade e menos na
tradicionalidade da ocupação indígena, procedimento esse que contraria pre-
ceitos constitucionais. Essa foi a estratégia impertinente que mais se sobressaiu
durante os trabalhos de campo e isso ele próprio explicou na página 1267 dos
Autos do Processo anteriormente mencionado, cuja autoria, reforço, por razões
de natureza ética, não menciono:

A questão principal, que permanecia aberta, era se os dados ar-


queológicos coletados durante as diligências periciais estavam
relacionados ao passado da Comunidade Indígena Kaiowá de
Sucuri’y. Decidiu-se, em comum acordo, que seria necessário
realizar novas escavações arqueológicas na área em litígio, isto
com o objetivo de se tentar determinar se houve ou não essa
vinculação temporal.
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Ao seguir os procedimentos comuns na arqueologia pré-histórica, o


perito chegou à seguinte conclusão, que consta nas páginas 1278 e 1279 do
Processo:

A análise anterior nos permite pensar que a comunidade de


Sucuriy é originária de um processo etno-histórico que desen-
volveu-se [sic] na área do município de Maracaju, muito pro-
vavelmente precedente a este século e que, portanto, tem, a
mesma, direito a um espaço definido e suficiente para a pre-
servação e reprodução de seu modo de ser étnico no contexto
espacial que foi palco dos acontecimentos de seu passado.
Por outro lado, ao nosso ver, também não é justo que o proble-
ma do espaço vital necessário à revitalização cultural indígena
seja solucionado através da desapropriação sumária de bens
particulares (réus) que, com certeza, não são os responsáveis
diretos, nem indiretos, pelos infortúnios que assolam os índios
no passado e no presente na região. Os réus adquiriram as
terras que atualmente ocupam produtivamente (que são par-
52 cialmente objeto da lide) de forma perfeitamente legal e em
nenhum momento praticaram o esbulho de terras indígenas.
Finalmente, ao nosso ver, a justiça só será restabelecida na
questão quando os índios tiverem direito à [sic] permanecer de-
finitiva e pacificamente em um espaço necessário à sua sobrevi-
vência, com qualidade de vida e de acordo com suas tradições,
por eles aceito como tal. Como, por falta de provas inquestio-
náveis, as diligências periciais não conseguiram caracterizar a
área em litígio como de posse permanente e ininterrupta por
parte dos indígenas, cabe ao Governo Federal, por meio dos
órgãos públicos habilitados para tal, solucionar o impasse, já
que, constitucionalmente, a proteção e tutela das comunidades
indígenas são de sua responsabilidade.

No tocante a esse aspecto, o mais plausível seria o arqueólogo ter con-


cluído que, com base no Artigo 231, § 1°, da Constituição Federal de 1988, e nas
provas por ele arroladas, a Terra Indígena Sucuri’y é ou não, de fato, uma área
de ocupação tradicional. A polêmica maior reside na seguinte questão: o autor
entendeu que seria necessário buscar “provas inquestionáveis” para caracteri-
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zar a área como de “posse permanente e ininterrupta” desde tempos imemo-


riais até o tempo presente. Essa é uma interpretação um tanto quanto obtusa
e particularmente equivocada que ele faz da lei, rebatida à altura pela assisten-
te técnica do Ministério Público Federal, antropóloga Elaine Amorim Carreira
(2000), conforme consta nas páginas 1367 e 1368 dos Autos:

As noções de ocupação permanente e de terras tradicionalmen-


te ocupadas não se referem ao império de um passado remoto
e nem chegam a privilegiar as relações temporais, mas, sim, di-
zem respeito a maneiras típicas de envolvimento com o espaço,
que podem ou não serem [sic] imemoriais e ininterruptas. A
lógica histórica exige esse entendimento porque sabemos hoje
da inexorável realidade dos acontecimentos ocorridos no pas-
sado, que reiteradamente seguiram uma política deliberada de
expulsões e reduções das sociedades indígenas, deslocando-as
continuamente de seus territórios tradicionais. Por isso, o per-
manente do texto constitucional refere-se a fatos concretos e
efetivos da ocupação costumeira sobre determinada área, de
53 modo mais ou menos estável e duradouro – em contraposição
a estâncias temporárias e eventuais –, mas não requer indicar, e
nem poderia dado o contra-senso [sic] histórico, exclusivamen-
te os processos de ocupação continuada e seqüencial [sic] de
terras indígenas. A lei não busca amparar direitos étnicos de
povos abstratos, situados em algum lugar do passado. Busca
sim amparar direitos de povos vivos e contemporâneos.

Não se limitando a titubear na hora de dizer se a área em litígio é ou


não tradicionalmente ocupada, o expert do juízo ainda apresentou um ponto
de vista particular acerca do que entende ser justo ou injusto para a resolução
do litígio. Mais ainda: saiu em defesa dos réus (fazendeiros). Nesse aspecto,
em específico, deu a entender que estaria se colocando na posição do próprio
magistrado, ou de um profundo conhecedor de direito constitucional e opera-
dor do direito, quando da apresentação de uma sentença. Por isso, o arqueó-
logo finalizou seu trabalho de maneira ambígua, de modo a remeter a solução
do impasse à ação de órgãos governamentais. Paradoxalmente, a conclusão do
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arqueólogo contradiz as provas que ele mesmo arrolou nos Autos, conforme
explicado adiante.5
O perito afirmou, ainda, segundo consta na página 1268 do Processo,
que deu início a escavações arqueológicas com o seguinte objetivo:

Iniciamos as escavações objetivando-se encontrar vestígios ar-


queológicos passíveis de datações laboratoriais, tais como car-
vões ou outros vestígios orgânicos e/ou fragmentos de cerâmi-
ca arqueológica, os quais permitiriam, inclusive, a identificação
étnica de seus produtores [...].

A respeito das “datações laboratoriais”, o arqueólogo certamente se


referia ao uso de dois métodos físico-químicos para datação absoluta: 1) data-
ção radiocarbônica, feita por meio da análise do carbono-14 (14C) encontrado
em restos orgânicos, como ossos humanos e carvões de antigas fogueiras an-
trópicas; 2) datação por termoluminescência (TL), utilizada para saber a anti-
guidade de materiais cerâmicos e líticos, por exemplo. Ambos os métodos são
54 comuns na arqueologia pré-histórica e em outros subcampos da arqueologia,
mas não tão precisos como a arguição do perito pode levar a acreditar.
Sobre as datações pelo método radiocarbônico, sabe-se que, naquele
tempo, tal método era “[...] demasiado impreciso para ser útil nos 400 anos do
passado mais recente [...]”, conforme explicam Renfrew e Bahn (1998, p. 135).
Por outro lado, segundo esses autores, o método de datação por termolumines-
cência, embora útil para datas situadas nos últimos 10.000 anos, ainda era “[...]
menos preciso que este na exatidão de suas datas [...]” (RENFREW; BAHN, 1998,
p. 135). Ora, se os dois métodos não eram tão precisos assim e se datas antigas
remetem mais à ideia de imemorialidade, pode-se deduzir que esse procedi-
mento metodológico não seria o mais cogitado para a realização dos trabalhos
de peritagem. O mais recomendado para dirimir certas dúvidas cronológicas
seria fazer uma etnografia que valorizasse a memória genealógica da comunida-
5
O referido arqueólogo compartilha a ideia de que “a questão da terra indígena é, pela legislação
em vigor, um problema de âmbito federal, e é muito difícil achar culpados por erros cometidos no
passado, ainda mais quando isso aconteceu havia muitas décadas”, segundo consta em um artigo de
sua autoria publicado nos Anais do VI Encontro de História de Mato Grosso do Sul (Campo Grande,
UCDB, 2004, p. 13-29.). Esse ponto de vista é, em grande medida, inconsistente, haja vista que pode
servir como um tipo de álibi para justificar certas análises equivocadas a respeito dos processos de
esbulho e espoliação de terras tradicionalmente ocupadas por comunidades indígenas no estado.
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de. Mesmo assim, caso o perito tivesse encontrado fragmentos de cerâmica ti-
picamente Tupiguarani, datada, por exemplo, de 450±70 AP6, não haveria como
associá-los diretamente aos Kaiowá de Sucuri’y. Uma associação desse tipo so-
mente seria possível se a cerâmica fizesse parte da memória social ou possuísse
sentido de tradicional para a comunidade. Por esse e outros motivos, defendo a
tese de que procedimentos metodológicos e linhas argumentativas comuns na
arqueologia pré-histórica não são, pois, apropriados para esse tipo de trabalho.
Quem se percebe e é conhecido como especialista em pré-histórica, ou seja, em
“índios mortos”, não deveria aceitar trabalhar com “índios vivos”. O antropólo-
go social, por seu turno, quando especialista em etnologia indígena, é o profis-
sional mais habilitado para a produção de laudos judiciais desse tipo.
Uma das questões que o expert deveria ter esclarecido diz respeito,
por exemplo, ao início da ocupação da região pelas frentes de expansão eco-
nômica da sociedade nacional, algo que aconteceu entre fins do século XIX e
as primeiras décadas do século XX. Por esse motivo, o fundamental da perícia
seria esclarecer se quando a cadeia dominial das fazendas teve início a terra era
ou não ocupada pelos Kaiowá de Sucuri’y, em seu sentido mais amplo, pois os
indígenas alegaram ter sido vítimas de processo de esbulho7. Constatado o es-
55
pólio de suas terras, seria ainda necessário esclarecer como o processo se deu,
quais os indivíduos que o fizeram, como reagiu a comunidade e qual foi a ação
do órgão indigenista oficial no episódio. Se o esbulho foi feito pelos primeiros
ocupantes não índios, que conseguiram a titulação das terras, então, salvo me-
lhor entendimento, toda a cadeia dominial da área não possui validade à luz
da legislação brasileira, independentemente da opinião do perito sobre o que
entende ser ou não justo.
Além do que foi explicado até o momento, há outras questões que
precisam ser pontuadas. Em primeiro lugar, conforme consta na página 1267
dos Autos, o perito afirmou que suas diligências foram feitas após “[...] o estu-
do da bibliografia especializada, análise de fontes primárias e leitura dos autos
[...]”. Em seu relatório consta a relação de 105 títulos, da página 1285 à pági-
6
AP significa anos “Antes do Presente”, cujo presente é, por convenção, o ano de 1950. Em inglês essa
sigla é BP (Before Present). No caso da mencionada data hipotética, o sinal “±” indica a margem de
erro da datação, para mais ou para menos.
7
Para analisar a cadeia dominial da área em litígio, faz-se necessário recorrer ao livro Os Corrêa, os
Ponte, os Alves no planalto e serra de Maracajú: origem histórica, árvores genealógicas, do advogado
e ex-delegado de polícia Altinor Barbosa Ferreira (1993). Essa obra, de caráter memorialista e genea-
lógico, foi escrita com base em pesquisas cartoriais e informações orais registradas pelo próprio autor.
CAP. 1
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ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: ARQUEOLOGIA, IDENTIDADE ÉTNICA E DIREITOS
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na 1294 dos Autos. Do total, ao menos 41 trabalhos, ou seja, 39,05% do total


de bibliografias arroladas, referem-se à arqueologia pré-histórica.8 Essa outra
constatação também atesta, como dito amiúde, que o arqueólogo recorreu
preferencialmente a procedimentos metodológicos e a argumentos comuns a
esse subcampo da disciplina. Além disso, não deu a devida importância para a
literatura etnológica e etno-histórica referente aos Kaiowá. Valeu-se basicamen-
te de uma suposta autoridade científica que reivindica para si. A estratégia de
direcionar os trabalhos periciais para averiguar uma suposta imemorialidade da
ocupação indígena constitui-se, nesse caso, em um vício observado ao longo da
perícia.
Igualmente no decorrer das respostas aos quesitos elaborados pelas
partes, o perito sequer chegou a fazer referência a 10% das obras relaciona-
das na bibliografia final do relatório. Nas páginas 1265 e 1269, por exemplo,
há referência a um trabalho de sua autoria que não foi encontrado na relação
bibliográfica da página 1289 dos Autos. Provavelmente, o autor se referiu à sua
própria tese de doutorado, em específico à parte em que analisa a tecnologia
lítica de populações indígenas pré-coloniais que ocuparam a Serra de Maracaju,
nas proximidades da área em litígio, assunto que em nada contribui para a elu-
56
cidação dos acontecimentos.
Outras obras importantes, relevantes para o esclarecimento dos fatos,
não foram arroladas e discutidas no laudo pericial. Esse é o caso da tese de dou-
torado de Brand (1997), um trabalho de fôlego que contém a relação de vários
documentos e um mapa com a indicação de áreas tradicionalmente ocupadas
por comunidades Guarani e Kaiowá no estado, que por isso, definitivamente,
não poderia ter sido ignorada. Há ainda clássicos que igualmente não foram
discutidos, a exemplo de Schaden (1974), dentre muitas outras obras que o pro-
fissional tinha ciência na época, conforme verificado em um livro de sua própria
autoria, cuja primeira edição é de 1992. Essa constatação também foi feita de
maneira semelhante pela assistente técnica do Ministério Público Federal em
seu parecer.

8
A bibliografia arrolada no laudo pericial é praticamente a mesma que o autor relacionou em sua tese
de doutorado, defendida em 1996 na Universidade de São Paulo (USP), cujo tema central tem a ver
com a pré-história de antigas populações indígenas que se estabeleceram no planalto de Maracaju-
Campo Grande, incluindo o município de Maracaju. Nesse trabalho, há um subitem de número 3.2,
intitulado Panorama etno-histórico da região de Maracaju, em que consta um resumo do processo
de ocupação indígena no município homônimo, desde tempos imemoriais até temporalidades mais
recentes, inclusive o processo de esbulho a que os indígenas dizem ter sofrido na década de 1980.
CAP. 1
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Fontes desse tipo deveriam ter sido analisadas e discutidas para res-
ponder, por exemplo, ao primeiro quesito apresentado pelo juízo: “1. Estabeleça
o Senhor Perito o local e o período em que os índios Guarani-Kaiowá habitavam
– ocuparam (no sentido amplo de caçar, pescar e coletar) a área mencionada na
petição inicial, se isso ocorreu”.
Em segundo lugar, o levantamento arqueológico foi concluído com
base em informações orais obtidas de membros da comunidade indígena. Isso
é o que geralmente se chama de levantamento oportunístico de sítios arqueoló-
gicos. Trata-se de um procedimento pertinente para trabalhos dessa natureza,
desde que direcionados para averiguar a ocupação tradicional, e caso o pes-
quisador tenha entendido o idioma cultural da comunidade. Anos depois, ao
conversar sobre o assunto com uma liderança indígena no estado, soube que
os Kaiowá de Sucuri’y teriam levado o perito para conhecer pontos que não
correspondiam, exatamente, a certos lugares sagrados. Temiam pelo pior: que o
arqueólogo profanasse locais onde seus antepassados foram sepultados.
Diversos pontos arrolados durante a perícia (antigas residências, lu-
gares de valor religioso, aterros sob forma de montículos, prováveis sepulturas
57 humanas, trilhas, áreas de caça etc.), associados à toponímia em língua guarani
conhecida para a região, à memória social da comunidade e a fontes textuais
mencionadas no Processo, chamam a atenção para a tese de que os Kaiowá
ocupam a área de acordo com os seus usos, costumes e tradições. Tais evidên-
cias são provas materiais e vão ao encontro da noção de oguata, palavra que em
guarani se refere a um modo de ser caracterizado por grande mobilidade espa-
cial, no sentido de andar, caminhar, circular, viajar e transitar. A noção de oguata
não deve ser vista como algum tipo de nomadismo ou perambulação errante,
sem direção certa, e ausente de estratégias de territorialidade. Pelo contrário,
tem a ver com mobilidade espacial em uma área reconhecida como território
tradicional para os próprios Kaiowá.
Registra-se, contudo, e mais uma vez, que não é a ocorrência de evi-
dências arqueológicas imemoriais, como artefatos líticos e cerâmicos, que po-
deriam ou não comprovar a ocupação tradicional da comunidade indígena na
área periciada. A comprovação deveria ter sido feita, também, por meio da aná-
lise minuciosa de outras evidências materiais, tais como: “latas velhas”, “sola de
sapato”, “entulho de lixo”, locais de importância simbólica para atividades de
caça (como o registrado como ogatawa), “alto topográfico” onde teria existido
CAP. 1
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ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: ARQUEOLOGIA, IDENTIDADE ÉTNICA E DIREITOS
Comunidades, práticas e direitos TERRITORIAIS DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL

uma oga pysy etc.9 Todas essas evidências foram arroladas pelo expert da Justiça
Federal nas páginas 1262 e 1263 dos Autos, mas sobre elas não foi apresentada
qualquer análise etnográfica ou arqueológica à altura do que se faz em arqueo-
logia histórica e em etnoarqueologia. Sobre o material arqueológico recolhido
in loco, como os artefatos líticos, tampouco foi apresentada uma análise meti-
culosa, o que atesta ainda mais a fragilidade do trabalho. Por vezes, foram feitas
ainda referências a suposições do tipo “aparentemente” e “provavelmente”, as
quais, associadas ao descrédito dado à memória e à tradição oral dos Kaiowá,
bem como à literatura etnológica e etno-histórica, contribuíram para corroborar
a conclusão final do perito, reproduzida anteriormente.
Em terceiro lugar, as entrevistas com alguns indígenas, transcritas e
anexadas nos Autos, também sustentam a tese da ocupação tradicional da Terra
Indígena Sucuri’y. Apontam para o processo de esbulho que os índios afirmam
ter sofrido. Sem embargo a essa proposição, entendo que, à luz da história oral
e da etnografia, teria sido de bom alvitre se o perito tivesse tido alguns mo-
mentos a sós com a comunidade indígena10. Dessa forma, poderia ter realizado
entrevistas e observações com vistas a recolher maiores subsídios para a elabo-
ração do laudo. Em outros momentos, os assistentes técnicos das partes tam-
58
bém poderiam fazer as entrevistas e as observações com os mesmos indivíduos,
igualmente a sós, com o propósito de juntar elementos para a elaboração de
seus contralaudos.

9
Oga pysy é uma unidade residencial tipicamente Kaiowá, feita de madeira e coberta com capim sapé,
onde, geralmente, residia uma família extensa, denominada tey’i. Há também construções com essa
mesma denominação que eram e ainda são destinadas a rituais religiosos, às vezes até com outras
configurações arquitetônicas. O perito grafou essa palavra de maneira equivocada (oga pysi), pois, em
guarani, o “y” não tem o mesmo som que o “i”. Ogatawa, por sua vez, se é que o perito registrou cor-
retamente essa outra palavra, refere-se a um “povoado” ou, ainda, a um lugar de valor simbólico. Em
guarani, a palavra “oga” significa casa, local, moradia, e “táva” ou “tawa” diz respeito a povo, aldeia,
povoação, localidade (cf. KRIVOSHEIN DE CANESE; ACOSTA ALCARAZ, 1997).
10
Na opinião de Alberti (1990, p. 1-2): “Se podemos arriscar uma rápida definição, diríamos que a
história oral é um método de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica etc.) que privilegia a rea-
lização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam acontecimentos, conjun-
turas, visões de mundo, como forma de se aproximar do objeto de estudo. Como consequência, o
método da história oral produz fontes de consulta (as entrevistas) para outros estudos, podendo ser
reunidas em um acervo aberto a pesquisadores. Trata-se de estudar acontecimentos históricos, insti-
tuições, grupos sociais, categorias profissionais, movimentos, etc., à luz de depoimentos de pessoas
que deles participaram ou os testemunharam”. Entretanto, quando no contexto de perícias judiciais
do tipo da que aqui é analisada, os depoimentos orais não devem ser confundidos com depoimentos
tomados em juízo, tampouco o método da história oral pode ser considerado um procedimento meto-
dológico mais preciso ou que se sobrepõe em relação ao método etnográfico.
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Comunidades, práticas e direitos TERRITORIAIS DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL

Desconheço a prerrogativa do perito de ter que fazer um laudo judicial


em consenso com os assistentes técnicos, haja vista o conflito de interesses, ou
o fato de ele estar legalmente obrigado a realizar ou participar de entrevistas
coletivas, como se não pudesse ter momentos a sós com as partes envolvidas no
Processo. Entrevistas coletivas, aliás, quando feitas por vários entrevistadores
ao mesmo tempo (perito, assistentes técnicos e outros), podem criar um am-
biente de tensão e induzir a fala dos entrevistados para a obtenção de respostas
que convêm a uma das partes. Esse é um dos motivos pelos quais devem ser
evitadas, sob pena de se cair em subjetivismo profissional, que pode macular
a imparcialidade da perícia. Ademais, em entrevistas coletivas, pode haver a
disputa por narrativas, e algumas pessoas podem se apresentar como as autori-
zadas a falar sobre esse ou aquele assunto.
Mais, ainda, o processo de ocupação tradicional e o esbulho aos quais
os Kaiowá se referem fazem parte da memória social de toda uma comunidade
e não de um único indivíduo. Essa memória recua há mais de 100 anos, confor-
me consta na página 1266 dos Autos, e, por ser coletiva e pautada por uma con-
duta articulada, deveria ter sido analisada de maneira refinada e com a devida
profundidade11.
59
Em quarto lugar, está cristalino que as pesquisas arqueológicas cau-
saram constrangimento aos indígenas, pois alguns deles alegaram “ter havido
violação de sepulturas”, quer dizer, a profanação de túmulos, de acordo com o
que foi registrado pelo próprio perito na página 1267 dos Autos. Significa dizer
que lugares sagrados não deveriam, em hipótese alguma, ter sido perturbados
por meio de escavações arqueológicas. Felizmente, as escavações não incidiram
exatamente sobre antigas sepulturas, como chegaram a pensar alguns, pois es-
ses locais foram mantidos em sigilo.

11
Entre povos indígenas sul-americanos, os etnólogos, geralmente, não conseguem fazer diagramas
de parentesco com a indicação de mais de cinco gerações das quais descende o indivíduo de referên-
cia, denominado ego (“eu” em latim). Não é de se estranhar, então, que a memória dos Kaiowá possa
recuar até uns 150 anos, haja vista que uma geração tem em média de 20 a 25 anos. O que vai além
dessa cronologia está, portanto, no campo do imemorial e sua interpretação exige muita habilidade
etnográfica.
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Esse tipo de procedimento contraria orientações comuns para a ética


nas ciências sociais.12 Entretanto, se o perito tivesse encontrado restos humanos
referentes a temporalidades recentes, haveria como datá-los tão precisamente
pelo método radiocarbônico? Supondo que pudesse vir a datá-los com 100% de
precisão, o passo seguinte seria a realização de exames comparativos entre o
DNA dos restos humanos resgatados e o de todos os membros da comunidade
de Sucuri’y? Seria realmente necessário tudo isso para dar crédito à memória
social de uma comunidade indígena, às evidências materiais encontradas na
área e às fontes textuais conhecidas? Em minha opinião, definitivamente, não.
Esse é um exemplo execrável de inabilidade etnográfica e de conduta antiética,
apoiadas em uma materialidade radical e na suposta autoridade científica de
quem estava em campo como auxiliar do juízo. Remete, ainda, à violência epis-
têmica e à colonialidade do saber e do poder que marcam certa prática arqueo-
lógica em Mato Grosso do Sul e em outros estados brasileiros.
Daí a pertinência da análise apresentada por Stefanes Pacheco, cujo
estudo realizado é de grande relevância para a compreensão dos conflitos fun-
diários entre índios e fazendeiros no Estado. Segue o que a autora escreveu
sobre o tema:
60

Diante do exposto, no antigo sul de Mato Grosso, como em ou-


tras áreas do país, no que concerne aos direitos indígenas às
suas terras, sempre se vislumbrou o modelo de ação que for-
temente privilegia o campo jurídico, visando, nesse sentido,
encontrar registros que atestem a antiguidade da ocupação.
Segundo esta lógica, a ausência de meios documentais de com-
provação de um vínculo pretérito entre os remanescentes indí-
genas e as terras reivindicadas inviabilizaria qualquer tentativa
de recuperá-las. Entre aqueles signatários desta idéia, [sic] sua
atenção para a solução dos litígios fundiários regularmente está
centrada na Escrita do Estado, como se somente esta fosse a
forma mais importante de constituição de direitos, em detri-
12
Durante o XIII Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira, um grupo de antropólogos e ar-
queólogos brasileiros, preocupado com questões dessa natureza, propôs, durante a assembleia da as-
sociação, a apreciação de um documento sobre o assunto. O documento, que foi aprovado pelos pre-
sentes com apenas um voto contrário, solicita do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) que não autorize projetos de pesquisa que impliquem na escavação de sepultamentos huma-
nos em terras indígenas e em terras de descendentes de negros escravizados, sem que o responsável
pelos estudos tenha a expressa e prévia autorização formal por parte das comunidades interessadas.
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mento de outras evidências de ocupação (STEFANES PACHECO,


2004, p. 41. Gritos da autora).

Ciente de que os Kaiowá constituem um povo originário de tradição


oral, não haveria o porquê de desprezar duas categorias de provas: 1) a memó-
ria social da comunidade; 2) as evidências materiais que atestam sua presença
na área em litígio. Proceder de modo contrário sugere, na melhor das hipóteses,
uma imparcialidade que vicia o laudo pericial e uma inabilidade técnico-cientí-
fica de saltar aos olhos.
Para os Kaiowá, em geral, antigos cemitérios não são espaços vene-
rados pela comunidade e, normalmente, devem permanecer no passado e
quase que apagados da memória dos vivos. Muitos desses locais podem cor-
responder a antigas residências, as quais, logo após a partida do morto, foram
abandonadas e destruídas pelo fogo. Com o defunto, eram – e por vezes ainda
são – enterrados ou deixados sobre as sepulturas vários objetos do falecido. Os
Kaiowá acreditam na dualidade da alma, quer dizer, que as pessoas possuem
duas almas: uma carnal, chamada angue ou anguery, e outra espiritual, deno-
61 minada ñe’e. A alma carnal permanece com o defunto e não deve ser lembra-
da, pois traz más influências à saúde e à convivência social dos membros da
comunidade. Sendo assim, locais sagrados onde estão os mortos não devem
ser profanados por escavação alguma, sob pena de perturbar a ordem social e
espiritual dos indígenas13. Na língua guarani, o nome dado à alma espiritual é o
mesmo termo que designa a palavra. Portanto, ñe’e também é a palavra alma
dos Kaiowá vivos.
Acrescenta-se, ainda, que a área em litígio sofreu muitos impactos so-
cioambientais negativos, a exemplo do desmatamento, da queimada e da for-
mação de pastagens para bovinos, motivo de rápidas transformações na paisa-
gem local. Impactos assim causaram, indubitavelmente, alguma destruição de
evidências materiais sobre a presença indígena em Sucuri’y. Esse assunto tam-
bém não foi aprofundado no laudo, mas deveria fazer parte de uma avaliação
arqueológica geral da área periciada.

13
Há muitos estudos sobre a religião dos povos indígenas de língua guarani. A produção mais relevante
teve início com os padres da Companhia de Jesus, no século XVII, conforme verificado em Melià,
Grünberg e Grünberg (1976, 2008), Melià, Saul e Muraro (1987), Chamorro (1995, 1998), Pereira
(1999, 2004) e Eremites de Oliveira (2016).
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Em quinto lugar, ainda que o perito tenha aferido que as informações


orais dos índios foram contraditadas por não índios, o que não é raro quando
entrevistas são feitas em um contexto de disputa judicial, está cristalino que
parte dos depoimentos dos Kaiowá vai ao encontro de certas fontes textuais.
Exemplo disso está na clareza com que o esbulho dos indígenas permanece na
memória dos descendentes dos primeiros não índios que fundaram o município
de Maracaju. Tanto é verdade que, na página 1277 dos Autos, o arqueólogo
menciona um trecho do livro Maracaju e sua gente, de Francisco Bernardes
Ferreira e Albino Pereira da Rosa,14 publicado localmente em 1988. A década
de publicação do livro coincide com a década em que os Kaiowá afirmaram que
foram expulsos da área. Nesse livro consta, ipsis litteris, o seguinte:

Durante os primeiros anos de adaptação da família Alves de


Lima na região do Planalto da Serra de Maracaju, nem sempre
as coisas correram em paz. Havia muitas aldeias indígenas, es-
palhadas desde as cabeceiras dos rios Santa Maria e Brilhante,
até as margens do Paraná.
Os índios constituíam uma ameaça permanente para os fazen-
62 deiros que, por diversas vezes, tiveram de empregar de muita
astúcia, e até mesmo o uso de armas de fogo para rechaçar os
seus ataques traiçoeiros e perigosos. Com o decorrer do tempo,
depois de muita luta e até de combates sanguinolentos, teve lu-
gar uma aproximação pacífica dos grupos em litígio, permitindo
o estabelecimento de um clima de paz e maior tranquilidade
[sic]. (FERREIRA e ROSA, 1988, p. 111).

A transcrição apresentada foi escrita por Francisco Bernardes Ferreira,


responsável pela redação da segunda parte da obra (da página 73 até a 167). Faz
parte de um livro produzido por dois renomados memorialistas da região, pes-
soas conhecedoras do direito e autores de um livro sobre a história de Maracaju.
14
Albino Pereira da Rosa nasceu em Maracaju, no dia 13 de junho de 1914; graduou-se em direito
pela antiga Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro; foi auxiliar de ministro na Procuradoria Geral,
procurador de autarquia da Previdência Social e autor de livros jurídicos. Francisco Bernardes Ferreira,
por sua vez, nasceu em Uberaba, Minas Gerais, no dia 21 de janeiro de 1903; trabalhou em Maracaju
como proprietário da Farmácia Popular e também em fazendas de gado da região. Chegou a exercer
as funções públicas de juiz de paz, vereador, promotor interino da justiça e prefeito do município. Por-
tanto, os autores do livro Maracaju e sua gente foram pessoas cultas, por assim dizer, que vivenciaram
o processo histórico regional no século XX.
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Nessa passagem, também citada na página 93 da tese de doutorado do perito,


estão claros alguns pontos cruciais para o conhecimento de direitos: 1) que mui-
tas aldeias indígenas estavam estabelecidas na região quando ali chegaram os
primeiros não índios fundadores do município, entre fins do século XIX e pri-
meiras décadas do século XX;15 2) que os contatos interétnicos entre os índios e
os “pioneiros” não foram pacíficos, haja vista o emprego de armas de fogo para
rechaçar os primeiros ocupantes nativos da região, tratados como uma ameaça
permanente; 3) depois desses conflitos, supostamente, houve o estabelecimen-
to de um clima de paz e maior tranquilidade, o que teria ocorrido quando se
consolidou o processo de esbulho dos índios de grande parte do território por
eles ocupado tradicionalmente na região.
É isso o que, resumidamente, diz o estudo sobre a história de Maracaju,
escrita por homens importantes da política local. Também é isso o que, em
linhas gerais, os Kaiowá explicaram para o perito e para os assistentes técnicos.
Ambas as versões não são contraditórias; pelo contrário, são confluentes e
fazem parte de uma mesma história presente na memória coletiva de índios e
de não índios.16

63 Essa ainda é a realidade sócio-histórica de muitas outras regiões do an-


tigo sul de Mato Grosso, atual Mato Grosso do Sul, onde os conflitos fundiários
seguem, envolvendo índios e fazendeiros. A questão central reside na origem
da propriedade privada de muitos imóveis e da estrutura fundiária regional, a
qual se encontra no fato de o governo do antigo estado de Mato Grosso, o uno
ou integrado, ter se apoderado de territórios indígenas, sobremaneira após a
promulgação da Constituição Federal de 1891, declarando-os como terras devo-
lutas para depois repassá-los a terceiros. Muitos desses terceiros promoveram
a expulsão dos nativos de seus territórios e obtiveram, por parte dos órgãos
estaduais de controle fundiário, as definitivas certidões imobiliárias para a lega-
lização das propriedades.
Ao analisar situações desse tipo, a partir do estudo de vários processos
judiciais, Moreira da Silva assim resumiu a situação:
15
Segundo o referido expert: “Em 8 de junho de 1924, o Governo do Estado de Mato Grosso elevou o
pequeno aglomerado à categoria de Distrito da Paz, sob a jurisdição da Comarca de Nioaque. No ano
de 1928, quando a população urbana girava em torno de mil pessoas e a rural, em dez mil, a região
desmembrou-se de Nioaque e o distrito foi promovido a [sic] sede do município de Maracaju”. Essa
informação consta na página 106 da tese de doutorado do perito da Justiça Federal.
16
Além dos Kaiowá, os Ofayé, também chamados de Ofaié-Xavante, cujos descendentes vivem hoje
em Brasilândia, tiveram suas terras espoliadas na região de Maracaju e adjacências (DUTRA, 1996).
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No Mato Grosso do Sul, notadamente no território kaiowá e


ñandeva, o processo de espoliação de terras indígenas pelas
frentes de expansão econômica, com apoio oficial, realizou-se à
revelia de todo o ordenamento jurídico de proteção aos direitos
indígenas vigentes, inclusive o Alvará de 1680, que nunca foi
revogado. (MOREIRA DA SILVA, 2002, p. 149).

Stefanes Pacheco, por sua vez, igualmente, ao analisar muitos proces-


sos judiciais, fez duas interessantes avaliações sobre o assunto.
Primeira:

É certo que os indígenas foram atropelados pela ação estatal,


sendo este o principal responsável por grande parte dos in-
fortúnios que assolam estas sociedades; porém, o Estado não
agiu sozinho, estava amparado por uma classe ávida de benes-
ses e que via nestas terras uma forma de resolver seus anseios
(STEFANES PACHECO, 2004, p. 36).

64
Segunda: “O resultado é uma trama de títulos que vêm tentando obs-
taculizar o questionamento jurídico por parte dos indígenas no tocante a seus
direitos de acesso a terra.” (STEFANES PACHECO, 2004, p. 41).
A seguir, registro o que o próprio perito escreveu em um subitem de
sua tese de doutorado, elaborado sem a realização de pesquisa etnográfica, po-
rém centrado em uma análise histórica baseada em fontes textuais.17
Primeira:

Na década de oitenta do século XIX, a região do planalto mara-


cajuano assistiu, concomitantemente à expansão da atividade
ervateira, à chegada de novas levas de colonos, principalmente
famílias oriundas do sul de Minas Gerais. Diversas fazendas de
gado foram constituídas na área do atual município de Maracaju
e os colonos passaram a disputar, com os indígenas, a posse das
vastas planuras maracajuanas.

17
As quatro citações apresentadas a seguir foram copiadas da tese de doutorado do perito: a primeira
da p. 93, a segunda da p. 94, a terceira da p. 106 e a quarta das p. 107-108.
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A resistência indígena à invasão de seu território ancestral não


foi pacífica, isto podemos observar, por exemplo, na descrição
feita por um historiador municipal a seguir produzida: [...].

A citação apresentada é a mesma reproduzida anteriormente, transcri-


ta da página 111 do livro Maracaju e sua gente (FERREIRA e ROSA, 1988), e por
isso mesmo dispensa outra menção ao trecho já mencionado.
Segunda:

A família Alves de Lima foi uma das dezenas que se instalaram


no planalto nessa época. Porém, entre todas, esta merece des-
taque no âmbito deste trabalho, pois foram os membros dessa
família os que se instalaram pioneiramente na área compreen-
dida entre o córrego Cachoeira e o rio Santa Maria, onde esta
[sic] localizado o sítio “Maracaju-1”, fundando aí a fazenda
Pulador, na confluência do córrego Pulador com o Cachoeira.
Esta fazenda existe ainda nos dias de hoje [...] (FERREIRA e
65 ROSA, 1988, p. 111).

Terceira:
Muito provavelmente, nas primeiras décadas deste século [sé-
culo XX], a região que estamos enfocando ainda abrigava, tal-
vez, algumas centenas de índios kaiowás [sic] dispersos entre
os bosques remanescentes da cobertura original ou vivendo
agregados nas recém-instaladas fazendas como mão-de-obra
[sic] desqualificada, conservando ainda parte de seus costumes
e uma obstinação em preservar o seu modo de ser, isto no ter-
ritório onde mantêm relações simbólicas com seu passado e
antepassados.
A partir da década de 1940, o panorama ambiental e sócio-e-
conômico [sic] passou por aceleradas mudanças. Nos primeiros
anos dessa década o tronco ferroviário da ‘Noroeste do Brasil’,
ligando Ponta Porá a Campo Grande, estava concluído. A facili-
dade de acesso e a de circulação de mercadorias daí advindas
viabilizou, pelos anos seguintes, o crescimento das atividades
agropastoris e o processo de urbanização do município. O espa-
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ço vital para os índios reduziu-se proporcionalmente ao ritmo


do desenvolvimento econômico (FERREIRA e ROSA, 1988, p.
111. Acréscimo meu).

A quarta foi escrita no laudo, logo após o perito fazer referência ao


estudo de identificação que Santos (1986) elaborou à FUNAI:

Em 1983, algumas famílias indígenas que viviam agregadas em


fazendas da região retornaram à área pretendida como territó-
rio imemorial, nas proximidades da Fazenda Sete Voltas. Outras
famílias se reagruparam, em 1984, em um lote nas margens da
rodovia Rio Brilhante-Maracaju, e mais algumas na periferia da
cidade de Maracaju. Diversos atritos ocorreram entre os índios
e alguns fazendeiros, estes apoiados por algumas autoridades
municipais. As tensões aumentaram e, no meio do ano de 1986,
uma ação conjunta, realizada pela Prefeitura Municipal, pela
Polícia Militar do Estado e pelo Terrasul, com apoio de alguns
fazendeiros, desalojou os índios do município, enviando-os
66 para o Posto Indígena de Dourados.
A convivência com grupos étnicos distintos e o congestiona-
mento demográfico do PI de Dourados desgastou [sic] as re-
lações dos recém-chegados com os habitantes tradicionais do
lugar. A desarmonia e os graves problemas sócio-culturais [sic]
de PI de Dourados os forçou, novamente, a procurar um local
onde pudessem realizar o assentamento tribal.
Atualmente, a auto-denominada comunidade Sucuri [sic] (...),
enquanto aguarda um desfecho para o processo demarca-
tório de suas terras, está instalada em uma área urbana de 5
hectares, cedida a título de comodato pela Prefeitura de Rio
Brilhante, no distrito de Prudêncio Thomaz (Aroeira), e resiste
sobrevivendo da venda de artesanato nas margens da rodovia
BR-163.

As citações apresentadas são relevantes para a compreensão da histó-


ria dos contatos entre os Kaiowá e a sociedade nacional e para o esclarecimen-
to dos fatos. Nas passagens transcritas, o autor registrou o termo “território
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imemorial” para se referir à área reivindicada pelos Kaiowá e apresentou um


sucinto panorama acerca dos processos de desterritorialização e de reterritoria-
lização enfrentados pela própria comunidade de Sucuri’y. A análise que fez em
um capítulo específico de sua tese de doutorado vai ao encontro daquilo que,
em linhas gerais, os Kaiowá lhe disseram anos depois, quando o arqueólogo,
na condição de perito do juízo, esteve com os índios para a realização do laudo
judicial em análise.
Essa constatação reforça ainda mais a tese da ocupação tradicional da
Terra Indígena Sucuri’y e do esbulho que os Kaiowá alegam ter sofrido. Também
corrobora a avaliação de que o perito cometeu vícios ao buscar provas imemo-
riais sobre a posse permanente e ininterrupta da área em litígio. No caso em
tela, o perito não esclareceu as razões da mudança de posicionamento quanto
ao direito de posse dos Kaiowá em relação às terras reivindicadas em Maracaju
nem o porquê, especificamente, de a comunidade indígena não possuir vínculos
tradicionais com a área periciada.
Posteriormente, em 2006, a Justiça Federal acatou um pedido do
Ministério Público Federal, baseado no parecer que entreguei a um procurador
67 em Dourados, sobre a necessidade da realização de nova perícia em Sucuri’y,
dessa vez não mais arqueológica e sim antropológica. Em seguida, o juízo no-
meou um etnólogo para a realização dos novos estudos, cujos resultados indi-
caram que a área em litígio é terra tradicionalmente ocupada pelos Kaiowá. No
ano seguinte, em 2007, houve uma sentença favorável à comunidade indíge-
na e ela foi autorizada a aguardar, dentro dos 535 hectares da Terra Indígena
Sucuri’y, o desfecho do processo judicial.
Para finalizar este estudo, concluo que a relação entre arqueologia,
identidade étnica e direitos territoriais dos povos indígenas é um tema que
precisa ser debatido com mais profundidade na arqueologia brasileira. Por isso
defendo a tese de que em arqueologia o uso de analogias diretas é algo inapro-
priado para a atribuição desta ou daquela identidade a quaisquer populações
indígenas. Faz-se imperativo superar um antigo paradigma histórico-cultural,
qual seja, o de que a etnicidade deva ser tratada como um fenômeno estático,
fossilizado no tempo e no espaço, algo que surgiria de fora para dentro dos gru-
pos étnicos. Pelo contrário, é um fenômeno dinâmico e relacional, que emerge
do interior dos grupos étnicos para a exterioridade. Ademais, o que pode pare-
cer apenas um procedimento teórico-metodológico impertinente e inadequa-
CAP. 1
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do, restrito ao debate acadêmico, pode se converter em problemas políticos de


grandes proporções, destacadamente nos casos em que direitos de comunida-
des étnicas são objetos de decisão na esfera judicial. Daí a necessidade impres-
cindível da arqueologia brasileira de aprofundar o diálogo com outros campos
do conhecimento, sobretudo com a antropologia social, sem se esquecer da
história e até mesmo do direito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBERTI, V. História oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação


Getúlio Vargas/CPDO, 1990.
ALMEIDA, M. A. D. de. Diálogos entre antropologia e direito à luz dos laudos
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75
CAP. 2
A MULTIVOCALIDADE DA DAS TAPERAS DOS ÍNDIOS ANTIGOS AOS SÍTIOS:
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: APROPRIAÇÕES DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO
Comunidades, práticas e direitos ENTRE OS TREMEMBÉS DE ALMOFALA (CEARÁ)

CAPÍTULO 2
DAS TAPERAS DOS ÍNDIOS ANTIGOS AOS
SÍTIOS: APROPRIAÇÕES DO PATRIMÔNIO
ARQUEOLÓGICO ENTRE OS TREMEMBÉS DE
ALMOFALA (CEARÁ)

76

DOI: http://dx.doi.org/10.18616/arq02

Jóina Freitas Borges


Sebastião Ovildo dos Santos (Sezinho Tremembé)
José Getúlio dos Santos (Getúlio Tremembé)

Ao tio Estevão Henrique (em memória),


o “campeão percurador de sítio mertiológico”,
com todo nosso amor, admiração e respeito.
SUMÁRIO
CAP. 2
A MULTIVOCALIDADE DA DAS TAPERAS DOS ÍNDIOS ANTIGOS AOS SÍTIOS:
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: APROPRIAÇÕES DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO
Comunidades, práticas e direitos ENTRE OS TREMEMBÉS DE ALMOFALA (CEARÁ)

APROPRIAÇÃO COMO ABAPORU

A ideia de escrever este texto não pareceu simples desde o princípio.


As apropriações em relação ao patrimônio acontecem de maneiras tão diversas
e são, muitas vezes, tão atravessadas por símbolos e por subjetividades, que
não há como não ser um tema complexo.
Entendemos, em primeiro lugar, que os processos de apropriação do
patrimônio estão ligados aos processos de identificação dos sujeitos e dos gru-
pos, cujas identidades são construídas constantemente e sempre transforma-
das, transmutadas, hibridizadas (HALL, 2004; WOODWARD, 2014). Em contra-
partida, o caso em questão ocorre em um contexto colonizado, permeado por
discursos de “fixidez” (BHABHA, 1998, p. 105), os quais alimentam estereótipos
que negam historicidade aos povos indígenas, portanto, procuram engessar as
relações desses povos com seus bens culturais, promovendo a falsa dicotomia
entre os “índios puros” e suas tradições “intactas” versus os “índios acultura-
dos” e a “perda” de suas tradições.
A própria noção de patrimônio também deve ser problematizada. O
77 “Patrimônio” possui um peso institucional muito forte em nosso país, em virtu-
de da trajetória do conceito em nossa história, ligada à consolidação do Estado
Novo na Era Vargas, como também devido a uma carga legislativa das mais efi-
cientes do mundo, apesar de suas falhas no que tange às leis de salvaguarda e
proteção. Essa institucionalização gera um distanciamento entre o patrimônio
como “bem de todos” e os bens culturais locais, apropriados por meio de idios-
sincrasias que, muitas vezes, as leis não conseguem acompanhar.
Cabe a ressalva de que a noção de patrimônio expressa neste capítulo
busca uma perspectiva “canibalizada” que traga consigo as particularidades de
sua apropriação. Assim, entendemos a apropriação do patrimônio arqueológico
realizada pelos Tremembés de Almofala como uma antropofagia, no sentindo
que Oswald de Andrade deu ao Movimento Antropofágico, a partir do quadro
Abaporu (homem que come gente), de Tarsila do Amaral. “Nunca fomos cate-
quizados”, disse Oswald em seu Manifesto Antropófago (1928), visto que sem-
pre digerimos tudo o que nos foi imposto. Digerimos transformando, transmu-
tando: uma antropofagia cultural.
Uma antropofagia cultural seria, como diz o Cacique João Venâncio
(BORGES, 2006, p. 112), um “jogo de cintura” para lidar com o “modelo capita-
lista”. Isso acontece,
CAP. 2
A MULTIVOCALIDADE DA DAS TAPERAS DOS ÍNDIOS ANTIGOS AOS SÍTIOS:
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: APROPRIAÇÕES DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO
Comunidades, práticas e direitos ENTRE OS TREMEMBÉS DE ALMOFALA (CEARÁ)

Porque a gente hoje temos que viver os dois lados, nós temos
que viver o lado da nossa cultura e temos que viver o lado do
modelo capitalista, porque não dá para separar, você tem que...
você tem que viver. Agora tem que viver uma coisa que não dê
pra esquecer a outra [...]. (BORGES, 2006, p. 112).

Esse “jogo de cintura” se dá por meio de uma antropofagia, de um


consumo de outra cultura, de modo que se “viva”, porém, sem esquecer as pró-
prias tradições, os costumes, os saberes, ou seja, sem abrir mão completamente
do próprio jeito de ser.
Em uma das aulas ocorridas no Magistério Indígena Tremembé
Superior, quando a professora informou sobre a possível prática de antropo-
fagia entre os ancestrais dos Tremembés, de séculos anteriores, Raimundão
Tremembé foi mais enfático: “É que para nós Tremembés é assim: o que vem da
terra é caça, o que vem do mar é peixe!”.
Essa frase de Raimundão, carregada de ironia, sintetiza, metaforica-
mente, as práticas “antropofágicas” que os Tremembés de Almofala vêm exer-
78 cendo, com o passar dos anos, para se manterem vivos como grupo indígena.
Os Tremembés, por meio de seus “dribles”, como eles mesmos dizem,
vêm consumindo as culturas que lhes são postas, recriando, constantemente, a
partir delas, sua própria cultura, a cultura tremembé: cheia de tradição, repleta
de novidades, com muitas contradições e com outras tantas consonâncias, pro-
duzindo uma cultura híbrida, como tantas outras neste planeta.
Não há como não ser gerada, como bem explora Bhabha (1998), uma
ambivalência entre a cultura que procura se impor e a cultura indígena, tida
como subalterna, nessas situações de hibridismo cultural. Essa ambivalência só
pode ser minorada por meio do canibalismo da cultura que é imposta; sendo
assim, para se manter vivo, tem que ser Abaporu. E é sendo Abaporu que os
Tremembés estão se apropriando do conceito de patrimônio arqueológico em
Almofala.

DOS NARRADORES AOS DISCURSOS

Para imbricar um tanto mais a discussão, este capítulo é um produto


da fala de três pessoas diferentes, as quais são, inclusive, de diferentes cultu-
CAP. 2
A MULTIVOCALIDADE DA DAS TAPERAS DOS ÍNDIOS ANTIGOS AOS SÍTIOS:
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: APROPRIAÇÕES DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO
Comunidades, práticas e direitos ENTRE OS TREMEMBÉS DE ALMOFALA (CEARÁ)

ras. Sendo assim, surgiram alguns questionamentos iniciais acerca da própria


formatação do texto: Como falar de apropriações sem se apropriar da língua,
sem consumi-la, como diria Michel de Certeau (2008), e sem realizar com ela
“bricolagens” para cometer sutis “delinquências” contra o discurso acadêmico
ainda tão cartesiano? Como realizar uma escrita sem homogeneizar as falas dos
autores, respeitando as ideias comuns, mas também as subjetividades?
No caso de pessoas que escrevem de um lugar de sujeito menos in-
diferente às sensações que o lugar do acadêmico, que escrevem inclusive de
suas aldeias, como bem coloca Tolstoi, como lidar com o discurso científico, que
sempre reduz a poesia da vivência?
Como definir as pessoas do discurso, se todo discurso é ondulante en-
tre o eu que escreve, o nós que compõe, os eles que nos atravessam nas cons-
truções diárias de memórias, histórias, saberes e experiências?
E como transcrever para esse discurso a fala do narrador nato? Esse
que, como alega Walter Benjamin (1987, p. 205), exerce “[...] uma forma artesa-
nal de comunicação [...]”, exerce uma arte? A imagem que vem à cabeça, lendo
o texto de Benjamin, é a do narrador como uma rendeira manuseando com ha-
79 bilidade seus bilros, fazendo surgir na almofada a trama da tão delicada renda.
É o mesmo exercício de quem sabe lidar com os fios da memória e consegue
produzir narrativas labirínticas por meio dos enlaces dos fatos, cruzando dados
como a rendeira cruza seus bilros.
A arte da renda e a arte da narrativa, porém, não encontram fluência
na escrita acadêmica. São os narradores natos, como o Sr. Estevão Henrique
Tremembé, que, tecendo suas lembranças, alimentam as narrativas sobre o
passado de seu povo e apropriam-se do patrimônio como artífices das suas
histórias. Como fazer, então, a riqueza desses narradores aparecer nos textos
científicos?
A maioria dessas perguntas permanece sem solução, pois todas essas
limitações dos discursos da Academia são frutos de uma colonização epistemo-
lógica, como bem coloca Mignolo (2008) e Santos (2010), que reprime escritas
várias e, por sua vez, também reprime interpretações várias da realidade.
Essa colonização epistemológica produziu discursos na maioria das ve-
zes circunscritos a uma história eurocêntrica, os quais perderam a multiplicida-
de das histórias locais em prol de se construir, como diria Certeau (2002, p. 9),
CAP. 2
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Comunidades, práticas e direitos ENTRE OS TREMEMBÉS DE ALMOFALA (CEARÁ)

“[...] a escrita conquistadora [...]”, a escrita da história europeia, que passa a ser
“inscrita” na América.
A colonização dos discursos sobre o passado, na Academia, produz a
disciplina histórica, a qual é duas vezes disciplina: por meio do verbo, que impõe
a norma do fazer historiográfico, e da doutrina, que se transforma em área de
conhecimento. Longe de realizar-se, assim, uma Arqueologia do Saber, como
propõe Foucault (2002), para a desconstrução dos esquemas lineares e para
a libertação dos “jogos das noções” (p. 24), os quais remetam àquela trama
da renda, que é a metáfora da complexidade da realidade, o discurso científi-
co tende ao esquema de uma história linear, da história como a verdade dos
acontecimentos.
Os acontecimentos, no entanto, nunca possuem uma única verdade,
pois que ganham cores variadas, de acordo com o olhar de quem os vê. O dis-
curso acadêmico produzido sobre o passado, quer a partir da história, quer a
partir da arqueologia (a ciência, não a proposta de Foucault), tende a homoge-
neizar o que é disperso, a generalizar o que é múltiplo e a simplificar o que é
complexo (FOUCAULT, 1998).
80 Nora (1993, p. 9) chama atenção para esse caráter “universal” da his-
tória, como uma “[...] operação intelectual e laicizante [...]”, enquanto que a
memória reflete atualidade e localidade, visto que “[...] se enraíza no concreto,
no espaço, no gesto, na imagem, no objeto [...]”. Os discursos das memórias são
mais múltiplos, são mais vivos, enquanto que na isonomia do enunciado cientí-
fico perde-se algo para o qual Sérgio Buarque de Holanda (1996, p. 8) chamava,
convenientemente, atenção: “Nada do que vive exprime-se impunemente em
vocábulos”.
“No coração da história trabalha um criticismo destrutor da memória
espontânea [...]” (NORA, 1993, p. 9). Nas nossas mãos estão as espadas, trans-
mutadas na escrita, que destroem essas memórias na monotonia de nossos dis-
cursos acadêmicos.
Cientes de todas essas insuficiências do discurso acadêmico e de nos-
sas insuficiências, porque também fomos colonizados e capturados por esse
discurso, tentamos construir uma narrativa mais plural, que desse conta das
nossas falas, mas também das falas dos outros que passam a compor o nosso
pensamento.
CAP. 2
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Há, dessa maneira, uma sinuosidade neste texto, que esperamos não
comprometer a leitura. Pedimos ao leitor paciência para enxergar, nas entreli-
nhas, os diversos autores que o compõem, pois diversas são as apropriações
das palavras, das histórias e das memórias que construíram este nosso texto, na
tentativa de construir-se um discurso, ainda científico, porém mais intercultural.
Assim, a professora também se fez aluna de seus alunos professores, e
nossos intercâmbios de conhecimentos geraram este texto, com tantas pessoas
do/no discurso!

EU, NÓS, ELES: PESSOAS PLURAIS NO DISCURSO,


PARA DISCURSOS PLURAIS SOBRE O PASSADO

Eles, Tremembés – Jóina Borges:

Há cerca de dez anos, trinta e nove professores Tremembés inaugu-


raram um capítulo especial da história da educação diferenciada indígena no
81 Ceará. Iniciaram o Magistério Indígena Tremembé Superior (MITS), em Almofala
(Distrito do Município de Itarema), e inovaram em um curso de nível superior
que priorizou a autonomia Tremembé nas suas abordagens teórico-metodoló-
gicas, desde a concepção da matriz curricular até as metodologias aplicadas em
sala de aula (FONTELES FILHO, 2013).
A sala de aula ficava aberta para a foz do rio Aracatimirim, no ponto em
que esse rio se abria para o mar. O curso começava com o “pé no chão”,1 chão
de areias secularmente conhecidas pelos tremembés. A abertura do curso, na
disciplina de “Antropologia, Arqueologia e História”, foi realizada debaixo de um
telhado de palha e sem paredes, as quais não permitiriam o deleite da beleza
da paisagem da foz do rio.
A sala de aula estava cheia: além dos jovens professores, que olharam
com curioso interesse para os “slides” apresentados, junto a eles, crianças, be-
bês e as experientes lideranças indígenas, de várias localidades de Almofala,

1
A etapa anterior do magistério, em nível médio, foi chamada de Curso Pé no Chão. O MITS
assim também foi chamado pelo Cacique João Venança, pois ainda não possuía apoio oficial
de nenhuma instituição, mas teve início com muita esperança e empenho dos tremembés
para que pudesse acontecer.
CAP. 2
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assistiram à aula e também se apropriaram, naquele momento, de um novo


conceito para seu repertório – o conceito de sítio arqueológico (BORGES, 2007).
Os sítios arqueológicos já eram conhecidos por eles, mas com outras
denominações: eram as “taperas dos antigos”, “as taperas velhas”, “as taperas
dos índios velhos”.

Nós – Sezinho Tremembé:

Nossos mais velhos, antigamente, não conheciam o que era sítio ar-
queológico, por causa do pouco conhecimento sobre o assunto. Muitos viam
esses restos como algo sem serventia para o fortalecimento da luta. Mal sabiam
eles que aqueles vestígios eram fontes históricas da memória de nosso povo.
É importante lembrar que, antes, nosso povo não tinha conhecimento
desse bem imaterial que estava em nosso aldeamento, pois conhecíamos esses
locais simplesmente por taperas velhas. Mesmo assim, tínhamos uma relação
harmoniosa com eles, pois tínhamos plena noção de sua importância, devido ao
fato de ali existirem vestígios de nossos troncos velhos.
82
Muitas pessoas de nosso aldeamento são consideradas “troncos ve-
lhos”, devido à vasta experiência de luta que adquiriram ao longo de suas jorna-
das, pois, diante dos desafios que enfrentaram, não se deixaram abater e conti-
nuaram de pé, firme na luta pela nossa terra. Vale ressaltar que troncos velhos
não são apenas as pessoas mais velhas e sim todos aqueles que levam a luta
com afinco, defendendo nossos direitos, nossos costumes e nossas tradições.

Eu – Getúlio Tremembé:

Falar da infância é fazer a memória vir à tona e se lembrar de muitas


coisas que faziam toda a diferença na vida de um Tremembé. Vou falar aqui de
algo que está muito presente na minha vida, as taperas. Lembro-me que, quan-
do era criança, trabalhando com meu pai no quintal, ou mesmo andando e brin-
cando pelas dunas de Mangue Alto, costumava encontrar muitas coisas, que
eu não entendia o que eram. Eram, geralmente, restos de búzios e de conchas,
restos de cerâmicas, de pedras, de barro, de ossos de peixes... Sempre pergun-
tava ao meu pai o que era aquilo, e a resposta era sempre a mesma: “Meu filho,
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isso aí é uma tapera, era morada dos antigos”. Como a gente não tinha nenhum
conhecimento acadêmico sobre o assunto, não dava muita importância, e como
precisava cavar a terra, nos quintais, para plantar, na maioria das vezes, tudo
o que era encontrado nas taperas era vasculhado pela enxada. Muitas vezes,
eram encontradas cabeças de cachimbos, pedaços de pratos, bocas inteiras de
potes, pedras grandes, que diziam “Meu pai e minha mãe eram as trempes”.2
A cada ano que se passava, a gente achava mais materiais quando começava a
trabalhar, e, muitas vezes, movida pela curiosidade, a gente costumava cavar
um pouco mais fundo para ver se tinha mais coisas. E é claro que encontrava.

DISCURSOS HISTÓRICOS E ARQUEOLÓGICOS:


SABERES INTERCULTURAIS, APROPRIAÇÕES
MÚTUAS, CONCEITUAIS E EMPÍRICAS

Desde os tempos da colonização, as terras da costa norte do Brasil são


terras tremembés. Saber que é uma área bastante vasta tem grande valor para
83 o nosso povo Tremembé, devido ao fato de ser uma terra tradicionalmente ocu-
pada por povos indígenas e ainda possuir vestígios de sítios arqueológicos.
Os sítios arqueológicos, como os que existem nas terras de Almofala,
espalham-se por sobre as dunas do Ceará e do Piauí.3 São vestígios de tempos
que antecederam os históricos tremembés, mas também remetem à ocupação
destes durante o período da colonização, assim como até a atualidade.4
Os documentos históricos do século XVI não se referiam aos nativos
da costa norte, especificamente, como Tremembés, mas sim como “tapuias”
2
Nome dado às estruturas das fogueiras, que são feitas mais comumente de madeira e de pedras.
3
Referimo-nos aos sítios que conhecemos pessoalmente, não inviabilizando a existência de tais sítios
em outros Estados. Não nos referimos a uma bibliografia que trate sobre o tema, porque apesar de
haver várias referências sobre sítios dunares em outros Estados, como no Rio Grande do Norte e no
Maranhão, não há, ainda, um estudo comparativo e com datações que possam precisar uma classifi-
cação, ou mesmo que possam ser remetidos aos tremembés.
4
Os sítios da costa norte brasileira possuem, em sua maioria, as mesmas características de sítios du-
nares, com material cerâmico, malacológico e lítico, principalmente, exposto a céu aberto. Possuem
datações de alguns milhares de anos, como os do Maranhão (BANDEIRA, 2008), mas ainda são pou-
cas e recentes as pesquisas sistemáticas nessa costa (BORGES, 2004; NASCIMENTO, LUNA e GOMES,
1999). Em relação aos dados históricos, há referências da presença de Tapuias na costa norte, desde
os primeiros relatos escritos e iconográficos do século XVI. Um dos mais conhecidos e sistemáticos é o
de Gabriel Soares de Sousa, de 1587 (BORGES, 2010).
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ou “índios da costa” de maneira genérica. A designação “Tremembé” e corrup-


telas só começou a aparecer em documentos a partir do início do século XVII
(BORGES, 2010).
Diogo de Campos Moreno, o capitão e sargento-mor do Estado do
Brasil, que acompanhou Jerônimo de Albuquerque na conquista de São Luís,
aos franceses escreveu, em 1614, sobre os “[...] Tapuias do Parameri, chamados
de Teremembes [...]”, os quais se situavam em um local que poderia ser identi-
ficado como um curso d’água, cuja foz ficava entre os atuais rios Coreaú (CE) e
Parnaíba (PI) (BORGES, 2010, p. 67-68).

Figura 1 - Detalhe do Atlas do Maranhão e Grão-Pará, de João Teixeira de Albernaz I (ca.


1629)

84

Fonte: Biblioteca Digital Luso-Brasileira. Autor: João Teixeira Albernaz I, fl. 1602-1649. 47,3
x 59,7 [ca.1629].

O capuchinho francês Yves d’Evreux (2002), reportou-se, em 1615,


aos Tremembés que habitavam as praias do Maranhão ao Ceará, os quais,
ordinariamente, dormiam sobre as dunas. Em 1629, o cartógrafo Albernaz
I nomeou-os “Taramembes de Guerra”, em uma “Província” que se descor-
tinava entre a região de Jericoacoara, no Ceará, até a região de Tutoia, no
Maranhão.
Uma Consulta do Conselho Ultramarino, de 1722, informava que os
“Tarammambes” “sempre ocuparam” as praias do Maranhão e da Parnaíba
(Piauí) e tinham, por sua casa e cama, a areia; por sua seara, o mar (BORGES,
2010).
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É importante salientar que o povo Tremembé sempre foi muito


migrante neste imenso território, pois não passava muito tempo em um de-
terminado lugar; logo buscava outro espaço, em busca de melhor sobrevi-
vência, deixando seus vestígios perceptíveis até hoje, a olho nu, uma vez
que é notável a presença de cerâmicas e cacos deixados por eles, sem contar
os amontoados de conchas de moluscos e crustáceos, os quais eram a sua
principal alimentação diária.
Esse fato de serem encontradas muitas conchas nos lugares onde eles
residiam indica que eles procuravam se abrigar sempre próximo a regiões lito-
râneas, às margens do mar ou à beira de rios e lagoas. Devido a essa ocorrência
– habitarem sempre lugares com águas próximas –, o povo Tremembé ficou
conhecido como “deuses do mar”, pois conseguia, inclusive, mergulhar a gran-
des profundidades, em busca de alimentos existentes nas águas. Quando os
alimentos daqueles locais ficavam escassos, eles batiam em retirada, em busca
de novos habitats, deixando, assim, naquele local, uma verdadeira tapera velha,
como dizem nossos velhos, e também grandes histórias de luta e sobrevivência
para nosso povo.
85 Em específico, a localidade de Almofala é habitada pelos Tremembés
desde o início do século XVIII, quando, depois de várias tentativas de aldea-
mento por parte da Coroa Portuguesa, conforme se pode observar em várias
cartas régias do final do século XVII, foram aldeados em 1702. Alguns anos após
o estabelecimento da Missão de Almofala, foi construída uma igreja dedicada a
Nossa Senhora da Conceição, no ano de 1712, como pode ser visto até hoje no
seu frontal5 (BORGES, 2006, 2010).
Durante o percurso da colonização, devido ao desmonte dos aldeamen-
tos, à instalação do Império, à política da Lei de Terras de 1850, os Tremembés
continuaram em Almofala, havendo, é claro, parentes que migraram para outras
partes, bem como parentes que desde a época da colonização habitavam ou-
tras regiões, como Tutoia, no Maranhão. Com a chegada da República, os anos
passaram, e os Tremembés continuaram em Almofala, notadamente localizados
nos entornos da igreja do antigo aldeamento.
No ano de 1897, a igreja de Almofala foi totalmente coberta por du-
nas, que avançaram sobre o local. O movimento natural dos ventos alísios sobre
a costa cearense provocou uma migração antrópica, que gerou consequências
dramáticas para os Tremembés de Almofala até os dias atuais, visto que eles
5
Foi restaurada e tombada pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN.
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tiveram que se retirar de seu espaço ancestral, saindo de perto da igreja, que foi
tomada pelas areias.
No início dos anos de 1940, as dunas movimentaram-se novamen-
te, começando o trabalho inverso de descobrir a igreja e o povoado. Alguns
Tremembés mais velhos contam que desenterraram a igreja quando jovens e
crianças. Nas noites de lua cheia, lembram que faziam festa, que faziam nove-
nas, que as mulheres enchiam as saias de areia e as crianças se divertiam, tama-
nha era a alegria de ver seu símbolo voltando à tona. Seu Estevão Henrique dizia
com orgulho: “[...] eu descobri a igreja com essas mãozinhas aqui que a terra há
de comer [...]” (BORGES, 2006).
Com as dunas “caminhando” para outros locais, como gostam de dizer,
os Tremembés puderam retornar às suas origens, aos arredores da igreja, po-
rém não retornaram apenas eles, foram acompanhados de posseiros, “os bran-
cos”, que passaram a invadir Almofala. O local do antigo aldeamento, assim,
passou a representar um espaço de resistência e de afirmação étnica, pois, à
medida que o povoado ia sendo descoberto pelas areias, posseiros “brancos”
invadiam o lugar, disputando o espaço com os índios.
86 Conforme as invasões aconteciam, aumentava a violência, e, assim, os
índios não podiam sequer se dizer mais índios, como o senhor Estevão Henrique
afirmava: “[...] o sangue dava no meio da canela”. Se a polícia visse qualquer
conglomerado deles, “o pau comia”. Dessa maneira, conforme a igreja foi desco-
berta, a identidade indígena teve que ser encoberta, “[...] a nossa origem vivia
enterrada [...]”, como dizia o senhor Estevão Henrique do alto de sua sabedoria
(BORGES, 2006, p. 126).
Desde então, a história dos Tremembés está repleta de invasões, in-
clusive de grandes empresas, como a Ducôco S/A, que a partir de 1978 adquiriu
propriedades na região e estendeu seus coqueirais pelas lavouras e quintais dos
indígenas. Segundo os Tremembés, suas terras foram invadidas por tratores, e
cercas foram erguidas, espremendo-os em locais diminutos. O litígio se intensi-
ficou e eles lutam até hoje (BORGES, 2007).
O progresso chegou a Almofala: empresas agroindustriais, de pesca e
de beneficiamento de camarão, parques eólicos, dentre outros, os quais, além
de contribuírem para a expropriação das terras indígenas, também degradam
o ambiente, tornando impraticáveis a pequena atividade agrícola e a pesca
tradicional.
CAP. 2
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Diante dessa realidade, tornou-se imprescindível a mobilização da co-


munidade, com o intuito de proteger seus espaços. Existem, em nossas terras,
lugares sagrados para o nosso povo, os quais não podem estar expostos à vulne-
rabilidade devido à sua grande importância, de modo que é preciso que sejam
medidas forças, nos órgãos e na comunidade em geral, para que essas terras
tenham a devida proteção.
Existem grandes empreendimentos privados, atualmente, que querem
se aproveitar dos recursos disponíveis que nossa terra oferece, os quais não
se importam de afetar os lugares que consideramos sagrados para nosso povo
nem de observar a importância do patrimônio imaterial que está escondido nos
sítios arqueológicos Tremembés. Diante da importância que os índios antigos
têm para nosso povo, os sítios são também espaços que contêm forças ances-
trais, que nos fortalecem na luta.
Um dos maiores problemas que os Tremembés e outros tantos po-
vos enfrentam, não apenas em relação aos empreendedores, mas também em
relação à comunidade científica, é o fato destes tratarem de maneira dual, di-
cotômica, as questões relativas à proteção ambiental de suas terras e espaços
87 sagrados.
O patrimônio imaterial que está escondido nos sítios arqueológicos
não reside apenas nas memórias, nos modos de fazer, na tradição etc. Ele está
escondido, também, nas coisas deste mundo. Ele está nos encantados, nos mis-
térios, no sagrado de alguns lugares e em algumas relações com os espaços que,
muitas vezes, nem os próprios Tremembés sabem explicar, mas sabem muito
bem respeitar.
O povo Tremembé sempre respeitou a natureza e, a cada momento,
está tentando preservá-la dos latifundiários que querem destruí-la para fazer
grandes empreendimentos. Por isso nossa comunidade vem se organizando
contra os empreendimentos que vêm querendo entrar em nossa terra e destruir
nosso espaço sagrado.

DE TAPERA A PATRIMÔNIO, DE PATRIMÔNIO À


TAPERA

Quando eu, Getúlio Tremembé, comecei a me envolver no Movimento


Indígena, comecei a me deparar com pessoas que falavam que também encon-
CAP. 2
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travam “taperas”, mas meu interesse sobre isso só veio a se aprofundar quan-
do, em julho de 2006, tive a oportunidade de estudar no Curso de Magistério
Indígena Tremembé Superior – MITS a disciplina “antropologia, arqueologia e
história”. Nesse momento foi que passei a entender que o que nós Tremembés
chamamos de taperas são sítios arqueológicos.
Passei a entender que esses locais têm uma grande importância para
os Tremembés, pois dizem muito de como nossos antepassados viviam. Passei
a entender que são lugares que precisam ser preservados, estudados, para as-
sim se entender melhor como era a vida dos antigos Tremembés. Durante essa
etapa de estudos, a maioria dos cursistas teve a oportunidade de revelar que
conhece muitos locais assim, que já teve contato com taperas, ou seja, conhece
sítios arqueológicos, sendo alguns mais antigos e outros bem mais recentes.
Foi a partir do encontro com a professora que todos os cursistas do
MITS, entre eles eu, puderam e passaram a entender que os sítios arqueológi-
cos podem e devem ser fontes de pesquisa para o aprofundamento da História
Tremembé.
Outra coisa que vale a pena ressaltar é que esses conhecimentos ad-
88 quiridos sobre os sítios arqueológicos nos dão segurança para trabalhar esse
assunto com nossos alunos nas nossas Escolas Diferenciadas Tremembés. Hoje,
quando falamos do referido assunto nas Escolas, temos total segurança de falar
que as taperas, tão presentes entre nós, Tremembés, são sítios arqueológicos
que têm um significado muito grande nas nossas vidas, seja do ponto de vista
cultural, étnico, histórico, filosófico e até mesmo espiritual.
Em 2015, tive a oportunidade de falar do assunto, quando estava
ministrando a disciplina de História Geral, para os alunos do Ensino Médio
Intercultural Tremembé – EMIT da Escola Indígena Tremembé Maria Venância.
Nessa ocasião, visitamos as obras do Complexo Eólico de Itarema, e, nessa visi-
ta, fomos até a Lagoa Seca, localidade de Almofala, onde estavam sendo feitas
escavações arqueológicas.
Em conversas com os alunos e com os arqueólogos, pudemos per-
ceber o quanto as “taperas” têm um significado amplo para nosso povo, pois
alguns alunos chegaram a se emocionar quando se depararam com tantos ob-
jetos que pertenceram aos nossos ancestrais, e foi a partir daquele momento
que muitos deles despertaram para tal assunto. Em conversa com o responsável
pelas escavações, este nos revelou que já tinham encontrado em torno de doze
CAP. 2
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mil peças arqueológicas e que todas estavam sendo catalogadas e seriam leva-
das para o Museu do Homem Cariri, em Nova Olinda, mas com a possibilidade
de serem trazidas de volta para Almofala, por fazerem parte da História Viva dos
Tremembés.
Lembro-me que dentre as peças encontradas havia bastantes restos
de búzios, conchas, cerâmicas, pedras e até mesmo restos de fogueiras, tudo
isso a uma profundidade de 1,5m. Ali mesmo, pude falar aos alunos dos meus
conhecimentos sobre as taperas, pois tudo o que estava sendo encontrado ali
eram resquícios de moradias antigas dos antigos Tremembés.
O conhecimento em relação aos sítios arqueológicos, hoje, está mais
presente em nosso cotidiano, devido ao fato de essa questão estar sendo bas-
tante discutida em sala de aula e em reuniões com a comunidade. Isso torna
mais fácil a preservação dos sítios, pois, com o conhecimento em mão, o povo
pode se organizar melhor e lutar pelo que é seu por direito, ou seja, os sítios
arqueológicos, que são vestígios deixados por nossos ancestrais mais velhos em
lugares que eles residiram por anos.
Com o decorrer do tempo, esse conhecimento, que havia adormeci-
89 do na memória, foi se expandindo e ganhando forma e, aos poucos, tomando
espaços perante a comunidade, principalmente dentro da sala de aula, na qual
os professores fazem um trabalho de resgate, de preservação desse bem tão
valioso para a continuação da construção de nossa própria identidade.
Esse resgate consiste na busca pela preservação dos nossos patrimô-
nios materiais e imateriais que estão nos sítios arqueológicos, uma vez que esse
conhecimento estava adormecido nas lembranças de nossos troncos velhos,
que não nos transmitiam essas vivências das quais tinham lembrança, de modo
que eram guardadas apenas em suas memórias e intelectos.
No processo de aprendizagem e continuação da autoafirmação de nos-
so povo, o tema “sítios arqueológicos” vem, cada vez mais, fortificando-se no
mundo jovem, pois os professores estão a cada instante fazendo ponte com a
história de nossos antepassados em relação aos vestígios dos sítios arqueológi-
cos e à continuação de sua preservação.
A relação das lideranças indígenas com os nossos vestígios também
vem se aprofundando. Esses vestígios, deixados ao longo do tempo nas mar-
gens da região litorânea, são as pegadas de identificação dos costumes pesquei-
CAP. 2
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ros que nossos ancestrais Tremembés tinham; portanto, alimentam as memó-


rias dos mais velhos.
Assim, é na memória das lideranças, das pessoas mais velhas, que os
vestígios arqueológicos ganham vida e significados que vão além dos funcionais
ou simbólicos. As memórias trazem histórias do cotidiano dos ancestrais, mas
estão imbricadas pelo presente de lutas e de conflitos pela terra. Essas memó-
rias são constantemente trabalhadas a partir das demandas atuais, então os
sítios arqueológicos são apropriados à construção de uma história dinâmica e
militante.
Os sítios arqueológicos também servem para se fazer o caminho inver-
so, pois quando os arqueólogos descobrem novos sítios, surgem novos espaços
ancestrais, aparecem novas taperas, que passam a alimentar novas memórias e
a contar novas histórias ancestrais.
Um dos exemplos mais notáveis da circularidade que ocorre em re-
lação aos conceitos de tapera a sítio e de sítio à tapera foi quando a liderança,
Manoel Docas, afirmou, em uma conversa informal com a equipe da UFPI sobre
os rumos que as pesquisas deveriam tomar: “Nossos marcos da terra também
90 são sítios arqueológicos”.
Conforme observa Vilela (2016, p. 50):

[...] os sítios arqueológicos e os marcos territoriais são apre-


sentados pela comunidade como testemunhos da ocupação
Tremembé na região. Os marcos são lugares de memória onde
a comunidade mantém relações físicas e simbólicas. São luga-
res que no passado foram eleitos pelos “índios velhos” para de-
limitar seu território.

O senhor Manoel Docas não apenas usou o conceito de sítio arqueoló-


gico para justificar o estudo dos marcos da terra. Ele se apropriou do conceito.
Ele não procurou saber se havia nos locais onde estão os marcos da terra quais-
quer tipos de vestígios arqueológicos. Também “informou” aos pesquisadores
que os marcos da terra são sítios arqueológicos, pela importância imaterial que
esses espaços possuem para a comunidade, devendo, portanto, ser registrados
e preservados.
CAP. 2
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Há entre os Tremembés uma percepção mais sensorial dos lugares ar-


queológicos, como bem argumenta Silva (2016, p. 49): “[...] Acredito que a com-
preensão dos Tremembés sobre os marcos da terra seja algo mais sinestésico,
um imbricar de sentidos, uma relação entre as pessoas, as paisagens e as me-
mórias, enfim uma vivência [...]”. Essa relação mais holística, porém, não deixa
de existir com a patrimonialização do espaço, ao contrário, ela dá um status a
mais, pois configura-se em novo elemento mais concreto, em termos jurídicos,
na luta pela terra, pois sendo o sítio arqueológico algo protegido pela lei, tornar
os marcos como sítios é dar a eles proteção.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“O contrapeso da originalidade nativa


para inutilizar a adesão acadêmica.”

(Oswald de Andrade em Manifesto da Poesia Pau-Brasil – 1924)


91
Nesse vai e vem de “eu”, “nós” e “eles”, procuramos demonstrar como
a apropriação do patrimônio arqueológico acontece de maneira sinuosa. Há,
claramente, uma evolução de como eram observadas as taperas antes dos
Tremembés de Almofala conhecerem o conceito de sítio arqueológico e antes
das aulas e discussões, em comunidade, sobre o tema. Antes, as taperas não
eram uma coisa “grande”, mas sempre foram “respeitadas”. Como o cacique
João Venança descreve no ano de 2005 (BORGES, 2006, p. 205):

[...] Ali foi um passado, ali foi aonde ele viveu, onde ele teve a
convivência dele, ali tem um significado, não é? Aonde [sic] se
dá com uma tapera de casa a gente sabe que ali tem um... toda
uma história, uma tradição, do passado daquela família que
morou ali, né? Então pra gente é a mesma coisa, a gente não
tem assim... aquilo como uma grande... né? Mas a gente tem o
respeito porque ali a gente sabe que morou um... uma pessoa
da família, morou um parente [...].
CAP. 2
A MULTIVOCALIDADE DA DAS TAPERAS DOS ÍNDIOS ANTIGOS AOS SÍTIOS:
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: APROPRIAÇÕES DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO
Comunidades, práticas e direitos ENTRE OS TREMEMBÉS DE ALMOFALA (CEARÁ)

Depois das aulas do MITS e da apropriação do conceito por parte dos


professores Tremembés, pelas próprias lideranças indígenas e pelas crianças
Tremembés, podemos visualizar, atualmente, a apropriação dos “vestígios”
como “fontes históricas da memória”. Os vestígios, sendo materiais, são supor-
tes mnemônicos que ajudam a consolidar a história tremembé, ajudam a com-
provar sua presença na região. São documentos de sua presença ali.
Os vestígios das taperas dão certa “segurança”, visto que são a história
materializada. Podem ser utilizados, inclusive, nas aulas das escolas indígenas
diferenciadas, pois são uma “história viva”, que emociona, que toca, em todos
os sentidos, inclusive no sentido religioso. Gera-se uma história quase “míti-
ca” que vem reafirmar a permanência dos nativos troncos velhos. Misturam-se
elementos materiais e imateriais que formam um amálgama concreto: é uma
história que se pode pegar.
Essa é uma das questões mais importantes na apropriação do patrimô-
nio arqueológico, pois as escolas representam um dos mais importantes locus
de luta pela terra. As escolas indígenas tremembés são a garantia de um futuro
tremembé. Nelas são reavivadas as tradições e valorizados os saberes dos “li-
92 vros vivos”: os anciãos e suas memórias. As escolas possuem a incumbência de
permanecer e propagar com esse legado de preservação, passando suas histó-
rias para as futuras gerações, deixando, assim, registradas suas lembranças e
resistência de luta, para que não sejam esquecidas no tempo e no espaço.
Dessa apropriação, feita de maneira interdisciplinar e intercultural, de
três conceitos advindos, neste caso, da arqueologia e da história, resultou a de-
finição de que os vestígios arqueológicos são fontes históricas, visto que contam
a história tremembé; são também materializações da memória do povo e mate-
rializações das histórias sobre os antigos.
Há uma dinâmica circular, pois ao mesmo tempo que os vestígios são
apropriados como fonte da história e memória, histórias e memórias retroali-
mentam esse sistema, visto que elas acabam, também, por fornecer elemen-
tos que se transformam em vestígios arqueológicos: nossos marcos são sítios
arqueológicos.
Dessa forma, na deglutição realizada pelos tremembés, o patrimônio
“imaterial” das taperas é que vai se configurar como o mais importante vestígio
arqueológico.
CAP. 2
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Comunidades, práticas e direitos ENTRE OS TREMEMBÉS DE ALMOFALA (CEARÁ)

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PARQUE NACIONAL SERRA DA CAPIVARA E

CAP. 3
A MULTIVOCALIDADE DA
COMUNIDADE LOCAL: EDUCAÇÃO, VALORIZAÇÃO,
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
FRUIÇÃO SOCIAL E PERSPECTIVAS FUTURAS – O
Comunidades, práticas e direitos CASO DO MUNICÍPIO DE CORONEL JOSÉ DIAS (PI)

CAPÍTULO 3
PARQUE NACIONAL SERRA DA CAPIVARA
E COMUNIDADE LOCAL: EDUCAÇÃO,
VALORIZAÇÃO, FRUIÇÃO SOCIAL E
PERSPECTIVAS FUTURAS – O CASO DO
MUNICÍPIO DE CORONEL JOSÉ DIAS, PI

96

DOI: http://dx.doi.org/10.18616/arq03

Marian Helen da Silva Gomes Rodrigues

SUMÁRIO
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INTRODUÇÃO

No cerne das discussões contemporâneas sobre a preservação do pa-


trimônio cultural, a educação tem desempenhado com tenacidade um papel
fulcral, pois a práxis educacional figura como um suporte primordial no proces-
so de formação de sujeitos críticos e ativos, permitindo-lhes o pleno exercício da
cidadania, responsabilidade social e tomada de decisões, tornando-os protago-
nistas de sua própria história (FREIRE, 1979).
No arcabouço da preservação do patrimônio cultural, sujeitos cons-
cientes estarão aptos a construir “um futuro menos predatório” (CASCO, 2005,
p. 03), pois o conhecimento crítico e a apropriação das comunidades de seu pa-
trimônio são a garantia de preservação, de usos sustentáveis e de fruição social
no presente e para o futuro.
O processo educativo, seja em qualquer área do conhecimento, leva o
indivíduo a utilizar suas capacidades intelectuais para a obtenção de habilidades
e conceitos que serão utilizados na vivência cotidiana. Um dos objetivos que
a educação centrada no patrimônio cultural propõe, segundo Horta, Grunberg
97 e Monteiro (1999), é estimular situações de aprendizagem sobre os processos
culturais, seus produtos e manifestações que, doravante, despertarão nos su-
jeitos o interesse em resolver assuntos significativos para sua vida individual e/
ou coletiva.
Essa nova proposta se afirma cada vez mais nas políticas preservacio-
nistas do Brasil. O envolvimento simétrico das comunidades se torna, essen-
cialmente, a ação mais importante quando o assunto é preservação, fruição e
sustentabilidade cultural, pois, como afirma Funari (2001), a comunidade é a
maior guardiã de seu patrimônio, inclusive as principais recomendações nacio-
nais e internacionais de proteção do patrimônio assumem essa importância.
Ao partir desse entendimento, desenvolvemos, em 2011, no âmbito
da pesquisa de mestrado Erasmus Mundus, em Arqueologia Pré-Histórica e
Arte Rupestre, pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e Instituto
Politécnico de Tomar (Portugal), um estudo na comunidade do município de
Coronel José Dias, estado do Piauí, que foi diretamente afetada pela criação do
Parque Nacional Serra da Capivara (PNSC), cujo objetivo central foi perceber
as relações estabelecidas entre a comunidade de Coronel José Dias e o Parque
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Nacional Serra da Capivara no que concerne à sua valorização, acessibilidade,


preservação e fruição social.
Muitos problemas surgiram com a criação do Parque, sobretudo no
município de Coronel José Dias, pois lá viviam muitas famílias instaladas no ter-
ritório que fora delimitado para a criação da Unidade de Conservação. Na lista
dos problemas enfrentados, citam-se as desapropriações de um segmento da
comunidade, sem uma preparação prévia, restringindo drasticamente os modos
de vida relacionados ao manejo da terra e ao usufruto simbólico daquele terri-
tório ora delimitado como Unidade de Conservação de Proteção Integral.
Devido à complexidade dos problemas enfrentados, as ações de cunho
socioeducativo tornaram-se prioridade, com a implantação de vários projetos
envolvendo educação, saúde e desenvolvimento sustentável pelos órgãos ges-
tores do Parque. Sua importância decorreu não apenas de uma necessidade de
consolidar a proteção do PNSC, mas de um dever de contribuir para a formação
da cidadania, apoiada também em um conhecimento emancipatório e em uma
postura crítica.
Houve, no entanto, instabilidades na manutenção dos projetos peda-
98 gógicos implementados que provocavam constantes rupturas nos programas
educacionais, fator que causou insatisfação na comunidade. A sua descontinui-
dade cortou um processo educacional, provocando imprecisão nos resultados
alcançados e limitando o público que seria diretamente atingido.
Ao partir dessa conjuntura, a problemática da pesquisa se estruturou
da seguinte maneira: As ações educativas, centradas no patrimônio arqueoló-
gico pré-histórico, desenvolvidas na região, contribuíram para aproximar a co-
munidade de Coronel José Dias ao patrimônio cultural/arqueológico do Parque
Nacional Serra da Capivara? O que deverá ser feito adiante? Quais os elementos
que deverão ser agregados para que a população possa se beneficiar plenamen-
te desse patrimônio de forma sustentável, tendo as ações educativas como um
instrumento que fomente esse processo?
Como hipótese de trabalho entendeu-se que os programas educativos,
centrados no patrimônio cultural do PNSC, desenvolvidos por diversas institui-
ções, contribuíram para aproximar uma parcela da comunidade do município
de Coronel José Dias à lida da preservação, da revalorização e da apropriação
desse patrimônio. Contudo, tal intento não foi suficiente para que a comunida-
de compreendesse que pode usufruir desse patrimônio de forma sustentável.
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Faz-se necessário agregar novos elementos, os quais devem ser acrescentados


por parcerias, inclusive com o poder público, partindo de iniciativas integradas,
desde seu início, com a comunidade.
Dito isso, o presente capítulo propõe apresentar dois momentos dessa
reflexão. O primeiro é o resultado obtido na pesquisa de dissertação de mes-
trado, no contexto de três análises: as relações instituídas entre comunidade
e Parque, por meio do histórico de criação deste, alinhavadas às narrativas
dos moradores; o estudo bibliográfico e a participação nos programas educa-
tivos implantados pela Fundação Museu do Homem Americano – FUMDHAM,
Escritório Técnico do Instituto do Patrimônio Histórico Cultural (IPHAN) de São
Raimundo Nonato; e a aplicação de questionários por inquéritos com a popula-
ção, nas faixas etárias de 11 a 70 anos, do município de Coronel José Dias.
O segundo momento corresponde aos passos trilhados após a con-
clusão do mestrado, com base nos resultados e nas recomendações oriundas
da referida dissertação. Nesse sentido, foi criado, em 2013, por meio de um
projeto científico em Meio Ambiente Cultural e Arqueologia Colaborativa, o
Instituto Olho D’Água (IODA), um projeto nascido no seio da comunidade pela
comunidade. A missão do IODA visa conciliar a preservação do meio ambiente
99
cultural, com atividades empreendedoras que promovam a participação simé-
trica de todos os envolvidos, partindo de iniciativas de dentro da comunidade.
Elencaremos aqui, portanto, as propostas e as pesquisas em desenvolvimento,
mostrando a experiência por meio da qual cientistas e comunidade colaboram
em sinergia para um projeto de sustentabilidade cultural.

COMUNIDADE E PARQUE NACIONAL SERRA DA


CAPIVARA: AS RELAÇÕES INSTITUÍDAS

Entender as relações estabelecidas entre a população de Coronel


José Dias e os processos instituídos com a criação do Parque Nacional Serra
da Capivara se faz necessário para compreendermos o motivo pelo qual deli-
mitamos essa comunidade como objeto de reflexão nos processos de inclusão
educacional/patrimonial.
Foi na comunidade de Coronel José Dias, especialmente no povoado
Sítio do Mocó (área do entorno do PNSC), que a gestão do Parque implantou o
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primeiro programa de preservação patrimonial, o qual, segundo Pessis (1991),


visava fomentar os cuidados com o meio ambiente e o desenvolvimento de uma
política autossustentável, econômica e social nas comunidades. Sobretudo, de-
fendia que as ações educativas centradas no patrimônio ambiental/cultural
eram imprescindíveis à efetiva preservação e à apropriação consciente pela
comunidade.
Foi, também, parte da referida comunidade que mais sofreu com a im-
plantação do Parque, pois na região da Serra da Capivara viviam muitas famílias
instaladas em vários povoados, dentro da área que foi delimitada para a criação
do PNSC, entre eles o povoado Zabelê e o Olho D’Água da Ritinha.
O processo de desapropriação se deu de forma traumática, pois as po-
pulações tradicionais, indenizadas ou não, tiveram que migrar para as cidades
do entorno do Parque – São Raimundo Nonato, Coronel José Dias – e para ou-
tras regiões do país, a fim de recomeçar suas vidas como feirantes, empregadas
domésticas, zeladores, reconstruindo os seus modos de vida e suas tradições
culturais.
Um ex-morador revelou que:
100
Do ponto de vista da criação do parque, hoje considero que foi
positivo, eu conhecia a comunidade Zabelê totalmente isolada,
sem condição de desenvolvimento e de oferecer condição para
aquela comunidade viver dignamente como ser humano. Foi
feita essa mudança dessa comunidade para outra, é evidente
que, na época, todo mundo protestou. Hoje, eles estão assen-
tados num determinado local onde todos estão satisfeitos. Para
eles foi importante aquela mudança que o parque fez, essa
transferência deles de um lugar totalmente isolado para um lu-
gar que hoje tem acesso. Vivem outra vida, têm água, energia,
escola e próximo a São Raimundo Nonato. Mas, na época, não
foi procurado, justamente, conscientizar o povo. No meu en-
tender houve uma falha neste setor, dizendo o que significava
esse trabalho e o pessoal foi tomado assim, de repente. Eu vejo
uma falha grande na direção do Parque, porque não conscien-
tizou o povo, o que significava aquilo e que depois eles seriam
beneficiados com aquele projeto. A meu ver o pessoal não foi
preparado para receber isso [...] Houve pouca gente benefi-
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ciada, pessoas bastante prejudicadas, lesadas, o valor de suas


propriedades. Toda indenização tem essas discórdias e não con-
tenta todo mundo. Eu sou prejudicado, pois é, veja bem, são
17000 hectares de terra, eu e minha família fomos desapropria-
dos sem receber nada até hoje, e sou proibido de entrar lá onde
fui criado, então existem essas coisas. No Catuaba, o Parque
se apropriou e nunca nos pagou, eu me criei ali, não fomos in-
denizados nada, nada. E lá não éramos posseiros, nós temos
escrituras e nunca fomos indenizados, não sei por que (Giovani
Martins Dias, entrevista concedida em 08 de agosto de 2010).

Houve a resistência dos moradores em abandonar seus lares, seus


modos de fazer, de criar e de viver naquele território. Sendo assim, os confli-
tos foram instituídos, sobressaindo-se aqueles resultantes da caça de animais
selvagens, do extrativismo e das atividades agropastoris – modos de vida de
subsistência daquele povo –, vistos como ilegais perante a legislação que rege
a salvaguarda do patrimônio cultural/ambiental, as situações fundiárias não re-
solvidas e a perda do direito de propriedade e usufruto do território.
101 De acordo com Funari e Pinsky (2005, p. 93), os moradores conservam
laços afetivos com o meio ambiente: “[...] lugar do lar, lugar de memória e lugar
onde se ganha a vida, da intimidade física, da dependência material e do fato
de a terra ser um repositório de lembranças e fonte de esperança para essas
pessoas, e que tais lugares se constituem”.
Diegues complementa dizendo:

Em muitas sociedades, chamadas tradicionais (pescadores ar-


tesanais, extrativistas, camponeses), o homem não se compor-
ta necessariamente como destruidor da natureza, sobretudo,
quando depende da reprodução contínua dos recursos renová-
veis para sua sobrevivência é marcado pela rápida acumulação
capital. (DIEGUES, 1996, p. 01).

D’Antona (2005) esclarece que realmente a criação dos parques no


Brasil afetou diretamente as comunidades tradicionais que habitavam aquele
espaço ou que exerciam atividades de subsistência, cujos modos de vida são
confrontados com as restrições legais, pois a perspectiva dos moradores é in-
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terna e a dos proponentes da criação dos parques é externa; os primeiros estão


intrinsecamente ligados ao local onde se instala o Parque, já os criadores dos
Parques o veem como a “[...] parte do cenário nacional ou mundial que precisa
ser preservada.” (D’ANTONA, 2005, p. 92).
Para a comunidade local, a Serra da Capivara sempre foi considerada
um lugar misterioso, bonito e agradável para os passeios de férias e feriados. As
“tocas”1 eram propícias para piqueniques entre familiares e amigos.

Achava bonito, tinha umas bonitas, só que a gente não tinha


um conhecimento da quantidade que tinham. É, a gente via lá
pintados veados, ema; via desenhado na pedra uns bichinhos
que a gente fazia comparação, que podia ser os mocós [risos],
mas não tínhamos certeza e nem quem tinha feito, tinha tatu,
era parecido com as que tem. A gente dizia aqui era um veado,
aqui uma ema. Fazia comparação (Inquerido, sexo feminino, 50
anos. Comentário nosso).2

Ali na toca da areia tem os desenhos, e quando criança nós


102
parávamos lá para ouvir as histórias do meu pai dizendo “ali
foram os índios”, era isso que nós sabíamos. Nós sabíamos que
era uma cultura dos índios que tinham morado ali na serra, e
ali ninguém nunca riscou nenhuma pintura daquelas. Quando
eu nasci, tudo que tinha na Capivara ainda existe até hoje. [...]
Inclusive, eu conheço tudo aquilo ali, tanto que uma vez eu
cheguei com minha esposa e ela queria conhecer, e nós pega-
mos um guia e chegando lá muitas coisas ele perguntava para
mim. Eu sabia e ele não sabia, eu mostrava tudo. (...) Eu nasci
dentro do Parque, conheço tudo, desde a minha infância. Hoje,
eu moro fora e sempre divulgo o Parque, tenho orgulho, levo
coisas da cerâmica, já toquei as mãos naquelas pedras ali [...].
Eu lhe afirmo uma coisa, eu nunca vi um menino da minha épo-
ca, 1940 a 1953, ninguém chegar perto daquelas gravuras para

1
Referência local aos abrigos sob rocha.
2
Trecho retirado dos inquéritos aplicados que serão analisados no capítulo IV. Na medida em que
os inquéritos iam sendo aplicados, muitas pessoas faziam questão de contar as histórias vividas no
Parque, mas nos inquéritos a identidade dos inqueridos foi preservada, portanto, não temos seus
nomes.
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depredar. Ali nós admirávamos, não tínhamos informação, só


uma visão que tinham sido os índios que faziam. Só não tinha a
importância que é dada hoje (Giovani Martins Dias, entrevista
concedida em 08 de agosto de 2010).3

Percebe-se que embora não tivessem conhecimento do valor científico


desse patrimônio, o qual hoje tem muita representatividade para a região e para
o mundo, os inqueridos já sabiam que havia algo relevante naquele território,
o qual, portanto, deveria ser respeitado, mostrando claramente a apropriação
desse patrimônio, mesmo que inconscientemente, do ponto de vista técnico/
científico.
Todavia, essa relação foi abalada no momento em que se deu o proces-
so de criação da Unidade de Conservação, cujas disposições legais restringem
o direito de grupos humanos habitarem o seu interior, com a justificativa de
que são uma ameaça constante à conservação da natureza. Esse modelo de
Unidade de Conservação gerou graves conflitos nas comunidades tradicionais,
não apenas na região estudada, mas em todo o território nacional, uma vez que
foi um modelo copiado do contexto norte-americano, cujas especificidades são
103
diferentes das do Brasil.
Entre outras palavras, os parques nacionais eram concebidos dentro
de uma ótica de conservação na qual o homem e a natureza são separados. Essa
concepção gira em torno do mito da natureza intocada, que é representada em
sua forma “autêntica” e primitiva (DIEGUES, 2001). Para as populações tradi-
cionais brasileiras, “[...] a natureza significa o mundo concreto que fundamenta
toda sua experiência de vida.” (DIEGUES, 2001, p. 33), pois essa relação está
intrinsecamente estabelecida, ou seja, a natureza e a cultura são indissociáveis.
Nessa seara, D’ Antona diz que:

As comunidades tradicionais são diretamente prejudicadas


com a delimitação do parque em benefício indireto de “toda
humanidade”, da nação, do planeta. A exigência legal de reti-

3
Giovani Martins Dias, 73 anos, profissão: licenciado em matemática e contador. Antigo morador
do Parque, atualmente está escrevendo um livro sobre a história de Coronel José Dias. Vive há mais
de 20 anos no Pará. É uma pessoa isenta de qualquer influência ou discurso político local. A ideia de
entrevistá-lo partiu de uma conversa informal, quando ele visitava Coronel José Dias e questionou-me
sobre informações para o seu livro.
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Comunidades, práticas e direitos CASO DO MUNICÍPIO DE CORONEL JOSÉ DIAS (PI)

rada das comunidades das áreas preservadas limita o acesso


aos recursos de subsistência contribuindo para que as pessoas
dependam mais do mercado. Junto com o impacto no modo de
produção, ocorre a redefinição do espaço de circulação e dos
lugares de residência – o que abala a articulação das categorias
culturais centrais do seu universo (D’ ANTONA, 2005, p. 93).

O autor completa que são essas pessoas, suas histórias vividas, que
acabam dando vida aos lugares, pois são elas que tornam os lugares excepcio-
nais, são suas memórias e referências culturais que dão sentido ao patrimônio
materializado nos parques nacionais (D’ANTONA, 2005).
Laraia (2004) explica que o modo de ver o mundo, as apreciações de
ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais são produtos
de uma herança cultural determinada culturalmente. O homem é o resultado
do meio cultural em que foi socializado. É herdeiro de um longo processo acu-
mulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridos pelas numero-
sas gerações que o antecederam.
No contexto da Serra da Capivara, os modos de vida tradicionais e o
104
apego afetivo/simbólico daquelas comunidades pelo território, que não foram
considerados no processo de desapropriação, e a gestão do Parque, munida
pela lei federal, puniram esses moradores severamente (expulsões, prisões arbi-
trárias). O despreparo dos guardas/parque foi crucial no que concerne aos con-
flitos instaurados. Aqui apontamos a ausência ou a ineficiência de um programa
de educação ambiental/patrimonial voltado tanto para os guardas do parque
quanto para a comunidade diretamente afetada.

Depois da criação do Parque, houve bastante discórdia, por-


que existiam pessoas, na época, que dependiam da caça para
sobreviver, e as pessoas sofreram as consequências. Eu vejo
uma falha grande da direção do parque, pois não conscientizou
o povo, muita gente foi presa, pessoas totalmente ignorantes,
acostumados a viver na vida humilde e costumeira que era a
caça que ajudava muito. Veio aí, depois, não poder também
tirar a madeira para fazer a cerca, passou a ter dificuldade
para fazer seu cercado, porque foi justamente impedido de
tirar madeira e nosso pessoal desprovido de tudo, tanto de
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CAP. 3
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conhecimento, como recursos do ponto de vista econômico,


afetou a comunidade. Agora, com o tempo, as coisas vão se
transformando. Hoje a gente sente que o povo já aceita o qua-
dro, vamos dizer que eles acham que hoje está certo, quando se
fala em comer caça, o pessoal diz que é difícil, é proibido, que
não encontra mais caçador. Nessa parte, nossa região evoluiu
em relação à conservação dos animais. Hoje, por exemplo, o
tamanduá bandeira, que estava em extinção, já tem muito; o
tatu, que era a caça mais predileta, e todos iam atrás dele, e
era difícil encontrar, vejo o pessoal dizer que é o que mais tem,
e não é explorada, a atividade de caçador não cresceu, esses
animais foram beneficiados pela criação do Parque.
Não depredávamos, vejamos bem, nós tínhamos roças, quem é
que não fazia? Quando ia começar as derrubadas, não era de-
predação consciência, era depredação para sobreviver ali, para
manter nosso sustento. Vivíamos daquilo, porque o sertanejo,
na realidade, vive toda a vida ali, tirando o sustento. Ninguém
fazia por vaidade, nós fazíamos aquilo porque precisávamos,
tirávamos nosso sustento, feijão, milho, mandioca. Então essa
105 era a depredação que eu não considero depredação, e sim se
beneficiar de nossa terra. Tirávamos o mesmo que os indígenas
faziam. Agora, lógico que o Parque conserva, tem um trabalho
importante que, antes, não tinha. (Giovani Martins Dias, entre-
vista concedida em 08 de agosto de 2010).

Quando é apontado, na hipótese deste capítulo, que somente um seg-


mento da comunidade de Coronel José Dias já se apropria de forma consciente
do patrimônio cultural do PNSC, está se considerando que uma parcela, precisa-
mente a dos mais velhos, sofreu ou viu sofrer seus familiares e amigos.
Ao trazer a discussão para o contexto desta pesquisa, tornou-se per-
tinente abordar esse histórico no que se refere à relação da comunidade com
a criação do Parque, para, adiante, compreendermos os trabalhos educativos
implantados pela gestão do Parque, a análise dos inquéritos e a obrigatoriedade
de inserir a comunidade local nos processos de gestão comunitária, asseguran-
do, assim, a fruição social e os usos sustentáveis. Assuntos esses tratados na
sequência.
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A EDUCAÇÃO AMBIENTAL E PATRIMONIAL NOS


PROCESSOS DE APROPRIAÇÃO NO PARQUE
NACIONAL SERRA DA CAPIVARA

Com a criação do Parque Nacional Serra da Capivara, tornou-se neces-


sário traçar diretrizes para a sua gestão, incluindo o desenvolvimento de pesqui-
sas sobre a interação dos grupos humanos com o ambiente, desde a pré-história
aos dias atuais, e integrar a população local à preservação desse patrimônio.
Essa integração se deu, principalmente, por intermédio da Fundação
Museu do Homem Americano, liderada pela pesquisadora Dra. Niède Guidon,
por meio da implantação de um programa de preservação patrimonial que fo-
mentava os cuidados com o meio ambiente e o desenvolvimento de uma po-
lítica autossustentável, econômica e social nas comunidades, demonstrando,
sobretudo, que as ações educativas centradas eram imprescindíveis à efetiva
preservação e apropriação consciente pelas comunidades (PESSIS, 1991). Mais
adiante, em 2005, também contou com programa de educação patrimonial
106 desenvolvido pelo Escritório Técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN), situado em São Raimundo Nonato.
Partindo dessa premissa, será apresentada, resumidamente, a análise
dos relatórios, das publicações e da participação efetiva da autora nesses pro-
gramas, a fim de apresentar a contribuição, os processos e as descontinuidades
dos programas educativos desenvolvidos no município de Coronel José Dias pe-
las instituições supracitadas.
A primeira análise se deu nos projetos da Fundação Museu do Homem
Americano, com base nas recomendações de seu estatuto e do plano de mane-
jo, ressaltando os Núcleos de Apoio à Comunidade (NACs), que se constituíram
como uma iniciativa precursora na região com a implantação do ensino pro-
fissionalizante – quatro escolas de ensino regular (1986-2000) –, do Pró-Arte
– uma escola de arte-educação (2001-2010) –, bem como de outros projetos al-
ternativos de promoção e sensibilização do patrimônio ambiental/cultural, mas
que, por motivos diversos, foram desativados.
Depois foi feita a análise do programa de educação patrimonial do
Escritório do IPHAN, em São Raimundo Nonato (2005-2008), que tinha como
objetivo central promover uma articulação mais consistente com a comunidade
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local, por meio do Programa de Educação Patrimonial, tendo em vista que as


ações de cunho educativo nas comunidades dos quatros municípios limítrofes
do Parque são imprescindíveis à efetiva preservação e apropriação do patrimô-
nio cultural pela comunidade (BUCO 2006 apud RODRIGUES, 2009, p. 25).
Os resultados das análises dos programas são aqui sintetizados:

• FUMDHAM: Embora os projetos educacionais implantados no decorrer dos


24 anos dessa fundação tenham passado por um direcionamento de rup-
turas, descontinuidades, incompatibilidade de coordenação e não tenham
sido direcionados para as pessoas diretamente afetadas pela desapropria-
ção, a FUMDHAM cumpriu as deliberações de seu estatuto de fundação e
as recomendações da UNESCO e do Comitê Internacional para a Gestão do
Patrimônio Arqueológico (ICAHM/ICOMOS), que estabelecem a necessida-
de de promover ao público informações acerca de seu patrimônio (ICAHM,
1990. Grifos nossos).

Em Coronel José Dias, as ações educativas contribuíram para que parte


107 de sua comunidade pudesse desenvolver, ao longo desses anos, um entendi-
mento sobre o significado patrimonial e ambiental da reserva. Embora tenha
havido esforços no início para o desenvolvimento de uma rede comunitária
como fonte de renda voltada para o turismo cultural, as iniciativas, entretanto,
não foram simétricas com a comunidade local.
Tais dados nos fizeram inferir que o trabalho da FUMDHAM, direciona-
do para o patrimônio e a sustentabilidade cultural da Serra da Capivara, daqui
para frente, deverá trilhar outros caminhos, repensando suas estratégias de sus-
tentabilidade para que a comunidade seja incluída como parceira ativa nas to-
madas de decisões e não apenas como mera receptora de programas assimétri-
cos que, durante décadas, causaram tantos descompassos e desentendimentos.

• Escritório Técnico do IPHAN: Em Coronel José Dias, as ações se concentra-


ram, majoritariamente, nas escolas, de forma esporádica e sem um plano
de continuidade. As intenções educacionais são bem elaboradas e executa-
das, com destaque às visitas monitoradas ao Parque e ao Museu. No entan-
to, a estratégia de desenvolvimento ainda é descontínua, o que impossibili-
tou uma avaliação precisa de suas ações.
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Tais análises não foram suficientes para compreendermos como a co-


munidade coronelina se relaciona com o patrimônio da Serra da Capivara, por
isso aplicamos questionários para percebermos as relações estabelecidas com
o PNSC, sob a ótica da própria comunidade, fazendo uso de questões que en-
volveram valor, acessibilidade, preservação e fruição social. Vejamos, a seguir, a
síntese desses resultados.

Reconhecimento, apropriação e desenvolvimento: o olhar da


comunidade

A metodologia de recolha de dados partiu da premissa de tentar iden-


tificar a percepção da comunidade do município de Coronel José Dias em re-
lação ao PNSC nos quesitos valor, acessibilidade, preservação e fruição social.
Iniciamos a amostragem com a idade de 11 a 17 anos, justificando que, confor-
me a classificação de Piaget (apud BELLO, 1995), a partir de 11 anos de idade, o
sujeito já alcançou uma maturidade cognitiva que lhe possibilita pensar critica-
mente, formular hipóteses e buscar soluções concretas sobre todas as classes
108 de problemas.
Por conseguinte, com os demais grupos etários, partiu-se do pressu-
posto de que entre 18 e 29 anos há o período de afirmação da idade adulta,
iniciando-se uma nova fase escolar e profissionalizante. Além disso, esse grupo
etário cresceu com os discursos patrimonialista e ambientalista configurados
nas narrativas proferidas nas escolas, nos programas educativos e nas campa-
nhas sobre o PNSC, diferentemente dos demais grupos etários (30 a 39; 40 a
49; 50 a 59; 60 a 69; 70 a 79 anos) que nasceram antes da criação (e/ou no
seu período de fecundação) do Parque e presenciaram todas as transforma-
ções ocorridas em seu meio ambiente, tendo que se adaptar às novas posturas
patrimonialistas.
Foram aplicados 591 inquéritos (perguntas mistas) às faixas etárias su-
pracitadas, o que corresponde a mais de 10% da população do município, a sa-
ber: 11 a 17 anos 30%; 18 a 29 anos 10%; 30 a 39 anos 13%; 40 a 49 anos 10%;
50 a 59 anos 10%; 60 a 70 anos 16% da população.
Além de dividir os discursos por faixa etária, criamos um quadro
de categorias para desenvolver as análises, a saber: a) VALOR CULTURAL, b)
ACESSIBILIDADE, c) PRESERVAÇÃO e d) FRUIÇÃO SOCIAL.
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a) Valor Cultural

Para Fonseca (2005), o valor de um patrimônio está no sentimento de


pertencimento que ele desperta nas comunidades, reforçando a identidade co-
letiva, a educação e a formação da cidadania.
Essa primeira análise teve início com perguntas básicas e diretas. O
intuito foi entender se os sujeitos já tinham ouvido falar sobre arqueologia, se
sabiam o que é um sítio arqueológico e se tinham noção da importância da arte
rupestre do PNSC.

Pergunta 1 - Você já ouviu falar sobre arqueologia?


Opções de resposta: Sim. Não.

Pergunta 2- Em quais meios de comunicação?


Opções de resposta: Em palestra. Na escola. Na televisão. Em livros.
Todas as alternativas.
109
Os resultados estatísticos revelaram que mais de 88% dos atores so-
ciais admitiram saber o que é arqueologia (11 a 17 anos 96%; 18 a 29 anos 94%;
30 a 39 anos 86%; 40 a 49 anos 74%; 50 a 59 anos 73%; 60 a 70 anos 68%),
contra 12% que disse não saber (11 a 17 anos 4%; 18 a 29 anos 6%; 30 a 39 anos
14%; 40 a 49 anos 26%; 50 a 59 anos 27%; 60 a 70 anos 31%).
Quando questionados acerca de em quais meios de comunicações ou-
viram, 33,7% (11 a 17 anos 74%; 18 a 29 anos 59%; 30 a 39 anos 35%; 40 a 49
anos 13%; 50 a 59 anos 19%; 60 a 70 anos 2%) elegeram a escola como o lugar
que mais os informou, ao passo que a maioria (34,2%) revelou que considera a
televisão o canal mais efetivo para isso. Observa-se, também, que uma amostra
menor afirmou já ter ouvido falar sobre arqueologia em palestras proferidas na
comunidade (28%), outra em livros (3,1 %), enquanto a menor de todas elas
(1%) elegeu a opção Todas as alternativas.
Percebe-se que nas idades de 11 a 17 anos e de 18 a 29 anos os su-
jeitos revelaram a escola como sendo o local que mais os informou sobre ar-
queologia. Isso decorreu pelo fato de que no currículo obrigatório do município
foi inserida, em 2005, a disciplina Parque Nacional Serra da Capivara. Para as
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demais faixas etárias, a mídia televisiva se tornou um recurso mais abrangente,


no sentido de democratizar o acesso à informação, embora se faça claro que
ela não tenha se sobressaído, em termos de conteúdo, nos programas e ações
educativos.

Pergunta 3 - Você sabe o que é um sítio arqueológico?


Opções de resposta: Sim. Não.

Em relação à importância do conhecimento sobre o que é um sítio ar-


queológico, obtivemos resultados negativos de 50,5% (11 a 17 anos 35%; 18 a
29 anos 34%; 30 a 39 anos 48%; 40 a 49 anos 58%; 50 a 59 anos 62%; 60 a 70
anos 66%), contra 49,5% que revelaram saber o que é um sítio arqueológico (11
a 17 anos 65%; 18 a 29 anos 66%; 30 a 39 anos 52%; 40 a 49 anos 42%; 50 a 59
anos 38%; 60 a 70 anos 34%). Em uma análise fragmentada, por idade, os dados
indicam que a maioria dos mais jovens (11 a 17 anos 65%; 18 a 29 anos 66%; 30
a 39 anos 52%) sabe o que é sítio arqueológico.

110
Pergunta 3 - Para você, qual a importância da Arte Rupestre do PNSC?
Opções de resposta: São riscos nas paredes, sem importância. Acho bo-
nito, mas não sei o significado. São desenhos pintados ou gravados nas rochas,
de grande importância para compreendermos a história dos nossos antepassa-
dos. Não sei, nunca vi. Não quero opinar.

Os dados estatísticos nos mostraram que todas as faixas etárias con-


sideraram a arte rupestre da Serra da Capivara um elemento decisivo para o
entendimento da história de nossos antepassados, atingindo um total de 57%
(11 a 17 anos 71%; 18 a 29 anos 68%; 30 a 39 anos 72%; 40 a 49 anos 44%; 50 a
59 anos 49%; 60 a 70 anos 41%). A amostragem também nos revelou que existe
um contingente de 20% que afirma nunca ter visto uma arte rupestre. O quesito
“Acho bonito, mas não sei o significado” obteve uma amostragem de 18% (11
a 17 anos 11%; 18 a 29 anos 12%; 30 a 39 anos 19%; 40 a 49 anos 21%; 50 a 59
anos 21%; 60 a 70 anos 17%). A alternativa “São riscos nas paredes” atingiu o
total de 2%, seguido dos 3% de quem não quis opinar.
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b) Acessibilidade

Para Horta (2008), uma das etapas metodológicas mais importantes do


estudo do patrimônio é o contato direto dos sujeitos com o objeto. É nesse pro-
cesso que se dá o desenvolvimento da percepção visual e simbólica, a interpre-
tação das evidências e dos significados, o envolvimento afetivo, a internalização,
o julgamento crítico e, por fim, a valorização cultural. Dentro dessa conjuntura,
inseriram-se no questionário as seguintes perguntas:

Pergunta 1 - Você já visitou o PNSC?


Opções de resposta: Sim. Não.

Na amostra, 51,4% dos respondentes revelaram nunca ter visitado o


Parque (11 a 17 anos 59%; 18 a 29 anos 28%; 30 a 39 anos 43%; 40 a 49 anos
60%; 50 a 59 anos 49%; 60 a 70 anos 69%) contra 48,6% que já o visitaram (11
a 17 anos 41%; 18 a 29 anos 72%; 30 a 39 anos 57%; 40 a 49 anos 40%; 50 a 59
anos 51%; 60 a 70 anos 31%).
111
Ao analisar separadamente, por faixa etária, vê-se que 72% (18 a 29
anos) e 57% (30 a 39 anos) declararam que já visitaram o Parque. Alguns justi-
ficaram que os festivais culturais (Interartes Serra da Capivara) desenvolvidos
pela Fundação Museu do Homem Americano, na Pedra Furada, facilitaram esse
acesso.
Curioso observar que uma considerável amostra (40 a 49 anos 60%; 50
a 59 anos 49%; 60 a 70 anos 69%) declarou nunca ter visitado o Parque, muito
embora, em alguns inquéritos, os sujeitos tenham respondido “Não” com uma
justificativa: “Não, mas antes da criação do Parque eu andava muito por lá”.
“Não, depois que virou Parque nunca fui”. “Não, conhecia antigamente antes
de ser Parque”. “Não, antes de ser Parque eu achava muito bonito e hoje eu
não ando mais por causa da burocracia”. “Não visitei, a gente morava dentro,
mas acho que visitei porque já andei por essas ‘beiradas’ da serra antes de ser
Parque” (inqueridos com idades entre 51 a 70 anos).
Na verdade, a resposta deveria ter sido “Sim”, com ressalvas, pois a
questão levantada pela comunidade foi sobre o direito de propriedade do ter-
ritório, ao passo que aquele espaço, que outrora era a casa deles, passou a ser
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demarcado como Unidade de Conservação, onde eles não poderiam ir e vir


quando sentissem vontade, daí a resposta “não” com uma justificativa.

Pergunta 2 - Você já visitou o Museu do Homem Americano?


Opções de resposta: Sim. Não.

Os indicadores dessa amostra revelaram que 61,8 % (11 a 17 anos


63%; 18 a 29 anos 49%; 30 a 39 anos 49%; 40 a 49 anos 69%; 50 a 59 anos 68%;
60 a 70 anos 73%) dos respondentes não visitaram o Museu, contra 38,2% (11
a 17 anos 37%; 18 a 29 anos 52%; 30 a 39 anos 51%; 40 a 49 anos 31%; 50 a 59
anos 32%; 60 a 70 anos 27%) que já o visitaram.

c) Preservação

A missão de preservar o patrimônio cultural gerou, durante décadas,


muitas discussões. As recomendações, cartas e legislações preveem várias ma-
112 neiras de preservação patrimonial, entre elas a tarefa de educar as populações
a respeito dos valores representados pelo patrimônio cultural. Por admitir essa
necessidade foi que elaboramos as questões abaixo.

Pergunta 1 - Você já participou de cursos, palestras, projetos educacio-


nais sobre a importância de preservar o PNSC?
Opções de resposta: Sim. Não.

Os mais jovens, de 11 a 17 anos (65%) e de 18 a 29 anos (63%), admi-


tiram que já participaram de programas educativos centrados no patrimônio
cultural do PNSC. No entanto, em uma amostragem geral, 42,3% (30 a 39 anos
42%; 40 a 49 anos 30%; 50 a 59 anos 29%; 60 a 70 anos 25%) responderam
“Sim”, contra 57,7% (11 a 17 anos 35%; 18 a 29 anos 37%; 30 a 39 anos 58%; 40
a 49 anos 70%; 50 a 59 anos 71%; 60 a 70 anos 75%), que responderam “Não”,
o que é considerada uma amostragem expressivamente preocupante do ponto
de vista da participação de um entendimento geral sobre o patrimônio cultural
da região.
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Pergunta 2 - Quem deve preservar o patrimônio do PNSC?


Opções de resposta: A prefeitura, a FUMDHAM e o ICMBio. IPHAN.
Todos nós. Não queremos opinar.

No quesito “Todos nós”, foi obtida uma amostragem total de 80, 9%


(11 a 17 anos 68%; 18 a 29 anos 90%; 30 a 39 anos 93%; 40 a 49 anos 75%; 50
a 59 anos 76%; 60 a 70 anos 83%). Nesse caso, a maioria considerou o estado,
os gestores do parque e a comunidade, conjuntamente, como corresponsáveis
pela preservação do patrimônio. Curioso observar que a alternativa “IPHAN” não
obteve nenhuma porcentagem (0%). No geral, 14,5% elegeram a FUMDHAM e
o ICMBio, enquanto 2% elegeram a prefeitura e 2,6% não quiseram opinar.

Pergunta 3 - Você acha que a caça predatória de animais selvagens


deve ser permitida?
Opções de resposta: Sim. Não. Não quero opinar.

113 Indagados sobre a permissão da caça de animais selvagens, os mais


jovens afirmaram que não deve ser permitida, totalizando 57,8 % (11 a 17 anos
67%; 18 a 29 anos 63%; 30 a 39 anos 75%). Uma minoria (17,5%) considerou
que a caça deve ser permitida, uma vez que contribui para a subsistência das
populações locais (11 a 17 anos 16%; 18 a 29 anos 11%; 30 a 49 anos 14%; 40 a
49 anos 14%; 50 a 59 anos 24%; 60 a 70 anos 27%). Algumas pessoas decidiram
não opinar (24,7%) (11 a 17 anos 17%; 18 a 29 anos 26%; 30 a 39 anos 12%; 40 a
49 anos 38%; 50 a 59 anos 30%; 60 a 70 anos 25%), uma postura compreensível
devido à delicadeza em abordar essas questões na comunidade.
Em suma, os dados acima são bastante significativos, mostrando que
há um processo de conscientização da ilegalidade do ato de caçar.

Pergunta 4 - Quais seriam as melhores soluções para resolver os pro-


blemas da caça de animais selvagens na nossa região?
Opções de resposta: Liberar a caça o ano inteiro. Realização de progra-
mas educativos. Através de vigilância dos guarda-parques. Não quero opinar.
Os dados indicaram que a maioria dos respondentes (54,8%) acredita
que a educação se figura como um indispensável instrumento de informação e
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sensibilização de prevenção à caça (11 a 17 anos 60%; 18 a 29 anos 74%; 30 a 39


anos 68%; 40 a 49 anos 49%; 50 a 59 anos 46%; 60 a 70 anos 32%). Porém 24,4%
(11 a 17 anos 22%; 18 a 29 anos 23%; 30 a 39 anos 16%; 40 a 49 anos 20%; 50 a
59 anos 30%; 60 a 70 anos 34%) acreditam que a vigilância é que consegue parar
a ação de caçar. Um pequeno número (14,6%) acredita que deve ser liberada
(11 a 17 anos 4%; 18 a 29 anos 3%; 30 a 39 anos 12%; 40 a 49 anos 3%; 60 a 70
anos 9%) e 6,4% não quiseram opinar.
A questão da liberação é um ponto crítico a ser abordado, uma vez que
vai contra a legislação nacional brasileira. Mas, observando os dados, consta-
ta-se que a maioria das pessoas daquela comunidade tem esse conhecimento.

d) Fruição Social

De acordo com Meneses (2006), se as comunidades do entorno dos


bens culturais tiverem um sentimento de apropriação e (re)valorização do pa-
trimônio cultural, entendendo o seu papel como corresponsáveis na sua pre-
servação, estarão aptos a sua fruição social e fortalecerão melhorias nas con-
114 dições de vida através da sustentabilidade. As questões a seguir buscam esse
entendimento.

Pergunta 1 - Você já ouviu falar sobre turismo sustentável?


Opções de resposta: Sim. Não.

A pesquisa revelou uma amostragem de 56% positiva (11 a 17 anos


55%; 18 a 29 anos 61%; 30 a 39 anos 57%; 40 a 49 anos 52%; 50 a 59 anos 55%;
60 a 70 anos 56%), contra 44% negativa (11 a 17 anos 45%; 18 a 29 anos 39%; 30
a 39 anos 43%; 40 a 49 anos 48%; 50 a 59 anos 45%; 60 a 70 anos 44%).
O turismo cultural arqueológico se apresentou como alternativa
viável para que as comunidades possam, além de reconhecer e revalorizar o
patrimônio arqueológico, usufruir desse potencial para o desenvolvimento
socioeconômico.

Pergunta 2 - Se sua cidade for contemplada com um museu, o que você


gostaria de ver em exposição?
PARQUE NACIONAL SERRA DA CAPIVARA E

CAP. 3
A MULTIVOCALIDADE DA
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FRUIÇÃO SOCIAL E PERSPECTIVAS FUTURAS – O
Comunidades, práticas e direitos CASO DO MUNICÍPIO DE CORONEL JOSÉ DIAS (PI)

Opções de resposta: Objetos que contenham a história da minha fa-


mília. Objetos da cultura coronelina. Os achados arqueológicos pré-históricos
encontrados no Parque Nacional Serra da Capivara. Todas as alternativas. Não
quero opinar.

Uma parcela da comunidade, ou seja, 38,6% (11 a 17 anos 47%; 18 a


29 anos 48%; 30 a 39 anos 48%; 40 a 49 anos 42%; 50 a 59 anos 30%; 60 a 70
anos 17%) considera primordial que os achados arqueológicos do PNSC se fa-
çam presentes no museu, mas 25,6% (11 a 17 anos 31%; 18 a 29 anos 30%; 30 a
39 anos 20%; 40 a 49 anos 19%; 50 a 59 anos 32%; 60 a 70 anos 22%) elegeram
também os objetos antigos da cultura coronelina. Outro contingente (12%) mar-
cou os objetos da história familiar. O item “Todas as alternativas” foi marcado
por 18,8% e 4,7% não quiseram opinar.
Apesar de considerarem primordial os achados arqueológicos do PNSC
estarem no museu, também elegeram a história local e os objetos antigos que
fazem rememorar os modos de fazer e de viver do sertanejo, ou seja, revelaram
a vontade de deixar o testemunho de seus saberes e fazeres.
115
Pergunta 3 - O que você gostaria que o turista conhecesse na sua
cidade?
Opções de resposta: O bairro São Pedro e a igreja. Os Serrotes Calcários.
As histórias contadas pelos antigos moradores do Parque. Danças regionais.
Todas as alternativas. Não sei.

Os respondentes, 36,6% (11 a 17 anos 56%; 18 a 29 anos 44%; 30 a


39 anos 49%; 40 a 49 anos 31%; 50 a 59 anos 16%; 60 a 70 anos 24%), sinaliza-
ram a importância de se conhecer o PNSC e os sítios arqueológicos do entorno.
Reconheceram, sobretudo os mais velhos (22,8%) (11 a 17 anos 20%; 18 a 29
anos 22%; 30 a 39 anos 14%; 40 a 49 anos 18%; 50 a 59 anos 41% e 60 a 70 anos
22%), que as suas peculiaridades culturais e históricas são importantes e que
devem ser compartilhadas com os visitantes. Sobre a opção de resposta “todas
as alternativas”, 20% (11 a 17 anos 7%; 18 a 29 anos 13%; 30 a 39 anos 19%; 40
a 49 anos 25%; 50 a 59 anos 24%; 60 a 70 anos 32%) dos entrevistados a utiliza-
ram. As demais alternativas obtiveram uma porcentagem geral de 8,7% para o
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bairro São Pedro (centro histórico), 4,5% para os Serrotes Calcários, 4,7% para
danças regionais e 2,7% para não sei.
Percebe-se que existe a vontade de compartilhar como são os modos
de viver no território da Serra da Capivara, até porque se essas histórias não
forem compartilhadas, daqui a pouco essa geração não existirá e suas histórias
se perderão no tempo.
Faz-se necessário compreender que a demanda do museu aqui levan-
tada é a do município de Coronel José Dias, uma vez que o Museu do Homem
Americano está localizado no município de São Raimundo Nonato.

Síntese dos Resultados

Os dados nos mostram que os mais jovens que cresceram com o


discurso da preservação patrimonial têm um entendimento maior sobre a
importância da valorização e da preservação do PNSC; ao contrário dos mais
velhos, que vivenciaram os processos de criação do Parque, por meio do qual
116 muitos foram desapropriados de suas terras mediante a legislação de criação da
Unidade de Conservação, tendo que migrar para outros locais, modificando os
seus antigos hábitos.
Diante desse cenário, a hipótese de um ressentimento com a exclusão
de suas memórias é possível. Mais que isso, parece-nos que o início da pro-
blemática foi a retirada deles do território, ou seja, aquilo que era patrimônio
de valor familiar passou a ser patrimônio da humanidade (uma inversão do
público/privado).
Outro ponto relevante na análise é que os mais velhos são, na verdade,
mais conscientes das mudanças ocasionadas, pois vivenciaram e manifestam
a vontade de participar ativamente. Viu-se isso quando expressaram o desejo
de que o museu da comunidade contenha artefatos arqueológicos do homem
pré-histórico e do modo de viver no sertão.
Por outro lado, os mais jovens não manifestaram esse ressentimento,
pois não habitaram aquele espaço, não vivenciaram o sentimento de perda de
propriedade. Eles, por sua vez, acreditam nas mudanças que podem ocorrer no
município por intermédio do turismo.
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Entende-se, porém, que o motivo maior do ressentimento não são as


indenizações mal resolvidas ou a vontade de continuar caçando, mas o fato de
terem perdido a livre fruição de seu direito de propriedade (individual e fami-
liar): o direto de habitar aquele território; o direito de visitar os seus mortos que
lá ficaram quando sentissem vontade; o direito de contemplar a arte rupestre
livremente; o direito de tomar banho nos caldeirões sem acompanhamento de
um guia turístico ou sem ter que pagar uma taxa.
Desse modo, para muitos não faz sentido voltar àquele lugar que não é
mais de propriedade deles. Por isso apontam nos inquéritos que não conhecem
o Parque, justificando que o conheciam antes. Não é compreendido que sendo
uma propriedade coletiva da humanidade, ele é de todos. A verdade é que os
direitos na sociedade são conflitantes.
Em linhas gerais, os dados apresentados nos inquéritos sintetizam
uma série de questionamentos que devem ser vistos para que a comunidade
de Coronel José Dias possa, a cada dia, ter mais acesso ao PNSC, valorizá-lo,
preservá-lo, usá-lo de forma consciente e usufruí-lo economicamente por meio
do turismo cultural.
117 Quanto à análise dos programas educativos desenvolvidos pela
FUMDHAM e pelo IPHAN, entende-se que ambos tiveram sua contribuição den-
tro da ótica pela qual foram propostos; uns obtiveram bons resultados, outros
nem tanto, mas tais resultados podem ser revistos, revitalizados, recomeçados
a partir de outro viés: o da gestão partilhada simétrica e da revalorização local.
No delinear das análises, foram surgindo mais questionamentos que
soluções, chegando-se à conclusão de que não existem fórmulas, sobretudo
quando se sabe que os anseios individuais são, muitas vezes, latentes.
Acredita-se que devem surgir novas propostas educacionais centradas
no patrimônio arqueológico do PNSC, agregando outros elementos: mostrar o
potencial do Parque como fonte de desenvolvimento sustentável, partindo de
iniciativas da própria comunidade; estimular e desenvolver espaços educacio-
nais e de memória para o fortalecimento das identidades culturais dos povos;
fomentar o fortalecimento da cultura das comunidades tradicionais em todas as
suas manifestações regionais, especialmente seus conhecimentos tradicionais,
entre outros.
Entende-se, portanto, que o maior contributo que a educação centra-
da no patrimônio cultural pode oferecer à população é dar autonomia para que
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os próprios sujeitos possam construir seus próprios entendimentos e projetos


comunitários.

Perspectivas Futuras

Dentro das recomendações recebidas, a comunidade fortaleceu a von-


tade de tratar das questões relacionadas à memória do território, à preserva-
ção, ao registro da tradição local e, sobretudo, destacaram a insatisfação por
nunca terem participado ativamente das tomadas de decisões em relação aos
diversos projetos de desenvolvimento sustentável implantados na comunidade
e devido à violação dos seus direitos à memória do território tradicional (proi-
bição de voltar aos seus lugares tradicionais, lugares de referências culturais,
etc.). Também pela falta de diálogo horizontal entre gestores do Parque e co-
munidade. Por fim, admitem que o distanciamento afetivo com a Unidade de
Conservação (PNSC) e as descontinuidades nos projetos foram resultado, em
grande parte, desses imperativos.
Esses resultados suscitaram na autora a preocupação de não deixar
118 que tais anseios ficassem apenas escritos em um trabalho acadêmico. Nesse
sentido, percebeu que havia chegado a hora de erigir um projeto de dentro da
comunidade – feito pela comunidade para a comunidade –, que trouxesse ele-
mentos de fortalecimento da identidade e do protagonismo comunitário.
Nasceu, portanto, em 2013, a Associação Instituto Olho D’Água (IODA)
no município de Coronel José Dias, Piauí, orientada por um projeto científico
(da comunidade para a comunidade) lastreado pelo arcabouço conceitual da
Arqueologia Colaborativa e do Meio Ambiente Cultural. O principal objetivo do
IODA é promover, realizar e divulgar estudos relacionados às comunidades tra-
dicionais do território do Parque Nacional Serra da Capivara; fomentar o forta-
lecimento e a perpetuação da cultura em todas as suas manifestações regionais,
tais como seus conhecimentos tradicionais e modos de uso dos recursos natu-
rais em sinergia com os estudos arqueológicos vigentes.
Desde sua criação, o IODA tem desenvolvido uma série de projetos
aplicados ao registro da memória do território, à defesa do Meio Ambiente
Cultural, dos acervos culturais (material e imaterial), da condição cidadã dos
povos e das comunidades tradicionais que vivem na região (RODRIGUES, 2016),
com destaque para:
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• Projeto Volta às Origens

Consiste no mapeamento participativo com base na metodologia de


cartografia afetiva do território tradicional da Serra da Capivara, por meio de
expedições pelas áreas antigamente ocupadas pela comunidade local (dentro
da Unidade de Conservação). O objetivo principal dessa iniciativa é recuperar
narrativas por meio da memória individual e coletiva da referida comunidade
para construir um mapa afetivo de valorização da identidade e da tradição local.
Entende-se que as narrativas comunitárias sobre o território, a paisa-
gem e as pinturas rupestres oferecem outra perspectiva sobre a área interna-
cionalmente conhecida, que se sobrepõe e diversifica as interpretações e repre-
sentações do discurso científico da arqueologia e da antropologia tradicional. O
reconhecimento e a interpretação do território pela comunidade oportuniza a
emergência de outra narrativa, de outros conhecimentos sobre a área que, mui-
tas vezes, foram esquecidos, omitidos e silenciados pelo discurso científico tra-
dicional acadêmico e/ou pelo funcionalismo administrativo estatal (RODRIGUES
et al., no prelo).
119 Nas expedições ao território tradicional, o mapeamento participativo
tem identificado histórias e lugares significativos. Esses lugares são georrefe-
renciados para a composição do mapa que associa a posição geográfica ao co-
nhecimento comunitário compartilhado para apresentar outra narrativa desses
lugares. Esse trabalho possibilitará a construção de uma cartografia inédita na
região, contendo os locais de relevância histórica e patrimonial identificados
pela comunidade. A expectativa é que essa atividade de mapeamento contri-
bua para a produção de uma cartografia social que subsidie políticas públicas
para a região, inclusive abrindo a possibilidade de criação de roteiros turísticos
alternativos.

• Programa Educativo

O trabalho educativo voltado para o entendimento técnico dos con-


ceitos de patrimônio arqueológico e histórico-cultural torna-se um dos elemen-
tos importantes nesse processo de protagonismo comunitário. Na pesquisa de
mestrado, ficou claro que as ações de Educação Patrimonial foram inseridas nas
políticas públicas pela Rede Municipal de Educação de Coronel José Dias com
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a inserção da disciplina Parque Nacional no currículo. Dentro disso, o planeja-


mento do Programa Educativo do IODA considerou esse importante precedente
e montou iniciativas para atuar em sinergia com as já existentes, por meio dos
seguintes subprogramas:

• ARTE NA SERRA, que oferece oficinas de arqueologia experimental para


crianças, adolescentes e jovens da zona rural e urbana do município;
• CRIANDO E RECRIANDO UM AMBIENTE SUSTENTÁVEL, realizado com alu-
nos do ensino fundamental e médio na criação de cartilhas educativas so-
bre a memória e a identidade cultural da comunidade, com destaque para
a Coletânea “Um parque e sua gente”;
• EDUCAÇÃO PARA SUSTENTABILIDADE CULTURAL, em parceria com a
Associação de Jovens Condutores de Visitantes “Tribos da Capivara”, por
meio de estudos dirigidos (temática de arqueologia, memória, identidade,
patrimônio cultural) e montagem dos circuitos culturais alternativos.
• Entre outros4.

120
Tais ações têm contribuído para o fortalecimento de políticas públicas
no que concerne à (re)valorização do patrimônio cultural no município. Desse
modo, toda a comunidade vem compreendendo a necessidade de preservar sua
identidade, suas raízes e sua memória. As iniciativas erigidas no seio da comu-
nidade têm contribuído para alavancar a autonomia local, dando voz e vez aos
herdeiros diretos desse patrimônio, que foram por tanto tempo silenciados e
invisibilizados.
Por fim, acredita-se que o IODA (apenas três anos de criação), por
meio de seus diversos subprogramas, possa aprimorar, em médio e longo prazo,
o relacionamento e a interação entre esse enorme patrimônio histórico e cul-
tural da humanidade com as comunidades que vivem no município de Coronel
José Dias e região. Acredita-se que a valorização desse patrimônio, em um tra-
balho que envolva o fomento de diversas iniciativas, permitindo o crescimento
intelectual e econômico destas em sinergia, resultará em benefícios tanto para a
divulgação e a preservação desse patrimônio quanto à sustentabilidade cultural
da comunidade pela comunidade.

4
Ver: http://documentoculturalolhodagua.ning.com/. Acessado em: 23 jan. 2011.
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CAP. 3
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COMUNIDADE LOCAL: EDUCAÇÃO, VALORIZAÇÃO,
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
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Comunidades, práticas e direitos CASO DO MUNICÍPIO DE CORONEL JOSÉ DIAS (PI)

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CAP. 4
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA E PATRIMÔNIO NAS
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: ESTEARIAS: DIÁLOGO ENTRE A CIÊNCIA, A
Comunidades, práticas e direitos COMUNIDADE E A ESCOLA

CAPÍTULO 4
ARQUEOLOGIA PÚBLICA E PATRIMÔNIO NAS
ESTEARIAS: DIÁLOGO ENTRE A CIÊNCIA, A
COMUNIDADE E A ESCOLA

123

DOI: http://dx.doi.org/10.18616/arq04

Alexandre Guida Navarro


João Costa Gouveia Neto

SUMÁRIO
CAP. 4
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA E PATRIMÔNIO NAS
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: ESTEARIAS: DIÁLOGO ENTRE A CIÊNCIA, A
Comunidades, práticas e direitos COMUNIDADE E A ESCOLA

PATRIMÔNIO PARA QUEM?

Este capítulo aborda as discussões acadêmicas e experiências comuni-


tárias ocorridas na disciplina Arqueologia Pública e o Patrimônio, explorando as
relações de conhecimento entre a academia, evidenciada pelo Laboratório de
Arqueologia da Universidade Federal do Maranhão (LARQ/UFMA) e o Ensino
Médio, corroborada pela Escola de Formação Gerencial – EFG do SEBRAE/MA.
O objetivo desta inédita experiência na cidade de São Luís, que é patri-
mônio da humanidade, teve como finalidade a publicização da ciência arqueo-
lógica entre alunos do Ensino Médio de uma escola gerencial de tempo integral
por meio da experiência vivenciada dentro de um laboratório, no sentido de
suscitar alternativas de conhecimento para além da sala de aula e, no caso do
laboratório, das atividades técnicas intrínsecas à sua atividade.
Dois conceitos são importantes aqui: patrimônio e público. Como bem
pontuaram Funari e Pelegrini (2006), nas línguas românicas a palavra patrimo-
nium esteve associada à herança ou à propriedade herdada no âmbito familiar.
Foi com o passar do tempo e a partir de sua associação com a História que o
124 patrimônio acabou recebendo o sentido per se que até hoje lhe é atribuído:
os monumentos. Com o desenvolvimento teórico mais abrangente das Ciências
Humanas, i.e o Pós-Modernismo, sobretudo a partir da década de 1990, novas
perspectivas advindas dos enfoques teóricos possibilitaram ao conceito de pa-
trimônio desdobramentos amplos de tal forma, que hoje encontramos muitas
denominações associadas ao seu campo de atuação, como patrimônio cultural,
patrimônio edificado e bens culturais, somente para citar alguns.
A proteção ao patrimônio é uma escolha ideológica e, durante muito
tempo, esteve pautada por seleções elitistas daquilo que deveria ser preservado
(ARANTES, 1990; GNECCO, 1995). É nesse sentido que Fernandes (1993, p. 275)
refletiu que a gestão do patrimônio “[...] preservou a casa-grande, as igrejas
barrocas, os fortes militares [...] como referências de nossa identidade histórica
e cultural e que relegou ao esquecimento as senzalas, as favelas e os bairros
operários”.
Como bem lembraram Ianni (1988) e Gouveia Neto (2010), essa defi-
nição de patrimônio privilegiou a aristocracia, associando ao monumento uma
função que remetia às origens elitistas das sociedades, atribuindo ao vernáculo
o sentido de superioridade cultural por meio da pintura, da literatura, da arqui-
CAP. 4
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA E PATRIMÔNIO NAS
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: ESTEARIAS: DIÁLOGO ENTRE A CIÊNCIA, A
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tetura e dos gostos musicais. Dentro desse contexto, era difícil para a classe não
abastada identificar-se com aquilo que não pertencia ao seu universo cotidiano.
Por outro lado, a partir da Proclamação da República, em 1889, até
mesmo a elite distanciou-se do significado de patrimônio e a pompa de outrora
foi perdida, uma vez que a carga simbólica atribuída ao patrimônio edificado,
como a noção de antiquado, velho e ultrapassado, contrariava a ideia de mo-
dernidade e progresso (GOUVEIA NETO, 2010). Nesse sentido, como afirmam
Funari e Pelegrini (2006), até a capital do Brasil, Rio de Janeiro, foi substituída
por uma cidade mais “moderna”. Desse modo, a discussão sobre patrimônio é
de grande importância para entender a própria formação social de uma nação.
Como se afirmara, os debates acerca das diversas formas de patrimô-
nio tornaram-se um elemento de destaque na contemporaneidade. Além de
sua inserção nas discussões teóricas, fundamental para o desenvolvimento foi
sua aproximação com a comunidade, no seu sentido público, ou seja, um patri-
mônio que buscou a aproximação social dos excluídos, dando-lhes uma voz que
reverberou significados identitários e de preservação da memória, ora buscan-
do associações com o passado cultural, ora vivenciando experiências comunitá-
125 rias (MERRIMAN, 2004).
Logo, o papel dos museus e da musealização mostrou-se essencial
para ratificar a importância do conhecimento para as comunidades locais, cujos
museus comunitários são um importante instrumento de identidade cultural.
Museus, portanto, não devem ser locais estáticos. São lugares dinâmicos, cons-
truídos socialmente e com uma carga simbólica fundamental enquanto preser-
vação do patrimônio (FUNARI e PELEGRINI, 2006).
Antes de apresentarmos como a experiência vivenciada por alunos de
Ensino Médio da EFG/MA da cidade de São Luís afetou seu conhecimento acer-
ca da Arqueologia, apresentaremos nosso objeto de estudo, que possibilitou a
reflexão por parte desses alunos de como era a vida das comunidades pretéritas
e como os artefatos ajudam a entender sobre essas sociedades.

O que são estearias?

A região onde ocorrem as estearias é denominada Baixada Maranhense.


Trata-se de uma microrregião situada a oeste e a sudeste da ilha do Maranhão,
compreendendo uma área de aproximadamente 20 mil km², dentro da
CAP. 4
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ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: ESTEARIAS: DIÁLOGO ENTRE A CIÊNCIA, A
Comunidades, práticas e direitos COMUNIDADE E A ESCOLA

Amazônia Legal, sendo uma região que conta com mais de 500 mil habitantes
(IBGE, 2006). É um território muito pobre, com os menores índices (IDH) não só
do estado do Maranhão, como de todo o Brasil, cuja população vive da subsis-
tência da agricultura tradicional, da pesca, da criação de pequenos animais e do
extrativismo vegetal, especialmente do coco do babaçu. As principais cidades
dessa área são Penalva, Pinheiro, Viana, São Bento e Santa Helena (NAVARRO,
2013; NAVARRO, 2014).
As estearias foram moradias lacustres construídas com esteios (tocos
ou troncos de árvores) de madeira que serviam de sustentação para as constru-
ções superiores, dando origem, assim, às suas aldeias ou às palafitas pré-histó-
ricas (LOPES, 1924; CORREIA LIMA e AROSO, 1991; LEITE FILHO, 2010). Esse tipo
de sítio arqueológico aparece em casos isolados na América do Sul, como nos
relatos de Vespúcio, em 1499, sobre comunidades que viviam em palafitas na
costa venezuelana.
No Brasil, diversos autores consideram que as estearias são os sítios
arqueológicos menos conhecidos no território nacional (PROUS, 1992; MARTIN,
1996). No entanto, há relatos de palafiteiros no Alto Amazonas realizados pelas
126 expedições de Ursúa e Aguirre (1516) (apud PORRO, 1992). Além disso, fran-
ceses estabelecidos no Maranhão no início do século XVII, ao realizarem um
reconhecimento no rio Amazonas, fizeram referência às populações que viviam
em palafitas sobre lagos. No entanto, as estearias maranhenses são as únicas
conhecidas na atualidade.
As estearias estão localizadas ao longo dos diversos lagos, que se ca-
racterizam pela formação de um sistema hídrico composto de rios, campos
inundáveis e lagos de variados tamanhos, os quais se definem pela sazonalidade
do clima (as inundações ocorrem no primeiro semestre de cada ano) (FRANCO,
2012). Os lagos da Baixada Maranhense têm origem geológica recente, pleisto-
cênica, e se caracterizam por inundações periódicas na época das chuvas, pois
acabam recebendo as águas fluviais, além de auferirem, inclusive, as águas dos
rios da região quando de seu transbordamento, como o Pindaré, Pericumã e
Turiaçu (CORRÊA, MACHADO e LOPES, 1991; AB’ SÁBER, 2006). Pertencem, tam-
bém, a um bioma típico da região amazônica, que se caracteriza por campos de
várzea.
Podemos afirmar, em nível hipotético, que, em princípio, a existência
de farta alimentação nesses lagos pôde criar uma situação favorável à habitação
CAP. 4
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sedentária dos grupos humanos que ocuparam a região. Embora não queiramos
cair nas armadilhas de uma elaboração conceitual do determinismo ecológico e
cultural para a explicação da ocupação do território lacustre, negar a importân-
cia do rico ecossistema lacustre seria uma displicência por parte do pesquisador.
Pesquisas arqueológicas atuais realizadas na região amazônica vêm
demonstrando que as várzeas dos rios da região foram densamente povoadas
por sociedades de tipo cacicado na Pré-Histórica amazônica (ROOSEVELT, 1980;
HECKENBERGER, 2006; NEVES, 2006). Embora ainda seja muito incipiente inferir
o tipo de organização social das estearias, é importante ressaltar que o bioma
aquático e as condições ideais de obtenção de alimentos são parecidos com o
das várzeas amazônicas, o que nos faz inferir que esse rico ambiente foi fun-
damental para o desenvolvimento das sociedades palafíticas. Evidência dessa
adaptação é fornecida pelo relato de Simões (1981), que mediu uma das estea-
rias e conseguiu delimitar sua área em 2 km², portanto, um sítio de dimensões
consideráveis.
Por outro lado, fica sem responder quem eram essas comunidades la-
custres. Para Raimundo Lopes (1916), são populações tardias de filiação ama-
127 zônica que estão migrando para a região da Baixada. Para Correia Lima e Aroso
(1991), são grupos Nu-arawaque que foram expulsos, mais tarde, pela ocupação
Tupiguarani. Já para Leite Filho (2010, p. 255), as estearias foram construídas
por “[...] grupos intrusivos na região que se organizaram em aldeias autônomas
ou inversamente em um conjunto de habitações com algum vínculo político en-
tre si dado sua homogeneidade cultural e contemporaneidade”.
Aqui temos que mencionar a importância da estearia de Cacaria, no
lago Cajari, assim denominada pela população local por contar grande concen-
tração de cerâmica. A Cacaria foi estudada por Raimundo Lopes, em 1919, em
uma grande seca que afetou a região, cujo material arqueológico ficou evidente.
Lopes (1924) chega a afirmar a construção de calçadas na estearia, indicando
um sofisticado arranjo urbano pelas populações que ali habitaram.
Simões (1981) também a pesquisou, pontuando a importância dos es-
tudos de Lopes e dessa estearia em específico, que foi medida, alcançando os
2 km. Nos trabalhos de Corrêa, Machado e Lopes (1991), a Cacaria voltou a ser
estudada e, por meio dos troncos de pau d’arco (Tabebuia dasp), o referido pes-
quisador forneceu a datação radiocarbônica de 570 d.C.
Outro importante relato é a existência de “ilhas e tesos” (CORREIA
LIMA e AROSO, 1991) em algumas áreas dos lagos, cujas comparações geográfi-
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cas e, por conseguinte, dos mounds foram feitas por Lopes (1924) com a região
marajoara, sem, no entanto, estabelecer discussões mais profundas.

Resultados preliminares: discussão

Relatos etno-históricos do século XVI, sobretudo os dos padres Claude


D’Abbeville, D’Evreux e João Daniel, são um importante corpus de informa-
ção acerca dos índios que habitavam o Maranhão no período da Conquista. A
maioria dos relatos dá conta da ocupação tupiguarani na ilha de São Luís. Esses
documentos históricos narram diversos aspectos da vida cotidiana dos indíge-
nas, como a organização do espaço, a guerra e a maneira como se alimentavam
(PORRO, 1992).
Com relação às estearias da Baixada, não existem relatos acerca da
construção de palafitas no Maranhão pré-colonial, mas há alguns informes na
região do atual estado do Pará e na região do Alto Amazonas. O melhor exem-
plo desses relatos é a expedição de Ursúa e Aguirre no Alto Amazonas, quando
entrou em contato com os Omágua, grupo indígena que vivia em palafitas, indi-
128 cando que essas moradias lacustres puderam estar fortificadas:

Fomos pelo rio abaixo cinco ou seis dias [...] Chegamos a umas
casas fortes que os índios têm por ali, feitas em jirau, altas e cer-
cadas de tábuas de palmeira e [que] têm no alto troneiras para
flechar, e de lá nos feriram os índios quatro ou cinco espanhóis,
com vinte que se haviam adiantado com um chefe, e os fizeram
recuar; quando chegou a armada a essa casa os índios haviam
fugido... Quando queríamos sair daqui apareceram no rio mui-
tas pirogas e índios, as quais, segundo alguns, seriam mais de
100, com muitos índios de guerra. (PORRO, 1992, p. 95. Grifos
e acréscimo nosso).

No século XVIII, o jesuíta João Daniel escreveu o seguinte sobre os po-


vos palafíticos da Amazônia, inferindo um possível significado desses tipos de
construções:
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Muitas nações vivem sobre lagos, ou no meio deles, onde têm


em cima da água as suas casas feitas da mesma sorte, e só com
o ádito de serem de sobrado, que levantam de varas, e ramos
de palma, e nelas vivem contentes, como peixe na água. A razão
de fabricarem nos lagos as suas povoações e moradias é em uns
pela grande fartura que neles têm de tartarugas, bois marinhos,
e mais pescado; em outros é para estarem mais seguros dos
assaltos dos seus inimigos. (DANIEL, 2004, p. 280).

Até o momento, nossa equipe mapeou os sítios Armíndio, Caboclo,


Encantado e Boca do Rio. O mapeamento é de grande precisão e foi realiza-
do com a estação total e georreferenciamento por satélite (GPS e GIS). Dado
que os leitos dos rios passam por um forte processo de assoreamento, além
de que a areia forma uma camada sobre os esteios, impedindo a identificação
dos mesmos, o método mais adequado foi o mais simples: através de jangadas,
identificamos cada esteio manualmente e o marcamos, sendo que, desse modo,
pudemos localizar a delimitação dos sítios bem como a maioria dos esteios, que
puderam ser referenciados com a estação total. Devemos levar em considera-
129 ção, por outro lado, que esse método também possui uma margem de falha,
dado que algum esteio pode ter deixado de ser visto por um dos membros da
equipe. No entanto, consideramos que a maior quantidade dos esteios foi ma-
peada satisfatoriamente.
Obtivemos resultados eloquentes. O maior sítio mapeado é o
Encantado, com uma extensão de 13 hectares e 171 esteios visíveis, sendo que,
segundo os moradores da região, um terço dele foi destruído para a obtenção
da madeira utilizada em atividades locais, como a construção de cercas. Por
outro lado, o sítio Boca do Rio, com 1 hectare, apresentou o maior número de
esteios: 1100 no total.
A análise espacial evidencia aldeias circulares ou elipsais construídas
no centro dos rios ou dos lagos, cuja função ainda é desconhecida, mas possi-
velmente tem a ver com a obtenção de alimentos ou caráter defensivo. Existe
uma hierarquia de construção arquitetônica, cuja maior quantidade de esteios
está concentrada na parte central das aldeias, e, à medida que se distancia dela,
ocorre uma diminuição das estacas de madeira, até que desaparecem. Essa hie-
rarquia também promove a concentração de grupos de esteios em diferentes
locais dos sítios, o que pode significar que os mesmos estiveram interligados
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por pontes. Associações espaciais feitas com as estatuetas antropozoomórficas,


cuja principal característica é a representação do umbigo, evidenciam um cará-
ter mágico-religioso de alguns sítios que estão localizados exatamente no centro
dos lagos ou dos rios. A associação do umbigo das estatuetas com a localização
espacial da aldeia no centro dos rios é uma evidência simbólica de sociedades
hierarquizadas que se viam como axis mundi, ou seja, que se posicionavam no
centro do universo.
Até o momento, foram realizadas sete (7) datações radiocarbônicas
para os sítios, colocando-os em uma temporalidade de longa duração, que vai
do ano de 165 a 1045 d.C. A maioria dos sítios é contemporânea e sua constru-
ção preponderante, situada entre os séculos 8° e 10°, coloca-os dentro da com-
plexa relação de sociedades que ocuparam a Amazônia no período colonial, es-
tabelecendo contatos diretos e indiretos com elas. Enquanto que os sítios mais
recentes se caracterizam pela produção mais de uma cerâmica mais fina, com
presença de pintura, os sítios mais antigos, Coqueiro e Lago do Souza, possuem
uma cerâmica mais grossa, sem pintura, com incisão nas bordas.
Dada a natureza subaquática dos sítios, foram feitas, também, coletas
130 sistemáticas na estação da estiagem, cujos depósitos fluviais baixam seu nível
(50 cm de água), mas não secam, situação essa que levou às coletas. Os sítios
foram divididos em um plano cartesiano com quadrículas aleatórias de 1x1. A
partir disso, os materiais arqueológicos superficiais correspondentes a cada um
desses quadrantes foram retirados. Dentre os vários materiais coletados, en-
contram-se artefatos de cerâmica inteiros e fragmentados, sendo pintados e
não pintados; muitas estatuetas; material lítico, com destaque para um muira-
quitã e peças de madeira, como o cabeamento de um machado, hastes de fuso
e supostamente um remo (e/ou borduna?)
Com relação à descoberta mais importante, o muiraquitã, sabe-se que
esse tipo de material lítico foi retirado no lago Cajari por Raimundo Lopes no
início do século XX. A peça que foi encontrada na estearia da Boca do Rio é o
primeiro artefato coletado de forma sistemática, depois dos achados de Lopes.
A análise mineralógica foi realizada pelo Prof. Dr. Marcondes Lima da Costa
(UFPA). Constatou-se que é de pedra verde de nefrita, confeccionada a partir
dos minerais tremolita/actinolita. A peça possui 2,8 cm de altura por 1,8 cm de
comprimento, tendo dois furos laterais e marcas do retoque do lascamento e
polimento no verso. Com relação ao estilo, é híbrido, pois o abdômen e as patas
são idênticos aos muiraquitãs amazônicos tradicionais; no entanto, a cabeça ora
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assemelha-se a traços caribenhos (Venezuela, Guianas e ilhas do Caribe), ora


aos das terras altas da América do Sul (os olhos quadrados e o motivo bipartite
da cabeça), em especial à cultura Tolima da Colômbia ou Tiahuanaco da Bolívia.
Por outro lado, ornamentos em pedra verde são característicos da re-
gião do Istmo-Antilhas, mostrando que as conexões entre Mesoamérica e Caribe
foram muito mais ativas do que imaginou Kirchhoff ao propor diferentes áreas
culturais para as distintas regiões geográficas (KIRCHHOFF, 1960; DOMÍNGUEZ e
FUNARI, 2012). Recentes descobertas arqueológicas mostram evidente intera-
ção entre os grupos humanos que habitaram as Antilhas e a região da Colômbia,
percorrendo uma área que se estende desde o noroeste da Venezuela até a por-
ção ocidental das Honduras (RODRÍGUEZ RAMOS, 2013). Para Rodríguez Ramos
(2013), o ano 700 d.C. correspondeu ao auge da interação entre o Caribe e a
área do Istmo Colombiano, sobretudo na tradição Huecoide de Porto Rico e
norte das Antilhas, onde se percebe uma maior interação cultural com a distri-
buição de pedra verde, conchas, tumbagas e demais artefatos com significado
simbólico regional, cujos temas mais recorrentes são pingentes em forma de
ave (o mais recorrente em forma de condor, típica ave andina), imagens de rép-
teis e adornos batraquianos.
131
Os artefatos cerâmicos foram classificados segundo uma tipologia que
obedeceu as seguintes categorias: forma rasa (prato), vasilhames do tipo meia
calota, vasilhames esféricos, vasilhames do tipo meia esfera, estatuetas e fusos.
Uma característica da coleção é a presença de pequenos vasilhames cerâmicos
que provavelmente serviam para armazenar quantidades bem controladas de
líquido no seu interior ou sementes para o plantio, como indicam Burke, Ericson
e Read (1972). Algumas delas têm incisão nas bordas, outras são pintadas, geral-
mente de vermelho e preto, sem a presença de engobo. Os pratos são utensílios
planos e muitos possuem marcas de esteiras de cestaria, sendo o mais frequen-
te o trançado.
As estatuetas de cerâmica indicam a presença de ritual. Caracterizam-
se pela representação de animais, sobretudo a coruja, o macaco, a tartaruga e o
sapo. Algumas delas são antropozoomorfas (forma humana misturada com a de
animal), sendo a zoomorfa (forma de animal) a mais recorrente. A maioria delas
possui um padrão escultórico: as pernas estão abertas formando uma meia lua
e algumas delas possuem a genitália feminina à mostra. A profusão de estatue-
tas femininas com a marca da genitália pode evidenciar algum tipo de ritual
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associado à fertilidade ou à puberdade, sobretudo porque muitas têm evidência


de quebra da cabeça.
Uma delas em especial evoca a questão do perspectivismo ameríndio
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002) na arte desses povos: deitada é um sapo, de pé é
uma coruja com o tronco humano, além dos braços também humanos. Quase
todas elas possuem outro traço importante: o desenho do umbigo, que, como
relatado anteriormente, está associado à visão de mundo dessas sociedades
(ELIADE, 1969). Os fusos, rodelas em cerâmica com furos, também são um im-
portante tipo de artefato encontrado nas estearias, e em tamanhos diferentes,
os quais indicam a atividade da tecelagem.
Com relação à iconografia, destacam-se os traços geométricos que de-
limitam padrões dentro da composição estilística do vaso: são gregas ou linhas
em espiral que vão circundando o interior das peças. As cores predominantes
são a vermelha e a preta. Provavelmente, muitas trazem desenhos de motivos
que representam a pele dos animais, como um exemplar em que podemos no-
tar as marcas do casco da tartaruga ou da pele de uma cobra surucucu, que era
comum na região da Baixada Maranhense.
132 A análise das fontes etno-históricas evidenciou escassas informações
acerca dessas populações, revelando que esses grupos são bastante antigos, de
tal forma que, à época da Conquista, os índios não preservaram em sua memó-
ria relatos acerca dessas sociedades. É muito provável que os grupos indígenas
do período da Conquista no século XVI e XVII se assentaram em áreas de ocupa-
ção palafítica, vindos de regiões mais distantes, sendo, portanto, alóctones na
área. Estudos mais pontuais nessa direção ainda precisam ser realizados.
As datações radiocarbônicas realizadas em laboratório estadunidense
temporalizando os grupos das estearias nos anos de 200/1000 d.C. comprovam
que essas sociedades são de longa duração e que estiveram bem adaptadas ao
meio aquático.
Com relação à organização política desses povos, fica por elucidar a
sua forma de governo, se foram sociedades mais complexas ou sítios sazonais
por causa do meio aquático. O atual estado das investigações mostra que havia
sítios mais ritualísticos, como o Armíndio, cuja concentração de estatuetas é
grande em detrimento dos demais.
Evidências da grande área territorial ocupada por essas sociedades as-
sociadas à longa duração indicam que esses grupos humanos estavam muito
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bem adaptados ao meio. Já a complexidade arquitetônica dos sítios e a grande


quantidade e disposição dos esteios evidenciam uma construção orientada se-
gundo princípios de direção centro-periferia. O desgaste inferior desses esteios
indica que foram lapidados para melhor se fixarem no leito dos rios. Existe uma
homogeneidade da cultura material, como é evidente nos tipos cerâmicos e sua
mensagem simbólica apresentada pelas pinturas dos vasilhames e estatuetas,
na sua maioria animais predadores como cobras, além da representação cos-
mológica do axis mundi por meio do umbigo. Por fim, há que considerar que a
contemporaneidade dos sítios, indicando uma homogeneidade cultural dessas
sociedades, leva a pensar em cacicados de grande escala regional entre os sécu-
los 8° e 10° d.C., coincidindo, portanto, com o auge das sociedades amazônicas
pré-coloniais.
Por fim, é importante salientar que o projeto é embasado pelos precei-
tos da arqueologia comunitária, uma vez que conjuga a participação dos mora-
dores dos povoados visitados e nas etapas do trabalho arqueológico. O conhe-
cimento dessas pessoas, pautado em suas experiências de vida, é fundamental
para entender o homem do passado e as construções identitárias do presente.
133
O laboratório como espaço de sensibilização escolar

A Escola de Formação Gerencial (EFG) do Sebrae – MA é uma franquia


que tem suas origens na Áustria. No Brasil, teve sua implementação a partir
da iniciativa do Sebrae de Minas Gerais. De acordo com o histórico da Escola
Técnica de Formação Gerencial, esta foi idealizada com o objetivo de suprir a
formação de gerentes de nível técnico para as pequenas empresas. O referen-
cial que serviu como parâmetro para o Projeto ETFG foi encontrado na Áustria
e desenvolvido por meio de um acordo de cooperação com o Ministério de
Educação e Artes daquele país, para a organização de um modelo de formação
gerencial, adaptado à realidade brasileira.
A implementação da EFG em São Luís se deu em 2013, com a abertura
das matrículas para a primeira turma do Ensino Médio, articulado ao Ensino
Técnico em Administração. A primeira turma foi composta por 30 alunos. Além
das disciplinas de História, Geografia, Português e Matemática, os alunos têm
aulas de Direito, Administração, Educação Financeira, Gestão Empresarial e de-
senvolvem projetos voltados para o empreendedorismo.
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De acordo com as metodologias atuais de aprendizagem e dada a ex-


trema velocidade tecnológica que envolve os adolescentes, um conhecimento
abordado de forma extática e fora da realidade dos alunos é sempre mais difícil
de ser apreendido e compartilhado. Quando tratamos de sociedades das quais
sabemos pouco e que tiveram vivências, no geral, muito diferentes das que são
conhecidas pela matriz ocidental europeia, essa distância é ainda maior. O tra-
balho de articulação da teoria com a prática, tão debatido nas universidades,
quando chega ao espaço do Ensino Médio, na maior parte dos casos não acon-
tece devido a falhas nessa comunicação tão vital para ambos os universos de
ensino.
Além dessa perspectiva, os Parâmetros Curriculares Nacionais apon-
tam a necessidade de que o conhecimento abordado no Ensino Médio não per-
ca de vista a perspectiva social relacionada à atuação e à inserção dos estudan-
tes no mercado produtivo, pois:

[...] o novo paradigma emana da compreensão de que, cada vez


mais, as competências desejáveis ao pleno desenvolvimento
134 humano aproximam-se das necessidades à inserção no proces-
so produtivo [...] Ou seja, admitindo tal correspondência exigi-
da para o mercado da cidadania e para as atividades produtivas,
recoloca-se o papel da educação como elemento de desenvolvi-
mento social. (BRASIL, 1999, p. 13 apud MARTINS, 2000, p. 78).

Essa articulação entre o conhecimento formal e sua aplicabilidade não


só prática, mas acima de tudo direcionada para as necessidades da socieda-
de atual, é a base da Escola de Formação Gerencial – EFG do Sebrae (MA), a
qual tem na Arqueologia e nas suas potencialidades uma vasta aplicação social
na atualidade. Assim, deve soar na mesma tonalidade que a contemporanei-
dade, com a construção de um conhecimento participante que contribua para
o desenvolvimento do cidadão (Cf. Parâmetros Curriculares Nacionais, Ensino
Médio, 2000, p. 10).
Com vistas a estreitar a relação entre o Ensino Médio e a Universidade,
a atuação do Laboratório de Arqueologia (LARQ) da UFMA tem contribuído para
divulgar os estudos arqueológicos e também as pesquisas sobre a Pré-História
da Baixada Maranhense. A iniciativa surgiu das constantes visitas ao Laboratório
em concomitância com a atuação na EFG-MA, ministrando a disciplina de
História.
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Primeiramente, os alunos tiveram acesso às discussões sobre patri-


mônio, preservação, tipos de fontes históricas e sobre a pré-histórica brasileira
na EFG-MA. Na semana seguinte, fomos à Universidade Federal do Maranhão,
onde os alunos assistiram a uma palestra sobre as discussões apresentadas
neste capítulo. A segunda parte da atividade na UFMA foi a visita ao LARQ,
onde tiveram acesso ao material coletado nas pesquisas realizadas na Baixada
Maranhense pela equipe do referido laboratório (Figuras 1 a 4 e Fotos 1 a 5).
Durante a visita, aprenderam sobre o manuseio das peças no que se refere à
sua limpeza, conservação e acondicionamento, bem como sobre catalogação e
as técnicas utilizadas para datar os objetos encontrados. Após a visita, selecio-
namos os alunos Marília de Sousa Fontes e Luís Felipe Borges, da EFG, para res-
ponderem a um pequeno questionário com perguntas abertas, mas dirigidas,
sobre as discussões realizadas no LARQ-UFMA.

Figuras - 1. Esteios à mostra na estação da seca; 2. Reconstituição de uma aldeia; 3.


Muiraquitã de nefrita; 4. Mapa da região das estearias na Baixada Maranhense
1 2
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3 4

Fontes: Acervo do Autor.


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Fotos 1 a 5 - Visita ao LARQ e acesso ao material coletado nas pesquisas na Baixada


Maranhense

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Fonte: Acervo pessoal dos autores.

Elaboramos sete blocos de perguntas sobre as discussões levantadas


138 durante a visita ao LARQ-UFMA, as quais serão apresentadas a seguir, com suas
respectivas respostas:

1 - Em algum momento de seus estudos, você tinha interesse pela Pré-


História? Tinha curiosidade em saber, por exemplo, como viviam nossos ante-
passados em épocas muito remotas?
Resposta do aluno Luís Felipe Borges: “Sempre tive vontade de enten-
der um pouco mais sobre a evolução da espécie, como viviam nossos antepas-
sados e até mesmo qual foi a trajetória do ser humano para que se evoluísse
até os dias de hoje, principalmente quando nos deparamos com o estudo das
pinturas rupestres, métodos e utensílios de sobrevivência que, por muito, sal-
vou a pele da raça humana”.
Resposta da aluna Marília de Sousa Fontes: “Sim, sempre mantive a
curiosidade sobre meus antepassados, como viviam, o que faziam etc.”.

2 - Antes de ir ao Laboratório de Arqueologia, e das aulas ensinadas


pelo professor, você tinha ideia do que a Arqueologia estudava?
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Resposta do aluno Luís Felipe: “Sim, antes desse aprofundamento mi-


nistrado pelo professor João e possibilitado posteriormente pela Universidade
Federal do Maranhão, eu e meus colegas detínhamos o conhecimento comum,
e superficial, sobre a Arqueologia”.
Resposta da aluna Marília: “Sim, tinha uma noção que a Arqueologia
estudava as antigas civilizações através de escavações, pesquisas”.

3 - Qual a sua impressão ao ver os artefatos expostos na bancada do


Laboratório? O que você mais gostou de ver?
Resposta do aluno Luís Felipe: “Foi uma sensação incrível ver todos
aqueles artefatos de centenas de anos ali na nossa frente, que mesmo depois
de uma trajetória inimaginável resistiram por tanto tempo e hoje repousam sob
os bons olhos e cuidados de uma equipe magnífica, para contar sua história a
todo e qualquer um que os visite. Eu, particularmente, gostei mais das peças
tidas como amuletos, utilizados na época para o culto a diversos deuses, como
da fertilidade, por exemplo”.
Resposta da aluna Marília: “Eu fiquei muito interessada nos utensílios
139 domésticos e as antigas moedas, pois é evidente sua evolução no decorrer do
tempo”.

4 - A partir das explicações do professor e da ida ao Laboratório, você


acredita que a Arqueologia seja importante? Por que e em que aspecto?
Resposta do aluno Luís Felipe: “Com toda certeza. A Arqueologia conta
ao homem um pedaço da sua própria história, estuda sua trajetória, debate,
pesquisa e constata minuciosamente cada detalhe de como foi a vida há cente-
nas e até milhares de anos atrás, o que, sem dúvida, é primordial para escrever-
mos o livro da humanidade, afinal não se escreve um livro do meio para o final,
é do início”.
Resposta da aluna Marília: “Sim, pois é a partir dela que descobrimos
quem somos e qual é o ciclo da vida, além do que é possível entender os acon-
tecimentos bons e ruins que fizeram o mundo ser o que é hoje”.

5 - Que tipo de ajuda a Arqueologia pode dar para a sociedade? Que


tipo de informação essa ciência pode nos revelar?
CAP. 4
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Resposta do aluno Luís Felipe: “A Arqueologia, por se dedicar ao es-


tudo das sociedades humanas antigas, é primordial para o entendimento do
desenvolvimento do ser enquanto animal pensante. É ela quem escreve a nossa
história desde o começo, resgatando informações do cotidiano dos nossos ante-
passados, como, por exemplo, o que comiam, como viviam, como se adaptavam
e até mesmo seus hábitos preferidos, podendo, a partir daí, caracterizar e cata-
logar a evolução da espécie”.
Resposta da aluna Marília: “A Arqueologia pode ajudar o homem a en-
tender a evolução da humanidade, pode mostrar o que aconteceu com certas
espécies de animais, pode nos mostrar diferentes tipos de sociedades”.

6 - Por fim, há algum aspecto que você gostaria de pontuar sobre a


Arqueologia, sobre os artefatos e sobre a ida ao Laboratório? Você conseguiu
imaginar como viviam os povos que construíram os objetos que você observou?
Acha que a vida deles era muito diferente da nossa? E em quais aspectos?
Resposta do aluno Luís Felipe: “Por toda a visitação ao laboratório, fo-
mos sempre muito bem instruídos e enriquecidos de conhecimento, passados
140 por nossos acompanhantes que esclareciam sempre qualquer dúvida que sur-
gia no momento. O que tornou a visita muito mais empolgante, pois pudemos
entrar de fato neste cenário, revivendo em cada artefato a sensação de quem o
criou, o intuito e a objetividade do mesmo e, claro, sempre contrastando nossos
hábitos e costumes de hoje com os de nossos antepassados, dos quais manti-
nham condições de vida totalmente diferentes, bem como necessidades de so-
brevivência das quais hoje em dia não conhecemos, mas que sempre queríamos
ter a oportunidade de estudar sobre”.
Resposta da aluna Marília: “Com a visitação ao laboratório, pude per-
ceber a importância da Arqueologia para a sociedade, consegui imaginar como
viviam os homens pré-históricos e, principalmente, percebi como a vida atual é
bem mais prática e desenvolvida agora”.

7 - Como você pensa que o poder público pode proteger o nosso


patrimônio?
Resposta do aluno Luís Felipe: “Penso que a forma mais clara e objeti-
va do poder público proteger o patrimônio é incentivando estudos e pesquisas
relacionados, restaurações e preservação do mesmo para que este pedaço da
CAP. 4
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história nunca se apague, afinal tanta informação valiosa quanto à vida de so-
ciedades passadas não pode se perder no tempo, temos profissionais muito
engajados nesta causa em nosso estado e esperamos que eles tenham a opor-
tunidade certa de trabalhar em prol da construção do livro da humanidade”.
Resposta da aluna Marília: “O poder público pode criar projetos rela-
cionados às pesquisas arqueológicas e incentivar visitações a laboratórios ar-
queológicos para as escolas”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como podemos analisar a partir das respostas dadas pelos alunos Luís
Felipe e Marília, da EFG-MA, a visita ao Laboratório de Arqueologia da UFMA foi
extremamente proveitosa. Os dois alunos disseram que tinham vontade de co-
nhecer mais sobre seus antepassados e sobre os utensílios produzidos por eles.
Os dois alunos também responderam que já sabiam superficialmente
do que tratava a Arqueologia e a visita serviu para aproximá-los da realidade
141 retratada nos livros por meio dos utensílios domésticos, das moedas e das peças
tidas como amuletos.
Na quarta questão, perguntamos se eles entendiam ser a Arqueologia
importante e em qual aspecto. Tanto Marília quanto Luís Felipe disseram que a
Arqueologia é importante. Marília respondeu que é através dela que descobri-
mos quem somos e qual é o ciclo da vida. Já Luís Felipe disse ser primordial para
escrevermos o livro da humanidade, afinal não se escreve um livro do meio para
o final, mas do início.
A quinta pergunta indagou sobre qual contribuição a Arqueologia pode
dar à sociedade. Ambos disseram que a Arqueologia ajuda o homem a entender
a evolução e o desenvolvimento da humanidade. O aluno Luís Felipe também
disse que contribui “[...] resgatando informações do cotidiano dos nossos ante-
passados, como, por exemplo, o que comiam, como viviam, como se adaptavam
e até mesmo seus hábitos preferidos, podendo, a partir daí, caracterizar e cata-
logar a evolução da espécie”.
Já na sexta questão, pedimos para que pontuassem algum aspecto so-
bre a Arqueologia e sobre os utensílios expostos durante a visita e se o tipo de
vida dos homens e mulheres da Pré-História era muito diferente da nossa. A alu-
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ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: ESTEARIAS: DIÁLOGO ENTRE A CIÊNCIA, A
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na Marília disse que a partir da visita ao Laboratório percebeu a importância da


Arqueologia para a sociedade, pois conseguiu imaginar como viviam os homens
pré-históricos e que a vida atual é bem mais prática. Já o aluno Luís Felipe escre-
veu que o que tornou a visita muito mais empolgante foi entrar de fato nesse
cenário, revivendo em cada artefato a sensação de quem o criou, o seu intuito
e objetividade e, claro, sempre contrastando com nossos hábitos e costumes de
hoje, com os de nossos antepassados.
Na última pergunta indagamos como o poder público pode proteger o
patrimônio. Tanto Luís Felipe quanto Marília disseram que o poder público de-
veria incentivar mais as pesquisas relacionadas à Arqueologia e promover mais
visitações aos laboratórios arqueológicos.
Percebemos, a partir das respostas dadas ao questionário que, para
uma primeira experiência como esta que relatamos aqui, os alunos tiveram um
alto grau de aproveitamento no que concerne à sensibilização para a importân-
cia dos estudos e pesquisas arqueológicas e para a necessidade de preservação
desses pequenos artefatos tão frágeis materialmente, mas tão fortes e carrega-
dos de significados e emoções de quem os moldaram.
142 Desse modo, a Arqueologia cumpre sua função social e comunitária.
Essa ciência, que outrora esteve tão distante das pessoas, hoje mantém um diá-
logo crescente com elas. Pesquisas em escala regional, nacional e internacional
demostram que os benefícios que a Arqueologia pode trazer, como a discus-
são em torno da vida material dos indivíduos, são muito mais eficazes se pen-
sados dentro e a partir das vivências comunitárias, uma vez que promovem a
conscientização de nossa própria identidade, como a construímos e como nos
vemos e posicionamos no mundo. Nesse sentido, a noção de patrimônio, seu
significado, abrangência e domínio público tornam-se fundamentais para inserir
as comunidades dentro das questões sociais e de identidade. Não é à toa que
ciência, escola e comunidade são temas tão interligados e fundamentais para o
entendimento de nosso patrimônio e trajetória histórica.

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CAP. 5
A MULTIVOCALIDADE DA OS VALORES CULTURAIS E ESPIRITUAIS NA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: GESTÃO DE ÁREAS PROTEGIDAS: ENFOQUES E
Comunidades, práticas e direitos OLHARES SOB A PERSPECTIVA AMBIENTAL

CAPÍTULO 5
OS VALORES CULTURAIS E ESPIRITUAIS NA
GESTÃO DE ÁREAS PROTEGIDAS: ENFOQUES
E OLHARES SOB A PERSPECTIVA AMBIENTAL

146

DOI: http://dx.doi.org/10.18616/arq05

Isabela Barbosa Frederico

SUMÁRIO
CAP. 5
A MULTIVOCALIDADE DA OS VALORES CULTURAIS E ESPIRITUAIS NA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: GESTÃO DE ÁREAS PROTEGIDAS: ENFOQUES E
Comunidades, práticas e direitos OLHARES SOB A PERSPECTIVA AMBIENTAL

Ao pensamos na relação proposta pelo nosso título entre gestão de


áreas protegidas, valores culturais e espirituais e a questão ambiental, coloca-
mo-nos, a princípio, diante de uma reflexão elementar entre as fronteiras e o
encontro das temáticas cultura e natureza. Para além de vieses estanques, pro-
pomos, neste capítulo, o alcance elementar entre ambas as instâncias por meio
das subjetividades inerentes aos valores espirituais. Mas qual seria a conexão
entre espiritualidade, cultura e natureza? Por que abordá-la faz sentido em uma
sociedade ocidental que priorizou a ruptura com as crenças religiosas e místi-
cas, durante o desenvolvimento de uma racionalidade científica e econômica?
Abordar os valores culturais e espirituais no campo científico e no discurso am-
biental é relevante e atual para a gestão de áreas protegidas? Essas e outras
questões que, com facilidade, emergem da leitura de nosso título desenham
o contexto no qual este capítulo foi construído e pensado. Todavia, estamos
no desenvolvimento de uma pesquisa mais ampla e aprofundada,1 que busca
atender a esses questionamentos. Algumas contribuições teóricas e empíricas,
contudo, já podem dar início à teia de reflexões a qual estamos nos propondo
neste momento.

147
Antecedentes da questão ambiental

O desenvolvimento de um discurso de participação cultural e local na


gestão e no uso de áreas protegidas decorre de um debate mais amplo no âmbi-
to das questões ambientais. Podemos destacar a década de 1960 como o grande
marco para os debates ao redor desta temática e da percepção de uma crise em
escala planetária. A questão ambiental nasce mundializada (CARVALHO, 2001),
perpassando os países com diferentes abordagens, muitas delas vinculadas ao
contexto histórico, político e social inerente às nações e aos povos do mundo.
Por essa razão, configura-se como uma questão complexa e multivariada.

1
Estamos desenvolvendo a pesquisa de doutorado interdisciplinar em Ambiente e Sociedade, com
a temática “O papel da espiritualidade no turismo e na gestão de áreas protegidas: o caso da RPPN
Santuário do Caraça/MG”, no Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Universidade
Estadual de Campinas, sob a orientação do Professor Pedro Paulo A. Funari. A pesquisa teve início em
2014 e está com a defesa pretendida para o ano de 2018.
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Concebida, inicialmente, no meio científico2 (LEIS e D´AMATO, 2005),


a crítica ecológica é impulsionada pela publicação da obra “A primavera
silenciosa”, de Rachel Carson, na década de 19603. O texto apresentava ao
mundo uma visão pessimista em relação aos efeitos dos pesticidas para a saú-
de ambiental e, em consequência, para o ser humano. Nesse mesmo período,
ocorre também o chamado Clube de Roma (1968), cujos relatórios científicos
traziam fortes críticas ao modelo de desenvolvimento pautado pelo capitalismo
(CARVALHO, 2001).
Já a década de 1970 vê em seu desabrochar a emergência do termo
crise ambiental nas pautas governamentais, em âmbito global. Por essa razão,
no ano de 1972, ocorreu a Conferência de Estocolmo, reunindo líderes mundiais
ao redor de uma pauta que buscou refletir sobre uma série de elementos para
a regulação, legislação e controle das temáticas envolvendo o meio ambiente.
O planeta, como um todo, já percebia uma série de impactos que figuravam
ao redor de suas paisagens, como a vivência de uma forte poluição do ar em
Nova Iorque e Londres (já nas décadas de 1950 e 1960); os casos de intoxicação
por mercúrio em Minamata e Niigata (entre 1953 e 1965); a contaminação do
mar em grande escala originada pelo naufrágio do petroleiro Torrei Canyon (em
148
1966), entre outros.
Os antecedentes desses cenários já eram também observados no sé-
culo anterior (XIX), vinculados às diferenças socioeconômicas existentes nos
países. Moran (2011) nos recorda as consequências advindas do uso dos com-
bustíveis fósseis ao longo do século XIX, como os fogs (nevoeiros espessos) vi-
venciados por cidades como Londres. Esse período já ilustrava uma associação
entre os impactos ambientais e as questões sociais, isto é, as parcelas mais po-
bres da população tinham uma vivência mais próxima com os efeitos sobre o
ambiente, provocados pelo modo de produção capitalista.
Já na década de 1980, uma série de estudiosos publicaram obras com
suas interpretações sobre a crise ambiental. O físico Fritjof Capra lança seu li-
vro, em 1982, intitulado “O ponto de Mutação”, no qual denuncia a vivência de
2
A criação da União Internacional para a Conservação da Natureza (1948) teria impulsionado esse
processo. Apesar de a disciplina de ecologia já ter, nesse período, um histórico de estudos de mais de
um século, as preocupações ecológicas ganham força na década de 1950.
3
A obra “Antes que a natureza morra”, de Jean Dorst, publicada em 1965, também elucidava por meio
da literatura os riscos eminentes do progresso, associados à exploração desenfreada dos recursos
naturais desde o período da Revolução Industrial (CARVALHO, 2001).
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uma crise de dimensões intelectuais, morais e espirituais. No interior desta, o


homem se depara com a possibilidade real de autodestruição, denunciando a
sua face “[...] materialista, agressora do meio ambiente e bélica.” (CARVALHO,
2001, p. 57).
Para Enrique Leff (2007), estudioso da ecologia política, a problemática
ambiental aparece como um sintoma e um questionamento do modelo de civi-
lização construído sobre um conjunto de elementos da racionalidade moderna
capitalista, cujos impactos se fizeram sentir na degradação do meio ambiente e
na qualidade de vida. O decênio de 1980 marca também o início de um deba-
te mais amplo, vinculado à participação comunitária na gestão dos ambientes
naturais. No cenário brasileiro, a crítica ecológica mostra-se bastante associada
à questão social. O processo de redemocratização associado à desconfiança pe-
rante o desenvolvimento concentrador de renda e destruidor da natureza favo-
rece o fortalecimento do ecologismo dos movimentos sociais4 (DIEGUES, 1994).

A participação e a espiritualidade como agenda no debate


ambiental
149
A década de 1980 clamou o início de um debate no qual a participação
comunitária e cultural ganhou um viés de relevância perante às questões am-
bientais. Essas, já não mais vistas de forma estanque e unicamente relacionadas
às demandas ecológicas do planeta, foram se ampliando, e o debate associado
às esferas culturais e naturais ganhou escopo e foi fortalecido. Para Leff (2007),
a destruição dos recursos naturais e a degradação do meio ambiente, ocasio-
nadas pelo processo de reprodução do capital, tornaram-se um dos maiores
problemas políticos e econômicos do nosso tempo. Em suas palavras:

Esta crisis ambiental há desencadenado um vasto processo de


conscientización popular, así como un movimento social para
frenar los efectos negativos que tienen los patrines de produc-

4
No Brasil, o autor menciona os exemplos do Movimento dos Seringueiros, dos Povos da Floresta
da Amazônia, dos Atingidos pelas Barragens. Também ressalta esse movimento indiano, com o
Movimento de Chipko e dos pescadores artesanais da Índia (DIEGUES, 1994). Em especial, o movimen-
to de Chipko constitui um exemplo interessante, pois evidencia a inferências dos elementos espirituais
na relação com a conservação. Antes mesmo de a espiritualidade vigorar na era da sustentabilidade,
as mulheres dessa região, inspiradas nas tradições do grupo espiritual Bishnois de Rajastán, abraça-
ram-se às árvores para evitar o desmatamento que ameaçava seus territórios (LEIS, 1998).
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ción y de consumo de mercancíass em el agotamiento de los


recursos, em la desestructuración de los ecossistemas y en la
desintegración cultural de los pueblos. (LEFF, 2007, p. 124).5

De fato, o debate amplia-se para as demais esferas que compõem a


questão ambiental. Nesse sentido, a participação popular e a diversidade cul-
tural são colocadas como ponto crucial para a tomada de ações em prol do
planeta. A década de 1990 tem em seu âmago um discurso mais enfático sobre
a presença do aspecto social como elemento importante nas discussões envol-
vendo o planeta. Podemos rapidamente lembrar a realização da Conferência
das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92), realizada
no Rio de Janeiro no ano de 19926.
Após cinco anos, Leis (1998) fez um balanço dos resultados e constatou
que, desde a perspectiva ambiental, o mais importante não foi necessariamente
a assinatura de acordos pelos governos. Para o autor, a Rio 92 teve sua real im-
portância e contribuição na constituição de um espaço público global, com uma
participação efetiva das diferentes dimensões que compõem o ambientalismo,
150 pertencentes às diversas regiões do planeta (norte, sul, leste, oeste), cujos ato-
res ultrapassavam os muros do ambientalismo stricto sensu e eram advindos
dos diferentes campos possíveis, como a ciência, a política, a sociedade civil, a
economia, a cultura e a religião.
Jacobi (2006) ressalta que parte da problemática ambiental é também
provocada pela ausência de participação no processo de gestão de ambientes.
Para o autor, esse cenário, em conjunto com a falta de informação e de consciên-
cia ambiental, gerou uma postura de dependência e de desresponsabilização da
população. Em suas palavras, carecemos de “[...] práticas comunitárias basea-
das na participação e no envolvimento dos cidadãos, que proponham uma nova
cultura de direitos apoiada na motivação e na co-participação [sic] na gestão do
meio ambiente, através de diversas dinâmicas.” (JACOBI, 2006, p. 463).
5
Essa crise ambiental desencadeou um vasto processo de conscientização popular, bem como um
movimento social para frear os efeitos negativos que têm os padrões de produção e de consumo de
mercadorias baseados no esgotamento dos recursos, na desestruturação dos ecossistemas e na desin-
tegração cultural dos povos. [Tradução nossa].
6
No marco da Rio 92, foram firmados importantes acordos, como a Convenção sobre as Mudanças
Climáticas e sobre a Diversidade Biológica. Particularmente, esta última traz em seu bojo a busca por
políticas destinadas a garantir os “[...] direitos dos povos indígenas e das populações tradicionais sobre
os recursos genéticos, haja vista a estreita relação entre preservação desses recursos e os conheci-
mentos, costumes e tradições dessas populações.” (ZANIRATO e RIBEIRO, 2009, p. 226).
CAP. 5
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A tomada de decisão nos processos de governança ambiental passa


a integrar de maneira gradativa as pessoas comuns que estão diretamente re-
lacionadas com os recursos em determinados contextos geográficos. “Quanto
mais localizados estiverem os recursos, mais a decisão deverá caber à popula-
ção local [...]”, nas palavras de Moran (2011, p. 218).
É no interior desse debate que o sociólogo brasileiro Antônio Carlos
Diegues lança, em 1994, sua obra de referência, “O mito moderno da natureza
intocada”. Com um viés bastante crítico, o autor enfatiza como as áreas protegi-
das brasileiras foram inspiradas e concebidas segundo o modelo estadunidense,
que previa a exclusão de importantes grupos sociais locais.
Os Estados Unidos foram pioneiros na criação de áreas naturais pro-
tegidas, com o primeiro parque nacional em 1872: Yellowstone. Foram duas as
correntes que motivaram a instituição dessa proteção, a conservacionista e a
preservacionista. A primeira, baseada nas premissas do engenheiro florestal
Gifford Pinchot, tinha como foco central a conservação de recursos naturais
desde uma ótica antropocêntrica de uso. Já a segunda, liderada por John Muir,
tinha como foco o resguardo dos elementos estéticos e espirituais advindos da
151 vida selvagem dos ambientes naturais. Essa visão, de caráter mais biocêntrico,
tinha suas inspirações nas ideias de Thoreau. No entanto, ambas as correntes
tinham como similaridade a criação de grandes “ilhas”, que eliminavam o ele-
mento histórico de ocupação humana e, consequentemente, a identidade que
muitos grupos humanos tinham desenvolvido ao longo de décadas e séculos
com essas áreas. Para tanto, muitos moradores locais foram expulsos de suas
casas durante a instituição dessa ação de proteção.
A participação social e cultural em práticas de conservação de áreas
naturais ganhava, portanto, não apenas o plano governamental, como mos-
tra a Rio 92, mas também o debate científico sobre o tema. Pimbert e Pretty
(2000) esclarecem que até a década de 1970 o elemento participativo não
era visto como análogo à conservação. As pessoas que residiam nesses am-
bientes eram tidas como atores passivos nesse processo. Os argumentos de
que a participação seria um elemento-chave na gestão desses ambientes ini-
cia-se na década de 1980, porém, no decênio seguinte, ela ganha uma força
maior, resultado também do fortalecimento do ecologismo social vivenciado
por países como o Brasil e a Índia (DIEGUES, 1994).
Apesar desse reconhecimento, a década de 1990 trouxe em seu histó-
rico iniciativas que notadamente não estavam direcionadas ao debate existente.
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No plano governamental brasileiro, por exemplo, podemos mencionar a própria


proposta de criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC),
enviada ao Congresso em 1992. Com caráter tecnocrático e conservador, o do-
cumento apresentava baixíssima alusão às comunidades tradicionais existentes
nesses ambientes (DIEGUES, 1994).
Já no plano acadêmico, Pimbert e Pretty (2000) ressaltaram que mes-
mo após cinco anos da Rio 92, era, todavia, comum escutar biólogos da conser-
vação proporem a apropriação de vastas áreas do planeta à rede de áreas prote-
gidas. Para eles, as prioridades sobre o que proteger deveriam ser impostas por
especialistas-chave do campo científico. A própria interdisciplinaridade era vista
por alguns como “[...] restrita às bem conhecidas tribos de botânicos, zoólogos e
outros cientistas naturais [...]” (PIMBERT e PRETTY, 2000, p. 188) e apresentava
como objetivo o tornar a ciência objetiva e racional.
Por outro lado, observamos também estudiosos nacionais e interna-
cionais que se destacaram na inclusão da participação como elemento-chave
nos debates da conservação de áreas naturais e protegidas. Em 2000, Berkes
e Folke publicam a obra “Linking Social and Ecological Systems: management
152 practices and social mechanisms for building resilience” e trazem uma série de
estudos com a temática da gestão adaptativa e da resiliência socioecológica.
Um elemento importante na abordagem dos autores refere-se ao papel das
comunidades locais, indígenas e rurais frente aos distúrbios ocasionados e/ou
ocorridos em seus ambientes naturais. Dessa forma, grande relevância é dada
ao chamado TEK – Traditional Ecological Knowledge (Conhecimento ecológico
tradicional), isto é, ao conjunto de conhecimentos, práticas e crenças que estão
envolvidos nos processos de adaptação e que são transmitidos culturalmente
de geração a geração. O TEK constitui atributo de sociedades que possuem vín-
culos históricos com o seu território, bem como com os recursos nele existentes.
Dentre os vínculos históricos com o território, gostaríamos de mencio-
nar os valores culturais e espirituais que comunidades e grupos locais possuem
com a natureza, o elo imaterial de subjetividade que rompe com a racionalida-
de utilitarista e desabrocha em uma visão de natureza mais ampla e complexa.
Esse elo demonstra incitar uma relação mais equânime com as outras formas
de vida existentes na natureza. Berkes (2001), ao teorizar sobre a relação entre
as tradições religiosas e a conservação de áreas naturais, menciona que o pon-
to-chave não constitui a religião, mas sim o uso emocionalmente poderoso de
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símbolos culturais que contribuem para a manutenção de um sentido de sagra-


do a respeito.
No que se refere aos elementos objetivos da biodiversidade, o autor
afirma que as religiões têm pouco a dizer. No entanto, elas lapidam os valores,
as visões de mundo e a ética ambiental que sustentam as diferentes formas
que as sociedades encontram para interagir com a diversidade biológica e a
natureza em geral (BERKES, 2001). Por essa razão, a religião e a espiritualidade
também ganharam enfoque nas discussões ambientais desenvolvidas na déca-
da de 1990. Somados ao já mencionado ecologismo social (oriundo dos movi-
mentos sociais), os povos indígenas também se somam ao debate, sobretudo
pelo aspecto ideológico e espiritual enraizado em suas crenças e em seus valo-
res culturais.
Toledo (2006) destaca o forte impacto existente nas visões comple-
xas de mundo de povos indígenas, na gestão e no uso dos ambientes naturais.
Diferentemente da percepção utilitarista dos recursos naturais existentes nos
espaços industriais, a natureza para esses povos não constitui apenas uma fonte
de recursos produtivos, mas sim o centro do universo, aquilo que se refere ao
153 núcleo da cultura e da origem de sua identidade étnica.
Existe uma relação clara e estabelecida entre os grupos indígenas e a
floresta (POSEY, 1999). Apesar das diferenças existentes em suas organizações
internas, a cosmologia desses povos converge no fato de eles não realizarem
diferenças ontológicas absolutas entre seres humanos de um lado e animais
e plantas do outro (DESCOLA, 2000). Parece existir no interior das sociedades
indígenas uma relação de agradecimento pelos benefícios advindos da nature-
za. Essa relação de gratidão estrutura comportamentos e ajustes culturais que
substanciam o modo de vida desses povos e a interação com o meio em que
vivem.
É importante ressaltar que a relação de ligação com o ambiente natural
por meio de uma sacralidade não é característica exclusiva dos povos indígenas.
Baseado em estudos da Etnoecologia, Marques (2005) evidencia como o cato-
licismo popular brasileiro incorpora elementos favoráveis ao meio ambiente. O
autor exemplifica, inclusive, mitos nos quais estão presentes conhecimentos de
fauna (em especial os de caráter etiológico), semelhantes aos reconhecidos pela
ciência ecológica no campo científico.
Desde uma perspectiva da história ambiental, Frascaroli (2013) apre-
senta, também, uma relação entre valores religiosos católicos e a conservação
CAP. 5
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de áreas naturais na Itália central. Por meio de dados provenientes da ecologia


da paisagem, o autor menciona que algumas vertentes do catolicismo estão
mais associadas aos ambientes naturais do que outras. Portanto, as conclusi-
vas do estudo sugerem que uma maior consciência em relação às heranças es-
pirituais locais seja considerada para garantir uma gestão eficaz dos recursos
naturais.

Patrimônio como valor cultural e sua interação com o campo


ambiental

Como pudemos observar no item anterior, a relação entre cultura e


natureza, mais precisamente a inserção dos valores culturais e espirituais no de-
bate sobre a gestão de áreas protegidas, ganhou destaque na década de 1990.
Os exemplos brevemente mencionados demonstram como os elementos sim-
bólicos e cosmológicos relacionados ao ambiente natural estão intimamente
atrelados às expressões de religiosidade e espiritualidade inerentes aos dife-
rentes grupos humanos que habitam o interior e/ou as proximidades de áreas
154 protegidas.
Por essa razão, os estudos que contemplam a conservação de áreas
naturais precisam, necessariamente, estar envolvidos com a questão cultural e
patrimonial. As estratégias de conservação horizontais, que relacionam cultura
e natureza de forma participativa, são mais efetivas que as iniciativas verticali-
zas, nas quais governo e organizações internacionais frequentemente ignoram
crenças, valores, instituições locais e tradicionais. O ponto crucial para a relação
entre as religiões e as crenças no cerne ambiental é justamente os valores ine-
rentes a elas, que traduzem e orientam comportamentos e significações em prol
da conservação do ambiente.
De fato, a abertura do século XXI tem assistido a um debate mais en-
fático sobre a participação da sociedade e da cultura na gestão dos ambientes
naturais. Observamos, também, um reconhecimento maior dos saberes que es-
tão para além dos muros científicos. Órgãos internacionais que se debruçam
sobre a temática ambiental passam a unir esforços e a pensar em novas estraté-
gias de trabalho que incluam também outros atores relacionados ao tema. Um
dos exemplos mais expressivos nesse sentido foi a criação da Plataforma Global
“Future Earth”, em 2012. Ao propor o entendimento e a busca de soluções de
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ordem científica e social paras as mudanças ambientais globais, essa iniciativa


enfatiza o anseio de integrar (em formato de c-design-production) os diferentes
atores envolvidos na complexidade do tema em questão.
Consolidada com a Rio + 20 (Conferência das Nações Unidas sobre o
Desenvolvimento Sustentável, após os 20 anos da Rio 92), essa plataforma traz
o envolvimento de importantes comissões, como o Conselho Internacional para
a Ciência (ICSU), o Conselho Internacional de Ciências Sociais (ISSC), o Fórum
Belmont de agências de financiamento, a Organização das Nações Unidas para
a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), o Programa das Nações Unidas para
o Ambiente (UNEP), a Universidade das Nações Unidas (UNU) e a Organização
Mundial de Meteorologia (FUTURE EARTH, 2013). Essa iniciativa demonstra a
importância e a relevância que a integração do conhecimento e de saberes vem
se dando no plano ambiental.
Para além das abordagens científicas e interdisciplinares sobre o tema
está também em voga a relação com outras formas de conhecimento e sabedo-
ria existentes no planeta. O estudioso mexicano de ecologia política Enrique Leff
(2010), por exemplo, tece argumentos para que os imaginários sociais sejam
155 considerados nos debates sobre a crise ambiental. Os saberes das populações
locais e sua vivência possuem informações riquíssimas sobre as estratégias de
gestão de áreas naturais, bem como das simbologias e éticas perante a natureza.
Durante o contexto da Rio + 20, a presença da cultura no debate am-
biental se apresenta de forma mais direta. No campo do diálogo sobre a sus-
tentabilidade, a cultura passa a ser incorporada como possível quarto eixo do
desenvolvimento. Em um nível mais fundamental, o patrimônio cultural é re-
conhecido por suas evidências sobre a adaptação mútua ao longo da história
entre os grupos humanos e o ambiente biofísico. Reflete, também, a subjetivi-
dade individual e coletiva, bem como a interação dos grupos humanos com o
seu próprio contexto. De forma bastante clara, o patrimônio resguarda o laço
indissociável entre a diversidade cultural e biológica, ao longo dos processos
coevolutivos complexos (BOCCARDI; DUVELLE, 2013).
A inserção do patrimônio cultural nas questões ambientais é facilitada
pelo próprio amadurecimento do conceito e das pesquisas e políticas envolven-
do o mesmo. O patrimônio, para além de suas relações já conhecidas com o
passado, passa também a relacionar-se com o presente e o futuro. Dessa forma,
ele é associado a outras questões, entre elas as sociais, econômicas, políticas e
ecológicas do nosso tempo.
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A pluralidade, inerente aos discursos patrimoniais e às práticas de he-


rança, é reconhecida como propulsora de subsídios para se trabalhar o futuro
almejado (HOLTORF, 2012). O patrimônio, até então visto de forma estanque,
valorizado segundo preceitos estéticos ocidentais, passa a ser criticado. A ideia
da separabilidade entre cultura e natureza, presente nas categorias oficiais,
começa a ser questionada, baseando-se nos debates ambientais que circunda-
vam o planeta e fundamentavam a relação direta entre ambas as instâncias.
Francesco Bandarin (2016, p. 187) demonstra essas questões ao mencionar um
exemplo empírico:

Pensemos em el volcán Tongariro, en Nueva Zelanda, centro de


espiritualidade de los pueblos maoríes. En aquel espacio no hay
ninguna construcción humana; se trata simplemente del vol-
cán, em toda su materialidade, con uma serie de valores inma-
teriales associados. Este constituye un claro ejemplo de inclu-
sión de nuevos elementos que no pertenecen a la concepción
clássica del patrimônio y de quebra de las fronteras entre el pa-
trimônio cultural y el natural. Esa segmentação, de la tradición
156 greco-judaica, no se da em otras sociedades no europeas; por
lo tanto, em su superación, se atisban muchas possibilidades
para de futuro.7

Como podemos ver, os valores espirituais desenham toda a subjetivi-


dade existente na relação entre vários povos e seus ambientes. Em uma con-
dição de imaterialidade, a espiritualidade configura e estrutura significados
que orientam a forma pela qual grupos humanos manejam e se utilizam dos
recursos naturais existentes ao seu redor. Na atualidade, essa questão se co-
loca também como uma possível janela para ampliar o debate ambiental para
além dos discursos objetivos e científicos. Além disso, possibilita a inclusão de
outras formas de conhecimento e sabedoria que não estão diretamente relacio-

7
Pensemos no vulcão Tongariro, na Nova Zelândia, centro de uma espiritualidade dos povos maoris.
Naquele espaço, não há nenhuma construção humana. Trata-se simplesmente de um vulcão, em toda
a sua materialidade, com uma série de valores imateriais espirituais associados. Este constitui um
exemplo claro de inclusão de novos elementos que não pertencem à concepção clássica de patrimô-
nio e de quebras às fronteiras entre o patrimônio cultural e o natural. Esta segmentação, de tradição
greco-judaica, não se dá em outras sociedades europeias, portanto, em sua superação, arriscam-se
muitas possibilidades de futuro [tradução nossa].
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nadas aos modos de se entender o ambiente, desde uma perspectiva disciplinar


e fragmentada.
O conhecimento local, proveniente da experiência e da história cul-
tural dos povos, ressurge com força se para somar ao debate ambiental. Não
estamos defendendo aqui um embate entre atores científicos e comunitários.
Mas, sim, uma integração de saberes, fundamentada no diálogo e na troca de
experiências e conhecimentos em prol de um bem maior, a conservação da na-
tureza. Esta, de caráter vital para a existência humana neste planeta, carece
de reflexões e estratégias de planejamento e manejo participativo. Já não mais
podemos olhar para a vida que nos cerca e nos rodeia com sua flora, fauna e
geologia como elementos estáticos e independentes das construções históricas
e culturais humanas.
Nosso desafio como estudiosos do patrimônio cultural no presente sé-
culo XXI não reside mais nas fronteiras do conhecimento, mas, sim, no avanço
das diferenças e na valorização das diversidades. Nesse âmbito, os valores cul-
turais, associados aos seus ambientes, têm muito a nos ensinar e a contribuir
perante os desafios complexos e presentes em nosso presente planetário.
157
O Santuário do Caraça: um breve exemplo da associação dos va-
lores culturais e espirituais na conservação de áreas protegidas

É nas montanhas mineiras, encrustado entre os dois maiores picos8


da extensa e majestosa Serra do Espinhaço, que se encontra o nosso estudo de
caso sobre os elementos discutidos até aqui. O Santuário do Caraça traz em seu
percurso histórico uma relação entre cultura e natureza desenhada por valores
espirituais. Ele, como todo patrimônio cultural imaterial, é também ressignifica-
do ao redor dos anos. Nesse caso, poderíamos dizer que os valores espirituais
Caracenses demonstram manter suas raízes fortes na tradição histórica e suas
folhas ao alto, abraçando o novo e as oportunidades advindas do movimento e
da dinâmica social.
O Caraça resguarda uma biodiversidade expressiva ao longo de um en-
contro de dois grandes biomas, cerrado e mata atlântica, com a presença tam-
bém de campos rupestres. Está situado sob o chamado Quadrilátero Ferrífero,
razão pela qual se explica a presença abundante de minérios e, em consequên-
8
Pico do Sol (2072 metros de altitude) e Pico do Inficionado (2068 metros de altitude).
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cia, uma exploração econômica datada desde períodos coloniais. O santuário


está localizado entre os munícipios de Santa Bárbara e Catas Altas, a uma distân-
cia aproximada de 120 quilômetros da capital mineira, Belo Horizonte.
Abordar a história do Caraça é também interagir com o mágico am-
biente que lhe conforma, em estreita relação com os elementos sociais que ali
desenharam uma ocupação humana efetiva desde o século XVIII. Para fins expli-
cativos, gostaríamos de abordar o santuário em três grandes momentos de sua
ocupação. No entanto, destacamos que essa é apenas uma possibilidade. Um
dos grandes escritores do Caraça, Padre Tobias Zico (1982) propõe uma divisão
amparada na fundação do santuário e nas diferentes nacionalidades que esta-
vam sob a gestão religiosa vicentina que logo seguiram o seu fundador9.
Nosso objetivo central aqui é ilustrar a relação inerente entre os valo-
res culturais e espirituais na gestão dos ambientes naturais. Para tanto, faremos
uma breve descrição em três etapas norteadoras, que estamos desenvolvendo
em nosso estudo. São elas: a ermida do Irmão Lourenço; o espaço educativo e,
por fim, a ecologia e o turismo no santuário. Essas três fases compõem os laços
entre o patrimônio cultural e o meio ambiente existente, assim como eviden-
158 ciam também os usos do espaço Caracense e sua relação com os valores espi-
rituais. Os usos, em cada fase, peregrinação, educação, conservação e turismo,
conformam as diferentes ressignificações que foram atribuídas ao espaço do
santuário. Refletem uma história que foge às concepções fragmentadas e está-
ticas, mas que evidenciam a dinamicidade inerente aos processos envolvendo
cultura e natureza ao longo dos diferentes períodos trilhados.
A primeira fase, que aqui chamamos de a Ermida do Irmão Lourenço,
corresponde ao primeiro indício de ocupação efetiva do território que hoje
abarca o santuário. Registros anteriores fazem menção à palavra Caraça e a uma
ocupação oriunda da atividade de exploração minerária já no início do século
XVIII (ZICO, 1982; PLASTINO et. al., 2010). Mas é no ano de 1973 que efeti-
vamente chega às montanhas do Espinhaço aquele que seria o fundador do
Santuário, o ermitão de origem portuguesa Irmão Lourenço. São inúmeras as
histórias sobre a origem de Lourenço, no entanto, a convencionalmente aceita é
a de que pertencia à família Távora e de que teria chegado ao Brasil fugindo das
perseguições do Marquês de Pombal após o ataque sofrido pelo rei D. João VI.
9
A divisão elaborada por Zico (1982) foi: I) Caraça do Irmão Lourenço – 1770/1819; II) Caraça, diri-
gido pelos Padres Portugueses ou Caraça Português – 1820/1854; III) Caraça, dirigido pelos Padres
Franceses ou Caraça Francês – 1854/1903; IV) Caraça, dirigido pelos Padres Brasileiros ou Caraça
Brasileiro – 1903/até hoje.
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Ao chegar ao Brasil, mais precisamente a Minas Gerais, Lourenço to-


mou o hábito da Ordem Terceira de São Francisco e trabalhou no serviço de dia-
mantes. Não se sabe ao certo o que aconteceu, mas ele desapareceu por alguns
anos e ressurgiu nas áreas do Caraça em 1774, fundando uma pequena ermida
de caráter barroco, nas entranhas das montanhas do Espinhaço. Tal como sua
origem, há algumas histórias que inspiram as motivações do irmão para surgir
em um local tão ermo. A mais aceita é a hipótese levantada pelo historiador
José Carrato (1963) de que Lourenço teria cometido algum delito entre 1767 e
1770, como sonegação de impostos, descaminho do ouro ou algo semelhante.
Isso teria motivado a penitência, obrigando-o a se valer da proteção de uma or-
dem terceira religiosa e a buscar um local estratégico onde poderia exercer sua
doação condicional (LIMA JÚNIOR, 1948). As palavras de Lima Júnior (1948, p.
78) ilustram o ambiente natural e sua relação com os elementos sociais advin-
dos da história de Lourenço:

Contemplando-se as construções que ali deixou o Irmão


Lourenço, compreende-se bem a acertada escolha daquele
local terrível por quem desejava fugir às maldades humanas e
159 atingir pela perfeição do espírito as bem-aventuranças. E quem,
sem ser visto à distância, poderia chegar até as proximidades
do cenóbio? Desde longe a vista alcança dos trilhos de desfi-
ladeiros, e por detrás da Casa, sobre a montanha com os seus
atalhos vêredas [sic].

Cruz (1920, p. 8) também traz relatos semelhantes ao dizer que “[...]


transpoz os alcantis destas serras e veio buscar, no êrmo, [sic] a paz que não en-
contrava mais entre os homens”. E assim, para materializar o seu retiro, instituiu
a Irmandade de Nossa Senhora Mãe dos Homens, aglomerando um número de
fiéis que contribuíram com escolhas e trabalho (ANDRADE, 2000). A natureza
no Caraça, nesse primeiro instante, era reconhecida como um local de descanso
e retiro espiritual, palco para peregrinações e cantorias que os devotos reali-
zavam ao percorrerem as montanhas e chegarem ao santuário de Lourenço.
Ademais da busca espiritual do ambiente, o Caraça recebeu também a visita
de ilustres naturalistas que percorriam o Brasil, na busca por descrever sua flo-
ra e fauna. Entre eles estavam o francês Saint Hilaire (1816) e os alemães Von
Martius e Spix (1818).
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O segundo uso/fase do santuário refere-se ao espaço educativo, isto


é, o Colégio do Caraça. Ao deixar seu testamento ao Rei D. João VI, o irmão
Lourenço pediu que aquele espaço fosse destinado a missionários. Caso assim
não pudesse, que servisse, portanto, a um seminário de meninos, no qual pu-
dessem aprender artes, ciências e línguas (ZICO, 1982). É nesse contexto que
são enviados ao Caraça os padres vicentinos Leandro Rabelo Peixoto e Antônio
Ferreira Viçoso, no ano de 1820. Nesse mesmo ano, ganham a posse legal do
território e a casa do Caraça passa a ser a primeira “Casa Mãe da Congregação
da Missão” no Brasil (CRUZ, 1920).
A natureza Caracense ganhou novas nuances com o colégio. O famoso
estabelecimento teve importante papel na educação do país e recebeu mais
de 11 mil alunos, entre eles os Presidentes da República Afonso Pena e Arthur
Bernardes. A forte tradição educativa era amparada e dirigida pela Congregação
da Missão, ordem religiosa francesa. Nesse período, o patrimônio material do
local foi ampliado e tivemos a construção da primeira igreja neogótica no Brasil,
no ano de 1876.
Os espaços naturais compunham o cenário de isolamento e silêncio
160 pretendido para a educação naquele lugar e também eram utilizados para a pro-
dução de alimentos do colégio, como também para o lazer dos alunos durante
os momentos de recreação. As atividades educativas no Caraça funcionaram até
o ano de 1968, quando, devido à ocorrência de um incêndio, os padres foram
confrontados com um momento central para reflexões ao redor do seu patrimô-
nio material, da cultura imaterial e do ambiente natural.
Lembremo-nos de que nesse mesmo período, conforme explicitado no
início deste capítulo, o mundo perpassava também um período importante de
surgimento da crítica ambiental. Ao passo que a gestão religiosa lidava com as
interrupções de sua atividade central, a educativa, eram também apresentados
a uma recente preocupação que ecoava ao redor do planeta: a conservação dos
recursos naturais.
Portanto, o início da década de 1970 trouxe ao Caraça novos desafios,
mais complexos e amplos. A dúvida sobre o futuro não perpassava apenas o
universo interno e local do santuário, mas também as fortes pressões econômi-
cas e capitalistas externas que ameaçavam o seu ambiente natural. Iniciou-se,
nesse período, a chegada de turistas e de visitantes que vinham até o Caraça.
Eles eram curiosos da região e familiares de ex-alunos do colégio. Outras ativi-
dades somavam-se aos usos do santuário. Eram elas a viagem e o lazer. A prio-
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ri, provocaram impactos negativos nos elementos arquitetônicos e naturais do


lugar. Por essa razão, no ano de 1973, foi fundada a Comissão Pró-Caraça, que
era formada por padres membros da Congregação da Missão e outros membros
externos que auxiliavam a gestão religiosa, entre eles estudiosos, políticos e
advogados. Fundamentados na tradição existente no local e em seu histórico de
usos, definiram três grandes eixos norteadores para o local: centro de irradia-
ção espiritual, centro de cultura e centro de repouso e turismo (ZICO, 1982). Os
valores existentes foram ressignificados e o local passou a incorporar também o
novo, proveniente dos turistas que ali chegavam.
Um exemplo disso é a própria motivação que traz viajantes para o
Caraça. Frederico (2013), após entrevistas com membros da gestão local, identi-
ficou que o atual peregrino (metáfora utilizada para designar o atual turista) que
chegou ao santuário no contexto contemporâneo não buscava apenas a igre-
ja, mas também outros elementos da paisagem que remetem a um Deus mais
abrangente e híbrido. Dessa forma, a religião institucionalizada que desenhou a
ocupação do Caraça, desde a ermida do Irmão Lourenço, ganhou também uma
abertura maior com a chegada de um público diferente.

161 No entanto, gostaríamos de mencionar aqui o papel crucial exerci-


do pela natureza nos imaginários dos turistas caracenses no presente século.
Frederico (2013) esclarece que, diferente de outras áreas protegidas brasileiras,
nas quais pouco se tem acesso à cultura do local, o Caraça traz de singular os
valores culturais e espirituais na vivência com a natureza. Nota-se que, apesar
de uma religião instaurada no patrimônio cultural do local, os relatos dos turis-
tas demonstram uma espiritualidade mais ampla, em direta conexão com um
caráter mais plural e ético com a natureza.

Pude detectar, nas falas dos meus entrevistados, uma religio-


sidade relacionada a um sentimento de religamento sem vín-
culos com religiões instituídas. Situando uma vertente mais
teocêntrica para a realidade do Caraça, podemos trazer um as-
pecto comum nos relatos sobre uma percepção, no espaço, em
questão, de um Deus, manifestado na preservação da natureza,
no ambiente e no silêncio. Somado a isso, a existência de uma
ética baseada no respeito pelas outras formas de vida, intensifi-
cada pela experiência no local. (FREDERICO, 2013, p. 136).
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O vínculo da natureza com a religião do local tem, ao longo da história


do Santuário do Caraça, lapidado os usos do local e a subjetividade inerente a
eles. Com a terceira fase, já turística, observamos uma característica elemen-
tar dos valores e do patrimônio cultural, a dinamicidade, a qual acompanhou e
tem acompanhado os novos desafios com os quais o Caraça se defronta no seu
cotidiano.
Ademais desse elemento, gostaríamos também de enfatizar que a fase
na qual o santuário se depara com o turismo e com a ecologia – nos cânones da
conservação institucionalizada (áreas protegidas) – é pautada por uma conexão
forte com os preceitos culturais e espirituais existentes. A Comissão Pró-Caraça,
encabeçada pela Congregação da Missão, bem como a gestão da unidade rea-
lizada por ela, demonstrou também, na década de 1970, uma preocupação em
tombar a área como um parque natural. Lembremo-nos de que a década em
questão viu o fervilhar do debate sobre a conservação e a legislação de áreas
protegidas.
O processo de reestruturação nesse período teve também a participa-
ção de uma das mais importantes organizações não governamentais daquele
162 período, a Fundação Brasileira de Conservação da Natureza (FBCN). Em parceria
com a gestão religiosa, fundaram, em 1978, a Estação Biológica, com o intuito
de servir como hospedaria para os pesquisadores que fossem realizar seus es-
tudos no Santuário. Nesse mesmo ano, o Caraça recebeu a visita da Dra. Maria
Buchinger, secretária executiva do antigo Comitê Latino-Americano de Parques
Nacionais (ZICO, 1982).
Esses anseios foram materializados no ano de 1994, quando a área
recebeu a proteção federal legal e foi tombada como Reserva Particular de
Patrimônio Natural. Do total dos aproximadamente 12.000 hectares, foram res-
guardados 10.187,89 como área protegida. O restante ficou destinado às ativi-
dades de manejo agrícola e pastoril (PALÚ, 2012). A gestão da reserva é feita pela
Congregação da Missão e tem no turismo o seu principal meio de subsistência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O exemplo do Santuário do Caraça nos aproxima de um caso empírico


sobre como as iniciativas de conservação de áreas naturais estão diretamente
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relacionadas aos elementos culturais e, também, em alguns casos, espirituais.


Ao longo de todo o seu histórico, o santuário estabeleceu vínculos diretos com o
espaço natural, amparado por diferentes subjetividades. A princípio, a peregri-
nação e as viagens dos grandes naturalistas; posteriormente, o silêncio e o iso-
lamento invocados pelo colégio, e, por fim, o espaço turístico e de conservação
ambiental. Em todos esses elementos nos deparamos com uma forte relação
com a tradição e uma abertura para o novo, como fonte de oportunidade para
a conservação.
O Caraça demonstra um caso específico no qual valores espirituais
foram associados também às práticas de conservação vinculadas a uma ra-
cionalidade científica. O caso da Comissão Pró-Caraça e o envolvimento com
a Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza (FBCN) ilustram como
a ciência pode dividir espaço e abrir diálogo com outros saberes em prol de
um bem comum, como o caso da conservação. Desse modo, a gestão religiosa,
amparada por conhecimentos científicos e também pela influência de outros
importantes atores, como políticos e turistas, exemplifica a importância de pen-
sarmos na questão ambiental para além das fronteiras que nos circundam no
meio acadêmico.
163
Notadamente, o santuário reflete questões desafiadoras do nosso pre-
sente. Entre elas, a inserção da cultura como elemento fundamental nas discus-
sões sobre desenvolvimento sustentável. No entanto, o processo de debate e
diálogo entre os diferentes atores que estão envolvidos na gestão de uma área
natural não é ausente de conflitos. Desde uma perspectiva dos estudos patri-
moniais, De La Torre (2013) esclarece que toda a ação de conservação busca
manter uma importância cultural que se inicia no momento em que se atribui
um valor ao local. Contudo, esse valor cultural, na atualidade, perpassa por pro-
cessos intrínsecos, mutáveis, não estáticos, múltiplos e conflituosos.
Ao desafiarem os preceitos de conservação já estabelecidos e desgas-
tados por um viés unilateral, essas características nos colocam desafios iminen-
tes para a busca de uma sociedade mais sustentável e de uma relação mais ética
e participativa com a natureza.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CAP. 6
A MULTIVOCALIDADE DA
EM BUSCA DO PATRIMÔNIO CULTURAL (IN)
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
VISÍVEL: O CABOCLO DA REGIÃO DO CONTESTADO
Comunidades, práticas e direitos

CAPÍTULO 6
EM BUSCA DO PATRIMÔNIO CULTURAL
(IN)VISÍVEL: O CABOCLO DA REGIÃO DO
CONTESTADO

167

DOI: http://dx.doi.org/10.18616/arq06

Carlos dos Passos Paulo Matias


Delmir José Valentini
Juliano Bitencourt Campos

SUMÁRIO
CAP. 6
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ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
VISÍVEL: O CABOCLO DA REGIÃO DO CONTESTADO
Comunidades, práticas e direitos

CONSIDERAÇÕES SOBRE O PATRIMÔNIO CULTURAL


BRASILEIRO

Embora as discussões sobre o Patrimônio Cultural Brasileiro estejam


presentes na maioria das pautas das instituições nacionais ligadas à Educação
e à Cultura, é recente a preocupação relacionada com a importância do reco-
nhecimento e da preservação do patrimônio imaterial do povo brasileiro. Foi
somente a partir da década de 1920, com o movimento dos modernistas, que a
temática do patrimônio cultural foi introduzida no país.

Nesse período, foram realizadas ações de registro bastante sig-


nificativas que, apesar de seu caráter experimental e não siste-
mático, propiciaram uma importante reflexão sobre a questão,
tendo como principal fruto a sedimentação de uma noção mais
ampla de patrimônio cultural. (BRASIL, 2006).

Na luta pela construção do que pretendia ser uma cultura brasilei-


168 ra, artistas e intelectuais brasileiros percorreram o interior do Brasil, buscan-
do inspiração e entendimento sobre o folclore. Os intelectuais, membros do
Movimento Modernista brasileiro, formavam o Grupo dos Cinco, integrado
pelas pintoras Tarsila do Amaral e Anita Malfatti e pelos escritores Mário de
Andrade, Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia. Tal movimento também
contou com a participação de dezenas de intelectuais e artistas, como Manuel
Bandeira, Di Cavalcanti, Graça Aranha, Guilherme de Almeida, entre muitos ou-
tros, que realizaram um inventário da cultura popular brasileira. A intenção dos
intelectuais modernistas era a reformulação cultural do Brasil, afastando-se da
europeização nas artes e nos costumes, dando maior ênfase à brasilidade, por
meio da manifestação do próprio povo brasileiro, sem a importação de hábitos
de países estrangeiros (BOMENY, 2001).
No processo de fortalecimento desse sentimento de identidade nacio-
nal, foram criadas políticas de constituição do patrimônio histórico e cultural do
Brasil. Assim, os símbolos tornaram-se relevantes para a afirmação e identifica-
ção de um povo como nação.
Nesse sentido, Chartier aponta a construção de símbolos capazes de
influenciar os indivíduos em determinados contextos, quando afirma que a “[...]
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VISÍVEL: O CABOCLO DA REGIÃO DO CONTESTADO
Comunidades, práticas e direitos

representação que ele fez de si próprio por aqueles de quem espera reconhe-
cimento; quando compreende as formas de dominação simbólica, por meio do
aparelho ou do aparato [...]” (CHARTIER, 1990, p. 23-24) tem um alcance de
proporções enormes na consciência ou no inconsciente das pessoas da mesma
nacionalidade.
Recentemente, percebeu-se a sensibilidade de instituir ações, e as re-
flexões sobre a importância dos bens culturais como referências fundamentais
para vários grupos formadores da sociedade brasileira contribuíram para que o
Congresso Nacional incluísse o tema, de maneira contundente e afirmativa na
Constituição Federal promulgada em 1988, que estabeleceu:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de


natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à me-
mória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasilei-
ra, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;

169 II – os modos de criar, fazer e viver;


III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espa-
ços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Parágrafo 1. O poder público, com a colaboração da comuni-
dade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro
por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e
desapropriação, e de outras formas de acautelamento e pre-
servação. (BRASIL, 1988, n.p. Grifos nossos).

Entretanto, apenas em novembro de 1997 foi que essas provocações e


orientações resultaram em uma ação mais efetiva: a realização do seminário in-
ternacional, promovido pela Superintendência do Iphan, em Fortaleza, para dis-
cutir estratégias e formas de proteção ao patrimônio cultural. Durante o evento,
foram relatadas experiências brasileiras e internacionais de identificação, de
resgate e de valorização das manifestações culturais vivas. Também foram dis-
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cutidos os rumos da ação institucional nesse campo, os instrumentos legais e as


medidas administrativas que poderiam ser propostas para a preservação dessa
dimensão do patrimônio.
Durante o Seminário do Iphan, foi produzido um documento denomi-
nado A Carta de Fortaleza, no qual constam as recomendações para o aprofun-
damento dos debates sobre o conceito de patrimônio cultural e o desenvolvi-
mento de estudos para a criação de instrumento legal, inclusive instituindo o
“Registro” como principal modo de preservação e de reconhecimento de bens
culturais dessa natureza.
Em março de 1998, devido à repercussão da Carta de Fortaleza, o
Ministério da Cultura constituiu uma comissão com o objetivo de elaborar di-
versas propostas, visando à regulamentação da salvaguarda do patrimônio cul-
tural. Também foi criado o Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial – GTPI, que
reuniu técnicos do Iphan, da Funarte e do MinC para assessorar essa Comissão
(CERQUEIRA, 2008).
Nos últimos anos, a noção de patrimônio adquiriu um caráter mais
abrangente, o que auxiliou no entendimento da importância desses fragmentos
170 enquanto suportes de memórias de uma modernidade que deixou suas mar-
cas no tempo e no espaço. O processo histórico envolveu sucessivas camadas,
acontecimentos que vão destruindo partes de um todo. Elementos importantes
adquirem visibilidade somente na eminência da perda. A decisão de preservar
está alicerçada em decisões políticas. Ademais, a reflexão sobre o destino dos
bens patrimoniais é influenciada por novos paradigmas urbanos orientados pe-
las exigências de sociedades que se movem cada vez mais depressa (BASTOS;
TEIXEIRA, 2008).
A gestão do patrimônio cultural está no âmbito do poder público fe-
deral, percebendo-se a necessidade de trabalhar em conjunto com os poderes
estaduais e municipais, na busca de resultados para a proteção e a devolução
social, por meio do sentimento de pertencimento:

[...] um dos maiores desafios à gestão do patrimônio cultural é


definir conceitual e legalmente novas formas de acautelamento
compatíveis com sua abrangência, cada vez maior, e com exer-
cício dos direitos culturais do cidadão, reconhecidos no texto da
Constituição de 1988. (BASTOS; TEIXEIRA, 2008).
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Comunidades, práticas e direitos

Entretanto, as formas de acautelamento esbarram em outros valores


baseados na uniformização do pensamento, causando uma despersonalização
cultural. A gestão patrimonial procura trabalhar na busca pelo reconhecimento,
por parte das populações, dos seus bens culturais que lhes pertencem por di-
reito e deve criar atributos que despertem uma identificação cultural, gerando
a compreensão que levará à necessidade de preservar os elementos que com-
põem o Patrimônio Cultural como um todo.

Inicialmente, o patrimônio cultural brasileiro era tutelado me-


ramente em seu aspecto material, por meio do Decreto-Lei no
25, de 30 de novembro de 1937, que organizou a proteção do
patrimônio histórico e artístico nacional, com ênfase no institu-
to do tombamento. (FILÓ, 2013, p. 32).

Observa-se, no entanto, que as práticas de identificação e de inven-


tário, juntamente com os esforços para a futura salvaguarda e registro desses
bens, têm sua importância na medida em que contribuem para a preservação
171 e o fortalecimento da memória e identidade social das comunidades pesqui-
sadas. Visto que, “[...] o patrimônio histórico-cultural, tomado como um dos
suportes da memória coletiva, produz identidades sociais que são determinan-
tes nos modos como os homens se apropriam da realidade que os cerca [...]”
(SALVADORI, 2008, p. 31).
Assim, em consonância com Pelegrini (2009, p. 19), reforçamos que
“[...] todos esses bens culturais apreendidos como ‘expressões da alma dos po-
vos’ conjugam as reminiscências e o sentido de pertencimento dos indivíduos,
articulando-os a um ou mais grupos e lhes assegurando vínculos identitários
[...]”, representando o esforço de inserir as comunidades no levantamento e no
cuidado com o seu patrimônio. “A Lei no 12.343/2010, em seu art. 3o, inciso VI,
também faz menção à preservação do patrimônio cultural brasileiro, por meio
de se resguardar dos bens de natureza material e imaterial, como uma compe-
tência do Poder Público.” (FILÓ, 2013, p. 33).
Segundo Horta, Grunberg e Monteiro (1999), quando se trabalha com
o Patrimônio Cultural de um determinado espaço, trabalha-se com a categoria
bem cultural, pois o patrimônio é formado por um bem. Os bens culturais são
classificados pelos teóricos e técnicos em bens tangíveis e intangíveis. Tangível
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é todo bem palpável, como praça, museu. Os intangíveis são as memórias que
guardam a música, o canto, a reza.

Pretende-se um estudo sobre a tutela do patrimônio cultural


da região do Contestado. “100 anos já se passaram, e o tem-
po se encarregou de tecer a trama da destruição do conjunto
dos testemunhos presenciais e documentais daquele espólio”.
(WEHLING et al., 2013, p. 48).

Na região do Contestado, não foi só o tempo que destruiu os testemu-


nhos, existem diversas formas de se destruir um patrimônio, como negá-lo, por
exemplo, ou deixá-lo no ostracismo. Enfim, a pergunta é sobre o interesse em
salvaguardar o que ainda resta desse patrimônio, envolvendo principalmente a
cultura material e imaterial dos caboclos moradores dessa região.
A partir das referências e das questões elencadas anteriormente, pre-
tende-se observar um pouco o processo de apropriação da cultura cabocla, da
história da guerra nessa região. É possível percebê-lo nas relações estabelecidas
172 entre poder público e a história da guerra? Onde permanece a cultura cabocla
local? Houve preocupação em salvaguardar essa cultura? Onde estão os patri-
mônios culturais – materiais e imateriais? Como são tratados, tutelados, estu-
dados e difundidos? Não será pretensão responder essas e outras perguntas,
mas refletir sobre as representações feitas e o inventário da cultura cabocla na
região da eclosão da Guerra do Contestado.

O MODO DE VIDA DOS MORADORES DA REGIÃO DO


CONTESTADO NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Denominada, inicialmente, pelos militares como uma Campanha na


região do Contestado, o conflito social que eclodiu no início do século XX, no sul
do Brasil, entre os anos de 1912-1916 continua despertando interesse e, con-
traditoriamente, também “desinteresse” quando se trata de olhar para a região
sob uma perspectiva mais crítica, buscando os protagonistas locais, ou seja, a
população cabocla.
Superar a ideia do caboclo bárbaro, jagunço, ignorante e ingênuo
é de suma importância para a compreensão do conflito social da região do
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Contestado. Em diversas áreas do conhecimento, foram produzidas obras que


buscam entendimentos sobre o conflito, mostrando senso crítico, apesar da
existência, ainda, de análises superficiais e, às vezes, até preconceituosas sobre
a cultura cabocla. Estudos demostram que as abordagens do caboclo estereo-
tipado, na maioria das vezes, surgiram dos relatos da sua história de vencidos,
da sua cultura ignorada, distorcida e negligenciada, principalmente pelos órgãos
públicos de proteção do patrimônio cultural.
Paulo Pinheiro Machado (2004) chama a atenção para as representa-
ções sobre a figura do caboclo bem antes da deflagração do conflito, apontando
que as manifestações culturais, embora já existentes desde períodos remotos,
são negadas e apenas referenciadas no momento do conflito. “É evidente que
não se tratavam de territórios despovoados, como frequentemente aparece
em relatórios oficiais.” (MACHADO, 2015, p. 19). Pinheiro Machado, do mesmo
modo que Vinhas de Queiroz (1966), percebeu o caboclo sem o estereótipo que
lhe foi imposto durante e, como “herança”, depois da guerra.

O peão era, normalmente, um morador agregado à fazenda


que possuía um pedaço de terra “de favor”. Ali, com sua família,
173
construía uma choupana de rachões de pinheiro e teto de pa-
lha, mantinha uma pequena lavoura de subsistência, protegida
do gado por muros de pedra encaixada, cultivando feijão, mi-
lho, abóboras e criando pequenos animais. (MACHADO, 2004,
p. 67).

O peão deveria dar conta da lida rotineira do campo: levar o


gado para diferentes pastagens, dar sal, curar bicheiras, cons-
truir currais e galpões, queimar as pastagens secas no final do
inverno, fazer marcação com ferro quente, construir muros
de taipa, caçar onças e pumas que rondavam as proximidades
da fazenda, domar cavalos e mulas, tosquiar ovelha e, muito
frequentemente, tropear os animais até os locais de venda ou
abate. Como homem de confiança de seu patrão, o peão era
também um leal soldado à disposição das iniciativas políticas e
militares de seu chefe e, com razoável empenho, muitas vezes
dava sua vida nas revoluções e nas lutas contra desafetos locais
de seu comandante. (MACHADO, 2004, p. 67).
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Recorrente também em autores que procuram destacar a sociedade


local, principalmente sociólogos e antropólogos que buscam os grupos sociais,
é possível encontrar um sujeito que, a seu modo, desenvolvia diferentes ativi-
dades, com os saberes e fazeres necessários para o contexto em que vivia e que
também fazia parte de um grupo social, cujo tecido social é tramado entre rela-
ções de dependência econômica e política, nunca dispensando a violência para
a manutenção da ascensão sobre os grupos não detentores das propriedades.
O sociólogo Duglas Teixeira Monteiro (2011) aponta as relações sociais
estabelecidas nesse grupo, percebendo elementos da violência costumeira e
da violência inovadora. Na primeira, percebe aspectos de uma vida isolada dos
centros urbanos, de difícil acesso, sem escolas e hospitais, com necessidade de
dividir as agruras, nunca as propriedades. Já a violência inovadora surgiu com a
chegada do traçado ferroviário e se materializou com a expulsão dos posseiros,
exclusão e impossibilidade de acesso aos bens trazidos pelo “progresso”.
Além dos peões e agregados das fazendas de criação de gado, também
existia um grupo de moradores – habitantes que cultivavam pequenos roçados,
coletavam e viviam isolados esparsamente pela região. Antes de serem encon-
trados pela ferrovia, embora lembrados pela historiografia como moradores de
174
“espaços vazios” (HEINSFELD, 1996) ou habitantes de terras devolutas, a origem
desses moradores é assim pontuada por Vinhas de Queiroz (1966, p. 16):

Além destes antigos estancieiros empobrecidos, de origem


paulista e portuguesa, já havia, espalhado pelos campos e as
matas, ancestrais dos futuros caboclos: eram os “forros cari-
jós administrados”, que segundo o governo de então “andam
vadios, e não têm casa, nem domicílio certo, nem são úteis à
República”, isto é, eram antigos peões e índios escravos, que
viviam fugidos.

Eduard Thompson (1998) sugere que as classes envolvidas nos movi-


mentos sociais, em vários momentos históricos, são protagonistas importan-
tes e isso também ajuda a desmistificar um pouco as ideias pejorativas criadas
sobre os sujeitos envolvidos no movimento do Contestado. Na perspectiva da
História Social, relacionando com o cultural, principalmente os enfoques e as
contribuições que associam a cultura a outros aspectos da vida cabocla, modo
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de ser, organização social, sua relação com a história da guerra, o caboclo como
sujeito desse processo de construção de memórias, da necessidade do reco-
nhecimento do seu patrimônio cultural, das suas experiências de vida, de re-
lações de vida e de guerra, e atentando para esses aspectos e suas relações é
que podemos encontrar o caboclo, que é descrito como o inimigo da incipiente
república brasileira de então.
Em relação à experiência humana, Thompson (1987) lembra que ela
expressa o que há de mais vivo na história. É a presença de homens e mulheres
retornando como sujeitos construtores do devir e do presente. Não são as es-
truturas que constroem a história. São as pessoas carregadas de experiências.
Podem não representar sujeitos autônomos nem “sujeitos livres”, mas a situa-
ção e suas relações produtivas lhes são determinadoras como necessidades. As
contingências históricas exercem pesada presença na vida de cada pessoa. São
os antagonismos aos quais todos estão submetidos.
Segundo Thompson (1987), essa experiência é trabalhada na cultura
das pessoas e dos agrupamentos dos moradores, de acordo com suas afinida-
des. A cultura é engendrada no âmago da experiência social, toma corpo, cons-
trói uma coerência interna e passa a atuar, por sua vez, no embate de outras
175
experiências (a cultura aqui é compreendida como valores, modos de vida, vi-
sões de mundo, sentimentos, aspirações, projetos, crenças, formas simbólicas
de dominação e resistência, tradições, mitos, etc.).
O conjunto dessas experiências orienta, dá os vetores e os caminhos
das novas lutas. O grau de consciência social, conquistado na experiência e na
cultura, determina os caminhos da história, que no processo é indeterminada.
Os caboclos da região do Contestado (peões, turmeiros, posseiros, estanciei-
ros empobrecidos, índios etc.) experimentaram no seu cotidiano as mais diver-
sas experiências: organização e defesa dos seus bens; formas de sociabilidade,
de lazer, de construção de identidades, de conflitos étnicos, de migrações, de
construção e de destruição de cidades santas, de messianismo, da chegada do
capital internacional na região, bem como das transformações mais recentes
no mundo do trabalho e do sertão, modo de vida que chegou até a atualidade
como registro histórico e hoje se constitui em importante patrimônio cultural.
O cotidiano é mais que a simples descrição das condições materiais de
vida. É também a visualização das experiências vividas, percebidas pelas pessoas
que experimentaram “[...] as relações sociais (classe, gênero, étnicos, etc.) em
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que estão envolvidas, tendo como referencial, continuamente reconstruindo a


sua cultura.” (WOLF, 1991, p. 19). Fazendo uso das palavras de Maria Odila Leite
da Silva Dias (1992), dentro dessa categoria, é importante observar que: “[...]
sempre relegado ao terreno das rotinas obscuras, o cotidiano tem-se revelado
na história social como área de improvisação de papéis informais, novos e de
potencialidade de conflitos e confrontos, onde se multiplicam formas peculiares
de resistência e luta.” (DIAS, 1992, p. 50). O cotidiano é entendido como espaço
de mudança, divergindo, assim, de uma história normativa e pré-determinada,
posicionando-se à frente de um campo aberto de possibilidade, o qual admite o
“contingencial”, “o fortuito” e a “inventividade” dos agentes sociais (DIAS, 1992,
p. 50).
O cotidiano é visto como lugar de resistências, muitas vezes micror-
resistências. Ao discerni-las, buscam-se, também, as práticas de solidariedade
entre os sujeitos históricos e de como eles vivenciaram essa experiência em
nível coletivo. Contudo é importante estar atento para não deixar de perceber
o sujeito se construindo em nível individual, por meio de uma experiência de si.
E toda essa dinâmica de vida, toda essa história deixou registros, deixou marcas
e um legado de heranças culturais. Por que não se vê? Por que se fala pouco?
176
Por que “envergonha”? Ou se deve perguntar: Quem está se apropriando dessa
cultura?

A GUERRA NA REGIÃO DO CONTESTADO: IMPACTOS


SOBRE O MODO DE VIDA DOS CABOCLOS

A recém proclamada república brasileira iniciou sua história com um


legado de conflitos não resolvidos do período imperial, que, por muito tem-
po, ainda iriam assombrar a oligarquia que chegou ao poder. Além do grave
conflito social rural protagonizado no Nordeste pelos seguidores de Antônio
Conselheiro, nas décadas seguintes, no sul do país, especificamente nas terras
dos interiores dos estados de Santa Catarina e do Paraná, as forças da república
tiveram que comparecer e enfrentar a revolta dos moradores antigos das re-
giões fronteiriças, abandonadas e esquecidas durante a maior parte da história
brasileira.
As vastas áreas interioranas do sul do Brasil, durante o período impe-
rial, e mesmo depois da proclamação da república, permaneceram carentes. A
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Comunidades, práticas e direitos

própria inexistência de instituições assistenciais, como cartórios, escolas, igrejas


e delegacias propiciou um estilo de vida por meio do qual nem sempre as pes-
soas tinham acesso aos direitos básicos e à instrução. Era comum as pessoas
não portarem nem mesmo possuírem documentos e registros pessoais ou mes-
mo de bens, como escrituras de qualquer propriedade.
A presença da religião oficial ocorreu somente na última década do
século XIX, com um grupo de franciscanos se estabelecendo em Lages, para
atender a todo o planalto e o Oeste até o extremo, limite com os espanhóis
confinantes. Nas décadas anteriores à chegada dos franciscanos, os monges,
os benzedores, os curandeiros e os puxadores de rezas já haviam semeado a
palavra, perceptível nos primeiros registros dos religiosos que chegaram e já
enfrentaram, além de um grupo desprovido de qualquer escolaridade e distante
das doutrinas religiosas, as crenças arraigadas e a absoluta certeza nas palavras
desses personagens.
A história registra a presença de três monges que marcaram profunda-
mente a população do interior da região do Contestado nos hábitos e crenças.
Primeiramente, um italiano de Piemonte, que depois de ter seu nome registra-
do principalmente em Sorocaba (SP) e em Santa Maria (RS), espalhou devoção,
177
crença e atribuições de poderes a partir de águas de fontes e cruzes erigidas por
onde palmilhou (entre São Paulo e o Rio Grande do Sul). As peregrinações de
João Maria de Agostini estão situadas entre as décadas de 1840 e 1880, quando
desapareceu da região, sendo recentemente esclarecido se tratar de uma reti-
rada pela Argentina e subida em direção à América do Norte (KARSBURG, 2014).
Foi o segundo monge, personagem lendário conhecido como João
Maria de Jesus, que, em estilo itinerante, peregrinou por toda a região que já
havia conhecido o monge italiano, porém esse segundo atuou nas décadas se-
guintes ao desaparecimento do primeiro e se tornou conhecido e venerado,
pairando, até a atualidade, uma devoção profunda e crença nas palavras profe-
ridas ou atribuídas à sua autoria. Espalhou conselhos, benzimentos, receitas de
remédios naturais, batizou e, principalmente, profetizou.
Foi na primeira década do século XX que os moradores da região do
Contestado perceberam o desaparecimento de João Maria, mas não seria essa
a única perda, mudanças profundas provocaram uma crise aguda e o modo de
vida sofreu impactos irreversíveis.
A construção de uma ferrovia ligando o estado de São Paulo ao do
Rio Grande do Sul, embora projetada ainda no tempo do império e iniciada na
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última década do século XIX, no ano de 1908, foi assumida pelo grupo da Brazil
Railway Company, que inaugurou esse traçado ferroviário no ano de 1910.
Ainda no ano de 1910, ocorreu a terceira sentença no Supremo Tribunal
Federal dando ganho de causa para Santa Catarina na questão dos limites – uma
disputa política e jurídica que havia tumultuado a região, instigando conflitos
entre os moradores e indefinição relacionada à jurisdição sobre essas terras.
No ano de 1911, uma grande madeireira do grupo da Brazil Railway
Company iniciou as suas atividades industriais na região do Contestado, trans-
formando o meio ambiente. Também foi o ano em que ocorreram os primeiros
despejos dos moradores, os quais tinham suas casas próximo do traçado ferro-
viário, desprovidos de registros ou de algo que lhes garantisse a posse das terras
que ocupavam. Não bastasse isso, ainda veio a peste dos ratos por causa da seca
da taquara.
O fenômeno da seca da taquara ocorria a cada três décadas e, para
os moradores do sertão, representava uma verdadeira catástrofe. Ao findar o
alimento das ratazanas (sementes de taquaras), os roedores invadiam lavouras
e casas, devorando tudo e provocando miséria, doenças e desespero entre os
178 moradores. O flagelo do ano de 1911 só não foi completo porque boatos de que
o monge teria retornado se espalharam.
Quem surgiu foi um curandeiro de ervas, denominado José Maria, líder
religioso que protagonizou o episódio denominado Combate do Irani, ocorrido
entre as forças de segurança do estado do Paraná e o grupo de seguidores de
José Maria. Para os moradores da região, as transformações abruptas provoca-
ram uma aguda crise e a luta armada já havia iniciado. Embora o líder tenha sido
morto no primeiro combate, a guerra continuou por quatro anos.
A experiência dos homens e mulheres que estiveram nos redutos, acre-
ditando viver em uma irmandade cabocla, foi sufocada pelas forças armadas da
república, que bombardearam e destruíram as cidades santas. No final, doentes
e famintos procuraram se entregar e calar diante da condição de vencidos.
Ficou impressa nos caboclos a culpa pelo derramamento de sangue.
Silenciados e traumatizados, muitos guardaram o silêncio como resposta à con-
dição de vencidos que lhes foi imposta. Na fase final, a “demonização” dos líde-
res foi interiorizada pelos demais redutários (MACHADO, 2004).
Não fica difícil perceber que a negação da condição de sujeitos impôs
aos moradores que enfrentaram as forças oficiais da então incipiente repúbli-
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ca brasileira a negação de qualquer atributo ou valor cultural advindo desses


protagonistas.

O PATRIMÔNIO “MALDITO”

A Guerra do Contestado “faz parte da paisagem” do interior catarinen-


se, tal qual uma araucária onipresente na linha do horizonte, que insiste em bri-
lhar no último raio de sol do inverno gelado dos campos serranos e dos quentes
corações caboclos que ali ainda hoje lutam para sobreviver, sonham, lembram
e relembram um episódio sem explicação, mas que já fora tantas vezes “expli-
cado”. Nessa paisagem exuberante, sangrada e viva, encontramos o patrimônio
cultural da História cabocla e as marcas indeléveis da guerra do conflito armado
protagonizado pelos caboclos, moradores antigos da região do Contestado.
Nesse sentido, a cultura cabocla convive com os lugares das memórias,
com a identidade que resiste até na atualidade. Isso tudo compõem o patrimô-
nio cultural. Com importante valor histórico, cultural, de memória e de identida-
de, esse patrimônio precisa ser protegido, reconhecido e difundido pela histo-
179 riografia, pelo poder público e devidamente guardado nos lugares de memórias,
mesmo que tenha sido negado até mesmo pela historiografia.
A proteção legal do patrimônio imaterial de um povo precisa de tutela
institucional e também receber o cuidado e a atenção que o bom senso nos
diz e a “Lei nos obriga”. Na obra “Sangue e Ruínas no Sul do Brasil: Arqueologia
da Guerra do Contestado (1912-1916)”, Jaisson Teixeira Lino (2011) levantou
um importante inventário sobre o Patrimônio Cultural da região do Contestado,
abrindo um conjunto de discussões sobre a tutela desse patrimônio. Onde se en-
contram os vestígios e indícios da História da região do Contestado? Quem deve
protegê-los? Como iniciar um processo de tombamento desses patrimônios?
Como a comunidade participa da “escolha” do que é patrimônio? Interessante
é a percepção de que, para a maioria dos moradores, vivendo nesse mesmo
palco, o patrimônio cultural está invisível.
A busca pela visibilidade e reconhecimento da importância da cultu-
ra cabocla, mesmo que por meio de iniciativas isoladas, encontra sensibilida-
de de autoridades municipais, como, por exemplo, a instituição da semana do
Contestado, proposta pela Câmara Municipal de Caçador, com uma extensa pro-
gramação procurando envolver os demais segmentos da sociedade local.
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A Câmara Municipal de Caçador criou um projeto de lei (Lei no 017/2016)


que instituiu a Semana do Contestado, a qual deverá ser comemorada na última
semana do mês de outubro (CÂMARA MUNICIPAL DE CAÇADOR, 2016, on-line).
Deve-se atentar para como as manifestações culturais aparecem na programa-
ção e para o ostracismo do patrimônio material. Com o intuito de demonstrar
um pouco dessa forma do trato com a cultura cabocla, trazemos a programação
das duas semanas do Contestado do Município de Caçador (Edições de 2016 e
2015, respectivamente).

A Semana do Contestado será celebrada nesse ano entre os


dias 24 e 30 de outubro. A programação foi anunciada pelo ve-
reador Ricardo Pelegrinello, durante a reunião ordinária dessa
segunda-feira (10), no Plenário Osvaldo José Gomez. A iniciativa
visa celebrar os 100 anos do Contestado e resgatar a identidade
cultural da comunidade local e da região. (CÂMARA MUNICIPAL
DE CAÇADOR, 2016, on-line).

Confira a programação de 2016:


180

De 17 a 30 – 17h: Exposição “Cotidiano da Fé”, do artista plásti-


co Leandro Vitto. Apresentação da Orquestra Municipal Marcial
Aurora. Local: Espaço Cultural Vereador Almir João Binotto, da
Câmara Municipal de Caçador. A apresentação da orquestra foi
cancelada.

24 – 19h30min: Lançamento da obra “Memórias da Lumber


e da Guerra do Contestado”, de autoria do historiador Delmir
José Valentini e apresentação do teatro “O Exército Encantado”,
da Cia de Artes Vento Negro, no Plenário Osvaldo José Gomez,
da Câmara Municipal de Caçador. Público de aproximadamen-
te 60 pessoas.

25 – 19h30min: Sessão Especial do Contestado. Premiação


concurso de acróstico, poema e redação das escolas. Local:
Plenário Osvaldo José Gomez, da Câmara Municipal de Caçador.
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Não houve participação dos Ensinos Médios do Município,


simplesmente ignoraram o concurso.

26 – 14h: Oficina de plantas medicinais da região, com Alesio


Passos dos Santos e o médico César Paulo Simionato, para a
Pastoral da Saúde. Local: Salão da Igreja Nossa Senhora Rainha,
no Santelmo.
19h30min: Oficina de plantas medicinais da região, com Alesio
Passos dos Santos e o médico César Paulo Simionato, aos
acadêmicos. Local: Plenário Osvaldo José Gomez, na Câmara
Municipal de Caçador.

27 – 19h30min: Lançamento da obra “Vicente Telles: O


Mensageiro do Contestado”, de autoria do jornalista Moacir
Pereira e palestra com Vicente Telles. Local: Plenário Osvaldo
José Gomez, na Câmara Municipal de Caçador. Não houve lan-
çamento, Moacir não compareceu e informou no dia que ti-
nha outro compromisso. Vicente Telles compareceu.
181
27 e 28 – 09h: Oficina de plantas medicinais da região para a
Pastoral da Saúde, com Alesio Passos dos Santos, ambientalista,
professor de fitoterapia, colecionador e cultivador de plantas
medicinais, e o médico Dr. César Paulo Simionato, coordenador
do Horto Medicinal do Hospital Universitário da UFSC. Local:
Salão da Igreja Cristo Redentor, no Berger.
14h: Oficina de plantas medicinais da região para Profissionais
da Saúde, com Alesio Passos dos Santos e o médico, César Paulo
Simionato, [sic] coordenador do Horto Medicinal do Hospital
Universitário da UFSC. Local: Plenário Osvaldo José Gomez, na
Câmara Municipal de Caçador.
27 e 28 – 8h30min às 12h e 13h30min às 17h: PROLER -
Literatura do Contestado: palestra e sessão de autógrafos com
o jornalista, Afonso Romano de Sant´ana, [sic] o professor Dr.
Ezequiel Theodoro da Silva. Oficinas temáticas, varal de poe-
sias, feira de livros e atividades paralelas. Local: Auditório da
Reitoria da UNIARP.
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28 – 9h e às 14h: Teatro na Câmara: apresentação das “Cenas


do Contestado”, adaptação da peça O Contestado, de Romário
Borelli, por alunos do IFSC, de Caçador e direção da FMC; e
Chica Pelega, Grupo de Teatro Janela da Arte. Local: Plenário
Osvaldo José Gomez, da Câmara Municipal de Caçador.

28 – 19h30min: Mesa Redonda: “A Religiosidade Contestada”,


apresentada pelo jornalista João Batista e participação do
professor Carlos dos Passos Paulo Matias, do IFSC [sic] e o pa-
dre Gilberto Tomazi, especialistas em História do Contestado.
Mediador: padre Márcio Martins. Local: Plenário Osvaldo José
Gomez, na Câmara Municipal de Caçador. Público presente de
40 pessoas.

29 – 09h30min: Puxirão do Monge: campanha de conscienti-


zação, limpeza e preservação da natureza e atividades lúdi-
cas, no Loteamento Monge João Maria. Minoria de pessoas
envolvidas.
182
29 – 14h: Atividades no Parque Central: apresentações cultu-
rais, mateada, feira de produtos orgânicos, de ervas medicinais
e de artesanato e brinquedos para as crianças. Local: Parque
Central José Rossi Adami. Pouco público.
15h – Causos com Pinduca, da Etnia Cabocla de Caçador.
15h40min – “Bicho de sete cabeças em fúria”, Grupo de Teatro
Temporá.
16h40min – Oficinas da FMC, dança contemporânea “Em tem-
pos de opressão”, com a professora Maria Luiza Zardo Pegoraro,
da FMC.
16h50min – “Quero ser como criança”, Grupo de Teatro
Shekináh.
17h10min – “Maria Rosa e o Contestado”, jazz com a professora
Minéia Mafioleti, da FMC.
17h20min – Grupo Querência dos Amigos, com Gianderson
Mott.
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17h50min – Lançamento do CD de Rock “Conceitual do


Contestado”, da Banda de Rock Peabirus.

30 – 14h: Apresentações culturais. Local: Parque Central José


Rossi Adami.
15h30min: “Chica Pelega”, grupo Ritos do Contestado, de Lebon
Régis.
15h50min: Viola Cabocla, de Lebon Régis.
17h - Missa Cabocla. Local: Parque Central José Rossi Adami.
Muito público presente1. (CÂMARA MUNICIPAL DE CAÇADOR,
2016. Acréscimos grifados nossos).

SEMANA DO CONTESTADO 2015 – CAÇADOR


A partir dessa terça-feira (1º), a história do Contestado será
apresentada diariamente nos mais diversos meios de comu-
nicação do Município que sediará a Semana do Contestado. A
programação acontece entre 22 e 27 de setembro em uma ini-
ciativa da Câmara Municipal, através da Comissão de Educação
183
e da Prefeitura de Caçador com o apoio de diversas instituições.

“Queremos trazer à tona a figura do ‘caboclo’ nos dias de hoje;


valorizar as nossas raízes e apresentar aos que desconhecem,
[sic] um pedaço da nossa história. E quem sabe, introduzir no
dia-a-dia [sic] da nossa comunidade alguns dos fragmentos de
um dos maiores movimentos populares e conflitos armados
da história do Brasil, mas desconhecido por nossa gente”, ex-
plica o presidente da Comissão de Educação, vereador Ricardo
Pelegrinello. Também fazem parte da Comissão os vereadores
Cleony Figur e Moacir D´Agostini.
[...] Entrevistas com os idealizadores do projeto, apoiadores, e
pessoas relacionadas à história do Contestado serão veiculadas
diariamente através do Minuto do Contestado. A primeira edi-
ção conta com a presença da professora de História, Maria Inês
Morona Ramos, que explica de forma didática um pouco do que
foi o combate e os seus resquícios. (INFORME, 2015, on-line).

1
Disponível em: <http://camaracacador.sc.gov.br/noticias/index/ver/codNoticia/395390/cod MapaI-
tem/1536>. Acesso em: 03 jan. 2017.
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Programação:

22 – Lançamento do filme Terra Cabocla, com a presença


dos diretores Márcia Paraíso e Ralf Tambke. Local: Câmara
Municipal de Caçador, às 19h.

22 a 25 – Exibição do filme Terra Cabocla. Local: escolas de


Caçador.

22 a 25 – Exposição “Contestado em Cores”, da artista plástica


Márcia E. Schüler - Manih. Local: Câmara Municipal de Caçador,
das 13h às 19h.

23 – Vivência sobre o uso de ervas medicinais da região, com


Alésio dos Passos Santos. Local: IFSC, Campus Caçador, às 8h e
às 14h.

184 24- Vivência sobre o uso de ervas medicinais na região, com


Alésio dos Passos Santos. Local: Assentamento Hermínio
Gonçalves dos Santos, às 8h. E no Salão Paroquial da Igreja
Cristo Redentor, Berger, às 14h.

24 – Lançamento do livro “A Guerra do Contestado


em Quadrinhos”, com a presença do autor Jorge
Luiz Bernardi. Local: Museu do Contestado, às
19h30min.

25 – Sessão Solene com a palestra “100 Anos da Guerra


do (no) Contestado: Atos, Fatos e a Repercussão
sobre o Território Secular”, com o Dr. Nilson
César Fraga. Local: Câmara Municipal de Caçador, às 19h30min.

26 e 27 – Mateada, apresentações culturais, fei-


ra de produtos orgânicos, ervas medicinais e de ar-
tesanato. Local: Parque Central José Rossi Adami.
Horário: a partir das 14h.
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27 – Missa cabocla e cavalgada. Local: Parque Central José Rossi


Adami, a partir das 14h. (INFORME, 2015, on-line).

Percebe-se, pela programação, que o patrimônio caboclo existe, está


na vida das pessoas, na sua forma de viver, de criar, de pensar e de fazer fes-
tas, política e educação. “A programação escolhida para esse ano foi substancial
para disseminar o conhecimento da nossa comunidade acerca desse período,
traçando ações focadas na Educação”, explicou o vereador Ricardo Pelegrinello,
comentando que foram preparados materiais com filmes e jogos didáticos rela-
cionados ao tema, em uma linguagem de fácil entendimento, conforme a faixa
etária dos alunos, apresentou a matéria do jornal local Caçador Online (2016).
Constata-se que nas escolas se estuda pouco sobre o Contestado. Os
docentes nem sempre estão inteirados e muitas vezes nem interessados no as-
sunto. Mas por que isso acontece? Alternativas são criadas para tentar resolver
o problema, como a iniciativa indicada na matéria da Câmara de Vereadores:
“[...] pretende-se criar uma sequência mínima de publicações e postagens
relacionadas ao tema, em sua página do Facebook [sic] e demais mídias so-
185 ciais. O objetivo é envolver as escolas para planejar o ano letivo, inserindo-as
na Semana.” (CAÇADOR ONLINE, 2016). As escolas não responderam ao apelo.
Algumas sim, mas não com a atenção solicitada. A história dos moradores do
Contestado continua invisível, diria um caboclo.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A (IN)VISIBILIDADE DA


CULTURA CABOCLA NA REGIÃO DO CONTESTADO

Pensar as experiências de homens e mulheres no tempo é sempre um


desafio. Buscamos nas fontes, nos vestígios e nos monumentos do passado as
marcas que indicam como viveram, como se relacionaram, como sofreram, en-
fim, como e por que tomaram as decisões que tomaram.
Destarte, compreender o conflito armado ocorrido na região do
Contestado entre 1912-1916 não se faz tarefa das mais fáceis. Uma complexa
rede de relações, conflitos, mandos e desmandos entre as pessoas que viviam
na região (tradição), entre os governos dos estados envolvidos (Leis) e a entrada
do capital internacional (construção da ferrovia, exploração madeireira e co-
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lonização) foram fatores decisivos para a deflagração da crise que levou à luta
armada.
Caboclos, denominação comum aos homens e mulheres que viviam na
região muito antes da chegada do progresso (consubstanciado na construção
da ferrovia), viviam de maneira simples até serem alcançados pela “civilização”.
Ao mesmo tempo que foram protagonistas de um grande movimento social,
foram vítimas da ganância do capital internacional nas terras onde plantaram
suas vidas.
Assim como Thompson (1987), que estudou a formação da classe ope-
rária inglesa e percebeu na tradição e na cultura o sujeito ativo nos movimen-
tos sociais, Maurício Vinhas de Queiroz (1966), Paulo Pinheiro Machado (2004),
Duglas Teixeira Monteiro (2011), e outros intelectuais que se debruçaram sobre
o tema, perceberam que o caboclo, muitas vezes, foi acusado de fanático, bár-
baro, bandido e outros adjetivos pejorativos; que ele lutou, na forma da sua
visão e entendimento, com bravura contra um mundo em transformação e, para
piorar, enfrentou um exército da mesma nação, onde o próprio governo brasi-
leiro utilizou a força contra seu povo, massacrando moradores simples, peões
e analfabetos de um sistema que, distante de qualquer tentativa de diálogo ou
186
entendimento, preferiu eliminar o elemento pernicioso que perturbava a or-
dem. Termos utilizados para denominar o morador simples que se revoltou e
que, por muitos anos, carregou nas costas a culpa pelo derramamento de san-
gue ocorrido na época.
Desse modo, não fica difícil entender porque o próprio morador da
região do Contestado não atenta para a importância de sua história e de seu
patrimônio, seja ele material ou imaterial. Na condição de vencidos, foram con-
denados ao silêncio, culpados e execrados pela própria história. Fácil de com-
preender os adjetivos atribuídos aos caboclos já nos primeiros escritos sobre a
Campanha do Exército na região do Contestado: facínoras, incautos, desordei-
ros e impatrióticos. Difícil recuperar a autoestima e sair da condição de vencidos
para assumir o protagonismo e se autoperceberem como sujeitos históricos.
Terminamos pensando sobre todos os acontecimentos, os fatos, as re-
lações. Isso faz parte do atual patrimônio cultural. Onde encontramos esses ves-
tígios? Nas tradições que ainda vivem entre os caboclos, nos monumentos, nos
Museus (quase sempre sobrevivendo aos trancos e barrancos, ou, quando não,
esquecidos pelo poder público), às vezes vistos pelos moradores como “alguma
coisa importante”.
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Importante também pontuar que um movimento de revisitação desse


passado histórico e as atuais reflexões sobre esse importante patrimônio cul-
tural sobrevivem e apresentam breves sinais de visibilidade para a população
do Contestado. Exemplos como a instituição da Semana do Contestado – em
Caçador –, de espaços de memórias como o Nosso Museu – em Matos Costas –
e o Museu do Jagunço – em Taquaruçu –, entre outros, acusam que é possível
vislumbrar a importância e a significação e que a cultura cabocla continua viva,
com possibilidade de ser percebida.

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CAP. 6
A MULTIVOCALIDADE DA
EM BUSCA DO PATRIMÔNIO CULTURAL (IN)
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
VISÍVEL: O CABOCLO DA REGIÃO DO CONTESTADO
Comunidades, práticas e direitos

THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa: a árvore de liberdade.


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CAP. 7
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A PRESERVAÇÃO CULTURAL COMO CAMPO DE
Comunidades, práticas e direitos PESQUISA

CAPÍTULO 7
A PRESERVAÇÃO CULTURAL COMO CAMPO DE
PESQUISA

191

DOI: http://dx.doi.org/10.18616/arq07

Tobias Vilhena de Moraes

SUMÁRIO
CAP. 7
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A PRESERVAÇÃO CULTURAL COMO CAMPO DE
Comunidades, práticas e direitos PESQUISA

A PRESERVAÇÃO EM PROCESSO

Desde o fim do projeto Arqueologia Histórica Missioneira, nos anos


90 do século passado, e de um novo olhar científico nos projetos de pesquisa
em Arqueologia, nas Missões, passou a entrar em discussão uma nova etapa
de reflexão sobre o tema da Preservação nos sítios arqueológicos brasileiros.
Ao mesmo tempo, a ampliação dos contatos com instituições dentro e fora do
país começou a ser vista como elemento necessário para o desenvolvimento
científico.
Diversos convênios e atividades de intercâmbios, como o Workshop
Brasil-EUA (1993), contaram com o apoio institucional da Universidade do
Arizona e do National Park Service (NPS), do IPHAN de Santa Catarina e do Rio
Grande do Sul. Esse evento teve origem a partir da ideia da criação de um labo-
ratório de arqueologia e da construção de um local especializado no estudo so-
bre as Missões, as quais, no início dos anos 2010, foram retomadas com afinco
pelo governo brasileiro.
Dentre os projetos desenvolvidos no território missioneiro e que usa-
192 ram como fonte de inspiração os resultados obtidos durante o programa de
Arqueologia Histórica Missioneira estavam o Sítio Escola Internacional/Missões
(SEI), de 1992, e o Programa Integrado de Valorização (PIV), realizado entre
1994 e 1998.
O primeiro projeto tomou como base a Convenção da UNESCO, rela-
cionada à proteção do Patrimônio Cultural da Humanidade. Essa Convenção
afirmava a necessidade de treinamento e a criação de um centro regional para
pesquisa científica. O SEI permitiu a formação de um grande número de profis-
sionais e realizou escavações em vários sítios arqueológicos da região platina
(KERN, 1994, 1995, 1998, 2002).
Posteriormente, foi a vez do PIV, projeto que envolveu arqueólogos
e operários do IPHAN e, eventualmente, universitários de diferentes cursos e
especialidades, em trabalhos teóricos e práticos, nos diferentes sítios arqueoló-
gicos missioneiros.
Entre os anos de 2000 e 2004, foram realizados estudos de geolo-
gia arqueológica nas Missões. O projeto foi coordenado pelo professor Carlos
Henrique Nowaztki, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Geologia Arqueológica
(NEPGEA) da Unisinos, Rio Grande do Sul.
CAP. 7
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A PRESERVAÇÃO CULTURAL COMO CAMPO DE
Comunidades, práticas e direitos PESQUISA

O objetivo daquele projeto era determinar com acuidade a origem


do(s) local(is) de extração das rochas utilizadas para construir a Igreja de São
Miguel. Além do conhecimento adquirido, essa informação seria útil “[...] para
que futuras restaurações, quando fosse o caso, pudessem ser realizadas com a
mesma espécie de rocha originalmente utilizada.” (NOWATZKI, 2007, p. 5). Ao
final, além da localização das antigas pedreiras, foi possível identificar antigas
estradas missioneiras.
No início dos anos 2000, a equipe do IPHAN chegou à conclusão de que
a equipe técnica que atuava nas Missões não era suficiente para correr contra
o tempo e consolidar os sítios de São Lourenço e São João. Como forma de mi-
nimizar as dificuldades de pessoal, algumas obras de restauro e consolidação
passaram a contar com a participação de arqueólogos contratados temporaria-
mente, coordenados pelo próprio corpo concursado do IPHAN. Dentro desse
novo olhar, entre 2003 e 2005, foi realizado o Projeto de Proteção e Valorização
do Patrimônio Cultural das Missões Jesuíticas dos Guaranis, nos sítios arqueoló-
gicos de São Lourenço Mártir e São João Batista.
No caso do sítio de São João Batista, as obras de consolidação das
ruínas, promovidas por técnicos arquitetos do IPHAN nas Missões ficaram sob
193
responsabilidade dos arqueólogos José Otávio Catafesto e Vera Thaddeu, que
coordenaram uma série de intervenções arqueológicas (Figuras 1 e 2).

Figura 1 - Consolidação de muro em São Lourenço Mártir

Fonte: IPHAN-RS (2004).


CAP. 7
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A PRESERVAÇÃO CULTURAL COMO CAMPO DE
Comunidades, práticas e direitos PESQUISA

Figura 2 - Consolidação de muro em São Lourenço Mártir

Fonte: IPHAN-RS (2003-2005).

A partir das ações de ambos os pesquisadores, foi possível realizar o


resgate de diferentes artefatos arqueológicos, além de levantar um grande volu-
me de informações sobre aquele povoado (Figuras 3, 4, 5, 6, 7 e 8).
194
Figuras 3, 4, 5 e 6 - Escavação arqueológica em São João Batista

Fonte: IPHAN/RS (2004). (Foto: Vera Thaddeu e José Otávio Catafesto).


CAP. 7
Figura 7 - Perfil estratigráfico
A MULTIVOCALIDADE DA da escavação arqueológica em São João Batista
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A PRESERVAÇÃO CULTURAL COMO CAMPO DE
Comunidades, práticas e direitos PESQUISA

Figura 7 - Perfil estratigráfico da escavação arqueológica em São João Batista


Figura 7 - Perfil estratigráfico da escavação arqueológica em São João Batista

Fonte: IPHAN/RS (2004).

Fonte:IPHAN/RS
Fonte: IPHAN/RS(2004).
(2004).

Figura 8 - Perfil estratigráfico da escavação arqueológica em São João Batista


Figura 8 - Perfil estratigráfico da escavação arqueológica em São João Batista
Figura 8 - Perfil estratigráfico da escavação arqueológica em São João Batista

195

Fonte: IPHAN/RS (2004).


Fonte: IPHAN/RS (2004).
Fonte: IPHAN/RS (2004).

Cabe destacar, ainda, que entre os anos de 2003 a 2006, em uma ação
que englobou a UNESCO, o World Monuments Fund (WMF) e outras instituições
Cabe destacar,
Cabe ainda, que
destacar, queentre os anos de 2003
2003aa2006,
2006,em emuma
uma ação que englobou
nacionais ainda,
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peloos anos de
patrimônio missioneiro, foi ação
promovido oque englobou
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ESCO, o World
UNESCO, cido Monuments
o WorldPrograma
Monuments Fund
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de Capacitação
(WMF)parae outras
outras instituições
a Conservação, nacionais
Gestão
instituições responsáveis
e Desenvolvimento
nacionais responsáveis pelopelo
Sustentável das Missões Jesuíticas dos Guarani, que tinha como premissa opor-
mônio missioneiro,
atrimônio missioneiro,foifoipromovido
promovido o reconhecido ProgramadedeCapacitação
reconhecido Programa Capacitação
tunizar a cooperação internacional para integrar os esforços e as experiências
parapara
a a
onservação, de
ervação, Gestãodiversos
Gestão países sul-americanos.
e eDesenvolvimento
Desenvolvimento Sustentável das
Sustentável dasMissões
MissõesJesuíticas dosdos
Jesuíticas Guarani, queque
Guarani,
anha como
como premissaoportunizar
premissa oportunizaraacooperação
cooperação internacional
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paraintegrar os os
integrar esforços e ase as
esforços
xperiências
riências dede diversospaíses
diversos paísessul-americanos.
sul-americanos.

Alguns objetivos desse programa merecem ser destacados: capacitar a equipe


Alguns objetivos desse programa merecem ser destacados: capacitar a equipe
CAP. 7
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A PRESERVAÇÃO CULTURAL COMO CAMPO DE
Comunidades, práticas e direitos PESQUISA

Alguns objetivos desse programa merecem ser destacados: capacitar


a equipe responsável pela conservação, gestão e desenvolvimento das Missões;
estabelecer mecanismos de cooperação entre os países e as Missões; identificar
e formular projetos de intervenção nas Missões; dar continuidade às ações nas
Missões e estabelecer um quadro de referência para conservar e gerenciar o
desenvolvimento do conjunto e de seus componentes.
Não apenas em trabalhos de campo as atividades ficaram restritas.
Nesse período, foram realizados três cursos e três oficinas destinados a promo-
ver atividades práticas nos sítios arqueológicos existentes no Brasil, Argentina
e Paraguai. Dentre os temas abordados nesse evento, podemos destacar:
Documentação e Pesquisa; Arqueologia; Conservação Integrada; Recursos
Naturais e Meio Ambiente; Gestão e Uso Público, que envolviam Ações
Educativas e Turismo Cultural.
Nos encontros, foram avaliadas várias situações e experiências, assim
como traçadas diretrizes para a continuidade de ações integradas. Um Manual
Básico de Conservação para as Missões Jesuíticas dos Guarani foi distribuído em
2009 como resultado das atividades e dos estudos realizados naquele período.
196 Mais para frente, entre os anos de 2008 e 2010, sob responsabilidade
do IPHAN e com a participação da arqueóloga Vera Thaddeu e, posteriormente,
da empresa Zanetinni Arqueologia, deu-se continuidade ao projeto de pesquisa
da área da Fonte Missioneira que havia sido descoberta nos anos 1990 após sua
redescoberta (Figura 9).

Figura 9 - Fonte Missioneira recuperada

Fonte: IPHAN-RS (2010).


CAP. 7
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A PRESERVAÇÃO CULTURAL COMO CAMPO DE
Comunidades, práticas e direitos PESQUISA

No novo projeto, o objetivo principal foi o estudo arqueológico para a


requalificação do Parque da Fonte Missioneira. Novas estruturas que provavel-
mente compunham o sistema de abastecimento hídrico local foram identifica-
das (como, por exemplo, o espaço utilizado para armazenar água) e estudadas
as técnicas de construção de tanques d’água, etc. (Figura 10).

Figura 10 - Parque da Fonte Missioneira e Sítio Arqueológico


Figura 10 - Parque da Fonte Missioneira e Sítio Arqueológico

197

Fonte: IPHAN-RS (2010).


Fonte: IPHAN-RS (2010).

Todos esses novos projetos inspiravam-se na alternativa proposta du-


Todos esses novos projetos inspiravam-se na alternativa proposta durante o projeto,
rante o projeto, ainda na década de 1990, pela Arqueologia Histórica Missioneira,
ainda na década de 1990,
que apontava parapela Arqueologia
a necessidade Históricafocar
de também Missioneira,
a pesquisaque apontava da
em subtemas para a
área estudada.
necessidade de também focar a pesquisa em subtemas da área estudada.
Mesmo com a atenção do pesquisador voltada muito mais para um
enfoque
Mesmo com concentrado,
a atenção como a cerâmica guarani
do pesquisador voltadacomo
muitoummais
identificador
para um étnico
enfoque
(Fernanda Tochetto) ou a utilização do metal no mundo guarani-missioneiro
concentrado, como a cerâmica guarani como um identificador étnico (Fernanda Tochetto) ou
(Claudio Carle), dentre outros exemplos e autores participantes, as investiga-
a utilização do
çõesmetal no mundo guarani-missioneiro
se caracterizaram por uma preocupação (Claudio Carle), um
em compor dentre outros geral
panorama exemplos
da ocupação (KERN, 1998).
e autores participantes, as investigações se caracterizaram por uma preocupação em compor
Em 2002, foi assinado um Termo de Cooperação Internacional com o
um panorama geral da ocupação
Instituto Andaluz (KERN, 1998).
do Patrimônio Histórico (IAPH-Espanha). O principal objetivo
daquele acordo foi realizar, no território compreendido pelos Sete Povos das
Em 2002, foi assinado
Missões, um amploum Termo
estudo de Cooperação
sobre Internacional
a paisagem cultural com o Instituto Andaluz
regional.
do Patrimônio Histórico (IAPH-Espanha). O principal objetivo daquele acordo foi realizar, no
território compreendido pelos Sete Povos das Missões, um amplo estudo sobre a paisagem
cultural regional.
CAP. 7
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A PRESERVAÇÃO CULTURAL COMO CAMPO DE
Comunidades, práticas e direitos PESQUISA

Em suas linhas, o acordo era descrito como tendo como alguns dos
seus principais objetivos o “[...] estabelecimento de relações de cooperação
de caráter científico, tecnológico, formativo e cultural, em relações com a do-
cumentação, a conservação, a formação e a difusão do patrimônio histórico.”
(NOGUEIRA e BURKHARD, 2008, p. 29).
O projeto integra várias áreas da cultura, como patrimônio imaterial,
a estatuária missioneira, e objetiva estudar, recuperar e valorizar o patrimônio
arqueológico missioneiro. Profissionais de ambos os institutos participam de
oficinas e atividades de pesquisa que envolvem antropólogos, historiadores, ar-
quitetos e arqueólogos.
O projeto principal é denominado Guia da Paisagem Cultural para a
Gestão do Desenvolvimento do Território das Missões Jesuíticas no Brasil e um
dos seus enfoques mais profundos é a Arqueologia. Precisamente, desde o iní-
cio, o que se desejava era a aplicação de prospecções geofísicas e de sondagens
arqueológicas como forma de se compreender a ocupação territorial na redu-
ção (Figuras 11 e 12).
A partir do estudo, foi possível localizar com precisão antigas estrutu-
198 ras reducionais vinculadas às habitações indígenas que ficam próximo à área
central da praça. Dessas estruturas, duas habitações localizadas logo atrás dos
assentos atuais utilizados pelo público durante o espetáculo Som e Luz foram as
estruturas mais prospectadas.
Com os resultados do trabalho geofísico, no mês de abril de 2010, fo-
ram realizadas as primeiras escavações. Durante o trabalho, foram descobertas
extremidades de duas habitações indígenas.
Fato interessante foi que o alinhamento espacial das ruas das casas
com a porta da igreja não era ortogonal como se supunha até então pelas ilus-
trações históricas da malha urbana da Redução de São Miguel Arcanjo, havendo
uma leve inclinação. Esse dado contribuiu para uma reflexão sobre o processo
de adaptação do planejamento urbano a uma realidade diferente. A investiga-
ção científica assim iria interferir definitivamente nos futuros usos do campo
arqueológico.
CAP. 7
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A PRESERVAÇÃO CULTURAL COMO CAMPO DE
Comunidades, práticas e direitos PESQUISA

Figura 11 - Sondagens geomagnéticas

Fonte: IPHAN-RS (2006).

Figura 12 - Piso de habitação indígena

199

Fonte: IPHAN-RS (2010).

Nesse sentido, foram realizadas outras prospecções arqueológicas nos


anos subsequentes, com o objetivo de compreender as habitações indígenas
na área próximo à Igreja da Redução de São Miguel Arcanjo. Ao final, a coleção
arqueológica compunha-se majoritariamente por fragmentos de telhas (dos te-
lhados e de seus alpendres). Outros achados importantes foram pequenas di-
visórias (separando eventualmente espaços de moradias), carvão e fogueira na
parte interna das habitações (ver quadro 1).
majoritariamente por fragmentos de telhas (dos telhados e de seus alpendres). Outros
achados importantes foram pequenas divisórias (separando eventualmente espaços de

CAP. 7
A MULTIVOCALIDADE DA
moradias), carvão
ARQUEOLOGIA PÚBLICAe fogueira A PRESERVAÇÃO
na parte interna das
NO BRASIL: CULTURAL
habitações (ver quadro 1). COMO CAMPO DE
Comunidades, práticas e direitos PESQUISA

Quadro 1 - Material arqueológico coletado nas escavações


Quadro 1 - Material arqueológico coletado nas escavações
Material arqueológico Quantidade

Cerâmica 468

Lítico 25

Louça 65

Vidro 16

Metais 92

Total 666

Fonte: IPHAN/RS (2012).


Fonte: IPHAN/RS (2012).

Poucos objetos foram coletados e catalogados, visto que a maioria es-


tava destruída pela contínua atividade de cultivo que ocorreu na área ao lon-
200 go dos anos1. Merece destaque a descoberta de moedas do século XIX,160que
permitiu deduzir uma contínua ocupação (ou visitação) do local após o fim da
Redução (ver Figuras 13, 14, 15 e 16). Ambas as peças encontravam-se consi-
deravelmente danificadas pela ferrugem e/ou deposição de pátinas. O local de
origem da moeda de 1824 pode ser aferido pela letra B, ao lado do ano, que
aponta a Casa da Moeda da Bahia.

Figura 13 - Frente de Moeda datada de 1824

Fonte: IPHAN-RS (Catálogo 425.47).


1
Durante muitos anos, também era prática comum nos sítios arqueológicos missioneiros atividades
de limpeza e poda sem a devida atenção ao patrimônio arqueológico enterrado, o que danificou e
descontextualizou diversos artefatos.
CAP. 7
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A PRESERVAÇÃO CULTURAL COMO CAMPO DE
Comunidades, práticas e direitos PESQUISA

Figura 14 - Verso da Moeda datada de 1824

Fonte: IPHAN-RS (Catálogo 425.47).

Figura 15 - Frente (cara) de moeda datada de 1869

201

Fonte: IPHAN-RS (Catálogo 425.96).

Figura 16 - Verso (coroa) de moeda datada de 1869

Fonte: IPHAN-RS (Catálogo 425.96).

Além das moedas, foram coletados outros materiais metálicos, tais


como 47 cravos e cinco fragmentos de facas. Assim como as moedas, essas pe-
ças encontravam-se em avançado estado de oxidação (Figuras 17, 18 e 19). 161

161
CAP. 7
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A PRESERVAÇÃO CULTURAL COMO CAMPO DE
Comunidades, práticas e direitos PESQUISA

Figura 17 - Facas e cravo

Fonte: IPHAN-RS (Catálogo 425.2).

Figura 18 - Cravo

202

Fonte: IPHAN-RS (2012).

Figura 19 - Cravos e placa

Fonte: IPHAN-RS (Catálogo 425.106).


CAP. 7
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A PRESERVAÇÃO CULTURAL COMO CAMPO DE
Comunidades, práticas e direitos PESQUISA

A cerâmica revelada nas escavações apresenta diferentes técnicas de


confecção (roletada, torneada e modelada) e decoração (pintados, escovados,
ungulados, vidrados, pinçados e brunidos). Partes diferentes dos corpos, como
base, corpo, base, pé, além de um fragmento de grés e um fragmento de ca-
chimbo cerâmico foram recuperados (Figuras 20, 21, 22 e 23).

Figura 20 - Fragmento de cachimbo

Fonte: IPHAN-RS (Catálogo 425.74).


203
Figura 21 - Cerâmicas Pintadas

Fonte: IPHAN-RS (Catálogo 425.34).


CAP. 7
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A PRESERVAÇÃO CULTURAL COMO CAMPO DE
Comunidades, práticas e direitos PESQUISA

Figura 22 - Cerâmicas roletadas e torneadas

Fonte: IPHAN-RS (Catálogo 425.27).

Figura 23 - Decorações plásticas

204

Fonte: IPHAN-RS (Catálogo 425.34).


164

O material lítico é rico no registro de técnicas de trabalho (lascamento, 164


polimento e picoteamento) e matérias-primas utilizadas (quartzo, arenito, sílex,
basalto e calcedônia). Também abrangiam artefatos de uso doméstico (facas,
lascas e lascas térmicas), construtivo (fragmentos de base de colunas esculpidas
com esmero), assim como bélico (boleadeiras) (Figuras 24 e 25).
24 e 25).
(fragmentos de base de colunas esculpidas com esmero), assim como bélico (boleadeiras) (Figuras

CAP. 7
24 e 25). A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A PRESERVAÇÃO CULTURAL COMO CAMPO DE
Comunidades, práticas e direitos Figura 24 - Sílex trabalhado PESQUISA

Figura
Figura 24 24 - Sílex
- Sílex trabalhado
trabalhado

Fonte: IPHAN-RS (Catálogo 425.65).


Fonte: IPHAN-RS (Catálogo 425.65).
Fonte: IPHAN-RS (Catálogo 425.65).
Figura 25 – Boleadeira
Figura 25 – Boleadeira
Figura 25 – Boleadeira
205

Fonte:
Fonte: IPHAN-RS
IPHAN-RS (Catálogo
(Catálogo 425.85).
425.85).

Fonte: IPHAN-RS (Catálogo 425.85).


Ao longo de sua trajetória, a Arqueologia foi paulatinamente sendo
incorporada ao escopo dos programas de gestão dos sítios arqueológicos mis- 165
sioneiros. Essa perspectiva fez com que diversos técnicos e pesquisadores viven-
165
CAP. 7
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A PRESERVAÇÃO CULTURAL COMO CAMPO DE
Comunidades, práticas e direitos PESQUISA

ciassem um conjunto de técnicas de campo e formas de trabalho que ajudaram


a consolidar, se não um projeto consolidado de gestão cultural, ao menos um
cotidiano de exercícios práticos para a proteção do patrimônio arqueológico.
Essa postura tem suas bases colocadas já nos primeiros trabalhos de La Salvia,
no início dos anos 1980, em São Nicolau, e se consolidou definitivamente com
o projeto Arqueologia Histórica Missioneira, no fim dos anos de 1980. Todos
esses projetos tinham como proposta agregar colegas de diferentes profissões,
especializados na preservação de bens culturais. Na virada do milênio, até a pri-
meira quinzena deste novo século, essa abordagem se amplia com o desenvol-
vimento de acordos nacionais e internacionais (LA SALVIA, 1982, 1983a, 1983b).
A arqueologia, nesse sentido, tornou-se um instrumento de gestão integrada do
patrimônio.

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207
CAP. 8
A MULTIVOCALIDADE DA COMUNICANDO A ARQUEOLOGIA: DISCUTINDO
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: O PAPEL DA SOCIEDADE DE ARQUEOLOGIA
Comunidades, práticas e direitos BRASILEIRA

CAPÍTULO 8
COMUNICANDO A ARQUEOLOGIA:
DISCUTINDO O PAPEL DA SOCIEDADE DE
ARQUEOLOGIA BRASILEIRA

208

DOI: http://dx.doi.org/10.18616/arq08

Glória Tega
Flávio Calippo
Marcia Bezerra

SUMÁRIO
CAP. 8
A MULTIVOCALIDADE DA COMUNICANDO A ARQUEOLOGIA: DISCUTINDO
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: O PAPEL DA SOCIEDADE DE ARQUEOLOGIA
Comunidades, práticas e direitos BRASILEIRA

INTRODUÇÃO

A preocupação em divulgar o conhecimento produzido no âmbito das


pesquisas arqueológicas realizadas no Brasil vem aumentado. Cada vez mais
vemos os esforços de estudantes, profissionais, movimentos sociais, coletivos,
empresas e instituições para ocuparem um espaço nas mídias digitais, desen-
volvendo blogs, páginas no facebook, no twitter, em sites, entre outros. Tal es-
forço e tal preocupação se constituem, principalmente, em ações que procuram
atender, na maior parte dos casos, às demandas do seu promotor (emissor)
ou dos grupos a que estão ligados. Em mídias sociais, por exemplo, por mais
elaboradas que sejam, a maior parte das publicações atendem a um único
sentido – do emissor ao receptor –, não levando em consideração, por vezes, as
possibilidades de integração e o que a métrica de redes sociais pode dizer sobre
o processo de comunicação.
Neste capítulo, discutiremos outra forma de utilizar os meios de co-
municação digital. Um formato que, mais do que realizar a divulgação para a
sociedade em geral ou entre os pares, procura estabelecer uma relação de troca
209 entre as/os arqueólogas/os e suas/seus interlocutoras/es. Concluímos que o in-
vestimento na área de comunicação de uma sociedade científica contribui para:
1) o fornecimento de parâmetros que colaborem para as tomadas de decisão
por parte dos gestores das sociedades; 2) a consolidação do capital simbólico
e político das sociedades perante outras instituições; e 3) a construção de ou-
tra imagem da disciplina. Para isso, tomamos como base os dados resultantes
das ações de comunicação interna e externa adotadas durante duas gestões da
Sociedade de Arqueologia Brasileira (daqui em diante referida como SAB), uma
delas ainda em exercício.

A internet e a nova era da comunicação

Com a internet, os papéis entre emissores e receptores das mensagens


se confundem e são comumente trocados. O receptor deixou de ser passivo
no processo de comunicação na medida que seleciona e também gera conteú-
dos (TERRA, 2006). A comunicação digital é poderosa e inovadora, pois integra
as pessoas, é mais que uma tecnologia, “[...] é um meio de comunicação, de
integração e de organização social.” (CASTELLS, 1999, p. 255).
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Para Terra (2006, p. 27), a web é uma mídia, pois “[...] interpõe emisso-
res e receptores, servindo de canal para a transmissão de mensagens.”, sendo o
grande diferencial desse canal justamente essa capacidade interativa e também
instantânea. Na web, tempo e espaço deixam de existir, “[...] a distância física e
o tempo são elásticos e por isso a comunicação neste ambiente é policrônica e
multidirecional.” (TERRA, 2010, p. 128).
Desse modo, as entidades têm que se adaptar, deixando de, simples-
mente, emitir informações para gerar mensagens, dar chance de estabelecer
relacionamentos com públicos (TERRA, 2010), usando essas interações comuni-
cacionais como termômetro para ações institucionais. “As redes interativas de
computadores estão crescendo, criando novas formas e canais de comunicação,
moldando a vida e sendo moldadas por ela.” (CASTELLS, 1999, p. 25).
Dentro desse cenário é que as redes sociais estão inseridas. Nelas, as
entidades buscam se relacionar com seus públicos, transmitir informações, en-
tender a sua percepção em relação ao público, engajar, entre outros objetivos.
Como parte desse processo de integração entre emissores e receptores de in-
formação, a leitura da reação do público das mídias sociais é uma oportunidade
210 para que as “[...] organizações expandam suas audiências e engajamento em
seus sites.” (TERRA, 2010, p. 106).
Nesse sentido, quando as organizações aproveitam as oportunidades
vindas das interações com seus públicos, acabam ganhando legitimidade e visi-
bilidade (TERRA, 2010, p. 180), pois, na atual conjuntura, não podem ficar res-
tritas ao que se publica sobre elas nos meios de comunicação tradicionais ou
sobre o que elas dizem sobre si, pois “[...] a reputação é cada vez mais terceiri-
zada nas percepções que os públicos têm dela e expressam por meio de diversas
ferramentas tanto on quanto off-line” (TERRA, 2010, p. 123).
Assim, monitorar1 redes sociais foi uma das estratégias escolhidas pela
SAB. Monitorar significa verificar e analisar o que as pessoas estão falando sobre
um assunto ou uma entidade, sendo crucial para o atendimento pautar ações,
suprir demandas e gerar conteúdo. Desse modo, além de detectar desconten-
tamentos, o intuito é gerar conteúdo confiável sobre questões relacionadas ao
patrimônio arqueológico brasileiro de modo que esse conteúdo se dissemine
nas redes sociais. Isso porque, de acordo com Terra (2010), uma pesquisa que
questionou consumidores sobre a confiança em determinadas fontes de infor-

1
A SAB monitora redes sociais, como o Twitter e o Facebook, quase diariamente.
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mação concluiu que esses consumidores “[...] confiam muito mais em pessoas
próximas [...]” (TERRA, 2010, p. 92), demonstrando que conteúdos, quando
compartilhados entre “amigos” nas redes sociais, são mais persuasivos.

Comunicação e Divulgação Científica

Muito embora a ciência cada vez mais necessite exercitar sua “face
pública”, não é raro constatar que muitos de nós, pesquisadores, ainda somos
arredios à divulgação científica, alicerçados na falta de confiança plena no tra-
balho desenvolvido pelos divulgadores científicos. O fato é que hoje todos nós
queremos, e precisamos, divulgar nossas pesquisas, porque, no mínimo, as “[...]
pesquisas científicas dependem cada vez mais de verbas públicas e de financia-
mento privado e, para obtê-las, o contato com a imprensa tornou-se imprescin-
dível.” (BOAS, 2005, p. 37).
Esse panorama atual também tem relação com o fato de vivermos na
“era da informação” e, dessa maneira, posturas de “clausura” em laboratórios
por parte dos cientistas, de acordo com Boas (2005), são cada vez mais raras já
211 a partir dos anos de 1990, quando equipes de comunicação a serviço de institui-
ções de pesquisas e cursos de divulgação científica começaram a se multiplicar
rapidamente, resultando em artigos mais claros, na aproximação da ciência com
a sociedade, gerando a demanda por informação científica.
Muito além de ser um processo de “[...] transposição de uma lingua-
gem especializada para uma linguagem não especializada.” (BUENO, 1984, p.
19), a Divulgação Científica é uma “formulação discursiva” (ZAMBONI, 1997,
p. 11), por meio da qual uma ação comunicativa parte do discurso científico,
moldando seu discurso de acordo com o público-alvo e com os meios de comu-
nicação usados – que podem ser matérias jornalísticas, filmes, livros, peças de
teatro, entre outros (DIAS et al., 2013).
Em estudo original (TEGA-CALIPPO, 2012) realizado a partir do jornal
“Folha de São Paulo” sobre a maneira como a Arqueologia era retratada nos
935 textos selecionados, entre os anos de 2000 e 2010, constatou-se, quanti-
tativamente, que o número de matérias publicadas no mundo ainda é muito
maior que as matérias que retratam as pesquisas realizadas por arqueólogas/
os brasileiras/os. Além disso, o número de textos publicados não acompanha,
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nem de longe, o crescimento das pesquisas arqueológicas realizadas no Brasil2.


Nesse mesmo estudo, concluiu-se, ainda, que a inexpressividade de textos so-
bre o tema pode ser reflexo tanto da falta de interesse das/os arqueólogas/os
pela divulgação científica como pelo desconhecimento desse universo por parte
da imprensa.
Em outro momento, o estudo realizou a análise qualitativa em 48 tex-
tos selecionados de acordo com critérios temáticos específicos, utilizando a
teoria da Análise do Discurso de Linha Francesa. A partir dessas conclusões,
pode-se dizer que a Arqueologia representada pela imprensa ainda é aquela
que “[...] detém a chave para o mistério insolúvel, para a verdade escondida
por trás das mais antigas, majestosas e esplêndidas maravilhas do passado.”
(CLACK; BRITTAIN, 2007, p. 15).
Uma crítica que podemos fazer aos periódicos, por exemplo, relacio-
na-se ao National Geographic, onde o mundo e também a Arqueologia figuram
como um universo de exotismo e fascinação imagética. Essas representações
não são prerrogativas da Arqueologia. Bezerra (2012) menciona estudos realiza-
dos por colegas de outras áreas do conhecimento que resultaram em interpre-
212 tações muito similares.
Sob essa perspectiva, as expectativas para a realização de ações de
divulgação científica na Arqueologia são promissoras. Embora ainda haja muito
trabalho por parte das/os arqueólogas/os brasileiras/os para se tornarem fon-
tes, Tega-Calippo (2012) aponta que há esforços da comunidade arqueológica
(centros de pesquisa, empresas, etc.) para se promover a difusão dos resultados
das pesquisas para a imprensa poder mudar em muito a atual realidade.

2
As informações contidas aqui foram retiradas da Dissertação intitulada “Arqueologia em notícia:
Pesquisas impressas, sentidos circulantes e memórias descobertas”, defendida por Tega-Calippo em
agosto de 2012, no Programa de Mestrado em Divulgação Científica e Cultural do Laboratório de
Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (Brasil), sob a orientação
do Prof. Dr. Rodrigo Bastos Cunha, com financiamento da CAPES. O objetivo geral da pesquisa foi
analisar o processo de comunicação por meio do qual o conhecimento arqueológico é divulgado em
reportagens e notícias publicadas no jornal Folha de S. Paulo, usando a teoria da Análise do Discurso
de Linha Francesa.
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Nesse sentido, a Sociedade de Arqueologia Brasileira3 conta, desde


outubro de 2013, com Assessoria de Imprensa, conduzida por uma jornalista
especializada em Divulgação Científica.4 Com isso, ampliou sua capacidade de
comunicação, o alcance de suas mensagens e até a densidade dos conteúdos
vinculados, tornando a SAB cada vez mais evidente e importante nas diferentes
esferas em que atua.

A Comunicação da SAB: Ações

Ao buscar uma postura proativa para que, no futuro, a SAB possa se


tornar referência de contato quando o assunto é Arqueologia, seja para o públi-
co em geral, seja para os jornalistas, diferentes ações estratégicas foram plane-
jadas e algumas estão em processo de execução.
Essas ações podem ser divididas em dois campos: a comunicação in-
terna e a comunicação externa. Com a comunicação interna, o objetivo foi forta-
lecer o diálogo entre as/os associadas/os e a diretoria da SAB, buscando conso-
lidar a própria sociedade, pois um discurso plural, mas coeso, acaba por atingir
213 e sensibilizar o público externo à SAB.
Dessa maneira, abrir canais de comunicação com as/os associadas/os
foi um caminho estudado, discutido, implementado e executado pela própria
diretoria da SAB, com auxílio de profissional da comunicação. Esses canais fo-
ram ampliados por meio de redes sociais e do informativo semanal, conten-
do tanto solicitações de divulgação de diversos temas pelas/os associadas/os
como a respeito de ações da entidade. Além de veicular informações e notícias,
esse tipo de comunicação permite também que os gestores da SAB possam ter

3
A SAB foi criada durante o Seminário Goiano de Arqueologia, ocorrido em Goiânia em 1980. Seu
primeiro congresso foi realizado em 1981, no Rio de Janeiro, nas Faculdades Integradas Estácio de Sá,
que abrigavam o único curso de Bacharelado em Arqueologia do país à época. Ela é uma associação
civil de caráter científico, de direito privado e sem fins lucrativos, que “[...] tem por objeto primordial
congregar arqueólogos/as e demais especialistas dedicados/as à pesquisa, ensino e disseminação da
arqueologia, patrimônio cultural e áreas afins, emanando o pensamento e o ideal coletivo de seus/uas
associados/as, viabilizando-os de modo mais justo e perfeito possível.” (SAB, 2013, p. 1). A SAB é com-
posta por profissionais e estudantes da Arqueologia e áreas correlatas, que residem ou exercem suas
funções nos mais diversos estados brasileiros, além de associadas/os de outros países. Atualmente,
são cerca de 900 associadas/os, com representantes de todos os estados do Brasil, além de colegas
estrangeiros. Ver: www.sabnet.com.br.
4
A Assessora de Imprensa da SAB, Gloria Tega, trabalha de forma voluntária desde outubro de 2013.
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uma percepção sobre como uma boa parte das/os associadas/os e membros da
comunidade arqueológica (que se manifestam nas mídias digitais) recebem as
decisões e ações desenvolvidas pela diretoria da SAB. Muitas vezes, os próprios
gestores da SAB respondem às colocações feitas pelos internautas ou utilizam
os questionamentos apresentados para a elaboração dos comunicados às/aos
associadas/os. Desse modo, essas ações de comunicação passam a atuar em
fluxos de informações de mão dupla, em que tanto a SAB como o seu público na
internet se tornam emissores e receptores.
Além disso, a publicação de notícias e de oportunidades no site da SAB
foi intensificada, o que pode ser demonstrado com dados. Desde a criação da
área de “notícias”5 no site, em 11 de agosto de 2011, até o dia 28 de fevereiro
de 2017, foram publicadas 431 notícias. Para efeito comparativo, considerare-
mos anos completos, ou seja, de 01 de janeiro a 31 de dezembro. Sendo assim,
de 01 de janeiro de 2012 a 31 de dezembro de 2013, registrou a publicação de
100 notícias, uma média anual de 50. A partir de 01 de janeiro de 2014 até 31
de dezembro de 2016, foram publicadas 305 notícias, com uma média de pouco
mais de 100 por ano, o dobro do período anterior aqui mencionado.
214 Há também no site da SAB a sessão “oportunidades”,6 que traz cursos,
chamadas para publicações, eventos, entre outros assuntos. Nessa sessão, tam-
bém houve um aumento considerável de publicações: de 01 de janeiro de 2012
a 31 de dezembro de 2013, foram publicadas 13 oportunidades enquanto que
de 01 de janeiro de 2014 até 31 de dezembro de 2016 foram 111.
Quando o assunto é a demanda de divulgação de eventos, cursos, en-
tre outros das/os associadas/os, já em 2015, a diretoria sentiu necessidade de
discutir na Assembleia Geral de Goiânia o que as/os associadas/os considera-
vam pertinente ser enviado pela entidade. Assim, desde setembro de 2015, o
que a SAB divulga pelos seus meios oficiais é norteado por essa discussão feita
em Assembleia7.
De outro lado, a Revista da SAB tem sido – desde os anos de 1980 – o
principal veículo de divulgação das pesquisas desenvolvidas pela comunidade
arqueológica no Brasil. Trata-se de um periódico científico, de acesso gratuito, o

5
Disponível em: <http://www.sabnet.com.br/informativo/public?TIPO=1>.
6
Disponível em: <http://www.sabnet.com.br/informativo/public?TIPO=2>.
7
Essas regras para divulgação estão disponíveis no site da SAB: <http://www.sabnet.com.br/
informativo/view?TIPO=1&ID_INFORMATIVO=392>.
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qual visa incentivar o debate e a socialização do conhecimento científico sobre o


patrimônio arqueológico brasileiro. Com o objetivo de ampliar o acesso à revista
em 2015, a Comissão Editorial da SAB8 coordenou a digitalização dos números
antigos da revista, que haviam sido editados apenas na versão impressa. Hoje
a Revista de Arqueologia se tornou apenas digital, semestral, sendo que o site
disponibiliza todos os números, desde o primeiro (publicado em 1983)9.
Em relação à comunicação externa da SAB (com jornalistas e público),
essa começou a ser implementada em abril de 2014. Tratam-se de ações de
divulgação científica que visam estreitar tanto o relacionamento da SAB com o
público em geral como com os jornalistas. Para o público, a disponibilização de
informações sobre Arqueologia em redes sociais, sites, palestras, entre outros,
tem sido a estratégia. No entanto, devido à grande carga de trabalho e ao redu-
zido número de pessoas ativas, esse item está ainda aquém do ideal. Destarte,
foi criada uma Fanpage10 da SAB no Facebook, um canal no Youtube e uma pá-
gina no Twitter11. Esses canais permitem não só a interação com o público em
geral, mas também com as/os associadas/os. Sobre o Facebook trataremos em
um item, em separado, mais adiante.
215 O canal do YouTube12, entretanto, foi aberto com a intenção de dis-
ponibilizar às/aos associadas/os, principalmente, vídeos sobre as atividades da
entidade, de modo que, mesmo que a/o associada/o não tenha podido com-
parecer a determinado evento promovido pela SAB ou que a diretoria tenha
participado, ela/ele conseguirá assistir ao conteúdo que foi discutido. O canal
foi aberto em setembro de 2014 e até fevereiro de 2017 possuía 67 inscritos e
1242 visualizações. O vídeo mais visualizado foi o comemorativo dos 35 anos da
entidade, “SAB: 35 anos13” (vídeo estreante no canal), com 792 visualizações.
Esse vídeo foi idealizado na gestão de 2013 a 2015 e buscou contar a
história da entidade por meio de depoimentos de seus ex-presidentes e alguns
8
A Comissão Editorial da gestão 2013-2016 era composta por Cristiana Barreto, Juliana Machado e
Eduardo Neves.
9
Disponível em: <http://revista.sabnet.com.br/index.php/revista-de-arqueologia/index>.
10 As fanpages são perfis de empresas no Facebook utilizadas por empresas, personalidades, organi-
zações, entre outros, para divulgar o seu trabalho, abordar temas específicos, discutir assuntos, etc.
11
A SAB entrou no twitter em outubro de 2015. A ferramenta tem sido usada, mas de forma ainda
incipiente. O endereço da página é @ArqueologiaSab.
12
Disponível em: <https://www.youtube.com/channel/UCpMtEpSzramjpLVF1cCd_vw>.
13
Disponível em: <https://youtu.be/YjqbkWo_7c0>.
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documentos e fotos que trazem um pouco da memória da SAB. O vídeo foi pen-
sado para ser crítico, mas, ao mesmo tempo, agregador. Logo no início apresen-
ta trechos de falas de diversas/os arqueólogas/os que, ao serem editados em
sequência, constroem uma definição plural de Arqueologia14.
No que diz respeito à imprensa, a distribuição de releases15, as notas
oficiais e os contatos constantes com jornalistas interessados na temática têm
sido estratégias que vêm dando resultados. As notas oficiais esclarecem a res-
peito de matérias com informações equivocadas sobre Arqueologia, divulgadas
na imprensa. Além disso, elas têm permitido o relacionamento da entidade com
jornalistas que, aos poucos, vêm considerando a SAB como fonte de informação
– assim como já ocorreu com os jornais Folha de São Paulo e Correio Braziliense
e com a revista Superinteressante. As fontes são entidades, locais ou pessoas
que são usualmente procurados por jornalistas que cobrem temas específicos.
Os jornalistas procuram determinadas instituições ou profissionais que servem
como referências para obterem informações e construírem seu texto. No caso
da SAB, por ser a entidade nacional que congrega o maior número de arqueó-
logas/os do país e por existir há mais de 30 anos, esse papel referencial deveria
ser natural, no entanto ele começou seu processo de construção somente nos
216
últimos anos.
Outro ponto crucial nos últimos anos foi o relacionamento da SAB com
outras entidades e órgãos oficiais. Desde junho de 2014 a SAB tem se feito pre-
sente, quase que mensalmente, no Congresso Nacional, em Brasília, com o in-
tuito de acompanhar projetos de lei que afetam de forma direta o exercício da
profissão16 e a proteção ao patrimônio arqueológico.
Além dela participar de diversos fóruns digitais de discussão nas áreas
de ciências humanas e sociais, também se faz representar, na medida do possí-
vel, nos eventos de outras sociedades. Esse diálogo tem sido fundamental para
a articulação das ações no Congresso Nacional. Uma relação similar àquela que
vem sendo estabelecida com o Centro Nacional de Arqueologia – CNA e com o
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, em que os ges-

14
Veja detalhes do vídeo em http://www.sabnet.com.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=784.
15
Texto de divulgação elaborado em linguagem jornalística.
16
Projeto no 1119/2015, que trata da regulamentação da profissão de arqueóloga/o, e PEC no 65/2012,
PLS no 654 e Decreto Legislativo no 540/2016 que, de maneira geral, alteram o processo de licencia-
mento ambiental.
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tores das instituições dialogam a respeito dos principais problemas na área de


Arqueologia, planejam ações técnicas e políticas.
Nesse sentido, a entidade vem atuando massivamente no envio de
manifestos, notas e até cartas diretas a parlamentares sobre Projetos de Lei,
Projetos de Emendas à Constituição e Decretos Legislativos. Sendo que vem se
manifestando sempre que há decisões que afetam o patrimônio arqueológico e
as comunidades tradicionais do Brasil.

A SAB nas Redes Sociais

Como vimos anteriormente, as redes sociais surgem como uma po-


derosa alternativa aos meios de comunicação tradicionais, pois são locais de
interação comunicativa. Para os gestores de comunicação, “[...] detectar novos
públicos, analisar, definir os seus perfis, as suas demandas e tendências e se
comunicar com eles por meio das mídias disponíveis [...]” (NASSAR, 2004, p.
128) são obrigações.
De outro ponto, os números das redes sociais são bastante atrativos.
217
De acordo com a ComScore, empresa que monitora redes sociais, na internet,
o brasileiro gasta mais horas navegando em redes sociais, sendo o Facebook o
líder da categoria redes sociais, alcançando 89,4% do total17 (COMSCORE, 2014).
A Socialbakers, outra plataforma de análise de mídia social, que monitora “[...]
mais de 8 milhões de perfis sociais todos os dias [...]”, afirma que o Facebook
possui mais de um bilhão de usuários ativos diários.18
Com essa possibilidade de audiência, a SAB lançou sua fanpage em 24
de junho de 2014, com a publicação “Ajude-nos a contar os 35 anos de história
da SAB!”, que pedia o envio de documentos e fotos para o vídeo comemorativo
de 35 anos da entidade, o qual seria lançado no ano seguinte. Desde então, o
número de fãs19 da página vem subindo semana a semana, como demonstra o
gráfico a seguir:

17
Disponível em: <http://www.comscore.com/por/Imprensa-e-eventos/Apresentacoes-e-
documentos/2014/The-State-of-Social-Media-in-Brazil-and-the-Metrics-that-Really-Matter>.
18
Veja em: <https://www.socialbakers.com/statistics/facebook>.
19
Fãs de uma página no Facebook são pessoas que “curtiram” essa página e acompanham suas
publicações.
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Gráfico 1 – Total de curtidas na página do Facebook da SAB

Fonte: Facebook da SAB.

Até o final de fevereiro de 2017, o número total de curtidas da página


da SAB era de 4.646, com faixa etária predominante entre 18 e 34 anos, sendo
que a tendência de haver um pouco mais (5%) de mulheres fãs do que homens
segue os dados gerais para o Facebook no Brasil (COMSCORE, 2014). O Brasil
abriga a maior parte do público, 4.108 pessoas, mas destaca-se ainda a presen-
ça de um expressivo público em Portugal, Peru e Espanha. Quanto às cidades, o
218 público mais numeroso concentra-se em São Paulo, seguido por Rio de Janeiro,
Belo Horizonte e Belém. Quanto à língua falada pelos fãs, predomina, como es-
perado, o português, como demonstra o gráfico a seguir.

Gráfico 2 - Tipo de Público da Fanpage da SAB

Alcance das Publicações

Fonte: Facebook da SAB.


Alcance das Publicações

Regulamentação Licenciamento Ações políticas


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Quanto às postagens, até 28 de fevereiro de 2017, foram feitas 294


publicações. Nesse histórico, podemos destacar publicações que tiveram índi-
ces de audiências maiores que a média.20 De maneira geral, publicações que
tratavam de assuntos relativos à regulamentação da profissão de arqueóloga/o,
ao processo de licenciamento ambiental, a ações políticas da SAB e a eventos
tiveram alcances bastante representativos. Alcance da publicação é o número
de pessoas que a viram, incluindo pessoas que a visualizam em computador ou
celular.21 Veja a seguir o gráfico:

Gráfico 3 - Alcance das publicações separadas por assunto no Facebook da SAB, de


24/06/2014 a 28/02/2017
Alcance das Publicações

219

Regulamentação Licenciamento Ações políticas


Eventos Eventos da SAB Diversos sobre a SAB
Concursos/prêmios Chamadas para publicação Diversos

Fonte: Elaborado pelos autores.


Fonte: Elaborado pelos autores.

O alcance das publicações mostrado no gráfico acima foi relativo ao


proporcional de publicações, ou seja, as publicações foram agrupadas por tema;176
em seguida, o número do alcance de cada uma delas foi somado e, posterior-
mente, dividido pelo número de publicações por assunto, pois temas como
20
Dados de acesso à Fanpage podem, inclusive, pautar horários para publicações, apontando quando
os fãs mais acessam a página, ajudando, então, a aumentar a audiência.
21
Fonte disponível em: <https://www .facebook. com/help/3 3614337646 6063/>. Acesso em: 25 nov.
2014.
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“eventos” tiveram um número maior de publicações, mas um menor número


proporcional de alcance.
A partir desses números, podemos traçar paralelos entre temas das
publicações e público da página da SAB. O Gráfico 2 mostrou que o público é
concentrado em jovens de 18 a 34 anos, os temas mais populares têm relação
justamente com a regulamentação da profissão, o licenciamento ambiental e as
ações políticas, que podem ser diretamente relacionados a profissionais ativos
no mercado de trabalho e, portanto, preocupados com seu futuro. Por ações
políticas entendemos um conjunto de publicações que desempenharam um pa-
pel de um posicionamento político em relação aos temas em tela.
Os anos de 2014 e, sobretudo, de 2015 e 2016 foram anos em que
vimos o patrimônio arqueológico e cultural e os direitos das comunidades tradi-
cionais ameaçados por diversas investidas de parlamentares e grupos ligados ao
agronegócio e à construção civil. A SAB, assim como outras entidades de classe
e organizações não governamentais, viu-se no papel político de mobilizar e tam-
bém pressionar para que retrocessos não fossem implementados no país. Essas
ações da SAB ocorreram por meio de cartas, manifestos, reuniões presenciais
220 em Brasília, participação em audiências públicas e, inclusive, por meio da página
no Facebook.
Outra situação de ação de comunicação no Facebook que teve o intu-
tito de causar reflexões e também de divulgar a página da SAB foi em relação
ao Dia da/o Arqueóloga/o. Desde 2014, a Fanpage da SAB publica algo relativo
à comemoração do dia da/o arqueóloga/o, em 26 de julho. Em 2014 e 2016,
foram publicados dois memes. “O meme seria uma unidade de informação que
passa de um cérebro a outro, por imitação e hereditariedade.” (TERRA, 2010, p.
95). Nesse modelo, o público deixa de ser passivo, “vítima” de uma contamina-
ção, “[...] exerce um papel ativo em ‘espalhar’ conteúdo, ao invés de serem hos-
pedeiros passivos de mídia viral: suas escolhas, seus investimentos, suas ações
determinam o que gera valor no novo espaço midiático.” (JENKINS apud TERRA,
2010, p. 95). Esses dois memes tiveram alcances bem altos para a média das
publicações da SAB. Veja as figuras 1 e 2 a seguir:
CAP. 8
A MULTIVOCALIDADE DA COMUNICANDO A ARQUEOLOGIA: DISCUTINDO
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: O PAPEL DA SOCIEDADE DE ARQUEOLOGIA
Comunidades, práticas e direitos BRASILEIRA

Figura 1 - “Meme” do Dia da/o Arqueóloga/o 2014.

Fonte: SAB (2014).


221 Fonte: SAB (2014).
Figura 2 - “Meme” do Dia da/o Arqueóloga/o 2016.

Figura 2 - “Meme” do Dia da/o Arqueóloga/o 2016.

Fonte: SAB (2016).


Fonte: SAB (2014).

Fonte: SAB (2016).


53
CAP. 8
A MULTIVOCALIDADE DA COMUNICANDO A ARQUEOLOGIA: DISCUTINDO
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: O PAPEL DA SOCIEDADE DE ARQUEOLOGIA
Comunidades, práticas e direitos BRASILEIRA

O primeiro “meme”22 teve um alcance total de quase 54 mil. Ele trouxe


um texto explicativo anexo sobre o porquê do Dia da/o Arqueóloga/o ser co-
memorado em 26 de julho23 e também sobre as comemorações dos 35 anos da
SAB, que seriam no ano seguinte.
O segundo “meme” teve um alcance total de mais de 23 mil. Com o
tema Igualdade de Gênero, o “meme” propôs uma reflexão sobre posturas em
relação às arqueólogas e também trouxe informações sobre esse tema que es-
tão presentes no Código de Ética da SAB24 – na época, recém-reformulado e
aprovado em assembleia.

Da abertura à comunicação à abertura ao grande público

Partindo do ponto que “[...] a internet funciona nos dias de hoje como
uma vitrine virtual de exposição institucional.” (TERRA, 2010, p. 6), a experiên-
cia de comunicação desenvolvida pela SAB nos últimos anos vem mostrando
que existe um interesse crescente pela Arqueologia e que os meios digitais são
um mecanismo importante tanto para a comunicação com as/os associadas/os
222 como, principalmente, com a sociedade em geral. Mais do que uma alternativa
para difundir a importância da Arqueologia e, assim, justificar a necessidade
do emprego de verbas públicas e privadas, o estabelecimento de uma forma
de comunicação e de interação, a partir de um fluxo de informação em que os
emissores e os receptores trocam várias vezes de papel, efetivamente amplia o
diálogo e fortalece as relações entre os gestores e as/os associadas/os da SAB.
Na medida em que podemos perceber os anseios e os posicionamentos das/os
associadas/os e da comunidade arqueológica a respeito dos acontecimentos,
a SAB pode planejar melhor suas ações e ampliar as formas para equacionar
conflitos. De certo modo, permite aos gestores da SAB tomar decisões mais re-
presentativas em relação ao que pensam suas/seus associadas/os.

22
Veja os “memes” na Fanpage da SAB: <https://www.facebook.com/ArqueologiaSAB/>.
23
O dia 26 de julho foi escolhido como Dia do Arqueólogo, pois a Lei Federal 3.924 foi sancionada em
26 de julho de 1961. Essa lei garante a proteção aos monumentos arqueológicos ou pré-históricos
de quaisquer naturezas existentes no território nacional, colocando-os sob a guarda e proteção do
Poder Público, e considerando os danos ao patrimônio arqueológico um crime contra o Patrimônio
Nacional. Veja a lei em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L3924.htm>.
24
Veja em: <http://www.sabnet.com.br/informativo/view?TIPO=1&ID_INFORMATIVO=393>.
CAP. 8
A MULTIVOCALIDADE DA COMUNICANDO A ARQUEOLOGIA: DISCUTINDO
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: O PAPEL DA SOCIEDADE DE ARQUEOLOGIA
Comunidades, práticas e direitos BRASILEIRA

Sob essa perspectiva de comunicação, tais ações ampliam ainda a pró-


pria inserção da Arqueologia no meio jornalístico e, principalmente, político. A
veiculação da Arqueologia ou da SAB em veículos especializados ou de grande
circulação, aos poucos, torna a instituição uma referência para o tema, amplian-
do nosso capital simbólico e político em relação a outras instituições e perante
o Congresso Nacional.
Ainda que tais ações sejam importantes para a SAB, o principal resul-
tado do fortalecimento da comunicação se reverbera no público. A veiculação
de matérias nos principais veículos de comunicação do país, que muitas vezes é
consequência da relação constante com os jornalistas (por meio da elaboração
de releases e do envio de informações para a imprensa), aos poucos vai mudan-
do a compreensão da Arqueologia e do patrimônio arqueológico pelo grande
público. A compreensão da Arqueologia como aventura ou exclusivamente liga-
da a um passado distante e inatingível, aos poucos, vai dando lugar à compreen-
são de que ela tem um papel fundamental no presente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
223

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CAP. 8
A MULTIVOCALIDADE DA COMUNICANDO A ARQUEOLOGIA: DISCUTINDO
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CAP. 8
A MULTIVOCALIDADE DA COMUNICANDO A ARQUEOLOGIA: DISCUTINDO
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225
CAP. 9
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A VARIÁVEL ARQUEOLÓGICA NO LICENCIAMENTO
Comunidades, práticas e direitos AMBIENTAL

CAPÍTULO 9
A VARIÁVEL ARQUEOLÓGICA NO
LICENCIAMENTO AMBIENTAL

226

DOI: http://dx.doi.org/10.18616/arq09

Inês Virgínia Prado Soares

SUMÁRIO
CAP. 9
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A VARIÁVEL ARQUEOLÓGICA NO LICENCIAMENTO
Comunidades, práticas e direitos AMBIENTAL

INTRODUÇÃO

O presente capítulo aborda a proteção do patrimônio arqueológico


afetado por empreendimentos submetidos ao licenciamento ambiental. O pon-
to de partida da pesquisa é a percepção da fragilidade na tutela jurídica dos
bens culturais em processos de licenciamento. A hipótese levantada é a de que
essa fragilidade não decorre da ausência de legislação e de normas administra-
tivas, já que esse conjunto normativo, formado pela Constituição, Lei 3.924/61,
Portarias e Instruções Normativas do IPHAN, respalda não apenas a proteção
dos bens arqueológicos pelo Poder Público, mas também o dever de fiscaliza-
ção e do exercício do poder de polícia pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN).
Com a edição da Lei Complementar (LC) no 140/2011 e das normas
que regulamentam os procedimentos a serem adotados nos órgãos envolvidos
(IPHAN, FUNAI, Fundação Palmares, dentre outros), novas interpretações surgi-
ram, aumentando a relevância dos operadores do direito, dos arqueólogos e do
IPHAN para a construção e a aplicação de marcos normativos e jurisprudenciais
227 para o tratamento do patrimônio arqueológico na atuação cooperativa entre os
entes federativos.
A Lei Complementar no 140/2011 não faz qualquer referência à par-
ticipação do IPHAN ou de outros órgãos responsáveis pela proteção dos bens
culturais no curso do procedimento de licenciamento ambiental. Esse silêncio
em relação ao patrimônio cultural não pode ser considerado uma falha legal,
já que o objetivo da LC no 140/2011 é estabelecer a competência dos órgãos
ambientais para licenciar empreendimentos que impactem o meio ambiente.
Tal omissão é motivo de atenção, por ser um claro indicativo da necessidade
de aprimoramento constante de normas e instrumentos jurídicos voltados es-
pecificamente para a proteção do patrimônio arqueológico no âmbito do licen-
ciamento ambiental realizado por quaisquer um dos entes federativos – União,
Estados ou Municípios.
CAP. 9
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A VARIÁVEL ARQUEOLÓGICA NO LICENCIAMENTO
Comunidades, práticas e direitos AMBIENTAL

Para a proteção dos bens arqueológicos, os marcos decorrentes da LC


n 140/2011 são a Portaria Interministerial 60/20151, que normatizou procedi-
o

mentos administrativos que disciplinam a atuação dos órgãos e entidades da ad-


ministração pública federal em processos de licenciamento ambiental de com-
petência do IBAMA, e a Instrução Normativa IPHAN 001/20152, que estabeleceu
procedimentos a serem observados quando o IPHAN for instado a se manifestar
nos processos de licenciamento ambiental federal, estadual e municipal.
Para a abordagem do tema, traremos o regime de proteção do patri-
mônio arqueológico no cenário jurídico brasileiro, com a análise dos bens ar-
queológicos no plano constitucional e depois no âmbito infraconstitucional,
com destaque para o Poder de Polícia do IPHAN.
Em seguida, trataremos do licenciamento ambiental, com foco na pro-
teção do patrimônio arqueológico, especialmente a partir da atuação do IPHAN
e do exercício de seu poder de polícia. Conduziremos a discussão para os desa-
fios (novos ou antigos?) na proteção dos bens arqueológicos após a edição da
Lei Complementar no 140/2011, pela aplicação da IN IPHAN 001/2015.

228 REGIME DE PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO


ARQUEOLÓGICO NO CENÁRIO JURÍDICO
BRASILEIRO: BENS ARQUEOLÓGICOS COMO BENS
FEDERAIS ACAUTELADOS

Os bens arqueológicos na Constituição

No art. 225 da Constituição, é estabelecido que todos têm direito ao


meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo, e à
sadia qualidade de vida, cabendo à sociedade e ao Poder Público sua defesa e
preservação para as gerações presentes e futuras. Os parágrafos desse artigo
abordam o bem ambiental como um todo composto de partes imprescindíveis
1
Essa Portaria foi firmada em 24 de março de 2015, pelos Ministros de Estado do Meio Ambiente, da
Justiça, da Cultura e da Saúde, e estabelece procedimentos administrativos que disciplinam a atuação
dos órgãos e entidades da administração pública federal em processos de licenciamento ambiental de
competência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).
2
Essa norma revogou a Portaria IPHAN nº 230/2002, que tinha enorme relevância para a proteção do
patrimônio arqueológico afetado por obras e serviços licenciados.
CAP. 9
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A VARIÁVEL ARQUEOLÓGICA NO LICENCIAMENTO
Comunidades, práticas e direitos AMBIENTAL

e, ao mesmo tempo, autônomas, que devem ter protegidas suas características


essenciais.
O art. 225 da Constituição direciona as condutas do Estado e da socie-
dade no sentido de compatibilização da ação humana no meio ambiente e va-
lorização da função dos bens ambientais. O Poder Público e a sociedade devem
também tutelar autonomamente os bens que integram o macrobem ambiental,
já que somente com equilíbrio entre interesses humanos e proteção per si do
meio ambiente se pode chegar à sadia qualidade de vida. Desse modo, o meio
ambiente se apresenta como direito fundamental e a proteção ambiental não
é tratada em função do interesse exclusivo do homem (e da geração presente),
mas sim em função de outros valores importantes para a manutenção da huma-
nidade na Terra.
No âmbito jurídico, os bens arqueológicos são bens ambientais e bens
culturais. Assim sendo, são considerados vestígios arqueológicos todos os indí-
cios da presença ou da atividade humana em um determinado local. Quando
esse local está em um contexto que abriga também elementos ecológicos me-
recedores de proteção, há incidência das normas ambientais para tutela dos
sítios e vestígios arqueológicos, que são considerados partes do bem ambiental.
229
A consideração dos bens arqueológicos como bens ambientais traz
uma consequência prática importante que é a utilização da punição prevista
nas leis ambientais para o caso de lesão do patrimônio arqueológico. É que as
leis ambientais fornecem maior lastro protetivo e repressivo, já que contêm
um aparato normativo mais efetivo no que concerne à responsabilização dos
que causam danos aos bens ambientais, com a previsão de responsabilidade
objetiva no âmbito cível e da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Além
disso, os princípios ambientais estão consolidados na jurisprudência brasileira,
o que facilita a interlocução com o Judiciário nos casos de danos ao patrimônio
arqueológico.
A previsão constitucional dos bens ambientais como bens de uso co-
mum do povo e essenciais à sadia qualidade de vida (art. 225) e a conceituação
do bem cultural como bem portador de valor de referência ligado à memória, à
identidade e à ação da sociedade brasileira (art. 216) fornecem ao bem cultural
o traço de bens de interesse público, em um claro afastamento do tratamento
desses bens como estritamente ligados ao regime de direito público ou ao regi-
me de direito privado.
CAP. 9
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A VARIÁVEL ARQUEOLÓGICA NO LICENCIAMENTO
Comunidades, práticas e direitos AMBIENTAL

Dito de outro modo, os bens culturais arqueológicos e pré-históricos


têm um interesse público qualificado. Essa afirmação decorre da consideração
desses bens como bens da União em indicação expressa no texto constitucional
(art. 20, X). Com isso, a discussão acerca da função social da propriedade e dos
modos de compartilhamento de bem arqueológico, paleontológico e cultural,
que esteja em suporte físico privado ou que tenha sido descoberto ou resgatado
por instituições privadas, deve partir sempre da consideração do bem cultural
como bem público afetado ou bem público acautelado. Ou seja: além da do-
minialidade pública do bem (arqueológico, paleontológico, cultural subaquáti-
co, entre outros), existe também sua afetação ao cumprimento do interesse
público.
O traço de interesse público dos bens que integram o patrimônio cul-
tural brasileiro está principalmente ligado ao momento de sua fruição pela co-
munidade. Por isso o bem cultural é objeto de tutela jurídica que comporta dois
enfoques: o da dominialidade e o da fruição. A dominialidade se pauta no uso e
gozo da propriedade de acordo com as normas e está direcionada pelo princípio
da função social da propriedade. No que tange à fruição, cabe ao Estado, por
ser o titular da situação jurídica do bem público (RODRIGUES, 2002) garantir o
230 acesso aos bens e possibilitar a fruição em uma perspectiva coletiva.
Na Constituição de 1988, o patrimônio arqueológico é mencionado ex-
pressamente como patrimônio cultural brasileiro, na apresentação do rol exem-
plificativo dos bens que o compõem (art. 216 e inc. V), além de o art. 20, inciso
X estabelecer que os sítios arqueológicos e pré-históricos são bens da União,
independentemente da sua localização em propriedade pública de outros entes
federativos ou em propriedade privada. Mais do que uma alusão expressa à do-
minialidade da União, o dispositivo da Constituição indica que o tratamento dos
bens arqueológicos e pré-históricos deve ser sempre como bens de interesse
público.
Pelo traço de interesse público, o acesso e a fruição aos bens arqueo-
lógicos pela comunidade devem ser garantidos pelo Poder Público – União,
Estados e Municípios. Desse traço inerente de bens de interesse público, pre-
sente no patrimônio arqueológico, decorre também outra característica rele-
vante à sua proteção: ser um bem acautelado por determinação constitucional,
isto é, sem necessidade de normas infralegais ou instrumentos administrativos
(como tombamento, por exemplo) que declarem tal característica.
CAP. 9
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A VARIÁVEL ARQUEOLÓGICA NO LICENCIAMENTO
Comunidades, práticas e direitos AMBIENTAL

Essa afirmação é reforçada quando o art. 20, inciso X da Constituição


é lido em conjunto com os artigos constitucionais 215 (caput) e 216 (caput, in-
cisos IV e V, e § 1°), que tratam os bens arqueológicos como bens portadores
da memória e da representação do espírito humano, que precisam ser geridos
e tutelados pela União.
Na dicção constitucional, a defesa dos bens culturais não cabe somen-
te ao Poder Público. Além da previsão do art. 225 caput da Constituição, que
indica o dever da comunidade de defender o meio ambiente e todos os seus
elementos (entre os quais se incluem os bens culturais), também é estabelecida
a colaboração da comunidade na tutela do patrimônio cultural brasileiro, por
meio da utilização de instrumentos nominados e inominados (art. 216, § 1º da
Constituição).
A Constituição também estabelece que para essa proteção os entes
federativos devem, no exercício de sua competência comum, impedir a evasão,
a destruição e a descaracterização dos sítios ou dos artefatos de valor históri-
co, arqueológico e cultural (art. 23, inc. IV), bem como proporcionar os meios
de acesso à educação e à ciência que sejam revertidos em conhecimento na
matéria arqueológica (art. 23, inc. V). Assim, embora sejam considerados bens
231
públicos federais, os bens arqueológicos devem ser protegidos por todos os en-
tes federativos, já que há determinação constitucional de que o Poder Público
(da União, dos Estados e dos Municípios) deve atuar na sua proteção, proporcio-
nando à sociedade o acesso aos mesmos (art. 23, inc. III).
A competência legislativa concorrente está prevista no art. 24 da
Constituição. Nesse artigo, fica fixada a prevalência da União na edição de nor-
mas gerais. Portanto, no que tange aos bens culturais, cabe aos Estados e ao
Distrito Federal suplementarem a legislação federal (art. 24, § 2º) com a finali-
dade de tutelar os bens culturais, materiais ou imateriais, que se revelem rele-
vantes para a memória, identidade ou ação da comunidade que habita a região.
Os Municípios, por força dos incs. I e II do art. 30 da Constituição, podem legislar
para suplementarem as normas federal e estadual que versem sobre bens cultu-
rais, com o objetivo de atenderem aos interesses culturais locais.
No que tange ao patrimônio arqueológico, os atos normativos gerais
sobre esses bens são de competência da União. Nesse sentido, a Lei 3.924/61
estabelece as normas gerais que podem ser complementadas pelos Estados e
Distrito Federal no que for cabível. Porém, vale ressalvar que as regras que es-
CAP. 9
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A VARIÁVEL ARQUEOLÓGICA NO LICENCIAMENTO
Comunidades, práticas e direitos AMBIENTAL

tabelecem as atuações relativas ao controle e à gestão desses bens (poder de


polícia e de fiscalização do órgão federal) não podem ser suprimidas no âmbito
da legislação concorrente. Ou seja: cabe sempre à União, na prática ao IPHAN
(autarquia federal), o controle e a gestão dos bens arqueológicos.
Podemos afirmar que em uma interpretação dos dispositivos da
Constituição, os traços mais importantes e específicos sobre patrimônio ar-
queológico são: a) a propriedade pública federal do bem arqueológico; b) a
gestão exclusiva dos bens arqueológicos por órgão público federal designado
em lei (atualmente esse órgão é o IPHAN), o qual detém o poder de polícia; c)
o acautelamento decorrente diretamente da Constituição, sem a necessidade
da submissão dos bens arqueológicos a um instrumento protetivo específico
(como o tombamento, o registro etc.), o que lhe confere o traço de bem públi-
co acautelado; e d) a previsão de responsabilidade civil, administrativa e penal
para o causador de dano ao patrimônio arqueológico.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal também é no mesmo
sentido do resumo que fizemos no parágrafo anterior. O STF decidiu que to-
dos os entes federativos devem proteger e guardar sítios e bens culturais as-
sim como têm o dever de se responsabilizar pelos mesmos. A posição do STF
232
é que não cabe a exclusividade no exercício dessa tarefa e as funções devem
ser compartilhadas entre União, Estados e Municípios. Na Ação Declaratória de
Inconstitucionalidade (ADI nº 2544-9), a Suprema Corte aceitou a argumenta-
ção de que o dispositivo de lei estadual que imputava apenas aos municípios a
proteção, guarda e responsabilidade pelos bens arqueológicos seria inconstitu-
cional (BRASIL, 2006).
Na ementa da ADI em comento, fica destacado o entendimento de que
a inclusão de determinada função administrativa no âmbito da competência
comum não impõe que cada tarefa compreendida no seu domínio, por menos
expressiva que seja, tenha que ser objeto de ações simultâneas das três entida-
des federativas. Assim, mesmo a previsão do parágrafo único do art. 23 da CF
de lei complementar que fixe normas de cooperação (ver sobre monumentos
arqueológicos e pré-históricos na Lei 3.924/61), não abrange o poder de a União
ou de os Estados se demitirem dos encargos constitucionais de proteção dos
bens de valor arqueológico.3

3
O acórdão foi proferido em 28 de junho de 2006 e julgou procedente a ADI (ADI 2544/RS. Relator
Ministro Sepúlveda Pertence).
CAP. 9
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A VARIÁVEL ARQUEOLÓGICA NO LICENCIAMENTO
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Em outra Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, a ADI 3525


4
(BRASIL, 2007), a situação trazida ao Supremo é de uma Lei Estadual que esta-
belece como patrimônio científico cultural do Estado os sítios arqueológicos e
paleontológicos localizados em seus municípios. A discussão acerca da possibili-
dade de a lei declarar tais bens culturais como propriedade estadual novamente
vem à tona com argumentos semelhantes aos utilizados na ADI 2544-9, a qual
foi alegada como precedente no julgamento (BRASIL, 2006).
No voto do Ministro Relator Gilmar Mendes na ADI 3525, fica clara a
distinção entre o dever comum dos entes da federação de zelar pelo patrimônio
arqueológico e paleontológico e da propriedade exclusiva desses patrimônios
pela União. Um breve trecho do voto do Ministro Carlos Ayres Britto, destacado
no site, na notícia do STF acerca desse julgamento, transmite a ideia central de
que:

A Constituição distingue a propriedade dos sítios arqueológi-


cos do cuidado, da preservação. Há um condomínio federativo
no plano desse cuidado. Mas há um monopólio de proprieda-
de [sobre os sítios arqueológicos]. Só a União efetivamente é
233 proprietária. (BRASIL, 2007, n.p., on-line. Acréscimos nossos).5

Em suma, a posição do STF foi consolidada no sentido de que: a) os


bens arqueológicos, paleontológicos ou espeleológicos são bens materiais in-
tegrantes do patrimônio cultural brasileiro e de propriedade da União (art. 20,
incisos IX e X da CF); b) extrapola à competência concorrente do Estado a consi-
deração legal de que os bens arqueológicos, paleontológicos ou espeleológicos
integram o patrimônio cultural estadual (ADI 3525); c) os bens arqueológicos,
paleontológicos ou espeleológicos devem ser tutelados por todos os entes fe-
derativos, sem que essa tarefa os sobrecarregue desproporcionalmente (ADI
2544-9); e d) os bens arqueológicos, paleontológicos ou espeleológicos são pro-
priedade da União.

4
ADI relatada pelo Ministro Gilmar Mendes, que questionava a constitucionalidade da Lei Estadual no
7.782/2002, do Mato Grosso (MATO GROSSO, 2002).
5
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=71011>.
Acesso em: 19 mar. 2017.
CAP. 9
A MULTIVOCALIDADE DA
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Comunidades, práticas e direitos AMBIENTAL

Bens arqueológicos, Lei 3.924/61 e poder de polícia do IPHAN

Os bens arqueológicos representam a projeção do espírito do homem


e o seu exercício cotidiano da vida na realidade em que se encontraram. No
âmbito jurídico, como já dito, são bens culturais em essência, expressões de
memória e história da humanidade, por isso são incorporados à dominialidade
pública federal e incluídos, por força constitucional, sob a proteção do Poder
Público (SILVA, 2001).
No caso dos bens culturais arqueológicos, a Lei 3.924/61 é a matriz
do sistema protetivo em nosso país. Essa lei deu um tratamento autônomo ao
patrimônio arqueológico nacional e estabeleceu restrições e parâmetros para
atividades econômicas que, de algum modo, possibilitassem a mutilação ou a
destruição desses bens. Embora a proteção do patrimônio arqueológico tenha
raiz constitucional, e da Constituição decorra sua característica de bem acaute-
lado federal, são as normas infraconstitucionais que fornecem o aparato legal
para o funcionamento do sistema de proteção desse patrimônio cultural.
Esse sistema, composto pela Lei 3.924/61 e por normas administrati-
234 vas produzidas pelo IPHAN e pelo Ministério da Cultura, é integrado, também,
por subsistemas que tratam de outros bens culturais (com destaque para o
Decreto-Lei 25/37) e dos bens ambientais (destaque para a Lei 6.938/81 e Lei
9.605/98 – Lei de crimes ambientais), de acordo com as especificidades e perti-
nências temáticas.
O artigo 2o da Lei 3.924/61 relaciona bens que constituem monumen-
tos arqueológicos ou pré-históricos. Ela também admite que os monumentos
arqueológicos ou pré-históricos enumerados não encerram a relação dos bens
protegidos, já que há nomenclaturas abertas nas alíneas a (permite juízo da au-
toridade competente) e c (traz o termo “interesse arqueológico”, que comporta
vários significados).
Na Lei 3.924/61, a característica de bem de interesse público é indica-
da ao patrimônio arqueológico no primeiro artigo. A finalidade dos bens, nos
termos dessa lei, justifica a sua proteção e sua valoração. A exploração eco-
nômica também sofre as limitações em decorrência da finalidade pública, de
interesse público cravado nos bens arqueológicos e pré-históricos (art. 3o). O
patrimônio ainda não descoberto ou mesmo ainda não registrado é considera-
do, para todos os efeitos, bem da União (art. 7o). Nos arts. 17 e seguintes, que
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versam sobre as descobertas fortuitas, fica novamente claro o traço de bem


federal de interesse público.
O art. 1.230 do Código Civil também dispõe que a propriedade do solo
não abrange os monumentos arqueológicos e outros bens referidos por leis es-
peciais. O § 1° do art. 1.228 do Código Civil estabelece que o direito de pro-
priedade deve ser exercido em consonância com as finalidades econômicas e
sociais, de modo que sejam preservados, em conformidade com o estabelecido
em lei especial, o patrimônio histórico e artístico. Nesse sentido, declara que a
União é titular dos direitos (reais ou pessoais) sobre o patrimônio arqueológico.
Assim, os bens arqueológicos são bens de interesse público, sendo a sua tute-
la supra individual e intermediada por uma pessoa jurídica de direito público
(atualmente pelo IPHAN, autarquia federal com atribuições para gestão desses
bens).
Por serem de interesse público, os artigos 4º e 5º da Lei nº 3.924/61
deixam claro o poder fiscalizatório e o poder de polícia do IPHAN em relação aos
bens arqueológicos:

235 Art. 4º Toda pessoa, natural ou jurídica que, na data da publi-


cação desta lei, já estiver procedendo, para fins econômicos
ou outros, à exploração de jazidas arqueológicas ou pré-his-
tóricas, deverá comunicar à Diretoria do Patrimônio Histórico
Nacional, dentro de sessenta (60) dias, sob pena de multa de
Cr$ 10.000,00 a Cr$ 50.000,00 (dez mil a cinquenta mil cruzei-
ros), o exercício dessa atividade, para efeito de exame, registro,
fiscalização e salvaguarda do interesse da ciência.
Art. 5º Qualquer ato que importe na destruição ou mutilação
dos monumentos a que se refere o art. 2º desta lei será consi-
derado crime contra o Patrimônio Nacional e, como tal, punível
de acordo com o disposto nas leis penais.
Art. 6º As jazidas conhecidas como sambaquis, manifestadas ao
governo da União, por intermédio da Diretoria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, de acordo com o art. 4º e regis-
tradas na forma do artigo 27 desta lei, terão precedência para
estudo e eventual aproveitamento, em conformidade com o
Código de Minas. (BRASIL, 1961, n.p., on-line).
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Em atenção ao art. 5° supracitado, os artigos 62, 63 e 64 da Lei nº


9.605/98 (Lei de crimes ambientais) estabelecem as penas para destruição, inu-
tilização ou deterioração dos bens culturais e são aplicáveis, logicamente, aos
bens arqueológicos. Vale lembrar também que a Lei de crimes ambientais traz
a sessão “Dos Crimes contra a Administração Ambiental”, que estabelece penas
para o funcionário público, as quais se aplicam à participação dos funcionários
no IPHAN nas autorizações e permissões de pesquisas arqueológicas, bem como
nos licenciamentos ambientais. Alguns dos tipos penais se aplicam também aos
arqueólogos responsáveis pelas pesquisas, inclusive os contratados pelo em-
preendedor, já que esses profissionais representam no licenciamento ambiental
uma longa manus do IPHAN:

Art. 66. Fazer o funcionário público afirmação falsa ou enga-


nosa, omitir a verdade, sonegar informações ou dados técni-
co-científicos em procedimentos de autorização ou de licencia-
mento ambiental;
Art. 67. Conceder o funcionário público licença, autorização ou
permissão em desacordo com as normas ambientais, para as
236 atividades, obras ou serviços cuja realização depende de ato
autorizativo do Poder Público;
Art. 68. Deixar, aquele que tiver o dever legal ou contratual de
fazê-lo, de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental;
Art. 69. Obstar ou dificultar a ação fiscalizadora do Poder
Público no trato de questões ambientais;
Art. 69-A. Elaborar ou apresentar, no licenciamento, conces-
são florestal ou qualquer outro procedimento administrativo,
estudo, laudo ou relatório ambiental total ou parcialmente fal-
so ou enganoso, inclusive por omissão [...] (BRASIL, 1998, n.p.,
on-line).

Os arts. 8º e seguintes (Capítulos II e III) da Lei nº 3.294/61 tratam da


competência do IPHAN, autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura,
e do Ministério da Cultura para as questões administrativas e procedimentais
para a realização de escavações e pesquisas, inclusive as realizadas por parti-
culares, bem como da dominialidade dos bens arqueológicos. É interessante
lembrar o teor do art. 16 da lei em comento, que destaca que nenhum órgão
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da administração federal, dos Estados ou dos Municípios poderá realizar esca-


vações arqueológicas ou pré-históricas sem prévia comunicação ao IPHAN, para
fins de registro no cadastro de jazidas arqueológicas, mesmo nos casos em que
a União delegue, a qualquer unidade da Federação, atribuições estabelecidas na
Lei 3.924/61 (art. 28).
Ou seja: nos termos da Lei 3.924/61, não há exceções para a reali-
zação de escavações arqueológicas ou pré-históricas sem prévia comunicação
ao IPHAN. Isso significa, no âmbito jurídico, que esse órgão detém o poder de
polícia na matéria arqueológica e que nenhuma atividade arqueológica pode
começar sem o aval do IPHAN (mais especificamente do Centro Nacional de
Arqueologia – CNA). Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, a Polícia
Administrativa pode ser conceituada como:

[...] a atividade da Administração Pública, expressa em atos nor-


mativos ou concretos, de condicionar, com fundamento em sua
supremacia geral e na forma da lei, a liberdade e a propriedade
dos indivíduos, mediante ação, ora fiscalizadora, ora preventi-
va, ora repressiva, impondo coercivamente aos particulares um
237 dever de abstenção (non facere) a fim de conformar-lhes os
comportamentos aos interesses sociais consagrados no sistema
normativo. (MELLO, 2006, p. 221).

A discussão sobre a afetação dos bens arqueológicos ao interesse pú-


blico, sobre sua natureza de bens acautelados federais e sobre a exclusividade
do IPHAN no exercício de poder de polícia administrativa tem repercussão di-
reta e imediata na fiscalização/licenciamento pelo Poder Público de empreen-
dimentos e atividades que causam impactos ambientais. É o que veremos no
tópico a seguir.

PODER DE POLÍCIA DO IPHAN EM LICENCIAMENTOS


AMBIENTAIS
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O IPHAN e sua posição na Política Nacional de Meio Ambiente

O licenciamento ambiental é o procedimento administrativo viabiliza-


dor do controle ou da restrição dos efeitos danosos da atividade ou do em-
preendimento em um processo decisório que exige a produção de dados, infor-
mações e estudos, além de envolver a sociedade desde a opção pela obra ou
serviço (ANTUNES, 2002). Nas palavras de Talden Farias:

O licenciamento ambiental tem como objetivo efetuar o con-


trole das atividades efetiva e potencialmente poluidoras, atra-
vés de um conjunto de procedimentos a serem determinados
pelo órgão ambiental competente, com o intuito de defender
o equilíbrio do meio ambiente e a qualidade de vida da coleti-
vidade. Essa busca pelo controle ambiental se manifesta atra-
vés de uma série de exigências e de procedimentos adminis-
trativos que o Poder Público impõe, visto que existem normas
e padrões de qualidade ambiental que devem ser obedecidos.
(FARIAS, 2015, p. 28).
238

A Constituição não trata expressamente do licenciamento ambiental


(nem deveria, vale ressaltar), mas fornece os princípios e valores necessários
para o enfrentamento da matéria no plano administrativo. No entanto, há dis-
positivo constitucional que estabelece o Estudo Prévio de Impacto Ambiental
(art. 225, § 1°, inc. IV), reafirmando a importância do EIA/RIMA, instrumento já
considerado importante no início da década de 1980, quando da edição da Lei
6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, doravante LPNMA).
Ao longo das três últimas décadas, a postura do Poder Público, dos em-
preendedores e da sociedade no tratamento do patrimônio cultural foi modifi-
cada com a obrigatoriedade do Estudo de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) e da
contemplação, neste, dos estudos sobre os bens culturais impactados. Ao mes-
mo tempo, a reafirmação, no texto constitucional, da necessidade de Estudo
Prévio de Impacto Ambiental (art. 225, § 1°, inc. IV) e da punição, na forma da
lei, aos danos e ameaças ao patrimônio cultural (art. 216, § 4°) fortalece e atua-
liza o teor da LPNMA, especialmente de seus instrumentos.
Para viabilizar essa proteção e esclarecer o modo de proceder do em-
preendedor, a Resolução CONAMA nº 01/86, em seu artigo 6º, indica que o
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estudo de impacto ambiental desenvolverá, no mínimo, as seguintes atividades


técnicas:
I - Diagnóstico ambiental da área de influência do projeto, com-
pleta descrição e análise dos recursos ambientais e suas inte-
rações, tal como existem, de modo a caracterizar a situação
ambiental da área, antes da implantação do projeto, conside-
rando: [...] c) o meio socioeconômico – o uso e ocupação do
solo, os usos da água e a socioeconomia, destacando os sítios
e monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comu-
nidade, as relações de dependência entre a sociedade local, os
recursos ambientais e a potencial utilização futura desses recur-
sos. (BRASIL, 1986, n.p.).

Complementando a previsão acima, aplicável o art. 11 da Resolução


CONAMA no 237/97, que dispõe que o exame técnico se baseará em estudos
realizados por profissionais legalmente habilitados, que se darão às expensas
do empreendedor. Uma decorrência do citado art. 11 é que quando os profis-
sionais habilitados forem da área de patrimônio arqueológico, devem submeter
239 o projeto de pesquisa ao IPHAN, mesmo que o licenciamento se dê no plano
estadual ou municipal. Esse é o posicionamento do Tribunal de Contas da União
desde 2007, quando realizou auditoria para verificação da tutela do patrimônio
arqueológico pelo IPHAN.
Na oportunidade do julgamento do relatório da mencionada auditoria,
o Tribunal de Contas da União (TCU) também determinou ao Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), na condição
de entidade executora do SISNAMA, comunicar aos órgãos ambientais esta-
duais e municipais acerca da necessidade de submeter os EIA/RIMA à análise
do IPHAN, quando da descoberta da existência de sítios arqueológicos na região
afetada pelo empreendimento examinado, com base nos artigos 4º, 5º e 6º da
Resolução CONAMA 237/97, sob pena de o IBAMA ter de realizar o licencia-
mento ambiental, em caráter supletivo, de acordo com o artigo 10 da Lei nº
6.938/81 (TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 2007).
A obrigatoriedade de contemplação da vertente cultural na análi-
se da viabilidade do empreendimento encontra esteio na concepção legal de
que o bem ambiental é composto por bens ecológicos e culturais (art. 3° da Lei
6.938/81) e na construção doutrinária do bem ambiental como “macrobem”,
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ou seja, um bem incorpóreo e imaterial (MORATO LEITE, 2000). Nas lições de


Marcos Paulo Souza Miranda:
Tendo em vista que o patrimônio cultural integra o conceito
amplo de meio ambiente, obviamente que todos os impactos
sobre os bens culturais materiais (tais como cavernas, sítios
arqueológicos e paleontológicos, prédios históricos, conjun-
tos urbanos, monumentos paisagísticos e geológicos) e ima-
teriais (tais como os modos de viver, de fazer e se expressar
tradicionais, os lugares e referenciais de memória) devem ser
devidamente avaliados para se averiguar a viabilidade do em-
preendimento e para se propor as correspondentes medidas
preventivas, mitigadoras e compensatórias. Em razão disso, po-
demos afirmar que o processo de licenciamento ambiental é
um instrumento de acautelamento e de proteção também do
patrimônio cultural […]. (MIRANDA, 2012, p. 20).

A possibilidade da presença de bens arqueológicos exigiu, principal-


mente, o relacionamento das partes do procedimento de licenciamento – em-
240
preendedor e órgão licenciador – com o IPHAN, órgão gestor, e com poder de
polícia sobre os bens arqueológicos. Para isso, foi editada a Portaria IPHAN
007/88, que estabeleceu os procedimentos necessários à comunicação pré-
via, às permissões e às autorizações para pesquisa e escavações arqueológi-
cas em sítios arqueológicos. Essa Portaria permanece em vigor naquilo que é
compatível com a Instrução Normativa 01/2015 (praticamente todo seu texto
está em vigor). Atualmente, as autorizações são feitas pelo Centro Nacional de
Arqueologia (CNA) e os pedidos são pertinentes para pesquisas a cargo das insti-
tuições científicas do setor público federal. No caso das permissões, o requente
é o setor privado.
O artigo 5º dessa Portaria IPHAN 007/88 exige que os pedidos de per-
missão e autorização sejam dirigidos ao IPHAN e venham acompanhados de
uma série de informações. Ainda na Portaria, fica ressalvado que “[...] os pro-
jetos que não apresentarem garantia quanto à sua execução e quanto à guarda
do material recolhido”6 serão liminarmente rejeitados e que a decisão do IPHAN
sobre o pedido de pesquisas arqueológicas levará em consideração os critérios
de valorização do sítio arqueológico e de todos os elementos que nele se encon-
6
Parágrafo 1º do artigo 5º da Portaria IPHAN 007/88.
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trem, assim como as alternativas de aproveitamento máximo do seu potencial


científico, cultural e educacional.7 Há também a exigência de comprovação de
que as informações científicas estão sendo divulgadas para fins de renovação
das permissões e autorizações.8
Assim, na Arqueologia, desde a exigência da Resolução CONAMA
001/86, passando pelas Portaria IPHAN 07/88 e 230/02, há um aumento signi-
ficativo no número de emissão de Portarias pelo IPHAN para o que hoje se de-
nomina Arqueologia de Contrato, centrada na Avaliação Ambiental de Projetos
(CALDARELLI; SANTOS, 2000). Com a edição da Portaria IPHAN 230, em 2002,
que inseriu a imprescindibilidade das pesquisas de arqueologia preventiva, es-
tabelecendo procedimentos necessários para a obtenção das licenças ambien-
tais (Licenças Prévia – LP, de Instalação – LI e de Operação – LO) no curso do
procedimento de licenciamento, os pedidos de pesquisa arqueológica cresce-
ram demasiadamente: de 201 (em 2002) para 1454 (em 2013), um aumento de
723% em onze anos.
Como se nota, a submissão dos empreendedores ao licenciamento
ambiental exigiu mudanças na postura dos atores públicos e privados em re-
lação aos bens impactados pela obra ou serviço. E para deixar mais claras as
241
atribuições administrativas dos entes federativos na proteção do meio ambien-
te e dos bens culturais (art. 23 da Constituição) foi editada a Lei Complementar
no 140/2011, que fixa normas para a cooperação entre a União, os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exer-
cício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notá-
veis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer uma de
suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora.
O licenciamento (e revisão) de atividades efetivas, ou potencialmente
poluidoras (arts. 9º, inc. IV, e 10 da LPNMA), está detalhado na Lei Complementar
140/2011 e nas Resoluções CONAMA, com destaque para as Resoluções 001/86
e 237/97.
Embora a Lei Complementar tenha trazido novidades para o tema do
Licenciamento Ambiental, especialmente na fixação de competências materiais
dos entes federativos, a regulamentação desse procedimento administrativo
ainda se pauta na LPNMA e nas Resoluções CONAMA 001/86 e 237/97, as quais
7
Parágrafo único do artigo 6º da Portaria IPHAN 007/88.
8
Parágrafo único do artigo 7º da Portaria IPHAN 007/88.
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permanecem em vigor naquilo que forem compatíveis com a Lei Complementar


140/2011. Desse modo, questões como prazos e outras regras para o cumpri-
mento das obrigações em cada fase do licenciamento estão válidas e servem
de norte para o Poder Público, os empreendedores e também para o controle
social, pelo Ministério Público ou entidades da sociedade civil.
Para mencionar um exemplo do afirmado, o art. 19 da Resolução
CONAMA 237/97 arrola como fundamentos da suspensão ou do cancelamento
da licença expedida a violação ou a inadequação de quaisquer condicionantes
ou normas legais, omissão ou falsa descrição de informações relevantes e su-
perveniência de graves riscos para a saúde e para o meio ambiente. Esse tema
não é normatizado pela LC 140/2011, porque foge da finalidade da lei, que é
fixar as competências dos entes federativos para proteção do meio ambiente.
Assim, recorre-se à normatização feita pelo CONAMA.
O licenciamento ambiental é definido pela Resolução CONAMA 237/97
como um procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental competen-
te verifica a localização, a instalação, a ampliação e a operação de obras ou
atividade utilizadoras de recursos ambientais que potencial ou efetivamente
causem degradação ambiental. A Lei Complementar 140/2011, reiterando a
242
concepção anterior prevista na LPNMA e na Resolução CONAMA 237/97, define
licenciamento ambiental como um procedimento destinado a “[...] atividades
ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencial-
mente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação am-
biental” (art. 2º, I).
Além disso, a LC 140/2011 também estabelece a competência dos
órgãos ambientais para licenciar as atividades e regulamenta os aspectos de
licenciamento ambiental mencionados na Política Nacional do Meio Ambiente.
O art. 10, caput, da LPNMA, alterado pela LC 140/2011, prevê que o licencia-
mento das atividades que causem, de qualquer forma, degradação ambiental
dependerá de prévio licenciamento em órgão competente. Nos termos do art.
17-L, da Lei 6.938/81, as ações de licenciamento são de competência exclusiva
dos órgãos integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente. Como explica
Talden Farias:

Isso significa que o mecanismo é realizado no âmbito fede-


ral pelo IBAMA, no estadual pelos órgãos ou entidades da
Administração Pública estadual direta e indireta, responsáveis
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pelo controle ambiental e no âmbito municipal pelos órgãos


ou entidades municipais responsáveis pelo controle e fiscaliza-
ção das atividades potencial ou efetivamente poluidoras. Logo,
o mesmo só pode ser feito pelos órgãos que fazem parte do
SISNAMA, de maneira que estes se submetam a todos os re-
gramentos editados legalmente pelo CONAMA. (FARIAS, 2015,
p. 41).

Portanto, o órgão licenciador é um órgão ambiental integrante do


SISNAMA, que deve seguir a legislação ambiental e as normas do CONAMA.
Esse ponto merece atenção, já que a alteração da redação do art. 10 da LPNMA
foi para deixar clara a previsão de que o sistema de licenciamento ambiental
é único e deve ser centralizado perante um dos órgãos executores do Sistema
Nacional de Meio Ambiente (art. 13), com a previsão expressa de que a manifes-
tação dos órgãos ambientais das outras esferas federativas não vincula o órgão
ambiental licenciador (art. 13, § 1°).
A previsão de manifestação não vinculativa tem gerado muitos deba-
tes. Trataremos desse assunto logo em seguida, mas desde já vale deixar claro
243 que a posição adotada neste capítulo é no sentido de que a manifestação dos
órgãos intervenientes, como o IPHAN, vincula o órgão licenciador, sem que isso
afete a unicidade do procedimento.

Poder de Polícia, Licenciamento ambiental e IN IPHAN 001/2015

Após a edição da Lei Complementar 140/2011, foram editadas a


Portaria Interministerial 419/2011, substituída pela Portaria Interministerial
60/2015, bem como a Instrução Normativa IPHAN 001/2015. Em relação aos
bens arqueológicos, essa IN 001/2015 revogou a Portaria IPHAN 230/2002, que
estabelecia os procedimentos necessários para a obtenção das licenças ambien-
tais no curso do procedimento de licenciamento.
A IN 001/2015 gerou inúmeras controvérsias e críticas, ainda quando
seu texto era minuta, e, entre 2013/2014, foi motivo de um documento ampla-
mente circulado na internet, intitulado “O fim da Arqueologia Preventiva”, de
autoria do jurista e Promotor de Justiça de Minas Gerais, Dr. Marcos Paulo Souza
Miranda, que teve atenção de juristas, arqueólogos, do Ministério Público e do
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próprio IPHAN, o qual publicou uma Carta de Esclarecimento rebatendo ponto


a ponto as afirmações do texto de Marcos Paulo.
Ainda em 2014, em outubro, o Ministério Público Federal promo-
veu uma Audiência Pública, intitulada “Patrimônio Cultural no Licenciamento
Ambiental”, que foi realizada na Procuradoria da República no Rio de Janeiro
e contou com a participação dos atores mais importantes nessa discussão9.
Dentre as tantas preocupações levantas durante a Audiência, vale trazer a fala
da dedicada Procuradora da República Zani Tobias de Souza, por levantar ques-
tões fundamentais na proteção dos bens arqueológicos no cotidiano da atuação
do Ministério Público Federal:

Para o licenciamento funcionar, deve-se ter acesso ao saber


o que é um bem acautelado e onde há um sítio arqueológico.
Hoje os dados estão completamente defasados. Outra grande
preocupação do Ministério Público é a dissociação das etapas
da arqueologia. Não ficou clara essa associação das etapas da
arqueologia com as do licenciamento ambiental, principalmen-
te com a questão da licença prévia que avalia se há viabilidade
244 no empreendimento. Quando o IPHAN não deixa claro quando
ele atuará no licenciamento, dando abertura para atuar só no
momento de instalação, ele perde o timing do licenciamento
ambiental. Seja porque não determina a conservação in situ,
seja porque não determina alternativa locacional, ou porque há
alguma obra. (BRASIL, 2014, n.p. Grifos no original).

Em 2015, com poucas alterações em relação à minuta, a IN 001/2015


do IPHAN foi publicada. Em relação aos bens arqueológicos, a norma tem pon-
tos positivos, especialmente no que tange à educação patrimonial, à tentativa
de lançar luzes na organização da gestão de sítios e acervos, à atenção para as
reservas técnicas e coleções, à menção expressa à participação do IPHAN no li-
cenciamento que exija pesquisa em ambiente subaquático (art. 4º) e à sua com-
petência para se manifestar nesses casos (de patrimônio cultural subaquático),
na valorização da diretriz da conservação in situ dos bens arqueológicos (com
destaque para art. 28, inc. II), dentre outros pontos.
9
A degravação dessa audiência pública está disponível em: <http://www.mpf.mp.br/atuacao-tema-
tica/ccr4/dados-da-atuacao/eventos/audiencia-publica/patrimonio-cultural-no-processo-de-licencia-
mento-ambiental/DEGRAVACAO13102014AUDIENCIAPUBLICA.pdf>.
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Além desse suporte normativo para passos mais largos na Arqueologia,


o IPHAN, em muitos dispositivos, afirma seu papel de autoridade gestora com-
petente e com poder de polícia sobre o patrimônio arqueológico, podendo des-
cartar o interesse arqueológico ou cultural do bem ou do sítio impactado pelo
empreendimento ou autorizar as pesquisas arqueológicas oferecendo, se neces-
sário, as condicionantes para a próxima etapa do procedimento de licenciamen-
to. Além disso, o IPHAN também tem procurado oferecer as informações de ma-
neira clara e didática para os empreendedores, inclusive disponibilizando uma
representação do fluxo do procedimento depois da IN 001/2015. Esse guia está
disponível na rede mundial de computadores, no link http://portal.iphan.gov.
br/uploads/ckfinder/arquivos/Fluxo_da_IN_01_15-Site_do_IPHAN-20-07-2015.
pdf.
Um exemplo do poder de polícia do IPHAN e do traço vinculante de
sua manifestação fica destacado no art. 30 da IN em comento:

Art. 30. O IPHAN emitirá sua manifestação conclusiva, podendo:


I - recomendar o prosseguimento do processo de licenciamen-
245 to, sob aspecto dos bens acautelados em âmbito federal; e
II - apontar a existência de eventuais óbices ao prosseguimento
do processo de licenciamento, sob a óptica dos bens acautela-
dos em âmbito federal, indicando, quando viável, as medidas
ou condicionantes consideradas necessárias para superá-los.
Parágrafo único. As medidas mitigadoras, compensatórias, pro-
gramas ou condicionantes previstas na manifestação conclusiva
deverão integrar o Plano Básico Ambiental – PBA ou documen-
to equivalente e ser observadas na próxima etapa do licencia-
mento ambiental. (BRASIL, 2015b, p. 11).

Novamente, nos artigos 36 e 37 da IN 001/2015, o IPHAN assume seu


papel de gestor dos bens arqueológicos, afastando a intermediação do órgão
licenciador e indicando o relacionamento direto da autarquia com o empreen-
dedor, realçando que a manifestação do IPHAN é vinculativa. Vejamos:

Art. 36. A manifestação conclusiva do IPHAN, necessária à ins-


talação do empreendimento de Nível III e IV, resultará da aná-
CAP. 9
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lise da consolidação do Programa de Gestão dos Bens Culturais


Tombados, Valorados e Registrados quando couber, e da apro-
vação do Programa de Gestão do Patrimônio Arqueológico.
§ 1º A manifestação a que se refere o caput será de no máximo
sessenta dias a contar da data de recebimento da solicitação do
órgão licenciador.
§ 2º A solicitação de complementações, se houver, se dará em
uma única vez e será encaminhada ao Responsável Técnico e
ao Empreendedor, que deverão respondê-la no prazo máximo
de trinta dias.
§ 3º O não atendimento da solicitação de complementação no
prazo estabelecido, sem a devida justificativa, que deverá estar
fundamentada tecnicamente, acarretará no indeferimento e
arquivamento do processo, com a publicação do respectivo
ato administrativo no DOU e comunicação ao órgão ambiental
licenciador.
§ 4º A contagem do prazo previsto no § 1º deste artigo será
suspensa durante o transcurso do prazo previsto no § 2º deste
artigo.
246
§ 5º O órgão ambiental licenciador competente deve ser
comunicado da suspensão de prazo referida no § 4º deste
artigo.
Art. 37. O IPHAN emitirá sua manifestação conclusiva, podendo:
I - recomendar o prosseguimento do processo de licenciamen-
to sob o aspecto dos bens acautelados em âmbito federal; e
II - apontar a existência de eventuais óbices ao prosseguimen-
to do processo de licenciamento, sob aspecto dos bens acaute-
lados em âmbito federal, indicando, quando viável, as medidas
ou condicionantes consideradas necessárias para superá-los.
Parágrafo único. A manifestação se dará com base na aprecia-
ção de relatórios parciais e mencionará claramente a que tre-
cho ou área do empreendimento se refere. (BRASIL, 2015b, p.
13-14. Grifos nossos).

Os dispositivos supracitados, que reforçam que a manifestação do


IPHAN vincula o empreendedor, estão em perfeita sintonia com a LC 140/2011.
Na busca de agilização e compatibilização das manifestações vinculantes, emiti-
CAP. 9
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das por outros órgãos, os § 1° e § 2° do art. 14 da LC explicitam o art. 14 caput


(Os órgãos licenciadores devem observar os prazos estabelecidos para tramita-
ção dos processos de licenciamento), estabelecendo que “[...] as exigências de
complementação oriundas da análise do empreendimento ou atividade devem
ser comunicadas pela autoridade licenciadora de uma única vez ao empreen-
dedor, ressalvadas aquelas decorrentes de fatos novos.” (§ 1° do art. 14), e que
se essas exigências forem de complementação, devem se referir a informações,
documentos ou estudos que o empreendedor precisa apresentar para a conti-
nuidade do licenciamento (conforme teor do § 2° do art. 14).
Em relação aos pontos positivos, vale trazer os comentários otimistas
sobre a IN 001/2015, de MONTALVÃO e GONÇALVES (2016, p. 32):

O cumprimento dessa Instrução posiciona o IPHAN na coorde-


nação do processo de preservação do Patrimônio, como agente
contribuinte no desenvolvimento socioeconômico do país, indo
ao encontro da missão institucional do órgão. Para sua implan-
tação efetiva o IPHAN deve se organizar para atender aos de-
safios gerados como a manutenção e a atualização dos bancos
247 de dados, formação de corpo técnico qualificado, cumprimen-
to dos prazos e alinhamento dos procedimentos internos. Em
maio de 2016 o IPHAN lançou as Portarias 195, 196 e 197 que
versam sobre a movimentação de bens em território nacional,
o cadastro para bens arqueológicos móveis, e solicitação de
remessa de material arqueológico para análise no exterior. A
Ordem de Serviço 02, de 20 de maio de 2016, fornece ainda
um formulário para a fiscalização de instituições de Guarda e
Pesquisa. Essas novas ferramentas reforçam o compromisso do
IPHAN em modificar o cenário atual e fazer valer as mudanças
previstas na Instrução Normativa.

Não trataremos da regulamentação e fiscalização da Guarda e Pesquisa


do material arqueológico nem da valorização da educação patrimonial pela IN
001/2015, já que a abordagem do texto se foca na Arqueologia Preventiva e na
participação qualificada do IPHAN nos licenciamentos ambientais.
Sem perder de vista que a IN 001/2015 oferece a possibilidade de me-
lhor organização do IPHAN para gestão dos bens arqueológicos e para sua par-
CAP. 9
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ticipação qualificada nos procedimentos de licenciamento, não se pode deixar


de notar que essa norma também tem pontos de fragilidade em seu texto, fa-
cilmente perceptíveis quando atentamos para: a) a insistente posição de inércia
do IPHAN, que deve ser provocado pelo órgão licenciador em todas as fases do
licenciamento ambiental (artigos 1°, 3° , 9°, 12°, 31° e 38°); b) a previsão que
delimitou a participação do IPHAN a partir da existência de bens apenas na Área
de Influência Direta – AID do empreendimento; c) a omissão normativa sobre a
vinculação das manifestações do IPHAN às fases do licenciamento; d) a adoção
do “monitoramento arqueológico” para empreendimentos de pequeno e mé-
dio porte (Níveis I e II) e o consequente afastamento da arqueologia preventiva;
e e) a liberação de quaisquer estudos sobre os bens arqueológicos para o licen-
ciamento de empreendimentos em áreas degradadas, contaminadas, eletrifica-
das ou de alto risco (art. 60).
Voltaremos aos pontos frágeis apontados acima no último tópico deste
capítulo. Por ora, vale destacar duas ações civis públicas propostas pelo MPF
exatamente para corrigir os pontos falhos indicados acima.
Em relação à dispensa de estudos em áreas degradadas, contaminadas
etc., prevista no art. 60 da IN 001/2015, houve questionamento judicial pelo
248
Grupo de Trabalho Patrimônio Cultural vinculado à Câmara de Meio Ambiente
e Patrimônio Cultural do Ministério Público Federal (MPF). O trecho da notícia
sobre a ação civil pública proposta em fevereiro de 2016 contra o art. 60 resume
o objeto da demanda judicial:

O MPF alerta que o dispositivo “é desastroso”, já que o IPHAN


contraria a Constituição ao deixar de exigir os estudos. O pro-
curador da República Jaime Mitropoulos, que assina a ação,
exemplifica que se um empreendimento quiser se estabelecer
em trecho do centro antigo da cidade do Rio de Janeiro, com
valor histórico e cultural, mas que, atualmente, encontra-se de-
gradado pelo tempo, pela sociedade ou pelo Poder Público não
seria esse motivo suficiente para deixar de exigir do empreen-
dedor a apresentação de estudo. Para o MPF, as circunstâncias
apontadas pelo artigo 60 não afastam os “deveres de guarda e
vigilância permanente confiados ao poder público”.
Na ação, o MPF pede que o Iphan seja obrigado a exigir os es-
tudos e indique o conteúdo mínimo para realização dos levan-
CAP. 9
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tamentos para avaliar o impacto do empreendimento sobre os


bens culturais acautelados ou em processo de acautelamento
também nas hipóteses de áreas degradadas, contaminadas,
eletrificadas ou de alto risco. (BRASIL, 2016b, n.p., on-line).

Como se nota, por esse dispositivo, as áreas com potencial arqueológi-


co que não tenham georreferenciamento ou mesmo que sejam desconhecidas
do IPHAN ficariam totalmente desprotegidas.
Em fevereiro de 2017, outra ação civil pública foi proposta pelo MPF
questionando outro dispositivo da IN 001/2015 do IPHAN. Agora a discussão
judicial é sobre a dispensa de estudos arqueológicos prévios para os empreendi-
mentos de nível II (art. 16). Como noticiado no site da Procuradoria da República
do Rio de Janeiro:

Para o procurador da República Renato de Freitas Souza


Machado, autor da ação, o licenciamento ambiental é uma
obrigação legal prévia à instalação de qualquer empreendimen-
to ou atividade potencialmente poluidora ou degradadora do
249
meio ambiente: “a manifestação do Instituto é imprescindível
para que um empreendimento ou atividade em processo de li-
cenciamento não venha a impactar ou destruir os bens culturais
considerados patrimônio dos brasileiros”, afirma o procurador.
Entretanto, o Iphan restringiu de modo desproporcio-
nal e inadequado o âmbito de proteção dos bens cultu-
rais sob sua guarda ao editar o Art. 16 da IN 001/2015.
Ao ser analisado o teor do artigo, constata-se que não
há mais previsão de diagnóstico e prospecção, em virtu-
de do empreendimento estar classificado como nível II.
Assim, conclui-se que tal norma desconsidera o princípio da
prevenção, uma vez que não há efetiva participação do Iphan
na fase de licença prévia quanto à verificação da viabilidade do
empreendimento, inclusive indicando eventual necessidade de
conservação in situ e modificação do projeto, quanto à alterna-
tiva locacional[...]. (BRASIL, 2017, n.p., on-line).

Nos tópicos anteriores deste capítulo, já se tratou da ilegalidade da


dispensa de estudos prévios e do dever do IPHAN em exigi-los. Voltaremos ao
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assunto, mas é importante destacar que a omissão do exercício do poder de po-


lícia pelo IPHAN, como previsto atualmente no art. 16 da IN em comento, pode
acarretar danos irreversíveis, já que essa omissão possibilita que as obras sejam
iniciadas sem que haja a produção de informações acerca da existência de sítio
arqueológico no local.

Enfim, o que muda na proteção dos bens arqueológicos com a


Lei Complementar 140/2011?

De acordo com a abordagem feita até agora, a resposta é que nada


muda com a edição da Lei Complementar 140/2011. A manifestação da autar-
quia federal é imprescindível e vincula o órgão ambiental licenciador, seja ele da
União, dos Estados ou dos Municípios.
Como o tema ainda é novo, para se chegar à conclusão de que a po-
sição do IPHAN vincula o licenciador quando há possibilidade de lesão a bens
arqueológicos, partimos de argumentos já apresentados neste capítulo, bem
como da compreensão do sentido da LC 140/2011 e das interpretações dou-
250 trinárias e jurisprudenciais em casos que guardam alguma semelhança com o
debate suscitado.
Primeiro, a LC 140/2011 não trata da competência material dos entes
federativos na tutela dos bens culturais. E o dispositivo que tem gerado essas
dúvidas (e ou entendimentos equivocados), ao deixar clara a unicidade do licen-
ciamento ambiental, faz referência expressa à manifestação dos órgãos ambien-
tais das outras esferas federativas. Ou seja, o art. 13, § 1°, prevê a contribuição
voluntária (e não vinculante) em matéria ambiental de outros entes federativos
que não o responsável pela condução do procedimento de licenciamento.
Essa previsão sobre a manifestação não vinculativa (art. 13, § 1°) não
alcança os órgãos públicos intervenientes do licenciamento que não integram
o SISNAMA, como é o caso do IPHAN, da FUNAI, da Fundação Palmares, dentre
outros. Além disso, a certeza da afirmação não encontra amparo unânime na
doutrina. Muito pelo contrário: há posições exatamente no sentido oposto, o
que gerará, nos casos concretos, prejuízos e atrasos no licenciamento, inclusive
com a judicialização.
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Por isso, o melhor seria que a dúvida gerada pelo texto do art. 13,
§ 1°, fosse esclarecida o quanto antes10, nem que fosse para dizer o que nos
parece óbvio: que o órgão que detém o poder de polícia deve ter sua posição
acatada pelo órgão licenciador e pelo empreendedor. Aliás, esse foi o entendi-
mento da Procuradoria Geral da República (PGR), em parecer exarado na Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5180), cujo relator é o Ministro Dias Tofolli
(BRASIL, 2015c), contra o artigo 36, parágrafo 3º, da Lei Federal 9.985/2000 (Lei
do SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza). O artigo
questionado exige autorização do gestor das unidades de conservação no licen-
ciamento ambiental de qualquer empreendimento que afete a área relativa à
unidade de conservação (UC) ou a sua zona de amortecimento11. Nas palavras
de Rodrigo Janot, Procurador Geral da República, no parecer encartado à ADI:

Exigência de prévia autorização do gestor de unidade de con-


servação é inerente à competência decorrente da administra-
ção da unidade de conservação instituída, assim como tantas
outras atribuições conferidas pela Lei 9.985/2000 à chefia de
unidades de conservação. Considerando que a área objeto de
251 proteção está submetida a regime especial de administração
destinado à sua preservação, nada mais lógico e razoável do
que exigir prévia autorização do órgão gestor para empreendi-
mentos de significativo impacto ambiental, que possam degra-
dar o território protegido pela unidade de conservação.
Nesse sentido, não cabe falar em exigência de lei complemen-
tar para regulamentar a matéria. Não ocorre violação ao art. 23,
parágrafo único, da Constituição da República, pois a autoriza-
ção do órgão responsável pela gestão da unidade de conserva-
ção consubstancia o ato de poder de polícia preventivo decor-

10
Como destaca Talden Farias: “Existe uma lacuna, que é a falta de disciplinamento do momento e da
forma dessa participação [dos órgãos intervenientes]. Com efeito, até hoje não se sabe ao certo se
a manifestação dos órgãos públicos interessados será antes, durante ou após a finalização do estudo
ambiental, nem se deverá ocorrer um convite ou edital de convocação específico ou se a simples
publicação do requerimento da licença será o suficiente. Como as interpretações têm resultado em in-
segurança jurídica, em virtude das divergências entre os órgãos interessados, é preciso regulamentar
tais procedimentos por meio de decreto.” (FARIAS, 2016. Comentários nossos).
11
Ação pendente de julgamento. O acompanhamento pode ser feito em <http://www.stf.jus.br/por-
tal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=5180&classe=ADI&origem=AP&recurso=0&tipo-
Julgamento=M>.
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rente do próprio regime especial de administração previsto no


art. 225, § 1o, III, da CR.
Dessa forma, não se trata de hipótese de ato de cooperação em
matéria de Direito Ambiental, a demandar lei complementar.
(BRASIL, 2015c, p. 12-13).

Não se pode prever como será o julgamento dessa ADI 5180 (BRASIL,
2015c) e se a posição do Ministério Público Federal será acatada pelo Supremo
Tribunal Federal. Mas o argumento de que a autorização do responsável pela
Unidade de Conservação é um exercício de poder de polícia preventivo cabe
como uma luva para a posição do IPHAN nos licenciamentos ambientais.
Na audiência pública realizada em 2014 pelo Ministério Público Federal
acerca da proteção dos bens culturais no licenciamento, o representante do
IBAMA foi questionado sobre como o tema da vinculação ou não à manifestação
do IPHAN era tratado nos licenciamentos da União. Sua resposta foi:

Em primeiro lugar, não temos expertise técnica para fazermos


252 uma análise diferenciada da que é apresentada pelo IPHAN.
Não temos dentro do IBAMA. Podemos mediar uma espécie de
contestação apresentada pelo empreendedor, medidas apre-
sentadas pelo IPHAN das quais não se concorda. Fazemos mais
esse papel de mediação. Tanto na área do IPHAN quanto nas
nossas áreas, como de impacto na biodiversidade e meio físico,
é um processo de diálogo técnico. Então poderíamos montar
uma discussão com as propostas apresentadas pelo empreen-
dedor e rejeitadas pelo IPHAN ou vice-versa. Caberia tal dis-
cussão. Na parte mais jurídica não seria vinculante, mas tec-
nicamente tem consistência, você precisa desconstruir aquele
raciocínio que motivou e estabeleceu a condicionante. Não
temos histórico de nenhuma medida apresentada pelo IPHAN
que seja objeto deste processo de discussão. Em tese é assim,
mas na prática não estamos fazendo a discussão do que seriam
as medidas definidas pelo IPHAN. (BRASIL, 2014, n.p., on-line).

A mediação pelo órgão ambiental licenciador pode ser uma medida


conciliatória e de certo modo acelera o procedimento, mas pressupõe a reso-
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lução sem conflito, o que nem sempre acontece. No caso do não atendimento,
prevalece o poder de polícia do IPHAN. Com a regulamentação da participação
do IPHAN no licenciamento, pela IN 001/2015 (posterior, portanto, à resposta
supratranscrita do IBAMA na audiência pública), nota-se que a comunicação do
IPHAN com o empreendedor não tem intermediação do órgão ambiental. Os
artigos 36, § 2° e § 5° e 37 da IN confirmam essa tratativa direta.

Depois da IN 001/2015: novos ou antigos desafios na proteção


dos bens arqueológicos no licenciamento ambiental?

Ressaltamos, em discussão anterior, que ao lado dos pontos favoráveis


da IN IPHAN 001/2015 para a proteção dos bens arqueológicos no licenciamen-
to ambiental há uma fragilidade em algumas construções dessa norma.
O primeiro ponto ao qual lançamos luzes é a posição de inércia do
IPHAN, que em vários dispositivos repete que a autarquia deve esperar a provo-
cação do órgão licenciador para se manifestar (artigos 1°, 3°, 9°, 12°, 31° e 38°).
253 Essa “apatia” merece ser vista com ressalvas, já que há uma linha muito tênue
entre a omissão e a espera de provocação. Aliás, por que esperar a provocação
quando se sabe que a área tem potencial arqueológico? Por que esperar a pro-
vocação quando há relatos históricos de que se pode encontrar sítios arqueo-
lógicos no local do empreendimento? Por que a inércia do IPHAN, se o órgão
licenciador não tem elementos mínimos (como, por exemplo, um georreferen-
ciamento da área) para provocar o IPHAN a se manifestar sobre o patrimônio
arqueológico? Essas questões são antigas, de modo algum surgem com a edição
da IN 001/2015, e poderiam ter sido melhor tratadas. A “inércia normatizada”
em vários dispositivos parece mais uma resposta para a falta de recursos huma-
nos e financeiros do IPHAN do que propriamente uma escolha jurídica.
A liberação de pesquisas em áreas degradadas, contaminadas, etc. do
art. 60 da IN, já objeto de questionamento judicial em ação civil pública pro-
posta em fevereiro de 2016 pelo MPF e em tramitação na Justiça Federal do Rio
de Janeiro, parece seguir a mesma linha da previsão de inércia. Os prejuízos de
seguir à risca tais dispositivos são evidentes. Por exemplo, áreas degradadas,
como a área portuária do Rio de Janeiro, que nos últimos dez anos tem tido me-
lhorias e sido reurbanizada e que, com a concepção do Porto Maravilha, estaria
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liberada da apresentação de estudos arqueológicos nos termos do art. 60 da IN


001/2015. Além disso, segundo a Instrução em comento, o IPHAN deveria se
manter inerte à espera da provocação do órgão licenciador.
O exemplo é exagerado, já que o sítio do Cais do Valongo, localizado
nessa área portuária, pelo seu gritante valor histórico e elevado potencial ar-
queológico, não poderia passar despercebido pelo IPHAN. Não poderia e não
passou: a autarquia exerceu seu poder de polícia e cumpriu seu papel de gestor
nesse caso. Em 2010, vigorava a Portaria IPHAN 230/02 para os casos de licen-
ciamento. Como relatado no documento que encaminha à UNESCO a candida-
tura do Cais do Valongo a Patrimônio Mundial, o IPHAN tomou a iniciativa de
solicitar à prefeitura do Rio de Janeiro a realização de pesquisa arqueológica:

Nesse sentido, em 2010, quando a Prefeitura da Cidade do Rio


de Janeiro iniciou as intervenções urbanas necessárias à im-
plantação do Projeto Porto Maravilha naquela praça, o Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, órgão ges-
tor do patrimônio arqueológico no Brasil, baseado na legislação
vigente de preservação do patrimônio arqueológico, solicitou
254 à Prefeitura a realização de projeto de pesquisa arqueológica,
uma vez que somente através da Arqueologia seria possível di-
mensionar o grau de conservação dos vestígios que porventura
restaram do Cais do Valongo em função dos potenciais danos
causados pelo crescimento urbano ou por outros agentes, que
derivaram no encobrimento do Cais e da trágica história ligada
a ele. À época, já era de conhecimento, tanto dos gestores pú-
blicos quanto dos pesquisadores, o elevado potencial arqueo-
lógico da área. Além de ser uma área estratégica de convívio
e interação social entre a população negra cativa e liberta, era
também a área de chegada e comercialização do enorme con-
tingente de africanos escravizados, o que se confirmou duran-
te as escavações preventivas levadas a efeito pela equipe da
Professora Tania Andrade Lima, arqueóloga do Museu Nacional
da Universidade Federal do Rio de Janeiro-MN/UFRJ. (BRASIL,
2016a, n.p., on-line).

Ao mesmo tempo, como relatado pela gestora de licenciamen-


to do INEA, órgão municipal do Rio de Janeiro, na Audiência Pública intitula-
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da “Patrimônio Cultural no Licenciamento Ambiental”, realizada em 2014 na


Procuradoria da República no Rio de Janeiro, o IPHAN deveria ter condições de
fazer o georreferenciamento de áreas com potencial arqueológico para melhor
trabalho do órgão licenciador. A experiência da gestora do INEA, compartilhada
na Audiência, está baseada na Portaria IPHAN 230/02:

Foi conduzido um estudo de impacto ambiental e solicitou-se


a participação do IPHAN. Encontrou-se sítios arqueológicos na
área de Duque de Caxias. A partir daí o IPHAN estendeu sua
influência naquela região. Descobriu-se um areal com um sítio
naquela atividade, há muito tempo estamos tentando junto do
IPHAN averiguar a possibilidade de um georreferenciamento
das áreas com mais provável incidência de sítios arqueológicos.
Desculpem, não estou tão a par da questão arqueológica. Mas
sempre disseram para nós que este era um processo em anda-
mento e sem retorno. Pela sua apresentação acredito que isto
está mais desenvolvido, e acho que devíamos nos preocupar
mais com estes detalhes. Só para se ter uma ideia de como
255 se faz esse nosso licenciamento, georreferenciamos a área,
lançamo-la no nosso BDE e aí levantamos todas as unidades
de conservação das quais temos registro, estaduais, federais
e municipais. As últimas são um pouco mais difíceis de con-
seguirmos, mas temos algumas. Identificamos a necessidade
de se ouvir um gestor de uma unidade de conservação. Se já
estivesse georreferenciado e identificado, saberíamos que te-
ríamos que ouvir o IPHAN, mas sabemos que esta questão da
grandeza da atividade não importa muito. (BRASIL, 2014, n.p.,
on-line. Grifos nossos).

Notamos, portanto, que os antigos desafios continuam. A IN 001/2015


não superou essa dificuldade, que demanda uma melhor estruturação e orga-
nização do IPHAN, como destacou a Subprocuradora-Geral Sandra Cureau na
mencionada Audiência Pública:

Todo bem arqueológico é federal e deve ser objeto de proteção


do IPHAN independentemente da esfera em que se dê licencia-
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mento. Diversos procedimentos da função normativa, esta que


vamos hoje debater com vocês, preenchimento adequado da
FCA e adequações previstas no TRE, dependem do bom funcio-
namento de um sistema automatizado de cadastro de sítios ar-
queológicos digital e de fácil acesso. Tal ferramenta é anunciada
pelo CMA há tempos e nunca foi implementada. Ao contrário,
nem o resultado das pesquisas de 5% das portarias acadêmi-
cas é incorporado ao banco de dados. Não achamos possível
que a Instrução Normativa seja aplicada antes do pleno fun-
cionamento e atualização destes cadastros. Do mesmo modo
ressaltamos que, considerando a lei de acesso à informação, Lei
12527/2011, que garante a divulgação de informação de inte-
resse coletivo e geral, estes dados deveriam estar disponíveis
não apenas para os arqueólogos e demais profissionais envol-
vidos no licenciamento ambiental, mas integralmente para a
sociedade como um todo. (BRASIL, 2014, n.p., on-line.).

A previsão que delimitou a participação do IPHAN a partir da existên-


cia de bens apenas na Área de Influência Direta – AID do empreendimento é
256
uma afronta às normas ambientais, aos princípios ambientais consagrados,
como os princípios da prevenção e da precaução, bem como aos ditames da Lei
3.924/61. A pesquisa na Área de Influência Indireta está prevista pelo CONAMA
e visa conferir a proteção adequada aos bens afetados. E a IN IPHAN poderia
ter deixado uma “porta aberta” para que, em empreendimentos de níveis III e
IV e em certas situações devidamente justificadas, a autarquia pudesse exigir a
pesquisa na Área de Influência Indireta.
A omissão da IN 001/2015 (BRASIL, 2015b) sobre a vinculação das ma-
nifestações do IPHAN às fases do licenciamento pode causar prejuízo e demora
para o empreendedor, já que a harmonização entre exigências de pesquisas ar-
queológicas e exigências ambientais agiliza o procedimento, evita maiores gas-
tos para o empreendedor, bem como problemas com o Judiciário, inclusive com
a imputação de crimes pela lesão ao bem arqueológico.
Se forem fortes os indícios de que se o local escolhido para a obra tem
potencial arqueológico, o ideal é que a participação do IPHAN seja exigida pelo
órgão ambiental licenciador, desde o momento do estabelecimento das dire-
trizes para a elaboração dos estudos (TR). No mais, há sempre a possibilidade
CAP. 9
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de alternativa locacional, ou seja, do empreendimento não se realizar no local


previamente indicado, pela necessidade de preservação in situ do patrimônio
arqueológico.
Aliás, vale lembrar que um dos pontos altos da Instrução é exatamente
a valorização da diretriz da conservação in situ dos bens arqueológicos. E o des-
compasso entre as licenças ambientais e as exigências do IPHAN pode levar, na
prática, a medidas de urgência para proteção tardia dos sítios culturais.
No que tange ao patrimônio arqueológico, os estudos podem ficar ex-
tremamente comprometidos quando não são feitos no momento do EIA e antes
da concessão das licenças. Por isso, cabe exigir estudos arqueológicos inclusive
para a adoção de outras providências, principalmente no que tange a restrições
e limitações do exercício de direitos em razão das características do sítio.
A fragilidade apontada acima guarda estreita relação com a adoção do
“monitoramento arqueológico” para empreendimentos de pequeno e médio
porte (níveis I e II, conforme definidos na IN em comento). A adoção do moni-
toramento arqueológico transfere para os arqueólogos uma atribuição que é
estatal, flexibilizando a previsão do art. 3° da Lei 3.924/61, que proíbe o aprovei-
257 tamento econômico ou qualquer tipo de destruição do patrimônio arqueológico
sem a realização de pesquisas prévias.
A “flexibilização” não é cabível por norma infralegal. Muito menos é
possível considerar que uma Instrução Normativa revogou os termos legais (art.
3° da Lei 3.924/61). Por isso, o art. 16 da IN, que dispensa os estudos prévios
para empreendimentos de nível II, foi questionado judicialmente em ação civil
pública proposta em fevereiro de 2017 pelo MPF e em tramitação na Justiça
Federal do Rio de Janeiro. O MPF pede a nulidade desse dispositivo, bem como
a determinação judicial para conferir aos empreendimentos de nível II o mesmo
regime aplicável aos empreendimentos de nível III.
Como vimos exaustivamente, cabe ao IPHAN o exercício do Poder de
Polícia. Esse poder não está sendo delegado ou transferido para os profissionais
que assinam o termo nem para os empreendedores, porque a IN 001/2015 não
tem força normativa para tanto. O que acontece, nessas situações, além da ile-
galidade pela ausência de exigência de apresentação dos projetos de pesquisa,
é a inscrição de forma clara, na Instrução, da responsabilidade administrativa,
civil e criminal do arqueólogo, que pode ser considerado funcionário público
(do IPHAN), por equiparação, para fins de punição.
CAP. 9
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A VARIÁVEL ARQUEOLÓGICA NO LICENCIAMENTO
Comunidades, práticas e direitos AMBIENTAL

Essa afirmação tem respaldo no fato de que a responsabilidade civil


do empreendedor e do arqueólogo contratado é objetiva (MACHADO, 2006;
SOARES, 2007). Há também a responsabilidade penal do empreendedor e do
arqueólogo (por crime ambiental, nos termos do art. 3º combinado com o art.
63, ambos da Lei 9.605/98). A obrigação de proteção de todos os bens atingi-
dos pelo empreendimento persiste, mesmo que os órgãos ambientais e interve-
nientes (como o IPHAN) tenham sido omissos ou, ainda, porque seus servidores
tenham agido com dolo ou com negligência, imprudência ou imperícia. Além de
expert contratado pelo empreendedor, o arqueólogo também é um funcionário
público (por equiparação do IPHAN), que responderá por eventuais ilícitos ad-
ministrativos, civis e penais e será punido como servidor público.
Encerro este texto realçando a importância de continuarmos refletindo
sobre as melhores formas de ajuste administrativo da IN pelo IPHAN para evitar
riscos e danos aos bens arqueológicos impactados por obras e serviços que se
submetam ao licenciamento ambiental. Acredito na viabilidade do diálogo e na
possibilidade de mudanças nos pontos falhos dessa Instrução, seja pela própria
administração, seja pelo Judiciário. Isso não importa tanto. O que é mais rele-
vante é que as correções aconteçam com maior brevidade possível, sem a ne-
258 cessidade de constatações de perdas irreversíveis ao patrimônio arqueológico.

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A MULTIVOCALIDADE DA
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parágrafo único do art. 23 da Constituição Federal, para a cooperação entre a
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas
decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das pai-
sagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição
em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora;
e altera a Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil. Brasília, DF, 9 de dezembro de 2011, retificado em 12 de
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CAP. 9
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A VARIÁVEL ARQUEOLÓGICA NO LICENCIAMENTO
Comunidades, práticas e direitos AMBIENTAL

trata o art. 14 da Lei nº 11.516, de 28 de agosto de 2007. Diário Oficial [da]


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CAP. 9
A MULTIVOCALIDADE DA
ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL: A VARIÁVEL ARQUEOLÓGICA NO LICENCIAMENTO
Comunidades, práticas e direitos AMBIENTAL

______. Resolução Conama nº 237, de 19 de dezembro de 1997. Dispõe sobre li-


cenciamento ambiental; competência da União, Estados e Municípios; listagem
de atividades sujeitas ao licenciamento; Estudos Ambientais, Estudo de Impacto
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de 19.10.2007.

263
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

ÍNDICE ONOMÁSTICO

A
Ab’Sáber, Aziz Nacib 142
Acosta Alcaraz, Feliciano 58, 71
Aguirre, Lope de 126, 128
Alberti, Verena 58, 68
Almeida, Guilherme de 168
Almeida, Marco Antonio Delfino 38, 68
Alves da Silva, Cleube 41, 68,
Amaral, Tarsila do 77, 168,
Andrade, Mário de 168
Andrade, Mariza Guerra de 159, 164
264 Andrade, Oswald de 77, 91, 93
Antunes, Paulo de Bessa 238
Arantes, António Augusto 124, 143
Arendt, Hannah 28, 31, 69,
Aroso, O. C. L. [sic] 126, 127, 143

B
Bahn, Paul 54, 74
Bandarin, Francesco 156, 164
Bandeira, Manuel [Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho] 168
Barreto, Cristiana 215
Barth, Fredrik 44, 48, 68
Bastos, Rossano Lopes 170, 187
Becker, Ítala Irene Basile 48
Becker, Simone 38, 68
Bello, José Luiz de Paiva 108, 121
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

Benites, Tonico 39, 49, 68


Benjamin, Walter 79, 93
Berkes, [Dr.] Fikret 152, 153, 164
Bernardes, Arthur 160
Bespalez, Eduardo 33, 44, 68
Bezerra, Marcia 15, 26, 28, 29, 30, 31, 71, 212, 223
Bhabha, Homi K. [sic] 77, 78, 93,
Boas, Sergio Vilas 211, 223
Boccardi, Giovanni 155, 164
Bomeny, Helena 168, 187
Borges, Jóina Freitas 10, 25, 29, 77, 78, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 91, 93
Borges, Luís Felipe 135, 138
Brand, Antonio Jacó 49, 56, 69
Brasil 10, 12, 15, 16, 17, 22, 23, 25, 27, 28, 29, 33, 35, 37, 42, 44, 48, 62, 65, 69,
70, 71, 72, 73, 83, 84, 93, 94, 97, 101, 103, 121, 122, 125, 126, 133, 134, 142,
265 143, 144, 149, 152, 159, 160, 164, 165, 168, 169, 172, 176, 179, 183, 187, 188,
189, 192, 196, 198, 206, 209, 212, 213, 214, 217, 218, 223, 224, 232, 233, 235,
236, 239, 244, 245, 246, 249, 251, 252, 254, 255, 256, 258, 261, 263
Brittain, Marcus 212, 224
Britto, Carlos Ayres 233
Brochado, José Joaquim Justiniano Proenza 42, 43, 44, 47, 69, 72
Buco, Cristiane 107
Burke, Cheril 131, 143
Burkhard, Daniela 198, 207

C
Caballos, Antonio 47, 72
Caldarelli, Solange Bezerra 241, 261
Calippo, Flávio 26, 30, 208
Campos, Juliano Bitencourt 5, 17, 20, 26, 29, 30, 167, 188
Capra, Fritjof 148, 164
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

Carle, Claudio 197


Carrato, José 159, 164
Carreira, Elaine Amorim 53, 69
Carson, Rachel 148, 164
Carvalho, Isabel C. M. [sic] 147, 148, 149, 164
Casco, Ana Carmen Amorim Jara 97, 121
Castells, Manuel 209, 210, 224
Castro, Eduardo Viveiros de 43, 46, 47, 49, 73, 75, 132, 145
Catafesto, José Otávio 193, 194
Cavalcante, Tiago Leandro Vieira 49, 50, 69
Cerqueira, Fábio Vergara 178, 188
Certeau, Michel de 79, 94
Chamorro, Graciele 61, 69
Chartier, Roger 168, 169, 188
Clack, Timothy 212, 224
266 Corrêa, Ângelo Alves 48, 69
Corrêa, Conceição G. [sic] 126, 127, 143
Correia Lima, Olavo 126, 127, 143
Cruz, A. da. C. M. [sic] 159, 160, 164
Cureau, Sandra 255

D
D´Amato, José Luis 148, 165
D’Antona, Alvaro de Oliveira 101, 102, 104, 121
D’Evreux, Yves 84, 94, 128,
D’Abbeville, Claude 128,
Daniel, João 128, 129, 143
De La Torre, Marta 163, 164
Descola, Philippe 153, 164
Di Cavalcanti [Emiliano Augusto Cavalcanti de Paula Albuquerque e Melo] 168
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

Dias, Camila Delmondes 211, 224


Dias, Giovani Martins 101, 103, 105, 121
Dias, Maria Odila Leite da Silva 176, 188
Dias, Tofolli 251, 260
Diegues, Antonio Carlos Santana 101, 103, 121
Docas, Manoel 90
Dom João VI [rei] 159, 160
Domínguez, Luis G. [sic] 131, 143
Duarte, André de Macedo 28, 31, 69
Dutra, Carlos Alberto dos Santos 63, 69
Duvelle, Cécile 155, 164

E
Eliade, Mircéa 132, 143
Eremites de Oliveira, Jorge 10, 25, 29, 32, 38, 41, 44, 49, 50, 51, 61, 68, 69, 71
267 Ericson, Jonathan E. [sic] 131, 143
Esselin, Paulo Marcos 49, 71
Evans, Clifford 39

F
Farias, Talden 238, 242, 243, 251, 261
Fernandes, José Ricardo Oriá 124, 143
Ferreira, Altinor Barbosa 55
Ferreira, Francisco Bernardes 62, 65, 66, 71
Ferreira, Lúcio Menezes 7, 18
Filó, Maurício da Cunha Savino 171, 188
Folke, Carl 152, 164
Fonseca, Maria Cecília Londres 109, 121
Fontes, Marília de Sousa 135, 138
Foucault, Michel 28, 31, 69, 80, 94
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

Franco, José Raimundo Campelo 126, 143


Frankenstein 46
Frascaroli, Fabrizio 154, 165
Frederico, Isabela Barbosa 12, 26, 29, 146, 161, 162, 165
Freire, Paulo 23, 28, 97, 121
Funari, Pedro Paulo Abreu [Funari, Pedro Paulo] 4, 6, 13, 17, 20, 28, 29, 31, 42,
43, 71, 97, 101, 121, 124, 125, 131, 143, 147, 166, 261

G
Gnecco, Cristóbal 124, 143
Gonçalves, Yacy-Ara Froner 247, 262
Gouveia Neto, João Costa 12, 25, 29, 123, 124, 125, 144
Graça Aranha [José Pereira da Graça Aranha] 168
Grunberg, Evelina 97, 121, 171, 188
Grünberg, Friedl 46, 61, 72
268 Grünberg, Georg 46, 61, 72
Guidon, Niède 106

H
Hall, Stuart 77, 94, 95
Heckenberger, Michael 127, 144
Heinsfeld, Adelar 174, 188
Hilaire, Saint 160
Holanda, Sérgio Buarque de 80, 94
Holtorf, Cornelius 156, 165
Horta, Maria de Lourdes Parreiras 97, 111, 121, 171, 188

I
Ianni, Octávio 124, 144
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional 5, 10, 60, 106, 122, 187,
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

188, 206, 217, 223, 227, 254, 259, 261


Irmão Lourenço 158, 159, 160, 161

J
Jacobi, Pedro Roberto 150, 151, 165
Janot, Rodrigo 251
Jenkins 220
Jones, Sian 44, 71

K
Karsburg, Alexandre 177, 189
Kern, Arno Alvarez 192, 197, 206
Kirchhoff, Paul 131, 144
Krivoshein de Canese, Natalia 58, 71

269
L
La Salvia, Fernando 43, 72, 206
Landa, Beatriz dos Santos 46, 72
Laraia, Roque de Barros 104, 122
Leal, Claudia Feierabend Baeta 262
Leff, Enrique 149, 150, 155, 165
Leis, Héctor R. [sic] 148, 149, 150, 165
Leite Filho, Deusdedit Carneiro 126, 127, 144
Lima da Costa, Marcondes [Prof. Dr.] 130
Lima Júnior, Antônio Augusto de 159, 165
Lima, Tania Andrade 254
Little, Barbara J. [sic] 27, 28, 31, 72
Lopes, Raimundo 126, 127, 128, 130, 144
Lopes, Daniel F. [sic] 126, 127, 143
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

M
Machado, Ana Lúcia 126, 127, 143
Machado, Gerson 31, 71, 74, 126, 127
Machado, Juliana 215
Machado, Paulo Pinheiro 173, 178, 186, 189, 190
Machado, Paulo Affonso Leme 258, 262
Machado, Renato de Freitas Souza 249
Malfatti, Anita 168
Marques, José Geraldo [sic] 153, 165
Martin, Gabriela 126, 144
Martins, Angela Maria 134, 144
Matias, Carlos dos Passos Paulo 13, 26, 30, 182, 167
Maurício, Vinhas de Queiroz 173, 174, 186, 190
Meggers, Betty Jane 39
Melià, Bartolomeu 46, 47, 48, 61, 72
270 Mello, Celso Antônio Bandeira de 237, 262
Mendes, Gilmar
Menotti Del Picchia
Merriman, Nick
Mignolo, Walter D.
Milheira, Rafael Guedes
Miranda, Marcos Paulo Souza
Montalvão, Ana Carolina Motta Rocha
Monteiro, Adriane Queiroz 97, 121, 171, 188
Monteiro, Duglas Teixeira 174, 186, 189
Montoya, Antonio Ruiz de
Moraes, Tobias Vilhena
Moran, Emilio Frederico
Morato Leite, José Rubens 239, 262
Moreira da Silva, Lázaro 49, 63, 64, 72
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

Muir, John 151


Mura, Fabio 47, 68, 70, 72
Muraro, Valmir Francisco 61, 72

N
Nassar, Paulo 217, 224
Navarro, Alexandre Guida 12, 25, 29, 123, 126, 144
Neves, Eduardo 215
Neves, Eduardo Góes 42, 71, 127, 145
Neves, Walter Alves 43, 73
Nimuendaju, Curt 47, 73, 75
Noelli, Francisco Silva 43, 47, 48, 71, 73
Nogueira, Carmen Regina Dorneles 198, 207
Nora, Pierre 80, 94
Nowaztki, Carlos Henrique 192
271

P
Pacheco de Oliveira, João 44, 68, 70, 73, 74
Padgomy, Irina 42, 71
Palú, Lauro 162, 165
Peixoto, Leandro Rabelo 160
Pelegrini, Sandra de Cássia Araujo 124, 125, 143, 171, 189
Pena, Afonso 160
Pereira da Silva, Luciano 33, 73
Pereira, Levi Marques 38, 44, 46, 47, 49, 71, 73
Pessis, Anne-Marie 100, 106, 122
Phillips, Philip 40, 75
Pimbert, Michel 151, 152, 166
Pinchot, Gifford 151
Pinheiro Machado, Paulo 173, 186, 190
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

Pinsky, Jaime 101, 121


Plastino, Marina Ramos 158, 166
Porro, Antonio 126, 128, 145
Posey, Darrell A. [sic] 153, 166
Pretty, Jules 151, 152, 166
Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas – PRONAPA 39, 40, 44
Prous, André 126, 145

R
Read, Dwight W. [sic] 131, 143
Renfrew, Colin 54, 74
Ribeiro, Wagner Costa 150, 166
Rodrigues, José Eduardo Ramos 230, 262
Rodrigues, Marian Helen da Silva Gomes 4, 5, 17, 20, 25, 29, 96, 107, 118, 119,
122
272 Rodrigues, Nelson 49
Rodrigues, Rogério Rosa 189
Rodríguez Ramos, Reinaldo 131, 145
Roosevelt, Anna Curtenius 127, 145
Rosa, Albino Pereira da 62
Rosa, Ataliba Pereira da 62, 65, 66, 71

S
Salvadori, Maria Ângela Borges 171, 189
Santos, Ana Flávia Moreira 44, 74
Santos, Boaventura de Souza 79, 94
Santos, J. A. M. [sic] 66, 74
Santos, José Getúlio dos 11, 25, 29, 76
Santos, Maria Cristina dos 46, 74
Santos, Maria do Carmo Monteiro dos 66, 74, 241, 261
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

Santos, Sebastião Ovildo dos 11, 25, 29, 76


Saul, Marcos Vinicios de Almeida 61, 72
Schaden, Egon 56, 74
Schiavetto, Solange Nunes de Oliveira 43, 74
Silva, José Afonso da 234, 262, 263
Silva, Tailine Rodrigues Valério da 91, 95
Simões, Mário F. [sic] 127, 145
Soares, André Luiz Ramos 43, 46, 48, 74
Soares, Inês Virginia Prado 15, 26, 30, 226, 258, 263
Sociedade Brasileira de Arqueologia 30,
Souza e Silva, Luciano 262
Souza, Flavia Cristina A. de [sic] 31, 71, 74
Souza, Olivia Carla Neves de 38, 68
Souza, Zani Tobias de 244
Spix, Johann Baptist von 160
273 Stefanes Pacheco, Roseli Aparecida 49, 60, 61, 64, 74
Steinbach, Judith 31, 71, 74
Stuchi, Francisco Forte 33, 44, 74

T
Tamanini, Elizabete 28, 31, 74
Tarsila do Amaral
Tea, Gloria 14, 26, 30, 208, 213
Tega-Calippo, Glória Maria Vagioni 211, 212, 225
Teixeira, Adriana 170, 187
Tenório, Maria Cristina 43, 74
Terra, Carolina Frazon 209, 210, 211, 220, 222, 225
Thaddeu, Vera 193, 194, 196
Thompson, Edward Palmer 174, 175, 186, 190
Thoreau, Henry David 151
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

Tochetto, Fernanda 197


Tofolli, Dias 251, 260
Toledo, Víctor M. [sic] 153, 166
Tolstoi, Leon 79
Tremembé, Estevão Henrique 79, 86
Tremembé, Getúlio 76, 82, 88
Tremembé, Raimundão 78
Trigger, Bruce 41, 74

U
Urban, Greg 43, 73
Ursúa, Pedro de 126, 128

V
Valentini, Delmir José 13, 26, 30, 167, 180,189, 190
274
Venância, Maria 11, 88
Venâncio, Cacique João 77
Vespúcio, Américo 126
Viçoso, Antônio Ferreira 160
Vilela, Ludiane das Chagas [sic] 90, 95
Viveiros de Castro, Eduardo Batalha 43, 46, 47, 49, 73, 75, 132, 145
Von Martius, Karl Friedrich Philipp 160

W
Wagner, Gustavo Peretti 43, 72
Wanderley, Elaine Cristina Guedes 33, 44, 75
Wehling, Arno 172, 190
Willey, Gordon Randolph 40, 75
Wolf, Cristina Scheibe 176, 190
Woodward, Kathryn 77, 95
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

Z
Zamboni, Lilian Márcia Simões 211, 225
Zanirato, Silvia Helena 150, 166
Zico, José Tobias 158, 160, 161, 162, 166

275
A MULTIVOCALIDADE DA ARQUEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL:
Comunidades, práticas e direitos

276

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